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João Cabral de Melo Neto

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A obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) é uma das maiores criações da cultura
brasileira do século 20. Se trata de uma poesia cerebral e não emotiva. O poeta recorre a uma
construção elaborada da linguagem para criar uma atmosfera poética.
A poesia de João Cabral de Melo Neto pode ser dividida em dois blocos distintos: uma água
construtiva e outra participante. A primeira água seria formada pelos poemas arquitetônicos,
experimentais feitos para poetas que versam sobre o próprio fazer poético. Já a água
participante volta-se para a problemática social do homem do nordeste e é formada por obras
como "O cão sem plumas" e "O rio" , que são poemas sobre os habitantes dos manguezais do
rio Capibaribe.

João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade de Recife - PE, no dia 09 de janeiro de 1920, na
rua da Jaqueira (depois Leonardo Cavalcanti), segundo filho de Luiz Antônio Cabral de Melo e
de Carmem Carneiro-Leão Cabral de Melo. Primo, pelo lado paterno, de Manuel Bandeira e,
pelo lado materno, de Gilberto Freyre. Passa a infância em engenhos de açúcar. Primeiro no
Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, e depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no
município de Moreno.

Em 1930, com a mudança da família para Recife, inicia o curso primário no Colégio Marista.
João Cabral era um amante do futebol, tendo sido campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol
Clube em 1935.

Foi na Associação Comercial de Pernambuco, em 1937, que obteve seu primeiro emprego,
tendo depois trabalhado no Departamento de Estatística do Estado. Já com 18 anos, começa a
freqüentar a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em volta de Willy Lewin e do pintor
Vicente do Rego Monteiro, que regressara de Paris por causa da guerra.

Em 1940 viaja com a família para o Rio de Janeiro, onde conhece Murilo Mendes. Esse o
apresenta a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se reunia no
consultório de Jorge de Lima. No ano seguinte, participa do Congresso de Poesia do Recife,
ocasião em que apresenta suas Considerações sobre o poeta dormindo.

1942 marca a publicação de seu primeiro livro, Pedra do Sono. Em novembro viaja, por terra,
para o Rio de Janeiro. Convocado para servir à Força Expedicionária Brasileira (FEB), é
dispensado por motivo de saúde. Mas permanece no Rio, sendo aprovado em concurso e
nomeado Assistente de Seleção do DASP (Departamento de Administração do Serviço
Público). Freqüenta, então, os intelectuais que se reuniam no Café Amarelinho e Café
Vermelhinho, no Centro do Rio de Janeiro. Publica Os três mal-amados na Revista do Brasil.

O engenheiro é publicado em 1945, em edição custeada por Augusto Frederico Schmidt. Faz
concurso para a carreira diplomática, para a qual é nomeado em dezembro. Começa a
trabalhar em 1946, no Departamento Cultural do Itamaraty, depois no Departamento Político e,
posteriormente, na comissão de Organismos Internacionais. Em fevereiro, casa-se com Stella
Maria Barbosa de Oliveira, no Rio de Janeiro. Em dezembro, nasce seu primeiro filho, Rodrigo.

É removido, em 1947, para o Consulado Geral em Barcelona, como vice-cônsul. Adquire uma
pequena tipografia artesanal, com a qual publica livros de poetas brasileiros e espanhóis.
Nessa prensa manual imprime Psicologia da composição. Nos dois anos seguintes ganha dois
filhos: Inês e Luiz, respectivamente. Residindo na Catalunha, escreve seu ensaio sobre Joan
Miró, cujo estúdio freqüenta. Miró faz publicar o ensaio com texto em português, com suas
primeiras gravuras em madeira.

Removido para o Consulado Geral em Londres, em 1950, publica O cão sem plumas. Dois
anos depois retorna ao Brasil para responder por inquérito onde é acusado de subversão.
Escreve o livro O rio, em 1953, com o qual recebe o Prêmio José de Anchieta do IV Centenário
de São Paulo (em 1954). É colocado em disponibilidade pelo Itamaraty, sem rendimentos,
enquanto responde ao inquérito, período em que trabalha como secretário de redação do
Jornal A Vanguarda, dirigido por Joel Silveira. Arquivado o inquérito policial, a pedido do
promotor público, vai para Pernambuco com a família. Lá, é recebido em sessão solene pela
Câmara Municipal do Recife.

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Em 1954 é convidado a participar do Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo.
Participa também do Congresso Brasileiro de Poesia, reunido na mesma época. A Editora
Orfeu publica seus Poemas Reunidos. Reintegrado à carreira diplomática pelo Supremo
Tribunal Federal, passa a trabalhar no Departamento Cultural do Itamaraty.

Duas alegrias em 1955: o nascimento de sua filha Isabel e o recebimento do Prêmio Olavo
Bilac da Academia Brasileira de Letras. A Editora José Olympio publica, em 1956, Duas águas,
volume que reúne seus livros anteriores e os inéditos: Morte e vida severina, Paisagens com
figuras e Uma faca só lâmina. Removido para Barcelona, como cônsul adjunto, vai com a
missão de fazer pesquisas históricas no Arquivo das Índias de Sevilha, onde passa a residir.

Em 1958 é removido para o Consulado Geral em Marselha. Recebe o prêmio de melhor autor
no Festival de Teatro do Estudante, realizado no Recife. Publica em Lisboa seu livro Quaderna,
em 1960. É removido para Madri, como primeiro secretário da embaixada. Publica, em Madri,
Dois parlamentos.

Em 1961 é nomeado chefe de gabinete do ministro da Agricultura, Romero Cabral da Costa, e


passa a residir em Brasília. Com o fim do governo Jânio Quadros, poucos meses depois, é
removido outra vez para a embaixada em Madri. A Editora do Autor, de Rubem Braga e
Fernando Sabino, publica Terceira feira, livro que reúne Quaderna, Dois parlamentos, ainda
inéditos no Brasil, e um novo livro: Serial.

Com a mudança do consulado brasileiro de Cádiz para Sevilha, João Cabral muda-se para
essa cidade, onde reside pela segunda vez. Continuando seu vai-e-vem pelo mundo, em 1964
é removido como conselheiro para a Delegação do Brasil junto às Nações Unidas, em Genebra.
Nesse ano nasce seu quinto filho, João.

Como ministro conselheiro, em 1966, muda-se para Berna. O Teatro da Universidade Católica
de São Paulo produz o auto Morte e Vida Severina, com música de Chico Buarque de Holanda,
primeiro encenado em várias cidades brasileiras e depois no Festival de Nancy, no Théatre des
Nations, em Paris e, posteriormente, em Lisboa, Coimbra e Porto. Em Nancy recebe o prêmio
de Melhor Autor Vivo do Festival. Publica A educação pela pedra, que recebe os prêmios Jabuti;
da União de Escritores de São Paulo; Luisa Cláudio de Souza, do Pen Club; e o prêmio do
Instituto Nacional do Livro. É designado pelo Itamaraty para representar o Brasil na Bienal de
Knock-le-Zontew, na Bélgica.

1967 marca sua volta a Barcelona, como cônsul geral. No ano seguinte é publicada a primeira
edição de Poesias completas. É eleito, em 15 de agosto de 1968, para a Academia Brasileira
de Letras na vaga de Assis Chateaubriand. É recebido em sessão solene pela Assembléia
Legislativa de Pernambuco como membro do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de
Autores Teatrais (SBAT).

Toma posse na Academia em 06 de maio de 1969, na cadeira número 6, sendo recebido por
José Américo de Almeida. A Companhia Paulo Autran encena Morte e vida severina em
diversas cidades do Brasil. É removido para a embaixada de Assunção, no Paraguai, como
ministro conselheiro. Torna-se membro da Hispania Society of America e recebe a comenda da
Ordem de Mérito Pernambucano.

Após três anos em Assunção, é nomeado embaixador em Dacar, no Senegal, cargo que
exerce cumulativamente com o de embaixador da Mauritânia, no Mali e na Giné-Conakry.

Em 1974 é agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco. No ano seguinte publica
Museu de Tudo, que recebe o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista de Críticos de
Arte. É agraciado com a Medalha de Humanidades do Nordeste.

Em 1976 é condecorado Grande Oficial da Ordem do Mérito do Senegal e, em 1979, como


Grande Oficial da Ordem do Leão do Senegal. É nomeado embaixador em Quito, Equador e
publica A escola das facas.

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A convite do governador de Pernambuco, vai a Recife (em 1980) para fazer o discurso
inaugural da Ordem do Mérito de Guararapes, sendo condecorado com a Grã-Cruz da Ordem.
Ali é inaugurada uma exposição bibliográfica de sua obra, no Palácio do Governo de
Pernambuco, organizada por Zila Mamede. Recebe a Comenda do Mérito Aeronáutico e a Grã-
Cruz do Equador.

No ano seguinte vai para Honduras, como embaixador. Publica a antologia Poesia crítica.

Em 1982 é agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Vai para a cidade do Porto, em Portugal, como cônsul geral. Recebe o
Prêmio Golfinho de Ouro do Estado do Rio de Janeiro. Publica Auto do frade, escrito em
Tegucigalpa.

Ganha o Prêmio Moinho Recife, em 1984 e, no ano seguinte, publica os poemas de Agrestes.
Nesse livro há uma sessão dedicada à morte ("A indesejada das gentes"). Em 1986 é
agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco.
Sua esposa, Stella Maria, falece no Rio de Janeiro. João Cabral reassume o Consulado Geral
no Porto. Casa-se em segundas núpcias com a poeta Marly de Oliveira.

Em 1987 publica Crime na Calle Relator, poemas narrativos. Recebe o prêmio da União
Brasileira de Escritores. É removido para o Rio de Janeiro.

Em Recife, no ano de 1988, lança sua antologia Poemas pernambucanos. Publica, também, o
segundo volume de poesias completas: Museu de tudo e depois. Recebe o Prêmio da Bienal
Nestlé de Literatura pelo conjunto da obra, e o Prêmio Lily de Carvalho da ABCL, Rio de
Janeiro.

Aposenta-se como embaixador em 1990 e publica Sevilha andando. É eleito para a Academia
Pernambucana de Letras, da qual havia recebido, anos antes, a medalha Carneiro Vilela.
Recebe os seguintes prêmios: Criadores de Cultura da Prefeitura do Recife, Luis de Camões
(concedido conjuntamente pelos governos de Portugal e do Brasil), em Lisboa. É condecorado
com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Judiciário e do Trabalho. A Faculdade Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro publica Primeiros Poemas.

Outros prêmios: Pedro Nava (1991) pelo livro Sevilha andando; Casa das Américas, concedido
pelo Estado de São Paulo (1992); e também nesse ano o Neustadt International Prize for
Literature, da Universidade de Oklahoma. Viaja a Sevilha para representar o presidente da
República nas comemorações do dia 7 de Setembro, que tiveram lugar na Exposição do IV
Centenário da Descoberta da América. No Pavilhão do Brasil, foi distribuída sua antologia
Poemas sevilhanos, em edição especial. No Rio de Janeiro, na Casa da Espanha, recebe do
embaixador espanhol a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica.

Em 1993 recebe o Prêmio Jabuti, instituído pela Câmara Brasileira do Livro.

João Cabral era atormentado por uma dor de cabeça que não o deixava de forma alguma. Ao
saber, anos atrás, que sofria de uma doença degenerativa incurável, que faria sua visão
desaparecer aos poucos, o poeta anunciou que ia parar de escrever. Já em 1990, com a
finalidade de ajudá-lo a vencer os males físicos e a depressão, Marly, sua segunda esposa,
passa a escrever alguns textos tidos como de autoria do biografado. Conforme declarações de
amigos, escreveu o discurso de agradecimento feito pelo autor ao receber o Prêmio Luis de
Camões, considerado o mais importante prêmio concedido a escritores da língua portuguesa,
entre outros. Foi a forma encontrada para tentar tirá-lo do estado depressivo em que se
encontrava. Como não admirava a música, o autor foi perdendo também a vontade de falar
("Não tenho muito o que dizer", argumentava). Era, sem dúvida, o nosso mais forte concorrente
ao prêmio Nobel, com diversas indicações dos mais variados segmentos de nossa sociedade.

Transcrevemos abaixo o discurso proferido por Arnaldo Niskier, presidente da Academia


Brasileira de Letras, por ocasião da morte do poeta, em 09/10/99:

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"Adeus a João Cabral"
"Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva."

Vida que foi para João Cabral uma bonita e ao mesmo tempo sofrida obra de engenharia
poética, como demonstrou no seu inesquecível Morte e Vida Severina.

Aqui está o poeta João Cabral de Melo Neto, presente pela última vez na Academia Brasileira
de Letras, de que foi, por 30 anos, uma das figuras fundamentais. Aos 79 anos, apaga-se a voz
de significação universal, com a singularidade do seu verso, tantas vezes lembrado para a
glória do Prêmio Nobel de Literatura.

A nossa dor, que é também a da sua companheira Marly de Oliveira e dos seus filhos e demais
parentes, não apaga da nossa memória a convicção de que foi ele um dos maiores poetas
brasileiros de todos os tempos - o poeta da razão - que jamais esqueceu, mesmo nos 40 anos
de vida diplomática, as suas raízes pernambucanas. O homem que soube desenhar em versos
cálidos a saga do retirante nordestino, quando ainda não havia passado dos 35 anos de idade.

João Cabral, o poeta João, que não se conformava em perfumar a flor, é o mesmo que
escreveu aos 22 anos o livro Pedra do Sono, para depois nos brindar, entre outros, com O
engenheiro, O cão sem plumas, Poesias completas, A educação pela pedra e o antológico
Morte e Vida Severina, com versões no teatro e na mídia eletrônica.

Fecham-se os olhos cansados do poeta João e não conseguimos realizar o sonho que agora
desvendo: ver o América Futebol Clube voltar aos seus dias de glória. Nem o daqui do Rio,
nem aquele que era a sua verdadeira paixão: o América do Recife.

Quando preparava com ele a Cabraliana, que foi o seu primeiro audiolivro, ouvi fantásticas
histórias da vida diplomática, especialmente dos tempos de Portugal, Espanha e Marrocos,
além de nele reconhecer um orgulho especial pela família, parente que foi de grandes
escritores brasileiros, como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Mauro Mota e Antônio de
Moraes e Silva, o famoso Moraes do Dicionário de Língua Portuguesa. Parece que era herdeiro,
no seu jeito tão humilde e cativante, de uma genética literária originalíssima.

É compreensível a nossa consternação. Enquanto a saúde permitiu, honrou esta casa com a
sua assiduidade e o seu sentimento da mais pura cordialidade. Sofrendo agora com o seu
silêncio, curvamo-nos diante do grande poeta, para afirmar que a Academia sempre o terá
presente, com a saudade e a admiração de todos os seus confrades.

Descanse em paz, poeta João. A sua presença jamais deixará de estar conosco. Teremos o
consolo da sua poesia imortal."

Dados obtidos nos livros do autor, em "Obra Completa", organizada por Marly de Oliveira com
assistência do autor e em sites da Internet.

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Contra a poesia dita profunda
João Cabral de Melo Neto

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. (Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
raros, frágeis, cogumelos)
no úmido
calor de nossa boca

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor,
flor não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro).

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

O cão sem plumas


João Cabral de Melo Neto

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água ,
da água de cântaro,
dos peixes de água ,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos


de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

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O Rio
João Cabral de Melo Neto

Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraïbeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
desas primeiras léguas
de meu caminhar).

Deste tudo que me lembro,


lembro-me bem de que baixava
entre terras de sêde
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sêde de palha,
grande sêde sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bôcas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Notícia do Alto Sertão

Por trás do que lembro,


ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que sêca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.

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A estrada da Ribeira

Como aceitara ir
no meu destino de mar,
preferi essa estrada,
para lá chegar,
que dizem da ribeira
e à costa vai dar,
que dêste mar de cinza
vai a um mar de mar;
preferi essa estrada
de muito dobrar,
estrada bem segura
que não tem errar
pois é a que tôda a gente
costuma tomar
(na gente que regressa
sente-se cheiro de mar).

De Apolinário a Poço Fundo

Para o mar vou descendo


por essa estrada da ribeira.
A terra vou deixando
de minha infância primeira.
Vou deixando uma terra
reduzida à sua areia,
terra onde as coisas vivem
a natureza da pedra.
À mão direita os ermos
do Brejo da Madre de Deus,
Taquaritinga à esquerda,
onde o êrmo é sempre o mesmo.
Brejo ou Taquaritinga,
mão direita ou mão esquerda,
vou entre coisas poucas
e sêcas além de sua pedra.

Deixando vou as terras


de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as, enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

Os rios

Os rios que eu encontro


vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,

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em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.

De Poço Fundo a Couro d'Anta

A gente não é muita


que vive por esta ribeira.
Vê-se alguma caieira
tocando fogo ainda mais na terra;
vê-se alguma fazenda
com suas casas desertas:
vêm para a beira da água
como bichos com sêde.
As vilas não são muitas
e quase tôdas estão decadentes.
Constam de poucas casas
e de uma pequena igreja,
como, no itinerário,
já as descrevia Frei Caneca.
Nenhuma tem escola;
muito poucas possuem feira.

As vilas vão passando


com seus santos padroeiros.
Primeiro é Poço Fundo,
onde Santo Antônio tem capela.
Depois é Santa Cruz
onde o Senhor Bom Jesus se reza.
Toritama, antes Tôrres,
fêz para a Conceição sua igreja.
A vila de Capado
chama-se pela sua nova capela.
Em Topada, a igreja
com um cemitério se completa.
No lugar Couro d'Anta,
a Conceição também se celebra.
Sempre um santo preside
à decadência de cada uma delas.

A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz,


que agora é Capibaribe,
encontro uma outra estrada
que desce da Paraíba.
Saltando o Cariri
e a serra de Taquaritinga,
na estrada da ribeira
ela deságua como num rio.

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Juntos, na da ribeira,
continuamos, a estrada e o rio,
agora com mais gente:
a que por aquela estrada descia.
Lado a lado com gente
viajamos em companhia.
Todos rumo do mar
e do Recife êsse navio.

Na estrada da ribeira
até o mar ancho vou.
Lado a lado com gente,
no meu andar sem rumor.
Não é estrada curta,
mas é a estrada melhor,
porque na companhia
de gente é que sempre vou.
Sou viajante calado,
para ouvir histórias bom,
a quem podeis falar
sem que eu tente me interpor;
junto de quem podeis
pensar alto, falar só.
Sempre em qualquer viagem
o rio é o companheiro melhor.

Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes
na outra manhã abandonei.
Agora é Surubim,
que fica do lado esquerdo.
A seguir João Alfredo,
que também passa longe e não vejo.
Enquanto na direita
tudo são terras de Limoeiro.
Meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço sêco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros
vão desfilando com cada vila.
Passam Cheos, Malhadinha,
muito pobres e sem vida.
Depois é Salgadinho
com pobre águas curativas.
Depois é São Vicente,
muito morta e muito antiga.
Depois, Pedra Tapada,
com poucos votos e pouca vida.
Depois é Pirauíra,
é um só arruado seguido,
partido em muitos nomes
mas todo êle pobre e sem vida
(que só há esta resposta

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à ladainha dos nomes dessas vilas).

O Relógio
João Cabral de Melo Neto

1.

Ao redor da vida do homem


há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;


mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Uma vezes, tais gaiolas


vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola


será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando


se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.

2.

O que eles cantam, se pássaros,


é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;

desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;

têm sempre o mesmo compasso


horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:

dir-se-ia que não importa


a nenhum ser escutado.

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Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários

para quem tudo o que cantam


é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,

de operário que executa


seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.

3.

A mão daquele martelo


nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;

ela é por demais precisa


para não ser mão de máquina,
a máquina independente
de operação operária.

De máquina, mas movida


por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:

quem sabe se algum monjolo


ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graçar a um fluido que a passa;

que fluido é ninguém vê:


da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.

E porque tampouco cabe,


por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.

4.

Quando por algum motivo


a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro,


imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.

Então se sente que o som


da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,

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de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo


de quem, ao fazer, se esforça,
e que êle, dentro, afinal,
revela vontade própria,

incapaz, agora, dentro,


de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração,


vive a esgotar, gôta a gôta,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.

O luto no sertão
João Cabral de Melo Neto

Pelo sertão não se tem como


não se viver sempre enlutado;
lá o luto não é de vestir,
é de nascer com, luto nato.

Sobe de dentro, tinge a pele


de um fosco fulo: é quase raça;
luto levado toda a vida
e que a vida empoeira e desgasta.

E mesmo o urubu que ali exerce,


negro tão puro noutras praças,
quando no sertão usa a batina
negra-fouveiro, pardavasca.

Tecendo a Manhã
João Cabral de Melo Neto

1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele


e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

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A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

A educação pela pedra


João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Num monumento à Aspirina


João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,


o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda a hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia...

O sertanejo falando
João Cabral de Melo Neto

"A fala a nível do sertanejo engana:


as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra

14
2

Daí porque o sertanejo fala pouco:


as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso:
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho."

Cartão de Natal
João Cabral de Melo Neto

Pois que reinaugurando essa criança


pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno


sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.

O Ovo de Galinha
João Cabral de Melo Neto

Ao olho mostra a integridade


de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,


tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra


unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,


inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

15
II

O ovo revela o acabamento


a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras


que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra


de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar


de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III

A presença de qualquer ovo,


até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender


se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira


é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas


que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito


de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado


em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

16
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

A Carlos Drummond de Andrade


João Cabral de Melo Neto

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

Poema(s) da Cabra
João Cabral de Melo Neto

Nas margens do Mediterrâneo


não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo


Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha


pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra


por mais pedra ou fera que seja,

17
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.

A cabra é negra. Mas seu negro


não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro


do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.


Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.


Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.

Se o negro quer dizer noturno


o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado


mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.


Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.


O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.

O negro da cabra é o negro


da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo


da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

18
O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal


de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

Quem já encontrou uma cabra


que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse


animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,


rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,


quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.

A cabra é o melhor instrumento


de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.


Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,


a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra


e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.

Não é pelo vício da pedra,


por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

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A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga


que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede


da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.

A vida da cabra não deixa


lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,


sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,


de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.

O núcleo de cabra é visível


por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível


em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,


a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais


que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.

20
9

O núcleo de cabra é visível


debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra


no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte


que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino


esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.

*
O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo


nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

©Protegido pela Lei do Direito Autoral


LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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