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ARQUEOLOGIA DA

REPRESSÃO E DA
RESISTÊNCIA NA
AMÉRICA LATINA NA
ERA DAS DITADURAS
(décadas de 1960/1980)”.

Pedro Paulo A.Funari


Andrés Zarankin
José Alberioni dos Reis
(organizadores)
INDICE

Introdução – Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos


Reis

1. Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do


achado dos restos de Che Guevara - Roberto Rodríguez Suárez

2. Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário político-simbólico no Quartel


San Carlos (Caracas/Venezuela) - Rodrigo Navarrete S. e Ana Maria López Y.

3. “México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão governamental e o


genocídio – Patricia Fournier e Jorge Martínez Herrera

4. Arqueologia e Esquerda na Colômbia – Carl Henrik Langebaek

5. A Arqueologia do conflito no Brasil – Pedro Paulo A. Funari e Nancy Vieira de


Oliveira

6. Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço – Luis Fondebrider

7. Tortura, verdade, repressão, arqueologia – Alejandro F. Haber

8. Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no Uruguai (1971-1985)


José Mª López Mazz

9 A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros


Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-1983) Andrés
Zarankin e Claudio Niro

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Sobre os editores

Pedro Paulo A. Funari - nascido em São Paulo/Brasil, estudou na Universidade de São


Paulo (USP) nos cursos de História, Antropologia Social e Arqueologia. Professor
catedrático da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é coordenador-
associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) e investigador do Núcleo de
Estudos e Investigações Ambientais (NEPAM). Funari é também pesquisador-associado
da Illinois State University (EUA) e da Universidade de Barcelona (Espanha) e
investigador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas do Brasil (CNPq).
Professor em diversas universidades européias e norte-americanas. Suas experiências de
trabalho de campo ocorreram na Inglaterra, Espanha, Itália, além do Brasil. Foi
representante sênior sul-americano no Conselho Mundial de Arqueologia (WAC-
1994/2002) e secretário da mesma organização no período de 2003-2004. Autor de
dezenas de livros e de centenas de artigos. Dentre os livros, destacam-se os seguintes:
Historical Archaeology – back from the edge (Londres e Nova Iorque, Routledge,
1999); Global Archaeological Theory (Nova Iorque, Kluwer, 2005). Funari trabalha
com a Arqueologia das minorias étnicas e dos grupos invisíveis para a história oficial.
E-mail: ppfunari@uol.com.br

Andrés Zarankin – estudou na Universidade de Buenos Aires e na Universidade


Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professor de Arqueologia no
Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou, também, como
pesquisador do CONICET-Argentina, no Departamento de Investigações Pré-históricas
e Arqueológicas do IMHICIHU. Em 2003 participou dos trabalhos de escavação do
Centro Clandestino de Tortura ‘Club Atlético’, na cidade de Buenos Aires. É autor de
diferentes livros. Dentre eles: Global Archaeological Theory – contextual voices and
contemporary thoughts, junto com Pedro P.A.Funari e Emily Stovel (Nova Iorque,
Plenum-Kluwe, 2005); Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura escolar
capitalista – o caso de Buenos Aires (Campinas, IFCH-UNICAMP, 2002); Arqueologia
da sociedade moderna na América do Sul, junto com Maria Ximena Senatore (Buenos
Aires, Del Tridente, 2002); Sed Non Satiata – teoria social na Arqueologia Latino-
americana contemporânea, junto com Felix Acuto (Buenos Aires, Del Tridente, 1999).
Seus principais temas de investigação são “Arqueologia da Arquitetura” e “Arqueologia
Histórica”. E-mail: zarankin@yahoo.com

José Alberione dos Reis – nasceu nos Campos de Cima da Serra Gaúcha/RGS.
Estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professor de História
da Hominização e Arqueologia no Departamento de História da Universidade de Caxias
do Sul. Já escreveu vários artigos em publicações nacionais e estrangeiras e, também, é
autor do livro Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do Planalto
Meridional (Caxias do Sul, EDUCS, 2002). Tem participado em vários trabalhos de
campo nos âmbitos da Arqueologia Pré-Histórica e Histórica. E-mail:
tocchett.voy@terra.com.br

SOBRE OS AUTORES

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Alejandro Haber – é professor da Universidade Nacional de Catamarca e investigador
do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas. É doutor pela
Universidade de Buenos Aires. Dirige uma equipe de investigação na Puna de Atacama.
Seu último livro é Para uma arqueologia das arqueologias sul-americanas (Bogotá,
Uniandes, 2004). E-mail: afhaber@arnet.com.ar

Ana María López de Korin – antropóloga, formada pela Universidade Central da


Venezuela, em 2001. Mestre em História do Mundo Hispânico pelo Conselho Superior
de Investigações Científicas de Madrid, em 2004. Atualmente, cursa doutorado na IIª
Especialização em Museologia, na Universidade Central da Venezuela. Vem
desenvolvendo sua atividade profissional nas áreas de investigação histórica,
arqueológica e antropológica. Tem participado de diversos projetos em etnohistória e
antropologia histórica. Tem apresentado trabalhos e participado de eventos acadêmicos,
bem como tem sido autora e co-autora de publicações especializadas. E-mail:
anamarialopezy@gmail.com

Carl Langebaek – antropólogo da Universidade de Los Andes, em Bogotá. Cursou


doutorado na Universidade de Pittsburgh (USA). Seus interesses incluem o
desenvolvimento de sociedades complexas no norte da Sulamérica e a organização
social das comunidades que se deparou com os espanhóis. Ultimamente está escrevendo
uma história da imagem do índio na Colômbia. E-mail: clangeba@uniandes.edu.co

Cláudio Niro – é aluno do curso de Ciências Antropológicas – concentração em


Arqueologia – da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. É
jornalista. Durante a ditadura foi detido-desaparecido no Centro Clandestino de Tortura
conhecido como El Vesubio. E-mail: claudioniro@hotmail.com

Jorge Martinez Herrera – especialista em Antropologia Física pela Escola Nacional


de Antropologia e História, na Cidade do México. As principais linhas gerativas e de
aplicação do conhecimento que atualmente desenvolve são Osteologia e Antropologia
Forense.

José María López Mass – é graduado em Ciências Antropológicas pela Universidade


da República do Uruguai; mestrado em Arqueologia pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais de Paris; doutorado pela Universidade de Paris III (Sorbonne). Tem
realizado investigações em Pré-história das Terras Baixas e no Período Colonial.
Atualmente trabalha com Arqueologia e Direitos Humanos e com Patrimônio Cultural.
É professor agregado de Arqueologia na Faculdade de Humanidades. E-mail:
peppino9@hotmail.com

Luís Fondebrider – é graduado em Ciências Antropológicas pela Universidade de


Buenos Aires. É atual presidente e membro fundador da Equipe Argentina de
Antropologia Forense (EAAF), uma organização privada que, desde 1984, se dedica a
documentação científica de casos de violência política na Argentina e em outras partes
do mundo. Em sua qualidade de membro da EAAF, Fondebrider tem participado como
perito em mais de 600 investigações na Argentina. Atua como consultor no exterior,
tendo realizado investigações na Bolívia, Paraguai, Uruguai, Chile, Brasil, Peru,
Colômbia, Venezuela, Guatemala, El Salvador, Haiti, Croácia, Bósnia, Kosovo,
Romênia, Chipre, Iraque, Filipinas, Timor Oriental, Indonésia, África do Sul,

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Zimbabwe, Congo, Etiópia, Namíbia e Quênia. É docente da cátedra de Medicina Legal
e Tanatologia da Faculdade de Medicina da UBA, E-mail: fondebrider@yahoo.com

Nanci Vieira de Oliveira – é professora de Antropologia e diretora do Laboratório de


Antropologia Biológica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-Brasil). É
graduada em História, mestre em História Social (Arqueologia) pela Universidade São
Paulo (USP-Brasil), doutora em História (Arqueologia) pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP-Brasil). É uma das fundadoras da Sociedade de Arqueologia
Brasileira, além de autora de artigos e de capítulos de livros no Brasil e em outros
países. Dirige investigações arqueológicas em diferentes estados brasileiros, tais como
Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso, Goiás. Dentre elas, o Projeto
Arqueológico de Angra do Reis, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: nancivieira@uol.com.br

Patricia Fournier García – doutora em Antropologia. Atua como professora e


investigadora na Divisão de Pós-graduação da Escola Nacional de Antropologia e
História da Cidade do México. As principais linhas gerativas e de aplicação de
conhecimento que atualmente desenvolve são a Antropologia Simbólica, Arqueologia
Histórica, Etnoarqueologia e Arqueometria. E-mail: pat_fournier@yahoo.com

Roberto Rodríguez Suárez – doutor em Antropologia pela Escola Nacional de


Antropologia e História do México. Trabalha no Laboratório de Arqueometria do
Museu Antropológico Montané da Universidade de La Habana. Temas de investigação
de seu interesse são os relacionados com a prospecção arqueológica e o estudo de áreas
de atividade em sítios arqueológicos; a análise da função dos artefatos; inferência de
paleodietas a partir da análise de ossos humanos; o estudo da diagênese óssea; métodos
de datação. E-mail: roberto@fbio.uh.cu

Rodrigo José Navarrete Sánchez – graduado na Escola de Antropologia da Faculdade


de Ciências Econômicas e Sociais da Universidade Central da Venezuela. Atualmente é
professor do Departamento de Arqueologia, Etnohistória e Ecologia Cultural da Escola
de Antropologia (FACES-UCV). Dirige um projeto de investigação, apoiado pelo IPC e
pela UCV, denominado de Reconstrução Arqueológica e Etnohistórica do Povoamento
Tardio da Depressão de Unare, ‘llanos’ orientais da Venezuela. Realiza estudos de pós-
graduação, desde 1997, no Departamento de Antropologia da Universidade de
Binghamton (State University of New York-USA). É membro fundador do grupo de
investigação antropológica NAVE (Nova Antropologia Venezuela) da Escola de
Antropologia da UCV. É presidente do Grupo de Estudos da Diversidade Sexual
CONTRANATURA da UCV e membro do Comitê Organizador das II Jornadas
Universitárias sobre Diversidade Sexual (UCV, junho, 2004) auspiciadas por
Contranatura e pelo Programa de Cooperação Interfaculdades. Tem participado em
eventos da especialidade e igualmente publicado e compilado para publicações
periódicas especializadas, tanto em nível nacional como internacional. E-mail:
bf81014@binghamton.edu

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“Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das Ditaduras
(décadas de 1960-1980)”,

Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e


José Alberioni Dos Reis

Quando a maioria das pessoas pensa em Arqueologia, provavelmente,


uma das primeiras idéias que vêm à cabeça é a relação com Indiana Jones ou com a
busca de algum tesouro pertencente a uma remota civilização. Em outras palavras, uma
visão de que a Arqueologia lida com coisas exóticas e distantes. Esta idéia tem uma
base verídica, já que até algumas poucas décadas atrás, a Arqueologia centrava sua
pesquisa, quase de forma exclusiva, no estudo de grupos e sociedades ditas pré-
históricas.
Devemos considerar também que as origens da disciplina estão
associadas às aventuras imperialistas das grandes potências. Afortunadamente, esta
situação tem mudado através do tempo, como resultado da influência de movimentos
sócio-políticos e de mudanças epistemológicas no âmbito das ciências sociais. Desde o
fim da segunda guerra mundial (1939-1945), movimentos pelos direitos civis, pela
emancipação da mulher, entre outros, provocaram importantes transformações. Entre
estas, destacamos o reconhecimento e o respeito pela heterogeneidade no interior de
qualquer sociedade.
Foi neste contexto que as ciências humanas e sociais começaram a se
preocupar com o destaque e com a preservação da diversidade cultural. Isto gerou uma
aproximação entre estas disciplinas e a sociedade. Materializou-se em programas
epistemológicos novos e em uma crescente interação com grupos e comunidades locais.
Na Arqueologia, por um lado, estas mudanças se expressaram a partir de
1980, com o surgimento e desenvolvimento de uma corrente teórica conhecida como
Arqueologia Contextual ou Simbólica (Hodder, 1982;Funari, Zarankin e Stovel, 2005).
Por outro lado, também com a criação do Congresso Mundial de Arqueologia, que
contou com a participação de indígenas, grupos sociais e investigadores de diversas
disciplinas.
Desde estas novas perspectivas, a Arqueologia – a partir de agora
entendida como o estudo das pessoas através da cultura material – oferece a
possibilidade de gerar visões alternativas às da história escrita, independentemente de
variáveis como tempo e espaço. Tradicionalmente, a História – ao trabalhar
prioritariamente com fontes escritas concebidas desde o poder – apresentou uma visão
parcial e sectária do passado. Deixou de fora de seus trabalhos, diversos grupos
considerados marginais ou sem importância, tais como as mulheres, as crianças, os
velhos ou grupos étnicos e religiosos diferentes e, é claro, as classes exploradas (Funari
et al. 1997). Conformam o que o antropólogo Eric Wolf (1982) denominou de “pessoas
e grupos sem história”.
Ao contrário da História “tradicional”, a Arqueologia conta com o
potencial de ser “democrática”. Particularmente, isso se associa ao fato de que trabalha
com algo que todas as pessoas produzem: “restos materiais” – que, em muitos casos,
costumamos chamas de “lixo”. Desta maneira, não só se torna possível construir relatos
alternativos aos da história oficial, senão também dar voz aos grupos invisíveis, as
minorias e aos oprimidos. Em outras palavras, surge a oportunidade de construir uma
“história dos grupos sem história”.
Na América Latina, a Arqueologia se viu afetada pelos contextos sócio-
políticos ocorridos na região, principalmente ditaduras, que dificultaram uma antecipada

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democratização da disciplina. Sem dúvida, desde mais de vinte anos, vem sendo
produzida uma transformação libertadora que se reflete no desenvolvimento de novos
aportes críticos sobre o estudo do passado recente em nosso continente.

A repressão na Latino-américa nas décadas passadas

Um caso paradigmático, no qual mais de trinta anos de história têm sido


apagados e distorcidos, é a história da repressão na latino-américa entre as décadas de
1960 e 1980. Podemos dizer que existe uma “brecha” nos livros gerados pela história
oficial relacionada a este período.
As ditaduras latino-americanas surgiram dentro de um contexto político
internacional claro, a Guerra Fria e a Revolução Cubana (1959). Estas perduraram até
que os câmbios internos e internacionais permitiram estabelecer e consolidar as
liberdades democráticas e o retorno dos civis ao poder. Durante o período repressivo, a
oposição foi controlada por diversos métodos – tais como o exílio, a detenção e mesmo
o assassinato. Estes dispositivos repressivos assentavam-se na limitação ao acesso a
informação pelas pessoas comuns.
Por sua vez, a documentação escrita sobre a repressão clandestina neste
período, gerada desde o aparato repressivo do Estado, foi escassa e fragmentária. Por
outra parte, foi comum no final dos governos militares que estes documentos fossem
eliminados. Neste contexto, o aporte da Arqueologia, através do estudo dos vestígios
materiais, pode trazer importantes resultados para ajudar a esclarecer procedimentos
repressivos, a construir uma memória material do período e, inclusive, recuperar a
história e os restos dos desaparecidos. Consideramos que os desaparecidos são, de
alguma maneira, “pessoas sem história”. Gente que teve uma história, interrompida de
maneira cruel e inumana pelo próprio fato do seqüestro-desaparecimento. A partir deste
momento, não estão mais vivos e nem mortos, simplesmente não estão.
Somos conscientes que as pessoas que participaram destes governos
tiveram o poder de fazer desaparecer gente, de desaparecer a justiça e até a História.
Sem dúvida, há algo que não importa quanto poder possuíram e que nunca poderão
fazer desaparecer, o passado. Desde esta perspectiva, a Arqueologia tem muito que
oferecer, assumindo um compromisso social e político claro ao lado das pessoas
comuns e contribuindo para reconstruir, de maneira concreta, a história roubada e
negada desde o sistema. Este livro reflete o esforço de diversos arqueólogos latino-
americanos que, desde distintas investigações, trabalham por este objetivo.
Por outra parte, a decisão de gerar uma publicação que inclua colegas de
vários países latino-americanos não é casual. Da mesma maneira que existiu o Plano
Cóndor1 é importante gerar um livro que mostre este processo, não como resultado de
decisões isoladas dos governos militares que atuaram em cada país, senão como uma
prática consensuada entre os mesmos e que unificou a América Latina através do terror.

“Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das


Ditaduras (décadas de 1960-1980)”

Este livro está composto por 9 artigos.


Roberto Rodríguez Suárez, em ‘Arqueologia de uma procura e de uma busca
arqueológica: a história do achado dos restos de Che Guevara’, explica de maneira

1
As ditaduras militares que governaram os países do Cone Sul, nas décadas de 1970 e 1980, instrumentaram e
aplicaram um operativo de inteligência e de repressão extra fronteiriço que denominaram de Plano Cóndor.

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detalhada e minuciosa a história da busca e da localização dos restos de Che Guevara na
Bolívia. A partir de seu relato, é possível conhecer os métodos analíticos e tecnológicos
utilizados pela equipe de arqueólogos e de antropólogos físicos que participaram da
busca dos restos de um dos personagens mais importantes do século XX, cujo paradeiro
permaneceu oculto por mais de 30 anos.
Rodrigo Navarrete e Ana María López, em ‘Riscando atrás dos muros: grafite e
imaginário político-simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)’, exploram a
aplicação de uma perspectiva arqueológica para a interpretação do imaginário
carcerário, através do estudo dos grafites e outras expressões figurativas e textuais
expontâneas, nas paredes e recintos do Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela). Estas
são entendidas pelos autores como “manifestações parietais”, por estarem representadas
sobre as paredes – ocasionalmente em assoalhos ou em tetos – dos diversos recintos da
edificação.
Patricia Fournier e José Martínez Herrera, em “México 1968”: entre as
presepadas olímpicas, a repressão governamental e o genocídio’, analisam um dos
massacres mais terríveis da história recente do México, o da ‘Plaza de Las Tres
Culturas’, ocorrido em 1968. Naquele local, milhares de estudantes e pessoas comuns,
foram massacrados pelo aparato repressivo estatal, enquanto realizavam uma
manifestação pacífica contra o governo. Quase 40 anos depois, na intensidade de uma
ferida que só pode ser cicatrizada com a verdade e com a justiça, os autores marcam a
necessidade de se gerar um projeto interdisciplinar “para a recuperação da memória”.
Entre seus objetivos principais estão a proposta de esclarecimento sobre os
acontecimentos de violência e a contribuição para a localização dos mortos e dos
desaparecidos.
Carl Henrik Langebaek em “Arqueologia e Esquerda na Colômbia”, propõe
estudar as relações entre marxismo e o estudo do passado pré-hispânico na Colômbia.
Para isso, desenvolve uma mirada sociológica sobre a disciplina Arqueológica.
Estabelece laços diretos entre o desenvolvimento da Arqueologia, principalmente
aquela ligada as correntes marxistas, e a História política e acadêmica na Colômbia
durante o século XX.
Pedro P. Funari e Nancy Vieira em “A Arqueologia do conflito no Brasil”,
discutem as bases epistemológicas de uma Arqueologia do conflito. A partir disso,
analisam a situação particular que se estabeleceu no Brasil, desde começos da década de
1990, relacionada com a possibilidade de gerar um projeto arqueológico sobre os
desaparecidos da ditadura militar.
Luis Fonderbirder em “Arqueologia e Antropologia Forense: um breve
balanço”, apresenta uma síntese sobre os ganhos e a experiência de mais de 20 anos, do
trabalho da ‘Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF). Suas origens,
resultados e desafios são claramente expostos pelo autor.
Alejandro Haber em “Tortura, verdade, repressão, arqueologia”, estabelece
uma comparação simbólica das representações da conquista européia da América no
século XVI, que implicou o extermínio de grupos indígenas, com o genocídio das
ditaduras militares no século XX. Sua discussão traça uma reflexão sobre os distintos
regimes de verdade que existiram e existem na Arqueologia e como estes condicionam
nossa mirada do passado.
José López Mazz em “Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no
Uruguai (1971-1985)”, reflete sobre as possibilidades de trabalho em relação a uma
Arqueologia da repressão no Uruguai. Esta é entendida como uma aproximação
arqueológica ao terrorismo de Estado visando gerar informação sobre fatos até agora
invisíveis. Paralelamente, estabelece a possibilidade de discutir situações de resistência

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a esta repressão, através do estudo de fugas ou de pequenas condutas que permitiram
que pessoas comuns escapassem da violência imposta pela ditadura militar.
Andrés Zarankin e Claudio Niro em “A materialização do sadismo: Arqueologia
da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina
(1976-1983)”, propõem discutir a partir de dois níveis, um teórico e outro corporal
(destacando as experiências reais sofridas por um dos autores), a arquitetura e a
organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção (CCD) na Argentina. Para
isso efetuam uma série de reflexões sobre a materialidade destes lugares e suas
implicações no processo repressivo. Utilizam como caso de análise o CCD conhecido
como ‘Club Atlético’, assim como referências a outro CCD chamado de ‘El Vesubio’,
onde Claudio Niro esteve detido.
Em síntese, o livro que apresentamos ao leitor reflete um esforço por resgatar
uma história que consideramos ainda pouco tratada. Ao mesmo tempo, estamos
convencidos que discutir este tipo de problemáticas permitirá superar definitivamente os
riscos positivistas e reacionários da Arqueologia. Nos interessa deixar claro que,
contrariamente ao que se supõe, a mesma não só esta preocupada em ser uma ciência
abstrata ou uma fonte de estudo de supostas “grandes civilizações”, senão que também
se refere a nós mesmos, a nosso presente e futuro.
Esperamos que este volume permita mostrar que o estudo da repressão não é um
exercício histórico neutro, um tema a mais a ser explorado “objetivamente” pelo
cientista, senão que um compromisso político que assumimos como investigadores.
Somos conscientes que a situação de pobreza e de exclusão vivida na atualidade tem
muito a ver com este passado próximo. Esperamos que este volume possa ajudar na
difícil tarefa política e científica de compreender suas causas e funcionamento, como
também seu trágico legado.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos os autores e, em especial, a Lourdes Domingues.


Mencionamos também o apoio institucional da FAPESP, CNPq, Conicet e Núcleo de
Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP). A responsabilidade pela concepção do livro é
só dos editores.

9
Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a
história do achado dos restos de Che Guevara
Roberto Rodríguez Suárez

Introdução

O ano de 1997 marcou um fato no âmbito internacional quanto ao significado da figura


de Ernesto “Che” Guevara e seus companheiros de guerrilha. A foto amplamente
difundida, em que aparece sua gloriosa figura, captada magistralmente pelo fotógrafo
cubano Alberto Korda, converteu-se em um símbolo de luta de não poucas gerações que
transcendeu o âmbito latino-americano para se tornar internacional. Sem dúvida, a
imagem do guerrilheiro cubano-argentino e seus ideais se elevam, transformando-se em
algo tangível, com o anúncio ao mundo do achado de seus restos mortais.

A Arqueologia, como forma de reconstrução da memória antiga e de um passado


recente, se constituiu em um instrumento metodológico útil que permitiu, com
participação multidisciplinar, sustentar a busca dos restos dos guerrilheiros que caíram
durante a contenda boliviana de 1967.

Como era de se esperar, o tempo transcorrido e o silêncio que envolveu a localização


dos restos dos guerrilheiros exigiam uma veemente abordagem do processo da busca, no
qual se fazia necessário estabelecer uma proposta que se contrapusesse a tais limitações.
De tal maneira que, se descreverá aqui o que constituiu tal busca. Ainda que não se
limite a esta proposta, representa um modelo adequado, com um nível de generalização
apreciável para aqueles casos com características similares. Os métodos, os
instrumentos utilizados e os resultados obtidos dão fé de sua validez e da possibilidade
de aplicá-los, ainda que em contextos de enterramentos dessemelhantes, pois serão
adaptáveis como uma função da “filosofia” com a qual se abordem os casos
particulares. Isto é, sob quais condições se aplicam e o que se busca.

O contexto ‘vallegrandino’

A província Vallegrande localiza-se na região Sul Ocidental da Bolívia, a 241


quilômetros do Departamento de Santa Cruz de La Sierra. Originalmente estava
habitada por uma população de 26.027 habitantes. Tem uma superfície de 6.414
quilômetros quadrados e está situada a uma altura media de 1.970 metros acima do nível
do mar.

Esta região dos vales ‘cruceños’, antes da ocupação colonizadora por parte dos
espanhóis, recebeu a incursão do povo quechua, principalmente oriunda das províncias
vizinhas de Carrasco e Campero, do Departamento de Cochabamba. A referida região,
que foi ocupada por iniciativa de Tupac Inca Yupanqui e continuada por seu sucessor
Huayna Kapac durante o século XVI, enfrentaria as tribos Chiriguanas e Yuracares que
saíram dos bosques do noroeste da província e que também se deslocavam por estes
vales. Seguindo a fundação das primeiras cidades, no que hoje é a Bolívia, tais como La
Plata, La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e Salinas del Río Pisuerga o Mizque, a partir de
1538, a comunicação entre ocidente e oriente se intensificou. Porém, nesta parte
intermediária desta via de comunicação, as incursões cada vez mais freqüentes e
ousadas por partes das hostes chiriguanas-yuracares, constituíam um verdadeiro perigo

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para os viajantes que se arriscavam pelo caminho inca. Isto determinou que o presidente
da Real Audiência de Charcas, Lic. López Cepeda, acedendo a repetidas petições,
facilitasse a fundação de centros de população intermediários que, de alguma maneira,
garantiriam a segurança dos viajantes. Estes antecedentes deram lugar a que, em 30 de
março de 1612, fosse expedido o documento oficial de concessão, mediante o qual o
Vice-rei do Peru encomendava ao capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, a
fundação de duas cidades nestes vales.

O capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, sobrinho do Vice-rei do Peru, Dom Juan
de Mendoza y Luan, recebeu deste o encargo de fundar uma cidade de brancos que
serviria de ligação entre Charcas e Santa Cruz. No cumprimento deste mandato saiu de
Lima com 30 famílias de espanhóis, as quais se somaram outras em Potosí até se
completar o número de 200 famílias.

Quando Escalante de Mendoza chega, em 30 de março de 1612, para fundar a cidade de


Jesús de Montes Claros de los Caballeros, já encontrou alguns espanhóis ali assentados.
As primeiras casas daquele povoado se encontravam resguardadas por uma muralha de
norte a sul. Protegia seus habitantes do constante assédio das tribos chiriguanas que
defendiam seus territórios, desde 1583, quando levantaram suas armas contra os
espanhóis. Em janeiro de 1584, na recém fundada a vila de San Miguel de la Laguna,
relativamente próxima de Vallegrande, haviam aniquilado os primeiros colonos.

A cidade de Jesús de Montes Claros de los Caballeros, hoje Villagrande, apresenta as


características construtivas típicas de todas as cidades fundadas pelos colonos espanhóis
na América. Situa sua Plaza de Armas, onde se constrói o Cabildo, a igreja e se
assentam as autoridades correspondentes.

Com o transcurso do tempo, inúmeros chiriguanos optam por depor as armas e se


integram a esta cidade. Esta fusão cultural se complementa quando, durante a guerra de
independência, Vallegrande acolhe os negros fugitivos provenientes de Santa Cruz que
se revoltaram contra seus amos e adotaram a bandeira da pátria, içada em 1809. (Diaz
Oropeza 1997)2

Com a construção da estrada Cochabamba-Santa Cruz, Vallegrande ficou relegada,


perdendo em importância no intercâmbio comercial leste-oeste e como centro
agropecuário. Devido à incorporação de novas terras ao longo da estrada aos grandes
projetos agro-industriais na zona tropical, algumas delas banhadas por vários rios,
durante a Revolução Nacional e auge do petróleo, houve um grande estímulo de forte
corrente migratória desde esta província a estas terras e fundamentalmente para a
planície ‘cruceña’ (Peña 1997).

Hoje em dia apenas está habitada por umas 6000 pessoas devido, entre outras causas, ao
esquecimento dos governos que passam e a falta de fontes de trabalho. Como
conseqüência, as pessoas migraram para cidades de maior prosperidade econômica,
como Santa Cruz, e para outros países vizinhos, como é o caso da Argentina.

2
http://www.hoybolivia.com/turismo/30vallegrande.htm, 2005. (3) http;//comarapa.com/Historia.htm. Consultado em
15 de julho de 2005.

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Atualmente, Vallegrande perde sua aprazibilidade na época das festas datadas
(procissões, carnavais, festas cívicas, etc.) e se enche de gente que, com suas raízes no
povoado vêm, principalmente de Santa Cruz, a estas celebrações. Cobrando nova vida,
se reabrem casas que estiveram fechadas durante boa parte do ano, acolhendo as
pessoas durante estas celebrações.

Como parte de seu atrativo, não se pode menosprezar o interesse que suscita para
nativos e forâneos a existência, nesta região e em outras próximas, de espaços
relacionados com os fatos da guerrilha de 67. Já visitados durante muitos anos, agora
mais intensamente, a partir do achado dos restos do Che e seus companheiros, em 1997.

Bolívia nos anos 1960

A partir de 4 de novembro de 1964 começa, para a Bolívia, outro longo tempo de


poderio militar. As Forças Armadas, regidas pela Doutrina da Segurança Nacional,
ocupam o papel principal. O general de aviação, René Barrientos Ortuño, desenvolve
uma campanha para confundir as massas, sendo os camponeses os principais tributários
desta, por ser a classe de menor desenvolvimento político. Como parte da campanha,
acatou a Lei da Reforma Agrária e, inclusive, propiciou o adiantamento da fase jurídica
para a entrega de títulos concedendo, além disso, aos antigos proprietários enormes
indenizações furtadas do erário nacional. Distancia os trabalhadores urbanos das
decisões políticas, mantendo espaços no gabinete presidencial, sem os defender para
eles (Pérez Guillen 2004).

Os espaços não defendidos foram aproveitados pela aliança camponesa-militar,


tomando corpo a implementação e colaboração das milícias camponesas e dos
regimentos do exército na pacificação das numerosas revoltas operárias.

A projeção militar da “Aliança Para o Progresso”, com o nome de Ação Cívica, teve
como fim inutilizar as forças insurgentes com o apoio dos Estados Unidos que
colaborou no treinamento e equipamento de milhares de recrutas, convertendo os
militares em administradores de uma parte de seus fundos. Através desta política,
adicionalmente se utilizaram os soldados, máquinas e veículos militares visando obras
sociais, apoiando a construção de escolas, caminhos, estradas e pontes.

A presença militar nos campos se tornou habitual para seus habitantes. Os soldados
apareciam como coparticipantes do esforço para o desenvolvimento das zonas rurais
historicamente esquecidas. A cumplicidade se estendia a toda a instituição, de maneira
que Barrientos se aproveitou das circunstâncias e, em meio à efervescência das eleições,
em Cochabamba, em 11 de abril, promulgou o Pacto Anticomunista Militar Camponês.

Apesar da popularidade do presidente nas zonas rurais, o certo é que foram tomadas
decisões que atentavam contra as conquistas mais recentes dos camponeses. Elementos
vinculados a antigos latifundiários ocuparam cargos de autoridade no campo e se, até
então, a entrega de títulos de propriedade da terra havia sido lenta, com Barrientos se
deteve tudo.

No plano internacional, a década dos anos 1960, resultou numa etapa convulsa, tanto
nos países mais desenvolvidos como nos do chamado Terceiro Mundo. Nestes últimos
se vivia a luta contra a colonização. Em pleno século XX, ditava seus destinos que

12
provocavam inconformidade que se traduziram na criação e desenvolvimento de
guerrilhas que pouco a pouco iam estendendo seu campo de ação (Pérez Guillen 2004).

No caso particular da região andina, que até o momento só havia sido utilizada como
zona de passagem ou assentamento temporal de outros focos guerrilheiros, aos finais de
1966 se completa o quadro de relacionamento com movimentos de libertação nacional
no âmbito continental. Ernesto Che Guevara, uma das figuras célebres da Revolução
Cubana, teórico da Guerra de Guerrilhas, conhecedor profundo da realidade imperante
na Latinoamérica, ideólogo antiimperialista, escolheu a Bolívia, por circunstâncias
conjunturais, para iniciar a luta que depois se irradiaria por toda a América.

A zona de Ñancahuazú, de extensas serras, vegetação pouco densa, com um clima


irregular e muito úmido seria o cenário onde os guerrilheiros começariam suas ações. O
Che, combatente de vanguarda, julgava o cenário natural agreste das zonas rurais como
o ideal para a formação do exército popular. Nestas condições, se preservava o núcleo
dirigente da revolução, composto pelos mais radicais e, em torno a ele, as novas forças
que se incorporavam com o desenrolar das práticas de combate. As discretas, porém
persistentes vitórias contra o inimigo que seguiriam o treinamento e reconhecimento da
zona de operações, deveriam propiciar o debilitamento do inimigo e os enfrentamentos
de maior envergadura onde as forças guerrilheiras sairiam airosas.

Nos primeiros meses, os combatentes estabeleceram seu acampamento e receberam


treinamento que, além da preparação militar, incluía o reconhecimento da zona de
operações. O processo inicial de formação da guerrilha perseguia a criação, antes de
tudo, de uma consciência de luta e de moral combativa. Para isso, sua máxima
organização baseava-se na disciplina e na moral do guerrilheiro e na força de seu
próprio exemplo (Pérez Guillen 2004).

Neste contexto sócio-político da Bolívia tem lugar o desenvolvimento das ações da


guerrilha do Che, até que as circunstâncias que rodearam a existência da mesma
levaram aos acontecimentos de outubro de 1967.

Arqueologia de uma busca

Desde o momento em que se produz o aprisionamento do grupo comandado pelo


Comandante Ernesto Che Guevara, na Quebrada del Churo, em 8 de outubro de 1967 e,
na posterior execução dos guerrilheiros, o destino de seus corpos, tendo em conta o
velamento estendido sobre esta manobra, em um ambiente de segredo militar, resultou
em uma incógnita até novembro de 1995.

Transcorreram 28 anos para que, finalmente, se desvelasse o paradeiro do Comandante


da América e a possibilidade real do achado de seus restos. Uma histórica revelação do
general boliviano aposentado, Mario Vargas Salinas, desencadeou a busca dos restos de
Ernesto Che Guevara e de seus companheiros de guerrilha. Suas declarações foram
publicadas pelo New York Times, em 1995, a partir de uma entrevista ao jornalista
norte-americano, John Lee Anderson e, nelas, acentuava-se que o Che havia sido
enterrado em uma fossa comum, na área da pista velha do aeroporto de Vallegrande, o
que se contrapunha com a versão de que seus restos haviam sido incinerados. Mantida
esta versão, já correndo notícias anteriores de outro teor, adquire agora outra dimensão,
tendo em conta as características do testemunhante, um chefe militar de alta patente.

13
Uma vez dada a conhecer a notícia, a Associação de Desaparecidos da Bolívia
(ASOFAMD) solicitou ao governo que se empreendesse a busca. Tal reclamo teve a
resposta esperada e, mediante o Decreto Supremo do presidente da República, se
formou uma comissão encarregada de dar o cumprimento a esta solicitação. Dita
comissão solicita o apoio profissional da Equipe Argentina de Antropologia Forense,
representada, inicialmente, pelo antropólogo Alejandro Incháurregui e, ao qual se
incorporaram depois, seus colegas Patrícia Bernardi e Carlos Somigliana. Estes são
apoiados por soldados, os quais empreendem escavações na antiga pista do aeroporto de
Vallegrande, que começam em princípios de dezembro de 1995.

As escavações se iniciam em uma área da zona sul do aeroporto, atrás de um cemitério,


e se estendem até meados de dezembro. Em apoio a estes trabalhos, se incorpora um
georradar operado por técnicos argentinos, não se obtendo resultados positivos em
relação ao achado do lugar do enterramento do Che. Paralelamente, se localizam os
restos de 3 guerrilheiros na zona da Cañada de Arroyo, a uns 5 km do aeroporto de
Vallegrande, a partir de informação obtida de uma testemunha.

Nesse ínterim, se incorpora a esta investigação o Dr. Jorge González, como


representante dos familiares dos guerrilheiros cubanos caídos na contenda boliviana. Os
labores de prospecção e escavação efetuados entre dezembro de 1995 e fevereiro de
1996 não aportaram os resultados esperados em relação à localização do enterramento
dos restos do Che e de seus companheiros de guerrilha no aeroporto de Vallegrande, nos
prazos esperados. Assim, a equipe argentina se retira do cenário por falta de
financiamento, enquanto se forma uma equipe cubana de investigadores para continuar
a busca.

Uma busca arqueológica. Proposta metodológica.


A possibilidade do achado dos guerrilheiros em Vallegrange esteve fadada pelo tempo
transcorrido desde o momento dos enterramentos e pelas circunstâncias em que estes
foram produzidos. Tanto do ponto de vista político-militar quanto pelas transformações
do entorno que provocaram mudanças na fisionomia do terreno, tais situações fizeram
com que os próprios protagonistas de tais enterramentos e seus possíveis testemunhos
apontassem para desorientações. Não se deve também descartar a dimensão tomada pela
figura do Che em escala internacional, em tempos onde pronunciar seu nome resultava
um perigo no interior das condições sócio-políticas que imperavam na Bolívia. Este
cenário, até os momentos em que se desvela, por Vargas Salinas, o possível lugar do
enterramento e pela não disposição de informação oficial, entorpeceu em alguma
medida a investigação histórica para precisar o possível lugar de enterramento.

Sob tais circunstâncias, não havia dúvidas de que a investigação se fazia complexa. Em
função disso, tomou-se a decisão de se esboçar uma proposta metodológica na qual se
contemplava uma participação multidisciplinar que tornaria factível reduzir a um
mínimo os espaços a investigar em detalhe, para o alcance dos objetivos propostos.

Assim, uma vez que os investigadores cubanos assumiram a responsabilidade do


trabalho, se determina conformar um Comitê de Especialistas com a finalidade de
estabelecer uma metodologia. Nesta, se considerava como ponto de partida os possíveis
“ruídos” que a passagem do tempo e as condições do terreno dos prováveis locais de

14
enterramento podiam originar e que, de alguma maneira, impediram ou entorpeceram os
achados. Um fundamental objetivo estava claro: encontra-los todos.

Para a criação deste Comitê de Especialistas estiveram envolvidas mais de 15


instituições científicas que, por suas características, poderiam embasar elementos
técnicos e pessoal científico. Permitiram conformar uma metodologia de trabalho que
delimitaria as áreas de estudo, partindo do princípio de que a abertura de fossas para a
inumação de cadáveres provoca alterações no terreno que originam anomalias
suscetíveis de serem detectadas.

Por outra parte, a margem da informação fornecida pelo general Vargas Salinas, a
decisão de encontrar todos os guerrilheiros exigia uma minuciosa investigação histórica
que ampliaria a informação acerca dos lugares de enterramento dos diferentes grupos de
guerrilheiros que foram inumados no entorno de Vallegrande e em outras áreas fora
desta região. Este foi um processo chave no êxito da busca.

Como resultado desse esforço, se conformou uma proposta para a busca não só em
Vallegrande, mas também em todos os cenários onde se inumaram guerrilheiros e que
constou de cinco etapas fundamentais, a saber:
• INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA
• ESTUDOS BÁSICOS
• PROSPECÇÃO
• ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA
• IDENTIFICAÇÃO DOS RESTOS HUMANOS
Parte importante do esboço metodológico firmava-se na ‘filosofia’ que o sustentava:
sabendo que não existem métodos diretos para a detecção de restos humanos, o que se
tratava era não de “encontrar uma agulha no palheiro”, pelo contrário, havia que
encontrar o “palheiro” no qual descansava a “agulha”.

Com este objetivo foi que se realizou o trabalho de campo. Expressava o que era
imprescindível: encontrar um lugar no terreno que teria sofrido alterações em sua
estratigrafia por efeitos de alguma escavação. A fase inicial da proposta, por tanto, se
assentava firmemente na investigação histórica.

A investigação histórica
Ao mesmo tempo em que eram empreendidos os trabalhos de prospecção na área do
aeroporto de Vallegrande examina-se com atenção, para se obter mais precisão, os
locais que as versões apontavam como sendo o lugar de enterramento do Comandante
Guevara. Tem-se que levar em conta que além da revelação do general Salinas acerca
do possível local de enterramento, foram compiladas uma centena de versões em
relação ao tal lugar de inumação. Como antes foi dito, o tempo transcorrido e as
mudanças na fisiografia da zona do aeroporto não permitiram que, inclusive, o próprio
Salinas, de novo no lugar dos fatos, pudesse localizar a área precisa em que estes se
produziram. Assim, a investigação histórica esteve dirigida para a busca, análise e
confirmação de informações relacionadas com as circunstâncias e com os lugares em
que se produziram as inumações dos guerrilheiros. Era evidente que se fazia necessário
a localização das pessoas que, de alguma maneira, estiveram relacionadas ou envolvidas
direta ou indiretamente com tais acontecimentos. Isto é, oficiais, soldados, familiares
destes e possíveis testemunhos que aportassem elementos confiáveis acerca dos lugares
de enterramento em Vallegrande e em todo o país.

15
Esta fase inicial da metodologia que tinha antecedentes em abril de 1996, quando já
tinham iniciado as pesquisas, se fazia difícil em razão do obscuro acúmulo de
informação que resultara. Desta maneira, se afinaram os métodos de investigação, nos
quais o cruzamento de informação permitia ir-se decantando versões, como resultado da
avaliação da confiabilidade das fontes em relação ao nível de vinculação com os fatos.
Este processo foi muito útil e os resultados mostraram a sua validez.
No caso particular da fossa do Che existiam fortes indícios, resultantes de várias
conjeturas: tinha sido escavada com um buldôzer que permite mover grandes volumes
de terra; na madrugada, quando se produziu o enterramento estava chovendo; a
profundidade podia ser superior aos dois metros para inumar sete cadáveres. Já se sabia,
mediante documentação obtida, o número de pessoas e os nomes dos que tinham caído
junto com o Che, de maneira que haveria de se confirmar com o achado se, em
realidade, todos haviam sido ali enterrados, pois não se tinha certeza total. Por certo,
existia a possibilidade de que tivessem sido enterrados em pequenos grupos, o que teria
complicado muito mais o trabalho de localização. Como depois se verá, houve plena
coincidência entre os achados e o resultado da investigação histórica.

Os trabalhos de prospecção começaram em janeiro de 1997, em uma área de vinte


hectares do aeroporto, da qual, em função dos resultados da investigação histórica,
ficaram circunscritas doze zonas de 25 x 30m cada uma, somando um total de 9000m!.
Estas, por sua vez, foram estudadas com intervalos de amostragem de um metro,
persistindo com este nível de detalhamento nas zonas 7 – 8 e 9, de acordo com as
fontes.

Os estudos básicos
Nesta fase era necessário adquirir informação acerca das características do terreno.
Visavam clarear respostas que poderiam ser esperadas na etapa seguinte de prospecção
que indicaria alterações sugestivas da existência de uma anterior escavação. Por isto,
propusemos o estudo aprofundado dos solos de Vallegrande. Com tal objetivo,
diferentes especialistas foram incorporando-se a investigação. Contou com um
edafólogo e um físico de solos, os quais aportaram um volume de informação que
permitiu acumular dados sobre a estratigrafia, geologia, geomorfologia e características
físicas dos solos, não somente na área do aeroporto, bem como de outras limítrofes a
esta, permitindo um quadro geral o mais completo possível. A exaustividade dos
estudos levou a uma caracterização geral da área que abarcou uma boa parte da história
geológica de Vallegrande, praticamente os últimos 10.000 anos de sua existência.

Ainda que pareça exagerado, este nível de detalhamento permitiu literalmente


‘tomografar’ os terrenos do Vale e, por conseqüência, entender o comportamento das
leituras das diferentes técnicas utilizadas na fase de prospecção obtidas durante sua
aplicação. Paralelamente, se realizou o levantamento topográfico da área do estudo com
a finalidade de obter o controle rigoroso dos espaços investigados e das escavações
realizadas.

O trabalho de prospecção
Nesta fase do trabalho foi selecionado um conjunto de provas, dentre as quais se
incluiriam:
• Foto aérea
• Técnicas geofísicas

16
• Técnicas geoquímicas
Foram tomadas fotos aéreas de baixa altura empregando-se película normal e
infravermelho. Tinham por finalidade determinar possíveis contrastes no terreno.
Indicaram modificações resultantes de movimentação da terra, tais como: umidade e
temperatura diferenciadas e ou mudanças de cor que poderiam ser detectadas mediantes
tais procedimentos.

Das técnicas geofísicas disponíveis foram aplicadas as de Capametria, Resistividade


Elétrica, Sísmica, Georradar e Condutividade Elétrica. Em todos os casos foram
utilizados equipamentos de ponta, em concordância com o desenvolvimento tecnológico
dos mesmos.

Adicionalmente, foram realizadas provas de Penetrabilidade, mediante o emprego de


trados mecânicos e manuais. Estas poderiam elucidar a respeito do nível maior ou
menor de compactação do terreno, apontando a possibilidade de alteração desta
característica, apesar do tempo transcorrido. Como posteriormente se constatou, estas
perfurações resultaram úteis. No trabalho geral com estas finalidades, através de
perfurações a intervalos de 20m até um máximo de 4m, sempre que possível, foram
obtidas amostragens de solo a profundidade controlada, as quais foram submetidas
posteriormente a estudos físico-químicos.

Um detalhe importante a ressaltar e que resultou vantajoso está relacionado com o


comportamento da estratigrafia do terreno. Apresentou-se bastante homogênea e com a
presença de “fragipán”, uma camada intermediária, pouco eficaz e com características
muito particulares de cor, dureza e permeabilidade, resultando, assim, em um guia
diagnóstico da estratigrafia. Além disso, acrescentaram-se os resultados das leituras dos
equipamentos geofísicos empregados. A profundidade média em que se encontrava dita
camada em toda zona de estudo - entre 0,80 a 1,20m desde a superfície – orientava em
relação a qualquer mudança nos parâmetros geofísicos avaliados. Assim, tendo por base
os dados obtidos das fontes, era de se esperar, por um lado, que o maquinário
empregado para cavar a fossa teria quebrado o ‘fragipán’ e, por outro lado, que os
corpos haviam sido enterrados a uma profundidade superior a 2m. Portanto, tal
alteração poderia ser detectada pelas diferentes técnicas geofísicas. Nisto tudo, levando-
se em conta que a maioria das técnicas empregadas produz emissões de algum sinal
sobre o solo, das quais se espera uma resposta como uma função de suas atribuições. No
caso em estudo, alterações da condição natural do solo pela presença de restos humanos
e pelas mudanças que a abertura de uma fossa possam produzir.

Nenhum detalhe escapou. Foram estudados modelos de escavação realizados com este
tipo de maquinário, nos quais se levou em conta, por exemplo, o trajeto necessário de
entrada e de saída de uma vala, a uma profundidade de mais de 2m, com a finalidade de
informar as possíveis dimensões da fossa e de outras caraterísticas.

Em relação às provas geoquímicas utilizadas nesta investigação, as mesmas têm


demonstrado sua utilidade na investigação arqueológica para a determinação de
acumulações orgânicas e delimitação de áreas de atividades. Dentre as provas, nesta
metodologia, se empregaram duas que estão muito relacionadas com alterações do solo
resultantes da ocupação humana: a determinação de fosfatos e medição do pH.
Incluímos também a determinação da cor como prova adicional, levando em conta as

17
mudanças que poderiam se esperar desta variável, pela remoção das camadas do
terreno. Para tal, se empregou a tabela de cores Munsell.

A análise de fosfatos é uma das técnicas de estudo de solo comumente usada e


suficientemente comprovada em Arqueologia. Ainda que seu emprego tenha sido
basicamente dirigido à agricultura e ramos afins, ao aplicar-se a problemas
arqueológicos tem permitido alcançar informação muito valiosa relacionada com as
atividades realizadas pelo homem. Dado que o fosfato provém do tecido ósseo, das
fezes, de restos de carne e de pele, resulta óbvio sua utilidade como método de
prospecção na detecção da presença de restos cadavéricos. Uma particularidade muito
importante do fósforo, em forma de fosfato, é sua estabilidade química. Isto faz com
que permaneça durante muito tempo no local em que foi depositado. Assim, passados
muitos anos, é possível detectar a presença de fosfatos no solo. Por conseqüência,
permite elucidar a presença de acumulações orgânicas que, certamente, podem
corresponder ou não a restos humanos, dado que a técnica não discrimina a fonte de
procedência dos mesmos. A ulterior escavação determinaria a origem da
‘contaminação’. Nesta investigação se utilizou uma prova semi-quantitativa suscetível
de ser realizada em condições de campo.

Outro parâmetro que se avaliou foi o pH do solo, conceito derivado da necessidade de


quantificar a acidez e a alcalinidade. No caso particular dos solos, tal parâmetro varia de
4 a 9 em condições naturais. O pH é um bom indicador de áreas de atividades nas quais
os restos humanos provocam alterações das características ácido-básicas do solo e
permite determinar as condições de preservação dos materiais depositados. As medições
realizadas foram obtidas com a utilização de um medidor de pH portátil (Barba,
Rodríguez e Córdoba 1991). Relacionado com o pH, a acumulação de animais e de
seres humanos produz alterações nas condições acido-básicas do solo como resultado
dos processos putrefativos nos casos de enterramentos recentes e ainda quando se
encontram em estado esquelético, como uma função da umidade do solo e dos
intercâmbios que ocorrem pelos efeitos da diagênese. A mobilidade iônica e, por
conseqüência, as variações do pH serão uma função da água circulante.

No caso particular deste estudo – com a finalidade de aproveitar todas as


potencialidades dos recursos disponíveis – as amostras de solo tomadas durante as
perfurações permitiram caracterizar, mediante a análise das mesmas, os padrões de
fosfato e do pH na área em estudo.

Afortunadamente, os solos de Villagrande são muito pobres em fosfato e se


caracterizam por valores de pH ligeiramente ácidos, próximos da neutralidade. Isto
certamente resultava em uma vantagem, pois, a acumulação de restos cadavéricos
necessariamente produziria valores contrastantes de fosfatos que, mediante a análise das
amostras de solo extraídas durante as perfurações como as das planificadas a
profundidade controlada, poderiam resultar diagnósticas da presença dos guerrilheiros.

A escavação arqueológica
Com o avanço dos estudos se pôde ir planejando a tática de trabalho em relação às
escavações, uma vez que a análise cruzada da informação obtida com os métodos de
prospecção apontara possíveis zonas onde poderia ser positiva a presença de
enterramentos. Para isso, dispunha-se do instrumental necessário para proceder ao

18
trabalho de exumação e controle das evidências, preparação de planos, de registro
fotográfico e de embalagem dos restos.

A identificação dos restos humanos


Seria a etapa conclusiva. Estava garantida, em primeiro lugar, porque se dispunha de
especialistas e de técnicas adequadas para a indubitável identificação de cada um dos
guerrilheiros. Além disso, dispunha-se de fichas pessoais com dados dos guerrilheiros,
enriquecidas com informações de detalhes particulares de cada um, fornecidos por seus
familiares e parentes.

Resultados da aplicação da metodologia proposta


Em 28 de junho de 1997, as 09h30min, sob uma pertinaz chuva e baixa temperatura, se
produziu o achado que, posteriormente, comprovou-se como sendo um enterro coletivo
e que se tratava do grupo do Comandante Ernesto Che Guevara. A fossa se localizava
aproximadamente a uns 50m de distância do muro posterior do cemitério velho do
povoado, sobre a antiga pista do aeroporto de Villagrande.

Ainda que as poucas linhas do parágrafo anterior sintetizem o resultado, na realidade,


este foi possível graças ao empenho de um qualificado grupo de especialistas. Alguns,
diretamente nos trabalhos de campo e outros na ‘retaguarda’, reunindo-se e discutindo,
em uma relação biunívoca, toda a informação que se ia obtendo. Este foi, em verdade,
um trabalho multidisciplinar que, em vista do tempo, teria sido difícil não alcançar
resultados positivos, pelas minúcias de sua abordagem e com boa dose de empenho para
se alcançar o objetivo estabelecido desde o início. Praticamente, não ficava de fora
nenhum resquício que poderia impedir o achado.

Antes de tudo, o gigantesco volume de informação histórica e seu processamento


tornaram-se cruciais não só pela imediata localização da fossa, senão para a localização
que se efetuou nesta cidade dos enterramentos posteriores. Além desta cidade, em áreas
também limítrofes a ela e em outras mais distantes, levando em conta que os caídos iam
sendo enterrados à medida que os guerrilheiros marchavam. Para o caso de Vallegrande,
os combatentes foram emboscados na Quebrada del Churo e em zonas relativamente
próximas. Eram levados para serem inumados na área do Regimento Pando, destacado
para esta cidade, que por ser zona militar restringia o acesso e facilitava o encobrimento
de atividades deste tipo que se faziam geralmente de madrugada. Esta prática marca seu
começo a partir da eliminação do grupo de Vado del Yeso, em agosto de 1967.

No caso particular do achado na pista antiga, que correspondia ao grupo em que se


encontravam o Che e outros seis companheiros, confirmou-se a informação que já se
dispunha anteriormente acerca da localização da fossa no entorno da pista velha do
aeroporto. Tal situação foi reforçada com a declaração posterior do general Vargas
Salinas, a qual permitiu, inclusive, precisar a forma de abordar a escavação.

Os estudos básicos aportaram informação chave sobre as características físico-


mecânicas dos solos de Villagrande. Permitiram obter dados de vital importância em
relação à avaliação posterior das respostas obtidas com os equipamentos geofísicos.
Podiam ser explicadas, sobre tudo naqueles casos de algumas escavações preliminares,
como sendo de testemunhos e também sugeridas pelos especialistas. Foram realizados
em vários pontos da pista, como controle de qualidade e de padrões específicos que se
foram apresentando.

19
A análise da fotografia aérea não permitiu precisar áreas anômalas que sugeriria algum
movimento de terra. Há que se ter presente que o nível de deteriorização do terreno, a
formação de boçoroca por ações erosivas intensas em muitas zonas, o tipo e a pobre
presença de vegetação, não permitiram a observação de contrastes.

Já sobre o terreno, o conjunto de técnicas geofísicas mostrou, na prática, a efetividade


de cada uma. Fundamentalmente o georradar e as diferentes variações dos métodos
elétricos resultaram determinantes na precisão de anomalias sugestivas. No primeiro
caso, usaram-se as antenas correspondentes para se conseguir a maior penetrabilidade
do sinal. No segundo, se utilizaram os diferentes ajustes que permitiram ganhar
informação, tanto vertical como horizontalmente. Os métodos Wenner e bipolar foram
muito úteis.

De um total de doze setores resultantes da avaliação na área do aeroporto de


Vallegrande, como antes apontado, os numerados como 7 – 8 e 9 apresentaram as
maiores possibilidades, de acordo com a análise dos resultados do cruzamento da
informação oriunda das técnicas geofísicas. A escolha de um intervalo de amostragem
de 1m, com separação de transects também de 1m, reduzia ao mínimo a possibilidade
de exclusão. Isto é, não se descartou a existência de enterramentos individuais, pela qual
se previu o emprego deste procedimento e da redução dos intervalos de amostragem
quando se fez necessário.

O conhecimento da possível profundidade onde poderia estar os restos esqueléticos e as


características de dureza do terreno permitiu ganhar tempo na comprovação das
anomalias detectadas no transcorrer do estudo. Determinadas condições sócio-políticas
que se apresentavam na Bolívia, nestes momentos, tais como a mudança de governo que
se avizinhava e a possibilidade de que o governo entrante interromperia os labores da
busca, recomendavam acelerar as escavações. A este respeito, convém destacar, em
detalhes, a justificação do proceder posterior.

Em maio de 1997, Aleyda Guevara, filha do Comandante Guerrilheiro, recebe uma


missiva de Gustavo Villoldo, chefe dos ‘Team CIA’ da época, na qual se oferecia para
colaborar, por considerar-se um dos protagonistas e, segundo ele, porque os cubanos
haviam demonstrado que careciam de um conhecimento exato do lugar onde poriam em
prática suas investigações e sua falta de eficiência. Esta proposta não recebeu resposta,
pois, conhecendo o personagem, o que se podia esperar era confusão e a intenção de
deter a busca ou retardar os trabalhos até que tomasse posse Banzer, dado que a situação
eleitoral pressagiava o triunfo do ex-ditador. Isto podia ocasionar que o Decreto
Presidencial vigente que autorizava os trabalhos perdesse sua validez. Villoldo, então,
escreve para as autoridades de La Paz.

Diante destas circunstâncias, depois das gestões correspondentes, em 19 de maio se fez


valer o Decreto Presidencial de novembro de 1995 que anulou um decreto emitido pelas
autoridades municipais de Vallegrande, que havia interrompido as investigações por um
espaço de quase dois meses. O consenso entre Cuba e Bolívia, com respeito às
investigações, concedia uma margem de tempo para intensificar a busca voltando os
esforços para as áreas onde os resultados da análise aportavam as maiores possibilidade
de achado. De outra parte, o governo boliviano adverte que, se em um tempo limite não
se produzisse o achado, recorreria a Gustavo Villoldo (Pérez Guillen 2004).

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Sob esta pressão e com este ultimato nos vimos obrigados a ganhar tempo e, por isso, se
empregou uma retroescavadeira que, ainda que metodologicamente não fosse o
adequado, na forma em que se utilizou minimizou ao máximo possíveis danos nos
restos ósseos que poderiam aparecer. O proceder neste caso consistiu na vigilância
estrita da velocidade e da profundidade que fincava a pá extratora. Esta foi empregada
em modo de raspador, permitindo que só se insertaria seus dentes até 10cm de
profundidade e a retração da mesma se fazia muito lentamente. Nos momentos iniciais,
isto é, nos primeiros 150cm, a máquina foi utilizada em condições normais. A partir daí,
procedia-se como acima explicado e sob a vigilância de, ao menos, um dos
especialistas.

Assim, uma vez que se avistaram os primeiros restos, eliminou-se o uso de tal máquina
e se procedeu com os métodos usuais da Arqueologia. Uma característica que tornava
difícil a escavação era a dureza do terreno. Salientando que, de acordo com as
informações obtidas durante a investigação histórica, na madrugada em que se produziu
o enterramento, chovia, o que implicou que os restos esqueléticos praticamente se
encontravam cimentados. Por isso, empregaram-se martelos e formões, ao menos para
delimitar os restos que progressivamente foram sendo encontrados. Uma vez ampliada a
fossa para poder facilitar os labores - a preservação dos restos e a comprovada a
existência de sete indivíduos -, esta foi quadriculada mediante uma grade de 3m x 4m,
conformando-se 12 quadrículas de 1m x 1m para o controle e o registro das evidências.
Posteriormente, continuou-se empregando o instrumental próprio da Arqueologia
(brochas, pincéis, instrumental estomatológico, etc.) e se estabeleceu um nível zero
convencional a partir do qual se expressaram as profundidades. Com o avanço das
escavações, se pôde descobrir o piso original da fossa, que se encontrava a 1,93m de
profundidade.

Uma vez expostos e individualizados os restos esqueléticos se teve uma visão


tafonômica de como ocorreu o enterramento. De acordo com a posição dos corpos
encontrava-se correspondência com a versão de que haviam sido arrojados desde uma
camionete, mediante um giro dos mesmos, colocando-se a camionete em uma posição
de retrocesso que correspondia aproximadamente com a borda norte da escavação.

Os restos esqueléticos de quatro indivíduos, numerados desde quatro até sete,


encontravam-se uns sobre os outros, ficando individualizados os correspondentes aos
três primeiros, o que facilitou os labores da escavação nestes últimos casos.

Tendo em vista que havia coincidência entre a informação obtida acerca da composição
do grupo que foi enterrado na madrugada de 10 de outubro de 1967 e os restos
encontrados na fossa existiam altas possibilidades de que efetivamente nela se
encontrava o Che. Isto é, tratava-se de um ‘grupo fechado’ o que facilitou o processo
posterior de identificação.

As escavações foram realizadas por uma equipe de cubanos e por três colegas
argentinos que participaram nas atividades iniciais de busca, com larga experiência
neste tipo de trabalhos.

Em relação aos estudos geoquímicos, estes mostraram sua validez em relação à


localização de acumulações orgânicas. Durante os trabalhos gerais de prospecção,

21
quando se fizeram as perfurações com trado mecânico, foram tomadas amostras de solo
para serem analisadas e, pelos resultados das análises, algumas escavações realizadas se
justificaram pela presença de altas concentrações de fosfatos a determinada
profundidade. Ainda que nestes casos não correspondessem aos restos dos guerrilheiros,
todas as análises que se efetuaram puderam explicar a fonte da ‘contaminação’.

No total se realizaram mais de 1.200 perfurações na área do aeroporto e umas 1.300


determinações de fosfatos. Uma dificuldade que se apresentou e que, em alguma
medida, impediu de se detectar a fossa, utilizando a geoquímica, foi a impossibilidade
se conseguir penetrar mais profundamente, tanto com o trado mecânico quanto o
manual. Este procedimento foi empregado como método de avanço – pois se perfurou
também a intervalos de um metro – na extremidade paralela ao talude da pista velha –
zona provável do enterramento. Os trados utilizados se desgastavam e se aguçavam
como um lápis devido ao poder erosivo do solo, o que impedia que penetrassem, apesar
da colocação de peso sobre o motor que impulsionava a rotação (dois ou três homens).
Muito menos nesta área se pôde tentar penetrar com o trado manual. Comprovou-se que
nas zonas onde a Equipe Argentina de Antropologia Forense havia realizado escavações
anteriores, não se apresentou dificuldade com a penetrabilidade dos trados e foi possível
precisar a localização das mesmas, discriminando estas áreas na pista.

Um estudo posterior à exumação dos restos permitiu comprovar que não tendo havido
este impedimento, mediante estudos geoquímicos teria sido factível o achado tempos
antes, pois várias perfurações coincidiram com o lugar do enterramento, porém, estas só
alcançaram 0,90m de profundidade.

Não obstante, uma vez realizada a exumação dos restos do grupo do Che, levou-se a
cabo uma amostragem do solo da fossa, a intervalos de 0,25cm, em uma área de 12m!
que correspondia à mesma. Foram obtidas 208 amostras. Foram submetidas a analise de
fosfatos, de pH e de cor de solo. Permitiu corroborar que, potencialmente, era possível
localizar os restos empregando estas provas. Os resultados obtidos foram plotados em
mapas de isolinhas que, consideramos, resultarão em valor para futuros estudos, pois,
expressam o padrão de contaminação que produz uma fossa coletiva e a dinâmica da
mesma. (Fig. 1, 2, 3, 4, 5 e 6).

22
Fig. 1 – Emprego do georradar que, junto aos métodos elétricos, resultou em técnicas
úteis na determinação de anomalias que precisaram os lugares de enterramento.

Fig. 2 – Anomalia detectada mediante georradar que indicou a possível presença de um


enterramento, o qual foi confirmado com a escavação posterior.

23
Fig. 3 – Esqueleto correspondente a um dos guerrilheiros. Esta foi a evidência detectada
pelo georradar que ilustra a figura anterior.

Fig. 4 – Mapa de anomalias de concentração de fosfatos. As elevações correspondem a


altas concentrações. Pode-se apreciar como estas se solapam em relação ao lugar onde
jaz o corpo.

24
Fig. 5 – Ilustram-se na área deprimida da figura os baixos valores de pH
correspondentes à localização do corpo. Deve levar-se em conta o regime hídrico do
solo que, em determinadas ocasiões, não expressa um padrão tão definido.

Fig. 6 – Mapa da cor do solo e que também corresponde a um enterramento individual.


Para poder realizá-lo, levou-se a cabo uma conversão da expressão alfanumérica de
acordo com os registros da Carta de Cor Munsell, expressando as cores através de
números.

25
Destas determinações pode-se constatar que:
1. Os altos níveis de fosfatos se circunscreveram a área que foi ocupada pelos corpos,
entretanto, fora da beira da ‘contaminação’ intensa. As mudanças nas leituras permitem
circunscrever com maior precisão a área de ocupação, o que resulta em vantagem,
devido a que facilita a localização dos enterramentos. Isto corrobora a prática
arqueológica em relação à imobilidade dos fosfatos.
2. Com relação ao pH, apreciou-se um gradiente nos valores como uma função do
deslocamento dos líquidos orgânicos e os intercâmbios que têm lugar com o contexto,
na dependência do regime hídrico circulante. No caso que nos ocupa, se destaca que no
espaço onde descansavam os corpos produz-se os valores mínimos de pH. Entretanto,
um gradiente que aumenta em direção a periferia expressa a mobilidade dos íons
responsáveis pelas variações neste parâmetro.
3. No que diz respeito à cor, existe bastante uniformidade no piso da fossa. Somente
algumas variações de tom se apresentam, provavelmente, pela mistura originada no
atuar da máquina durante o processo de ruptura do terreno para a inumação dos
cadáveres; pela presença dos próprios corpos com os aportes correspondentes ao
processo de deteriorização dos mesmos; pelos materiais associados a eles e,
posteriormente, ao produzir-se o material para cobri-los. Não foram apreciadas cores
contrastantes que definam um padrão característico digno de ser levado em conta como
elemento diagnóstico. Nos lugares onde os horizontes estratigráficos resultam mais
complexos, a cor do solo tem mostrado seu valor como coadjuvante neste complexo de
provas que se aplicou segundo experiências do autor.

Detivemos-nos no aprofundamento destes detalhes devido ao fato de que o ‘padrão de


contaminação’ originado pela acumulação de restos humanos é um fenômeno de
importância relevante para sua localização e, portanto, pode servir de referência, tanto
para a busca de enterramentos individuais quanto para coletivos.

Aqui também incluímos gráficos de enterramentos procedentes de outras áreas,


próximas da pista. Um deles expressa o comportamento dos fosfatos e do pH em outro
enterramento coletivo, porém, de três indivíduos e, em outro, o padrão de um
enterramento individual. No primeiro, é possível observar uma distorção no padrão que
caracteriza o pH, por efeitos de água de infiltração procedente de uma das escavações
realizadas na primeira etapa da busca, contígua e muito próxima a que comentamos, que
ficou aberta e que se inundou. Este excesso de umidade provocou uma mobilização
iônica adicional que modificou a ‘mancha’ do pH que identificaria as alterações
produzidas por cadáveres. Dentro da fossa que analisamos poderá ser observado que, ao
menos, em um dos indivíduos tal comportamento é esperado, ao menos neste contexto.

Por sua parte, na fossa individual, a evidência geoquímica é representativa do padrão


característico de um indivíduo depositado em decúbito dorsal direito que mostra o
potencial para ser detectado em um contexto. Leve-se em conta que, sob estas condições
– enterrado diretamente sobre o terreno – dispõe-se ao menos em direção a região
proximal do corpo, de uns 45cm de solo contaminado, suscetível de aportar resultados
positivos nos trabalhos de projeção geoquímica quando são tomadas amostras desde a
superfície até uma profundidade controlada.

Como foi comprovado na fossa coletiva, naquela em que descansavam três corpos, uma
vez produzida a exumação, foi realizada uma sondagem com trado manual no lugar

26
correspondente ao espaço onde descansava a zona torácica de um dos indivíduos,
tomando-se amostras a intervalos de 10cm. Submetidas as mesmas a análise de fosfatos,
pôde-se precisar que, quando as condições de drenagem são adequadas, dispõe-se de
uma profundidade adicional de 40cm para encontrar altos valores de fosfatos
representativos da presença de uma acumulação orgânica relacionada a efeitos
prospectivos.

Deve aclarar-se que as determinações geoquímicas que realizamos nesta proposta


metodológica resultaram válidas em enterramentos contemporâneos, com uma
antigüidade de 30 anos em solos com características específicas. Isto é, são válidas em
si mesmas para estes fins. Porém, ao menos para o caso do pH e o da cor, deve levar-se
em conta: as dinâmicas particulares dos contextos de enterramento, os processos de
intercâmbio como uma função do tempo transcorrido, as circunstâncias dos
enterramentos, possíveis materiais associados e regime hídrico, entre outros. Sem
dúvida, os fosfatos apresentam um comportamento mais universal e, ainda naqueles
solos onde estes são abundantes, a presença de restos humanos pode ser diagnosticada,
passados milhares de anos.

Em relação à exumação, uma vez que foram individualizados na fossa, foram tomadas
fotos e vídeos do plano geral do enterramento. Posteriormente, procedeu-se a retirada de
cada um, embalando os restos por região anatômica. Levados ao laboratório
procederam-se a lavagem e restauração do material ósseo, quando secos, trabalhando
sempre com um só indivíduo por vez. Nesta etapa final de exumação e posterior
trabalho de identificação, participaram três especialistas cubanos e três argentinos.

O processo de identificação seguiu, em uma primeira etapa, com a caracterização racial


(tecnicamente falando) do grupo a identificar, partindo do conhecimento, da
composição e por tratar-se de um ‘grupo fechado’. Isto é, do que se conhecia e quem
eram, a partir da informação obtida na investigação histórica. O mesmo constava de sete
indivíduos: quatro cubanos, dois bolivianos e um peruano. Isto facilitava a
identificação, dado que aplicando o método de descarte ou de exclusão, podia-se separar
um grupo de quatro, em que ficariam localizados os cubanos, e outro de três com os
demais. Neste último caso, foi possível elucidar o padrão ameríndio que não seria
possível no grupo cubano, a partir de características visualizadas no crânio, entre outras,
a do ‘dente em pá’. Posteriormente, o estudo antropológico no qual se determina a
tetralogia identificativa – idade, sexo, raça e estatura – aportou dados de importância
neste processo. Somaram-se aqueles obtidos mediante o estudo de dentigramas,
radiografias dentais e demais informações contidas nas fichas individuais que se
dispunha. Também foram aplicadas técnicas especiais, tais como as de superposição
craneofotográfica e DNA que possibilitaram a indubitável identificação de cada um dos
componentes deste grupo.

Da mesma maneira como foi aqui descrito, procedeu-se nas diferentes zonas onde a
investigação histórica apontava a presença de enterramentos de guerrilheiros.

Conclusões
Antes de tudo, resulta importante destacar que para além do resultado obtido, que
demonstrou a eficiência do modelo metodológico proposto para o cumprimento dos
objetivos – o achado dos componentes da guerrilha –, o êxito da investigação descansou
no labor multidisciplinar. Este pode ser considerado como um exemplo de trabalho em

27
equipe. Neste, em nenhum momento, se destacou o protagonismo pessoal e, no qual,
cada um assumiu o papel que foi necessário no curso da investigação. Precisamente um
logro importante resultou da maneira em que cada um foi ativo colaborador dos demais
quando sua especialidade era requerida. Constituiu uma via de aprendizagem.

Em nossa opinião, as cinco etapas em que esta proposta foi concebida mostram um
nível de generalização que as tornam suscetíveis de serem aplicadas em outros
contextos e, certamente, de ser melhorada, partindo das experiências acumuladas no
transcurso de sua aplicação.

Uma vez mais fica demonstrada a eficiência da Arqueologia como ciência, na qual, a
interdisciplinaridade joga um papel fundamental no estudo de atividades humanas, tais
como, as relacionadas com a inumação de cadáveres, tanto em jazigos coletivos quanto
individuais. Este proceder foi empregado na busca de todos os guerrilheiros, não só em
Vallegrande, senão também em outras localidades da Bolívia.

AGRADECIMENTOS

O autor deseja sublinhar seu agradecimento a Dra. Maria del Carmen Ariet, pela revisão
do manuscrito e apropriadas sugestões e a Lic. Daily Pérez Guillén, por seu apoio
bibliográfico, ambas do Centro de Estudos Che Guevara. Ao engenheiro geofísico Noel
Pérez por ceder-nos a imagem de georradar que ilustra este trabalho.

BIBLIOGRAFIA

Díaz de Oropeza, C. (1997): Enfoques. Revista mensual (julio) pp. 1-16. Bolivia

Aguilar Peña, P. (1997): Vallegrande: Algo de historia. Inédito. Pp.1-8.

Pérez Guillén, D. (2004): El vano intento de esconder la luz. Tesis de Licenciatura, Universidad
de La Habana.

Barba, L.; R. Rodríguez y J.L. Córdoba (1991): Manual de técnicas microquímicas de campo
para la arqueología. Cuadernos de Investigación. IIA, UNAM, México.

28
Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário político-
simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)
Rodrigo Navarrete e Ana Maria López

O tema dos grafites e sua conexão com a Arqueologia. As manifestações rupestres são
tão antigas quanto à história humana e, no caso dos petróglifos e pinturas rupestres
americanas, testemunhos inigualáveis de nossa história indígena. De fato, a intervenção
informal e espontânea sobre edificações e muros – o equivalente ao moderno grafite –
se conhece desde o Antigo Egito e a Grécia. Porém, o grafite como fenômeno urbano é
definitivamente moderno. Ao mesmo tempo, é um fenômeno típico do capitalismo
tardio, ou para outros, pós-moderno, a partir da década dos anos 1970, nos grandes
centros urbanos do mundo (Silva Téllez, 1987).

Estas inscrições que aparecem nas grandes cidades de diferentes países, começaram a
constituírem-se em vozes de tendências ideológicas, de comportamentos sociais,
artísticos, políticos e filosóficos, não permitidos pelos canais oficiais. Em Nova York,
por exemplo, aparecem na década de 1960. Enquanto que, na América Latina, o grafite
e o mural político brotam nas paredes de nossas cidades. Utilizando o metrô de Nova
York como lousa ambulante ou as paredes de Santiago do Chile, grupos de jovens
subvertem a ordem, inscrevem seus nomes, projetam seu mundo político utilizando todo
o tipo de artimanhas. Enfrentam a mais rígida perseguição empreendida pelos aparelhos
político-repressivos ou pelas autoridades de transportes públicos (Silva Téllez, s/f). O
grafite, neste sentido, se incorpora na paisagem pública como artefato e como
mensagem transgressora dos espaços públicos e sua ordem. Em essência, representam
artefatos e mensagens políticas profundamente identificadas, na América Latina, como
mecanismos de difusão e de protesto contra aos aparelhos repressivos do Estado.
Ocorrem tanto em regimes ditatoriais quanto em sistemas democráticos, como o
venezuelano, o qual reprimiu sistematicamente a dissidência política, desde seus inícios,
na época dos anos 1970 (James Quero, 2003; Navarrete, 2004).

O grafite, como meio de comunicação visual, espontâneo, efêmero, impessoal,


clandestino e alternativo tem se convertido em uma das expressões estéticas, políticas,
em um dos artefatos culturais mais potentes e polivocais de nossas culturas urbanas
ocidentais. Sua ação comunicativa e transgressora permite recuperar espaços de
expressão e de resistência passiva ou ativa, frente a permanente repressão ideológica do
sistema. Assim mesmo, constitui um espaço de comunicação alternativa, onde se
expressa a memória urbana. Ventila publicamente, desta maneira, as paixões, conflitos e
rivalidades conformadoras de nossas contínuas mudanças políticas e sociais. Nos
últimos tempos, vem se caracterizando como um meio de comunicação aberto, de valor
estético e identitário para certos grupos sociais, basicamente de jovens (García Canclini,
2001; Navarrete, 2005).

Um dos espaços prediletos de afloramento dessa força interna dos agentes sociais são os
espaços carcerários. Em seu duplo caráter de públicos e privados, converteram-se em
espaços idôneos de comunicação indireta ou transferida por entre os indivíduos. De
fato, os espaços internos das celas convertem-se em uma superfície branca, vazia,
imagem de ‘página aberta’, que convidam o recluso – frequentemente sem outra
alternativa comunicacional direta – a expressar privada, porém publicamente, suas
mensagens, ansiedades e necessidades políticas, sociais, raciais, sexuais e de gênero.

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Uma breve história da importância histórico-política do Quartel San Carlos
O Quartel San Carlos localiza-se na denominada Planície de la Trinidad – zona noroeste
da cidade de Caracas. Desde sua construção, durante todo o século XIX e primeira
metade do século XX, funcionou como Casa de Milícias, com a finalidade de cumprir
com as operações básicas de Quartel militar, ponto de defesa e resguardo, reduto
estratégico-militar e depósito de armas durante grande parte do século XX. Denominou-
se de San Carlos, em honra a Carlos III, porém, logo foi chamado de Quartel de
Veteranos (IPC, 2000). A esta estrutura associou-se a de estratégia de controle e de
defesa militar que o Brigadeiro das Forças Reais, Agustín Cramer, criou com o duplo
propósito de fortalecer o domínio do comércio europeu na capital venezuelana e, por
sua vez, de começar a afrontar a conjuntura de crise política e de insurreição anti-
colonialista que assomava nos finais do século XVIII nesta colônia. Parte deste mesmo
plano formava os fortins de San Rafael e San Andrés, na Cidade Bolívar, o fortim de
Puerto Cabello, os fortins e o Caminho Real Caracas-La Guaira e os fortins da Barra de
Maracaibo (Amodio et al. 1997).

É uma estrutura, quadrangular originalmente, construída em taipa, com um pátio


interno, rodeado de corredores e de galerias, com quartos separados ao menos em três
alas – oeste, leste e sul – e com uma fonte no setor final norte do pátio central. Suas
obras, projetadas por Fermín de la Rueda, chefe do Batalhão de Engenheiros da
Província de Venezuela, se iniciaram em 1795 e culminaram em 1812(González 1998)

Foto 01: El Cuartel San Carlos representa un hito en la historia colonial y republicana de la ciudad de
Caracas y un espacio de acción y coacción, y testigo inmueble de las convulsiones de la historia
venezolana (Fuente: IPC 2000, pp.27-28)

É a partir do chamado período democrático venezuelano (1958-1999), depois da


ditadura de Marcos Pérez Jiménez (1948-1958), que o Quartel San Carlos converteu-se
em um local de retenção de presos militares, políticos e, em menor escala, comuns até o
final do século XX. Depois da queda da ditadura de Pérez Jiménez, em 1958, formou-se
uma coalizão de governo integrada pelos partidos de direita, Ação Democrática (AD),

30
União Republicana Democrática (URD) e Comitê de Organização Política Independente
(COPEI), excluindo em suas reuniões iniciais o Partido Comunista Venezuelano (PCV),
o qual jogou um ativo papel na derrocada da ditadura. Esta exclusão das forças de
esquerda, do novo poder democrático, gerou uma nova fase de tensões e de sublevações
que desembocaram na conformação de forças de guerrilha, armadas contra os governos
de direita, os quais atacaram agressivamente estes grupos subversivos. Este período de
enfrentamento se iniciou com Betancourt, intensificou-se profundamente durante o
governo de Leoni e, finalmente, foi abruptamente cortado durante o governo de Caldera,
com a detenção dos principais líderes, com a dissolução de suas unidades táticas rurais e
urbanas. Seguiu-se com a militarização da Universidade Central da Venezuela, em
1970. Esta se destacava, em grande medida, como centro de operações clandestinas, na
região da capital, de alguns daqueles grupos – e com a assinatura de um pacto de
pacificação, ao qual foram acolhidos o Partido Comunista da Venezuela (PCV) e o
Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), mas, não outros, como o Movimento ao
Socialismo (MAS) (Cadena Capriles, 2000).

Foto 02: Vista al patio interno desde una celda (Fotografía: Ezequiel Korin)

Foi assim que o Quartel San Carlos converteu-se em centro de reclusão de presos
políticos e, em seus recintos, estiveram retidos e foram torturados numerosos membros
das forças armadas guerrilheiras urbanas e rurais que enfrentaram os governos de
Rómulo Betancourt (1959-1964), Raúl Leoni (1964-1969) e Rafael Caldera (1969-
1974). Dentre tais forças guerrilheiras, destacaram-se as FALN (Forças Armadas de
Libertação Nacional) e as UTC (Unidades Táticas de Combate). Em 1961, criou-se o
Destacamento Misto de Polícia Militar n° 1, assentando-se o Departamento de
Processados Militares de Caracas no Quartel San Carlos, por decisão do presidente
Rómulo Betancourt. É durante este período, paradoxalmente denominado da
democracia, que o Quartel recebe estruturalmente a maior quantidade de intervenções
arquitetônicas associadas ao seu novo papel de presídio. Desenvolveram-se
improvisadas inserções, agregações, reformas e remodelações que não somente
mudaram estruturalmente o edifício. De fato, em termos de sua relação com o entorno
urbano e, certamente, de sua percepção como espaço e representação material, evolui
para um âmbito mais segmentado, com recintos cada vez mais restringidos e áreas de
uso exclusivo para a reclusão. No ano de 1961, depois da criação do Departamento de
Processados Militares de Caracas, foram transferidos ao Quartel San Carlos um grupo

31
de oficiais das Forças Armadas Nacionais. Estes se encontravam presos em diferentes
cárceres do país, por estarem comprometidos nas tentativas do golpe de estado de 22 de
julho e 7 de setembro de 1958, em Caracas. Assim como, no golpe denominado de
Barcelonazo, por ter sido produzido na cidade de Barcelona, em 26 de junho de 1961.
Outros eventos de insurreição cívico-militar regionais que alimentaram o ingresso de
presos políticos – já não necessariamente militares senão que também civis – foram o
Carupanazo e o Porteñazo, os quais combinaram forças militares e grupos de esquerda
com a intenção de derrubar o presidente Rómulo Betancourt, no interior do país.
Durante este governo, produz-se, em 5 de fevereiro de 1967, uma fuga massiva do
Quartel, de um grande número de líderes destes movimentos.

Devido à continuidade dos movimentos subversivos durante a década dos anos 1970,
este Quartel continuou sendo prisão política de uma imensa quantidade de líderes
revolucionários que ainda desenvolviam estratégias subversivas durante os governos,
tais como o de Caldera ou de Carlos Andrés Pérez (1974-1979). Um evento importante
na história democrática venezuelana e que ainda joga um papel central na memória
política da nação e da cidade de Caracas. Corresponde a fuga dos líderes políticos
Pompeyo Márquez, Teodoro Petkoff e Guillermo García Ponce, líderes comunistas
retidos, por rebelião militar, em 5 de fevereiro de 1967, e, posteriormente, a fuga de 23
outros processados de esquerda em 15 de janeiro de 1975 (IPC, 2000; García Ponce,
1968). Também estiveram presos neste cárcere, pela explosão de um avião cubano, em
1976, outros dirigentes subversivos, dois dos quais escaparam também em 8 de agosto
de 1982.

Sem dúvida, um dos fatos mais importantes para nosso caso de estudo é a reclusão,
nestes espaços, dos processados militares pela rebelião de 1992. Entre estes dirigentes
reclusos nos espaços do quartel, entre outros, se conta o atual presidente da República
Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez. Entre 3 e 4 de fevereiro de 1992, uma
tentativa de golpe militar – denominada de Operação Zamora – mobilizou-se contra o
governo do então presidente da República, Carlos Andrés Pérez. O movimento
bolivariano (MBR 200), agrupação fundada clandestinamente, em 1983, no seio das
Forças Armadas, pelos então capitães do exército, Hugo Chávez Frías, Luis Felipe
Acosta Carlés e Jesus Urdanete Hernández, os quais atuavam como instrutores da
Academia Militar, se responsabilizou pela ação. Devido ao fato de que, entre seus
membros, figuravam oficiais de graduação média, tais como comandantes, majores,
capitães, tenentes e tenentes-coronéis, o dito movimento ficou conhecido como
COMACATES (Rodrigúez, 2000).

Os oficiais golpistas apresentavam uma grande insatisfação com relação à gestão


política e econômica do presidente Pérez, com a crescente corrupção e desigualdade
social que a etapa democrática havia gerado no país. Representavam o
descontentamento dos setores médios e baixos das Forças Armadas em função dos fatos
de corrupção verificados nos altos mandatários militares, da utilização das Forças
Armadas, em particular o Exército e a Guarda Nacional, na repressão ao levante popular
e aos distúrbios do dia 27 de fevereiro de 1989 – denominados de Caracazo – e de
outras razões políticas. A rendição dos insurgentes começou, uma vez que as tropas
leais ao presidente retomaram o Palácio Miraflores, cerca do meio dia do dia 4, quando
se entregou o líder da operação, o comandante Hugo Chávez Frías. O levante, que se

32
havia manifestado em outras cidades importantes como Maracaibo, Maracay e
Valencia, em vista do fracasso das operações em Caracas, também depôs as armas. O
comandante Chávez e os oficiais de maior patente envolvidos na insurreição foram
recluídos no Quartel San Carlos de Caracas e, em seguida, no Cárcere de Yare, nos
Valles del Tuy. Com o tempo, as causas de muitos dos militares foram sobrestadas,
outros deram baixa e outros indultados pelo presidente Caldera, em 1994, sob a
condição de solicitar dispensa das Forças Armadas, tal como sucedeu com os oficiais
que dirigiram a operação (Rodríguez, 2000).

Durante os últimos anos, o Quartel San Carlos tem sido foco de múltiplos projetos
culturais, nenhum dos quais tem sido levado a termo feliz. Intentam restaurar a
edificação como espaço para a cultura, as artes, a educação e, por conseqüência,
simbolizar a liberdade e a democratização cultural. Declarado Monumento Histórico
Nacional, em 6 de outubro de 1986, o Quartel San Carlos tem sido proposto como local
do Museu Nacional de História (1986), do Centro Nacional de Culturas (1999) e da
Universidade das Artes (2003) (IPC, 2000). Na atualidade, além dos projetos de
escavações arqueológicas desenvolvidas em 1998 e 2004 (Sanoja, 1998a; 1998b; 1998c;
Sanoja e Vargas, 1998), a edificação, sob a custódia do Instituto do Patrimônio Cultural
(IPC), acolhe o Foro Latino-americano das Artes e, devido às circunstâncias de
catástrofes naturais ocorridas no país, em 2004, é, neste momento, albergue de um
numeroso grupo de desabrigados que requerem uma relocação habitacional em função
de tais catástrofes trágicas.

Todas estas intervenções, usos e reutilizações recentes da edificação, lamentavelmente,


têm atentado, não só contra a integridade estrutural ou arquitetônica da edificação como
têm afetado dramaticamente a integridade e presença das manifestações parietais que
dizem respeito a este trabalho (grafite, murais, escrituras, etc.).

A edificação do Quartel San Carlos representa um evento na história colonial e


republicana da cidade de Caracas e da nação venezuelana. Desde sua própria
construção, aos finais do século XVIII, até os mais recentes processos sócio-políticos da
história nacional, esta edificação tem sido recinto, espaço de ação e coação, testemunho
imóvel das convulsões da história caraquenha. Por sua vez, também formou parte
integral da vida cotidiana e da memória coletiva no processo de conformação do
contexto de nossa cidade capital. Em suas imediações, têm crescido bairros e
comunidades que têm interatuado espacial e culturalmente com o dito edifício,
assumindo distintos usos físicos e ou simbólicos de seus espaços.

É precisamente, nesta conjunção da interação do Quartel San Carlos, por um lado, com
eventos ou acontecimentos históricos que têm marcado nossa história e, por outro lado,
com a conformação cotidiana dos cidadãos que formam a cidade, vemos a importância
que deve ter para a identidade e consciência histórica do caraquenho, já que, por sua
vez, o reintegrará à dinâmica da participação cidadã.

33
Objetivos e metodologia do trabalho de campo
Um dos elementos mais chamativos nos recintos internos do Quartel San Carlos é a
abundância de expressões gráficas, tais como grafites e representações pictóricas como
murais, presentes em suas paredes e outras superfícies. Grande parte destes grafites
estão historicamente relacionadas com o período de encarceramento dos militares
sublevados contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992. Formam parte da
história pátria contemporânea, mais próxima da etapa constitucional atual.

Como representação comunicativa e estética, assim como manifestação cultural e


política, a análise do grafite converteu-se em um tema crucial no campo dos estudos
culturais. Ainda que existam alguns estudos já realizados sobre estas expressões no
Quartel San Carlos, não apresentaram um enfoque sistemático ou abordaram o assunto
desde uma perspectiva mais simbólico-cultural (Ramírez, 2000).

É por isto que se fez necessária uma estratégia de registro controlado e integral, com
cobertura total, destas manifestações culturais, mediante a aplicação de estratégias
arqueológicas para o levantamento de evidências rupestres (De Valencia e Sujo, 1987).
Esta consistiu na realização de um sistemático relevo fotográfico e gráfico dos grafites e
de outras expressões pictóricas nas paredes e outras superfícies do Quartel San Carlos.
Como produto final da aplicação desta metodologia obteve-se um inventário sistemático
e detalhado das representações gráficas e ou pictóricas presentes nas paredes e outras
superfícies do Quartel. Assim, podemos propor recomendações para sua conservação,
valorização, possível musealização ou divulgação.

Foto 03: En estos mensajes se aprecia una búsqueda de reconocimiento, de salir del anonimato al dejar
constancia que el autor del mensaje estuvo castigado en ese lugar por su “mala conducta” o su
“carácter violento” (Fuente: IPC 2000, pp.42-43).

Ao abordar o estudo dos grafites do Quartel San Carlos nos enfrentamos, em primeiro
lugar, com um contexto excepcional de produção de manifestações culturais que, em si
mesmo, apresenta complexos níveis de significação. Em segundo lugar, as
manifestações parietais que estes espaços albergam são produtos de diferentes
momentos históricos, códigos morais, critérios estéticos e tecnológicos, discursos
ideológicos e religiosos, rituais e das mais diversas histórias pessoais.

34
O trabalho de campo que sustenta esta investigação teve lugar no mês de julho de 2004.
Começou com a realização de uma exploração sistemática dos espaços do Quartel San
Carlos com a finalidade de gerar o pré-inventário dos grafites e das pinturas existentes
no lugar, amparados numa metodologia arqueológica de resgate, inspirada na
metodologia tradicional de relevo de manifestações rupestres.

O pré-inventário foi organizado, tendo por base 41 unidades de análise. Estas unidades
correspondem a uma entidade maior ou conjunto significativo de motivos que
representam, em si mesmos, o principal objeto de estudo da investigação. As unidades
de análise foram selecionadas dentro dos espaços internos da primeira e da segunda
planta das edificações que compõem o Quartel San Carlos, na atualidade. Como recurso
metodológico para a realização do pré-inventário era imprescindível configurar os
possíveis esquemas organizativos dos lugares de concentração e de produção de grafite.
Cada unidade evidencia motivos (grafite, desenhos, etc.) dispostos em distintos suportes
ou estruturas materiais (pisos, tetos, paredes) que servem de base aos distintos motivos.
Para o levantamento, efetuou-se um percurso espacial do desenho da planta original do
Quartel San Carlos, seguindo o sentido horário, tanto em relação a cada unidade de
significação quanto aos motivos presentes nestas (ver anexo 1).

Em uma segunda fase de campo, realizou-se todo o registro fotográfico dos grafites,
tanto de cada um dos motivos específicos como de pequenos conjuntos de motivos. Se
bem que na maioria das unidades de significação, a ausência de um corpus coerente de
motivos dificultou sua posterior análise e interpretação como conjunto, a agrupação de
motivos nos permitiu realizar seu estudo com base na observação de semelhanças de
atividades e convivência dentro dos espaços em questão. Um dos principais problemas a
resolver, dentro da fase do registro gráfico, é que a grande maioria das manifestações
está exposta a agressão de elementos climatológicos e sociais que as rodeiam. Em
muitos dos casos, não é possível reconhecer sua forma expressiva. Por outra parte, no
caso dos grafites do Quartel, há que se destacar que os suportes sobre os quais estão
dispostos não são móveis e nem são separáveis de seu entorno. Portanto, a compreensão
do motivo ou do conjunto de motivos depende de seu contexto físico. Igualmente,
alguns destes suportes têm sido alterados estruturalmente ou têm sofrido a superposição
de pinturas que tornam impossível a leitura de manifestações prévias. Por outro lado,
para fins da investigação, os escritos mais recentes associados a visitas circunstanciais,
unicamente foram revelados se estes se encontravam associados de maneira
significativa às outras unidades históricas ou conjuntos de motivos.

A terceira fase de campo caracterizou-se pelo registro sistemático de cada motivo


reconhecível, mediante o registro em uma ficha de classificação, na qual se descreve sua
localização, a temática abordada, o âmbito de produção e, se for o caso, realizou-se a
transcrição dos escritos, muitos dos quais apresentam data de realização e autoria.
Consideramos importante este registro exaustivo das manifestações, devido ao seu
caráter efêmero, dadas às agressões climatológicas e sociais a que estão expostas. Além
do mais, o mesmo permite realizar comparações entre os grafites registrados e
estabelecer relações de semelhança ou de diferença, cronologias, características formais
e âmbitos de produção que puderam ter relevância para os fins da investigação.

Por outro lado, o trabalho de campo se viu reforçado mediante a análise contrastiva com
os testemunhos escritos encontrados na escassa bibliografia e hemerografia existente,

35
assim como também mediante entrevistas realizadas com pessoas que foram
protagonistas de primeira linha, na história do Quartel San Carlos. Em definitivo, a
metodologia implementada cobriu dois grandes campos de abordagem ao tema: por um
lado, o trabalho de campo, o qual incluiu a prospecção dos espaços, a realização do pré-
inventário dos grafites e das pinturas, as entrevistas pessoais, o registro fotográfico de
manifestações, o registro de técnicas de produção e o processo de classificação. Por
outro lado, a investigação documental, que compreendeu estudos cartográficos,
bibliográficos, hemerográficos e de fontes da internet.

O instrumento fundamental para a classificação das representações parietais consistiu


em uma ficha de registro, composta por diversos itens informativos, que permitiu que
cada uma das estruturas ou estratos documentados ficassem registrados na base de um
catálogo numérico sistemático. Na fichas são descritas, localizadas e relacionadas às
unidades. É estabelecida uma correspondência temporal e física em relação às estruturas
que as suportam. Também se registram os traços tecnológicos, formais, ideográficos,
simbólicos ou contextuais de cada motivo. Os campos compreendidos são os seguintes:
unidade, conjunto, tipo de suporte, descrição formal ou transcrição -–os textos foram
transcritos respeitando-se a grafia original -, temática abordada, técnica de manufatura,
dimensões, data da realização, autor e estado de conservação do motivo (ver anexo 2).

O que nos dizem? Análise das evidências


As investigações realizadas nos espaços do Quartel San Carlos permitiram estabelecer,
ao menos, dez categorias de classificação das mensagens dos grafites e das pinturas. Se
bem que os relacionados com a política, os direitos humanos, a justiça e com a liberdade
apresentam uma incidência significativa, não apresentam características de
exclusividade e nem são os únicos eixos temáticos registrados neste espaço carcerário.
A variabilidade de temas, de reflexões e de figurações representa um mundo de tensões,
de convergências e de discrepâncias, visões de mundo compartilhadas pelos indivíduos
que alguma vez estiveram reunidos nestes espaços. De alguma maneira, condensam
parte do imaginário sócio-político nacional contemporâneo, integrado e filtrado, por sua
vez, pelas intenções e necessidades de cada um dos indivíduos e dos coletivos, de
acordo com as suas posicionalidades dentro contexto carcerário venezuelano.

Um dos temas de maior recorrência dentro das celas de castigo, geralmente destinadas
aos presos comuns, é a representação permanente da violência. Esta violência está
referida tanto às experiências cotidianas da vida no interior do cárcere quanto à
executada no além dos muros. Assim, nas manifestações que encontramos nestas celas
condensa-se, reflete-se e resignifica-se a violência de um núcleo urbano capitalista
tardio, altamente estratificado e agressivo como é a cidade de Caracas (García Canclini,
2001). Nas celas de castigo, popularmente conhecidas como “tigritos”, existe uma
ampla variedade de motivos que, em certas ocasiões, se superpõem, dado o excessivo
fluxo de reclusos por estes espaços. Entre as mensagens que se evidenciam nas paredes,
tetos, pisos e marcos das portas destas celas de reduzidas dimensões ressaltam aquelas
que expressam uma necessidade de destacar-se dentro de um grupo, ao mesmo tempo
que atemorizar o resto da comunidade de reclusos. Isto é, conformar um espaço de
identidade a partir da violência. Nestas mensagens, podemos apreciar uma busca de
reconhecimento, de sair do anonimato, ao deixar constatado que o autor da mensagem
foi castigado neste lugar por sua ‘má conduta’ ou seu ‘caráter violento’. Possivelmente,
nestes espaços, algumas das mensagens refletem a chamada ‘lei da selva’ carcerária, na
qual os mais fortes, duros e resistentes sobrevivem, prevalecem e são respeitados pelo

36
resto da comunidade carcerária. Os escritos registrados denotam, ocasionalmente, uma
atitude de rivalidade, pois, muitos dos autores, reincidiam no castigo e voltavam a
deixar testemunho de sua passagem por estes espaços.

Foto 04: Algunos de los mensajes reflejen la llamada “ley de la selva” carcelaria, en la que los más
fuertes, duros y resistentes sobreviven, prevalecen y son respetados por el resto de la comunidad
carcelaria. (Fotografía: Ezequiel Korin)

Em várias destas celas ou ‘tigritos’ são recorrentes escritos em que rezam ‘a lei de
Pedro Navaja’, ‘a lei do chuço’, ou ‘aqui esteve a maldade’, assim como a presença de
desenhos de armas de fogo, de caveiras, de esqueletos, de suásticas, etc. Estas
manifestações foram realizadas, quase de maneira exclusiva, mediante o uso de
elementos alternativos a pintura. Na maioria dos casos evidencia-se o uso da técnica do
raspado, a qual, intuímos, pode ser executada com o uso de pedras, lâminas de metal ou
qualquer outro instrumento afiado.

Indubitavelmente, a militância política conforma uma temática nodal e


quantitativamente significativa dentro dos espaços do Quartel. Ainda que a maior parte
dos motivos que poderiam ser classificados como mensagens transmitidas desde uma
profunda militância política, são escritos, geralmente, inseridos em temas de conjuntura
política e de protesto social. Há, também, uma ampla variedade de desenhos que
caracterizam personagens relevantes e líderes da política e da história social (Martí,
Bolívar, etc.). A recorrência permanente – escrita e gráfica – a figura de Bolívar, quase
como uma maneira de culto teológico-político, está intimamente vinculada aos ideais,
convicções e delineamentos dos líderes fundacionais do Movimento Bolivariano
Revolucionário 200 (MBR 200) (IPC, 2000; Rodríguez, 2000). Os desenhos de
personagens ilustres, heróis pátrios, caudilhos locais e figuras revolucionárias,

37
geralmente, têm grandes dimensões, a maneira de grandes murais, criando uma maior
pregnância no olho da pessoa que o observa e captando a atenção de todo àquele que
incursione nesse espaço. De fato, estas representações, frequentemente, ocupam as
paredes principais e estão realizadas, combinando técnicas complexas de manufatura.

Muitos dos desenhos e murais do Quartel San Carlos acompanham as letras. Dentro de
um dos conjuntos, por exemplo, pode-se observar o rosto sobredimensionado de Simón
Bolívar, destacado entre as assinaturas e mensagens dos reclusos, a maioria oficiais de
alta patente, os quais protagonizaram o conhecido motim militar de 27 de novembro de
1992. Entre eles, encontra-se o general Francisco Visconti Osorio, chefe de logística do
Estado Maior Conjunto, o contra-almirante Hernan Grüber Odermán de la Marina, o
oficial de mais alta patente e de antigüidade dos sublevados, e o contra-almirante Luis
Cabrera Aguirre (IPC 2000; Rodríguez, 2000). Com grande freqüência, os textos que
acompanham estes murais aludem a valores de liberdade, justiça social, resistência
armada e promovam a luta por uma sociedade mais igualitária e sem divisão de classes.

Foto 05: Rostro sobredimensionado de Bolívar, enmarcado entre las de firmas y mensajes de los
reclusos, la mayoría oficiales de alto rango, quienes protagonizaron la conocida asonada militar del 27
de noviembre de 1992 (Fotografía: Ezequiel Korin)

No Quartel San Carlos, os motivos iconográficos e os textos que refletem algum tipo de
militância política foram realizados mediante a utilização de diversas técnicas de
manufatura – simples ou combinadas – nas quais se utilizaram pinturas, giz, lápis, ou
carvões, já que seus autores, ao pertencerem, em sua maioria a institucionalidade
castrense, teriam um privilegiado acesso a estes materiais.

Entre as muitas mensagens registradas, podemos destacar as seguintes:

“Vivan los boinas rojas!”


“Bolívar bolivariano no es un pensamiento muerto ni mucho menos un santo para prenderle una
vela”.

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“La libertad los gobiernos no se compran y un verdadero hombre acepta sus derrotas y no se
ciega ante un pueblo con tal de permanecer en el poder”
“La lucha continúa, las rejas no callaron el grito de libertad”
“Quien se para de frente es el que escribe la historia”

Este último texto apresenta uma dramática relevância dentro da aura simbólica do
Quartel San Carlos e, ainda mais, dentro do contexto político-social venezuelano, já
que, ainda que não existam referências testemunhais confiáveis, sua produção é
atribuída ao tenente-coronel Hugo Rafael Chávez Frías, atual presidente da República
Venezuelana da Venezuela. De fato, este recinto é recorrentemente visitado pelas
pessoas que vêm ao Quartel devido ao anedotário associado a este grafite.

Profundamente relacionado com a temática exposta anteriormente está a da


institucionalidade castrense. Entre estes motivos, encontramos ícones mais
esquemáticos e de fácil execução, como os símbolos pátrios, selos pessoais ou sinais
distintivos de agrupações militares e policiais, conformando um sistema de alianças e
competição entre os distintos corpos e níveis de mando institucionalizados. A
representação de escudos, emblemas, lemas e siglas distintas dentro do âmbito castrense
são abundantes e interatuam, de maneira dialógica, com outras temáticas menos
institucionais e informais.
Manifestações parietais recorrentes desta temática são:

“Ejército venezolano, forjador de libertades”


“Sierra C/07”
“Fuerte Tiuna grupo de la policia militar”
“Power la fuerza de C/07 julio 92 cumplace armada

Por outro lado, existem outras referências que pertencem a coletivos urbanos menos
estruturados tais como as pandillas, ‘tribus’ e organizações informais, coletivos que
estabelecem categorias de adscrição para se relacionarem, identificarem-se e
diferenciarem-se de outras agrupações. Este tipo de organização também plasma sua
marca identitária e defensiva dentro da cotidianidade carcerária, através de pinturas ou
textos, compartilhando insígnias individuais e ou coletivas (um tipo de adaga, uma
estrela, uma âncora, etc.), a maneira de sinais ou de marcas territoriais de ‘tribos’ que
tratam de manter uma identidade comum para protegerem-se e sentirem-se mais
poderosas. Neste sentido, em múltiplos motivos, conjugam-se imagens com lendas,
recolhendo as aspirações de uma comunidade que intenta construir um sistema de
hierarquias, lealdades e reconhecimento inter e intra-quadrilhas. Entre vários motivos,
podemos destacar:

“Mariuuana”
“Dont walk here”
“los capo de Cuar Sanca”
Dibujo de estrella de cinco puntas “Death”

39
Dibujo de daga
Dibujo de cruz de malta
“Ron pa todo el mundo y mariguana y perico y bazuco viva la droga”

Foto 06: Múltiples motivos conjugan imágenes con leyendas recogiendo las aspiraciones de una
comunidad que intenta construir un sistema de jerarquías, lealtades y reconocimiento inter e intra-
pandillas (Fotografía: Ezequiel Korin)

Em outra ordem de idéias, as manifestações relacionadas com a mulher, o sexo e o


amor, dentro dos espaços do San Carlos, diferenciam os espaços entre a população
carcerária. Nos espaços destinados aos réus comuns, geralmente, áreas de confinamento
reduzido e de isolamento, é onde se concentram, principalmente, as manifestações
eróticas. Enquanto que, nas áreas dos presos políticos, de maior circulação e de acesso
público, destinadas aos presos que, em sua categoria deveriam manter uma maior
respeitabilidade e autoridade moral, os grafites e pinturas tendem a fazer referência ao
amor para com a mãe ou a família. É por isto que, dentro das denominadas celas de
castigo, cujas dimensões as convertem em unipessoais, é onde a sexualização do
contexto carcerário tem sua maior expressão. Nestes espaços, ao deixar plasmada a sua
obra, o artista não só sublimava sua excitação sexual no momento em que fazia os
desenhos eróticos, senão que sentia um maior prazer ao permitir que suas pinturas e
grafites fossem apreciados por outros reclusos. É desta maneira que esta sublimação
converte-se, também, em um recurso de poder sobre o âmbito simbólico e físico da cela,
já que o indivíduo não só ocupa o recinto, senão que o possui sexualmente e infringe
esse poder sobre a representação em si mesma – por exemplo, as cicatrizes que se
evidenciam sobre os corpos representados (Navarrete, 2004).

Em outros casos, nestes espaços, também tinha lugar a objetivação do amor platônico
ou a atração para com as mulheres, descritas ou desenhadas de acordo com sua atração
sexual particular, usualmente dirigida desde uma perspectiva heterossexual e
androcêntrica. Assim, em várias das celas do Quartel San Carlos existem desenhos de
exuberantes mulheres nuas e, inclusive, com a intenção de reproduzir a corporalidade
feminina. Em um dos desenhos, apresenta-se uma perfuração na área da vagina. Muitos
dos desenhos estão acompanhados de frases carregadas de erotismo e de fantasia como

40
a do ‘corpo de delito’, que está localizada justo ao lado do desenho de uma escultural
mulher nua. Outros estão carregados de contraditórios sentimentos, característicos da
maneira como a sociedade moderna ocidental se aproxima da sexualidade: entre o
desejo e a culpa, a bondade e a maldade, a virtude e o pecado e, nestes casos, temos
encontrado o corpo nu associado com a frase “Satán” ou “a maldade”.

Foto 07: En los espacios destinados a los reos comunes, generalmente áreas de confinamiento reducido
y aislamiento, es donde se concentran mayormente las manifestaciones eróticas (Fotografías: Ezequiel
Korin y Rodrigo Navarrete)

No caso das celas cujos motivos expressam amor para com a família e com as alianças
existem muito pouco desenhos e muitos escritos. Revelam arrependimento, remorso
moral pela falta cometida, palavras de justificação/desculpa e, em muitos casos, poemas
de amor que evocam eventos amorosos passados que vão pareados com profundo
sentimento de desesperança ou, pelo contrário, sentimentos entremeados de tristeza, de
ilusão pelo possível e ansiado reencontro com os familiares e com os amigos. É a
esperança e, por sua vez, a representação do retorno a vida cotidiana, expressada em
valores e emoções como a liberdade e o afeto.

Foto 08: Escritos que revelan sentimientos entremezclados de tristeza e ilusión por el posible y anhelado
reencuentro con los familiares y amigos. Es la esperanza y a la vez la representación del retorno a la
vida cotidiana expresada en valores y emociones como la libertad y el afecto. (Fotografía: IPC 2000, p.
39)

41
Entre estas manifestações parietais, destacam-se:
- desenho de coração dividido pela metade. Em cada uma dos lados diz “La mitad para
la pure – para mi familia”
- desenho de coração Zulay y Oscar”
- desenho de mulher i“La belleza de la mujer y su cuerpo y estilo es la belleza del
mundo. Dibujado con amor a las mujeres”
-“Amor de madre” (desenho de mulher nua e de costas) “Cuerpo del Delito”
- desenho de mulher “La mujer” “Modelo erotica”
- desenho de coração com adaga atravessada “Amor y paz la ley del amor”

Outra das temáticas amplamente observadas entre as manifestações parietais do Quartel


são as inerentes a religião e a fé. Ao menos dentre os motivos registrados para fins de
investigação, existe uma grande variedade de motivos iconográficos e de textos
pertencentes ao âmbito do catolicismo. É certo, porém, que se registrou um conjunto
minoritário de mensagens que estão estreitamente vinculadas com os santos. Entre as
imagens mais comuns podemos mencionar as de virgens, de santos e de cruzes.
Também aparecem textos de oração, de relatos bíblicos e de mensagens que pretendem
dar testemunho de uma profunda convicção religiosa e de atos de fé. Neste sentido, a
religião converte-se em um recurso emancipatório e de esperança para relevar a
reclusão permanente. Alguns dos grafites registrados falam de amor a Deus e se
registram petições de proteção a Virgem Patroa da Armada, como as seguintes:

“Yo no tengo miedo, no quiero el terror. Dios es amor, en toda la creación no hay
nada que teme. Yo tengo fe, quiero sentir fe”.
“Virgen Reyna del Oriente del Valle Patrona de la Armada Cunplace 1981 La Patrulla
de los Caballeros del Mar”
“En el año 1955 se realiza el encuentro de la virgen del Valle y la virgen de (ilegible)
en el puerto de la Guaira a bordo del destruto (¿?) ARV Nueva Esparta (dell) buque
insignia de la armada de Venezuela Esta es la primera vez que la virgen abordan una
unidad de la marina de guerra. Escrito por el PN Sierra Guevara”
- desenho de virgem, a lápis, e datado de 91 e assinado “Los 7 poderes”

Foto 09: La religión se convierte en un recurso emancipatorio y de esperanza para sobrellevar la


reclusión permanente (Fotografías: Rodrigo Navarrete y Ana María López)

42
Outro, dentre os elementos evasivos comuns no imaginário destas representações
parietais, corresponde ao humor, como sublimação das precárias condições de vida do
presidiário. O humor quer seja em termos de ironia ou de subversão da ordem lógica das
condições de existência, permite articular-se, de maneira lúdica, com a realidade e
transforma-la, em nível simbólico, na busca de uma saída imaginária. Em muitos dos
grafites e pinturas registrados no Quartel, evidencia-se uma alta dose de humor –
usualmente denominado de humor negro – o qual faz uso das experiências traumáticas
como recurso para burlar-las e ironizar sobre si mesmo. Supomos precisamente que,
dentro do contexto carcerário, estas mensagens ajudariam os reclusos a neutralizarem
uma série de circunstâncias que, de outra maneira, seriam muito destrutivas. Como polo
oposto a estas mensagens, a desesperança forma parte do discurso, expressado em
outras manifestações que refletem sentimentos aflorados desde a psicologia mais
profunda do indivíduo em sua impotência e incapacidade de solucionar sua situação
imediata. Ej. “Favor cerrar la puerta después de entrar. Pabellón 04”
“Aquí también yo pasé mis ultimos dias como militar tan solo contando 10 lindos dias
para hirme de baja porque mas vale la moral de delincuente que la de un millón de
sapos porque no hay bala que mate la verdad cuando defiende la razón. No quiero lujo
en nada pero tampoco indecencia. La vida es corta no se cuando la perdere. Un dia sin
luz es irreparable”. “Artista plastico patrocinado por matel” (disenho do sol)

Foto 10: En muchos de los graffiti y pinturas registrados en el Cuartel se evidencia una alta dosis de
humor –usualmente el denominado humor negro-, el cual hace uso de las experiencias traumáticas como
recurso para burlarlas e ironizar sobre si mismo. (Fotografías: IPC 2000, p. 40 y Ana María López)

Um elemento especial, exclusivamente de caráter gráfico, que queremos ressaltar dentre


os mecanismos de evasão dos espaços carcerários é a representação de uma série de
artefatos e de paisagens. Está associada em nosso mundo ocidental com a idéia de
liberdade, viagem ou evasão, tais como, a presença de barcos, de aviões, de paisagens
abertas, de praias e de campos, nas paredes do Quartel. O valor emancipatório destas
representações simbólicas vai mais além das paredes do recinto e comunica o
presidiário com o mundo externo, com seus próprios referentes de liberdade e de fuga.
A presença de aviões e de barcos poderia estar associada com o fato de que muitos deles
vêm de uma instrução militar e, provavelmente, tal presença formava parte de sua

43
competência profissional. Igualmente, as pinturas murais que representam campos,
espaços abertos e praias – e não cidades aglomeradas e fechadas – não só vinculam-se
com a relação simbólica moderna entre natureza e liberdade, senão com a possível
proveniência de alguns destes reclusos de áreas rurais ou do interior do país, assim
como também, com uma visão estética do paisagismo como arte.

Foto 11: El valor emancipatorio de estas representaciones simbólicas va más allá de las paredes del
recinto y comunica al presidiario con el mundo externo y con sus propios referentes de libertad y escape.
(Fotografías: Rodrigo Navarrete)

Dibujo de avión de hélice sobre mapa de Venezuela “Eduanny”.


Dibujo de Barco sobre pintura roja
Dibujo de atardecer en la playa con un barco zarpando.
Agora, o tempo, mais do que o espaço – constrangido e literalmente limitado –
converte-se no referente central do discurso. Assim, muitos motivos presentes nas celas
são indicadores cronológicos dos dias transcorridos na prisão. Calendários, datas,
traços, pauzinhos verticais, que não é outra coisa que a contabilidade, o dia a dia da
condenação imposta em cada caso. Muitos dos motivos indicam uma data em concreto
(dias, mês, ano), quiçá como testemunho da data da reclusão neste espaço. Em algumas
das celas encontramos calendários completos, onde se leva em conta os dias
transcorridos, ocasionalmente sublinhados – possivelmente semanas ou meses -,
enquanto que em outras, encontramos escritos sobre o dia em que se cumprirá o final da
condenação. Também há evidências que tão somente deixam a constatação do ser e do
estar em situação de reclusão.
Exemplos:
“Sólo tengo 4 noches y 4 días y ya quiero salir de aquí”
“Feliz Año nuevo 1989 les desea el Fusil 33 meses”
desenhos de pauzinhos (conta)

44
Foto 12: Calendarios donde es llevada la cuenta de los días transcurridos o que especifican día en que
se cumplirá el final de la condena. (Fotografía: Ezequiel Korin e IPC 2000, p. 35)

Para uma visão mais integrativa da interpretação histórica – o estudo da cultura material
e a cultura política contemporânea
A implementação de uma estratégia arqueológica de recuperação sistemática da
informação histórico-cultural e arquitetônica de uma edificação nuclear para a história
político-social da nação e do contexto urbano caraquenho, tal como é o Quartel de San
Carlos, redundaria em uma compreensão mais integral do patrimônio histórico nacional
e na definição de estratégias de valorização mais de acordo com as condições
estruturais, históricas e simbólicas do bem patrimonial imóvel.

Quando nos referimos a uma perspectiva integral, estamos aludindo a incorporação do


patrimônio histórico geral da edificação. Tanto dos seus restos e evidências materiais
quanto da sua integração simbólica na história política e cultural do país, dentro de uma
visão arqueológica que seja capaz de dar conta das histórias individuais e coletivas,
acontecidas no sítio e expressadas em sua estrutura e atual posição física, valorizada
dentro da atual cidade. Isto implica, por sua vez, a incorporação da edificação a história
política da cidade. Assim como, também, a resemantização deste espaço para a
cidadania, que requer e necessita recordar, tanto os monumentos heróicos quanto os
processos de repressão e discriminação política, sucedidos na Venezuela, durante o
denominado período democrático. Somente assim, podemos estabelecer uma verdadeira
conexão entre a interpretação da cultura material como arqueólogos, a conscientização
nacional sobre a história recente e a cultura política contemporânea.

Consideramos que o afã de um antropólogo, como o de qualquer cientista social ou


humano é precisamente humanizador. Em tal sentido, um estudo como os das
manifestações culturais parietais nos recintos do Quartel San Carlos, representa um
passo a mais na testemunhação, valorização social e reflexão coletiva sobre o passado,
inclusive o mais próximo, e a experiência humana, para a construção de projetos
políticos futuros, baseados nos conceitos de justiça e de liberdade sócio-política.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Instituto do Patrimônio Cultural pela colaboração prestada durante a


realização do registro das manifestações parietais no Quartel San Carlos, especialmente,
o antropólogo George Amaíz e a museóloga Maria Gabriela Martínez. Igualmente, os
antropólogos Daniel Ramírez e Lilia Vierma pelas informações e imagens oferecidas,

45
assim como, ao comunicador social Ezequiel Korin pelo trabalho fotográfico durante o
processo de relevo de informação.

BIBLIOGRAFIA

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46
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el graffiti en las ciudades contemporáneas, con especial atención a ciudades
colombianas y latinoamericanas, y la evolución de sus argumentos hasta la formulación
de una tesis integral sobre la ciudad intercomunicada por territorios urbanos. Dia-logos,
s/e, Colombia.

47
Anexo 01. PRÉ-INVENTÁRIO DE GRAFITE
Unidade IV: Cela 01 – corredor interno com arcos (pátio W)
Suporte Localização Quantidade Descrição Motivo
A Teto 18 Todos os 18 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
B Parede Norte 67 Todos os 67 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
C Parede Sul 65 Todos os 65 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
F Dintel da Todos os 04 motivos devem ser mantidos
porta (direita no original, como apresentados pelos
do marco) autores.
F Dintel da 01 Ilegível (1)
porta (teto
do marco)
F Dintel da 01 “23”
porta
(esquerda do
marco)

Anexo 2. FICHA DE MOTIVO

Unidade: IV Cela número 01, pátio Oeste


Conjunto: C
Tipo de suporte: Parede Sul
Descrição formal ou transcrição: ‘Cuerpo de delito”, Amor de madre. Desenho de
mulher nua, de costas, em branco sobre preto. A frase cuerpo de delito está enfatizada por
encontrar-se entre aspas.
Temática que aborda: combina sexualidade, amor materno-filial.
Técnica de manufatura: raspado/ abrasão sobre pintura preta
Dimensões: 10 cm x 13 cm
Data da realização: s/d
Autor: anônimo
Estado de conservação: ótimo

48
“México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão
governamental e o genocídio
Patricia Fournier e Jorge Martínez Herrera

¿quiénes los que agonizan, los que mueren?


¿los que huyen sin zapatos?
¿los que van a caer al pozo de una cárcel?
¿los que se pudren en el hospital?
¿los que quedan mudos, para siempre, de espanto?
...
No busques lo que no hay: huellas, cadáveres
...
No hurgues en los archivos pues nada consta en actas.
...
Recuerdo, recordemos
ésta es nuestra manera de ayudar a que amanezca
sobre tantas conciencias mancilladas,
sobre un texto iracundo, sobre una reja abierta
sobre el rostro amparado tras la máscara.
Recuerdo, recordemos
hasta que la justicia se sienta entre nosotros.

Rosario Castellanos, Memorial de Tlatelolco

Da antiga cidade do “tlatelli” à Praça das Três Culturas

Tlatelolco - o lugar do montículo - segundo sua etimologia em nahuatl, localiza-se,


atualmente, no coração da Cidade do México. Tem sido cenário de trágicos eventos no
transcorrer dos séculos. A fundação pré-colombiana do assentamento, em uma ilhota no
lago Texcoco, data do século XIV de nossa era. Floresceu economicamente sob a
hegemonia asteca como sede do mercado mais importante que existia no Novo Mundo
(Gibson 1980). Não obstante, estes desenvolvimentos se viram truncados com a queda
das cidades gêmeas de Tenochtitlan e de Tlatelolco, em 13 de agosto de 1521, ao
concretizar-se a conquista espanhola. Os vencidos ficaram recluídos na segunda urbe
citada e os espanhóis na de México-Tenochtitlan (Berlin e Barlow 1980:75).

Uma vez constituído Tlatelolco como um povoado de índios, manteve-se,


marginalmente, perdendo hierarquia política e econômica frente à Cidade do México,
sede dos poderes vicerreinais. De qualquer maneira, desde 1531, os franciscanos
colocaram-se na tarefa de catequizar os naturais, de construir um templo a Santiago e de
fundar, tanto um convento quanto um “colégio para dar estudo aos índios”. Tais
edificações conformaram um conjunto na parte central do assentamento, em torno de
sua grande praça (Barlow 1987; Villaseñor y Sanchéz 1980 [1748]). Passada a
independência, em 1821, e uma vez que se aboliram as repúblicas dos índios, Tlatelolco
manteve-se como um bairro empobrecido, com casas em ruínas. Revitalizou-se
paulatinamente no transcorrer do século XX. Nos inícios da década de 1960, deu-se um
impulso a um amplo projeto de renovação urbana com a construção de edifícios
apartamentais, do arranha-céu da Secretaria de Relações Exteriores e da habilitação de
uma zona arqueológica. Nesta se deixaram a descoberto muitos dos edifícios do recinto
sagrado da cidade pré-hispânica (González Rul 1988), armonizando-os com os imóveis
da unidade próxima ao centro da Cidade do México, Distrito Federal.

49
Assim, ficou conformada a chamada Praça das Três Culturas, no núcleo do conjunto
arquitetônico, onde se integraram as raízes indígenas com os símbolos da conquista
espanhola e com os do México moderno (figura 1). Em 2 de outubro de 1968, a dez dias
da inauguração dos XIX Jogos Olímpicos, a primeira olimpíada celebrada na
Latinoamérica, esta praça seria o cenário do espantoso e repugnante morticínio de
estudantes (Labastida 1998), por parte do aparelho repressivo do Estado. De um
genocídio que, por meio do assassinato, cobrou mais vidas do que o terremoto de 1985,
quando as forças da natureza provocaram o desmoronamento de vários dos edifícios da
unidade habitacional de Tlatelolco.

Figura 1. Panorâmica da Praça das Três Culturas mostrando, em primeiro plano, as estruturas da
cidade pré-colombiana e o templo de Santiago. Ao fundo, o edifício ‘Chihuahua’ da unidade
habitacional de Tlatelolco (foto de Jorge Martínez Herrera).

Pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos3
A história moderna do México, desde que se instaurara um regime presumivelmente
democrático, na década dos anos 1920 do século passado, tem se tingido continuamente
com a cor do sangue de operários, de trabalhadores, de opositores ao governo, de
camponeses, de indígenas, de integrantes de partidos políticos de oposição e de
estudantes (Labastida 1998).

No transcorrer o século XX, por mais de sete décadas, diferente do ocorrido em muitas
nações ibero-americanas, um só partido político (o ‘PRI’, Partido Revolucionário
Institucional) manteve em suas mãos as rédeas do México, garantindo sua vitória nos

3
Frase ainda vigente. Refere-se a jugo estadunidense sobre o México e que foi alcunhada desde o século
XIX, posteriormente a guerra México-Estados Unidos.

50
processos eleitorais mediante toda a classe de mecanismos ilícitos e nada transparentes
(Reding 1995; Story 1986). Esta ditadura partidária sustentou-se, em grande medida, no
controle das principais organizações operárias e camponesas do país, na infiltração de
agentes governamentais nas organizações estudantis, assim como, em um intrincado
manejo setores produtivos e das arenas políticas em benefício de dinastias que
monopolizaram o poder e a riqueza. Toda a informação de acesso público, por tais
circunstâncias, passava pela peneira oficial, ficando os meios informativos a mercê do
autoritarismo e da censura ou do bem comprado silêncio (Monsiváis 2001; Reding
1995). Por conseqüência, os eventos da história mexicana ficaram pré-estabelecidos.
Em tal situação, a cada mudança administrativa sexenal, o grande vizinho do norte, os
Estados Unidos da América, pouco tinha que preocupar-se com estabilidade sócio-
política e com frear ameaça comunista em sua fronteira sul. A partir da Guerra Fria e da
caça aos “vermelhos”, as instâncias repressivas governamentais deram calorosas bem-
vindas aos assessores militares e agentes da CIA. Os informes e as atividades, tanto do
FBI como da CIA, possibilitavam – o talvez ainda possibilitem – manter tanto o
equilíbrio do país quanto a segurança das inversões estadunidenses, capitalizando em
cima da pobreza da maioria dos mexicanos.

Nas palavras de Agee (1975:503), detrator da CIA, as operações efetuadas na Latino-


américa, em finais da década de 1960 e início dos anos 1970, para suprimir os
movimentos de esquerda, visavam, no final das contas, fortalecer as minorias no poder,
vinculadas com os negócios e com o governo estadunidense, cujos interesses
compartilhados eram a estabilidade e a obtenção de dividendos nas inversões
econômicas. A distribuição desigual da riqueza e das condições sempiternas de miséria
das massas eram, por conseqüência, a resposta lógica que impulsionava a organização
de movimentos extremistas, com idéias socialistas. Era indispensável extermina-los, por
constituírem graves ameaças ao sistema capitalista.

Tudo é possível na paz


A industrialização e o desenvolvimento econômico do México moderno durante a
década dos anos 1950 e inícios dos anos 1960, propiciados pelas inversões estrangeiras
e pela exploração dos abundantes recursos naturais do país, o converteu em um
candidato adequado para postular que a capital federal fora sede dos XIX Jogos
Olímpicos, em 1968. Foi um ano convulsivo, de movimentos sociais de protesto na
Europa e na América, no qual os jovens foram os principais protagonistas. Gustavo
Díaz Ordaz, como presidente da República, buscou, com avultados capitais
transnacionais e dilapidando as arcas fazendárias [a cifra oficial é de 140 milhões de
dólares (Mabry 1982)], que os recursos requeridos para celebrar os programas
desportivos e culturais estivessem dispostos para a vinda dos contingentes de todo o
orbe, desde setembro daquele ano.

Sob o lema “tudo é possível na paz”, chegaria, desde a Grécia, a tocha que iluminaria o
flamante estádio remodelado, da Universidade Autônoma do México (rebatizado como
Estádio Olímpico), na magna inauguração em 12 de outubro de 1968. O êxito das
olimpíadas devia garantir, a qualquer custo, que a ditadura partidária obteria o
reconhecimento internacional pela manutenção, durante décadas, da estabilidade
política e uma imagem de progresso econômico sob o manto (‘cobijo’4) do

4
Manto curto, de uso comum no México.

51
imperialismo norte-americano (Paz 1970). Não obstante, para além da demagogia
governamental, a realidade era outra. Apesar da imagem de bonança e de abundância, o
México era, naquele então, “um país com vinte milhões de famintos e dez milhões de
analfabetos, um país em que só uma camarilha que está no poder impõe sua verdade e
sua lei” (Ramírez 1998a:218[1969a]).

O movimento estudantil de 1968, no México (figura 2), foi a conseqüência histórica de


uma década de repressão governamental sobre as instituições educativas e sobre os
operários. Tal repressão conseguiu, através do desmantelamento paulatino do
financiamento destinado a educação popular, a dissolução de greves e as detenções
extrajudiciais de líderes de sindicatos progressistas, que se converteram em presos
políticos.

Figura 2. Agrupamento e organização de estudantes do movimento de 1968 (Anaya 1969: 16).

Para 1968, os estudantes se organizaram, em um primeiro momento e de maneira


espontânea, seguindo uma visão geral dos problemas universitários e educativos do
país. Posteriormente, desafiaram e combateram as formas despóticas e de controle do
PRI, como resposta as ações repressivas do Estado, no contexto de um agudo
autoritarismo político (Álvarez Garín 2002:165,167 [1998]). Tratou-se de uma crítica ao
sistema de dominação e ao despotismo governamental, derivada da imperiosa
necessidade de abertura ao diálogo entre o Estado e a sociedade. Demandava mudança
para um regime de liberdade e de democracia (Montes 1998) que, sob o mando do PRI,
com todas as luzes, era inexeqüível. Não obstante, em absoluto pretendia-se a derrubada
do governo, mesmo com a participação de militantes de organizações e de partidos
políticos de esquerda que se incorporaram à estrutura democrática do movimento e às
instâncias dirigentes (Álvarez 2002 [1998]).

Na raiz de uma casual escaramuça entre alunos pré-universitários de instituições


públicas rivais, que ocorrera nas proximidades do centro da Cidade do México, em 22
de julho de 1968, a polícia e o exército atuaram sucessivamente e de forma violenta,
inclusive com o uso de bazucas, contra os estudantes e nas instalações educativas que os
jovens haviam ocupado em sinal de protesto. Nos finais deste mês, os detidos chegavam
a 1200, os feridos a 400 e, se falava, de até 200 mortos. Além disso, o grosso da
sociedade reprovava que agentes policiais e militares tivessem agido com violência em

52
reuniões do Instituto Politécnico Nacional (IPN) e da Universidade Nacional Autônoma
do México (UNAM) (Menéndez Rodríguez 1968a).

Nos inícios de agosto, constitui-se o Congresso Nacional da Greve (CNG), formado por
estudantes e professores da UNAM, do IPN, bem como de múltiplas escolas e
universidades, tanto privadas como do governo, com sede na capital e em vários estados
do país, que, em seu conjunto, interromperam suas atividades docentes (Menéndez
Rodríguez 1968a; Ramírez 1998b:81 [1969]). Para o 04 de agosto, o movimento
estudantil já havia elaborado documento peticionário com os seguintes pontos
(Menéndez Rodríguez 1968b):
1. Liberdade aos presos políticos.
2. Anulação dos artigos do Código Penal Federal, nos quais se instituía o delito
de dissolução social, que constituía a base jurídica para que o governo
dissolvesse qualquer ato público no qual se congregara estudantes.5
3. Dissolução do corpo policial de choque, conhecido como granadeiros.
4. Destituição dos chefes policiais.
5. Indenizações aos familiares de todos os mortos e feridos desde o início do
conflito.
6. Esclarecimento das responsabilidades dos funcionários culpados dos fatos
sangrentos.

Aos clamores dos estudantes (figura 3) se uniram os dos trabalhadores das estradas de
ferro nacionais, dos professores, dos intelectuais, dos militantes políticos de esquerda e
de outros setores da sociedade, em um movimento de resistência a partir da indignação
moral, da consciência da sociedade civil, do combate anti-autoritário e da luta pelos
direitos humanos (Ponce 1998).

5
O delito de dissolução social foi incorporado do Código Penal Federal, em tempos de guerra, facultando
ao governo atuar contra aqueles que consideraram perigosos, com base em simples suspeitas. Por tal
situação, qualquer indivíduo de tendências de esquerda podia ser encarcerado sem maiores acatamentos
(Scherer e Monsiváis 2004:11).

53
Figura 3. Volante de protesto do movimento estudantil de 1968 (coleção particular).

Foram várias as manifestações das massas em agosto e setembro, com a concorrência de


até 300.000 pessoas, em uma marcha que chegou ao ‘Zócalo Capitalino’, frente ao
Palácio Nacional, no centro da urbe. Continuamente havia numerosos policiais,
fazendo-se passar por estudantes, que atuavam como agitadores. Pretendiam fechar com
a ultra-esquerda e cometiam atos vandálicos. Tinham por finalidade que a opinião
pública aplaudisse as medidas repressivas do governo, que alegava que a essência do
movimento estudantil era uma conjuração comunista6 (Menéndez Rodríguez 1968a).
Não houve resposta positiva as demandas do CNG que, em sua maioria, foram
desqualificadas por Díaz Ordaz. Este se negou ao diálogo. Proferiu ameaças de que
estava mais do que qualificado para dispor de todas as forças armadas da Federação
para garantir a segurança interna. A presidência fez clara a sua intenção de conseguir, a
qualquer custo, a realização das olimpíadas, sem contratempos (Ramírez
1998a[1969a]).

Por conseqüência, a repressão continuou. No dia 18 de setembro, o exército ocupou o


campus da UNAM, com a conseqüente violação da autonomia universitária.
Continuaram as mobilizações e os enfrentamentos entre as corporações, tanto policiais
quanto militares, e os estudantes, aos quais se haviam unido múltiplas pessoas (Ramírez
1998a[1969a]; 1998b [1969b]). Com a indignação social aumentando, a manipulação
oficial dos fatos com o ocultamento das cifras acerca dos detidos e dos mortos, assim
como o mutismo da Presidência da República para dar solução ao documento
peticionário, o CNG convocou um comício com a finalidade de efetuar uma marcha de

6
O Estado culpava os estudantes de tentarem gerar o caos durante as olimpíadas, de tratar de derrocar o
estado burguês, de formar centros de resistência e de guerrilhas urbanas, de converter escolas em
quartéis e das ruas em campos de batalha, de acusar Díaz Ordaz de ser um títere do imperialismo, de
retomar ideal da revolução cubana, de lutar junto à classe operária pelo socialismo, de programar atos de
terrorismo para destruir instalações públicas da Cidade do México e de hastear bandeiras marxista-
leninistas para provocar o colapso do governo de Díaz Ordaz (Corona del Rosal 1995).

54
protesto. Fixou-se a data de 2 de outubro, às 17 horas, na Praça das Três Culturas, em
Tlatelolco (figura 4). Era uma extensa área para alojar um amplo contingente, onde já se
haviam efetuado imensas reuniões em 07 e 27 de setembro (Ramírez 1998a[1969a]).
Nem os organizadores e nem as milhares de pessoas que assistiriam o comício
suspeitavam que Tlatelolco estava por converter-se no cenário de um dos mais
aberrantes atos genocidas da história moderna do México.

Figura 4. Plano da zona Centro-Oeste da Cidade do México, Distrito Federal, com a localização dos
principais lugares mencionados no texto. 1) Palácio Nacional; 2) Tlatelolco: Praça das Três Culturas; 3)
3ª Delegacia do Ministério Público; 4) Serviço Médico Forense; 5) Cruz Verde (Hospital Rubén Leñero);
6) Cruz Vermelha; 7) Campo Marte; 8) Panteão Civil de Dolores; 9) Campo Militar nº 1.

Não lutamos pela vitória, lutamos pela razão7


Em anos recentes têm saído à luz textos e imagens que contribuem para o
esclarecimento, em parte, dos fatos ocorridos em 2 de outubro de 1968. O general
Marcelino García Barragán, secretário da Defesa sob o governo de Díaz Ordaz, legou,
por ocasião de sua morte, documentos militares e outros reveladores documentos “para
a história, já que esta se escreve a longo prazo” (Scherer e Monsiváis 2002). Em 1998,
uma importante cadeia televisiva, deu a conhecer menos de 10 minutos das mais de 20
horas de material fílmico, com cenas que captaram várias câmeras que, por instruções
da Secretaria do Governo, colocaram-se nos arredores da Praça das Três Culturas, no
dia dos trágicos eventos (Canal Seis de Julho 2002; Gallegos 2000; Montemayor 1999:
429). Há, ademais, imagens fotográficas que sobreviveram a depredação que sofreram
todos os diários da capital e que, El Universal, publicou em 2002 (Almazán 2002a;
Rodríguez Reyna 2002). Igualmente, as impactantes tomadas de um fotógrafo
(parecendo cumprir ordens do Secretário de Governo) que captou as vexações, das quais
foram objeto estudantes que se abrigaram no edifício “Chihuahua” de Tlatelolco
(Martínez 2001a; Gil Olmos 2001 a). Conta-se também com novos testemunhos de
quem, por temer a repressão governamental, não tinha se atrevido a relatar o que viveu
em 1968 e, por fim, romper o silêncio. Ressaltam, assim mesmo, o acesso público aos
documentos desclassificados da CIA, do FBI, do Departamento de Defesa e da
embaixada dos Estados Unidos da América, no México (Doyle 2003). Da mesma

7
Este e os subseqüentes subtítulos são lemas e consignas do movimento de 1968.

55
maneira, os arquivos das extintas Direção Geral de Investigações Políticas e Sociais,
assim como os da Direção Federal de Segurança (DFS), que constam de milhares de
caixas com milhões de documentos, ainda que mutilados, nos quais se registram ações
repressivas associadas ao massacre de Tlatelolco (Scherer e Monsiváis 2004). Ao fato
de que estas peças que conformam um intrincado quebra-cabeças começam a unir-se,
vem sendo reconstruída a história da matança de Tlatelolco. Com essas bases e fontes
adicionais apresentamos uma versão canônica, onde se incorporam os fatos essenciais.

A demonstração foi programada originalmente para marchar desde a Praça das Três
Culturas8 até o local de umas das principais reuniões do IPN, relativamente perto. Os
oradores do CNG haviam eleito o balcão do terceiro piso do edifício “Chihuahua”, da
unidade de habitacional Tlatelolco (Figura 5), por sua altura e localização privilegiada,
frente a grande explanada. Microfone a mão, fizeram saber aos assistentes que se
cancelava a marcha por temor às ações de agitadores que levariam a repressão dos
manifestantes. Prosseguiram, expondo a situação política e tinham a intenção, ademais,
de relatar sobre a solidariedade internacional que vinha recebendo o movimento e os
avanços das brigadas informativas, entre outros aspectos (Álvarez Garín 2002:85
[1998]).

Figura 5. Panorâmica da Praça das Três Culturas, desde o edifício “Chihuahua”, mostrando, em
primeiro plano, as estruturas pré-colombianas da cidade de Tlatelolco e o templo de Santiago, parte do
edifício da Secretaria de Relações, à esquerda. No centro, a explanada da praça com o monumento
comemorativo aos caídos em 02 de outubro de 1968. Ao fundo, o edifício do ISSTE (foto de Jorge
Martínez Herrera).

Pelas 17h30min horas do dia 2 de outubro de 1968, uma multidão, que chegou a ser
calculada ao redor de 10.000 pessoas (Gil Olmos 2001b:18), cobria por completo o
amplo espaço. De pé ou sentados no solo, congregaram-se pacificamente homens,
mulheres, crianças, velhos, estudantes, professores, trabalhadores, jornalistas, uma

8
“A praça ... é um retângulo de laje elevado de dois ou três metros sobre o nível geral do piso. Está
rodeada pelas ruínas de Tlatelolco, ao poente; pela igreja de Santiago e, atrás delas, o edifício da
Secretaria de Relações Exteriores, pelo sul; pelo edifício da Escola Vocacional nº 7, do IPN e por alguns
edifícios de habitação da unidade, no norte; pelo edifício Chihuahua, no Oriente. Seus acessos principais
são dois corredores estreitos e uma escada central de 25 a 30 metros de largura. Somente pelo lado norte
o desnível é menor e pode-se sair facilmente” (Álvarez Garín 2002:86).

56
delegação dos trabalhadores ferroviários que apoiava o movimento estudantil (Mendoza
Gaytán 2004), gente comum como “vendedores ambulantes, empregadas domésticas
com os filhos nos braços, habitantes da Unidade, transeuntes que se detiveram a
curiosar, os habituais espectadores e muitas pessoas” (Poniatowska 1969).

Ninguém suspeitava o motivo do por que, paulatinamente, chegavam tropas e policiais,


inclusive tanques do exército, que se postavam nos principais pontos de acesso e ao
redor da praça (Montemayor 1999). Tudo parece indicar que o grosso dos integrantes
destes corpos desconhecia qual seria seu papel histórico. Além de manter a segurança
pública era o de “desalojar os estudantes da Praça das Três Culturas empregando a
prudência” (Scherer e Monsiváis 2002:111) e o de “repelir as ações dos grupos
subversivos, no caso de que se apresentasse uma situação com armas de fogo, pondo
especial cuidado em evitar, dentro do possível, desgraças com pessoas inocentes”
(Rodríguez e Lomas 2001).

Desde dias anteriores, os altos mandatários do governo haviam orquestrado uma


operação cujos responsáveis era Díaz Ordaz, o Estado Maior Presidencial e, muito
provavelmente, o Secretário de Governo, Luis Echeverría Álvarez, que se converteria
em presidente, em 1970. De fato, na corrida pela sucessão, assegurou que Díaz Ordaz
lhe dera a candidatura ante outros rivais, dos quais se avantajava em capacidades
repressivas no fatídico ano de 1968, garantindo a continuidade de uma política de
controle (Flores 2002; Petrich 2004). Echeverría usaria, ademais, suas influências e suas
relações com a CIA para impulsionar sua carreira presidencial (Agee 1975).

Em torno das 18h10min horas, um helicóptero lançou bengalas como sinal de início da
operação por parte de franco-atiradores do Estado Maior, os quais não portavam
uniformes e se encontravam localizados em vários edifícios, incluindo o “Chihuahua”.
Também estavam no teto abobadado da igreja colonial (Figura 6). Dispararam
indiscriminadamente contra civis e militares. Feriram o general que comandava os
efetivos quando, com um megafone portátil, exortava aos assistentes do comício que se
dispersassem (Álvarez Garín 2002:86 [1998]; Montemayor 1999:46). Os franco-
atiradores alimentaram o desconcerto com o objetivo de desatar uma escalada de
violência no exército que repelia a agressão, assumida como responsabilidade de
estudantes radicais. Os tanques ligeiros do Esquadrão Blindado avançaram sobre a
praça esvaziando cargas de metralhadoras contra o contingente e na direção do edifício
“Chihuahua”. Intervieram, ademais, o Batalhão de Fuzileiros Paraquedistas e o Batalhão
de Guardas Presidenciais (Montemayor 1999:48), entre outros. Entre fogos cruzados, os
civis fugiram apavorados para a igreja, transformada em paredão, ou bem, tratando de
dirigirem-se para a saída lógica, localizada em um corredor entre a praça e o edifício
“Chihuahua” (Álvarez Gárin 2002:86 [1998]), para serem interceptados por soldados
que os atacavam com baionetas caladas, transpassando-os, crivando-os de baionetaços.
Eram homens, mulheres, anciãos, crianças e, inclusive, mulheres grávidas (García
Hernández 1998; O’Donell 2003). Caiam feridos em qualquer parte, sangrando, sem
que ninguém lhes prestasse ajuda (Rodríguez 2002) ou desfaleciam sem vida. Os
disparos alcançaram, inclusive, residentes de alguns apartamentos. Em um lapso de
escassos dez minutos, a praça converteu-se em uma ratoeira e o edifício “Chihuahua” na
armadilha. (Gil Olmos 2001b: 18).

57
Figura 6. Localização dos franco-atiradores em vários imóveis circundantes à Praça das Três Culturas e
direcionamento dos disparos. 1) Praça das Três Culturas; 2) Edifício “Chihuahua”; 3) Igreja de
Santiago; 4) Escola do IPN; 5) Edifício da Secretaria de Relações Exteriores.

Paralelamente, nesse imóvel, os integrantes do Batalhão Olímpia9, membros da milícia


sob o comando da Guarda Presidencial, vestidos de civis e que portavam como
distintivo uma luva branca na mão esquerda, ou, quando na sua falta, um paninho
branco atado com nó, cumpriram ordens claras e cirúrgicas: bloquear o edifício
“Chihuahua”, deter os membros do CNG, tomar o segundo e o terceiro andar e atirar
contra a multidão (Taibo 1998). Dentro do imóvel labiríntico, dispararam à queima
roupa e impunemente contra os populares que buscavam refúgio dos apocalípticos
balaços na praça. Neste local, o tiroteio prolongou-se por 90 minutos, atingindo alguns
na planta baixa do edifício.

Na praça, o tiroteio tornou-se esporádico. Intensificou-se, novamente, em torno das


11h00min horas da noite. Já pela madrugada, os soldados formaram uma montanha de
corpos sem vida que depois foram transladados em veículos sem sigla nenhuma
(Alcántara 2002b; Castillo 2003). Posteriormente, os bombeiros entrariam em ação. No
meio de intensa chuva limparam os rios de sangue que corriam pela praça. Esta se
encontrava atapetada com peças de vestuário enegrecidas pela pólvora - perfuradas
pelas descargas das armas ou pelas baionetas -, sapatos, volantes do movimento
estudantil, restos de crânios, dedos de pessoas (Almazán 2002c; Rodríguez 2002).

Durante horas, o Batalhão Olímpia entrou à força nos apartamentos dos edifícios, em
particular do “Chihuahua”, onde muitos estudantes se haviam refugiado nos terraços ou
encontravam acobertamento com vizinhos. Foram detidos, golpeados, forçados a se
despojarem de suas roupas, ficando apenas em trajes menores (Álvarez Garín 2002: 88
[1998]; Gil Olmos 2001a:12-13). Até pode ser confirmado, grande parte dos jovens que
ficaram detidos extrajudicialmente foram transladados para instalações do exército
(Almazán 2002b, 2002c; Scherer e Monsiváis 2004:25).

A violência está contra nós, não em nós


Desde a madrugada do dia 03 de outubro, os familiares daqueles que haviam
desaparecido em Tlatelolco tentaram indagar sobre seu paradeiro em hospitais, tais
como o Rubén Leñero de La Cruz Verde ou o da Cruz Vermelha, bem como, nas
instituições judiciais e forenses da cidade. Em muitos casos, não tiveram êxito. Vários
familiares foram obrigados a aceitar que se expedissem certificados de falecimento onde

9
“O Batalhão Olímpia havia sido incorporado, em fevereiro de 1968, com a missão de custodiar as
instalações e exercer serviços de ordem nas futuras Olimpíadas. Dependia diretamente, em linha de
comando, do Estado Maior Presidencial e, por tanto, da Presidência da República. Havia sido formado por
contingente oriundo de tropas de todo o país e tinha um número de suboficiais mais alto do que o normal.
...em 2 de outubro havia sido reforçado por duas seções de cavalaria” (Taibo 1998).

58
constava que a morte tinha sido por causas naturais, condição para que lhes fosse
entregue os corpos (Ramos Pérez 2002; Taibo 1998).

Testemunhas da época viram como cadáveres de dezenas de crianças, jovens, mulheres


e adultos, que concorreram ao comício de Tlatelolco, desfigurados e destroçados pelas
balas expansivas de alto calibre e com baionetaços em suas costas (Almazán 2002c),
jaziam no Serviço Médico Forense (SEMEFO) e na 3ª Delegacia do Ministério Público
(Figura 7), entre outros centros e nosocômios. Poucos chegaram de ambulância ou em
táxis. A maioria em caminhão do exército, nos quais seriam transladados os indivíduos
que haviam falecido e que careciam de documentos que permitisse identifica-los, na
tarde de 03 de outubro (Rodríguez Reyna 2002). Tal situação é altamente provável que
teria acontecido em múltiplos casos, dado que seus executores os despojaram de suas
roupas e pertenças pessoais. Até hoje em dia, é um enigma quantos morreram como
resultado dos ferimentos que receberam na Praça das Três Culturas e o que ocorreu com
o destino dos cadáveres.

Figura 7. Jovens massacrados na Praça das Três Culturas (Álvarez Garin 2002:35 [1998]).

Muitos dos ativistas que sobreviveram à matança na Praça das Três Culturas foram
perseguidos. Houve inúmeros seqüestros. Centenas de pessoas ficaram isoladas e
detidas sem ordem de prisão, atrás das grades, em instalações militares. Posteriormente,
a maioria foi recolhida em penitenciárias. As vítimas foram objeto de todo o tipo de
atrocidades e torturas, golpes e pressões morais, para obrigá-las a prestar declarações
que coincidiriam com a história oficial dos fatos. Provas em contrário foram forjadas
(Álvarez Garin 2002:112-113 [1998]; Correa 2001:31) e, inclusive, executadas
sumariamente.

A imprensa foi obrigada a calar-se. Agentes da Secretaria do Governo saquearam


arquivos para garantir que desaparecessem as evidências gráficas: “estavam roubando a
história” (Almazán 2002c). Todavia, continuava o massacre em Tlatelolco, quando,
tanto nos noticiários quanto em quase todos os meios de comunicação, se dava conhecer
a versão oficial apresentada pelo governo. Com poucas variações, assim consistia: o
exército havia sido atacado por estudantes que atuaram como franco-atiradores. Não
houve mais outra alternativa do que iniciar o combate diante de tal provocação (Álvarez
Garin 2002:89 [1998]) daqueles que se dizia que eram terroristas e que pretendiam
derrubar o governo de Díaz Ordaz. Os vitimários convertiam-se em vítimas.

59
Os agentes do governo estadunidense acompanharam com suma atenção todas as fases
do movimento estudantil, prévias ao massacre. Primeiro, com a convicção de que eram
verazes os informes do governo do México acerca de que grupos comunistas
estrangeiros assessoravam os mexicanos ‘subversivos’. Depois, passado o 02 de
outubro, com a certeza de que nunca houve essa classe de incitadores nem conjura
comunista alguma para ser refreada. Os espiões deixaram assentado em suas
comunicações confidenciais, enviados aos seus superiores de Washington, que o
ocorrido em Tlatelolco era um indício da torpeza do governo Díaz Ordaz e de que os
dirigentes da milícia não acataram corretamente as ordens. Agregaram aos informes,
sem nenhum questionamento, que os estudantes acusados como franco-atiradores
haviam sido os responsáveis pela resposta do exército (Doyle 2003).

Praticamente em um contexto de estado de sítio evitou-se qualquer ação coletiva dos


estudantes, de maneira que os pressupostos “terroristas” não alterassem a “segurança
pública”. Assim mesmo, houve várias marchas e comícios de protesto. Eram
encabeçadas, inclusive, pelas mães dos desaparecidos (Figura 8), dos principais líderes
estudantis que estavam encarcerados e dos ativistas ocultados, como precaução para não
caírem presos. Com o medo generalizado, o movimento foi sendo desarticulado a
passos gigantes diante do autêntico terrorismo imposto pelo Estado, já que o
pensamento político que o fundamentou deixou semeada a semente em outros
movimentos (Álvarez Garín 2002:199 [1998]).

Figura 8. Manifestação de outubro de 1968 encabeçada pelas mães dos desaparecidos (Scherer e
Monsiváis 2002:148).

Calcula-se que, na matança em Tlatelolco, que foi um sangrento crime de Estado,


intervieram mais de 8.000 efetivos de soldados, granadeiros, policiais da Cidade do
México, polícia secreta de todas as categorias, polícia judicial e federal, Polícia
Montada, integrantes do Batalhão Olímpia, bombeiros e 300 veículos (tanques, carros
de combate, blindados e jipes com metralhadoras). A cifra de feridos alcançou o número
de 700, enquanto que o número das pessoas que perderam a vida no massacre segue
sendo tema de especulações. O saldo de estudantes e de trabalhadores que foram detidos
chegou a 2000. Alguns deles foram postos em liberdade, passadas horas ou dias. A
maioria sairia até dezembro de 1968. Mais de 800 indivíduos ficariam formalmente em

60
prisão, sem julgamento algum, até que Echeverría decretou, desde a presidência, uma
anistia, em 1971 (Taibo 1998; Zarco 1998).

Em setembro de 1969, Díaz Ordaz assumiu publicamente sua responsabilidade dos


fatos, legitimada nas atribuições constitucionais conferidas ao presidente da República.
Anos depois, declararia seu orgulho de ter servido a nação, em 1968 (Canal Seis de
Julho 2002). A final de contas foi sua mão dura que mobilizou as forças coercitivas do
Estado. Garantiu que ao som das fanfarras e aos olhos das potências estrangeiras,
desenrolaram-se os XIX Jogos Olímpicos, as ironicamente chamadas de “olimpíadas da
paz”.

Por meados de 1970, um ex-agente da CIA (Agee 1975) relataria que o governo
mexicano destruiu o movimento de protesto e, provavelmente, várias centenas de vidas.
O sucedido na Praça das Três Culturas estava ocorrendo em todo o mundo, entre as
pessoas que tratavam de mudar o sistema.

O exército é para defender o povo, não para agredi-lo


As dimensões sociais e culturais da repressão no México são as que investem de poder e
de significado o que é evidente, pelo fato de que o Estado está facultado para manipular
a dicotomia da violência (Scheper-Hughes e Bourgois 2005:1-2), segundo o que está
estipulado na legislação do país. Assim, a violência desatada pelo governo era legítima
frente ao movimento estudantil. Este foi declarado ilegítimo a partir de provas
artificiais10: sob tortura foram obrigados a assinar declaração na qual aceitavam, por
exemplo, ter realizado delitos de incitação a rebelião, associação delituosa, sedição,
dano em propriedade particular, ataques a vias de comunicação, roubo, despojo, porte
de armas, homicídio e lesões contra agentes da autoridade (Martínez 2003).

Por conseqüência, a resposta das forças públicas ‘da ordem’ era permissível e as ações
dos ‘agitadores’ estavam sujeitas a sanções por serem ilícitas. A mesma construção de
uma narrativa histórica oficial, o roubo da história, constituiu um ato violento. Nos atos
repressivos e sanguinários do governo, as recordações são selecionadas e controladas
para extirpar tudo o que se relacione com a indignação moral. Por acréscimo, elimina-se
da memória histórica. Qualquer protesto é etiquetado como subversivo. Manipula-se a
contagem dos cadáveres até volatilizá-los. A amnésia forçada constitui um instrumento
coercitivo do Estado (Monsiváis 2001: 21-22).

O desaparecimento forçado de pessoas é um crime contra a humanidade, segundo o


direito internacional. Nos sistemas políticos democráticos, ainda que sejam nas
aparências, como no caso de mais de 70 anos da história mexicana, os crimes que
comete o governo contra setores inconformados da população, devem ser categorizados
como terrorismo do Estado. Tal circunstância gera a impunidade, ao impedir o
prosseguimento nas investigações que aporte provas para perseguir e castigar os
culpados dos atos genocidas, como o de 2 de outubro de 1968 (Martínez 2001b:29,31).

O genocídio, segundo tratados internacionais subscritos pelo México, inclui aqueles


atos que se cometem com a intenção de eliminar, em seu conjunto ou em parte, grupos

10
Para o Estado, a finalidade do movimento estudantil era “derrubar o governo constituído na República
Mexicana e substitui-lo por um regime comunista de operário, estudantes e camponeses” (Castillo et all.
2002).

61
nacionais, étnicos, raciais ou religiosos; de assassinar membros destes grupos ou causar-
lhes sérios danos físicos e mentais e, inclusive, submeter o grupo a condições de
existência que acarretem sua destruição física, total ou parcial (United Nations 1951
[UN]).

Além do mais, é preciso considerar que os desaparecidos não estão mortos. Estão
desaparecidos:
...considera-se desaparição forçada, a privação da liberdade a uma
ou mais pessoas, qualquer que seja a sua forma, cometida por
agentes do Estado ou por pessoas ou por grupos de pessoas que
atuem com a autorização, o apoio e a aquiescência do Estado,
seguidas da falta de informação ou da negação em reconhecer dita
privação da liberdade ou de informar sobre o paradeiro da pessoa,
com o qual se impede o exercício dos recursos legais e das
garantias processuais pertinentes (Comissão Inter-americana de
Direitos Humanos 1995 [CIDH]).

A prática de desaparecimentos forçados, na América Latina, data de princípios do


século XX. Consolidou-se na década dos 1960. A lógica desse mecanismo, se é que a
tem, é que, ao desaparecerem as vítimas, não há vitimário e nem delito. Esta política
repressiva instaurou-se, principalmente, por ditaduras militares. Foi aplicada, no caso de
alguns países - o México, a Colômbia e o Peru, por exemplo - por governos
“democraticamente” eleitos (Molina Theissen 1998).

No México, a mascarada ditadura do PRI e o poder de todo o seu aparato de Estado,


incluindo centrais operárias e camponesas, solidificou um marco de submissão social
que afeta todos os setores do país. Possibilitou que, dentro de um marco jurídico
nacional, as desaparições fiquem impunes até o presente. A partir de dezembro de 2000,
a ascensão à presidência de Vicente Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN),
representou esperanças de que ocorreria a “mudança” democrática, prometida em sua
campanha como candidato. Da mesma forma, geraram-se expectativas entre os
familiares e amigos dos desaparecidos e do povo mexicano em seu conjunto. A
instauração, em 2002, da Fiscalização Especial para Movimentos Sociais e Políticos do
Passado (FEMOSPP) parecia responder as demandas que nunca foram atendidas com
rigor e transparência. No entanto, os avanços têm sido limitados e a impunidade
persiste, não só com os casos do passado, senão que a estes se somam outros de
desaparições forçadas e de execuções extrajudiciais, no atual regime (Anistia
Internacional Seção Mexicana 2005; Avilés Allende 2002; Castillo 2005; Correa 2002;
Granma 2004; Sullivan 2005).

Os desaparecidos do movimento estudantil de 1968 podem ser caracterizados como


pessoas privadas de sua liberdade por agentes do Estado ou com autorização deste, de
tal forma que não se lhes pode considerar, em definitivo, como mortos. Organizações de
familiares dos desaparecidos exigem a volta de seus familiares, com consignas como a
do Comitê “Eureka”11: “Vivos os levaram, vivos os queremos” (Herrera e Castillo
2003). Ou declarações como:

11
Comitê Pró Defesa de Presos, de Perseguidos, de Desaparecidos e de Exilados Políticos. É uma das
primeiras organizações de direitos humanos que se constituiu no México (Anistia Internacional 2002).

62
Não decidiremos que estão mortos. Isto simplesmente não
se decide. Eles estão desaparecidos. É precisamente o que
o mau governo espera de nós. Que assumamos o pior, sem
dizer e nem assumir responsabilidades. Que esqueçamos.
Que sintamos que este é um assunto do passado, em de
vez um, dilacerante, de nosso presente (HIJOS-MÉXICO
2005).
Com isto, é factível pensar que não só deve-se determinar o paradeiro daqueles que
sucumbiram ante os balaços da Praça das Três Culturas, senão que, também daqueles
indivíduos que tenham ficado sob a categoria de desaparecidos. Dentre estes, um
número indeterminado foi assassinado, daí a pertinência de delinear um plano de
investigação forense que chegue a contribuir para com o esclarecimento dos fatos.

Não mais armas do que seu sangue


As fontes documentais coincidem em que, na madrugada de 03 de outubro, os soldados
estavam empilhando uma infinidade de cadáveres na Praça das Três Culturas (Alcántara
2002b). Um general declarou ter visto 38 cadáveres de civis na explanada da praça,
corpos de 4 soldados nesse mesmo lugar, além de uma criança que sucumbiu com
balaços no edifício “Chihuahua” (Corona del Rosal 1995). Vários dos manifestantes
sobreviveram, ao ficarem protegidos pelos corpos dos caídos no tiroteio. Foi o caso de
um jovem sul-americano que conseguiu cobrir-se com os corpos sem vida de um ancião
e de uma mulher, dois, dentre a centena dos cadáveres que viu (Anonymus 1968:16).
Por um testemunho de um ex-piloto da empresa paraestatal PEMEX (Petróleos
Mexicanos), o qual diz ter participado no translado de corpos de Tlatelolco, sabe-se que
houve cadáveres que foram arrojados no mar. Tal informação coincide, em parte, com a
documentação integrada as investigações da Comissão da Verdade, nas décadas dos
anos 1990, onde se faz constar que aviões militares arrojaram corpos no Golfo do
México (Taibo 1998).

Existem testemunhos sobre o que, paralelamente, ocorria nos hospitais, aonde chegaram
bastante feridos, inclusive de morte. Segundo relata um fotógrafo, o qual “recorda muito
a um jovem ... atirado em um dos corredores. Um balaço havia rebentado o estômago.
Sou da Universidade de Sinaloa, diz o jovem ao fotógrafo. Queres que avise a alguém?
Não, vão se enfurecer. Em um momento, quando regressei para tirar outras fotos, o
jovem seguia estendido no piso, já morto” (Almazán 2002c). A brutalidade com que
foram massacradas centenas de pessoas ficou evidenciada nos testemunhos dos médicos
que atendiam aos feridos nos nosocômios. Recordam o ocorrido no Hospital Leñero da
Cruz Verde que, “... era um rastro, chegavam ensangüentados, sem mãos, baleados”
(Aguirre 2002).
Ajudantes no SEMEFO foram testemunhas da matança cometida. Afirmam sobre os
corpos. “Têm algo em comum: mostram o uso adestrado das baionetas e dos disparos de
armas de fogo com balas expansivas. Sabiam onde atacar. As feridas não estão nos
braços, nas pernas ou em um pé. Estão no coração e nos órgãos vitais”. Inclusive, para
eles, era impressionante ver que “os cadáveres tinham destroçado o tórax”. Mostram o
“crânio desfeito por instrumento cortante-contundente”. É evidente um “traumatismo
brutal”. Observa-se em um corpo uma “ferida por projétil expansivo na cabeça”. As
“feridas apontam para o coração”. Há “grande fluxo de sangue sobre o
abdômen”...”Eram balas do exército. O soldado na batalha tem um propósito: destruir,
matar...” (Rodríguez Reyna 2002).

63
A crueldade repressiva manifestou-se nos nosocômios ante a impotência dos médicos e
das enfermeiras que tratavam inutilmente de cumprir com seu dever. Pois “os
granadeiros e os [policiais] secretos vinham e nos tiravam os jovens dos quirófanos,
onde os estávamos operando, e os levavam. Onde foram estes jovens e se morreram,
ninguém o sabe” (Taibo 1998). Diz-se que na 3ª Delegacia do Ministério Público havia
mais de 40 cadáveres de jovens entre os 18 e 20 anos (Canal Seis de Julho 2002) cujo
paradeiro se desconhece. Na maioria destes casos, mesmo pelo que apontaram os
vizinhos do bairro que, comentaram que durante os dias posteriores da matança
“cheirava a carne queimada, pois, diziam, estavam queimando os jovens em fornos”
(Almazán 2002b). Muitos dos corpos que se encontravam no SEMEFO, em 03 de
outubro, despojados de suas roupas e de identificações12, foram desaparecidos pelo
exército, pois:
Entravam militares. Vinha falar com o diretor. Baixavam
os militares, subiam... As instalações estavam como que
tomadas por militares. O controle tinham eles. Metiam-se
no anfiteatro, estavam ali. Assomavam-se... Na tarde,
chegaram veículos do Exército a recolher os corpos que
não tinham identificação. A ordem foi que os levassem ...
(Rodrigo Reyna 2002).
Surge a pergunta: para onde transladaram os cadáveres e o que se fez com eles? Para
tanto há que se levar em conta uma série de testemunhos que falam da possibilidade de
que alguns corpos foram cremados e outros enterrados pelo exército, em instalações
militares da Cidade do México, como o Campo Marte, o Campo Militar nº 1, no
Panteão Civil de Dolores, próximo ao último campo citado. Também nas faldas de um
vulcão extinto que se encontra relativamente próximo da Cidade do México. Cabe
destacar que, antes do massacre de 02 de outubro e em meio à repressão que havia
desatado o governo contra os estudantes “a um correspondente estrangeiro que
perguntou se já se haviam identificado alguns dos estudantes que se diz que morreram o
comitê [de greve] lhe disse que, de um lado ‘ao governo não lhe convém apresentar os
corpos’, de outro, ‘ temos notícias de que os corpos foram cremados no Campo Marte”
(Ramírez 1998a:202 [1969a]).

Adicionalmente, entre os ativistas da época, soube-se que depois dos sangrentos eventos
em Tlatelolco, vários corpos foram transladados em veículos militares e em carros de
combate, para o Campo Militar número 1, onde foram incinerados. Neste local, da
mesma forma, inclusive alguns indivíduos feridos, ainda vivos, pois “desses veículos
saiam, todavia, lamentos e assim os queimaram ... sobre eles agiram nossos soldados
mexicanos” (Alcántara 2002a). Acrescentado a estes terríveis testemunhos, causa
suspeita que os altos mandatários do exército sigam pretendendo que não houve
cremação de cadáveres em instalações da milícia e, menos ainda, em tal Campo:
Diziam que se utilizou, para incinerar, cinco mil
cadáveres. Ponho-me a pensar que, para cremar um
cadáver se demora três horas e, em primeiro lugar, aí não
existe incineradores. Em segundo lugar, e, o mais
importante, onde estão estas cinco mil mães. Porque
diziam que houve esse número de mortos em Tlatelolco,

12
Em um informe do diretor do SEMEFO, com data de 17 de outubro de 1968, registra-se que somente
houve “26 vítimas reconhecidas” (Cuellar 2003).

64
..., que lutariam como as Mães da Praça de Maio, na
Argentina. Se alguém é culpado, que se o acuse (Garduño
y Pérez 2001).
Por outra parte, o já citado Luiz Echeverría Álvarez, titular da Secretaria de Governo
em 1968, e que, como possa parecer, teve uma participação ativa na matança de
Tlatelolco, já como presidente do México, orquestrou outra operação. Em 10 de junho
de 1971, uma manifestação estudantil pacífica foi reprimida pelos “Falcões”, grupo
paramilitar sob as ordens diretas do governo, com um saldo extra oficial de até 125
mortos (Ramírez Cuevas 2003). Desta quinta, do Corpus Christi de 1971, há um
testemunho de que o presidente fez circular instruções telefônicas acerca do que devia
fazer-se com os aprisionados e com os mortos. Echeverría, talvez com base em suas
experiências em outubro de 1968, foi enfático:
Feridos? Leve-os ao Campo Militar. Não permitam fotografias
... Ferido um dos nossos? Morto? Ao Campo Militar. Existem
mais enfrentamentos, muitos mortos? Todos para o Campo
Militar. Para a Cruz Verde? Não, não. Não permitam fotos.
“Queime-os” ... Queimem os mortos. Que não reste ninguém.
Não permitam fotografias (Scherer e Monsiváis 2004:52-53).
Ainda quando a referência não se associa de maneira direta com o massacre de
Tlatelolco, indicaria que a cremação de corpos dos opositores ao sistema era uma
prática utilizada e conhecida pelos altos mandatários do governo. Devido ao fato de ter-
se feito desaparecer os cadáveres com a destruição dos restos ósseos pela ação do fogo,
a investigação forense enfrentaria obstáculos intransponíveis.

Por conseqüência, entre as instalações militares, destaca-se uma em particular, sobre a


qual se faz referências em relatos do exército13 (Rodríguez e Lomas 2001), alem de que
é recorrente nos testemunhos dos que ficaram atrás das grades, em outubro de 1968. Um
de nossos informantes foi detido semanas antes do evento sangrento, por fatos não
vinculados com o massacre de Tlatelolco, em função de suas ligações com organizações
de esquerda desde muito tempo. Depois de sofrer torturas físicas, ficou preso, isolado e
incomunicável em um cubículo localizado num compartimento subterrâneo, no Campo
Militar número 1. Segundo relata, a pior tortura que quase o enlouqueceu foi que
ninguém falava com ele. Este silêncio foi quebrado por um soldado, com o qual tratava
de obter informação acerca de atividades guerrilheiras e sobre o movimento
universitário. Dito soldado, o informou que, por ter falado com ele, os seus superiores o
haviam castigado. Isto é, não o enviaram a Tlatelolco, apesar de seu “desejo de matar
estudantes”. Até a madrugada de 3 de outubro, foram aprisionados neste cubículo,
centenas de participantes na manifestação da Praça das Três Culturas, alguns feridos.
Dias depois, ele e outros dos detidos, foram liberados, uma vez que se obrigaram a
vestir uniformes do exército. Para seu assombro, entre as listas de desaparecidos e
mortos na noite de 2 de outubro, encontrou seu nome. Seus companheiros o
aconselharam que, para seu próprio bem, evitasse esclarecer diante das corporações
policiais que continuava vivo.

13
Assim como em outros dos fatos ocorridos em 1968, as fontes governamentais são contraditórias. Há o
caso de um general que nega categoricamente que no Campo Militar número 1 houvera torturas e que lá
desapareceram os estudantes capturados em 2 de outubro de 1968. Presumivelmente, só ficaram detidos
de forma transitória e, deste local, simplesmente conduzia-se os estudantes as autoridades civis, cujas
instalações careciam de espaço adequado (Garduño e Pérez 2001). Um testemunho adicional, de alguém
que se diz ser irmão de um soldado, relatou que nesse campo militar há milhares de cadáveres em fossas
clandestinas.

65
Dentre os ativistas do CNG que ficaram presos até janeiro de 1969, no Campo Militar
número 1, para depois serem liberados, um deles nunca mais foi visto. Trata-se de um
caso de desaparecimento forçado, como conseqüência direta da repressão estudantil de
1968 (Castillo e Méndez 2005).

Estes testemunhos complementam a outros análogos. Evidenciam que, possivelmente,


alguns dos desaparecidos foram executados extra judicialmente por seus captores:
Alimentaram-nos muito bem, porém, na noite ouviam-se
disparos e alguns dos que nos vigiaram diziam que estavam
formando ‘quadro’, que estavam matando a alguns ... no Campo
Militar número 1 nos levaram a cubículos com camas de metal.
Despertaram-nos pela meia noite e nos diziam que iam nos
fuzilar. Havia ferroviários, funcionários de banco, estudantes.
Golpeavam-me muito. A tortura também era psicológica.
Retiravam pessoas e se ouviam tiros. Todos temiam. Nunca vi
que regressassem (Gil Olmos 2001a).
Com relação à inumação daqueles que foram assassinados, tempos atrás, um dos
integrantes do movimento estudantil de 1968, já desafortunadamente falecido,
comentou, com seus companheiros de luta, que os coveiros do Panteão Civil de Dolores
o haviam informado que ali se depuseram corpos do massacre de Tlatelolco. Estavam
em tumbas legalmente registradas e, inclusive, mostraram em que zonas do campo santo
se encontravam os cadáveres. Não obstante, o dado preciso desta informação, perdeu-se
com a morte deste ativista. Por tal situação, carece-se de segurança com relação a esta
localização.

Além disso, um afamado caricaturista mexicano, cuja obra se centra na sátira política,
declarou que foi seqüestrado nos inícios de 1969 (Sánchez González 2004) e esteve a
ponto de ser executado por agentes da DFP, os quais o confessaram que “em um local
do Nevado de Toluca havia umas árvores marcadas com cruzes, debaixo das quais
estavam enterrados alguns dos desaparecidos de 1968” (Aranda 2002).

Por conseqüência, com base nas fontes documentais e nos testemunhos, é altamente
provável que, ao menos no Campo Militar número 1, no Panteão Civil de Dolores e em
um ponto indeterminado do Nevado de Toluca, poderia ser factível recuperar restos
ósseos de alguns dos indivíduos que perderam a vida no massacre de Tlatelolco. Da
mesma maneira os restos de outros que ficaram detidos e foram executados tempos
depois.

Porém, cabe questionar de quantas pessoas poderia tratar-se. O governo confeccionou e


impôs uma história oficial em torno dos fatos ocorridos em Tlatelolco. Em definitivo, é
difícil estimar quantos morreram entre 2 e 3 de outubro de 1968, entre julho e estas
datas, quando dos enfrentamentos entre as forças da ordem e os estudantes, ou,
posteriormente, ao menos até os inícios de 1969. Em meados de 1970, o ex-presidente
Díaz Ordaz, freava sardonicamente as tentativas de esclarecer o número dos caídos sob
os balaços:
... mencionam centenas de mortos, desgraçadamente houve
alguns, não centenas. Tenho entendido que passaram de 30 e
não chegaram a 40, entre soldados, amotinadores e curiosos.
Dir-se-á que é muito fácil ocultar e diminuir, porém, eu intimo a

66
quem tenha valor de suas próprias opiniões e sustenta que foram
centenas, que apresente alguma prova, ainda que não seja direta
e concludente. Poderia-nos bastar com o seguinte. Que nos faça
uma lista com os nomes. Poderá dizer como já se disse em
outras ocasiões, que se deseja ... fizeram-se desaparecer os
cadáveres, se ocultaram clan... sepultaram-se clandestinamente,
se incineraram, isso é fácil; não é fácil fazê-lo impunemente,
porém é fácil fazê-lo ... (Canal Seis de Julho 2002).

Causa assombro o evidente descaramento e a prepotência nestas palavras, “tenho


entendido que passaram de 30 e não chegaram a 40”. Como se a diferença entre um
número e outro, na perda de vidas humanas, não fosse importante. Na madrugada de 3
de outubro de 1968, estas cifras foram impostas pelos agentes governamentais que
tomaram as instalações dos jornais, para destruir as crônicas dos eventos e levar os
materiais fotográficos, gritando: “Las fotos, cabrón, las fotos!... Nada mais do que 33
mortos, 33! Ah? Essa é a cifra oficial! ... São ordens do Governo, de Echeverría! ... É
uma ordem presidencial! Díaz Ordaz quer ocultar tudo! Ocultar tudo!” (Almazán
2002c).

A partir deste momento, durante muitas décadas, essa foi a quantidade de mortos no
massacre. Foi predeterminada pelo governo, ainda que com inconsistências. Porém, os
sobreviventes e as testemunhas começaram a falar e a mencionar que haviam visto
muitos corpos no edifício “Chihuahua”, onde “... havia vários cadáveres empilhados, na
saída. Um soldado me disse que não continuasse dando voltas e, de relance, consegui
ver os cadáveres, um em cima do outro. Estavam seminus” (Gil Olmos 2001a). Um pai,
desesperado, tratava de localizar seu filho. Afirmou ter visto 121 vítimas sem vida
(Jardón 2003:38). Enquanto isto, no SEMEFO “... já começava a se juntar gente,
buscando seus familiares. Toda essa madrugada houve enormes filas de carros fúnebres.
Eu devo ter visto mais de 500 cadáveres, todos mortos por balaço” (Almazán 2002c).
Este cálculo se reforça com o que comentou um soldado com um dos estudantes
estrangeiros detidos no Campo Militar número 1, orgulhoso de que os militares haviam
matado “500 de vocês, comunistas” (Anonymous 1968). Entre os ativistas do CGG,
tem-se falado, recentemente, de 635 estudantes que foram assassinados na Praça das
Três Culturas (Alcántara 2002a), enquanto que Agee, detrator da CIA, recorda que na
Embaixada dos Estados Unidos no México o rumor era de que tinham sido crivadas 82
pessoas, podendo passar de uma centena ou mais de mil (Rocha 2002). A constante
ausência de denúncias, desde aquela época, foi o resultado de que o governo e os
envolvidos nos fatos têm mantido sob ameaças, as testemunhas, os sobreviventes, os
familiares e os amigos de todos aqueles que desapareceram, para garantir seu silêncio.
“... nos dias, semanas, meses e anos que se sucedeu a matança de Tlatelolco era
comum escutar as denúncias dos familiares das vítimas. ‘Além de nosso penar, nos
ameaçam com a morte’. Muitos ... cessaram na busca pela justiça, outros, organizados
ou não continuam nela” (Alcántara 2002a).

Vemos-nos forçados, portanto, a regressar a pergunta que formuláramos. A mesma


segue sem resposta, já que a DFS incorreu em contradições ao maquiar a história oficial
e, com sangue, “arredondou” para 30 o número de pessoas assassinadas. Nas listas
expedidas em 4 de outubro de 1968, o saldo era de 26 mortes que, incluíam 4 mulheres
e um soldado. No entanto, na lista de 31 de janeiro de 1969, figuravam 26 civis, 2
militares e mais uma criança cujo nome aparecia tanto na relação dos mortos quanto na

67
dos feridos (Jardón 2003: 38). Em 6 de outubro de 1968, integrantes do CNG
declararam que, até este momento, se sabia que 100 pessoas haviam perecido, ainda
quando se considerava que o saldo final dos mortos em Tlatelolco não tinha sido
fechado (Ramírez 1998b:410 [1969b]). No estrangeiro, os meios de comunicação
falavam de 130 estudantes e de até 325 mortos (Jardón 2004:40). Cálculo semelhante
fez um operador de câmera de acordo com o número de caminhões nos quais se
transportaram os corpos, uns 300, desde a Praça das Três Culturas, na madrugada de 3
de outubro (Caballero 2003). Além do mais, há que se levar em conta os documentos
desclassificados, dos serviços de inteligência norte-americana, entre os quais existe um
relatório confidencial onde se menciona que “... como é típico no México, as estatísticas
precisas com respeito ao número de mortos na batalha de 2 de outubro, não se pode
determinar. Os informes que se tem recebido alcançam até 350 mortos. O melhor
cálculo da embaixada é que esta cifra vai de 150 a 200” (Defense Intelligence Agency
1968:9).

De tal forma, a versão do governo fica claramente superada por outras fontes e
testemunhos disponíveis que indicam que, como resultado dos fatos violentos do 2 de
outubro, tal vez se perderam 500 vidas humanas. No saldo definitivo haveria, além
disso, que agregar um número indeterminado de pessoas que foram executadas extra
judicialmente no Campo Militar número 1, em datas posteriores. Também um número
em torno de 200 mortos que se reportou para fins de julho (Ménendez Rodríguez
1968a), dos quais se desconhece sua sorte, já que, ao que se parece, um número
indeterminado de cadáveres foram cremados. Ficaria, então, por elucidar qual foi o
destino de, talvez, cerca de 700 ou mais pessoas que pereceram em mãos do governo
nos fatos violentos que se iniciaram em julho de 1968.

Unidos venceremos!
Para além das demarcações do campo de ação das diferentes ciências forenses ou da
aplicação de heurísticas específicas, a concorrência de disciplinas no esclarecimento dos
fatos violentos que resultaram na morte de seres humanos está determinada pelos
sistemas jurídicos vigentes em cada país que, restringe, anulam ou promovem a
participação de especialistas nos estudos (Boddington et all. 1987; Hunter et all. 1996;
Joyce e Strover 1991; Rodríguez 1994; Sanford 2003; Skinner et all. 2003; Stewart
1979).

No que diz respeito ao México, a Arqueologia é competência do Estado e do exercício


profissional. De tal maneira que, através de legislação relacionada com o patrimônio
cultural pré-histórico pré-hispânico e histórico (até os últimos anos do século XIX), em
seu conjunto, é propriedade da nação. Os arqueólogos são os únicos facultados para
levar a cabo investigações enfocadas no estudo dos materiais do passado. Estes incluem
bens móveis e imóveis, assim como restos humanos, em cuja recuperação podem
intervir antropólogos físicos, sempre e quando for dentro de um marco de projetos
supervisionados por arqueólogos. Desde a prospecção, passando pela escavação, até a
análise dos materiais, os projetos, programas de trabalho e informes são sancionados
pelo Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH). É o organismo federal
através do qual o Estado pode impedir a consecução de estudos específicos com base
nas disposições regulamentares do mesmo INAH. As intervenções em contextos
arqueológicos que datam do século XX ficam, por conseqüência, legalmente excluídas
da investigação arqueológica no país. Para tal, não se conta com um marco jurídico que

68
sustente a Arqueologia Forense como parte da estratégia de investigação da
Arqueologia Histórica, como ocorre em outros países (Cox 2001; Crist 2001).

A Antropologia Forense também se encontra em um limbo legal. Nela participam


antropólogos físicos em análises forenses, fundamentalmente de laboratório. Estão
sujeitadas aos delineamentos do SEMEFO e da Procuradoria Geral da Justiça ou, em
sua falta, das procuradorias estatais, que marcam que nas ações periciais, os médicos
forenses, nos processos penais, devem intervir e expedir quaisquer ditames para possam
ser avaliados ante o Ministério Público e as autoridades judiciais. Em condições
especiais, a Suprema Corte da Justiça pode autorizar que atuem peritos especiais
externos as instâncias governamentais, via pela qual, eventualmente, poderiam
incorporar-se tanto arqueólogos quanto antropólogos físicos em investigações que
pudessem contribuir com a definição do que ocorreu com aqueles que desapareceram na
raiz do movimento estudantil de 1968.
Por conseqüência, se requereria implantar um projeto arqueológico interdisciplinar, no
qual, participariam ativamente tanto arqueólogos quanto antropólogos físicos,
criminalistas, médicos, historiadores, sociólogos, economistas, especialistas em
legislação nacional e internacional em matérias de crimes contra a humanidade e de
violação dos direitos humanos. O objeto teórico e as repercussões práticas deverão
centrar-se na explicação dos fatos associados com os crimes de Estado e sobre qual é o
paradeiro das pessoas que foram objeto de desaparecimentos forçados. Os especialistas
existentes no México têm sido formados no próprio país. Em determinadas ocasiões têm
complementado seus conhecimentos no estrangeiro. O que falta é a disposição política
do Estado, para empreender um estudo científico do massacre de Tlatelolco e de suas
seqüelas.

Para realizar investigações desta classe seria necessário organizar um projeto acadêmico
e social de recuperação da memória histórica. Seria integrado por especialistas nos
diferentes campos a investigar, por sobreviventes e por familiares dos desaparecidos. Os
estudos se enfocariam em tratar de esclarecer os fatos de violência e suas causas,
analisando os antecedentes do movimento estudantil e suas fases, reconstruindo os
contextos históricos, políticos, sociais, econômicos e militares. Uma das metas seria a
identificação tanto dos atos quanto dos atores da violência e do terrorismo desde o
Estado: as vítimas da repressão como grupos e em nível individual, além da localização
dos mortos e dos desaparecidos (Echeverria 2004; United Nations [UN] 1991), para
assim, definir as bases que possibilitem ajuizar os responsáveis pelos crimes.

Com relação ao movimento estudantil de 1968, estas tarefas são extremo complexas. O
Estado destruiu ou, todavia, mantém oculta a documentação que deveria aportar provas
que sustentem os fatos, incluindo listas completas com os nomes daqueles que foram
vitimados. Isto porque os amigos e familiares das vítimas têm preferido calar ante as
ameaças do governo e continuam sem apresentar denúncias (Castillo 2004:7). Ainda
quando existem testemunhos acerca de alguns locais onde possivelmente se inumaram
corpos (Campo Militar número 1; Panteão Civil de Dolores e o Nevado de Toluca, ao
menos), até o presente, não se conseguiu realizar intervenções arqueológicas por serem
instalações do exército que estão sob o foro militar, de maneira que não tem sido
factível corroborar a presença de fossas clandestinas.

Este tipo de investigações poderia efetuar-se em dois sentidos. Por um lado, haveria que
recolher informação entre os funcionários governamentais que foram protagonistas ou

69
co-participantes dos fatos, desde a cúpula, dado que o presidente é o chefe supremo das
forças armadas e responsável pelas políticas seguidas dentro do país. Na mesma linha,
desde os mandos médios e baixos, passando por todas as autoridades federais, locais,
judiciais e militares, assim como, com os empregados e prestadores de serviço de saúde
nos casos muito específicos. Por outro lado, pode-se investigar os fatos desde baixo.
Baseando-se nos testemunhos dos sobreviventes, dos executores e daqueles que
estiveram envolvidos como indivíduos ou coletivamente nos atos de violência e
repressão ou que foram objeto de vexações, tratando de reconstruir os eventos que
ocorreram.

O trabalho de Arqueologia e Antropologia forenses, em particular, se centraria na


recuperação dos restos ósseos daqueles que foram massacrados na Praça das Três
Culturas. Assim como, daqueles que foram detidos e posteriormente desapareceram ao
serem assassinados pelos seus captores, considerando que seus corpos foram
depositados em lugares clandestinos. Os estudos constariam de cinco fases básicas e de
uma complementar, de apoio aos familiares e aos sobreviventes:
1. Histórica: recuperação de fontes documentais de arquivo, hemerográficas,
filmográficas, fotográficas e audiofônicas.
2. Testemunhal: recopilação e processamento da informação obtida de maneira oral
dentre as testemunhas dos fatos ou dentre aqueles que tiveram conhecimento destes,
através de terceiros, mantendo, com este procedimento, o anonimato daqueles que
revelaram dados.
3. Legal: apresentação de denúncias, solicitações e trâmite de permissões para realizar
trabalhos de campo (prospecção e escavação) condizentes com a exumação de restos,
expedição de ditames de acordo com os requerimentos do aparato judicial, entre outros.
4. Arqueológica: prospecção geofísica e escavação de depósitos, definição dos
processos naturais e culturais de formação dos contextos de enterramento (Schiffer
1987), registro detalhado, recuperação controlada de evidências materiais, seleção de
amostras do campo para análises específicas de especialistas, reconstrução da posição
anatômica dos indivíduos em campo e em laboratório, assim como análises de artefatos
em laboratório.
5. Antropológica: recuperação in situ dos restos ósseos, análises de laboratório,
principalmente as osteométricas, osteológicas, odontológicas, genéticas e químicas,
requeridas para a identificação dos indivíduos e para a determinação das causas que
provocaram as mortes.
6. Psicológica: tratamento de saúde mental, incluindo os tanatológicos quando
necessário, de apoio aos familiares das vítimas.

Os resultados das intervenções fariam parte de um informe técnico no qual se


detalhariam todas as tarefas realizadas e o processamento dos dados analíticos que se
conjugariam com os testemunhos e com os registros pessoais das vítimas. Além disso, a
explicação das razões que permitiram a identificação de indivíduos quando tenha sido
factível.14 Com base nestes informes, conforme o correto, poder-se-ia apontar
responsabilidades e requerer os delitos, segundo o caso, tarefa que corresponderia a
juristas e a outros especialistas.

14
Equipe de Antropologia Forense da Escola Nacional de Antropologia e História (EAFENAH) que, em 1998
e 1999, elaborou uma metodologia quando participou no estudo de restos ósseos de desaparecidos na
República da Guatemala.

70
A cor do sangue jamais é esquecida
No México, o passado se inserta no presente, no imaginário coletivo e nas lutas sociais
ao tratar-se de eventos que ensangüentaram o país. Preserva-se e se reproduz a memória
dos fatos violentos dirigidos pelo governo para truncar ações reivindicatórias daqueles
que pugnam por aberturas políticas e libertárias. O Estado cala as vozes de protesto pela
via da força através da imposição do terror e do assassinato. Desde anos até o presente,
mantêm-se os privilégios de um regime corrupto e corruptor (Reding 1995). Apesar dos
clamores que exigem justiça e o castigo dos responsáveis por assassinatos políticos,
desaparecimentos forçados, torturas e genocídio, prevalece a impunidade dos
executores15. Vitimários que orquestraram massacres negociaram e executaram ordens
para matar inocentes, cujo único pecado foi externar sua opinião contrária a
governamental.

Apesar de que desde 2001 existe um marco de presumível abertura e acesso a


informação, o direito a verdade das causas de incidentes passados se parcializa, pois,
mutilam-se os poucos acervos documentais abertos à opinião pública, enquanto que
outros se conservam em arquivos secretos do Estado (Scherer e Monsiváis 2002, 2004).
Organismos, como a Anistia Internacional, reportam que continuam as apreensões
ilegais, a tortura, a violação dos direitos humanos e o desaparecimento de pessoas
(Anistia Internacional 2001, 2002) que se atrevem a impugnar o status quo, de
participantes de movimentos políticos tanto nos âmbitos urbanos quanto nos rurais. Para
massacres como o de 2 de outubro de 1968, a impunidade dos altos mandatários do
país, do exército, da presidência mesma, tem sido cimentada ao silenciar os executores
de menor categoria, nulificando e inclusive assassinando testemunhas e atores que
poderiam ter implicado seus superiores (Maza 1988). Outra via para evitar que se faça
justiça, sustenta-se em um marco jurídico ambíguo, de maneira que a tipificação dos
crimes exime os responsáveis de sua culpa, devido ao tempo transcorrido. Este tem sido
um eficiente mecanismo para manter ocultos os crimes de lesa humanidade, de
genocídios que caracterizam o sistema político mexicano ano após ano, administração
após administração.

Uma exigência social é que devem ficar assinalados os responsáveis pelos atos
criminais e, como declararam os integrantes da organização ‘HIJOS-México’ (Filhos
pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio), a única reparação
possível para com aqueles que têm crescido rodeados pela ausência, rechaçando que a
morte tenha sido o fatídico destino dos desaparecidos (HIJOS-México 2005). Apesar da
cumplicidade do aparato da justiça mexicana, ainda se consiga esclarecer qual foi o
paradeiro dos seus seres queridos, desde o início da Guerra Suja16 de 1968 e, ao
transcorrer das décadas de 1970 e inícios dos anos 1980.

A memória segue debatendo-se contra o esquecimento, mesmo quando as ações


reivindicatórias poucas vezes têm as repercussões legais requeridas. Recentemente
reportou-se que os sobreviventes da repressão, familiares e amigos daqueles que foram

15
Conforme o foro de guerra que se estabelece na Constituição mexicana, o pessoal militar acusado de
delitos, não pode por-se facilmente a disposição do sistema de justiça civil, pois é de jurisdição dos
tribunais militares, onde os processos ficam superditados, em última instância, as ordens do poder
Executivo Federal, isto é, da presidência da República (Amnistia Internacional 2001).
16
A “guerra suja” no México abarcou, desde 1968 até os princípios dos anos 1980, o número dos
desaparecidos, tanto nos âmbitos urbanos quanto nos rurais e pode abranger, ao menos, em torno de
1500 pessoas (Castillo 2002).

71
assassinados ou desapareceram têm a intenção de exigir a constituição, por fim e em
aras de fazer justiça, de uma ‘comissão pela verdade’ sobre o 68 que, não seja uma farsa
governamental como a que se instaurou em 1993. É imperativo que se conheçam os
fatos, se ajuíze os responsáveis pelos crimes e se dê término a impunidade (Garrido
1998; Martínez Martínez 2004). No marco do sistema socio-político mexicano que, hoje
em dia, se auto proclama como transparente em suas ações, estará por definir-se a
validez jurídica de recuperar os restos daqueles que foram massacrados e de submeter a
processo tanto os genocidas quanto os torturadores. Não obstante, permanece a dúvida
ante a infinita possibilidade de que a verdade se siga ocultando para proteger, uma vez
mais, os criminosos de lesa humanidade.

Nossa proposta poderia contribuir para esclarecer os fatos, mesmo que ainda trata-se de
uma primeira aproximação ao problema. A construção de um modelo, tal como o que
temos proposto, deverá sustentar-se em evidências documentais e testemunhais que
poderão assentar as bases para desenvolver projetos específicos, caso chegarem a existir
as condições sócio-políticas no México. Seria indispensável, por conseqüência, dar
abertura a uma investigação científica, com uma perspectiva interdisciplinar, onde a
Arqueologia e a Antropologia forenses seriam medulares. Assim, seria factível aportar
evidências para satisfazer as demandas sociais por justiça que, devem fazer aqueles que
foram objetos de crimes de lesa humanidade no México, em particular, em função da
matança de 2 de outubro de 1968 e por suas seqüelas no país. Uma investigação
interdisciplinar desta natureza, unicamente, poderá estruturar-se através de organizações
não-governamentais, mesmo quando o Estado deveria designar como peritos,
especialistas de instituições acadêmicas, sem intimidá-los. Qualquer “comissão pela
verdade” que dependa do governo e das instâncias periciais chegará a resultados
enviesados e parcializados, tais como os que já têm se apresentado no passado.

Em definitivo, este tipo de investigação deve ser enfocada nas necessidades e demandas
da sociedade. Para mais além do interesse científico compenetrado no tema, de quem
coloca sob o microscópio o sujeito histórico que friamente se observa como uma
sepultura em seu contexto deposicional, como um indivíduo cujos restos ósseos se
estuda em laboratório e cujas partes convertem-se em amostras para análises
específicas. Quando falamos de análises sociais, a ciência dura, asséptica, desde o
pedestal, é totalmente inútil e estéril se não levar em conta o fator humano e as
demandas sociais de justiça para investigar os acontecimentos ocorridos em torno do
movimento estudantil de 1968. O fator social, ético e profissional, cobra importância
transcendental ao evidenciar que as razões da investigação recaem na existência de um
processo histórico, político e social que praticamente emudeceu um país durante quase
40 anos. As implicações de 1968 têm uma marca profunda, é uma ferida aberta no povo
mexicano. O ocorrido em Tlatelolco tem marcado o devenir histórico do país. Portanto,
os especialistas envolvidos na investigação dos fatos, devem de reconhecer a função
social de seus labores e o compromisso que assumiram com os sobreviventes, familiares
dos desaparecidos e com o povo em geral.

Uma arqueologia do mundo contemporâneo poderia contribuir com a recuperação da


memória histórica, tendo por base a cultura material e, aplicando as heurísticas da
arqueologia histórica, fazer uso das fontes documentais pertinentes ao caso no marco de
investigações interdisciplinares. Ficará pendente determinar até que ponto os
arqueólogos mexicanos estarão dispostos a assumir um compromisso para com a
sociedade moderna e estudar um passado recente de massacres e de assassinatos,

72
ultrapassando o papel legal que determina o Estado, centrado na proteção, conservação,
difusão e investigação do patrimônio cultural.

Ainda quando, no México, o Estado recorra ao esquecimento para sustentar a


impunidade, a matança de Tlatelolco não desapareceu da memória coletiva17, pois, tem
sido a base para a construção de identidades relativas18 entre distintos grupos com
interesses ou necessidades emocionais específicas. Alguns manejam a consigna da
recordação como dever político (Scherer e Monsiváis 2002:34) na conformação de
quadros e como via de acesso ao poder. Para outros, o legado da semente da cultura da
rebeldia, que segue germinando em lutas propositivas e visionárias (González Souza
1998). Aos ainda companheiros que participaram no movimento estudantil e que
marcham, em cada aniversário de luto, ao lugar dos fatos para protestar contra as
injustiças de ontem e de hoje. Muitos dos habitantes da Cidade do México seguem
indignados pelo ocorrido, outros, continuam esperando que se castiguem os culpados,
alguns, têm informação limitada do ocorrido. Todos reproduzem discursos e narrativas
que perpetuam as recordações do terrorismo de Estado.

Transitando pela Praça das Três Culturas, onde procedíamos para tomar fotografias que
se incluem neste estudo, observamos que três crianças, de não menos do que 12 anos,
detiveram-se em frente ao monumento comemorativo aos caídos em 2 de outubro, a
Estela de Tlatelolco (figura 9). Uma interpelava as outras com uma pergunta de simples
curiosidade: “Ouçam? Isto, o que é?”. A única mocinha do grupo, rápida e doutamente,
deu uma resposta clara e concisa que, obviamente, não aprendeu nas aulas de história
em sua escola, pois, não figura nos livros-texto: “É que aqui mataram muitos estudantes
que protestaram contra coisas más que o governo faz com a gente”.

17
Segundo uma pesquisa nacional telefônica, levantada pelo diário El Universal, em 2003, a matança de
Tlatelolco tem permanecido na memória coletiva. Na amostragem, 53% sabem do massacre de 2 de
outubro, 49% culpam o governo federal pela responsabilidade direta e 80% consideram que se requer
esclarecer os fatos, encontrar os culpados para fazer-se justiça e terminar com a impunidade. 54,2%
crêem ser improvável que se encontrem os responsáveis devido a que existem grupos poderosos que se
opõem a incompetência e a burocracia (Ordoñez 2003).
18
Retomamos de Augé (1995) o conceito de identidade relativa. É aquela que tem como referência
espacial, social ou moral a relação com, por exemplo, uma etnia, nação ou religião e, inclusive, com uma
coletividade ou com um grupo corporativo.

73
Figura 9 – Monumento aos caídos na Praça das Três Culturas, em 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco.
Erigido no 25º aniversário do massacre (foto de Jorge Martínez Herrera).

O massacre de 1968 se mantém, por conseqüência, no imaginário coletivo, na memória


social, através da tradição oral e das crônicas que se publicam, dos testemunhos que se
difundem. A exigência de esclarecer os fatos da fatídica noite de Tlatelolco e de muitos
outros atos criminais do terrorismo de Estado sintetiza-se em uma consigna que se criou
no primeiro aniversário do massacre (Pérez Arce 1998). É um lema que ainda é vigente
entre aqueles que pugnam por um México democrático:

O 2 de outubro não se esquece!

AGRADECIMENTOS

A Raúl Álvarez Garin e Luis Sosa, por suas assessorias e sugestões para levar a cabo
este estudo. Àqueles que compartiram suas vivências do 1968 conosco. A Raquel e La
Nacha, por estender pontes. Agradecimentos a eles e a elas.

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81
Arqueologia e Esquerda na Colômbia
Carl Henrik Langebaek

Introdução
Colômbia não tem sido um país de ditaduras. Pelo contrário, é mais conhecido por sua
tradição civilista, estranha a governos militares (Deas 1999). Isto não significa que não
tenha existido repressão e nem que os arqueólogos, de alguma maneira, sofreram algum
tipo de perseguição, especialmente, durante o governo conservador de Laureano Gómez
(1950/51-1953). Porém, o fato é que, o meio de comunicação acadêmico mais
conhecido do país, a Revista Colombiana de Antropologia, órgão de difusão do Instituto
Colombiana de Antropologia, foi inaugurado no governo militar e sob os auspícios do
“Excelentíssimo Senhor” Tenente-General Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957),
praticamente, o único ditador que teve a Colômbia durante o século XX. Seu regime
militar, populista e de consenso entre os partidos tradicionais, não se encarregou de
perseguir os arqueólogos. Portanto, não pode ser comparado com as ditaduras que, no
Cone Sul, reprimiram as universidades e, em muitas ocasiões, obrigaram ao exílio seus
protagonistas. Uma interessante peculiaridade adicional é que, em contraste com alguns
países da Latinoamérica, na Colômbia, não se desenvolveu uma arqueologia
explicitamente marxista. Sim, existiu uma sociologia, uma história e uma economia
marxistas. Inclusive, uma antropologia marxista, ainda que débil (Miranda 1984).
Portanto, se não se desenvolveu uma arqueologia marxista, é prudente não se buscar
causas na repressão política, senão que na própria forma como se desenvolveu a
disciplina.

O paradigma dominante na arqueologia colombiana é, como tem sido nos últimos 50


anos, o histórico-cultural. De todos os países latino-americanos é, quiçá, o que mais tem
se mostrado refratário em modificar este tipo de arqueologia, mesmo com o
desenvolvimento de diversas alternativas, especialmente, nos últimos tempos (Gnecco
1995, 1999; Langebaek 1996). Colômbia foi um dos poucos países da América Latina
onde não se desenvolveu nenhum tipo de arqueologia marxista e onde a Arqueologia
Processual tão pouco consegui impor-se. Neste sentido, a disciplina não seguiu uma
trajetória exatamente igual à de outras arqueologias na América Latina. Em função
disto, os processos políticos não foram também comparáveis. O país não teve, como no
Cone Sul (Politis 1988, 1995), uma corrente de arqueologia evolucionista, ao longo do
século XIX. Diferente do México, Peru e Venezuela não fizeram parte do grupo
vinculado ao pensamento marxista. Como na maior parte da América Latina (Politis
2002:196; Funari 2004), na Colômbia predomina arqueologia empirista e histórico-
cultural. Esta, no caso particular deste país, prosperou sob o amparo da chamada
hegemonia liberal no marco de um pensamento antievolucionista e supostamente
apolítico (Langebaek 2003). Porém, de novo, o surpreendentemente débil na Colômbia
tem sido as propostas alternativas e, por conseguinte, a nula ou quase nula presença da
arqueologia marxista (Langebaek 1996; Gnecco 1997; Mora 1997).

A Arqueologia Histórico-Cultural cresceu, na Colômbia, graças à influência da escola


boasiana, através dos trabalhos de Alden Mason (1931-1939), na Serra Nevada de Santa
Marta, bem como de missões francesas (Lehman 1953), norte-americanas (Ford 1944) e
da significativa presença de Paul Rivet. Até meados do século XX, a escola histórico-
cultural, na Colômbia, definiu seus alcances: brindar descrições, as mais detalhadas
possíveis, da cultura material; estabelecer cronologias e “relações” culturais, assumindo

82
que as características dessa cultura material refletiam “padrões mentais” (Schottelius
1940, 1946). Hoje em dia, múltiplas investigações – provavelmente a maior parte – são
demarcadas por este esquema (Santos e Otero 2003).

O objetivo deste artigo é estudar as relações entre o marxismo e o estudo do passado


pré-hispânico na Colômbia. Pretende-se demonstrar que, o discurso marxista sobre o
passado não se desligou da Arqueologia Histórico-Cultural. Mesmo com a enorme
insatisfação que os pensadores marxistas expressaram em relação ao trabalho dos
arqueólogos, estes, mantiveram seu apego a uma definição normativa da cultura e sua
propensão em brindar explicações antievolucionistas do passado. Mesmo que no país
não existiu uma Arqueologia Marxista (ou escola de “Arqueologia Social”), uma
tradição intelectual de esquerda tem se preocupado com o tema do passado pré-
hispânico. Em outras palavras, ainda que não existiu um grupo de profissionais da
disciplina que, explicitamente, se utilize da obra de Marx (e do marxismo) para
interpretar o passado indígena, pode-se falar de uma tradição de pensadores de esquerda
que, por fora da disciplina, tentaram faze-lo. Estes pensadores foram particularmente
ativos entre 1930 e 1980. Ainda que nem todos eles compartissem uma posição
homogênea, os uniu uma reação mais ou menos radical contra a arqueologia de sua
época. Mesmo assim, não formularam propostas alternativas às explicações clássicas
sobre o passado. A análise da produção destes intelectuais de esquerda é útil não só para
aprimorar uma nova crítica à Arqueologia Histórico-Cultural, como também um ponto
de partida na reflexão para a avaliação dos desafios e das limitações do pensamento
marxista sobre o passado pré-hispânico.

Desenvolvimento da Arqueologia Histórico-Cultural


Durante o século XX, à medida que a arqueologia se profissionalizou e se pôs como
meta a descrição sistemática de sítios e de restos antigos, seus alcances políticos
tornaram-se cada vez mais inócuos. Na Colômbia, o auge da República Liberal (1930-
1946) coincidiu com o apoio institucional a Arqueologia. Por tal, seria exagerado
afirmar que a Arqueologia Histórico-Cultural servia de base científica para a exclusão.
Ao menos, no sentido em que os estudos sobre raça, degeneração, decadência ou
evolução o haviam sido no passado. A influência de Rivet e de Boas implicou um
distanciamento explícito das idéias racistas. Além do mais, deve-se assinalar que, a
maior parte dos arqueólogos que trabalhavam (e trabalham) com a Arqueologia
Histórico-Cultural foi crítica das formas mais elementares de exclusão, por exemplo,
daquela baseada no racismo. Pelo certo, é que ao colocar-se a margem do debate
político e optar pela pulcra e neutra descrição, os arqueólogos deixaram de edificar-se
em uma forma de denúncia.

Desde então, a disciplina foi caracterizada freqüentemente como uma prática


conservadora, incusa e reacionária. Em seu tempo, antropólogos, como Milciades
Chavez, criticaram a obsessão dos arqueólogos por descrever aspectos materiais das
culturas pré-hispânicas sem alcançar interpretações sobre elas. Sem comprometerem-se
com interpretações sobre sua própria sociedade (Chávez 1986). A resposta, de alguns
antropólogos da época da ‘neutralidade’ e da ‘objetividade’ da Arqueologia Histórico-
Cultural, foi, em geral, a de abandonar a prática e dedicar-se a questões de Antropologia
Aplicada, como aconteceu com Hernández de Alba (Langebaek 2004). Em poucos
casos, a Arqueologia – extraordinariamente conservadora até hoje – interessou-se pelo
marxismo, ainda que para alguns lhes resultasse atrativa a esquerda. Não obstante,
desde fora da arqueologia, sim, houve interesse pelos temas pré-hispânicos. Com

83
freqüência, este provinha da esquerda. Evidentemente, havia aspectos políticos no
trabalho da Arqueologia Histórico-Cultural que podiam provocar reações críticas por
parte de outros intelectuais, não necessariamente arqueólogos, porém, para aqueles cujo
passado era importante em termos políticos. Quiçá, um dos primeiros a fazê-lo, sobre
quem voltarei mais adiante, foi Antonio Garcia. Em 1937, escreveu Geografia
Econômica de Caldas, trabalho, no qual, declarou inútil o que haviam escrito os
arqueólogos sobre o passado pré-hispânico de Caldas. Garcia, então, referiu-se ao
‘moralismo cristão’ que, em sua opinião, se ocultava nos pronunciamentos que faziam
os profissionais, quando se referiam ao passado indígena. A partir de então, numerosos
intelectuais de esquerda distanciaram-se da proposta histórico-cultural. Iniciaram, por
sua conta, não só uma crítica da mesma, senão por várias tentativas de oferecer
reconstruções alternativas do passado.

Crítica da esquerda à Arqueologia Histórico-Cultural


No contexto nacional apresentaram-se duas circunstâncias que facilitaram com que
acadêmicos se desligassem do conhecimento especializado da Arqueologia Histórico-
Cultural e empreendessem, por seus próprios meios, a investigação sobre o passado
indígena. Em primeiro lugar, a introdução de uma historiografia marxista. Considerava
que a historiografia tradicional estava esgotada. A partir dos anos 1950 do século XX,
começaram a desenvolver-se com maior força as críticas a Academia Tradicional,
acusada, assim como a Arqueologia Histórico-Cultural, de apego à informação e de
pouca análise da mesma. Em segundo lugar, existiam razões políticas relacionadas com
o papel das sociedades indígenas. A partir de meados do século XX, profissionais de
outras disciplinas, especialmente advogados, economistas e historiadores, usualmente
vinculados com a esquerda comunista ou liberal, encontraram poderosas razões para
interessarem-se pelas sociedades nativas e seu passado. Em 1947, imprimiu-se a
primeira edição de A questão indígena na Colômbia. Seu autor, Ignacio Torres Giraldo,
historiador do movimento operário e secretário geral da Confederação Operária
Nacional, fez uma profunda crítica do indigenismo tradicional. Em primeiro lugar, o
acusou de ser um movimento de brancos e de mestiços, não propriamente uma corrente
indígena (Torres 1975:3-5). Em segundo lugar, contestou a tendência em isolar o
‘problema indígena’ dos problemas mais amplos do país, em particular, do projeto
camponês e operário. Torres criticou também que a defesa do indígena fundamentara-se
em questões de sua suposta superioridade racial. Não obstante, ao mesmo tempo,
defendeu a idéia de que a luta indígena incluía reivindicações do tipo cultural, não só de
terras. A esquerda reclamou então, por um melhor conhecimento das especificidades
culturais nacionais e, com isto, o passado e seu estudo adquiriram súbita importância.
Para Torres Giraldo era relevante demonstrar a existência de notáveis culturas quando
da chegada dos espanhóis. Em sua opinião, os indígenas colombianos formavam um
núcleo comum com a grande civilização maia, sem dúvida, mais notável e mais antiga
do que o Egito. Os catíos, assentados em Antioquia haviam sido uma adiantada
“civilização” com vínculos com os maias e com os incas. Dominavam a metalurgia com
perfeição, inventaram ligas que os laboratórios de Medellin não haviam podido decifrar.
No Alto Sinú, em Quindío, na Serra Nevada de Santa Marta e em outros lugares da
Colômbia, os conquistadores não haviam encontrado somente tribos selvagens (Torres
1975:12-13).

O chamado de Torres não consistiu, sem dúvida, em uma romântica nostalgia pelo
legado indígena. Pelo contrário, criticou quem romantizara as civilizações pré-
hispânicas. O objetivo de seu livro consistiu em sacar o problema indígena do plano

84
contemplativo “da fronde literária puramente especulativa, do intelectualismo abstrato e
da simples nostalgia sentimental” (Torres 1975: 12). Neste sentido, tanto os
arqueólogos quanto aqueles que estudavam os indígenas contemporâneos eram
duramente criticados. Estes últimos concentravam-se em aspectos de raça. Quanto à
arqueologia, não duvidou de que podia considerar-se importante. Era indispensável para
estabelecer a verdade, isto é, o alto grau da civilização pré-hispânica, diferente das
tradições grega e latina. Porém, simultaneamente, acusou os arqueólogos de serem “os
que se maravilham ante os duzentos monumentos da civilização agustiniana; ante as
raízes já localizadas do Templo do Sol dos incas; ante as obras de arte dos quimbayas e
das marcas da cultura paeces em Tierradentro, (...) principalmente com o critério dos
colecionadores de antigüidades, dos empresários de museus que pensam na indústria do
turismo muito mais do que no destino dos indígenas que vegetam, todavia, em um
Estado indiferente para com eles. Um Estado que não aprecia sua vitalidade potencial
como força de progresso, senão, como sombra do passado que se extingue” (Torres
1975:13).

Por esses mesmos anos, um advogado, dirigente do Partido Comunista e um dos


carismáticos ideólogos da Reforma Agrária, Guillermo Hernández Rodríguez,
interessou-se pelo assunto das comunidades indígenas pré-hispânicas. Tendo se
aprimorado em Moscou, Nova York e Paris, Hernández publicou, em 1949, De los
chibchas a la colonia y a la república. Nessa obra, o autor considerou prioritário o
estudo das forças econômicas que haviam conformado a história do país. Em sua
opinião, a desintegração dos clãs indígenas depois da conquista havia dado lugar a uma
sociedade política baseada no território. Além do mais, a mão de obra indígena podia
ser considerada ancestral em relação a outras formas de trabalho mais modernas.
Primeiro, em relação ao aproveitamento colonial da mão de obra colonial e, em seguida,
ao surgimento da classe operária. A sociedade colombiana, portanto, havia sido formada
a partir de uma organização pré-hispânica que valia a pena estudar. Isto acrescentou
outra importante justificação para estudos marxistas sobre o passado indígena. Sem
dúvida, ainda que De los chibchas a la colonia y a la república foi, por muito tempo, o
trabalho mais detalhado sobre a organização social muisca, seu autor incorporou pouca
informação arqueológica. A Arqueologia Histórico-Cultural do momento, pouco
aportava para entender de questões sobre a organização social pré-hispânica,
fundamental para o marxismo. Porém, por outra parte, as poucas vezes em que
Hernández (1975) utilizou informação proveniente da arqueologia, não se apartou
demasiado das idéias que predominavam em seu tempo. Para o autor, os muiscas,
ocupavam o terceiro lugar em complexidade política depois dos incas e dos astecas. Era
uma idéia proposta desde o século XVIII, pelos líderes crioulos, com o fim de fortalecer
a identidade nacional. Porém, não havia sido avaliada com seriedade. Para Hernández
Rodríguez (1975), também resultavam válidas as propostas que reduziam a história pré-
hispânica a um processo de migrações. Em sua obra, defendeu a existência de uma
migração oriental, uma migração dos Llanos Orientales e, finalmente, a chegada de
grupos centroamericanos, entre os quais incluía os muiscas.

O interesse por entender a organização econômica indígena continuou com o próprio


Antonio García, ele mesmo, em 1937, havia feito uma das primeiras críticas a
arqueologia. García foi decano da Faculdade de Economia da Universidade Jorge Tadeo
Lozano, professor da Universidade Nacional da Colômbia, onde alcançou ser vice-reitor
e consultor sobre reforma agrária. Além disso, foi diretor do Instituo Nacional
Indigenista. Sua visão sobre o passado pré-hispânico e, mais importante ainda, sobre os

85
arqueólogos, se encontra em Bases para la economia contemporánea (1948) e em La
Crisis de la Universidad (1985). O primeiro é um intento de conciliar a doutrina
ortodoxa marxista, ainda que García não fosse um militante de partido, especialmente
em seus aspectos evolucionista e materialista. Porém, sem cair no “fetichismo
doutrinário” da União Soviética. Em sua opinião, a história da humanidade podia ser
dividida em fases que iam desde o coletivismo primitivo, até o socialismo planificado.
No entanto, dita classificação resultava apressada, se não levasse em conta fatores
“geoculturais”. Isto é, se não fizesse abstração dos aspectos puramente econômicos, dos
tipos sociológicos e das diferenças no âmbito cultural, já que tais características, por sua
vez, eram suscetíveis de diversas classificações. Um exemplo: o coletivismo primitivo
existia nas mais diversas sociedades indígenas, desde os contemporâneos kofán do
Amazonas até os antigos incas do Peru pré-hispânico. Contudo, esse coletivismo
manifestava-se de uma forma muito distinta em cada sociedade. Em todo o caso, por
cima das diferenças, se distinguia pela inexistência da personalidade individual e pela
escassez dos meios técnicos para dominar a natureza. Sem dúvida, tinha um enorme
potencial evolutivo. Permitia a acumulação de excedentes, a sistematização de trocas, a
agricultura e a domesticação de animais. Na zona tropical, seu desenvolvimento era
lento, na medida em que o progresso agrícola também o era. Somente depois de uma
vasta experiência e quando se alcançava uma alta densidade populacional, como era o
caso dos muiscas, era possível passar da agricultura migratória para a sedentária.

Em sua argumentação, García não incluiu os resultados que haviam chegado os


arqueólogos de sua época, os quais, dada a sua comprovada aversão para com o
evolucionismo, de todas as maneiras, provavelmente, não lhes teriam sido úteis. Em
realidade, sua opinião sobre os arqueólogos era bastante pobre, devido, em parte, ao
conflito pessoal que teve com um deles: Luis Duque Gómez. Em sua condição de reitor
da Universidade Nacional, este último, o havia demitido de seu cargo de vice-reitor. A
reação não se fez esperar. García dirigiu uma carta a Misael Pastrana, presidente
conservador que havia nomeado a Duque, para expressar-lhe que, com essa nomeação,
os profissionais da Universidade Nacional “teriam a mesma categoria e a mesma
ineficácia que os arqueólogos formados nos Estados Unidos”. A nomeação de Luis
Duque (que é justo dize-lo, não se formou nos Estados Unidos), era premeditada por
parte de um governo que não queria uma ciência comprometida. A afirmação de García
deve-se entende-la em seu contexto. O contato que teve com a arqueologia
correspondeu a crescente influência norte-americana e, em particular, da arqueologia
financiada por entidades estadunidenses. O caso é que, para García, estudar a estatuária
pré-hispânica de San Agustín – precisamente a especialidade de Duque – não implicava
o compromisso de uma investigação social entre os camponeses contemporâneos que
levavam sua vida indigente ao lado das estátuas.

Diego Montaña, outro militante do partido, pretendeu retomar, igual que García, o
interesse pelo evolucionismo que, sentia esquecido nos arqueólogos. Seus trabalhos
mais importantes sobre o passado pré-hispânico foram Sociologia Americana (1950),
Colombia-pais formal y pais real e alguns artigos de suas Memorias (1996). Montaña
criticou as visões da história que a reduziam a questões de raça ou de determinismo
geográfico. Neste sentido, sua obra não se apartou da crítica aos aspectos mais
questionados do evolucionismo. As teorias sobre raça baseavam-se no estudo de crânios
e constituíam hipóteses arriscadas. Aquelas teorias que se inspiravam no ambiente,
simplificavam tudo, ao considerar que os povos deviam suportar a lei do solo que lhes
havia tocado pela sorte (Montaña 1950:19-20). Não obstante, os aspectos físicos eram

86
importantes. Não era gratuito que os indígenas muiscas tinham se formado graças à
ação da atmosfera rarefeita e da temperatura uniforme que constituem o ambiente nos
Andes (Montaña 1950:21). Tão pouco que, dessas mesmas condições, tivesse surgido
um tipo propenso à vida industrial, sedentária, a agricultura, a elaboração de tecidos e
de cerâmica. Seus curtos dedos, por exemplo, eram eficazes auxiliares para labores
industriais (Montaña 1950:22). Para mais, os aspectos geológicos não eram
desprezados. A geologia da Sulamérica era peculiar em comparação com qualquer outro
continente. Portanto, não tinha nada de raro e também a formação de seus povos assim o
fora (Montaña 1950:63-65, 86). Os povos colombianos eram produtos de três
migrações. As raças mais antigas correspondiam às culturas megalíticas do Titicaca, as
quais se relacionavam com San Agustín. Esta antiga migração incluía os pastos, os
quimbayas, os catíos, os zenues, os chibchas, e os guanes. A segunda onda migratória
havia chegada através do Orinoco e poderia ter, ainda que não comprovada, influência
fenícia. Finalmente, haviam chegado povos através do rio Magdalena, entre os quais se
encontravam os panches, os pijaos e, por fim, os povos caribes (Montaña 1950: 159-
163). Com esta proposta, em seguida, Montaña terminou por distanciar-se
completamente de uma visão evolucionista, ainda que, em todo o caso, reconheceu
algumas etapas no desenvolvimento de certos povos. Por exemplo, entre os muiscas,
podia-se falar de uma época marcada por cataclismo geológicos, seguida da
consolidação do povo muisca que os espanhóis encontraram. Seu interesse pelos
muiscas não era gratuito. Sua tese de graduação na Faculdade de Direito da
Universidade Nacional havia sido uma tentativa de recuperar o passado aborígene e, em
suas Memorias, incluiu um artigo intitulado “A cultura chibcha vista desde baixo”
(Montaña 1996: 113-127).

Em Colombia-pais formal y país real” encontra-se um argumento mais elaborado,


contra o determinismo ambiental e o determinismo racial. Os chamados “males” que
eram atribuídos ao povo colombiano nada mais eram do que condições sociais que
podiam ser remediadas. Sobre isto, dedicara um capítulo intitulado “A realidade física e
social da Colômbia na época primitiva” (Montaña 1963:29-56). Compreendia aspectos
relacionados com a organização social e o desenvolvimento da forças produtivas antes
da chegada dos espanhóis. Sem dúvida, o ambiente e as migrações, de novo, foram
tomadas como aspectos sem os quais, o passado pré-hispânico não se pode entender.
Por exemplo, os muiscas destacaram-se como povo laborioso, devido ao clima frio e a
ausência do gado. A estatuária de San Agustín, por sua parte, demonstrava uma forte
influência polinésica (Montaña 1966:35). Inclusive, os políticos de esquerda, aqueles
que tinham os melhores argumentos contra a Arqueologia Histórico-Cultural e também
os tinham para defender o evolucionismo, terminaram, como ilustra o caso de
Hernández Rodríguez e Diego Montaña, fincados na visão mais tradicional do passado
pré-hispânico. Uma visão, na qual, o peso do anti-evolucionismo e o apego as
migrações, terminaram, senão por impôr-se, mas, sim, por exercer uma enorme
influência.

Durante a década dos anos 1970, quando o marxismo fez sentir sua influência nas
universidades colombianas, igual que as universidade européias ou norte-americanas,
numerosos investigadores aplicaram esse pensamento à sociedades pré-hispânicas. Esta
nova geração, em grande parte educada na Universidade Nacional da Colômbia, ou, ao
menos, com vínculos com ela, escreveu em um contexto, no qual, o tema era
amplamente debatido em outros países da América Latina. Nos anos 1970, tornou-se
famoso o debate sobre o caráter feudal ou capitalista de nossa América Colonial.

87
Alguns dos participantes nos debates dessa época - entre eles, André Gunder Frank,
Rodolfo Puiggros e Ernesto Laclau (1972:56-61) – consideraram importante precisar a
natureza da sociedade indígena, no momento da conquista. A idéia de “modos de
produção” e, em particular, a proposta de modo de produção asiático, foram populares.
Roger Bartra havia escrito, no México, Marxismo e sociedades antigas (1975). Também
no México, se tinha publicado versões em espanhol da obra de Maurice Gaudelier, O
modo de produção asiático, de Jean Chesnaux, O modo de produção asiático, e de
Antonine Pelletier e de Jean-Jacques Goblot, Materialismo histórico e História das
civilizações. Na Colômbia, traduziu-se e publicou-se As sociedades primitivas e O
nascimento das sociedades de classe, segundo Marx e Engels, com prólogo de Jorge
Orlando Melo.
Seguindo o exemplo de Hernandéz Rodríguez, de García e de Montaña, alguns
investigadores dos anos 1970, animaram-se a investigar o passado pré-hispânico,
particularmente, sobre os muiscas. A idéia de uma história própria, de conhecer as
raízes da sociedade colombiana e da desigualdade social resultava mais do que
estimulantes. Desde logo, alguns dos primeiros que, desde a esquerda, se haviam
preocupado pelo tema das sociedades pré-hispânicas, eram influenciados pelas obras de
Marx e, também, pela sociologia norte-americana. Com a segunda geração, este
entusiasmo continuou, porém, com uma maior orientação desde a Universidade
Soviética ou de universidade européias. Porém, raras vezes aconteceu um sólido aporte
delas, especialmente das primeiras. Em Moscou, a investigadora Svetlana Sózina
(1978), publicou “A formação dos estados muiscas”. Porém, a repercussão deste
trabalho foi mínima. Entre outras coisas, pela falta de rigor com o manejo da
informação e, pese a sua aproximação ‘marxista’, por que não agregava muito aos
estudos clássicos, do século XIX, sobre os muiscas.

Na Colômbia, em meados dos anos 1970, saiu a venda: Ensaios marxistas sobre a
sociedade chibcha, que incluiu artigos de Francisco Posada, de José Rozo e de Sergio
de Santis (s.d.); Os muiscas – organização social e regime político, de José Rozo
(1978) que estudou na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou; Notas sobre o modo
de produção pré-colombiano e A formação social chibcha, publicados por Hermes
Tovar (1974, 1978). Todos estes livros tinham um formato econômico, com a pretensão
de alcançar um grande público, ao qual, seguramente, as obras dos arqueólogos não
chegavam. Este pequeno, porém ativo grupo de acadêmicos, nenhum deles arqueólogo,
estava interessado no passado indígena e disposto a explorar interpretações muito
diferentes daqueles que, então, eram considerados especialistas no tema. Francisco
Posada, como Hernández Rodríguez, era advogado. Aprofundou seus estudos de
filosofia, na França e na Alemanha. Além de seus interesses pelos muiscas, trabalhou
sobre problemas agrários e sobre o movimento popular. Pese a sua curta idade ao
morrer, aos 34 anos, chegou a ser decano da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Nacional da Colômbia. Os objetivos de seus Ensaios marxistas incluíam
identificar o nível de desenvolvimento dos muiscas dentro de escalas evolucionistas,
determinar os alcances da noção de comunidade, analisar a estrutura familiar,
compreender as formas de trabalho e o desenvolvimento dos meios de produção. A
motivação era conhecer as tradições nacionais, era entender a sociedade que surgiu
depois da conquista e o impacto da mesma (Posada, Montaña e Santis s.d.:6). O caso de
Hermes Tovar é algo diferente. Historiador (um dos primeiros graduados desta carreira
na Universidade Nacional da Colômbia), com estudos no Chile e na Inglaterra, foi
professor da Universidade Nacional da Colômbia, onde se interessou pelo tema das
sociedades pré-hispânicas, graças a Antonio García. Sua obra enfatizou a necessidade

88
de se estudar as estruturas de posse da terra e das formas de trabalho, como antecipação
para desenhar reformas agrárias e entender o campesinato andino (Tovar 1974:5-14). O
estímulo para fazê-lo foi muito similar ao de Posada. Reclamou da necessidade de
fazer-se uma análise estrutural da história latino-americana que incluísse a compreensão
das características das sociedades que encontraram os europeus e como se haviam
transformado no contexto capitalista. Sua investigação enfatizou a necessidade de
compreender o modo de produção das comunidades indígenas em seus próprios termos,
sem acudir a modos já conhecidos no Velho Mundo.

O trabalho de Posada, Rozo e Tovar não foi uma exceção ao distanciar-se da


arqueologia oficial. O primeiro concentrou-se na sociedade muisca do século XVI,
razão pela qual as crônicas da conquista forneciam informação, se não suficiente, pelo
menos satisfatória. Não desconheceu uma dinâmica anterior ao século XVI. Por
exemplo, aceitou a existência de uma etapa arcaica, na qual havia predominado a coleta
de alimentos, seguida da produção dos mesmos. Coerente com a tradição que García e
Montana haviam seguido, reconheceu o papel do ambiente nesse processo. Nesse
sentido, propôs que, como na Costa Caribenha os recursos eram abundantes, os
indígenas haviam podido viver da coleta. Por outro lado, os grupos andinos tinham-se
“obrigado a abrir um novo caminho: a raridade dos alimentos propiciados pela natureza
levou-os a produzi-los” (Posada s.d.:14). Por outra parte, seu trabalho considerou que os
muiscas encontravam-se em uma etapa de transição, na qual não havia formas clássicas
de propriedade. Contrariamente a Hernández Rodríguez, para quem os muiscas tinham
sido uma sociedade “bárbara”, para Posada, podia-se falar da dissolução dos hábitos da
barbárie neolítica. Não obstante, brindou com uma interpretação dinâmica desta
transição. Quando se socorreu dos arqueólogos foi para sustentar que os dados de Emil
Haury e Julio César Cubillos – assim como as mais recentes contribuições de Sylvia
Broadbent – que haviam chegado na Universidade dos Andes, ajudavam a amparar a
idéia de um povoamento disperso que, podia também ser estabelecido a partir dos
documentos. Em algumas ocasiões, amparou-se em algum dado arqueológico para
sustentar o desenvolvimento tecnológico – ou a falta do mesmo – entre as comunidades
nativas. Porém, os arqueólogos da época estavam interessados em saber qual cerâmica
era a mais antiga que outra e pouco podiam aportar ao esforço de Posada.

Hermes Tovar (1974) admitiu que, em muitos casos, se contava unicamente com a
informação arqueológica para reconstruir como teriam sido certas comunidades no
passado. No entanto, ao longo de seu trabalho, quando estabeleceu diferenças entre
comunidades tribais - compostas, ampliadas, reinos comunitários e impérios
comunitários - todas formas sociais próprias da América Pré-colombiana, o aporte da
informação arqueológica foi mínimo. Os grupos caribes eram exemplos de sociedades
tribais e os quimbaia de comunidade composta. Os muiscas, os taironas e San Agustín
de comunidades ampliadas. Porém, o que respaldou o esquema de Tovar, não era o
trabalho dos arqueólogos. Quando explicou a natureza das comunidades tribais,
auxiliou-se dos dados de cronistas sobre os grupos caribes. Inclusive, a analogia
etnográfica valia como alternativa para demonstrar, por uma parte, certo determinismo
ecológico e, por outra, a validez de comparar as sociedades “primitivas” de hoje com
uma fase histórica. Tovar serviu-se da informação sobre sociedades contemporâneas das
terras baixas – da Amazônia e Orinoquía – para entender a “comunidade tribal”, dado
que assumiu que aquelas teriam sido mais comuns nas terras baixas e regiões tropicais
(Tovar 1974: 17-22).

89
José Rozo (1978) afirmou que o processo de mudança social passava pelas etapas de
Pré-estado, Semi-estado, e Estado. Na primeira, encontravam-se os caribes. Na segunda,
alguns grupos caribes e outros arawak. Os muiscas se encontravam na transição entre as
duas últimas. A formação de classes sociais foi atribuída ao desenvolvimento da
agricultura (em contraste com a pecuária, que explicava o processo no Velho Mundo), o
qual revelava por que havia sido comparativamente tão lento. Não obstante, na hora de
referir-se a formação do Estado entre os muiscas, acudiu aos relatos dos cronistas que
narravam as guerras entre caciques indígenas, pouco antes da chegada dos
conquistadores. Assim, o desenvolvimento dos “muiscas” só podia ser analisado com
uma profundidade histórica equivalente à que a própria memória indígena alcançava no
momento da conquista. Para mais atrás, os arqueólogos só podiam falar de “seqüências
cronológicas” sem sentido de mudança social.

Nem todos os ensaios marxistas que se preocuparam com o tema indígena chegaram às
mesmas conclusões. Para a maioria, igual que para os “criollos” do século XVIII,
demonstrar logros culturais e um notável grau de civilização, foi importante. Tal foi o
caso de Torres, por exemplo. Um dissidente do estudo de como se haviam
desenvolvido, ainda que de maneira incipiente, as diferenças sociais entre os muiscas,
foi Hernán Sepúlveda (1978). Este autor assegurou que as sociedades pré-hispânicas
eram tão igualitárias que podiam servir de inspiração para se pensar a existência de
sociedades sem divisões nem exploração de classe.
Isso implicava rechaçar tergiversações históricas com um claro objetivo de colonialismo
cultural. Porém, igual que os demais, também a obra de Sepúlveda caracterizou-se por
escassas referências aos trabalhos dos arqueólogos. Muitos investigadores interessados
do passado, porém, que não militavam no marxismo, se interessaram por assuntos
parecidos aos de Rozo, Tovar e Posada. Em particular, se desenvolveu um enorme
interesse por conhecer a organização social indígena e, em particular a muisca, a forma
como se desenvolveu posteriormente a sociedade camponesa e colonial. Os exemplos
são numerosos: Germán Colmenares, Juan Friede, Darío Fajardo, Fals Borda e também
Broadbent, que chegou ao país como arqueóloga e incursionou ao assunto com um
estudo intitulado Os chibchas, organização sócio-política (1964). Quase todos eles
interessaram-se pelo tema do trabalho, da organização econômica e da demografia.
Porém, nenhum deles se baseou, para isto, na produção dos arqueólogos. Durante os
anos setenta, Germán Colmenares (1970), Juan Friede (1974) e Darío Fajardo (1964)
interessaram-se pela organização social indígena no momento da conquista com a
finalidade de fazer histórias regionais baseadas em aspectos sociais, como a demografia
e a distribuição da terra. Porém, para estudar o tema, consultaram extensamente a
informação documental, não o trabalho dos arqueólogos histórico-culturais que,
simplesmente, não estavam interessados nesses temas. Nem sequer Broadbent (1964),
que conhecia de primeira mão a informação arqueológica, pode utilizar um só dado do
registro arqueológico para reconstruir a organização social muisca.

Considerações finais
Durante o século XX, não se desenvolveu na Colômbia uma arqueologia marxista.
Porém, sim, uma corrente – ou várias – do pensamento de esquerda (nutrida do
marxismo em diferentes graus) que se ocupou do tema das sociedades pré-hispânicas.
Para essas correntes, foi difícil aproveitar a informação que aportava a arqueologia.
Enredada na descrição da cerâmica, na definição de áreas culturais e na especulação
sobre relações culturais e migrações, pouco podia aportar sobre temas que, a partir dos
anos 1970, não só aos investigadores marxistas, senão também, em geral, aqueles que

90
compartiam seu interesse pelo evolucionismo, começavam a serem considerados cada
vez mais promissores. O resultado foi uma abundante produção bibliográfica. Por fora
da Arqueologia, começou-se a resgatar o evolucionismo e a idéia de poder-se
reconstruir como se organizaram as sociedades do passado e como mudaram através do
tempo. A resistência ao evolucionismo por parte do mundo acadêmico impunha-se, uma
vez mais, como uma estratégia que foi vista, desde o ponto de vista daqueles que não
praticavam a disciplina, como uma estratégia para não investigar o passado e não
imaginar – e construir – o futuro.

Não obstante, as propostas da esquerda colombiana sobre o passado pré-hispânico


estiveram impregnadas de problemas. Distanciaram-se da investigação empírica
destinada a apoiar suas idéias sobre o passado. A reflexão sobre como se articulavam
suas categorias de pensamento com o estudo do registro arqueológico foi nula, ou quase
nula. Em muitos casos, assumiram como certas, idéias claramente desvirtuadas sobre a
influência do ambiente, as migrações, a difusão e, inclusive, caducas noções de raça. As
incorporaram, sem crítica, nos seus esquemas interpretativos. Em muitos casos, não
escaparam do determinismo ambiental ou de ingênuas comparações etnográficas. Nunca
puderam desenvolver uma noção de cultura que não fora equivalente a concepção
normativa da Arqueologia Institucional. Em outros casos, simplesmente, aceitaram
esquemas tipológicos, nos quais se acomodou a informação etnográfica e arqueológica
sobre as sociedades indígenas, com pouca análise crítica. Porém, o certo é que, pese a
todas estas limitações, seu trabalho resultava mais interessante do que os esforços da
arqueologia profissional ao “entender” o passado. As enormes limitações da esquerda
em distanciar-se das propostas baseadas em migração e difusão, assim como dos rígidos
esquemas classificatórios, não evitam pensar sobre as vantagens de suas propostas sobre
aquelas que se baseavam na descrição “científica” e inócua dos restos arqueológicos.

Não obstante, a Arqueologia Histórico-Cultural resultou em seu momento e, ainda hoje,


extraordinariamente refratária a qualquer mudança. As propostas dos pensadores de
esquerda, tão pouco foram atrativas. Nenhuma foi tomada com interesse por parte dos
arqueólogos profissionais. E, como se demonstrou, terminologia a parte, a esquerda
terminou dobrando-se às interpretações baseadas em migrações, difusões e influência.
Isto é, ao paradigma da Arqueologia Histórico-Cultural. Mais tarde, quando na
Colômbia se introduziu a Arqueologia Processual, rechaçou-se qualquer aporte que ela
podia oferecer. Porém, se a rechaçou desde a Arqueologia Histórico-Cultural. Isto é,
desde uma proposta ainda mais conservadora e positivista. De novo, uma larga tradição
histórica de fazer as coisas terminou por assimilar qualquer corrente inovadora.

Em todo o caso, a lição dificilmente se aplica a Arqueologia Histórico-Cultural. Ela


resiste a qualquer reforma profunda e, ainda que aceite a terminologia da moda em
turno, resulta imune a mudança conceitual. Não obstante, pensando positivamente, a
lição é mais útil para uma melhor Arqueologia Marxista. A produção intelectual
marxista é atrativa pela solidez da filosofia materialista, por seus objetivos acadêmicos e
por suas miras políticas. Porém, em geral, até agora tem sido limitada por seus
resultados empíricos e por suas metodologias. É crítica sua falta de identidade que, em
resumidas contas, se acerca da Arqueologia Histórico-Cultural senão por seu discurso
teórico, por seus resultados. A notável persistência da arqueologia tradicional na
Colômbia pode ser excepcional. Porém, outros países da América Latina não estão
eximidos – em maior ou menor grau – desse fenômeno. A Arqueologia Marxista
latinoamericana, às vezes é vista de forma um tanto paternalista por alguns (McGuire

91
1992:64-68; Patterson 1994; Politis 1995 e 1999; Zarankin e Acuto (eds.) 1999). Porém
o certo, ainda que pese o balanço desigual que esta história porá em descoberto, é
notório o lastro dos aspectos mais negativos da Arqueologia Histórico-Cultural. A este
respeito, cabe um comentário. De acordo com Oyuela, Amaya, Elera e Valdez
(1997:371-372) não existe uma Arqueologia Social (isto é, marxista) Latinoamericana
na medida em que, aqueles que a praticam, não compartem uma só escola unificada de
pensamento. Os autores têm razão ao queixarem-se de que a arqueologia na América
Latina se estereotipe como pertencendo a uma só prática (isto é, “a Arqueologia
Social”). Porém, desde outro ponto de vista, segundo essa observação, simplesmente
não haveria arqueologia de nenhuma classe. Com efeito, a afirmação é questionável por
diversas razões. Primeiro, por seu viés positivista que vê na conformação de uma escola
“unificada” o amadurecimento de uma disciplina. Segundo, porque o marxismo é
pretendidamente – independentemente de qualquer juízo de valor sobre sua validez –
uma teoria unificada. Porém, além do mais, no fundo, na prática parece existir um corpo
unificado de teoria por detrás de grande parte da Arqueologia Marxista na América
Latina. O mal é que esse corpo provém da Arqueologia Histórico-Cultural. Na essência,
da Ecologia Cultural.

Um exemplo é Cuba, o qual, segundo Mc Guire (1992:65), inspira boa parte da


Arqueologia Marxista na América Latina. Em Cuba, a maior parte das publicações
mistura ritualmente terminologia marxista. Porém, continua – na prática – sendo uma
clássica Arqueologia Histórico-Cultural como a que se fazia nos anos 1950 (Tabío e
Rey 1987; Guarch 1987; Dominguez 1995). Por exemplo, Tabío (1995:134) considera
um “dever” dos homens de ciência seguir o materialismo histórico e dialético. Porém,
seu estudo do passado das Antilhas não é mais do que um debate em torno da proposta
cronológica de Rouse, nos mesmos termos propostos pela Arqueologia Histórico-
Cultural (Tabío 1995:134). Outro exemplo: Guarch (1987: 53-58) faz uma defesa do
termo “tradição”, virtualmente indistinguível de sua definição norteamericana, ao redor
dos anos cinqüenta. Além disso, estabelece como “novo” aporte da arqueologia cubana
a localização de objetos em uma escala tridimensional e a defesa das escavações
estratigráficas (Guarch 1987:60-67).

No Peru (Lumbreras 1974) e no México (Gándara, López e Rodríguez 1985) têm-se


produzido reflexões teóricas, geralmente elaboradas para criticar a Arqueologia
Processual, porém, também a aproximação histórico-cultural. Sem exagero, pode-se
afirmar que as críticas mais demolidoras à Arqueologia Processual se produzem graças
a estes trabalhos. Porém, na hora de interpretar o passado pré-hispânico, as propostas
“marxistas” não parecem, em muitos casos, distanciar-se demasiado da prática
convencional. Depois de uma ampla discussão teórica sobre a necessidade de uma
arqueologia baseada na idéia dos modos de produção, ao tratar da arqueologia
colombiana, Lumbreras (1981:45-52) não criticou a interpretação baseada no modelo
ecológico-cultural de Reichel-Dolmatoff. E mais, terminou por aceitar explicitamente os
conceitos histórico-culturais de “horizonte” e de “tradição”, sobretudo aplicados a
metalurgia, os quais tinham sido já criticados na Colômbia por fazer parte do âmbito
mais reavaliado da Arqueologia Histórico-Cultural. Muitos aportes teóricos “marxistas”
no México (Sarmiento 1992) têm se limitado a reviver propostas histórico-culturais
esquemáticas dos anos cinqüenta, ou modelos como o de Service (1962) baseados na
seqüência bandos-tribos-cacicados-estados. Na Venezuela, a produção tem sido ampla
(Vargas e Sanoja 1999; Sanoja e Vargas 1995, 1999). Não obstante, grande parte da
produção, quando se faz abstração da cobertura terminológica, tem muito da

92
Arqueologia Histórico-Cultural e da Ecologia Cultural. A interpretação do passado pré-
hispânico da Venezuela continua aceitando uma visão normativa da cultura, com o
conseqüente peso das migrações, da difusão e das influências como alternativa as
explicações mais dinâmicas de mudança social centradas nas sociedades que sofrem
ditas mudanças.

Na Colômbia, até onde chega o conhecimento do autor deste artigo, unicamente dois
arqueólogos profissionais têm assumido a “Arqueologia Social” como própria. Os dois,
sob a influência de Mario Sanoja e de Iraida Vargas. No prólogo da obra de Carlos
Angulo Valdéz (1995) formulou-se que havia três tipos de arqueologia: um que assumia
que a disciplina era “antropologia do passado” e que estava orientada em estabelecer
regularidades “atemporais” e “aespaciais” entre culturas desaparecidas; outro, a
Arqueologia Processual, que gerava “leis atemporais e ahistóricas” e, finalmente, aquele
da arqueologia como ciência social, que considerava a disciplina como um saber
histórico. Efetivamente, o trabalho apresenta uma visão histórica dos “modos de vida”
do Caribe colombiano: comunitário simples, de produção tribal ou de vida aldeã-
cacical. Não obstante, a síntese da arqueologia do Caribe se expõe, nos mesmos termos
que Angulo a havia apresentado, em 1962 (salvo novos sítios e novos períodos), no
marco de uma interpretação ecológico-cultural. Outro exemplo é a recente obra de
Rodríguez (2002) sobre o Valle de Cauca. O prólogo, escrito por Mario Sanoja e Iraida
Vargas, congratula-se com a correta aplicação das categorias da Arqueologia Social.
Porém, a visão da seqüência arqueológica do Valle de Cauca não é realmente
interpretada de forma diferente daquela que convencionalmente tem-se trabalhado em
obras anteriores, mesmo sem usar categorias tais como “formação social” e “modo de
vida”. De nenhum modo quer-se dizer que os trabalhos de Angulo e de Rodríguez não
sejam válidos. Significa que, despojados de certa terminologia, são trabalhos que têm de
marxista o mesmo que têm muitos outros trabalhos, que não se enquadram nesta
terminologia. Também que, em ambos os casos, a herança da proposta histórico-cultural
e da ecologia cultural é grande.

O objetivo é demonstrar que a Arqueologia Marxista não sofre da mesma síndrome da


Arqueologia Histórico-Cultural: ser capaz de dizer o mesmo sempre,
independentemente de qualquer contato com a realidade, simplesmente modificando sua
retórica. E mais, consiste em esclarecer que no fundo (quer dizer, salvo terminologia
acadêmica e política apartes) a Arqueologia Histórico-Cultural e a Marxista não são o
mesmo. O exemplo da relação entre os pensadores marxistas e a arqueologia na
Colômbia serve para ilustrar um ponto vigente, não só no país, senão também – como o
insinuam os exemplos anteriores – em outras partes da América Latina. Uma das mais
severas limitações dos intelectuais marxistas interessados no passado pré-hispânico da
Colômbia foi a ausência de reflexão sobre o que se pode inferir do registro
arqueológico. Esta tarefa deixou-se para outras escolas e se perdeu a oportunidade de
avaliar produtivamente a fortaleza do marxismo para estudar o passado pré-hispânico.
Recentemente, Borrero (2004:76) tem se perguntado se é necessária – ou útil – uma
arqueologia nacional ou sul-americana, com esquemas de pensamento “próprios”, os
quais, na prática, se têm proclamado como necessariamente marxistas (Benavides
2001). Borrero tem razão quando afirma que, o que se requer é uma boa arqueologia
(que não necessariamente se deslinde do compromisso político), não linhas de
pensamento que se dediquem a discutir “categorias corretas” de pensamento ou a
estabelecer quem é o possuidor de um pensamento “politicamente correto”.

93
Como anota Valdez (2004), a Arqueologia Social tão pouco progredirá se elaborada
como pensamento “nacional” ou “latinoamericano”, fechado às contribuições reais da
disciplina em outras partes do mundo. Em particular, enquanto siga acreditando que,
tudo o que se produz por fora de um determinado círculo de colegas, ou, pior ainda, por
fora da Latinoamérica, é reacionário e colonialista. Não haverá Arqueologia Marxista
sem uma profunda autocrítica do legado histórico-cultural e ecológico-cultural que
ainda a atrapalha – pese o loquaz de sua terminologia. Não poderá existir, além do mais,
sem um verdadeiro compromisso com o estudo do registro arqueológico que possa
competir efetivamente com outras formas de fazer arqueologia, no acadêmico e no
político. De outra forma, quando se queira discutir sobre teoria ou sobre qual é a forma
“correta” de fazer as coisas, se lerá trabalhos de “Arqueologia Social”. Porém, quando
se queira aprender sobre o passado pré-hispânico, se consultará outras fontes. E esse é
um luxo que não nos podemos dar.

BIBLIOGRAFIA

94
A Arqueologia do conflito no Brasil

“Com o golpe de 1964, a Universidade de São Paulo, como todas as universidades do Brasil, foi entregue à
políticas implacável do rinocerontes, que sonham com uma universidade só de catedráticos, mas sem alunos. Os
rinocerontes passaram a ser apoiados pela situação implantada em 1964”.
Paulo Duarte (1970:371).

Pedro Paulo A Funari*


Nanci Vieira de Oliveira**

Introdução

A História recente da Arqueologia, no Brasil, foi bastante tumultuada. Surgida no


século XIX, apenas depois da Segunda Guerra Mundial a Arqueologia tomaria rumos
acadêmicos no Brasil, em especial graças às iniciativas de Paulo Duarte. O golpe militar
de abril de 1964, contudo, representou um momento de inflexão da disciplina, que se
inclinava para o humanismo francês, inspirada em Leroi-Gourhan e no respeito aos
direitos humanos. O país mergulhou num regime de repressão crescente, com a
cassação de inúmeros políticos, líderes sindicais e intelectuais, culminando com o AI 5,
medida ditatorial explícita (1968), com a junta militar (1969), com exílio, detenção e
assassinato de opositores à ordem discricionária. Já em 1964, iniciava-se um Programa
Nacional de Pesquisas Arqueológicas, sediado em Washington, sob a égide da aliança
entre os Estados Unidos e o regime militar. Em 1969, com a ascensão de intelectuais
ligados ao regime, cassam-se muito acadêmicos, com destaque para Paulo Duarte, com
a conseqüente tentativa de destruição do Instituto de Pré-História da Universidade de
São Paulo (Duarte 1994).

Apesar da abertura do regime, a partir da Anistia, em 1979, o regime manteve o


controle das instituições de pesquisa e, em particular, da Arqueologia, até 1985.
Próceres do regime controlavam as pesquisas e as instituições e promoviam seus
afilhados em cargos e funções, herança pesada que marcaria o período de restauração
das liberdades civis em 1985. A liberdade permitiu que florescessem pesquisas e pontos
de vista os mais variados, mas a tutela dos herdeiros do regime militar, que passaram a
se apresentar como democratas, dificultou, no que foi possível, o estudo dos conflitos
sociais pela Arqueologia. As pesquisas pioneiras sobre quilombos e sobre Canudos,
desde a década de 1990, abriram caminhos inovadores, mas o estudo da repressão,
durante o período militar, continuou a contar com um óbice oculto: o papel político dos
herdeiros do regime, ainda importante em pleno século XXI (Funari 2002; 2003a).
Neste contexto, entende-se que pouco se pesquisou, até o momento, sobre o período
ditatorial, o que, por outro lado, permite esperar que, nos próximos anos, a pesquisa
possa se desenvolver com grandes contribuições. A Arqueologia brasileira insere-se,
cada vez mais, nas discussões internacionais (cf. Funari, Zarankin e Stovel 2005) e as
novas gerações, isentas da colaboração com o regime militar, podem voltar-se para tais
temas com autonomia.

*
Professor Titular, Departamento de História (DH/IFCH/UNICAMP), Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos
(NEE/UNICAMP), Universidade Estadual de Campinas.
**
Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Diretora do Laboratório de Antropologia Biológica (LAB/UERJ).

95
Neste capítulo, trataremos, num primeiro momento, das bases epistemológicas que nos
permite propugnar a importância do estudo dos conflitos sociais pela Arqueologia para,
em seguida, apresentarmos um estudo de caso, único em nosso país, sobre a
Arqueologia dos desaparecidos. Concluímos com algumas considerações sobre as
perspectivas futuras de pesquisa e ação social.

O estudo arqueológico dos conflitos sociais

Nos últimos anos, os estudiosos têm demonstrado interesse crescente em explorar o uso
da cultura material para estudar conflitos e lutas sociais, assim como na maneira como a
interpretação do passado é construída pelas concepções modernas. Conflitos no passado
e na sua interpretação constituem preocupações cada vez mais atuais. A sociedade
caracteriza-se, sempre, pelo conflito e, a partir de uma epistemologia dialética, a
experiência dos povos do passado é considerada como parte de um confronto constante
entre atores sociais. A História das sociedades dividas por classes implica o estudo da
apropriação de excedentes, assim como da exploração que engendra conflitos abertos e
contradições internas na sociedade e das forças de dominação e resistência. A
interpretação desses conflitos é maleável e subjetiva e podemos interpretar o passado
como um conjunto de textos complexos, formando um discurso.

Se o conflito e a subjetividade fazem parte tanto da evidência quanto de sua


interpretação, é inevitável a multiplicidade de interpretações e não se pode evitar tomar
posições. Há diferentes maneiras de conhecer o passado e devemos afrontar a questão
de quem pode saber e de quem pode participar no processo de invenção e
ressignificação do passado. Neste contexto, trataremos, neste capítulo, dos estudos
arqueológicos sobre os conflitos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), com
um estudo de caso, visando, também a apontar as perspectivas de pesquisa. O estudo da
cultura material pode ser um poderoso instrumento na análise das histórias subalternas e
na transferência de poder para os próprios agentes sociais e as controvérsias sobre a
interpretação dos mecanismos materiais de repressão fornece um bom exemplo da
relevância do estudo do passado para a sociedade em geral. Como costuma acontecer
com estudos científicos, este capítulo levanta tantas questões quanto propõe respostas,
mas, antes que apresentarmos soluções aparentemente corretas, preferimos incentivar
uma discussão pluralista do tema.

Quando se busca descrever e interpretar as culturas do passado, convém incorporar o


estudo tanto de textos e relatos orais, como de artefatos, o que é particularmente
relevante no estudo da repressão no Brasil recente. Os dados textuais, orais e materiais
podem ser encarados como interdependentes, complementares e contraditórios, ao
mesmo tempo. Neste contexto, para lidar com a tarefa de interpretar o conflito no
interior da sociedade impõe-se uma abordagem interdisciplinar que combine análise
textual, oral e artefatual, com aportes sociológicos e antropológicos, entre outros.

O conflito tem sido, tradicionalmente, interpretado pelos grupos sociais dominantes.


Até a década de 1960, os arqueólogos voltavam-se quase que de forma exclusiva para
os ricos e famosos, o que contribuía para a manutenção e reforço de ideologias
conservadoras. Gradualmente, os arqueólogos começaram a seguir seus colegas nas
Ciências Humanas e Sociais em seu estudo dos grupos subordinados e o estudo das
evidências materiais dos grupos subalternos permitiu um acesso mais amplo aos grupos
sociais pouco representados no registro escrito. Ainda que alguns estudiosos com pouco

96
conhecimento da cultura material tenham questionado abertamente a capacidade de a
Arqueologia poder contribuir para o conhecimento do passado, diversos livros e artigos
publicados nos últimos anos confirmaram que a evidência material é de particular
importância para a compreensão da complexidade dos conflitos sociais.

Como interpretar o conflito social depende, de maneira direta, de como se entende a


própria sociedade, interpretada pelos estudiosos, tradicionalmente, como entidades
homogêneas e bem delimitadas. Esta noção, no estudo da cultura material, deriva da
definição clássica criada por Vere Gordon Childe: “a cultura é uma herança social;
corresponde a uma comunidade que compartilha instituições e modo de vida comuns
[ênfase acrescentada]”. Esta definição implica harmonia e unidade no interior da
sociedade, um compartilhar de interesses e, portanto, a ausência do conflito. As raízes
desta compreensão da vida social encontram-se, em grande parte, em Aristóteles e sua
definição de sociedade como koinonia, ou seja, como uma parceria (cf. Aristóteles,
Política 1252a7). Compartilhar valores em uma cultura homogênea significa aceitar
características e tradições comuns a todos (cf. Aristóteles, Politica 1328a21).

A homogeneidade é um conceito originário dos movimentos nacionalistas e capitalistas


e em direta oposição a uma abordagem internacionalista. As culturas, assim como as
nações, foram vistas pela ideologia burguesa como entidades homogêneas e delimitadas
e a História passou a ser concebida como o produto das ações e eventos associados a
tais entidades homogêneas. A busca burguesa pela solidariedade nacional tem sido
posta em questão desde Marx e, particularmente nos últimos anos, pelos críticos das
interpretações da sociedade como entidades baseadas antes na solidariedade do que no
conflito.

Neste contexto, o conceito de cultura arqueológica pode ser entendido. Complexos


materiais fechados e homogêneos são interpretados como o produto de grupos do
passado porque, diz-se, as pessoas dentro de tais grupos compartilhavam um conjunto
de normas prescritivas de comportamento que eram aprendidas em tenra idade e,
portanto, produziam uma cultura comum. A própria noção de doutrinação infantil
inspira-se no uso das escolas na construção das identidades nacionais modernas, em um
perspectiva burguesa, como no notável caso da França após a Revolução Francesa. As
entidades arqueológicas são interpretadas da mesma forma, como unidades orgânicas
equivalentes às nações burguesas. Contudo, contradições e conflitos sociais só são
possíveis, em termos epistemológicos, se a sociedade for heterogênea e a dialética entre
homogeneidade e heterogeneidade sociais torna-se compreensível neste contexto.

A generalização, portanto, implica homogeneização e observa-se uma crescente


insatisfação com o uso de abordagens normativas na interpretação da vida social. A
natureza holística, monolítica de culturas e sociedades tem sido questionada tanto por
estudos empíricos como teóricos, nas últimas décadas. Homogeneidade, ordem e limites
têm sido associados ao pressuposto a priori que a estabilidade caracteriza as sociedades,
antes que o conflito, uma concepção claramente conservadora e ahistórica. No entanto,
um número crescente de dados e um estudo crítico do pensamento social têm desafiado
este ponto de vista tradicional, passando a considerar a sociedade como heterogênea,
com construções conflitantes sobre identidade cultural. Heterogeneidade, fluidez e
mudanças contínuas implicam a existência de múltiplas entidades sociais, sempre em
mutação na sociedade (Funari 2003b; Oliveira 2004). Neste contexto teórico insere-se o
estudo da Arqueologia dos conflitos durante a ditadura militar.

97
A Arqueologia dos desaparecidos no Brasil

No Brasil, assim como na maioria das sociedades acadêmicas latino-americanas, ainda


existe uma forte resistência de arqueólogos e antropólogos físicos em trabalhar com
casos que estejam relacionados à violação dos direitos humanos. Da mesma forma, não
parece haver interesse das instituições governamentais na presença de qualquer
antropólogo ou arqueólogo forense nos quadros das instituições judiciais, como também
não há procura por parte destas instituições aos pesquisadores acadêmicos, seja no
auxilio com técnicas específicas ou no preparo das equipes de investigação para os
casos que exijam exumações.

Isto não indica a inexistência de tentativas na formação de equipes forenses, embora


ainda sejam mínimas, como ocorreu em 1992 através do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ,
com a colaboração de antropólogos da Equipe Argentina de Antropologia Forense, e
posteriormente, o empenho de antropólogos físicos envolvendo a Escola Nacional de
Saúde Pública - FIOCRUZ e o Museu Nacional - UFRJ para a vinda do antropólogo
Douglas H. Ubelaker que ministrou um curso de Antropologia Forense.

Arqueólogos e antropólogos físicos brasileiros estão acostumados a trabalhar com restos


materiais de um passado distante da realidade sócio-política do próprio pesquisador. O
desafio de uma Arqueologia e Antropologia Forense brasileira é a possibilidade de
romper com uma postura dita “neutra”, ao articular as experiências acadêmicas com a
demanda de feridas de um passado ainda presente, que envolvem familiares de
desaparecidos políticos, buscando respostas a indagações que incomodam a muitos na
sociedade atual. Mas, muito mais que esta contribuição para um momento histórico do
país, a articulação com os problemas sociais brasileiros, onde a violência no campo, e
cada vez maior uma violência urbana, colocam a necessidade de investigações
científicas. Onde estão os cientistas capazes de preparar investigadores competentes na
sociedade? Onde estão os pesquisadores que possam contribuir com técnicas mais
refinadas no resgate de cenas de vida e morte? Onde estão os pesquisadores que
possuem um melhor conhecimento sobre as populações e práticas culturais brasileiras?

Dentro dessa premissa, em 1992 integrei-me, com dois médico-legistas, aos trabalhos
no cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro. Acostumada a ter como
objeto de pesquisa populações pré-coloniais, esta oportunidade significava exercer um
campo em que o sentimento e a emoção seriam elementos marcantes, mas que por tal
característica tornava-se desafiador.

Estabelecer uma rotina de escavações arqueológicas com material humano recente


significa estar submetido a uma burocracia policial, exigindo a integração da equipe à
administração do cemitério e órgãos oficiais. De acordo com as informações levantadas
pelos membros do GTNM/RJ, 14 desaparecidos políticos19 encontravam-se entre as
ossadas em uma vala clandestina, aberta para depositar cerca de 2100 ossadas,
oriundas de covas rasas comuns e de indigentes. Embora a partir do final da década de

19 Ramires Maranhão do Vale, Vitorino Alves Moitinho, José Bartolomeu R. da Costa, José Silton Pinheiro, Ranúsia Alves
Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria
W. Pontes, Wilton Ferreira, Mario Prata, Merival Araújo e Luis Ghillardini.

98
70 tenha sido instituída a obrigatoriedade de individualização dos restos ósseos nos
ossuários, geralmente em sacos plásticos, as escavações demonstraram que isto não
ocorreu com os que foram depositados nesta vala clandestina.

A partir da espacialização dos restos ósseos pretendia-se obter a identificação dos


indivíduos presentes, entretanto no decorrer das escavações observou-se que os restos
esqueletais encontravam-se totalmente desarticulados e impactados, misturados com
materiais plásticos e metálicos das urnas funerárias. A presença da violência entre estes
restos ósseos foi indicada por uma cápsula de fuzil, embora sem possibilidade de
relacioná-la a qualquer individuo. Cabe mencionar que os “desaparecidos”
correspondiam a pessoas de cor branca entre 18 e 45 anos, mortos por projéteis de arma
de fogo, estando alguns carbonizados, todos mortos no inicio da década de 1970.

A disposição dos restos ósseos em diferentes setores da vala indicou que os


sepultamentos foram exumados de suas covas sem qualquer cuidado, apresentando
muitos dos restos ósseos marcas de impactos por enxadas, transportados provavelmente
vários ao mesmo tempo e jogados no local. Tais características ampliaram a dificuldade
em identificar as ossadas, mesmo dispondo das fichas cadavéricas dos desaparecidos
políticos. Assim, a possibilidade resumia-se nos crânios, porém estes também não
apresentaram as condições que presumíamos inicialmente. Quando não totalmente
fragmentados, apresentavam ausência de ossos da face. A dificuldade de financiamento,
já que o trabalho foi realizado por pesquisadores voluntários, exigia a definição de
grupos menores de crânios onde os desaparecidos políticos poderiam estar incluídos,
para futuras análises dentárias e de DNA. A dificuldade em definir estes grupos,
impossibilitou a identificação.

Inicialmente poderíamos interpretar que o estado do material ósseo fosse


resultado de ações intencionais para impedir a descoberta de pessoas
desaparecidas na ditadura militar. Mas, acompanhando as exumações por
funcionários do cemitério, que ocorreram no período dos trabalhos de campo,
percebemos que a forma como eram realizadas nos túmulos não procurados
pelos familiares e nos de indigentes, estas destruíam todas as evidências
importantes para o trabalho arqueológico.

Embora os indivíduos presentes na vala tenham sido exumados, provavelmente, após o


estabelecimento do uso obrigatório de sacos individualizando as ossadas, tal
procedimento não foi respeitado pelo descaso da própria administração do cemitério.
Como a maioria destas ossadas era proveniente de sepultamentos de indigentes, o
tratamento indicou que indivíduos excluídos socialmente em vida, o foram igualmente
após a morte, ou seja, covas anônimas e exumações destruidoras.

Embora os resultados pretendidos não tenham sido alcançados, acreditamos que


Arqueologia e a Antropologia Física podem contribuir com seus conhecimentos
técnicos para o estabelecimento de uma Antropologia Forense Brasileira,
preparando especialistas em conjunto com a Medicina Legal. Isto exige não
somente um reconhecimento pelos órgãos oficiais da contribuição destas áreas,
como também que suas análises tenham valor judicial no Brasil.

Conclusão: balanço e perspectivas

99
A Arqueologia da repressão está apenas no início, no Brasil. Neste capítulo, tratamos de
apenas um aspecto, referente aos desaparecidos. Contudo, há uma pletora de aspectos
relevantes, relacionados à repressão e que estão abertos à pesquisa e cuja relevância
social e política não pode ser subestimada. Do ponto de vista da História da Ciência, o
período militar constitui um imenso manancial a ser explorado, a partir de uma
abordagem social que reconstitua os liames entre as redes de poder e a constituição de
uma ortodoxia, no sentido atribuído por Pierre Bourdieu à doxa, empirista e positivista.
Embora a História da Arqueologia brasileira, em geral, já seja objeto de pesquisa, ainda
faltam estudos sobre o papel repressivo exercido pela ditadura na disciplina, em
particular a partir de uma abordagem social, tal como proposta por estudos clássicos
como Bruce G. Trigger (1990) e Thomas Patterson (2002; cf. Funari 2003c). Não se
pode bem estudar a repressão, sem um exame das condições que levaram a
Arqueologia, em nosso país, a abster-se do tema por tanto tempo e de maneira tão
persistente.

Em seguida, mas não menos importante, abrem-se os estudos arqueológicos de todo o


universo material da repressão, na forma tanto das prisões, campos de detenção legais
ou ilegais, como das instituições disciplinares em geral, em um contexto ditatorial. Um
imenso manancial de artefatos, associados à repressão, também estão por ser estudados:
instrumentos de tortura, de forma mais evidente, mas igualmente os usos normativos e
repressivos de artefatos aparentemente destinados a outros fins, como no caso dos usos
repressivos de automóveis – que serviam para seqüestrar pessoas – ou de simples
lenços. Quando Caetano Veloso cantava uma vida ‘sem lenço nem documento’, não se
referia, apenas, à falta de preocupação com as formalidades burguesas, com o lenço
para assoar o nariz, com o documento que nos permite entrar no cinema, mas com os
usos repressivos de tais simples artefatos: o documento identifica o ‘subversivo’ e o
lenço serve para vendar, calar ou mesmo executar o identificado.

Há mais de vinte anos do fim da ditadura, multiplicam-se as oportunidades de estudo, os


antigos beneficiários e sustentáculos do regime, mesmo quando ainda no poder, são
obrigados a conviver com o contraditório, com a diversidade, valor maior tanto no
Brasil, como em termos internacionais. A importância do estudo da repressão não pode
ser desprezada, pois apenas o estudo da opressão permite garantir a liberdade e entender
como foi possível a barbárie (Funari 2003d). Esta é uma condição necessária, ainda que
não suficiente, para que a barbárie não volte a triunfar.

AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Thomas Patterson, Bruce G. Trigger e Andrés Zarankin. Escrevemos
em homenagem ao Prof. Passos, por sua defesa do IPH e de Paulo Duarte, nos
momentos mais duros da repressão ditatorial. Devemos mencionar, ainda, o apoio
institucional do NEE/UNICAMP, LAB/UERJ, CNPq, FAPESP. A responsabilidade
pelas idéias restringe-se aos autores.
Dedicamos este capítulo a todos que foram perseguidos durante o regime militar.

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101
Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço
Luis Fondebrider

Introdução
Uma fria manhã do mês de julho de 1984. Um grupo de jovens se encontra ao redor de
uma sepultura no cemitério de San Isidro, nos arrabaldes de Buenos Aires, Argentina.
Não estão sós. Um cordão de policiais, uns 40, rodeia em círculo toda a área. Atrás
deles, umas mulheres com lenços brancos na cabeça olham angustiadas a cena. O
silêncio é quebrado pelos soluços das mulheres, pelo ruído das câmeras dos fotógrafos
da imprensa ali presentes e pelo rádio policial que, a cada tanto, solta um ruído
mecânico.

Depois de oito anos de ditadura militar a democracia voltou à Argentina. Com ela a
necessidade de buscar pelas mais de 10.000 pessoas que desapareceram pelas mãos das
forças armadas. Os corpos dessas pessoas, pelo menos muitos deles, se acham
enterrados sem identificação, como NN ou XX, em cemitérios municipais de todo o
país.

O grupo de jovens tem medo. São estudantes de Arqueologia, Antropologia e Medicina.


Nunca pensaram estar em tais circunstâncias. A democracia é frágil. Ainda não se sabe
se vai durar muito. Essa mesma polícia que hoje os custodia, poucos meses antes os
perseguia e os fazia desaparecer.

Junto com eles, outras pessoas com as quais nunca lhes tocou interatuarem: advogados,
juízes, médicos legistas da polícia. Todos manejam uma gíria desconhecida. É feita de
códigos e de sinais que nunca viram e que lhes custa entender. Também está com eles
um homem de já avançada idade. Nunca fala o espanhol e que, apesar das
circunstâncias, se mostra muito tranqüilo e seguro. Ele é quem os convidou a participar
da exumação do corpo de uma pessoa desaparecida. Ele se chama Clyde Snow. É um
reconhecido antropólogo forense estadunidense que veio à Argentina tratar de
recuperar, adequadamente, os corpos enterrados sem identificação e tratar de devolver-
lhes seu nome.

O Dr. Snow fala de forma pausada, com um forte acento texano. É um dos primeiros
antropólogos forenses que, pela década dos anos setenta, decidiu utilizar a Arqueologia
na recuperação dos corpos, em casos médico legais. Sua presença na Argentina deveu-
se a iniciativa de organismos de direitos humanos locais. Ocorre que, durante meses
antes, atuaram como pás mecânicas, como coveiros, como médicos de polícia que
exumavam, sem nenhum tipo de cuidado e nem muito menos metodologia científica, os
restos esqueletais de presumivelmente desaparecidos que se achavam inumados nas
áreas NN, isto é, as zonas para indigentes, nos cemitérios. As imagens transmitidas pela
televisão e as notícias nos jornais sobre estas exumações foram denominadas com um
cruel sarcasmo de “o show do horror”. Isto, mais pelo que descobriam, do que pela
forma em que se estava levando a cabo as descobertas.

Enquanto que a pá de um dos coveiros começa a abrir os primeiros 20 centímetros da


fossa, os estudantes pensam que estão ali, não por que o departamento de arqueologia
da universidade local os enviou ou por que um de seus professores está envolvido no
projeto, senão por iniciativa própria. Estão ali por seus desejos de fazerem algo

102
concreto, a partir da Arqueologia ou da Medicina, em um momento chave da história da
Argentina. Somente um arqueólogo foi receptível e se somou a iniciativa. O resto da
comunidade científica – arqueólogos ou antropólogos físicos – não se mostrou
interessada, por razões diversas. Porém, é interessante ressaltar que este padrão de
conduta da comunidade arqueológica/antropológica argentina, com algumas exceções
individuais, aconteceu também em outros países da América Latina, os quais, em anos
posteriores, começaram a desenvolver uma linha de Arqueologia e de Antropologia
Forenses.

Após uma hora de trabalho, a terra começa a mudar de cor e de textura. Por fim, algo
reconhecível, que os faz sentir menos assustados e mais no controle da exumação. Um
dos médicos da polícia se acerca e diz ao coveiro: “Já estamos próximos. Avisa-me
quando tocas o osso com a pá”. Quando começa a distanciar-se, quase em uníssono, os
estudantes estalam um só grito: “Não, não, assim não se faz”. Ante o olhar surpreso do
juiz e de todos os que rodeiam a fossa, diante de um meio sorriso de Snow, um deles se
mete dentro da sepultura. Começa a desembaraçar a terra com uma colher de pedreiro,
enquanto que outro a recolhe e a começa peneirar. É, provavelmente, a primeira vez
que, na Argentina, a Arqueologia dá mão ao âmbito judicial-médico-policial. Ainda que
pareça mais uma irrupção inesperada e não desejada, do que um procedimento
planejado e pactuado de antemão. Horas mais tarde, os estudantes e o arqueólogo se
encontram em pleno controle da cena. A exumação começa a parecer um trabalho
arqueológico. Porém, essa já é outra história.

Vários anos depois


Vinte e um anos se passaram desde essa experiência na Argentina. Hoje em dia, falar de
Arqueologia e Antropologia Forenses, no mundo, não soa tão estranho para advogados,
fiscais e forenses em geral. Inclusive familiares das vítimas e as organizações que as
agrupam, em alguns países, se opõem quando pessoal não capacitado pretende fazer
exumações sem arqueólogos ou não se utilizam de antropólogos forenses na análise dos
restos ósseos.

Vários países da América Latina têm incorporado antropólogos forenses em seus


serviços médico-legais, tanto em nível judicial quanto policial. Suas opiniões e análises
são, em geral, respeitadas e levadas em conta.

Fora da região, por outra parte e a partir de 1996, quando o Tribunal Internacional
Criminal para a ex-Iugoslávia começou a realizar exumações massivas de vítimas do
conflito nos Bálcãs, o afã dos arqueólogos e dos antropólogos forenses da Argentina, da
Guatemala, do Peru, da Colômbia e da Costa Rica resultou fundamental. Tal
circunstância aconteceu tanto pela experiência por eles acumulada ao transcorrer dos
anos oitenta e noventa quanto por suas capacidades de análise.

A criação, no ano de 2003, da Associação Latinoamericana de Antropologia Forense


(ALAF) foi, de certa maneira, a consolidação de todas estas experiências. Ao mesmo
tempo, foi a apresentação de um novo modo de se fazer Arqueologia e Antropologia
Forenses. Este fazer incluiu: a) uma interdisciplinaridade com todos os âmbitos da
Antropologia representados – cultural, arqueológico, biológico; b) um viés fortemente
social, tendo as famílias das vítimas como um eixo fundamental das tarefas, respeitando
seus padrões culturais e religiosos, assim como, seu direito de saber.

103
Estas mudanças também, de certo modo, refletem-se na produção científica. Nesta,
pouco a pouco, começam a aparecer investigações sobre diversas metodologias de
trabalho em fossas comuns em contextos forenses, sobre a tarefa do antropólogo em
desastres massivos ou sobre a perspectiva antropológica na análise patológica a nível
ósseo e, em particular, de lesões peri mortem.

Desafios
Não obstante os logros alcançados nos últimos anos, ainda permanece um longo
caminho por percorrer. Por exemplo, se bem que na Colômbia e no México já existam
alguns cursos de pós-graduação, ainda não se conta, na América Latina, com suficientes
cursos de Arqueologia Forense e de Antropologia Forense. As pessoas têm que ir aos
Estados Unidos ou a Inglaterra para completar sua formação.
Por outra parte, a utilização das duas disciplinas dentro do âmbito médico-legal segue
dependendo, em muitas ocasiões, da boa vontade ou do critério da autoridade
encarregada da investigação, denomine-se de fiscal, de juiz ou de detetive de
homicídios. Ainda não está regulamentado, por exemplo, que o levantamento ou
exumação de um corpo esqueletizado deva ser realizado por um arqueólogo.

Ao mesmo tempo, desde o âmbito acadêmico em geral, não tem despertado um


interesse em se desenvolver uma linha de trabalho no âmbito forense. Mesmo quando os
estudantes de Arqueologia e de Antropologia se interessam em participar de trabalhos
concretos cada vez que surge a oportunidade.

A modo de balanço
O aporte que tem efetivado a Arqueologia e a Antropologia Forense na investigação de
casos de violência política/étnica nos últimos vinte anos, sem dúvida, foi, e segue
sendo, fundamental.

Escavações em tumbas NN em cemitérios argentinos

104
Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)

Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)

A exumação arqueológica de fossas na América Latina, na África e na ex-Iugoslávia,


para mencionar os casos notórios, tem permitido recuperar os corpos de centenas de
pessoas que foram seqüestradas, executadas, na maioria dos casos pelo Estado, e
identificar muitos destes corpos. Este processo significou poder devolver a seus
familiares os restos de seus seres queridos. Da mesma forma, aportar provas científicas

105
à justiça para definir penalmente os responsáveis e reconstruir uma parte importante da
história recente destes países.

Escavações da EAAF no Congo, África

Escavações da EAAF na Etiópia, África

106
Escavações da EAAF na Etiópia, África

Ao mesmo tempo, abriu uma nova linha de trabalho e de investigação dentro da


disciplina. Forçou-a a interatuar com outras especialidades científicas e com outros
atores da sociedade. Mostrou que a Antropologia em geral e, a Arqueologia em
particular, podem brindar um aporte fundamental à compreensão de nosso passado
recente e à preservação da memória do sucedido.

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109
Tortura, verdade, repressão, arqueologia
Alejandro F. Haber

A tortura aplicada nos porões da última ditadura argentina não tendia somente a busca
de informação. Orientava-se, além disso, para a autonarração do detido, de acordo com
os cânones do torturador. A tortura implicava, assim, o estabelecimento de um regime
de verdade. Este, além de ser necessariamente autoritário, não implicava uma descrição
passiva (Du Bois 1990). Du Bois caracterizou a tortura como a dominação final, não
tanto só de corpos senão, sobretudo, das idéias. Em seu argumento, a tortura não
esgotaria seu sentido na derrota de um inimigo presente. Implicaria no desejo de impor
particulares interpretações da história, uma particular “verdade” na contínua luta pela
compreensão da realidade do país. Sustentando-se na inegável desproporção entre o
número de combatentes e o dos detidos e dos torturados, a tese de Du Bois trouxe ao
primeiro plano o altíssimo preço que a sociedade tem pagado pelo estabelecimento da
“verdade”.

Dado que a Arqueologia coloca-se na prática do desvelamento das marcas do terrorismo


de estado, no marco do qual a tortura se estabeleceu como vigia do regime social de
verdade, cabe perguntar-se: Qual é a relação que esta disciplina estabelece entre verdade
e autonarração?

Não é na Arqueologia da Repressão recente onde a disciplina se constituiu em regime


de verdade. Pelo contrário, a expansão do campo da arqueologia ao recente passado da
tortura, desaparição e morte, não só concerne à aplicação de técnicas e de métodos.
Junto com estes, se estende à pretensão de validez do que acerca do passado se diz. Tais
pretensões veritativas são transportadas para o marco institucional de uma disciplina
acadêmica. Seus critérios de validação, se diz, são independentes da realidade a
interpretar, ou seja, são metodológicos e técnicos. Não deixar de resultar problemática a
apelação ao regime de verdade disciplinar no marco de um novo campo de aplicação.
Qual seja, o da neutralidade valorativa e o do objetivismo. Estes se racham quando os
fatos tratados são tão indiscutivelmente atrozes que, não tão só conformam parte de uma
realidade que não pode ser negada, senão, de uma realidade que tão pouco deve ser
negada. A autocompreensão objetivista – que é do mesmo modo cientificista enquanto
ciência que se apresenta como um valor – da Arqueologia como disciplina acadêmica
não é explicitamente questionada pela Arqueologia da Repressão mais recente. Porém,
as condições da relação cognoscitiva em ambas as arqueologias são suficientemente
distintas como para que, implicitamente, se trate de um modelo investigativo diferente.

A delimitação do campo objetual da arqueologia acadêmica, o que tem sido chamado de


registro arqueológico ou cultura material do passado, implica um posicionamento do
observador, frente a esses fatos, que estrutura seu processo cognoscitivo. O observador
se constitui como sujeito ao mesmo tempo em que sobre-constitui seu domínio objetual:
como objeto de sua observação e como objeto material. Ao mesmo tempo, é na
objetivação onde se sustentam as pretensões veritativas dos discursos narrativos. O
domínio objetual, então, fundamenta a relação cognoscitiva em três planos
completamente vinculados entre si: no plano ontológico (os objetos arqueológicos ficam
definidos como matéria); no plano metodológico (os objetos arqueológicos são os
vestígios do passado que se conhece mediante seu estudo); no plano epistemológico (a
separação essencial – e assimétrica – entre sujeito e objeto permite que o primeiro aceda

110
ao conhecimento do segundo, tal qual este é, desprovido de inclinações valorativas ou
interesses). A operação conjunta dos três planos produz uma indistinção entre o
fisicalismo, o empirismo e o objetivismo, que conformam uma dura base rochosa sobre
a qual se apoia o edifício disciplinar (Haber e Scribano 1993).

Tudo isto é não um mero exercício retórico. Não se trata de adjetivar a disciplina com o
fim de marcar uma própria morada na qual encontrar refúgio teórico. Sobre aquela
mesma rocha se apoia o signo político da relação cognoscitiva que se estabelece na
Arqueologia. O não dito, ou melhor, o que não se diz, isto é, o objeto arqueológico
mudo e inerte, se expressa precisamente em sua loquacidade aplacada: os sujeitos, cujos
interesses são apartados e excluídos da relação arqueológica pela sanção desta como um
domínio epistêmico e disciplinar (Haber 1994; Haber e Scribano 1993). A exclusão do
sujeito é um elemento fundamental na conformação dos habitus disciplinares da
Arqueologia. Parte do disciplinamento arqueológico consiste precisamente em aprender
a ignorar os outros sujeitos co-presentes ao interesse cognoscitivo arqueológico
(Gnecco 1999). Fazendo uso de umas metáforas biológicas, poderia dizer que este
disciplinamento opera filo e ontogeneticamente.

O disciplinamento ‘filogenético’ consistiu na etapa liminar da arqueologia argentina


entre 1875 e 1900 (Haber 1995). Em dita etapa, as sanções disciplinares não se tinham
ainda estatuído, os domínios objetuais não haviam sido designados e os sujeitos co-
presentes não tinham sido de todo excluídos. Um conjunto de autores – os filólogos –
designava o arqueológico com nomes indígenas contemporâneos (huaca, puco, virque,
antigal, pucará, pueblo viejo, piedra pintada, conana, etc.) ou narrava apelando às
tradições folclóricas e às crônicas coloniais. Pressupunha a significatividade dos
objetos. Outro conjunto de autores – os naturalistas viajantes – se esforçava por definir,
extensamente, os termos descritivos. Tendia a descrever e a classificar os objetos.
Sustentava a não significatividade dos objetos - ou bem que sua descrição e estudo
podiam prescindir dela. A institucionalização da disciplina nos museus Etnográfico de
Buenos Aires e de La Plata coadjuvou uma exclusão dos estilos, dos métodos e dos
interesses cognoscitivos dos filólogos e uma sanção dos naturalistas viajantes como a
normalidade disciplinar. Conforme o desembaraçado dizer de Moreno, enquanto se
propunha um projeto para seu museu, ao tempo em que se apagavam os fuzis da Guerra
da Argentina contra os povos indígenas, a Arqueologia devia trabalhar “para ter ao
menos um esboço do que foram as civilizações que se consumiram neste solo” (Moreno
1990).

O disciplinamento ‘ontogenético’, por sua parte, é aquele que atravessam os aspirantes


nas etapas iniciais da formação disciplinar. Os discursos pedagógicos se orientam para
que os alunos incorporem o jogo de linguagem da disciplina, mediante a qual se assinala
– isto é, se designa – o domínio objetual. É comum que os alunos de Arqueologia não
demorem mais do que um ano para esquecer os impulsos pessoais, familiares ou
comunitários que os levam a ingressar na carreira. Os substituem por auto-
representações que reproduzem definições disciplinares e objetivos sancionados. Ou
bem se aprende a ignorar a inquietude adolescente pelas conseqüências da repressão do
passado na estruturação do presente social, ou bem se deserta da carreira disciplinar
como o único caminho alternativo.20

20
Faz mais de dez anos que tive a oportunidade de comprová-lo com um grupo de alunos de
Arqueologia da Universidade Nacional de Catamarca. Foram capazes de narrar suas metas e

111
Uma vez que os mecanismos ‘genéticos’ têm operado exitosamente, se reproduzem os
habitus disciplinares mediante uma combinação tácita de preterização do sujeito e de
repressão do sentido. Os mecanismos habituais fazem com a natural mudez dos objetos
não permita escutar os sujeitos – entre estes, os próprios investigadores. Os sujeitos
ficam, então, excluídos do passado que, enunciado como história, é expropriado da
memória (Gnecco 1999).

Os mecanismos mediante os quais a Arqueologia objetiva o indígena não dependem da


consciência dos atores, não são matéria de vontade individual, senão que, de habitus
disciplinares que se sustentam em pré-julgamentos culturalmente reproduzidos.21 Todos
os cidadãos, disciplinados ou não pela Arqueologia, o temos sido antes pela
escolarização. Antecipadamente temos aprendido o sentido imutavelmente progressista
do tempo histórico. Da mesma maneira, nos têm ensinado que os fatos mais atrozes de
nossa história podem ser matéria de coloridos debates que se anunciam como lendas ou
linhas de opinião. Os genocídios, entre eles o maior que já conheceu a história humana,
isto é, o produzido pelos conquistadores espanhóis na América, são apresentados como
distantes horizontes dolorosos e inevitáveis. Possibilitaram o desenvolvimento normal
de nossa civilização. Quão dourado ou negro seja o passado, fica no plano das posições
possíveis, demarcando os extremos, entre os quais estaria a verdade.

As representações arqueológicas acerca da exploração e/ou dominação de uns indígenas


por outros se produzem em um contexto de ausência de reflexão acerca do sentido que
vem tendo as representações do mundo indígena, anteriores à conquista, no sustento
ideológico e político da própria empresa da conquista. A submissão, o seqüestro, a
tortura, a morte de milhões de pessoas e o estabelecimento de uma ordem colonial de
exploração obtiveram parte de sua sustentação nas representações dos indígenas e na
conduta dos conquistadores para com eles (Todorov 1987; Vollet 2001). Sem lugar a
dúvidas, é esta a mais pesada herança das arqueologias sulamericanas, cujo signo tem
sido revelado pela interpelação da mobilização dos descendentes dos sobreviventes do
genocídio.

A ordem colonial vem tendo um correlato no plano das representações. São aquelas que
têm ocupado um lugar no espectro cromático com o qual, nas escolas, se nos infundem
o sentido da história. A colonização cultural dos povos indígenas assumiu a forma de
ações repressivas organizadas e concertadas pelo Estado, pela Igreja e pelos
particulares. Estas ações foram orientadas visando à conversão dos indígenas ao
catolicismo, o abandono e a repressão de suas crenças e práticas religiosas e culturais. O
que tem sido chamado de “extirpação das idolatrias” foi, em resumo, uma dilatada
campanha de submissão ideológica, sustentada por ações repressivas, torturas e morte
de milhares de indígenas (Duviols 1977 e 1986). O delgado fio que separa a definição
de etnocídio da de genocídio não foi particularmente considerado pelos agentes
coloniais. A repressão do culto aos antepassados coadjuvou-se, além do mais, com a
destruição de centenas de lugares e de objetos sagrados, de corpos mumificados, de

interesses interdisciplinares no início do seu primeiro ano. Porém, ao cabo de um ano haviam
esquecido, inclusive, a conversação sustentada no ano anterior. Estruturavam suas respostas
em termos e conceitos estritamente disciplinares.
21
Não significa isso que, submetidos à crítica que, em grande parte, é autocrítica, não possam
ser modificados sempre que se assuma que devam ser modificados.

112
tumbas, de monumentos e do ajuizamento (seguido de tormentos, de castigos e, muitas
vezes, de morte) dos indígenas suspeitos de exercerem o culto (Duviols 1986;
Farberman 2005). A extirpação de idolatrias foi uma etapa posterior a guerra, isto é, a
generalização ao imaginário coletivo da dominação dos corpos individuais. As torturas
tiveram por objetivo a construção de um inimigo – o indígena demoníaco – e da
autonarração do sujeito sintonizada com a visão de mundo do torturador, como chave
para a instauração de um regime de verdade.

Parece uma simples questão de atualização terminológica que, aquilo que, em 1891, foi
chamada de ‘huaca’ por Samuel Lafone Quevedo, seja hoje considerado um sítio
arqueológico. Que os povoadores da área foram indígenas, para Lafone, e que, de fato,
tomara emprestado esta denominação de Chamar Yaco, bem como o sentido indígena
das ruínas, não é agora mais do que parte de um anedotário (Lafone Quevedo 1991).
Porém, que os cultos populares atuais nos sítios arqueológicos do noroeste argentino
sejam criminalizados pelo direito positivo que os sanciona como sítios arqueológicos
(Lei nº 25.743/2003 de Proteção do Patrimônio Arqueológico e Paleontológico),
poderia ser parte do mesmo processo de colonização cultural. No mundo herdeiro da
ordem colonial, sustentado em privilégios de raça, de classe e de gênero, em cujo
estabelecimento e sustentação tem participado práticas e discursos acerca do indígena,
de seus objetos e de monumentos antigos, não pode ser neutral que o tratamento desses
objetos e monumentos fique reservado ao âmbito de uma disciplina acadêmica. O é
muito menos se o mesmo se recorta em um horizonte de distanciamento e fiscalização
do objeto. É hora de sacudirem-se os estorvos culturais que têm ensinado a enunciar as
tradições indígenas passadas como arqueológicas e as viventes como folclóricas. Aos
indígenas como pretéritos, ao arqueológico como pareado ao conhecimento científico.

Costuma-se considerar que a expansão da disciplina arqueológica para a temática da


mais recente repressão de estado é uma demonstração da utilidade da disciplina em
problemáticas de atual interesse. Os regimes de verdade de uma ou de outra
arqueologia, não obstante, se baseiam em condições fundamentalmente diferentes. A
mais importante dentre elas é a inclusão ou exclusão da co-presença de interesses
cognoscitivos extra-disciplinares (Bellelli e Tobín 1985; Bozzuto e outros 2004; Cohen
Salam 1991; Equipe Argentina de Antropologia Forense 1992). A mera enunciação do
domínio objetual da disciplina exclui de seu tratamento, a quem os interpelam,
interesses distintos do conhecimento acadêmico ou científico sobre a reconstrução
histórica do passado. No âmbito da Arqueologia da Repressão mais recente, em troca, o
regime de verdade da narrativa histórica não poderia pretender sustentar-se na exclusão
da memória. Em todo o caso, se apóia em sua colaboração e sustentação (Bianchi e
outros 2000; Cohen Salama 1992). Isto não faz com que a narrativa resultante seja
menos verdadeira, menos acadêmica e nem sequer menos científica. Pelo contrário! O
processo de investigação é relevante, tanto acadêmico como socialmente, precisamente
pela inclusão dos interesses subjetivos extra-acadêmicos na definição de seus objetivos
e condicionamentos (Bianchi e outros 2000; Equipe de Investigação pela Memória
Política Cultural 2004). Não seria possível para os arqueólogos da repressão recente
objetivar os restos dos seres queridos, manipularem a narração de acordo com teorias de
pretendido alcance geral, nem utilizar a investigação para por a prova modelos de
comportamento, sem comprometer o labor no sentido de uma nova repressão. Um grupo
de sobreviventes do Centro de Detenção Clandestina, conhecido como “El Pozo”, em
pleno centro da cidade de Rosário, rechaçou sua representação e, a de seus
companheiros mortos, como vítimas do aparelho repressivo. O sentido de suas

113
experiências, estando detidos, que uma e mil vezes são narradas pelos sobreviventes
como inesgotável fonte de dor, seria reprimido junto com a negação de sua identidade
política. No sentido de DuBois, resistem. Junto a eles, os investigadores, a quem o
submetimento dos corpos se estende sobre as mentes. Que a memória coletiva seja
recolocada pela narração histórica, opinável e colorida, daquilo que passou com outros
que nada têm a ver conosco.

A Arqueologia da Repressão mais recente origina sua intervenção em interesses extra-


acadêmicos. Não poucas vezes, devem desenvolver-se no marco de complexas
negociações entre visões distintas, muitas delas igualmente atendíveis. A pergunta
inevitável é, a esta altura, por que a manipulação disciplinar do arqueológico é possível
quando se trata de Arqueologia Indígena? A resposta, que não é outra que a explicação
das diferenças na relação entre regimes de verdade e de autonarração, não pode ser
remetida à identidade sem que erosione toda a pretensão de interesse público da
empresa cognoscitiva. A posição, segundo a qual os profissionais da Arqueologia
defendem o privilégio aos discursos e objetos indígenas, está chamada a dissolver-se. É
tão insustentável política quanto teoricamente. É provável que o efeito da Arqueologia
da Repressão mais recente na disciplina tenha sido, precisamente, a incorporação da
experiência do diálogo intersubjetivo através das fronteiras disciplinares. A
aprendizagem do acompanhamento mútuo com interesses não meramente cognoscitivos
ressalta a importância social e política da história como memória coletiva.22 De ser
assim, uma das tarefas da reconstrução da Arqueologia para o projeto descolonizador,
deve ser a revisão crítica das profundas relações entre tortura, verdade, repressão e
arqueologia.

AGRADECIMENTOS
Os integrantes da equipe de investigação e sobreviventes do ‘pozo’ da Chefatura de
Rosario me permitiram compartir suas experiências no projeto. Diversos colegas, entre
eles, Patricia Bernardi, Silvia Bianchi, Luis Fonderbrider, Cristobál Gnecco, Jacko
Jackson, Darío Olmo, Bob Paynter, Claire Smith, Myriam Tarragó e Martin Wobst,
aportaram idéias, comentários e experiências que, mal ou bem, ficaram aqui escritas. A
Pedro Funari e Andrés Zarankin, por oferecer-me a oportunidade de fazê-lo.

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Resúmenes del XV Congreso Nacional de Arqueología Argentina.

22
Alguns primeiros sintomas, como a Declaração de Rio Cuarto (Declaração 2005), indicam que
a Arqueologia poderia atravessar sua própria reconversão no acompanhamento de práticas
emancipatórias.

114
Cohen Salama, Mauricio (1992) Tumbas anónimas. Informe sobre la identificación de
restos de víctimas de la represión ilegal. Equipo Argentino de Antropología Forense.
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115
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116
Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no
Uruguai (1971-1985)
José Mª López Mazz

Arqueologia da Repressão
O sistema de repressão instalado nos anos 1970 e 1980, no Uruguai, aparece como parte
de uma (geo) política mais ampla. Abarcou diferentes forças ‘golpistas’ repressivas sul-
americanas, com a coordenação de organismos especializados e de agentes dos EUA,
daquela época. A instalação da ditadura se viu anunciada por medidas repressivas
prévias e por cortes nos direitos dos cidadãos, através de “medidas repentinas de
segurança”. Única medida, segundo o Parlamento daquela época, capaz de poder fazer
frente ao estado de “guerra interna” (Martinez 2005).

A partir da reclassificação de documentos nos EUA e na Chancelaria do Uruguai, novas


provas foram aportadas para o ajuizamento do presidente civil Juan María Bordaberry e
de seu Ministro Juan Carlos Blanco. Ambos vinculados à morte de dissidentes políticos
uruguaios e argentinos, em ambas as margens do rio da Prata, no marco do tristemente
célebre “Plano Cóndor”.

As leis do “ponto final” consagraram, no rio da Prata, a impunidade nos casos de tortura
e de mortes por razões políticas, dificultando as atividades de investigação. Só
recentemente, se retomou as investigações sobre detidos desaparecidos e sobre a
violência política. Os processos de revisão histórica nos países do Cone Sul permitem
aprofundar a democracia, construir uma memória cidadã e realizar atos de justiça
necessários, particularmente, para estas nações jovens que emergiram, com dificuldade,
da ordem colonial sul-americana.

Uma aproximação arqueológica à repressão política pretende enriquecer a mirada sobre


fatos até agora invisíveis. Trata-se de empregar a Arqueologia como uma ferramenta
para a descolonização. Ao mesmo tempo, contribuir para a formação de identidades
cidadãs mais saneadas e apropriadas ao século XXI. Foucault (1976) defendia as
virtudes de um olhar “genealógico” sobre os dispositivos disciplinares ocidentais
responsáveis – em diferentes circunstâncias – por “vigiar e punir” os seus cidadãos.

Neste caso, o olhar arqueológico responde a orientações que cientistas e acadêmicos


vêm seguindo com êxito, em diferentes países, para esclarecer a relação entre condutas
repressivas, produtos materiais e direitos humanos (EAAF 2003). Esta orientação na
aplicação do trabalho arqueológico busca reconhecer e interpretar as causas (condutas)
responsáveis por produzir um registro material através de “contextos significativos”.
Estes contextos refletem as relações sociais repressivas que se associaram, de maneira
assimétrica, aos diferentes atores vinculados à repressão nos anos 1970 e 1980.

Uma Arqueologia da Repressão política


A repressão violenta de opositores deve ser vista no contexto mais amplo dos interesses
econômicos, políticos e geopolíticos dominantes. Não estamos frente a um fato isolado,
nem a violência é produto da diversidade ideológica ou da rivalidade partidária. Pelo
contrário, pensamos que a violência e a repressão são um meio para alcançar um fim
preciso, o exercício discricionário do controle econômico e político-social.

117
A repressão dos anos 1970 e 1980 foi exercida por aparelhos especializados e
coordenados. Ao mesmo tempo, se desenvolveu uma metodologia de torturas, de
assassinatos, de desaparições forçadas e de reclusões sem justos processos. Essa
violência dirigiu-se a parlamentares, militantes políticos, trabalhadores e estudantes.
Alcançou todas as classes sociais, os gêneros e os grupos de idade. O benefício do
exercício dessa repressão foi tanto para civis como para militares, que conservaram o
poder político e tiraram proveito das instâncias e das circunstâncias econômicas
dependentes do Estado.

O conjunto das atividades e das condutas envolvidas na repressão política se relaciona,


entre outras coisas, com restos humanos, objetos e lugares que são testemunho direto
daquelas circunstâncias. O presente artigo busca conhecer e reconhecer uma produção
material vinculada diretamente àquela repressão. Por um lado, ilustra instâncias
produzidas diretamente pelos repressores. Por outro lado, instâncias protagonizadas
fundamentalmente pelos reprimidos. Entendemos que existe um registro arqueológico
específico da repressão e da violência política constituído, entre outras coisas, por restos
ósseos, objetos produzidos nos cárceres e nos lugares associados à repressão. Permite
conhecer aspectos pontuais da “tecnologia do poder” e dos atores envolvidos na
violência política. Cremos que esta informação constitui um insumo útil e original para
escrever a história recente do Uruguai. Uma Arqueologia da Repressão, sem dúvida,
deve diferenciar a natureza de seu objeto de estudo (a materialidade de objetos e de
lugares), da interpretação política, que desde hoje se faça, em relação à violência
repressiva da época estudada.

Uma dimensão importante destas práticas arqueológicas é o contexto político no qual se


realizam e a atenção dada a Ciência, neste caso, como ferramenta da descolonização.
Descolonização de relações sociais (econômicas e políticas) e também dos pré-
julgamentos acadêmicos. Na América Latina se está desenvolvendo um estudo
arqueológico material e social das sociedades do presente e do passado, que mostra uma
notável mudança em nível teórico como em nível da práxis profissional.

Busca-se conhecer melhor aos “esquecidos” e aos “oprimidos”, invisíveis, até agora,
para a história oficial. Assim, democratiza-se a memória histórica. Entende-se melhor o
presente e se constroem identidades. Para além das boas intenções, a nova atitude exige
desenvolvimentos metodológicos específicos que, realmente, façam da repressão um
claro objeto de estudo da Arqueologia e da Antropologia.

As tumbas e os restos ósseos humanos


Os restos ósseos humanos constituem um documento fundamental para reconstruir a
história de vida dos indivíduos. As aproximações sistemáticas agrupadas sob o rótulo de
“Arqueologia da Morte” têm despertado particular interesse nos últimos trinta anos.
Têm resultado em uma contribuição fundamental para se estudar a sociedade dos vivos.
As orientações privilegiam, nas tumbas, uma leitura das hierarquias e das relações
sociais (Binford 1972; Lull 1998; O’Shea 1978);da quantidade de energia invertida nas
tumbas (Tainter 1978); do ‘trabalho’ e da cooperação social (Lull 1998); do conflito
através dos traços da violência (Gianotti e López 2000; Moreno 2001), assim como, do
simbolismo, desde um ponto de vista estruturalista (Hodder 1982). Os estudos
arqueológicos sobre a morte vêm tendo um sucesso no período pré-histórico. Porém,
têm significado também uma contribuição de valor metodológico para o
estabelecimento de uma “tafonomia” dos restos ósseos humanos (Gianotti e López

118
Mazz 2003; Moreno 2004). O tratamento dos mortos tem se orientado para a reflexão
que diz respeito à intencionalidade da deposição e do seu caráter formal no espaço
(Buikstra 2002). Nesse sentido, a localização do enterramento clandestino de um detido
desaparecido pode transformar um espaço, até agora irrelevante e passível de ser
considerado um “não lugar” (no sentido de Auge 1999), em um “lugar de repressão”.

O tema da desaparição física de detidos constitui um capítulo central no tema da


repressão. Por um lado, menoscaba os direitos das vítimas e atenta contra o desenlace
jurídico da situação criada a partir da ausência física da pessoa. Por outro lado, a
desaparição permanente constitui uma ferida aberta no círculo dos amigos e dos
familiares que, indiretamente, a repressão continua afetando em uma dimensão
intemporal. Quando se localiza restos humanos provenientes de detidos desaparecidos,
duas coisas se colocam imediatamente (EAAF 2003). A primeira tem a ver com as
possibilidades de estabelecer a identidade do corpo. A segunda tem a ver com o
reconhecer as condições de morte do indivíduo.

Dentre as investigações da atualidade vinculadas com a temática, sobressaem as levadas


adiante pelas equipes de “Antropologia Forense” que têm contribuído com a Justiça
para abordar temas da repressão política nos cinco continentes (EAAF 2003). Estas
investigações, em alguns casos, têm buscado só conhecer a verdade e recuperar os
restos. Enquanto que, em outros, são o princípio de processos legais vinculados a uma
revisão histórica de maior alento.

No Uruguai, estudos forenses sobre restos humanos têm sido realizados sobre tumbas
NN no cemitério de Colônia do Sacramento. A Equipe Argentina de Antropologia
Forense (EAAF), que realizou os trabalhos, não conseguiu identificar detidos
desaparecidos uruguaios. Pode tratar-se de corpos chegados à costa, talvez provenientes
de “vôos da morte”, realizados na Argentina (Comisión para la Paz 2004).

Outro caso de estudo de um enterramento NN provém do cemitério da cidade de


Castillos (Depto. De Rocha). Neste caso, os estudos de DNA não confirmaram a
identidade de um detido desaparecido, de quem se suspeitava como sendo a de um
corpo achado na costa (Comisión para la Paz 2004). Entre os pescadores de Rocha,
estes se recordam da chegada à costa de corpos, possivelmente, também provenientes de
“vôos da morte”, desde a Argentina. Os estudos de DNA realizados deram sustento a
esta hipótese. Metodologicamente, se pode apreciar a discordância entre os métodos
baseados no estudo de DNA e os de superposição de imagem digital (Comisión para la
Paz 2004; Por todos ellos 2005).

É pelo efeito da própria tecnologia repressiva e do “pacto de silêncio” que, até agora,
não se pôde recuperar restos significativos de cidadãos detidos desaparecidos. A
exceção constitui o caso de Roberto Gomensoro. Seu corpo apareceu flutuando no lago
do Rincón del Bonete, no centro do Uruguai. Graças ao fato de que um médico
conseguiu guardar seu crânio (o resto do esqueleto foi objeto de uma segunda
desaparição por parte dos “serviços”) foi possível realizar a identificação por DNA
(Comissión por la Paz 2004) e por superposição de imagens digitais (Solla e Mhemet
2005) e, assim, restituí-lo a sua família.

Outro singular caso de estudos forenses sobre restos humanos tem a ver com o cientista
chileno, Eugenio Berríos, assassinado por um comando militar chileno-uruguaio, no

119
Uruguai, em 1998. Os restos, achados enterrados em uma praia, perto de Montevidéu,
foram identificados por técnicos do Instituto Forense (Mhemet et al. 2000). O achado de
uma corrente com uma medalha da virgem protetora do Chile, encontrada junto ao
corpo, resultou em uma prova arqueológica contextual e contribuinte para com a
identificação forense (além disso, um relógio e a “prova dentária”) (idem).

Uma tipologia da morte, em tempos de repressão, é possível de ser realizada e constitui


um aspecto fundamental para o estudo das tecnologias repressivas. A pessoa física
objeto da repressão, constitui um testemunho direto da mesma. A recuperação de restos
humanos possui, deste ponto de vista, o valor de um documento que revela instâncias
chaves da violência vivida e, além disso, devolve historicidade a “pessoa” que foi objeto
de desaparição e de morte. O destino das pessoas desaparecidas e mortas traduziu-se por
uma diversidade de circunstâncias, no destino dos corpos. Isto expressa aspectos
associados à situação política nos diferentes momentos do “período repressivo”.
Expressa razões estratégicas associadas à mudança do modelo militar, antes e depois da
formalização do “Plano Cóndor”. Um repertório de situações permite ver a existência
de:
- Corpos humanos devolvidos as famílias (antes do Plan Cóndor).
- Corpos humanos em enterramentos em cemitérios, como NN (Castillos).
- Corpos humanos em enterramentos individuais e múltiplos, em cemitérios
clandestinos (Batallón 13 e 14).
- Corpos humanos enterrados clandestinamente fora dos prédios militares (Berríos).
- Corpos humanos abandonados sem enterrar (Soca).
- Corpos humanos atirados ao mar desde aviões (Colônia, Rocha).
- Corpos humanos atirados ao mar com pesos para sua imersão.
- Corpos humanos enterrados e desenterrados (Batallón 13 e 14).
- Corpos humanos enterrados, desenterrados e novamente enterrados (secundários)
(Batallón 13 e 14).

Tecnologia da repressão e aspectos da resistência à mesma


Michael Foucault (1978) chamou a atenção sobre os aspectos do disciplinamento como
parte de uma estratégia maior de controle e de repressão social. A leitura da arquitetura
repressiva que constrói, com uma dialética da exclusão os âmbitos da socialização
permitiu, sem demora, encaminhar esse olhar para diferentes âmbitos repressivos. A
cidade criou bulevares para facilitar a circulação dos exércitos repressores, logo após a
Comuna de Paris (Foucault 1978). O “panóptico de Jeremias Bentham” serviu também
de modelo útil para o estudo do sistema repressivo carcerário (op. cit.). A partir daqui,
se derivaram modelos de uso arqueológico para o estudo dos “fortins” que levaram
adiante a ‘Guerra do Deserto’, na Argentina, na metade do século XIX (Gómez Romero
2002). A escola e a cidade, como instituições de disciplinamento, também foram objeto
de estudo espacial arqueológico (Zarankin 2002).

Os sistemas de violência produzem uma articulação de lugares através da qual a


repressão se territorializa, gerando o espaço de sua auto-reprodução. A ordem pode
responder a um modelo institucional, como foi na primeira época, onde a violência se
centrou em lugares militares e policiais oficiais. Um segundo modelo se instala, a partir
do Plan Cóndor, quando da internacionalização do terrorismo de Estado. Nesse
momento, muda a estratégia e se gera uma rede de locais clandestinos, alguns deles
apropriados ao inimigo. Outros, foram gerados em sótãos, em vagões de trem e em
galpões, normalmente, no fundo dos quartéis.

120
Esses lugares, com os nomes codificados, assim como os dos repressores (e os dos
médicos que os assistiam nas torturas), chegaram a conformar famosos itinerários do
terror. Nesse marco, adquiriu todas as conotações macabras, a palavra “traslado”. As
pessoas podiam ser detidas na Argentina. Passar pelos “chupaderos” da ESMA,
ORLETI ou pelo Pozo de Banfield. Viajar ao Uruguai para ingressar no circuito de
tortura do Infierno Chico. Passar ao Infierno Grande del 300 Carlos (Batallón 13) para,
finalmente, serem assassinadas (Batallón 14) ou enviadas aos cárceres de alta segurança
(Penal de Libertad, Punta de Rieles). Os cidadãos executados ou mortos nas torturas
seriam logo inumados clandestinamente, em lugares desconhecidos.

Os testemunhos frente aos organismos de Direitos Humanos dão detalhes de vários


lugares vinculados à repressão. Não obstante, a ausência total de informação sobre
cemitérios clandestinos, tem questionado fortemente os resultados da Comissão para a
Paz, que trabalhou entre 2000 e 2004.

A história dos acondicionamentos e das ações físicas que buscaram eludir ou escapar da
repressão, recém começa e está longe de ter sido escrita. Falamos de buracos em muros,
de ferramentas para escavar, de túneis, de cloacas, de disfarces e de outras instâncias
que permitem, em retorno, sentar as bases para uma Arqueologia da Anti-repressão ou
da Liberdade. No caso uruguaio, estes lugares de “fuga” constituem um cenário
formado por espaços “produzidos” para a fuga e outros “apropriados” para a fuga. No
segundo caso, sobressai o caso da rede cloacal de Montevidéu. Constituiu um espaço
apropriado para a guerrilha urbana, a serviço da fuga carcerária e da circulação
clandestina de pessoas. Os guerrilheiros, em poder dos mapas da rede cloacal,
exerceram seu controle por debaixo da cidade. Os repressores, ainda que exercessem
seu controle na superfície, mostraram sempre sua desconfiança e temor em aventurar-se
nesse espaço infra-urbano.

Um elemento dialeticamente vinculado à repressão de seres humanos é a própria


resistências às condições repressivas que as pessoas manifestam. Entre as condutas anti-
repressivas clássicas está o caso das ‘fugas’. Foram protagonizadas, recorrentemente, no
Uruguai, por alguns presos e presas políticas, em diferentes cárceres (Jefatura, Cabildo,
Punta Carretas). A conduta da “fuga carcerária” está presente em diferentes momentos
da História e, geralmente, simboliza o valor universal da liberdade. A Arqueologia da
Fuga está constituída por um túnel que, por debaixo dos muros da arquitetura
especialmente repressiva, conecta o espaço da repressão (celas, hospital, pátio,
banheiros) com o espaço da liberdade no além dos muros.

Durante 1971, os cárceres uruguaios começaram a aumentar sua população devido a que
muito presos, assim que cumpriam a pena, não recuperavam a liberdade. Estas pessoas
continuavam detidas, sob o estrito regime de “medidas de extrema segurança”, por um
tempo indefinido. Neste contexto de cárceres cheios, em outubro de 1971, ocorre uma
fuga de 111 presos políticos da prisão de Punta Carretas. A fuga expressa, além da
própria vontade de escapar da situação repressiva, a resolução de uma série de
problemas práticos que estimula os indivíduos ao caminho de sua liberdade, para além
dos muros dos cárceres.

Nesta mesma prisão aconteceram diversas fugas. Isto mostra que não se trata de fatos
isolados, senão que, pelo contrário, são condutas anti-repressivas recorrentes. A

121
primeira fuga é de 1931. Foi protagonizada por anarquistas expropriadores. Teve como
destino a “carbonería del Buen Trato”, localizada no outro lado da rua Solano García. A
segunda fuga, acima mencionada, conhecida como “el abuso”, partiu das celas. Foi
realizada por guerrilheiros tupamaros, em 1971. Foi a mais numerosa e também saiu do
outro lado da mesma rua. A terceira fuga, chamada de “el gallo”, foi em 1972. Partiu da
“enfermaria” e alcançou a rede cloacas, na proximidade da margem arenosa do rio, na
costa. Em todos os casos, o elemento comum foi o túnel escavado por debaixo do muro
perimetral e através dos muros das celas.

Planta do túnel dos Anarquistas

Outras quatro fugas, sem túnel, tiveram lugar no mesmo edifício penal. Um guerrilheiro
escapou dentro de um caminho de lixo, em 1970. Outro, trocou de lugar com seu irmão,
em 1972. Anteriormente, em 1969, um delinqüente apelidado de “el sátiro”, tinha
conseguido saltar os muros e ganhar a rua Solano García, indo até o Rio da Prata. Pelo
contrário, resultou em fracasso a fuga organizada por assaltantes de banco, em 1966,
que, armados, conseguiram passar pelo primeiro recinto de segurança, sem alcançar a
rua Ellauri. Tiveram que voltar sobre seus próprios passos para esconderem-se nas
celas. Aí foram encontrados e violentamente mortos vários deles.

Uma tipologia das fugas é possível, tanto quanto uma Arqueologia documentada que
contribua para seu estudo material. Esta deverá ter em conta um marco teórico e
metodológico que focalize aspectos tais como o número de participantes, o tipo de
estratégia (simulação, túnel, saltos dos muros, etc.), a energia invertida, o risco, a
duração (se planejada ou se oportunista), os beneficiários e o impacto no contexto
histórico e político. A fuga chamada de “el abuso” foi planejada por engenheiros e
especialistas. Isto explica o sofisticado da construção de um “túnel” central, que incluía
um sistema luminoso, de ar e de evacuação da terra (Fernandéz Huidobro 2005). A fuga
chamada de “el gallo” alcançou a rede cloacal (desde a enfermaria) através da qual
escaparam 21 presos. Fizeram uso de uns carrinhos, construídos para aumentar a
velocidade de deslocamento em um tão reduzido espaço. Enquanto que na fuga “el
abuso”, ganhou-se o exterior com uma cobertura mais ampla que incluía um baile de

122
acobertamento. “El gallo”, com seus carrinhos, levou os presos até a margem do Rio da
Prata.

Em todos os casos, o estudo arqueológico das fugas pode facilitar um acúmulo de


espaços vazios da memória histórica vinculada à resistência. Ao mesmo tempo, permite
recuperar valores universais associados à dignidade humana que tem caracterizado a
resistência aos governos autoritários.

A produção de brinquedos no cárcere


A repressão política teve muita facilidade para estender seu efeito para mais além do
indivíduo focalizado originalmente. Rapidamente, alcançou vizinhos, amigos e
familiares. É o caso das crianças, filhos dos presos políticos, que foram objetos indiretos
da repressão que se instalou através deles, dentro do núcleo familiar. No contexto da
“visita semanal” carcerária, pais e filhos realizavam intercâmbios afetivos no interior da
prisão. Neste espaço, resgatamos, para um olhar arqueológico, a produção de
brinquedos que os presos confeccionavam para seus filhos e para outras crianças.

Só recentemente a Arqueologia contemplou as crianças. Até agora invisíveis, por


marcos teóricos e por aproximações, que ao enfatizarem o âmbito social, de alguma
maneira, deixavam tais indivíduos no esquecimento (Politis 1999). Este tem sido o caso
da situação das crianças, durante as ditaduras repressivas do Cone Sul. Tem sido objeto
de intensa atenção e preocupação por parte dos familiares, de algumas autoridades
públicas e de organismos de direitos humanos. As crianças durante a repressão foram
roubadas como um botim de guerra, usadas durante os interrogatórios dos pais, foram
castigadas e, em alguns casos, separadas violentamente de suas famílias. A aproximação
arqueológica que propomos se orienta para com as crianças das famílias dos presos
políticos, enquanto consumidoras de uma produção especializada de “brinquedos”
produzida nos cárceres.

Os brinquedos eram feitos com materiais acessíveis ao preso, desde sua cela. Os
materiais usados têm a ver com a atividade doméstica carcerária e seu estrito controle.
Entre os materiais, sobressaem o papel, o tecido, o couro, o osso e a madeira. A
fabricação era realizada de maneira regular, porém, adquiria particular significação
quando da proximidade de datas, tais como a do Natal, a dos “Reyes”, do “Dia da
Criança” ou a dos aniversários.

Esta produção artesanal, orientada para a satisfação afetiva dos filhos dos presos
políticos, constitui um documento privilegiado da presença das crianças no interior do
cárcere. Presença em termos metafóricos. Porém, presença através do trabalho artesanal
orientado a produzir objetos especializados para contrapor ao efeito repressivo da
reclusão e da separação forçada. Esses objetos, como poucos, simbolizam a relação
entre pais e filhos em um contexto de repressão social. Se bem que esta produção
artesanal dirigida às crianças era uma atividade freqüente nos cárceres, hoje resulta
difícil aceder aqueles objetos, que todos recordam com muito afeto, ainda que os
perderam em suas gavetas ou por suas mudanças.

Entre os objetos, encontramos uma grande variedade que se destina as crianças


pequenas e até quase aos adolescentes. Os adornos e os brinquedos em osso polido foi
uma técnica que teve particular destaque naquela época. Facilitada pelo acesso fácil ao
osso, através da comida. Os cravos, o vidro e a lixa se transformam em ferramentas

123
chave desta produção altamente personalizada. Os trabalhos em osso e em madeira (fig.
2) adquiriram particular desenvolvimento, assim como as confecções em tecido e lã
(fig. 4). Cabe mencionar também o uso sistemático do papelão e do papel.

Fig. 2 – “totem” em osso de Luis Ifrán. Penal de Libertad, 1983.

Fig. 3 – palhaço de tecido – é de Pedro Buffa. Penal de Libertad, 1980.

A atividade artesanal, neste contexto, começa a ser uma prática nova para muitas
mulheres e homens. É através dela que se realiza uma comunicação real, em tempo de
desafiar a separação física. O brinquedo ou o adorno que sai do cárcere, se instala como
distintivo corporal reconhecível na escala de pessoa a pessoa. Também se localiza na
casa, em um espaço de caráter quase cerimonial, em um lugar central da vida do
familiar. Como suporte comunicativo é polissêmico, da conta de uma relação
interpessoal, ilustra o desenvolvimento dos meios de produção dos presos e exemplifica
o grau de tolerância ou de “opressão” em um dado momento e em um cárcere.

Conclusão

124
A Arqueologia tem demonstrado que se constitui numa útil disciplina auxiliar da
História e da Justiça. Cumpre com rigor este papel na história moderna das nações
envolvidas com a repressão política dos anos 1970 e 1980. Ela contribui com sua
especificidade disciplinar, através da possibilidade de focalizar uma materialidade
concreta, que, em muitos sentidos, está desprovida da subjetividade dos testemunhos
dos protagonistas.
A constituição de um objeto de estudo, denominado de Antropologia Forense,
focalizado na repressão, faz parte de uma tendência atual na Antropologia e na
Arqueologia Sul-americana (EAAF 2003). Buscar tornar visíveis as classes sociais
oprimidas, ignoradas até agora pelas histórias oficiais (Politis 2002:194).

A Arqueologia, além do mais, define seu próprio registro material capaz de expressar
dimensões ainda desconhecidas de velhos problemas, ou, capaz de servir de matéria-
prima para investigar novas temáticas vinculadas à repressão, seu efeito e sua
resistência.

Pensamos que este aporte recente começa e pode constituir o único acesso a algumas
problemáticas complexas. Nos tem permitido aproximar dos restos dos desaparecidos,
confirmando o pior dos prognósticos. O do assassinato sistemático e da implementação
de uma tecnologia exaustiva de ocultamento dos corpos. Por outro lado, mostra
também, aspectos contraditórios das técnicas de identificação (entre o DNA e a
superposição de imagens digitais).

A Arqueologia permite recuperar a memória das crianças vítimas diretas da repressão,


porém, sujeitas a um tenaz esquecimento histórico por causa do “fogo amigo”. Os
brinquedos e os adornos constituem um material necessário para os futuros museus do
horror que aceitam o desafio de educar sobre a memória e sobre a justiça.

Existe, finalmente, um registro arqueológico que permite recuperar um cenário


alternativo a imposição da repressão carcerária. Trata-se daquele vinculado a uma
dimensão desafiante da natureza humana, a da permanente busca de liberdade. As fugas
dos presos constituem e constituirão sempre uma prova direta deste fenômeno.

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A materialização do sadismo: Arqueologia da
Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da
ditadura militar argentina (1976-1983)
Andrés Zarankin e Claudio Niro

“Quem nunca esteve em um campo concentração, jamais poderá entrar ali, imaginar o
que significa e, quem esteve, nunca poderá sair de todo”.
Daniel M, sobrevivente do Clube Atlético (2002:10)

Um dia no El Vesubio
Em 9 de maio de 1978, em horas da madrugada, a bordo de um Ford Falcon, cheguei
ao centro clandestino de detenção conhecido como El Vesubio. Estava localizado no
Camino de Cintura, na Auto-estrada Richieri, bairro La Matanza. Quatro indivíduos,
sob as ordens de Suárez Mason, me tiraram do carro, encapuzado, com as mãos
algemadas pelas costas, enquanto me insultavam e me golpeavam, conduzindo-me para
uma casa. Dentro da mesma, me colocaram de pernas abertas, junto a uma parede.
Enquanto isso, me obrigaram a apoiar a cabeça no muro. Vários torturadores me
brindaram com patadas nos testículos e me insultaram. Dito procedimento, chamaram
de “el ablande”. Consistia em um método de acovardamento do prisioneiro, anterior
ao ingresso na sala de tortura.

Todos estes fatos aconteciam na casa 3, dado que o centro clandestino constava de três
locais. Cada um destes estava destinado a distintas funções. Na casa 1 estava a
chefatura, sede do comando e morada do encarregado de campo. Na casa 2 se
encontravam os ”quirófanos ou enfermarias”, isto é, as salas de torturas. Na casa 3
era o lugar das celas de detenção ou “cuchas”.

As “cuchas” eram uns cubículos, de um por dois metros, onde estávamos, umas quatro
ou cinco pessoas encapuçadas, algemadas nos braços e nas pernas e, por sua vez,
algemadas umas nas outras. Quando recém chegávamos nas “cuchas” nos obrigavam
a tirar as roupas e nos entregavam uns uniformes marrons que todos devíamos vestir.
Através deste procedimento nos faziam perder, junto com a roupa, os últimos rastros de
nossa vida exterior.

Ao princípio, reinava o total desconcerto da parte daqueles que nos encontrávamos


nesta situação. Não sabíamos onde estávamos e nem o que ia suceder com nossas
vidas. Na primeira semana não comi nada, em razão do asco que me dava ao que nos
davam (guisados urinados pelos guardas) e pela forma em que nos faziam comer
(devíamos comer de uma panela imensa, tomando o alimento com as mãos). Passada
há primeira semana, a fome me fez comer tudo.

Um companheiro, seqüestrado desde muito tempo, era quem nos subministrava a água
e a quem chamávamos de “Hueso”. Este companheiro era a única pessoa a quem
podíamos ver enquanto levantávamos os capuzes, no caso de não se encontrar nenhum
guarda dando voltas. Isto acontecia em poucas ocasiões, dado que os guardas estavam
vigiando constantemente.

127
Dado que havia um pequeno furo no capuz (seguramente o mesmo capuz que havia sido
usado por outros companheiros, em muitas oportunidades, devido ao cheiro que
desprendia) pude observar através do mesmo e reconhecer a Auto-estrada Richieri e os
coletivos da Linha 86, por meio de uma janela que se encontrava no que,
provavelmente, havia sido um antigo refeitório na casa 2.

A partir do tempo que suportamos nas ‘cuchas’ e da relação com “Hueso” começamos
a conhecer o lugar, pelas descrições que ele nos fazia. Deste modo, nos inteiramos que
a comida vinha do quartel de La Tablada, carregada em uma camionete, para logo ser
deteriorada no El Vesubio. Também nos contou que os captores nos consideravam
“perejiles”23 em relação aos companheiros que tínhamos sido seqüestrados nos
colégios Carlos Pellegrini e Juan José Paso. Explicou-nos que, na casa 2, estava a sala
de tortura e os quirófanos. Algumas vezes nos conseguia comprimidos roubados para
acalmar a dor dos golpes.

Enquanto sucedia tudo isto, lá fora, era o Mundial de 78. Então, alguns verdugos viam
os jogos por vários televisores e algumas companheiras os viam com eles. Igualmente,
as mulheres estavam detidas em ‘cuchas’ separadas dos homens. Também sabíamos
que as faziam realizar tarefas de ordem doméstica, no campo de detenção.

Os guardas procediam de duas escolas do exército: Lemos e Cabral. Muitos deles eram
do litoral e escutavam, seguidamente, chamamé. Estes, costumavam nos insultar com
consignas racistas, aos companheiros que identificavam como judeus e a todos em
geral.

Recordo-me que estava com duas pessoas que haviam caído, novas. Começamos a falar
como podíamos e, claro,.... não falavam de comida nem nada. Falavam da Revolução
Russa. Eu não podia acreditar. Emocionou-me por que digo: estar falando aqui, no
meio deste lugar. Os tipos me queriam meio como captar para o trotskismo. Depois me
pus feliz, por um lado. Se os tipos estavam aí e eu podia escutar a palavra Trotski e a
palavra Lênin. Todavia, eles não me puderam captar!

A sala de tortura era uma habitação coberta com telgopor e, escrita com cigarros,
havia uma frase que dizia: “se o sabe cante, senão agüente”. As paredes de telgopor
estavam manchadas de sangue. Havia um balde com água e uma foto de Hitler
pendurada, debaixo da qual, dizia: Heil Hitler. A mesa era uma mesa de madeira com
pranchas, recoberta com ferros e estava manchada de sangue.

El Vesubio me traz certas recordações. Recordo-me da cidade de Pompéia, destruída


no ano 79 d.C. As cinzas preservaram os edifícios e, inclusive, os cadáveres de suas
vítimas. Este Vesúvio, ano 1975 a 1978 d.C., também arrasou com vidas e bens dos
detidos, impondo uma lógica do terror. Do terrorismo de Estado. Antes foi a lava,
agora os Ford Falcon, que se estenderam por toda a Argentina.

Meu companheiro Leonardo, que era meu responsável no grupo em que militava, em
um momento, antes da tortura, me disse que “hay que cortar la cadena”, não delatar a

23
Termo usado para referir-se a pessoas sem importância, que não tem poder. Neste texto,
algumas palavras que estão em negrito são gírias oriundas de um contexto discursivo de
repressão e de tortura, por isso, são mantidas na grafia original em espanhol.

128
ninguém. Não reconhecer que éramos da União dos Estudantes Secundários (UES) e,
tão pouco, Montonero. Devíamos fingir que não sabíamos nada de nada. O problema
foi que, algum dos detidos, havia reconhecido sua militância na UES. Enquanto nós
tratávamos de convencê-los que não tínhamos nada que ver, que havíamos deixado a
militância antes da ditadura.

Na sala de torturas me perguntavam pelo responsável do meu pelotão, porém, eu nunca


dei nenhum nome. Os torturadores perguntavam com palavras próprias da militância,
por isso, devíamos passar por ignorantes, para não pisarmos. Usavam palavras como
“embute”, “pepas”, etc.

Posteriormente, fomos transladados para a Villa Martelli, no Logístico 10. Meteram-


nos em umas celas, custodiados por três recrutas e um sargento ou cabo. Aí pudemos
tirar os capuzes. Aí aparecia o major Teslaf que fazia o papel de bonzinho, porém,
depois, me interei que era um dos chefes do El Vesubio.

Através dos soldados, dado que havíamos feito certa amizade com eles, enviamos uma
carta, clandestinamente, para nossos familiares, avisando que nos encontrávamos
vivos. O recruta não podia dizer onde estávamos para evitar que sua vida corresse
perigo e também a nossa. Seu nome era Horacio Sap.

Três companheiros: Muricio Westein, Juan Carlos Martire e Gabriela Juarez Celman,
que caíram dias antes do que nós, continuam desaparecidos. Mediante Horacio Sap,
recebíamos notícias de nossas famílias. Certa vez, escutamos uma conversação entre
militares de alta patente, na qual, mencionavam que nos haviam divididos em grupos
de quatro, em distintos quartéis. Desta forma, podemos avisar nossas famílias que não
sabíamos onde, porém, que todos estávamos vivos.

Em realidade, durante o cativeiro, por mais de 40 dias, não dormimos. Era impossível
dormir. Esquecer o que sucedia. Ter sonhos. O capuz te isola por completo, do mundo
ex7terior. Por sua vez, há um outro detalhe sinistro, na raia com a maldade de outros
seres humanos: os gritos, os uivos, os lamentos, os pedidos de piedade que gritam os
torturados. Os insultos, as puteadas, “subversivo de merda ...”, “bolche (bolchevique)
hijo de puta”, o Heil Hitler, la patota (grupo de pessoas violentas, multidão) que vem
pisando-nos, las palizas com puños (ser agredido com socos), patadas, ferros, contra
nós, agrilhoados os tornozelos, algemados e indefesos.

Outra forma de resistir que tivemos, os companheiros: quando levaram o Leonardo à


tortura (casa 2), o acostaron en “la parrilla” (o deitaram em uma cama para ser
torturado com eletricidade) e o empezaron a dar picana (instrumento de tortura,
fabricado na Argentina, para produzir descargas elétrica) para que “cante” a la
hermana (para que confesse, delate). Em determinado momento. Fizeram entrar a
Mauricio Westein e a Juan Carlos Martire (estes companheiros continuam
desaparecidos) e lhes ofereceram para aguilhoar a Leonardo. Como se negaram, os
ataram na mesma grelha (?) em que estava Leonardo e torturaram os três.

Havia três ou mais guardas que duravam vinte e quatro horas. Uma das guardas era
comandada por “Fierrito” e sua turma. A este “Fierrito”, lhe gostava escutar rock
nacional (por exemplo, “Plegaria para un niño dormido” de Spinetta). Nós
pensávamos, como um filho da puta como este pode escutar este tema. Também dizia

129
que lhe gostava os filmes de Ingmar Bergman. De vez em quando, costumava falar para
nós de sua família, de seus filhos.

Outra guarda estava a cargo de “Pancho”. Às vezes nos dava pão. Um dia nos
conseguiu um cobertor felpudo, pelo frio que fazia, por conseqüência do inverno. Certo
dia em que estávamos ao seu encargo, não nos trouxe pão. Então, começamos a pedir.
Pancho contestou, dizendo que haviam seqüestrado o padeiro.

Certa vez, vieram os colaboradores (militantes de organizações políticas que, em seu


momento, haviam sido seqüestrados e que, durante a etapa do cativeiro, se passaram
ao bando dos militares). Dentre eles, havia um, que se chamava “Lucho”. Este era
médico. Nas operações de seqüestro ia com uma seringa que aplicava naqueles que
tinham tomado comprimido de cianureto, para que o vomitasse. Os colaboradores
habitavam o mesmo chupadero (Centro Clandestino de Detenção que ‘chupa”, abduz as
pessoas), em uma dependência que chamavam de “Q” de Quebrados. O grupo que
vimos no El Vesubio estava integrado por Lucho e por três mulheres. Uma delas, “La
Negra”, também torturava com a picana.

Os colaboradores, em certa oportunidade, chegaram à casa 3. Logo após fazer-nos


tirar o capuz, para que pudéssemos olhá-los, nos fizeram um tipo de averiguação.
Queriam saber a classe social a que pertencíamos, a religião, a organização em que
militávamos. Formuladas as perguntas, não as respondíamos, dado que não era mais
do que um interrogatório, porém, sem picana. Ao poder olhá-los, constatamos que eles
estavam bem vestidos e limpos. Além do mais, pediam que colaborássemos, enquanto
que falavam maldições sobre as conduções das organizações armadas. Diziam-nos que,
em realidade, éramos idiotas úteis.

Assim que se passaram uns vinte dias de cativeiro começamos a notar versões da parte
de “Hueso” acerca de que nos considerava “perejiles”. Outra versão era a de que
iríamos para uma “granja de reeducação”. Isto me dava um medo horrível porque,
segundo eles, nos iriam lavar o cérebro para converter-nos em outras pessoas. O fato
de transformarmos-nos em pessoas domesticadas por eles, me despertava temor por
alguma forma de escravidão mental, moral, física. Com o tempo, a novela “1984”, de
Orwell, me recordou ditas sensações.

Outro grupo da guarda eram os nazis. Quando vinham, o faziam ovacionando a Hitler,
cantando uma canção que diz: “Aí vem Adolfo pela rua, matando judeus para fazer
sabão”24. Estes verdugos punham gravações onde se escutava a voz de Hitler e quando
vinham buscar-nos nos golpeavam com toda a fúria, produzindo a ruptura dos ossos de
alguns dos detidos. O problema de estar encapuzado é de não saber de onde procedem
os golpes e, portanto, permanecer e um estado de total indefesa. Estes tipos se
entusiasmavam obrigando-nos a fazer ginástica militar (corpo ao solo, saltos de rã,
etc.), mantendo-nos algemados na parede, durante horas. Gritavam contra nós, no
meio dos ruídos das cadeias e ameaçavam-nos com a picana se não cumpríssemos com
a consigna. Efetivamente, se alguém não resistisse, com este tratamento, era levado a
casa 2 onde se encontrava o quirófano. Ali se o torturava pelo simples prazer de
torturar. Com um total sadismo. Enquanto tudo isto se passava, escutávamos na

24
“Ahí viene Adolfo por el callejón, matando judíos para hacer jabón”.

130
televisão o Mundial de 78. Cada vez que um rival fazia um gol na Argentina era muito
triste para nós, porque os verdugos se descontavam moendo-nos a pau.

O banheiro da casa 3 não tinha porta, só uma cortina. Recordo que havia uma ducha
que, em realidade, era um cano do qual saía a água gelada, e uma latrina para fazer
nossas necessidades. Recordo-me que não havia papel higiênico, senão que, uma pilha
de livros de Marx, de Lênin, da correspondência Perón-Cooke e de revistas como “El
descamisado”, etc.

Devido a pouca alimentação, havíamos baixado de peso de forma considerável. Além


do mais, o mesmo estado de debilidade fazia com que padecêssemos de alucinações e
entrássemos em algum momento em transe. Recordo que rezava e que me recordava
dos quarenta dias de jejum de Cristo. Os rapazes judeus rezavam para Jeová. A
debilidade facilitava com que nos torturassem com mais facilidade e, inclusive, que
oferecêssemos menos resistência. Perdemos tanto peso, ao longo desses dias que,
quando nos transladaram ao quartel de Villa Martelli e me puder ver em um espelho,
não me reconheci. Parecia outro, um cadáver vivente. Recordava-me dos prisioneiros
de Auschwitz. “Sempre assustam os espectros” (frase de Jorge Semprún).

Faz pouco tempo, voltei ao lugar onde estava o El Vesubio. Quando alguém chega, o
primeiro que vê são as ruínas. O mesmo foi demolido, nos finais de 1978, pela ação da
Comissão da OEA pelos Direitos Humanos. As ruínas do El Vesubio estão cercadas por
arames farpados. O único problema é que não se pode ingressar adentro. Ali vive uma
pessoa que impede o acesso ao lugar, ameaçando os organismos de direitos humanos e
soltando uns cachorros de sua propriedade. Em uma oportunidade, pude entrar e
reconheci uns ladrilhos vermelhos que pertenciam ao banheiro. Fecho os olhos e
penso: restos do campo e do horror. Quando nos faz todos esperar, acorrentados,
frente ao quirófano, escuto os gritos e os gemidos dos torturados, a música de
chamamé, as vozes dos torturadores. Penso como será a tortura e se a vou agüentar.
Quanto tempo passa. Impossível sabê-lo. O tremor de meu corpo e dos demais
companheiros. O medo. Levam-me ao quirófano. Tiram-me o capuz. Luzes fortes que
não me deixam ver. Uma voz potente. Reconheço que é a de “Vasco”. Pede-me que
colabore. Agarram-me entre quatro pessoas. Tiram-me a roupa. Molham-me com um
trapo com água e me atam com um cabo, no dedão do pé. Com outro cabo começam a
dar máquina. O vazio. Não sei quanto tempo dura, em realidade. Sinto que me tiram a
alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado. Levam-me as “cuchas”, junto com os demais
companheiros. Certo dia, um companheiro que tomava um medicamento devido a um
problema psicológico, padecia de delírios de perseguição, ao ficar sem o remédio e
pedia, aos gritos, que o trouxesse. Nós pedíamos que ele se calasse para evitar
reprimenda. No entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se
escutava a voz de um repressor que diz: “De que te queixas, de teu delírio de
perseguição, se já te agarramos”.
Cláudio Niro, sobrevivente do CCD “El Vesubio”

O relato revela claramente alguns dos dispositivos desenhados desde o sistema nos
Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s), utilizados pela ditadura militar Argentina,
entre 1973 e 1983, para destruir a identidade, como pessoas, dos detidos. Privação de
visão, limitação da mobilidade, aplicação de tormentos, falta de alimentos, condições
climáticas extremas (frio ou calor), proibição de comunicação com outras pessoas,
substituição do nome por um número, entre outras, são dispositivos que têm,

131
principalmente, como foco de ação direta o corpo e a mente do detido. Estamos ante um
novo modelo punitivo que utiliza elementos de sistemas repressivos anteriores. Por
exemplo, a utilização de torturas físicas e a destruição do corpo são típicas da Idade
Média. Enquanto que, a organização do tempo em rotinas que se repetem
cotidianamente é característico das instituições disciplinares dos séculos XVIII e XIX.

Este artigo se propõe discutir, a partir de um nível teórico e de um outro corporal – isto
é, a partir de experiências reais, sofridas por um dos autores – a arquitetura e a
organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção, na Argentina, e seus
efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos.

A arquitetura e a organização do espaço nos CCD’s estão pensadas como ferramentas


para garantir o funcionamento do poder. São estas estratégias que nos interessa discutir
neste artigo, desenvolvendo uma visão arqueológica do problema. Para isso, partimos
de uma dupla idéia de “Arqueologia”. Por um lado, como o estudo das pessoas desde a
cultura material e, ao mesmo tempo, seguindo Foucault (1970:235), como:
A arqueologia não trata de restituir o que pôde ser pensado, querido, encarado,
experimentado, desejado pelos homens no instante mesmo em que proferiram o
discurso (...). Não é nada mais e nenhuma outra coisa que uma reescritura, isto
é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação pautada do que tem
sido e do que tem escrito. Não é a volta ao segredo mesmo da origem. É a
descrição sistemática de um discurso objeto.

Desta maneira, se pensamos que a arqueologia é, em realidade, um construção cultural


do passado, esta pode transformar-se em uma ferramenta de luta política, destina a
enfrentar as “master narratives” (Johnson 1966) e ou a “história oficial”. O
investigador pode, assim, de maneira explícita, assumir uma posição ativa no processo
de interpretação de um passado que já não é o verdadeiro, senão que, apenas uma
interpretação (Shanks e Tilley 1987; Funari 1988, 1999).

Desde estas perspectivas, a cultura material está simbolicamente constituída (Hodder


1982). É produto e produtora de pessoas e de subjetividades (Andrade Lima 1999). Os
objetos são considerados elementos ativos e dinâmicos e só podem ser interpretados
dentro dos contextos históricos e sociais dos quais formam parte. Precisamente, no caso
dos CCD’s, para se conseguir uma leitura de sua materialidade, necessitamos
contextualizá-los. Desta maneira, dividimos o artigo em duas partes. Uma primeira,
onde apresentamos uma síntese da história das instituições punitivas na sociedade
ocidental e um panorama geral do funcionamento da repressão durante a ditadura
Argentina. Na segunda parte, trabalhamos sobre um caso de análise específico, o CCD
Club Atlético, a partir do qual discutimos a arquitetura e a organização espacial dos
CCD’s.

Instituições punitivas
Em “Vigiar e Punir” (1976), Foucault analisa o surgimento das instituições disciplinares
entre os séculos XVI e XIX, estabelecendo uma relação direta entre as formas de
repressão e o objeto punido. Este passa a estar centrado no corpo no século XVI, indo à
alma e a mente, no século XIX. Nas palavras do autor, “a prisão resitua o patíbulo”.
Esta mudança se reflete na aparição de toda uma série de dispositivos disciplinares
dirigidos a gerar indivíduos dóceis, na mente e no corpo, através de instituições de
“ortopedia social”, tais como, os colégios, as fábricas, os hospitais, os manicômios, os
albergues para órfãos, as prisões, entre outras (Bentham 1786; Goffman 1974;

132
Gaudemar 1981; Donzelot 1981). Paralelamente, a cidade também começa a ser
organizada em função de uma série de parâmetros disciplinares – especialmente o
vigiar, o controlar e o dominar – gerados desde o poder (King 1980; Markus 1993a,
1993b; Parker, Pearson e Richards 1996).

No caso da prisão, sua função é privar da liberdade como forma de castigo. Através da
clausura se busca, não só punir a pessoa, senão que, este tempo possa ser utilizado para
que o detido seja reformado. Precisamente, esta situação é a de que se encarrega esta
instituição, a mais civilizada e humana de todas as penas. Como assinala Foucault, a
prisão ao corrigir, ao modificar, ao tornar dócil e disciplinado o indivíduo, não faz mais
do que reproduzir, de maneira acentuada, todos os mecanismos que se encontram no
corpo social. A arquitetura destes lugares cria limites artificiais onde os corpos são
confinados e controlados (Grahame 195, 2000; Zarankin 1999, 2000, 2002).

A partir de então e, ao longo do tempo, estas instituições têm se ampliado e se


especializado. Escolas, segundo o tipo de educação e de classe de pessoas (crianças,
adultos, atrasados, cegos, de classe baixa, de classe alta, etc.). Hospitais, para
queimados, para crianças, para olhos, para problemas cardíacos, para o câncer, entre
outros. No caso das prisões, durante os séculos XIX e XX, são criados institutos de
detenção de menores, prisões de diversas seguranças (baixa, média e alta), campos de
concentração, prisões psiquiátricas, cárceres em comissariados, entre outras.

A Argentina fez uma macabra contribuição a esta extensa lista: os Centros Clandestinos
de Detenção (CCD), desenvolvidos durante o processo militar, entre os anos 1976 e
1983. Trata-se de um dispositivo repressivo que, se bem pôde contar com alguns
antecedentes na história, só foi gerado de maneira massiva e sistemática, durante a
década de 1970. Este combina e maximiza as piores categorias de todas as instituições
punitivas criadas até então. Sua função já não é deter e corrigir, senão que destruir e
eliminar.

O golpe militar
Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou a presidenta Isabel Martínez de
Perón (viúva do General J. D. Perón), sob a desculpa da incapacidade do Governo para
controlar as ações dos chamados grupos “subversivos”, que intentavam impor, no país,
uma ordem social oposta aos “costumes argentinos”. Assumiu o poder uma junta
integrada pelo Tenente General Jorge Rafael Videla, pelo Almirante Emilio Masera e
pelo Brigadeiro General Orlando Agosti. Iniciou-se, assim, o autodenominado
“Processo de Reorganização Nacional”, um dos períodos mais obscuros e sinistros da
história argentina.

Políticas econômicas ultraliberais (Forrester 1995, 2000) foram instauradas sob a


supervisão do ministro da economia José Martínez de Hoz, multiplicando
exponencialmente a dívida pública e privada (esta última, posteriormente, estatizada).
Para conseguir o êxito do novo plano econômico e a destruição de toda a resistência
popular, o governo militar desenvolveu um projeto de aniquilamento físico de todas as
instituições e ou pessoas que se opunham ao tal plano. Isto se realizou a partir de uma
estrutura clandestina paralela, que incluía Centros Clandestinos de Detenção, pessoal
Militar e Policial atuando como civil (sem identificação), seqüestros e assassinatos,
entre outros.

133
A repressão, baseada em um plano perfeitamente estruturado tinha, além do mais, como
objetivo, submeter a população através do terror, impondo assim uma “ordem” sem
oposição. Este plano criminoso incluía a desaparição de pessoas, mediante o mecanismo
dos Centros Clandestinos de Detenção, nos quais se torturava e se mantinha cativas as
pessoas consideradas “dissidentes”, antes de assassiná-las.

A “desaparição” de pessoas
A “desaparição” foi a fórmula adotada pelos militares para eliminar opositores. Este
procedimento, que incluía um léxico específico, consistia, em primeiro lugar, em marcar
uma pessoa ou “objetivo”, que logo era seqüestrada – “chupada” – por um comando
paramilitar – “grupo de tarefas” ou “patota”. Era transladada a um CCD ou “pozo”,
onde, encapuzada – “tabicada” – era despojada de todos os seus pertences. Inclusive, o
nome era suprimido e, em seu lugar, se a atribuía uma letra e um número que seriam a
forma de identificá-la daí em diante. O detido, sem nenhuma garantia legal ficava,
assim, a mercê dos repressores. A “desaparição” das pessoas se completava com
métodos que incluíam arrojá-las, ainda com vida, no Rio da Prata (com prévia aplicação
de sedativos), desde aviões ou helicópteros militares ou mediante fuzilamentos e
enterramentos em fossas comuns, sem nenhum tipo de identificação (Belleli e Tobon
1985; EAAF 1992; Doretti e Fondebrider 2001). Como assinala a Anistia Internacional,
em seu informe sobre a desaparição de pessoas por motivos políticos: “Devido a sua
natureza, uma desaparição encobre a identidade de seu autor. Se não há preso, nem
cadáver, nem vítima, então, ninguém, presumivelmente, é acusado de nada”.

Milhares de pessoas, de todas as idades e ocupações (fig. 1), foram seqüestradas e


continuam desaparecidas. Uma comissão, constituída em 1983 – Conadep – constatou
mais de 9.000 casos, enquanto que, por sua parte, os organismos de direitos humanos
falam de mais de 30.000.

Ocupação Porcentagem
Operários 30%
Estudantes 21%
Trabalhadores 17,8%
Profissionais 10,7%
Docentes 5,7%
Recrutas e pessoal subalterno das Forças de Segurança 2,5%
Donas de casa 3,8%
Autônomos e vários 5,0%
Jornalistas 1,0%
Atores e artistas 1,3%
Religiosos 1,3%

Figura 1 – Distribuição de desaparecidos segundo a profissão ou ocupação (Conadep 1984)

É necessário esclarecer, sem dúvida, que a desaparição de pessoas não foi um método
exclusivo da ditadura pós-1976, porém, sim, sua instauração como modelo massificado
de destruição da dissidência. Já desde os princípios da década de 1970, os grupos
paramilitares conhecidos como Tríplice A, liderados pelo assistente pessoal do general
Perón e, depois, ministro do Bem-estar Social, José López Rega, a utilizava como
ferramenta repressiva.

Os Centros Clandestinos de Detenção como “não-lugares”


Talvez pelo horror que produz recordar sua existência ou pela necessidade de alguns de
negar essa parte de nossa história recente, são poucos os estudos que discutem os
centros clandestinos de detenção (Conadep 1984; Calveiro 2001; Barros 2001; Di Ciano
et al 2001; Benítez et al 2002; Daleo 2002; Calvo 2002; Bozzuto, Diana, Di Vruno,

134
Dolce e Vazquez 2004)25. Pilar Calveiro, em sua tese de doutorado (2001) analisa,
desde sua condição de ex-detida desaparecida e, também, de cientista social, o
fenômeno destes campos de concentração argentinos e os caracteriza como os
“quirófanos”, onde se levaram a cabo as “cirurgias maiores”, consideradas necessárias,
pelos militares, para a “salvação” da sociedade. Seguindo suas colocações, foi o ponto
de partida para construir “uma nova sociedade, ordenada, controlada e aterrada”
(2001:11).
“O campo de concentração aparece como uma máquina que cobra vida própria.
A impressão é que, já ninguém pode detê-la. A sensação de impotência frente
ao poder secreto, oculto, que se percebe como onipotente, joga um papel chave
em sua aceitação e em uma atitude de submissão generalizada” (2001:12).
Calveiro destaca que os primeiros campos de concentração, na Argentina, começam a
funcionar, todavia, durante o governo democrático de Maria Isabel Martínez de Perón,
no momento de firmar-se a “Ordem de Aniquilamento” da subversão de 1975. Sem
dúvida, só depois do golpe militar de 24 de março de 1976 é que a desaparição de
pessoas e os campos de concentração se convertem nas modalidades repressivas por
excelência. Durante a ditadura, funcionaram no país, mais de 340 CCD’s. Sua
magnitude foi variada e se estima que passaram por eles entre 1.500 a 20.000 pessoas,
das quais 90% foram assassinadas (Calveiro 2001:29).

Um ponto interessante tem a ver com as fontes de inspiração dos CCD’s. Por acaso,
seguem algum modelo? Calveiro não crê que os militares argentinos tenham se
inspirado nos campos de concentração nazistas ou estalinistas. Simplesmente,
reproduzem práticas de poderes totalizantes que incluem campos de concentração
(2001:40). Cremos que uma fonte que deve ser explorada são os modelos empregados
pelos militares franceses, na luta armada na Argélia, que incluía centros de detenção
clandestinos, onde as pessoas eram torturadas e assassinadas. Não devemos esquecer
que um importante número de altos oficiais argentinos recebeu treinamento militar de
luta contra a subversão neste país europeu.

No CCD primam algumas das concepções iniciais de prisão do século XIX, isto é, o
princípio do isolamento total do detido (tanto do mundo exterior como dos demais
detidos). Como indica Foucault “a solidão é a condição primeira da submissão total ...
o isolamento assegura o colóquio a sós entre o detido e o poder que se exerce sobre
ele” (1976:240). Em algum sentido, se assemelha a um campo de concentração, já que
ali são reunidos, isolados e retidos os “inimigos”. Sem dúvida, a diferença é que,
enquanto que um campo de concentração é “um lugar” que se rege por convenções (ao
menos deve fazê-lo segundo uma série de convenções internacionais que garantem
algum respeito aos prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao menos oficialmente –
porque simplesmente não existe – institucionalmente. Sua condição de clandestino o
outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade. O converte em um “não-lugar”
para aqueles que se encontram dentro de seu espaço. Este “não-lugar” transforma seus
ocupantes em “desaparecidos”, precisamente por que não estão em nenhum “lugar”, ou,
ao menos, não se conhece sua localização.

Parte de sua invisibilidade se deve ao fato de que funciona dentro de outros edifícios.
Em geral, não são construídos CCD’s. Se adapta parte ou totalidade de um edifício já
existente para funcionar como tal (Conadep 1984:58). Precisamente, uma das coisas que

25
É interessante mencionar o fato de que, praticamente, a totalidade das publicações sobre os
CCD’s foram geradas pelos próprios sobreviventes destes campos.

135
mais estremeceu a sociedade argentina, assim que retornou a democracia, foi saber que,
no edifício “vizinho”, ou “nesse que alguém passava todos os dias quando ia trabalhar”,
havia funcionado um CCD. Ali haviam sido torturadas e assassinadas milhares de
pessoas e, grande parte das pessoas, não se havia dado conta do que ocorria por detrás
dessas paredes.

O funcionamento dos CCD


A organização e o manejo dos prisioneiros dentro de um CCD evidenciaram uma
planificação sistemática. Torna inegável que se tratou de um plano criminoso, ideado
para eliminar pessoas (Conadep 1984). Assim, existia uma seqüência de passos, relatada
por Niro, na introdução, que começava com a chegada dos detidos. Eram desnudados e
se lhes atribuía uma letra e um número que, a partir desse momento, se convertia em sua
única identificação. Posteriormente, o “ablande”, que consistia em sessões de tortura
sistemática, onde se encarregava de aprofundar este processo de destruição da
identidade.

Por que esta ênfase em despojar os detidos de seus nomes e, portanto, de suas
identidades? Se não há nomes – uma das características básicas de qualquer ser humano
– não existem pessoas. Simplesmente, corpos anônimos que estão sujeitos aos
dispositivos punitivos e burocráticos dessa estrutura repressiva. Sem identidade, o
sujeito perde os laços com sua própria história, com seu passado. Transforma-se em um
ser quebrado. Esta situação favorece a possibilidade de delatar companheiros ou de
obedecer às ordens impostas.

Por sua parte, os repressores, se bem que tão pouco utilizavam seus verdadeiros nomes
dentro dos CCD’s, diferentemente dos detidos, tinham apelidos – Hueso, Angel, Gordo,
Turco, Doctor K, Padre, Calculin, Raul, Karateca, entre outros. Essa transformação não
só assegurava preservar sua verdadeira identidade diante dos detidos e, inclusive, em
certos casos, de seus próprios colegas, senão que transformá-los em pessoas diferentes.
Ter múltiplas personalidades tais como, bom pai e torturador sádico.26 De igual
maneira, os CCD’s recebem nomes simbólicos, que permitem a existência destes “não-
lugares”. El Olimpo, Club Atlético, Vesubio, Garage Azopardo, Talleres Orletti, entre
outros.27

Os detidos podiam passar dias, meses, ou, inclusive, anos em um CCD. Até que se
decidia se os “transladavam” – gíria que significava assassiná-los – ou se os
branqueavam e passavam a ser presos comuns do serviço penitenciário. Durante a maior
parte desse tempo, como foi anteriormente mencionado, permaneciam “entupidos”, isto
é, encapuzados ou vendados, o que era outra forma de tortura (fig. 2).
“A tortura psicológica do capuz é tão mais terrível do que a física, ainda que
sejam duas coisas que não se pode comparar, já que uma procura chegar aos
umbrais da dor. O capuz procura o desespero, a angústia, a loucura.
Encapuzado, tomo plena consciência de que o contato com o mundo exterior
não existe. Nada te protege. A solidão é total. Essa sensação de desproteção,
isolamento e medo é muito difícil de descrever. Só o fato de não poder ver, vai
socavando a moral, diminuindo a resistência” (Lisandro Cubas, Conadep
(1984:59).

26
Um bom exemplo disto é a obra de Eduardo Pavlovsky “O Senhor Galindez”.
27
Estes centros têm nomes, não são números como hoje os comissariados. Existem? Também
são demolidos. Também desaparecem? Maria Ximena Senatore (comunicação pessoal, 2005).

136
Fig. 2 – Desenho de artistas, no lugar em homenagem aos detidos no Club Atlético

Benítez, Enríquez e Di Ciano (2001:11), definem de maneira clara os resultados


buscados por esta maquinaria do horror: “A vida dentro do campo e as sessões de
tortura estavam planejadas para chegar à destruição e denegrição do cativo”. Ao
mesmo tempo, existiam mecanismos implementados para evitar o suicídio dos
prisioneiros, assim como, as tentativas de fuga. Tais mecanismos, eram diálogos dos
repressores com os detidos, sobre suas famílias ou perguntas sobre planos quando
deixassem o CCD.
“O responsável pelo Club Atlético era o Comissário Antonio Benito Firovanti,
aliás, “Tordillo”, “Coronel” ou “De Luca”, que dedicava longas horas a falar
com os seqüestrados. Os interrogava sobre suas famílias e, em torno dos planos
que tinham se saíssem em liberdade. Esta política tinha um fim específico:
criar falsas expectativas para reduzir as tentativas de suicídio e desalentar toda
a idéia de fuga. Aqui se esboçou uma política que, em meados de 1978, se
aperfeiçoou e se desenvolveu em outros campos” (Benítez, Enríquez e Di
Ciano, 2001:11).

No CCD, apesar de sua clandestinidade, existia uma organização perfeitamente


articulada que permitia o funcionamento desta máquina de desaparecimento, composta
por diversos grupos:
Patotas
Grupos de tarefas, encarregados dos procedimentos orientados para seqüestrar pessoas.
Grupos de inteligência
Grupo que manejava a informação, selecionando as vítimas e orientando as torturas.
As guardas
Formavam o aparato de vigilância e de manutenção do CCD.
Os desaparecedores de cadáveres
Era o grupo que se encarregava do assassinato e da deposição final dos corpos.

Para Calveiro, esta divisão de tarefas tinha como objetivo que ninguém se sentisse como
único responsável. O dispositivo consistia, ao mesmo tempo, em despojar os detidos de
sua condição de pessoas e gerar uma cadeia ou engrenagem que garantisse o

137
funcionamento automático dessa maquinaria de destruição. Como uma cadeia de
montagem fabril, “tudo adotava a aparência de um procedimento burocrático”
(2001:39).

O Club Atlético
O caso do Club Atlético – CA – se apresenta como relevante para se discutir estas
questões por sua história particular (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001). Sabemos que
foi produto da dissolução e translado de outro CCD “Garage Azopardo”, que funcionou
entre 1976 a 1977, a poucas quadras de distância, no mesmo bairro. Posteriormente, no
momento de desativação do CA, em finais de 1977, sua infra-estrutura e os detidos que
ali se encontravam foram relocados em um CCD chamado de “El Banco”, que foi
criado para, especificamente, tal finalidade. Finalmente, foi instituído um novo CCD,
um dos mais conhecidos, cujo triste e célebre nome foi “El Olimpo” (1978-1979).
Nome do CCD Data de funcionamento
Garage Azopardo Agosto de 1976 – Fevereiro de 1977
Club Atlético Fevereiro de 1977 – Dezembro de 1977
El Banco Dezembro de 1977 – Agosto de 1978
El Olimpo Agosto de 1978 – Janeiro de 1979

O Club Atlético, cujo nome, em realidade, era “Centro Anti-subversivo” (Club Atlético
foi uma derivação das iniciais CA) funcionava no sótão de um depósito de
abastecimento da Polícia Federal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas Paseo Colón,
Cochabamba, San Juan e Juan de Garay (fig. 3). Sabe-se que, por ele, passaram ao redor
de 1500 pessoas, a maioria das quais, permanece desaparecida. Tinha a capacidade para
manter, ao mesmo tempo, 200 detidos. O edifício foi demolido em 1977, já que se
encontrava no traçado da auto-estrada 25 de Mayo.

Fig. 3 – Vista da fachada do edifício em que funcionou o “Club Atlético”

O projeto arqueológico

138
No ano de 2003 é tornado público, pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, um
concurso de projetos para escavar os restos deste lugar.28 Nossa proposta foi
selecionada (Bianchi Villeli e Zarankin 2003a). O projeto se chamou “Arqueologia
como memória: intervenções arqueológicas no Centro Clandestino de Detenção e de
Tortura ‘Club Atlético’”.

Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por um lado,
buscamos entender a lógica do funcionamento e da organização espacial da arquitetura
deste dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, o segundo objetivo foi de
contribuir com a construção de uma memória material. Isto é, transformá-la em algo
físico, para assim, poder ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra (oral ou
escrita). Uma memória que pode ser tocada, ouvida, experimentada (fig. 4). Como
exemplo, podemos mencionar como uma simples bolinha de ping-pong29, recuperada
durante as escavações, pode se transformar em um símbolo do sofrimento daqueles que
foram torturados neste lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4), sobrevivente do
Club Atlético:
O que pensariam os que jogavam ping-pong, em frente à leonera 30 enquanto
que nós éramos torturados, desta bolinha que acabamos de encontrar debaixo
do elevador de cargas?

Devemos considerar que, a história da repressão ilegal durante a ditadura militar, tem
sido ocultada ou contada através de uma “versão oficial”. A escavação do Club Atlético,
então, é uma forma de recuperar a memória e, através dela, contrapor-se a história que
nos foi transmitida. Tratou-se de um projeto que contemplou a participação de
sobreviventes e de familiares dos detidos no próprio centro de detenção Club Atlético.
Foi uma forma de reapropriação de sua própria história que, de alguma maneira, é a de
todos.

28
Com anterioridade, aconteceram trabalhos de escavação coordenados pelo Lic. Marcelo
Weissel (Weissel 2002; Barrera 2002).
29
Trata-se de uma bolinha de ping-pong, com a qual, os torturadores se entretinham enquanto
os presos eram torturados.
30
Cela comum onde, em geral, eram colocadas as mulheres grávidas.

139
Fig. 4 – Vista dos trabalhos de escavação no Club Atlético (2003)

A organização do espaço no Club Atlético


Não foram localizadas plantas que possam dar conta de como era realmente a
organização espacial deste CCD. Tão pouco, puderam ser confeccionadas a partir dos
restos deste lugar. Mais de 80% de sua superfície encontra-se, todavia, sem ser escavada
(e grande parte dificilmente poderá ser estudada, já que implica demolir a auto-estrada
que passa por cima). Por tal motivo, trabalhamos, tomando como base os relatos e uma
planta gerada pelos próprios sobreviventes - (fig. 5 e fig.6 – em função de suas
recordações31 (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001:10). Posteriormente, foi contrastada
com os espaços do centro que foram escavados, mostrando que existe uma concordância
importante entre ambos.

Fig. 5 – Planta gerada pelos próprios sobreviventes, em função de suas recordações (em Benítez,
Enríquez e Di Ciano 2001:10) – esquerda.
Planta do setor escavado (Bianchi Villeli e Zarankin 2003b) – direita.

Exemplos de relatos
Delia Barrera (em Benítez et al. 2001:10)

31
Este mesmo procedimento de reconstrução de CCD’s foi empregado em outros centos, como
assinala o informe da Conadep (1984:60): “Foi determinante a memória corporal dos detidos.
Quantas escadas deviam subir-se ou descer-se para ir à sala de tortura. Quantos passos devia-
se contar para ir ao banheiro, quantos estalos, que giro ou qual velocidade produzia o veículo
no qual eram transportados ao entrar ou sair do CCD, etc”.

140
Descrição: “A dependência contava com dois níveis. Ao primeiro, se acedia
por uma porta de vidro. Ali havia uma repartição, na qual, se podia observar 2
escritórios, máquinas de escrever e um telefone ...
O subsolo carecia de ventilação e de luz natural. Era muito úmido e calorento.
Ingressava-se por uma estreita escada que levava a uma sala munida de uma
mesa de ping-pong que os repressores usavam para jogar. Ao fundo, uma sala
da guarda, duas celas para incomunicáveis, uma peça de torturas e “la leonera”,
um aposento com piso de cimento, dividido em boxes, com uma parede de um
metro de altura.
Completava a estrutura, 41 celas pequenas, numeradas, com catres de cimento,
munidos de um colchão fino de espuma e de um cobertor. As portas tinham
uma pequena abertura. No piso, havia um frasco com lavandina (água
sanitária), no qual deviam urinar os seqüestrados.
Os automóveis entravam pelo Paseo Colón. Os vizinhos de então puderam
observar que, detrás do portão de acesso, havia uma cortina escura que fechava
depois que passavam os veículos. Assim que saiam dos carros, os prisioneiros
eram empurrados para uma escada até o subsolo ...”

Conadep (1984: 90)


Descrição:”Primeiro nível: salão azulejado, portas de vidro, um escritório
grande e outro pequeno. Neles se identificava e se atribuía um número para
cada detento. Acesso dissimulado para o subsolo.
Subsolo: sem ventilação e nem luz natural. Temperatura entre 40 a 45 graus
no verão. Muito frio no inverno. Grande umidade. As paredes e o piso vertiam
água continuamente. A escada levava a uma sala munida de uma mesa de
ping-pong que os repressores usavam. Ao fundo, uma salinha da guarda. Duas
celas para incomunicáveis. Uma sala de torturas e outras para enfermaria.
Cozinha, lavadouro e duchas. Estas com uma abertura que dava a superfície
externa por onde os guardas observavam o ânus das mulheres. Outro setor
para depositar o botim de guerra.
Cela chamada “la leonera”, com tabiques baixos, que separavam os boxes de
1,60m x 0,60m. Em um setor, 18 celas, em outro 23. Todas de 2m x 1,60m e
uma altura entre 3m e 3,50m. Três salas de torturas, cada uma com uma
pesada mesa metálica. Colchões pequenos de espuma, manchados de sangue e
de transpiração”.

Fig. 6 – Exemplos de relatos sobre o Club Atlético.

Analise da planta do Club Atlético


Para aprofundar nossa leitura da arquitetura e da organização do espaço do Club
Atlético, utilizamos como ponto de partida a planta produzida pelos próprios detidos. É
analisada a partir de uma série de modelos gerados desde a arquitetura e das ciências
sociais32. Entre estes, o modelo Gamma de Hillier e Hanson (1984) e os índices de
Blanton (1994).

O modelo Gamma dos arquitetos ingleses Hillier e Hanson permite decompor o edifício
em uma série de gráficos para entender a organização de seu espaço. Como resultado
deste, obtivemos um gráfico de sua estrutura, composta por nodos (que representam
espaços) e por conexões (que são as portas que conectam um nodo (ou espaço) com
outro) (fig. 7).

32
Estes modelos já foram aplicados com êxito em outras estruturas arquitetônicas (Zarankin
1999, 2002).

141
Por sua parte, o arqueólogo Richard Blanton (1994), tomando por base o modelo
Gamma, construiu uma série de índices que possibilitam afinar e aprofundar a análise
da estrutura arquitetônica. Estes índices são denominados de “escala” (mede o tamanho
da estrutura), de “integração” (estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro
da estrutura) e de “complexidade” (permite ver a distribuição e o isolamento dos
espaços) (fig. 8 e 9).

Aplicação do Modelo Gamma

Fig. 7 – Aplicação do modelo Gamma 33

Índices de Blanton

Nodo conexiones Dist.ext Nodo conexiones Dist.ext


1 1 4 31 1 4
2 3 3 32 1 5
3 3 2 33 1 5
4 1 3 34 1 5
5 1 4 35 5 4
6 1 2 36 24 5
7 1 3 37 1 6
8 2 2 38 1 6

33
É importante assinalar que, apesar de que existia um elevador de cargas que chegava ao
subsolo, no momento de funcionamento do centro, este estava desativado ou não funcionava
(por tal motivo, só existia uma única escada para aceder ao setor onde funcionava o centro).

142
9 5 1 39 1 6
10 1 3 40 1 6
11 4 2 41 1 6
12 1 3 42 1 6
13 20 3 43 1 6
14 1 4 44 1 6
15 1 4 45 1 6
16 1 4 46 1 6
17 1 4 47 1 6
18 1 4 48 1 6
19 1 4 49 1 6
20 1 4 50 1 6
21 1 4 51 1 6
22 1 4 52 1 6
23 1 4 53 1 6
24 1 4 54 1 6
25 1 4 55 1 6
26 1 4 56 1 6
27 1 4 57 1 6
28 1 4 58 1 6
29 1 4 59 1 6
30 1 4 Totales 117 269
Fig. 8 – Tabela para calcular os índices.

Indice de Escala: 59 Indice de Integración: 59 = 1 Indice Complejidad A: 117


- 59 Indice Complejidad B: 269 = 4.5
59

Fig. 9 – Índices de Blanton.

O alto índice da escala – 59 nodos ou espaços – está mostrando o grau de


compartimentalização do espaço, dividido de tal maneira que permite maximizar
elementos de isolamento, tais como celas, salas de interrogatório e de tortura. Esta
estrutura revela, ao mesmo tempo, a necessidade do centro de gerar um espaço
celularizado e panóptico como eixo para seu funcionamento.

143
Por sua parte, o índice de integração – 1 – em conjunto com os índices de complexidade
– 117 e 4.534 - evidenciam, de maneira indiscutível, que estamos ante espaços não
distributivos e de alto grau de isolamento. Este tipo de estrutura é típico de instituições
disciplinares e autoritárias, onde existe um espaço de circulação controlado e regulado.

A aplicação destes modelos permite observar, como sendo elemento organizativo do


espaço, um parâmetro de maximização e de operatividade dos procedimentos
repressivos. Funciona como base desta estrutura, uma circulação restringida e
controlada, além de um profundo isolamento dos ambientes.

Por outra parte, o espaço do “CA” pode ser dividido em dois eixos (fig. 10). Um setor
superior (que ocupa aproximadamente uns 20% da superfície total), que podemos
denominar de centro burocrático do CCD. Existe outro, posterior, que aloja os
prisioneiros e onde se localizam as salas de tortura. Esta organização divide e classifica
as pessoas dentro do mesmo, delimitando espaços de circulação e de permanência dos
detidos.

Burocracia
Salas de detenção coletiva
Celas
Salas de Tortura
Celas

Fig. 10 – Esquema da organização do espaço no Club Atlético

Cremos que a instalação de salas de tortura, em um espaço central, entre os calabouços,


permite, por um lado, minimizar o translado dos detidos no espaço. Ao mesmo tempo,
seus gritos podem ser ouvidos por aqueles que, nesse momento, estão nas celas.

Existe também um elemento simbólico associado à organização do espaço. Assim, à


medida que se avança para o interior do CCD, o nível de suplício vai aumentando.
Imaginemos que o prisioneiro não pode ver, porém, sim, experimenta estes espaços
através dos sentidos. Os cheiros de corpos e dos fluidos humanos, a umidade e a falta de
ventilação no subsolo, o calor e o frio, os gritos e choros dos outros detidos, a dureza
das paredes e do piso – onde eram colocados. Trata-se de uma estrutura para ser
percebida de maneiras alternativas a visão, através de sentidos como o tato, a audição e
o olfato. Seu centro, seu coração, é a sala de tortura. De alguma maneira, representa a
materialização do sadismo com que foi projetado o CCD.

Os corpos dos detidos, ao estarem imobilizados, atados ou algemados nas paredes e nos
pisos, isolados e impedidos de comunicaram-se com os demais, privados de seus
nomes, transformam-se em parte da própria arquitetura dos CCD’s. Esta estrutura
repressiva absorve a essência das pessoas, transformando-as em meros objetos sobre os
quais atuam os dispositivos do poder. Pensemos que, a existência “social” de qualquer
pessoa está diretamente relacionada com a possibilidade de interatuar com outros, de
reconhecer e ser reconhecida. O CCD, através destes elementos, busca destruir a

34
Neste caso, 4.5 representa a média dos espaços necessários para aceder ao primeiro plano
do edifício (que, por sua vez, tinha, provavelmente, outros 4 ou mais espaços que o
distanciavam da rua).

144
identidade dos prisioneiros. Esta negação do social gera o que poderíamos denominar de
um processo de construção de “não-pessoas” – a pessoa vai desaparecendo simbólica e
fisicamente.

Conclusões
“Os monstros existem. Porém, são demasiado pouco numerosos para
serem verdadeiramente perigosos. Os que são realmente perigosos são
os homens comuns” (Primo Levy, La tregua, Barcelona, 1988).

Nosso interesse pela arquitetura e pela organização espacial dos CCD’s se entende ao
pensar que brindam a possibilidade de materializar uma ideologia. Precisamente, ao
transformá-la em algo material, a torna “real”, para, dessa maneira, transmitir seus
valores e seus significados por meio de discursos que podemos denominá-los de não-
verbais (Fletcher 1989; Monks 1992). Pensemos que, cotidianamente, nossos corpos
decodificam, inconscientemente, discursos invisíveis, simplesmente, ao circularem
dentro de qualquer estrutura arquitetônica (Markus 1993a, 1993b; Grahame 1995, 2000;
Zarankin 1999, 2002).

No caso dos CCD’s, a arquitetura e a organização espacial representam um tipo de


linguagem alternativa para transmitir mensagens de outra forma, mais palpável do que a
da palavra falada. A Arqueologia como disciplina especializada na cultura material
brinda a possibilidade de discutir esses discursos, assim como, as ideologias
representadas nas paredes (Leone 1977, 1984; Funari 1988; Andrade Lima 1999).

Os centros clandestinos de detenção são, ao mesmo tempo, dispositivos de poder


destinados a destruir corpos e mentes. São metáforas materiais que codificam discursos
autoritários. Sua análise revela o plano sistemático de aniquilação de toda a dissidência
gerada desde o governo militar.

O estudo da materialidade dos CCD’s se transforma, assim, em um instrumento de


construção de uma história negligenciada, de materialização de um dispositivo central
desaparecedor de pessoas. Como assinala George Bataille (1992:117) “Architecture is
the expression of the very being of societies”. Assim, entendendo os CCD’s como
“monumentos” que representam a ditadura militar, poderemos conhecer mais sobre a
perversidade e o sadismo das pessoas e das ideologias que formaram parte deste
sistema.

AGRADECIMENTOS

Queremos agradecer especialmente a Comissão de Trabalho e Consenso do Club


Atlético, a Melisa Salerno por sua ajuda com as figuras deste artigo e a María Ximena
Senatore por sua leitura crítica e sugestões.

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