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MÚSICA MODAL, MÚSICA TONAL.

Se há uma avançada discussão técnica sobre a chamada música "modal" e sua


relação com o "tonalismo" e, em certos círculos, também com o "atonalismo", por que
há tanta polêmica e tanta confusão em relação a essas categorias? Por que há tantas
maneiras diferentes de interpretar tais conceitos? Por que algumas dessas interpretações
são, inclusive, contraditórias entre si?
Acreditamos que uma visão estética do assunto possa esclarecer um pouco a situação,
dando a cada corrente seu espaço e sua pertinência. De qualquer maneira, a existência
de tão diferentes abordagens já mostra que a discussão não pode ser resolvida apenas
tecnicamente; ela precisa, também, de uma contextualização filosófica mínima.
A primeira contextualização que propomos é a histórica: que músicas podem ser
consideradas "modais"?
Aqui já há problemas, pois, o conceito de "modalismo" não é unívoco. Em linhas gerais,
são totalmente modais, no Ocidente, a Música da Antigüidade (Grécia e Roma), a
Música da Idade Média e a Música do Renascimento. A grande marca dessa música
modal ocidental é o Canto Gregoriano cristão, mas essa música modal está presente
também em toda a música popular e em toda a música profana medieval e renascentista,
incluindo, por exemplo, o Trovadorismo. Os modos que conhecemos e aplicamos na
teoria musical moderna - jônio, dórico, frígio, lídio, mixolídio, eólio e lócrio - são uma
denominação grega para os modos eclesiásticos adaptados, isto é, nossos modos não são
gregos, eles apenas receberam, posteriormente, nomes dos modos gregos originais num
outro contexto. A característica principal da música modal é a presença constante da
"nota centro", a qual, de certa forma, nunca é realmente abandonada: a música modal
gira em torno do centro. Assim, a música modal pura não tem "harmonia" - no sentido
de tríades e de funções harmônicas. Essa presença do centro dota esse tipo de música de
uma característica "hipnótica", que faz com que ela geralmente apareça ligada a algum
tipo de ritual: realmente, a música da Antiguidade e a do período medieval não são
independentes de cultos, festas, solenidades e funções religiosas.

A partir desses pressupostos, podemos chamar também de "modais" - por analogia - as


músicas orientais, africanas e americanas tradicionais. Embora tais músicas não utilizem
os modos diatônicos que nós ocidentais utilizamos, elas continuaram, até pouco tempo
atrás - e continuam ainda em certos lugares - presentes em cerimônias ritualísticas,
jamais assumindo os riscos estéticos proporcionados pela harmonia tonal das tríades
maiores e menores. Estruturalmente, há uma forte tendência pentatônica nas músicas
africanas, do Extremo Oriente e dos índios americanos, e uma tendência para a
utilização de escalas com mais sons do que a nossa na Índia e no Médio Oriente.
Já a música tonal - presença na música ocidental a partir do período Barroco (1600 em
diante) e passando pelo Classicismo, Romantismo e chegando até nossos dias - destaca-
se pelo contraste entre o modo maior e o menor, pelo conceito de função harmônica e
suas polarizações (tônica, subdominante, dominante) e pela melodia acompanhada por
acordes formados pela superposição de tríades. Ainda há, no tonalismo, uma nota
centro: ela, no entanto, é abandonada para criar uma expectativa de retorno. Há uma
tensão que anseia por resolução, há um risco constante de perda da unidade. Como
consequência, a música tonal pode ser submetida a modulações, isto é, a mudanças de
centro no interior de uma mesma peça. São exemplos de músicas tonais as obras dos
mestres da música erudita mais conhecidos, como Bach, Mozart, Beethoven, Schumann
e Wagner, e quase toda a música popular que ouvimos desde que nascemos.
Dessa forma, quando falamos de utilização dos modos na música popular ou
erudita no século XX, não estamos falando de um modalismo total, mas de uma fusão
entre modalismo e tonalismo. Explicando melhor: quando um guitarrista improvisa
sobre o modo dórico, ele está usando tríades, ele pensa em acordes. Esses acordes serão
maiores ou menores - menores, se ele estiver pensando em dórico - e, sendo maiores ou
menores, caracterizam uma música tonal, por mais exótica que ela possa ser. Assim,
quando falamos em modalismo no século XX - e passamos a falar muito em modalismo
na música erudita a partir do Impressionismo e do Nacionalismo de finais do século
XIX e, na música popular, em todas as suas influências étnicas (incluindo blues, baião,
flamenco, etc.) e, em especial, a partir do conceito de improvisação modal do Cool Jazz
dos anos 50 do século XX - estamos falando, em geral, de um "neomodalismo", de um
modalismo que funciona como um sabor modal dentro do sistema tonal. Tal
neomodalismo nega apenas certas resoluções tipológicas do tonalismo, mas, mesmo
quando baseado no folclore ou em músicas tradicionais, é submetido ao rigor harmônico
das tríades tonais. O dórico original era realmente modal, não era um "modo menor":
era apenas o dórico, uma das possibilidades de um sistema que ainda não tinha dividido
o mundo em "terças maiores e terças menores". Claro que não precisamos ser tão
rigorosos com a terminologia: não tem nenhum problema se chamarmos de "modal"
uma melodia em modo maior onde as sétimas são sempre menores, desde que saibamos
que essa influência do modo mixolídio está sendo incorporada a uma música baseada
em tríades, está sendo harmonizada e, portanto, submetida a leis tonais.
Sem dúvida, o que estamos chamando de neomodalismo é uma forte tendência da
música das últimas décadas do século XX e, de certa forma, parece que ainda será
bastante explorada nesse início de século XXI. Trata-se de uma síntese ou fusão entre
modalismo tradicional e teoria harmônica tonal, e é o desconhecimento dessa fusão que,
muitas vezes, gera tantas confusões nas exposições teóricas e nas aplicações práticas
sobre os modos.

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