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REPRESSÃO E DA
RESISTÊNCIA NA
AMÉRICA LATINA NA
ERA DAS DITADURAS
(décadas de 1960/1980)”.
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Sobre os editores
José Alberione dos Reis – nasceu nos Campos de Cima da Serra Gaúcha/RGS.
Estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professor de História
da Hominização e Arqueologia no Departamento de História da Universidade de Caxias
do Sul. Já escreveu vários artigos em publicações nacionais e estrangeiras e, também, é
autor do livro Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do Planalto
Meridional (Caxias do Sul, EDUCS, 2002). Tem participado em vários trabalhos de
campo nos âmbitos da Arqueologia Pré-Histórica e Histórica. E-mail:
tocchett.voy@terra.com.br
SOBRE OS AUTORES
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Alejandro Haber – é professor da Universidade Nacional de Catamarca e investigador
do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas. É doutor pela
Universidade de Buenos Aires. Dirige uma equipe de investigação na Puna de Atacama.
Seu último livro é Para uma arqueologia das arqueologias sul-americanas (Bogotá,
Uniandes, 2004). E-mail: afhaber@arnet.com.ar
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Zimbabwe, Congo, Etiópia, Namíbia e Quênia. É docente da cátedra de Medicina Legal
e Tanatologia da Faculdade de Medicina da UBA, E-mail: fondebrider@yahoo.com
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“Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das Ditaduras
(décadas de 1960-1980)”,
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democratização da disciplina. Sem dúvida, desde mais de vinte anos, vem sendo
produzida uma transformação libertadora que se reflete no desenvolvimento de novos
aportes críticos sobre o estudo do passado recente em nosso continente.
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As ditaduras militares que governaram os países do Cone Sul, nas décadas de 1970 e 1980, instrumentaram e
aplicaram um operativo de inteligência e de repressão extra fronteiriço que denominaram de Plano Cóndor.
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detalhada e minuciosa a história da busca e da localização dos restos de Che Guevara na
Bolívia. A partir de seu relato, é possível conhecer os métodos analíticos e tecnológicos
utilizados pela equipe de arqueólogos e de antropólogos físicos que participaram da
busca dos restos de um dos personagens mais importantes do século XX, cujo paradeiro
permaneceu oculto por mais de 30 anos.
Rodrigo Navarrete e Ana María López, em ‘Riscando atrás dos muros: grafite e
imaginário político-simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)’, exploram a
aplicação de uma perspectiva arqueológica para a interpretação do imaginário
carcerário, através do estudo dos grafites e outras expressões figurativas e textuais
expontâneas, nas paredes e recintos do Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela). Estas
são entendidas pelos autores como “manifestações parietais”, por estarem representadas
sobre as paredes – ocasionalmente em assoalhos ou em tetos – dos diversos recintos da
edificação.
Patricia Fournier e José Martínez Herrera, em “México 1968”: entre as
presepadas olímpicas, a repressão governamental e o genocídio’, analisam um dos
massacres mais terríveis da história recente do México, o da ‘Plaza de Las Tres
Culturas’, ocorrido em 1968. Naquele local, milhares de estudantes e pessoas comuns,
foram massacrados pelo aparato repressivo estatal, enquanto realizavam uma
manifestação pacífica contra o governo. Quase 40 anos depois, na intensidade de uma
ferida que só pode ser cicatrizada com a verdade e com a justiça, os autores marcam a
necessidade de se gerar um projeto interdisciplinar “para a recuperação da memória”.
Entre seus objetivos principais estão a proposta de esclarecimento sobre os
acontecimentos de violência e a contribuição para a localização dos mortos e dos
desaparecidos.
Carl Henrik Langebaek em “Arqueologia e Esquerda na Colômbia”, propõe
estudar as relações entre marxismo e o estudo do passado pré-hispânico na Colômbia.
Para isso, desenvolve uma mirada sociológica sobre a disciplina Arqueológica.
Estabelece laços diretos entre o desenvolvimento da Arqueologia, principalmente
aquela ligada as correntes marxistas, e a História política e acadêmica na Colômbia
durante o século XX.
Pedro P. Funari e Nancy Vieira em “A Arqueologia do conflito no Brasil”,
discutem as bases epistemológicas de uma Arqueologia do conflito. A partir disso,
analisam a situação particular que se estabeleceu no Brasil, desde começos da década de
1990, relacionada com a possibilidade de gerar um projeto arqueológico sobre os
desaparecidos da ditadura militar.
Luis Fonderbirder em “Arqueologia e Antropologia Forense: um breve
balanço”, apresenta uma síntese sobre os ganhos e a experiência de mais de 20 anos, do
trabalho da ‘Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF). Suas origens,
resultados e desafios são claramente expostos pelo autor.
Alejandro Haber em “Tortura, verdade, repressão, arqueologia”, estabelece
uma comparação simbólica das representações da conquista européia da América no
século XVI, que implicou o extermínio de grupos indígenas, com o genocídio das
ditaduras militares no século XX. Sua discussão traça uma reflexão sobre os distintos
regimes de verdade que existiram e existem na Arqueologia e como estes condicionam
nossa mirada do passado.
José López Mazz em “Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no
Uruguai (1971-1985)”, reflete sobre as possibilidades de trabalho em relação a uma
Arqueologia da repressão no Uruguai. Esta é entendida como uma aproximação
arqueológica ao terrorismo de Estado visando gerar informação sobre fatos até agora
invisíveis. Paralelamente, estabelece a possibilidade de discutir situações de resistência
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a esta repressão, através do estudo de fugas ou de pequenas condutas que permitiram
que pessoas comuns escapassem da violência imposta pela ditadura militar.
Andrés Zarankin e Claudio Niro em “A materialização do sadismo: Arqueologia
da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina
(1976-1983)”, propõem discutir a partir de dois níveis, um teórico e outro corporal
(destacando as experiências reais sofridas por um dos autores), a arquitetura e a
organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção (CCD) na Argentina. Para
isso efetuam uma série de reflexões sobre a materialidade destes lugares e suas
implicações no processo repressivo. Utilizam como caso de análise o CCD conhecido
como ‘Club Atlético’, assim como referências a outro CCD chamado de ‘El Vesubio’,
onde Claudio Niro esteve detido.
Em síntese, o livro que apresentamos ao leitor reflete um esforço por resgatar
uma história que consideramos ainda pouco tratada. Ao mesmo tempo, estamos
convencidos que discutir este tipo de problemáticas permitirá superar definitivamente os
riscos positivistas e reacionários da Arqueologia. Nos interessa deixar claro que,
contrariamente ao que se supõe, a mesma não só esta preocupada em ser uma ciência
abstrata ou uma fonte de estudo de supostas “grandes civilizações”, senão que também
se refere a nós mesmos, a nosso presente e futuro.
Esperamos que este volume permita mostrar que o estudo da repressão não é um
exercício histórico neutro, um tema a mais a ser explorado “objetivamente” pelo
cientista, senão que um compromisso político que assumimos como investigadores.
Somos conscientes que a situação de pobreza e de exclusão vivida na atualidade tem
muito a ver com este passado próximo. Esperamos que este volume possa ajudar na
difícil tarefa política e científica de compreender suas causas e funcionamento, como
também seu trágico legado.
AGRADECIMENTOS
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Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a
história do achado dos restos de Che Guevara
Roberto Rodríguez Suárez
Introdução
O contexto ‘vallegrandino’
Esta região dos vales ‘cruceños’, antes da ocupação colonizadora por parte dos
espanhóis, recebeu a incursão do povo quechua, principalmente oriunda das províncias
vizinhas de Carrasco e Campero, do Departamento de Cochabamba. A referida região,
que foi ocupada por iniciativa de Tupac Inca Yupanqui e continuada por seu sucessor
Huayna Kapac durante o século XVI, enfrentaria as tribos Chiriguanas e Yuracares que
saíram dos bosques do noroeste da província e que também se deslocavam por estes
vales. Seguindo a fundação das primeiras cidades, no que hoje é a Bolívia, tais como La
Plata, La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e Salinas del Río Pisuerga o Mizque, a partir de
1538, a comunicação entre ocidente e oriente se intensificou. Porém, nesta parte
intermediária desta via de comunicação, as incursões cada vez mais freqüentes e
ousadas por partes das hostes chiriguanas-yuracares, constituíam um verdadeiro perigo
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para os viajantes que se arriscavam pelo caminho inca. Isto determinou que o presidente
da Real Audiência de Charcas, Lic. López Cepeda, acedendo a repetidas petições,
facilitasse a fundação de centros de população intermediários que, de alguma maneira,
garantiriam a segurança dos viajantes. Estes antecedentes deram lugar a que, em 30 de
março de 1612, fosse expedido o documento oficial de concessão, mediante o qual o
Vice-rei do Peru encomendava ao capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, a
fundação de duas cidades nestes vales.
O capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, sobrinho do Vice-rei do Peru, Dom Juan
de Mendoza y Luan, recebeu deste o encargo de fundar uma cidade de brancos que
serviria de ligação entre Charcas e Santa Cruz. No cumprimento deste mandato saiu de
Lima com 30 famílias de espanhóis, as quais se somaram outras em Potosí até se
completar o número de 200 famílias.
Hoje em dia apenas está habitada por umas 6000 pessoas devido, entre outras causas, ao
esquecimento dos governos que passam e a falta de fontes de trabalho. Como
conseqüência, as pessoas migraram para cidades de maior prosperidade econômica,
como Santa Cruz, e para outros países vizinhos, como é o caso da Argentina.
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http://www.hoybolivia.com/turismo/30vallegrande.htm, 2005. (3) http;//comarapa.com/Historia.htm. Consultado em
15 de julho de 2005.
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Atualmente, Vallegrande perde sua aprazibilidade na época das festas datadas
(procissões, carnavais, festas cívicas, etc.) e se enche de gente que, com suas raízes no
povoado vêm, principalmente de Santa Cruz, a estas celebrações. Cobrando nova vida,
se reabrem casas que estiveram fechadas durante boa parte do ano, acolhendo as
pessoas durante estas celebrações.
Como parte de seu atrativo, não se pode menosprezar o interesse que suscita para
nativos e forâneos a existência, nesta região e em outras próximas, de espaços
relacionados com os fatos da guerrilha de 67. Já visitados durante muitos anos, agora
mais intensamente, a partir do achado dos restos do Che e seus companheiros, em 1997.
A projeção militar da “Aliança Para o Progresso”, com o nome de Ação Cívica, teve
como fim inutilizar as forças insurgentes com o apoio dos Estados Unidos que
colaborou no treinamento e equipamento de milhares de recrutas, convertendo os
militares em administradores de uma parte de seus fundos. Através desta política,
adicionalmente se utilizaram os soldados, máquinas e veículos militares visando obras
sociais, apoiando a construção de escolas, caminhos, estradas e pontes.
A presença militar nos campos se tornou habitual para seus habitantes. Os soldados
apareciam como coparticipantes do esforço para o desenvolvimento das zonas rurais
historicamente esquecidas. A cumplicidade se estendia a toda a instituição, de maneira
que Barrientos se aproveitou das circunstâncias e, em meio à efervescência das eleições,
em Cochabamba, em 11 de abril, promulgou o Pacto Anticomunista Militar Camponês.
Apesar da popularidade do presidente nas zonas rurais, o certo é que foram tomadas
decisões que atentavam contra as conquistas mais recentes dos camponeses. Elementos
vinculados a antigos latifundiários ocuparam cargos de autoridade no campo e se, até
então, a entrega de títulos de propriedade da terra havia sido lenta, com Barrientos se
deteve tudo.
No plano internacional, a década dos anos 1960, resultou numa etapa convulsa, tanto
nos países mais desenvolvidos como nos do chamado Terceiro Mundo. Nestes últimos
se vivia a luta contra a colonização. Em pleno século XX, ditava seus destinos que
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provocavam inconformidade que se traduziram na criação e desenvolvimento de
guerrilhas que pouco a pouco iam estendendo seu campo de ação (Pérez Guillen 2004).
No caso particular da região andina, que até o momento só havia sido utilizada como
zona de passagem ou assentamento temporal de outros focos guerrilheiros, aos finais de
1966 se completa o quadro de relacionamento com movimentos de libertação nacional
no âmbito continental. Ernesto Che Guevara, uma das figuras célebres da Revolução
Cubana, teórico da Guerra de Guerrilhas, conhecedor profundo da realidade imperante
na Latinoamérica, ideólogo antiimperialista, escolheu a Bolívia, por circunstâncias
conjunturais, para iniciar a luta que depois se irradiaria por toda a América.
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Uma vez dada a conhecer a notícia, a Associação de Desaparecidos da Bolívia
(ASOFAMD) solicitou ao governo que se empreendesse a busca. Tal reclamo teve a
resposta esperada e, mediante o Decreto Supremo do presidente da República, se
formou uma comissão encarregada de dar o cumprimento a esta solicitação. Dita
comissão solicita o apoio profissional da Equipe Argentina de Antropologia Forense,
representada, inicialmente, pelo antropólogo Alejandro Incháurregui e, ao qual se
incorporaram depois, seus colegas Patrícia Bernardi e Carlos Somigliana. Estes são
apoiados por soldados, os quais empreendem escavações na antiga pista do aeroporto de
Vallegrande, que começam em princípios de dezembro de 1995.
Sob tais circunstâncias, não havia dúvidas de que a investigação se fazia complexa. Em
função disso, tomou-se a decisão de se esboçar uma proposta metodológica na qual se
contemplava uma participação multidisciplinar que tornaria factível reduzir a um
mínimo os espaços a investigar em detalhe, para o alcance dos objetivos propostos.
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enterramento podiam originar e que, de alguma maneira, impediram ou entorpeceram os
achados. Um fundamental objetivo estava claro: encontra-los todos.
Por outra parte, a margem da informação fornecida pelo general Vargas Salinas, a
decisão de encontrar todos os guerrilheiros exigia uma minuciosa investigação histórica
que ampliaria a informação acerca dos lugares de enterramento dos diferentes grupos de
guerrilheiros que foram inumados no entorno de Vallegrande e em outras áreas fora
desta região. Este foi um processo chave no êxito da busca.
Como resultado desse esforço, se conformou uma proposta para a busca não só em
Vallegrande, mas também em todos os cenários onde se inumaram guerrilheiros e que
constou de cinco etapas fundamentais, a saber:
• INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA
• ESTUDOS BÁSICOS
• PROSPECÇÃO
• ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA
• IDENTIFICAÇÃO DOS RESTOS HUMANOS
Parte importante do esboço metodológico firmava-se na ‘filosofia’ que o sustentava:
sabendo que não existem métodos diretos para a detecção de restos humanos, o que se
tratava era não de “encontrar uma agulha no palheiro”, pelo contrário, havia que
encontrar o “palheiro” no qual descansava a “agulha”.
Com este objetivo foi que se realizou o trabalho de campo. Expressava o que era
imprescindível: encontrar um lugar no terreno que teria sofrido alterações em sua
estratigrafia por efeitos de alguma escavação. A fase inicial da proposta, por tanto, se
assentava firmemente na investigação histórica.
A investigação histórica
Ao mesmo tempo em que eram empreendidos os trabalhos de prospecção na área do
aeroporto de Vallegrande examina-se com atenção, para se obter mais precisão, os
locais que as versões apontavam como sendo o lugar de enterramento do Comandante
Guevara. Tem-se que levar em conta que além da revelação do general Salinas acerca
do possível local de enterramento, foram compiladas uma centena de versões em
relação ao tal lugar de inumação. Como antes foi dito, o tempo transcorrido e as
mudanças na fisiografia da zona do aeroporto não permitiram que, inclusive, o próprio
Salinas, de novo no lugar dos fatos, pudesse localizar a área precisa em que estes se
produziram. Assim, a investigação histórica esteve dirigida para a busca, análise e
confirmação de informações relacionadas com as circunstâncias e com os lugares em
que se produziram as inumações dos guerrilheiros. Era evidente que se fazia necessário
a localização das pessoas que, de alguma maneira, estiveram relacionadas ou envolvidas
direta ou indiretamente com tais acontecimentos. Isto é, oficiais, soldados, familiares
destes e possíveis testemunhos que aportassem elementos confiáveis acerca dos lugares
de enterramento em Vallegrande e em todo o país.
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Esta fase inicial da metodologia que tinha antecedentes em abril de 1996, quando já
tinham iniciado as pesquisas, se fazia difícil em razão do obscuro acúmulo de
informação que resultara. Desta maneira, se afinaram os métodos de investigação, nos
quais o cruzamento de informação permitia ir-se decantando versões, como resultado da
avaliação da confiabilidade das fontes em relação ao nível de vinculação com os fatos.
Este processo foi muito útil e os resultados mostraram a sua validez.
No caso particular da fossa do Che existiam fortes indícios, resultantes de várias
conjeturas: tinha sido escavada com um buldôzer que permite mover grandes volumes
de terra; na madrugada, quando se produziu o enterramento estava chovendo; a
profundidade podia ser superior aos dois metros para inumar sete cadáveres. Já se sabia,
mediante documentação obtida, o número de pessoas e os nomes dos que tinham caído
junto com o Che, de maneira que haveria de se confirmar com o achado se, em
realidade, todos haviam sido ali enterrados, pois não se tinha certeza total. Por certo,
existia a possibilidade de que tivessem sido enterrados em pequenos grupos, o que teria
complicado muito mais o trabalho de localização. Como depois se verá, houve plena
coincidência entre os achados e o resultado da investigação histórica.
Os estudos básicos
Nesta fase era necessário adquirir informação acerca das características do terreno.
Visavam clarear respostas que poderiam ser esperadas na etapa seguinte de prospecção
que indicaria alterações sugestivas da existência de uma anterior escavação. Por isto,
propusemos o estudo aprofundado dos solos de Vallegrande. Com tal objetivo,
diferentes especialistas foram incorporando-se a investigação. Contou com um
edafólogo e um físico de solos, os quais aportaram um volume de informação que
permitiu acumular dados sobre a estratigrafia, geologia, geomorfologia e características
físicas dos solos, não somente na área do aeroporto, bem como de outras limítrofes a
esta, permitindo um quadro geral o mais completo possível. A exaustividade dos
estudos levou a uma caracterização geral da área que abarcou uma boa parte da história
geológica de Vallegrande, praticamente os últimos 10.000 anos de sua existência.
O trabalho de prospecção
Nesta fase do trabalho foi selecionado um conjunto de provas, dentre as quais se
incluiriam:
• Foto aérea
• Técnicas geofísicas
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• Técnicas geoquímicas
Foram tomadas fotos aéreas de baixa altura empregando-se película normal e
infravermelho. Tinham por finalidade determinar possíveis contrastes no terreno.
Indicaram modificações resultantes de movimentação da terra, tais como: umidade e
temperatura diferenciadas e ou mudanças de cor que poderiam ser detectadas mediantes
tais procedimentos.
Nenhum detalhe escapou. Foram estudados modelos de escavação realizados com este
tipo de maquinário, nos quais se levou em conta, por exemplo, o trajeto necessário de
entrada e de saída de uma vala, a uma profundidade de mais de 2m, com a finalidade de
informar as possíveis dimensões da fossa e de outras caraterísticas.
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mudanças que poderiam se esperar desta variável, pela remoção das camadas do
terreno. Para tal, se empregou a tabela de cores Munsell.
A escavação arqueológica
Com o avanço dos estudos se pôde ir planejando a tática de trabalho em relação às
escavações, uma vez que a análise cruzada da informação obtida com os métodos de
prospecção apontara possíveis zonas onde poderia ser positiva a presença de
enterramentos. Para isso, dispunha-se do instrumental necessário para proceder ao
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trabalho de exumação e controle das evidências, preparação de planos, de registro
fotográfico e de embalagem dos restos.
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A análise da fotografia aérea não permitiu precisar áreas anômalas que sugeriria algum
movimento de terra. Há que se ter presente que o nível de deteriorização do terreno, a
formação de boçoroca por ações erosivas intensas em muitas zonas, o tipo e a pobre
presença de vegetação, não permitiram a observação de contrastes.
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Sob esta pressão e com este ultimato nos vimos obrigados a ganhar tempo e, por isso, se
empregou uma retroescavadeira que, ainda que metodologicamente não fosse o
adequado, na forma em que se utilizou minimizou ao máximo possíveis danos nos
restos ósseos que poderiam aparecer. O proceder neste caso consistiu na vigilância
estrita da velocidade e da profundidade que fincava a pá extratora. Esta foi empregada
em modo de raspador, permitindo que só se insertaria seus dentes até 10cm de
profundidade e a retração da mesma se fazia muito lentamente. Nos momentos iniciais,
isto é, nos primeiros 150cm, a máquina foi utilizada em condições normais. A partir daí,
procedia-se como acima explicado e sob a vigilância de, ao menos, um dos
especialistas.
Assim, uma vez que se avistaram os primeiros restos, eliminou-se o uso de tal máquina
e se procedeu com os métodos usuais da Arqueologia. Uma característica que tornava
difícil a escavação era a dureza do terreno. Salientando que, de acordo com as
informações obtidas durante a investigação histórica, na madrugada em que se produziu
o enterramento, chovia, o que implicou que os restos esqueléticos praticamente se
encontravam cimentados. Por isso, empregaram-se martelos e formões, ao menos para
delimitar os restos que progressivamente foram sendo encontrados. Uma vez ampliada a
fossa para poder facilitar os labores - a preservação dos restos e a comprovada a
existência de sete indivíduos -, esta foi quadriculada mediante uma grade de 3m x 4m,
conformando-se 12 quadrículas de 1m x 1m para o controle e o registro das evidências.
Posteriormente, continuou-se empregando o instrumental próprio da Arqueologia
(brochas, pincéis, instrumental estomatológico, etc.) e se estabeleceu um nível zero
convencional a partir do qual se expressaram as profundidades. Com o avanço das
escavações, se pôde descobrir o piso original da fossa, que se encontrava a 1,93m de
profundidade.
Tendo em vista que havia coincidência entre a informação obtida acerca da composição
do grupo que foi enterrado na madrugada de 10 de outubro de 1967 e os restos
encontrados na fossa existiam altas possibilidades de que efetivamente nela se
encontrava o Che. Isto é, tratava-se de um ‘grupo fechado’ o que facilitou o processo
posterior de identificação.
As escavações foram realizadas por uma equipe de cubanos e por três colegas
argentinos que participaram nas atividades iniciais de busca, com larga experiência
neste tipo de trabalhos.
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quando se fizeram as perfurações com trado mecânico, foram tomadas amostras de solo
para serem analisadas e, pelos resultados das análises, algumas escavações realizadas se
justificaram pela presença de altas concentrações de fosfatos a determinada
profundidade. Ainda que nestes casos não correspondessem aos restos dos guerrilheiros,
todas as análises que se efetuaram puderam explicar a fonte da ‘contaminação’.
Um estudo posterior à exumação dos restos permitiu comprovar que não tendo havido
este impedimento, mediante estudos geoquímicos teria sido factível o achado tempos
antes, pois várias perfurações coincidiram com o lugar do enterramento, porém, estas só
alcançaram 0,90m de profundidade.
Não obstante, uma vez realizada a exumação dos restos do grupo do Che, levou-se a
cabo uma amostragem do solo da fossa, a intervalos de 0,25cm, em uma área de 12m!
que correspondia à mesma. Foram obtidas 208 amostras. Foram submetidas a analise de
fosfatos, de pH e de cor de solo. Permitiu corroborar que, potencialmente, era possível
localizar os restos empregando estas provas. Os resultados obtidos foram plotados em
mapas de isolinhas que, consideramos, resultarão em valor para futuros estudos, pois,
expressam o padrão de contaminação que produz uma fossa coletiva e a dinâmica da
mesma. (Fig. 1, 2, 3, 4, 5 e 6).
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Fig. 1 – Emprego do georradar que, junto aos métodos elétricos, resultou em técnicas
úteis na determinação de anomalias que precisaram os lugares de enterramento.
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Fig. 3 – Esqueleto correspondente a um dos guerrilheiros. Esta foi a evidência detectada
pelo georradar que ilustra a figura anterior.
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Fig. 5 – Ilustram-se na área deprimida da figura os baixos valores de pH
correspondentes à localização do corpo. Deve levar-se em conta o regime hídrico do
solo que, em determinadas ocasiões, não expressa um padrão tão definido.
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Destas determinações pode-se constatar que:
1. Os altos níveis de fosfatos se circunscreveram a área que foi ocupada pelos corpos,
entretanto, fora da beira da ‘contaminação’ intensa. As mudanças nas leituras permitem
circunscrever com maior precisão a área de ocupação, o que resulta em vantagem,
devido a que facilita a localização dos enterramentos. Isto corrobora a prática
arqueológica em relação à imobilidade dos fosfatos.
2. Com relação ao pH, apreciou-se um gradiente nos valores como uma função do
deslocamento dos líquidos orgânicos e os intercâmbios que têm lugar com o contexto,
na dependência do regime hídrico circulante. No caso que nos ocupa, se destaca que no
espaço onde descansavam os corpos produz-se os valores mínimos de pH. Entretanto,
um gradiente que aumenta em direção a periferia expressa a mobilidade dos íons
responsáveis pelas variações neste parâmetro.
3. No que diz respeito à cor, existe bastante uniformidade no piso da fossa. Somente
algumas variações de tom se apresentam, provavelmente, pela mistura originada no
atuar da máquina durante o processo de ruptura do terreno para a inumação dos
cadáveres; pela presença dos próprios corpos com os aportes correspondentes ao
processo de deteriorização dos mesmos; pelos materiais associados a eles e,
posteriormente, ao produzir-se o material para cobri-los. Não foram apreciadas cores
contrastantes que definam um padrão característico digno de ser levado em conta como
elemento diagnóstico. Nos lugares onde os horizontes estratigráficos resultam mais
complexos, a cor do solo tem mostrado seu valor como coadjuvante neste complexo de
provas que se aplicou segundo experiências do autor.
Como foi comprovado na fossa coletiva, naquela em que descansavam três corpos, uma
vez produzida a exumação, foi realizada uma sondagem com trado manual no lugar
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correspondente ao espaço onde descansava a zona torácica de um dos indivíduos,
tomando-se amostras a intervalos de 10cm. Submetidas as mesmas a análise de fosfatos,
pôde-se precisar que, quando as condições de drenagem são adequadas, dispõe-se de
uma profundidade adicional de 40cm para encontrar altos valores de fosfatos
representativos da presença de uma acumulação orgânica relacionada a efeitos
prospectivos.
Em relação à exumação, uma vez que foram individualizados na fossa, foram tomadas
fotos e vídeos do plano geral do enterramento. Posteriormente, procedeu-se a retirada de
cada um, embalando os restos por região anatômica. Levados ao laboratório
procederam-se a lavagem e restauração do material ósseo, quando secos, trabalhando
sempre com um só indivíduo por vez. Nesta etapa final de exumação e posterior
trabalho de identificação, participaram três especialistas cubanos e três argentinos.
Da mesma maneira como foi aqui descrito, procedeu-se nas diferentes zonas onde a
investigação histórica apontava a presença de enterramentos de guerrilheiros.
Conclusões
Antes de tudo, resulta importante destacar que para além do resultado obtido, que
demonstrou a eficiência do modelo metodológico proposto para o cumprimento dos
objetivos – o achado dos componentes da guerrilha –, o êxito da investigação descansou
no labor multidisciplinar. Este pode ser considerado como um exemplo de trabalho em
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equipe. Neste, em nenhum momento, se destacou o protagonismo pessoal e, no qual,
cada um assumiu o papel que foi necessário no curso da investigação. Precisamente um
logro importante resultou da maneira em que cada um foi ativo colaborador dos demais
quando sua especialidade era requerida. Constituiu uma via de aprendizagem.
Em nossa opinião, as cinco etapas em que esta proposta foi concebida mostram um
nível de generalização que as tornam suscetíveis de serem aplicadas em outros
contextos e, certamente, de ser melhorada, partindo das experiências acumuladas no
transcurso de sua aplicação.
Uma vez mais fica demonstrada a eficiência da Arqueologia como ciência, na qual, a
interdisciplinaridade joga um papel fundamental no estudo de atividades humanas, tais
como, as relacionadas com a inumação de cadáveres, tanto em jazigos coletivos quanto
individuais. Este proceder foi empregado na busca de todos os guerrilheiros, não só em
Vallegrande, senão também em outras localidades da Bolívia.
AGRADECIMENTOS
O autor deseja sublinhar seu agradecimento a Dra. Maria del Carmen Ariet, pela revisão
do manuscrito e apropriadas sugestões e a Lic. Daily Pérez Guillén, por seu apoio
bibliográfico, ambas do Centro de Estudos Che Guevara. Ao engenheiro geofísico Noel
Pérez por ceder-nos a imagem de georradar que ilustra este trabalho.
BIBLIOGRAFIA
Díaz de Oropeza, C. (1997): Enfoques. Revista mensual (julio) pp. 1-16. Bolivia
Pérez Guillén, D. (2004): El vano intento de esconder la luz. Tesis de Licenciatura, Universidad
de La Habana.
Barba, L.; R. Rodríguez y J.L. Córdoba (1991): Manual de técnicas microquímicas de campo
para la arqueología. Cuadernos de Investigación. IIA, UNAM, México.
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Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário político-
simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)
Rodrigo Navarrete e Ana Maria López
O tema dos grafites e sua conexão com a Arqueologia. As manifestações rupestres são
tão antigas quanto à história humana e, no caso dos petróglifos e pinturas rupestres
americanas, testemunhos inigualáveis de nossa história indígena. De fato, a intervenção
informal e espontânea sobre edificações e muros – o equivalente ao moderno grafite –
se conhece desde o Antigo Egito e a Grécia. Porém, o grafite como fenômeno urbano é
definitivamente moderno. Ao mesmo tempo, é um fenômeno típico do capitalismo
tardio, ou para outros, pós-moderno, a partir da década dos anos 1970, nos grandes
centros urbanos do mundo (Silva Téllez, 1987).
Estas inscrições que aparecem nas grandes cidades de diferentes países, começaram a
constituírem-se em vozes de tendências ideológicas, de comportamentos sociais,
artísticos, políticos e filosóficos, não permitidos pelos canais oficiais. Em Nova York,
por exemplo, aparecem na década de 1960. Enquanto que, na América Latina, o grafite
e o mural político brotam nas paredes de nossas cidades. Utilizando o metrô de Nova
York como lousa ambulante ou as paredes de Santiago do Chile, grupos de jovens
subvertem a ordem, inscrevem seus nomes, projetam seu mundo político utilizando todo
o tipo de artimanhas. Enfrentam a mais rígida perseguição empreendida pelos aparelhos
político-repressivos ou pelas autoridades de transportes públicos (Silva Téllez, s/f). O
grafite, neste sentido, se incorpora na paisagem pública como artefato e como
mensagem transgressora dos espaços públicos e sua ordem. Em essência, representam
artefatos e mensagens políticas profundamente identificadas, na América Latina, como
mecanismos de difusão e de protesto contra aos aparelhos repressivos do Estado.
Ocorrem tanto em regimes ditatoriais quanto em sistemas democráticos, como o
venezuelano, o qual reprimiu sistematicamente a dissidência política, desde seus inícios,
na época dos anos 1970 (James Quero, 2003; Navarrete, 2004).
Um dos espaços prediletos de afloramento dessa força interna dos agentes sociais são os
espaços carcerários. Em seu duplo caráter de públicos e privados, converteram-se em
espaços idôneos de comunicação indireta ou transferida por entre os indivíduos. De
fato, os espaços internos das celas convertem-se em uma superfície branca, vazia,
imagem de ‘página aberta’, que convidam o recluso – frequentemente sem outra
alternativa comunicacional direta – a expressar privada, porém publicamente, suas
mensagens, ansiedades e necessidades políticas, sociais, raciais, sexuais e de gênero.
29
Uma breve história da importância histórico-política do Quartel San Carlos
O Quartel San Carlos localiza-se na denominada Planície de la Trinidad – zona noroeste
da cidade de Caracas. Desde sua construção, durante todo o século XIX e primeira
metade do século XX, funcionou como Casa de Milícias, com a finalidade de cumprir
com as operações básicas de Quartel militar, ponto de defesa e resguardo, reduto
estratégico-militar e depósito de armas durante grande parte do século XX. Denominou-
se de San Carlos, em honra a Carlos III, porém, logo foi chamado de Quartel de
Veteranos (IPC, 2000). A esta estrutura associou-se a de estratégia de controle e de
defesa militar que o Brigadeiro das Forças Reais, Agustín Cramer, criou com o duplo
propósito de fortalecer o domínio do comércio europeu na capital venezuelana e, por
sua vez, de começar a afrontar a conjuntura de crise política e de insurreição anti-
colonialista que assomava nos finais do século XVIII nesta colônia. Parte deste mesmo
plano formava os fortins de San Rafael e San Andrés, na Cidade Bolívar, o fortim de
Puerto Cabello, os fortins e o Caminho Real Caracas-La Guaira e os fortins da Barra de
Maracaibo (Amodio et al. 1997).
Foto 01: El Cuartel San Carlos representa un hito en la historia colonial y republicana de la ciudad de
Caracas y un espacio de acción y coacción, y testigo inmueble de las convulsiones de la historia
venezolana (Fuente: IPC 2000, pp.27-28)
30
União Republicana Democrática (URD) e Comitê de Organização Política Independente
(COPEI), excluindo em suas reuniões iniciais o Partido Comunista Venezuelano (PCV),
o qual jogou um ativo papel na derrocada da ditadura. Esta exclusão das forças de
esquerda, do novo poder democrático, gerou uma nova fase de tensões e de sublevações
que desembocaram na conformação de forças de guerrilha, armadas contra os governos
de direita, os quais atacaram agressivamente estes grupos subversivos. Este período de
enfrentamento se iniciou com Betancourt, intensificou-se profundamente durante o
governo de Leoni e, finalmente, foi abruptamente cortado durante o governo de Caldera,
com a detenção dos principais líderes, com a dissolução de suas unidades táticas rurais e
urbanas. Seguiu-se com a militarização da Universidade Central da Venezuela, em
1970. Esta se destacava, em grande medida, como centro de operações clandestinas, na
região da capital, de alguns daqueles grupos – e com a assinatura de um pacto de
pacificação, ao qual foram acolhidos o Partido Comunista da Venezuela (PCV) e o
Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), mas, não outros, como o Movimento ao
Socialismo (MAS) (Cadena Capriles, 2000).
Foto 02: Vista al patio interno desde una celda (Fotografía: Ezequiel Korin)
Foi assim que o Quartel San Carlos converteu-se em centro de reclusão de presos
políticos e, em seus recintos, estiveram retidos e foram torturados numerosos membros
das forças armadas guerrilheiras urbanas e rurais que enfrentaram os governos de
Rómulo Betancourt (1959-1964), Raúl Leoni (1964-1969) e Rafael Caldera (1969-
1974). Dentre tais forças guerrilheiras, destacaram-se as FALN (Forças Armadas de
Libertação Nacional) e as UTC (Unidades Táticas de Combate). Em 1961, criou-se o
Destacamento Misto de Polícia Militar n° 1, assentando-se o Departamento de
Processados Militares de Caracas no Quartel San Carlos, por decisão do presidente
Rómulo Betancourt. É durante este período, paradoxalmente denominado da
democracia, que o Quartel recebe estruturalmente a maior quantidade de intervenções
arquitetônicas associadas ao seu novo papel de presídio. Desenvolveram-se
improvisadas inserções, agregações, reformas e remodelações que não somente
mudaram estruturalmente o edifício. De fato, em termos de sua relação com o entorno
urbano e, certamente, de sua percepção como espaço e representação material, evolui
para um âmbito mais segmentado, com recintos cada vez mais restringidos e áreas de
uso exclusivo para a reclusão. No ano de 1961, depois da criação do Departamento de
Processados Militares de Caracas, foram transferidos ao Quartel San Carlos um grupo
31
de oficiais das Forças Armadas Nacionais. Estes se encontravam presos em diferentes
cárceres do país, por estarem comprometidos nas tentativas do golpe de estado de 22 de
julho e 7 de setembro de 1958, em Caracas. Assim como, no golpe denominado de
Barcelonazo, por ter sido produzido na cidade de Barcelona, em 26 de junho de 1961.
Outros eventos de insurreição cívico-militar regionais que alimentaram o ingresso de
presos políticos – já não necessariamente militares senão que também civis – foram o
Carupanazo e o Porteñazo, os quais combinaram forças militares e grupos de esquerda
com a intenção de derrubar o presidente Rómulo Betancourt, no interior do país.
Durante este governo, produz-se, em 5 de fevereiro de 1967, uma fuga massiva do
Quartel, de um grande número de líderes destes movimentos.
Devido à continuidade dos movimentos subversivos durante a década dos anos 1970,
este Quartel continuou sendo prisão política de uma imensa quantidade de líderes
revolucionários que ainda desenvolviam estratégias subversivas durante os governos,
tais como o de Caldera ou de Carlos Andrés Pérez (1974-1979). Um evento importante
na história democrática venezuelana e que ainda joga um papel central na memória
política da nação e da cidade de Caracas. Corresponde a fuga dos líderes políticos
Pompeyo Márquez, Teodoro Petkoff e Guillermo García Ponce, líderes comunistas
retidos, por rebelião militar, em 5 de fevereiro de 1967, e, posteriormente, a fuga de 23
outros processados de esquerda em 15 de janeiro de 1975 (IPC, 2000; García Ponce,
1968). Também estiveram presos neste cárcere, pela explosão de um avião cubano, em
1976, outros dirigentes subversivos, dois dos quais escaparam também em 8 de agosto
de 1982.
Sem dúvida, um dos fatos mais importantes para nosso caso de estudo é a reclusão,
nestes espaços, dos processados militares pela rebelião de 1992. Entre estes dirigentes
reclusos nos espaços do quartel, entre outros, se conta o atual presidente da República
Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez. Entre 3 e 4 de fevereiro de 1992, uma
tentativa de golpe militar – denominada de Operação Zamora – mobilizou-se contra o
governo do então presidente da República, Carlos Andrés Pérez. O movimento
bolivariano (MBR 200), agrupação fundada clandestinamente, em 1983, no seio das
Forças Armadas, pelos então capitães do exército, Hugo Chávez Frías, Luis Felipe
Acosta Carlés e Jesus Urdanete Hernández, os quais atuavam como instrutores da
Academia Militar, se responsabilizou pela ação. Devido ao fato de que, entre seus
membros, figuravam oficiais de graduação média, tais como comandantes, majores,
capitães, tenentes e tenentes-coronéis, o dito movimento ficou conhecido como
COMACATES (Rodrigúez, 2000).
32
havia manifestado em outras cidades importantes como Maracaibo, Maracay e
Valencia, em vista do fracasso das operações em Caracas, também depôs as armas. O
comandante Chávez e os oficiais de maior patente envolvidos na insurreição foram
recluídos no Quartel San Carlos de Caracas e, em seguida, no Cárcere de Yare, nos
Valles del Tuy. Com o tempo, as causas de muitos dos militares foram sobrestadas,
outros deram baixa e outros indultados pelo presidente Caldera, em 1994, sob a
condição de solicitar dispensa das Forças Armadas, tal como sucedeu com os oficiais
que dirigiram a operação (Rodríguez, 2000).
Durante os últimos anos, o Quartel San Carlos tem sido foco de múltiplos projetos
culturais, nenhum dos quais tem sido levado a termo feliz. Intentam restaurar a
edificação como espaço para a cultura, as artes, a educação e, por conseqüência,
simbolizar a liberdade e a democratização cultural. Declarado Monumento Histórico
Nacional, em 6 de outubro de 1986, o Quartel San Carlos tem sido proposto como local
do Museu Nacional de História (1986), do Centro Nacional de Culturas (1999) e da
Universidade das Artes (2003) (IPC, 2000). Na atualidade, além dos projetos de
escavações arqueológicas desenvolvidas em 1998 e 2004 (Sanoja, 1998a; 1998b; 1998c;
Sanoja e Vargas, 1998), a edificação, sob a custódia do Instituto do Patrimônio Cultural
(IPC), acolhe o Foro Latino-americano das Artes e, devido às circunstâncias de
catástrofes naturais ocorridas no país, em 2004, é, neste momento, albergue de um
numeroso grupo de desabrigados que requerem uma relocação habitacional em função
de tais catástrofes trágicas.
É precisamente, nesta conjunção da interação do Quartel San Carlos, por um lado, com
eventos ou acontecimentos históricos que têm marcado nossa história e, por outro lado,
com a conformação cotidiana dos cidadãos que formam a cidade, vemos a importância
que deve ter para a identidade e consciência histórica do caraquenho, já que, por sua
vez, o reintegrará à dinâmica da participação cidadã.
33
Objetivos e metodologia do trabalho de campo
Um dos elementos mais chamativos nos recintos internos do Quartel San Carlos é a
abundância de expressões gráficas, tais como grafites e representações pictóricas como
murais, presentes em suas paredes e outras superfícies. Grande parte destes grafites
estão historicamente relacionadas com o período de encarceramento dos militares
sublevados contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992. Formam parte da
história pátria contemporânea, mais próxima da etapa constitucional atual.
É por isto que se fez necessária uma estratégia de registro controlado e integral, com
cobertura total, destas manifestações culturais, mediante a aplicação de estratégias
arqueológicas para o levantamento de evidências rupestres (De Valencia e Sujo, 1987).
Esta consistiu na realização de um sistemático relevo fotográfico e gráfico dos grafites e
de outras expressões pictóricas nas paredes e outras superfícies do Quartel San Carlos.
Como produto final da aplicação desta metodologia obteve-se um inventário sistemático
e detalhado das representações gráficas e ou pictóricas presentes nas paredes e outras
superfícies do Quartel. Assim, podemos propor recomendações para sua conservação,
valorização, possível musealização ou divulgação.
Foto 03: En estos mensajes se aprecia una búsqueda de reconocimiento, de salir del anonimato al dejar
constancia que el autor del mensaje estuvo castigado en ese lugar por su “mala conducta” o su
“carácter violento” (Fuente: IPC 2000, pp.42-43).
Ao abordar o estudo dos grafites do Quartel San Carlos nos enfrentamos, em primeiro
lugar, com um contexto excepcional de produção de manifestações culturais que, em si
mesmo, apresenta complexos níveis de significação. Em segundo lugar, as
manifestações parietais que estes espaços albergam são produtos de diferentes
momentos históricos, códigos morais, critérios estéticos e tecnológicos, discursos
ideológicos e religiosos, rituais e das mais diversas histórias pessoais.
34
O trabalho de campo que sustenta esta investigação teve lugar no mês de julho de 2004.
Começou com a realização de uma exploração sistemática dos espaços do Quartel San
Carlos com a finalidade de gerar o pré-inventário dos grafites e das pinturas existentes
no lugar, amparados numa metodologia arqueológica de resgate, inspirada na
metodologia tradicional de relevo de manifestações rupestres.
O pré-inventário foi organizado, tendo por base 41 unidades de análise. Estas unidades
correspondem a uma entidade maior ou conjunto significativo de motivos que
representam, em si mesmos, o principal objeto de estudo da investigação. As unidades
de análise foram selecionadas dentro dos espaços internos da primeira e da segunda
planta das edificações que compõem o Quartel San Carlos, na atualidade. Como recurso
metodológico para a realização do pré-inventário era imprescindível configurar os
possíveis esquemas organizativos dos lugares de concentração e de produção de grafite.
Cada unidade evidencia motivos (grafite, desenhos, etc.) dispostos em distintos suportes
ou estruturas materiais (pisos, tetos, paredes) que servem de base aos distintos motivos.
Para o levantamento, efetuou-se um percurso espacial do desenho da planta original do
Quartel San Carlos, seguindo o sentido horário, tanto em relação a cada unidade de
significação quanto aos motivos presentes nestas (ver anexo 1).
Em uma segunda fase de campo, realizou-se todo o registro fotográfico dos grafites,
tanto de cada um dos motivos específicos como de pequenos conjuntos de motivos. Se
bem que na maioria das unidades de significação, a ausência de um corpus coerente de
motivos dificultou sua posterior análise e interpretação como conjunto, a agrupação de
motivos nos permitiu realizar seu estudo com base na observação de semelhanças de
atividades e convivência dentro dos espaços em questão. Um dos principais problemas a
resolver, dentro da fase do registro gráfico, é que a grande maioria das manifestações
está exposta a agressão de elementos climatológicos e sociais que as rodeiam. Em
muitos dos casos, não é possível reconhecer sua forma expressiva. Por outra parte, no
caso dos grafites do Quartel, há que se destacar que os suportes sobre os quais estão
dispostos não são móveis e nem são separáveis de seu entorno. Portanto, a compreensão
do motivo ou do conjunto de motivos depende de seu contexto físico. Igualmente,
alguns destes suportes têm sido alterados estruturalmente ou têm sofrido a superposição
de pinturas que tornam impossível a leitura de manifestações prévias. Por outro lado,
para fins da investigação, os escritos mais recentes associados a visitas circunstanciais,
unicamente foram revelados se estes se encontravam associados de maneira
significativa às outras unidades históricas ou conjuntos de motivos.
Por outro lado, o trabalho de campo se viu reforçado mediante a análise contrastiva com
os testemunhos escritos encontrados na escassa bibliografia e hemerografia existente,
35
assim como também mediante entrevistas realizadas com pessoas que foram
protagonistas de primeira linha, na história do Quartel San Carlos. Em definitivo, a
metodologia implementada cobriu dois grandes campos de abordagem ao tema: por um
lado, o trabalho de campo, o qual incluiu a prospecção dos espaços, a realização do pré-
inventário dos grafites e das pinturas, as entrevistas pessoais, o registro fotográfico de
manifestações, o registro de técnicas de produção e o processo de classificação. Por
outro lado, a investigação documental, que compreendeu estudos cartográficos,
bibliográficos, hemerográficos e de fontes da internet.
Um dos temas de maior recorrência dentro das celas de castigo, geralmente destinadas
aos presos comuns, é a representação permanente da violência. Esta violência está
referida tanto às experiências cotidianas da vida no interior do cárcere quanto à
executada no além dos muros. Assim, nas manifestações que encontramos nestas celas
condensa-se, reflete-se e resignifica-se a violência de um núcleo urbano capitalista
tardio, altamente estratificado e agressivo como é a cidade de Caracas (García Canclini,
2001). Nas celas de castigo, popularmente conhecidas como “tigritos”, existe uma
ampla variedade de motivos que, em certas ocasiões, se superpõem, dado o excessivo
fluxo de reclusos por estes espaços. Entre as mensagens que se evidenciam nas paredes,
tetos, pisos e marcos das portas destas celas de reduzidas dimensões ressaltam aquelas
que expressam uma necessidade de destacar-se dentro de um grupo, ao mesmo tempo
que atemorizar o resto da comunidade de reclusos. Isto é, conformar um espaço de
identidade a partir da violência. Nestas mensagens, podemos apreciar uma busca de
reconhecimento, de sair do anonimato, ao deixar constatado que o autor da mensagem
foi castigado neste lugar por sua ‘má conduta’ ou seu ‘caráter violento’. Possivelmente,
nestes espaços, algumas das mensagens refletem a chamada ‘lei da selva’ carcerária, na
qual os mais fortes, duros e resistentes sobrevivem, prevalecem e são respeitados pelo
36
resto da comunidade carcerária. Os escritos registrados denotam, ocasionalmente, uma
atitude de rivalidade, pois, muitos dos autores, reincidiam no castigo e voltavam a
deixar testemunho de sua passagem por estes espaços.
Foto 04: Algunos de los mensajes reflejen la llamada “ley de la selva” carcelaria, en la que los más
fuertes, duros y resistentes sobreviven, prevalecen y son respetados por el resto de la comunidad
carcelaria. (Fotografía: Ezequiel Korin)
Em várias destas celas ou ‘tigritos’ são recorrentes escritos em que rezam ‘a lei de
Pedro Navaja’, ‘a lei do chuço’, ou ‘aqui esteve a maldade’, assim como a presença de
desenhos de armas de fogo, de caveiras, de esqueletos, de suásticas, etc. Estas
manifestações foram realizadas, quase de maneira exclusiva, mediante o uso de
elementos alternativos a pintura. Na maioria dos casos evidencia-se o uso da técnica do
raspado, a qual, intuímos, pode ser executada com o uso de pedras, lâminas de metal ou
qualquer outro instrumento afiado.
37
geralmente, têm grandes dimensões, a maneira de grandes murais, criando uma maior
pregnância no olho da pessoa que o observa e captando a atenção de todo àquele que
incursione nesse espaço. De fato, estas representações, frequentemente, ocupam as
paredes principais e estão realizadas, combinando técnicas complexas de manufatura.
Muitos dos desenhos e murais do Quartel San Carlos acompanham as letras. Dentro de
um dos conjuntos, por exemplo, pode-se observar o rosto sobredimensionado de Simón
Bolívar, destacado entre as assinaturas e mensagens dos reclusos, a maioria oficiais de
alta patente, os quais protagonizaram o conhecido motim militar de 27 de novembro de
1992. Entre eles, encontra-se o general Francisco Visconti Osorio, chefe de logística do
Estado Maior Conjunto, o contra-almirante Hernan Grüber Odermán de la Marina, o
oficial de mais alta patente e de antigüidade dos sublevados, e o contra-almirante Luis
Cabrera Aguirre (IPC 2000; Rodríguez, 2000). Com grande freqüência, os textos que
acompanham estes murais aludem a valores de liberdade, justiça social, resistência
armada e promovam a luta por uma sociedade mais igualitária e sem divisão de classes.
Foto 05: Rostro sobredimensionado de Bolívar, enmarcado entre las de firmas y mensajes de los
reclusos, la mayoría oficiales de alto rango, quienes protagonizaron la conocida asonada militar del 27
de noviembre de 1992 (Fotografía: Ezequiel Korin)
No Quartel San Carlos, os motivos iconográficos e os textos que refletem algum tipo de
militância política foram realizados mediante a utilização de diversas técnicas de
manufatura – simples ou combinadas – nas quais se utilizaram pinturas, giz, lápis, ou
carvões, já que seus autores, ao pertencerem, em sua maioria a institucionalidade
castrense, teriam um privilegiado acesso a estes materiais.
38
“La libertad los gobiernos no se compran y un verdadero hombre acepta sus derrotas y no se
ciega ante un pueblo con tal de permanecer en el poder”
“La lucha continúa, las rejas no callaron el grito de libertad”
“Quien se para de frente es el que escribe la historia”
Este último texto apresenta uma dramática relevância dentro da aura simbólica do
Quartel San Carlos e, ainda mais, dentro do contexto político-social venezuelano, já
que, ainda que não existam referências testemunhais confiáveis, sua produção é
atribuída ao tenente-coronel Hugo Rafael Chávez Frías, atual presidente da República
Venezuelana da Venezuela. De fato, este recinto é recorrentemente visitado pelas
pessoas que vêm ao Quartel devido ao anedotário associado a este grafite.
Por outro lado, existem outras referências que pertencem a coletivos urbanos menos
estruturados tais como as pandillas, ‘tribus’ e organizações informais, coletivos que
estabelecem categorias de adscrição para se relacionarem, identificarem-se e
diferenciarem-se de outras agrupações. Este tipo de organização também plasma sua
marca identitária e defensiva dentro da cotidianidade carcerária, através de pinturas ou
textos, compartilhando insígnias individuais e ou coletivas (um tipo de adaga, uma
estrela, uma âncora, etc.), a maneira de sinais ou de marcas territoriais de ‘tribos’ que
tratam de manter uma identidade comum para protegerem-se e sentirem-se mais
poderosas. Neste sentido, em múltiplos motivos, conjugam-se imagens com lendas,
recolhendo as aspirações de uma comunidade que intenta construir um sistema de
hierarquias, lealdades e reconhecimento inter e intra-quadrilhas. Entre vários motivos,
podemos destacar:
“Mariuuana”
“Dont walk here”
“los capo de Cuar Sanca”
Dibujo de estrella de cinco puntas “Death”
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Dibujo de daga
Dibujo de cruz de malta
“Ron pa todo el mundo y mariguana y perico y bazuco viva la droga”
Foto 06: Múltiples motivos conjugan imágenes con leyendas recogiendo las aspiraciones de una
comunidad que intenta construir un sistema de jerarquías, lealtades y reconocimiento inter e intra-
pandillas (Fotografía: Ezequiel Korin)
Em outros casos, nestes espaços, também tinha lugar a objetivação do amor platônico
ou a atração para com as mulheres, descritas ou desenhadas de acordo com sua atração
sexual particular, usualmente dirigida desde uma perspectiva heterossexual e
androcêntrica. Assim, em várias das celas do Quartel San Carlos existem desenhos de
exuberantes mulheres nuas e, inclusive, com a intenção de reproduzir a corporalidade
feminina. Em um dos desenhos, apresenta-se uma perfuração na área da vagina. Muitos
dos desenhos estão acompanhados de frases carregadas de erotismo e de fantasia como
40
a do ‘corpo de delito’, que está localizada justo ao lado do desenho de uma escultural
mulher nua. Outros estão carregados de contraditórios sentimentos, característicos da
maneira como a sociedade moderna ocidental se aproxima da sexualidade: entre o
desejo e a culpa, a bondade e a maldade, a virtude e o pecado e, nestes casos, temos
encontrado o corpo nu associado com a frase “Satán” ou “a maldade”.
Foto 07: En los espacios destinados a los reos comunes, generalmente áreas de confinamiento reducido
y aislamiento, es donde se concentran mayormente las manifestaciones eróticas (Fotografías: Ezequiel
Korin y Rodrigo Navarrete)
No caso das celas cujos motivos expressam amor para com a família e com as alianças
existem muito pouco desenhos e muitos escritos. Revelam arrependimento, remorso
moral pela falta cometida, palavras de justificação/desculpa e, em muitos casos, poemas
de amor que evocam eventos amorosos passados que vão pareados com profundo
sentimento de desesperança ou, pelo contrário, sentimentos entremeados de tristeza, de
ilusão pelo possível e ansiado reencontro com os familiares e com os amigos. É a
esperança e, por sua vez, a representação do retorno a vida cotidiana, expressada em
valores e emoções como a liberdade e o afeto.
Foto 08: Escritos que revelan sentimientos entremezclados de tristeza e ilusión por el posible y anhelado
reencuentro con los familiares y amigos. Es la esperanza y a la vez la representación del retorno a la
vida cotidiana expresada en valores y emociones como la libertad y el afecto. (Fotografía: IPC 2000, p.
39)
41
Entre estas manifestações parietais, destacam-se:
- desenho de coração dividido pela metade. Em cada uma dos lados diz “La mitad para
la pure – para mi familia”
- desenho de coração Zulay y Oscar”
- desenho de mulher i“La belleza de la mujer y su cuerpo y estilo es la belleza del
mundo. Dibujado con amor a las mujeres”
-“Amor de madre” (desenho de mulher nua e de costas) “Cuerpo del Delito”
- desenho de mulher “La mujer” “Modelo erotica”
- desenho de coração com adaga atravessada “Amor y paz la ley del amor”
“Yo no tengo miedo, no quiero el terror. Dios es amor, en toda la creación no hay
nada que teme. Yo tengo fe, quiero sentir fe”.
“Virgen Reyna del Oriente del Valle Patrona de la Armada Cunplace 1981 La Patrulla
de los Caballeros del Mar”
“En el año 1955 se realiza el encuentro de la virgen del Valle y la virgen de (ilegible)
en el puerto de la Guaira a bordo del destruto (¿?) ARV Nueva Esparta (dell) buque
insignia de la armada de Venezuela Esta es la primera vez que la virgen abordan una
unidad de la marina de guerra. Escrito por el PN Sierra Guevara”
- desenho de virgem, a lápis, e datado de 91 e assinado “Los 7 poderes”
42
Outro, dentre os elementos evasivos comuns no imaginário destas representações
parietais, corresponde ao humor, como sublimação das precárias condições de vida do
presidiário. O humor quer seja em termos de ironia ou de subversão da ordem lógica das
condições de existência, permite articular-se, de maneira lúdica, com a realidade e
transforma-la, em nível simbólico, na busca de uma saída imaginária. Em muitos dos
grafites e pinturas registrados no Quartel, evidencia-se uma alta dose de humor –
usualmente denominado de humor negro – o qual faz uso das experiências traumáticas
como recurso para burlar-las e ironizar sobre si mesmo. Supomos precisamente que,
dentro do contexto carcerário, estas mensagens ajudariam os reclusos a neutralizarem
uma série de circunstâncias que, de outra maneira, seriam muito destrutivas. Como polo
oposto a estas mensagens, a desesperança forma parte do discurso, expressado em
outras manifestações que refletem sentimentos aflorados desde a psicologia mais
profunda do indivíduo em sua impotência e incapacidade de solucionar sua situação
imediata. Ej. “Favor cerrar la puerta después de entrar. Pabellón 04”
“Aquí también yo pasé mis ultimos dias como militar tan solo contando 10 lindos dias
para hirme de baja porque mas vale la moral de delincuente que la de un millón de
sapos porque no hay bala que mate la verdad cuando defiende la razón. No quiero lujo
en nada pero tampoco indecencia. La vida es corta no se cuando la perdere. Un dia sin
luz es irreparable”. “Artista plastico patrocinado por matel” (disenho do sol)
Foto 10: En muchos de los graffiti y pinturas registrados en el Cuartel se evidencia una alta dosis de
humor –usualmente el denominado humor negro-, el cual hace uso de las experiencias traumáticas como
recurso para burlarlas e ironizar sobre si mismo. (Fotografías: IPC 2000, p. 40 y Ana María López)
43
competência profissional. Igualmente, as pinturas murais que representam campos,
espaços abertos e praias – e não cidades aglomeradas e fechadas – não só vinculam-se
com a relação simbólica moderna entre natureza e liberdade, senão com a possível
proveniência de alguns destes reclusos de áreas rurais ou do interior do país, assim
como também, com uma visão estética do paisagismo como arte.
Foto 11: El valor emancipatorio de estas representaciones simbólicas va más allá de las paredes del
recinto y comunica al presidiario con el mundo externo y con sus propios referentes de libertad y escape.
(Fotografías: Rodrigo Navarrete)
44
Foto 12: Calendarios donde es llevada la cuenta de los días transcurridos o que especifican día en que
se cumplirá el final de la condena. (Fotografía: Ezequiel Korin e IPC 2000, p. 35)
Para uma visão mais integrativa da interpretação histórica – o estudo da cultura material
e a cultura política contemporânea
A implementação de uma estratégia arqueológica de recuperação sistemática da
informação histórico-cultural e arquitetônica de uma edificação nuclear para a história
político-social da nação e do contexto urbano caraquenho, tal como é o Quartel de San
Carlos, redundaria em uma compreensão mais integral do patrimônio histórico nacional
e na definição de estratégias de valorização mais de acordo com as condições
estruturais, históricas e simbólicas do bem patrimonial imóvel.
AGRADECIMENTOS
45
assim como, ao comunicador social Ezequiel Korin pelo trabalho fotográfico durante o
processo de relevo de informação.
BIBLIOGRAFIA
Instituto del Patrimonio Cultural (2000) La Cultura Libera al San Carlos. Concurso
Nacional de Ideas. La Transformación del Cuartel San Carlos en Centro Nacional de
las Artes. IPC, Caracas.
García Ponce, G. (1968) El Túnel del San Carlos. Caracas, Ediciones La Muralla, 1968.
González, D. (1998) Estudio histórico patrimonial: Cuartel San Carlos, Parroquia San
José, Caracas. Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas.
46
Navarrete, R. (2005) “¡El Pasado Está en la Calle!. Usos políticos y simbólicos del
pasado en la Venezuela de hoy”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales.
Universidad Central de Venezuela, Caracas: 2-2005 (en prensa).
Silva Tellez, A. (1987) “Sobre el Graffiti. Una Ciudad Imaginada. Graffiti, expresión
urbana”. Boletín Cultural y Bibliográfico 12(xxxiv) Universidad Nacional de Colombia,
Bogotá: 157-161.
Silva Tellez, A. ( s/f) “La ciudad como comunicación. Elaboración de una teoría sobre
el graffiti en las ciudades contemporáneas, con especial atención a ciudades
colombianas y latinoamericanas, y la evolución de sus argumentos hasta la formulación
de una tesis integral sobre la ciudad intercomunicada por territorios urbanos. Dia-logos,
s/e, Colombia.
47
Anexo 01. PRÉ-INVENTÁRIO DE GRAFITE
Unidade IV: Cela 01 – corredor interno com arcos (pátio W)
Suporte Localização Quantidade Descrição Motivo
A Teto 18 Todos os 18 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
B Parede Norte 67 Todos os 67 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
C Parede Sul 65 Todos os 65 motivos devem ser mantidos
no original, como apresentados pelos
autores.
F Dintel da Todos os 04 motivos devem ser mantidos
porta (direita no original, como apresentados pelos
do marco) autores.
F Dintel da 01 Ilegível (1)
porta (teto
do marco)
F Dintel da 01 “23”
porta
(esquerda do
marco)
48
“México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão
governamental e o genocídio
Patricia Fournier e Jorge Martínez Herrera
49
Assim, ficou conformada a chamada Praça das Três Culturas, no núcleo do conjunto
arquitetônico, onde se integraram as raízes indígenas com os símbolos da conquista
espanhola e com os do México moderno (figura 1). Em 2 de outubro de 1968, a dez dias
da inauguração dos XIX Jogos Olímpicos, a primeira olimpíada celebrada na
Latinoamérica, esta praça seria o cenário do espantoso e repugnante morticínio de
estudantes (Labastida 1998), por parte do aparelho repressivo do Estado. De um
genocídio que, por meio do assassinato, cobrou mais vidas do que o terremoto de 1985,
quando as forças da natureza provocaram o desmoronamento de vários dos edifícios da
unidade habitacional de Tlatelolco.
Figura 1. Panorâmica da Praça das Três Culturas mostrando, em primeiro plano, as estruturas da
cidade pré-colombiana e o templo de Santiago. Ao fundo, o edifício ‘Chihuahua’ da unidade
habitacional de Tlatelolco (foto de Jorge Martínez Herrera).
Pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos3
A história moderna do México, desde que se instaurara um regime presumivelmente
democrático, na década dos anos 1920 do século passado, tem se tingido continuamente
com a cor do sangue de operários, de trabalhadores, de opositores ao governo, de
camponeses, de indígenas, de integrantes de partidos políticos de oposição e de
estudantes (Labastida 1998).
No transcorrer o século XX, por mais de sete décadas, diferente do ocorrido em muitas
nações ibero-americanas, um só partido político (o ‘PRI’, Partido Revolucionário
Institucional) manteve em suas mãos as rédeas do México, garantindo sua vitória nos
3
Frase ainda vigente. Refere-se a jugo estadunidense sobre o México e que foi alcunhada desde o século
XIX, posteriormente a guerra México-Estados Unidos.
50
processos eleitorais mediante toda a classe de mecanismos ilícitos e nada transparentes
(Reding 1995; Story 1986). Esta ditadura partidária sustentou-se, em grande medida, no
controle das principais organizações operárias e camponesas do país, na infiltração de
agentes governamentais nas organizações estudantis, assim como, em um intrincado
manejo setores produtivos e das arenas políticas em benefício de dinastias que
monopolizaram o poder e a riqueza. Toda a informação de acesso público, por tais
circunstâncias, passava pela peneira oficial, ficando os meios informativos a mercê do
autoritarismo e da censura ou do bem comprado silêncio (Monsiváis 2001; Reding
1995). Por conseqüência, os eventos da história mexicana ficaram pré-estabelecidos.
Em tal situação, a cada mudança administrativa sexenal, o grande vizinho do norte, os
Estados Unidos da América, pouco tinha que preocupar-se com estabilidade sócio-
política e com frear ameaça comunista em sua fronteira sul. A partir da Guerra Fria e da
caça aos “vermelhos”, as instâncias repressivas governamentais deram calorosas bem-
vindas aos assessores militares e agentes da CIA. Os informes e as atividades, tanto do
FBI como da CIA, possibilitavam – o talvez ainda possibilitem – manter tanto o
equilíbrio do país quanto a segurança das inversões estadunidenses, capitalizando em
cima da pobreza da maioria dos mexicanos.
Sob o lema “tudo é possível na paz”, chegaria, desde a Grécia, a tocha que iluminaria o
flamante estádio remodelado, da Universidade Autônoma do México (rebatizado como
Estádio Olímpico), na magna inauguração em 12 de outubro de 1968. O êxito das
olimpíadas devia garantir, a qualquer custo, que a ditadura partidária obteria o
reconhecimento internacional pela manutenção, durante décadas, da estabilidade
política e uma imagem de progresso econômico sob o manto (‘cobijo’4) do
4
Manto curto, de uso comum no México.
51
imperialismo norte-americano (Paz 1970). Não obstante, para além da demagogia
governamental, a realidade era outra. Apesar da imagem de bonança e de abundância, o
México era, naquele então, “um país com vinte milhões de famintos e dez milhões de
analfabetos, um país em que só uma camarilha que está no poder impõe sua verdade e
sua lei” (Ramírez 1998a:218[1969a]).
52
reuniões do Instituto Politécnico Nacional (IPN) e da Universidade Nacional Autônoma
do México (UNAM) (Menéndez Rodríguez 1968a).
Nos inícios de agosto, constitui-se o Congresso Nacional da Greve (CNG), formado por
estudantes e professores da UNAM, do IPN, bem como de múltiplas escolas e
universidades, tanto privadas como do governo, com sede na capital e em vários estados
do país, que, em seu conjunto, interromperam suas atividades docentes (Menéndez
Rodríguez 1968a; Ramírez 1998b:81 [1969]). Para o 04 de agosto, o movimento
estudantil já havia elaborado documento peticionário com os seguintes pontos
(Menéndez Rodríguez 1968b):
1. Liberdade aos presos políticos.
2. Anulação dos artigos do Código Penal Federal, nos quais se instituía o delito
de dissolução social, que constituía a base jurídica para que o governo
dissolvesse qualquer ato público no qual se congregara estudantes.5
3. Dissolução do corpo policial de choque, conhecido como granadeiros.
4. Destituição dos chefes policiais.
5. Indenizações aos familiares de todos os mortos e feridos desde o início do
conflito.
6. Esclarecimento das responsabilidades dos funcionários culpados dos fatos
sangrentos.
Aos clamores dos estudantes (figura 3) se uniram os dos trabalhadores das estradas de
ferro nacionais, dos professores, dos intelectuais, dos militantes políticos de esquerda e
de outros setores da sociedade, em um movimento de resistência a partir da indignação
moral, da consciência da sociedade civil, do combate anti-autoritário e da luta pelos
direitos humanos (Ponce 1998).
5
O delito de dissolução social foi incorporado do Código Penal Federal, em tempos de guerra, facultando
ao governo atuar contra aqueles que consideraram perigosos, com base em simples suspeitas. Por tal
situação, qualquer indivíduo de tendências de esquerda podia ser encarcerado sem maiores acatamentos
(Scherer e Monsiváis 2004:11).
53
Figura 3. Volante de protesto do movimento estudantil de 1968 (coleção particular).
6
O Estado culpava os estudantes de tentarem gerar o caos durante as olimpíadas, de tratar de derrocar o
estado burguês, de formar centros de resistência e de guerrilhas urbanas, de converter escolas em
quartéis e das ruas em campos de batalha, de acusar Díaz Ordaz de ser um títere do imperialismo, de
retomar ideal da revolução cubana, de lutar junto à classe operária pelo socialismo, de programar atos de
terrorismo para destruir instalações públicas da Cidade do México e de hastear bandeiras marxista-
leninistas para provocar o colapso do governo de Díaz Ordaz (Corona del Rosal 1995).
54
protesto. Fixou-se a data de 2 de outubro, às 17 horas, na Praça das Três Culturas, em
Tlatelolco (figura 4). Era uma extensa área para alojar um amplo contingente, onde já se
haviam efetuado imensas reuniões em 07 e 27 de setembro (Ramírez 1998a[1969a]).
Nem os organizadores e nem as milhares de pessoas que assistiriam o comício
suspeitavam que Tlatelolco estava por converter-se no cenário de um dos mais
aberrantes atos genocidas da história moderna do México.
Figura 4. Plano da zona Centro-Oeste da Cidade do México, Distrito Federal, com a localização dos
principais lugares mencionados no texto. 1) Palácio Nacional; 2) Tlatelolco: Praça das Três Culturas; 3)
3ª Delegacia do Ministério Público; 4) Serviço Médico Forense; 5) Cruz Verde (Hospital Rubén Leñero);
6) Cruz Vermelha; 7) Campo Marte; 8) Panteão Civil de Dolores; 9) Campo Militar nº 1.
7
Este e os subseqüentes subtítulos são lemas e consignas do movimento de 1968.
55
maneira, os arquivos das extintas Direção Geral de Investigações Políticas e Sociais,
assim como os da Direção Federal de Segurança (DFS), que constam de milhares de
caixas com milhões de documentos, ainda que mutilados, nos quais se registram ações
repressivas associadas ao massacre de Tlatelolco (Scherer e Monsiváis 2004). Ao fato
de que estas peças que conformam um intrincado quebra-cabeças começam a unir-se,
vem sendo reconstruída a história da matança de Tlatelolco. Com essas bases e fontes
adicionais apresentamos uma versão canônica, onde se incorporam os fatos essenciais.
A demonstração foi programada originalmente para marchar desde a Praça das Três
Culturas8 até o local de umas das principais reuniões do IPN, relativamente perto. Os
oradores do CNG haviam eleito o balcão do terceiro piso do edifício “Chihuahua”, da
unidade de habitacional Tlatelolco (Figura 5), por sua altura e localização privilegiada,
frente a grande explanada. Microfone a mão, fizeram saber aos assistentes que se
cancelava a marcha por temor às ações de agitadores que levariam a repressão dos
manifestantes. Prosseguiram, expondo a situação política e tinham a intenção, ademais,
de relatar sobre a solidariedade internacional que vinha recebendo o movimento e os
avanços das brigadas informativas, entre outros aspectos (Álvarez Garín 2002:85
[1998]).
Figura 5. Panorâmica da Praça das Três Culturas, desde o edifício “Chihuahua”, mostrando, em
primeiro plano, as estruturas pré-colombianas da cidade de Tlatelolco e o templo de Santiago, parte do
edifício da Secretaria de Relações, à esquerda. No centro, a explanada da praça com o monumento
comemorativo aos caídos em 02 de outubro de 1968. Ao fundo, o edifício do ISSTE (foto de Jorge
Martínez Herrera).
Pelas 17h30min horas do dia 2 de outubro de 1968, uma multidão, que chegou a ser
calculada ao redor de 10.000 pessoas (Gil Olmos 2001b:18), cobria por completo o
amplo espaço. De pé ou sentados no solo, congregaram-se pacificamente homens,
mulheres, crianças, velhos, estudantes, professores, trabalhadores, jornalistas, uma
8
“A praça ... é um retângulo de laje elevado de dois ou três metros sobre o nível geral do piso. Está
rodeada pelas ruínas de Tlatelolco, ao poente; pela igreja de Santiago e, atrás delas, o edifício da
Secretaria de Relações Exteriores, pelo sul; pelo edifício da Escola Vocacional nº 7, do IPN e por alguns
edifícios de habitação da unidade, no norte; pelo edifício Chihuahua, no Oriente. Seus acessos principais
são dois corredores estreitos e uma escada central de 25 a 30 metros de largura. Somente pelo lado norte
o desnível é menor e pode-se sair facilmente” (Álvarez Garín 2002:86).
56
delegação dos trabalhadores ferroviários que apoiava o movimento estudantil (Mendoza
Gaytán 2004), gente comum como “vendedores ambulantes, empregadas domésticas
com os filhos nos braços, habitantes da Unidade, transeuntes que se detiveram a
curiosar, os habituais espectadores e muitas pessoas” (Poniatowska 1969).
Em torno das 18h10min horas, um helicóptero lançou bengalas como sinal de início da
operação por parte de franco-atiradores do Estado Maior, os quais não portavam
uniformes e se encontravam localizados em vários edifícios, incluindo o “Chihuahua”.
Também estavam no teto abobadado da igreja colonial (Figura 6). Dispararam
indiscriminadamente contra civis e militares. Feriram o general que comandava os
efetivos quando, com um megafone portátil, exortava aos assistentes do comício que se
dispersassem (Álvarez Garín 2002:86 [1998]; Montemayor 1999:46). Os franco-
atiradores alimentaram o desconcerto com o objetivo de desatar uma escalada de
violência no exército que repelia a agressão, assumida como responsabilidade de
estudantes radicais. Os tanques ligeiros do Esquadrão Blindado avançaram sobre a
praça esvaziando cargas de metralhadoras contra o contingente e na direção do edifício
“Chihuahua”. Intervieram, ademais, o Batalhão de Fuzileiros Paraquedistas e o Batalhão
de Guardas Presidenciais (Montemayor 1999:48), entre outros. Entre fogos cruzados, os
civis fugiram apavorados para a igreja, transformada em paredão, ou bem, tratando de
dirigirem-se para a saída lógica, localizada em um corredor entre a praça e o edifício
“Chihuahua” (Álvarez Gárin 2002:86 [1998]), para serem interceptados por soldados
que os atacavam com baionetas caladas, transpassando-os, crivando-os de baionetaços.
Eram homens, mulheres, anciãos, crianças e, inclusive, mulheres grávidas (García
Hernández 1998; O’Donell 2003). Caiam feridos em qualquer parte, sangrando, sem
que ninguém lhes prestasse ajuda (Rodríguez 2002) ou desfaleciam sem vida. Os
disparos alcançaram, inclusive, residentes de alguns apartamentos. Em um lapso de
escassos dez minutos, a praça converteu-se em uma ratoeira e o edifício “Chihuahua” na
armadilha. (Gil Olmos 2001b: 18).
57
Figura 6. Localização dos franco-atiradores em vários imóveis circundantes à Praça das Três Culturas e
direcionamento dos disparos. 1) Praça das Três Culturas; 2) Edifício “Chihuahua”; 3) Igreja de
Santiago; 4) Escola do IPN; 5) Edifício da Secretaria de Relações Exteriores.
Durante horas, o Batalhão Olímpia entrou à força nos apartamentos dos edifícios, em
particular do “Chihuahua”, onde muitos estudantes se haviam refugiado nos terraços ou
encontravam acobertamento com vizinhos. Foram detidos, golpeados, forçados a se
despojarem de suas roupas, ficando apenas em trajes menores (Álvarez Garín 2002: 88
[1998]; Gil Olmos 2001a:12-13). Até pode ser confirmado, grande parte dos jovens que
ficaram detidos extrajudicialmente foram transladados para instalações do exército
(Almazán 2002b, 2002c; Scherer e Monsiváis 2004:25).
9
“O Batalhão Olímpia havia sido incorporado, em fevereiro de 1968, com a missão de custodiar as
instalações e exercer serviços de ordem nas futuras Olimpíadas. Dependia diretamente, em linha de
comando, do Estado Maior Presidencial e, por tanto, da Presidência da República. Havia sido formado por
contingente oriundo de tropas de todo o país e tinha um número de suboficiais mais alto do que o normal.
...em 2 de outubro havia sido reforçado por duas seções de cavalaria” (Taibo 1998).
58
constava que a morte tinha sido por causas naturais, condição para que lhes fosse
entregue os corpos (Ramos Pérez 2002; Taibo 1998).
Figura 7. Jovens massacrados na Praça das Três Culturas (Álvarez Garin 2002:35 [1998]).
Muitos dos ativistas que sobreviveram à matança na Praça das Três Culturas foram
perseguidos. Houve inúmeros seqüestros. Centenas de pessoas ficaram isoladas e
detidas sem ordem de prisão, atrás das grades, em instalações militares. Posteriormente,
a maioria foi recolhida em penitenciárias. As vítimas foram objeto de todo o tipo de
atrocidades e torturas, golpes e pressões morais, para obrigá-las a prestar declarações
que coincidiriam com a história oficial dos fatos. Provas em contrário foram forjadas
(Álvarez Garin 2002:112-113 [1998]; Correa 2001:31) e, inclusive, executadas
sumariamente.
59
Os agentes do governo estadunidense acompanharam com suma atenção todas as fases
do movimento estudantil, prévias ao massacre. Primeiro, com a convicção de que eram
verazes os informes do governo do México acerca de que grupos comunistas
estrangeiros assessoravam os mexicanos ‘subversivos’. Depois, passado o 02 de
outubro, com a certeza de que nunca houve essa classe de incitadores nem conjura
comunista alguma para ser refreada. Os espiões deixaram assentado em suas
comunicações confidenciais, enviados aos seus superiores de Washington, que o
ocorrido em Tlatelolco era um indício da torpeza do governo Díaz Ordaz e de que os
dirigentes da milícia não acataram corretamente as ordens. Agregaram aos informes,
sem nenhum questionamento, que os estudantes acusados como franco-atiradores
haviam sido os responsáveis pela resposta do exército (Doyle 2003).
Figura 8. Manifestação de outubro de 1968 encabeçada pelas mães dos desaparecidos (Scherer e
Monsiváis 2002:148).
60
prisão, sem julgamento algum, até que Echeverría decretou, desde a presidência, uma
anistia, em 1971 (Taibo 1998; Zarco 1998).
Por meados de 1970, um ex-agente da CIA (Agee 1975) relataria que o governo
mexicano destruiu o movimento de protesto e, provavelmente, várias centenas de vidas.
O sucedido na Praça das Três Culturas estava ocorrendo em todo o mundo, entre as
pessoas que tratavam de mudar o sistema.
Por conseqüência, a resposta das forças públicas ‘da ordem’ era permissível e as ações
dos ‘agitadores’ estavam sujeitas a sanções por serem ilícitas. A mesma construção de
uma narrativa histórica oficial, o roubo da história, constituiu um ato violento. Nos atos
repressivos e sanguinários do governo, as recordações são selecionadas e controladas
para extirpar tudo o que se relacione com a indignação moral. Por acréscimo, elimina-se
da memória histórica. Qualquer protesto é etiquetado como subversivo. Manipula-se a
contagem dos cadáveres até volatilizá-los. A amnésia forçada constitui um instrumento
coercitivo do Estado (Monsiváis 2001: 21-22).
10
Para o Estado, a finalidade do movimento estudantil era “derrubar o governo constituído na República
Mexicana e substitui-lo por um regime comunista de operário, estudantes e camponeses” (Castillo et all.
2002).
61
nacionais, étnicos, raciais ou religiosos; de assassinar membros destes grupos ou causar-
lhes sérios danos físicos e mentais e, inclusive, submeter o grupo a condições de
existência que acarretem sua destruição física, total ou parcial (United Nations 1951
[UN]).
Além do mais, é preciso considerar que os desaparecidos não estão mortos. Estão
desaparecidos:
...considera-se desaparição forçada, a privação da liberdade a uma
ou mais pessoas, qualquer que seja a sua forma, cometida por
agentes do Estado ou por pessoas ou por grupos de pessoas que
atuem com a autorização, o apoio e a aquiescência do Estado,
seguidas da falta de informação ou da negação em reconhecer dita
privação da liberdade ou de informar sobre o paradeiro da pessoa,
com o qual se impede o exercício dos recursos legais e das
garantias processuais pertinentes (Comissão Inter-americana de
Direitos Humanos 1995 [CIDH]).
11
Comitê Pró Defesa de Presos, de Perseguidos, de Desaparecidos e de Exilados Políticos. É uma das
primeiras organizações de direitos humanos que se constituiu no México (Anistia Internacional 2002).
62
Não decidiremos que estão mortos. Isto simplesmente não
se decide. Eles estão desaparecidos. É precisamente o que
o mau governo espera de nós. Que assumamos o pior, sem
dizer e nem assumir responsabilidades. Que esqueçamos.
Que sintamos que este é um assunto do passado, em de
vez um, dilacerante, de nosso presente (HIJOS-MÉXICO
2005).
Com isto, é factível pensar que não só deve-se determinar o paradeiro daqueles que
sucumbiram ante os balaços da Praça das Três Culturas, senão que, também daqueles
indivíduos que tenham ficado sob a categoria de desaparecidos. Dentre estes, um
número indeterminado foi assassinado, daí a pertinência de delinear um plano de
investigação forense que chegue a contribuir para com o esclarecimento dos fatos.
Existem testemunhos sobre o que, paralelamente, ocorria nos hospitais, aonde chegaram
bastante feridos, inclusive de morte. Segundo relata um fotógrafo, o qual “recorda muito
a um jovem ... atirado em um dos corredores. Um balaço havia rebentado o estômago.
Sou da Universidade de Sinaloa, diz o jovem ao fotógrafo. Queres que avise a alguém?
Não, vão se enfurecer. Em um momento, quando regressei para tirar outras fotos, o
jovem seguia estendido no piso, já morto” (Almazán 2002c). A brutalidade com que
foram massacradas centenas de pessoas ficou evidenciada nos testemunhos dos médicos
que atendiam aos feridos nos nosocômios. Recordam o ocorrido no Hospital Leñero da
Cruz Verde que, “... era um rastro, chegavam ensangüentados, sem mãos, baleados”
(Aguirre 2002).
Ajudantes no SEMEFO foram testemunhas da matança cometida. Afirmam sobre os
corpos. “Têm algo em comum: mostram o uso adestrado das baionetas e dos disparos de
armas de fogo com balas expansivas. Sabiam onde atacar. As feridas não estão nos
braços, nas pernas ou em um pé. Estão no coração e nos órgãos vitais”. Inclusive, para
eles, era impressionante ver que “os cadáveres tinham destroçado o tórax”. Mostram o
“crânio desfeito por instrumento cortante-contundente”. É evidente um “traumatismo
brutal”. Observa-se em um corpo uma “ferida por projétil expansivo na cabeça”. As
“feridas apontam para o coração”. Há “grande fluxo de sangue sobre o
abdômen”...”Eram balas do exército. O soldado na batalha tem um propósito: destruir,
matar...” (Rodríguez Reyna 2002).
63
A crueldade repressiva manifestou-se nos nosocômios ante a impotência dos médicos e
das enfermeiras que tratavam inutilmente de cumprir com seu dever. Pois “os
granadeiros e os [policiais] secretos vinham e nos tiravam os jovens dos quirófanos,
onde os estávamos operando, e os levavam. Onde foram estes jovens e se morreram,
ninguém o sabe” (Taibo 1998). Diz-se que na 3ª Delegacia do Ministério Público havia
mais de 40 cadáveres de jovens entre os 18 e 20 anos (Canal Seis de Julho 2002) cujo
paradeiro se desconhece. Na maioria destes casos, mesmo pelo que apontaram os
vizinhos do bairro que, comentaram que durante os dias posteriores da matança
“cheirava a carne queimada, pois, diziam, estavam queimando os jovens em fornos”
(Almazán 2002b). Muitos dos corpos que se encontravam no SEMEFO, em 03 de
outubro, despojados de suas roupas e de identificações12, foram desaparecidos pelo
exército, pois:
Entravam militares. Vinha falar com o diretor. Baixavam
os militares, subiam... As instalações estavam como que
tomadas por militares. O controle tinham eles. Metiam-se
no anfiteatro, estavam ali. Assomavam-se... Na tarde,
chegaram veículos do Exército a recolher os corpos que
não tinham identificação. A ordem foi que os levassem ...
(Rodrigo Reyna 2002).
Surge a pergunta: para onde transladaram os cadáveres e o que se fez com eles? Para
tanto há que se levar em conta uma série de testemunhos que falam da possibilidade de
que alguns corpos foram cremados e outros enterrados pelo exército, em instalações
militares da Cidade do México, como o Campo Marte, o Campo Militar nº 1, no
Panteão Civil de Dolores, próximo ao último campo citado. Também nas faldas de um
vulcão extinto que se encontra relativamente próximo da Cidade do México. Cabe
destacar que, antes do massacre de 02 de outubro e em meio à repressão que havia
desatado o governo contra os estudantes “a um correspondente estrangeiro que
perguntou se já se haviam identificado alguns dos estudantes que se diz que morreram o
comitê [de greve] lhe disse que, de um lado ‘ao governo não lhe convém apresentar os
corpos’, de outro, ‘ temos notícias de que os corpos foram cremados no Campo Marte”
(Ramírez 1998a:202 [1969a]).
Adicionalmente, entre os ativistas da época, soube-se que depois dos sangrentos eventos
em Tlatelolco, vários corpos foram transladados em veículos militares e em carros de
combate, para o Campo Militar número 1, onde foram incinerados. Neste local, da
mesma forma, inclusive alguns indivíduos feridos, ainda vivos, pois “desses veículos
saiam, todavia, lamentos e assim os queimaram ... sobre eles agiram nossos soldados
mexicanos” (Alcántara 2002a). Acrescentado a estes terríveis testemunhos, causa
suspeita que os altos mandatários do exército sigam pretendendo que não houve
cremação de cadáveres em instalações da milícia e, menos ainda, em tal Campo:
Diziam que se utilizou, para incinerar, cinco mil
cadáveres. Ponho-me a pensar que, para cremar um
cadáver se demora três horas e, em primeiro lugar, aí não
existe incineradores. Em segundo lugar, e, o mais
importante, onde estão estas cinco mil mães. Porque
diziam que houve esse número de mortos em Tlatelolco,
12
Em um informe do diretor do SEMEFO, com data de 17 de outubro de 1968, registra-se que somente
houve “26 vítimas reconhecidas” (Cuellar 2003).
64
..., que lutariam como as Mães da Praça de Maio, na
Argentina. Se alguém é culpado, que se o acuse (Garduño
y Pérez 2001).
Por outra parte, o já citado Luiz Echeverría Álvarez, titular da Secretaria de Governo
em 1968, e que, como possa parecer, teve uma participação ativa na matança de
Tlatelolco, já como presidente do México, orquestrou outra operação. Em 10 de junho
de 1971, uma manifestação estudantil pacífica foi reprimida pelos “Falcões”, grupo
paramilitar sob as ordens diretas do governo, com um saldo extra oficial de até 125
mortos (Ramírez Cuevas 2003). Desta quinta, do Corpus Christi de 1971, há um
testemunho de que o presidente fez circular instruções telefônicas acerca do que devia
fazer-se com os aprisionados e com os mortos. Echeverría, talvez com base em suas
experiências em outubro de 1968, foi enfático:
Feridos? Leve-os ao Campo Militar. Não permitam fotografias
... Ferido um dos nossos? Morto? Ao Campo Militar. Existem
mais enfrentamentos, muitos mortos? Todos para o Campo
Militar. Para a Cruz Verde? Não, não. Não permitam fotos.
“Queime-os” ... Queimem os mortos. Que não reste ninguém.
Não permitam fotografias (Scherer e Monsiváis 2004:52-53).
Ainda quando a referência não se associa de maneira direta com o massacre de
Tlatelolco, indicaria que a cremação de corpos dos opositores ao sistema era uma
prática utilizada e conhecida pelos altos mandatários do governo. Devido ao fato de ter-
se feito desaparecer os cadáveres com a destruição dos restos ósseos pela ação do fogo,
a investigação forense enfrentaria obstáculos intransponíveis.
13
Assim como em outros dos fatos ocorridos em 1968, as fontes governamentais são contraditórias. Há o
caso de um general que nega categoricamente que no Campo Militar número 1 houvera torturas e que lá
desapareceram os estudantes capturados em 2 de outubro de 1968. Presumivelmente, só ficaram detidos
de forma transitória e, deste local, simplesmente conduzia-se os estudantes as autoridades civis, cujas
instalações careciam de espaço adequado (Garduño e Pérez 2001). Um testemunho adicional, de alguém
que se diz ser irmão de um soldado, relatou que nesse campo militar há milhares de cadáveres em fossas
clandestinas.
65
Dentre os ativistas do CNG que ficaram presos até janeiro de 1969, no Campo Militar
número 1, para depois serem liberados, um deles nunca mais foi visto. Trata-se de um
caso de desaparecimento forçado, como conseqüência direta da repressão estudantil de
1968 (Castillo e Méndez 2005).
Além disso, um afamado caricaturista mexicano, cuja obra se centra na sátira política,
declarou que foi seqüestrado nos inícios de 1969 (Sánchez González 2004) e esteve a
ponto de ser executado por agentes da DFP, os quais o confessaram que “em um local
do Nevado de Toluca havia umas árvores marcadas com cruzes, debaixo das quais
estavam enterrados alguns dos desaparecidos de 1968” (Aranda 2002).
Por conseqüência, com base nas fontes documentais e nos testemunhos, é altamente
provável que, ao menos no Campo Militar número 1, no Panteão Civil de Dolores e em
um ponto indeterminado do Nevado de Toluca, poderia ser factível recuperar restos
ósseos de alguns dos indivíduos que perderam a vida no massacre de Tlatelolco. Da
mesma maneira os restos de outros que ficaram detidos e foram executados tempos
depois.
66
quem tenha valor de suas próprias opiniões e sustenta que foram
centenas, que apresente alguma prova, ainda que não seja direta
e concludente. Poderia-nos bastar com o seguinte. Que nos faça
uma lista com os nomes. Poderá dizer como já se disse em
outras ocasiões, que se deseja ... fizeram-se desaparecer os
cadáveres, se ocultaram clan... sepultaram-se clandestinamente,
se incineraram, isso é fácil; não é fácil fazê-lo impunemente,
porém é fácil fazê-lo ... (Canal Seis de Julho 2002).
A partir deste momento, durante muitas décadas, essa foi a quantidade de mortos no
massacre. Foi predeterminada pelo governo, ainda que com inconsistências. Porém, os
sobreviventes e as testemunhas começaram a falar e a mencionar que haviam visto
muitos corpos no edifício “Chihuahua”, onde “... havia vários cadáveres empilhados, na
saída. Um soldado me disse que não continuasse dando voltas e, de relance, consegui
ver os cadáveres, um em cima do outro. Estavam seminus” (Gil Olmos 2001a). Um pai,
desesperado, tratava de localizar seu filho. Afirmou ter visto 121 vítimas sem vida
(Jardón 2003:38). Enquanto isto, no SEMEFO “... já começava a se juntar gente,
buscando seus familiares. Toda essa madrugada houve enormes filas de carros fúnebres.
Eu devo ter visto mais de 500 cadáveres, todos mortos por balaço” (Almazán 2002c).
Este cálculo se reforça com o que comentou um soldado com um dos estudantes
estrangeiros detidos no Campo Militar número 1, orgulhoso de que os militares haviam
matado “500 de vocês, comunistas” (Anonymous 1968). Entre os ativistas do CGG,
tem-se falado, recentemente, de 635 estudantes que foram assassinados na Praça das
Três Culturas (Alcántara 2002a), enquanto que Agee, detrator da CIA, recorda que na
Embaixada dos Estados Unidos no México o rumor era de que tinham sido crivadas 82
pessoas, podendo passar de uma centena ou mais de mil (Rocha 2002). A constante
ausência de denúncias, desde aquela época, foi o resultado de que o governo e os
envolvidos nos fatos têm mantido sob ameaças, as testemunhas, os sobreviventes, os
familiares e os amigos de todos aqueles que desapareceram, para garantir seu silêncio.
“... nos dias, semanas, meses e anos que se sucedeu a matança de Tlatelolco era
comum escutar as denúncias dos familiares das vítimas. ‘Além de nosso penar, nos
ameaçam com a morte’. Muitos ... cessaram na busca pela justiça, outros, organizados
ou não continuam nela” (Alcántara 2002a).
67
dos feridos (Jardón 2003: 38). Em 6 de outubro de 1968, integrantes do CNG
declararam que, até este momento, se sabia que 100 pessoas haviam perecido, ainda
quando se considerava que o saldo final dos mortos em Tlatelolco não tinha sido
fechado (Ramírez 1998b:410 [1969b]). No estrangeiro, os meios de comunicação
falavam de 130 estudantes e de até 325 mortos (Jardón 2004:40). Cálculo semelhante
fez um operador de câmera de acordo com o número de caminhões nos quais se
transportaram os corpos, uns 300, desde a Praça das Três Culturas, na madrugada de 3
de outubro (Caballero 2003). Além do mais, há que se levar em conta os documentos
desclassificados, dos serviços de inteligência norte-americana, entre os quais existe um
relatório confidencial onde se menciona que “... como é típico no México, as estatísticas
precisas com respeito ao número de mortos na batalha de 2 de outubro, não se pode
determinar. Os informes que se tem recebido alcançam até 350 mortos. O melhor
cálculo da embaixada é que esta cifra vai de 150 a 200” (Defense Intelligence Agency
1968:9).
De tal forma, a versão do governo fica claramente superada por outras fontes e
testemunhos disponíveis que indicam que, como resultado dos fatos violentos do 2 de
outubro, tal vez se perderam 500 vidas humanas. No saldo definitivo haveria, além
disso, que agregar um número indeterminado de pessoas que foram executadas extra
judicialmente no Campo Militar número 1, em datas posteriores. Também um número
em torno de 200 mortos que se reportou para fins de julho (Ménendez Rodríguez
1968a), dos quais se desconhece sua sorte, já que, ao que se parece, um número
indeterminado de cadáveres foram cremados. Ficaria, então, por elucidar qual foi o
destino de, talvez, cerca de 700 ou mais pessoas que pereceram em mãos do governo
nos fatos violentos que se iniciaram em julho de 1968.
Unidos venceremos!
Para além das demarcações do campo de ação das diferentes ciências forenses ou da
aplicação de heurísticas específicas, a concorrência de disciplinas no esclarecimento dos
fatos violentos que resultaram na morte de seres humanos está determinada pelos
sistemas jurídicos vigentes em cada país que, restringe, anulam ou promovem a
participação de especialistas nos estudos (Boddington et all. 1987; Hunter et all. 1996;
Joyce e Strover 1991; Rodríguez 1994; Sanford 2003; Skinner et all. 2003; Stewart
1979).
68
sustente a Arqueologia Forense como parte da estratégia de investigação da
Arqueologia Histórica, como ocorre em outros países (Cox 2001; Crist 2001).
Para realizar investigações desta classe seria necessário organizar um projeto acadêmico
e social de recuperação da memória histórica. Seria integrado por especialistas nos
diferentes campos a investigar, por sobreviventes e por familiares dos desaparecidos. Os
estudos se enfocariam em tratar de esclarecer os fatos de violência e suas causas,
analisando os antecedentes do movimento estudantil e suas fases, reconstruindo os
contextos históricos, políticos, sociais, econômicos e militares. Uma das metas seria a
identificação tanto dos atos quanto dos atores da violência e do terrorismo desde o
Estado: as vítimas da repressão como grupos e em nível individual, além da localização
dos mortos e dos desaparecidos (Echeverria 2004; United Nations [UN] 1991), para
assim, definir as bases que possibilitem ajuizar os responsáveis pelos crimes.
Com relação ao movimento estudantil de 1968, estas tarefas são extremo complexas. O
Estado destruiu ou, todavia, mantém oculta a documentação que deveria aportar provas
que sustentem os fatos, incluindo listas completas com os nomes daqueles que foram
vitimados. Isto porque os amigos e familiares das vítimas têm preferido calar ante as
ameaças do governo e continuam sem apresentar denúncias (Castillo 2004:7). Ainda
quando existem testemunhos acerca de alguns locais onde possivelmente se inumaram
corpos (Campo Militar número 1; Panteão Civil de Dolores e o Nevado de Toluca, ao
menos), até o presente, não se conseguiu realizar intervenções arqueológicas por serem
instalações do exército que estão sob o foro militar, de maneira que não tem sido
factível corroborar a presença de fossas clandestinas.
Este tipo de investigações poderia efetuar-se em dois sentidos. Por um lado, haveria que
recolher informação entre os funcionários governamentais que foram protagonistas ou
69
co-participantes dos fatos, desde a cúpula, dado que o presidente é o chefe supremo das
forças armadas e responsável pelas políticas seguidas dentro do país. Na mesma linha,
desde os mandos médios e baixos, passando por todas as autoridades federais, locais,
judiciais e militares, assim como, com os empregados e prestadores de serviço de saúde
nos casos muito específicos. Por outro lado, pode-se investigar os fatos desde baixo.
Baseando-se nos testemunhos dos sobreviventes, dos executores e daqueles que
estiveram envolvidos como indivíduos ou coletivamente nos atos de violência e
repressão ou que foram objeto de vexações, tratando de reconstruir os eventos que
ocorreram.
14
Equipe de Antropologia Forense da Escola Nacional de Antropologia e História (EAFENAH) que, em 1998
e 1999, elaborou uma metodologia quando participou no estudo de restos ósseos de desaparecidos na
República da Guatemala.
70
A cor do sangue jamais é esquecida
No México, o passado se inserta no presente, no imaginário coletivo e nas lutas sociais
ao tratar-se de eventos que ensangüentaram o país. Preserva-se e se reproduz a memória
dos fatos violentos dirigidos pelo governo para truncar ações reivindicatórias daqueles
que pugnam por aberturas políticas e libertárias. O Estado cala as vozes de protesto pela
via da força através da imposição do terror e do assassinato. Desde anos até o presente,
mantêm-se os privilégios de um regime corrupto e corruptor (Reding 1995). Apesar dos
clamores que exigem justiça e o castigo dos responsáveis por assassinatos políticos,
desaparecimentos forçados, torturas e genocídio, prevalece a impunidade dos
executores15. Vitimários que orquestraram massacres negociaram e executaram ordens
para matar inocentes, cujo único pecado foi externar sua opinião contrária a
governamental.
Uma exigência social é que devem ficar assinalados os responsáveis pelos atos
criminais e, como declararam os integrantes da organização ‘HIJOS-México’ (Filhos
pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio), a única reparação
possível para com aqueles que têm crescido rodeados pela ausência, rechaçando que a
morte tenha sido o fatídico destino dos desaparecidos (HIJOS-México 2005). Apesar da
cumplicidade do aparato da justiça mexicana, ainda se consiga esclarecer qual foi o
paradeiro dos seus seres queridos, desde o início da Guerra Suja16 de 1968 e, ao
transcorrer das décadas de 1970 e inícios dos anos 1980.
15
Conforme o foro de guerra que se estabelece na Constituição mexicana, o pessoal militar acusado de
delitos, não pode por-se facilmente a disposição do sistema de justiça civil, pois é de jurisdição dos
tribunais militares, onde os processos ficam superditados, em última instância, as ordens do poder
Executivo Federal, isto é, da presidência da República (Amnistia Internacional 2001).
16
A “guerra suja” no México abarcou, desde 1968 até os princípios dos anos 1980, o número dos
desaparecidos, tanto nos âmbitos urbanos quanto nos rurais e pode abranger, ao menos, em torno de
1500 pessoas (Castillo 2002).
71
assassinados ou desapareceram têm a intenção de exigir a constituição, por fim e em
aras de fazer justiça, de uma ‘comissão pela verdade’ sobre o 68 que, não seja uma farsa
governamental como a que se instaurou em 1993. É imperativo que se conheçam os
fatos, se ajuíze os responsáveis pelos crimes e se dê término a impunidade (Garrido
1998; Martínez Martínez 2004). No marco do sistema socio-político mexicano que, hoje
em dia, se auto proclama como transparente em suas ações, estará por definir-se a
validez jurídica de recuperar os restos daqueles que foram massacrados e de submeter a
processo tanto os genocidas quanto os torturadores. Não obstante, permanece a dúvida
ante a infinita possibilidade de que a verdade se siga ocultando para proteger, uma vez
mais, os criminosos de lesa humanidade.
Nossa proposta poderia contribuir para esclarecer os fatos, mesmo que ainda trata-se de
uma primeira aproximação ao problema. A construção de um modelo, tal como o que
temos proposto, deverá sustentar-se em evidências documentais e testemunhais que
poderão assentar as bases para desenvolver projetos específicos, caso chegarem a existir
as condições sócio-políticas no México. Seria indispensável, por conseqüência, dar
abertura a uma investigação científica, com uma perspectiva interdisciplinar, onde a
Arqueologia e a Antropologia forenses seriam medulares. Assim, seria factível aportar
evidências para satisfazer as demandas sociais por justiça que, devem fazer aqueles que
foram objetos de crimes de lesa humanidade no México, em particular, em função da
matança de 2 de outubro de 1968 e por suas seqüelas no país. Uma investigação
interdisciplinar desta natureza, unicamente, poderá estruturar-se através de organizações
não-governamentais, mesmo quando o Estado deveria designar como peritos,
especialistas de instituições acadêmicas, sem intimidá-los. Qualquer “comissão pela
verdade” que dependa do governo e das instâncias periciais chegará a resultados
enviesados e parcializados, tais como os que já têm se apresentado no passado.
Em definitivo, este tipo de investigação deve ser enfocada nas necessidades e demandas
da sociedade. Para mais além do interesse científico compenetrado no tema, de quem
coloca sob o microscópio o sujeito histórico que friamente se observa como uma
sepultura em seu contexto deposicional, como um indivíduo cujos restos ósseos se
estuda em laboratório e cujas partes convertem-se em amostras para análises
específicas. Quando falamos de análises sociais, a ciência dura, asséptica, desde o
pedestal, é totalmente inútil e estéril se não levar em conta o fator humano e as
demandas sociais de justiça para investigar os acontecimentos ocorridos em torno do
movimento estudantil de 1968. O fator social, ético e profissional, cobra importância
transcendental ao evidenciar que as razões da investigação recaem na existência de um
processo histórico, político e social que praticamente emudeceu um país durante quase
40 anos. As implicações de 1968 têm uma marca profunda, é uma ferida aberta no povo
mexicano. O ocorrido em Tlatelolco tem marcado o devenir histórico do país. Portanto,
os especialistas envolvidos na investigação dos fatos, devem de reconhecer a função
social de seus labores e o compromisso que assumiram com os sobreviventes, familiares
dos desaparecidos e com o povo em geral.
72
ultrapassando o papel legal que determina o Estado, centrado na proteção, conservação,
difusão e investigação do patrimônio cultural.
Transitando pela Praça das Três Culturas, onde procedíamos para tomar fotografias que
se incluem neste estudo, observamos que três crianças, de não menos do que 12 anos,
detiveram-se em frente ao monumento comemorativo aos caídos em 2 de outubro, a
Estela de Tlatelolco (figura 9). Uma interpelava as outras com uma pergunta de simples
curiosidade: “Ouçam? Isto, o que é?”. A única mocinha do grupo, rápida e doutamente,
deu uma resposta clara e concisa que, obviamente, não aprendeu nas aulas de história
em sua escola, pois, não figura nos livros-texto: “É que aqui mataram muitos estudantes
que protestaram contra coisas más que o governo faz com a gente”.
17
Segundo uma pesquisa nacional telefônica, levantada pelo diário El Universal, em 2003, a matança de
Tlatelolco tem permanecido na memória coletiva. Na amostragem, 53% sabem do massacre de 2 de
outubro, 49% culpam o governo federal pela responsabilidade direta e 80% consideram que se requer
esclarecer os fatos, encontrar os culpados para fazer-se justiça e terminar com a impunidade. 54,2%
crêem ser improvável que se encontrem os responsáveis devido a que existem grupos poderosos que se
opõem a incompetência e a burocracia (Ordoñez 2003).
18
Retomamos de Augé (1995) o conceito de identidade relativa. É aquela que tem como referência
espacial, social ou moral a relação com, por exemplo, uma etnia, nação ou religião e, inclusive, com uma
coletividade ou com um grupo corporativo.
73
Figura 9 – Monumento aos caídos na Praça das Três Culturas, em 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco.
Erigido no 25º aniversário do massacre (foto de Jorge Martínez Herrera).
AGRADECIMENTOS
A Raúl Álvarez Garin e Luis Sosa, por suas assessorias e sugestões para levar a cabo
este estudo. Àqueles que compartiram suas vivências do 1968 conosco. A Raquel e La
Nacha, por estender pontes. Agradecimentos a eles e a elas.
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81
Arqueologia e Esquerda na Colômbia
Carl Henrik Langebaek
Introdução
Colômbia não tem sido um país de ditaduras. Pelo contrário, é mais conhecido por sua
tradição civilista, estranha a governos militares (Deas 1999). Isto não significa que não
tenha existido repressão e nem que os arqueólogos, de alguma maneira, sofreram algum
tipo de perseguição, especialmente, durante o governo conservador de Laureano Gómez
(1950/51-1953). Porém, o fato é que, o meio de comunicação acadêmico mais
conhecido do país, a Revista Colombiana de Antropologia, órgão de difusão do Instituto
Colombiana de Antropologia, foi inaugurado no governo militar e sob os auspícios do
“Excelentíssimo Senhor” Tenente-General Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957),
praticamente, o único ditador que teve a Colômbia durante o século XX. Seu regime
militar, populista e de consenso entre os partidos tradicionais, não se encarregou de
perseguir os arqueólogos. Portanto, não pode ser comparado com as ditaduras que, no
Cone Sul, reprimiram as universidades e, em muitas ocasiões, obrigaram ao exílio seus
protagonistas. Uma interessante peculiaridade adicional é que, em contraste com alguns
países da Latinoamérica, na Colômbia, não se desenvolveu uma arqueologia
explicitamente marxista. Sim, existiu uma sociologia, uma história e uma economia
marxistas. Inclusive, uma antropologia marxista, ainda que débil (Miranda 1984).
Portanto, se não se desenvolveu uma arqueologia marxista, é prudente não se buscar
causas na repressão política, senão que na própria forma como se desenvolveu a
disciplina.
82
que as características dessa cultura material refletiam “padrões mentais” (Schottelius
1940, 1946). Hoje em dia, múltiplas investigações – provavelmente a maior parte – são
demarcadas por este esquema (Santos e Otero 2003).
83
freqüência, este provinha da esquerda. Evidentemente, havia aspectos políticos no
trabalho da Arqueologia Histórico-Cultural que podiam provocar reações críticas por
parte de outros intelectuais, não necessariamente arqueólogos, porém, para aqueles cujo
passado era importante em termos políticos. Quiçá, um dos primeiros a fazê-lo, sobre
quem voltarei mais adiante, foi Antonio Garcia. Em 1937, escreveu Geografia
Econômica de Caldas, trabalho, no qual, declarou inútil o que haviam escrito os
arqueólogos sobre o passado pré-hispânico de Caldas. Garcia, então, referiu-se ao
‘moralismo cristão’ que, em sua opinião, se ocultava nos pronunciamentos que faziam
os profissionais, quando se referiam ao passado indígena. A partir de então, numerosos
intelectuais de esquerda distanciaram-se da proposta histórico-cultural. Iniciaram, por
sua conta, não só uma crítica da mesma, senão por várias tentativas de oferecer
reconstruções alternativas do passado.
O chamado de Torres não consistiu, sem dúvida, em uma romântica nostalgia pelo
legado indígena. Pelo contrário, criticou quem romantizara as civilizações pré-
hispânicas. O objetivo de seu livro consistiu em sacar o problema indígena do plano
84
contemplativo “da fronde literária puramente especulativa, do intelectualismo abstrato e
da simples nostalgia sentimental” (Torres 1975: 12). Neste sentido, tanto os
arqueólogos quanto aqueles que estudavam os indígenas contemporâneos eram
duramente criticados. Estes últimos concentravam-se em aspectos de raça. Quanto à
arqueologia, não duvidou de que podia considerar-se importante. Era indispensável para
estabelecer a verdade, isto é, o alto grau da civilização pré-hispânica, diferente das
tradições grega e latina. Porém, simultaneamente, acusou os arqueólogos de serem “os
que se maravilham ante os duzentos monumentos da civilização agustiniana; ante as
raízes já localizadas do Templo do Sol dos incas; ante as obras de arte dos quimbayas e
das marcas da cultura paeces em Tierradentro, (...) principalmente com o critério dos
colecionadores de antigüidades, dos empresários de museus que pensam na indústria do
turismo muito mais do que no destino dos indígenas que vegetam, todavia, em um
Estado indiferente para com eles. Um Estado que não aprecia sua vitalidade potencial
como força de progresso, senão, como sombra do passado que se extingue” (Torres
1975:13).
85
arqueólogos, se encontra em Bases para la economia contemporánea (1948) e em La
Crisis de la Universidad (1985). O primeiro é um intento de conciliar a doutrina
ortodoxa marxista, ainda que García não fosse um militante de partido, especialmente
em seus aspectos evolucionista e materialista. Porém, sem cair no “fetichismo
doutrinário” da União Soviética. Em sua opinião, a história da humanidade podia ser
dividida em fases que iam desde o coletivismo primitivo, até o socialismo planificado.
No entanto, dita classificação resultava apressada, se não levasse em conta fatores
“geoculturais”. Isto é, se não fizesse abstração dos aspectos puramente econômicos, dos
tipos sociológicos e das diferenças no âmbito cultural, já que tais características, por sua
vez, eram suscetíveis de diversas classificações. Um exemplo: o coletivismo primitivo
existia nas mais diversas sociedades indígenas, desde os contemporâneos kofán do
Amazonas até os antigos incas do Peru pré-hispânico. Contudo, esse coletivismo
manifestava-se de uma forma muito distinta em cada sociedade. Em todo o caso, por
cima das diferenças, se distinguia pela inexistência da personalidade individual e pela
escassez dos meios técnicos para dominar a natureza. Sem dúvida, tinha um enorme
potencial evolutivo. Permitia a acumulação de excedentes, a sistematização de trocas, a
agricultura e a domesticação de animais. Na zona tropical, seu desenvolvimento era
lento, na medida em que o progresso agrícola também o era. Somente depois de uma
vasta experiência e quando se alcançava uma alta densidade populacional, como era o
caso dos muiscas, era possível passar da agricultura migratória para a sedentária.
Diego Montaña, outro militante do partido, pretendeu retomar, igual que García, o
interesse pelo evolucionismo que, sentia esquecido nos arqueólogos. Seus trabalhos
mais importantes sobre o passado pré-hispânico foram Sociologia Americana (1950),
Colombia-pais formal y pais real e alguns artigos de suas Memorias (1996). Montaña
criticou as visões da história que a reduziam a questões de raça ou de determinismo
geográfico. Neste sentido, sua obra não se apartou da crítica aos aspectos mais
questionados do evolucionismo. As teorias sobre raça baseavam-se no estudo de crânios
e constituíam hipóteses arriscadas. Aquelas teorias que se inspiravam no ambiente,
simplificavam tudo, ao considerar que os povos deviam suportar a lei do solo que lhes
havia tocado pela sorte (Montaña 1950:19-20). Não obstante, os aspectos físicos eram
86
importantes. Não era gratuito que os indígenas muiscas tinham se formado graças à
ação da atmosfera rarefeita e da temperatura uniforme que constituem o ambiente nos
Andes (Montaña 1950:21). Tão pouco que, dessas mesmas condições, tivesse surgido
um tipo propenso à vida industrial, sedentária, a agricultura, a elaboração de tecidos e
de cerâmica. Seus curtos dedos, por exemplo, eram eficazes auxiliares para labores
industriais (Montaña 1950:22). Para mais, os aspectos geológicos não eram
desprezados. A geologia da Sulamérica era peculiar em comparação com qualquer outro
continente. Portanto, não tinha nada de raro e também a formação de seus povos assim o
fora (Montaña 1950:63-65, 86). Os povos colombianos eram produtos de três
migrações. As raças mais antigas correspondiam às culturas megalíticas do Titicaca, as
quais se relacionavam com San Agustín. Esta antiga migração incluía os pastos, os
quimbayas, os catíos, os zenues, os chibchas, e os guanes. A segunda onda migratória
havia chegada através do Orinoco e poderia ter, ainda que não comprovada, influência
fenícia. Finalmente, haviam chegado povos através do rio Magdalena, entre os quais se
encontravam os panches, os pijaos e, por fim, os povos caribes (Montaña 1950: 159-
163). Com esta proposta, em seguida, Montaña terminou por distanciar-se
completamente de uma visão evolucionista, ainda que, em todo o caso, reconheceu
algumas etapas no desenvolvimento de certos povos. Por exemplo, entre os muiscas,
podia-se falar de uma época marcada por cataclismo geológicos, seguida da
consolidação do povo muisca que os espanhóis encontraram. Seu interesse pelos
muiscas não era gratuito. Sua tese de graduação na Faculdade de Direito da
Universidade Nacional havia sido uma tentativa de recuperar o passado aborígene e, em
suas Memorias, incluiu um artigo intitulado “A cultura chibcha vista desde baixo”
(Montaña 1996: 113-127).
Durante a década dos anos 1970, quando o marxismo fez sentir sua influência nas
universidades colombianas, igual que as universidade européias ou norte-americanas,
numerosos investigadores aplicaram esse pensamento à sociedades pré-hispânicas. Esta
nova geração, em grande parte educada na Universidade Nacional da Colômbia, ou, ao
menos, com vínculos com ela, escreveu em um contexto, no qual, o tema era
amplamente debatido em outros países da América Latina. Nos anos 1970, tornou-se
famoso o debate sobre o caráter feudal ou capitalista de nossa América Colonial.
87
Alguns dos participantes nos debates dessa época - entre eles, André Gunder Frank,
Rodolfo Puiggros e Ernesto Laclau (1972:56-61) – consideraram importante precisar a
natureza da sociedade indígena, no momento da conquista. A idéia de “modos de
produção” e, em particular, a proposta de modo de produção asiático, foram populares.
Roger Bartra havia escrito, no México, Marxismo e sociedades antigas (1975). Também
no México, se tinha publicado versões em espanhol da obra de Maurice Gaudelier, O
modo de produção asiático, de Jean Chesnaux, O modo de produção asiático, e de
Antonine Pelletier e de Jean-Jacques Goblot, Materialismo histórico e História das
civilizações. Na Colômbia, traduziu-se e publicou-se As sociedades primitivas e O
nascimento das sociedades de classe, segundo Marx e Engels, com prólogo de Jorge
Orlando Melo.
Seguindo o exemplo de Hernandéz Rodríguez, de García e de Montaña, alguns
investigadores dos anos 1970, animaram-se a investigar o passado pré-hispânico,
particularmente, sobre os muiscas. A idéia de uma história própria, de conhecer as
raízes da sociedade colombiana e da desigualdade social resultava mais do que
estimulantes. Desde logo, alguns dos primeiros que, desde a esquerda, se haviam
preocupado pelo tema das sociedades pré-hispânicas, eram influenciados pelas obras de
Marx e, também, pela sociologia norte-americana. Com a segunda geração, este
entusiasmo continuou, porém, com uma maior orientação desde a Universidade
Soviética ou de universidade européias. Porém, raras vezes aconteceu um sólido aporte
delas, especialmente das primeiras. Em Moscou, a investigadora Svetlana Sózina
(1978), publicou “A formação dos estados muiscas”. Porém, a repercussão deste
trabalho foi mínima. Entre outras coisas, pela falta de rigor com o manejo da
informação e, pese a sua aproximação ‘marxista’, por que não agregava muito aos
estudos clássicos, do século XIX, sobre os muiscas.
Na Colômbia, em meados dos anos 1970, saiu a venda: Ensaios marxistas sobre a
sociedade chibcha, que incluiu artigos de Francisco Posada, de José Rozo e de Sergio
de Santis (s.d.); Os muiscas – organização social e regime político, de José Rozo
(1978) que estudou na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou; Notas sobre o modo
de produção pré-colombiano e A formação social chibcha, publicados por Hermes
Tovar (1974, 1978). Todos estes livros tinham um formato econômico, com a pretensão
de alcançar um grande público, ao qual, seguramente, as obras dos arqueólogos não
chegavam. Este pequeno, porém ativo grupo de acadêmicos, nenhum deles arqueólogo,
estava interessado no passado indígena e disposto a explorar interpretações muito
diferentes daqueles que, então, eram considerados especialistas no tema. Francisco
Posada, como Hernández Rodríguez, era advogado. Aprofundou seus estudos de
filosofia, na França e na Alemanha. Além de seus interesses pelos muiscas, trabalhou
sobre problemas agrários e sobre o movimento popular. Pese a sua curta idade ao
morrer, aos 34 anos, chegou a ser decano da Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Nacional da Colômbia. Os objetivos de seus Ensaios marxistas incluíam
identificar o nível de desenvolvimento dos muiscas dentro de escalas evolucionistas,
determinar os alcances da noção de comunidade, analisar a estrutura familiar,
compreender as formas de trabalho e o desenvolvimento dos meios de produção. A
motivação era conhecer as tradições nacionais, era entender a sociedade que surgiu
depois da conquista e o impacto da mesma (Posada, Montaña e Santis s.d.:6). O caso de
Hermes Tovar é algo diferente. Historiador (um dos primeiros graduados desta carreira
na Universidade Nacional da Colômbia), com estudos no Chile e na Inglaterra, foi
professor da Universidade Nacional da Colômbia, onde se interessou pelo tema das
sociedades pré-hispânicas, graças a Antonio García. Sua obra enfatizou a necessidade
88
de se estudar as estruturas de posse da terra e das formas de trabalho, como antecipação
para desenhar reformas agrárias e entender o campesinato andino (Tovar 1974:5-14). O
estímulo para fazê-lo foi muito similar ao de Posada. Reclamou da necessidade de
fazer-se uma análise estrutural da história latino-americana que incluísse a compreensão
das características das sociedades que encontraram os europeus e como se haviam
transformado no contexto capitalista. Sua investigação enfatizou a necessidade de
compreender o modo de produção das comunidades indígenas em seus próprios termos,
sem acudir a modos já conhecidos no Velho Mundo.
Hermes Tovar (1974) admitiu que, em muitos casos, se contava unicamente com a
informação arqueológica para reconstruir como teriam sido certas comunidades no
passado. No entanto, ao longo de seu trabalho, quando estabeleceu diferenças entre
comunidades tribais - compostas, ampliadas, reinos comunitários e impérios
comunitários - todas formas sociais próprias da América Pré-colombiana, o aporte da
informação arqueológica foi mínimo. Os grupos caribes eram exemplos de sociedades
tribais e os quimbaia de comunidade composta. Os muiscas, os taironas e San Agustín
de comunidades ampliadas. Porém, o que respaldou o esquema de Tovar, não era o
trabalho dos arqueólogos. Quando explicou a natureza das comunidades tribais,
auxiliou-se dos dados de cronistas sobre os grupos caribes. Inclusive, a analogia
etnográfica valia como alternativa para demonstrar, por uma parte, certo determinismo
ecológico e, por outra, a validez de comparar as sociedades “primitivas” de hoje com
uma fase histórica. Tovar serviu-se da informação sobre sociedades contemporâneas das
terras baixas – da Amazônia e Orinoquía – para entender a “comunidade tribal”, dado
que assumiu que aquelas teriam sido mais comuns nas terras baixas e regiões tropicais
(Tovar 1974: 17-22).
89
José Rozo (1978) afirmou que o processo de mudança social passava pelas etapas de
Pré-estado, Semi-estado, e Estado. Na primeira, encontravam-se os caribes. Na segunda,
alguns grupos caribes e outros arawak. Os muiscas se encontravam na transição entre as
duas últimas. A formação de classes sociais foi atribuída ao desenvolvimento da
agricultura (em contraste com a pecuária, que explicava o processo no Velho Mundo), o
qual revelava por que havia sido comparativamente tão lento. Não obstante, na hora de
referir-se a formação do Estado entre os muiscas, acudiu aos relatos dos cronistas que
narravam as guerras entre caciques indígenas, pouco antes da chegada dos
conquistadores. Assim, o desenvolvimento dos “muiscas” só podia ser analisado com
uma profundidade histórica equivalente à que a própria memória indígena alcançava no
momento da conquista. Para mais atrás, os arqueólogos só podiam falar de “seqüências
cronológicas” sem sentido de mudança social.
Nem todos os ensaios marxistas que se preocuparam com o tema indígena chegaram às
mesmas conclusões. Para a maioria, igual que para os “criollos” do século XVIII,
demonstrar logros culturais e um notável grau de civilização, foi importante. Tal foi o
caso de Torres, por exemplo. Um dissidente do estudo de como se haviam
desenvolvido, ainda que de maneira incipiente, as diferenças sociais entre os muiscas,
foi Hernán Sepúlveda (1978). Este autor assegurou que as sociedades pré-hispânicas
eram tão igualitárias que podiam servir de inspiração para se pensar a existência de
sociedades sem divisões nem exploração de classe.
Isso implicava rechaçar tergiversações históricas com um claro objetivo de colonialismo
cultural. Porém, igual que os demais, também a obra de Sepúlveda caracterizou-se por
escassas referências aos trabalhos dos arqueólogos. Muitos investigadores interessados
do passado, porém, que não militavam no marxismo, se interessaram por assuntos
parecidos aos de Rozo, Tovar e Posada. Em particular, se desenvolveu um enorme
interesse por conhecer a organização social indígena e, em particular a muisca, a forma
como se desenvolveu posteriormente a sociedade camponesa e colonial. Os exemplos
são numerosos: Germán Colmenares, Juan Friede, Darío Fajardo, Fals Borda e também
Broadbent, que chegou ao país como arqueóloga e incursionou ao assunto com um
estudo intitulado Os chibchas, organização sócio-política (1964). Quase todos eles
interessaram-se pelo tema do trabalho, da organização econômica e da demografia.
Porém, nenhum deles se baseou, para isto, na produção dos arqueólogos. Durante os
anos setenta, Germán Colmenares (1970), Juan Friede (1974) e Darío Fajardo (1964)
interessaram-se pela organização social indígena no momento da conquista com a
finalidade de fazer histórias regionais baseadas em aspectos sociais, como a demografia
e a distribuição da terra. Porém, para estudar o tema, consultaram extensamente a
informação documental, não o trabalho dos arqueólogos histórico-culturais que,
simplesmente, não estavam interessados nesses temas. Nem sequer Broadbent (1964),
que conhecia de primeira mão a informação arqueológica, pode utilizar um só dado do
registro arqueológico para reconstruir a organização social muisca.
Considerações finais
Durante o século XX, não se desenvolveu na Colômbia uma arqueologia marxista.
Porém, sim, uma corrente – ou várias – do pensamento de esquerda (nutrida do
marxismo em diferentes graus) que se ocupou do tema das sociedades pré-hispânicas.
Para essas correntes, foi difícil aproveitar a informação que aportava a arqueologia.
Enredada na descrição da cerâmica, na definição de áreas culturais e na especulação
sobre relações culturais e migrações, pouco podia aportar sobre temas que, a partir dos
anos 1970, não só aos investigadores marxistas, senão também, em geral, aqueles que
90
compartiam seu interesse pelo evolucionismo, começavam a serem considerados cada
vez mais promissores. O resultado foi uma abundante produção bibliográfica. Por fora
da Arqueologia, começou-se a resgatar o evolucionismo e a idéia de poder-se
reconstruir como se organizaram as sociedades do passado e como mudaram através do
tempo. A resistência ao evolucionismo por parte do mundo acadêmico impunha-se, uma
vez mais, como uma estratégia que foi vista, desde o ponto de vista daqueles que não
praticavam a disciplina, como uma estratégia para não investigar o passado e não
imaginar – e construir – o futuro.
91
1992:64-68; Patterson 1994; Politis 1995 e 1999; Zarankin e Acuto (eds.) 1999). Porém
o certo, ainda que pese o balanço desigual que esta história porá em descoberto, é
notório o lastro dos aspectos mais negativos da Arqueologia Histórico-Cultural. A este
respeito, cabe um comentário. De acordo com Oyuela, Amaya, Elera e Valdez
(1997:371-372) não existe uma Arqueologia Social (isto é, marxista) Latinoamericana
na medida em que, aqueles que a praticam, não compartem uma só escola unificada de
pensamento. Os autores têm razão ao queixarem-se de que a arqueologia na América
Latina se estereotipe como pertencendo a uma só prática (isto é, “a Arqueologia
Social”). Porém, desde outro ponto de vista, segundo essa observação, simplesmente
não haveria arqueologia de nenhuma classe. Com efeito, a afirmação é questionável por
diversas razões. Primeiro, por seu viés positivista que vê na conformação de uma escola
“unificada” o amadurecimento de uma disciplina. Segundo, porque o marxismo é
pretendidamente – independentemente de qualquer juízo de valor sobre sua validez –
uma teoria unificada. Porém, além do mais, no fundo, na prática parece existir um corpo
unificado de teoria por detrás de grande parte da Arqueologia Marxista na América
Latina. O mal é que esse corpo provém da Arqueologia Histórico-Cultural. Na essência,
da Ecologia Cultural.
92
Arqueologia Histórico-Cultural e da Ecologia Cultural. A interpretação do passado pré-
hispânico da Venezuela continua aceitando uma visão normativa da cultura, com o
conseqüente peso das migrações, da difusão e das influências como alternativa as
explicações mais dinâmicas de mudança social centradas nas sociedades que sofrem
ditas mudanças.
Na Colômbia, até onde chega o conhecimento do autor deste artigo, unicamente dois
arqueólogos profissionais têm assumido a “Arqueologia Social” como própria. Os dois,
sob a influência de Mario Sanoja e de Iraida Vargas. No prólogo da obra de Carlos
Angulo Valdéz (1995) formulou-se que havia três tipos de arqueologia: um que assumia
que a disciplina era “antropologia do passado” e que estava orientada em estabelecer
regularidades “atemporais” e “aespaciais” entre culturas desaparecidas; outro, a
Arqueologia Processual, que gerava “leis atemporais e ahistóricas” e, finalmente, aquele
da arqueologia como ciência social, que considerava a disciplina como um saber
histórico. Efetivamente, o trabalho apresenta uma visão histórica dos “modos de vida”
do Caribe colombiano: comunitário simples, de produção tribal ou de vida aldeã-
cacical. Não obstante, a síntese da arqueologia do Caribe se expõe, nos mesmos termos
que Angulo a havia apresentado, em 1962 (salvo novos sítios e novos períodos), no
marco de uma interpretação ecológico-cultural. Outro exemplo é a recente obra de
Rodríguez (2002) sobre o Valle de Cauca. O prólogo, escrito por Mario Sanoja e Iraida
Vargas, congratula-se com a correta aplicação das categorias da Arqueologia Social.
Porém, a visão da seqüência arqueológica do Valle de Cauca não é realmente
interpretada de forma diferente daquela que convencionalmente tem-se trabalhado em
obras anteriores, mesmo sem usar categorias tais como “formação social” e “modo de
vida”. De nenhum modo quer-se dizer que os trabalhos de Angulo e de Rodríguez não
sejam válidos. Significa que, despojados de certa terminologia, são trabalhos que têm de
marxista o mesmo que têm muitos outros trabalhos, que não se enquadram nesta
terminologia. Também que, em ambos os casos, a herança da proposta histórico-cultural
e da ecologia cultural é grande.
93
Como anota Valdez (2004), a Arqueologia Social tão pouco progredirá se elaborada
como pensamento “nacional” ou “latinoamericano”, fechado às contribuições reais da
disciplina em outras partes do mundo. Em particular, enquanto siga acreditando que,
tudo o que se produz por fora de um determinado círculo de colegas, ou, pior ainda, por
fora da Latinoamérica, é reacionário e colonialista. Não haverá Arqueologia Marxista
sem uma profunda autocrítica do legado histórico-cultural e ecológico-cultural que
ainda a atrapalha – pese o loquaz de sua terminologia. Não poderá existir, além do mais,
sem um verdadeiro compromisso com o estudo do registro arqueológico que possa
competir efetivamente com outras formas de fazer arqueologia, no acadêmico e no
político. De outra forma, quando se queira discutir sobre teoria ou sobre qual é a forma
“correta” de fazer as coisas, se lerá trabalhos de “Arqueologia Social”. Porém, quando
se queira aprender sobre o passado pré-hispânico, se consultará outras fontes. E esse é
um luxo que não nos podemos dar.
BIBLIOGRAFIA
94
A Arqueologia do conflito no Brasil
“Com o golpe de 1964, a Universidade de São Paulo, como todas as universidades do Brasil, foi entregue à
políticas implacável do rinocerontes, que sonham com uma universidade só de catedráticos, mas sem alunos. Os
rinocerontes passaram a ser apoiados pela situação implantada em 1964”.
Paulo Duarte (1970:371).
Introdução
*
Professor Titular, Departamento de História (DH/IFCH/UNICAMP), Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos
(NEE/UNICAMP), Universidade Estadual de Campinas.
**
Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Diretora do Laboratório de Antropologia Biológica (LAB/UERJ).
95
Neste capítulo, trataremos, num primeiro momento, das bases epistemológicas que nos
permite propugnar a importância do estudo dos conflitos sociais pela Arqueologia para,
em seguida, apresentarmos um estudo de caso, único em nosso país, sobre a
Arqueologia dos desaparecidos. Concluímos com algumas considerações sobre as
perspectivas futuras de pesquisa e ação social.
Nos últimos anos, os estudiosos têm demonstrado interesse crescente em explorar o uso
da cultura material para estudar conflitos e lutas sociais, assim como na maneira como a
interpretação do passado é construída pelas concepções modernas. Conflitos no passado
e na sua interpretação constituem preocupações cada vez mais atuais. A sociedade
caracteriza-se, sempre, pelo conflito e, a partir de uma epistemologia dialética, a
experiência dos povos do passado é considerada como parte de um confronto constante
entre atores sociais. A História das sociedades dividas por classes implica o estudo da
apropriação de excedentes, assim como da exploração que engendra conflitos abertos e
contradições internas na sociedade e das forças de dominação e resistência. A
interpretação desses conflitos é maleável e subjetiva e podemos interpretar o passado
como um conjunto de textos complexos, formando um discurso.
96
conhecimento da cultura material tenham questionado abertamente a capacidade de a
Arqueologia poder contribuir para o conhecimento do passado, diversos livros e artigos
publicados nos últimos anos confirmaram que a evidência material é de particular
importância para a compreensão da complexidade dos conflitos sociais.
97
A Arqueologia dos desaparecidos no Brasil
Dentro dessa premissa, em 1992 integrei-me, com dois médico-legistas, aos trabalhos
no cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro. Acostumada a ter como
objeto de pesquisa populações pré-coloniais, esta oportunidade significava exercer um
campo em que o sentimento e a emoção seriam elementos marcantes, mas que por tal
característica tornava-se desafiador.
19 Ramires Maranhão do Vale, Vitorino Alves Moitinho, José Bartolomeu R. da Costa, José Silton Pinheiro, Ranúsia Alves
Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria
W. Pontes, Wilton Ferreira, Mario Prata, Merival Araújo e Luis Ghillardini.
98
70 tenha sido instituída a obrigatoriedade de individualização dos restos ósseos nos
ossuários, geralmente em sacos plásticos, as escavações demonstraram que isto não
ocorreu com os que foram depositados nesta vala clandestina.
99
A Arqueologia da repressão está apenas no início, no Brasil. Neste capítulo, tratamos de
apenas um aspecto, referente aos desaparecidos. Contudo, há uma pletora de aspectos
relevantes, relacionados à repressão e que estão abertos à pesquisa e cuja relevância
social e política não pode ser subestimada. Do ponto de vista da História da Ciência, o
período militar constitui um imenso manancial a ser explorado, a partir de uma
abordagem social que reconstitua os liames entre as redes de poder e a constituição de
uma ortodoxia, no sentido atribuído por Pierre Bourdieu à doxa, empirista e positivista.
Embora a História da Arqueologia brasileira, em geral, já seja objeto de pesquisa, ainda
faltam estudos sobre o papel repressivo exercido pela ditadura na disciplina, em
particular a partir de uma abordagem social, tal como proposta por estudos clássicos
como Bruce G. Trigger (1990) e Thomas Patterson (2002; cf. Funari 2003c). Não se
pode bem estudar a repressão, sem um exame das condições que levaram a
Arqueologia, em nosso país, a abster-se do tema por tanto tempo e de maneira tão
persistente.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Thomas Patterson, Bruce G. Trigger e Andrés Zarankin. Escrevemos
em homenagem ao Prof. Passos, por sua defesa do IPH e de Paulo Duarte, nos
momentos mais duros da repressão ditatorial. Devemos mencionar, ainda, o apoio
institucional do NEE/UNICAMP, LAB/UERJ, CNPq, FAPESP. A responsabilidade
pelas idéias restringe-se aos autores.
Dedicamos este capítulo a todos que foram perseguidos durante o regime militar.
BIBLIOGRAFIA
Childe, V.G. (1935) Changing Methods and Aims in Prehistory, Presidential Address
for 1935. Proceedings of the Prehistoric Society 1:1-15.
100
Duarte, P. (1970) Fontes de pesquisa pré-histórica, Estudos de Pré-História Geral e
Brasileira, São Paulo, IPH/USP, 374-442.
Duarte, P. (1994) Paulo Duarte e o Instituto de Pré-História, Idéias, Campinas, 1,1, 155-
179.
101
Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço
Luis Fondebrider
Introdução
Uma fria manhã do mês de julho de 1984. Um grupo de jovens se encontra ao redor de
uma sepultura no cemitério de San Isidro, nos arrabaldes de Buenos Aires, Argentina.
Não estão sós. Um cordão de policiais, uns 40, rodeia em círculo toda a área. Atrás
deles, umas mulheres com lenços brancos na cabeça olham angustiadas a cena. O
silêncio é quebrado pelos soluços das mulheres, pelo ruído das câmeras dos fotógrafos
da imprensa ali presentes e pelo rádio policial que, a cada tanto, solta um ruído
mecânico.
Depois de oito anos de ditadura militar a democracia voltou à Argentina. Com ela a
necessidade de buscar pelas mais de 10.000 pessoas que desapareceram pelas mãos das
forças armadas. Os corpos dessas pessoas, pelo menos muitos deles, se acham
enterrados sem identificação, como NN ou XX, em cemitérios municipais de todo o
país.
Junto com eles, outras pessoas com as quais nunca lhes tocou interatuarem: advogados,
juízes, médicos legistas da polícia. Todos manejam uma gíria desconhecida. É feita de
códigos e de sinais que nunca viram e que lhes custa entender. Também está com eles
um homem de já avançada idade. Nunca fala o espanhol e que, apesar das
circunstâncias, se mostra muito tranqüilo e seguro. Ele é quem os convidou a participar
da exumação do corpo de uma pessoa desaparecida. Ele se chama Clyde Snow. É um
reconhecido antropólogo forense estadunidense que veio à Argentina tratar de
recuperar, adequadamente, os corpos enterrados sem identificação e tratar de devolver-
lhes seu nome.
O Dr. Snow fala de forma pausada, com um forte acento texano. É um dos primeiros
antropólogos forenses que, pela década dos anos setenta, decidiu utilizar a Arqueologia
na recuperação dos corpos, em casos médico legais. Sua presença na Argentina deveu-
se a iniciativa de organismos de direitos humanos locais. Ocorre que, durante meses
antes, atuaram como pás mecânicas, como coveiros, como médicos de polícia que
exumavam, sem nenhum tipo de cuidado e nem muito menos metodologia científica, os
restos esqueletais de presumivelmente desaparecidos que se achavam inumados nas
áreas NN, isto é, as zonas para indigentes, nos cemitérios. As imagens transmitidas pela
televisão e as notícias nos jornais sobre estas exumações foram denominadas com um
cruel sarcasmo de “o show do horror”. Isto, mais pelo que descobriam, do que pela
forma em que se estava levando a cabo as descobertas.
102
concreto, a partir da Arqueologia ou da Medicina, em um momento chave da história da
Argentina. Somente um arqueólogo foi receptível e se somou a iniciativa. O resto da
comunidade científica – arqueólogos ou antropólogos físicos – não se mostrou
interessada, por razões diversas. Porém, é interessante ressaltar que este padrão de
conduta da comunidade arqueológica/antropológica argentina, com algumas exceções
individuais, aconteceu também em outros países da América Latina, os quais, em anos
posteriores, começaram a desenvolver uma linha de Arqueologia e de Antropologia
Forenses.
Após uma hora de trabalho, a terra começa a mudar de cor e de textura. Por fim, algo
reconhecível, que os faz sentir menos assustados e mais no controle da exumação. Um
dos médicos da polícia se acerca e diz ao coveiro: “Já estamos próximos. Avisa-me
quando tocas o osso com a pá”. Quando começa a distanciar-se, quase em uníssono, os
estudantes estalam um só grito: “Não, não, assim não se faz”. Ante o olhar surpreso do
juiz e de todos os que rodeiam a fossa, diante de um meio sorriso de Snow, um deles se
mete dentro da sepultura. Começa a desembaraçar a terra com uma colher de pedreiro,
enquanto que outro a recolhe e a começa peneirar. É, provavelmente, a primeira vez
que, na Argentina, a Arqueologia dá mão ao âmbito judicial-médico-policial. Ainda que
pareça mais uma irrupção inesperada e não desejada, do que um procedimento
planejado e pactuado de antemão. Horas mais tarde, os estudantes e o arqueólogo se
encontram em pleno controle da cena. A exumação começa a parecer um trabalho
arqueológico. Porém, essa já é outra história.
Fora da região, por outra parte e a partir de 1996, quando o Tribunal Internacional
Criminal para a ex-Iugoslávia começou a realizar exumações massivas de vítimas do
conflito nos Bálcãs, o afã dos arqueólogos e dos antropólogos forenses da Argentina, da
Guatemala, do Peru, da Colômbia e da Costa Rica resultou fundamental. Tal
circunstância aconteceu tanto pela experiência por eles acumulada ao transcorrer dos
anos oitenta e noventa quanto por suas capacidades de análise.
103
Estas mudanças também, de certo modo, refletem-se na produção científica. Nesta,
pouco a pouco, começam a aparecer investigações sobre diversas metodologias de
trabalho em fossas comuns em contextos forenses, sobre a tarefa do antropólogo em
desastres massivos ou sobre a perspectiva antropológica na análise patológica a nível
ósseo e, em particular, de lesões peri mortem.
Desafios
Não obstante os logros alcançados nos últimos anos, ainda permanece um longo
caminho por percorrer. Por exemplo, se bem que na Colômbia e no México já existam
alguns cursos de pós-graduação, ainda não se conta, na América Latina, com suficientes
cursos de Arqueologia Forense e de Antropologia Forense. As pessoas têm que ir aos
Estados Unidos ou a Inglaterra para completar sua formação.
Por outra parte, a utilização das duas disciplinas dentro do âmbito médico-legal segue
dependendo, em muitas ocasiões, da boa vontade ou do critério da autoridade
encarregada da investigação, denomine-se de fiscal, de juiz ou de detetive de
homicídios. Ainda não está regulamentado, por exemplo, que o levantamento ou
exumação de um corpo esqueletizado deva ser realizado por um arqueólogo.
A modo de balanço
O aporte que tem efetivado a Arqueologia e a Antropologia Forense na investigação de
casos de violência política/étnica nos últimos vinte anos, sem dúvida, foi, e segue
sendo, fundamental.
104
Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)
Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)
105
à justiça para definir penalmente os responsáveis e reconstruir uma parte importante da
história recente destes países.
106
Escavações da EAAF na Etiópia, África
BIBLIOGRAFIA
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Snow, C.C. (1982) Forensic Anthropology. En Annual Reviews Anthropology, 11: 97-
131.
109
Tortura, verdade, repressão, arqueologia
Alejandro F. Haber
A tortura aplicada nos porões da última ditadura argentina não tendia somente a busca
de informação. Orientava-se, além disso, para a autonarração do detido, de acordo com
os cânones do torturador. A tortura implicava, assim, o estabelecimento de um regime
de verdade. Este, além de ser necessariamente autoritário, não implicava uma descrição
passiva (Du Bois 1990). Du Bois caracterizou a tortura como a dominação final, não
tanto só de corpos senão, sobretudo, das idéias. Em seu argumento, a tortura não
esgotaria seu sentido na derrota de um inimigo presente. Implicaria no desejo de impor
particulares interpretações da história, uma particular “verdade” na contínua luta pela
compreensão da realidade do país. Sustentando-se na inegável desproporção entre o
número de combatentes e o dos detidos e dos torturados, a tese de Du Bois trouxe ao
primeiro plano o altíssimo preço que a sociedade tem pagado pelo estabelecimento da
“verdade”.
110
ao conhecimento do segundo, tal qual este é, desprovido de inclinações valorativas ou
interesses). A operação conjunta dos três planos produz uma indistinção entre o
fisicalismo, o empirismo e o objetivismo, que conformam uma dura base rochosa sobre
a qual se apoia o edifício disciplinar (Haber e Scribano 1993).
Tudo isto é não um mero exercício retórico. Não se trata de adjetivar a disciplina com o
fim de marcar uma própria morada na qual encontrar refúgio teórico. Sobre aquela
mesma rocha se apoia o signo político da relação cognoscitiva que se estabelece na
Arqueologia. O não dito, ou melhor, o que não se diz, isto é, o objeto arqueológico
mudo e inerte, se expressa precisamente em sua loquacidade aplacada: os sujeitos, cujos
interesses são apartados e excluídos da relação arqueológica pela sanção desta como um
domínio epistêmico e disciplinar (Haber 1994; Haber e Scribano 1993). A exclusão do
sujeito é um elemento fundamental na conformação dos habitus disciplinares da
Arqueologia. Parte do disciplinamento arqueológico consiste precisamente em aprender
a ignorar os outros sujeitos co-presentes ao interesse cognoscitivo arqueológico
(Gnecco 1999). Fazendo uso de umas metáforas biológicas, poderia dizer que este
disciplinamento opera filo e ontogeneticamente.
20
Faz mais de dez anos que tive a oportunidade de comprová-lo com um grupo de alunos de
Arqueologia da Universidade Nacional de Catamarca. Foram capazes de narrar suas metas e
111
Uma vez que os mecanismos ‘genéticos’ têm operado exitosamente, se reproduzem os
habitus disciplinares mediante uma combinação tácita de preterização do sujeito e de
repressão do sentido. Os mecanismos habituais fazem com a natural mudez dos objetos
não permita escutar os sujeitos – entre estes, os próprios investigadores. Os sujeitos
ficam, então, excluídos do passado que, enunciado como história, é expropriado da
memória (Gnecco 1999).
A ordem colonial vem tendo um correlato no plano das representações. São aquelas que
têm ocupado um lugar no espectro cromático com o qual, nas escolas, se nos infundem
o sentido da história. A colonização cultural dos povos indígenas assumiu a forma de
ações repressivas organizadas e concertadas pelo Estado, pela Igreja e pelos
particulares. Estas ações foram orientadas visando à conversão dos indígenas ao
catolicismo, o abandono e a repressão de suas crenças e práticas religiosas e culturais. O
que tem sido chamado de “extirpação das idolatrias” foi, em resumo, uma dilatada
campanha de submissão ideológica, sustentada por ações repressivas, torturas e morte
de milhares de indígenas (Duviols 1977 e 1986). O delgado fio que separa a definição
de etnocídio da de genocídio não foi particularmente considerado pelos agentes
coloniais. A repressão do culto aos antepassados coadjuvou-se, além do mais, com a
destruição de centenas de lugares e de objetos sagrados, de corpos mumificados, de
interesses interdisciplinares no início do seu primeiro ano. Porém, ao cabo de um ano haviam
esquecido, inclusive, a conversação sustentada no ano anterior. Estruturavam suas respostas
em termos e conceitos estritamente disciplinares.
21
Não significa isso que, submetidos à crítica que, em grande parte, é autocrítica, não possam
ser modificados sempre que se assuma que devam ser modificados.
112
tumbas, de monumentos e do ajuizamento (seguido de tormentos, de castigos e, muitas
vezes, de morte) dos indígenas suspeitos de exercerem o culto (Duviols 1986;
Farberman 2005). A extirpação de idolatrias foi uma etapa posterior a guerra, isto é, a
generalização ao imaginário coletivo da dominação dos corpos individuais. As torturas
tiveram por objetivo a construção de um inimigo – o indígena demoníaco – e da
autonarração do sujeito sintonizada com a visão de mundo do torturador, como chave
para a instauração de um regime de verdade.
Parece uma simples questão de atualização terminológica que, aquilo que, em 1891, foi
chamada de ‘huaca’ por Samuel Lafone Quevedo, seja hoje considerado um sítio
arqueológico. Que os povoadores da área foram indígenas, para Lafone, e que, de fato,
tomara emprestado esta denominação de Chamar Yaco, bem como o sentido indígena
das ruínas, não é agora mais do que parte de um anedotário (Lafone Quevedo 1991).
Porém, que os cultos populares atuais nos sítios arqueológicos do noroeste argentino
sejam criminalizados pelo direito positivo que os sanciona como sítios arqueológicos
(Lei nº 25.743/2003 de Proteção do Patrimônio Arqueológico e Paleontológico),
poderia ser parte do mesmo processo de colonização cultural. No mundo herdeiro da
ordem colonial, sustentado em privilégios de raça, de classe e de gênero, em cujo
estabelecimento e sustentação tem participado práticas e discursos acerca do indígena,
de seus objetos e de monumentos antigos, não pode ser neutral que o tratamento desses
objetos e monumentos fique reservado ao âmbito de uma disciplina acadêmica. O é
muito menos se o mesmo se recorta em um horizonte de distanciamento e fiscalização
do objeto. É hora de sacudirem-se os estorvos culturais que têm ensinado a enunciar as
tradições indígenas passadas como arqueológicas e as viventes como folclóricas. Aos
indígenas como pretéritos, ao arqueológico como pareado ao conhecimento científico.
113
experiências, estando detidos, que uma e mil vezes são narradas pelos sobreviventes
como inesgotável fonte de dor, seria reprimido junto com a negação de sua identidade
política. No sentido de DuBois, resistem. Junto a eles, os investigadores, a quem o
submetimento dos corpos se estende sobre as mentes. Que a memória coletiva seja
recolocada pela narração histórica, opinável e colorida, daquilo que passou com outros
que nada têm a ver conosco.
AGRADECIMENTOS
Os integrantes da equipe de investigação e sobreviventes do ‘pozo’ da Chefatura de
Rosario me permitiram compartir suas experiências no projeto. Diversos colegas, entre
eles, Patricia Bernardi, Silvia Bianchi, Luis Fonderbrider, Cristobál Gnecco, Jacko
Jackson, Darío Olmo, Bob Paynter, Claire Smith, Myriam Tarragó e Martin Wobst,
aportaram idéias, comentários e experiências que, mal ou bem, ficaram aqui escritas. A
Pedro Funari e Andrés Zarankin, por oferecer-me a oportunidade de fazê-lo.
BIBLIOGRAFIA
22
Alguns primeiros sintomas, como a Declaração de Rio Cuarto (Declaração 2005), indicam que
a Arqueologia poderia atravessar sua própria reconversão no acompanhamento de práticas
emancipatórias.
114
Cohen Salama, Mauricio (1992) Tumbas anónimas. Informe sobre la identificación de
restos de víctimas de la represión ilegal. Equipo Argentino de Antropología Forense.
Buenos Aires: Catálogos.
DuBois, Lindsay (1990) Torture and the construction of an enemy: the case of
Argentina 1976-1982. Dialectical Anthropology 15:317-28
Equipo de Investigación por la Memoria Política Cultural (2004) La ronda: aportes para
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Nacional de Arqueología Argentina. Río Cuarto.
115
Todorov, Tzvetan (1987) La conquista de América. El problema del otro. Buenos
Aires: Siglo XXI.
116
Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no
Uruguai (1971-1985)
José Mª López Mazz
Arqueologia da Repressão
O sistema de repressão instalado nos anos 1970 e 1980, no Uruguai, aparece como parte
de uma (geo) política mais ampla. Abarcou diferentes forças ‘golpistas’ repressivas sul-
americanas, com a coordenação de organismos especializados e de agentes dos EUA,
daquela época. A instalação da ditadura se viu anunciada por medidas repressivas
prévias e por cortes nos direitos dos cidadãos, através de “medidas repentinas de
segurança”. Única medida, segundo o Parlamento daquela época, capaz de poder fazer
frente ao estado de “guerra interna” (Martinez 2005).
As leis do “ponto final” consagraram, no rio da Prata, a impunidade nos casos de tortura
e de mortes por razões políticas, dificultando as atividades de investigação. Só
recentemente, se retomou as investigações sobre detidos desaparecidos e sobre a
violência política. Os processos de revisão histórica nos países do Cone Sul permitem
aprofundar a democracia, construir uma memória cidadã e realizar atos de justiça
necessários, particularmente, para estas nações jovens que emergiram, com dificuldade,
da ordem colonial sul-americana.
117
A repressão dos anos 1970 e 1980 foi exercida por aparelhos especializados e
coordenados. Ao mesmo tempo, se desenvolveu uma metodologia de torturas, de
assassinatos, de desaparições forçadas e de reclusões sem justos processos. Essa
violência dirigiu-se a parlamentares, militantes políticos, trabalhadores e estudantes.
Alcançou todas as classes sociais, os gêneros e os grupos de idade. O benefício do
exercício dessa repressão foi tanto para civis como para militares, que conservaram o
poder político e tiraram proveito das instâncias e das circunstâncias econômicas
dependentes do Estado.
Busca-se conhecer melhor aos “esquecidos” e aos “oprimidos”, invisíveis, até agora,
para a história oficial. Assim, democratiza-se a memória histórica. Entende-se melhor o
presente e se constroem identidades. Para além das boas intenções, a nova atitude exige
desenvolvimentos metodológicos específicos que, realmente, façam da repressão um
claro objeto de estudo da Arqueologia e da Antropologia.
118
Mazz 2003; Moreno 2004). O tratamento dos mortos tem se orientado para a reflexão
que diz respeito à intencionalidade da deposição e do seu caráter formal no espaço
(Buikstra 2002). Nesse sentido, a localização do enterramento clandestino de um detido
desaparecido pode transformar um espaço, até agora irrelevante e passível de ser
considerado um “não lugar” (no sentido de Auge 1999), em um “lugar de repressão”.
No Uruguai, estudos forenses sobre restos humanos têm sido realizados sobre tumbas
NN no cemitério de Colônia do Sacramento. A Equipe Argentina de Antropologia
Forense (EAAF), que realizou os trabalhos, não conseguiu identificar detidos
desaparecidos uruguaios. Pode tratar-se de corpos chegados à costa, talvez provenientes
de “vôos da morte”, realizados na Argentina (Comisión para la Paz 2004).
É pelo efeito da própria tecnologia repressiva e do “pacto de silêncio” que, até agora,
não se pôde recuperar restos significativos de cidadãos detidos desaparecidos. A
exceção constitui o caso de Roberto Gomensoro. Seu corpo apareceu flutuando no lago
do Rincón del Bonete, no centro do Uruguai. Graças ao fato de que um médico
conseguiu guardar seu crânio (o resto do esqueleto foi objeto de uma segunda
desaparição por parte dos “serviços”) foi possível realizar a identificação por DNA
(Comissión por la Paz 2004) e por superposição de imagens digitais (Solla e Mhemet
2005) e, assim, restituí-lo a sua família.
Outro singular caso de estudos forenses sobre restos humanos tem a ver com o cientista
chileno, Eugenio Berríos, assassinado por um comando militar chileno-uruguaio, no
119
Uruguai, em 1998. Os restos, achados enterrados em uma praia, perto de Montevidéu,
foram identificados por técnicos do Instituto Forense (Mhemet et al. 2000). O achado de
uma corrente com uma medalha da virgem protetora do Chile, encontrada junto ao
corpo, resultou em uma prova arqueológica contextual e contribuinte para com a
identificação forense (além disso, um relógio e a “prova dentária”) (idem).
120
Esses lugares, com os nomes codificados, assim como os dos repressores (e os dos
médicos que os assistiam nas torturas), chegaram a conformar famosos itinerários do
terror. Nesse marco, adquiriu todas as conotações macabras, a palavra “traslado”. As
pessoas podiam ser detidas na Argentina. Passar pelos “chupaderos” da ESMA,
ORLETI ou pelo Pozo de Banfield. Viajar ao Uruguai para ingressar no circuito de
tortura do Infierno Chico. Passar ao Infierno Grande del 300 Carlos (Batallón 13) para,
finalmente, serem assassinadas (Batallón 14) ou enviadas aos cárceres de alta segurança
(Penal de Libertad, Punta de Rieles). Os cidadãos executados ou mortos nas torturas
seriam logo inumados clandestinamente, em lugares desconhecidos.
A história dos acondicionamentos e das ações físicas que buscaram eludir ou escapar da
repressão, recém começa e está longe de ter sido escrita. Falamos de buracos em muros,
de ferramentas para escavar, de túneis, de cloacas, de disfarces e de outras instâncias
que permitem, em retorno, sentar as bases para uma Arqueologia da Anti-repressão ou
da Liberdade. No caso uruguaio, estes lugares de “fuga” constituem um cenário
formado por espaços “produzidos” para a fuga e outros “apropriados” para a fuga. No
segundo caso, sobressai o caso da rede cloacal de Montevidéu. Constituiu um espaço
apropriado para a guerrilha urbana, a serviço da fuga carcerária e da circulação
clandestina de pessoas. Os guerrilheiros, em poder dos mapas da rede cloacal,
exerceram seu controle por debaixo da cidade. Os repressores, ainda que exercessem
seu controle na superfície, mostraram sempre sua desconfiança e temor em aventurar-se
nesse espaço infra-urbano.
Durante 1971, os cárceres uruguaios começaram a aumentar sua população devido a que
muito presos, assim que cumpriam a pena, não recuperavam a liberdade. Estas pessoas
continuavam detidas, sob o estrito regime de “medidas de extrema segurança”, por um
tempo indefinido. Neste contexto de cárceres cheios, em outubro de 1971, ocorre uma
fuga de 111 presos políticos da prisão de Punta Carretas. A fuga expressa, além da
própria vontade de escapar da situação repressiva, a resolução de uma série de
problemas práticos que estimula os indivíduos ao caminho de sua liberdade, para além
dos muros dos cárceres.
Nesta mesma prisão aconteceram diversas fugas. Isto mostra que não se trata de fatos
isolados, senão que, pelo contrário, são condutas anti-repressivas recorrentes. A
121
primeira fuga é de 1931. Foi protagonizada por anarquistas expropriadores. Teve como
destino a “carbonería del Buen Trato”, localizada no outro lado da rua Solano García. A
segunda fuga, acima mencionada, conhecida como “el abuso”, partiu das celas. Foi
realizada por guerrilheiros tupamaros, em 1971. Foi a mais numerosa e também saiu do
outro lado da mesma rua. A terceira fuga, chamada de “el gallo”, foi em 1972. Partiu da
“enfermaria” e alcançou a rede cloacas, na proximidade da margem arenosa do rio, na
costa. Em todos os casos, o elemento comum foi o túnel escavado por debaixo do muro
perimetral e através dos muros das celas.
Outras quatro fugas, sem túnel, tiveram lugar no mesmo edifício penal. Um guerrilheiro
escapou dentro de um caminho de lixo, em 1970. Outro, trocou de lugar com seu irmão,
em 1972. Anteriormente, em 1969, um delinqüente apelidado de “el sátiro”, tinha
conseguido saltar os muros e ganhar a rua Solano García, indo até o Rio da Prata. Pelo
contrário, resultou em fracasso a fuga organizada por assaltantes de banco, em 1966,
que, armados, conseguiram passar pelo primeiro recinto de segurança, sem alcançar a
rua Ellauri. Tiveram que voltar sobre seus próprios passos para esconderem-se nas
celas. Aí foram encontrados e violentamente mortos vários deles.
Uma tipologia das fugas é possível, tanto quanto uma Arqueologia documentada que
contribua para seu estudo material. Esta deverá ter em conta um marco teórico e
metodológico que focalize aspectos tais como o número de participantes, o tipo de
estratégia (simulação, túnel, saltos dos muros, etc.), a energia invertida, o risco, a
duração (se planejada ou se oportunista), os beneficiários e o impacto no contexto
histórico e político. A fuga chamada de “el abuso” foi planejada por engenheiros e
especialistas. Isto explica o sofisticado da construção de um “túnel” central, que incluía
um sistema luminoso, de ar e de evacuação da terra (Fernandéz Huidobro 2005). A fuga
chamada de “el gallo” alcançou a rede cloacal (desde a enfermaria) através da qual
escaparam 21 presos. Fizeram uso de uns carrinhos, construídos para aumentar a
velocidade de deslocamento em um tão reduzido espaço. Enquanto que na fuga “el
abuso”, ganhou-se o exterior com uma cobertura mais ampla que incluía um baile de
122
acobertamento. “El gallo”, com seus carrinhos, levou os presos até a margem do Rio da
Prata.
Os brinquedos eram feitos com materiais acessíveis ao preso, desde sua cela. Os
materiais usados têm a ver com a atividade doméstica carcerária e seu estrito controle.
Entre os materiais, sobressaem o papel, o tecido, o couro, o osso e a madeira. A
fabricação era realizada de maneira regular, porém, adquiria particular significação
quando da proximidade de datas, tais como a do Natal, a dos “Reyes”, do “Dia da
Criança” ou a dos aniversários.
Esta produção artesanal, orientada para a satisfação afetiva dos filhos dos presos
políticos, constitui um documento privilegiado da presença das crianças no interior do
cárcere. Presença em termos metafóricos. Porém, presença através do trabalho artesanal
orientado a produzir objetos especializados para contrapor ao efeito repressivo da
reclusão e da separação forçada. Esses objetos, como poucos, simbolizam a relação
entre pais e filhos em um contexto de repressão social. Se bem que esta produção
artesanal dirigida às crianças era uma atividade freqüente nos cárceres, hoje resulta
difícil aceder aqueles objetos, que todos recordam com muito afeto, ainda que os
perderam em suas gavetas ou por suas mudanças.
123
chave desta produção altamente personalizada. Os trabalhos em osso e em madeira (fig.
2) adquiriram particular desenvolvimento, assim como as confecções em tecido e lã
(fig. 4). Cabe mencionar também o uso sistemático do papelão e do papel.
A atividade artesanal, neste contexto, começa a ser uma prática nova para muitas
mulheres e homens. É através dela que se realiza uma comunicação real, em tempo de
desafiar a separação física. O brinquedo ou o adorno que sai do cárcere, se instala como
distintivo corporal reconhecível na escala de pessoa a pessoa. Também se localiza na
casa, em um espaço de caráter quase cerimonial, em um lugar central da vida do
familiar. Como suporte comunicativo é polissêmico, da conta de uma relação
interpessoal, ilustra o desenvolvimento dos meios de produção dos presos e exemplifica
o grau de tolerância ou de “opressão” em um dado momento e em um cárcere.
Conclusão
124
A Arqueologia tem demonstrado que se constitui numa útil disciplina auxiliar da
História e da Justiça. Cumpre com rigor este papel na história moderna das nações
envolvidas com a repressão política dos anos 1970 e 1980. Ela contribui com sua
especificidade disciplinar, através da possibilidade de focalizar uma materialidade
concreta, que, em muitos sentidos, está desprovida da subjetividade dos testemunhos
dos protagonistas.
A constituição de um objeto de estudo, denominado de Antropologia Forense,
focalizado na repressão, faz parte de uma tendência atual na Antropologia e na
Arqueologia Sul-americana (EAAF 2003). Buscar tornar visíveis as classes sociais
oprimidas, ignoradas até agora pelas histórias oficiais (Politis 2002:194).
A Arqueologia, além do mais, define seu próprio registro material capaz de expressar
dimensões ainda desconhecidas de velhos problemas, ou, capaz de servir de matéria-
prima para investigar novas temáticas vinculadas à repressão, seu efeito e sua
resistência.
Pensamos que este aporte recente começa e pode constituir o único acesso a algumas
problemáticas complexas. Nos tem permitido aproximar dos restos dos desaparecidos,
confirmando o pior dos prognósticos. O do assassinato sistemático e da implementação
de uma tecnologia exaustiva de ocultamento dos corpos. Por outro lado, mostra
também, aspectos contraditórios das técnicas de identificação (entre o DNA e a
superposição de imagens digitais).
BIBLIOGRAFIA
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Archaeological Perspective.pp.105-140. Seminr Press, New Cork.
Comisión para la Paz (2004) Informe Final de la Comisión para la Paz. Presidencia de
la República, Montevideo.
125
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mortuorias en la localidad arqueológica del Rincón de Los Indios (Rocha)”. Congreso
AUA 2003. Montevideo.CD.
Gómez Romero, Facundo (2002) “Philosophy and historical archaeology. Foucault and
a singular technology of power developement at the borderlands of nineteenth century,
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Comisión para la Paz (2004) Informe Final de la Comisión para la Paz. Presidencia de
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Moreno, Federica (2004) Estudio del material óseo asociado a los enterramientos del
sitio Los Indios. Monografía del Taller II de Arqueología. Dpto. de Arqueología,
FHCE/UdelaR. Inpublished.
Mhemet, Yasa Iscan; Solla, Horacio y Mc.Cabe, Barbara (2005) “Vicitim of dictatorial
regime: Identification of Mr. Roberto Gomensoro Josman”. En Forensic Science
Internacional, xxx:1-8.
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de cazadores-recolectores”. En Revista do Museo de Arqueología e Etnología.Isabel
d´Agostino Ed, Suplemento 3: 263-283, Sao Paulo.
Solla, Horacio y Mehmet, Yasar Iscan (2000) “Skeletal remains of Dr. Eugenio Antonio
Berríos Sagrado”. En Forensic Science Internacional 2912:1-11.
126
A materialização do sadismo: Arqueologia da
Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da
ditadura militar argentina (1976-1983)
Andrés Zarankin e Claudio Niro
“Quem nunca esteve em um campo concentração, jamais poderá entrar ali, imaginar o
que significa e, quem esteve, nunca poderá sair de todo”.
Daniel M, sobrevivente do Clube Atlético (2002:10)
Um dia no El Vesubio
Em 9 de maio de 1978, em horas da madrugada, a bordo de um Ford Falcon, cheguei
ao centro clandestino de detenção conhecido como El Vesubio. Estava localizado no
Camino de Cintura, na Auto-estrada Richieri, bairro La Matanza. Quatro indivíduos,
sob as ordens de Suárez Mason, me tiraram do carro, encapuzado, com as mãos
algemadas pelas costas, enquanto me insultavam e me golpeavam, conduzindo-me para
uma casa. Dentro da mesma, me colocaram de pernas abertas, junto a uma parede.
Enquanto isso, me obrigaram a apoiar a cabeça no muro. Vários torturadores me
brindaram com patadas nos testículos e me insultaram. Dito procedimento, chamaram
de “el ablande”. Consistia em um método de acovardamento do prisioneiro, anterior
ao ingresso na sala de tortura.
Todos estes fatos aconteciam na casa 3, dado que o centro clandestino constava de três
locais. Cada um destes estava destinado a distintas funções. Na casa 1 estava a
chefatura, sede do comando e morada do encarregado de campo. Na casa 2 se
encontravam os ”quirófanos ou enfermarias”, isto é, as salas de torturas. Na casa 3
era o lugar das celas de detenção ou “cuchas”.
As “cuchas” eram uns cubículos, de um por dois metros, onde estávamos, umas quatro
ou cinco pessoas encapuçadas, algemadas nos braços e nas pernas e, por sua vez,
algemadas umas nas outras. Quando recém chegávamos nas “cuchas” nos obrigavam
a tirar as roupas e nos entregavam uns uniformes marrons que todos devíamos vestir.
Através deste procedimento nos faziam perder, junto com a roupa, os últimos rastros de
nossa vida exterior.
Um companheiro, seqüestrado desde muito tempo, era quem nos subministrava a água
e a quem chamávamos de “Hueso”. Este companheiro era a única pessoa a quem
podíamos ver enquanto levantávamos os capuzes, no caso de não se encontrar nenhum
guarda dando voltas. Isto acontecia em poucas ocasiões, dado que os guardas estavam
vigiando constantemente.
127
Dado que havia um pequeno furo no capuz (seguramente o mesmo capuz que havia sido
usado por outros companheiros, em muitas oportunidades, devido ao cheiro que
desprendia) pude observar através do mesmo e reconhecer a Auto-estrada Richieri e os
coletivos da Linha 86, por meio de uma janela que se encontrava no que,
provavelmente, havia sido um antigo refeitório na casa 2.
A partir do tempo que suportamos nas ‘cuchas’ e da relação com “Hueso” começamos
a conhecer o lugar, pelas descrições que ele nos fazia. Deste modo, nos inteiramos que
a comida vinha do quartel de La Tablada, carregada em uma camionete, para logo ser
deteriorada no El Vesubio. Também nos contou que os captores nos consideravam
“perejiles”23 em relação aos companheiros que tínhamos sido seqüestrados nos
colégios Carlos Pellegrini e Juan José Paso. Explicou-nos que, na casa 2, estava a sala
de tortura e os quirófanos. Algumas vezes nos conseguia comprimidos roubados para
acalmar a dor dos golpes.
Enquanto sucedia tudo isto, lá fora, era o Mundial de 78. Então, alguns verdugos viam
os jogos por vários televisores e algumas companheiras os viam com eles. Igualmente,
as mulheres estavam detidas em ‘cuchas’ separadas dos homens. Também sabíamos
que as faziam realizar tarefas de ordem doméstica, no campo de detenção.
Os guardas procediam de duas escolas do exército: Lemos e Cabral. Muitos deles eram
do litoral e escutavam, seguidamente, chamamé. Estes, costumavam nos insultar com
consignas racistas, aos companheiros que identificavam como judeus e a todos em
geral.
Recordo-me que estava com duas pessoas que haviam caído, novas. Começamos a falar
como podíamos e, claro,.... não falavam de comida nem nada. Falavam da Revolução
Russa. Eu não podia acreditar. Emocionou-me por que digo: estar falando aqui, no
meio deste lugar. Os tipos me queriam meio como captar para o trotskismo. Depois me
pus feliz, por um lado. Se os tipos estavam aí e eu podia escutar a palavra Trotski e a
palavra Lênin. Todavia, eles não me puderam captar!
A sala de tortura era uma habitação coberta com telgopor e, escrita com cigarros,
havia uma frase que dizia: “se o sabe cante, senão agüente”. As paredes de telgopor
estavam manchadas de sangue. Havia um balde com água e uma foto de Hitler
pendurada, debaixo da qual, dizia: Heil Hitler. A mesa era uma mesa de madeira com
pranchas, recoberta com ferros e estava manchada de sangue.
Meu companheiro Leonardo, que era meu responsável no grupo em que militava, em
um momento, antes da tortura, me disse que “hay que cortar la cadena”, não delatar a
23
Termo usado para referir-se a pessoas sem importância, que não tem poder. Neste texto,
algumas palavras que estão em negrito são gírias oriundas de um contexto discursivo de
repressão e de tortura, por isso, são mantidas na grafia original em espanhol.
128
ninguém. Não reconhecer que éramos da União dos Estudantes Secundários (UES) e,
tão pouco, Montonero. Devíamos fingir que não sabíamos nada de nada. O problema
foi que, algum dos detidos, havia reconhecido sua militância na UES. Enquanto nós
tratávamos de convencê-los que não tínhamos nada que ver, que havíamos deixado a
militância antes da ditadura.
Através dos soldados, dado que havíamos feito certa amizade com eles, enviamos uma
carta, clandestinamente, para nossos familiares, avisando que nos encontrávamos
vivos. O recruta não podia dizer onde estávamos para evitar que sua vida corresse
perigo e também a nossa. Seu nome era Horacio Sap.
Três companheiros: Muricio Westein, Juan Carlos Martire e Gabriela Juarez Celman,
que caíram dias antes do que nós, continuam desaparecidos. Mediante Horacio Sap,
recebíamos notícias de nossas famílias. Certa vez, escutamos uma conversação entre
militares de alta patente, na qual, mencionavam que nos haviam divididos em grupos
de quatro, em distintos quartéis. Desta forma, podemos avisar nossas famílias que não
sabíamos onde, porém, que todos estávamos vivos.
Em realidade, durante o cativeiro, por mais de 40 dias, não dormimos. Era impossível
dormir. Esquecer o que sucedia. Ter sonhos. O capuz te isola por completo, do mundo
ex7terior. Por sua vez, há um outro detalhe sinistro, na raia com a maldade de outros
seres humanos: os gritos, os uivos, os lamentos, os pedidos de piedade que gritam os
torturados. Os insultos, as puteadas, “subversivo de merda ...”, “bolche (bolchevique)
hijo de puta”, o Heil Hitler, la patota (grupo de pessoas violentas, multidão) que vem
pisando-nos, las palizas com puños (ser agredido com socos), patadas, ferros, contra
nós, agrilhoados os tornozelos, algemados e indefesos.
Havia três ou mais guardas que duravam vinte e quatro horas. Uma das guardas era
comandada por “Fierrito” e sua turma. A este “Fierrito”, lhe gostava escutar rock
nacional (por exemplo, “Plegaria para un niño dormido” de Spinetta). Nós
pensávamos, como um filho da puta como este pode escutar este tema. Também dizia
129
que lhe gostava os filmes de Ingmar Bergman. De vez em quando, costumava falar para
nós de sua família, de seus filhos.
Outra guarda estava a cargo de “Pancho”. Às vezes nos dava pão. Um dia nos
conseguiu um cobertor felpudo, pelo frio que fazia, por conseqüência do inverno. Certo
dia em que estávamos ao seu encargo, não nos trouxe pão. Então, começamos a pedir.
Pancho contestou, dizendo que haviam seqüestrado o padeiro.
Assim que se passaram uns vinte dias de cativeiro começamos a notar versões da parte
de “Hueso” acerca de que nos considerava “perejiles”. Outra versão era a de que
iríamos para uma “granja de reeducação”. Isto me dava um medo horrível porque,
segundo eles, nos iriam lavar o cérebro para converter-nos em outras pessoas. O fato
de transformarmos-nos em pessoas domesticadas por eles, me despertava temor por
alguma forma de escravidão mental, moral, física. Com o tempo, a novela “1984”, de
Orwell, me recordou ditas sensações.
Outro grupo da guarda eram os nazis. Quando vinham, o faziam ovacionando a Hitler,
cantando uma canção que diz: “Aí vem Adolfo pela rua, matando judeus para fazer
sabão”24. Estes verdugos punham gravações onde se escutava a voz de Hitler e quando
vinham buscar-nos nos golpeavam com toda a fúria, produzindo a ruptura dos ossos de
alguns dos detidos. O problema de estar encapuzado é de não saber de onde procedem
os golpes e, portanto, permanecer e um estado de total indefesa. Estes tipos se
entusiasmavam obrigando-nos a fazer ginástica militar (corpo ao solo, saltos de rã,
etc.), mantendo-nos algemados na parede, durante horas. Gritavam contra nós, no
meio dos ruídos das cadeias e ameaçavam-nos com a picana se não cumpríssemos com
a consigna. Efetivamente, se alguém não resistisse, com este tratamento, era levado a
casa 2 onde se encontrava o quirófano. Ali se o torturava pelo simples prazer de
torturar. Com um total sadismo. Enquanto tudo isto se passava, escutávamos na
24
“Ahí viene Adolfo por el callejón, matando judíos para hacer jabón”.
130
televisão o Mundial de 78. Cada vez que um rival fazia um gol na Argentina era muito
triste para nós, porque os verdugos se descontavam moendo-nos a pau.
O banheiro da casa 3 não tinha porta, só uma cortina. Recordo que havia uma ducha
que, em realidade, era um cano do qual saía a água gelada, e uma latrina para fazer
nossas necessidades. Recordo-me que não havia papel higiênico, senão que, uma pilha
de livros de Marx, de Lênin, da correspondência Perón-Cooke e de revistas como “El
descamisado”, etc.
Faz pouco tempo, voltei ao lugar onde estava o El Vesubio. Quando alguém chega, o
primeiro que vê são as ruínas. O mesmo foi demolido, nos finais de 1978, pela ação da
Comissão da OEA pelos Direitos Humanos. As ruínas do El Vesubio estão cercadas por
arames farpados. O único problema é que não se pode ingressar adentro. Ali vive uma
pessoa que impede o acesso ao lugar, ameaçando os organismos de direitos humanos e
soltando uns cachorros de sua propriedade. Em uma oportunidade, pude entrar e
reconheci uns ladrilhos vermelhos que pertenciam ao banheiro. Fecho os olhos e
penso: restos do campo e do horror. Quando nos faz todos esperar, acorrentados,
frente ao quirófano, escuto os gritos e os gemidos dos torturados, a música de
chamamé, as vozes dos torturadores. Penso como será a tortura e se a vou agüentar.
Quanto tempo passa. Impossível sabê-lo. O tremor de meu corpo e dos demais
companheiros. O medo. Levam-me ao quirófano. Tiram-me o capuz. Luzes fortes que
não me deixam ver. Uma voz potente. Reconheço que é a de “Vasco”. Pede-me que
colabore. Agarram-me entre quatro pessoas. Tiram-me a roupa. Molham-me com um
trapo com água e me atam com um cabo, no dedão do pé. Com outro cabo começam a
dar máquina. O vazio. Não sei quanto tempo dura, em realidade. Sinto que me tiram a
alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado. Levam-me as “cuchas”, junto com os demais
companheiros. Certo dia, um companheiro que tomava um medicamento devido a um
problema psicológico, padecia de delírios de perseguição, ao ficar sem o remédio e
pedia, aos gritos, que o trouxesse. Nós pedíamos que ele se calasse para evitar
reprimenda. No entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se
escutava a voz de um repressor que diz: “De que te queixas, de teu delírio de
perseguição, se já te agarramos”.
Cláudio Niro, sobrevivente do CCD “El Vesubio”
O relato revela claramente alguns dos dispositivos desenhados desde o sistema nos
Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s), utilizados pela ditadura militar Argentina,
entre 1973 e 1983, para destruir a identidade, como pessoas, dos detidos. Privação de
visão, limitação da mobilidade, aplicação de tormentos, falta de alimentos, condições
climáticas extremas (frio ou calor), proibição de comunicação com outras pessoas,
substituição do nome por um número, entre outras, são dispositivos que têm,
131
principalmente, como foco de ação direta o corpo e a mente do detido. Estamos ante um
novo modelo punitivo que utiliza elementos de sistemas repressivos anteriores. Por
exemplo, a utilização de torturas físicas e a destruição do corpo são típicas da Idade
Média. Enquanto que, a organização do tempo em rotinas que se repetem
cotidianamente é característico das instituições disciplinares dos séculos XVIII e XIX.
Este artigo se propõe discutir, a partir de um nível teórico e de um outro corporal – isto
é, a partir de experiências reais, sofridas por um dos autores – a arquitetura e a
organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção, na Argentina, e seus
efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos.
Instituições punitivas
Em “Vigiar e Punir” (1976), Foucault analisa o surgimento das instituições disciplinares
entre os séculos XVI e XIX, estabelecendo uma relação direta entre as formas de
repressão e o objeto punido. Este passa a estar centrado no corpo no século XVI, indo à
alma e a mente, no século XIX. Nas palavras do autor, “a prisão resitua o patíbulo”.
Esta mudança se reflete na aparição de toda uma série de dispositivos disciplinares
dirigidos a gerar indivíduos dóceis, na mente e no corpo, através de instituições de
“ortopedia social”, tais como, os colégios, as fábricas, os hospitais, os manicômios, os
albergues para órfãos, as prisões, entre outras (Bentham 1786; Goffman 1974;
132
Gaudemar 1981; Donzelot 1981). Paralelamente, a cidade também começa a ser
organizada em função de uma série de parâmetros disciplinares – especialmente o
vigiar, o controlar e o dominar – gerados desde o poder (King 1980; Markus 1993a,
1993b; Parker, Pearson e Richards 1996).
No caso da prisão, sua função é privar da liberdade como forma de castigo. Através da
clausura se busca, não só punir a pessoa, senão que, este tempo possa ser utilizado para
que o detido seja reformado. Precisamente, esta situação é a de que se encarrega esta
instituição, a mais civilizada e humana de todas as penas. Como assinala Foucault, a
prisão ao corrigir, ao modificar, ao tornar dócil e disciplinado o indivíduo, não faz mais
do que reproduzir, de maneira acentuada, todos os mecanismos que se encontram no
corpo social. A arquitetura destes lugares cria limites artificiais onde os corpos são
confinados e controlados (Grahame 195, 2000; Zarankin 1999, 2000, 2002).
A Argentina fez uma macabra contribuição a esta extensa lista: os Centros Clandestinos
de Detenção (CCD), desenvolvidos durante o processo militar, entre os anos 1976 e
1983. Trata-se de um dispositivo repressivo que, se bem pôde contar com alguns
antecedentes na história, só foi gerado de maneira massiva e sistemática, durante a
década de 1970. Este combina e maximiza as piores categorias de todas as instituições
punitivas criadas até então. Sua função já não é deter e corrigir, senão que destruir e
eliminar.
O golpe militar
Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou a presidenta Isabel Martínez de
Perón (viúva do General J. D. Perón), sob a desculpa da incapacidade do Governo para
controlar as ações dos chamados grupos “subversivos”, que intentavam impor, no país,
uma ordem social oposta aos “costumes argentinos”. Assumiu o poder uma junta
integrada pelo Tenente General Jorge Rafael Videla, pelo Almirante Emilio Masera e
pelo Brigadeiro General Orlando Agosti. Iniciou-se, assim, o autodenominado
“Processo de Reorganização Nacional”, um dos períodos mais obscuros e sinistros da
história argentina.
133
A repressão, baseada em um plano perfeitamente estruturado tinha, além do mais, como
objetivo, submeter a população através do terror, impondo assim uma “ordem” sem
oposição. Este plano criminoso incluía a desaparição de pessoas, mediante o mecanismo
dos Centros Clandestinos de Detenção, nos quais se torturava e se mantinha cativas as
pessoas consideradas “dissidentes”, antes de assassiná-las.
A “desaparição” de pessoas
A “desaparição” foi a fórmula adotada pelos militares para eliminar opositores. Este
procedimento, que incluía um léxico específico, consistia, em primeiro lugar, em marcar
uma pessoa ou “objetivo”, que logo era seqüestrada – “chupada” – por um comando
paramilitar – “grupo de tarefas” ou “patota”. Era transladada a um CCD ou “pozo”,
onde, encapuzada – “tabicada” – era despojada de todos os seus pertences. Inclusive, o
nome era suprimido e, em seu lugar, se a atribuía uma letra e um número que seriam a
forma de identificá-la daí em diante. O detido, sem nenhuma garantia legal ficava,
assim, a mercê dos repressores. A “desaparição” das pessoas se completava com
métodos que incluíam arrojá-las, ainda com vida, no Rio da Prata (com prévia aplicação
de sedativos), desde aviões ou helicópteros militares ou mediante fuzilamentos e
enterramentos em fossas comuns, sem nenhum tipo de identificação (Belleli e Tobon
1985; EAAF 1992; Doretti e Fondebrider 2001). Como assinala a Anistia Internacional,
em seu informe sobre a desaparição de pessoas por motivos políticos: “Devido a sua
natureza, uma desaparição encobre a identidade de seu autor. Se não há preso, nem
cadáver, nem vítima, então, ninguém, presumivelmente, é acusado de nada”.
Ocupação Porcentagem
Operários 30%
Estudantes 21%
Trabalhadores 17,8%
Profissionais 10,7%
Docentes 5,7%
Recrutas e pessoal subalterno das Forças de Segurança 2,5%
Donas de casa 3,8%
Autônomos e vários 5,0%
Jornalistas 1,0%
Atores e artistas 1,3%
Religiosos 1,3%
É necessário esclarecer, sem dúvida, que a desaparição de pessoas não foi um método
exclusivo da ditadura pós-1976, porém, sim, sua instauração como modelo massificado
de destruição da dissidência. Já desde os princípios da década de 1970, os grupos
paramilitares conhecidos como Tríplice A, liderados pelo assistente pessoal do general
Perón e, depois, ministro do Bem-estar Social, José López Rega, a utilizava como
ferramenta repressiva.
134
Dolce e Vazquez 2004)25. Pilar Calveiro, em sua tese de doutorado (2001) analisa,
desde sua condição de ex-detida desaparecida e, também, de cientista social, o
fenômeno destes campos de concentração argentinos e os caracteriza como os
“quirófanos”, onde se levaram a cabo as “cirurgias maiores”, consideradas necessárias,
pelos militares, para a “salvação” da sociedade. Seguindo suas colocações, foi o ponto
de partida para construir “uma nova sociedade, ordenada, controlada e aterrada”
(2001:11).
“O campo de concentração aparece como uma máquina que cobra vida própria.
A impressão é que, já ninguém pode detê-la. A sensação de impotência frente
ao poder secreto, oculto, que se percebe como onipotente, joga um papel chave
em sua aceitação e em uma atitude de submissão generalizada” (2001:12).
Calveiro destaca que os primeiros campos de concentração, na Argentina, começam a
funcionar, todavia, durante o governo democrático de Maria Isabel Martínez de Perón,
no momento de firmar-se a “Ordem de Aniquilamento” da subversão de 1975. Sem
dúvida, só depois do golpe militar de 24 de março de 1976 é que a desaparição de
pessoas e os campos de concentração se convertem nas modalidades repressivas por
excelência. Durante a ditadura, funcionaram no país, mais de 340 CCD’s. Sua
magnitude foi variada e se estima que passaram por eles entre 1.500 a 20.000 pessoas,
das quais 90% foram assassinadas (Calveiro 2001:29).
Um ponto interessante tem a ver com as fontes de inspiração dos CCD’s. Por acaso,
seguem algum modelo? Calveiro não crê que os militares argentinos tenham se
inspirado nos campos de concentração nazistas ou estalinistas. Simplesmente,
reproduzem práticas de poderes totalizantes que incluem campos de concentração
(2001:40). Cremos que uma fonte que deve ser explorada são os modelos empregados
pelos militares franceses, na luta armada na Argélia, que incluía centros de detenção
clandestinos, onde as pessoas eram torturadas e assassinadas. Não devemos esquecer
que um importante número de altos oficiais argentinos recebeu treinamento militar de
luta contra a subversão neste país europeu.
No CCD primam algumas das concepções iniciais de prisão do século XIX, isto é, o
princípio do isolamento total do detido (tanto do mundo exterior como dos demais
detidos). Como indica Foucault “a solidão é a condição primeira da submissão total ...
o isolamento assegura o colóquio a sós entre o detido e o poder que se exerce sobre
ele” (1976:240). Em algum sentido, se assemelha a um campo de concentração, já que
ali são reunidos, isolados e retidos os “inimigos”. Sem dúvida, a diferença é que,
enquanto que um campo de concentração é “um lugar” que se rege por convenções (ao
menos deve fazê-lo segundo uma série de convenções internacionais que garantem
algum respeito aos prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao menos oficialmente –
porque simplesmente não existe – institucionalmente. Sua condição de clandestino o
outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade. O converte em um “não-lugar”
para aqueles que se encontram dentro de seu espaço. Este “não-lugar” transforma seus
ocupantes em “desaparecidos”, precisamente por que não estão em nenhum “lugar”, ou,
ao menos, não se conhece sua localização.
Parte de sua invisibilidade se deve ao fato de que funciona dentro de outros edifícios.
Em geral, não são construídos CCD’s. Se adapta parte ou totalidade de um edifício já
existente para funcionar como tal (Conadep 1984:58). Precisamente, uma das coisas que
25
É interessante mencionar o fato de que, praticamente, a totalidade das publicações sobre os
CCD’s foram geradas pelos próprios sobreviventes destes campos.
135
mais estremeceu a sociedade argentina, assim que retornou a democracia, foi saber que,
no edifício “vizinho”, ou “nesse que alguém passava todos os dias quando ia trabalhar”,
havia funcionado um CCD. Ali haviam sido torturadas e assassinadas milhares de
pessoas e, grande parte das pessoas, não se havia dado conta do que ocorria por detrás
dessas paredes.
Por que esta ênfase em despojar os detidos de seus nomes e, portanto, de suas
identidades? Se não há nomes – uma das características básicas de qualquer ser humano
– não existem pessoas. Simplesmente, corpos anônimos que estão sujeitos aos
dispositivos punitivos e burocráticos dessa estrutura repressiva. Sem identidade, o
sujeito perde os laços com sua própria história, com seu passado. Transforma-se em um
ser quebrado. Esta situação favorece a possibilidade de delatar companheiros ou de
obedecer às ordens impostas.
Por sua parte, os repressores, se bem que tão pouco utilizavam seus verdadeiros nomes
dentro dos CCD’s, diferentemente dos detidos, tinham apelidos – Hueso, Angel, Gordo,
Turco, Doctor K, Padre, Calculin, Raul, Karateca, entre outros. Essa transformação não
só assegurava preservar sua verdadeira identidade diante dos detidos e, inclusive, em
certos casos, de seus próprios colegas, senão que transformá-los em pessoas diferentes.
Ter múltiplas personalidades tais como, bom pai e torturador sádico.26 De igual
maneira, os CCD’s recebem nomes simbólicos, que permitem a existência destes “não-
lugares”. El Olimpo, Club Atlético, Vesubio, Garage Azopardo, Talleres Orletti, entre
outros.27
Os detidos podiam passar dias, meses, ou, inclusive, anos em um CCD. Até que se
decidia se os “transladavam” – gíria que significava assassiná-los – ou se os
branqueavam e passavam a ser presos comuns do serviço penitenciário. Durante a maior
parte desse tempo, como foi anteriormente mencionado, permaneciam “entupidos”, isto
é, encapuzados ou vendados, o que era outra forma de tortura (fig. 2).
“A tortura psicológica do capuz é tão mais terrível do que a física, ainda que
sejam duas coisas que não se pode comparar, já que uma procura chegar aos
umbrais da dor. O capuz procura o desespero, a angústia, a loucura.
Encapuzado, tomo plena consciência de que o contato com o mundo exterior
não existe. Nada te protege. A solidão é total. Essa sensação de desproteção,
isolamento e medo é muito difícil de descrever. Só o fato de não poder ver, vai
socavando a moral, diminuindo a resistência” (Lisandro Cubas, Conadep
(1984:59).
26
Um bom exemplo disto é a obra de Eduardo Pavlovsky “O Senhor Galindez”.
27
Estes centros têm nomes, não são números como hoje os comissariados. Existem? Também
são demolidos. Também desaparecem? Maria Ximena Senatore (comunicação pessoal, 2005).
136
Fig. 2 – Desenho de artistas, no lugar em homenagem aos detidos no Club Atlético
Para Calveiro, esta divisão de tarefas tinha como objetivo que ninguém se sentisse como
único responsável. O dispositivo consistia, ao mesmo tempo, em despojar os detidos de
sua condição de pessoas e gerar uma cadeia ou engrenagem que garantisse o
137
funcionamento automático dessa maquinaria de destruição. Como uma cadeia de
montagem fabril, “tudo adotava a aparência de um procedimento burocrático”
(2001:39).
O Club Atlético
O caso do Club Atlético – CA – se apresenta como relevante para se discutir estas
questões por sua história particular (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001). Sabemos que
foi produto da dissolução e translado de outro CCD “Garage Azopardo”, que funcionou
entre 1976 a 1977, a poucas quadras de distância, no mesmo bairro. Posteriormente, no
momento de desativação do CA, em finais de 1977, sua infra-estrutura e os detidos que
ali se encontravam foram relocados em um CCD chamado de “El Banco”, que foi
criado para, especificamente, tal finalidade. Finalmente, foi instituído um novo CCD,
um dos mais conhecidos, cujo triste e célebre nome foi “El Olimpo” (1978-1979).
Nome do CCD Data de funcionamento
Garage Azopardo Agosto de 1976 – Fevereiro de 1977
Club Atlético Fevereiro de 1977 – Dezembro de 1977
El Banco Dezembro de 1977 – Agosto de 1978
El Olimpo Agosto de 1978 – Janeiro de 1979
O Club Atlético, cujo nome, em realidade, era “Centro Anti-subversivo” (Club Atlético
foi uma derivação das iniciais CA) funcionava no sótão de um depósito de
abastecimento da Polícia Federal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas Paseo Colón,
Cochabamba, San Juan e Juan de Garay (fig. 3). Sabe-se que, por ele, passaram ao redor
de 1500 pessoas, a maioria das quais, permanece desaparecida. Tinha a capacidade para
manter, ao mesmo tempo, 200 detidos. O edifício foi demolido em 1977, já que se
encontrava no traçado da auto-estrada 25 de Mayo.
O projeto arqueológico
138
No ano de 2003 é tornado público, pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, um
concurso de projetos para escavar os restos deste lugar.28 Nossa proposta foi
selecionada (Bianchi Villeli e Zarankin 2003a). O projeto se chamou “Arqueologia
como memória: intervenções arqueológicas no Centro Clandestino de Detenção e de
Tortura ‘Club Atlético’”.
Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por um lado,
buscamos entender a lógica do funcionamento e da organização espacial da arquitetura
deste dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, o segundo objetivo foi de
contribuir com a construção de uma memória material. Isto é, transformá-la em algo
físico, para assim, poder ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra (oral ou
escrita). Uma memória que pode ser tocada, ouvida, experimentada (fig. 4). Como
exemplo, podemos mencionar como uma simples bolinha de ping-pong29, recuperada
durante as escavações, pode se transformar em um símbolo do sofrimento daqueles que
foram torturados neste lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4), sobrevivente do
Club Atlético:
O que pensariam os que jogavam ping-pong, em frente à leonera 30 enquanto
que nós éramos torturados, desta bolinha que acabamos de encontrar debaixo
do elevador de cargas?
Devemos considerar que, a história da repressão ilegal durante a ditadura militar, tem
sido ocultada ou contada através de uma “versão oficial”. A escavação do Club Atlético,
então, é uma forma de recuperar a memória e, através dela, contrapor-se a história que
nos foi transmitida. Tratou-se de um projeto que contemplou a participação de
sobreviventes e de familiares dos detidos no próprio centro de detenção Club Atlético.
Foi uma forma de reapropriação de sua própria história que, de alguma maneira, é a de
todos.
28
Com anterioridade, aconteceram trabalhos de escavação coordenados pelo Lic. Marcelo
Weissel (Weissel 2002; Barrera 2002).
29
Trata-se de uma bolinha de ping-pong, com a qual, os torturadores se entretinham enquanto
os presos eram torturados.
30
Cela comum onde, em geral, eram colocadas as mulheres grávidas.
139
Fig. 4 – Vista dos trabalhos de escavação no Club Atlético (2003)
Fig. 5 – Planta gerada pelos próprios sobreviventes, em função de suas recordações (em Benítez,
Enríquez e Di Ciano 2001:10) – esquerda.
Planta do setor escavado (Bianchi Villeli e Zarankin 2003b) – direita.
Exemplos de relatos
Delia Barrera (em Benítez et al. 2001:10)
31
Este mesmo procedimento de reconstrução de CCD’s foi empregado em outros centos, como
assinala o informe da Conadep (1984:60): “Foi determinante a memória corporal dos detidos.
Quantas escadas deviam subir-se ou descer-se para ir à sala de tortura. Quantos passos devia-
se contar para ir ao banheiro, quantos estalos, que giro ou qual velocidade produzia o veículo
no qual eram transportados ao entrar ou sair do CCD, etc”.
140
Descrição: “A dependência contava com dois níveis. Ao primeiro, se acedia
por uma porta de vidro. Ali havia uma repartição, na qual, se podia observar 2
escritórios, máquinas de escrever e um telefone ...
O subsolo carecia de ventilação e de luz natural. Era muito úmido e calorento.
Ingressava-se por uma estreita escada que levava a uma sala munida de uma
mesa de ping-pong que os repressores usavam para jogar. Ao fundo, uma sala
da guarda, duas celas para incomunicáveis, uma peça de torturas e “la leonera”,
um aposento com piso de cimento, dividido em boxes, com uma parede de um
metro de altura.
Completava a estrutura, 41 celas pequenas, numeradas, com catres de cimento,
munidos de um colchão fino de espuma e de um cobertor. As portas tinham
uma pequena abertura. No piso, havia um frasco com lavandina (água
sanitária), no qual deviam urinar os seqüestrados.
Os automóveis entravam pelo Paseo Colón. Os vizinhos de então puderam
observar que, detrás do portão de acesso, havia uma cortina escura que fechava
depois que passavam os veículos. Assim que saiam dos carros, os prisioneiros
eram empurrados para uma escada até o subsolo ...”
O modelo Gamma dos arquitetos ingleses Hillier e Hanson permite decompor o edifício
em uma série de gráficos para entender a organização de seu espaço. Como resultado
deste, obtivemos um gráfico de sua estrutura, composta por nodos (que representam
espaços) e por conexões (que são as portas que conectam um nodo (ou espaço) com
outro) (fig. 7).
32
Estes modelos já foram aplicados com êxito em outras estruturas arquitetônicas (Zarankin
1999, 2002).
141
Por sua parte, o arqueólogo Richard Blanton (1994), tomando por base o modelo
Gamma, construiu uma série de índices que possibilitam afinar e aprofundar a análise
da estrutura arquitetônica. Estes índices são denominados de “escala” (mede o tamanho
da estrutura), de “integração” (estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro
da estrutura) e de “complexidade” (permite ver a distribuição e o isolamento dos
espaços) (fig. 8 e 9).
Índices de Blanton
33
É importante assinalar que, apesar de que existia um elevador de cargas que chegava ao
subsolo, no momento de funcionamento do centro, este estava desativado ou não funcionava
(por tal motivo, só existia uma única escada para aceder ao setor onde funcionava o centro).
142
9 5 1 39 1 6
10 1 3 40 1 6
11 4 2 41 1 6
12 1 3 42 1 6
13 20 3 43 1 6
14 1 4 44 1 6
15 1 4 45 1 6
16 1 4 46 1 6
17 1 4 47 1 6
18 1 4 48 1 6
19 1 4 49 1 6
20 1 4 50 1 6
21 1 4 51 1 6
22 1 4 52 1 6
23 1 4 53 1 6
24 1 4 54 1 6
25 1 4 55 1 6
26 1 4 56 1 6
27 1 4 57 1 6
28 1 4 58 1 6
29 1 4 59 1 6
30 1 4 Totales 117 269
Fig. 8 – Tabela para calcular os índices.
143
Por sua parte, o índice de integração – 1 – em conjunto com os índices de complexidade
– 117 e 4.534 - evidenciam, de maneira indiscutível, que estamos ante espaços não
distributivos e de alto grau de isolamento. Este tipo de estrutura é típico de instituições
disciplinares e autoritárias, onde existe um espaço de circulação controlado e regulado.
Por outra parte, o espaço do “CA” pode ser dividido em dois eixos (fig. 10). Um setor
superior (que ocupa aproximadamente uns 20% da superfície total), que podemos
denominar de centro burocrático do CCD. Existe outro, posterior, que aloja os
prisioneiros e onde se localizam as salas de tortura. Esta organização divide e classifica
as pessoas dentro do mesmo, delimitando espaços de circulação e de permanência dos
detidos.
Burocracia
Salas de detenção coletiva
Celas
Salas de Tortura
Celas
Os corpos dos detidos, ao estarem imobilizados, atados ou algemados nas paredes e nos
pisos, isolados e impedidos de comunicaram-se com os demais, privados de seus
nomes, transformam-se em parte da própria arquitetura dos CCD’s. Esta estrutura
repressiva absorve a essência das pessoas, transformando-as em meros objetos sobre os
quais atuam os dispositivos do poder. Pensemos que, a existência “social” de qualquer
pessoa está diretamente relacionada com a possibilidade de interatuar com outros, de
reconhecer e ser reconhecida. O CCD, através destes elementos, busca destruir a
34
Neste caso, 4.5 representa a média dos espaços necessários para aceder ao primeiro plano
do edifício (que, por sua vez, tinha, provavelmente, outros 4 ou mais espaços que o
distanciavam da rua).
144
identidade dos prisioneiros. Esta negação do social gera o que poderíamos denominar de
um processo de construção de “não-pessoas” – a pessoa vai desaparecendo simbólica e
fisicamente.
Conclusões
“Os monstros existem. Porém, são demasiado pouco numerosos para
serem verdadeiramente perigosos. Os que são realmente perigosos são
os homens comuns” (Primo Levy, La tregua, Barcelona, 1988).
Nosso interesse pela arquitetura e pela organização espacial dos CCD’s se entende ao
pensar que brindam a possibilidade de materializar uma ideologia. Precisamente, ao
transformá-la em algo material, a torna “real”, para, dessa maneira, transmitir seus
valores e seus significados por meio de discursos que podemos denominá-los de não-
verbais (Fletcher 1989; Monks 1992). Pensemos que, cotidianamente, nossos corpos
decodificam, inconscientemente, discursos invisíveis, simplesmente, ao circularem
dentro de qualquer estrutura arquitetônica (Markus 1993a, 1993b; Grahame 1995, 2000;
Zarankin 1999, 2002).
AGRADECIMENTOS
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