Você está na página 1de 4

29/11/2019 prefácioàediçãoon-line - lancapatricia

Prefácio à Edição Electrónica

Portolani Books Volume Dois: Misérias do Exílio

INÍCIO

SEGUINTE

PREFÁCIO À EDIÇÃO ELECTRÓNICA


 

Periodicamente tenho tido oportunidade de revisitar na memória os quatro anos que


passei  no  norte de África, logo a seguir à independência da Argélia.  Ao percorrer esse
caminho, apoiada na documentação que guardei durante tantos anos, fico cada vez mais
impressionada com o significado do que se passou.  Quando releio o que escrevi nos finais
dos anos setenta  em O Bando de Argel, e num segundo livro, As Misérias do Exílio, nos
anos 90, consolido a minha convicção de que os acontecimentos de Argel revelaram e
continuam a revelar muito sobre a natureza do salazarismo e da oposição anti-salazarista.
Com efeito, ajudam a explicar a longevidade do Estado Novo.  Para quem soubesse
interpretá-los, esses acontecimentos foram um pré-aviso de dramas  futuros. Foram ainda
um verdadeiro presságio do que viria a acontecer mais tarde, depois da queda da
ditadura. E ajudam-nos hoje a entender alguns problemas da nossa actual política
partidária. 

É um lugar-comum dizer que para compreender o presente temos que conhecer


o passado. Toda a gente concorda mas, na prática, poucos reflectem sobre isso. Se tivesse
havido entre 1966 e 1974 um verdadeiro interesse pelos acontecimentos de Argel da parte
dos opositores ao salazarismo, talvez não tivessem ocorrido algumas das desgraças de
1974-75, nem tivesse continuado até hoje  a persistente hegemonia de uma esquerda
velha, caduca e desacreditada. Não houve esse interesse. Bem pelo contrário: ninguém
queria saber. Lembro-me da reacção de um familiar a quem mostrei em l967 alguns dos
documentos escritos por Delgado.  Era um  simpatizante  comunista e não gostou do seu
conteúdo: Estes papéis, disse ele, só podem ser fabricações da PIDE.  Recusou ouvir como
eu os tinha recebido, todos eles, em Argel, das mãos de pessoas que estavam a trabalhar
com Delgado. 

E, assim, tudo foi varrido por baixo do tapete, como se diz na gíria.  O tema de Argel e as
desavenças de Delgado com a Oposição tradicional entrou no longo rol dos tabus:
questões  que antes de 1974 não podiam ser abordados para não perturbar a ‘unidade
antifascista’,  e que desde então precisam de ser escondidos para preservar o status quo. 
Nos conturbados tempos depois do 25 de Abril, mesmo os mais recalcitrantes maoistas
não queriam ouvir falar em acontecimentos que reflectiam o pouco crédito dos seus
protagonistas. Hoje, o muro de Berlim pode ter caído;  já há muitos anos que os países da
chamada ‘democracia popular’ podem ter corrido com os seus regimes comunistas.
Em Portugal, porém, continuam de pé velhos ídolos com pés de barro. Continua a haver
muita gente empenhada em esconder a verdade.  Não me refiro  só ao mistério que rodeia
o assassinato de Delgado, embora haja pessoas ainda vivas que não querem levantar o véu
sobre o crime. 

Não existe por esse país fora uma cidade, uma vila, uma aldeia onde não se encontre uma
rua ou uma praça com o nome de Humberto Delgado.  Às crianças e aos estrangeiros que
perguntam quem foi essa pessoa, a resposta é sempre: ‘Um general que foi candidato
democrático à presidência da república e que foi assassinado por ordem de Salazar.’ No
https://sites.google.com/site/lancapatricia/prefácioàediçãoon-line 1/4
29/11/2019 prefácioàediçãoon-line - lancapatricia

entanto, quem investigar os acontecimentos que precederam a morte de Delgado,


rapidamente chega à conclusão que Salazar não tinha razão alguma para querer que o
general desaparecesse.  É por isso que o assunto se tornou tabu. 

Independentemente do problema de saber quem matou  o general, e de quem tenha


 sido  o seu mandante, o que os acontecimentos de Argel revelam, sobretudo, é a
incompetência e a patética infantilidade de todos, assim como a falta de moralidade de
alguns dos actores do drama que se desenrolou naquela época, no norte de África. 

Aquele foi, em boa verdade, um palco onde todas as tendências da oposição tiveram a
oportunidade, que não existia em Portugal, de mostrar o que valiam. Relendo hoje os
documentos tanto de Delgado, como dos comunistas, como da extrema-esquerda,
ficamos com a desconfortável sensação de ver e ouvir bonecos de cartão, como se de um
teatro do absurdo se tratasse, a desempenharem papéis e a disputarem poderes pouco
mais do que imaginários. Um teatro onde não é fácil distinguir entre o cómico e o trágico.
É por isso que os comunistas fizeram e fazem tudo para esconder o seu papel na farsa.
É por isso que inventaram histórias fantasiosas sobre o que se passou, tendo o próprio
Álvaro Cunhal recusado qualquer responsabilidade nos acontecimentos, afirmando até o
fim da vida que os documentos, publicados pelos protagonistas e comprovativos da
verdade, eram ‘apócrifos’.

As divisões políticas e as impotências que observamos no Portugal de hoje derivam em


larga medida da persistência obstinada de um mito que alimenta as hostes da esquerda e
que intimida e culpabiliza a castrada direita. Poucos compreendem realmente o passado.
Nem querem compreendê-lo, como ficou amplamente demonstrado durante o
famigerado concurso para o maior português; como também fica demonstrado
anualmente com a benevolência estendida à ‘Festa’ do Avante. O ‘politicamente correcto’,
a mais recente arma da esquerda, proíbe uma discussão desapaixonada do salazarismo,
como igualmente impede qualquer pergunta inconveniente sobre a impotência e a
mediocridade da oposição anti-salazarista no seu todo. A continuada influência dos
comunistas em alguns sectores cruciais da sociedade portuguesa depende do mito de
uma heróica resistência contra uma feroz ditadura que durou quase meio século. Podem
os comunistas não apreciar os oposicionistas não-comunistas e não se perderem de
amores pelos herdeiros da Primeira República, mas estão todos de mãos dadas quando se
trata de exagerar os pecados da ditadura. É, porém, mais que evidente para um
observador desapaixonado que, em comparação com as sanguinárias tiranias que foram
os regimes comunistas ou os actuais infernos das ditaduras do terceiro mundo, o Estado
Novo de Salazar não passava de uma ditadura bastante branda.

Pretender o contrário é realmente uma ofensa ao sagrado dever de respeito pela verdade
histórica e uma traição às centenas de milhões de mortos em outras paragens. Num país
pobre e subdesenvolvido como era o Portugal de então, havia certamente muitas práticas
típicas de um estado policial: censura, partido único, algumas centenas de presos
políticos, obscurantismo no ensino, uma burocracia sufocante e muitas vezes prepotente,
ausência dos normais direitos cívicos e laborais, a repressão de protestos e de
manifestações pacíficas, o estatuto subordinado da mulher. Todos esses desafios aos
princípios liberais existiam no Portugal de Salazar como, aliás, existiam antes da Segunda
Guerra Mundial em todos os países da Europa rural e subdesenvolvida.   Devido ao seu
isolamento por causa da Segunda Guerra Mundial e da Espanha franquista, a sociedade
portuguesa estava atrasada e parada  no tempo. Tudo tinha fatalmente que culminar num
desastroso confronto  quando eclodiram as revoltas coloniais. Foram elas e a fuga dos
emigrantes que precipitaram a modernização.  Mas um regime criticável, e em muitos
aspectos condenável,  não é necessariamente um regime fascista.  Confundir categorias
políticas leva ao esvaziamento do seu sentido e semeia confusão. É a arma do demagogo,
do terrorista do verbo.  Na escola é antipedagógico e  na vida política é utilizado como
instrumento  de chantagem. 

Para os comunistas a confusão é necessária para manter o seu estatuto heróico e é por
isso que exageram vergonhosamente os malefícios do antigo regime.  Muita gente, por
diversos motivos, aceita a grande mentira. Não importa que tenha havido várias amnistias
para militares revoltosos; não importa que a alguns dos exilados com maior evidência em
Argel lhes tenha sido permitido voltar para Portugal, ainda durante a ditadura; não importa
que a políticos da oposição, deportados para as colónias, lhes fosse permitido exercer
localmente as suas profissões. 

https://sites.google.com/site/lancapatricia/prefácioàediçãoon-line 2/4
29/11/2019 prefácioàediçãoon-line - lancapatricia

        Não importa nenhum desses sinais duma ditadura própria da Ruritânia: o regime era
fascista! 

É por isso que tudo o que tenho escrito ao longo de quarenta anos sobre o que se passou
em Argel  tem sido  mal recebido ou simplesmente ignorado.  Fui avisada constantemente,
até hoje, que apesar de minha narrativa ser verdadeira, era sempre inconveniente. Antes
do 25 de Abril, ajudava ‘o fascismo’.  Até aos anos 80, disseram-me que só podia
favorecer os nostálgicos do Estado Novo.  Hoje dizem-me que estou a prejudicar o bom
nome da  ‘resistência’ e ‘ajudar a reacção’. 

Houve somente um breve período, nos fins dos anos setenta, quando o ambiente era
diferente e a comunicação social mais diversificada, que foi evidente alguma abertura.
Havia muito mais debate do que há hoje: era o tempo da Aliança Democrática.  O meu
primeiro ensaio sobre o ‘caso Delgado’, foi então  um best-seller e em seis meses
venderam-se muitos milhares de exemplares do livro.  A versão impressa do texto agora
posto on-line,  pelo contrário, foi boicotada; não recebeu qualquer promoção ou
publicidade.  Não sei quantos exemplares foram vendidos, porque até hoje o editor não
me apresentou quaisquer contas. 

Foi pena—ou talvez não. Agora existe a internet e uma audiência potencialmente muito
maior. Sobretudo, há toda uma nova geração de leitores.  E se não tivesse havido aquele
boicote,  talvez eu não tivesse tido o incentivo para colocar o livro on-line.

O valor histórico do livro consiste, sobretudo, na reprodução, na totalidade,  de todos os


meus documentos referentes aos acontecimentos narrados. A primeira edição, por pressão
de tempo, só trazia extractos de alguns deles.  Esta edição também reproduz alguns
comentários curiosos incluindo um de Álvaro Cunhal e outro de Pedro Ramos de Almeida. 
São curiosos porque descaradamente mentirosos, revelando mais uma vez a natureza
dessa famigerada  ‘superioridade moral dos comunistas’.  Cunhal falou de ‘documentos
apócrifos’. Ramos de Almeida e o agente russo Ignatiev mentiram escandalosamente sobre
o meu passado político e alegada pertença ao Intelligence Service. As palavras dessas
figuras são bem reveladoras do seu carácter e das suas motivações.

A verdade sobre o assassinato de Delgado ainda está por descobrir e talvez nunca seja
conhecida.  A verdade sobre a moralidade e os objectivos de muitos opositores ao Estado
Novo já se sabe.  Resta agora tirar as conclusões. A minha esperança é de que os textos
agora publicados sejam instrumentos úteis dessa  tarefa.

Algures no Alentejo, 15 de Setembro de 20007

~~~«»~~~
 

NOTA TÉCNICA
Peço desculpas aos mais qualificados em informática por este site ser dos mais simples
possíveis.  Utilizei o Google Page Maker, um instrumento  pouco sofisticado e que nem
sempre garante uma formatação uniforme.  A  Página Inícial  traz o Índice Geral e uma lista
das ligações para cada capítulo.  

Cada capítulo tem a sua própria página  cada uma  com  ligações para a Página Inícial, para
a página anterior e para a página seguinte.  Assim, em qualquer momento da leitura pode-
se aceder a qualquer capítulo do livro. As notas, normalmente de rodapé ou no fim do
capítulo, encontram-se, nesta edição  na coluna do lado direito de cada página.  Todas as
páginas são fáceis de imprimir. Embora os leitores sejam livres de reproduzir e fazer
circular as partes do texto que lhes interessam, ou mesmo o livro inteiro,  pede-se
respeito pelo meu copyright e, portanto, a sua atribuição à minha autoria.  

~~~«»~~~

INÍCIO                      

    

https://sites.google.com/site/lancapatricia/prefácioàediçãoon-line 3/4
29/11/2019 prefácioàediçãoon-line - lancapatricia

       SEGUINTE

        

Iniciar sessão | Atividade Recente do Website | Denunciar Abuso | Imprimir Página | Tecnologia do Google Sites

https://sites.google.com/site/lancapatricia/prefácioàediçãoon-line 4/4

Você também pode gostar