Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Antropologia Medica PDF
Antropologia Medica PDF
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994 497
Uchôa, E. & Vidal, J. M.
498 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994
Antropologia Médica
ocidentais ignoram muitas vezes a significação população incurável pela medicina, pois, com
que as campanhas de vacinação podem ter para o tratamento, a doença desaparecia, mas vol-
as populações visadas. Por exemplo, como elas tava a reaparecer algum tempo mais tarde. O
percebem o fato de dar medicamentos a uma desconhecimento das causas de reinfecção
criança, aparentente sadia, que, em muitos levava à desvalorização dos efeitos do medica-
casos, terá febre nas 24 horas seguintes à mento. Como conseqüência, a maioria das
vacinação e, portanto, parecerá doente? Não é pessoas era tratada em casa, a cloroquina era
fácil convencer os pais da criança de que isso pouco utilizada e geralmente em doses sub-
a protegerá de certas doenças no futuro. Tais terapêuticas.
campanhas não podem ser facilmente transpor- Hielscher & Sommerfield (1985) discutem a
tadas de um contexto a outro. Elas exigem que relação entre as concepções culturais das doen-
se levem em conta as particularidades culturais ças e a utilização de recursos médicos em uma
e os diferentes processos lógicos predominantes comunidade rural do Mali. Os autores descre-
em cada contexto. vem a identificação da causa cultural como
De modo geral, os programas de saúde etapa fundamental do processo terapêutico. As
partem do pressuposto de que a informação concepções etiológicas populares dão signi-
gera uma transformação automática dos com- ficado aos diferentes episódios patológicos e
portamentos das populações frente às doenças. determinam em grande medida as estratégias
Essa abordagem negligencia os diferentes para lidar com eles. Hielscher & Sommerfield
fatores sociais e culturais que intervêm na (1985) ressaltam que não existe um conceito
adoção desses comportamentos (Fincham, popular equivalente ao conceito de esquistos-
1992). somose. Os diversos sinais e sintomas são
Diversos autores ressaltam a grande influên- percebidos pelas populações como entidades
cia que exercem a semiologia popular e as separadas e independentes. O estudo de Nyam-
concepçôes culturais de causalidade sobre os waya (1987) junto aos Pokot, do Kenia, de-
comportamentos adotados frente às doenças monstra igualmente a influência das concepções
(Nyamwaya, 1987; Green, 1992; Hielscher & culturais de causalidade sobre a utilização das
Sommerfield, 1985; Corin et al., 1992a). Segun- formas tradicionais e ocidentais de terapia. No
do Green (1992), a causa principal das doenças entanto, a influência de outros fatores no pro-
sexualmente transmissíveis é, em várias socie- cesso decisório é também demonstrada pelo
dades africanas, percebida como a violação de autor. Segundo Nyamwaya (1987), os Pokot
normas que governam os comportamentos seriam bastante pragmáticos e revelariam gran-
sexuais. Partindo dessa concepção, a população de capacidade de integrar novas idéias e novas
prefere recorrer ao tratamento com terapeutas práticas; a eficácia comprovada de uma ou
tradicionais do que aos serviços médicos. Um outra terapêutica seria fundamental tanto como
outro bom exemplo dessa influência é fornecido princípio classificatório como na escolha do
pelo estudo de Agyepong (1992), que inves- tratamento adequado.
tigou as percepções e práticas frente à malária Todos esses estudos revelam que os compor-
em uma comunidade de Gana. Esse autor tamentos de uma população frente a seus pro-
mostrou: (1) que a palavra malária não era blemas de saúde, incluindo a utilização dos
popularmente conhecida e que uma categoria serviços médicos disponíveis, são construídos a
popular “asra” englobava um complexo de partir de universos sócio-culturais específicos.
sinais e sintomas muito semelhantes aos da Eles apontam a necessidade de enraizarem-se os
malária, incluindo febre; (2) que muitos mem- programas de educação e o planejamento em
bros da comunidade não conectavam o vetor à saúde em conhecimento prévio das formas
doença; a população acreditava que o “asra” era características de pensar e agir predominantes
causado por contato prolongado com o calor nas populações junto às quais se quer intervir
excessivo. Essa concepção etiológica eliminava (Hielscher & Sommerfield, 1985; Nyamwaya,
quase toda possibilidade de prevenção, pois o 1987; Nichter, 1989; Corin et al., 1989; Fin-
sol está sempre presente e não há como evitá- cham, 1992; Agyepong, 1992; Green, 1992,
lo. Essa doença era também considerada pela Inecom, 1993).
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994 499
Uchôa, E. & Vidal, J. M.
500 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994
Antropologia Médica
episódios de doenças e em referência aos duos para interpretar o vivido, articular a ex-
tratamentos que foram utilizados. Kleinman periência e exprimi-la de forma socialmente
(1980) distingue “os modelos explicativos” dos legítima. O interesse desse modelo aparece mais
profissionais e os “modelos explicativos” utili- claramente quando se considera que não existe
zados pelos doentes e suas famílias. Esses correspondência termo a termo entre os diag-
modelos se enraízam em diferentes setores do nósticos profissionais, que geralmente orientam
sistema médico e veiculam crenças, normas de os programas de saúde, e os diagnósticos popu-
conduta e expectativas específicas. A grande lares, que orientam as representações e compor-
contribuição desses instrumentos analíticos é tamentos das comunidades (Hielscher & Som-
que eles permitem abordar sistematicamente, e merfield, 1985). A percepção do que é relevante
em seus aspectos plural e dinâmico, o conjunto e problemático, do que causa ou evita um
de valores, crenças e normas de conduta predo- problema, do tipo de ação que esse problema
minantes no campo da saúde. O estudo de requer é, para os profissionais de saúde, deter-
modelos explicativos empregados por diferentes minada pelo corpo de conhecimentos biomédi-
categorias de pessoas (profissionais, doentes, cos, mas, para os indivíduos de uma comunida-
famílias e outros) permite uma avaliação da de, é determinada pelas redes de símbolos que
distância que separa os modelos médicos e não articulam conceitos biomédicos e culturais e
médicos, o exame da interação entre eles e a determinam formas características de pensar e
análise dos problemas de comunicação que de agir frente a um problema de saúde especí-
surgem do encontro entre modelos culturais e fico.
modelos médicos durante as atividades clínica, Os trabalhos de A. Kleinman, B. Good e M.
educativa ou de pesquisa. O conhecimento dos J. Delvecchio Good reinscrevem as crenças, as
modelos explicativos, que predominam em um normas de comportamento e as expectativas
grupo, facilita a comunicação com os in- referentes às doenças no contexto mais amplo
divíduos desse grupo e permite a realização de de normas e valores que predominam em uma
intervenções que sejam compreensíveis e aceitá- sociedade. Eles questionam o “naturalismo” das
veis para eles, duas condições essenciais para o interpretações biomédicas, favorecem maior
sucesso de qualquer programa de saúde. tolerância frente a outras formas de pensar e
O modelo de análise de redes semânticas agir diante da doença e, em conseqüência,
(semantic network analysis), desenvolvido por abrem novos caminhos para o reconhecimento
Good (1977) e Good & DelVecchio Good e análise dos processos culturais que mediati-
(1980, 1982), abre o caminho para a compreen- zam a construção das representações e compor-
são dos diferentes fatores que participam da tamentos em saúde.
construção de “realidades médicas”. Esses O modelo de análise dos “sistemas de sig-
autores enfatizam a diversidade de modelos que nos, significados e ações” elaborado por Corin
suportam, em uma sociedade, a construção et al. (1989, 1990, 1992a, 1992b, 1993) se
cultural dos problemas de saúde e os esforços inscreve, em linhas gerais, como um prolonga-
terapêuticos para resolvê-los. Eles ressaltam que mento dos trabalhos do Grupo de Harvard, já
toda prática terapêutica é eminentemente inter- descritos. Todavia, ele permite maior sistemati-
pretativa e implica constante trabalho de tradu- zação dos diferentes elementos do contexto
ção, de decodificação e de negociação entre (dinâmica social, códigos culturais centrais,
diferentes sistemas semânticos. Segundo Good conceito de pessoa, etc.) que intervêm efetiva-
(1977) e Good & Delvecchio Good (1980, mente na identificação do que é problemático,
1982), a significação dos episódios patológicos na decisão de tratar ou não um problema e na
seria construída em redes de significações escolha do terapeuta apropriado.
(semantic network illness), por meio das quais Embora o modelo de análise dos “sistemas
elementos cognitivos, afetivos e experienciais se de signos, significados e ações” tenha sido
articulam sobre o universo das relações sociais inicialmente empregado na área da saúde men-
e das configurações culturais. Essas redes de tal, sua contribuição potencial para outras áreas
símbolos associadas a doenças particulares em da saúde, parece indiscutível. Muito pouco se
dada sociedade seriam utilizadas pelos indiví- conhece sobre sinais e sintomas considerados
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994 501
Uchôa, E. & Vidal, J. M.
502 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994
Antropologia Médica
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994 503
Uchôa, E. & Vidal, J. M.
jourd’hui. Paramètres pour un cadre de référen- ________ , 1987. Anthropology and psychiatry.
ces. Psychopathologie Africaine, 24: 149-181. The role of culture in cross-cultural research on
CORIN, E.; UCHÔA, E.; BIBEAU, G. & KOUMA- illness. British Journal of Psychiatry, 151: 447-
RE, B., 1992b. Articulation et variations des sys- 454.
tèmes de signes, de sens et d’actions. Psychopa- KLEINMAN, A. & GOOD, B. (Eds.), 1985. Culture
thologie Africaine, 24: 183-204. and Depression: Studies in Anthropology and
CORIN, E.; BIBEAU, G. & UCHÔA, E., 1993. Cross-Cultural Psychiatry of Affect and Disor-
Eléments d’une sémiologie anthropologique des der. Berkeley: University of California Press.
troubles psychiques chez les Bambara, Bwa et LÉTOURNEAU, G., 1989. L’étude comparative du
Soninké du Mali. Anthropologie et Sociétés, 17: veillissement. In: Veillir à Travers du Monde (R.
125-156. Santerre & G. Létourneau, eds.), pp. 113-130,
EISENBERG, L., 1977. Disease and illness: dis- Québec: Presses Universitaires de Laval.
tinctions between profesiional and popular ideas MINAYO, M. C. S. & SANCHES, O., 1993. Quan-
of sickness. Culture, Medicine and Psychiatry, 1: titativo-qualitativo: oposição ou complemen-
09-23. taridade? Cadernos de Saúde Púbica, 9: 239-
FINCHAM, S., 1992. Community health promotion 262.
programs. Social Sciences and Medicine, 35: NICHTER, M., 1989. Anthropology and Internatio-
239-249. nal Health: South Asian Case Studies. Dordre-
GEERTZ, C., 1973. The Interpretation of Cultures. chet: Kluwer Publications.
New York: Basic Books Inc. Publishers. NYAMWAYA, D., 1987. A Case study of interac-
GOOD, B., 1977. The heart of what’s the matter: the tion between indigenous and western medicine
semantics of illness in Iran. Culture, Medicine among the Pokot of Kenya. Social Sciences and
and Psychiatry, 1: 25-58. Medicine, 25: 1277-1287.
GOOD, B. & DELVECCHIO GOOD, M. J., 1980. ROSENFIELD, P. L., 1992. The potential of trans-
The meaning of symptoms: a cultural herme- disciplinary research for sustaining and extend-
neutic model for clinical practice. In: The Rele- ing linkages between health and social sciences.
vance of Social Science for Medicine (L. Eisen- Social Sciences and Medicine, 35: 1343-1357.
berg & A. Kleinman, eds.), pp. 165-196, Dordre- SCHEPER-HUGUES, N. & LOCK, M., 1987. The
chet: Reideil Publishing Co. mindful body. Medical Anthropology Quaterly,
________ , 1982. Toward a meaning-centered 1: 06-42.
analysis as popular illness categories: “Fright- TAYLOR, P.; CHANDIWANA, S. K.; GOVERE, J.
Illness” and “Heart Distress” in Iran. In: Cultural M. & CHOMBO, F., 1987. Knowlwdge attitudes
Conceptions of Mental Health and Therapy (A. and practices in relation to schistosomiasis in a
J. Marsella & G. White, eds.), pp. 141-166, Dor- rural community. Social Sciences and Medicine,
drechet: D. Reidel Publishing Co. 24: 607-611.
GREEN, E. C., 1992. Sexuallly trasmited disease, UCHÔA, E.; CORIN, E.; KOUMARE, B. & BIBE-
ethnomedicine and health policy in Africa. AU, G., 1993. Représentations culturelles et dis-
Social Sciences and Medicine, 35: 121-130. qualification sociale: l’épilepsie dans trois grou-
HIELSCHER, S. & SOMMERFIELD, J., 1985. pes ethniques au Mali. Psychpathologie Afri-
Concepts of illness and the utilization of health caine, 25: 33-57.
care services in a rural Malien Village. Social UNGER, J. P., 1991. Can intensive campaigns
Sciences and Medicine, 21: 397-400. dynamize front line health services? The evalua-
HUNDT, G. A. & FORMAN, M.,R., 1993. Inter- tion os an immunization campaign in thiès health
facing anthropology and epidemiology: the bed- district, Sénégal. Social Sciences and Medicine,
ouin arab infant feeding study. Social Sciences 32: 249-259.
and Medicine, 36: 957-964. WHA (World Health Assembly), 1977. Resolution
INECOM, 1993. The International Network for 30.53. World Health Assembly, may. (Mimeo.)
Cultural Epidemiology and Community Mental ________ , 1982. Resolution 35.51. World Health
Health. Montréal: WHO. (Collaborating Centre Assembly, may. (Mimeo.)
for Research and Training in Mental Health).
(Mimeo.)
KLEINMAN, A., 1980. Patients and Healers in the
Context of Cultures. An Exploration of Boder-
land between Anthropology and Psychiatry.
Berkeley/Los Angeles: University of California
Press.
504 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (4): 497-504, out/dez, 1994