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A Noiva Do Conde Louco

The Mad Earl's Bride


Loretta Chase

Um Conde cujas enxaquecas são


consideradas um sintoma de loucura e que
está à beira da morte, e uma ruiva de olhos
verdes capaz de lhe dar o herdeiro que tanto
deseja.

Revisão: Mel
Formatação: Vicky

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Antologia Três Bodas e Um Beijo (Three
Weddings And a Kiss)

Autor Título Ebo


Anderson, Fancy Amor De
Catherine Free(ss)
Chase, Loretta The Mad A Noiva Do C
Earl's
Bride(ss)
Kleypas, Lisa Promises(ss) Falsas Pro
Woodiwiss,Kathleen The Kiss(ss) O Be
E.

Série Canalhas (Série Scoundrels)


Ordem Título Ebook
1 The Lion's O Encanto De Um Patife
Daughter
2 Captives Cativos Da Noite
Of The
Night
3 Lord Of Abandonada Em Seus Braço
Scoundrels
4 The Mad A Noiva Do Conde Louco
Earl's
Bride(ss)
2
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Ordem Título Ebook
5 The Last Tudo Por Um Beijo
Hellion

Prólogo

Devon, Inglaterra Junho de 1820

O Diabo tinha predileção por Dattmoor.


Em 1638, desatou uma tormenta no
Widdecombe, arrancou o telhado da igreja com
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um relâmpago e levou um menino que estava
dormindo durante o serviço.
E essa não foi mais que uma de suas
muitas aparições pessoais. Satã aparecia com
mais freqüência sob a forma de um enorme
sabujo negro ou um potro fantasmagórico que
galopava nos paramos.
A ninguém surpreendia esta afeição, pois
nada podia adaptar-se melhor à natureza
satânica de Dartmoor.
As tormentas castigavam as terras altas
rochosas, que se erguiam, teimosas, no
caminho dos montes do Atlântico. Ventos
pesados e úmidos formavam redemoinhos nos
vales e envolviam as aldeias em névoas
impenetráveis, que cortavam durante dias toda
comunicação e toda possibilidade de viajar.
E depois estavam os pântanos que
enchiam os buracos e fendas das terras altas e
se contraíam e inchavam com cada mudança
de clima e de estação.
Atravessando este território hostil,
retorciam-se estreitos caminhos de uma terra
firme, mas inclusive estes podiam ser
perigosos. De noite, em meio da névoa ou de
uma tormenta, não era difícil que o viajante
despreparado se perdesse e, se tinha um
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excesso de má sorte, escorregasse em um
pântano do qual jamais poderia sair.
Havia quem acreditasse que os pântanos
eram armadilhas que o Diabo mesmo
colocava, para chupar as vítimas diretamente
até o inferno: isto dizia Aminta Camoys a seu
filho.
Era a primeira visita que Doam Camoys, de
vinte e três anos, fazia a Dartmoor, e a
primeira vez que via sua mãe desde o Natal.
— Quanta consideração de Archicanalla
depois de ser asfixiado lentamente pelas
areias movediças, o desafortunado pecador se
topará com as torturas do inferno, que afetarão
menos a sua sensibilidade.
A mulher assinalou um retalho de terra
verde, em meio as desoladas extensões.
— Há alguns de um verde viçoso, como
esse. Há um maior, uns oitocentos metros
mais adiante, mas é cinza, muito melhor para
camuflagem.
A tarde tinha sido luminosa e morna
quando saíram a cavalgar, mas agora um
vento gelado girava ao redor, e apareciam
nuvens cinza que arrastavam a suas
predecessoras brancas e envolviam a zona de
paramos em sombras.
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— Obrigado pelas indicações, mãe — disse
Dorian. — Mais estou convencido de que
poderei encontrar o caminho do inferno.
— Acredito que já o encontraste. — A
mulher o olhou e riu — Tal mãe, tal filho.
O filho se parecia com sua mãe de mais
modos que os que qualquer podia suspeitar.
Embora fosse muito mais alto, com mais
de metro e oitenta, o parecido físico era
inconfundível. Enquanto que seus rasgos eram
nitidamente masculinos, na atualidade pálidos
e inchados por meses de dissipação,
procurada com tanta diligência como a que
aplicava aos estudos, tinha o mesmo rosto de
modelo exótico.
Nesse momento, ninguém teria suspeitado
que também a mãe fosse aficionada aos
pecados da carne. O único que sabia, além de
seus amantes, era precisamente o filho. Dorian
era seu único confidente.
"Minha mãe, a adúltera", pensou,
contemplando-a.
Igual a ele, detestava os chapéus, e até
lhe incomodavam os que significavam uma
modesta concessão à correção social. Tirou o
chapéu logo que ficaram fora da vista da casa.
O espesso cabelo negro, como o de seu filho,
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embora muito mais longo, castigava-lhe o rosto
e o pescoço, agitado pelo vento que
aumentava. E quando se voltou para ele,
contemplou o mesmo olhar amarelo, fixo.
Por causa da estranha cor de seus olhos e
de seu olhar desconcertante, e também porque
se isolava de qualquer um que se aproximasse
muito, os companheiros do Eton lhe tinham
posto o apelido de Gato. O apodo o seguiu
para Oxford.
— Será melhor que tome cuidado — lhe
disse sua mãe. — Se seu avô descobrir que o
motivo de sua palidez não é só o estudo,
encontrará que esses planos que riscou com
tanto cuidado serão varridos pela tormenta de
sua ira.
— Ensaiei o suficiente a ingenuidade para
estar seguro de que não me descubra — disse
Dorian— Pode ficar tranqüila; no Natal terei um
aspecto enganosamente são, quando tiver que
receber o discurso anual destinado a guiar
minha conduta durante o resto do ano. Depois
verei como revisa, possivelmente pela
centésima vez, cada centavo dos relatórios
acadêmicos, procurando uma desculpa para
me fazer sair da universidade. Mas não
encontrará essa desculpa, por mais que a
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busque. Terei meu título, com honras, ao final
do seguinte término de Páscoa, e se verá
obrigado a me recompensar com um ano de
viagem ao estrangeiro, como tem feito com os
outros.
— E não retornará. — disse a mãe.
Afastou-se e voltou à vista para os paramos
que os rodeavam.
— Se voltar, nunca estarei livre dele. Se
não encontrar trabalho fora do país, estarei
atado aos cordões de sua bolsa até o dia em
que morra.
Era uma perspectiva insuportável.
O avô de Dorian, o conde do Rawnsley, era
um déspota.
O pai do Dorian, Edward, era o mais jovem
dos quatro filhos do conde, que viviam todos
em Rawnsley Hall, em Gloucester, com suas
esposas e filhos, de onde Sua Senhoria podia
controlar cada minuto de vigília em suas vidas.
Os adultos podiam ir-se por breve tempo e até
ficar em Londres durante a temporada, e os
meninos, às vezes, iam à escola; mas
Rawnsley Hall era o lar de todos eles ou sua a
prisão, e o amo os governava de maneira
absoluta. Sempre, em qualquer lugar que
estivessem, deviam comportar-se e pensar
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como ele lhes tinha ordenado fazê-lo.
Faziam-no porque não tinham alternativa.
Não só controlava todo o dinheiro dos
Camoys, mas também era um malvado.
Esmagava o menor foco de rebelião e não
tinha escrúpulos com respeito ao modo de
fazê-lo.
Por exemplo, quando as chicotadas, os
sermões e as ameaças de condenação eterna
não sortiam efeito com Dorian, lorde Rawnsley
voltava sua indignação para os pais do menino
incorrigível. Isso tinha resultado. Dorian não
podia manter-se à margem, vendo como seus
pais eram castigados e humilhados pelas faltas
dele.
Portanto, embora tivesse nascido com um
caráter forte e rebelde, Dorian aprendeu desde
muito pequeno a reservar seus sentimentos e
opiniões.
Como seu comportamento público estava
estritamente regulado, quando único podia
considerar próprio era sua mente, e esta era
excepcionalmente boa. Isso também o tinha
herdado da mãe, pois todos Camoys não se
destacavam pela acuidade de seu intelecto.
O desempenho do Dorian no Eton tinha
sido tão brilhante que seu avô se viu obrigado
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a enviá-lo a Oxford. Do mesmo modo, um ano
depois, lorde Rawnsley teria que lhe financiar
um ano no exterior.
Dorian disporia de um ano no continente
para procurar trabalho. Estava seguro de que
conseguiria sobreviver e não o preocupava a
pobreza, ao começo. Já chegaria o momento
em que ascenderia. Quando único devia fazer
era concentrar-se, igual a nos estudos e
manter sob estrito controle sua debilidade
sensual.
Ao pensar neste último, tanto sua atenção
como seu olhar voltaram para sua mãe que se
tirou as luvas e brincava com os anéis.
Por Deus, como gostava das
quinquilharias! E os vestidos na moda, e a
sociedade e suas intrigas românticas.
Perguntou-se por que teria ido a Dartmoor,
pois, embora tenha nascido e se criado ali, não
conjugava com sua natureza. Era uma mulher
feita para a alegria em sociedade, as festas, as
falações e os admiradores que buliam a seu
redor.
Dorian imaginava encontrá-la
desesperadamente aborrecida e, entretanto,
achou-a mais tranqüila do que recordava havê-
la visto jamais. Supôs que se devia a recente
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enfermidade que tinha sofrido. Mas, de todo os
modos, não podia deixar de perguntar-se por
que tinha pedido que a levassem precisamente
ali, quando o médico lhe sugeriu uma mudança
de ar. O pai do Dorian lhe contou que tinha
sido terminante a respeito.
Dorian lhe aproximou:
— Queria que pensasse em minha
proposta de vir a ficar comigo, no continente.
— Não seja ridículo — lhe respondeu sua
mãe— Não posso viver em uma água-furtada.
E não diga que ira sentir falta de mim —
adicionou, irritada — Nunca te servi de nada.
Fiz todo o possível para arrumar isso sozinha,
coisa que, como bem sabe, não é nada fácil.
Senhor, estou muito cansada disto. Não tem
idéia do alívio que significa estar aqui, longe da
tentação, das eternas conspirações, e planos e
mentiras. E fingir, sempre fingir. Não é de
sentir saudades que me doa a cabeça. Está
tão acostumada a trabalhar que não sabe
como parar. Quando não há nada em que
pensar, faz algo.
Apartou-se o cabelo do rosto, hábito que
também tinha seu filho, e que sempre tinha
irritado ao avô.
— Esse é o problema dos segredos —
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disse a mulher — Nunca pode te liberar deles.
Perseguem-lhe... como fantasmas.
Dorian sorriu:
— Seus pecados não são tão graves, mãe.
Dizem que a avó do Bertic Trent troca de
amantes como de chapéus.
Aminta pareceu não ouvi-lo, enquanto
deixava vagar o olhar pelas desoladas
extensões que tinham diante.
— Sonhei que meus pecados tornavam
forma de fantasmas — disse em um tom
estranho — Perseguiam, como as Fúrias dos
mitos gregos. Era aterrador... e muito injusto.
Não posso ir de encontro a minha natureza.
Você o entende.
Dorian a entendia muito bem. Embora
odiasse essa debilidade em si mesmo, fizesse
o que fizesse, não podia controlá-la. Não podia
resistir à fragrância de uma mulher; quase não
podia resistir pensar em qualquer uma delas.
Portanto, essa necessidade o impulsionava...
Deus, que distâncias percorria, a que
subterfúgios recorria. E depois sempre ficava
enojado.
Dorian sabia que o de sua mãe não era tão
mau, mas acontecia que ela estava sob uma
constante vigilância, e ele não, e, além disso,
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como era mulher e menor, seus apetites
também o eram. Entretanto, inclusive suas
pequenas escapadas cobraram tributo em sua
saúde.
Dorian sabia que teria que fazer caso da
advertência que isso significava. Fazia muito
pouco que sua mãe estava recuperada. Fazia
mais de seis meses que o senhor Budge, o
famoso médico dos Camoys, tinha-lhe
diagnosticado uma "consumição". Tinha
passado todo esse tempo entre uma chaise
longue e a cama.
Dorian não podia permitir um período tão
prolongado de debilidade. Se o fazia, atrasaria-
se nos estudos... e se atrasaria a viagem ao
exterior... e as amarras com seu avô se
prolongariam...
Ante a perspectiva tão sombria, sacudiu a
cabeça.
— É Dartmoor — disse, com ligeireza —
Cada metro desta terra parece sofrer uma
maldição. Não me assombra que sonhe com
fantasmas e demônios. Sentiria saudades que
não te acontecesse.
Sua mãe riu, deu-lhe as costas e sentiu que
sua melancolia se dissipava tão velozmente
como se abateu sobre ela.
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Desde esse momento até o fim da visita de
dois dias de Dorian, a mãe pareceu ser outra
vez tão vivaz como sempre. Junto com outras
lendas sobre o Dartmoor, contou-lhe todas as
intrigas de Londres que tinha surrupiado a
seus amigos e lhe relatou anedotas um tanto
escandalosas que faziam ruborizar e rir ao pai,
ao mesmo tempo. Afastado do Rawnsley Hall,
Edward Camoys era mais humano, deixava de
ser a marionete de seu pai e, entretanto,
tratava a sua esposa como a uma menina
desencaminhada, situação que veio bem aos
dois durante anos.
Quando Dorian partiu, tudo parecia estar
bem.
Não tinha idéia de que seu pai também
tinha segredos que, à medida que transcorriam
os meses, ao Edward Camoys se o fazia cada
vez mais difícil ocultar.
A freqüência das cartas da Aminta Carnoys
era, no melhor dos casos, tão irregular como a
do Dorian. Por isso não suspeitou de nada,
embora não tivesse notícias dela até princípios
de setembro.
Não foi a não ser até pouco antes do Natal
quando tio Hugo, o filho mais velho e herdeiro
do conde, apareceu inesperadamente em
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Oxford e, soube depois, contra as ordens do
conde, Dorian se inteirou da verdade.
Logo, sem fazer caso das advertências de
seu tio, Dorian alugou um carro de postas e
rumou para o norte.
Encontrou a sua mãe onde Hugo lhe disse
que estava.
Era um asilo para lunáticos, privado,
exclusivo e muito caro.
Dorian a encontrou em um pequeno quarto
pestilento, atada a uma cadeira. Levava um
vestido de algodão manchado e em seus pés
delicados grosas e ásperas meias. Seu
comprido cabelo negro estava oculto em uma
calota escura. Ao princípio, não o reconheceu.
Quando ao fim o fez, chorou.
Dorian, em troca, não chorou, mas sim
amaldiçoou por dentro, enquanto te desatava
as cruéis ligaduras, coisa que atraiu ao
empregado à carreira, mas o moço estava
muito perturbado para adverti-lo. Levou a mãe
à estreita cama, deitou-a e se sentou ao lado,
lhe espremendo as mãos geladas, e escutou,
com as vísceras lhe bulindo, o relato de sua
mãe sobre o que lhe tinham feito.
Contou-lhe que tinha adoecido outra vez e,
em sua debilidade, revelou seus segredos.
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Agora o conde sabia de tudo, e por isso a
encerrou, para castigá-la por ser uma mulher
lasciva. Os cuidadores mortificavam sua carne
para que se arrependesse: matavam-na de
fome, vestiam-na com trapos pestilentos e a
faziam dormir sobre lençóis sarnentos.
Inundavam-na em banheiros gelados.
Rasparam sua cabeça. Não a deixavam
dormir: golpeavam à porta, chamando-a
prostituta, Jezabel e lhe diziam que o Diabo ia
procurar a alma dela.
Dorian não sabia o que pensar.
Embora a mãe soluçasse inverificado, seu
discurso era coerente. Entretanto, o tio Hugo
lhe disse que tinha atacado ao pai com uma
faca e tentado incendiar a casa principal de
Dartmoor. Que ouvia vozes, via coisas
imaginárias e gritava que havia fantasmas e
que garras cruéis lhe rasgavam a cabeça.
Edward Camoys não tinha falado a ninguém
sobre o estado de sua esposa e tratava de
cuidá-la com ajuda do médico da zona, o
doutor Kneebones. Mas o conde os tinha
visitado em Dartmoor um mês antes e,
horrorizado pelo que viu, chamou médicos de
Londres. Chegaram à conclusão de que
necessitava "o cuidado de peritos" e lhes
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recomendaram o manicômio privado do senhor
Borson.
— Não me olhe assim — chorava agora
Aminta — Estava doente, nada mais, e a dor
era espantosa, destroçava-me a cabeça de tal
modo que não podia ver bem. Não podia
pensar. Não pude conter a língua. Eram muitos
segredos, Dorian, e eu estava muito fraca para
não revelá-los. OH. Por favor, querido, me tire
deste lugar perverso.
A Dorian não importou qual era a verdade.
Só soube que não podia deixá-la ali. Procurou
ao redor algo com que agasalhá-la, para
mantê-la abrigada e poder levar-lhe mas só
tinha as pestilentas roupas de cama.
Estava arrancando as da cama quando
voltou o empregado com reforços e o avô de
Dorian.
No instante em que o conde entrou, Aminta
se converteu em uma diablesa. Vomitando
obscenidades e ameaças com voz gutural, que
ao Dorian custava acreditar que fosse dela,
equilibrou-se para lorde Rawnsley. Quando
Dorian tentou apartá-la, cravou-lhe as unhas
na cara. Os empregados a sujeitaram e logo a
algemaram à cama, onde alternou espantosos
juramentos com soluços que partiam a alma.
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Como Dorian protestasse pelas dolorosas
ataduras, os empregados, por ordens do
conde, tiraram-no da habitação, e depois
também do edifício. Expulso, Dorian se
passeou ante a carruagem do avô, repassando
a cena em sua mente uma e outra vez.
Não podia deixar de estremecer-se,
porque não conseguia sacudir a doentia
compreensão do que sua mãe devia sentir. Em
seus imprevisíveis momentos de lucidez, como
o que gozava no primeiro momento que a
encontrou, podia olhar ao redor e reconhecer
seu próprio estado e o lugar onde estava.
Pôde imaginar sua ira e sua pena ao ser
tratada como um animal sem consciência.
Também se imaginava com toda nitidez seu
pânico ao perceber que lhe escapava o
controle de si mesmo e que a escuridão se
abatia sobre sua razão. Estava convencido de
que sua mãe sabia o que estava lhe
acontecendo porque o disse: disse-lhe que
estava fraca e que não podia controlar-se.
Sabia que sua mente, em outro tempo
formidável, estava traindo-a, e isso era o pior.
E por isso quando saiu o avô, Dorian se
recompôs com grande esforço e, tragando o
orgulho, suplicou-lhe:
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— Por favor, deixe-me levá-la a qualquer
outro lugar — disse — Eu ajudarei a cuidá-la.
Não tenho porque retornar a Oxford. Posso
terminar mais adiante. Sei que meu pai e eu
poderemos arrumar isso com a ajuda de um ou
dois criados. Rogo-lhe isso, avô, me deixe...
— Você não sabe nada disto — o cortou
lorde Rawnsley com frieza— Não sabe nada
dos ardis e subterfúgios de sua astúcia de
louca. Fez seu pai fazer o papel de tolo, e hoje
tem feito o mesmo contigo. E agora Borson diz
que é impossível saber quanto dano causou
que você pusesse de sua parte, contra os que
sabem o que tem que ser feito, e que lhe
fizesse promessas que não pode cumprir.
Agora estará alterada durante dias,
possivelmente semanas. — calçou as luvas —
Mas sempre foi assim. Você sempre foi digno
filho dela, tanto em temperamento como na
aparência. E agora te propõe arruinar seu
futuro para cuidar de uma pessoa a que jamais
lhe importou ninguém, além de si mesmo.
— É minha mãe — disse Dorian, rígido.
— E minha nora — foi a severo réplica —
Sei qual é meu dever para minha família. A
cuidarei como é devido, e você retornará a
Oxford, a cumprir suas obrigações.
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Duas semanas mais tarde, em meio a um
violento ataque, Aminta Camoys se desabou e
morreu.
Morreu no manicômio que Dorian não pôde
resgatá-la, enquanto ele estava em Oxford,
sepultando sua ira e sua pena nos estudos,
porque não tinha outra alternativa. Não tinha
dinheiro nem poder para resgatá-la, e o avô
era capaz de castigar a qualquer um que se
atrevesse a ajudá-lo.
Não contou a ninguém o acontecido, nem
sequer ao Bertie Trent, o único amigo que
tinha.
Assim, ninguém mais que a família Camoys
— e só existia a família imediata — soube que
Aminta Camoys tinha morrido em meio a uma
furiosa loucura, no custoso inferno que era o
manicômio do senhor Borson.
E nem mesmo então a deixaram em paz.
O avô deixou que os malditos doutores
esquadrinhassem seu pobre cérebro morto,
para satisfazer sua tenebrosa curiosidade. A
malha cerebral estava debilitada, e
encontraram restos de hemorragia. Durante o
último ataque, quebrado-se um copo
sangüíneo, um de quão muitos podiam haver-
se rolo em qualquer momento, pelo frágeis que
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estavam. Os médicos chegaram à conclusão
de que seu prematura decadência tinha sido o
primeiro indício externo da deterioração
interna, que tinha começado muito antes. As
dores de cabeça eram outros sintomas
provocados pelo lento derrame.
Afirmavam que ninguém pôde ter feito nada
por ela. Simplesmente a ciência médica não
tinha modo de detectar a tempo esses
defeitos, nem de curá-los.
E assim foi como Borson e seus
associados se livraram de toda culpa como se
não tivessem convertido os últimos meses de
vida de Aminta em um inferno.
E os Camoys se ocuparam de que
tampouco recaísse nenhuma culpa sobre a
família.
Havia-se "precipitado em um súbito
declive", foi a história que divulgaram, pois
nenhum Camoys, embora fosse por
matrimônio, podia estar louco. Nem um
espinho de loucura tinha aparecido na família
durante séculos, desde que Henri do Camoys
chegou da a Normandia, com o Guillermo o
Conquistador.
Inclusive entre eles mesmos, nunca
mencionavam a demência, como se assim
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pudessem fazer que a verdade se apagasse,
como uma visita inapropriada.
Ao Dorian convinha. Se fosse obrigado a
escutar as pouco piedosas hipocrisias dos que
apontavam sobre a loucura de sua mãe, teria
corrido risco de cometer algum ultraje e ser
destruído, como tinha sido ela.
Depois do funeral, retornou a Oxford e
sepultou seus sentimentos, como sempre, no
estudo, era o único que podia fazer, o único
que avô não conseguiria esmagar ou retorcer,
para que servisse a seus tirânicos propósitos.
Por isso, ao finalizar seus estudos, Dorian
não só obteve o título mas também obteve
algo que até então nenhum Camoys tinha
obtido: ganhou o primeiro Utteris
Humattioribus.
Em Rawnsley Hall se realizou a tradicional
celebração, a hipocrisia costumeira. Dorian
nunca tinha sido, em realidade, um dos
Camoys, e sabia que seu triunfo acadêmico
incomodava enormemente à família, como um
todo. Não obstante, deviam conservar a
aparência de unidade familiar, e para Dorian
foi mais fácil fingir, tendo a liberdade tão perto,
tão poucas semanas, estaria no continente, e
não retornaria até que seu avô estivesse
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enterrado na tumba, com seus insignes
antecessores.
Enquanto isso, Dorian podia desempenhar
seu papel como o tinha feito durante anos e
suportar a simulação e a hipocrisia da família.
"Fingir, sempre fingir", havia dito sua mãe.
E acreditou que sua mente se afundou sob
tanto esforço. Muitos segredos, muito fraco
para conservá-los.
Dorian não sabia que os próprios não
tinham sido os únicos segredos que sua mãe
revelou.
E não o descobriu até vinte e quatro horas
depois da assim denominada celebração. E o
único que pôde fazer Dorian foi ficar de pé e
escutar, impotente, durante uma hora
interminável, o arrepiante discurso que
destruía e dispersava os pedaços de seus
planos como se tivessem sido pó e o deixavam
sem nada mais que o orgulho para sustentá-lo.
Dorian foi expulso do Rawnsley Hall com
seis libras e umas moedas no bolso. Isto se
deveu a que lorde Rawnsley esperava que
humilhasse a cabeça, pronunciasse discursos
de arrependimento e suplicasse perdão e
Dorian decidiu que o conde podia esperar até
o Dia do Julgamento Final que o fizesse.
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O avô o apontou e chamou escravo dos
apetites mais baixos, de seguir sem pudor e
sem descanso um caminho que só podia
conduzi-lo à loucura e uma morte odiosa por
enfermidades vergonhosas contraídas da
gente de baixo estofo que freqüentava.
Embora Dorian soubesse que era certo,
lhe ocorreu que poderia haver fundo além da
vergonha, porque não sentiu nem um pouco de
remorso em seu coração, só ira. Não se
submeteria, não podia submeter-se ao avô
nunca mais. Preferia passar fome e morrer em
um imundo bairro baixo antes de retroceder,
arrastando-se.
Partiu sabendo que teria que sobreviver por
seus próprios meios, pois o conde causaria
problemas a qualquer um que ajudasse a seu
neto errante.
Então Dorian foi a Londres. Ali assumiu
uma identidade nova e se converteu em parte
das massas de seres insignificantes.
Encontrou alojamento: um quarto úmido entre
as moradias lotadas do East End, e emprego
como estivador nos moles, de dia, e estagiário
em um estudo jurídico, de noite. Em nenhum
dos dois tinha futuro, mas não o tinha em
sentido geral, pois as portas de todas as casas
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respeitáveis estavam fechadas para ele.
Entretanto, embora o trabalho nos moles de
vez em quando escasseava, os advogados o
mantinham ocupado. Não havia muito perigo
de que ficassem sem documentos. E quando a
monotonia do trabalho ameaçava lhe
esmagando o ânimo, podia comprar um pouco
de distração passageira com uma rameira
mais ou menos limpa e uma garrafa, por
poucas moedas.
Os meses foram convertendo-se em anos,
e o avô seguia esperando que o neto pródigo
voltasse arrastando-se a suas mãos, e este,
que o avô morresse.
Mas a epidemia de gripe que levou o pai de
Dorian, o tio Hugo, a duas tias e a vários
primos em 1826 deixou intacto ao amo e
senhor de todos eles.
Logo, no verão de 1827, de súbito Dorian
adoeceu e começou a decair.

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Dartmoor, Devon Princípios de maio de
1828

Dorian estava de pé na biblioteca do


Radmorc Manor, olhando pela janela ao longe,
os paramos estendiam sua lúgubre beleza.
Atraíam-no com força, como tinha acontecido
em suas fantasias doentias durante os meses
de sua enfermidade em Londres, quando caiu
doente tão gravemente que estava muito fraco
para sustentar a pluma sequer.
Em agosto, Hoskins, o empregado de um
advogado, encontrou-o quase inconsciente,
jogado sobre um documento manchado de
tinta.
— Irei procurar a um médico.
— Não. Médicos não, pelo amor de Deus.
Dartmoor, me leve a Dartmoor. Tenho dinheiro
economizado guardado debaixo das pranchas
do chão.
Hoskins poderia haver fugido com o
pequeno cofre, e o céu sabia que necessitava
de dinheiro, vivendo, como o fazia, de seu
magro salário de empregado. Mas não só fez o
que Dorian lhe pedia mas também ficou a
cuidá-lo. Ficou inclusive depois de que Dorian
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se recuperou... ou isso pareceu.
Mas essa aparente recuperação não
enganou o mesmo Dorian. Do primeiro
momento dessa enfermidade, igual à de sua
mãe, anos antes, suspeitou que não era mais
que o princípio do fim.
Em janeiro, quando começaram as dores
de cabeça, confirmaram-se suas suspeitas. À
medida que passavam as semanas, os
ataques se voltaram cada vez mais cruéis,
como tinha ocorrido com os de sua mãe.
A noite anterior à passada teve vontades
de golpear a cabeça contra a parede. ... dor...
dilaceradora na cabeça... não podia ver bem...
não podia pensar.
Agora compreendia bem o que sua mãe
tinha querido dizer. Mas, mesmo assim, teria
suportado a dor, não teria mandado procurar o
Kneebones a manhã do dia anterior se não
tivesse sido pelo espectro de débil
luminosidade que viu. Foi então quando Dorian
compreendeu que teria que fazer algo antes
que as tênues ilusões visuais se convertessem
em fantasmas, como tinha acontecido a sua
mãe, e o levasse a violência, tal como tinha
passado com ela.
— Eu sei o que é — havia dito Dorian ao
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médico, quando o foi ver no dia anterior — Sei
que é a mesma enfermidade do cérebro, e que
é incurável. Mas preferiria terminar meus dias
aqui, se puder. Preferiria não terminar como
minha mãe, se pode evitar-se.
Naturalmente Kneebones devia satisfazer-
se a si mesmo e chegar a suas próprias
conclusões. E Dorian sabia que havia uma só
conclusão possível. A mãe tinha morrido oito
meses depois da aparição da "quimera visual",
os "fantasmas" que começasse a ver
acordada, e não só em sonhos, como havia
dito.
O máximo que Kneebones podia lhe
prometer eram seis meses. Disse que a
degeneração avançava mais rápido que no
caso de sua mãe, mercê a um "modo de vida
insalubre".
Não obstante, Kneebones lhe tinha
assegurado que os ataques violentos podiam
moderar-se com grandes doses de láudano.
— Seu pai, por temor a uma overdose, foi
muito parco com o láudano — lhe explicou o
médico — Logo, quando foi seu avô,
recriminou-me ter convertido à desventurada
mulher em uma viciada no ópio. E depois
apareceram os falsos peritos, que o
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denominaram "veneno" e disseram que tinha
sido a causa das alucinações, se o único que
fazia era as diminuir e tranqüilizar a sua mãe!
Recordando a conversação, Dorian sorriu.
O vício aos opiáceos era a menor de suas
preocupações, e uma overdose ao seu devido
tempo poderia lhe brindar um bem-aventurado
alívio.
Ao seu devido tempo, mas ainda não.
Por fora, o viam saudável e forte, e no
Dartmoor se viu livre do ódio a si mesmo que o
perseguia desde seu último ano no Eton,
quando o atraiu a tentação em forma de
mulher e descobriu que não podia confrontá-la.
Tal como havia dito sua mãe, neste lugar não
havia tentações. Quando sentia o velho
comichão e se sentia inquieto, cavalgava pelos
páramos comprido e tendido, até que ficava
exausto.
Aqui acharia refúgio, e pensava desfrutá-lo
todo o tempo que pudesse.
Ouvindo passos no corredor, Dorian se
afastou da janela e apartou o cabelo do rosto.
Levava-o muito comprido para a moda, mas
fazia anos que a moda tinha deixado de ter
importância para ele, e certamente não lhe
incomodaria quando jazesse no ataúde.
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Tampouco o incomodava muito pensar no
ataúde fazia já um tempo. Tinha contado com
vários meses para fazer-se à idéia de morrer.
Agora, graças à promessa do láudano, lhe
tinha aliviado a ansiedade. A droga o
atordoaria, evitaria-lhe ter consciência plena do
desventurado ser em que se converteria, e, ao
mesmo tempo, os que o cuidavam não teriam
motivos para temer por suas vidas.
Morreria em meio de um pouco parecido à
paz e à dignidade. Isso era melhor que as
multidões de desventurados nas latrinas de
Londres. Melhor que o que tinha suportado sua
mãe, sem dúvida alguma.
A porta da biblioteca se abriu e entrou
Hoskins, trazendo uma carta. Pô-la de barriga
para baixo sobre a mesa, e o selo ficou bem à
vista.
Era o selo do conde de Rawnsley.
— Maldição! — exclamou Dorian.
Abriu a carta, leu e a passou a Hoskins.
— Agora entenderá por que preferi ser um
João ninguém — disse Dorian.
Hoskins se tinha informado da identidade
verdadeira de Dorian no dia anterior, ao
mesmo tempo em que soube do estado de
saúde deste e que lhe brindou a oportunidade
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de partir, se o desejasse. Mas Hoskins tinha
lutado e sido ferido em Waterloo. Depois dos
horrores vividos ali, cuidar de um simples louco
era um jogo de meninos.
Mais ainda, para grande alívio de Dorian, a
atitude de Hoskins seguiu sendo prática, com
ocasionais raptos de humor patibular que lhe
levantavam o ânimo.
— Será o caráter irascível próprio da
idade? — perguntou Hoskins, lhe devolvendo a
carta — Ou o ancião cavalheiro sempre foi
assim?
— É insuportável. — respondeu Dorian —
Acredito que é assim de nascimento. E muito
convincente. Durante quase toda minha
juventude, eu estava convencido de que
sempre era o que tinha a culpa. Não há modo
de tratar com ele, Hoskins. O único que se
pode fazer é ignorá-lo. E isso não será fácil.
Carrancudo, jogou uma olhada à carta.
A tia sobrevivente, a viúva do Hugo, tinha
estado de visita no Dartmoor pouco tempo
antes e divisou ao Dorian em um de seus
galopes pelos páramos. Logo lhe escreveu ao
conde uma descrição muito exagerada do traje
que usava Dorian para cavalgar — ou, mas
bem, da falta dele — e lhe comunicou uma boa
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quantidade dos falatórios locais, grande parte
das quais consistiam em especulações
ignorantes sobre o excêntrico recluso que
habitava Radmore Manor.
A carta do conde ordenava apresentar-se
Dorian — o cabelo talhado como correspondia
e embelezado com decência — ante um
conselho familiar em doze de maio e explicar
sua atitude.
Dorian jurou para seus adentro que se o
queriam, teriam que ir buscá-lo e que nunca o
apanhariam vivo.
— Quer ditar uma resposta, senhor? —
perguntou Hoskins — Ou a jogamos no fogo?
— Eu mesmo escreverei a resposta. Do
contrário, seria tachado de cúmplice e ele te
faria sentir o peso de sua justa ira. — Esboçou
um leve sorriso — Então, a jogaremos no fogo.
Em doze de maio de 1828, o conde do
Rawnsley e a maior parte de sua família
próxima estavam reunidos na sala de
Rawnsley Hall, no momento que uma parte do
teto ancestral que tinham sobre eles escolheu
para derrubar-se. Em questão de segundos,
muitas toneladas de madeira, pedra e
diferentes elementos decorativos os
sepultaram e converteram ao Dorian Camoys
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— um dos escassos membros da família que
não assistiram — no novo conde do Rawnsley.

Em uma pequena sala de estar, em uma


casa do Wiltshire, Gwendolyn Adams lia o
periódico de semanas atrás onde se relatava o
episódio, e o repassou várias vezes até estar
segura de não ter passado por cima nenhum
detalhe.
Depois se concentrou nos outros três
documentos que tinha sobre o escritório. A
gente era uma carta escrita pela tia recém
falecida do conde atual. Nela dizia que seu
sobrinho se converteu em um selvagem.
O cabelo lhe chegava até os joelhos e
galopava meio nu pelos páramos, em um
cavalo branco que tinha recebido o nome de
um deus pagão sedento de sangue.
O segundo documento era o rascunho de
uma carta do conde a seu neto "selvagem".
Gwendolyn pôde fazer uma idéia muito clara
do motivo pelo que o herdeiro não tinha
assistido ao funeral.
O terceiro documento era a resposta do
atual conde à odiosa carta do avô, e a fez
sorrir pela primeira vez desde que o duque
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d'Abonville tinha chegado e lhe tinha feito essa
extravagante proposta.
A mãe de Abonville tinha sido uma do
Camoys, a árvore francesa de que provinha o
ramo inglês Camoys, séculos atrás, e,
portanto, prima longínqua de Rawnsley. Além
disso, Abonville era o prometido de Genevieve,
avó do Gwendolyn e viscondessa viúva do
Pembury.
Os dois assistiram ao funeral dos Camoys,
depois do qual, um advogado perseguido tinha
pedido ajuda ao duque como parente varão
mais próximo: terei que assinar documentos e
atender qualquer quantidade de assuntos
legais, e o atual lorde Rawnsley se negou a
assumir tais responsabilidades.
Nessa qualidade, o duque e Genevieve
tinham viajado ao Dartmoor. Ali descobriram
que o novo conde era vítima de uma
enfermidade terminal no cérebro.
O sorriso do Gwendolyn se esfumou. Bertie
Trent, seu primo, estava muito aflito pela
notícia. Nesse momento, estava oculto no
estábulo, chorando sobre uma velha carta de
seu amigo da infância, o Gato Camoys, tão
enrugada e pregada que já resultava ilegível.

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A moça apartou os papéis e levantou a
miniatura que Bertie lhe tinha dado.
Supostamente o minúsculo retrato
representava ao amigo do Bertie. Pintado fazia
anos por um artista bastante inepto, não lhe
dizia grande coisa.
Entretanto, Gwendolyn, com seus vinte e
um anos, tinha a cabeça muito bem posta para
apoiar a decisão mais fundamental de sua vida
em um retrato de pouco mais de cinco
centímetros de diâmetro.
Para começar, sabia que ela mesma não
era nenhuma beldade, com seu nariz e queixo
bicudos e esse impossível cabelo vermelho. E
não estava convencida de que seus olhos
verdes, aos que vários pretendentes tinham
composto louvores, bastante parvos como
certo, fossem suficiente compensação.
Em segundo lugar, a atração física carecia
de importância. Não pedia ao Rawnsley que se
apaixonasse por ela, nem ela e ele. Abonville
lhe tinha pedido que se casasse com o conde
e tivesse um filho com ele, para evitar a
extinção da descendência Camoys.
E pediu a ela porque pertencia a uma
família incrivelmente fértil, famosa por produzir
muitos varões. Ambas as características eram
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cruciais, pois o conde do Rawnsley não tinha
muito tempo para conceber um herdeiro. O
médico lhe tinha dado seis meses de vida.
Por desgraça, não havia nenhum
documento que esclarecesse muito a
enfermidade cerebral em si. O pouco que
Genevieve e Abonville sabiam os tinha
comunicado o criado do conde, Hoskins. Sua
Senhoria não tinha devotado detalhes, e
Genevieve acreditava que lhe surrupiar
informação teria sido desconsiderado.
Gwendolyn enrugou o sobrecenho.
Nesse momento, entrou sua mãe no quarto
e fechou com suavidade a porta.
— Realmente está pensando-o? —
perguntou-lhe, sentando-se perto do escritório
de Gwendolyn — Ou só faz demonstração de
dúvidas para o bem de papai?
Sim, se tomou tempo para refletir,
Gwendolyn não tinha dúvidas. Sabia que a
tarefa que lhe encomendavam não seria
agradável, mas não a angustiava no mais
mínimo.
As situações desagradáveis eram de
esperar. As enfermidades o eram, já fossem
da mente ou do corpo; se não tivesse sido
assim, não teriam dedicado tantos esforços a
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fazê-las desaparecer. Mas, por outra parte, as
enfermidades eram muito interessantes, e para
o Gwendolyn os loucos eram os pacientes
mais interessantes de todos.
O caso de lorde Rawnsley, que combinava
uma misteriosa doença neurológica com um
comportamento aberrante, não podia ser mais
fascinante.
Se o Todo-poderoso lhe tivesse mandado
uma carta assinada, ratificada por
testemunhas e notários, não poderia haver-se
sentido mais segura de que em sua infinita
sabedoria — em relação à qual a moça tinha
albergado dúvidas mais de uma vez — tinha
criado a ela especialmente para este propósito.
— Estava me certificando de que não
houvesse nada em que pensar — disse
Gwendolyn à mãe — Não o há.
Mamãe a contemplou durante compridos
instantes.
— Sim, ouvi a chamada celestial tão
claramente como você, e eu tampouco duvido.
Mas papai é outra questão.
Gwendolyn não o ignorava. Mamãe a
entendia. Papai, em troca, não. Nenhum dos
varões da família, incluíndo os Abonville.
Gwendolyn estava segura de que a idéia do
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matrimônio tinha sido instilada no cérebro do
duque por sua avó, ao mesmo tempo que o
tinha convencido de que era dele. Por fortuna,
Genevieve tinha um talento invejável para
fazer que os homens acreditassem no que ela
desejava muito.
— Conviria que deixássemos que
Genevieve o convencesse — disse Gwendolyn
— Do contrário, demorará as coisas pondo
montões de obstáculos desnecessários, e não
temos tempo a perder. Não se pode saber
quanto tempo Rawnsley conservará a razão, e
terá que estar lúcido para as questões legais.
Essa não era a única preocupação do
Gwendolyn. Nesse mesmo momento, o conde
do Rawnsley poderia estar em um de seus
audazes rodeios, arriscando-se a uma queda
fatal no pântano.
E então jamais teria a oportunidade de
fazer algo realmente valioso em sua vida,
antes que pudesse expressar sua aflição, a
mãe disse:
— Genevieve já começou a abrandar a seu
pai. Igual a mim, já sabia qual seria sua
resposta. Irei abaixo e lhe farei gestos de que
lhe dê o golpe de misericórdia. — levantou-se.
— Obrigado, mamãe — disse Gwendolyn.
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— Não tem importância — repôs a mãe,
com vivacidade — Não é o que eu teria
querido para ti, embora vás ser condessa do
Rawnsley. Se esse jovem não fosse amigo do
Bertie, e se não tivesse cuidado do idiota de
seu primo durante toda a carreira no Eton, e
certamente salvando seu imprestável cangote
centenas de vezes... —Lhe umedeceram os
olhos e lhe tremeu a voz quando continuou: —
Oh, Gwendolyn, não deveria deixá-la ir. Mas
não podemos permitir que esse pobre moço
morra sozinho. — Apertou o ombro de sua filha
— Te necessita, e isso é quão único deve
importar, eu sei.

Dorian Camoys estava apanhado em sua


própria biblioteca.
Tinha passado menos de duas semanas
desde que o duque do Abonville se
apresentasse ante sua porta.
E agora o francês estava de volta com
uma licença especial e uma mulher que insistia
em que Dorian se casasse com ela sem
demora.
Dorian poderia haver-se liberado do francês
e de sua absurda petição sem nenhuma
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dificuldade. Mas, por desgraça, junto com lady
Pembury e a moça que Dorian ainda não tinha
conhecido e que não tinha desejos de
conhecer, Abonville também tinha levado a seu
futuro neto, Bertie Trent.
E Bertie tinha metido na cabeça que seria o
padrinho de bodas do amigo.
Quando Bertie colocava algo na cabeça,
era quase impossível fazê-lo desistir. Isso se
devia a que Bertie era um dos homens mais
estúpidos que tinha existido jamais. Fazia
muito já que para o Dorian estava claro: essa
era, precisamente, a razão de que Bertie fosse
seu único amigo e não podia suportar a idéia
de ferir seus sentimentos infantis.
Era impossível enfurecer-se
apropriadamente com o Abonville tratando, ao
mesmo tempo, de não angustiar ao Bertie, que
estava fascinado com a perspectiva de que
seu melhor amigo se casasse com sua prima.
— Não é mais que Gwen — dizia Bertie,
construindo mal as frases, como sempre —
Para ser uma garota, não está nada mal. Não
é como Jess, mas não desejaria a ninguém
que se casasse com minha irmã, e menos a ti,
embora nesse caso fosse meu irmão, porque
não me ocorre nada pior para um tipo que ter
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que escutá-la todo o dia. Dain sim pode dirigi-
la, mas é maior que você e, mesmo assim,
atreveria-me a dizer que lhe custa bastante.
Mas eles já estão atados, assim está a salvo
dela, e Gwen é muito diferente. Quando
Abonville nos disse que queria te casar, e ele
estava pensando que Gwen poderia servir, eu
disse...
— Bertie, eu não queria me casar —
interrompeu Dorian — É um engano absurdo.
— Eu não cometi nenhum engano — disse
Abonville. Estava de pé ante a porta, com uma
expressão grave no rosto distinto, os braços
cruzados sobre o peito — Você deu sua
palavra, primo. Disse que reconhecia seu
dever e que casaria se encontrasse a moça
disposta a fazê-lo.
— Não importa o que disse se é que disse
isso? — replicou Dorian, tenso — Quando
você chegou, doía-me a cabeça e tinha
ingerido láudano. Naquele momento, não
estava em meus cabais.
— Estava em um estado completamente
racional.
— Não é possível! — exclamou Dorian —
Se tivesse estado lúcido, jamais teria aceito

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algo semelhante. Não sou um maldito boi. Não
passarei meus últimos meses engendrando!
Esse foi um engano. Os olhos azuis e
redondos do Bertie começaram a umedecer-
se.
— Está bem, Gato — disse — Eu lhe
apoiarei, como você sempre me apoiou. Mas,
se não o tivesse prometido, Abonville não
haveria dito que prometeu, nem teria falado
com Gwen. Ela se sentirá muito decepcionada
embora o superará, porque não é das que se
deixam abater. Mas imagine que poderíamos
ter sido primos, e, se fosses ter um pestinha,
eu poderia ser o padrinho, sabe?
Dorian jogou um olhar maligno ao
detestável duque, e essa foi sua perdição. O
tinha feito a cabeça de Bertie com a classe de
idéias que tinha a segurança de fazer germinar
em seu coração infantil: ser padrinho de bodas
do amigo moribundo, converter-se em primo
de Dorian e logo em padrinho de seus
imaginários filhos.
E o pobre Bertie, com seu coração
transbordando boas intenções, jamais
entenderia por que era impossível. Nunca
entenderia por que Dorian queria morrer a sós.

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"Eu te apoiarei", havia dito e sem dúvida o
faria. Se Dorian não se casava com sua prima,
Bertie estaria com ele. De qualquer das duas
maneiras, Dorian não teria possibilidades não
o deixariam morrer em paz.
Quando já não estivesse em condições de
pensar por si mesmo, Bertie ou Abonville ou
sua esposa convocariam a peritos para tratar
ao demente.
E Dorian sabia qual seria a conseqüência:
morreria como sua mãe, encerrado como um
animal, a não ser que antes se matasse.
Mas não tinha pressa para ir à tumba.
Ainda tinha tempo e intenções de desfrutá-lo,
de desfrutar-se em sua saúde e sua força cada
um dos momentos preciosos que ficavam.
Fez esforços para acalmar-se. Não estava
apanhado. Só dava a impressão, porque aí
estavam, por um lado Bertie, tão leal como
estúpido, falando de afilhados, e Abonville,
pelo outro, bloqueando a porta.
Ainda Dorian não estava débil e impotente,
como tinha estado sua mãe. Encontraria o
modo de livrar-se, sempre que mantivesse a
cabeça fria.
Meia hora mais tarde, Dorian galopava por
um estreito atalho que levava ao Hagsmire. Ia
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rindo-se, porque seu estratagema tinha dado
resultado.
Tinha sido bastante fácil fingir um ataque
súbito de remorsos. Anos de prática com seu
avô deram ao Dorian a facilidade de fingir-se
arrependido e agradecido pelos esforços de
Abonville. Por isso, quando lhes pediu uns
minutos para preparar-se antes do encontro
com a noiva, os dois visitantes saíram da
biblioteca.
E ele por sua vez, saiu pela janela,
atravessou o jardim e logo correu até os
estábulos.
Sabia que não o perseguiriam até o
Hagsmire. Nem seu próprio moço de quadra
se aventuraria por esse atalho tortuoso num
dia como aquele, em que nuvens de tormenta
rodavam pelo céu.
Mas ele e Isis tinham enfrentado tormentas
fora do Dartmoor muitas vezes. Havia tempo
de sobra para encontrar o esquartejado
montículo de granito onde se refugiaram tantas
vezes, quando Dorian lutava contra os
demônios internos que o empurravam para os
velhos hábitos, a pausa ilusória do vinho e as
mulheres.

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E, embora o buscassem, seu mal
recebidos convidados nunca o encontrariam e
desistiriam de esperar sua volta muito antes de
que ele mesmo cedesse. Se não se submeteu
nem a seus demônios internos nem a seu avô,
não se renderia a um dominante nobre
francês, obcecado pela genealogia.
Nunca mais se submeteria ao dever. O
novo conde do Rawnsley morreria em poucos
meses, e esse seria o fim da aborrecida
descendência Camovs. E, se Abonville não
gostava, que arrancasse um dos ramos
franceses e a plantasse aqui e fizesse que o
pobre tipo se casasse com a prima do Bertie.
Porque o único modo em que se casaria
com o Dorian Camovs era que fosse até o
Hagsmire em pessoa, com todo o cortejo
nupcial e o sacerdote, e, mesmo assim,
alguém teria que sujeitar ao noivo com um
grande penhasco. Porque, antes de meter em
sua vida a nenhuma mulher e lhe deixar ver
como se desintegrava até converter-se em um
animal sem consciência, preferia afundar-se
em um poço insondável de areias movediças.
Ao longe se ouviu o retumbar longínquo do
trovão.

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Ou assim pareceu ao Dorian a principio, até
que advertiu que, diferente do trovão, o
retumbar era contínuo e crescia sem cessar
em volume. E, quanto mais alto e perto se
ouvia, menos parecia um trovão, e mais os
cascos de um cavalo.
Jogou um olhar atrás e depois outra vez
adiante.
Tratou de convencer-se de que a recente
confrontação o tinha agitado mais do que
suspeitava e que o que acreditava ouvir não
era mais que um engano de seu cérebro
decadente.
Os caipiras ignorantes, que acreditavam na
existência de duendes que moravam em todo
Dartmoor, batizaram como Hagsmire esse
lugar porque também estavam convencidos de
que as bruxas enfeitiçavam essa zona.
Quando havia névoa ou tormenta, montavam
em corcéis fantasmagóricos e perseguiam as
vítimas, até as fazer cair ao pântano.
O golpear dos cascos aumentou de
volume. "Aquilo" lhe aproximava. Olhou atrás,
o coração agitado, os nervos tensos.
Por mais que tratasse de convencer-se de
que não podia estar ali, seus olhos lhe
disseram o contrário: uma fêmea de aparência
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demoníaca, montada em um enorme baio.
Uma juba desordenada de cabelos vermelhos
ondulava grosseiramente ao redor de seu
rosto. Cavalgava escarranchado, com audácia,
e uma capa de cor clara voava atrás dela;
tinha as saias impudicamente elevadas até os
joelhos, mostrando os membros de brancura
fantasma.
Embora o olhar fosse muito breve, a
momentânea distração resultou fatal, pois um
instante depois Isis virou com excessiva
brutalidade em uma curva.
Dorian reagiu uma fração de segundo
depois do devido, e a égua se deslizou pelo
bordo do atalho, que se desmoronava com
facilidade, e escorregou pelo pendente para o
pântano que os esperava abaixo.
A égua clara conseguiu retroceder com
dificuldade do bordo do lodaçal, mas, ao fazê-
lo, atirou a seu amo.
Gwendolyn desembarcou de um salto,
tomou a corda que tinha levado e desceu pelo
pendente, até o bordo do pântano.
A vários metros de onde ela estava, o
conde do Rawnsley chapinhava em uma fossa
de barro cinza. Nos escassos minutos que lhe
levou chegar até o bordo, o conde se
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escorregou para o centro, e os esforços que
fazia para fazer pé onde era impossível fazê-lo
afundavam cada vez mais.
Mas o lodo só chegava aos quadris, e com
um olhar Gwendolyn comprovou que aquele
pedaço de pântano tinha uma circunferência
relativamente estreita.
Ao mesmo tempo em que observava ao
redor, aproximava-se da égua, emitindo sons
tranqüilizadores. Registrava as furiosas
maldições de Rawnsley, salpicadas com gritos
que a insistiam a ir-se, mas não lhe fez o
menor caso.
— Trate de mantê-lo mais quieto possível
— lhe disse, serena — O tiraremos em um
minuto.
— Afasta-se daqui! — gritou-lhe o conde
— Deixe a meu cavalo em paz, bruxa maldita!
Corre, Isis! Vai para casa!
Mas Gwendolyn acariciava à égua sob a
crina, e o animal se acalmava, apesar dos
gritos e maldições de seu próprio amo.
Gwendolyn soltou a correia do estribo, retirou o
ferro e voltou a fechar a fivela da correia.
Formou um laço com um extremo da corda
passando pela correia e o atou. Depois levou a
égua mais perto do atoleiro.
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Rawnsley tinha deixado de amaldiçoar e já
não se removia tanto. Mas Gwendolyn não
sabia se era porque tinha recuperado a calma
ou porque estava fatigado. O que via era que
estava afundado até a cintura. Rapidamente
formou um laço no outro extremo da corda.
— Agora, preste atenção — lhe disse, em
voz alta — vou lançar
— Cairá aqui, pedaço de estúpida...
A moça lançou a corda. O homem estirou
a mão e falhou. E lançou uma sã de
maldições.
Sem perder tempo, Gwendolyn retrocedeu
e fez outro intento.
Ao quinto intento, Dorian a apanhou.
— Trate de agarrar-se com as duas mãos
— lhe indicou — E não se esforce por ajudar.
Faça de conta que é um tronco. Mantenha-se
o mais quieto que possa.
Sabia que era muito difícil, pois o instinto
impelia a debater-se quando se sente que esta
afundando-se. Mas, se lutava contra o
pântano, afundaria-se mais rápido, e, quanto
mais se afundasse, mais difícil seria tirá-lo.
Inclusive nesse sítio, que era seguro, o chão
empapado não era muito transitável. As botas
do Gwendolyn se afundavam no barro até os
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tornozelos, e também Isis tinha que lutar com o
barro, além de atirar do peso de seu amo, e
com o poderio do atoleiro que o chupava para
baixo.
Mesmo assim, obteriam-no, assegurou-se
Gwendolyn. Enrolou as rédeas em uma mão e
tomou a correia e a corda na outra.
Depois fez girar à égua de modo que
ficasse de flanco com respeito ao pântano, e a
fez dar os primeiros passos cautelosos para
iniciar o resgate.
— Devagar, Isis — murmurou. — Sei que
quer lhe dar pressa, eu também, mas não
podemos correr o risco de lhe arrancar os
braços das articulações.
Foi quanto escapou do barro, derrubou-se,
mas Gwendolyn teve que deixá-lo enquanto
voltava para caminho de ferradura com Isis.
Embora o animal se mostrasse bom e paciente
durante o resgate, agora estava inquieto e
nervoso, e Gwendolyn tinha medo de que
tropeçasse e escorregasse ao pântano se não
o acalmasse. Não se podia atender a amo e
cavalo ao mesmo tempo.
Quando deixou ao Isis com o potro do
Bertie, tirou um frasco de conhaque do bolso
dos arreios e correu outra vez para o
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Rawnsley, que tinha recuperado a consciência.
E, a julgar por seu aspecto e pelos sons que
emitia, de muito mau aspecto.
A juba negra cheia de barro do pântano, e
amaldiçoava baixo enquanto o tirava do rosto e
se incorporava.
— Que o Diabo a leve e a cozinhe no
inferno! —disse, entre dentes— Poderia haver-
se matado você mesma e a meu cavalo.
Disse-lhe que se fosse, maldita seja!
Uma máscara de limo cinza esverdeado lhe
pegava ao rosto. Entretanto, até embaixo
dessa coberta, as feições pareciam mais fortes
e acuradas que na miniatura. Este era um
rosto de vigoroso modelado, e o da pintura, em
troca, tinha um aspecto doentio e inchado.
O resto de sua pessoa tampouco parecia
muito doentio. As roupas do conde,
empapadas de barro, aderiam aos ombros e
as costas largas, a cintura estreita, as pernas
largas toda sua figura feita de sólida
musculatura.
A realidade era tão diferente do retrato que,
por um momento, Gwendolyn se perguntou se
alguém lhe tinha feito uma brincadeira e
aquele não era Ruwnsley.

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O homem tirou as luvas pegajosas de
barro, limpou os olhos com elas e a olhou e a
moça ficou paralisada, com o fôlego retido na
garganta, ao tempo que seu coração se
saltava um batimento.
Bertie lhe contou que o chamava Gato
porque assim lhe diziam os companheiros da
escola, e agora Gwendolyn compreendia por
que.
Os olhos do conde do Rawnsley eram
amarelos.
Não do castanho próprio dos humanos,
nem cor avelã, a não ser um tom ambarino
dourado, de felino. Eram os olhos de um
predador da selva, que ardiam brilhantes e
perigosos.
Por sorte, Gwendolyn não era das que se
deixam intimidar facilmente. A impressão
passou tão rápido como tinha chegado, e se
ajoelhou junto a ele para lhe oferecer o frasco
com mão firme.
Também sua voz foi firme quando
respondeu:
— Nenhuma bruxa que se respeite acataria
as ordens de um simples mortal. Se o fizesse,
seria expulsa ignominiosamente da reunião de
bruxas.
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Dorian lhe arrebatou o frasco e bebeu,
sem apartar seu olhar amarelo do rosto da
jovem.
— Talvez você ignore que as melhores
bruxas vêm ao Dartmoor em busca de seus
familiares — continuou. — É de rigor contar
com um gato negro. E como você é o único
disponível...
— Não estou disponível, e não sou nenhum
maldito gato, pequeno feto do inferno! E já sei
quem é você. A aborrecida prima, não é
verdade? Só um parente do Bertie seria capaz
de vir galopando ao pântano dessa maneira
louca, e vagar por aí, arriscando a um cavalo,
e também seu próprio corpo fraco, para salvar
a um homem da confusão em que ela mesma
o colocou. E eu não pedi para ser salvo, que o
Diabo a confunda! A mim dá no mesmo já
tenho um pé na tumba ou acaso não o hão
dito?
— Sim, já sabia disto — respondeu com
calma. — Mas não vim até aqui para me dar
por vencida ante o primeiro obstáculo. Já sei
que dá no mesmo. Compreendo que o pântano
poderia lhe haver evitado colocar uma pistola
na cabeça ou pendurar-se, ou qualquer outro
método que lhe ocorresse. Mas também
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poderá fazer isso depois, quando já estivermos
casados. Lamento o inconveniente, meu lorde,
mas não posso permitir que morra antes da
cerimônia, pois, se assim fosse, eu jamais teria
meu hospital.
Já antes Gwendolyn tinha obtido bons
resultados lançando afirmações temerárias.
Esta vez também deu resultado.
Dorian se tornou um pouco atrás, e a
expressão furiosa se tornou bem mais
perplexa.
— É bastante simples — continuou. — Eu
necessito a você, e você me necessita embora
saiba que não tem por que acreditá-lo, pois
não sabe quase nada sobre mim.
Levantou a vista.
— Estamos a ponto de nos empapar.
Teríamos que procurar refúgio pelos cavalos,
digo, pois a você tampouco incomodaria
morrer de uma pneumonia. Isso não é um
inconveniente. Esperar que passe a tormenta
nos dará ocasião de conversar a sós.
— Oh, não, está equivocada — disse
Dorian.
A voz lhe saiu como um grasnido. Tinha a
garganta inflamada de tanto lhe gritar

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objeções, às que a moça não tinha
emprestado ouvidos.
Ignorando a mão tendida, ficou de pé com
dificuldade. Ao fazê-lo, descobriu que era mais
difícil manter-se em pé que incorporar-se.
Ao parecer, os pântanos não só o
tragavam. O que sua mãe não lhe tinha
explicado era que, primeiro, mastigavam-no.
Tentavam arrancar a pele de cima dos ossos e
reduzir músculos e órgãos a uma geléia. Cada
milímetro de seu corpo lhe pulsava
dolorosamente. Não fez conta.
— Não haverá conversações privadas —
disse, lhe aferrando o braço e subindo com ela
o pendente. — Não temos nada que dizer. Eu
a levarei de volta à casa, e você se irá logo por
onde veio.
— Não acredito que isso seja boa idéia —
repôs a jovem.
Sua voz se manteve serena, e não fez o
menor esforço por soltar o braço.
Dorian a soltou de repente e desejou não
ter sujeitado esse braço magro de uma
maneira tão torpe, pois, assim, ela não tinha
mais alternativa que segui-lo, a menos que
pensasse ficar a viver no Hagsmire.
Começou a subir a costa sozinho.
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Depois de um instante, a moça o seguiu.
— Por que escapou? — perguntou-lhe.
— Tive um ataque de loucura.
Seguiu avançando trabalhosamente.
— Isso costuma acontecer aos que
conversam durante qualquer período de tempo
com o Bertie — disse Gwen — Às vezes,
tenho que sacudi-lo, pois, do contrario, seguiria
sem cessar, e a gente perderia por completo a
ilação do que está dizendo e se aturdiria
tratando de segui-lo.
— Eu tenho muito carinho ao Bertie —
repôs Dorian, em tom frio.
— Eu também — disse ela. — Mas é
incrivelmente estúpido, não é certo? A prima
Jessica diz que nasceu com um pé na boca, e
que, depois, não pôde tirá-lo. Tenho a
impressão de que jurou a você devoção
eterna. Quando saiu a me dizer que você tinha
fugido, chorava copiosamente, e não houve
modo de lhe extrair uma explicação inteligível.
E Abonville só disse que ele tinha cometido um
terrível engano e que Genevieve devia me
levar de volta à estalagem.
— É evidente que lhe fez tanto caso ao
Abonville como a mim — respondeu Dorian,

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irritado — Ao parecer, a palavra "vá-se" não
tem significado para você.
— Se sempre fizesse o que me dizem,
nunca obteria nada — repôs Gwendolyn. —
Por sorte, Abonville sabe que eu não obedeço
ordens às cegas. Por isso, quando afirmei que
devia vir buscá-lo, e minha avó esteve de
acordo, ele levou ao Bertie outra vez à
biblioteca, e foram diretamente se apoderar do
conhaque.
Tinham chegado ao caminho de ferradura.
Dorian queria subir ao cavalo e partir para não
ter que ouvi-la, mas os músculos de suas
pernas já não lhe obedeciam.
Tinha o cabelo pegajoso com lama do
pântano e esse barro frio lhe gotejava pelo
pescoço. Devido a isso, emprestava como um
zurre, mas estava tão cansado e estremecido
que não se importou.
Cambaleando-se chegou até um penhasco
e se sentou, contemplando suas calças
empapadas enquanto esperava que lhe
normalizasse a respiração e lhe aquietasse o
cérebro.
— Parece que houve um mal-entendido —
disse a moça.

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Dorian não entendia por que não se
mantinha afastada dele, se devia ser óbvio que
estava transtornado. Para Dorian, ao menos,
era óbvio.
Apartou-se uma mecha de cabelo pegajoso
dos olhos e a olhou. Embora já não lhe parecia
tão demoníaca como antes, quando galopava
atrás dele, seguia vendo-a como a uma bruxa.
Uma bruxa jovem, com seu pequeno nariz e
seu queixo afiados, seus rasgados olhos
verdes e esse cabelo, essa massa selvagem
de cabelos vermelhos. Não era sequer um
vermelho normal, a não ser um estranho
marrom com matizes de fogo, inclusive sob a
luz tênue da tormenta que se morava.
Mesmo assim, por mais que fosse pouco
comum, ao Dorian custava acreditar que
tivesse confundido a esta jovem inglesa com
uma das donzelas de Satã. Reprovou se haver
supracitado. Se tivesse ficado com os dois
homens e argumentado com eles de maneira
paciente e racional, mas não o tinha feito. Em
troca, tinha fugido da tentação, sim, mas eles
estariam persuadidos de que tinha fugido de
uma simples moça e já não teriam dúvidas de
que estava louco. Certamente Abonville o

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ataria examinar, e o declarariam louco campos
mentem.
— Que me condenem ao inferno! —
murmurou.
— Não queria importuná-lo, — disse a
moça — mas não posso entender bem o que
aconteceu. O que lhe disseram de mim que o
fez fugir? Estive me espremendo o cérebro,
mas o único que me ocorreu foi Bertie.
— Não sabia o que fazer com ele! —
exclamou — O muito estúpido quer ficar
comigo até o trágico final, e jamais me liberarei
dele sem recorrer à violência.
"E então me encerrarão", acrescentou para
si.
— Eu posso fazer que se vá. — disse
Gwen — Sou uma das poucas pessoas que,
realmente, podem comunicar-se com ele. Isso
é tudo?
— Tudo — repetiu. — Não isso não é tudo.
Quero que todos vocês se vão. Não necessito
ao Bertie perto, soluçando quando aparecer a
menor amostra de meu estado. Não necessito
ao Abonville para que me diga o que é bom
para mim e o que devo fazer. Sofri isso toda
minha vida. E, sobre tudo, não necessito uma
esposa, maldita seja!
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Os demônios que moravam em seu peito
gritaram que era uma esposa, precisamente, o
que mais necessitava, e evocaram imagens
eróticas que Dorian se apressou a dissipar.
Na frente da moça apareceram rugas.
— É estranho. Não acredito que Abonville
tenha entendido mal. Entende perfeitamente o
idioma, ou acaso você trocou de idéia com
respeito ao matrimônio? Queria que me
explicasse isso, milord, por favor. É muito difícil
responder com sensatez em uma situação,
quando se está por completo às escuras de...
— Não troquei que opinião — a
interrompeu, contendo uma louca ansiedade
por alisar aquela frente jovem, muito jovem —
Lembro vagamente da visita de Abonville e da
sua avó, embora não quando se produziu, e
que ele me explicou por que fomos primos, mil
vezes longínquos. Isso é quão único lembro, e
é assombroso que recorde tanto, tendo em
conta que tinha bebido quase quatro litros de
láudano pouco antes de que ele chegasse.
A expressão da moça se esclareceu.
— Ah, agora entendo. Há indivíduos que se
tornam muito dóceis sob a influência dos
opiláceos. Deve ter estado de acordo com

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cada palavra que pronunciou ele, embora não
tinha você idéia do que estava dizendo.
Ao longe retumbou o trovão e no céu se
amontoaram nuvens negras. Dava a
impressão de que ao Gwcndolyn não afetava o
mau tempo absolutamente. Limitava-se a olhar
ao Dorian com tranqüila concentração. Aquele
firme olhar verde começava a despertar um
perigoso desejo em seu peito, e também lutou
contra ele.
— Tratei de lhe explicar — disse rígido —
mas se negou a me escutar.
— Não me surpreende. — respondeu a
moça — Estava convencido de que o
Rawnsley que encontrou a primeira vez estava
em seus cabais, porque aceitou com sensatez
tudo o que Abonville dizia. Hoje, quando você
o negou, inclinou-se por lhe atribuir a negativa
a um ataque passageiro de loucura.
— Essa idéia cruzou minha cabeça —
murmurou Dorian.
— Muitos reagem do mesmo modo ante
um comportamento aparentemente irracional.
Em lugar de escutar o que você dizia, talvez
tenha querido fazê-lo raciocinar, repetindo uma
e outra vez seu próprio ponto de vista, do
mesmo modo que alguém faz repetir aos
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meninos as tabuadas de multiplicar. Até os
médicos peritos, que deveriam saber como são
as coisas em realidade, acreditam que esse é
um modo "iluminado" de tratar aos indivíduos
em estado de agitação.
Franziu o nariz bicudo:
— É muito irritante. Não me surpreende
que você tenha perdido a paciência e fugido.
— De todos os modos, esse foi um engano
— disse Dorian— Teria que haver ficado e
raciocinado com ele.
— Teria sido uma perda de fôlego — repôs
Gwen com vivacidade — O que está em
dúvida é o seu equilibro mental. A explicação
deve provir de alguém cuja saúde mental não
esteja em interdição. Eu o explicarei, e me
emprestará atenção.
Fez uma pausa e olhou ao redor.
— A tormenta não se aproxima com tanta
urgência como eu esperava. Por uma vez, a
Providência nos demonstra certa
consideração. Chatearia-me muito ter que
retornar sem ter a menor idéia do que é que
tinha passado. Mas não se pode obrigar a um
homem a cumprir uma promessa que formulou
não estando em seus cabais.

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Bertie lhe havia dito que ela não era das
que se deixavam abater. Mesmo assim, o
ligeiro matiz de resignação na voz da moça o
fez sentir-se culpado. Gwen lhe tinha salvado a
vida. Embora não estava seguro de que queria
salvar-se, apreciava a coragem e a eficiência
com que tinha atuado a moça. Também o tinha
tranqüilizado. E o escutou. Entendeu-o.
Apartou a vista e se perguntou até que
ponto lhe devia uma explicação e até onde
podia confiar em si mesmo.
Uma rasgada linha de fogo apareceu sobre
uma colina longínqua. Os céus retumbaram.
Dorian olhou outra vez a jovem.
— Não lhe parece um tanto tardio? —
perguntou-lhe — Me refiro a que procure uma
esposa neste preciso momento.
A jovem se encolheu de ombros.
— Posso entender o que significa para
você. Mas não é muito diferente do homem
decrépito que se casa com uma moça, coisa
que acontece bastante freqüentemente.
Dorian sabia que acontecia. Semelhante
matrimônio equivalia há uns meses,
possivelmente alguns anos, de cuidar de um
inválido babão. Sem dúvida, a perspectiva de

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uma viuvez, rica e independente devia ser
suficiente compensação.
Mas ele não era dos que reprovaria a uma
mulher a atuar por cobiça, pois ele mesmo
nunca tinha sido nenhum santo.
Mais ainda, sabia que certas mulheres
tinham um grau notável de tolerância. Haveria,
acaso, muita diferencia entre deitar-se com um
homem que parecia um cadáver e deitar-se
com outro que era um caipira bêbado,
insaciável enquanto sentisse a necessidade e
arisco e estúpido depois?
Essa era a classe de homem que ele tinha
sido fazia pouco tempo. Estremeceu-se pela
lembrança do passado e pelo que lhe
proporcionaria o passado se submetesse a sua
parte mais rasteira e aceitasse o que lhe
oferecia.
— Seria conveniente que
empreendêssemos a volta — disse a jovem —
Você está cansado, molhado e gelado.
Dando-a volta, foi aonde estava seu cavalo
Dorian se levantou e a seguiu, aliviado de que
não lhe tivesse pedido mais explicações. E,
embora já houvesse dito mais do que queria
dizer, desejava lhe contar mais, lhe explicar.
Mas isso significaria lhe descrever a vida
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sórdida que tinha levado e a indefesa
imbecilidade que o esperava. "É melhor deixar
as coisas como estão", disse-se. Ao parecer, a
moça aceitava a situação.
Chegaram até onde estava o potro baio, e
Doriam estava tão concentrado se dizendo a si
mesmo que lhe convinha morder a língua que
não se deteve pensar, mas sim elevou à moça
e a acomodou sobre a arreios.
Recordou muito tarde que era uma arreios
de homem.
Mas a jovem passou a perna por cima e se
instalou comodamente escarranchado,
exibindo com ingenuidade, ante a vista de
Dorian, vários centímetros de roupa interior
feminina.
Entre as anáguas sujas de barro e as botas
incrustadas de lama, as meias sujas
encerravam uma panturrilha esbelta e
curvilínea.
Dorian se apartou, amaldiçoando-se entre
dentes. A moça não necessitava ajuda. Dorian
poderia ter montado seu próprio cavalo e
empreendido a volta a casa, deixando que ela
se arrumasse sozinha. Acabava de escapar do
pântano, e ninguém esperaria que se
mostrasse cavalheiresco em semelhantes
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circunstâncias, e, sem dúvida, esta não era
uma mulher indefesa.
Não devia permitir a sua mente que
vagasse pelo passado. Não teria que
enlouquecê-la, nem aproximar-se o suficiente
para ver como eram as pernas de Gwendolyn.
Já percebia como se debilitava sua resistência,
era consciente das desculpas que elaborava
sua mente traiçoeira, as falsas desculpas nas
que não devia confiar. Se cedesse à tentação,
não haveria alívio nem liberação para ele. Até
então, nunca tinha havido só um esquecimento
temporário que depois o deixava cheio de
desprezo por si mesmo apressou-se a
aproximar-se de Isis e montou rapidamente.
Não é por nada Gwendolyn Adams era neta
de uma famosa femme fatale. Embora
Genevieve, não tenha herdado o cabelo
negro, nem o rosto impactante ou as maneiras
sutilmente sedutores, sim, tinha herdado certos
instintos.
Não teve muitas dificuldades em interpretar
a expressão do conde do Rawnsley quando
seu exótico olhar amarelo lhe posou na perna.
Tampouco teve muita dificuldade em
interpretar sua própria reação, quando esse
mesmo olhar se entreteve um par de frações
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de segundo mais do que permitia a delicadeza.
Teve a impressão de que dos olhos do homem
saltava uma cálida faísca para sua perna e que
acendia um pequeno fogo que subiu por
debaixo de suas anáguas como uma ferida até
além do joelho e lhe fazia cócegas as coxas
com sua maliciosa tibieza antes de lhe formar
um redemoinho na boca do estômago. Agitou
nela sensações das que tinha ouvido falar,
mas que jamais experimentou em si mesmo.
Nunca sonhou que o conde louco do
Rawnsley despertasse nela tais sensações,
mas, para falar a verdade, nada era como ela
tinha esperado.
Tinha lido o relacionado com as areias
movediças e a tremenda pressão que
exerciam. Estava segura de que Dorian devia
sentir-se como se lhe tivesse passado por
cima uma correria de touros. Entretanto, tinha-
a levantado com tanta facilidade como se
tivesse recolhido uma margarida da fina capa
de terra de Dartmoor. Nesse momento,
observava-o acomodar seu corpo comprido e
poderoso a arreios com um só movimento
fluido, como se não tivesse estado fazendo
nada mais exaustivo que recolher flores
silvestres.
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Perplexa, seguiu o conde em silencio pelo
estreito e ondeante atalho de ferradura.
Chovia, mas sem convicção. Ao parecer, a
tormenta se desviou para o sudeste.
Rawnsley ia ao trote firme em seu cavalo,
sem jogar um único olhar atrás, para sua
companheira. Gwendolyn não tinha dúvidas de
que teria saído ao galope do Hagsmire, do
mesmo modo desesperado em que tinha
entrado, se o cavalo não estivesse cansado.
Sem dúvida com a melhor intenção,
Abonville o tinha posto em um estado de
extrema agitação. Existia a possibilidade de
que voltasse a acontecer, e era muito provável
que o duque tomasse a pior das decisões pelo
melhor dos motivos. Gwendolyn viu acontecer
muitas vezes a médicos ambiciosos, ansiosos
de fazer montanhas de dinheiro, provavam
suas absurdas teorias em casos perdidos, e as
famílias, por carinho, acessavam cegamente,
impulsionadas pelo desespero.
Mas os médicos não eram mais que
homens, e com os homens tudo era sempre
questão de sorte. Em certas circunstâncias, os
doutores eram propensos a combater as
enfermidades como se as vítimas e as
enfermidades fossem, ambas, seus inimigos
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mortais. E depois os médicos se assombravam
de que os pacientes se voltassem hostis.
O que necessitava Rawnsley era uma
amiga. Mas nesse momento, graças ao
Abonville e o pobre estúpido do Bertie,
considerava Gwendolyn como uma inimizade.
— Malditos sejam. — murmurou — Para
embrulhar as coisas, nada como os homens.
Estava revisando à larga litania de
ofensas cometidas pelos varões da espécie,
quando Rawnsley deteve sua égua.
Gwendolyn advertiu que o atalho se
alargou e havia espaço suficiente para
cavalgar um ao lado do outro.
Rawnsley estava esperando que lhe
pusesse ao mesmo tempo, compreendeu-o
com assombro. Reanimou-se um pouco. A
experiência lhe tinha ensinado a não atracar a
conclusões apressadas e menos otimistas.
Quando ela chegou a seu lado, Dorian
disse, voltando a avançar:
— Você se referiu a um hospital.
A voz era rouca e insegura, e não era
difícil lhe diagnosticar esgotamento e
perturbação interior. Este último era mais difícil
de analisar. O homem não a olhava a ela, mas
bem fixava a vista à frente, e o comprido
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cabelo molhado lhe caía sobre a cara, lhe
ocultando a expressão.
— Estive tentando adivinhar por que você
veio a casar-se com um louco moribundo –
continuou — Disse que me necessitava.
Deduzo que é o dinheiro o que necessita. —
Lançou uma breve gargalhada —
Evidentemente o que outro motivo haveria?
Era um modo bastante brutal de dizê-lo. De
todos os modos, era bastante certo, e
Gwendolyn tinha decidido ser franca com ele
desde o começo.
— Em efeito, necessito o dinheiro para
construir um hospital. — disse — Tenho idéias
bastante definidas sobre o modo em que deve
fazer-se, e também dos princípios que têm que
guiar seu funcionamento. Para obter meus
objetivos, sem negociação nem compromisso,
necessito não só recursos consideráveis, mas
também influencia. Como condessa de
Rawnsley, teria ambas as coisas. Como sua
viúva, estaria em condições de atuar com
independência. E, como é o último varão de
sua família, eu não teria que responder ante
ninguém.
Jogou-lhe um olhar:

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— Já vê que tive em conta todos os
detalhes de sua situação atual, milord.
Dorian olhava adiante, apartou-se o cabelo
empapado da cara, mas mesmo assim, Gwen
não podia interpretar sua expressão, embora
não viu nela sinal de indignação nem de
aborrecimento.
— Meu avô se revolveria em sua tumba. —
disse Dorian, depois de uns momentos — Uma
mulher, a condessa de Rawnsley, construindo
um hospital com a fortuna da família. Tanto
dinheiro desperdiçado em camponeses.
— Os ricos não necessitam hospitais. —
repôs — Podem pagar médicos que fiquem
junto a eles e os atendam ante o menor mal-
estar.
— E tem a intenção de dirigi-lo segundo
seus princípios. — lhe disse — Meu avô tinha
uma péssima opinião da inteligência feminina.
Uma mulher com idéias próprias, segundo seu
ponto de vista, era uma perigosa aberração da
Natureza. — Olhou-a, e se apressou a apartar
a vista— Me oferece você uma tentação quase
irresistível.
— Isso espero. Não existe na Inglaterra
outro homem que reúna as circunstâncias mais
apropriadas a minhas aspirações. Entendi-o
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quase imediatamente, e estava desesperada
por chegar aqui antes que você se matasse.
Como vê, estou muito mais desesperada por
me casar com você do que você possa estar
de casar-se com qualquer uma.
— Desesperada. — repetiu, com outra
breve gargalhada — Eu sou a resposta a suas
preces, verdade?
A garoa estava convertendo-se em uma
franca chuva, e os relâmpagos estalavam nos
borde da terra pantanosa. Mas já não estavam
longe da casa e partiam por terra mais baixa
que antes.
Dorian parecia estar pensando no lema.
Gwendolyn esperava em silêncio, contendo
os desejos de orar. Não queria tentar ao
destino a que jogasse outra de suas
brincadeiras práticas. Já o tinha salvado de um
pântano, conformou-se com uns olhares de
soslaio ao homem com o que tinha vindo
casar-se. À medida que a chuva ia lavando
parte do barro, embora o rosto ainda estivesse
sujo, a nobreza do perfil era indiscutível.
Era extremamente arrumado isso era algo
que Gwen não esperava. É que estava
acostumada a esperar sempre o pior. Mas a
possibilidade de que fosse atrativo não tinha
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entrado em seus cálculos. Quando o homem
voltou a falar, estava ajustando esses cálculos.
— Vim aqui a terminar minha vida em paz.
— disse — Esperava que, se ficava sozinho
neste sítio isolado e não incomodasse a
ninguém, ninguém me incomodaria.
— Mas viemos nós e pusemos tudo a
perder. — disse a moça — Entendo quão
frustrado deve se sentir.
Dorian se voltou para ela.
— Abonville não me deixará em paz, não é
assim?
— Farei tudo o que possa para persuadi-lo
com respeito aos seus desejos. — repôs
Gwen, cautelosa.
Não podia lhe prometer que Abonville se
manteria afastado para sempre, mas tampouco
queria usar ao duque como ameaça. Não
queria que Rawnsley sentisse a necessidade
de esconder-se nas saias de uma mulher. Um
dos aspectos mais desagradáveis de estar
doente era sentir-se impotente e depender em
grau supremo de outros.
— Se eu fizer o que ele pede e me casar
com você, é provável que me deixe tranqüilo,
ao menos por um tempo — disse Rawnsley —

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O problema é que a teria a você perto e,
entretanto...
O olhar se posou na perna da moça e logo
ascendeu, deteve-se, pensativo, em seu rosto
e voltou sua atenção ao caminho.
— Faz quase um ano que não estou com
uma mulher — continuou, tenso — Havia
resolvido deixar atrás esse tipo de questões.
Mas, ao parecer, essa classe de santidade não
está em minha natureza, e um ano não é
suficiente para cultivar semelhante virtude.
Acredito que necessitaria décadas. —
concluiu, com amargura.
Gwendolyn não chegou ali esperando essa
classe de "santidade" a que se referia. Estava
disposta a deitar-se com ele e tratar de ter um
filho, sem lhe importar a aparência que tivesse
ou como se comportasse. Se, ao pensá-lo, não
lhe tinha parecido um castigo desoladamente
cruel, mal poderia alarmá-la ou desgostá-la
neste momento. Se um comprido celibato — e,
sem dúvida, para um homem um ano devia
parecer uma eternidade — e uma olhada a sua
perna inclinavam a decisão em seu próprio
favor, ela não tinha objeções.
— Se o que quer dizer é que não me
encontra horrenda, me alegro.
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— Você não tem idéia do que poderia
eximir — lhe resmungou — Não tem idéia da
classe de homem que sou.
— Considerando o que chegaria a ganhar
com este matrimônio, seria absurdo, por não
dizer ingrato, de minha parte me chatear por
seus defeitos pessoais — repôs — Eu
tampouco sou perfeita. Deixei bem em claro
que meus motivos são mercenários. Você
pôde comprovar que sou desobediente e de
língua afiada. E eu sei que não sou uma
grande beldade. Também sou obstinada: é um
traço de família, sobretudo nas mulheres de
minha geração. De fato, poderia chegar um
momento em que a perda da razão lhe pareça
um alívio.
— Senhorita... senhorita... Diabos, não
recordo — disse Dorian — Sei que não é
Trent, mas...
— Meu sobrenome é Adams. Gwendolyn
Adams.
Dorian franziu o sobrecenho.
— Senhorita Adams, eu gostaria de saber
se está tratando de me convencer de que me
case com você ou de que me suicide.
— Simplesmente queria lhe assinalar quão
vão resulta, nas pressentes circunstâncias,
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falar de nossos respectivos defeitos de caráter.
E queria ser sincera com você.
A parte maliciosa do Gwendolyn não
desejava ser sincera com ele. Compreendia
que a Dorian preocupava a possibilidade de
que suas urgências masculinas lhe nublassem
o entendimento. A parte maliciosa não só
esperava que essas urgências ganhassem,
mas também a insistiam às provocar com as
táticas femininas que empregavam outras
garotas.
Mas isso não era justo.
Tinham girado pelo estreito atalho que
levava aos estábulos. E embora agora a chuva
golpeasse com mais força, Gwendolyn
escutava, sobre tudo, o pulsar de seu próprio
coração. Não queria partir derrotada, mas
tampouco queria ganhar com recursos sujos.
Deduziu que mostrar as pernas constituía
um recurso sujo, por mais que sua pouco
decorosa maneira de montar tivesse sido
impulsionada pela pressa e pelo fato de que
não houvesse a arreios para damas. Por isso,
quando entraram no curral, dirigiu-se para o
bloco para desmontar.
Mas Rawnsley apeou antes que ela
chegasse e, quase no mesmo momento,
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estava junto ao cavalo que Gwen montava. Um
instante depois elevava os braços e a sujeitava
da cintura.
As mãos eram mornas, o apertão, firme e
seguro. Sentia a indolência que emitiam e que
contagiavam a seu próprio corpo, ao tempo
que observava como os músculos dos braços
se avultavam sob as mangas da camisa
molhada.
Elevou-a com a mesma facilidade que se
tivesse sido um espírito. E embora não tinha
nenhum temor de que a deixasse cair, apoiou-
se nos poderosos ombros. Foi um reflexo. Foi
instintivo. Baixou-a lentamente, e não a soltou
até que os pés da moça tocaram o chão.
Olhou-a, e o intenso olhar amarelo apanhou o
de Gwen lhe fazendo pulsar mais forte ainda o
coração.
— Chegará o momento em que já não terei
poder sobre ti — disse, em tons baixos que lhe
fizeram cócegas os nervos — Quando minha
mente se derrube, pequena bruxa, ficarei a sua
mercê me acredite, que pensei nisso.
Perguntei-me o que fará comigo, então, o que
será de mim.
Nesse momento, uma das perguntas que a
inquietavam ficou respondida. Dorian era
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consciente do perigo em que se achava. Seus
temores eram quão mesmos ela sentia por ele.
Ainda, a mente do homem funcionava bem.
Mas seguiu falando, antes de que pudesse
tranqüilizá-lo.
— Posso imaginar o que acontecerá, mas
não importa, porque sou o homem que sempre
fui. A sentença de morte não mudou nada. —
Apertou com mais força as mãos na cintura da
moça — Teria que me haver deixado no
pântano — lhe disse, os olhos lhe queimando
o rosto — Não teria sido agradável, mas a
Providência não garante a todas as criaturas
uma morte agradável e sem dor. E eu estou
bem preparado para a minha. Mas veio você,
resgatou-me, e agora...
Soltou-a de repente e retrocedeu.
— É muito tarde.
Gwendolyn compreendeu que não estava
em condições de escutar frases
tranqüilizadoras. Estava zangado consigo
mesmo e, se não confiava em si mesmo, não
devia estar disposto a confiar no que ela
dissesse. Acreditaria que estava lhe seguindo
a corrente, como se fosse um menino. Por
isso, fez um gesto de assentimento vivaz e
prático.
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— Isso me soa como um sim — disse —
Embora contra sua melhor opinião, mas, de
todos os modos, parece um sim.
— Sim, maldita seja. Malditos todos vocês.
Farei-o — resmungo.
— Alegra-me sabê-lo — disse.
— Claro que te alegra. Está desesperada
por ter seu hospital, e eu sou a resposta a
suas preces de solteira. — deu-se a volta —
Ao parecer, eu também estou desesperado
depois de um ano de celibato, é provável que
aceitasse me casar com sua avó, que o Diabo
me confunda. Afastou-se a pernadas pelo
caminho que ia até a casa.
Dorian foi direito a biblioteca, com a bruxa
de cabelos vermelhos pega a seus
calcanhares. Abriu de repente a porta.
Abonville se passeava frente à chaminé,
Genevieve lia um livro, Bertie construía um
castelo de naipes. Dorian entrou e se deteve
uns passos do vão da porta.
Abonville se deteve bruscamente e o olhou
fixo. Genevieve deixou o livro e elevou a vista.
Bertie saltou da cadeira, os naipes voaram ao
redor e caíram revoando no tapete.
— Pelos trovões de Júpiter! — exclamou —
O que te aconteceu, Gato?
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— Sua prima me fez cair a um pântano. —
disse Dorian, em tom normal — Depois me
tirou. Logo, acordamos nos casar. Hoje. Pode
ser meu padrinho das bodas, Bertie.
Os dois maiores não se alteraram, Bertie
abriu a boca, logo a fechou. Retrocedeu um
passo, franzindo o sobrecenho. Dorian olhou à
senhorita Adams, que acabava de entrar e se
colocou junto a ele.
— Alguma objeção, senhorita Adams? —
perguntou — Ou reserva?
— Claro que não. Pode realizar cerimônia
quando você queira.
— Entendo que tudo foi preparado para
umas núpcias rápidas. — disse Dorian — Se
tiver ao sacerdote por aí, podemos fazê-la
agora.
Olhou ao trio de parentes, preparando-se
para uma explosão de histeria.
Acreditavam-no louco, e sabia que, nesse
momento, parecia-o. A chuva não tinha feito
mais que diluir o barro do pântano, que lhe
jorrava da roupa empapada e gotejava sobre o
tapete.
Ninguém pronunciou uma palavra.
Ninguém se moveu.

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Exceto a bruxa, que não emprestou a seus
parentes mais atenção que se tivessem sido
estátuas, das que constituíam uma esplêndida
imitação.
— Se sentirá mais cômodo depois de um
banho — disse — E de ter comido algo. E de
uma sesta. Sei que está esgotado.
Em efeito, doía-lhe cada um dos músculos.
Quase não podia ficar em pé.
— Posso me pôr mais cômodo logo —
disse, lançando um olhar desafiante ao terceto
mudo — Quero me casar já.
— Eu também queria me lavar e me trocar
— disse Gwen. Aproximou-se e arrastou do
punho enlameado da camisa do Dorian — Me
levará um tempo mandar procurar a minha
donzela, minha roupa, e também o sacerdote.
Estão todos esperando na estalagem, junto
com nossos advogados. Eles podem vir
também, de modo que você possa assinar os
acertos. Estou segura de que não quererá
esperar assim, empapado, a que cheguem
todos.
Advogados. Sentiu que o invadia um pânico
gelado.
Examinariam-no, para certificar-se de que
sabia o que estava fazendo. Fazia muito pouco
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tempo, o matrimônio de quatorze anos do
conde do Portsmouth tinha sido anulado, tendo
em conta que ele não estava em seu são
julgamento quando o contraiu. A senhorita
Adams não quereria arriscar-se a sofrer uma
anulação e a perder assim todo direito sobre
sua fortuna e o título que necessitava para ter
influência.
Mas e se descobriam que não estava em
seu são julgamento?... estremeceu-se.
— Olhe-se — insistiu a moça — Está
tremendo, milord. Bertie, deixa de abrir a boca
como um peixe e ajuda em algo. Leva a seu
obstinado amigo acima antes que se deprima,
e diga aos criados preparem o banho e lhe
tragam algo de comer. Genevieve, você
manda alguém à estalagem trazer o que
necessito, por favor. Abonville queria falar com
você.
Ninguém protestou, nem um pouco.
Bertie se apressou a aproximar-se do
amigo confundido, tirou-o do braço e o tirou
pela porta da biblioteca.
Momentos depois, quando chegaram à
escada, Dorian viu que Hoskins corria entre os
serventes e se dirigia à biblioteca. Perguntou-

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se se a bruxa teria arrojado um feitiço sobre
todos eles.
— Eu, em seu lugar, não perderia tempo —
lhe advertiu Bertie — Se Gwen nos pega
vagabundeando, dará um ataque, e eu
preferiria que não, ao recordar como uma vez
lhe deu um, e a mim ainda me ressonam os
ouvidos. Não era que não tinha razão. Nós não
ouvimos bem, não? Aferrou o braço do Dorian
e o arrastou.
— Vamos, Gato, Gwen disse banho
quente, e nisso também tem razão, Por Deus.
Parece essa porcaria que trouxe o gato, e, não
lhe ofenda, mas cheira a não sei o que.
— Já te hei dito que me atirou de um
pântano — disse Dorian — A que quer que
cheire, depois de me haver dado um mergulho
de cabeça em um lodaçal pestilento?
Dorian se sacudiu e começou a subir
sozinho, pois não queria que seu amigo, muito
ansioso, arrastasse-o pelas escadas. Bertie os
seguiu.
— Bom, se você não tivesse fugido, ela não
teria que ter saído para te buscar —disse—.
Não entendo porquê o fez. Disse-te que ela
não era como Jess, não o disse isso? Disse-te
que Gwen era uma boa garota. Acaso crê que
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te deixaria te atar a qualquer mulher
abominável? Acaso não somos amigos? Não
nos cuidamos um a outro? Bom, eu acredito
que sim; ao menos eu o fiz, mas você esteve
longe muito tempo e nunca me disse onde
estava. Mas nunca foi de mandar cartas, e eu
nunca fui de respondê-las, de todos os modos,
e suponho que não te teria informado de que
eu havia tornado de Paris.
Tinham chegado ao patamar. Bertie olhou,
preocupado, ao Dorian.
— Mas agora está tudo bem, não? Quero
dizer, se tivesse que olhá-la ao outro lado da
mesa, no café da manhã, não te equivocaria
nas lonjuras, não é certo?
"Se a contemplasse ante a mesa do café
da manhã, o mais provável seria que saltasse
em cima dela e a devorasse", pensou Dorian.
Ainda se maravilhava de ter podido limitar-se a
lhe pôr as mãos na cintura, depois de lhe
haver visto a expressão tenra e encantada dos
olhos quando a ajudasse a desmontar.
Nenhuma mulher o tinha cuidado assim. Baixo
esse olhar, a razão, a consciência e a vontade
se derreteram, e o tinham deixado indefeso,
quase tremendo de desejo. Inclusive nesse

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momento, de só recordá-lo, não podia reunir
um ápice de sentido comum.
— Eu gosto de seus olhos — disse ao
Bertie — E sua voz não é desagradável. Não
me parece tola nem afetada. Dá a impressão
de ser uma moça capaz e sensata —
adicionou, evocando a aterradora eficiência
com que o tinha tirado do pântano.
A expressão afligida de Bertie se dissipou
e foi substituída pelo sorriso estúpido e afável
que lhe tinha ganho o coração fazia anos.
— Vê, já sabia que o compreenderia, Gato.
Sensata, esse é o término. Diz-te o que terá
que fazer, e lhe diz isso com simplicidade, de
modo que saiba como fazê-lo. E, quando
Gwen diz que o fará, vai e o faz. Disse que iria
atrás de ti, e nós tivemos que ficar quietos,
com a boca fechada, e nos apartar de seu
caminho. E ela o fez, e você retornou, e há dito
que a aceita, e agora tudo está bem, não?
"Já tenho toda a vida em ordem outra vez",
pensou Dorian, "tudo ao alcance da mão, meu
breve futuro tão cuidadosamente
planejado."Kneebones o tinha prometido, e
podia confiar em que cumpriria sua parte do
trato: láudano, tudo o que Dorian necessitasse

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para manter-se tranqüilo, para deixá-lo morrer
em paz.
Mas agora não podia prever o que
aconteceria. Poderia lhe dizer a sua noiva o
que queria, mas não obrigá-la a fazê-lo. Podia
fazê-la formular promessas, mas não obrigá-la
a cumprir. Em pouco tempo mais, não teria
poder sobre ela.
Mas não podia apartar o futuro de sua
mente, porque não podia dissipar a lembrança
da tenra expressão daqueles olhos. Não podia
pensar em outra coisa que na noite iminente e
na pequena bruxa entre seus braços. Cheirei,
Senhor, e se lhe falhava a mente e a
machucava, então, o que? Forçou um sorriso
para tranqüilidade do Bertie.
— É como você diz, Bertie — respondeu
com ligeireza — Toda em ordem, e todos
felizes.
Umas horas depois, Gwendolyn estava
sentada em um banco de pedra no jardim do
conde do Rawnsley, contemplando o sol
sangüíneo que descendia depois de uma
colina próxima. Fazia muito que a tormenta
tinha ido chatear a outra parte de Dartmoor,
deixando o ar fresco e limpo.

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Gwen estava limpa e vestida com esmero,
com o vestido de seda verde que Genevieve
lhe trouxera de Paris, e o rebelde cabelo
domesticado por um tempo, em um montículo
relativamente ordenado de cachos no
cocuruto. Oxalá se mantivesse assim para
quando Rawnsley saísse da reunião com os
advogados.
O cabelo do Gwendolyn era a desgraça de
sua vida. As Autoridades Estabelecidas, com
seu perverso senso de humor, tinham-lhe
concedido o cabelo de papai, em lugar do de
mamãe.
Não lhe incomodava muito a cor, que, pelo
menos, era interessante, mas tinha muito, uma
mixórdia de cachos, saca-rolhas e curvas,
cada um com vontade própria, e todos loucos.
O cabelo, que era a antítese de sua
personalidade: equilibrada, firme e ordenada,
era difícil que as pessoas a levassem a sério,
como se ser mulher não o fizesse já bastante
difícil. Graças a essa massa enlouquecida de
cachos vermelhos e saca-rolhas, cada pessoa
que a conhecia representava outra árdua
batalha para demonstrar quem era ela em
realidade. Oxalá as toucas voltassem a estar
na moda.
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Tratou de imaginar como seria a juba negra
do Rawnsley quando estava limpa e penteada.
Não havia o tornado a ver desde que Bertie
fizesse cargo dele. Perguntou-se por que
levaria o cabelo tão comprido, se seria um
simples ato de vaidade masculina ou de
desafio contra as convenções em geral, ou,
mais provavelmente, contra seu estrito avô, em
particular. Gwendolyn podia entendê-lo.
Entretanto, a rebeldia não explicava por
que o conde se parecia tão pouco a seu retrato
em miniatura. O rosto inchado da pintura dava
a impressão de pertencer a um homem
corpulento. Que Gwendolyn acabava de
conhecer não tinha um grama de carne demais
em toda sua figura de mais de um metro e
oitenta. A camisa e as calças empapadas, que
lhe pegavam ao corpo como uma segunda
pele, não revelavam graxas ou gordura, a não
ser músculos esbeltos e tensos.
Qualquer que fosse o mal que o afligia,
sem dúvida estava confinado aos limites da
mente.
Gwendolyn viu que a luz do sol crepuscular
estendia uma mancha vermelha sobre as
sombras dos páramos que foram
aprofundando-se, enquanto procurava em sua
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memória o índice de enfermidades mentais.
Perguntou-se que enfermidade corresponderia
ao "desmoronamento" ao que Dorian se
referiu.
Estava pensando em aneurismas quando
ouviu passos que rangiam sobre o cascalho do
atalho.
Ao dar a volta, viu seu prometido que
avançava para ela, o rosto sério, aferrando
uma folha de papel na mão direita.
Nesse momento, as hipótese médicas,
junto com outras questões intelectuais,
afundaram-se nos rincões mais remotos da
mente do Gwendolyn. Quando se deteve ante
ela, não pôde fazer outra coisa que contemplá-
lo, sentindo que o coração adotava um ritmo
errático, que fazia cantarolar o sangue nas
veias.
Levava uma jaqueta de fina lã negra, cujo
elegante corte realçava sua figura forte e
atlética. O olhar da jovem escorregou pelas
calças, também ajustados, até as pontas
resplandecentes dos sapatos, e logo subiu
como uma flecha, outra vez ao rosto. Limpo de
todo vestígio do pântano, seu pálido rosto
parecia cinzelado em mármore. O comprido
cabelo negro reluzia como seda, frisando-se
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sobre os ombros largos. Um ardente olhar
ambarino apanhou o de Gwen.
Se tivesse sido uma mulher como todas,
teria se desvanecido. Mas nunca tinha sido
uma mulher como todas.
— Por Deus, é terrivelmente arrumado! —
exclamou, quase sem fôlego —Te asseguro
que nunca vi nada igual. Por um instante, o
cérebro me paralisou. Milord, devo te dizer que
está muito bem limpo. Mas, a próxima vez,
preferiria que me avisasse antes de aparecer,
assim me dá ocasião de me preparar para a
investida.
Algo escuro chispou naqueles olhos
ambarinos. Logo uma comissura da dura boca
se curvou.
— Senhorita Adams, tem você um modo
interessante, único, de fazer comprimentos. O
rastro de um sorriso a desorientou ainda mais.
— É uma experiência única — repôs —
Nunca me tinha passado, até agora, que me
nubla-se o cérebro, estando completamente
acordada. Pergunto-me se o fenômeno terá
sido cientificamente documentado e que
explicação fisiológica se propôs.
Os olhos de Gwen estavam algo fora de
foco, e seu olhar escorregava outra vez para
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baixo, até que se deteve no papel. O
documento a devolveu bruscamente à
realidade.
— Parece um documento oficial — disse
— Suponho que se trata dessas bobagens
legais. Tenho que assiná-lo?
Dorian olhou para a casa. Quando voltou a
atenção a ela, seu meio sorriso se dissipou e
sua expressão era outra vez dura.
— Quer passear comigo?
O olhar atrás deu a Gwendolyn uma idéia
bastante aproximada de qual poderia ser o
problema. Mas se reservou os comentários e
caminhou junto a ele em silencio por um atalho
bordado de rosas. Quando chegaram a um
sítio rodeado de matas que os ocultavam à
vista da casa, Dorian falou:
— Me diz que, em vista de meu prognosis,
é necessário nomear um guardião que vigie
meus assuntos — disse, com voz não muito
firme — Abonville propõe desempenhar esse
papel, por ser meu parente masculino mais
próximo. É uma proposta razoável, com a que
meu próprio advogado está de acordo. Herdei
muitas propriedades que devem ser protegidas
quando eu estiver incapacitado para atuar com
a responsabilidade.
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Gwendolyn se sentiu invadida por uma
quebra de onda de indignação. Não entendia
por que tinham que incomodá-lo com questões
de semelhante índole em uma ocasião como
esta. Quando único tinha que assinar eram os
acordos matrimoniais. Não deviam lhe pedir
que estampasse sua assinatura em
documentos que pusessem sua vida inteira em
jogo.
— Protegidas contra quem? — perguntou
— Parentes ambiciosos? Segundo Abonville,
não restam mais Camoys que umas poucas
anciãs murchas.
— Não se trata só das propriedades —
disse. A voz era tensa e o semblante, uma
máscara branca.
Gwen quis estirar a mão e aliviar seu
torvelinho interior e a tensão, mas temeu que
lhe parecesse compaixão. Arrancou uma folha
de rododentro e percorreu o contorno com o
dedo.
— A guarda legal inclui custódia de minha
pessoa — disse Dorian — Como não posso
ser responsável por mim mesmo, devo ser
considerado como um menino.
Dorian não era ainda irresponsável, nem
remotamente infantil. Gwendolyn havia dito a
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Abonville. Sabia que seu reprimenda tinha
acalmado ao duque, mas era muito esperar
que seus discursos obtivessem, por fim,
apaziguar seu instinto superprotetor. Recordou
que tinha boas intenções. Supunha que para
ela o matrimônio seria uma dura prova, e
desejava compartilhar a carga.
Gwen não podia esperar que seu futuro avô
entendesse realmente suas capacidades,
tendo em conta que nenhum dos homens de
sua própria família as entendia. Nenhum deles
tomava a sério os estudos médicos da moça.
Seus esforços e dedicação seguiam sendo, no
que aos varões se referiam, "a pequena
afeição de Gwendolyn".
— É muito difícil pensar com claridade —
prosseguiu Rawnsley, com a mesma
ferocidade controlada — com um par de
advogados e um futuro avô tão ansioso
rondando a meu redor. E não me serve de
nada que Bertie se cale, pois teve que meter o
lenço para obtê-lo e, mesmo assim, não podia
deixar de soluçar. Saí para me esclarecer a
cabeça porque, maldição. — apartou-se o
cabelo da cara — De fato, não me sinto
razoável com respeito a isto. Tive vontades de
mandá-los ao diabo. Mas meu próprio
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advogado esteve de acordo com eles. Se eu
me houvesse oposto, me acreditariam
irracional.
Gwendolyn o entendeu, tinha medo de
terminar encerrado em um manicômio.
Pareceu-lhe bom sinal que tivesse ido a ela
com o problema. Mas sabia que não tinha
sentido aferrar-se ao que podia ser, parou-se
frente a ele. Dorian não a olhou.
— Meu lorde, espero que esteja informado
de que a lei de 1774 que regula os manicômios
protege às pessoas contra ser encerradas sem
causa — disse — Na atualidade, só um grupo
composto por imbecis e lunáticos criminosos
poderia te considerar no compasso mentem.
Não é preciso que firmes nenhum papel
estúpido que esses sujeitos odiosos agitem
ante sua cara para demonstrar que está
cordato.
— Devo demonstrar a Abonville — disse,
tenso — Se chegar à conclusão de que estou
louco, levará-te.
Gwendolyn duvidava de que a perspectiva
fosse intolerável para ele. Sabia que tinha
aceitado casar-se com ela pelo que acreditava
que eram os motivos equivocados. Duvidava

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que tivesse contraído um amor fulminante nas
últimas horas.
Era muito mais provável que tivesse ido
provar. E, se fracassava, teria a prudência de
deixá-la ir.
Gwendolyn já tinha sido provada, entre
outros, por dementes certificados, e este
homem não estava mais doente que ela, nesse
momento. Entretanto, não cometeu o engano
de imaginar que essa prova seria mais fácil ou
menos perigosa. Tinha-o julgado perigoso do
momento em que voltou para ela aqueles
estranhos olhos amarelos. Estava segura de
que teria plena consciência do efeito que
causava e de que sabia como usá-lo.
Suas suspeitas resultaram confirmadas
quando seu olhar amarelo se cravou no dela.
— Senhorita Adams, o que fica de minha
razão me diz que você representa para mim
uma complicação infernal e que me conviria
me livrar de você. Mas a voz da razão não é
quão única escuto e poucas vezes lhe presto
atenção — adicionou.
O olhar baixou, deteve-se na boca da moça
e seguiu baixando até o sutiã.
Sob as capas de seda e as anáguas, a
carne do Gwen se arrepiou sob o lento
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escrutínio e as sensações lhe estenderam até
os dedos. Dorian tentava inquietá-la. Estava
obtendo-o maravilhosamente.
Mas lhe esperava a loucura e a morte, e,
junto a isso suas próprias preocupações
pareciam insignificantes.
Quando o poderoso olhar ambarino voltou
para rosto, Gwendolyn já tinha conseguido
recuperar parte de sua compostura.
— Não estou segura de que tenha
identificado corretamente a voz da razão —
disse — Mas estou muito segura de que, se
Abonville tenta me afastar, me dará um
ataque. Passei por boa quantidade de
moléstias para me preparar para as bodas.
Minha cabeça está cheia de fivelas e minha
donzela me apertou tanto o espartilho que é
um milagre que meus lábios não se puseram
azulados. Levou-lhe quase uma hora engomar
e enganchar este vestido, e, certamente, eu
estarei três horas tratando de me tirar isso.
— Eu lhe posso tirar isso em um minuto —
repôs ele com voz baixa — E será um prazer
te liberar do espartilho. Não te convém colocar
essas idéias em minha cabeça.

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"Como se não estivessem já nela", pensou
Gwen. Como se não a tivesse advertido: fazia
um ano que não estava com uma mulher.
E embora soubesse que estava pondo a
prova sua fortaleza de donzela, o tom da voz
do Dorian lhe estremeceu os nervos. Era mais
alto que ela. E mais pesado. E mais fluente.
Uma parte do Gwen quis fugir.
"Mas não está a ponto de sofrer um ataque
de loucura violenta", reprovou-se a si mesma.
Estava fingindo, pondo-a a prova, e deixar-se
intimidar não era o modo de ganhar sua
confiança.
— Não sei por que me conviria — disse —
Não quero te ser indiferente.
— Seria melhor para ti que fosse.
Não se tinha aproximado um milímetro,
mas a voz baixa e os olhos reluzentes
exerciam uma pressão sufocante.
Gwendolyn recordou que o Todo-poderoso
lhe tinha posto obstáculos no caminho quase
desde o dia em que nascera, e tinha
enfrentado muitas vezes homens decididos a
vencê-la ou assustá-la. Isso lhe dava a
suficiente prática para lutar com este homem.
— Sei que represento uma complicação
infernal — disse — Compreendo que se sente
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pressionado, e também entendo seu
ressentimento para consigo e suas urgências
masculinas que lhe impulsionam a atuar contra
sua melhor opinião. Mas não tem em conta o
lado bom. Uma falta de tais apetites indicaria
carência de saúde e de força.
Gwen viu a faísca de surpresa nos olhos
dele, um instante antes que a ocultasse.
— Deveria considerar como um sinal
positivo suas urgências animais — insistiu —
Não está tão alienado como crê.
— Ao contrário — disse Dorian — Me vejo
muito pior do que tinha imaginado.
Dirigiu a vista de seus olhos dourados até
ponto do ombro esquerdo do Gwen, onde
terminava o decote do vestido e começava a
pele, imediatamente, a moça cobrou aguda
consciência de cada centímetro quadrado de
sua própria pele.
Ouviu um rangido e, ao olhar para baixo,
viu que o papel ficava espremido no punho
apertado do homem. Dorian também o olhou.
— Quase não importa o que é o que
assinei — disse — Nada do que deveria
importar importa.

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O coração do Gwen marcava um ritmo
duplo, acelerando o curso do sangue por suas
veias, preparando-se para voar.
— Maldita seja — disse o homem.
Avançou. Ela conteve o fôlego. Tirou-a dos
ombros.
— Eu sim que sou um bom sujeito, né?
Aceita um ataque, por favor. Eu te mostrarei
um ataque. Antes que pudesse exalar, lhe
aferrou a nuca com uma mão, jogou-lhe a
cabeça atrás e posou sua boca na de Gwen.
Dorian lembrou a si mesmo que a culpa
tinha sido dela, não teria que havê-lo cuidado
desse modo que o derretia. Não teria que ter
estado tão perto e apanhá-lo com sua
fragrância, tão rica e embriagadora como o
ópio para seus sentidos famintos. Mas bem,
teria que ter fugido, em lugar de ficar tão perto
e obrigá-lo a tomar consciência da pureza de
porcelana de sua pele. Não pôde menos que
desejar essa pureza, essa suavidade, como
não pôde impedir de apoderar-se dela.
Estampou sua boca premente sobre a de
Gwen, suave, tremente, e esse sabor doce,
limpo o fez estremecer, não soube se de
prazer ou de desespero. No que a ele se

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referia, o estremecimento era um vazio dentro
dele, um vazio eterno, impossível de encher.
Embora só tivesse sido por sua prudência,
teria que haver-se detido aí. Sabia que não
tinha remédio. Que esta inocente não poderia
saciá-lo. Nenhuma mulher, por perita e
habilidosa que fosse, tinha-o obtido até o
momento.
Mas os lábios de Gwen eram tão suaves,
mornos e dóceis à pressão dos de Dorian que
teve que aproximá-la mais a si, procurando a
calidez daquele corpo jovem, enquanto gozava
da ingênua rendição de sua boca inocente.
Apertou-a contra si, cobiçando seu calor e
suavidade. Apertou-a contra seu corpo
faminto, afundando o beijo, procurando
desesperadamente mais como sempre.
Sentiu-a tremer, mas não pôde deter-se,
ainda não. Não pôde evitar que sua língua
explorasse os mistérios da boca do Gwen,
segredos femininos que prometiam tudo.
Atraído pelo aroma, o gosto, o contato,
deslizou-se para a escuridão. Acariciou a
costas, ouviu o sussurro da seda sob seus
dedos e a sentiu mover-se respondendo a
suas carícias. Essa foi sua perdição, porque
Gwendolyn se entregou à carícia como se o
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tivesse feito muitas vezes antes, como se
pertencesse aos braços de Dorian, como se
sempre tivesse pertencido.
Calidez... suavidade... curvas sinuosas sob
seda sussurrante, um corpo que se derretia
contra o seu perfume feminino que o envolvia
e a pele...
Percorreu com os lábios a bochecha
acetinada, e Gwen suspirou. O suave som
acendeu a disposta chama interior do desejo.
Os dedos do Dorian encontraram um
fechamento...
— Se está tratando de me assustar —
ouviu a voz difusa, enquanto o fôlego do Gwen
lhe fazia cócegas a orelha — não te sai bem.
As mãos se imobilizaram.
Elevou a cabeça e a olhou. Gwen abriu os
olhos, e o encantado olhar verde ficou em
foco. Imediatamente, o de Dorian se dissipou,
baixo esse escrutínio penetrante.
— Estava sofrendo um ataque de loucura
— disse, consciente de que sua voz, algo
rouca, expressava outra coisa.
Apartou a vista do olhar da moça, que o
apanhava, e retrocedeu.
Mechas de cachos vermelhos tinham
escapado das fivelas e lhe caíam, selvagens,
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ao redor do rosto rosado e do pescoço. O
vestido estava um pouco torcido.
Retrocedeu e se olhou as mãos, temeroso
de recordar onde tinha estado e o que podiam
haver feito a uma inocente, por pertencer a um
caipira lascivo como ele.
— O que é o que passa contigo? —
perguntou-lhe — Por que não me detiveste?
Tem uma idéia do que poderia haver feito?
Gwen arrastou o vestido para acomodá-lo.
— Tenho uma idéia bastante aproximada
— respondeu — Conheço os mecanismos da
reprodução humana, como disse a minha mãe.
Mas ela acreditou seu dever maternal me
explicar isso por si mesmo.
Alisou-se o sutiã.
— Devo dizer que assinalou um par de
sutilezas que eu desconhecia. E, como era de
esperar, Genevieve me instruiu mais à frente,
ainda. Cheguei à conclusão de que não é tão
simples como acreditava. — colocou-se outra
vez um par de fivelas no cabelo — Com isto
não quero dizer que não tenha experimentado
consideráveis elucidações sob sua tutela,
milord — se apressou a adicionar Gwen —
Uma coisa é que contem como são os beijos
íntimos, e outra muito distinta experimentá-los
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em carne própria. O que é o que olhas assim?
— observou-se a si mesma — Esqueci que
algo? Tenho algo solto? — Girou, lhe
apresentando as esbeltas costas — Preciso
me grampear algo?
— Não.
"'Graças a Deus", adicionou Dorian para si.
Gwen se deu a volta outra vez e lhe sorriu.
Sua boca era muito larga. Dorian o notou antes
e sentiu e saboreou cada átomo dessa boca.
Não recordava havê-la visto sorrir antes. Se
a viu, tinha-o esquecido, pois era uma curva
larga e doce que o enlaçava como um
encantamento.
Não sabia como resistir a sua cálida
promessa. Não sabia como lutar contra ela e
contra si mesmo, simultaneamente. Ignorava
como afastá-la, tal como deveria fazê-lo, pois
Gwendolyn lhe provocava desejos
desesperados para abraçá-la. Pareceu-lhe que
não sabia como fazer nada.
O documento que lhe pediram que
assinasse, os motivos que lhe deram para
fazê-lo, obrigaram-no a enfrentar-se ao que
tinha tentado ignorar. E se aproximou dela
tratando de assustá-la, pela segurança da
própria Gwen e a paz de sua consciência. E
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entretanto, Dorian, que em outra época tinha
sido capaz de fazer tremer a rameiras
endurecidas, não podia provocar a menor
ansiedade nesta moça, como tampouco
conseguia despertar sua própria consciência
débil. Em outra época tinha sido capaz. Tempo
passado, antes dos dores de cabeça, antes
que a enfermidade começasse seu insidioso
trabalho de sapa.
Então chegou a resposta, congelando-o, o
fio débil que unia vontade e ação, mente e
corpo, e estava rompendo-se. Segundo Gwen.
Dorian estava são e forte, mas era só a
aparência externa. A mente em degeneração
já estava minando sua vontade, deu-se a volta,
para que Gwen não lhe adivinhasse o
desespero no rosto. Controlaria-a. Só
necessitava um momento. Tinha-o
surpreendido, isso era tudo.
— Rawnsley.
Sentiu a mão dela na manga. Quis sacudir-
lhe mas não pôde, como tampouco tivesse
podido sacudir a percepção da presença de
Gwendolyn. O sabor dela durava em sua boca
e seu perfume o rodeava. Recordou o tenro
olhar desses olhos tão belos, e o sorriso com

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mornas promessas. E ele estava gelado,
congelado até o tutano.
"E sou muito egoísta, muito fraco para
renunciar a ela", pensou com resignada
amargura.
Levantou a mão e cobriu a dela.
— Não quero voltar para essa maldita
biblioteca e escutar seus discursos solenes
nem ler seus podres documentos — disse,
com simplicidade — Assinei os acordos. Você
terá seu hospital. Suficiente. Quero me casar
já.
Gwen lhe apertou o braço.
— Estou pronta — disse —Faz horas que o
estou.
Dorian a olhou, e lhe sorriu. Mornas
promessas.
Passou o braço dela sob o seu, e foram
juntos de retorno à casa. Teve que apelar a
toda sua vontade para não correr. O sol
desaparecia, a lápide fechava e os envolvia
em sua bendita escuridão. Logo, essa noite,
estariam casados. Logo, subiriam ao quarto de
Dorian, à cama. E então... Que Deus os
ajudasse aos dois.
Entraram e cruzaram depressa o vestíbulo.
Viu que a porta da biblioteca estava aberta e a
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luz se derramava sobre o corredor na
penumbra, voltou-se para falar com a mulher e
então os viu-os tênues, mas inconfundíveis, na
periferia de seu campo de visão. Diminutos
relâmpagos de luz.
Piscou, mas não se esfumaram. Revoaram,
faiscando com maldade, nos limites de sua
visão. Fechou os olhos, mas seguiu vendo-os
emitindo seu aviso de morte.
Abriu os olhos, e aí estavam, fatais,
inexoráveis. Não, ainda não. Tão logo não.
Tratou de afastá-los, embora soubesse que
era inútil. Só lhe responderam, faiscando,
imperturbáveis: logo, muito em breve.
— Isto é culpa dele! — reprovou o senhor
Kneebotes ao Hoskins — Disse que a frágil
saúde de meu paciente não podia suportar
nenhum esforço. Disse-lhe que terei que
mantê-lo isolado de qualquer fonte de agitação
nervosa. Nada de periódicos, nada de visitas.
Já viu o que lhe provocaram as novidades
sobre a família: três ataques em uma semana.
E, entretanto, permitiu você que três
desconhecidos se abatessem sobre ele no
momento em que estava mais vulnerável. E
agora...

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— Se um homem se converter em Par do
reino, tem que inteirar-se — repôs Hoskins —
Além disso, ataque ou não ataque, para ele foi
um alívio saber que o ancião cavalheiro já não
poderia incomodá-lo mais. E quanto a permitir
a entrada de desconhecidos, eu gostaria de
ver você fechando a porta na cara a lady
Pembroke, sendo a avó do único amigo que
tem meu patrão. Talvez não fosse correto eu
dizer a ela o que passava ao senhor, mas me
pareceu melhor lhe advertir de antemão que
não estava tão forte como parecia, e que seus
nervos já não estavam temperados como
antes.
— O qual significa que não teriam que
havê-lo submetido a nenhuma classe de
agitação — replicou Kneebones.
— Com todo respeito, senhor, você faz
semanas que não o vê — disse Hoskins —
Talvez esteja capacitado para julgar sobre seu
estado do ponto de vista médico, mas não
conhece seu caráter nem seus desejos. Eu tive
mais de nove meses para conhecê-lo, e lhe
asseguro que quão último quer é que o tratem
como a uma mulher propensa aos desmaios,
— Jogou um olhar ao Gwendolyn — Espero
que não se ofenda, senhora
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— Absolutamente — respondeu. — Nunca
em minha vida sofri um desmaio. O veterano
sorriu. Kneebones a olhou, carrancudo.
Tinha essa expressão do momento em que
ela o recebeu na sala, depois que teve visitado
seu paciente. Não tinham acontecido dez
minutos do começo da conversação quando
estalaram as hostilidades. Hoskins, que
esperava fora, no corredor, correu dentro e se
lançou a defendê-la, sem advertir que
Gwendolyn não necessitava defesa.
Não obstante, a atitude resultou útil, pois a
discussão do criado com o médico esclareceu
ao Gwendolyn um par de temas, e o céu era
testemunha de que necessitava a maior
claridade que pudesse obter.
Ao parecer, Rawnsley estava decidido a
mantê-la na mais completa ignorância com
respeito a sua enfermidade.
Minutos depois que retornaram à casa,
depois do episódio no jardim, Gwendolyn tinha
notado algo estranho. Nas horas que
seguiram, enquanto Gwendolyn organizava
tudo, tinha observado a mudança do conde.
Quando chegou a hora da cerimônia, a voz do
Dorian era monótona e seus movimentos,
trabalhosos e lentos, como se ele fosse feito
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de cristal e pudesse romper-se em qualquer
momento.
Os dedos que deslizaram os anéis de
bodas nos seus estavam mortalmente
sorvetes, as unhas brancas como giz, depois
de celebrada as bodas, quando já tinham
estampado seus nomes como marido e
esposa, Rawnsley lhe confessou que lhe doía
a cabeça e que ia deitar se.
Gwendolyn fez partir a seus parentes,
como lhe pediu, explicando que o conde
necessitava absoluta tranqüilidade.
Dorian passou a noite de bodas na cama,
com a garrafa de láudano. Tinha fechado com
chave a porta do quarto, sem deixar entrar
nem sequer ao Hoskins.
Essa manhã, Gwendolyn lhe levou o café
da manhã em pessoa. Quando golpeou a porta
do dormitório e o chamou com voz suave, lhe
disse que interrompesse esse barulho infernal
e que o deixasse em paz.
Como os criados não pareciam muito
alarmados por essa conduta, Gwen esperou
com paciência até as últimas horas da tarde,
antes de mandar procurar o Kneebones.
Quando o doutor saiu do quarto, o dono
fechou outra vez a porta com chave e
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Kneebones se negou a lhe comentar o estado
do paciente.
Gwendolyn o observava, tranqüila, sem
fazer caso da expressão ameaçadora do
médico. Fazia anos que os médicos varões a
olhavam com ira, coléricos e irritáveis.
— Queria saber que dose de láudano tem
prescrito — disse-lhe — Não posso ir ao
quarto de meu marido e decidi-lo por minha
conta, e estou muito inquieta. Para um
paciente muito dolorido, é fácil perder a noção
da quantidade que ingeriu e quando foi a
última vez que o consumiu. A intoxicação com
láudano não costuma melhorar a capacidade
de calcular nem a memória.
— Agradeceria que não me dissesse o que
tenho que fazer, senhora — replicou o médico,
rígido — comentei os benefícios e os riscos de
meu paciente embora não acredito que possa
lhe fazer nenhum bem, depois de ter passado
pelo que passou. Uma impressão forte atrás
de outra, coroada por um casamento
apressado com uma mulher a que não
conhece absolutamente. É como se o tivessem
assassinado. Seria o mesmo que lhe tivessem
dado uma martelada na cabeça.

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— Eu não observei sintomas de choque. —
disse Gwendolyn — O que sim observei...
— Ah, sim, durante sua larga relação com
Sua Senhoria. — a cortou Kneebones,
lançando ao Hoskins um olhar frio — A
senhora o conhece há trinta e seis horas? Ou
menos!
Gwendolyn conteve um suspiro. Com este
sujeito, não chegaria a nada, acordo quase
todos outros médicos que tinha conhecido,
com a bendita exceção do senhor Eversham.
Como lhes chateava que os interrogassem,
como adoravam fazê-los misteriosos, e os que
tudo sabiam. Muito bem, ela também conhecia
esse jogo.
— Observei que as alucinações são de
pouca duração — disse. Kneebones se
sobressaltou, mas se recuperou
imediatamente e adotou uma expressão
cautelosa.
Gwen poderia lhe haver esclarecido que
tinha recebido treinamento para observar, mas
não disse nada de seus próprios antecedentes,
nem das conclusões que tirou o ver que
Rawnsley piscava irritado e agitava as mãos
no ar ante seu rosto, como tratando de tirar
teias de aranhas. Se Kneebones decidia deixá-
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la na ignorância, cabia-lhe esperar o mesmo
tipo de trato. Dirigiu-lhe um muito leve sorriso.
— Acaso Sua Senhoria não o há dito,
senhor? Sou bruxa. Mas não posso lhe fazer
perder seu valioso tempo. Tem outros doentes
que atender e eu tenho que ir pôr meu
caldeirão sobre o fogo e sair a procurar outro
turno de olhos de salamandra.
A boca do Kneebones formou uma linha
severa e, sem acrescentar palavra, saiu a
grandes pernadas.
O olhar do Gwendolyn se cruzou com a do
Hoskins, tão aprazível.
— Não conheço a dose — lhe disse o
criado — Quando único conheço é o aspecto
da garrafa e que há mais de uma.
Depois de um sonho infestado de
pesadelos, Dorian despertou inquieto, com
terríveis dores.
A cabeça lhe pulsava sem cessar por
dentro, sentia um ardor como de bílis.
Lentamente, com cuidado, incorporou-se
até ficar sentado e tomando a garrafa da
mesinha de noite, a levou aos lábios. Vazia.
"Já?", perguntou-se, aturdido. A tinha
terminado em uma só noite? Ou tinha passado

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várias noites em meio da névoa opressiva da
dor e os opiáceos? Não importava.
Tinha visto outra vez aparições chapeadas,
desde esse dia, levitaram lentamente da
periferia e piscavam desde cada lugar aonde
olhava. Tinha visto os preparativos para as
bodas em meio de ondulações faiscantes que
se balançavam no ar como as ondas de um
mar de fantasmas.
Depois, por último, as faíscas chapeadas
se desvaneceram e teve a impressão de que
penetravam em seu crânio como facas ao
vermelho vivo.
Agora compreendia por que sua mãe
afirmava que os 'fantasmas" tinham cruéis
garras, e por que gritava e se arrancava os
cabelos. Tentava arrancar-se essas garras que
a martirizavam.
Até lhe custava esforço recordar que não
existiam fantasmas nem garras, que não eram
mais que fantasias de doente.
Perguntou-se quanto tempo mais estaria
em condições de distinguir entre a fantasia e a
realidade, quanto tempo, até que começasse a
confundir aos que o rodeavam com fantasmas
e demônios e ou atacá-los, em ataques de
fúria inconsciente.
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Mas prometeu a si mesmo que não o
atariam, Kneebones lhe tinha prometido que o
láudano o tranqüilizaria, que, junto com a dor,
levaria os fantasias.
Dorian se aproximou mais à mesinha de
noite e abriu a porta. Colocou a mão e
encontrou o cilindro de porcelana.
O apoiou no regaço e tirou o plugue. A
garrafa estreita, colocada dentro de um pano
de lã, estava dentro. O elixir da paz
possivelmente da paz eterna. Tirou-a e, com
mão tremente, apoiou o cilindro sobre a mesa
de noite.
Depois vacilou, mas não pela perspectiva
da eternidade. Não, era um ser muito baixo e
superficial para isso. No que pensou foi na
bruxa, em sua boca branda e seu corpo
esbelto e curvilíneo. E essa imagem bastou
para decidi-lo a pensar nas mais nobres
razões para evitar os riscos de láudano: se
morria antes de consumar o matrimônio, este
poderia resultar anulado e ela não teria seu
hospital e, além disso, tinha o dever de
conceber um herdeiro.
"E a mim o que importará o hospital de
Gwendolyn e o fim dos Camoys, quando
estiver morto?", pensou. Tampouco ela teria
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ido, e bem estaria, e que Deus não permitisse
que deixasse um filho. Com a sorte que tinha,
o filho herdaria a mesma enfermidade do
cérebro, viveria pouco tempo e morreria da
mesma maneira humilhante,
Desentupiu a garrafa.
— Em seu lugar, eu tomaria cuidado — lhe
chegou da escuridão uma voz conhecida —
Está casado com uma bruxa. E se o converti
em uma poção de amor?
O quarto estava negro como o Hades. Não
podia vê-la, não podia enfocar nada, com essa
dor pulsante, mas a cheirava. O aroma exótico
e estranho o arrancou desse retumbante mar
de dor como uma mão fantasma e o trouxe
para a consciência.
— Também poderia ser uma poção que te
converta em gato — adicionou.
Não a ouvia aproximar-se, transpassar!
Martelar incessante de sua cabeça, mas
percebia a tênue fragrância, que se voltava
cada vez mais rica, mais intensa. Jasmim?
Dedos magros e mornos encerraram os
seus, gelados.
Tratou de falar. Moveu os lábios, mas não
emitiu som algum. A dor lhe golpeou o crânio.

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Contraiu-lhe o estômago. A garrafa lhe caiu
das mãos.
— Sinto-me mau — boquejo — Cristo,
eu...interrompeu-se quando outra coisa, fria,
redonda e suave lhe apoiou nas mãos uma
bacia.
O corpo lhe estremeceu com violência.
Logo o único que atinou a fazer foi sustentar a
bacia, inclinar a cabeça e entregar-se a uma
série de espasmos incontroláveis.
Náuseas. Sacudiram-no sem cessar.
Deixaram-no indefeso.
E todo o tempo, sentiu as mãos mornas
sobre ele, sustentando-o. Ouviu sobre ele os
tenros murmúrios.
— Sim, isso. Não se pode evitar. É uma dor
de cabeça com náuseas. Uma porcaria,
verdade? Dura horas e horas. Depois não se
vai tranqüilamente, não é assim? Ao contrário,
sai de ti te rasgando, e parece que leva suas
vísceras consigo. Estou segura de que isso é o
que parece, mas dentro de um momento se
sentirá melhor. Isso. Já está.
Não foi um momento a não ser uma
eternidade, e Dorian não soube se já tinha
terminado ou estava morto. Os espasmos já

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não lhe sacudiam o corpo, mas não podia
elevar a cabeça.
Gwen o sujeitou antes que caísse na
asquerosa confusão da bacia. Levantou-lhe a
cabeça e lhe apoiou uma taça nos lábios.
Cheirou hortelã e algo mais. Não soube o que
era.
— Enxágüe a boca — lhe ordenou, serena.
Muito fraco para protestar, obedeceu. O
preparado de sabor penetrante lhe tirou o
sabor desagradável da boca.
Quando terminou, Gwen o ajudou
brandamente a recostar-se sobre os
travesseiros.
Tendeu-se ali, exausto, e percebeu certo
movimento. A bacia tinha desaparecido, e com
ela a pestilência.
Pouco depois, um pano fresco e úmido lhe
posou na cara. Suave, rápida, eficiente,
limpando-o e refrescando-o, estava seguro de
que devia protestar, ele não era um menino de
peito. Mas não conseguiu reunir energias
suficientes.
Logo ela se foi outra vez, por um tempo
infinito e, durante a ausência do Gwen, a dor o
penetrou outra vez. E, embora não fosse tão
feroz como antes, aí estava, esmagando-o.
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Esta vez, quando a fragrância voltou, com
ela chegou uma luz: uma só vela. Viu
aproximar a silhueta em sombras. A luz o
obrigou a fazer uma careta. Gwen se afastou e
deixou a vela sobre o suporte da chaminé.
Retornou junto à cama.
— Ao que parece, ainda não se sente bem
— disse, com soma suavidade — Não sei se é
a dor de cabeça original ou os efeitos residuais
do láudano.
Então Dorian recordou a garrafa que lhe
tinha tirado:
— Láudano — disse, afogando-se — Me dê
a garrafa, bruxa.
— Depois, possivelmente — lhe respondeu
— Agora tenho que exercer meu feitiço. Crê
que poderá te colocar sozinho no caldeirão ou
devo chamar o Hoskins para que te ajude?
O "caldeirão" da bruxa era um banho
fumegante, e o feitiço era o que exercia
sustentando uma bolsa de gelo sobre a cabeça
de seu flamejante marido, enquanto fervia o
resto de sua pessoa.
Ao menos isso foi o que interpretou Dorian
da explicação que lhe deu.
Não teve inconvenientes em decidir que o
que menos queria na vida era sair da cama e
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cambalear-se até o piso de baixo, até o quarto
de banho.
Mas, quando soube que os criados
estavam preparados para levá-lo em braços,
trocou de idéia. Não suportava que ninguém o
carregasse para levá-lo a nenhum lado.
— Suas extremidades estão geladas — lhe
disse sua esposa, lhe entregando uma bata.
Apartou a vista enquanto ele a punha, zangado
— Por cima do pescoço, está muito quente.
Seu organismo está desequilibrado, entende?
Devemos corrigir isso.
Ao Dorian não importava estar
desequilibrado. Por outra parte, não podia
suportar que ela o visse estendido, impotente e
tremendo como um menino pequeno.
Por isso, arrastou-se da cama, cruzou a
tombos a habitação e saiu pela porta.
Rechaçando a mão que Gwen lhe tendia para
ajudá-lo, saiu do quarto e desceu as escadas.
Encontrou o pequeno recinto ladrilhado
cheio de vapor perfumado de lavanda. Nos
pequenos nichos da parede titilavam velas.
A névoa perfumada, a leveza, a luz suave
o envolveram e o atraíram. Extasiado,
caminhou até o bordo da banheira. Tinham

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colocado toalhas no fundo e penduradas dos
flancos.
Sua fúria impotente se dissipou em meio
dessa doce suavidade e calma, tirou-se de um
puxão a bata e se meteu, gemendo enquanto
se deslizava na água fumegante e o calor
penetrava em seus músculos doloridos.
Um momento depois, um pequeno
travesseiro apareceu sob seu pescoço. Abriu
os olhos.
Encantado pela deliciosa suavidade e a
água tentadora, esqueceu a existência da
bruxa e que estava completa e totalmente nu.
— A única coisa que tem que fazer é lhe
encharcar — lhe disse — Se apóie no
travesseiro. Eu farei o resto.
Não pôde recordar o que era o descanso e
se crispou quando a suave bolsa de gelo se
apoiou sobre sua cabeça.
— Eu a sustentarei — disse Gwen — Não
tem que preocupar-se de que se escorregue.
A bolsa de gelo era a menor de suas
preocupações.
Olhou dentro da água. A banheira não era
a mais funda do mundo. Podia ver suas
posses masculinas com toda claridade.

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E embora fosse tarde para decoros,
colocou uma parte da toalha sobre a zona e
pôs a mão em cima para que não doa-se.
Ouviu um som afogado, suspeitosamente
parecido a uma risada, mas se negou a
levantar a vista.
— Não é nada que não tenha visto antes —
disse a bruxa —, embora admito que os outros
eram recém-nascidos ou cadáveres de
adultos, penso que o equipamento é, em
essência, o mesmo em todos os varões.
Algo se removeu na mente preguiçosa do
Dorian. Apoiou a cabeça e fechou os olhos,
tratando de reunir fragmentos e peças
dispersos. O hospital, idéias definidas e
princípios. Os parentes dela confundidos,
obedecendo-a. A falta de temor. A bacia em
suas mãos, no instante mesmo em que a
necessitou a tranqüila eficiência.
Começou a entender, embora não de todo.
Muitas mulheres tinham experiência no
cuidado de doentes, e entretanto...
Voltou a pensar a última novidade. Podia
entender o que referia aos recém-nascidos.
Muitíssimas mulheres viam meninos nus, mas
cadáveres de adultos varões?

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— A quantos leitos de morte assistiu,
senhorita Adams?
Não abriu os olhos. Era mais fácil pensar
sem tratar de olhar ao mesmo tempo. Ainda
lhe doíam os olhos. Apesar de que a dor
estava minguando, seguia presente.
— Já não sou a senhorita Adamas —
repôs — Estamos casados. Não me diga que o
esqueceste.
— Ah, sim. Por um momento, me escapou
da cabeça. Por isso os cadáveres. Estou muito
interessado em seus cadáveres, lady
Rawnsley.
— Eu também o estava. Mas não
acreditaria as dificuldades com que me topei.
Admito que os cadáveres frescos não são
fáceis de conseguir. Mas essa não é desculpa
para que os médicos varões sejam tão
egoístas a respeito. Pergunto-te: como vai uma
pessoa aprender se não lhe permitem nem
sequer presenciar uma dissecação?
— Não tenho a menor idéia.
— É ridículo — disse Gwen —. Finalmente
tive que jogar mão do recurso de desafiar a um
dos alunos do senhor Knighily. Esse fanfarrão
condescendente afirmou que eu perderia meu
café da manhã, deprimiria-me e cairia ao chão
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de pedra, sofrendo uma severa concussão.
Apostei-lhe dez libras que não. — Fez uma
pausa — Ao fim, foi ele o que se derrubou. —
Na voz da moça vibrou um tranqüilo matiz de
triunfo — Tirei a rastros ao desacordado, pois
não queria me tropeçar com ele por acaso, e
continuei eu mesma com a dissecação. Foi
muito esclarecedora. Não se pode aprender
nenhuma fração de tudo isso de uma pessoa
viva. Não pode ver nada.
— O que te frustra — murmurou o marido.
— Assim é. Imaginei que seria suficiente
demonstrando uma vez que podia fazê-lo, mas
não. Foi à única vez que tive os instrumentos
em minhas mãos e um cadáver todo para mim.
Quando único obtive foi permissão para
observar, e teve que ficar no mais absoluto
segredo, para que minha família não se
inteirasse. Inclusive com os pacientes, os
vivos, não bastou com que demonstrasse
minha competência ante ninguém. Enquanto o
senhor Knightly esteve a cargo, só podia estar
presente se fosse discreta. O devia dirigir tudo
e as simples mulheres deviam obedecer
ordens, embora estivessem apoiadas nas
teorias mais antigas.

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Depois dos olhos fechados, Dorian podia
ver agora a resposta com absoluta claridade.
Um dia antes, essa revelação o teria
impulsionado a sair fora do banho, correr como
se o levassem os demônios e chegar até o
lodaçal mais próximo.
No presente, uma parte de sua mente lhe
sugeriu que fugir não era uma má idéia.
Mas estava tão cômodo, com os músculos
relaxados na água fumegante, a cabeça
torturada agradavelmente fresca...
E disse com muita calma:
— Sendo assim, não sente saudades que
te equilibrasse sobre a possibilidade de ter seu
próprio paciente.
"E, antes que passe muito tempo. seu
próprio cadáver", acrescentou, para si entre
dentes. Embora, na verdade, não importava.
Se ela queria dissecar seus restos, Dorian não
estaria em condições de objetar-lhe
Gwen não respondeu imediatamente.
Dorian manteve os olhos fechados,
desfrutando da névoa perfumada que flutuava
a seu redor. Também se percebia a fragrância
da mulher, rica e profunda, entrelaçando-se
com a atadura. Não sabia se era esse perfume
ou a cura o que o fazia sentir-se tão ligeiro.
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— Não quero dar a impressão de que todos
os membros da profissão médica são uns
imbecis — disse ao fim Gwen — Mas não
posso confiar em que Abonville saiba distingui-
los. E com o Bertie seria pior. Se emanarem
em mandar especialistas de Londres e do
Edimburgo, e terá que ver o destruam-no que
tem para colocar a pata.
— Entendo: vieste... a me salvar.
— Do manicômio médico — se apressou a
lhe esclarecer Gwen — Não sou uma fazedora
de milagres, e sei que são pouquíssimas as
enfermidades mentais que se curam. Além
disso, não sei muito da tua — adicionou, com
um rastro de irritação — O senhor Kneebones
fala com tanta obstinação como o fazia o
senhor Knighlly. Sabia que era inútil discutir
com ele. Poucas vezes serve de algo falar
como sempre, terei que demonstrar minha
capacidade.
Dorian recordou a maneira ágil, tranqüila,
com que ela o tinha tirado do pântano.
Recordou a fria firmeza com que fez frente a
seus esforços por assustá-la para que fugisse.
Recordou os cuidados serenos e eficientes de
uns momentos atrás, quando ele teve aquelas
náuseas tão desagradáveis.
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Pensou no cômodo que se sentia nesse
momento. Fazia meses que não se sentia tão
tranqüilo. Não podia recordar com exatidão
quantos. De fato, não recordava quanto fazia
que havia se sentido tão em paz. Alguma vez
o tinha estado?
Não podia evocar nenhum momento em
que não estivesse irritado consigo mesmo por
sua debilidade, e bulindo de ressentimento
para seu avô, quem, como os médicos dos que
Gwen falava, teimava em dirigir tudo.
Abriu os olhos e girou lentamente a cabeça
para olhá-la. Sustentava a bolsa de gelo, ao
tempo que trocava de foco os olhos verdes
para encontrar-se com o olhar dele.
Perguntou-se se esse frio desapego seria
próprio dela ou se teria preparado para
suprimir as emoções e assim poder sobreviver
em um mundo que não confiava nela nem a
aceitava. Dorian sabia o que era isso e quanto
custava essa preparação.
— A umidade causa efeitos estranhos em
seu cabelo — disse, resmungão.
Todos seus cachos e saca-rolhas
minúsculos pareciam brotar em todas direções,
formando uma espécie de nuvem
avermelhada. Inclusive no ar seco pareciam
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vivos e tratando de fazer que lhes desejasse
muito.
— "Que diabos faz seu cabelo?", deviam
perguntar médicos. E não é de sentir saudades
que não pudessem emprestar muita atenção
ao que dizia.
— Não teriam que haver-se distraído —
repôs a moça — Não é uma atitude
profissional.
— Como grupo, os homens não são muito
inteligentes — disse — Ao menos não de
maneira constante. Temos momentos de
lucidez, mas nos distraímos com facilidade.
Ah, ele sim que se distraía com facilidade.
A névoa vaporosa se instalou sobre ela.
Sobre sua pele de porcelana brilhava um fino
rocio. Cachos úmidos lhe pegavam ao redor
das orelhas. Ao Dorian lhe ocorreu apartá-los e
seguir seu delicado contorno com a língua.
Imaginou aonde iriam sua boca e sua língua se
ele o permitia à carne úmida do pescoço do
Gwen, baixando até o oco da garganta.
Deixou escorregar o olhar pelo decote, logo
mais abaixo, aonde o tecido umedecido se
pegava à curva dos peitos.

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Minha, pensou. E depois já não pôde
pensar no futuro. Quase não pôde pensar em
nada.
— Certos homens, podem distrair — disse
Gwen — Às vezes. Sobretudo você.
Se Dorian não tivesse tido consciência tão
aguda e ofegante da presença do Gwen, não
teria captado o leve tremor de sua voz.
— Ah, bom, mas eu estou louco.
O que sentia bem podia ser loucura. Sob a
ponta da toalha, à parte do Dorian que jamais
atendia a razões despertava de seu torpor.
— Supõe-se que este tratamento tem
efeito soporífero — disse Gwen, lhe
escrutinando o rosto.
Não parecia inquieta a não ser perplexa,
coisa que o teria divertido se tivesse estado
em condições de fazer observações objetivas.
Impossível.
Estava sentada perto de seu ombro, no
bordo da banheira. As pernas recolhidas sob o
vestido, e a mente rasteira de Dorian estava
concentrada no que havia debaixo. Tirou a
mão da água e a apoiou na borda curva da
banheira, a milímetros do bordo do vestido.
— Tratamento? — disse — Acreditava que
era um feitiço.
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— Sim, bom, não devo haver posto
suficiente olho de salamandra. Teria que
induzir um adormecimento prazeroso.
— Meu cérebro está ficando sonolento.
Tocou com os dedos a musselina franzida
e a aferrou.
Carrancuda, ela fixou a vista na mão.
— Tem dor de cabeça — lhe disse.
Dorian brincou com o volante.
— No momento, isso não me parece muito
importante.
Embora a dor perdurasse, já não lhe
importava. O que sim lhe importava era a
lembrança traiçoeira do que havia debaixo da
musselina. Retirou a mão.
Suaves sandálias de couro uns centímetros
de tornozelo de belas curvas e nada de meias.
— Não leva meias — disse, em tom tão
nebuloso como sua mente — Onde estão suas
meias, lady Rawnsley?
— Me tirei — respondeu—São muito caras,
de Paris, e me dava muita raiva correr o risco
de que se enganchassem em uma lasca
quando entrei por sua janela.
Apanhou-lhe o tornozelo.
— Entrou pela janela.
Não olhou a perna apanhada.
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— Para entrar em seu quarto. Preocupava-
me que consumisse muito láudano. E resultou
que não era uma preocupação exagerada. A
mescla dessa garrafa que tinha não estava
corretamente diluída.
Gwen havia dito que não podia deixá-lo
morrer antes da cerimônia. Aparentemente,
tampouco queria deixá-lo morrer antes de
consumar o matrimônio.
E ele alma negra e podre, tampouco queria
morrer antes de fazê-lo.
— Teve que me salvar.
— Tinha que fazer algo. Não sei nada de
abrir fechaduras, e derrubar a porta teria
armado muito escândalo, por isso escolhi o
caminho da janela. Milord, sua mão não está
esfriando-se outra vez?
— Não. — Acariciou-lhe o tornozelo —
Você a sente fria?
— Não sabia se era você ou eu. — Tragou
saliva — Estou o bastante esquentada.
Dorian levantou mais o vestido e deslizou a
mão pela perna de curvas perfeitas que tinha
descoberto. "Ela quer seu hospital", disse-se,
"e está disposta a pagar o preço."
E ele queria percorrer com a boca essas
pernas adoráveis para cima, até. Seu olhar
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voou até o cabelo, aos selvagens cachos
vermelhos. Evocou uma imagem do que
acharia ao final do percurso, na união das
coxas.
Depois seu olhar apanhou a dela, suave e
doce. Então esteve perdido. Saiu da água,
estirou o braço para ela, enlaçou-lhe a estreita
cintura com um braço, atraiu-a para ele. Sentiu
o ar nas costas, em contraste com o quente da
água, mas o que era a calidez dela.
— Pegará um esfriamento — lhe advertiu
Gwen, sem fôlego — Quer que te traga uma
toalha seca
— Não, vêem mim —disse, com voz rouca.
Não esperou a que o luzisse, mas sim a
elevou em seus braços molhados e gozou
estreitamente comprido momento. Logo se
inundou com ela no caldeirão fragrante, e,
quando a água os envolveu, sua boca
encontrou a dela e se afundou mais, além da
salvação em saborosas promessas.
"Isto não é nada profissional", reprovou-se
Gwendolyn, ao tempo que rodeava com os
braços o pescoço de seu marido.
Era bem sabido que a excitação das
paixões exacerbava os dores de cabeça
patológicas.
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Infelizmente em nenhuma parte da
bibliografia médica tinha encontrado remédio
para casos nos que se excitavam as paixões
do medico. Não sabia que antídoto aplicar
quando a mais leve carícia do paciente
disparava tumultuosas palpitações do coração
e uma brusca ascensão de temperatura, até
chegar ao ponto da febre. Não sabia que
paliativo aliviaria a pressão de uma boca
perversamente sensual sobre a sua ou que
elixir poderia rebater essa poção
endemoninhada que saboreou quando a língua
do paciente se enlaçou à sua.
Percebeu que a água lhe lambia os ombros
e que seu vestido ondulava a superfície do
modo mais audaz, mas não pôde reunir a
suficiente objetividade clínica para fazer algo a
respeito.
Estava preocupada com cada centímetro
daquele homem, duro e morno sob suas
mãos, e não podia lhes impedir que se
movessem sobre os ombros fortes e os planos
suspensórios e tensos do largo peito. Não lhe
bastava. Não conseguia resistir o desejo de
saborear a pele suave, banhada pela água
separou-se da boca tirana e percorreu a
mandíbula e o pescoço molhados com os
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lábios, enquanto seguia explorando com as
mãos a esplêndida anatomia.
— Oh, o músculo deltóide e o peitoral major
— murmurou, aturdida. Tão bem desenvolvido.
Percebeu o desejo cada vez maior e a
audácia das carícias de Dorian e compreendeu
que sua própria reação o incitava. Mas as
carícias do homem também a incitavam.
Sentiu o peso das mãos dele sobre seus
peitos, uma pressão cálida a fazia sentir dor e,
de uma vez, empurrar contra suas mãos,
procurando mais… a boca sensual sobre seu
pescoço fazia chover beijos que lhe
borbulhavam sob a pele e a faziam
estremecer-se de impaciência. A língua
malvada o fazia cócegas a orelha. A
enlouquecia por cima das salpicaduras, ouviu
o grunhido animal que emitiu Dorian quando
ela tremeu sem poder controlar-se e se
mergulhou nele, como se pudesse nadar sobre
sua pele. Era o que queria.
Não lhe bastava nenhuma cercania. A água
as roupas tantas coisas entre os dois,
obstáculos…
— Faz algo — boquejo, forcejando com o
vestido. Tirou o sutiã, mas o tecido empapado

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não se rasgava. — Tira-o — disse-lhe. — Não
posso suportá-lo.
Sentiu que os dedos do homem lutavam
em suas costas com as cintas.
— Está muito encharcada — disse Gwen,
febril — Não poderá as desatar, as rompa.
— Espera, te acalme.
A voz era rouca.
A mão da mulher baixou até o ventre do
homem.
Dorian conteve o fôlego.
— Gwendolyne, pelo amor de Deus.
— Date pressa.
— Espera.
Fechou sua boca sobre a dela e dissipou a
louca pressa da moça com um beijo
interminável, exaustivo.
Gwen se aferrou a ele, sua boca pega a do
homem, enquanto ele a elevava em seus
braços, tirava-a da água e a colocava sobre as
toalhas molhadas.
Quando, ao fim, cortou o beijo
embriagador, Gwen abriu os olhos e viu um
cegante olhar ambarino. Dorian se ajoelhou
sobre ela, escarranchado de seus quadris. Sua
pele escorregadia reluzia à luz das velas. A
água jorrava do comprido cabelo negro.
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Contemplou-o, enfeitiçada. Enquanto
Dorian levava a mão ao decote do vestido e,
com um só puxão, rasgou-o até a cintura.
— Já está contente , bruxa? — murmurou
— Sim. — tendeu-se para ele e o atraiu
para si, desesperada-se por sentir a pele de
seu marido contra a sua.
Beijos quentes, apressados, na fronte de
Gwen, no nariz, nas bochechas, e mais,
descendo pela garganta, até evaporar-se
sobre os peitos. Esses beijos ardentes
consumiram o feitiço, e a loucura voltou.
Gwen entrelaçou os dedos no cabelo do
Dorian para lhe impedir que se afastasse.
Necessitava mais, embora não sabia bem o
que. Sentiu a boca de seu marido perto do
casulo erguido do peito, e o primeiro contato
lhe provocou descargas elétricas sob a pele,
para algum lado um lago interior que ela
ignorava que existisse.
Era selvagem e escuro, uma selva
palpitante de sensações. Dorian a levou a
escuridão, arrastando-a mais ao fundo com as
mãos, a boca, a voz baixa e entrecortada.
Caíram os restos do vestido e, com eles,
os últimos vestígios da razão. Ficou perdida no
perfume masculino e em seu sabor
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pecaminoso, no assombroso poder daqueles
músculos sob a pele tensa e suave.
Queria que se metesse dentro dela, sob
sua pele. Queria que formasse parte dela.
Tampouco foi suficiente quando ele pôs a mão
entre suas pernas, no mais íntimo dos
refúgios, e Gwen se arqueou contra a carícia,
exigindo mais.
Dorian a acariciou de formas secretas que
a fizeram gemer e retorcer-se sob sua mão,
mas não foi suficiente. As provocadoras
carícias se deslizaram, mas fundo, mais
dentro. Os espasmos a sacudiram quentes,
deliciosos, mas não lhe bastou.
Tremeu ao bordo de um precipício,
apanhada entre o prazer selvagem e um
desejo irracional, inevitável, de mais, de algo
mais.
— Deus querido — ofegou, retorcendo-se
como quão demente era — Faça-o. Por favor.
— Logo. — Foi um sussurro áspero — Não
está preparada. É seu primeira...
—Date pressa. — Sentia o membro
pulsando contra sua coxa. Cravou-lhe as
unhas nos braços— lhe dê pressa.
Amaldiçoando Dorian lhe apartou os dedos.
Gwen não podia lhe tirar as mãos de cima.
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Deslizou as mãos pelo ventre dele, para o
lugar onde a levava o instinto. Achou o
membro grosso, quente. Imenso. Sua mão não
podia abrangê-lo.
— Oh, Meu Deus — murmurou.
— Detenha. Por Cristo, Gwen, não me
apresse. Poderia te machucar e...
— Oh, Deus. Sinto muito, tão forte e vivo.
Quase não sabia o que estava dizendo.
Acariciou a carne aveludada, perdida em um
tórrido assombro.
Ouviu um estranho som estrangulado.
O começou a acariciá-la outra vez,
levando-a a essa frustrante loucura. Apartou a
mão dele, enquanto um feroz prazer a
arrastava para o precipício.
Logo chegou, em um veloz impulso, e uma
sensação aguda que a devolveu bruscamente
à realidade.
Tragou ar e piscou.
— Deus do céu. Era enorme. Não se sentia
a gosto. Mas tampouco se sentia do todo mal.
Não de tudo.
— Disse-te que doeria.
Ela percebeu a dor que expressava sua
voz. "É minha culpa", reprovou-se. Não teria
que haver-se deixado surpreender. Agora
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Dorian pensaria que lhe tinha causado um
dano permanente.
— Só ao princípio — disse, trêmula — É
normal. Não tem que te deter por mim.
— Não vai ser muito melhor.
Gwen se olhou nos olhos resplandecentes
e viu a tristeza que aparecia neles.
— Então, me beije — murmurou — Me
concentrarei nisso e ignorarei o resto.
Estirou a mão, colocou os dedos na
espessa juba úmida e o aproximou dela.
Ele a beijou com ferocidade, o desejo
quente que sentiu nele acendeu o dela. Esse
elixir do diabo a embriagou, e a dor e a tensão
se dissolveram em um nada.
Dorian começou a mover-se dentro dela, ao
princípio lentos impulsos, que logo foram
acelerando-se. Gwen se moveu com ele,
deixando que seu corpo respondesse de
maneira instintiva, com regozijo. No ritmo
íntimo do desejo, a paixão voltou, mais ardente
que antes. Ficou unida a ele, e isso era o que
necessitava que fossem um, levá-lo com ela
ao bordo do abismo, e mais à frente à última
explosão de encantamento ardente e depois
afundar-se com ele na doce escuridão da
liberação.
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Um tempo depois, envolta na bata de seu
marido, Gwendlyn se sentou ao estilo dos
alfaiates, perto do pé da cama.
Tinha empilhado um montão de
travesseiros sob as costas do Dorian, e ele
estava sentado com as pernas estiradas sob
as mantas, porque Gwen insistiu em que
mantivesse os pés abrigados.
A orgia no banheiro os tinha deixado
famintos. Atacaram a despensa e se
escapuliram às escondidas para o dormitório
dele, com uma bandeja de substanciosos
sanduíches, dos que deram conta em pouco
tempo.
Embora o banho, fazer o amor e a comida
melhoraram o ânimo do Dorian de maneira
drástica, ainda não estava de todo tranqüilo.
Gwendolyn captava as olhadas de soslaio
que lhe lançava sob as negras pestanas
quando acreditava distraída. Quis saber o que
significavam esses olhares afligidos. Nesse
momento, só um aspecto do caráter de seu
marido ficava iluminado para ela.
Quando se enfrentava a uma morte
horrenda nas areias movediças, tratou de
afastá-la porque tinha medo de que ela caísse.

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Esteve disposto a suportar o tratamento
médico e um possível fechamento em um
manicômio com tal de não submetê-la a casar-
se com ele.
Embora estivesse informado dos riscos
mortais do consumo de láudano sem
supervisão, encerrou-se sozinho no dormitório
para não deixar que ela presenciasse suas
misérias.
Em síntese, o conde do Rawnsley tinha
uma nervura protetora de quase dois
quilômetros de comprimento e de quase seis
de profundidade.
Não acreditava estar superestimando-o.
Tinha suficiente experiência com seu pai, seus
irmãos, tios e primos para reconhecer esse
rasgo. O estado de alerta não a ajudava
absolutamente para recuperar a distância
clínica, que já estava em perigosa situação de
deterioração.
O mero feito de olhá-lo paralisava o
intelecto. Quando recordava o que lhe tinham
feito essa boca sensual, essas mãos fortes e
elegantes e esse corpo comprido e musculoso,
todo o cérebro do Gwen, junto com seu
coração e todos os outros órgãos e músculos

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que possuía, convertiam-se em geléia. A voz
bronca quebrou o ensimismamento.
— Acredito que não deveria ficar aqui —
disse Dorian, com delicadeza.
Gwen, que estava olhando as mãos,
levantou a vista. A expressão aparentemente
cortês lhe provocou um tombo no coração.
Adivinhou por que queria tê-la fora da vista.
Era muito provável que tivesse passado a
maior parte do tempo, desde que saíram do
quarto de banho, arranjando uma forma cortês
de lhe dizer que preferia não repetir a
experiência.
Mas Gwendolyn já tinha sido rechaçada
inumeráveis vezes, e ainda estava viva.
— Entendo — disse, em tom frio, com o
rosto acalorado — Sei que me comportei de
maneira escandalosa. Nem eu sei o que
pensar de mim mesma. Nunca, jamais, em
toda minha vida, reagi assim ante ninguém.
Na mandíbula do Dorian se crispou um
músculo.
— Não é que tenha tido tantos
pretendentes — se apressou a adicionar Gwen
— Não sou uma coquete e, embora fosse, não
tinha muito tempo para noivos. Não queria me
fazer tempo — balbuciou, vendo que a
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expressão do marido ficava mais tensa — Mas
as garotas estão obrigadas a apresentar-se em
sociedade e, é obvio, os homens acreditam
que alguém é igual às outras, e uma não tem
mais remédio que fingir que é assim. E devo
admitir que sentia curiosidade por saber como
era que me cortejassem e me beijassem. Mas
não tinha nada de especial, e não era nem a
metade de interessante que as "Ervas" do
senhor Culpeper. Digamos. Se contigo tivesse
acontecido o mesmo, estou segura de que me
teria comportado de maneira muito mais
decorosa aí, abaixo, no quarto de banho. Me
teria concentrado no tratamento médico, em
lugar de fazer o ridículo. Mas não pude me
comportar como é devido, e realmente
lamento. Quão último queria era te resultar
desagradável.
Com um suspiro, começou a mover-se para
descer da cama.
— Gwendolyn.
Tinha a voz estrangulada.
Gwen se deteve e o olhou.
— Não me resulta desagradável?— disse,
tenso — Absolutamente. Palavra de honra.

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Gwen ficou como estava, ajoelhada perto
do bordo do colchão, esforçando-se por
interpretar a expressão de seu marido.
— Como te ocorre que estava aborrecido?
— perguntou — O que fiz contigo foi quase
uma violação.
Estava perturbado, mas consigo mesmo,
não com ela. E a causa era essa nervura
protetora.
A moça tratou de recordar o que tinha
contado Genevive a respeito dos homens e da
primeira vez, mas sua mente era um embrulho.
— Oh, não, não foi assim, em nada — lhe
assegurou — É tão tenro, e eu valorizo isso,
realmente. Sei que não devia atuar como um
general: "Um isto", "Faz aquilo". "Date pressa".
Mas não pude evitá-lo. Algo... — Fez um gesto
de perplexidade — algo me dominou.
— Isso que te dominou foi seu lascivo
marido — repôs Dorian, turvo — E não devia
me permitir semelhante atitude.
— Mas estamos casados — argüiu Gwen
— Era seu direito, e para mim foi um prazer,
e... — Com o rosto ardendo, acrescentou com
audácia: — Me alegra de que tenha sido
lascivo, milord. Haveria-me sentido muito
decepcionada se não o tivesse sido, porque
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queria que me possuísse desde... — Franziu o
sobrecenho — Bom, não estou segura de
quando começou, mas sei que o desejava
depois que me beijou. — Repto para ele —
Queria que não se preocupasse por mim.
— Supunha-se que isto ia ser um acerto de
negócios — disse Dorian, e lhe apareceram
sombras nos olhos — Ninguém se teria
informado se o matrimônio não se consumava.
Sua posição era bem segura. Não teria que te
haver meio doido. Não tem experiência. Não
sabe como preservar seus sentimentos. Seu
coração é muito brando.
Gwen se apoiou sobre os talões.
— Entendo. Aflige-te que fique
comprometida sentimentalmente,
— Está-o — afirmou — Acaba de me dizer
isso embora eu mesmo o notei. Eu gostaria
que pudesse ver o modo em que me olha.
Por Deus!, acaso era tão evidente?
É obvio que sim. Ela não era como
Genevieve nem como a prima Jessica.
Gwendolyn sabia que carecia de sutileza. Mas
tinha tanto senso de humor como sentido
comum, e esses foram os que a salvaram.
— Como uma colegial apaixonada, quer
dizer?
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— Sim.
— Bom, o que esperava? É terrivelmente
arrumado.
Dorian se inclinou para frente, com os olhos
entrecerrados.
— Tenho uma enfermidade cerebral. Minha
mente está desintegrando-se em pedaços. E
dentro de poucos meses serei um cadáver que
se apodrece!
— Já sei — repôs Gwen — Mas não está
louco ainda. E, quando o estiver, não será meu
primeiro lunático como tampouco seria meu
primeiro cadáver.
— Não se casou com os outros! Não se
deitou com eles! — Jogou atrás as mantas e
ficou a caminhar a pernadas, em esplêndida
nudez, até a janela — Nem quero ser seu
paciente —disse, olhando por volta da
escuridão de fora — E agora sou seu amante.
E você está encantada. É algo macabro.
Não lhe teria parecido macabra se tivesse
podido ver-se como o via ela, alto e forte, tão
formoso à luz das velas.
— Você mesmo disse: a Providência não
brinda a todas suas criaturas com uma morte
bela — disse — Não dá a cada um de nós o

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que queremos. Não me converte em homem,
para que possa ser médico.
Saiu da cama e se aproximou dele.
— Mas agora não lamento absolutamente
ser mulher — lhe disse — Me fez celebrá-lo, e
sou o bastante prática e egoísta para querer
desfrutar dessa alegria todo o tempo que
possa.
Dorian se deu a volta, com semblante
sombrio.
— Oh, Gwen.
Então ela compreendeu que não o teria
muito tempo. A expressão lúgubre, o
desespero na voz de Dorian lhe disseram que
as coisas eram piores do que pareciam.
"Mas esse é o futuro", disse-se.
Apoiou-lhe uma mão no peito:
— Temos esta noite — disse com
suavidade. A fez alegrar-se de ser mulher.
Temos esta noite, havia dito.
Nem mesmo São Pedro, respaldado por
uma hoste de mártires e anjos, teria podido
resistir a ela. Teria deixado que as portas do
Céu se fechassem a suas costas, a teria
estreitado entre seus braços, e se teria
dedicado em corpo e alma a fazê-la feliz,
embora se condenasse por toda a eternidade.
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Assim, Dorian elevou em braços à tola
apaixonada da sua esposa, levou-a até a cama
e lhe fez o amor outra vez. E gozou outra vez
do encantamento de que lhe fizessem o amor,
de ser desejado, de que confiasse nele. E
depois, com a condessa adormecida entre
seus braços, ficou acordado, duvidando de se
estaria vivo ou morto, porque não podia
recordar quando havia sentido o coração tão
docemente em paz como nesse momento.
Só quando o primeiro raio débil do dia que
começava se meteu na habitação, lhe ocorreu
algo parecido a uma explicação.
Nunca, em toda sua vida, fazia nada bom
por ninguém. Não tinha feito outra coisa que
fantasiar resgatando a sua mãe de um mundo
ao que não pertencia e levar-lhe ao continente,
onde ela já não teria que fingir nem mentir.
Quando ao fim foi visitá-la, deixou passar
todas as pistas que sua mãe deixou cair, e
seguiu adiante, sem preocupar-se. Se, em
troca, tivesse prestado atenção e ficasse para
ajudar seu pai a cuidá-la, poderiam haver-se
adiantado ao avô e aos "especialistas".
Inclusive no manicômio, quando pareceu que
era muito tarde, não teria por que havê-lo sido
se Dorian tivesse usado o cérebro inteligente
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que herdou. Teria que ter pressionado sobre o
orgulho adotado e o sentido do dever de seu
avô e convencê-lo de maneira paulatina. Sua
mãe tinha passado anos enganando ao velho
tirânico. Se tivesse sido necessário, Dorian
poderia havê-lo feito também.
E teria que havê-lo feito logo, quando caiu
a tocha, em lugar de fugir do Rawnsley Hall
como um menino caprichoso. Assim talvez
tivesse obtido algo. Poderia ter usado o
dinheiro e a influência do conde com bons fins,
em projetos de ensino, por exemplo, para
investigação, ou talvez em algum cometido
político.
Todos morriam, alguns antes, outros
depois. Não era motivo para choramingar. Mas
morrer sem outra coisa que lamentos e
arrependimentos era patético.
Dorian compreendeu que era isso o que
vinha inquietando os últimos meses. Mas
agora sua alma estava tranqüila. Por ela.
Afundou o nariz na juba revolta de sua
esposa. Tinha-a feito feliz. A fez perdoar ao
Todo-poderoso por havê-la feito mulher.
Sorriu, compreendeu que não era pouco.
Gwen queria ser médico. E o que era tão
importante como isso era que queria usar o
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dinheiro e a influência do conde de Rawnsley
com bons fins.
"Muito bem", disse para si. "Não poderei lhe
dar um título acadêmico, mas te darei o que
possa."
E essa devia ser a conclusão correta,
porque sua mente se aquietou e, pouco
depois, dormiu.
Depois do café da manhã, Dorian a levou
aos páramos, ao sítio onde sua mãe o tinha
levado oito anos antes.
Ajudou ao Gwendolyn a apear-se,
aproveitando para lhe dar um breve beijo, e a
levou a um penhasco que estava a um lado do
atalho, tirou-se a jaqueta, tendeu-a sobre a
pedra fria e a convidou a sentar-se em cima,
coisa que Gwen fez com sorriso absorto.
— Ontem à noite disse que eu não era seu
primeiro lunático — começou dizendo.
— Oh, claro que não — lhe assegurou — O
senhor Eversham, que se fez cargo da prática
do senhor Knightly, estava muito interessado
pelas doenças neurológicas e me deixou
ajudá-lo em vários casos. Nem todos os
pacientes eram irracionais. Mas a senhorita
Ware tinha seis personalidades diferentes,
segundo o último cálculo, e o senhor Bowes
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tinha propensão à demência violenta, e a
senhora Peebles, que sua alma afligida
descanse em paz...
— Depois poderá me contar esses
detalhes — a interrompeu Dorian — Só queria
estar seguro de que ontem à noite te entendi
bem. Não sei se prestava suficiente atenção,
lamento dizê-lo. Não prestei atenção desde
que você chegou.
— Como pode dizer semelhante coisa? —
exclamou — Você é o único homem, além do
Eversham, que me levou a sério. Não riu da
idéia do hospital e não se horrorizou pelas
dissecações. — Vacilou um instante —
Embora seja certo que é superprotetor, sei que
isso forma parte de sua natureza, e que é uma
inclinação muito nobre e cavalheiresca.
— Superprotetor? — repetiu — É assim
como o considera, Gwen?
Assentiu.
— Quer me proteger de tudo desagradável.
Por um lado, é encantado sentir-se cuidada.
Mas, por outro, é um pouco frustrante.
Dorian pôde entender de que modo a tinha
frustrado, Gwen não queria ignorar o que se
referia a sua enfermidade. Tinha-a tratado

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como a uma mulher tola, como fizeram outros
homens.
— Isso imagino. — Para evitar estreitá-la
entre seus braços "superprotetores", coisa que
muito desejava, uniu as mãos depois das
costas — Tem uma mentalidade médica. Não
vê as coisas como nós, os leigos. Para ti, a
enfermidade é objeto de estudo, e os doentes,
fontes de conhecimento. Seus padecimentos
não lhe resultam nauseabundos, quão mesmo
não me resultaria isso uma obra de Cicerón. —
Fez uma pausa, e começou a acalorar-se —
Em outros tempos, considerei-me um
estudioso. Os clássicos.
— Sei. — Seus olhos verdes tinham uma
tenra expressão de admiração — Bertie diz
que obteve uma distinção.
— Sim, não só sou um tipo arrumado. —
disse, com uma breve gargalhada — Tenho
cérebro. — Incômodo, apartou a vista, para os
páramos — Em outra época, eu também tinha
planos, como você. Mas não os havia pensado
bem, e tudo terminou em uma confusão.
Oprimiu-lhe a garganta. Disse a si mesmo
que era absurdo sentir-se inquieto.
Preparou-se para dizer-lhe tudo. Sabia que
era o correto. Gwen precisava conhecer os
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fatos, todos, para tomar decisões sensatas
com respeito a seu próprio futuro. Na
atualidade, seu vínculo com ele não era muito
mais que o amor de uma esposa flamejante e
uma resposta à paixão física que
compartilharam. Depois que lhe contasse todo
o concernente a seu passado e o que lhe
proporcionava o futuro, se Gwen decidia ir-se,
logo recuperaria o equilíbrio. Se preferia ficar,
ao menos o faria com os olhos abertos,
preparada para o pior. Se queria demonstrar
respeito pela mente e a personalidade de sua
esposa e convicção nas metas dela, tinha que
lhe dar a alternativa de escolher, e aceitar a
decisão que adotasse, e viver — e morrer —
com as conseqüências.
— Dorian?
Dorian fechou os olhos, que doce soava
seu nome nos lábios dela. Isso tampouco o
esqueceria, acontecesse o que acontecesse
ou pelo menos o recordaria enquanto seu
cérebro funcionasse, voltou-se para ela
sorrindo, enquanto se tirava da cara o cabelo
que o vento agitava.
— Sei que quer ouvir os fascinantes
detalhes de minha enfermidade — disse —
Estava tratando de decidir por onde começar.
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Gwen se sentou mais erguida, e a
expressão suave e amorosa foi substituída por
aquele olhar verde firme que tanto o intrigou a
primeira vez que se viram.
— Obrigado, meu querido — disse, já em
tom profissional — Se não se importa, eu
gostaria que começasse por sua mãe.
Essa noite, depois do jantar. Gwendolyn se
sentou à mesa da biblioteca e fez uma lista de
textos médicos que queria que lhe enviassem.
Dorian se sentou junto ao fogo, folheando um
volume de poesia.
Sabia que não tinha sido fácil para ele lhe
falar do passado, mas estava segura de que
lhe faria bem. "Tinha muitas coisas encerradas
dentro", pensou Gwendolyn, voltando o olhar a
ele. As pessoas que faziam isso estavam
acostumadas a exagerar as situações de
maneira desproporcionada, e o que piorava as
coisas era a ignorância de Dorian em matéria
de ciência médica.
Por exemplo, as quimeras visuais que
descreveu eram fenômenos fisiológicos
comuns a muitas enfermidades neurológicas, e
não aberrações, como ele acreditava. Mais
ainda, Dorian não tinha compreendido bem o
caso de sua mãe, nem o difícil que era o
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tratamento dos dementes. Tampouco
compreendeu que, freqüentemente, os
médicos não tinham modo de saber, até
depois da morte, se o cérebro estava
fisicamente prejudicado. Até ela mesma não
estava segura de que o senhor Borson teria
dirigido o caso com prudência.
Dorian elevou a vista e a surpreendeu
contemplando-o.
— Tem seu cenho de médica — lhe disse
— Por acaso estarei jogando espuma pela
boca sem sabê-lo?
— Estava pensando em sua mãe —
respondeu Gwen — No cabelo, por exemplo.
Não sei se cortá-lo era a única solução.
O semblante do Dorian ficou rígido, mas só
um momento.
— Não sei que outra coisa poderiam ter
feito. — disse, lentamente — O arrancava em
mechas ensangüentadas, conforme diziam
meu pai e meu tio. Acredito que não sabia que
era seu próprio cabelo. Devia acreditar que
eram garras. As garras imaginárias das Fúrias.
Gwendolyn se levantou da cadeira,
aproximou-se de seu marido e lhe apartou o
cabelo da cara.
Dorian lhe sorriu.
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— Dou-te permissão para cortar-me o
cabelo, Gwen. Teria que havê-lo feito eu, faz
semanas... Ou pelo menos, para minhas
bodas.
— Mas essa é a questão. Não quero que
corte o cabelo.
— Não o levo assim por nenhum capricho
louco que você deve consentir. — lhe disse —
Tive motivos práticos que já não têm
importância.
— Eu acreditei que o fazia por despeito a
seu avô — disse Gwen — Se tivesse sido meu
avô, estou segura de que eu teria feito algo
para chateá-lo. — Pensou um instante —
Calças. Teria levado calças.
Dorian riu.
— Ah, não, eu não era tão audaz. Quando
fui a Londres, preocupava-me que alguém
pudesse me reconhecer e dissesse a meu avô
onde estava. Nesse caso, teriam castigado a
minha caseira e a meus empregadores por dar
ajuda e comodidade ao inimigo.
Tinha-lhe falado de sua estadia em
Londres, quando trabalhava como um escravo,
noite e dia. O trabalho nos moles explicava a
existência desses músculos, que a tinham
intrigado sobremaneira. Era estranho ver esse
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desenvolvimento da parte superior do corpo
entre a nobreza, mas não entre os
trabalhadores e os pugilistas.
— Com aparência de excêntrico, e talvez
algo perigoso, o recluso mantém a raia os
curiosos — prosseguiu — Os faz desistir de
entrometer-se nos assuntos pessoais dele. É
óbvio que tais preocupações se estenderam
aqui, ao Dartmoor pelo menos enquanto viveu
meu avô.
— Bom, alegra-me de que não fosse
prático e não te cortasse o cabelo para as
bodas —disse Gwen — Vai muito bem com
seus rasgos exóticos. Não tem muito aspecto
de inglês. Ao menos, não do modo comum.
Fez uma pausa, impressionada por uma idéia,
tornou-se atrás para observá-lo e sorriu.
Dorian lhe apanhou a mão, arrastou-a para
ele e a fez sentar-se em seu regaço.
— Será melhor que não ria de mim,
doutora Gwendolyn — disse com severidade
— Os loucos não tomam muito bem essas
atitudes.
— Estava pensando na prima Jessica e em
seu marido — disse Gwendolyn —. Daín
tampouco tem uma aparência comum. Ao

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parecer, ela e eu temos gostos similares em
matéria de homens.
— Certamente gostam dos monstros, e a ti
os lunáticos.
— Você eu gosto. — disse, encolhendo-se
contra ele.
— Como posso não gostar? Ontem passei
horas falando de pouco mais que sintomas
médicos e asilos para loucos. E você me
escutou como se fosse poesia e quase caiu a
meus pés. É uma lástima que não tenha
nenhum tratado médico. Estou seguro de que
não terei que ler mais que um par de
parágrafos, e te voltará luxuriosa e começará a
rasgar minha roupa.
"Quando único tem que fazer para que me
volte luxuriosa é estar aí de pé ou sentado",
pensou Gwen. Tornou-se atrás.
— Você gostaria?
— Que me rasgue a roupa? Claro que eu
gostaria. — Inclinou a cabeça e lhe murmurou
no ouvido — Recorda que estou mentalmente
desequilibrado.
Gwen jogou um olhar para a porta.
— E se entrar Hoskins?
Dorian deslizou a mão dela pela abertura
de sua camisa.
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— Diremos que é um tratamento.
Gwen se voltou para ele. Entre o chiado de
risadas, nos olhos do Dorian emergiu o desejo,
feroz e quente.
Um dia, muito em breve, essa fera cálida
se tornaria perigosa, possivelmente fatal.
Mas Gwen confrontaria esse momento
quando chegasse. Enquanto isso se sentia
feliz de arder entre seus fortes braços.
Levantou a mão dele e a levou a seu peito.
— Me toque — sussurrou — Me
enlouqueça também, Dorian.
Ao dia seguinte, teve um ataque.
Acabavam de terminar o café da manhã
quando Gwen viu que piscava, impaciente, e
agitava as mãos no ar perto de sua cara.
Dorian se surpreendeu fazendo-o e riu.
— Sei que é inútil — disse — Suponho que
se trata de um reflexo.
Gwendolyn se levantou da cadeira e se
aproximou dele.
— Se for à cama agora e tomar uma dose
de láudano, apenas te dará conta quando
começar a dor de cabeça.
Dorian se levantou e foi acima com ela,
com expressão preocupada. Gwen o ajudou a
despir-se e notou que sua visão não estava tão
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danificada como para não poder encontrar os
peitos dela. Acariciou-os, enquanto ela lutava
com o pescoço da camisa.
— Está de muito bom humor — lhe disse,
quando ao fim conseguiu deitá-lo e cobri-lo —
Se não soubesse a verdade, suspeitaria que
meu senhor me enganou, para me atrair a
seus aposentos.
— Oxalá fosse uma mureta — repôs,
piscando — Mas aí estão essas malditas,
piscando os olhos e piscando. E você tinha
razão, Gwen não são como fantasmas. Você
as há descrito melhor. "Como chocar contra
um poste de sistema de iluminação", disse.
"Primeiro vê estrelas, depois sente a dor." Eu
gostaria de saber o que foi o que convenceu a
meu cérebro de que sofri um golpe na cabeça.
Ela sabia bem.
— Disse-lhe que terei que isolá-lo de
qualquer fonte de agitação nervosa — havia
dito Kneebones.
Ele era um médico de verdade, com
décadas de experiência. Entendia a
enfermidade, tinha estudado durante meses à
mãe do Dorian.

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— Já há vista o que lhe provocaram as
novidades sobre a família: três ataques em
uma semana.
Recordou a conversação do dia anterior, e
lhe remoeu a consciência.
— Já entendo o que foi — disse, tensa —
Ontem te obriguei a reviver as experiências
mais dolorosas de sua vida. E não me
conformei com um panorama geral, não.
Pressionei-te para te tirar os detalhes, inclusive
do relatório postmorten de sua mãe. Deveria
ter compreendido que era muito esforço para
fazer de uma só vez. Não posso acreditar que
não fui capaz de prevê-lo. Pergunto-me onde
deixei minha sensatez.
Começou a mover-se para ir procurar a
garrafa de láudano, mas Dorian lhe aferrou a
mão.
— Eu me pergunto onde a deixaste agora
— lhe disse — Gwen, fez-me revisar o
passado. A conversação de ontem não me fez
mais que bem. Aliviou minha mente em cem
sentidos diferentes.
Ele a puxou pela mão.
— Sente-se.
— Tenho que ir procurar o láudano.

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— Não o quero. Pelo menos, até que se
volte insuportável. Esse é o único motivo que
me levou a tomá-lo até agora. Não estava
seguro de poder confiar em mim mesmo. Mas
posso confiar em ti. Não sou seu primeiro
louco. Você sabe quando preciso receber
estupefacientes.
— Também sei que a dor é terrível — disse
Gwen — Não posso permitir que esteja aí
tendido, suportando-o. Tenho que fazer algo,
Dorian.
Dorian fechou os olhos e relaxou o
semblante.
— Começou, não é assim?
Lutou para manter a voz baixa e regular.
— Não quero ingerir estupefacientes —
disse, em tom sereno — Quero ter a mente
clara. Se devo estar incapacitado fisicamente,
eu gostaria de aproveitar para pensar,
enquanto ainda possa.
Gwendolyn afogou com firmeza sua
consciência, que gritava. A culpa não o
ajudaria, recordou-se que tinha chegado aí
com expectativas modestas. Esperava
aprender, ao mesmo tempo que aliviava o
sofrimento do doente, até onde fosse possível.
Nunca se tinha feito iluda de curar o que a
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ciência médica quase não podia entender, e
muito menos tratar.
Não esperava apaixonar-se por ele quase
imediatamente. Mas isso só trocava seus
sentimentos, e não teria mais remédio que
viver com eles. Mesmo assim, não permitiria
que a governassem, nem se deixaria tentar
para rogar um milagre, quando o que em
realidade tinha que fazer era escutá-lo, lhe
brindar o que necessitava e encontrar o melhor
modo de subministrar-lhe.
— Quer pensar — disse, franzindo o
sobrecenho.
— Sim. Sobre minha mãe, e o que disse
dela. Sobre meu avô. Os especialistas. A
loucura. — apoiou-se um polegar na têmpora
— Não acredito que me tenha rompido um
vaso sangüíneo, e entretanto vejo desfilar meu
passado ante mim. — Com sorriso torcido,
acrescentou — E começa a ter sentido.
Gwen sentiu uma quebra de onda de
alarme, mas a conteve sem piedade.
— Muito bem — disse com calma — Nada
de soporíferos. Mas bem provaremos com
estimulantes.
Gwendolyn lhe deu café. Muito forte e em
grandes quantidades.
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Duas horas e inumeráveis xícaras depois,
Dorian estava completamente recuperado, e
sua esposa o contemplava como se acabasse
de levantar-se de entre os mortos. Estava de
pé junto ao fogo, as mãos enlaçadas frente a
ela, a expressão, uma cômica mescla de
preocupação e perplexidade, enquanto o via
colocar a roupa.
— Começo a suspeitar que acreditava que
me tinha rompido um vaso sangüíneo —lhe
disse Dorian, enquanto se abotoava a calça —
Ou estava a ponto de me acontecer.
Sua expressão cômica se desvaneceu e
deixou passo à conhecido olhar firme.
— Não sei o que pensar — lhe disse —
Sinceramente estou confundida. Duas horas,
do princípio ao final. Isto não tem sentido do
ponto de vista médico.
— Disse-te que senti com toda claridade
como se aliviava a pressão depois da quarta
taça — disse — Como se tivesse liberado
minha cabeça de um torno. Talvez o café
liberou meu organismo da pressão e... —
sorriu — ... passou ao urinol.
— Tem propriedades diuréticas.
— É óbvio.

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— Mas não deveria ter reagido assim. —
Lhe formaram rugas na fronte — Talvez eu
interpretei mal seu relato do relatório da
autópsia, mas não sei como. O caso de sua
mãe não era muito insólito.
— Eu gostaria de saber o que é o que a
preocupa — lhe disse Dorian — Esteve
tagarelando incoerências sem me dar conta?
Mostro sinais de mania? A extraordinária
sensação de bem-estar é um sinal de alarme?
Gwendolyn, se estiver às portas da morte, eu
gostaria de ser informado.
Gwen soltou um suspiro trêmulo.
— Não sei. Tinha pensado que a dilatação
dos copos sangüíneos e o aumento de fluxo
sangüíneo, talvez aumentados pelo derrame,
dispararam a aura e a dor. Mas para que
cessasse a dor os copos deveram contrair-se
outra vez e diminuir o fluxo sangüíneo e se
supõe que suas células e seu tecido estão
muito fracos e danificados para fazê-lo tão
rápida e completamente.
Dorian recordou o que Gwen lhe havia dito
com respeito à função do cérebro.
— Entendo. — disse —Teme que algo
tenha talhado o fornecimento de sangue com
muita brutalidade, possivelmente de uma
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forma perigosa e anormal, e que este seja um
alívio ilusório e temporário.
— Não poderia dizê-lo.
A voz da mulher era um pouco trêmula.
"Possivelmente cairia morto no próximo
minuto", pensou Dorian. Isso não parecia
possível. Nunca se havia sentido mais vivo. De
todos os modos, não queria correr nenhum
risco.
Aproximou-se dela e a atraiu a seus braços
e a beijou, com um beijo comprido e
apaixonado, até que ela se relaxou contra ele.
Seguiu beijando-a, acariciando-a e a levou até
a cama.
Isto não era o que pensava fazer. Só queria
estar seguro de que ela entendia como se
sentia com respeito a ela.
Mas, uma vez que começaram, não
puderam deter-se. Em pouco tempo, a roupa
que pouco antes se pôs ficou esparramada
pelo chão junto com a dela, e Dorian se
perdeu, inundou-se nela, no mar quente do
desejo.
E depois, enquanto permaneciam deitados
juntos, com os membros entrelaçados,
descobriu que seu coração ainda pulsava e

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seu cérebro funcionava e lhe disse o que tinha
feito por ele.
Ontem lhe tinha falado de seu passado
libertino, esperando que se horrorizasse e
desgostasse. Em troca, Gwen desprezou,
impaciente, sua preocupação, considerando
como um comportamento masculino normal o
beber e sair com mulheres.
Falou-lhe de sua mãe, da criatura
lamentável e monstruosa em que se
converteu, e a Gwendolyn não lhe moveu um
cabelo.
— É como a consumição. — disse,
reduzindo os horrores a uma série lógica de
feitos fisiológicos — Não se pode dizer que
suas infidelidades e segredos a piorassem ou
provocassem o desmoronamento final. Seu
matrimônio era insatisfatório. Por isso
sabemos, as intrigas românticas poderiam ter
reduzido a tensão emocional e demorar o
inevitável em lugar de apressá-lo.
Se Dorian ficasse com sua mãe, poderia
havê-la agitado mais, porque Aminta tinha um
laço emocional mais forte com ele que com o
pai. Essa era a teoria de Gwen.
Mais ainda, disse-lhe que era preciso pôr
na devida perspectiva as condições do
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manicômio. Nesses casos, era freqüente que
ficassem destruídas as faculdades morais. Os
pacientes podiam parecer calmos e racionais
sem ter mais consciência ou controle de seus
pensamentos e de seus atos que se fossem
marionetes às que as células cerebrais
danificadas atiravam dos fios. E, conscientes
ou não, freqüentemente esqueciam por que
estavam zangados ou tristes, igual esqueciam
os princípios básicos da higiene, e inclusive os
quais eram ou onde imaginavam que tinham
estado uns minutos antes.
Isso lhe fez compreender que talvez sua
mãe não tinha tido que suportar contínuas
humilhações e dores, porque a maior parte do
tempo estava vivendo em seu mundo próprio,
onde quase nada podia alcançá-la.
— Realmente aliviaste minha mente —
disse Dorian a sua esposa — Nem meu avô
me parece já tão monstruoso. Mas bem
lamentável, com sua ignorância, seu temor do
que não compreendia, e sua dependência dos
especialistas. Mas você não é como ele nem
seus preciosos especialistas. Tem talento para
fazer que o incompreensível tenha sentido. O
reduz a proporções manejáveis. Até este

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último ataque parece pouco mais que uma
maldita moléstia.
Gwen se incorporou sobre o cotovelo e lhe
observou o rosto.
— Talvez, porque estiveste menos agitado
e seu cérebro não trabalhou com tanta
intensidade — lhe disse — Disse que
precisava pensar, e parece que suas reflexões
foram positivas. É possível que o tratamento
mais benéfico consistisse em estimular esses
pensamentos em lugar de te adormecer.
— Fazer amor me sugere grande
quantidade de pensamentos positivos. — lhe
disse — Possivelmente tenhamos que
considerá-lo também como um tratamento
benéfico.
Gwen arqueou uma sobrancelha.
— Não recordo nada na literatura médica
que recomende sexo como tratamento.
Dorian colocou os dedos entre o cabelo
revolto do Gwen e a atraiu para si.
— Possivelmente não tenha lido suficientes
livros.

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Três semanas depois, Dorian estava na
porta da sala de sua esposa, observando-a ler,
carrancuda, um folheto.
Os livros tinham chegado fazia duas
semanas, e ele e Hoskins a ajudaram a
converter a sala em escritório. Os livros
médicos formavam filas na prateleira.
O escritório já não estava tão ordenado.
Folhetos, cadernos de apontamentos e folhas
de tamanho oficio se amontoavam ao azar.
Dorian se apoiou no marco da porta e,
cruzando os braços, observou a sua
preocupada esposa.
Sabia o que estava procurando. Não um
padre, porque não havia, a não ser as chaves
da "resposta positiva" ao tratamento. Embora
jamais o admitisse, Dorian sabia que tinha
esperanças de lhe prolongar a prudência, se
não à vida.
Tinha os melhores motivos para cooperar
com ela. Estaria agradecido de desfrutar de
um mês mais, até de um dia mais. E,
entretanto, essa busca teimosa oprimia seu
coração por ela. Não era tão "prática e
egoísta" como afirmava. Importavam-lhe muito
seus pacientes. Até lhe importou o senhor
Bowes, cuja demência fazia que os ataques da
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mãe de Dorian, por comparação, parecessem
meros incômodos.
Mas, no presente, não era simples questão
de que lhe importasse. Dorian temia que a
dedicação de Gwendolyn fosse exagerada,
que acontecesse a necessidade de
esclarecimento à obsessão. A noite anterior
tinha murmurado em sonhos algo a respeito de
"inconstância idiótica", "lesões" e "sintomas
prodrômicos".
Tinha a tentação de mandar de volta os
livros e de lhe ordenar que deixasse, que
desistisse, antes que a atacasse uma febre
cerebral. Mas não podia privá-la do que era
uma oportunidade de aprender única em sua
vida, nem demonstrar falta de respeito por sua
maturidade, intelecto e competência.
Por sorte, estava em condições de arranjar
algo como uma solução, porque sua mente,
em que pese a dois ataques mais, ainda
funcionava. O último, na semana anterior, tinha
durado vinte e quatro horas, até que Dorian fez
que Gwen lhe desse uma dose de xarope de
ipecacuana, para fazê-lo vomitar. Depois
dormiu como um tronco outro meio-dia.
Mas se recuperou com a mesma sensação
de bem-estar e de lucidez que experimentaram
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nas duas ocasiões anteriores. Estava seguro
de que isso se devia a que sua esposa tinha
exorcizado os demônios do medo, a vergonha
e a ignorância, reduzindo assim a pressão
emocional sobre o cérebro prejudicado. Sabia
que o alívio era temporário, e não pensava
desperdiçá-lo. Não tinha futuro, mas Gwen
sim, e Dorian tinha passado a última semana
se ocupando do futuro dela.
— É mau momento para interromper? —
perguntou-lhe.
Gwen elevou a cabeça, sua expressão
preocupada se desvaneceu e pareceu sair o
sol nesse sorriso infinito que ainda lhe
provocava um tombo no coração.
— Nunca é mau momento para ti — lhe
disse — É a mais bem-vinda das interrupções
do mundo.
Dorian se separou do marco da porta, foi
até o escritório e se encarrapitou no bordo.
Posou a vista no folheto que ela tinha deixado
quando ele se aproximou: "Uma descrição da
Mania Idiopática Aguda tal como se
manifesta..."
— É um dos estudos de Eversham — lhe
explicou — Mas seu comportamento não
coincide com o modelo.
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Dorian levantou o trabalho e o folheou.
— Pergunto-me como faz para entender
algo deste caos. — Deixou o folheto e levantou
um livro magro — Este é pior ainda. Se eu
tentasse ler a primeira frase, poria-me a uivar e
só são três quartos de página.
— São médicos, não escritores — disse
Gwendolyn — Teria que ver como escrevem à
mão. É um milagre que os impressores não
estejam já no manicômio.
— Sua letra não é para presumir — lhe
disse, com um olhar significativo à
desordenada pilha de folhas de tamanho oficio
cobertas com a escritura impossível do Gwen.
A moça franziu o nariz.
— Sim, minha escrita é muito feia. Não
como a tua. Estou segura de que foi o melhor
copista que tiveram jamais os advogados
londrinos.
— Eu adoraria copiar suas notas de
maneira legível — lhe disse — De fato, eu...
Interrompeu-se, com a mente perdida nas
lembranças. Era algo que lhe havia dito. Algo
relacionado com um "mal-entendido".
Ao surpreender a expressão afligida pelo
Gwen, encolheu-se de ombros.

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— Estou bem. Minha mente divagou, isso é
tudo. Interrompi-te por um motivo concreto, e o
jargão médico e sua escrita horrorosa me
distraíram. — Revolveu-lhe o cabelo — Vim te
pedir que me acompanhe a visitar Athcourt.
— Athcourt? — repetiu, sem entender.
— Escrevi ao Dain faz uns dias — lhe
explicou — Necessito conselho sobre certas
questões de negócios. Agora ele é membro da
família, sua propriedade está a uns poucos
quilômetros a sudeste daqui e, por isso ouvi, é
um excelente administrador.
— Athcourt tem fama de ser uma das
propriedades mais prósperas e melhor
administradas do reino — disse Gwendoiyn,
assentindo — Estou segura de que sua perícia
para os negócios é sólida.
— De qualquer modo, convidou-me com
cordialidade. Dorian tirou uma carta do bolso e
a deu.
Enquanto Gwen a lia, começou a lhe tremer
a boca.
— Esse homem é um malicioso
incorrigível. E isto que é? — Começou a ler em
voz alta: — "Se esse pateta do Trent ainda
anda por aí, poderia trazê-lo também, pois só
resultaria um desastre se o deixássemos a seu
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próprio arbítrio. Mas você já sabe o que se
espera de ti em tal caso". — Elevou a vista —
Parece que se conhecem melhor do que eu
supunha.
Dorian riu.
— Dain ainda estava no Eton quando Bertie
chegou. — explicou — Mais ou menos uma
vez a cada quinze dias, Bertie caía pelas
escadas ou tropeçava em algo, ou, de algum
modo, as engenhava para cruzar-se no
caminho de Sua Senhoria. Por fortuna, eu
estava perto a primeira vez e apartei Bertie
antes de que Dain se ocupasse dele com
métodos mais violentos. Depois disso, cada
vez que seu primo aparecia ante a presença
satânica, Sua Senhoria me chamava:
"Camoys", dizia, do mais frio. "Voltou. Faça-o
ir-se." E então eu me ocupava de fazer
desaparecer ao Bertie.
— Posso imaginar ao Dain fazendo-o. E a ti
também. — Aplaudiu-lhe o braço — É sua
nervura protetora.
— Era meu instinto de conservação. —
corrigiu Dorian, indignado — Eu tinha apenas
doze anos e Dain, já aos dezesseis, era
grande como uma casa. Não tinha mais que
posar uma de seus mãos em minha cabeça
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para me esmagar como a um inseto. — Riu —
Entretanto, eu o admirava muito. Teria dado
algo por poder sair impune como ele das
coisas que fazia.
A risada do Gwendoiyn foi um som
delicioso.
— Eu também — disse — Não é difícil
imaginar porquê tem a Jessica cativada. Ou
por que isso a ofende tanto.
— Me ocorreu que você gostaria muito de
visitá-la, enquanto Dain e eu falamos de
negócios.
— Eu adorarei. — Devolveu-lhe a carta —
Me alegra que tenha pensado no Dain como
assessor comercial. É melhor que Abonville. O
duque é estrangeiro e pertence à outra
geração.
— Sabia que tinha reservas com respeito a
ele.
— É um homem maravilhoso, mas pode
chegar a ser muito paternal.
Dorian vacilou. Não queria inquietá-la, mas,
por outro lado, tampouco podia acontecer o
tempo que ficava evitando toda menção do
que lhes esperava.

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— Então espero que não te incomode se
terminar por fazer que meu guardião legal seja
Dain, em vez dele — disse, com calma.
Houve uma pausa insignificante, e logo
disse:
— Se eu tivesse dificuldades e você não
estivesse em condições de me ajudar, não
haveria ninguém a quem preferiria ter a meu
lado.
Cruzou o olhar claro e firme com o de seu
marido.
Dorian imaginava quanto lhe custava tanta
compostura e firmeza, e isso o perturbava.
Mas não podiam fingir que sempre teriam um
ao outro, porque não era assim. Inclinou-se e a
beijou.
— Assim é como me sinto — disse.
Tornou-se atrás e riu — Se tivermos que
escolher um aliado, é melhor que escolhamos
o maior que possamos encontrar.
Uns dias depois, foram a Athcourt, com a
intenção de ficar dois dias. Terminaram ficando
uma semana.
Dain resultou estar bem informado — e
obstinado para expressar sua opinião — em
uma variedade de assuntos, e muito em breve
os dois homens discutiam felizes, como velhos
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amigos ou como irmãos, perseguiram-se um
ao outro pelo vasto parque de Athcourt e pelos
páramos circundantes, praticaram esgrima e
tiro. Um dia Dain se encarregou de ensinar a
Dorian certos detalhes finos do pugilismo, e se
pegaram em uma esquina do curral, enquanto
as esposas os animavam.
O filho ilegítimo do Dain também vivia no
Athcourt. Era um demônio de peralta, de oito
anos, a que Dain se referia orgulhoso
chamando-o Semente do Demônio.
Ao princípio, o pequeno Dominick olhava
com cautela a Dorian, mas ao cabo de dois
dias estava convidando o conde do Rawnsley
a visitar sua casa da árvore. Dorian soube que
isto significava uma honra. Até o momento, só
seu pai adorado tinha acesso ao refúgio e era
iniciado em seus mistérios.
Assim, Dorian voltou de Athcourt com os
joelhos e os cotovelos raspados, a afirmação
do Dain de que atenderia com zelo os
assuntos de Gwendolyn e o louco desejo de
ter um filho.
Disse que era ridículo ansiar um filho ao
que não veria nascer e concentrou suas
energias em concretizar o sonhado hospital de
Gwendolyn.
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Dain esteve de acordo com ele em que
nem o título nem as riquezas compensariam o
fato de que era uma mulher, e, além disso,
jovem. Teria que enfrentar a muitos homens, e
poucos deles deviam ter uma visão realista
das capacidades femininas.
— Posso enfrentar os homens — havia dito
Dain — mas talvez necessite instruções
precisas. Não sei nada de hospitais, nem
mesmo dos de dia, e acredito que sua senhora
tem em mente algo novo.
— Não sei se será tão precisa como seria
de desejar quando chegar o momento —
respondeu Dorian — Eu já detecto sinais de
tensão emocional. Ocorreu-me que, se
começássemos agora com o projeto, seria
uma distração saudável. Mais ainda, se eu
estiver diretamente comprometido em sua
fundação, outros o considerarão com mais
seriedade. Se o conde do Rawnsley diz que a
construção deve ser um perfeito hexágono, por
exemplo, outro tipo não se atreverá a dizer
que, em realidade, deve ser um cubo perfeito,
e começará a brigar com outro que opina que
deve ser um octógono, segundo as mais altas
autoridades. Mas bem todos murmurarão:
"Sim, milord. Um hexágono, é óbvio", e
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tomarão nota de cada uma de minhas palavras
com o maior dos cuidados, como se viessem
diretamente do trono do Altíssimo.
Dain riu, mas algo em seu olhar escuro pôs
nervoso ao Dorian.
— Sou muito otimista? — perguntou-lhe —
Se você duvidar de minha capacidade, Dain,
eu queria...
— Só me perguntava por que diabos não
corta o cabelo — disse Dain — Sim bem eu
duvido de que uma mudança de penteado não
afetará sua credibilidade, afinal de contas é um
Camoys, me resultaria um chateio se tivesse
que cuidá-lo, como se não houvesse muitas
confusões para organizar o projeto.
Dorian sorriu, submisso.
— A minha esposa gosta.
— E você, pobre tolo, está deslumbrado. —
Dain lhe lançou um olhar compassivo e riu —
Bom, então suponho que mais racional que
agora não será nunca. Eu diria que façamos o
melhor que se possa.
Dorian estava decidido a fazer o melhor
que pudesse.
Por isso, a segunda noite depois da volta
ao lar, explicou a Gwendolyn a idéia que tinha
a respeito de começar com o hospital.
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Gwen lhe disse que era uma idéia
excelente, e pareceu muito entusiasta, mas
Dorian não pôde desembaraçar-se da
sensação de que a mente de sua esposa
estava em outro lado: em sua maldita
enfermidade e seus rebeldes mistérios. Estava
muito tentado de arreganhá-la. Mas, em troca,
conteve a tentação e lhe fez amor.
A tarde seguinte, instalaram-se na
biblioteca para falar em detalhe da questão, e
estava igual. Falou com entusiasmo de suas
idéias e aceitou fazer um esboço de plano para
o edifício em si, descrevendo as funções das
diferentes áreas. E, entretanto, Dorian teve a
sensação de que sua mente não estava por
inteiro na questão.
Os dias que seguiram, Gwen continuou
trabalhando alegremente com ele,
transformando seus sonhos em feitos
ordenados e especificações, mas o matiz de
distração persistia.
Dorian o agüentou com paciência, dela
tinha aprendido que, freqüentemente, era
possível combinar vários tratamentos para
atacar o conjunto de sintomas de uma doença.
Um remédio para esse tipo de dores de
cabeça, por exemplo, era combinar láudano
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com ipecacuana, o primeiro para amortecer a
dor e o segundo para aliviar a náusea
induzindo o vômito.
Do mesmo modo, idealizou um tratamento
combinado para ela. Um dos "remédios"
chegou uma semana depois da volta de
Athcourt.
Doam-se estábulo no estudo do Gwen e
deixou o pacote sobre o escritório, enquanto a
esposa acertava com o cozinheiro o menu do
dia seguinte. Depois saiu da casa, para
ocupar-se da segunda parte do remédio.
Uma hora depois, Gwendolyn, de pé no
estudo, olhava ao Hoskins, perplexa.
— Foi ao Okehampton — disse o criado
pela segunda vez — Tinha uma entrevista.
Algo relacionado com o hospital.
— Ah. Ah, sim, com o senhor Dobbin. —
Gwendolyn se deu a volta — Recordou-me
isso durante o café da manhã, e eu, como uma
parva, esqueci-o. Devo ter a mente em
qualquer outro lugar. Obrigado, Hoskins.
Gwen ficou na entrada, com a vista fixa no
grosso que havia sobre o escritório, enquanto
os passos do Hoskins se afastavam.
Fechou a porta, voltou para escritório e
recuperou a carta, com mãos trementes,
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Era do senhor Borson, o médico que tinha
cuidado da Aminta Camoys. Era em resposta a
uma carta de Dorian. Tinha escrito ao Borson
quinze dias atrás, sem dizer a ela.
Dorian tinha encostado uma nota à carta do
Borson: "Eis aqui, doutora Gwendolyn com
todos os deliciosos detalhes acidentados.
Espero te encontrar se retorcendo em um
ataque de luxúria incontrolável quando
retornar".
Gwen leu a nota pela décima vez e já não
pôde controlar-se, tampou-se a cara com as
mãos e chorou, mas não pela resposta de
Borson, mas sim pelo que havia custado obtê-
la a seu marido, escrever para pedir um favor a
um homem que considerava como o torturador
de sua própria mãe, se não o assassino.
Dorian o tinha feito pelo bem de
Gwendolyn, e isso era o que lhe espremia
dolorosamente o coração, e por isso chorou
como uma esposa e não como a doutora que
pretendia ser.
Ou que acreditou poder ser, 0u se imaginou
capaz de ser, reprovou-se não estar
comportando-se de maneira muito capaz,
enxugou as lágrimas e lhe ocorreu que depois
haveria tempo de sobra para chorar. Toda uma
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vida, se optava por dedicar-se à pena e jogar
pelo muro os dons que Deus lhe tinha dado e
tudo o que seu marido tentava lhe deixar.
Dorian sabia que ela tratava de aprender e
tentava ajudá-la de todos os modos que podia.
Não tinha por que chorar. Sabia que ao
Dorian fazia feliz ajudá-la. Mais ainda, na carta
do Borson havia informação de fato valiosa.
Compreendeu-o a primeira olhada. E até tinha
incluído uma cópia do relatório pós-morte, que
resolveria vários enigmas persistentes, assim
que Gwen pudesse concentrar-se como era
devido. E continuar concentrada, coisa que,
ultimamente, custava-lhe.
Esqueciam-lhe coisas, perdia coisas.
Passou uma semana inteira com a Jessica, até
que se deu conta de que a prima estava
grávida. Gwendolyn não foi capaz de conciliar
os sintomas mais simples: prova físicas que
nenhum estudante de medicina teria visto, por
não falar já do estado de ânimo característico.
Enquanto Gwendolyn esteve ali, Jessica, que
nunca chorava, tinha estalado em lágrimas
sem razão aparente, e várias vezes perdeu a
paciência por assuntos dos mais corriqueiros.
Jessica não disse nada a respeito, e
Gwendolyn, por discrição, absteve-se de
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perguntar-lhe. Afinal de contas, ainda estava
nos primeiros dias, e o primeiro trimestre era
um período muito incerto...Trimestre... doze
semanas... sintomas...
Gwendolyn olhou sem ver o relatório da
autópsia.
Fazia mais de seis semanas que estava
casada. Sua última menstruação tinha ocorrido
duas semanas antes das bodas.
O relatório lhe caiu dos dedos inertes, e
deixou cair o olhar sobre seu ventre.
— Oh, meu Deus. —murmurou.
Dorian estava no vestíbulo privado da
estalagem Golden Hart, no Okehampton, mas
não com o fictício senhor Dobbin a não ser
com o Bertie Trent, cujo rosto quadrado estava
crispado em uma careta dolorosa.
Isso se devia a que estava tratando de
pensar.
— Bom, Eversham necessita dinheiro —
disse, ao fim — Mas não é a classe de tipo que
se leva bem com outras pessoas, pois, se o
fosse, teria ficado no Chippenham, coisa que
até o Gwen disse, mas com ela se levava bem,
e a tia Claire gostava bastante, porque era o
único que sabia como tratar os ataques dela.

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— Não tem que levar-se bem com outros
— lhe disse Dorian — Quando único faz falta é
que nos diga o que fazer. Dain e eu estivemos
de acordo em que necessitamos a um médico
com experiência no comitê de planejamento do
hospital.
Também necessitava alguém capaz de
falar com Gwendolyn em seu mesmo idioma, e
também fazê-la escutar e enfrentar-se aos
fatos. E cuidar-se mais.
Mas Dorian tinha explicado tudo isso em
sua carta. O grosso estava sobre a mesa,
entre ele e Bertie, que o olhava com ar de
dúvida e que, por alguma razão, ainda era
relutante a apoderar-se dele.
— É informação do hospital — lhe disse
Dorian. Isto era certo em parte, mas o grosso
consistia em cópias dos materiais enviados
pelo Borson, de modo que Eversham
chegasse munido de feitos, para seu encontro
intelectual com Gwendolyn — Espero que a
proposta lhe resulte irresistível. Se não, conto
com que você utilize seus inigualáveis poderes
de persuasão. Como fez com o Borson.
Assim que Dorian compreendeu que tinha
que lhe escrever ao Borson, também
compreendeu que faria falta mais de uma
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carta. Os médicos tendiam a opor-se e
gostavam de conservar segredos; isso o havia
dito Gwendolyn. Além disso, no geral estavam
muito ocupados com os pacientes para
atender a correspondência. Como não queria
correr o risco de esperar meses, Dorian
decidiu procurar Bertie.
O que ao Trent faltava de inteligência o
tinha de leal e teimado. Era leal ao Dorian, e
insistiria com toda teima até que Borson lhe
desse o que tinha ido procurar. E assim foi,
quando este compreendeu que não tinha outro
modo de livrar-se de Bertie.
Dorian confiava em que a lealdade e a
obstinação do Bertie também dariam resultado
com Eversham. O herói de Gwendolyn não
parecia à classe de indivíduo que acode
correndo quando um nobre estala os dedos.
— Mas, se não resultar, podemos tentar
outra coisa — adicionou Dorian, ao ver que
Bertie seguia carrancudo — Sei que será mais
difícil que tratar com Borson. O que estamos
lhe pedindo ao Eversham é que abandone seu
consultório, levante suas coisas e parta, coisa
nada insignificante. E inclusive se aceitar,
entendo que necessitará um pouco de tempo
para arrumar seus próprios assuntos. Mas
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quero que te certifique de que entenda que
estou disposto a cobrir todos os gastos e usar
minha influência cada vez que se necessite,te
assegure de convencê-lo de que sou um
homem de palavra, Bertie, que isto não é um
capricho de louco. Se tiver dúvidas, pode
escrever ao Dain.
Bertie piscou com força.
—Você não está louco, Gato. Não mais que
eu e, te olhando bem, melhor que antes. Ela te
tem feito bem, não é certo?
— Claro que não estou louco — disse
Dorian — E tudo graças a Gwendolyn. É
maravilhosa e eu me sinto muito feliz —
acrescentou, com um sorriso.
"E quero que ela seja feliz", acrescentou,
para si.
A expressão de Bertie se esclareceu, e em
seus claros olhos azuis brilhou uma luz.
— Sabia que você gostaria, Gato. Sabia
que te faria bem.
Dorian entendeu o que significava essa luz
e não lhe custou imaginar o que Bertie queria
acreditar.
Mas Bertie não tinha lido o comentário de
Borson sobre o relatório post mortem, e,
embora o tivesse feito, não teria entendido
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nenhuma fração do que conseguiu entender
Dorian. E isso era muito mais do que tinha feito
sete anos antes, muito antes de que
Gwendolyn lhe explicasse o referido à auto-
suficiência do cérebro, que era o que o fazia
tão suscetível de destruição.
Bertie não entendia que essa destruição
não podia reparar-se nem deter-se, que nem
Gwendolyn podia obtê-lo. Não sabia que,
quando começava o declive, continuava sem
cessar, como tinha passado com o Rawnsley
Hall, que ia desintegrando-se silenciosamente
sob a superfície, até que o teto caiu.
Bertie acreditava que "bem" equivalia a
"curado", e Dorian não teve coração para lhe
explicar a diferença.
— Eu gosto muitíssimo, Bertie — lhe disse
— E me tem feito um bem imenso.
Gwendolyn queria construir o hospital em
Dartmoor. O que significava que queria ficar ali
de maneira permanente. Estava ante a janela
da biblioteca, olhando fora, e Dorian a via
desesperada.
Estava de pé ante a mesa onde pouco
antes tinha deixado vários esboços
arquitetônicos do hospital e insistia em que lhe
respondesse à pergunta que lhe tinha feito
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todos os dias, os últimos cinco dias, não tinha
querido pressioná-la.
Desde seu encontro clandestino com
Bertie, tinham passado duas semanas e
Dorian não tinha recebido resposta. Enquanto
isso, Gwendolyn tinha adoecido. Seu
semblante alternava entre uma palidez intensa
e um violento soneojo, e estava irritável, sem
dúvida porque dormia mal. A noite passada se
incorporou dos travesseiros, balbuciando algo
assim como extravasando de uma ou outra
coisa.
— Gwendolyn, não pode viver aqui —
disse, em voz calma, mas com a mente
agitada por imagens futuras da esposa que o
preocupavam.
— Eu gosto deste lugar — disse — Do
momento que cheguei, estou me sentido como
em meu lar.
— Este clima não é saudável. Até nos vales
se fixa a umidade e..
— Os pobres não podem costear o traslado
de seus parentes doentes aos alojamentos da
costa, nem viajar ida e volta para visitá-los. —
deu-se a volta — As pessoas dos páramos
necessitam de um hospital moderno. E a
umidade não é importante. E banho é úmido e
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frio, e pessoas em todos os estados possíveis
de enfermidade e decrepitude vivem aqui
enquanto recebem as águas.
— Este não é um sítio saudável para ti. —
insistiu — Leva aqui só dois meses e……
Se tirou os cabelos. Diga-o, ordenou-se.
Era hora de deixar de fingir. Sua esposa
estava doente, e era ele quem a adoecia;
portanto, era hora de enfrentar-se com isso,
com ou sem o Eversham.
“Esse tipo já deveria estar aqui, maldito
seja", pensou Dorian, Eversham saberia o que
fazer, o que dizer. O considerava um médico
perito, brilhante. Resolveria o enigma que
exasperava tanto a Gwendolyn e a faria ver os
fatos de frente.
— Não está bem — disse Dorian — Não
come nem dorme bem, está cansada e não se
mostra razoável. A outra noite esteve duas
horas zangada, porque disse que o jantar era
"aborrecido".
— A cozinheira tinha que usar especiarias
— disse Gwen, rígida, com as mãos formando
punhos aos lados — Mandei as buscar em
Londres e disse à cozinheira tudo relacionado
com o escarro, a congestão, e como reduzir a

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pressão por excesso de fluidos, mas ela não
me fez caso e o que fez foi... papa.
Dorian suspirou. Tinha falado com o
Hoskins, quem, a sua vez, falou com a
cozinheira, que afirmou que as especiarias
picantes provocariam indigestão a Sua
Senhoria, e isso era o que lhe impedia de
dormir pelas noites. A cozinheira havia dito que
qualquer um sabia que "revolviam o sangue".
— A cozinheira está preocupada com você.
— lhe disse — Todos estamos preocupados
com você.
Gwen pôs os olhos em branco.
— Oh, que encantador. Estou a ponto de
fazer uma descobrerta médico, e ninguém
coopera, porque lhes colocou na cabeça que
devem preocupar-se. — Foi até a mesa — Se
eu fosse homem, aceita como cientista, só
estaria "preocupado" com meu trabalho. Mas,
como sou uma mulher, o que acontece é que
tenho um ataque de hipocondria, e devem me
rebaixar o sangue. Rebaixar-me isso.
Estampou o punho contra a mesa — Poucas
vezes ouvi idéias tão medievais. Já é um
milagre que possa pensar, sequer, com
semelhante nuvem de tolices e ansiedade
turvando o ambiente ao redor. Como se não
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fosse suficiente problema concentrar-se neste
conc... — interrompeu-se, olhou, carrancuda,
os desenhos, e se afastou da mesa, indo para
a porta.
— Necessito ar fresco.
Mas Dorian chegou antes e se interpôs.
— Gwen, está chovendo — lhe disse — E
você... — O resto da frase se perdeu, quando
lhe olhou o rosto, que estava avermelhado. E o
busto ascendia e baixava rapidamente, como
se tivesse deslocado quilômetros, e, franziu o
sobrecenho — O vestido se encolheu.
Gwen se olhou.
— É um milagre que possa respirar — lhe
disse ele — Me surpreende que as costuras do
espartilho não se abram.
Gwen retrocedeu um passo.
— Não é surpreendente — repôs,
apartando o olhar — Isto se passa a todas as
mulheres de minha família. Somos tão
óbvias... — Lançou um suspiro comprido e
trêmulo — Estou... grávida.
— Oh. — cambaleou-se contra a porta —
Já entendo. Sim, claro.
O quarto estava escuro e girou a seu redor,
ao tempo que dentro dele caiu outra escuridão,
como um peso enorme. Doeram-lhe os olhos e
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a garganta, e seu coração era uma cunha de
dor dentro do peito.
— Não! — gritou a mulher — Não te atreva
a te dar por vencido, Dorian! Não pense em te
pôr doente agora. Jogou-se nele, que tinha os
braços cruzados, e os abriu, por reflexo, para
abraçá-la.
Apoiou a cabeça contra o peito enfermo.
— Estou feliz — lhe disse, trêmula —
Quero a nosso filho. E quero que você esteja.
— Oh, Gwen.
— Não é impossível — lhe disse —
Quando único precisamos são sete meses
mais. —tornou-se atrás e lhe dedicou um
sorriso tão trêmulo como sua voz — Se eu
fosse uma elefanta, seria diferente o período
de gestação é de vinte meses e meio.
Dorian conseguiu lançar uma gargalhada
tremente.
— Sim, vejamos o lado positivo. Ao menos,
não é uma elefanta.
— Para o final, terei uma aparência similar.
Não quererá te perder esse espetáculo,
verdade?
Dorian entrelaçou os dedos na cabeleira
selvagem.

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— Não, não me perderia isso, meu amor.
Está me apresentando uma tentação
irresistível.
— Isso espero. — Aplaudiu-lhe o peito —
As motivações do paciente podem ter um
efeito muito pronunciado no tratamento; isso é
o que diz Eversham. — A voz já tinha quase o
timbre frio e normal — Teria que lhe haver dito
antes, mas é um período inseguro, e não
queria fazer que te iludisse inutilmente. Mas
talvez exagerei com as precauções. Não é
freqüente que as mulheres de minha família
abortem.
"Sete meses mais", pensou Dorian, antes
que sua esposa chegasse, tinham-lhe dado
menos, e já fazia dois meses que Gwen
estava.
E, entretanto, estava melhor que sua mãe
nesta etapa. As visões não tinham piorado,
não degeneraram em demônios. Seu ânimo
seguia sendo relativamente estável. Não sofria
de súbitos acessos de melancolia ou de
inexplicável alegria ou fúria.
Em lugar disso, gozava do feroz
encantamento de fazer amor com ela e dos
momentos de tranqüila alegria de trabalhar

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juntos, fazendo planos para algo que valia a
pena.
Segundo Borson, sua mãe tinha estado
coerente até o final. Louca e vivendo em um
mundo próprio, perverso, mas coerente, e
ardilosa, às vezes até malvada. Possivelmente
não se teria fundo nesse mundo infestado por
demônios se o mundo real tivesse sido mais
pormenorizado para com ela e lhe tivesse
devotado alegria e a sensação de ser útil e
apreciada, digna de carinho. Possivelmente
poderia ter vivido um pouco mais e morrido de
maneira mais aprazível.
Não era impossível.
"Uns meses mais", disse-se. O suficiente
para ver o menino. Que maravilhoso seria. E,
se resultava impossível, pelo menos teria dado
um filho a Gwendolyn, que sem dúvida lhe
alegraria o coração e dissiparia qualquer
inclinação que tivesse de persistir no duelo por
ele.
Contudo, o desejo do Gwen de ficar ali não
era bom sinal. Convinha-lhe começar uma
nova vida em outro lugar, afastar-se das
lembranças tristes. Mas em qualquer momento
chegaria Eversham, tranqüilizou-se Dorian. O

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admirado professor lhe faria ver as coisas de
outro modo.
Dorian atraiu a sua esposa estreitando-a
contra si.
— Tentarei manter uma atitude positiva —
lhe prometeu, com voz suave.
—E tem que falar com a cozinheira —
murmurou ela, com a boca apoiada na
camisa—. lhe recorde quem é o doutor nesta
casa. Ordenei-lhe curry para o jantar, e tem
que estar quente.
Dorian riu entre dentes.
— Sim, carrancuda. — Beijou-a no
cocuruto — Mas antes vejamos o que pode
fazer o doutor Dorian para adoçar seu ânimo.
Dez dias depois, Gwendolyn recordava a
conversação e os métodos empregados pelo
Dorian para lhe adoçar o ânimo. Após, tinha
usado as mesmas técnicas: beijá-la, acariciá-la
até dissipar a irritação, tirando-a desse aspecto
irritante, atraindo-a a seus braços fortes para
levá-la ida e volta ao paraíso, e deixá-la
aturdida de encantamento.
Agora, sentada no consultório do
Kneebones, concentrou-se nessas sensações
deliciosas para conter-se, para não deixar-se

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levar pela irritação e lhe causar danos
corporais graves, talvez fatais, ao médico.
Em realidade, não era a primeira vez que
se humilhava ante os doutores, e Dorian era
muito mais importante que seu próprio orgulho.
Dedicou ao Kneebones um sorriso de
desculpa.
— Só queria saber se esse material prova,
com certeza, o que foi que fez que o cérebro
da senhora Camoys sofresse um colapso.
Kneebones a olhou carrancudo e logo ao
relatório que tinha na mão.
— Nestes casos, não se pode provar
absolutamente nada, fazem-se inferências
lógicas, apoiando-se em feitos observáveis e
na história do paciente. A senhora Camoys
não bebia em excesso nem ingeria ópio, que é
o que conduz a insanidade tóxica. Não sofreu
febre alta antes nem durante a desintegração.
E, se tivesse recebido um golpe na cabeça,
como você supõe, não lhe parece que o
médico da família, Budge, teria mencionado
esse pequeno detalhe em seu comentário da
história médica?
— E se o ignorava? — insistiu Gwendolyn.

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— Budge é um homem competente.
Suponho que sabe reconhecer uma conclusão
quando a vê.
— Mas a gente não pode, simplesmente,
as ver — disse — A senhora tinha amantes. E
se um dos amantes o fez? Se lhe provocou um
traumatismo tão grave como o que estamos
dizendo, talvez não lhe recordasse. — Inclinou
a cabeça — Por acaso, interrogou você à
dama de companhia? Freqüentemente os
criados sabem mais dos segredos da família
que os membros desta.
Kneebones se tirou os óculos e se esfregou
os olhos.
— Pergunto-me como é que, a esta altura,
lorde Rawnsley não está com camisa de força
— murmurou.
— Eu também me pergunto isso. Se não
fosse assim, eu não teria vindo a chateá-lo. Sei
que tem que haver uma explicação lógica, mas
não posso achá-la.
Kneebones colocou outra vez as lentes
sobre o nariz.
— Isso pode ser por causa de uma
imaginação hiperativa e muito melodramática,
e uma falta de atenção aos fatos observáveis.
— Me diga no que me equivoco.
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O homem empurrou o relatório da autópsia
para ela.
— Suponhamos que sua pequena teoria é
correta, lady Rawnsley. Suponhamos que o
estado da senhora Camoys se desencadeou
como resultado de um golpe na cabeça,
recebido muitos meses antes da aparição dos
sintomas de loucura traumática, como está
acostumado a acontecer. Que diferença faria?
Na história do filho aparecem abundantes
episódios de violência física febre, alcoolismo,
por não falar de outra quantidade de estados
mórbidos de organismo, todos de
conseqüências similares. Possivelmente isto
não lhe ocorreu. Tampouco parece dar-se
conta de que um homem pode herdar um
temperamento e, com ele, a predisposição a
um estilo de vida irracional; autodestrutivo.
Não tem em conta a degeneração moral do
paciente, o comportamento racional e a
aparência selvagem. Seja qual for o dano
inicial os sintomas indicam com claridade uma
deterioração progressiva.
Ante esto último, a frágil paciência de Gwen
explodiu. Ficou de pé.
— Meu marido não é nem foi nunca
degenerado, irracional ou autodestrutivo —
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disse, com rigidez — Tem um poderoso
instinto de preservação. Não teria sobrevivido
nem um mês nos inquilinatos londrinos, e
menos ainda anos. — Recolheu o relatório da
autópsia o meteu em sua bolsa — Me custa
acreditar que lhe tenha passado isto por alto —
lhe disse — e tampouco que você, um homem
de ciência, tenha-lhe diagnosticado insanidade
só em virtude de como leva o cabelo.
Saiu a pernadas.
Lorde Rawnsley ignorava que sua esposa
tinha estado discutindo com Kneebones no
Okchampton. Supôs que estava fazendo um
percurso de possíveis convocações para o
hospital com o Hoskins e discutindo com ele
porque o criado tinha ordens de encontrar
defeitos a todos os lugares, e de mantê-la
entretida até a hora do chá.
Sem saber que sua esposa se dirigia a
toda parte para a casa nesse mesmo
momento, obstinadamente imune às táticas
dilatórias do Hoskins, Dorian estava de pé
junto à chaminé da biblioteca. Tinha as mãos
estreitamente enlaçadas à costas e a vista fixa
no desconcertante jovem e cavalheiresco
médico.

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Eversham estava de pé junto à mesa.
Tinha terminado de folhear as últimas notas do
Gwendolyn e agora esquadrinhava pensativo
ao Dorian.
— No caso de sua mãe, aproximou-se
muito à verdade. — disse Eversham — Me
ocorreu a mesma teoria quando li sua carta e
as cópias do material de Borson. — Esboçou
um sorriso tênue — E devo acrescentar que
estavam muito bem escritas, milord.
— Minha escritura não tem importância. —
disse Dorian — Ia você me dizer o que soube
no Gloucestershire.
Ocorreu que a chegada do Eversham se
viu demorada por um percurso da propriedade
do Rawnsley Hall, em procura de informação
sobre a Aminta Camoys. Fez o percurso em
parte porque a carta do Dorian despertou sua
curiosidade médica e em parte pela litania
lacrimosa do Bertie Trent elogiando as nobres
e heróicas qualidades de Dorian. Levou-lhe
vários dias localizar à antiga dama da mãe.
— Prefere que seja delicado, ou direto e
brutal? — perguntou Eversham.
O coração do Dorian se agitou.
— Prefiro que seja brutal.

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— Sua mãe tinha um romance com seu tio
Hugo. — disse Eversham, em tom neutro —
Se encontravam reunidos em segredo, no
tanque da propriedade, quando a dama de sua
mãe foi avisar-lhes que o avô tinha retornado
inesperadamente. A sua mãe entrou em
pânico, tropeçou e se golpeou a cabeça contra
uma pia de pedra. Como deu a impressão de
que se recuperava imediatamente, não viram
motivo para que chamassem o médico, sobre
tudo considerando que corriam o risco de que
se revelassem as circunstâncias do acidente.
Eversham prosseguiu explicando que as
concussões podiam ser enganosas: trauma
interno sem evidências externas que, em
ocasiões, não manifestava sintomas visíveis
durante semanas, meses, e até anos, e a essa
altura era difícil relacionar os sintomas com um
acidente de aparência inofensiva, de muito
tempo antes. Por isso foi mal diagnosticada
desde o começo, como afligida por uma
"degeneração" ou desmoronamento
constitucional.
— Talvez você ignore — disse Eversham
— que o funcionamento do cérebro...
— Sei como é — o interrompeu Dorian —
Gwendolyn me explicou isso, e também como
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se produz o desmoronamento. Eversham
assentiu.
— Ao parecer, derruba-se mais ou menos
do mesmo modo depois de um trauma, um
golpe, por exemplo, como por causa de várias
outras enfermidades diferentes. A questão é
que sua mãe, milord, evidentemente sofreu um
trauma grave, coisa impossível de herdar.
Tomou uma das folhas com as notas do
Gwendolyn.
—Mais ainda, Sua Senhoria não detectou
em você nenhum dos sintomas habituais na
degeneração cerebral. Não me surpreende,
pois não há tal degeneração.
Eversham dirigiu ao Dorian um olhar
afirmativa.
— Está você notavelmente bem de saúde,
— acrescentou — sobre tudo se tivermos em
conta que pertence à classe alta. Seu cérebro
está em excelentes condições de
funcionamento. Tanto sua escrita, que
evidencia um controle motriz superior, como a
apresentação lógica e ordenada de informação
muito pessoal e tinta de conteúdos
emocionais, não deixam lugar a dúvida.—
Voltou a concentrar-se na folha que tinha na
mão— Não registra letargia nem fadiga,
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203
dificuldade para descansar nem sonolência.
Tampouco dificuldades com a atenção aos
detalhes e de concentração, como demonstra
com toda claridade sua proposta para o
hospital. —esclareceu a voz — E acredito que
as funções reprodutoras estão... bem...
funcionando. —Elevou a vista, sorrindo — O
felicito, milord. Esse é um sucesso ditoso para
esperar com impaciência, não é assim?
Sua Senhoria só tinha conseguido assimilar
a novidade de um trauma que ele não pôde ter
herdado. Levou-lhe certo tempo captar o resto
e, durante esse tempo, limitou-se a cravar a
vista no Eversham, com expressão estúpida.
Passou um tempo mais até que conseguiu
falar.
— O que está você dizendo? — perguntou,
aturdido — Que espere com impaciência. Eu
tenho... Você tem... — jogou-se o cabelo atrás
— Não terá acontecido algo por alto? Essas
coisas. As "visões", "primeiro vê estrelas,
depois se sente a dor". Minha esposa disse
que se tratava de fenômenos comuns a muitas
enfermidades neurológicas. Eversham
assentiu.

204
204
— É certo, são bastante comuns. Entre
outros, são os sintomas clássicos da
enxaqueca. Deduzo que essa é sua afecção.
— Enxaqueca? — repetiu Dorian — Como
em... "hemicrânia"?
— Não é uma simples dor de cabeça, que é
o que a maioria da gente entende por
"enxaqueca", a não ser dores de cabeça muito
fortes, que debilitam. Mesmo assim, não são
fatais.
— Está me dizendo — insistiu Dorian,
marcando as palavras — que todo este
tempo... —Sentiu calor no rosto—... todos
estes meses estive me comportando como um
herói trágico e o único que tenho é uma
maldita dor de cabeça
Eversham franziu o sobrecenho, pôs outra
vez o papel na pilha com outros e os
endireitou, enquanto Dorian registrava o
silêncio e se perguntava com o que se
encheria. Eversham acabava de lhe dizer que
eram enxaquecas. Que não eram fatais. Então
por que vacilava?
Gwendolyn acreditou ouvir a voz do Dorian,
mas, quando chegou à porta da biblioteca,
tudo estava silencioso dentro. Abriu para jogar
uma rápida olhada e certificar-se.
205
205
Nesse momento, outra voz masculina muito
familiar rompeu o silêncio.
— Queria poder lhe dizer outra coisa,
milord, mas é uma doença incurável. Embora
haja sido estudada durante séculos, segue
sendo um enigma médico. Ainda não encontrei
dois casos exatamente iguais. Não estou
seguro de poder lhe prometer alívio, coisa que
lamento profundamente, porque sei que é
muito dolorosa. E não posso lhe prometer,
tampouco, que não passará a sua
descendência, pois existem sólidas evidências
de que se herda a predisposição.
Ao Gwen lhe escapou um soluço afogado.
Duas cabeças masculinas giraram com
brutalidade, e duas olhadas, uma azul, outra
dourada, posaram-se nela antes que pudesse
retroceder.
—Oh —disse — Lhes peço perdão. Não
quis interromper, apressou-se a fechar a porta
e fugiu.
Gwendolyn correu, cega, pelo corredor,
abriu a porta principal, transpô-la, baixou os
degraus e correu direto a topar-se com Bertie.
— Gwen, aonde vai...

206
206
Passou junto a ele e correu para o potro,
que uma dos moços de quadra estava levando
ao estábulo.
Arrebatou-lhe as rédeas ao moço.
Bertie correu atrás dela.
— Gwen, o que passou?
Inclinou-se e juntou as mãos.
— Não me diga que o Gato se foi outra vez
— disse, ajudando-a a subir — Pensei que se
levaria bem com o Eversham, e estava a ponto
de ir dizer ao Dain quando vi dobrar pelo
atalho, e nunca em minha vida fiquei tão
estupefato, supõe-se que estaria em...
— Gwendolyn!
Bertie girou em redondo.
— Aí tem, Gwen. Não se foi. O que é o
que...?
— Me solte o pé, Bertie.
Soltou-o, mas ao mesmo tempo os
alcançou Dorian e sujeitou a rédea.
— Minha querida, não sei o que é que
você...
— Estou um pouco desenquadrada —
disse, afogando-se — Necessito dar um
passeio. Para me limpar a cabeça.

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— O que precisa é uma xicará de chá —
lhe replicou, em tom tranqüilizador — Sei que
te causou impacto ver o Eversham, mas eu...
— Oh, oxalá nunca tivesse vindo! —
soluçou. Tremeu-lhe a voz e lhe encheram os
olhos de lágrimas — Mas isso é uma tolice,
sei. Sempre é melhor conhecer os fatos. E
você me fez tão feliz e eu te amo e sempre te
amarei, sem importar o que passe.
Quebrou-lhe a voz e, com ela, o último
resíduo de controle. Chorou sem consolo, e,
quando Dorian estirou os braços, sujeitou-a da
cintura e a fez apear, quão único atinou a fazer
foi aferrar-se a ele, soluçando.
— Doçura, eu também te amo com todo
meu coração — lhe disse com ternura — Mas
acredito que entendeste algo mal.
— Não, ouvi. — gemeu — Ouvi o que dizia
Eversham e ele sabe. É um verdadeiro doutor.
Disse que era incurável. Kneebones tinha
razão e eu estava equivocada, devia saber.
— Em efeito o entendeste mal. — disse
Dorian, lhe entrelaçando os dedos no cabelo
— Os especialistas de Londres, Borson e
Kneebones estavam equivocados. Eu também.
Você estava mais certa que todos nós. Sinto-
me como um completo imbecil. Mas seu
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Eversham diz que meu cérebro funciona e que
um não pode herdar uma concussão, portanto
deduzo que terá que carregar comigo e minhas
malditas enxaquecas por tempo indefinido.
Gwen elevou a cabeça e, através das
lágrimas, viu o fulgor da verdade nos olhos
ambarinos.
— Enxaquecas?
— Ele as chama enxaquecas. — disse
Dorian — Temo que a Providência te gastou
outra brincadeira. Fez semelhante trajeto para
cuidar e consolar a um louco moribundo em
seus últimos meses de desgraça e fazer
progredir a causa da ciência médica estudando
um caso fascinante. — Sorriu — E te ficaste
ligada com um tipo perfeitamente são, com
uma aborrecida e antiquada dor de cabeça.
Gwen estirou o braço e jogou atrás o
cabelo do marido, piscando através das
lágrimas que seguiam caindo, embora já não
tivesse nenhum motivo para chorar.
— Bom, de qualquer modo, amo-te. — lhe
disse.
Ouviu que o potro soprava e, ao dar a volta,
viu que a moço o levava aos estábulos e que
Bertie, com ar preocupado, corria outra vez
para eles.
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— Pelos cantos fúnebres do Júpiter, digo,
Por Deus, Gato, o que aconteceu? Por que
chora? Jamais a vi fazê-lo.
— É perfeitamente normal, Bertie. —
respondeu Dorian, lhe aplaudindo as costas—.
Sua prima vai ter um filho. Por isso está
sensível.
— Ah. Bom. Oh, isso significa que... Oh,
sim. Que estupendo. Seriamente. — Vivaz,
Bertie lhe aplaudiu a cabeça — Bem feito,
primo.
— E você poderia ser o padrinho. —Dorian
se apartou para ver a expressão de sua
esposa— Parece-te bem isso, verdade, meu
amor?
Gwendolyn riu entre lágrimas.
— Oh, sim. Claro que Bertie será o
padrinho. Soltou as lapelas do Dorian e se
enxugou os olhos.
— E você terá um precioso hospital, com
encantadores médicos novos, de idéias
modernas — lhe disse o marido, lhe
alcançando seu próprio lenço — E faremos
que o pesado do Kneebones se afaste para
que não interfira nem interponha obstáculos ou
discuta com as pessoas sensatas.
Mandaremo-lo como médico privado para que
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atenda às anciãs Camoys no Rawnsley Hall.
Se, até agora, não as mataram seu próprio
médico ruim e os medicamentos que lhes
receitaram, é pouco provável que Kneebones
possa lhes fazer algum dano.
Gwen riu outra vez e se limpou o nariz,
que, certamente, estaria tão vermelha como
seu cabelo nesse momento. E, a julgar pela
expressão do Bertie, seu cabelo também devia
ser todo um espetáculo.
— Já está, vê? — disse Dorian ao primo —
Já é quase a mesma de sempre.
Bertie a olhava com ar dúbio.
— Está toda vermelha e com manchas.
— Só necessita tempo, para adaptar-se —
disse Dorian — Sabe o que acontece? Resulta
que Gwen deverá carregar comigo por... Oh,
só Deus sabe por quanto tempo. Pobre garota.
Veio até aqui para consolar a um louco
moribundo em seus últimos dias trágicos e
agora...
— E agora resulta que o único de que
sofre o Gato é uma forte dor de cabeça—disse
Gwen, com voz não muito firme ainda — É só
enxaqueca, Bertie.
O primo piscou.
— Enxaqueca?
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— Sim, querido.
— Como os ataques de tia Claire?
— Sim, como minha mãe.
— E o tio Frederick? E o tio avô Mortimer?
— Sim, querido.
— Bom. — Os olhos do Bertie refulgiram, e
os esfregou — Mas eu sabia que tudo ia sair
bem, desde o começo, como te disse. O que
quero dizer, Gato, é que não tudo está
exatamente bem. É doloroso. O tio avô
Mortimer se golpeia a cabeça contra a parede.
Mas a enxaqueca ainda não matou a nenhum
de nós. — Aplaudiu o ombro de Dorian, depois
lhe aferrou a mão e a sacudiu com energia.
Depois abraçou a Gwendolyn. Por fim, com o
rosto avermelhado, apartou-se — Por Júpiter.
Um menino, Por Deus. Padrinho. Enxaquecas.
Bom. Tenho sede.
Continuando, esfregando-os olhos, correu
para a casa.
Uma hora depois, enquanto Bertie
recuperava o equilíbrio emocional no quarto de
banho, Dorian e sua esposa viam como se
afastava o maltratado carro do senhor
Eversham pelo atalho.
— Temos que lhe conseguir um carro
melhor — disse Dorian — As pessoas julgam
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pelas aparências, e aos médicos jovens custa
inspirar confiança. Mas uma boa bagagem
daria a impressão de uma prática rentável. Se
o considerarem muito procurado, duvidarão
menos de sua habilidade.
— Pensa em tudo — disse Gwendolyn
— é sua veia protetora e eu estou começando
a suspeitar que é uma reminiscência das
origens feudais dos Camoys, quando o senhor
do feudo cuidava de toda sua gente.
— Não seja parva — lhe respondeu —
Trata-se de algo prático. Terá bastante que
fazer entre atender doentes e fiscalizar a
construção do hospital para, além disso, ter
que pensar em satisfazer suas próprias
necessidades e envolver-se nas rivalidades e a
política da região.
— Sim, querido — disse, obediente — É
algo prático.
— E você terá bastante que fazer sem te
precipitar a defendê-lo várias vezes ao dia ou
me chatear com isso. Já a pequenez fica
bastante fastidiosa sem isso. Não posso te
permitir que esteja brigando com todo o
Dartmoor.
Viram como a carruagem girava depois de
uma colina e desaparecia da vista.
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— Está se pondo o sol — disse Dorian —
Os duendes, os fantasmas e as bruxas devem
estar arrumando-se para as orgias da noite.
Voltou a vista ao Gwen.
— Quer dar um passeio?
Gwen lhe colocouu a mão pelo oco do
cotovelo e caminharam juntos pelo jardim.
Levou-a até o banco de pedra onde a tinha
encontrado esperando-o, tranqüila, umas
semanas atrás, sentou-se e a fez sentar-se em
seu regaço.
O sol se abatia sobre uma colina, ao longe.
Seu resplendor incendiava as nuvens
pulverizadas como almofadões de penugem de
uma cama celestial, azul, verde e violeta.
— Segue querendo construir em Dartmoor?
— perguntou-lhe.
Gwen assentiu.
— Eu gosto deste lugar, e a ti também. E
temos ao Dain e a Jessica perto.
— Necessitaremos uma casa maior para
criar uma família. — Olhou atrás, à modesta
casa principal — Poderíamos adicionar uma
asa. Não seria muito grandiosa. Mas Rawnsley
Hall foi grandioso e dava a sensação de uma
imensa tumba. Estava impaciente por sair dali.
De fato, agora mesmo estou tentado em
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desistir das reparações e varrer com toda essa
maldita pilha de escombros.
— Você não gosta, mas talvez seu herdeiro
sim — disse a moça —Se o reconstruir,
poderia oferecer-lhe como presente de bodas.
Acariciou-lhe o ventre com delicadeza.
— Está segura de que há um varão aí?
— Não, mas em algum momento o
teremos.
— Inclusive antes de compreender que
poderia haver "algum momento", soube que
me faria igualmente feliz ter uma menina.
— Ah, bom, é que tem um rincão de ternura
para as mulheres em seu coração — disse —
Mas também sabe conquistar aos meninos,
por isso eu não tenho preferências nesse
sentido. Será um pai carinhoso e dedicado. E
isso é bom — adicionou, franzindo o
sobrecenho —, porque as mulheres de minha
família são mães mas bem negligentes. O que
passa é que estão sempre criando, e isso as
faz distraídas, entende?
— Então, eu cuidarei dos meninos. Porque
quero muitos, e você terá que te ocupar do
hospital, além disso.
Gwen lhe jogou o cabelo atrás.
— Tem talento para fazer previsões.
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— Fui abençoado com muitas coisas boas
que esperar — disse Dorian — Por exemplo,
ver elevar o hospital do chão. Descobrir quais
das idéias e os princípios médicos modernos
podem aplicar-se e quais não. As
possibilidades. Os limites. — Moveu a cabeça
— Me admira o muito que aprendi sobre
medicina as últimas semanas e quão
interessante resulta. Até tem certa poesia, sua
própria lógica e seus próprios enigmas, como
qualquer objetivo intelectual. E brinda a
mesma sensação maravilhosa de
descobrimento quando os mistérios resolvem.
Hoje hei sentido isso quando Eversham me
explicou aonde lhe tinham levado suas notas.
— Beijou-a na fronte — Estou muito orgulhoso
de ti.
— Deveria estar orgulhoso de você mesmo
— disse Gwen — Não me pôs obstáculos no
caminho, embora queria fazê-lo para me
proteger de mim mesma. Pelo contrário, tratou
por todos os meios a seu alcance de me ajudar
a resolver o mistério, escrevendo ao Borson e
mandando procurar Eversham.
— Eversham não se parece com nenhum
outro médico que eu tenha conhecido. Tem
idéias próprias. Enquanto estava lavando o
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rosto, perguntei-lhe porquê te tinha aceito
como colega. Disse-me que, nos velhos
tempos, as mulheres eram as curadoras de
muitas comunidades. Mas os ignorantes
consideravam suas artes curativas como
magia, que, por sua vez, está associada com o
Demônio. Por isso as censurava e as
perseguia como bruxas. — Riu entre dentes —
Assim foi como compreendi que eu estava
acertado desde o começo: casei-me com uma
bruxa. E ele também tinha razão, pois você é
uma curadora. Curou meu coração. Isso era o
que estava doente.
Gwen lhe rodeou o pescoço com os dedos.
— Você também me curou, Gato. Fez que
a parte do médico e da mulher se convertesse
em uma só.
— Porque eu amo ambas as partes —
disse com suavidade — Todas as suas partes.
Toda você.
Gwen sorriu com esse sorriso infinito e,
entrelaçando os dedos no cabelo dele, atraiu-o
para si e o beijou lenta, profunda,
languidamente.
Enquanto Dorian se detinha com ela na
suavidade perdurável desse momento, o
estreito arco vermelho do sol se afundou
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depois de uma colina resplandecente. Um fino
fio de luz refulgiu no horizonte. A neblina
noturna se meteu pelos ocos e fendas dos
páramos, e as sombras se expandiram,
alargaram, envolvendo na escuridão os atalhos
que serpenteavam.
A brisa que aumentava fez ao Dorian elevar
a cabeça.
— Uma bela noite de Dartmoor. —
murmurou — Em momentos como este, é fácil
acreditar na magia. — Seu olhar se topou com
a expressão doce da mulher — Você é magia
para mim, Gwen.
— Porque sou sua bruxa, e você é meu
devoto parente.
— Isso sou. — Sorriu-lhe — Façamos um
filtro, feiticeira.
Gwen compôs seu adorável cenho médico.
— Muito bem. Mas antes tem que me
ajudar a encontrar olhos de salamandra.
Dorian riu. Logo, elevando à esposa em
braços, o conde do Rawnsley se levantou e a
levou ao interior da casa.
Fim

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