Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3
1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
3
Thoth
n. 3 setembro/dezembro 1997
Thoth
Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.
V.; 25 cm
ISSN: 1415-0182
CDD 301.45196081
7
SUMÁRIO
Pág.
Apresentação............................................................................................................................... 9
Thoth ........................................................................................................................................... 11
DEBATES
ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Projetos
Projeto de Resolução no 126, de 1997 - Institui o Prêmio Cruz e Sousa............................... 27
Projeto de Lei no 234 de 1997 - Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 no
Livro dos Heróis da Pátria ....................................................................................................... 43
Proposta de emenda à Constituição no 38, de 1997 - Garantia às comunidades remanes-
centes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas..................... 47
Pronunciamentos
Frente Negra Brasileira.................................................................................................................... 53
Homenagem a Mestre Didi......................................................................................................... 57
Reflexões sobre o Movimento Negro........................................................................................... 69
Meio Ambiente............................................................................................................................. 103
Revolta dos Búzios...................................................................................................................... 107
Celebração de Zumbi dos Palmares........................................................................................... 111
DEPOIMENTOS
APRESENTAÇÃO
Oficiada por quatro sacerdotes – os católicos padre Toninho e frei David, o pastor
evangélico Dr. Euclides da Silva e o babalorixá Francisco de Oxum –, o culto teve o sabor
marcante das coisas de origem africana, presente não só nos atabaques e outros instru-
mentos de percussão, mas também nos cânticos e nos movimentos a que o corpo se via
irresistivelmente conduzido pela magia do ritmo contagiante dos orixás. Mais ainda do que
isso, a mensagem transmitida pelos sacerdotes, em suas palavras e no seu gestual, de-
monstrava seu comprometimento com a busca da verdadeira fraternidade universal, as-
sentada no respeito e valorização das diferenças étnicas, e não na busca de sua supressão
pelo assimilacionismo que entre nós se disfarça com máscaras universalistas.
Confesso que, coração calejado por tantas décadas de confronto com o racismo
hipócrita de nossa sociedade, para o qual a Igreja Católica forneceu inestimável munição,
me senti emocionado. Pela homenagem em si - o Troféu Zumbi dos Palmares -, que
considero partilhar com uma legião de lutadores, ancestrais e contemporâneos, famosos e
anônimos, que como eu têm dedicado suas vidas à concretização do sonho de liberdade,
justiça e igualdade para os africanos e seus descendentes. Mas muito mais pelo aspecto
simbólico de que se revestia a cerimônia. Afinal, não se estava ali apenas aproveitando
“traços culturais” de origem africana para atrair negros e negras a um rebanho alheio.
Fazia-se, isto sim, uma verdadeira experiência de integração, em que as partes se juntam
sem abandonar sua essência, criando o novo sem perder a referência às respectivas
matrizes.
Na festa de confraternização que se seguiu ao culto, cuja peça de resistência não
poderia deixar de ser uma suculenta e negra feijoada comunal, tive a oportunidade de
rever antigos companheiros e conhecer alguns dos muitos militantes que têm contribuído
para estimular minhas esperanças no triunfo final de nossos ideais. Dentre estes, a cria-
ção de uma Universidade Afro-Brasileira, defendida na pregação do padre Toninho, páro-
co daquela igreja, como centro de produção, reprodução e memória do pensamento dos
africanos no Brasil, sonho que de há muito venho acalentando e que tenho agora a felici-
dade de ver compartilhado por irmãos e irmãs de luta dotados do talento e da determina-
ção necessários para transformá-lo em realidade.
Momentos como esse demonstram que não têm sido em vão os nossos sacrifícios.
Abdias Nascimento
11
1
Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme
influência sobre o neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII.
T ho t h 15
Foto 1
Abdias Nascimento no papel de Brutus Jones, na peça O imperador Jones, de Eugene O’Neill. Teatro São Paulo,
São Paulo, 1953
20 THOTH 3/ dezembro de 1997
Debates
21
Dia Nacional da
Consciência Negra Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
cos; esta Nação terá uma etnia indivisível mudanças que se operam no país; mu-
quando todos os seus componentes - ne- danças, quem sabe, capazes de atingir
gro, índio e branco - tiverem uma efeti- até mesmo os mais insensíveis membros
va igualdade de oportunidades sociais, e do Senado. E talvez então o 20 de no-
gozarem de igual respeito à sua origem. vembro, Dia Nacional da Consciência
Enfim, delirante extravagância é o sena- Negra, consiga oficializar aquilo que já
dor pretender caracterizar a comunida- é, para a comunidade negra brasileira, o
de afro-brasileira como uma minoria ne- único feriado digno de comemoração. A
gra, quando somos o contigente majori- luta continua.
tário do povo brasileiro. E é para dar um
basta a extravagâncias do tipo desse
comportamento do senador Aloysio Cha-
Axé, Zumbi!
ves que os negros brasileiros se organi-
zam e lutam para dignificar sua História
e seus heróis. Nossa herança africana
não pode ficar à mercê das distorções,
incompreensões e injustiças dos racistas Deputado ABDIAS NASCIMENTO
mascarados do nosso Brasil.mmmmmm
No futuro, vou reapresentar esse
projeto de lei porque tenho confiança nas Sala das Sessões, em 27 de novembro de 1985
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 25
ATUAÇÃO
PARLAMENTAR
26 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 27
Cruz e Sousa
30 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Projetos de Lei
Prêmio Cruz e Sousa 31
Foi após a sua mudança para o Rio a grandiosidade de sua obra chamou a
de Janeiro, em 1890, que Cruz e Sousa atenção para “esse humilde filho de uma
integrou o primeiro grupo simbolista bra- raça que, até então, não produzira ne-
sileiro, do qual se tornou expoente maior. nhuma figura marcante nas nossas letras”.
Foi a partir de sua obra poética, segundo
Nesse final de século, em que as
juízo dos mais importantes historiadores
da literatura brasileira, que se renovou a reivindicações dos movimentos negros
1. Relatório
1. Relatório
2. Parecer
I - que o Presidente do Congresso
Nacional indicará cinco parlamentares A proposta sob exame se insere
para compor um Conselho, ao qual nas comemorações do centenário da
incumbirá: morte do grande poeta simbolista
a) eleger seu Presidente; brasileiro Joaõ de Cruz e Sousa.
JUSTIFICAÇÃO
A história oficial tem dedicado mui- baianos, todos mulatos e pardos, luta-
to de seu tempo e empenho no sentido ram pela emancipação dos escravos, per-
de esclarecer e difundir a relevância da seguindo o ideal de instalação de um go-
Inconfidência Mineira, acontecida nove verno competente que não fizesse distin-
anos antes, em Minas Gerais, e perpe- ção de raça entre os cidadãos.
tuada graças à justa magnitude que tem
Sentenciados com a pena de
sido conferida à figura de seu líder máxi-
morte, os líderes João de Deus Nas-
mo, Joaquim José da Silva Xavier, o
cimento, Manuel Faustino dos Santos
Tiradentes.
Lira, Luís Gonzaga das Virgens e
Há, no entanto, uma característi- Lucas Dantas Torres foram executa-
ca que precisa ser resgatada e que é fun- dos e tiveram seus corpos esquar-
damental para a compreensão, tanto da- tejados. Como Tiradentes, foram mar-
quele período, quanto do papel desempe- cados para o sacrifício, como forma
nhado pela Conjuração Baiana na histó- de aplacar a fúria da Coroa portugue-
ria brasileira. Em Minas, o movimento re- sa, e demonstraram a bravura dos
volucionário foi eminentemente político mártires.
e conduzido por intelectuais, sacerdotes
A intenção da presente iniciati-
e abonados proprietários de terras. Na
va, portanto, reside, sobretudo, no res-
Bahia, ao contrário, a insurreição assu-
gate desses humildes heróis brasilei-
miu um caráter social e foi liderada por
ros, que, tanto quanto Tiradentes, sim-
gente do povo, como alfaiates e solda-
bolizam o espírito republicano. Mais
dos, todos mulatos e pobres, sem nenhu-
que isso, materializam a luta contra o
ma personagem de destacada situação
preconceito racial e o lançamento das
na escala social.
bases de uma sociedade democrática.
Contudo, tanto a Inconfidência Mi- Uma das suas proclamações, divulgada
neira quanto a Conjuração Baiana foram em plena revolução, declarava: “Quer o
movimentos que contribuíram de modo de- povo que todos os membros militares de
finitivo para a liberdade do País, abrindo linha, milícia e ordenanças, homens bran-
caminho para o grito da Independência e cos, pardos e pretos concorram para a
os primeiros passos da República. liberdade popular.”
Revolução articulada nas ruas en- A inscrição dos líderes da Conju-
tre escravos e libertos, soldados e artífi- ração Baiana no “Livro dos Heróis da
ces, operários e agricultores, o movimen- Pátria”, permanentemente depositado
to baiano teve o objetivo de propiciar no Panteão da Liberdade e da Demo-
aos homens do povo acesso aos pos- cracia, promove o justo resgate, para
tos de trabalho que lhes eram negados a cena brasileira, de um importante epi-
por mero preconceito de cor. Em últi- sódio da história nacional, no momento
ma instância, os revolucionários em que ele completa duzentos anos.
45
Projetos
Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798
no “Livro dos Heróis da Pátria”
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
cil da exploração e da inferiorização hu- to dos orixás. Ainda adolescente, foi in-
mana promovidas pelos “colonizadores”. vestido com vários títulos e funções na
complexa hierarquia das duas comuni-
Transplantadas para as Américas
dades religiosas, afirmando-se como lí-
com o tráfico de africanos escravizados,
der natural da tradição afro-brasileira. Em
as religiões africanas aqui desenvolve-
1936, pelas mãos da ialorixá Obabiyi -
ram, como forma de sobrevivência, a es-
Eugênia Ana dos Santos, a famosa Mãe
tratégia do disfarce e do silêncio. Nesse
Aninha -, é confirmado Assogbá, supre-
contexto, a oralidade impôs-se como ne-
mo sacerdote do culto de Obaluaiê, no
cessidade, não apenas do ponto de vista
Axé Opô Afonjá, uma das comunidades
de sua dinâmica interna, mas também, e
mais ortodoxas e fiéis aos ensinamentos
principalmente, de seu posicionamento de
e tradições transmitidos pelos seus fun-
defesa diante da cultura branca dominan-
dadores africanos. Membro mais velho
te. Daí o primado da tradição que, num
da linhagem dos Axipá no Brasil, em 1968
sistema de comunicação oral, constitui o
foi ordenado Balé-Xangô, numa históri-
veículo de conservação e transmissão do
ca cerimônia realizada na cidade de Oyo,
saber, através do tempo e do espaço,
Nigéria, de onde o culto, assim como seus
entre as gerações.
próprios antepassados, foram trazidos
É, assim, com enorme respeito e para a Bahia quase dois séculos atrás.
admiração que subo hoje a esta tribuna
Em 1946, Mestre Didi publica, pela
para prestar minha homenagem à maior
Editora e Livraria Moderna, seu primei-
figura viva da tradição religiosa afro-bra-
ro livro, Iorubá tal qual se fala, um di-
sileira, que encarna em si mesma toda a
cionário e vocabulário iorubá-português,
força, poder e mistério de um sistema de
no qual chama a atenção para a existên-
crenças que persistiu a séculos de mas-
cia e persistência da utilização de uma
sacre físico e psicológico. Refiro-me a
língua africana como meio de identifica-
Deoscóredes Maximiliano dos Santos,
ção e comunicação de grupos afro-bra-
Mestre Didi, o Assogbá do Axé Opô
sileiros concentrados nos templos, ou ter-
Afonjá, uma das mais importantes comu-
reiros, do candomblé. É o início de uma
nidades religioso-culturais afro-brasilei-
vasta obra, incluindo livros e ensaios, so-
ras. Nascido em Salvador, Bahia, em
bre a cultura oral afro-brasileira. Uma
1917, filho da respeitada sacerdotisa Mãe
obra que inclui: Axé Opô Afonjá, com
Senhora, Mestre Didi é descendente de
prefácio de Pierre Verger e notas de
uma antiga linhagem de sacerdotes dos
Roger Bastide, editado no Rio de Janeiro
cultos de origem ketu-nagô. Tendo alcan-
em 1962 pelo Instituto de Estudos Afro-
çado ainda a convivência com africanos
Asiáticos; Contos de nagô (1963), com
na ilha de Itaparica, foi iniciado aos oito
ilustrações de Carybé, pela GRD do Rio
anos de idade no culto dos ancestrais - o
de Janeiro; West African rituals and
culto dos eguns -, tendo recebido o título
sacred art in Brazil, em co-autoria com
de Korikouê Olkukotun, e aos 15 no cul-
Pronunciamentos
Homenagem a Mestre Didi 59
temunhando explorações estéticas pro- Axé Opô Afonjá, que funcionou por quase
fundamente ligadas, do ponto de vista dez anos: a Minicomunidade Obá-Biyi -
formal e conceitual, à cultura de que se uma escola que incorporou ao seu currí-
originam. Como explica o pesquisador culo, bem como à sua prática pedagógi-
Marco Aurélio Luz, “o valor máximo da ca como um todo, os elementos funda-
arte escultórica de Mestre Didi está em mentais da tradição africana no Brasil.
conseguir estabelecer um padrão estéti- Embora interrompida em função dos eter-
co original que harmoniza a passagem do nos problemas de recursos financeiros
espaço no contexto das recriações pro- que infelizmente costumam acompa-
fanas, mantendo a complexidade simbó- nhar iniciativas dessa natureza, a
lica e a profundidade das elaborações Minicomunidade constitui um marco re-
sagradas”. Tudo isso valeu a Mestre Didi volucionário na história da pedagogia no
uma profusão de prêmios e menções Brasil, tanto pela orientação pedagógica,
elogiosas, inscrevendo o seu nome na que contemplava os elementos fundamen-
reduzida galeria dos artistas plásticos bra- tais da tradição nagô, quanto pela
sileiros, de qualquer origem, considera- metodologia, caracterizada pelo respeito
dos dignos de tal reconhecimento. Uma à alteridade, ou à diferença, fundamental
vez mais, porém, isso não lhe trouxe a num contexto de multirracialidade e
merecida fama fora dos círculos pluriculturalismo. Ainda assim, e embora
especializados. os alunos que por ela passaram apresen-
tassem melhor aproveitamento dos con-
Mas as notáveis contribuições de
teúdos curriculares e sensível redução na
Mestre Didi não se esgotam no terreno
evasão escolar, burocratas do Ministério
religioso e artístico. Desde 1967, a servi-
da Educação resolveram cortar as ver-
ço da Unesco, tem realizado, especial-
bas que a mantinham, sob a alegação de
mente na Nigéria e no Benim, importan-
que se tratava de uma experiência “de
tes pesquisas a respeito de pontos espe-
cunho religioso”. Com os novos ventos
ciais de origem dos afro-brasileiros de
que sopram de Brasília, onde temos pela
ascendência nagô. Ao mesmo tempo,
primeira vez um presidente da República
suas preocupações com o destino da cul-
aparentemente preocupado em encami-
tura e do povo de origem africana no
nhar soluções para a questão racial nes-
Brasil o levam a atuar em organizações
te País, esperamos que esse importante
identificadas com esses mesmos propó-
projeto possa ser retomado.
sitos. É o caso da Secneb - Sociedade de
Estudos da Cultura Negra no Brasil, de Certa ocasião, no apartamento do
Salvador, na qual foi escolhido, em 1974, casal Zora e Antônio Olinto, fiquei co-
conselheiro e coordenador de Assuntos nhecendo Mãe Senhora, a respeitada sa-
Comunitários. Na mesma linha, cabe des- cerdotisa do Axé Opô Afonjá, da Bahia.
tacar o notável trabalho educativo reali- Sentada numa poltrona imponente como
zado pela Secneb, em conjunto com o um trono, Mãe Senhora indicou-me um
Pronunciamentos
Homenagem a Mestre Didi 63
Escultura do Mestre Didi Sasara Ibiri Ati Ejo Meji. Nervura de palmeira, couro, búzios. Altura: 70 cm
64 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Homenagem a Mestre Didi 65
assento próximo a ela. Colocou suas e conhece o destino dos seres humanos.
mãos sobre minha cabeça e respondeu a Respondi-lhes que apenas havia expres-
minha indagação: “Sim, você tem com- sado um impulso artístico, sem nenhuma
promisso com os orixá; mas sua tarefa outra intenção. Eles então me ensinaram
não é dentro do terreiro. Sua missão é que Oxum era o único orixá a quem Ifá
trabalhar pelos santos lá fora.” Conhe- havia concedido o poder de, igual a ele,
cer Mãe Senhora significou um reforço ver e conhecer a sorte dos homens e das
da velha amizade que me ligava a seu mulheres. Mas a mim Oxum estava con-
filho Deoscóredes Maximiliano dos San- cedendo a graça de conhecer todas as
tos, ou Mestre Didi. Com Mestre Didi, dimensões dos seus poderes, por meio
tive o prazer de compartilhar uma ex- dos seus símbolos e emblemas rituais.
periência inesquecível, embora as pala-
Assim, inspirado por esse encon-
vras de Mãe Senhora me tivessem
tro com Didi, tratei de ampliar aquele mo-
desestimulado de um aprofundamento
mento tão significativo da espiritualidade
maior nos ensinamentos e nos mistérios
afro-brasileira em plena Nova York.
do candomblé.
Contatei um babalorixá norte-americano
Corria o ano de 1969 e eu, recém- formado nos templos ñañigos de Cuba -
chegado aos Estados Unidos, vivia o pe- o sacerdote Oseijema, que atualmente
ríodo inicial de um exílio que deveria pro- dirige uma comunidade-templo na Caro-
longar-se por mais de uma década. Em lina do Sul. Oseijema preparou uma re-
Nova York eu havia retomado uma bre- cepção à altura do Alapini afro-brasilei-
ve experiência, iniciada no Rio de Janei- ro. Localizado no Harlem, o templo de
ro, pintando alguns quadros com motivos Oseijema anoiteceu iluminado, florido,
afro-brasileiros. Certo dia recebi na casa com o corpo sacerdotal vestindo seus
em que estava hospedado a visita do paramentos solenes. Os tambores soa-
Mestre Didi e de sua esposa Juanita. ram, enchendo a noite de ritmos quen-
Mostrei a eles minhas tentativas pictóri- tes. E Didi foi recebido solenemente
cas. Numa determinada tela, onde se como um verdadeiro príncipe-sacerdote
viam Xangô e suas três esposas, numa de sua raça. E ambos, Oseijema e Didi,
delas, na imagem de Oxum, Didi se de- naquele encontro, mais uma vez teste-
teve, apontando-a para Juanita. Troca- munharam a importância das religiões
ram um olhar significativo, e eu os inter- africanas como instrumentos de coesão
pelei. Queria saber se, na minha superfi- e fortalecimento da cultura de um povo
cial formação religiosa, havia cometido separado e dividido pela violência do
alguma barbaridade sacrílega. Porém colonialismo escravista.
ambos acalmaram minha ansiedade, in-
Entretanto as peripécias do exílio
dagando como e por que eu havia colo-
me levaram a um périplo de um ano na
cado, no olho de Oxum, um símbolo de
Nigéria, Universidade de Ifé, na qualida-
Ifá, o orixá que vê o passado e o futuro,
de de professor-visitante. Entre os cole-
66 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Foto 7
Pronunciamentos
Homenagem a Mestre Didi
67
Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, Mestre Didi, senador Abdias Nascimento e Juana Elbein dos Santos. Lançamento do livro Por que Oxalá
usa ekodidê. Paço Imperial, Rio de Janeiro, setembro de 1997
68 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 69
__________________________
*
Contribuição à Iniciativa Relações Humanas Comparadas, Superando o Racismo/ Consulta ao Brasil, África do Sul
e Estados Unidos, Southern Education Foundation, Seminário realizada no Rio de Janeiro, 2-4 de setembro de 1997.
Embora tenhamos elaborado o texto em co-autoria, narramos na primeira pessoa os episódios contados por Abdias
Nascimento, pois, de acordo com os termos definidos pela organização da Iniciativa, é o seu depoimento pessoal
que caracteriza o objetivo deste ensaio.
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 71
que lhes habilitavam também a ver, a no seu conceito o negro, um ser inferior,
descobrir o espaço que ocupavam, não seria capaz de desempenhar papel
dentro do grupo afro-brasileiro, no dramático de tal envergadura.
contexto nacional. (Nascimento, 1978:
Foi o que os “amigos” do negro
257).
alegaram quando, de volta ao Brasil, con-
A idéia do Teatro Experimental do segui reunir um pequeno grupo de reso-
Negro nascia de toda uma experiência lutos e convictos para iniciar os traba-
de luta contra a discriminação racial, vi- lhos do Teatro Experimental do Negro, e
vida desde o dia em que minha mãe, a resolvemos estrear com uma produção
doceira dona Josina de Franca, se atirou do mesmo O imperador Jones. Unani-
à rua na defesa de um menino negro, ór- memente, aconselharam uma estréia mais
fão, que levava uma surra de vizinhos modesta, uma peça que não exigisse tanto
brancos. Participei mais tarde da Frente empenho, expressão dramática e sofisti-
Negra; fui expulso do Exército por conta cação de um elenco de novatos, ainda
de protestos contra a discriminação raci- por cima negros2! Essa postura apenas
al em bares e barbearias paulistas. Ca- nos deixou mais determinados: mantive-
sou-se essa experiência de luta com uma mos o compromisso de estrear com
curiosidade intelectual e uma paixão pela Aguinaldo Camargo no papel do herói de
cultura, e se concebeu o TEN durante O imperador Jones.
uma viagem a Lima, no Peru, quando
A crítica, cética quanto à possibi-
assisti à peça O imperador Jones, de
lidade de sucesso da produção de uma
Eugene O’Neill, estrelada por Hugo
peça tão difícil, confessou unanimemen-
D’Evieri, um argentino branco pintado de
te sua surpresa com a qualidade artística
preto. Refleti: no Brasil, fatalmente acon-
do espetáculo. Os jornais da época re-
tece o mesmo. Em primeiro lugar, no te-
gistram a avalanche de elogios ao Teatro
atro brasileiro não existia uma peça com
Experimental do Negro.
um protagonista negro de densidade dra-
mática; só o estereótipo do moleque bobo O TEN produziu muitos outros
de riso fácil, a mãe preta abnegada ou o espetáculos, sempre dentro da mesma
pai-joão submisso. Talvez uma peça nor- marca de qualidade artística. De O’Neill,
te-americana com protagonista negro até produziu Todos os filhos de Deus têm
se pudesse montar, mas com um ator ne- asas, O moleque sonhador e Onde está
gro no papel principal, nunca. Sempre a marcada a cruz. Estimulou o apareci-
cultura discriminatória exigiria o pixe, pois mento de dramaturgos negros e de pe-
________________________
2
Ver, por exemplo, R. Magalhães Júnior, “Um grande artista”, Diário de Notícias, 25.03.1952, artigo sobre a
morte de Aguinaldo Camargo em que rememora sua reação: “Como? O imperador Jones? Mas é uma peça
dificílima (...). Você precisaria de um grande ator para recriar, no Brasil, o papel que foi antes feito por Paul
Robeson (...). [A figura pequena, franzina de Aguinaldo à minha frente] não me convenceu. Intimamente,
continuava a achar absurda a tentativa.”
Foto 8
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil
75
Elenco do Teatro Experimental do Negro (TEN) ensaia a peça Auto da noiva, escrita por Rosário Fusco especialmente para o TEN. Rio de Janeiro, década
de 50. Mais tarde, em 1971, a peça foi encenada, em português, pelos alunos do departamento de línguas da Universidade de Indiana em Bloomington
76 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 77
Apresentação de Sortilégio no Teatro Municipal de São Paulo (1957) provocou este desenho publicado no jornal O Estado de São Paulo
80 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 81
_____________
3
A polêmica sobre o estudo do sociólogo L.A. da Costa Pinto, que se apropriou dos anais do Congresso para seu
estudo encomendado pela UNESCO, exemplifica bem esse embate. Respondendo às críticas do sociólogo afro-
brasileiro Guerreiro Ramos, Pinto declarou (apud Nascimento, 1982: 62): “Duvido que haja biologista que, depois
de estudar, digamos, um micróbio, tenha visto esse micróbio tomar da pena e vir a público escrever sandices a
respeito do estudo do qual ele participou como material de laboratório.”
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 85
crita. E mesmo assim éramos denuncia- africanos, de lutar por seus direitos em
dos como racistas radicais, até por nossa sociedades segregacionistas e numa or-
gente. Não aprendi nada de novo com dem mundial herdada do colonialismo. No
os negros nos Estados Unidos, mas cer- Brasil - e nos países chamados “latinos”
tamente me sentia mais à vontade para da América em geral - as teorias da con-
desenvolver meu próprio pensamento sem vivência harmônica entre as raças, e da
aquela mordaça da democracia racial, de mestiçagem étnica e cultural, levaram à
esquerda ou direita, que sempre nos pren- negação da necessidade específica de
dia no Brasil. luta anti-racista. Ao resolver a “questão
social”, a discriminação iria sumir magi-
Pude me integrar, levando a men- camente, e quem não acreditasse nisso
sagem afro-brasileira, a movimentos in- era racista às avessas.
ternacionais como o VI Congresso Pan-
Africano, realizado em Dar-es-Salaam Já na Nigéria, em 1977, foi a dita-
(1974). Dele participei desde a reunião dura militar brasileira que tentou me ca-
preparatória realizada na Jamaica, em lar. Fui convidado a apresentar um tra-
1973, e acompanhei o vivo interesse pelo balho ao Colóquio, fórum intelectual do
Brasil de um homem muito à frente do II Festival Mundial de Artes e Culturas
seu tempo: C.L.R. James, um revolucio- Negras e Africanas, realizado em Lagos.
nário negro de Trinidad que insistia em O Governo brasileiro, por meio do
que o Brasil fosse representado por uma Itamaraty, tentou vetar minha participa-
grande delegação, na qualidade de país ção de todas as formas, inclusive medi-
com maior população africana fora da ante de desgastadas táticas emprestadas
África. No próprio Congresso, entretan- da CIA (Nascimento, 1981). Conseguiu
to, eu e outros de países multirraciais da excluir-me do Colóquio como convida-
diáspora africana sofremos pressão de do. Entretanto, participei como observa-
parte da linha ideológica marxista-leninista dor e, com o apoio de delegações da
que prevalecia devido ao patrocínio go- diáspora e da imprensa e intelectuais
vernamental do Congresso (Nascimen- africanos, bem como do ministro de Edu-
to, 1980). cação nigeriano e coordenador do Coló-
quio, coronel. Ali, fiz minha intervenção
Essa linha ideológica pressionava denunciando o racismo no Brasil (Nasci-
o discurso do Movimento Negro nos Es- mento, 1977).
tados Unidos, na África do Sul e no mun-
do africano como um todo. Mas havia Ainda na Nigéria, recebi convite
uma diferença em relação à nossa expe- para participar do I Congresso de Cultu-
riência. Por mais que essa ideologia im- ra Negra das Américas, organizado pelo
pusesse a primazia da luta de classes, não valente afro-colombiano Manual Zapata
havia como negar a necessidade especí- Olivella e realizado em Cáli, Colômbia,
fica nem do negro nos Estados Unidos e em 1977. Lá encontramos Sebastião
no país do apartheid, nem dos países Rodrigues Alves, Mirna Grzich e Eduar-
foto 10
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil
87
Em junho de 1974, Abdias Nascimento representando o negro brasileiro no 6 o Congresso Pan-Africano em Dar-es-Salaam, Tanzânia. À esquerda, Sam
Nujoma, então líder da SWAPO, organização de libertação do povo da Namíbia, hoje presidente dessa nação africana
88 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 89
_______________
4
Alguns, como por exemplo Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Paulo Freire, Clóvis Brigagão, Betinho, Fernando
Gabeira e Arthur Poerner, conseguiam superar tais fantasmas ideológicos.
90 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Creio que uma das mais importan- da democracia na chamada Nova Repú-
tes medidas do meu mandato foi a de blica (Nascimento, 1985). As entidades
abrir, no Congresso Nacional, o prece- do Movimento Negro proliferavam e ga-
dente de uma proposta que hoje ganha nhavam destaque mediante sua atuação
cada vez mais destaque: a instituição de contundente. No bojo da criação e con-
políticas públicas específicas para a po- solidação do Memorial Zumbi, que já ti-
pulação de origem africana, por meio da nha articulado um diálogo entre setores
chamada ação afirmativa, ou ação com- governamentais e o Movimento Negro,
pensatória na linguagem do meu Projeto ganhou relevo a idéia de políticas públi-
de Lei no 1.332, de 1983. Esse projeto cas específicas para a população afro-
estabelece mecanismos de compensação brasileira, embora ainda sem essa desig-
do afro-brasileiro após séculos de discri- nação. Sua maior expressão se deu, tal-
minação, entre elas a reserva de 20% de vez, no Encontro Nacional de Militantes
vagas para mulheres negras e 20% para Negros realizado em 1984 em Uberaba,
homens negros na seleção de candidatos na administração do prefeito Wagner do
ao serviço público; bolsas para estudos; Nascimento. Como deputado federal,
40% de empregos na iniciativa privada e pude levar o documento elaborado nesse
incentivos às empresas que contribuírem encontro ao futuro Presidente Tancredo
para a eliminação da prática da discrimi- Neves, e mais tarde retomar as reivindi-
nação racial; incorporação ao sistema de cações da comunidade, nele contidos, em
ensino e à literatura didática e para-didáti- vários encontros com o presidente José
ca da imagem positiva da família afro-bra- Sarney e com os ministros Celso Furta-
sileira, bem como da história das Civiliza- do e José Aparecido5.
ções Africanas e do africano no Brasil.
Iniciou-se nessa época, em alguns
Dediquei o mandato também à questão
setores governamentais, a evolução de
das relações do Brasil com a África do
uma aceitação da proposta de uma atua-
Sul, país do apartheid, e à defesa do di-
ção administrativa voltada ao atendimento
reito dos povos de Namíbia e dos países
das necessidades específicas da popula-
africanos de língua portuguesa à autode-
ção afro-brasileira. A concretização des-
terminação, bem como a constante afir-
sa tendência articulou-se na criação de
mação de solidariedade com as lutas de
órgãos de assessoria de governo, o pri-
libertação dos povos africanos.
meiro sendo o Conselho de Participação
A crescente e cada vez mais efi- e Desenvolvimento da Comunidade Ne-
caz mobilização do Movimento Negro se gra, instituído pelo Governador Franco
fazia sentir no processo de consolidação Montoro, do Estado de São Paulo. No
_____________
5
Os textos do discurso de encaminhamento e do documento de Uberaba, entregues ao presidente Tancredo Neves,
encontram-se transcritos no livro Povo negro: a sucessão e a Nova República (Nascimento, 1985).
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 93
Lançamento do livro O quilombismo, João Pessoa, 1980, com a presença de Dom José Maria Pires, arcebispo da
Paraíba
94 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Pronunciamentos
Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 95
âmbito da cultura, tal evolução foi expres- Alberto de Oliveira Caó e Paulo Paim,
sa nas propostas específicas elaboradas anunciando a natureza pluricultural e
pelos representantes da comunidade afro- multiétnica do país (art. 215, par. 1o), es-
brasileira no Encontro Nacional de Se- tabelecendo o racismo como crime
cretários de Estado de Cultura (Ouro inafiançável e imprescritível (art. 5o,
Preto e Belo Horizonte, 1984), que tive inciso XLII) e determinando a demarca-
ocasião de apresentar à sessão de deba- ção das terras dos remanescentes de
tes sobre Etnias e Identidade Cultural (I quilombos (art. 68, Disposições Transi-
Encontro Nacional de Política Cultural, tórias). Entretanto, essas conquistas mar-
1985:193). Essas propostas foram cam sobretudo o grau de mobilização da
traduzidas em políticas públicas por di- comunidade afro-brasileira, que partici-
versos Estados e municípios do país por pou de comissões parlamentares e se
meio da criação de assessorias, divisões, manifestou de diversas formas para
programas e departamentos para a cul- assegurá-las. Uma expressão dessa
tura afro-brasileira, começando com as mobilização encontra-se na realização
Secretarias de Cultura e Educação do Rio dos Encontros Estaduais e Regionais das
de Janeiro e de São Paulo (Larkin-Nas- Entidades Negras, realizados em diver-
cimento, 1993, 1994; Grupo de Trabalho sos Estados e nas Regiões Norte-Nor-
para Assuntos Afro-Brasileiros, Secre- deste e Sul-Sudeste nesse final da déca-
taria de Educação do Estado de São Pau- da dos oitenta, e culminando com o I
lo, 1988). No Governo federal, a criação Encontro Nacional das Entidades Negras
de uma Assessoria para Assuntos Afro- (ENEN), realizado em São Paulo em
Brasileiros e da Comissão para o Cente- 1991. Após a Constituinte nacional, o pro-
nário da Abolição da Escravatura, no seio cesso constituinte nos Estados e municí-
do Ministério da Cultura, expressa essa pios também testemunhou uma ação efe-
mesma tendência. tiva do Movimento Negro mobilizado, em
que muitas conquistas foram assegura-
Conquistas na Constituinte, Cente-
das nas constituições estaduais e muni-
nário da Abolição e Fundação
cipais.
Palmares
Outra dimensão dessa mobilização
Nas eleições de 1986, a represen-
está na atuação do Memorial Zumbi, no
tação afro-brasileira no Congresso au-
sentido de consolidar a proposta do Mo-
mentou, embora ainda tenha ficado mui-
vimento Negro de celebrar o dia 20 de
to aquém de uma representação signifi-
novembro como Dia Nacional da Cons-
cativa, muito menos proporcional. Creio
ciência Negra, mediante peregrinações
que minha atuação parlamentar tenha
anuais à terra de Palmares. Da articula-
ajudado a abrir o caminho para a apro-
ção entre o Memorial Zumbi e a Comissão
vação de dispositivos propostos pelos
para o Centenário da Abolição da Escra-
parlamentares negros da Constituinte de
vatura, no seio do Ministério da Cultura
1988, deputados Benedita da Silva, Carlos
96 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Enquanto não se concretizar esse Degler, Carl. Neither black nor white.
quadro, a organização do movimento Nova York: MacMillan, 1971.
afro-brasileiro contribui fundamentalmen-
te para a construção de uma verdadeira Larkin Nascimento, Elisa (org.).
Pan-africanismo na América do
prática de democracia no país, pois sua Sul. Petrópolis:
atuação aponta para a necessidade da Editora Vozes/Ipeafro, 1981.
inclusão de todos os segmentos
socioculturais e classes sociais, mantidas –. Dois negros libertários. Rio de Janeiro:
e respeitadas as identidades específicas. Ipeafro, 1985.
102 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
Senhor Presidente,
Discurso proferido no Senado Senhoras e Senhores Senadores,
Federal em 23 de outubro de 1997
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
Gente que um dia seria descrita como se tem notícia, esses homens, mulheres
“estimando mais a liberdade entre as e crianças eram inconscientemente o
feras que a sujeição entre os homens”. objeto de uma singular experiência no
Sentimento que os fizera fugir de fa- campo da engenharia humana. Uma ex-
zendas e engenhos para se refugiar periência que iria alterar para sempre a
naquele “sítio naturalmente áspero, face das Américas - e de todo o planeta
montanhoso e agreste, com tal espes- -, fundindo corpos, sentimentos e cultu-
sura e confusão de ramos que em mui- ras, e redesenhando definitivamente o
tas partes é impenetrável à luz”, para mapa das populações humanas.
ali fundar Angola Janga, ou Angola
As primeiras levas de africanos
Pequena.
escravizados haviam chegado, quase 200
Corria o ano de 1695, e a Capita- anos antes, aos portos de Recife e da
nia de Pernambuco vivia ainda os tem- Bahia, e à Capitania de São Vicente, no
pos de fausto de um ciclo da cana-de- sul, trazidas já para as lavouras de cana-
açúcar que logo cederia vez ao ciclo do de-açúcar, as quais se espalhariam em
ouro, o qual acabaria deslocando o eixo pouco tempo por toda a região costeira
da economia colonial definitivamente da colônia - sempre tocadas pela força
para o sul. Fausto, é verdade, para uns do braço africano. Sua origem era, basi-
poucos fazendeiros, senhores de enge- camente, a parte sul da África. Em es-
nhos e suas famílias, cuja riqueza permi- pecial, Angola e Moçambique. Embora
tia alimentar-se com produtos importa- familiarizados com a escravidão dos pri-
dos de Portugal e das demais colônias. sioneiros de guerra, comum no Continen-
Mas, para a maioria do povo - leia-se: te Africano como em todo o mundo anti-
dos brancos -, a realidade era principal- go, o regime a que seriam aqui submeti-
mente a fome, cruel e onipresente numa dos não era, em absoluto, semelhante
região que produzia cana, cana e tão-so- àquele que conheciam. Não se tratava
mente cana, sem espaço para a agricul- de escravos de famílias nobres, realizan-
tura de subsistência. Num cenário que, do serviços domésticos. Seus senhores
por sinal, pouco mudaria nos três séculos não se pareciam com eles, na língua como
seguintes. nos traços físicos. Pior de tudo: jamais
poderiam voltar a seu lugar de origem,
Se assim viviam os brancos sem
do qual os separava o grande oceano.
posses, mais terrível era, com certeza, a
sorte dos negros. Trazidos de sua terra O Capitão virou-se para o lado
natal, onde viviam em comunidades do sol nascente, como que a evocar
diversificadas pela língua, pelos costumes, uma terra que jamais tinha visto e que,
pela religião e pelo grau de avanço sabia, jamais iria ver. Conseguia
tecnológico, reduzidos à condição de es- enxergá-la, porém, pelos olhos das
cravos e obrigados a atravessar o Atlân- tantas mães-grandes que lhe haviam
tico na maior migração forçada de que descrito aquele lugar gigantesco e
Pronunciamentos
Celebração de Zumbi dos Palmares 113
que marcham carregados do sustento que Calvo, perto de Palmares, usada como
levam, e alguns largam tudo por fugir base de operações contra os
mais desembaraçados, dilatando a vida, aquilombados. Batizado de Francis-
mas não evitando a morte, que por mãos co, o menino revelara grande inteli-
da fome, interior e irreparável inimigo, gência, aprendera a ler e escrever -
depois padecem. (...) Quando chegam os privilégio único entre os do seu povo
nossos às povoações dos negros, leva- - e se tornara coroinha. Nada disso,
dos por guia, ou por acaso, os acham com porém, o colocara em dúvida sobre
fortificações de estacadas e fossos com quem realmente era. Um sorriso, entre
paus agudos para os que caírem neles; irônico e benevolente, assomou aos
defendem-se com valor naquele primei- lábios do Capitão ao mirar o reflexo
ro ímpeto, resistindo ao assalto e peleja de seu rosto nas águas escuras da la-
com que os investem; vendo-se aperta- goa iluminadas pelo brilho da lua
dos, se retiram pelos Palmares dentro, cheia. Imaginou a reação de espanto
para onde não podem ser seguidos, por- do sacerdote quando, aos 15 anos, o
que aquelas estradas só sabem andar e menino fugira para se juntar aos ne-
dentro daquele labirinto de troncos têm gros levantados de Palmares. Por mais
retiradas as suas famílias.” O mesmo se- bem-intencionado, o padre não podia
nhor de engenho enfatiza a “prática mili- entender o sentimento daquele meni-
tar, aguerrida na disciplina do seu capi- no, desejoso de fazer parte de uma
tão e general Zumbi, que os fez luta cujo objetivo não era a liberdade
destríssimos nos usos de todas as armas, de um só negro, ou de um grupo de
de que têm muitas em quantidade, assim negros, mas de todos os africanos es-
de fogo como de espadas, lanças e fle- cravizados trazidos para aquela ter-
chas”. ra estranha. Mas todo aquele apren-
dizado, se um dia parecera inútil di-
A memória do Capitão fê-lo re-
ante da nova realidade dos
cuar 40 anos, trazendo-lhe à mente o
mocambos, em que o jovem fora obri-
bebê franzino entregue, como se fora
gado a se iniciar principalmente nas
um animalzinho doméstico - uma
artes da guerra, mais tarde se revela-
“cria”, no rude linguajar dos
ra um fator importante no
escravagistas -, ao padre Antônio
enfrentamento de um adversário que
Melo. Isso aconteceu logo após a ex-
ele conhecera de perto, convivendo
pulsão dos holandeses em
lado a lado, em todas as suas quali-
Pernambuco. O governador Francis-
dades e fraquezas. Lembrou-se viva-
co Barreto enviou uma expedição mi-
mente de Ganga Zumba, mestre dos
litar contra Palmares. Num primeiro
mestres da guerra, de seu irmão Gana
encontro, a expedição teve êxito e fez
Zona, de Pedro Carapaça, de Amaro,
um lote de prisioneiros, entre os quais
Arotirene, Osanga, Andalaquituche e
estava ele, ainda bebê. Foi parar nas
Ganga Muíça, e de todos os malungos
mãos do padre Melo, na vila de Porto
Pronunciamentos
Celebração de Zumbi dos Palmares 115
que lhe haviam ensinado a ciência da tia em prear - ou seja, caçar - negros e
vida e as artes da morte. A imagem de índios fugidos. Sujos, descalços e cober-
Ganga Zumba evocou-lhe a dolorosa tos de trapos, nada tinham da imagem ro-
divisão ocorrida no quilombo, quan- mântica que depois se fez deles - as botas
do o velho comandante decidira acei- inclusive. Quase sempre mamelucos, filhos
tar a oferta de paz do Governador de homens portugueses e mulheres indí-
Pedro de Almeida, incluindo o posto genas, eram à época o produto mais aca-
de oficial do exército português. Em bado da miscigenação promovida pelos
troca, ele e seus homens teriam de ca- lusos, aos quais serviam como eficazes e
çar pessoalmente e devolver aos anti- temidos cães-de-caça. Domingos Jorge
gos donos os escravos fugidos. Ah!, Velho era um desses homens, ou talvez o
como fora penosa a decisão de guer- pior deles. Por isso foi escolhido para
rear Ganga Zumba, seu antigo chefe, derrotar Palmares.
por todos os meios necessários, até Era uma empreitada dificílima, já
mesmo o envenenamento. Mas tivera se tinha visto, e para levá-la a cabo foi
de ser assim, não havia outra forma. necessário reunir um exército de 9 mil
Era preciso lutar até que o último ne- homens, entre combatentes e retaguar-
gro estivesse livre do domínio dos da. Isso mais uma completa infra-estru-
brancos. Mesmo que isso significasse tura bélica, com os melhores armamen-
ter de cortar a própria carne. tos então disponíveis na colônia. Depois
A mesma oferta feita a Ganga de muitas investidas - e de algumas der-
Zumba, em 1678, seria repetida ao pró- rotas -, os homens de Domingo Jorge
prio Zumbi, dois anos depois, agora pelo Velho conseguiram, em setembro de 1694,
governador Aires de Sousa e Castro: vencer a heróica resistência dos
“perdão” e liberdade, para ele e sua fa- quilombolas do Macaco, o maior e mais
mília, em troca da traição à causa. A re- importante mocambo, dizimando os guer-
cusa peremptória fez o Governador en- reiros, degolando impiedosamente os
tender melhor a situação. Zumbi não se vencidos e aprisionando os sobreviven-
dobrava. Seria preciso derrotá-lo militar- tes. Zumbi, no entanto, conseguiu fugir,
mente. Poucos seriam capazes dessa pro- ao lado de um punhado de seus homens.
eza. Embrenhou-se no mato, em busca de um
refúgio seguro onde pudesse recuperar
No século XVII, as palavras as foças e esperar o melhor momento
paulista e bandeirante eram quase sinô- para reorganizar a resistência.
nimas, mas com uma conotação bem di-
versa do que se poderia imaginar hoje Um ano depois, em setembro de
em dia. Em lugar de respeito e admira- 1695, uma tropa composta de “morado-
ção, evocavam antes temor e desprezo, res do Rio São Francisco” emboscou um
pois se referiam a uma gente rude e san- destacamento de Zumbi, chefiado pelo
guinária, cuja principal atividade consis- mulato Antônio Soares, que foi aprisio-
116 THOTH 3/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
A segunda visa atender a demanda da comunidade afro-brasileira e de estudiosos em geral por solicitação de
apoio a projetos de atuação, nos diversos Estados brasileiros, para permitir a realização de ações que permitam
a visibilidade dessas comunidades. Assim, essa emenda vem destinar recursos para programas de estímulo à
produção artístico-cultural referenciada nas manifestações dos diversos segmentos étnicos. (R$ 300.000,00).
130 THOTH 3/ dezembro de 1997
Atuação Parlamentar
com intensidade, mas sabe que este ex- possível que tudo isto seja verdade,
cesso de amor sublime não pode ser porque quando nascemos trazemos um
correspondido. Por isto, não se prende estigma e um destino, que nos acom-
muito às afeições amorosas. Quando panhará pela vida afora, como a estre-
gosta de alguém, com medo de ser de- la cintilante do Oriente seguiu, no céu
cepcionado, vai levando na corrente im- da Judéia, os Reis Magos, indicando-
petuosa do destino essa paixão que po- lhes a estrada miraculosa por onde nas-
deria consumi-lo de dor e desespero. Tem ceu o Salvador do mundo. Até hoje não
o gênio forte, enfrenta qualquer tipo de quis galgar as posições mais vantajo-
empecilhos, não leva jamais desaforo de sas com receio de ferir alguém, na pe-
ninguém e para defender um direito seu leja para se conseguir este posto cobi-
vai até as últimas conseqüências. O çado. Prefiro viver na minha modéstia
virginiano é bastante forte para enfren- e humildade, ganhando o necessário
tar os embates da vida, não desertando a para viver, podendo então ler os meus
área quando surge um contratempo ou clássicos, viver a vida com filosofia e
imprevisto. Devido ao seu gênio con- compreensão humana, poder conviver
ciliador, pois que este signo é regido com os semelhantes sem lhes desper-
pelo deus da cordialidade e do afeto, tar inveja pelos bens que, talvez, os te-
Mercúrio, o virginiano pode se dar com nhamos adquiridos de modo nada cor-
qualquer outro signo do zodíaco, mes- reto e condigno. 7 de setembro de 1923.
mo os de mais difícil temperamento, Mais de cinco décadas procurando me
como Câncer e Escorpião, sem esque- firmar, com a certeza de que tudo que
cer o de Gêmeos, que ostenta duas consegui foi à custa de muita pena e
personalidades, sem saber qual a ten- sofrimento, sem derrubar adversários,
dência que predomina no fim de con- egoisticamente, vencendo pisoteando
tas. O orgulho do virginiano nunca per- na honra e na dignidade de todas as
mite que ele se curve ou se abaixe a criaturas decentes e sensatas. Tudo que
quem deseja humilhá-lo, ou quer do- fiz até agora foi com aquela convicção
brar a sua cérvix, pensando que pode de que atingi a meta desejada, com o
afrontar ou destruir a sua moral orgulho alvissareiro de um dever cum-
inatacável e seu caráter imbatível. Tem prido. O título de advogado e bacharel
na amizade a suprema religião do seu em Direito, que consegui em 1974, é
ser. Ama levando mais em conta o se- um motivo de minha exultação, um fato
tor espiritual do que a parte física e grandioso e eloqüente de minha exis-
negativa do amor. Sua ternura tem um tência apagada. Farei deste diploma um
quê de pureza, sua afetividade se apro- galardão para melhor defender os ne-
xima do amor platônico que tanto rele- gros, o operário espoliado pela máqui-
vo deu a Abelardo e Heloísa, Dante e na capitalista e burguesa, para estar ao
Beatriz, Petrarca e a musa infinitesimal lado de todas as minorias oprimidas,
dos seus sonetos impecáveis: Laura. É como os gays marginalizados e as
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 135
polícia ou bisbilhoteiro podia ouvir a con- – Talvez por isto quem o matou
versação macabra. Nuvens negras corri- foi movido por ambição de roubar, sa-
am pelo céu nublado, empanando o palor bendo que Marcos era abonado e jamais
da lua triste, que esmorecia os seus raios teve qualquer problema financeiro.
pálidos. Um vento frio soprava as amen-
doeiras da Rua Picuí, crispando as águas – Não foi dinheiro o móvel do
sujas do córrego cantante que serpeava em crime.
meio às casas humildes e no fundo do im- – Então, qual foi o motivo?
potente conjunto residencial. Um ou outro
– Causa passional ou vingança
notívago encarava a madrugada sombria,
de um amor ultrajado...
ora a desembestar pela rua, com sua mo-
tocicleta sinistra, ora apostando com o dia- – Será que aquele pára-quedista...
bo se seu carro era mais veloz nas curvas
– Ele foi visto, no dia do crime, a
do que o dele. Fafá, a cachorrinha branca
passear com um jovem de extraordiná-
que é a menina dos olhos da rua, passeia a
ria beleza.
sua beleza canina por entre as latas de
lixo do passeio, fuçando, levada pela – Estou sabendo que, antes de ha-
fome voraz, os baldes de detritos e os ver a tragédia, Marcos esteve rodeado
sacos plásticos em que os ossos e as de amigos, que só o deixaram quando ele
sobras de comida dão para empanturrar já havia ingerido muito álcool, e caiu na
a sua barriga insaciável. Passeia despre- cama com olhos sonolentos e exausto.
ocupada, de vez em quando dando uma – É verdade que estranharam que
olhada cabreira para a madrugada con- a televisão estivesse ligada, com o som
vulsa, indo de um lado a outro numa pro- emitido a altura considerável. Mas nin-
cura incessante, inadiável, quase se en- guém se atrevia a ver o que se estava
contrando com aquelas motocicletas ba- passando...
rulhentas que roncam loucamente, espan-
tando os espíritos maus e agourentos. As – Já sei que o assassínio de Mar-
estrelas ostentam seu brilho cinzento e cos vai cair no rol dos crimes insolúveis.
amortalhado, grilos ocultos cavatinam – Só se trouxessem para elucidar
sua orquestra, em quérula surdina, pelos o delito o detetive Maigret, do Simenon,
matos úmidos à beira do córrego mur- ou o Arthur Conan Doyle, que escreveu
murante... belos romances policiais. Talvez mesmo
– Marcos não tinha nenhum ini- a argúcia felina do Padre Brown, de
migo conhecido. Ganhava honestamen- Chesterton, ficaria em maus lençóis se
te seu dinheirinho, tinha um táxi para fol- ele tentasse desvendar este crime horri-
gadamente viver sem atropelo, possuía pilante, que abalou os alicerces da paca-
telefone em casa e freqüentava um ter- ta família de nosso Bento Ribeiro.
reiro umbandista na Rua Divinópolis.
138 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
de Panteon. Li alhures, parece que em saber que este vai desposar uma garota
Afrânio Peixoto na Educação da mu- que ela detesta, aloucada se suicida, de
lher, que o pensamento pedagógico do modo patético e desesperado. No filme
Emílio de Jean-Jacques Rousseau é de que o poeta Jean Cocteau realizou, com
forte primarismo sociológico, colocando muito requinte de finura e bom gosto,
a posição do sexo frágil num conceito Orson Welles admirou a maestria cômi-
reacionário, de que a mulher tem seu ca com que a película foi rodada. Consi-
maior papel na educação do lar, sem a derava o mais belo filme feito, como tea-
pretensão de estar freqüentando as es- tro filmado, pelo cinema.
colas de alto saber, sem caírem na
parlotice daquelas habituês das tertúlias E quando Jean Cocteau era o
do salão de Madame Rambouillet, nativo argumentista do filme, o diretor deste só
este das troças impagáveis de um gênio fazia seguir a diretriz do roteiro. Se tinha
da comédia universal, como o Molière, talento criador, completava, com sua sen-
de as sabichonas. Mas o Jean Cocteau sibilidade inspiradora, toda a bela imagi-
que eu admiro é aquele que dedicou todo nação do argumentista. Assim aconte-
o seu amor a Jean Marais, sem ocultar ceu com Jean Delanoy, quando, no mais
do mundo esta sua faceta original. O pró- belo de seus filmes, A princesa de
prio Marais, aprendendo muito talento Cleves, com Jean Marais e Marina Vlady,
com essa convivência luminosa, escre- deu a maior ênfase poética ao universo
veu o mais belo livro saído na França nos encantado daquele palácio medieval, com
últimos anos: História de minha vida, seus bailes a caráter, seus cantos de
em que desnuda toda a sua intimidade alaúde e suas paixões irrealizáveis. Em
com o bizarro autor de Opium, o homem Além da vida (L’eternel retour), basea-
de idéias originalíssimas que concebia os do na lenda germana de Tristão e Isolda,
mais arrojados cenários e indumentárias pertencente ao ciclo poético das lendas
para os balets de vanguarda levados em medievais, Jean Delanoy concebeu uma
Paris. Rodeava-se de uma constelação feitura um tanto expressionista ao rela-
de artistas com Edwige Feuillère, Yvonne tar a vida dos dois amantes, Jean Marais
de Bray, Maria Casarés, sendo que para e Madeleine Sologner, em que o filtro de
o seu Jean Marais delineou aquela peça veneno que há entre eles é como uma
de profundo teor humano, A águia de ligação que os levará pela morte reden-
duas cabeças, em que vivia um anarquista tora, uma aproximação deles para além
que tentava assassinar uma rainha, do mundo real. Até no livro em que
Edwige Feuillère. Marcel Herrand fazia Cocteau delineou suas concepções arro-
o chefe de polícia. Em Pecado original, jadas, Entretenimento em torno da séti-
peça admirável e de muita agudeza psi- ma arte, mostra-se um crítico do mais
cológica, Yvonne de Bray faz a mãe apai- afinado gosto, sem deixar de ser, antes
xonada pelo filho, Jean Marais, que, ao de tudo, um altíssimo poeta.
140 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
à invenção de seus sonhos, caem em ex- Aí, as figuras humanas com seus
trema pobreza, não reconhecidos artisti- comparsas são colocadas de maneira
camente pelos contemporâneos indiferen- grotesca e caricatural, como aquela
tes que deveriam agradecer tudo quanto farândula toda de homens e mulheres a
eles fizeram para a arte das imagens che- correrem pelo salão afora, uma dama
gar ao grau avançado de hoje. Assim foi eufórica que desmaia, o velho que nada
com Edward Griffith, que chegou a ser ouve usando de modo cômico uma cor-
um dos donos da United Artists, com neta acústica no ouvido afetado. Em René
Mary Pickford, com Charles Chaplin; Clair, é o riso estalante, de chiste e gaia-
sucedeu o mesmo com Melliès, que, dan- tice, que se vê nas peças de Marivaux e
do ao cinema a sua invenção mais prodi- Molière, nas quais a cintilância sutil do
giosa, que é o delinear os enredos e con- esprit da França reponta com uma su-
tar, com maestria, as histórias e ficções perioridade de criação singular. Sempre
da fita, ficou pobre, sem recursos e, para com o mesmo estilo, a mesma forma de
viver com decência, foi vender doces e dirigir, com acerto, seus atores, a mesma
outros apetrechos num local da gare de nostalgia que ele sente pelos tipos popu-
uma estação. René Clair o foi encontrar lares dos cafés, bulevares e mesmo ruas
nessa posição humilde e desconcertante. pacatas de um subúrbio distante, é assim
A reconstituição da conversa de René que nós o concebemos nos seus filmes
Clair com Griffith e a sua amargura, ven- de maior expressão poética: Sob os te-
do o cineasta de Intolerância se despe- tos de Paris, falando de um tocador de
dir, entristecido pela ingratidão humana, realejo, O milhão, evocando o universo
e seu vulto, um tanto quixotesco, pelos sensível dos teatros musicais, com seus
embates inglórios, se perdendo na bru- cantores e tenores bem-afinados e ridí-
ma merencórea da madrugada. René culos; A nous la liberté é crítica um tan-
Clair e o seu espírito cartesiano, de to lírica e magoada do capitalismo bur-
tudo querer bem analisado e explica- guês, opressor do trabalhador humilde e
do, a ironia e irreverência de todas as indefeso. É o ataque equilibrado que faz
suas obras-primas: Entreato, filme de da luta do homem contra a máquina a
vanguarda, comum, camelo puxando o harmonia ideal entre patrões e emprega-
esquife singular de um enterro; Paris dos, tudo suavizado por uma partitura
que dorme, com a Cidade Luz parali- mestra de Georges Auric. Essa beleza
sada por uma escuridão momentânea; de realização cinematográfica, profunda
Os dois tímidos, uma sátira sobre cer- nos mínimos detalhes, serviu até de ins-
tos tipos ridículos da vida parisiense; piração para a célebre fita de Charles
Chapéu de palha da Itália, vaudeville Chaplin Tempos modernos. Apesar da
de Labiche, em que os qüiproquós aci- aparente leveza das fitas rené-clairianas,
dentados e visíveis envolvem toda a que muitos analistas asmáticos acham até
procura aloucada de um chapéu que se superficiais, em René Clair há um profun-
perdeu. do senso psicológico da alma humana, uma
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 145
sutil observação dos fatos e costumes dade. Os diálogos cintilam de ironia brin-
sociais, como Fêtes galantes, que é uma calhona, o enredo é de uma sutileza a
crítica, com finesse, sobre a guerra que toda a prova e a interpretação de Marle-
divide os homens; Les belles de nuit ne Dietrich, magnífica em todos os senti-
(Esta noite é minha) é a sátira empol- dos, assim como as de Bruce Babot e
gante para aqueles que dizem “que o Roland Young. Um dos filmes que mos-
mundo no meu tempo era melhor”, pro- tram bem as mãos seguras de um mes-
vando que, em qualquer época, sempre tre cinematográfico. O décor da fita é
houve guerras, desrespeito à liberdade soberbo. A partitura é baseada em Lú-
humana e até fanatismo político e religi- cia de Lammermoor, cantada pela so-
oso. Obra-prima de sátira bem-elabora- prano Gita Alpar. O tempo é uma ilusão
da, não deixando de ser uma Intolerân- é outra obra mestra de René Clair, falan-
cia griffithiana, feita com um bom gosto do que o tempo não existe, que é mera
acentuadamente francês. No elenco: ilusão de nossos espíritos fantasiosos e
Gérard Philippe, Martine Carol e Gina pouco profundos, no que toca o efêmero
Lollobrigida. Com O silêncio é de ouro, das coisas e a eternidade. No filme, bri-
a cristalização do humor cintilante de lhavam Dick Powell e Linda Darnell, ar-
René Clair chega ao máximo, contando tistas a que só um René Clair podia trans-
a história pitoresca de um amor singelo, mitir um pouco de alma e vibração. O
em pleno 1900, no início do cinema fala- fantasma vingador, tirado de um roman-
do. A fita é uma beleza e primor de cria- ce policial de Agatha Christie, é sobre
ção artística e malícia do enredo senti- um jogo de xadrez contendo sete
mental e lírico. Maurice Chevalier está negrinhos de madeira, cada um deles
correto, em todo o seu desempenho desaparecendo à medida que se ia as-
marcante, nessa obra caracterizada por sassinando cada um dos hóspedes, con-
valsas nostálgicas como “Fascinação”, vidados para uma temporada no castelo
“Meu tesouro” e “Sob as pontes de Pa- sinistro. O filme mantém o acento
ris”, vendo-se até as sessões de cinema macabro e humorístico da obra policial
primitivo nas primeiras salas exibidoras romanceada e nele René Clair pôs à von-
de Paris. Como classificar Fantasma ca- tade tudo o que há de mais criativo em
marada e seu requinte de cinema fino e matéria de cinema inteligente e, sobretu-
empolgante, ridicularizando a mania in- do, fascinante. Numa arte em que as fun-
glesa de adotar os fantasmas errantes de ções técnicas são bem divididas, René
seus castelos? Robert Donat à vontade, Clair foi um dos poucos cineastas que
num papel que vive com classe e alma podem considerar-se mentores exclusi-
interpretativa. Paixão fatal, com o am- vos de sua obra, aquilo que se chama com
biente refinado de uma Nova Orleans do propriedade o cinema de autor. Pode-
século passado, contando as peripécias se ver uma certa analogia no tratamento
de uma mulher aventureira de cabaré que e concepção dos seus filmes, pois, mes-
enlouquecia de paixão os homens da ci- mo que os enredos nada se pareçam uns
146 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
que ainda mantêm a flama criadora de rente, pois o estudamos em confronto com
obras eternas. William Wyler, Orson o seu tempo, comparando a sua
Welles, Alfred Hitchcock, King Vidor e, filmografia de tanta inteligência gaulesa,
nos velhos tempos do áureo cinema ame- fino espírito crítico e mordaz, com a de
ricano, Frank Borzage e Clarence Brown, outros cineastas de diversos países. Neste
poucos nomes podem aí ser incluídos, quase meio século, em que colocou a in-
nesta pequena galeria de artistas acima teligência privilegiada na tarefa de adici-
de seu tempo. Jean-Luc Godard aqui ter- onar obras-primas ao imenso patrimônio
mina a minha exígua lista de cineastas cultural da França, não fez uma só fita
respeitáveis, pois é um inventor de te- medíocre, pois até em Entre o amor e a
mas e de técnicas de vanguarda que re- morte (La beauté du diable), renova-
volucionou as concepções estreitas do ção do mito de Fausto, com a eterna le-
cinema linear de outros cineastas, os quais genda do filtro mágico da mocidade eter-
só vivem da fama de artesãos eficientes, na, René Clair nos deu um relato psico-
mas sem capacidade criadora e gênio lógico do Fausto (Gérard Philippe) que
imaginativo como Godard. Quem assis- entrega a alma ao diabo (Michel Simon),
tiu a A chinesa, Week-end, Viver a vida, num tratamento psicológico de um tema
Masculino feminino... tão diferente dos tratados por Clair. Mas
mesmo assim a fita revela o pulso firme
Ainda agora, Godard nos surpre-
de Clair, quando aí coloca uma ponta de
ende com uma fita originalíssima, nova
ironia e tristeza, nos momentos em que
em seu enredo desconcertante, num rit-
Fausto perde a felicidade ao perder a in-
mo ágil e saltitante, numa alucinante
dividualidade espiritual por um contrato
estilística de um cineasta inconformado
duvidoso com o gênio das trevas. O fan-
que só pensa em termos altos, pois que
tasma camarada é de sua fase brilhante
seu nome, a começar por Glauber Ro-
no cinema inglês, assim como uma lou-
cha, explosivo cineasta brasileiro, todos
cura cênica tão gostosa, em chistes
os jovens inteligentes que pegam na
irresistíveis da mais pura comicidade, em
câmera para fazerem algo acima de
situações imprevistas do enredo engra-
efêmero tomam logo para sua exclusiva
çadíssimo de Loucos por escândalo,
inspiração. O filme delicioso com que
dando uma aula de eficiente direção de
Godard brindou toda uma assistência ávi-
atores, quando Maurice Chevalier e Jack
da de arte nova e diferente se chama
Buchanan passam à vontade pela fita,
Salve-se quem puder (A vida), retra-
numa representação hilariante, digna de
tando todas as neuroses de nosso tempo,
seus papéis impecáveis, numa comédia
como o medo, a vida, a morte, a solidão,
que ficará para sempre em nossa me-
mantendo aquela unidade de todas as obra
mória.
concebidasrecebidas para sacudirem os
cérebros mais obtusos. Tivemos que fa- Para o final deixo a fita de René
zer esse hiato para que a exegese sobre Clair mais bela, profunda, em que ele
René Clair ficasse mais completa e coe- colocou toda a sua nostalgia em relação
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 149
aos seres marginalizados na vida, perdi- zas, alegrias, uma recordação de um fato
dos nos longínquos subúrbios parisienses, que me feriu, emocionou ou transtornou
em casas humildes, encardidas, tendo no por completo o coração. Invejo o Octávio
fundo o trilo melancólico dos trens que de Faria que, diariamente, não deixava
passam, resfolegando, soltando fumaças sem uma linha sequer os grossos cader-
cinzentas, a correrem céleres para os nos, com aquela sua letra tão firme e
bairros pobres e proletários. Refiro-me a pessoal, quando revivia o Paulo Arman-
Por ternura também se mata (Porte de do, o romântico e tristonho Branco na
lilas), falando da amizade quase amoro- Tragédia burguesa, e mesmo quando re-
sa do quarentão Juju (Pierre Brasseur) tratava o Padre Luiz, sempre a pensar,
por um belo rapaz, fugido da justiça e da nos trágicos relatos que ouvia, de peni-
polícia (Henri Vidal). Juju se dedica de tentes de negros remorsos, nas revela-
corpo e alma ao jovem fugitivo e este, ções escalirosas do confessionário. Há
sem reconhecer todo o sacrifício do ou- escritores, de imaginação fértil, de farta
tro, ainda o espanca e lhe ridiculariza a messe criadora, que são capazes de pro-
afeição amorosa. Juju, transtornado pela duzir um volume atrás do outro, porque
indiferença do rapaz, num gesto que é sua imaginação é inesgotável. É o Victor
mais ciúme ofendido que vingança vil e Hugo, nas suas sagas romanescas, Emílio
mesquinha, assassina o jovem desdenho- Zola nos racontos quase policialescos dos
so que é toda a força e motivo de seu Rougon Macquart, o Honoré de Balzac,
viver. René Clair, ao traçar o pranto si- plasmando, para todo o sempre, o Pai
lencioso e o remorso torturante de Juju, Goriot, a Eugène Grandet e o Coronel
nos deu uma das mais pungentes obras Chabert, que uma mulher vingativa fez
do seu século. Porte de lilas cerca, as- recolher a um asilo de velhos inválidos.
sim, com um brilho inacessível, uma E Roger Martin du Gard, quando conce-
filmografia de temas vários e diferentes, beu toda a história social e política da
mas de uma só consonância artística, vi- França, nas interessantes peripécias dos
são profunda e poética de um cineasta Thibaudet. Romain Rolland, no seu paci-
de gênio que ao morrer, agora, levou à fismo acima dos conflitos e dos ódios
posteridade uma obra que, a não ser a de cegos e racistas dos homens, no roman-
Charles Chaplin, não encontra uma coe- ce cíclico do Jean Christophen, nos deu
rência artística homogênea no cinema a história de uma amizade sincera e pro-
contemporâneo. funda entre um músico francês e um ide-
alista alemão. São milhares de páginas,
com detalhes esmiuçantes, de muitas
14 DE SETEMBRO - Só escre- personagens que falam, aparecem pou-
vo quando uma necessidade imperiosa me co e depois somem de cena, sem deixar
obriga a encher as páginas brancas des- um traço luminoso de sua presença.
te caderno. Quando o mais oculto de mi- Guerra e paz, de Leon Tolstói, são mui-
nha sensibilidade expressa minhas triste- tas páginas descrevendo as batalhas san-
150 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
grentas e o morticínio com que as hostes hecatombe veio alertá-las de que algo ir-
napoleônicas ensangüentaram o mundo. remediável ia mudar toda a estrutura so-
Aquele mundo suntuoso de princesas ca- cial do universo, e que uma sociedade
prichosas, condes arrogantes, dominan- mais aberta e progressista ia nascer.
do extensões de terras e escravizando Proust é um mestre: quando põe o meni-
milhões de pessoas, todo esse universo no sonhador encarnando sua própria
de exploradores e explorados, Tolstói o consciência, vai exprimindo, em forma
descreve com a visão profética de quem introspectiva e psicológica, os achados
sabe que esse estado doloroso de coisas mais íntimos de sua alma evocadora.
fanadas um dia terá de acabar. Todas as Ulysses, em que James Joyce faz um
derrotas marciais sob a neve inclemente, apanhado de toda a filosofia bonacheirona
a retirada desastrosa do exército venci- e um tanto debochada do irlandês co-
do do grande corso, os gritos e desespe- mum... será James Joyce um retratista
ros da soldadesca arruinada pela guerra, completo de um mundo caótico, será ele
pela fome e pela pretensão de que ia do- um realizador de obra cíclica, como os
minar o restante da terra, toda essa eu- autores que analisei? Dentro de um apa-
foria destroçada, Tolstói a imortalizou em rente hermetismo de diálogos e narrativa
páginas de desafogo e veemência. É ver- desconcertante, Joyce aborda em
dade que a guerra vai levar à destruição Ulysses todos os problemas que atormen-
em todos os domínios daquele aristocra- tam o homem: o medo da solidão e da
ta arrogante que, no fim, descobre que morte e até nos bem-sucedidos na vida,
sua vida até então fora de olhos venda- que galgaram as posições mais destaca-
dos, o que o impedia de conhecer a ver- das, pisando por cima da honra e da dig-
dade toda inteira, que era reconhecer que nidade das pessoas necessitadas e ca-
o povo fora usurpado em suas necessi- rentes.
dades mais prementes. Também não é o
modo nostálgico de Marcel Proust, em À
procura do tempo perdido, quando nos 15 DE SETEMBRO - Não sei
vai descrevendo um mundo que a Guer- quando vou terminar a biografia de Dom
ra Mundial de 1914 a 1918 deixou, em Silvério Gomes Pimenta, que iniciei há
suas proporções funestas e destruidoras. mais de dois anos. Vou sempre desco-
A quietude das mansões tranqüilas das brindo novos dados e documentos, ven-
famílias burguesas, com seus saraus, seus do certa veemência dos temas sociais que
colóquios familiares e o devaneio da me- Dom Silvério tratou e que os analistas do
nina que, ao simples bater do carrilhão seu tempo nem perceberam. Quando fa-
ou ouvindo o bater do campanário e o lam do biógrafo de Dom Viçoso, é para
trilo estridente do trem, vai reconstituindo louvarem o exímio estilista do idioma, o
as trajetórias dessas vidas que só pensa- sacerdote prodigoso que falava várias
ram egoisticamente nos seus problemas linguas, não esquecendo o anedotário
secundários, até que o tremor de uma sempre crescente, no tocante às relações
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 151
diário que não foi publicado, Afrânio Pei- No livro de que já escrevi mais
xoto relata que Carlos de Laet, ao rece- de três cadernos, nunca perco de vista
ber D. Silvério na Academia, fez um dis- o negro que ascendeu da obscuridade
curso cheio de gracinhas e humor bara- até chegar a arcebispo, brilhando em
to, quando estabeleceu comparações in- todas as participações em concílios pelo
concebíveis entre o sábio arcebispo e um mundo pela sua espantosa erudição,
general Glicério, seu homônimo, muito seu exemplar valor moral e cultural e
conhecido na época. Carlos de Laet era a fibra possante com que enfrentava
meio irônico e não era figura muito ben- os potentados da época, em defesa de
quista no seu meio, porque gostava de seus fiéis, que o idolatravam, e de sua
gozar os desafetos, era temível como Igreja.
polemista e autor de versos destruindo
reputações, como os que perpetrou con-
tra os modernistas, principalmente Gra- 16 DE SETEMBRO - De pé no
ça Aranha e Marinetti. O mais engra- chão, a batina limpa mas gasta pelo tem-
çado desses fatos todos é que tanto po, seguido de padres e uma corte nu-
Dom Silvério como Carlos de Laet merosa de fiéis devotados, Dom Silvério
eram condes papalinos, tendo recebi- percorria, de sol a sol, em dias seguidos,
do o título do papa por relevantes ser- as principais paróquias de diversas cida-
viços prestados à Santa Igreja. Dom des mineiras. Ao galgar a posição inve-
Silvério nunca usou essa honraria re- jável de Arcebispo, não perdeu a sua
cebida, pois era de uma simplicidade a humildade e seu amor pela população
toda prova. Já o irônico autor de O fra- mais carente e necessitada. Quando o
de estrangeiro e outros estudos só cardeal Arcoverde foi escolhido o primei-
gostava de assinar, por completo e bom ro cardeal da América do Sul, ele estava
tom, conde Carlos de Laet. Outro es- em visita a dom Silvério, em Mariana.
critor católico de valor e bela expres- Recebeu a notícia quando estava
são ética, nas atitudes e proceder, foi recepcionando, na sede do Arcebispado,
o conde Afonso Celso, que também e lá o cardeal Arcoverde viu quanto era
ganhou aquela láurea papal por mere- nobre a alma do antiste, que se rejubilava
cimento. Agripino Grieco, em Evolu- com a escolha acertada do cardeal
ção da prosa brasileira, tinha Dom Arcoverde. Sempre, em toda a sua tra-
Silvério como a maior figura da nossa jetória de simples padre, bispo e arcebis-
vida católica, enaltecendo os dons lite- po, Dom Silvério recebeu todo o apoio
rários do biógrafo modelar de Dom necessário do cardeal Arcoverde, pois as
Viçoso, mesmo que para isso, injusta- invejas e os preconceitos raciais eram
mente, tenha denegrido a figura res- bem firmes, para que não pudessem per-
peitável de Dom Aquino Correia, que turbar o antiste negro que se tornou ar-
escreveu um livro de muita empáfia hu- cebispo. Quando fez o discurso de posse
mana: Uma flor do clero cuiabano. da Academia Brasileira de Letras, não
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 153
de André Gide: “Isto não tem para os dinheiro, que o leva a uma miséria se-
vivos senão uma importância relativa, cular, sem poder a voz erguer num pro-
porém significativa para aqueles mortos, testo solene e justiceiro. Daí é que a
que não podem se defender.” Reparem, frase famosa de Maurice Maeterlinck
agora, neste trecho de profunda análise expressa bem este instante desespe-
psicológica sobre o grande romancista de rado dos humilhados e ofendidos de
O discípulo: “Vi Bourget. Ele me pare- todas as nações: “Se eu fosse Deus,
cia tão velho que era impossível lhe falar, eu teria piedade do coração dos ho-
como se dirige a todo o mundo e sua ida- mens” (“Si j’étais Dieu, j’aurais pitié
de faz dele uma espécie de estranho en- du coeur des hommes”).
tre os homens. Ele me disse algumas
palavras, com uma voz um pouco confu-
sa, mas com um tom de polidez do qual 24 DE SETEMBRO - O formal
já perdemos o hábito, a polidez de outro de Julien Green ainda me dá um pouco
século.” Julien Green comprova sua fal- de alento e ternura na solidão deste apar-
ta de piedade cristã ao falar, amargamen- tamento gélido de Bento Ribeiro: “Ao
te, sobre o autor de Demônio do meio- chegar, Cocteau nos mostra um passari-
dia e Hilda Campbell: “Sem dúvida, ele nho doente, que ele encontrou nos Cam-
sobreviveu a seu renome, o que é sem- pos Elísios. Colette o apanha, o examina
pre melancólico, mas sua surdez o impe- e vai acariciar-lhe o pescoço, no jardim
de de ouvir o silêncio que se faz em tor- fronteiro.”
no de sua obra.” Ao ler Cartas e Madame Bovary,
de Flaubert, Julien Green fica surpreen-
dido na presença de um estilo algumas
23 DE SETEMBRO - Quando
vezes pesado e de outras feitas
se abrem os jornais e se vê o mundo,
desconcertante. “Mas todas estas frases
como se destruindo em escombros.
de sentido amplo têm um som admirável,
Cada temporal que passa pela cidade,
um som de uma coisa plena e sólida. E,
derrubando as casas e casebres dos
portanto, qual é o estilo que prenuncia-
morros, quando revê, como na Polônia,
vam as cartas? Um estilo que rugirá, di-
todo um povo se levantando contra a
zia Flaubert.”
opressão de um regime forte e sem
esperança. É preciso ser de pedra para
não sentir o coração batendo em face 25 DE SETEMBRO - Havia me
dos miseráveis que soçobraram sob mudado, recentemente, para Bento Ri-
pedras aluídas dos morros, crianças ex- beiro e ainda não me havia familiarizado
postas à miséria e orfandade, negros com suas ruas tranqüilas, com casas
caçados como criminosos nos bairros rodeadas de jamelões, graviolas, frutas-
racistas de Londres, a luta do povo em de-conde, mangueiras, sem falar em
face do baixo poder aquisitivo de seu romanzeiros em flor. Isto em qualquer
158 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
Foto 12
O tempo foi passando e o destino que eu o ajudarei em tudo que for preci-
mudou por completo os nossos destinos. so. Você é um amigo dedicado e fiel. Em
Nunca mais pude contemplar o teu rosto minha doença, você não me deixou um
mongol, de olhos oblíquos, e a face sem- instante sequer. Quando minha diabete
pre escancarada para a vida, para o amor mal me deixava andar e locomover-me
e para a beleza. para qualquer lugar que quisesse, você
me apoiou, muitas vezes, nos seus om-
bros, amparando-me com carinho e cui-
29 DE SETEMBRO - Henrique dado, como um filho que tivesse tanta
que não vinha, com aquele seu rosto ternura por este ancião que tem idade de
impando de alegria juvenil. Tornava-se seu seu pai.
sério, de cara fechada, entregue a um
– Não fiz mais do que minha obri-
mutismo inexplicável. Chegava no meu
gação. Posso dizer que o senhor está fa-
apartamento, cumprimentava-me e ia
zendo por mim o que papai faria se esti-
assentar-se lá no canto da sala, e ficava
vesse vivo! A todos os meus amigos e
folheando os jornais, entregue a uma in-
pessoas que me conhecem, quando te-
quietação que me intrigava. Pensava:
nho de vir à sua casa, vou logo dizendo
“Henrique é muito jovem para mergulhar
com o maior orgulho: “Estou indo encon-
em cogitações muito aquém de sua ida-
trar-me com o padrinho.” Sim, com o
de de rapaz descuidado e de tempera-
padrinho que sempre me recebe, com
mento alegre.” Olhou-me, então, o meu
toda a consideração possível, de quem
rosto apreensivo, dizendo:
sempre encontro uma acolhida paternal
– Estou ficando preocupado com e compreensiva, onde recebo os mais
a situação lá em casa. A pensão que pa- sensatos conselhos de minha vida, onde
pai deixou à minha mãe é bem insignifi- ouço as orientações seguras para a vida
cante. As despesas estão aumentando e imensa que vou seguir, e onde sei que
eu mal posso ajudar no sustento da casa, terei o apoio que sempre esperamos de
pois que somente estudo o curso clássi- um ente muito amado, que nos ampara e
co, sem ter trabalho algum. segura, se houver uma queda
– O que você resolveu, então? imprevisível, e que nos consola e eleva o
nosso ânimo, quando uma queda brusca
– Procurar trabalho. Até o fim faz oscilar, por momentos, a nossa cren-
deste mês vou buscar o meu certificado ça num futuro promissor e mais seguro.
militar, pois agora tudo quanto é firma,
escritório ou casas comercial que nos em- – O que você não pode é desani-
prega vai logo pedindo a carteira de re- mar. Lutarei com todas as forças que
servista, de identidade e, em certos seto- Deus me deu para que você arranje uma
res, exigem até o título de eleitor. colocação condigna à sua cultura e ta-
lento.
– Pode ficar sossegado, Henrique,
Diário de um negro atuante
Ironides Rodrigues 165
afro-brasileira
Quero que este seja um encontro
informal, mais um diálogo entre irmãos
do que uma palestra dirigida à platéia.
Por isso, não pretendo apresentar aqui
um texto pronto e acabado dentro do rigor
acadêmico. Minha intenção é de
conversar sobre várias dimensões da
experiência afro-brasileira, registrando
alguns fatos e aspectos importantes
dentro do ponto de vista da nossa
comunidade. Espero que, após essa
apresentação, o diálogo vá fornecer
caminhos de maior esclarecimento.
Abdias Nascimento Para começar do princípio, é
necessário mencionar o fato geralmente
esquecido ou subestimado da presença
168 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
foto 13
Escultura em pedra de uma cabeça africana da América pré-colombiana. Olmeca, período clássico. Vera Cruz,
México, cerca de 800-400 anos a.C. Foto reproduzida do livro de Ivan Van Sertima They came before Columbus
(Nova York: Random House, 1976)
Foto 14
Slide
Escultura pré-colombiana em pedra, datada de aproximadamente 900 a.C., em San Agustín, Colômbia
170 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
Aspectos da experiência afro-brasileira
Abdias Nascimento 171
James, George G.M. (1976). Stolen Rodrigues, José Honório (1964). Brasil-
legacy. San Francisco: Julian Richardson África: outro horizonte. Rio de Janeiro:
Associates. Civilização Brasileira.
Ladner, Joyce (org.) (1973). The death Rodrigues, Nina (1945). Os africanos no
of white sociology. Nova York: Random Brasil. São Paulo: Companhia Editora
House. Nacional.
Lawrence, Harold (1962). “African Rogers, J. (1942). Sex and race, I. Nova York.
explores in the New World”, The Crisis
(Junho-Julho). Skidmore, Thomas E. (1976). Preto no
branco: raça e nacionalidade no
Larkin Nascimento, Elisa (1981). Pan- pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
africanismo na América do Sul. Paz e Terra.
Petrópolis e Rio de Janeiro: Vozes e
Ipeafro. Van Sertima, Ivan (1976). They came before
Columbus. Nova York: Random House.
Lopes, Nei (1989). Bantos, malês e
identidade negra. Rio de Janeiro: Von Wuthenau, Alexander (1975).
Forense Universitária. Unexpected faces in ancient America.
Nova York: Crown.
184 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 185
do mundo ocidental a uma escala cro- são meus. Sirvo-me deles para marcar o
mática, a cor negra representaria o pólo sortilégio que a cor negra evoca no espí-
negativo. São infinitas as sugestões, nas rito deste escritor. Pois que se fosse bran-
mais sutis modalidades, que trabalham a ca a pessoa de que se trata - Gregório
consciência e a inconsciência do homem, Fortunato -, a elaboração do pensamen-
desde a infância, no sentido de conside- to teria, evidentemente, tomado outras di-
rar, negativamente, a cor negra. O de- reções. Se o guarda-costas fosse claro,
mônio, os espíritos maus, os entes huma- as aproximações seriam muito diversas.
nos ou super-humanos, quando perver- (Experimente o leitor traduzir para o
sos, as criaturas e os bichos inferiores e branco o texto acima.) O comentário do
malignos são, ordinariamente, represen- caso nos jornais e nas ruas se assinala
tados em preto. Não têm conta as ex- de ângulos muito elucidativos da degra-
pressões correntes no comércio verbal dação da cor escura. De uma revista ca-
em que se inculca no espírito humano a rioca transcrevo, por exemplo, este
reserva contra a cor negra. “Destino ne- excerto. “Gregório quis saber se terá uma
gro”, “lista negra”, “câmbio negro”, chance, um dia, de ser acareado. Disse-
“missa negra”, “alma negra”, “sonho ne- lhe eu que, na pior das hipóteses, defron-
gro”, “miséria negra”, “caldo negro”, tar-se-á com o General no sumário de
“asa negra” e tantos outros ditos impli- culpa, na Justiça comum. O preto pare-
cam sempre algo execrável. Ainda nas ceu ficar satisfeito. Esfregou as mãos
pessoas mais vigilantes contra o precon- (...). Deixei o quarto do negro e com ele
ceito se surpreendem manifestações caminhei para a sala (...). Perguntei quais
irrompidas do inconsciente em que ele eram seus amigos (...) o preto respon-
aparece. Há dias, um lider católico, culto deu (...)”. A cor humana aí perde o seu
cidadão, anti-racista por princípio, num caráter de contingência ou de acidente
dos seus artigos, em que focalizava a mo- para tornar-se verdadeiramente substân-
mentosa tragédia culminada no suicídio cia ou essência. Não adjetiva o crime.
do presidente Vargas, escrevia: “(...) pe- Substantiva-o.
las revelações tremendas do arquivo se- Tais escritos são de autoria de pes-
creto do seu mais íntimo guarda-costas, soas brancas. Mas, na verdade, mesmo
se verificou que o governo do Brasil pos- as pessoas escuras sofrem obnubilação
suía uma éminence grise, que no caso em face da cor negra. Um dos mais dra-
era uma eminência negra! E que essa máticos flagrantes disto é esta declara-
asa negra do presidente (...) escondia em ção de uma autoridade policial de cor ne-
suas fichas secretas o mais terrível libe- gra: “(...) o preto, é verdade, é feio. Uma
lo contra um regime de traficâncias e raça feia, de pele escura. Não agrada
favoritismos.” E mais adiante reporta- aos olhos, o negro é antiestético, e a ma-
se aos “que acudiam a rojar-se aos pés nifestação deste sentimento é tida como
da eminência negra, para dela conseguir preconceito.” Este, como a quase totali-
as mais escusas intervenções”. Os grifos dade dos nossos patrícios de cor, é um
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 187
cidadão aculturado ou assimilado, como exige ser aferida por critérios específi-
diriam os que cultivam aquela típica ci- cos. A beleza negra vale intrinsecamen-
ência de exportação e de intuitos te e não enquanto alienada. Há, de fato,
domesticadores - a antropologia. Mas pra- exemplares de corpos negros, masculi-
tiquemos um ato de suspensão da bran- nos e femininos, que valem por si mes-
cura e com este procedimento feno- mos, do ponto de vista estético, e não
menológico nos habilitaremos a alcançar enquanto se alteram ou se aculturam para
a sua precariedade e, daí, a perceber a aproximar-se dos padrões da brancura.
profunda alienação estética do homem Há homens e mulheres trigueiros, de ca-
de cor em sociedades europeizadas como belos duros e de outras peculiaridades
a nossa. De repente se nos torna perceptí- somáticas e antropométricas, nos quais
vel a venda por sobre os nossos olhos. É é imperioso reconhecer a transparência
como se saíssemos do nevoeiro da bran- de uma autêntica norma estética. A be-
cura - o que nos parece olhá-la em sua leza negra não é, porventura, uma cria-
precariedade social e histórica. E ainda ção cerebrina dos que as circunstâncias
que por um momento, para obter certa vestiram de pele escura, uma espécie de
correção do nosso aparelho ótico, pode- racionalização ou autojustificação, mas
ríamos dizer que das trevas da brancura um valor eterno, que vale, ainda que não
- só nos poderemos libertar à luz da ne- se o descubra. Não é uma reivindicação
grura. racial o que confere positividade à ne-
grura: é uma verificação objetiva. É, as-
Revelar a negrura em sua validade
sim, objetivamente que pedimos para a
intrínseca, dissipar com o seu foco de
beleza negra o seu lugar no plano egré-
luz a escuridão de que resultou a nossa
gio. Na atitude de quem associa a bele-
total possessão pela brancura - é uma
za negra ao meramente popular, folclóri-
das tarefas heróicas da nossa época. Pior
co, ingênuo ou exótico, há um precon-
do que uma alma perversa, dizia Péguy,
ceito larvar, uma inconsciente recusa de
é uma alma habituada. Nossa perver-
aceitá-la liberalmente. Eis por que é digna
são estética não nos alarma ainda por-
de repulsa toda atitude que, sob a forma de
que a repartimos com muitos, com qua-
folclore, antropologia ou etnologia, reduz os
se todos - é uma lesão comunitária que
valores negros ao plano do ingênuo ou do
passou à categoria de normalidade des-
magístico. Num país de mestiços como o
de que, praticamente, a ninguém deixa
nosso, aceitar tal visão constitui um sinto-
de atingir. A ninguém? Não. Uns poucos
ma de autodesprezo ou de inconsciente sub-
se iniciaram já na visão prístina da ne-
serviência aos padrões estéticos europeus.
grura e se postam como noviços diante
dela, isto é, emancipados do precário A aculturação é tão insidiosa que ain-
fastígio da brancura. Purgado o nosso da os espíritos mais generosos são por ela
empedernimento pela brancura, estamos atingidos e, assim, domesticados pela bran-
aptos a enxergar a beleza negra, uma cura, quando imaginam o contrário.
beleza que vale por sua imanência e que É o que parece flagrante na poesia de
188 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
foto 15
O sociólogo Guerreiro Ramos, com obras do concurso de artes plásticas sobre o tema
O Cristo Negro, promovido pelo TEN. Rio de Janeiro, 1955
190 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 191
que nous n’avons rien à faire au monde às avessas; daquele de que foram arau-
que nous parasations le monde tos Gobineau, Lapouge, Rosenberg et
Qu’il suffit que nous nous mettions au pas caterva. Trata-se de que, até hoje, o ne-
du monde gro tem sido um mero objeto de versões
mais l’oeuvre de l’homme vient seulement de cuja elaboração não participa. Em to-
de commencer das estas versões se reflete uma pers-
et il reste à l’homme à conquerir toute pectiva de que se exclui o negro como
interdiction immobilisée aux coins de sujeito autêntico. Autenticidade - é a pa-
sa ferveur lavra que, por fim, deve ser escrita. Au-
et aucune race ne possède le monopole tenticidade para o negro significa idonei-
de la beauté, de l’inteligence, de la dade consigo próprio, adesão e lealdade
force ao repertório de suas contingências exis-
et il est place pour tous au rendez-vous tenciais, imediatas e específicas. E na
de la conquête et nous savons maintenant medida em que ele se exprima de modo
que le soleil tourne autour de autêntico, as versões oficiais a seu res-
notre terre éclairant la parcelle qu’a peito se desmascaram, e se revelam nos
fixée notre volonté seule et que toute seus intuitos mistificadores, deliberados
étoile chute le ciel en terre à notre ou equivocados. O negro na versão de
commandement sans limite. seus “amigos profissionais” e dos que,
mesmo de boa fé, o vêem de fora é uma
A rebelião estética de que se trata coisa.Outra - é o negro desde dentro.
nestas páginas será um passo preliminar
da rebelião total dos povos de cor para (Publicado originalmente na revista
se tornarem sujeitos de seu próprio des- Forma, nº 3, outubro de 1954.)
tino. Não se trata de um novo racismo,
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 193
foto 16
Foi um triste entardecer de um dia de maio de 1978. Eu já penava dez anos de exílio imposto pela
ditadura. Visitava outras vítimas dos militares de plantão - Dona Neuza e o ex-governador Leonel Brizola,
exilados como eu em Nova York. Estávamos numa pequena sala do apartamento ocupado pelo casal no
Hotel Roosevelt, quando o telefone chama. Brizola responde a uma chamada do Brasil, e em seguida me
passa o fone. Alguém desejava falar comigo. Do outro lado do fio telefônico, me veio a voz inconfundível
do amigo/irmão, o poeta Gerardo Mello Mourão. Que disparou a notícia terrível como um tiro no coração:
– O Efraín acaba de falecer!
Assim partiu o primeiro irmão da Santa Hermandad de la Orquidea a ir prestar contas à eternidade.
Ele era o mais jovem entre os seis: Godofredo Iomi, Raúl Young, Efraín Bó (argentinos), Gerardo Mourão,
Napoleão Lopes Filho e eu mesmo (brasileiros), além de outros que por gravitação também se somavam ao
grupo de poetas que escolheu a parasitária orquídea como seu emblema.
Morreu Efraín, finalizando uma existência de agonia espiritual profunda. Sua obra El hombre
verde é o resumo do seu deambular pelo mundo, de coração doado e recebido, confrangido ao peso do amor
e escrevendo com o próprio sangue a peripécia que Deus (o dele) lhe havia destinado.
No próximo dia 3 de maio de 1998, lá vão 20 anos sem Efraín. Sem dúvida o intelectual mais bem
dotado da sua geração, poeta, crítico de arte, ele foi um erudito como poucos existem. Mas dedicava uma
atenção especial ao esforço de pessoas humildes e marginalizadas pela arrogância das elites.
Publicando este seu ensaio sobre o escultor José Heitor, queremos recordar a face sofrida de Efraín,
visitando o túmulo do poeta Friedrich Holderlin em Heidelberg, Alemanha, na década dos setenta.
A.N.
194 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
A escultura de José Heitor
Efrain Tomás Bó 195
foto 18
A escultura de José Heitor
Efrain Tomás Bó
197
Heitor, a simplicidade de olhos que des- nova matéria, da abstração pela destrui-
cobrem, assombrados, a exuberância do ção do objeto? Não; desconhece, certa-
mundo exterior; José Heitor mostra, con- mente, o enorme mistério pitagórico do
trariamente, uma complexidade fixada, dodecaedro; diedros e triedros de suas
não nos objetos múltiples e, sim, na composições não são concreções autô-
polivalência modal de todos os objetos nomas e sim, somente, processos
motivos de sua escultura. Que unidade unificadores e ordenadores dos elemen-
há, através de um vértice, entre a coruja tos como rígida conseqüência do conjun-
cardealmente quadrificética e a cabeça, to.
três vezes cabeça, em dimensão unitá-
É, então, anacrônico? Não, é um
ria, de Noctambulação? Eu não afirmo;
atualizador de símbolos sempre vigentes
insinuo - ou talvez postulo - que a situa-
que põem de manifesto sua força de ex-
ção dos elementos é estranha ao momen-
pressão quase sem preliminares.
to espacial da tetracoruja e da unidade
trifácica: é uma manifestação existenci- Se é necessária, e válida, uma clas-
al do artista da negritude que volta, ou se sificação, coloquemos José Heitor na ór-
projeta retrospectivamente, ao mundo bita imensa do barroco, barroco enquan-
ancestral, onde tudo era um e um era to o artista, agora José Heitor, que acre-
tudo. dita na validez do êxtase, faz uso da ex-
periência irracional (já falaremos de seus
Como classificar José Heitor?
sonhos e mistérios na inspiração) e se
Como encontrar uma fórmula de expres-
embrenha, como seu êxtase e mistério,
são dentro de uma escola, de um movi-
na busca do que está além da pura figu-
mento, de uma dedicação temática ou,
ração objetiva.
de um modo geral, como uma manifesta-
ção do tempo em que vivemos? Não Como barroco, José Heitor não é
acredito que tenha - nem que seja ne- nada tranqüilizador na sua obra ofereci-
cessária uma classificação precisa, clas- da: a matéria - a madeira original -, nas
sificação que os críticos utilizam, não sem- suas mãos, quer ser outra coisa que o
pre para julgamento do artista individual, que pode ser. Como barroco, o artista
senão para facilidade de sua localização: escultor se esforça com paixão na aco-
encontrada a escola, o movimento, o tem- modação entre destino, objeto, forma e
po vivido, ou a ideologia, ou as influências, pesadez de suas criaturas. Como barro-
nos inclinamos a descrever o objeto es- co, o escultor se desprende do contato
tético singular em função de outras linhas, das coisas visuais, intensificando o liris-
que não as que anunciam a existência mo e burilando, acariciando, até à
individual da obra. extenuação, sua matéria, a madeira. Não
há espaços livres e ociosos na sua obra;
É último moderno nosso artista, no
o espaço fluido, o espaço vazio visível do
sentido de preocupação por combinações
interior de Prece de mãe pobre gestan-
técnicas, topológicas, experiência de
te se ondula, se torna sólido no jogo rít-
200 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
mico de cada um dos membros que or- Heitor, nas motivações subjetivas, o
ganizam o acontecimento espacial da es- grau de sua compenetração no fazer ar-
cultura. No âmbito do barroco, o resulta- tístico e, sobretudo, sua relação com a
do de material e técnica de José Heitor é matéria de trabalho. Para que orientar o
uma expressiva subjetividade nos porme- diálogo dentro das razões geométricas da
nores da ação. escultura ou para abstracionismos resul-
tantes de estilização e cálculos simétri-
O escultor cos das figuras primárias? Perguntei:
E quem é esse José Heitor de cujo - Você fala com a madeira? Qual
mistério - em suas obras - pretendemos a pergunta e como ela te responde?
participar? Poucos são os dados pessoais. - Sim - respondeu -, falo quando
Eu o conheci através de Abdias Nasci- ela, a madeira, aceita que eu a transforme
mento, quem, em busca de obras para num sonho meu. Ela manda que eu tente.
seu Museu de Arte Negra (Departamen-
Os amigos da cidade buscam,
to de Artes Plásticas do Teatro Experi-
para José Heitor, o material de trabalho
mental do Negro), me levou até a cidade
e o achado e posse do mesmo. É o pri-
do escultor, Além Paraíba, situada na di-
meiro estímulo à obra. Novamente per-
visa de Minas Gerais com o Estado do
guntei:
Rio. Foi fácil encontrar sua casa. Todos
na cidade o conhecem. É ferroviário com - Quando cai em suas mãos um
um modesto emprego na Estrada de Fer- pedaço de madeira, você já vê a forma?
ro Leopoldina. Sem atingir os trinta anos, A dureza do material é um obstáculo ou
bem escuro, de linhas raciais firmes, alto ajuda a dar a forma por você concebida?
e delgado, aparenta uma adolescência Você respeita a madeira como matéria
prolongada - sua fantasia excitada -, po- ou quer transformá-la em instrumento
rém não poderia dizer se é introvertido dócil de tua idéia? - E acrescentei: - A
ou é tímido. Falando de sua arte, sua lin- cor da madeira e sua textura são parte
guagem se multiplica, a comunicação se de seus objetos ou você prefere que ela,
torna fluente. Manifesta, com proprieda- a madeira, desapareça como matéria?
de, seu pensamento ao compasso de um
Respondeu sem hesitar:
grande entusiasmo. Não teve mestres;
sua vocação lhe foi revelada pela facili- - Pouco tempo depois que ela, a
dade na reprodução de objetos e figu- madeira, vem a minhas mãos, eu vejo nela
ras. Já artista, por obra e graça da graça, quase a obra. Estou como em transe.
sua arte, vale repeti-lo, se põe de mani- E a quero macia, porque ajuda a dar a
festo quase sem preliminares, sem o iti- forma que concebo. Ou talvez seja sem-
nerário do aprendizado, oficial e mestria. pre macia, quando aceita ser transfor-
Tive um diálogo com ele, diálo- mada em meu sonho, quando é um ins-
go que somente queria indagar de José trumento dócil de minha idéia.
A escultura de José Heitor
Efrain Tomás Bó 201
Introdução
O projeto Estudos Contemporâne-
os da Temática Racial Brasileira é uma
“O negro no Brasil não é iniciativa do Grupo Interministerial para
anedota, é um parâmetro Valorização da População Negra e do
da realidade nacional.” Núcleo de Estudos Contemporâneos do
Guerreiro Ramos Negro Brasileiro (NEINB) da Universi-
dade de São Paulo (USP).
O objetivo é avaliar a situação atual
dos estudos de assuntos relativos à co-
munidade afro-brasileira, com vista à
articulação de propostas e rumos para
estudos futuros e para a orientação de
políticas públicas de apoio e incentivo à
pesquisa nessa área. Realizaram-se me-
sas redondas em São Paulo, Belo Hori-
zonte, Salvador e Rio de Janeiro. Numa
Pesquisadores do Rio de Janeiro coordena- segunda etapa do projeto, os resultados
dos por Elisa Larkin Nascimento dessas mesas redondas seriam discuti-
206 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
foto 19
Foto: Revista Black People
Participantes da Mesa Redonda do Rio de Janeiro, abril de 1997, Centro Cultural José Bonifácio. Da esquerda
para a direita, 1a. Fileira: Helena Costa (CEAA/Candido Mendes), Sebastião Soares (IPCN), Luís Carlos Gá
(IPDH), Elisa Larkin Nascimento (Ipeafro), Hélio Santos (NEINB/USP), Vera Cristina (Cebrap). 2a. Fileira:
Lívio Sansone, Jocimar Oliveira de Araújo (UFRJ), José Marmo (Projeto Arayê), Maria José da Silva (SME/
SEE), Lia Vieira (Aspecab), Maria Alice Resende (Fac.Ed./UERJ), Sílvio Carvalho (Proafro/CCS/UERJ),
Geovani Santos Fonseca (NEAB/UFF), Éle Semog (CEAP). 3a. Fileira: Yvonne Maggi (UFRJ), representante
de Anreanice de Melo Corrêa (Proeper/UERJ), Armando Flávio Gamboa (Pré-Vestibular), Nei Lopes, Paulo
Roberto dos Santos (Gab. Senador Abdias Nascimento), Abigail Páscoa (GTI), Kátia Lopes (Black People),
Hilton Cobra (Centro Cultural José Bonifácio), Conceição Evaristo (NEAB/UFF), Silvânia Damasceno Martins
(UFRJ), Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ), Roseli Rocha (Aspecab), Nelson Silva de Oliveira (CIEC/UFRJ)
208 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
Projeto Estudos Contemporâneos
Elisa Larkin Nascimento 209
11. Armando Flávio Gamboa, Pré-Ves- 32. Prof. Dr. Marco Antônio Guimarães,
tibular para Negros e Carentes. Depto. de Psicologia, PUC/RJ.
a
12. Nei Lopes, pesquisador independente. 33. Prof . Dra. Helena Theodoro Lopes,
a
13. Prof . Rosália Lemos, Eléékò, Universidade Gama Filho, Intecab.
mestranda UFRJ. 34. Marta de Oliveira, Projeto Negritude
a
14. Prof . Vanda Maria de Souza Ferreira, Brasileira.
a
Fundação Municipal de Educação de 35. Prof . Aureanice de Melo Corrêa,
Niterói. Proeper/UERJ.
a 36. Prof. Dr. Jacques D’Adesky, Cesna/
15. Prof . Lia Vieira, Aspecab.
a Cândido Mendes.
16. Prof . Maria José Lopes da Silva, Se-
37. Silvânia Damacena Martins, aluna da
cretaria Municipal de Educação, Secre-
UFRJ, ex-aluna do Pré-Vestibular para
taria Estadual de Educação, Rio de Ja-
Negros e Carentes.
neiro (pesquisadora independente).
a 38. Luiz Carlos Sant’Ana, Pesquisador do
17. Prof . Aureanice de Melo Corrêa, CIEC/UFRJ.
Prpeper/ UERJ. 39. Nelson Silva de Oliveira, Pesquisador
18. Roseli Rocha, Aspecab. do CIEC/UFRJ.
19. Geovanni Santos Fonseca. 40. Márcia Regina de Lima Silva, CEAA/
20. Jurema Elimar Araújo, Cenun/UFF. Cândido Mendes.
21. Helena Costa, pesquisadora, CEAA/ 41. Jurema Werneck, Grupo Criola.
Cândido Mendes. 42. Dulce Mendes de Vasconcellos, CED/
CUN.
22. Juca Ribeiro, Grupo União e Cons-
43. Profa. Dra. Isabel Cruz, Escola de
ciência Negra.
Enfermagem, Núcleo de Estudos sobre
23. Mauro César Ryff, NEAF/UFF. Saúde e Etnia Negra (NESEN), UFF.
24. Laura Moutinho, Núcleo da Cor/ 44. Prof. Dr. Marco Antonio Guimarães,
o
IFCS/UFRJ. Dept de Psicologia, PUC-RJ.
25. Abigail Paschoa, GTI.
26. Sebastião Soares, IPCN. Patrono
27. Vera Cristina de Souza, Cebrap,
NEINB/USP. In Memoriam, foi eleito patrono
28. Conceição Evaristo, UFF, Centro da Mesa Regional do Rio de Janeiro o
Cultural José Bonifácio. grande sociólogo afro-brasileiro profes-
29. Jocimar Oliveira de Araújo, Núcleo da sor Dr. Guerreiro Ramos, cuja atuação
Cor/IFCS/UFRJ. nas décadas de 40, 50 e 60 concretizava
30. Prof. Dr. José Flávio Pessoa de Bar- o propósito de unir a pesquisa à atividade
ros, diretor, Intercom/UERJ. social concreta, assim colocando o traba-
31. Dr. Sérgio da Silva Martins, Coorde- lho acadêmico a serviço da coletividade .
2
nador do AJIR/CEAP.
2
Este propósito encontra-se desenvolvido em A redução sociológica, de Guerreiro Ramos (Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1965).
Projeto Estudos Contemporâneos
Elisa Larkin Nascimento 211
foto 20
Participantes da mesa redonda no Rio de Janeiro. Da direita para a esquerda: Abigail Páscoa,
Hélio Santos, Lia Vieira
216 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
Projeto Estudos Contemporâneos
Elisa Larkin Nascimento 217
3
Tais bolsas seriam concedidas diretamente aos alunos, já que os pré-vestibulares para negros e carentes
anunciaram uma política de autogestão, não recebendo nenhum tipo de financiamento de fora.
Projeto Estudos Contemporâneos
Elisa Larkin Nascimento 219
4
O Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) colocou à disposição, como auxiliar para este fim, o informativo
eletrônico Afro-Notícias, acessível por meio de e-mail. Trata-se de um meio de divulgação de seminários e outros
eventos, lançamentos de livros, defesas de tese e notícias políticas em relação à questão racial. A inscrição é
gratuita.
220 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 221
222 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 223
essa segunda parte em três seções: 1) a te, à lua, às coisas materiais, e à esquer-
presença africana na Ásia; 2) a presen- da, que pertence à feminilidade passiva,
ça africana na Europa; 3) a presença contrastada com a direita, ligada à ativi-
africana na Américas. dade masculina” (Diop, 1978: 12).
Cheikh Anta Diop, no seu livro A
unidade cultural da África Negra: do-
A civilização matrilinear e suas
mínios do patriarcado e do matriarcado
implicações
na antiguidade clássica (1959, 1978), exa-
Por ser uma característica cultu- mina detalhadamente as teorias
ral eminentemente africana, o eurocentristas, mostrando a falsidade da
matriarcado tem sido caracterizado pela suposição da evolução de todas as soci-
antropologia e etnologia clássicas como edades humanas rumo ao patriarcado.
uma forma primitiva de organização fa- Segundo essa teoria, por exemplo, civili-
miliar. Os escritos de Friedrich Engels zações avançadíssimas como foram os
(1943) constituem um exemplo perfeito impérios de Gana e Asante na África, e
dessa atitude, uma vez que Engels reúne o Egito antigo, seriam ilustrações de um
e avalia, aceitando como dados incontes- “estágio avançado da barbárie”, devido
táveis as teorias de estudiosos europeus unicamente à sua estrutura social
que postulavam uma evolução cultural matrilinear. Ao mesmo tempo, as tribos
universal a todos os povos. Nesse con- nômades guerreiras germânicas, cujas
ceito, existiriam várias fases de organi- práticas bárbaras (violência sistemática
zação familiar: um estado de promiscui- contra as mulheres, infanticídio e cani-
dade total e indiscriminado, em que o balismo, entre outras) foram registradas
único parentesco conhecido de uma cri- pelos escritores romanos, representari-
ança seria pelo lado da mãe; um estado am a fase da “civilização superior” gra-
intermediário em que seria proibido o ças apenas ao seu sistema patriarcal.
casamento entre irmã e irmão; a família
Na verdade, mostra Diop, nunca
monógama matrilinear; e finalmente a
foi provado que algum povo tivesse avan-
família monógama patriarcal. Desneces-
çado de um estado “primitivo” matriarcal
sário assinalar que, dentro dessa hierar-
para o “superior”, patriarcal. Antropó-
quia do suposto “progresso” humano, o
logos constatavam sistemas matrilineares
modelo europeu representa o estágio
entre os povos que eles estudavam e que
mais avançado.
haviam anteriormente classificado como
Como tudo que é europeu, de primitivos. Alguns desses povos, devido
acordo com essa visão, o patriarcado é freqüentemente ao contato com o colo-
superior. “Representa a espiritualidade, nizador europeu, começavam a adotar
a luz, a razão e a delicadeza. O práticas características do patriarcado.
matriarcado, por outro lado, se associa Então, os cientistas declaravam estar di-
às entranhas cavernosas da terra, à noi- ante de uma “transição” entre os estágios
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 225
A rainha Nefertiti, esposa de Akhenaton (Amenhotep IV), reinou durante a XVII Dinastia egípcia.
Fonte: Van Sertima, 1984: 52
228 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
Cleópatra, desenho de Earl Sweeney. O pai de N’zinga, rainha-guerreira soberana de Angola, lutou
Cleópatra, Ptolomeu XII, era filho ilegítimo de contra o domínio português e holandês num período
Ptolomeu XI, fato esquecido por aqueles que a des- histórico contemporâneo a Zumbi dos Palmares.
crevem como grega de sangue puro. Desenho repro- Fonte: ensaio de John Henrik Clarke, in Van Sertima,
duzido do ensaio de John Henrik Clarke, in Van 1984: 131
Sertima, 1984: 127
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 229
Aceita-se hoje que povos da raça canas precursoras do Egito dinástico, tam-
cushita ou etíope, também referida bém caracterizadas pela matrilinearidade:
como hamita, foram os primeiros Cush e Núbia, ou Ta-Seti. Conforme já
civilizadores e construtores em toda observamos (Thoth 1), o povo de Ta-Seti
a Ásia Ocidental, e que são se chamava Anu-Seti, indicando sua cor
evidenciados nos restos de suas negra. No Egito, anu significava ser
línguas e arquitetura e na influência humano, e também a cor preta. Duas
de sua civilização, nos dois lados do cidades importantes do Egito,
Mediterrâneo, na África oriental e Hermonthis no sul e Heliópolis no nor-
no vale do rio Nilo, como também te, chamavam-se Anu. A palavra anu
no Hindustão e nas ilhas do mar também indicava o lar das almas
Índico. renascidas das pessoas fisicamente
mortas. A marca da civilização egíp-
Uma primeira e fundamental ob-
cia fica registrada, em regiões muitos
servação sobre essa influência africa-
remotas da Ásia e da Europa, por in-
na no mundo antigo diz respeito à sua
termédio da organização social de ca-
natureza matrilinear. A literatura reli-
ráter matrilinear e mediante essa pa-
giosa egípcia registra uma primordial
lavra anu, que iremos encontrar no
expressão do fenômeno: as viagens de
mundo antigo desde o Japão até a Ir-
Osíris pelo mundo na sua missão
landa.
civilizatória a outras terras. Rei e deus
do Egito, Osíris era o mestre da filoso-
fia do Ma’at (teoria da verdade, da jus-
A presença africana na Ásia
tiça e do direito). Além de levar e
ensinar a outros povos do mundo as ci-
ências da agricultura e da metalurgia, A presença e a contribuição afri-
bem como a arte da civilização, Osíris canas na construção da civilização nos
pregava também a mensagem religio- vales dos rios Tigre e Eufrates está ex-
sa e os princípios da moral e da ética tensamente documentada. John
do Ma’at. De acordo com essa mes- Baldwin (1872: 17-18) dizia no século
ma tradição, quando Osíris deixou o passado:
Egito para cumprir essa missão, Ísis,
sua irmã e esposa, reinava com sabe- Os povos descritos nos escritos
doria, “em dignidade e em verdade”, hebraicos como os de Cush foram
durante a ausência do governante-par- os civilizadores primordiais do
ceiro (Sánchez 1984). Sudoeste Asiático, e na mais remota
antiguidade sua influência se
A presença africana nas civili- estabeleceu em todas as regiões
zações asiáticas, bem como na Europa litorâneas, desde o extremo leste até
e nas Américas, nos remete em pri- o extremo oeste do Mundo Antigo.
meiro lugar àquelas civilizações afri-
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 231
Jovens dravidianos modernos. Marco Polo chamava Dravida de “A Índia Maior”. Tudo indica que os dravidianos,
um povo de evidente origem africana e cujos costumes, língua e herança cultural exibem laços com a antiga
civilização egípcia, foram os construtores dos complexos urbanos de Harappa e Mohenjo-Daro. Após conquista-
dos, foram reduzidos ao status de escravos, sendo eles os sudras (negros), ou intocáveis, do sistema de castas. Fonte:
Van Sertima e Rashidi, 1985:40
Duas esculturas, uma máscara em terracota (Harappa, 2.300 a.C.) e uma estatueta de figura feminina em bronze
(Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), retratam um tipo físico africano. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 85 -98
234 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
sudra (negra) e responsável por uma re- samurai ter coragem, é preciso que te-
nascença cultural importantíssima. A di- nha sangue negro.”
nastia Mauryana, também negra, a su-
Os negros ainu, caracterizados
cedeu, e esse poder sudra se extendeu
nas lendas como anãos (fato que indica
durante 150 anos (Van Sertima e Rashidi,
uma ascendência twa), aparecem em
1985: 38-42).
toda a história chinesa, inclusive consti-
Hoje, a população negra indiana tuindo algumas das dinastias mais anti-
continua enorme, na pessoa dos gas. As chamadas dinastias divinas co-
dravidianos, os “etíopes orientais” da li- meçam com a de Fu-Hsi (2953-2838
teratura grega. Interessante observar que a.C.). Negro de cabelo lanudo, esse
até hoje a grande maioria das divindades monarca foi o responsável pela origem
cultuadas pelos dravidianos do sul da Ín- das instituições políticas, sociais, religio-
dia são deusas-mulheres. sas e da escrita que iriam perdurar na
China. Shen-Nung (2838-2806 a.C) in-
troduziu a agricultura no país. Mais uma
China, Japão e Sudeste Asiático
vez, constatamos a natureza matrilinear
nas culturas dessas dinastias.
Na China, a presença do negro
africano data do período plistoceno (de Da China, ainda de acordo com
50 mil a 10 mil anos atrás). James E. Brunson, os negros migraram para o
Brunson, no seu ensaio sobre a presença Camboja, onde desenvolveram a cultura
africana na China (in Van Sertima e Funan, que floresceu por volta de 300
Rashidi: 1985: 120-37), relata que se en- d.C., com uma tecnologia de engenharia
contram restos do Homo sapiens hidráulica muito avançada. No século
sapiens negro, denominado Liu Chiang, VI, os khmer absorvem essa cultura e a
nas províncias de Szechuã e Kiangs. A misturam com o culto budista a Shiva.
mitologia chinesa, em vários casos, iden- Responsáveis pelo famoso complexo
tifica uma raça original chamada Ainu, arquitetônico de Angkor Wat, os khmer
de nariz chato e cabelo duro. Conforme eram “escuros, com o cabelo em carapi-
já observamos, a palavra Ainu originou- nhas”.
se no Egito, onde designava o ser huma-
no e a cor preta, e se espalhou através
do mundo antigo com essa conotação da
cor negra.
De acordo com os dados levanta-
dos por Brunson, os ainu também estão
presentes na história japonesa, com des-
taque para o comandante Sakanouye
Tamuramaro, cuja valentia lendária é ho-
menageada com o provérbio: “Para um
236 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
À esquerda, jovem da Malásia moderna. À direita, escultura chinesa da dinastia Shang, com tipo humano melanésio.
Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 44, 128
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 237
A presença africana na Europa antiga vestígios desse culto e provas de sua exis-
tência na Europa desde muito cedo. O
historiador romano Plínio, escrevendo no
Desde a Grécia antiga e suas ilhas, II século d.C., observa a prática desse
a presença africana pode ser constatada culto na Inglaterra e na Alemanha. Tal-
na Europa por meio de riquíssima docu- vez tenha sido introduzido com as incur-
mentação arqueológica, lingüística e his- sões de Senusert I e Tutamés III, faraós
tórica. James Brunson (in Van Sertima, egípcios que visitaram a Europa entre
1985: 62) conclui seu ensaio sobre o as- 1.900 e 1.450 a.C. As legiões romanas
sunto com a seguinte observação: que invadiram e conquistaram a Europa
até o seu extremo norte incluíam tam-
(...) não se pode negar a presença e bém grande número de africanos, muitos
o papel africanos na Europa antiga dos quais certamente praticavam o culto
(isto é, as ilhas mediterrâneas e Egéia, a Ísis. Existe também, o registro de mais
e a própria Grécia). Schliemann, após de mil etíopes que invadiram a Espanha
excavação em Tiryns e Myceanae, por volta de mil anos antes da era cristã,
replicou aos seus colegas e e que ficaram na região de Cádiz, duran-
estudiosos: “A mim me parece que te um século e meio, formando uma co-
esta civilização pertencia a um povo munidade coesa com capital em Talikah.
africano.” Sobre Creta, observou A comunidade tinha um rei eleito e es-
Evans: “Gostem ou não do fato, os trutura sóciopolítica definida, antes de ser
estudiosos clássicos são obrigados a aniquilada pelos romanos, quando inva-
considerar as origens. Os gregos que diram e conquistaram o país (Van
discernimos nessa nova aurora não Sertima, 1985: 134-135).
eram nórdicos de pele clara, mas
Entre as mais fortes influências
essencialmente a raça de cabelo preto
africanas na Europa está a dos mouros1.
e pele escura.”
Estes têm origem no povo garamante, que
Um fenômeno que merece desta- habitava o Saara por volta do ano 5.000
que é a proliferação de Nossas Senho- a.C. Após invadir o Egito em 640, os
ras negras em toda a extensão da Euro- mouros atravessaram até a Espanha, sob
pa, sendo mais famosas as de Loretta na a liderança do general Djebel el Tarik,
Itália, Nuria na Espanha e Czestochawa cujo nome deu origem à palavra Gibraltar.
na Polônia. As imagens dessas madonas O domínio africano na Europa durou de
negras correspondem a uma prática reli- 711 até 1260, e gerou uma renascença
giosa que tem origem no culto a Ísis, deusa nas artes, ciências, e literatura. A mate-
núbia e egípcia da fertilidade, irmã e es- mática, a arquitetura, a religião, enfim,
posa de Osíris e mãe de Hórus. Existem quase todas as manifestações culturais
__________________
1
Ver discussão sobre a identidade racial dos mouros no ensaio desta autora, “Sankofa: significado e intenções”, na
revista Thoth no 1.
238 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
À direita, o papa Vitor I, retratado à época com fisionomia africana. À esquerda, o retrato do mesmo papa exibido
no Vaticano. Fonte: Edward Scobie, “African popes”, in Van Sertima, 1985: 98-9
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 239
À esquerda, brasão de família da Inglaterra, com fisionomia acentuadamente africanóide. À direita, um cavaleiro
andante medieval, normando, também evidentemente africano. Há vários outros exemplos, citados e ilustrados
por Runoko Rashidi em sua resenha do livro Ancient and modern Britons, de David MacRitchie, publicado em
1881. Fonte: Van Sertima, 1985: 251-60
À esquerda, retrato de um mouro em Marrocos, datado de 1841. À direita, um exemplo da imagem do santo
Johannes Morus, símbolo sagrado da figura do mouro na Europa. Esse ícone, do século XIX, encontra-se hoje num
museu alemão. Fonte: reproduzidas do ensaio de Wayne B. Chandler (in Van Sertima, 1985: 146 e 162)
240 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
À esquerda: cabeça esculpida em pedra, retratando um tipo africano da cultura olmeca (Vera Cruz, período clássico).
À direita, em cerâmica, uma figura miscigenada (Vera Cruz, período clássico). Fonte: Van Sertima, 1976: figs. 4A e 24
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento
As correntes marítimas, chamadas pelos africanos de “rios dentro do mar”, Ra I, embarcação construída por africanos do lago Chade, reproduz a mais
243
que vão da África até as Américas. Fonte: Van Sertima, 1976: fig. 10 primitiva engenharia naval desenvolvida pelos antigos egípcios. Fonte:
Van Sertima, 1976: fig. 12
244 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
Duas gigantescas cabeças africanas, em basalto, do período pré-clássico da cultura olmeca, no México, ambas
encontradas em San Lorenzo. Fonte: Van Sertima, 1976: fig.29
Compare-se a cabeça de um chefe nuba, do sul do Sudão, com uma cabeça olmeca em pedra encontrada em La Venta.
Fonte: Van Sertima, 1976: fig. 27
As civilizações africanas no mundo antigo
Elisa Larkin Nascimento 245
foto 21
Dra. Guiomar Ferreira de Mattos, 1950, acompanhada de Abdias Nascimento (esq.) e Claudiano Filho
252 THOTH 3/ dezembro de 1997
Sankofa: memória e resgate
O preconceito nos livros infantis
Guiomar Ferreira de Mattos 253
gra com a trajetória das organizações afro- um ecumenismo que, tendo como elo de
brasileiras nas cinco últimas décadas. A ligação o traço racial da negritude, preten-
temática incluiu a quilombagem, revoltas e de unir, a partir de uma ampla visão
insurreições, os clubes abolicionistas, a im- etnocultural, todas as diferenças, inclu-
prensa alternativa, o movimento pan- indo gênero, faixa etária, formação pro-
africanista e o mito da democracia racial. fissional, cultura religiosa, cultura políti-
Organizado com o propósito de ca e classe social. Dentro dessa pers-
estimular o estudo científico e sistemático pectiva, o Cecune tem desenvolvido, des-
das manifestações culturais afro-brasilei- de a sua criação, propostas de reflexão
ras, o Módulo III - História das Artes, Cul- e questionamento com vistas a
turas e Religiões - esteve a cargo do jorna- aprofundar o pensamento crítico acerca
lista e videasta paulista Joel Zito de Araújo, da questão étnica, percebida sob uma
ao lado do professor Marcos Rodrigues da ótica ao mesmo tempo local, nacional e
Silva. Fizeram parte da temática desse internacional, interna e externa à popu-
módulo uma releitura da cultura negra a lação afro-brasileira. Por enfatizar sua
partir da visão ecológica, a dança afro-bra- diretriz ecumênica - que propicia um es-
sileira e o Teatro Experimental do Negro. paço de convívio democrático entre di-
Durante a realização desse módulo- de 11 ferentes -, a organização construiu uma
a 13 de abril de 1997 -, foram lançados o imagem de seriedade e confiabilidade, ao
livro Negro - uma identidade em cons- mesmo tempo em que foi ampliando seu
trução e o vídeo A exceção e a regra. poder de arregimentação na comunida-
de negra e sua penetração junto a pes-
Projetos de políticas públicas em soas e instituições da sociedade em ge-
educação, habitação e saúde, estrutura e ral capazes de apoiá-la em suas iniciati-
ação nos encontros de massa, dinâmica de vas. Com esse apoio, aliado à prestação
grupo em ações populares e desenvolvi- voluntária de serviços por seus colabo-
mento econômico das comunidades negras radores - chamados “assessores técni-
foram alguns dos temas discutidos no cos” -, o Cecune consegue imprimir aos
Módulo IV - Práticas Metodológicas Afro- trabalhos que realiza um cunho de qualida-
Brasileiras. Realizado entre os dias 17 e 19 de e reverter seus resultados à comunida-
de outubro, esse módulo esteve a cargo da de negra - sempre que possível a custo zero,
enfermeira Berenice Assumpção Kikuchi, ou pelo menos ao menor custo possível.
especialista em Saúde Pública, ao lado de
Ivair Augusto Alves dos Santos, do Minis- Três linhas de ação nortearam a
tério da Justiça, e do professor Marcos construção da identidade do Cecune. A
Rodrigues da Silva. primeira foi a elaboração de um pensar
acerca da identidade negra em suas di-
Voluntariado e custo zero mensões de passado, presente e futuro, por
Criado em março de 1987, o meio de espaços de leitura e discussão. A
Cecune - Centro Ecumênico de Cultura segunda linha adotada referia-se a ações
Negra é uma ONG voltada à prática de voltadas para construir a imagem da insti-
260 THOTH 3/ dezembro de 1997
Movimento Negro Hoje
foto 22
Evento Os 25Anos do Vinte de Novembro. Porto Alegre, 19-11-1996 - Casa de Cultura Mario Quintana. Painel:
jornalista Marisa Souza da Silva, jornalista Vera Daisy Barcellos Costa, poeta Oliveira Silveira e arquiteta Helena
Vitória dos Santos Machado
foto 23
A assistência do evento
262 THOTH 3/ dezembro de 1997
Movimento Negro Hoje
Como surgiu o 20 de novembro?
Oliveira Silveira 263
Quando em 1978 se formou o ção) hoje pode registrar como marco ini-
Movimento Negro Unificado contra a cial de uma outra fase o ano de 1971,
Discriminação Racial (MNUCDR) e pro- quando surgiu uma nova e decisiva força
pôs num congresso seu, em Salvador-BA motivadora e aglutinadora: a evocação
que a data fosse chamada Dia Nacional do vinte de novembro.
da Consciência Negra, já se iam sete
anos de trabalho duro do Grupo Palmares, Algumas distinções
reconhecido e seguido por outras entida-
des do país. O MNUCDR, depois MNU, O Palmares foi sempre um grupo
apenas batizou a data com uma expres- de negros e com isso legitimou sua pro-
são feliz e contribuiu para ampliar o seu posta como iniciativa gerada no seio da
âmbito. No manifesto de Salvador, en- comunidade negra e por ela imposta à
tretanto, nenhuma referência foi feita ao sociedade. Há grupos que preferem ser
Grupo Palmares e seu pioneirismo. Só mistos e assim perdem às vezes a opor-
em 1981, em sua revista no. 3, em 1988 tunidade de marcar sua ação política
no jornal Nêgo de abril e em 1991, tam- como genuinamente negra.
bém em seu jornal e no transcurso dos
Parece que o Movimento Negro
“20 anos do vinte”, é que o MNU abriria
(MN) não quis assimilar bem a proposta
espaço para fazer justiça ao grande es-
do Grupo Palmares relativamente ao vin-
forço político do grupo sulino. Uma das
te. O MN individualiza (há exceções),
fundadoras do MNU, a antropóloga Lélia
ressaltando a figura de Zumbi, na linha
Gonzales, refere “o alerta geral do Gru-
da historiografia oficial, que destaca o in-
po Palmares” e a proposta gaúcha nas
divíduo, o herói singular, como se fizesse
páginas 31 e 57 de seu importante traba-
tudo sozinho. Individualismo, coisa tão
lho Lugar de negro, em parceria com
cara ao sistema capitalista. O Grupo
Carlos Hasenbalg (Rio, Marco Zero,
Palmares sempre valorizou e destacou
1982). Mas grande parte do Movimento
Zumbi como o herói nacional que é, mas
Negro nacional parece desconhecer a
preferiu sempre centrar a evocação no
iniciativa sul-rio-grandense de 1971 e sua
coletivo - 20 de Novembro - Palmares, o
continuidade. Como que paira a idéia de
Momento Maior. Ou: Homenagem a
que tudo começou em 1978, quando o
Palmares em 20 de Novembro, dia da
que houve então foi uma convergência
morte heróica de Zumbi. E afinal o Esta-
para um novo estágio da luta, em que o
do negro foi uma criação coletiva da
MNU desempenhou, sim, um papel fun-
negrada.
damental.
O 20 de Novembro traz também
O Movimento Negro brasileiro
um possível perigo: seu uso pelo
(como por influência negra norte-ameri-
oficialismo e por outros setores ou insti-
cana se passou a chamar a luta mantida
tuições sociais. O capitalismo tem o po-
sempre, no escravismo e no pós-aboli-
der de absorver bem os golpes que lhe
Como surgiu o 20 de novembro?
Oliveira Silveira 267
ERRATA
No número 2 da Revista Thoth, a legenda desta foto saiu errada, pelo que a
republicamos neste número.
Inauguração da Escola Municipal Professor Abdias Nascimento, São Luís do Maranhão, 1991. Da esquerda
para a direita, Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, José de Ribamar Marinho Caldeira, João
Francisco dos Santos e o prefeito de São Luís, Jackson Lago
270 THOTH 3/ dezembro de 1997
Movimento Negro Hoje
Como surgiu o 20 de novembro?
Oliveira Silveira 271
SENADO FEDERAL
SECRETARIA ESPECIAL DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES
Praça dos Três Poderes, s/no – CEP 70168-970
Brasília – DF
272 THOTH 3/ dezembro de 1997
Movimento Negro Hoje
SIMBIOSE AFRICANA Nº 2
Acrílico s/ tela - 91 x 61 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1971