Você está na página 1de 4

Do sertão à Sevilha, no rastro da poesia

João Correia Filho / Valor

Vista do bairro de Triana, em


Sevilha, cidade em que João
Cabral de Melo Neto morou a partir
de 1956 e que marcou
definitivamente sua obra
Embora a figura de João Cabral de Melo Neto esteja atrelada na maioria das
vezes ao imaginário nordestino, ao sertão e à Recife, o aniversário de dez
anos de sua morte é comemorado também no país que nos remete ao
flamenco e às touradas. Estereótipos à parte, de 13 a 16 de outubro, as
cidades de Barcelona, Sevilha, Salamanca e Alcalá de Henares (a 35km de
Madri) sediam o seminário "Homenaje a João Cabral de Melo Neto en España",
evento que celebra o poeta e destaca essa relação de amor bem resolvido
entre o Brasil e a Espanha.

João Cabral viveu por mais de dez anos em solo espanhol, sempre na área
diplomática, intercalando passagens por Barcelona, Madri e Sevilha. Chegou
pela primeira vez em Barcelona, em 1947, como vice-cônsul do Brasil, e ali
permaneceu até 1950, período em que ocorreu uma série de mudanças
irreversíveis em sua poesia, tanto na temática, como na forma. Embora a
carreira diplomática o tenha obrigado a aportar em vários países da Europa,
como Inglaterra, França e Suíça, foi a Espanha que mais influenciou sua obra.
"Assim que chega à Barcelona João Cabral tem um contato estreito com a
tradição ibérica e a poesia medieval castelhana, que ele reconhece na cultura
popular nordestina", explica a pesquisadora Nylcéa Pedra, da Universidade
Federal do Paraná, que estuda o poeta e participa do evento. "Isso impulsiona
uma mudança em sua poesia, que vai do verso livre de seus primeiros títulos
("A Pedra do Sono" e "Os Três Mal Amados") para uma métrica mais regular,
presente, por exemplo, em "Paisagem com Figuras" e "Quaderna.'"

Tais mudanças estarão entre os grandes temas discutidos durante o seminário,


organizado pela Embaixada Brasileira em Madri e a Fundación Cultural
Hispano Brasileña, que reúne alguns dos principais estudiosos da obra do
poeta dos dois lados do Atlântico. Entre eles estão o escritor Antonio Carlos
Sechin, membro da Academia Brasileira de Letras e um dos grandes
pesquisadores de João Cabral, e Raquel Illescas Bueno, da Universidade
Federal do Paraná, que apresentará a conferência "As Razões da viagem na
poesia de João Cabral". Ambos participam do seminário nas quatro cidades,
enquanto outros convidados se apresentarão em cidades distintas.

No dia 13, em Salamanca, Antonio Maura, tradutor, estudioso de literatura


brasileira e coordenador da cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade
Complutense de Madri, apresenta a conferência "João Cabral e Madri". A
pesquisadora Nylcéa Pedra, da Universidade Federal do Paraná, fala sobre "As
figurações do espaço na poesia de João Cabral", que é também sua tese de
doutorado.

Em Alcalá de Henares, no dia 14, uma das principais discussões será em torno
do legado deixado por João Cabral à capital do país, Madri. O poeta residiu na
cidade de 1960 a 1962, como primeiro secretário da Embaixada Brasileira,
época em que ele e Ángel Crespo (seu principal tradutor) fundam a "Revista
de Cultura Brasileña", em atividade até os dias de hoje. É também em 1960
que João Cabral publica por conta própria o livro "Dois Parlamentos".

Como parte evento, ainda será realizado nas quatro cidades, o relançamento
em formato digital da coleção completa da "Revista de Cultura Brasileña"
(atualmente com o apoio da Fundación Cultural Hispano Brasileña). O acervo
permitirá a pesquisadores o acesso gratuito a mais de 58 edições da revista,
editada nos últimos 50 anos. Além disso, o Instituto Moreira Salles fará o
lançamento exclusivo da primeira edição de "Cadernos de Literatura
Brasileira" em língua espanhola, dedicado ao poeta. Foi com João Cabral que
o IMS iniciou em 1996 essa série semestral de publicações que se tornou
referência no Brasil.

Em Barcelona, no dia 15, os destaques são a presença do poeta e tradutor


Basílio Losada, da Universidade de Barcelona, outro nome de peso no estudo
da literatura brasileira, e de Arnau Puig, um dos fundadores da revista "Dau al
Set", criada pelo movimento de vanguarda do mesmo nome, no qual Cabral
teve muita influência. Ambos falarão justamente da relação entre o poeta
pernambucano e a cidade catalã, onde residiu duas vezes, entre 1947 e 1950,
e entre 1967 e 1969.

Foi também em suas passagens por Barcelona que João Cabral tornou-se
amigo do pintor Joan Miró - o processo criativo do artista plástico ganhou o
ensaio memorável "Joan Miró". "Pode se dizer que escrever sobre o pintor foi
uma forma de refletir sobre si mesmo, pois João Cabral começava a ver na
pintura as mesmas preocupações que tinha na poesia - com forma, espaço e
elemento visual", acrescenta a pesquisadora Nylcéa Pedra.

Outro momento esperado para o encontro de Barcelona são os testemunhos de


Pilar Gómez Bedate e Enriche Tormo. Ela é viúva do principal tradutor da obra
de João Cabral na Espanha, Ángel Crespo, que organizou e traduziu a
antologia cabralina "A La Medida de La Mano", com a qual o poeta ganhou o
Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 1994.

Enriche Tormo, que é tipógrafo, trabalhou e conviveu com o poeta na época


em que ele adquiriu uma pequena máquina tipográfica manual, com a qual
publicou, sob o selo "O Livro Inconsútil", diversos poetas brasileiros e
espanhóis. Entre eles a primeira edição de "Em va fer Joan Brossa", do poeta
Joan Brossa, escrito em catalão, num tempo em que começavam a ser
lançados os primeiros títulos nesse idioma, proibido no âmbito público pela
ditadura franquista.

No mesmo dia, em Barcelona, o documentarista Bebeto Abrantes fará uma


apresentação sobre seu documentário "Recife-Sevilha: João Cabral de Melo
Neto", seguido da projeção do filme, que ganhou diversos prêmios no Brasil -
entre eles o II Brasil Documenta (2002) e o Prêmio Estimulo do Minc (2003),
durante 8º Festival "É Tudo Verdade".

Em Sevilha, no dia 16, o destaque fica por conta da presença do poeta e


tradutor espanhol Pablo del Barco, estudioso de Literatura Brasileira da
Universidade de Sevilha, cidade que aparece com grande destaque na obra de
João Cabral.

Para Pablo del Barco, livros como "Crime na Calle Relator" - quase todo
referindo-se à cidade - e, principalmente, "Sevilha Andando" podem ser
considerados o "ápice desse grande amor" entre escritor e a cultura
espanhola, usando as palavras do próprio pesquisador, que conheceu o poeta
na década de 1990 e publicou em 1982 uma versão em espanhol de "A
Educação pela Pedra" (1968). Por esses motivos, há grande expectativa no
encontro de Sevilha.

João Cabral mudou-se para Sevilha em 1956, mesmo ano em que publica
"Paisagem com Figuras", que traz poemas como "Campo de Tarragona",
"Fábula de Joan Brossa" e "Alguns Toureiros", no qual manifesta sua fascinação
pelas touradas e compara o poeta a um toureiro. Chega à cidade com o
encargo de pesquisar documentos sobre a história do Brasil presentes no
Arquivo das Índias, uma instituição criada em 1785 com o objetivo de
centralizar em um único lugar toda a documentação referente às colônias
espanholas. É lá, por exemplo, que se encontram os originais do Tratado de
Tordesilhas. O poeta permanece na cidade até 1958, quando é transferido
para o Consulado Geral em Marselha, na França. Em 1960, lança "Quaderna",
que traz entre outros, dois grandes poemas que versam sobre o flamenco -
"Estudos para uma bailadora Andaluza" e "A Palo Seco".

Entre 1962 e 1966, João Cabral torna a viver em Sevilha, o que consolida sua
paixão pela cidade, sentimento explicitado em livros como "Serial", "Museu de
Tudo", "Agrestes" e "Crime na Calle Relator", todos impregnados da cultura
espanhola.

Em 1967, volta a Barcelona, dessa vez como cônsul-geral do Brasil, onde


permanece até 1969, quando é transferido para a embaixada em Assunção, no
Paraguai. No entanto, sua relação com a Espanha iria se consolidar com os
poemas de "Sevilha Andando", lançado em 1990, totalmente versado sobre a
cidade, como se estivesse recriando um roteiro imaginário por suas ruas e
praças (ver texto abaixo). Foi seu último livro. Em 9 de outubro de 1999,
falece no Rio de Janeiro, aos 79 anos de idade.

Segundo Cintya Floriani, gerente de estudos e projetos da FCHB, a iniciativa


do evento faz parte do projeto Memória e Presença, que tem como objetivo
divulgar fatos e personagens importantes da cultura brasileira na Espanha.
"Essa conexão entre os dois países ainda é muito baseada em estereótipos.
Para a maioria, infelizmente, ainda somos o país do futebol", completa
Cintya. Uma prova disso é o fato de a única antologia de João Cabral no país
ser a assinada por Ángel Crespo, "A La Medida de la Mano", da década de 90.
Apesar do grande reconhecimento da crítica e o alarde do prêmio Rainha
Sofia, o poeta pernambucano segue praticamente desconhecido do grande
público, o mesmo que grita o nome de Kaká nos estádios. (valor econômico)

Você também pode gostar