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Richard Popkin

História do Ceticismo
de Erasmo a Spinoza

j Richard H. Popkin
I
traduzido por Danilo Marcondes

11
frmirco Ai ver
Copyright © 2000 by Richa rei H. Popkin

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser


reproduzida, transmitida por qualquer forma eletrônica. mecânica.
fotocopiada ou gravada, sem autorização expressa do editor.

Título original: The Hislory of Scepticism


from Erasmus to Spinoza

Revisão
Wendel Sussurana Setúbal
Sandra Pássaro
Elisabete Lins Muniz

Capa
19 deslgn /Valéria Boelter

Editoração
Carlos Alberto Rios

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

p864h Popkin. Rlchard H. (Richard Henry), 1923-


Histórla do Ceticismo de Erasmo a Spinoza I por Com amor paraJulie, Jerry,
Richard H. Popkin; traduzido por Danilo Marcondes de
Souza Filho.- Rio de Janeiro: Francisco Alves. 2000.
Maggi e Sue
ISBN 85-265·0331-6
e dedicado à memória
Tradução de: The history of scepticism from
Erasmus to Spinoza
de lmre Lakatos
Inclui bibliografia.

1. Celiscimo · História. I. Título

95-0830 CDD · 149.73


CDU · 165.72

2000
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Uruguaiana, 94/13° andar- Centro
20050·091 -Rio de Janeiro- RJ
Tels: (OXX) (21) 852·8213- Fax: (OXX) (21) 852-7464
E·mail: alvesedit@oul.com.br
Este livro é uma versão revista e ampliada de The
History of Scepticism from Erasmus to Descartes (Van
Gorcum, 1960; edição revista, 1964, pela Humanities Press,
Inc.; e Harper Torchbook, 1968). Partes dos seguintes tex~
tos são reproduzidas com a permissão dos editores: The Com-
plete Works of Montaigne, traduzido para o inglês por Donald
M. Frame (Stanford Univ. Press, ©1948, 1957, 1958, by the
Board ofTrustees of the Leland StanfordJunior University);
CaliJin, Institutes of the Christian Religion, I.LCC, vol. XX,
editado por John T. McNeill e traduzido para o inglês por
Ford Lewis Battles (The Westminster Press, © 1960, W. L.
Jenkins}; The Phi!osophica[ Works of Descartes, traduzido
para o inglês por E. S. Haldane e G. R. T Ross (Cambridge
Univ. Press, 1931).
Sumário Agradecimentos
Este estudo foi desenvolvido ao longo dos últimos dez
Agradecimentos .............................................................. 9 anos e representa não apenas os resultados das pesquisas de
seu autor, mas também do auxílio, conselhos e apoio de muitas
Prefácio ........................................................................ 13 pessoas e instituições. É, portanto, um motivo de prazer para
mim poder aproveitar esta oportunidade para agradecer àque-
I. A Crise Intelectual da Reforma .................................. 25 les que contribuíram tão generosamente de diversas formas.
Em primeiro lugar, quero manifestar meus agradeci-
li. O Ressurgimento do Ceticismo Grego no mentos ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, que
Século XVI ................................................................... 49 me concedeu uma bolsa de pesquisa Fulbright junto à Uni-
versidade de Paris, em 1952-53, e junto à Universidade de
III. Michel de Montaigne e os Utrecht, em 1957-8; bem como à American Philosophical
Nouveaux Pyrrhoniens ................................................. 89 Association, que me concedeu auxílios em 1956 c 1958, pos-
sibilitando a realização de minhas pesquisas na França e na
IV. A Influência do Novo Pirronismo ........•................ 123 Itália. Por meio desses auxílios tive a oportunidade de exa-
minar e estudar material não disponível em meu país, bem
V. Os Libertins Érudits .............................................. como pude contar com períodos de licença de minhas ativi-
'53
dades docentes, o que me permitiu concentrar-me na prepa-
'\TI. Começa o Contra-Ataque ..................................... r85 ração deste estudo.
Desde a primeira edição desta obra tive bolsas de pes-
VII. Ceticismo Construtivo ou Mitigado ..................... 211 quisa do American Council o f Learned Societies, da Alexander
Kohut Foundation, dajohn Simon Guggenheim Foundation,
VTII. Herbert de Cherbury e Jean de Silhon ................. 243 da American Philosophical Society, da Memorial Foundation
for Jewish Culture e do National Endowment for the
IX. Descartes: Conquistador do Ceticismo .................. 271 Humanities, que me permitiram ampliar meu conhecimento
e interpretação do ceticismo moderno.
X. Descartes: Sceptique Malgré Lui ............................ 30r Sou também extremamente grato às inúmeras biblio-
tecas nos Estados Unidos e na Europa que me permitiram
XI. Isaac la Peyrêre e o Início do utilizar seus recursos, especialmente à Bibliothêque Nationale
cettctsmo
· · R er·
tgtoso .................................................... 3 31 de Paris, à British Library, à Biblioteek van de Universiteit
van Utrecht, à Biblioteca Laurenziana de Florença, à
XII. O Ceticismo de Spinoza e seu Anticeticismo ........ 355 Rijksbiblioteek de Haia, à Biblioteca da Universidade de
Amsterdam, à Biblioteca do Institut Catholique de Toulouse,
à Newberry Library de Chicago, à Biblioteca da Universida-
de da Califórnia em San Diego; à Henry Huntington Library,
: à William Andrcws Clark Library da Universidade da
t
Califórnia em Los Angeles, e à Olin Library da Washington meus antigos alunos c colegas que me ajudaram, particular-
Univcrsity em St. Louis. mente aos professores Graham Conroy, George Arbaugh,
Ao Instituto de Filosofia da Universidade de Utrecht e Richard Watson, Florence \Vcinbcrg, Philip Cummins, Harry
aos seus membros professores Cornelia De Vogel e Karl M. Bracken e Theodore Waldman que pertenciam à Univer-
Kuypers, devo minha gratidão de modo especial por sua gen- sidade Estadual de Iowa quando este livro começou a ser
tileza em possibilitar que este estudo fosse publicado na sé- escrito.
rie do Instituto. Fico extremamente feliz por manter este vín- Sou muito grato a John Lowenthal e à minha esposa,
culo permanente com a Universidade de Utrecht, onde pas- Juliet, que me deram uma imensa ajuda em questões editori-
sei um período extremamente agr~dável e produtivo de 1957 ais relacionadas ao meu manuscrito. Desejo manifestar meus
a 1958, e espero que este estudo constitua uma indicação agradecimentos a Mildred Keller e a Joan Jorres por seus ár-
parcial da gratidão que sinto em relação à Universidade de duos esforços na datilografia da versão final do manuscrito
Utrecht e a seus filósofos. original. Quero agradecer a Melanie Miller pela datilografia
Devo meu primeiro contato com o ceticismo e meu do material novo para esta edição.
interesse por seu papel na filosofia moderna a meus profes- Quero também expressar meus agradecimentos ao
sores, especialmente John H. Randall e Paul Oskar Kristeller Modern Schoolman, ao journal of Philosophy, e ao Archiv
da Universidade de Columbia e Charles W. Hendel da Uni- für Reformationsgeschichte por permitirem o uso de parte
versidade de Yale. Graças ao encorajamento do professor Paul do material previamente publicado nestes periódicos.
Weiss de Yale pude elaborar minha visão sobre o ceticismo Finalmente, o mais importante, quero agradecer a mi-
em uma série de artigos para a Review of Metaphysics. Sou nha família, minha esposa Juliet, e meus filhos Jeremy,
muito grato a um grande número de especialistas que se dis- Margarete Susan, por sua força e paciência durante todas as
puseram pacientemente a discutir comigo questões sobre a dificuldades, atribulações c viagens do autor deste manuscri-
história do ceticismo e que me aconselharam e encorajaram to. Sem seu amor, carinho e disposição para o sacrifício, este
em relação a este trabalho. Dentre outros, gostaria de agra- trabalho jamais teria sido concluído. Espero apenas que este
decer ao finado abade Robert Lenoble, ao finado padre Julian- estudo esteja à altura das dificuldades que lhes causei.
Eymard d' Angers, ao padre Paul Henry, ao finado professor
Alexandre Koyré, ao professor Herbert Marcuse, ao finado Desejo ainda agradecer aos professores Donald Framc
professor Bernard Rochot, aos professores Leonora Cohen da Universidade de Columbia e John Watkins da Universida-
Rosenfield, André-Louis Leroy, René Pintard, Jean Orcibal, de de Londres, e a vários outros revisores que chamaram
Henri Gouhier e Jean Grenier, ao finado Imre Lakatos, ao minha atenção para vários pontos que necessitavam de revi-
finado Paul Schrecker, ao finado Giorgio T onelli, a Paul Oskar sao.
Kristeller {que me deu muitas sugestões valiosas sobre o
manuscrito deste estudo), a Paul Dibon, J. Tans, à finada C. 25 de junho de 1963, LaJolla, Califórnia.
Louise Thijssen-Schoute e a Elisabcth Labrousse. Muitas des- Fevereiro de 1979, St. Louis, Missouri.
tas pessoas, sem dúvida, discordaram de algumas das con-
clusões a que cheguei, mas minhas discussões com elas fo-
ram valiosíssimas para o esclarecimento e o desenvolvimen-
to de minhas- idéias. Quero agradecer também a alguns de
Prefácio
O ceticismo como concepção filosófica e não como uma
série de dúvidas relativas a crenças religiosas tradicionais,
teve sua origem no pensamento grego antigo. No período do
helenismo as várias observações e atitudes de filósofos gre-
gos de períodos anteriores foram desenvolvidas, formando
um conjunto de argumentos, estabelecendo quet(I) nenhu-
ma forma de conhecimento é possível; ou que (2) não há
evidência adequada ou suficiente para determinar se alguma
forma de conhecimento é ou não possível e que, portanto,
devemos suspender o juízo acerca de todas as questões rela-
tivas ao conhecimento. A primeira concepção denomina-se
ceticismo acadêmico, a segunda, ceticismo pirrônicfl ·
O ceticismo acadêmico, assim chamado porque foi for-
mulado na Academia de Platão no terceiro século a.C., de-
senvolveu-se com base em observações socráticas, tais como
"Só sei que nada sei". Sua formulação teórica é atribuída a
Arcesilau (c.315-241 a.C.) e a Carnéades (c.213-129 a.C.),
que elaboraram uma série de argumentos, voltados sobretu-
do contra as pretensões a conhecimento dos filósofos estói-
cos, procurando mostrar que n·ada se pode conhecer. Estes
argumentos foram transmitidos até nós especialmente pelas
obras de Cícero, Diógenes Laércio e Santo Agostinho, de um
modo segundo o qual[podemos considerar como objetivo
dos filósofos céticos acadêmicos mostrar, por meio de um
conjunto de argumentos e artifícios dialéticos, que os filóso-
fos dogmáticos (isto é, aqueles que afirmavam conhecer al-
gum tipo de verdade sobre a real natureza das coisas) não'
poderiam realmente conhecer com certeza absoluta aquilo I
que afirmavam conhecer"J:()s acadêmicos formularam uma J
série de dificuldades visando mostrar que os dados que obte-
mos através de nossos sentidos são pouco confiáveis, que
não podemos ter certeza se nosso raciocínio é seguro, e que
não possuímos nenhum critério ou padrão garantido para
determinar quais de nossos juízos são verdadeiros e quais
são falsos·.
O problema básico em questão aqui é que qualquer entanto, deslocou-se da academia para a escola dos céticos
proposição pretendendo afirmar algum tipo de conhecimen~ pirrônicos, provavelmente associada à escola metódica de me-
to sobre o mundo contém pretensões que vão além dos rela- dicina em Alexandria.
tos meramente empíricos sobre como n~s parecem ser os fa- O movimento pirrônico atribui seu próprio começo à
tos. Se nós temos algum conhecimento, isto significa, para os figura lendária de Pirro de Élis, que viveu de c. 360 a 275
céticos, que o que conhecemos é o conteúdo de uma proposi- a.C., e a seu discípulo Tímon, que viveu de c.315 a 225 a.C.
ção, afirmando uma verdade não-empírica ou transempírica, As histórias acerca de Pirro que chegaram até nós revelam
que temos certeza não poder ser falsa. Se a proposição puder que ele não era um teórico, mas ao contrário, o exemplo
ser falsa, então não deve merecer o nome de conhecimento, vivo e completo de alguém que punha tudo em dúvida, um
mas apenas de opinião, isto é, de algo que representa uma homem que não aceitava se compro.meter com nenhum juízo
mera possibilidade. Uma vez que a evidência corroborando que fosse além de como as coisas pareciam ser. Seus interes-
este tipo de proposição, segundo os céticos, deve basear-se ses parecem ter sido primordialmente éticos e morais, e nesta
seja nos dados sensoriais, seja na razão, e uma vez que ambas área ele buscava evitar a infelicidade que poderia ser conse-
estas fontes não são dignas de confiança e que não há crité- qüência das teorias sobre valores, evitando basear seus juízos
rio último ou garantia de que o conhecimento verdadeiro é nelas. Se estas teorias sobre valores fossem de algum modo
possível, ou que de fato o possuímos, portanto há sempre sujeitas a dúvidas, aceitá-las e usá-las poderia apenas levar-
uma margem de dúvida sobre se uma proposição de conteú- nos à angústia mental.
do não-empírico ou transempírico pode ser verdadeira em O pirronismo, como uma formulação teórica do ceti-
um sentido absoluto, constituindo assim conhecimento au- cismo, é atribuído a Enesidemo, que viveu de c.roo a 40 a.C.
têntico. Em conseqüência, os céticos acadêmicos mantinham Os pirrônicos consideravam que tanto os dogmáticos quan-
que não temos certeza de nada. O melhor tipo de informa- to os acadêmicos afirmavam demasiadamente, o primeiro
ção que podemos obter é apenas provável, e deve ser avalia- grupo dizendo "Há algo que podemos conhecer", e o segun-
do de acordo com a probabilidade. Neste sentido, Carnéades do mantendo que "Não se pode conhecer nada". Ao invés
desenvolveu uma espécie de teoria da verificação e um tipo disso, os pirrônicos propunham a suspensão do juízo acerca
de probabilismo que é até certo ponto semelhante à teoria do de qualquer questão em relação à qual houvesse evidências
"conhecimento" científico que encontramos contemporanea- em conflito, incluindo a questão sobre se podemos ou não
mente no pragmatismo e no positivismo. conhecer algo.
O ceticismo de Arcesilau e Carnéades dominou a filo- Construindo uma posição própria com base nos argu-
sofia da academia de Platão até o século I antes de Cristo. mentos desenvolvidos por Arcesilau e Carnéadcs, Enesidemo
No período dos estudos de Cícero, a academia passou por e seus sucessores formularam uma série de "Tropas" ou pro-
uma mudança do ceticismo para o ecletismo de Filo de Larissa cedimentos capazes de levar à suspensão do juízo em relação
e Antíoco de Ascalon. Os argumentos dos acadêmicos sobre- a várias questões. Nos únicos textos do movimento pirrônico
viveram sobretudo através da apresentação que Cícero faz que sobreviveram, os de Sexto Empírico, estes tropas apare-
deles em suas obras Acadenúca e Sobre a natureza dos deu- cem em conjuntos de dez, oito, cinco e dois, cada conjunto
ses, e através de sua refutação no Contra os acadêmicos de oferecendo razões que levariam à suSpensão do juízo no caso
Santo Agostinho, bem como no sumário que encontramos de pretensões a conhecimento que vão além das aparências.
em Diógenes Laércio. O centro de atividades dos céticos, no Os céticos pirrônicos procuravam evitar assumir qualquer
compromisso acerca de qualquer questão, mesmo em rela- racionalistas judeus, muçulmanos e cristãos. Este movimen-
ção à validade de seus próprios argumentos. O ceticism~ Para to teológico, que culminou no Ocidente com a obra de
cl~s :ra ~ma habilidade, ou atitude mental, que permitia opor Nicolau de Cusa no século XV, empregou diversos argumen-
evtdenctas a favor e contra qualquer questão relativa ao não- tos céticos visando minar a confiança na abordagem racio-
evidente, de modo a levar à suspensão do juízo acerca desta nal do conhecimento religioso e de sua verdade.
questão .. Este estado mental levaria então à ataraxia, a quie- O período de que vou tratar, ISOO-I675, certamente
tude ou tmperturbabilidade, quando o cético então não mais não é o único em que encontramos o impacto cético no pen-
se preocuparia com questões que transcendem as aparências. samento moderno. Tanto antes quanto depois deste período
O ceticismo seria a cura para a doença do dogmatismo ou podemos encontrar importantes mfluências dos pensadores
precipitação. Mas, ao contrário. do ceticismo acadCmico que céticos antigos. A posição que quero defender, no entanto, é
chegava a conclusões negativas a partir de suas dúvidas,.o a de que o ceticismo tem um papel especial e diferente no
c~ticismo pirrônico não fazia nenhuma afirmação deste tipo, período que vai da Reforma até a formulação da filosofia
St~plesmente mantendo que o ceticismo é um purgante que cartesiana; um papel especial e diferente devido ao fato de
ehmina tudo, inclusive a si mesmo. O pirrônico portanto que a crise intelectual provocada pela Reforma coincidiu his-
. '
vtve de modo não~dogmático, seguindo suas inclinações na~
' toricamente com a redescoberta e a retomada do interesse
turais, as aparências que percebe, e as leis e costumes da so~ pelos argumentos dos antigos céticps gregos. No século XVI,
ciedade a que pertence, sem jamais se comprometer com com a descoberta de manuscritos dos escritos de Sexto
qualquer juízo acerca disto. Empírico, há uma retomada do interesse pelo ceticismo anti-
O movimento pirrônico floresceu até cerca de 200 d.C., go, e pela aplicação desta visão à problemática da época.
a. data aproximada da vida de Sexto Empírico, tendo flores- A escolha de Erasmo como ponto de partida deste es-
ctdo sobretudo na comunidade médica de Alexandria como tudo não foi feita por haver evidência de ter sido ele o pri-
um antídoto contra as teorias dogmáticas, positivas e negati- meiro a reintroduzir o material do ceticismo grego, mas sim
vas, das outras escolas de medicina. Esta posição chegou até porque um problema levantado em sua controvérsia com
nós principalmente através das obras de Sexto Empírico, suas Lutero serve como exemplo de uma questão crucial à qual
Hipotiposes (ou Esboços do pirronismo) e o mais extenso argumentos e teorias dos antigos céticos foram aplicados neste
Adversus mathematicos, no qual todo o tipo de áreas do sa- período.
ber, desde a lógica e a matemática até a astrologia e a gramá- A ênfase neste estudo na retomada do interesse e aten-
tica, é submetido ao devastador ataque cético. ção dedicados aos textos de Sexto Empírico não pretende
Essas duas posições céticas aparentemente tiveram mui- minimizar ou ignorar o papel colateral de outros autores
to pouca influência na filosofia no período posterior ao antigos como Diógenes Laércio e Cícero, que fizeram com
helenismo. A visão pirrônica parec·e ter sido praticamente que os pensadores dos séculos XVI e XVII voltassem sua
desconhecida no Ocidente até a sua redescoberta no século atenção para o ceticismo clássico. Entretanto, as obras de
XVI, c a visão acadêmica foi conhecida sobretudo através Sexto parecem ter tido um papel especial e predominante
do tratamento que lhe deu Santo Agostinho, c foi considera- para muitos filósofos, teólogos e cientistas considerados aqui;
da sempre em termos deste tratamento. Anteriormente ao e Sexto parece ter sido a fonte direta ou indireta de muitos
período que iremos examinar, há algumas indicações de uma dos argumentos, conceitos e teorias destes pensadores. É ape-
temática cética, principalmente entre os teólogos anti- nas nas obras de Sexto que encontramos uma apresentação

I
completa da posição dos céticos pirrônicos, com todas as deixou de ser antiescolástico e antiplatônico, par~ tornar-se
suas armas dialéticas empregadas contra diversas teorias fi- anticartesiano. Spinoza ofereceu o que se tornana uma ~as
losóficas. Nem a apresentação do ceticismo acadêmico em respostas-padrão ao ceticismo modero~. ~le levou tambem
Cícero e em Santo Agostinho, nem o sumário de ambas as os argumentos cartesianos para o domrmo ~o pensam~nto
formas de ceticismo, acadêmico e pirrônico, em Diógenes religioso com resultados dev~stadores: J?e Spmoza em dtan-
Laércio, eram suficientemente ricos para satisfazer àqueles te uma das funções principats do cetlctsmo passou a ser a
que se preocuparam com a crise cética do Renascimento e da
oposição à religião tradicion..al: . . .
Reforma. Portanto, pensadores como Montaigne, Mersenne Quando escrevi o prefacto ongmal a este estudo qum-
e Gassendi voltaram-se para Sexto em busca de material a
ser usado no tratamento de questões de sua época. E, por- ze anos atrás , previ a-realização de uma série . . de estudos
. so-
bre a história do curso subseqüente do cettctsm~ eptstemo-
tanto, esta crise é mais propriamente caracterizada como uma lógico, cobrindo os principais pensadores q~e uvcram um
crise pyrrhonienne do que como uma crise academicienne. papel importante neste desenvolvimento de Spm~za a Hu~e,
Por volta do final do século XVII, o grande cético Pierre Bayle Kant e Kierkegaard. Grande parte deste matenal tem stdo
pôde olhar retrospectivamente e ver a reintrodução dos ar- examinado em estudos realizados por mim, por alunos meus
gumentos de Sexto como o início da filosofia moderna. A e por outros pesquisadores. Portanto, nã~ te.n~o certeza da
maioria dos autores do período que iremos considerar usou necessidade destes outros volumes. Meu propn? ~nteresse .des-
o termo "cético" como equivalente a "pirrônico", freqüen- locou-se para o estudo do ceticismo não-rehgtoso. Mmha
temente seguindo a visão de Sexto segundo a qual os céticos intenção é produzir após este um volume de est~dos ~obre
acadêmicos não foram realmente céticos, mas na verdade Isaac La Peyrere e sua influência, e outro sobre mtlenansmo,
dogmáticos negativos. (Em relação a isto vale a pena notar
messianismo e ceticismo.
que o cético do final do século XVII Simon Foucher assumiu Neste estudo dois conceitos-chave serão "ceticismo" e
a missão de reviver o ceticismo acadêmico, tentando defendê- "fideísmo", e gostaria de apresentar algumas indicações ~re­
lo de tais acusações.)
liminares sobre como estes conceitos devem ser entendrdos
O período da história do ceticismo considerado neste no contexto deste estudo. Uma vez que o termo "ceticismo"
volume vai até o ceticismo não-religioso de Spinoza com sua tem sido associado nos dois últimos séculos com a descre~­
ardente oposição ao ceticismo epistemológico. Minha razão ça, sobretudo a descrença em relação às doutrinas centrars
para limitar este estudo desta forma tem por base minha cren-
da tradição judaico-cristã, pode nos parecer estranho lermos
ça de que o ceticismo teve principalmente um papel até este
que os céticos dos séculos XVI e XVII afir~~~am ~u~se que
período e outro depois disto. O superceticismo de Descartes,
unanimemente crerem sinceramente na reltgtao cnsta. Se de
envolvido em sua hipótese do demônio, inaugura uma nova
fato 0 faziam ou não é algo que consideraremos depois. Po-
fase na história do ceticismo que será desenvolvida por Pascal,
rém, a aceitação de algumas crenças por si só não e~trav~ ~m
Bayle, Huet, e posteriormente por Humc e Kierkegaard. Além contradição com o ceticismo que alegavam assumtr, c;t~cts­
disso, a refutação do ceticismo por Descartes fez com que os
mo significando aí uma visão filosófica que lcva?t~ d~vtdas
céticos voltassem seu ataque contra o sistema cartesiano em
acerca da adequação ou da confiabilidade da evt~e~cta of:-
vez de contra seus adversários tradicionais. Portanto, os ar-
recida para justificar-se uma determinada propostçao. O ce-
gumentos céticos tiveram que ser alterados para fazer frente tico, seja na tradição pirrônica, seja na acadêmica, ~es~en~ol­
ao novo oponente, e o ceticismo no final do século XVII
via argumentos para mostrar ou sugerir que as evtdenctas,

I
razões, ou provas utilizadas como fundamentos de nossos ando toda a certeza em uma adesão completa e sem questio-
vários tipos de crenças não são inteiramente satisfatórias. A namento a algum tipo de verdade revelada ou aceita; até 2) a
partir disso os céticos recomendavam a suspensão do juízo visão que considera a fé como anterior à razão. Esta última
acerca da questão sobre a verdade destas crenças. Alguém visão nega à razão qualquer forma de certeza completa ou
poderia, entretanto, mesmo assim, manter estas crenças, uma absoluta previamente à aceitação de algum tipo de proposi-
vez que não devemos confundir todo um conjunto de fatores ção ou proposições pela fé (isto é, admitindo que todas as
persuasivos com evidências adequadas em relação à verdade proposições racionais são "em alguma medida duvidosas até
da crença. que se aceite algo pela fé), muito embora a razão possa ter
Por isso, "cético" e "crente" não são classificações que um papel relativo ou provável na busca da verdade ou em
se opõem. O cético levanta dúvidas acerca dos méritos raci- sua explicação. Nestas versões possíveis do ceticismo há, se-
onais e das evidências das justificações que se apresentam gundo me parece, um núcleo comum, a saber, que o conheci-
para uma crença, duvida que razões necessárias e suficientes mento, considerado como informação sobre o mundo que
tenham sido ou possam ser encontradas para mostrar que. não tem a possibilidade de ser falsa, é inatingível sem que se
qualquer crença em particular deva ser verdadeira, e não possa aceite algo pela fé, sendo que independentemente da fé, dúvi-
ser falsa. Mas o cético pode, mesmo assim, tanto quanto das céticas podem ser levantadas acerca de qualquer preten-
qualquer pessoa, aceitar crenças de vários tipos. são a conhecimento. Alguns pensadores, como, por exem-
Aqueles que classifico como fideístas são os céticos em plo, Bayle e Kierkegaard, enfatizaram o elemento da fé, in-
relação à possibilidade de obtermos conhecimento por mei- sistindo que não pode haver nenhuma relação entre o que
os racionais, sem possuirmos alguma forma de verdade bás'i- aceitamos pela fé e qualquer evidência ou razão que pode ser
ca conhecida pela fé {isto é, verdades que não se baseiam em dada para os artigos de fé. Pierre Jurieu, originariamente
nenhum tipo de evidência racional). Assim, por exemplo, o colega de Bayle e posteriormente seu inimigo, resumiu esta
fideísta pode negar ou duvidar que razões necessárias e sufi- posição ao afirmar, "Je le crois parce que je veux le croire"'.
cientes possam ser oferecidas para estabelecer-se a verdade Não se exige, nem se busca nenhuma razão adicional, e o
da proposição "Deus existe", e entretanto o fideísta poderá que se aceita pela fé pode divergir do que é razoável ou mes-
manter que podemos saber ser esta proposição verdadeira mo demonstrável. Por outro lado, pensadores como Santo
apenas na medida em que possuímos algum tipo de informa- Agostinho e os agostinianos insistiram que se podem dar ra-
ção pela fé, ou se temos certas crenças básicas. Muitos dos zões para a fé, após a sua aceitação, sendo que razões que
pensadores que eu classificaria como fideístas mantiveram podem induzir a crenças podem ser dadas anteriormente à
seja que há certos fatores persuasivos que nos induzem a cer- aceitação da fé, mas não demonstram a verdade daquilo em
tas crenças, mas não podem provar ou estabelecer a verdade que se crê. Classifico ambas estas posições, a agostiniana e a
daquilo em que se crê; seja que após termos encontrado ou kierkegaardiana, como fideístas, no sentido de que ambas
aceitado algo pela fé, podemos oferecer razões que explicam reconhecem que nenhuma verdade indubitável pode ser en-
ou clarificam aquilo em que acreditamos sem que possamos contrada ou estabelecida sem algum elemento de fé, seja re-
provar ou estabelecer a verdade destas crenças. ligioso, metafísico, ou de outro tipo.
O fideísmo engloba um conjunto de visões possíveis a Meu emprego desta noção corresponde, segundo pen-
este respeito, desde:· r) a fé cega, que nega à razão qualquer
capacidade de atingir a verdade, ou torná-la plausível, base- 'Em francês no original, "Eu creio nisto porque quero crer". (N. do T.).

ij
'•
so, ao de muitos escritores protestantes que classificam San-
to Agostinho, Lutero, Calvino, Pascal e Kierkcgaard como
fidcístas. Alguns autores católicos, como meu bom amigo, o
finado padre Julien-Eymard d' Angers, consideram que o ter-
mo "fideísta" deve restringir-se àqueles que negam à razão
qualquer papel ou função na busca da verdade, seja antes ou
depois da aceitação da fé\ Neste sentido, Santo Agostinho, e
talvez Pascal (c alguns especialistas incluiriam ainda talvez
Lutero, Calvino e mesmo Kierkegaard), não seriam mais clas-
sificados como fideístas.
A decisão sobre como definir a palavra "fideísta" é
parcialmente terminológica, e parcialmente doutrinária. Esta
palavra pode obviamente ser definida de diferentes manei-
ras, correspondendo a vários usos. Mas também está envol-
vida na decisão sobre o significado deste termo uma distin-
ção básica entre o pensamento da Reforma protestante e o
do catolicismo romano, uma vez que o catolicismo romano
condenou o fideísmo como heresia, considerando-o como
uma falta básica do protestantismo, enquanto que os protes-
tantes não-liberais mantiveram que o fideísmo é um elemen-
to fundamental do cristianismo, um elemento que está pre-
sente nos ensinamentos de São Paulo c de Santo Agostinho.
Embora meu emprego deste termo corresponda mais ao dos
autores protestantes do que ao dos católicos, não quero com
isto prejulgar as questões em disputa, nem tomar partido de
um lado contra o outro.
Ao adotar o sentido de "fideísmo" que escolhi, segui
apenas o uso comum deste termo na literatura de.língua in-
glesa. Além disso, creio que este uso deixa mais claro o ele-
mento cético na visão fideísta, concebida em um sentido
amplo. Entretanto, é óbvio que se as classificações de "céti-
co" e "fideista" fossem definidas de outro modo, então vári-
as figuras que classifiquei de um determinado modo poderi-
am ser classificadas de modo diferente.

' O padre Julicn-Eymard d' Angers analisou algumas de nossas divergências a c; te


respeito cn1 sua resenha do presente estudo em XVIIe Siú/e, n" 58/9( r96~),
págs.I05-109.

'''
A antítese de ceticismo neste estudo é o "dogmatismo",
a visão segundo a qual podem-se apresentar evidências esta-
I. A Crise Intelectual da Reforma
belecendo que ao menos uma proposição não-empírica não
pode ser falsa. Assim como os céticos a serem considerados
Uma das principais vias através das quais as posições
aqui, creio que se podem levantar dúvidas sobre qualquer
céticas penetraram no pensamento do fi~al do Renascimento
pretensão dogmática deste tipo, sendo que estas pretensões
foi uma disputa central na Reforma, a dtsputa acerca do que
dependem em última análise de algum elemento de fé, mais
seria 0 padrão correto do conhecimento religioso, o que era
do que de evidências. Neste caso, toda posição dogmática
chamado de "a regra da fé". Este argumento levantava um
torna-se em alguma medida fideísta. Entretanto, se isto pu-
dos problemas clássicos dos pirrônicos gregos, o problema
der ser demonstrado, então o cético poderá ter certeza de
algo, tornando-se um dogmático. do critério de verdade. Com a redescoberta no seculo XVI
dos escritos do pirrônico grego Sexto Empírico, os argumen-
As simpatias deste autor estão do lado dos céticos que
tos e pontos de vista dos cétic_o~ gregos tornar~m-se part7 do
tem estudado. Mas ao mostrar que alguns elementos desta
núcleo filosófico das lutas rehgwsas que ocornam nesta ep~­
visão levam ao ceticismo mantido por Hume, não é minha
ca. O problema de se encontrar u~ ~ritério_de ver~ade, pn-
intenção defender esta conseqüência específica do desenvol-
meiro levantado em disputas teologtcas, fot postenormente
vimento do nouveau Pyrrhonisme. De fato, tenho mais sim-
levantado também em relação ao c.o.nhecimento natural, le-
patia por aqueles que usaram as posições céticas e fideístas
vando à crise pyrrhonienne do início do sé_c~lo XVII. .
dos nouveaux Pyrrhoniens para fins religiosos do que para
Podemos considerar brevemente a vtsao de Martm~o
fins seculares, e tentei mostrar isto em outros estudos.
Lutero c sua querela com Erasmo como indicando a mane1:a
Devido às dificuldades em obter algumas das fontes
pela qual a Reforma fomentou _este novo pr~blema. Nao
estudadas neste país, e devido ao tempo limitado a meu dis-
estamos sugerindo que esta questao tenha surgtd? apen~s. no
por para pesquisar nas grandes bibliotecas da Europa, tive
momento de rompimento de Lutero com a lgreJ_a Cato~tc~.
que usar mais obras traduzidas (seja em sua própria época,
Ao contrário este momento é um ponto de parttda arbttra-
seja mais recentemente) do que gostaria, e em alguns casos
rio para se tr~çar a influência cética na formação do pen~a­
tive que depender de citações em estudos modernos que não
mento moderno, um momento que indica não só o con~tto
tive a oportunidade de verificar. Entretanto, espero que o
acerca do critério de conhecimento religioso entr~ ~IgreJa e
leitor considere este estudo como uma tentativa inicial de
os líderes da Reforma, mas também o tipo de dtftculdades
considerar o papel do ceticismo no pensamento moderno, e
filosóficas geradas por este conflito.
que outros possam ir adiante e compensar quaisquer defei-
Foi apenas gradativamente que Lutero pa~s.ou de
tos e deficiências que possam ser encontrados aqui.
reformador dentro da estrutura ideológica do catohctsmo a
I
I
líder da Reforma, negando a autorida_de da ~gr~ja Roman~.
Em seus primeiros protestos contra as mdulgenctas, a auton-
dade papal, c outros princípios católicos, Lu_ter? argu~nen­
tou em termos dos critérios adotados pela propna IgreJa se-
gundo os quais as proposições religiosas são julga~as por
sua conformidade com a tradição da IgreJa, · os conct"I tos, e os
decretos papais. Em suas Noventa e cinco teses e em sua


'5

"'
I;
carta_ao Papa Leão X, tentou mostrar que julgando-se pelos [... ]vi que as opiniões tomistas, mesmo que aprovadas
padroes adotados pela própria Igreja para se decidir sobre pelo Papa c pelos concílios, continuam sendo apenas
esta~ questões ele estava certo c determinadas práticas da opiniões c não se tornam artigos de fé, mesmo que um
IgreJa e o modo como eram justificadas estavam errados. anjo dos céus decidisse ao contrário. Porque aquilo
. Entretanto, na Disputa de Leipzig de 1519, e em seus que é afirmado sem a autoridade das Escrituras ou da
esc~rt~s de 1520, o Manifesto à nobreza a/emii e A igreja no revelação comprovada pode ser mantido como uma
cattvezro da Babilônia, Lutero deu o passo crítico que foi opinião, mas não há obrigação de se acreditar nisto 6 •
negar a regra de fé da Igreja, apresentando um critério de
c?nhecimento r:ligioso radicalmente diferente. Foi neste pe- E, finalmente, Lutero manteve seu novo critério de forma
nado que ele detxou de ser apenas mais um reformador ata- ainda mais dramática quando se recusou a retratar-se diante
cando os abusos e a corrupção de uma burocracia decaden- da Dieta de Worms em 1521:
te, para tornar-se o líder de uma revolta intelectual que viria Vossa Majestade Imperial c Vossas Excelências exi-
a abalar os próprios fundamentos da civilização ocidental. gem uma resposta simples. Aqui está ela simples c sem
Seu opositor em Leipzig, Johann Eck, narra com horror adornos. A menos que cu seja convencido de estar er-
como Lutero chegou mesmo a negar completamente a autori- rado pelo testemunho das Escrituras ou (pois não con-
dade do Papa e dos concílios, mantendo que doutrinas conde- fio na autoridade sem sustentação do Papa c dos con-
n_a?as pelos concílios poderiam ser verdadeiras, e que os con- cílios, uma vez que é óbvio que em muitas ocasiões
crlws podem errar já que são compostos apenas por homens\ eles erraram c se contradisseram) por um raciocínio
No Manifesto à nobreza alemã, Lutero foi ainda mais longe, manifesto eu seja condenado pelas Escrituras a que
negando que o Papa pudesse ser a única autoridade em assun- faço meu apelo, c minha consciência se torne cativa
tos religiosos. Manteve, ao contrário, que toda a cristandade da palavra de Deus, cu não posso retratar-me e não
te~ ~pen~s um Evangelho e um Sacramento, e que "todos os me retratarei acerca de nada, já que agir contra a pró-
cnstaos tem a capacidade de discernir e de julgar o que é cer- pria consciência não é seguro para nós, nem depende
to e o qu~ é ~rrado em questões de fé"4, e as Escrituras supe- de nós. Isto é o que sustento. Não posso fazê-lo de
ram o propno Papa na determinação dos pontos de vista e dos outra forma. Que Deus me ajude. Amém 7 •
at~s apropriados num sentido religiosos. Em A igreja no cati-
v:_zro da ~a_b~lônia Lutero deixou ainda mais claro sua nega- Nesta declaração de liberdade cristã, Lutero estabeleceu seu
çao do cntcno de conhecimento religioso da Igreja: novo critério de conhecimento religioso, ou seja, que;_aquilo
que a consciência é compelida a aceitar ao ler as Escrituras é
verdade-.'·.Para os católicos como Eck isto deve ter soado sim-
plesmente incrível. Durante séculos, afirmar que uma propo-
sição consistia em uma verdade da religião, significava que era
autorizada pela tradição da Igreja, pelo Papa e pelos concíli-
'RclatodcEkdD.
c . a Isputa dL. ·dc I 519 tal como se encontra em Dowments
c eipzig
0 ( tbe Clmstum Clmrcl!, ed. por Hcnry Bettcnson (N. Iorque c Londres 1947)
pags. 271-272. ' ' • Lutero, Thc lla!Jylouish Captn;ity of the Cfmrch, citado em Docmmmts of the
' Mart!nho Lutero, Tbe AptJeaf to tbe Gamm1 Nobt!ity, citado em Dowmems o( Chrisllan C!mrch, pág. 280.
1 Lutero diante da Dieta de \Vorms, citado em Documems o( tbe Christiau Clmrch,
the Umst1m1 Clmrch, pág. 277.
< lbid. pág. 277- pág.28j.
os. Manter que estes critérios poderiam e;;tar errados equivalia problema pode levar a uma crise pyrrhonienne insolúvel, na
a negar as regras da lógica. A negação dos critérios aceitos medida em que os vários argumentos de Sexto Empírico são
eli~i~aria ~ ~nica base para se testar a verdade de uma pro- explorados e desenvolvidos. A caixa de Pandora aberta por
posiçao rehgwsa. Levantar sequer a possibilidade de que os Lutero em Leipzig viria a ter conseqüências extremamente
critérios fossem falsos significava substituí-los por outros amplas não só na teologia mas em todos os domínios intelec-
critéri~s q~~ serviriar.n para julgar os critérios aceitos, e por- tuais do ser humano.
tanto stgmflcava efetivamente negar toda a estrutura que vi- Na defesa de um critério fundamental, o que pode ser
nha determinando a ortodoxia durante séculos. oferecido como evidência? O valor da evidência depende do
Uma vez que um critério fundamental foi questionado, critério e não vice-versa. Alguns teólogos, como, por exem-
como se pode decidir quais as possibilidades alternativas a plo, Santo Inácio de Loyola, tentaram fechar a caixa, insis-
serem aceitas? Com base no que podemos defender ou refu- tindo que "podemos ser todos da mesma opinião e estar em
ta~ ~s.pretensões .de Lutero? Assumir qualquer posição exige conformidade com a Igreja se, quando esta define como pre-
cntenos para se JUlgar o ponto em questão. Portanto, a ne- to algo que aos nossos olhos parece branco, concordarmos
gação por Lutero dos critérios da Igreja, e sua afirmação de que é preto"9, Isto, entretanto, não justifica o critério, ape-
novos padrões para a determinação das verdades da religião nas o torna explícito.
constituíram claramente um caso exemplar do problema d~ O problema permaneceu. Para ser capaz de reconhecer
critério, tal como formulado nas Hipotiposes pirrônicas de a verdadeira fé, era preciso um critério. Mas como se pode-
Sexto Empírico, II, cap. IV: ria reconhecer o verdadeiro critério? Tanto os inovadores
[...]para decidir a disputa que surgiu sobre o critério, quanto os defensores da tradição viram-se diante do mesmo
devemos ter um critério aceito por meio do qual se problema. Geralmente tentaram resolvê-lo atacando o crité-
possa julgar a disputa; e para ter um critério aceito rio do adversário. Lutero atacou a autoridade da Igreja,
devemos decidir primeiro a disputa sobre o critério. E mostrando suas inconsistências. Os católicos procuraram
quando o argumento reduz-se desta forma a um raci- mostrar que a consciência de cada .um não era confiável, bem
ocínio circular, encontrar um critério torna-se impra- como a dificuldade de se discernir o verdadeiro sentido das
ticável, uma vez que não permitimos que eles (os filó- Escrituras sem a orientação da Igreja. Ambos os lados adver-
sofos dogmáticos] adotem um critério por suposição, tiram sobre a catástrofe - intelectual, moral e religiosa -
enquanto que se se oferecem para julgar o critério por que ocorreria em conseqüência de se adotar o critério do
um outro critério nós os forçamos a um regresso ad outro.
iufinitumH. Um dos argumentos apresentados pelos católicos ao
longo de toda a Reforma foi que o critério de Lutero levaria
O problema de como justificar um padrão de conhecimento à anarquia religiosa. Qualquer um poderia recorrer à sua
verdadeiro não surge enquanto não se questionam os critéri- própria consciência c manter que o que lhe parecia a verdade
os. Porém, numa época de revolução intelectual, tal como a era verdade. Não restaria nenhum padrão eficaz de verdade.
que estamos considerando aqui, o simples levantamento do Nos primeiros anos da Reforma o rápido desenvolvimento

' Sexto ~mpírico, Outlines of Pyrrhouism, trad. por R. G. Bury (Londres e


I,, Cambndge, Mas., r939), Loeb Classical Library, livro II, cap. IV, sec. 20 págs. • Santo Inácio de toyola, Rufes for Thinkiug with lhe C/mrch, citado em Dommeuts
163-165, ' o( the Chnstiall Clmrch, regra l3, págs. 364-365.
de todo o tipo de novas crenças por grupos, tais como os os filósofos"''. Este desprezo pelo trabalho intelectual vinha
profetas de Zwickau, os anabatistas e os antitrinitários, pa- acompanhado de uma defesa de uma piedade cristã simples
receu confirmar esta previsão. Os reformistas preocuparam-' e não-teológica.)
se continuamente em justificar seus próprios tipos subjetivos A obra De Libero Arbitrio começa com o anúncio de
c individuais de critério ao mesmo tempo que usavam este que 0 problema do livre-arbítrio é um daqueles em que mais
critério como uma medida objetiva para condenar como he- nos envolvemos em labirintos. Controvérsias teológicas não
réticos os recursos à consciência feitos por seus opositores. eram do interesse de Erasmo, e ele afirma que preferiria fa-
Na luta para estabelecer qual o verdadeiro critério da zer como os céticos e suspender o juízo, especialmente em
fé, uma atitude cética surgiu dentre alguns pensadores, basi- relação ao que fosse permitido pela autoridade inviolável das
camente em defesa do catolicismo. Enquanto que muitos te- Escrituras e pelos decretos da Igreja. Ele manteve estar p:r-
ólogos católicos tentaram apresentar evidência histórica para feitamente disposto a submeter-se aos decretos da IgreJa,
justificar a autoridade da Igreja (sem contudo conseguir mesmo que não os entendesse, nem a suas. razõesn. As Escr~­
mostrar que a evidência histórica deveria ser o critério) a turas não são tão claras quanto Lutero quts-nos fazer acrcdt-
sugestão de uma defesa cética da fé, defesa esta que iria do- tar, c há passagens que são obscuras demais para que o espí-
minar a Contra-Reforma na França, foi apresentada por rito hum.ino possa penetrá-las. Os teólogos têm discutido
Erasmo de Rottcrdam. Erasmo, que tinha sido um dos interminavelmente estas questões. Lutero mantém ter encon-
instigadores da necessidade de reformas, foi no entanto du- trado as respostas corretas e ter entendido bem as Escrituras.
rante o período de 1520 a 1524 pressionado cada vez mais a Mas como podemos decidir se de fato ele conseguiu isto?
atacar Lutero abertamente' (Erasmo tinha vários motivos c
0

Outras interpretações que parecem melhores que as de Lutero
meios para evitar esta questão, mas consideraremos aqui podem ser dadas. Tendo em vista a dificuldade em se estabe-
apenas o resultado final deste processo.) Em 1524 Erasmo lecer 0 que as Escrituras querem de fato dizer sob~e o pr~b_le­
finalmente publicou uma obra, De Libero Arbitrio, atacan- ma do livre-arbítrio, por que não aceitar a soluçao tradtcto-
do a posição de Lutero sobre o livre-arbítrio. O anti- nal apresentada pela Igreja? Por que in.iciar uma controvér-
intelectualismo generalizado de Erasmo e sua falta de simpa- sia de tais dimensões sobre algo que não podemos mesmo
tia por discussões de teologia racional o levaram a sugerir saber com certeza?'3 Para Erasmo o importante é uma forma
um tipo de base cética para permanecer na Igreja Católica. de piedade cristã simples, básica, o espírito do cristianismo.
(Sua reação contra os filósofos da Universidade de Paris du- O restante, a superestrutura da crença essencial é demasiado
rante seus tempos de estudante, e sua condenação no Elogio complexa para o homem julgá-la. Portanto, é mais fácil per-
à loucura das buscas intelectuais destes filósofos como um manecer em uma atitude cética, c aceitar a antiqüíssima sa-
fim em si mesmo, culminou na afirmação de que "os assun- bedoria da Igreja nestes assuntos, do que tentar entender e
tos humanos são tão obscuros c diversos que nada se pode julgar por si próprio.
saber com clareza. Esta foi a sã conclusão -dos acadêmicos Trata-se muito mais de uma atitude cética do que de
[os céticos acadêmicos] que foram os menos ariscos dentre um argumento, desenvolvendo-se a partir de uma aversão à

" Erasmo, The I'raise o( Fally [Elogio à Loucura], trad. de Lconard Dcan (Chicago,
1946), pág. S4.
'"Introdução p~r Craig R. Thomp>on a Dc~idério Erasmo, lnquisitio De Fidc, Yalc
StudiCs 111 Ri!ilgwn, XV (N.Havcn, 1950), p<Ígs. 1-49. "Erasmo, De Libero Arbitrio (Basiléia, I524), págs. a2-a3.
" Ibid., pág. as c seguintes.

30 3'
"comédia da grande loucura". Não se baseava, diferente- ras. É claro que há passagens que são difíceis de compreen-
mente do que ocorreu com Montaigne, numa evidência de der, e há coisas a respeito de Deus que não sabemos e talvez
que a razão humana não seria capaz de alcançar a certeza em não possamos saber. Mas isto não quer dizer que não possa-
nenhuma área. Ao contrário, Erasmo parecia chocado pela mos encontrar a verdade nas Escrituras. As verdades cen-
aparentemente futilidade dos intelectuais em sua busca da trais da religião podem ser encontradas em termos claros e
certeza. Todo o mecanismo dessas mentes escolásticas tinha evidentes, e estas verdades esclarecem as outras mais obscu-
perdido de vista o ponto essencial: a simples atitude cristã. O ras. Contudo, se muitos pontos permanecem obscuros para
cristão tolo estaria em melhor situação do que o teólogo pre- algumas pessoas, não é por um defeito das Escrituras, mas
tensioso de Paris enredado em um labirinto criado por ele sim devido à cegueira daqueles que não desejam conhecer as
mesmo. E, assim, se alguém permanecesse um cristão tolo, verdades reveladas. O sol não se escurece apenas porque eu
viveria uma autêntica vida cristã, e poderia evitar todo o posso fechar meus olhos c recusar-me a vê-lo. ~s d_?utrinas
mundo da teologia aceitando, sem tentar compreendê-las, as acerca das quais há conflito entre Lutero e a IgreJa sao claras
posições religiosas promulgadas pela Igreja. se quisermos realmente olhá-las e vê-las como de fato são. E
Esta tentativa, logo no início da Reforma, de uma "jus- ao menos que façamos isto, estaremos abandonando a Reve-
tificação" cética da regra de fé católica suscitou uma respos- lação'8. . .
ta furiosa de Lutero, a obra De Servo Arbitrio, de 1525. A Lutero estava seguro de que havta um conJunto de ver-
obra de Erasmo, declarou Lutero, era chocante e vergonho- dades de caráter religioso a serem conhecidas, de que estas ver-
sa1 agravada pelo fato de ser tão bem escrita e tão eloqüente. dades eram de importância crucial para o homem, e que sua
"E como se alguém carregasse detritos e excrementos em vasos regra da fé - aquilo que nossa consciência e;-tava obrig~da _a
de ouro e prata." 14 O erro central desta obra, segundo Lutero, crer a partir da leitura das Escrituras - sena capaz de mdt-
era Erasmo não perceber que um cristão não podia ser um car-nos estas verdades. Depender do caminho cético de
cético. "Um cristão deve [... ] ter certeza do que afirma, ou Erasmo era demasiado arriscado; a possibilidade de er:o era
então não é um cristão." •s muito grande. Só encontraríamos segurança no conheetmen-
O cristianismo envolve a afirmação de certas verdades to certo do que Deus nos ordena. E portanto Lutero respon-
porque nossa consciência está plenamente convencida de sua deu a Erasmo que sua perspectiva cética na verdade não levava
veracidade. O conteúdo do conhecimento religioso, de acor- à crença em Deus, mas era uma maneira de escar_n~cermo~
do com Lutero, é demasiado importante para ser aceito ape- Dele'9. Erasmo podia se quisesse aferrar-se a seu cettctsmo ate
nas em confiança. Devemos estar absolutamente certos de ser chamado por Cristo. Mas, advertia Lutero, "0 Espírito
sua verdade' 6 • Portanto, o cristianismo é a absoluta negação Santo não é cético", e não inscreveu em nossos corações opi-
do ceticismo. "Anátema contra o cristão que não tem certe- niões incertas, mas sim afirmações da maior firmezal.O. .
za daquilo em que supostamente deve crer, c que não com- Esta disputa entre Erasmo e Lutero serve bem param-
I
preende isto. Como ele pode acreditar naquilo de que duvi- dicar a estrutura básica do problema do critério. Erasmo es-
da?"'7 Para encontrar as verdades basta consultar as Escritu- tava disposto a admitir que não podia afirmar com certeza

:: Lu_cero, ~m De Seruo Arbitrio, em Werke, Band XVIII (Weimar, 1908), pág. 6or.
Ibzd,, pag. 603, "Ibid., págs. 6o6-6Io.
,,
I '' lbid., págs. 6o3·6os.
"Ibid., pág. 6o 5 .
•• Ibid., pág. 6os.
'" lbid., pág. 6o_s.
I
I

I' 32 33

II
qual a posição verdadeira, mas estava igualmente disposto, trinitário Miguel Servetus elaborar a nova te~ri~ ~a regra. de
per non sequitur, a aceitar as decisões da Igreja. Isto não fé mais detalhadamente. Inicialmente na Instttutçao C~lvmo
demonstrava que a Igreja dispunha da regra da fé, demons-
trava apenas a atitude cautelosa de Erasmo. Uma vez que ele argumen tou q ue a lg<eJ·a não pode .ser a regra das Escnturas,
, · d
uma vez que a autoridade da IgreJa depende ela p.ropna _e
se sentia incapaz de distinguir o verdadeiro do falso com cer- alguns versículos das Escrituras. ~o~:a~'to, as Escnturas sao
teza, preferia que a instituição que vinha sendo responsável a fonte básica das verdades da rehgtao . ,
por esta distinção durante séculos assumisse a responsabili- Mas qual o padrão através do qual reconhecem~s a fe
dade disto. Lutero, ao contrário, insistia na certeza. Havia e como podemos determinar com certeza o que as Escr~turas
muita coisa em jogo para que pudesse conformar-se com dizem? o primeiro passo é compreen~er que as ~s~r.tturas
menos. Nenhum ser humano poderia dar a outro uma ga- consistem na palavra de Deus. Por meto de .que cnteno ~o­
rantia adequada. O ponto de vista de cada um poderia justi- demos manter isto? Se tentarmos provar tsto pela razao,
ficar a aceitação de qualquer crença religiosa. É claro que Calvino admite que só conseguiremos formular .ar:;u~ent~s
um opositor poderia sempre questionar por que aquilo que retóricos ou circularesu. Necessitamos é de evtdenctas tao
nossa consciência estava obrigada a crer a partir da leitura completas e persuasivas que não possam dar marge~ a no-
das Escrituras deveria ser considerado verdadeiro. Suponha- vas questões e dúvidas. A evidência :apaz d~ exclutr qual-
mos que nos víssemos obrigados a crer em coisas conflitantes,
querposs1'b'l'dade
11 dedu' vida ou questao devena
. ser
, capaz de1
qual seria verdadeira? Lutero insistia apenas que a verdade validar a si mesma. Uma evidência deste ttpo nos e dada pe_ a
se impõe a nós, e que o verdadeiro conhecimento religioso iluminação através do Espírito Santo. Temos uma persuasao
não contém contradições.
interior, dada por Deus, que nos compele ~e tal for~~ que
A regra de fé da Reforma parecia ser a certeza subjeti- torna-se uma garantia completa do conhectmento rch~toso.
va, a compulsão de nossa própria consciência. Mas este tipo Esta persuasão interior não só nos assegura que as Escn~ras
de subjetivismo dá margem a muitas objeções. Afinal o mun- contêm a palavra de Deus, mas nos compele~ ler as Escr~tu­
do está cheio de pessoas convictas dos mais estranhos pontos ras atentamente para compreender o seu senttdo c acre~ttar
de vista. E o mundo da Reforma estava repleto de teólogos nelas. Há, portanto, uma dupla iluminaç~o para os elettos,
com pontos de vista conflitantes, todos garantidos pela cons- dando~lhcs primeiro a regra da fé, as Escnturas, c em. segu~­
ciência de seus defensores. A seus opositores, o novo critério do lugar a regra das Escrituras, ou seja, os meios pa~a dt~cer~tr
de conhecimento religioso parecia por sua vez estar a um sun verdade e crer em sua mensagem. Esta dupla tlummaçao
passo do puro ceticismo, tornando todas as crenças religio- da regra da fé e sua aplicação são capazes de nos dar certeza
sas apenas opiniões dos seus defensores, sem qualquer possi-
bilidade de certeza objetiva. Apesar da denúncia bombástica m~ -
Tal é portanto uma convicção que não requer razoes;
por Lutero do ceticismo de Erasmo, tornou-se um argumen- tal é um conhecimento com o qual está de acordo a
to típico da Contra-Reforma acusar os reformistas de serem melhor razão; no qual a mente verdadeiramente cn~
na verdade céticos disfarçados.
De modo a clarificar e apoiar a teoria do conhecimen-
to religioso da Reforma, Calvino, o grande líder que se se-
guiu a Lutero na revolta contra a autoridade da Igreja, ten- "Jean Calvin, Iustiwtes o( the Cl!rist/all Religion [C/nistiauae Religiauis [nstitutio,
tou em sua Instituição e no combate contra o herético 1536}, 2 vols.
"Ibid., págs. 36-37.

34 35
contra repouso mais seguro c constante do que em importância de se estar certo é tão grande que, segundo inM
qualquer razão; tal é, por último, um sentimento que sistia Teodoro Beza, o principal discípulo de Calvino, neces-
só nos pode ser dado pela revelação celestial, Falo sitamos de um sinal infalível. Este sinal é "a persuasão total,
daquilo que cada crente experimenta em seu interior que separa os filhos escolhidos de Deus dos rejeitados e é a
-embora minhas palavras fiquem aquém de uma ex~ própria riqueza dos Santos"~.~. Mas em conseqüência disso
plicação justa desta questão~-1 • temos um círculo: o critério do conhecimento religioso é a
persuasão interior, a garantia da autenticidade da persuasão
A verdade da religião só pode ser reconhecida por aqueles interior é sua origem divina, e temos a garantia dela pela
que são escolhidos por Deus. O critério segundo o qual al~ persuasão interior.
guérn foi escolhido é a persuasão interior que permite com A curiosa dificuldade de se garantir o conhecimento
que se possa examinar as Escrituras e reconhecer a sua ver~ religioso se manifesta de forma particularmente aguda na
dade. Sem a Iluminação Divina não se pode sequer dizer com controvérsia acerca de Servetus. Aqui se encontra um ho~
certeza que livro é a Sagrada Escritura e entender o seu signi- mem aparentemente convencido pela persuasão interior de
ficado. Podemos, no entanto, pela Graça Divina, aceitar a que não há base nas Escrituras para a doutrina da Santíssima
regra de fé estabelecida na Confissão de Fé das Igrejas Pro- Trindade, e convencido portanto de que esta doutrina é fal-
testantes da França de 1559, "sabemos que estes livros são sa. Mas Calvino e seus seguidores estavam por sua vez tão
canônicos, e a mais segura autoridade de nossa fé, não como convictos da verdade de suas próprias crenças religiosas que
resultado de um consenso comum e da Igreja, mas pelo teste- condenaram Servetus à morte como herege. O único defen-
munho e pela persuasão interior que através do Espírito San- sor de Servetus dentre os protestantes, o erudito Sebastião
to nos permite este discernimento"l..!, Para os eleitos, asEs~ Castellio de Basiléia, percebeu que a única forma de se argu-
crituras são a regra de fé, e também como se afirmou, as mentar contra a condenação de Servetus era atacar a preten~
Escrituras são a regra das próprias Escrituras. são à certeza dos calvinistas. Em seu De Haereticis 26 , escrito
A evidência fundamental para os primeiros calvinistas pouco após Servetus ter sido queimado, Castellio tentou des-
da verdade de sua posição era a persuasão interior. Mas como truir os fundamentos da completa segurança de Calvino acerca
podemos decidir se esta persuasão é autêntica, e não apenas da verdade de suas crenças religiosas, sem ao mesmo tempo
uma certeza subjetiva que pode facilmente ser ilusória? A destruir a possibilidade de um conhecimento religioso.
O método de Castellio era indicar que no que diz res-
peito à religião há demasiadas questões obscuras, demasia-
"lbid., pág. 37·
das passagens nas Escrituras tão opacas que ninguém pode
'' 'confcssion de foi dcs ég!ises protestantes de France - t5.;9', em Eug. et Em.
Haag, La Frauce Protestallfe, tomo X, l'aris, 1858, pág. p .. V. também a \Vest- estar certo da verdade delas. Estas questões obscuras têm
mm~ter Con(ession o( Faitb, art. I, que afinna, " ... a autoridade das Sagradas sido fonte de controvérsias durante séculos, e obviamente
Escnturas [... ]depcnd~ não_ do_ testemunho de qualquer homem ou Igreja, mas
apenas de Deus (que c a propna verdade e o seu autor[ ... ] nossa persuasão com- nenhuma posição era suficientemente clara para que houves~
plc~a c segurança sobre a verdade infalível e a autoridade divina das Escrituras se unanimidade em torno dela (caso contrário, porque a conM
dcnv~ portanto do trabalho do Espírito Santo em nosso interior, que dá tcstemu-
uho d1sso pela Palavra e com ela em nossos coraçôes[...]Nada deve ser acrescen-
tado em qualquer momento - seja por meio de novas revelações do Espírito
Santo_ou P_elas tr~diçôes dos_homcns[ ...]A Igreja finalmente recorrerá a ela[ ... ] a '·'Teodoro Bela, A Discourse of tbe True and Visible Marks o( tbe Catholique
regra mfalJVel de mtcrpretaçao das Escrituras são as próprias Escrituras", citado Clmrcbe (Londres, 1582), pág. 44 (não numerada).
em Documellfs o( the Christimz C/mnb, pág. 347· ''Sebastião Castdlio, De Haereticis, Magdeburgi, 1554·

37
trovérsia continuaria, ''pois, quem seria tão demente a pon- põe uma abordagem científica, liberal e cautelosa para os
to de morrer por ter negado o óbvio?") 27, Com base na obs- problemas intelectuais, em contraste com o dogmatismo to-
curidade das Escrituras e no constante desacordo em tor- tal de seus opositores calvinistas.
no delas, Castellio manteve que ninguém pode estar tão cer- A teoria de Castellio não é tão cética quanto a de
to da verdade em questões religiosas de modo que se justifi- Erasmo e certamente tampouco alcança o nível da dúvida
que queimar alguém por isso. total que encontramos em Montaigne. O objetivo do De arte
Esta atitude moderada e cética, bem como a defesa de dubitandi é indicar aquilo em que se pode acreditar, uma vez
opiniões divergentes, provocaram uma resposta irada e vio- que um dos problemas principais para o homem nessa época
lenta. Teodoro Beza imediatamente percebeu o que estava de controvérsias é que ele acredita em coisas que são duvido-
em jogo e atacou Castellio por estar revivendo a nova acade- sas, e duvida de coisas que não são duvidosas. Para começar,
mia e o ceticismo de Carnéades, tentando substituir a certeza há muitas coisas que não são de fato duvidosas, coisas que
em questões religiosas, uma exigência do verdadeiro cristão, qualquer pessoa razoável pode aceitar. Segundo Castellio,
pela probabilidade•8 • Beza insistiu que a existência de con- estas coisas incluem a existência de Deus, Sua bondade, e a
trovérsias prova apenas que alguns estão errados. Os verda- autenticidade das Escrituras. Ele apresenta como evidência
deiros cristãos se encontram persuadidos pela Revelação, pela disto o argumento teleológico e a plausibilidade da visão de
Palavra de Deus, que é clara para aqueles que a conhecem. A mundo das Escrituras3'.
introdução da akatelepsis dos céticos acadêmicos é inteira- Por outro lado, há um tempo para crer e um tempo
mente contrária às crenças cristãs. Há verdades estabelecidas para duvidar. O tempo para duvidar, em questões religiosas,
por Deus e reveladas a nós e qualquer que não as reconheça é aquele em que há coisas obscuras e incertas, e são estas
e aceite está perdido 29, coisas que são objeto de disputa. "Pois é claro que as pessoas
Castellio escreveu, porém não publicou, uma resposta, não se engajam em disputas acerca do que é certo e está pro-
em que tentou mostrar quão pouco, de modo geral, pode- vado, a menos que sejam loucas."3~ Mas não se podem deci-
mos conhecer, e qual seria uma maneira razoável de avaliar dir questões duvidosas simplesmente examinando as Escri-
este conhecimento, aplicando em seguida estes modestos cri- turas, como os calvinistas sugeriam, uma vez que há dispu-
térios às controvérsias de sua época. Esta obra, De arte tas sobre como interpretar a Bíblia, e as Escrituras são obs-
duhitandi 30 , é, em muitos aspectos, um livro extraordinário, curas em inúmeros pontos. Há muitas questões acerca das
demasiado avançado para sua época, na medida em que pro- quais dois pontos de vista contraditórios podem ser igual-
mente provados, tanto quanto podemos depreender do texto
bíblico33,
'' Cita~o com base na tradução inglesa, Com::emiug Heretics, trad. c cd. de Roland De modo a avaliar as questões em disputa é necessário
H.Barton, N. Iorque, 1935, pág. :z.r8.
''Teodoro Bc:!:a, De Haeretiâs a civil i MagistratufmliÍCIIdis libelllls. adversis Marfim" encontrar um princípio por meio do qual a verdade seja re-
Bel/11 far;agiuem & Novomm Awdemiwmm sectam (sem lugar de publicação, conhecida por todos, se manifeste de tal forma que nenhuma
1554), pags. 65-77.
'' lbid., págs. 6s-66 c 75·77·
10
Sebastião Ca.stellio, De arte dubitaudi. O texto latino integral aparece em Rcalc
Accadcmw d Ttalw, Swd1 e Dowmmti, VTI.per la Storia Degli Ereticr ftaliaui
"Sebastião Castcllio, Art de Doutcr, livro I, caps.I-I?, págs.27-75· Texto latino,
de/ Seco/o XV! 111 ~urar:a, ed. D.Cantimori c E.Feist (Roma, I9F), pigs ..~ 07 •
,,' 403.í? matenal_ drscuud_o neste texto é baseado na recente edição francesa, págs. 30?-345·
"Tbid., cap. 18, pág.77, texto latino, pá[:. 346.
Sebastrcn Castcl1ron, De I art d~ douter et de croire, d"ignorer er de sav01r, trad.
I por Chas. Baudouin (Genebra c Paris, 1953). "Ibid., cap. :u, pigs. 87·90, texto latino, págs. 354-356.

39
i
'I
força no universo, nenhuma probabilidade jamais possa tor- certos objetos podem bloquear sua visão. Diante destas pos-
nar possível uma alternativa a elaJ4, Este princípio, segundo sibilidades, Castellio admitiu nada poder fazer em relação a
Castellio, é a capacidade humana, sensível e intelectual, os condições ambientais ou naturais interferindo no juízo. Se
instrumentos do juízo nos quais devemos confiar. Com isso alguém tem visão fraca, tanto pior. Condições externas não
ele apresentava uma fé racional fundamental em nossa capa- podem ser alteradas. À luz dessas considerações práticas, só
cidade natural de avaliar questões em disputa. Até mesmo podemos aplicar nosso instrumental de julgar, nossos senti-
Jesus Cristo, diz Castellio, resolveu questões usando seus sen- dos e nossa razão, de um modo condicional, sendo "razoá-
tidos e sua razãoJs, Em resposta aos anti-racionalistas, veis" em nossa avaliação com base em nosso senso comum e
Castellio defendia uma posição muito semelhante a um dos na experiência anterior, eliminando desta forma, tanto quanto
argumentos de Sexto Empírico: possível, as condições controláveis, como, porexemplo, a
Chego agora àqueles autores [presumivelmente os malícia e o ódio, que interferem em nosso juízo37.
calvinistas] que desejam que creiamos de olhos fecha- Este ceticismo parcial de Castellio representa uma ou-
dos em coisas que contradizem os nossos sentidos, e tra faceta do problema do conhecimento levantado pelo
eu lhes perguntaria, em primeiro lugar, se chegaram a Renascimento. Se é necessário encontrar uma "regra de fé",
estes pontos de vista com seus olhos fechados, isto é, um critério para se distinguir a fé verdadeira da falsa, como
sem juízo, inteligência ou razão, ou se, ao contrário, conseguiremos isto? Tanto Erasmo quanto Castellio enfati-
tiveram o auxílio do juízo. Se falam sem juízo, nós zaram a dificuldade disto, especialmente em relação ao en-
repudiaremos o que dizem. Se, ao contrário, baseiam tendimento da mensagem das Escrituras. Castellio, porém,
seus pontos de vista no juízo e na razão, então são em vez de utilizar os problemas céticos acerca do conheci-
inconsistentes quando nos persuadem por meio de seus mento religioso como uma desculpa ou justificativa para a
juízos a renunciarmos aos nossos-16 • aceitação da Igreja como "via de autoridade", apresentou
outros critérios reconhecidamente menos perfeitos, a capaci-
A fé de Castellio em nossa habilidade racional para decidir dade humana dos sentidos e da razão. Uma vez que a pró-
questões vinha acompanhada de um ceticismo sobre nossa pria limitação de seu funcionamento impediria a obtenção
aplicação desta habilidade na prática. Existem dois tipos de de qualquer tipo de conhecimento religioso plenamente se-
dificuldade (que, se levadas a sério, acabariam por solapar guro, a busca da certeza deveria ser abandonada, em troca
completamente o critério de Castellio): em primeiro lugar, o da busca do razoável. (Isto nos permite compreender por que
fato de que nossas faculdades podem não ser cappzes de fun- Castellio influenciou principalmente as formas mais liberais
cionar adequadamente, devido a alguma enfermidade ou a do protestantismo.)3 8
um mau uso voluntário; em segundo, o fato de que as condi-
ções externas podem nos impedir de resolver um problema.
A visão de um homem pode ser fraca, ou ele pode recusar-se
a ver; ou ainda, sua posição, bem como a interferência de "lbid., caps. 27· 33, págs.IOJ·I24, texto latino págs. 366-381.
-"V. Earl Morse Wilbur, A History o{ Uuitarianism, vol. I, Cambridgc, Mass.1947,
págs. 205-208; Eticnnc Giran, Sébasticn Castdlion ct la Réforme Ca/vi11iste
(Haarlcm, 1913), esp. caps. IX-XI; Elisabeth Feist Hirsch, "Castellio's De Arte
"lbid. cap. 23, págs. 90·91, texto latino, pág. 357· Duhitandi and the Problem of Re\igious Liberty"; e J. Lindcboom, "Laplace de
1' Ibid. cap. 23 c 24, págs. 90·97, texto lalino, págs. 357·362. Castdlion dans l'histoire de l'csprit" em Autour de Michel Servet et de Sebastien
-'' Ibid. cap. 25, pág. 97, texto latino, págs. 362. Castelliou, ed. B. Becker (Haarlem, 1953).

4'
Na luta entre a antiga ordem estab,elecida da Igreja Por outro lado, os católicos poderiam atacar, e de fato
Católica e a nova ordem da Reforma, a Reforma tinha que o fizeram, os protestantes apontando o caráter injustificável
insistir na certeza total de sua causa. De modo a concretizar do critério deles, na medida em que as pretensões a certeza
sua revolução eclesiástica, tinham que insistir que eles, e ape~ da Reforma levariam a um total subjetivismo e portanto a
nas eles, estavam de posse dos únicos meios garantidos para um ceticismo acerca das verdades da religião. O tipo de evi-
se obter o conhecimento religioso. A ruptura com a autori- dência apresentada por Erasmo e Castellio tornou-se a ponta
dade não favorecia um individualismo tolerante em assuntos de lança deste ataque. A Reforma pretende que a verdade se
religiosos. De modo a fundamentar sua posição a Reforma encontra nas Escrituras, bastando para isso examiná-las sem
procurou mostrar que a Igreja de Roma não tinha garantias preconceito. Mas o sentido das Escrituras é incerto, como
das verdades religiosas que professava, e que o critério da fica claro pelas controvérsias a seu respeito não apenas entre
autoridade da tradição não trazia nenhuma garantia da cer- católicos e protestantes, mas também entre os próprios pro-
teza absoluta da posição da Igreja, a menos que a Igreja con- testantes. Portanto, é necessário um juiz para estabelecer a
seguisse provar que a autoridade da tradição fosse o verda- norma de uma interpretação adequada. A Reforma mantém
deiro critério. Mas como poderia conseguir isto? A tentativa que a consciência, a luz interior, ou algo deste tipo, é o juiz
de justificar um critério requer outros critérios, que por sua das Escrituras. Mas pessoas diferentes têm cada uma sua luz
vez precisam ser justificados. Como estabelecer a infalibili- interior diferente. Como decidir qual a cOrreta? Os calvinistas
dade da Igreja em questões religiosas? Este tipo de ataque insistem que a luz interior correta é aquela que nos é dada
acabou por levar os líderes protestantes a escreverem trata- pelo Espírito Santo, ou guiada por ele. Mas quem possui esta
dos sobre o pirronismo da Igreja de Roma, em que procura- luz interior? Como podemos distinguir uma "ilusão" de uma
vam mostrar que, usando-se os princípios de conhecimento iluminação genuína? Em relação a isso o único critério apre-
religioso adotados pela própria Igreja, jamais poderíamos sentado pelos protestantes parece ser sua própria opinião.
ter certeza: {a) de que a Igreja de Roma era a verdadeira Calvino considera que Calvino é um iluminado. A opinião
Igreja, e {b) do que seria verdadeiro em questões religiosas39, pessoal e não confirmada, nem confirmável, dos diferentes
{Talvez o cúmulo neste tipo de raciocínio seja o argumento pensadores protestantes dificilmente pode ser considerada
segundo o qual de acordo com a Igreja apenas o Papa e nin- como base de certeza em questões religiosas. { A redução ao
guém mais que o Papa é infalível. Mas quem pode dizer com absurdo da posição dos protestantes no século XVII manti-
certeza quem é o Papa? Um membro comum da Igreja tem nha que o calvinismo não passava de uma versão religiosa
apenas seu discernimento falível para julgar isto. Portanto, do pirronismo.)
apenas o Papa pode ter certeza de quem é o Papa, os demais Enquanto cada lado tentava solapar os fundamentos
i
fiéis não têm nenhuin meio de ter certeza sobre isto, e por- da posição do outro, e mostrar que o outro enfrentava uma
' tanto nenhum meio de obter uma verdade da religião.)4° versão insolúvel do problema cético clássico do critério, cada
,. Jean la !'lacccte, De l11smwbili Rommwe Ecclesiae Sccptinsmo, Dissertatio qua
lado na realidade fazia afirmações de certeza absoluta sobre
demonstratur ui hi/ oumiuo esse quod firma (1de persuadere sibi /)Olltificii possint, suas próprias posições. Os católicos encontravam a garantia
Amstcrdam, 1696; eJohannes A. Turrcrin, Pyrrbonisnws Pontificus, Leidcn, 169:1.. na tradição, os protestantes na 'iluminação reveladora da Pa-
•o Jean la Placcttc, O( rbe Incurable Scepticism o f the Clmrch of Ro me (Londres,
,, 16S8);(na folha de rosto aparece erroneamente a data de 1588) cap. IX; Traité de lavra de Deus nas Escrituras. O semiceticismo tolerante de
I'Autorité des Sens co11tre la Transsubstantiation (Amstcrdam, J?OO), págs. 24- Castellio consistia em uma solução inaceitável nesta busca
,] 25; c David-Rcnaud Boullicr, Le l'yrrhonisme de l'Eglise Romaine (Amstcrdam,
!i 1757), pág. 91 e seguintes. da certeza. (Devemos notar uma exceção. O teólogo mode-

.i
' 4' 43

'[
rado inglês William Chillingworth primeiro trocou o protes- de ou juiz. A lgreja não pode ser a autoridade que decide a
tantismo pelo catolicismo, porque não encontrou um crité- sua própria infalibilidade, uma vez que o que está em jogo é
rio suficiente para o conhecimento religioso na posição da se a lgreja é de fato uma autoridade verdadeira em questões
Reforma, e depois abandonou o catolicismo pela mesma ra- religiosas. Qualquer evidência apresentada em favor do status
zão. Terminou em um protestantismo incerto, apoiado ape- especial da lgreja requer uma regra ou critério que mostre
nas em sua leitura favorita de Sexto Empírico.)4' ser este critério verdadeiro. E, portanto, a via da autoridade
O núcleo intelectual desta batalha da Reforma consis- leva também, segundo este argumento, a uma forma perigo-
tia na busca de uma justificativa para a verdade infalível em sa de pirronismo, uma vez que por este critério não se pode
questões religiosas por meio de um critério que fosse auto- ter certeza de qual a verdadeira féH.
evidente ou que justificasse a si mesmo. Cada lado foi capaz A contestação pela Reforma dos critérios aceitos em
de mostrar que o outro não dispunha de uma "regra de fé" relação ao conhecimento religioso levantava uma questão fun-
que garantisse seus princípios religiosos de forma absoluta- damental: Como se pode justificar a base de nosso conheci-
mente certa. Ao longo de todo o século XVII, na medida em mento? Este problema acabaria desencadeando uma crise
que a luta militar entre católicos e protestantes foi enfraque- cética não só na teologia, mas também, logo em seguida, nas
cendo, a luta intelectual foi se tornando mais aguda, indi- ciências c em todas as outras áreas do conhecimento huma-
cando claramente os contornos do problema epistemológico no. Lutero de fato abriu uma caixa de Pandora em Lcipzig
I
em questão. Nicole e Pellison mostraram repetidamente que em 1519, e seria necessária toda a força dos homens mais
o modo como os protestantes examinavam o problema cons- sábios durante os dois séculos seguintes para encontrar um
tituía o "caminho real para o pirronismo". Não se poderia ·modo de se voltar a fechá-la {ou pelo menos para que se
jamais estabelecer com certeza que tipo de livro eram asEs- evitasse notar que ela não poderia mais ser fechada). A busca
crituras, como interpretá-las, o que fazer com elas, a menos da certeza haveria de dominar a teologia e a filosofia pelos
que se estivesse preparado para substituir a infalibilidade da dois séculos seguintes, e devido à terrível alternativa - a
lgreja pela infalibilidade pessoal. E isto por sua vez levanta- certeza ou o completo pirronismo - vários grandiosos es-
va uma série de problemas céticos espinhosos4~. quemas de pensamento foram construídos com o objetivo de
Do lado protestante, dialéticos como La Placette e superar a crise cética. O fracasso gradual destes esforços mo-
Boulier também puderam mostrar que o ponto de vista cató- numentais fará com que a buSca da certeza leve a duas ou-
lico "introduzia um. ceticismo universal em todo o sistema tras buscas, a busca da fé - o fideísmo puro, e a busca do
da religião cristã" 43. Antes de adotar a "via da autoridade", razoável, ou seja, o "ceticismo mitigado".
seria necessário estabelecer se a tradição da ]greja é a tradi- Vários dos moderados, cansados talvez das lutas inte-
ção correta. Para estabelecer isto é necessário uma autorida- lectuais do início do pensamento moderno, foram capazes
de ver esta dificuldade e sugeriram uma nova saída. Joseph
Glanvill anunciou em 1665 que "enquanto os homens nutri-
'' Chillingworth será discutido nos caps. IV e VII, onde se encontram as referências.
"V. l'icrrc Nicolc, !.cs Prétendus Réformez cmwaiucus de schisme (Paris, 1648), c
Paul Pcllison-Fontanicr, Ré(lexion sur /es différends de la religion (Paris, r686).
V. também Picrre Baylc, Dictiomraire Histonque et CntiqHe, verbete sobre Pellison, "Jean La Placctte, Trmré de la Comcic11ce (Amsterdã, 1695), p:ígs ..~66-378;
Rem.D. Inwrable Scepticism o( the C!mrch o( Rome; Boullier, Le Pyrrhouisme de l'Eglise
"Jean La l'laccttc, O( the bzcurable Scepticism o( the Clmrch o( Rome {Londres, Rr:maiuc, p:ígs. 61-63, 68, 88-89, 122 c 21.~-240; c 13aylc, Dictiomulire, verbete
1688), verso da pág. A2 no Prefácio. N•cole, Reme. C. c verbete Pcllison, Rem. D.

44 45
rem suas apreensões privadas, e todo presunçoso estabelecer ável" de Castellio, apresentada após a admissão de que 0
uma cátedra infalível em seu próprio cérebro, nada se pode~ homem não é capaz de alcançar a certeza total. A presente
rá esperar além do eterno tumulto e desordem" 45 ; recomen- história intelectual pretende traçar o desenvolvimento destas
dando como solução contra isso seu ceticismo construtivo. duas soluções à crise cética provocada pela Reforma. Uma
Martin Clifford, em 1675, indicou que "todos os infortúnios vez que o caráter peculiar deste desenvolvimento é devido,
que decorreram da variedade de opiniões encontrada desde a em grande parte, ao fato de que, graças a um acidente histó-
Reforma foram conseqüência inteiramente de dois erros, atre~ rico, neste mesmo momento em que a crise cética surgiu as
lar a infalibilidade a qualquer coisa que consideremos verda- obras e teorias dos céticos gregos foram retomadas, é impor-
deira, e a condenação a qualquer coisa que consideremos tante examinar o conhecimento que se tinha dos ceticismos,
errônea", e propôs uma solução semelhante à de Glanvil1 46 • pirrônico e acadêmico, e o interesse que despertaram no sé-
A questão crucial encontra-se resumida no debate en- culo XVI, esclarecendo assim de que maneira, com a
tre o padre católico Hubert Hayer e o pastor protestante redescoberta dos antigos argumentos dos céticos, esta crise
David Boullier, na obra deste último, O pirronismo da igreja estendeu-se da teologia para a filosofia.
romana. Hayer mostrou que o protestantismo leva à incerte-
za total em relação às crenças religiosas, e portanto 110
pirronismo total. Boullier, por sua vez, mostrou que a exi-
gência católica de um conhecimento infalível leva à desco-
berta de que este tipo de conhecimento não existe, e portao~
to à dúvida completa e ao pirronismo. A solução, insistia
Boullier, se encontrava em uma atitude razoável tanto na
ciência quanto na religião, substituindo a busca pela. certeza
absoluta e infalível, por uma aceitação um tanto experimen-
tal, da certeza pessoal como critério de verdade, uma norma
que, embora fique ãquém do desejado, ao menos oferece uma
maneira limitada de se resolver as questões47,
O problema do critério de conhecimento que recebeu
grande destaque com a Reforma foi resolvido de duas for-
mas diferentes no século XVI. Por um lado, a suspensão céti-
ca do juízo com o apelo à fé sem fundamento racional que
encontramos em Erasmo; e por outro lado, a solução "razo-

41 Joseph Glanvill, Scir· tmrm uihil est: or the Authors Defmce of the Vmlity of
Dogmmiúug; Against ti! e Exceptions o f rhe Leamed Tho. A/IJius iu his Late Sei ri
(Londres, I66s), sexta p:íg. (não numerada) do prcf:ício.
<' M:utin Clifford, A Treatise o f Hymmze Reasou, Londres, 1675, p:íg.14.
4 'lloullier, Le P)•rrhouisnw de /'Eglise Romaine, eLe l'. Hubert Rayer, La Régle

Foi veugée des Calomuics des Protestm1ts; et spéaa/emeut de celles de M.Boullier


Mi11istre Calviuiste d'Utrec!Jt, Paris, 1761.

46 47
11. O Ressurgimento do Ceticismo Grego no
Século XVI
Informações sobre os céticos gregos chegaram aos pen-
sadores do Renascimento principalmetite através de três fon-
tes: os escritos de Sexto Empírico, as obras céticas de Cícero
e o relato das correntes céticas antigas nas Vidas e doutrinas
dos filósofos ilustres de Diógenes Laércio. Para avaliarmos
de modo mais completo o impacto do ceticismo no pensa-
mento do Renascimento, seria necessário pesquisar quando
estas fontes se tornaram disponíveis, bem como onde e para
quem, e quais as reações que provocaram. Charles B.Schmitt
realizou esta pesquisa acerca dos Academica de Cícero, dan-
do-nos um retrato completo de seu impacto desde o final da
Idade Média até o final do séc. XVI'. Schmitt descobriu que
o termo latino scepticus, que deu origem ao francês sceptique
e ao inglês sceptic, aparece pela primeira vez na tradução
latina de Diógenes Laércio de 1430, e em duas traduções
para o latim, não-identificadas, de Sexto Empírico do século
anteriorz.
Seria necessário um trabalho extremamente minucio-
so como o de Schmitt para completar o retrato de quem leu
Sexto, Diógenes e alguns muçulmanos e judeus céticos anti-
racionalistas como AI-Gazali e Judá Halevi. Alguns resulta-
dos da pesquisa de Schmitt, publicados após as primeiras
ediçõés de sua obra, serão incorporados aqui neste nosso es-
boço dos principais caminhos do ceticismo, especialmente
de como, sob a forma do pirronismo, teve impacto na Euro-
pa e tornou-se central nas lutas intelectuais do séc. XVI. Co-
meçaremos pelo efeito dos escritos de Sexto Empírico no pen-
samento do Renascimento.
Sexto Empírico foi um escritor do helenismo, obscuro
e sem originalidade, cuja vida e carreira são praticamente
desconhecidas. Mas, por ser o único cético pirrônico grego

' Charles B. Schmitt, Cicerus Scepticus, Haia, 1972.


'Ibid., págs.I.2-IJ.

49
cuja obra sobreviveu, acabou por desempenhar um papel Finalmente, em 1562, Henri Estienne, o grande impressor
fundamental na formação do pensamento mod~rno. O aci- renascentista, publicou Uma edição latina das Hipotiposes 6 •
dente histórico que fez com que suas obras fossem redesco- Em seguida foi publicada, em 1569, uma edição latina de
bertas precisamente no momento em que se começou a dis- toda a obra de Sexto, pelo pensador francês da Contra-Re-
cutir o problema cético do critério deu às idéias de Sexto forma, Gentian Hervet7 • (Esta edição consiste na tradução
uma súbita e maior proeminência do que jamais tiveram até de Adversus Mathematicos feita por Hervet, e da tradução
então e que jamais teriam após este momento. Foi assim que das Hipotiposes feita por Estienne.) A edição de Hervet foi
Sexto, uma raridade recém-descoberta, transformou-se em republicada em r6or 8• Mas o texto grego só foi publicado
le divin Sexte, que ao final do século XVII era considerado o em I 62 I pelos irmãos Chouct9• Além disso, há evidência subs-
pai da filosofia modernal, Ademais, ao final do século XVI e tancial de que uma tradução para o inglês das Hipotiposes
no século seguinte, as conseqüências de seu pensamento em apareceu em IS90 ou 1591"'- Outra tradução para o inglês
relação ao problema do critério tinham estimulado uma bus-
ca pela certeza que deu origem ao novo racionalismo de Des- renascentistas de traduções latinas de Sexto, um do Adversus Mathematicos por
Joh. Laurcntius, Vaticano, m~. 2990, fols. 266-381 (o prof. Schmitt publicou
cartes e ao "ceticismo construtivo" de Pierre Gassendi e de recentemente um estudo do manuscrito de Laurcntius. V. seu "An Unstudicd
Mario Mersenne. Fifteenth Ccntury Latin Translation o f Giovanni Lorcnzi", em Cultural Aspects
o( the Italia11 Renaissa11ce, Essays i11 Hmwur o( Paul Oskar Kristeller, org. por
É possível datar de maneira razoavelmente precisa o Ceci! H. Clough [ Manchcstcr, 1976], págs. 244-261; o outro das Hipotiposes e
começo do impacto das idéias de Sexto Empírico no pensa- de parte do AdverSIIS Mathematicos por l'etr. De Montagnana, Biblioteca
Nazionalc Marciana (Veneza}, cod.lat. 267(3460), fols.l-57· Sou grato ao prof.
mento do Renascimento. Suas obras foram praticamente des- P. O. Kristeller por ter-me suprido com muitas informações importantes acerca
conhecidas na Idade Média, e conhecemos apenas uns pou- destes manuscritos.
• Sexto Empírico, Sexti Pl!i/osophi Pyrrhmúamm Hypotipwservn libri III...lati11e
cos leitores de suas obras antes de sua primeira publicação mmc primum editi, interprete Henrico Stepha11o, Paris, 1562.
em rs62. Até agora apenas dois manuscritos latinos medie- 7 Sexto Empírico, Adversus Mathematicos ... graece mmquam, Latine mmc primum

vais das obras de Sexto foram descobertos, um em Paris da- editum, Gentiano Herveto Avrelio interprete. Eivsdem Sexti Pyrrho11iamm
HYPOTYP\VSE\VN /ibn tres ... interprete Henrico Stephano (Paris c Antuérpia,
tado do final do século XIII, uma tradução das Hipotiposes 1569}·
pirrônicas (estranhamente atribuídas a Aristóteles), e o ou- 'Na lista de edições fornecida por J. A. Fabricius em seu Sexti Empiric1 Opera,
Lcipzig, 1718 c 1842, hem como na lista que consta no artigo sobre Sexto Empírico
tro, uma versão melhorada da mesma tradução, descoberta na Biographie Universdle, voi. XLII, Paris, 1825, menciona-se uma reimpressão
na Espanha aproximadamente roa anos após a primeira4, da edição de Hervct em Paris em 1601. Não consegui localizar um exemplar
desta reimpressão, c não há nenhum nem na BibliothCque Nationalc nem no
Manuscritos gregos começaram a aparecer na Itália no sécu- Bristish Museum.
lo XIV e gradualmente se disseminaram por toda a Europa'. • Sextus Empiriws, Empiriâ Opera qnae extmlt ... pyrriloniamm Hypotyprvse1v11
libri III ... Henrico Stephano interprete. Adversus Mathcmaticos libri X, Gemi ano
Herveto Avrelio imerprete, graece mmc primum editi ... Esta edição foi reimprcssa
' Foi François La Motte Lc Vayer que o chamou de "Ic divin Sexte". Picrrc Baylc em 1621 por P. c J. Chouet, c publicada em várias cidades, incluindo Paris c
no verbete "l'irro" de seu Dictiomwire Historique et Critique afirmou que a Genebra.
' Thomas Nashc refere-se a esta tradução em t59r, e 1anto Nashc quanto Rowlands
0
filosofia moderna começou com a reintrodução do pensamento de Sexto (embo-
ra tenha datado este evento de aproximadamente oitenta anos após sua ocorrên- fazem citações com base nela. V. Tlle Works o( Thomas Nashe, editado por
Ronald ll. McKcrrow {Londres, t910), vol. Ill, págs. 254 c scgs. c 332, vol. IV,
cia).
<V. Bibliothi:que Nationalc { l'aris), Ms. Fonds \atin I47oo, fo\s. 83-132, c Biblio- págs. 428-429, c vol. V, págs. no c 122; c Ernest A.Strathmann, Sir Wa/ter
teca Nacional (Madrid), Ms. 10112, fols. r-30. Este último manuscrito foi des- Raleigh, A Study i11 t:lizabethau Skcptiâsm (N. Iorque, 1951 }, p;Ígs. 226 e segs.
coberto pelo pro f. Paul Oskar Kriste\ler da Universidade de Columbia em '955· Nenhuma cópia ou informação adicional sobre esta "tradução perdida" foi des-
'Acerca da história da maior parte destes manuscritos, v. Hcrmann Mutschmann, coberta. E~ ta "tradução perdida" tem sido freqüentemente confundida com "The
"Dic Überlieferung der Schriften dcs Sextus Empiricus", Reimsches Museum fiir Scepticke". Esta obra é uma tradução de partes do livro I de Sexto. Provavel-
Phi/ologie, LXIV{1909), págs. 244-283. Há também dois manuscritos mente não é de autoria de Raleigh, e apareceu publicada apenas em The Remains

so 5'
apareceu na História da filosofia de Thomas Stanley de r6ss- 1490 pelas idéias de Savonarola e, aparentemente, por algu-
r66r, subseqüentemente reimpressa três vezes ao longo do mas das tendências antiintelectuais deste movimento' 6 • As-
século seguinte". Nenhuma outra edição apareceu no século sim, Gian Francesco resolveu desacreditar toda a tradição
XVII, embora Samuel Sorbiêre tenha começado uma tradu- filosófica pagã da Antiguidade e durante um exílio forçado
ção para o francês por volta de r63o':1.. Em 1718 uma edição por volta de 1510 começou a trabalhar em seu Examen
extremamente cuidadosa baseada no estudo de alguns dos Vanitatis Doctrinae Gentium, publicado em 1520'7.
manuscritos foi preparada por J. A. Fabricius, fornecendo o Esta obra começa com uma revisão de roda a filosofia
texto original e revisões das traduções latinas' 3 • Em 1725 um antiga. Na segunda parte passa da exposição histórica para a
matemático chamado Claude Huart produziu a primeira tra- discussão teórica do problema da certeza. Há uma longa dis-
dução completa para o francês das Hipotiposes, a qual foi cussão do pirronismo começando no capítulo 20 do livro 11,
reimpressa em 1735' 4 • baseada nas Hipotiposes pirrônicas de Sexto Empírico, su-
A primeira referência conhecida, até então, a alguém mariando seus pontos de vista bem como acrescentando uma
que tivesse lido Sexto Empírico encontra-se em uma carta, boa parte de material de caráter anedótico. O livro seguinte
descoberta por Schmitt, do humanista Francesco Filelfo a trata do material contido no Adversus Mathematicos de Sex-
seu amigo Giovanni Aurispa em 1441's. Não foi descoberto to e os três últimos contêm o ataque a Aristóteles' 8 • Através
nenhum uso significativo das idéias pirrônicas anterior à de toda a sua obra Pico empregou material cético tirado de
publicação das Hipotiposes à .exceção de Gian Francesco Pico Sexto para demolir toda a filosofia racional e para liberar os
della Mirandola. Perturbado pelo pensamento humanista do homens da aceitação inútil das teorias pagãs. Supostamente
Renascimento baseado em idéias pagãs e pela dependência o resultado final não deveria ser colocar tudo em dúvida,
da autoridade de Aristóteles pelos teólogos cristãos seus con- mas sim que se deveria abandonar a filosofia como fonte de
temporâneos, o jovem Pico sentiu-se atraído por volta de conhecimento em favor do único guia que os homens têm
neste "vale de lágrimas", a Revelação Cristã'9,

"O pro f. Donald Wcinstcin chamou minha atenção para um sermão de Savonarola
o( Sír Wa/ter Ra/cigh, 1651. Para uma discussão completa da data desta obra, de II de_dezcmbro de 1496, em que é dito que o homem carnal que não tem
ver Pierre Lefranc, Sir Walter Raleígh Ecrívain, l'ouevre et /es ídées, Quebec, nenhum Interesse intelectual nem ilusões {em contraste com o homem animal
1968, especialmente págs. 48-49 c 66-67. que pensa que sabe, mas na realidade não sabe) pode ser convertido mais facil-
" A décima segunda parte da História da Filosofia de Thomas Stanley (Londres mc;mc que o homem animal. V. Girolamo Savonarola, Predrche Sopra Ezechiele,
I656-1659, 1687, 1701, 1743) contém uma tradução completa das Hipotiposes. e~Jtado por Robert Ridolfi (Edizione Nazionale), voi. ], Roma, 1955, Predica V,
" V. Richard H. Popkin, "Samuel Sorbierc's translation o f Sextus Empiricus", no pags. 61-62.
jmmwl o( thc History o( ldeas, XIV, 1953, págs. 617-6:z.1. Charles B.Schimit '
1
O título completo desta obra é Joannis Francisci Piei Mirandule Domini, et
encontrou urna outra tradução muito mais completa para o francês por Nkolas Concordia Comi ris, Examen Vmlitatis Doctri11ae Gmtium, et Veritatis Christianae
de la Toison, datando de cerca de 1677, porém não publicada. V. Schmitt, An Dis~iplinae, Distinctum n Libras Sex. quon1111 Tres omnem Philosophomm Sectmii
Unknown Seventcenth Century Translation ofSextus Empiricus", ]oumal o( the Umvers1m. Reliqui Arístoteleam: ct Aristoteleis Armis Partiwlatim Impugnam
History of Philosophy, VI, 1968, págs. 69-76. Ubicunque Autem Christiana et Asserimr et Celcbratur Disciplina (Mirandule,
" Sexto Empírico, Opera, gracce et lati>le ... 110tas addidit ]o. Albertus Fabricius, 1~20}. Esta obra foi publicada com pequenas alterações na Opera Omnia de
Leipzig, 1718. G1an Francesco Pico (Basiléia, 1573), na realidade volume li das obras do gran-
,. Sexto Empírico. Les Hipotiposes oulnstitutious pirrouieunes, Amsterdam, 1725 de Pico.
e Londres 1735· O Dictionnaire des Ou1.1rages AIIOIIY»Ws de Barbier atribui esta " Um estudo detalhado da obra de Gian Franccsco Pico aparece em Charlcs B.
tradução a Claudc Huart de Genebra. Para m<"liorcs informações sobre isso v. Schmitt, Giml Fraucesco Pico del/a Mirando/a (1496-1533) and his Critique of
Popkin, "Sorbiêrc's Translation o f Sextus Empiricus", no ]ourna/ o( ti! c History Aristotle, Haia, 1967.
ofldcas, XIV(1953), págs. 620-621, e "A Curious Featurc ofthe Frcnch Edition •• Y·. por exemplo o cap. 20 do livro li até o livro 111; o cap. 2 do livro III é
of Sextus Ernpiricus", no Phi/ological Quartely, XXXV, 1956, págs. 350-352. mtuulado "Quid Sccptici contra disciplinas in univcrsurn anulerint, sumptis
" Schmin, "An Unstudied Translation o f Sextus Empiricus", págs. 245-246.

,, 53
'I

O cristianismo pirrônico de Gian Francesco Pico tinha lumes composta por Sti:iudlin sobre o ceticismo de Pirro a
um sabor peculiar: o que provavelmente explica seu fracasso Kant, publicada em 1794, Pico é mencionado em duas bre-
em atrair a grande e receptiva audiência que Montaigne ob- ves frases que concluem, "e sua obra inteira não é suficiente-
teve no século XVI. Para Pico, se o homem era incapaz de mente interessante para merecer aqui uma caracterização mais
compreender o que quer que fosse ou atingir a verdade por detalhada"l4.
meios racionais, a única fonte remanescente de conhecimen- O prof. Schmitt discordou de mim quanto a este pon-
to era a revelação através de profeciaszo. E, portanto, não to. Ele concorda que a obra de Pico não teve o mesmo im-
,I
contente em advogar o conhecimento baseado apenas na fé, pacto que as obras de Montaigne, Bayle e Descartes, mas por
que nos é dado pela Revelação Divina tal como interpretada outro lado insiste que não era desconhecida. Schmitt traça a
pela Igreja, a visão de Pico pode levar a sérios perigos em influência, por vezes leve, por vezes mais séria, da obra de
relação ao pensamento religioso, tornando aqueles que têm Pico em Nizolius, Castellani, no tradutor de Sexto, Gentian
o dom da profecia os árbitros da verdade. Hervet, em vários pensadores italianos menores, nos autores
Apesar de Strowski afirmar que a obra de Pico della dos comentários de Coimbra, em Filippo Fabri, Pierre
Mirandola teve um grande sucesso e dominou o pensamento Gassendi, Campanella e Leibniz. Pico obviamente teve algu-
cético no século XVIH, na verdade sua obra parece ter tido ma influência, mas não foi um dos pensadores que tornou o
muito pouca influência, e não chegou a funcionar como uma ceticismo uma das grandes questões da época. A possível in-
I fluência de Pico no cético mais célebre, Agrippa von
popularização das idéias de Sexto Empírico, como aconte-
' Nettesheim, será discutida mais adiante neste capítulo. Se-
ceu mais tarde com a "Apologic de Raimond Sebond" de
Michel de Montaignen. Segundo Villey, Agrippa von gundo Pierre Villey, Agrippa utilizou material tomado de Pico,
Nettesheim, que será discutido mais adiante neste capítulo, mas pesquisas recentes tornaram possível reavaliar este pon-
utilizou material tirado de Pico. Se isto de fato ocorreu, to. Montaigne aparentemente não conheceu a obra de Picozs.
Agrippa parece ter sido um dos poucos que utilizaram este Ninguém além de Gian Francesco Pico parece ter pres-
material'3. Nas histórias do ceticismo escritas nos séculos XVII tado atenção em Sexto Empírico antes da edição de Estienne.
e XVIII, Pico aparece listado simplesmente, mas não é discu- Os eruditos humanistas pareciam desconhecer seu nome. E
tido na bibliografia sobre este tema .. Na história em dois vo- mesmo na área em que Sexto logo se tornaria bastante im-
portante, a controvérsia acerca dos méritos da astrologia,
argumentis ex re quae doctrinae pracbcatur, ex docente, ex discente, ex modo não há t;cferências a ele. O primeiro Pico della Mirandola,
doctrinac ubi contra ipsos nonnulla dicuntur, & aliqua dicuntur in laudcn em seu tratado de astrologia, não o inclui dentre os que ata-
Christianae disciplinae". V. Louis I. Bredvold, The lntel/earwl Millieu of ]olm
Dryden (Univcrsity o f Michigan Publications, Languagc and Litcraturc, voi. XII), caram a astrologia na Antiguidadez6•
Ann Arbor, 1934, págs. 28-29; e Eugenio Garin, Der Ita/icnische Hwmmismus,
Berna, 1947, págs. 159-161.
' 0 V. Garin, loc.cit., especialmente pág. 160. de Sexto, porém geralmente Montaigne a utiliza de modo mais preciso, sendo
" Fortunat Strowski, Montaigue, 2a. ed., l'aris, 193 I. 9ue Momaigne não recorre às anedotas de l'ico, muitas das quais o teriam atra-
"Picrre Vilcy, Les Sources et /'Évolutioll des Essais de Montaigne, Paris, 1908, Jdo se ele as tivesse conhecido.
vol.II, pág. r66. V. Schmitt, Pico, cap. VI para um exame detalhado da influên- '• Carl Fri~drich Stliudlin, Geschicbte 1md Geist des Skepticismus (Leipzig, 1794),
cia de Pico. O artigo recente de Schmin, "Filippo Fabri and Sccpticism: A vol. I, pag. 557·
Forgotten defcnse of Scotus", em Storia e Cultura ai Santo a cura di Autouio '' C. B. Schmitt, Pico, cap. VI.
Poppi (Viccnza, 1976), págs. 308-312, acrescenta novos dados sobre a influên- '" Giovam_Ji Pico _della Mirandola, Disputationes Adversus Astrologiam
cia de Pico. DIVmatncem, ed1tado por Eugenio Garin, Edizionc Nazionalc, Florença, I9'i2-
" Villcy, op.ât., pág.166, n.I, mostra ser baMantc improvável que Momaignc 2 vols. Na lista dos manuscritos de Pico encontrada em Pearl Kibre, The Libr~ry
tenha utilizado a obra de Pico. Indica que ambos estes autores recorreram~ qbra

54 55
As poucas referências ao pirronismo encontradas na O retrato que nos é dado do pirrônico por Rabelais é, como
literatura do início do século XVI não indicam um conheci- bem se podia esperar, mais o de uma figura cômica do que
mento de Sexto, mas parecem derivadas de Diógenes Laércio de um filósofo cético. Trouillogan não provoca perplexida-
ou de alguma outra fonte antiga acerca do ceticismo grego. de e confusão em Panúrgio empregando truques dialéticos
A mais famosa discussão do pirronismo neste período é en- típicos dos céticos, como o fará mais tarde, no século seguin-
contrada em Rabelais, no livro ill de Gargântua e Pantagruel. te, o filósofo pirrônico Marphurius com Sganarelle em Le
Panúrgio pergunta a vários sábios se deveria casar-se. Um Mariage Forcé de Moliêre~ 8 • Ao contrário, o pirrônico
destes sábios é T rouillogan, o filósofo. Após um capítulo rabelaisiano realiza seu objetivo através de uma série de eva-
mostrando a dificuldade de obter uma resposta de Troui- sivas, non-sequiturs e respostas enigmáticas. O retrato aí
llogan, o capítulo 36 apresenta um diálogo entre o filósofo e apresentado não se baseia em Sexto Empírico. E o comentá-
Panúrgio. Este capítulo é intitulado "Uma continuação das rio de Gargântua parece ter pouco a ver com os fatos. Não
respostas do filósofo efético e pirrônico Trouillogan". parece ter havido filósofos naquela época que se tivessem
Panúrgio, depois de ser confundido por T rouillogan durante considerado pirrônicos~9. Os comentadores explicam as ob-
algumas páginas, desiste de questioná-lo. E então Gargântua servações de Gargântua com base nos Academica de Cícero,
levanta-se e diz: que era então estudado, bem como com base em Agrippa
von Nettesheim, cujo De incertitude et vanitate scientiarum
Louvado seja Deus em todas as coisas, mas especial- havia despertado um certo interesse naquele momento3°, A
.I mente por ter feito o mundo alcançar tais alturas de terminologia, entretanto, parece derivada da discussão de
I
1:
refinamento acima do que cu até então conhecia, de Pirro encontrada em Diógenes Laérciol'.
tal modo que agora os mais sábios e prudentes filóso-
fos não se envergonham de s~r vistos cruzando os por- ''A versão de Molii:re da estória é muito mais fiel ao que o pirronismo de fato é, na
tais e frontispícios das escolas das seitas pirrônica, medida em que o filósofo cético aplica várias respostas típicas derivadas da
aporética, cética c cfética. Bendito seja o santo nome tradição cética à questão em pauta, deve Sganarelle casar-se? E após mostrar o
filósofo em dúvida sobre ambos os lados de mdas as questões, não estando certo
de Deus! Verdadeiramente, pode-se dizer que será sobre nada, MoliCrc refina a situação rabelaisiana fazendo com que Sganarelle
doravantc muito mais fácil a empresa de se pegar le- bata em Marphurius com uma bengala. Quando o pirrônico reclama, Sganarelle
retruca que um cético não poderia sequer estar certo de estar levando bengaladas,
ões pelo pescoço, cavalos pela crina, bois pelos chi- ou de estar sentindo dor. Um comentador posterior, Friedrich Bierling, em seu
fres, touros pelo focinho, lobos pela cauda, bodes pela Commentatio de Pyrrbonismo Historico (l.eipizig, 1724, pág. 23), indica que
Marphurius deveria ter respondido a Sganarcl\e, '"Parece-me que você ~bateu,
barba, e pássaros pelos pés, do <iue tais filósofos por e é por isso que me parece também que devo faier o mesmo com você". 1,
suas palavras. Adeus meus valorosos, queridos c ho- •• Hcnri Busson, em seu Le Rationalisme dans la Littérawre FrauçaiSe de la
Renaissance (15B·I6o1), Paris, 1957, págs. 234-235, usa Rabelais como evi-
nestos amigos' 7 • dência importante de que o pirronismo era uma filosofia bastante conhecida e
bem estabelecida na França nesta época.
1" CF. n. 26 em Oeuvres de Rabe/ais, t.V, pág. 269; n. 19 em Rabelais, Le Tiers Li11re,

cd. Jean Planard, Paris, 1929 (Les Texccs Français}, pág. 285; c Rabelais, The
Urq11hart-Le Motte11x Trar~slation o( the Works o( Francis Rabelais, ed. Por A. J.
o( Pico del/a Mirando/a, Nova Iorque, 1936, os números 673 e 1044 são Nocke C. R. Wilson, N. Iorque, 1931, vol.ll,notas, pág.lxxii,n.7docap. XXXVI.
intitulados Tractatus contra arithmeticos et coutra astro/ogos. O número 1044 é '' Cf. Diógenes Laércio, Li11cs o( Emiuem Pbilosophers, trad. l'or R. D. Hicks,
atribuído a Scx10 no índice. Locb ed. (Londres c Cambridge, Mass., 1950}, vol. li, livro IX, cap. XI, págs.
"François Rabclais, Oeuvres de Frauçois Rabelais, edição crídca publicada sob a 474-519. O ceticismo pirrônico é brevemente descrito pelo humanista Guillaumc
direção de Abel l.efranc, texto c notas por H. Clouzot, P. Delaunay, J. Plattard Budé (com quem Rabelais se corrcspondeu), em seu De Asse (Paris, 1541), pág.
eJ. Porcher, Paris, 1931, 10mo V, pág. 269, I, págs. 11:2.-122, CXXII, aparentemente com base em Diógenes Laércio.

sG 57

i.'I L.I
Como veremos, as extensas discussões do ceticismo no conhecimento, e que, por este motivo, desprezam as Sagra-
início do século XVI, com a exceção de Gian Francesco Pico das Escrituras como demasiado simples e rudes; isto é, aque-
della Mirandola, parecem todas baseadas em Cícero3\ les que preferem as escolas filosóficas à Igreja de CristoH.
Luciano, Diógenes Laércio c Galena. Esta denúncia é feita através de um exame das artes e ciênci-
Provavelmente o mais notório dentre os que podem as (incluindo-se entre as artes e ciências, o jogo de dados, a
ser considerados céticos neste perío,do é a curiosa figura de prostituição etc.), que o leva a considerá-las como inúteis,
Henricus Cornelius Agrippa von Nettesheim, q86-IS35· imorais, ou coisa parecida. Praticamente não se encontram
Trata-se de um homem que se interessava Por muitas coisas, argumentos, mas apenas condenações dos pecados de que
" mas principalmente pelas ciências oculrasn. Uma estranha
obra que ele escreveu em 1526, De incertitudine et vanitate
toda atividade humana é herdeira. O conhecimento, ele nos
diz, foi a fonte dos problemas de Adão, e só nos causará
scientiarum declamatio invectiva ... fez com que fosse classi- pesar se o buscarmos.
ficado como um dos primeiros céticos. A popularidade de
sua obra, suas muitas edições em latim, bem como traduções Nada pode trazer ao homem mais pestilência do que
para o italiano, francês c inglês no século XVI, e ainda sua o conhecimento: este é a própria pestilência que levou
influência em Montaigne deram a Agrippa um destaque ime- a humanidade à ruína, o que afastou toda a Inocên-
recido dentre os autores que tiveram um papel importante cia, e nos submeteu a todo tipo de pecados, e à morte;
I
na retomada do pensamento cético no Renascimento. o que extinguiu a luz da Fé, lançando nossas almas na
Sua obra é na verdade uma longa diatribe contra todo escuridão cega, a qual condenando a verdade colocou
o tipo de atividade intelectual, contra todas as formas de os erros no mais elevado trono'-'·
arte. Seu propósito, Agrippa nos diz no prefácio, é denunciar
.i aqueles que são orgulhosos no domínio da sabedoria e do A única fonte genuína da Verdade é a Fé, anuncia Agrippa.
As ciências são simplesmente opiniões pouco confiáveis dos
homens, que nunca são realmente comprovadas36 •
'' Schmitt foi o único a traçar os leitores, comemadorcs c opositores do De Não satisfeito com estas afirmações, Agrippa passa
Academica de Cíccw, descobrindo que foi extensamente lido, não gerando muitas então a discutir cada uma das ciências e artes, fazendo am-
rcsposras <J.gudas, algumas publicadas c outras existentes apen<J.s em forma de
manuscrito. V Cicems Sce{lfiws. A resenha de Ezequiel de Obso do livrn de plas acusações às vilanias dos cientistas c artistas. Os
Scbmitt, "Las Acadcmicas de Cicerón y la Filosofia Rcn<J.sccntista", em gramáticos são acusados de terem causado confusões acerca
lntcmarimwl Studics Ítt Philosophy, VII, 1975, págs. 57-68, apresenta mais da-
dos sobre a influência de Cícero.
da tradução correta das Sagradas Escrituras; os poetas e his-
" Sobre os interesses de Agrippa c sobre sua carreira tempestuosa, ver o verbete toriadores são acusados de mentirem; os lógicos criticados
"Agrippa" no Dictwnnaire Historiquc ct Critique de Bayle; a introdução de
Fritz Mauthncr à sua tr<J.dução de Agrippa, Dic Eitclkcit tmd Uusicherheit der
por tornarem tudo mais obscuro; os matemáticos são fusti-
\Visseuscha(ten tmd die Verteidigtmgsschrift (Munique, 1913), págs.Vl-XLV; gados por não contribuírem para a salvação e por fracassa-
Ch<1rlcs G.N<J.ucrtjr., "Magic and Sccptid>m in Agrippa's Thought", no ]ou mal rem na quadratura do círculo; os músicos por fazerem as
ofthe History o( ldcas, XVill, 1957, pág. r61-r8:z. c Agri{,pa mtd the Crisis of
Rcuaissmtcc Thoug/Jt (Urbana, Illinois, 1965); R. H. Popkin, introdução à edi- pessoas perderem tempo; os filósofos da natureza por dis-
ção foto-reproduzida de Olms da Opera de Agrippa c os ensaios de Paola
Zambclli, cspccial.mcntc "Comcillc Agrippa, Erasmc ct la Théologie Humanistc", " Hcnricus Cornclius Agrippa von Ncttc~hcim, O( til e Vanitie and Uncerlaimie o(
em Dom;ibme Etage lntemational d'Étudcs Humanistcs, Tours, 1969, vol. I, Artes a11d Scúmccs, tr<J.dução p<lr<l o inglês de Jamcs Sanford, Londres, 1569,
págs. II3-159, Paris, 1972, c "Magic and Radical Rcformarion in Agrippa of pág. Aiv.
Ncttcshcim", no .foumal o( The Warburg aud Courtauld lnstitutcs, XXXIX, "lhid, pág. 4r.
1976, págs. 69-10.~. '" lbid., págs. 4v c sr-

ss 59

111.
cordarem uns dos outros sobre todas as 1
questões; os trar a relação entre a posição de Agrippa sobre o oculto e seu
metafísicos por terem produzido heresias; os médicos por "ceticismo", indicando que devido à desconfiança de Agrippa
matarem seus pacientes; os teólogos são acusados de verbor- em relação à capacidade mental humana, este buscou o co-
ragia e de ignorar a Palavra de Deus. nhecimento através de meios esotéricos. Segundo esta inter~
O que_~gtipp~ defendia no lugar disso era que os indi- pretação, o De Vanitate representa um estágio no desenvol~
víduos deveriam rejeitar todo o con~ec!mento, tornando-se vimento da visão de Agrippa, para o qual a fé e a Bíblia
simples crentes na Revelação Divina.\"E portanto melhor, e vinham se tornando elementos cada vez mais centrais em sua
mais lucrativo, ser idiota, e não saber nada, acreditar pela Fé busca de uma verdade que não podia ser obtida pela razão e
e pela Caridade, e se tornar próximo de Deus, do que ser pela ciência4o.
altivo e orgulhoso devido às sutilezas da ciência e cair no Entretanto, mesmo que a obra de Agrippa não repre-
domínio da Serpente.":IT. É neste tom que o livro se encerra, sente uma análise cética do conhecimento humano, repre-
com uma corÍdenação final de todos os cientistas, "Ó seus senta uma faceta da redescoberta do ceticismo antigo, e teve
tolos e perversos, que deixando de lado os dons de seu Espí- influência no despertar do interesse pelo pensamento cético.
rito procuram aprender tais coisas dos filósofos sem fé e dos Agrippa menciona Cícero e Diógenes Laércio como fontes e
mestres do erro, que deveriam receber de Deus e do Espírito pode ter utilizado a obra de Gian Francesco Pico4'. Não en-
Santo!" 38 contrei nenhuma referência a Sexto .Empírico em sua obra,
Este exemplo de fundamentalismo antiintelectualista embora haja algumas passagens que parecem ter 'sido basea-
dificilmente pode ser considerado um autêntico argumento das llesta fonte 4 \ Quanto à sua influência, a obra de Agrippa
filosófico em defesa do ceticismo acerca do conhecimento foi bastante conhecida no século XVI e foi utilizada por
humano, tampouco contém uma análise epistemológica sé- Montaigne como uma de suas fontes43.
ria. Alguns comentadores têm questionado se isto realmente
representa a visão de Agrippa, sobretudo à luz do interesse 4
" V. Nauert, "Magic and Skeptidsm in Agrippa", especialmente págs. 167-182.
4' Villey, op. cit., li, pág. 166 e Strowski, op. cít. págs. 130 e run.r, mantêm esta
que este tinha pelas ciências ocultas. Outros consideraram o posição. Paola Zambelli apóia esta posiÇão em seu "A propositis della de vanitate
De Vanitate muito mais como uma explosão de raiva do que scientiarum ct artimn di Cornelio Agdppa", na Rivista critica di storia del/a
filosofia XV, 196o, pág. r66-J8o. Schmitt examina cuidadosamente a evidência
uma tentativa séria de formular dúvidas sobre o que pode ser e duvida que Agrippa utilize material de Pico. Schmitt, Pico, págs. 239-242.
conhecido39. Um estudo recente de Nauert procurou mos- "'Por exemplo, o cap. 54 sobre a filosofia moral parece-se com a discussão de Sexto
sobre a variedade do comportamento moral. Entretanto, enquanto Sexto dá o
exemplo de que "também entre os egípcios os homens casam-se com suas ir-
"lbid., pág. IHJV. mãs", H. P.I, 153 e III, 205; Agrippa afirma que ~entre os atenienses era legal
'' Ibid., pág. 187r. um homem casar-se com a sua própria irmã", Vamtic, pág. 72. Vários exemplos
'" C f. Mauthner, op.cit., pág. XL VII; e Pierre Villey, Lcs Sources et I'Evolutioll d~s deste tipo ocorrem. (Villey afirma que Agrippa tomou d~ empréstimo a Sexto
Essais de Moutaigne, vol. 11, pág. 176. Mauthner, op. cit., pág. XL VI o denomt- com? se isso fo>se um fato comprovado, sem contudo dar exemplos, cf.Villcy,
na uma ~obra de raiva", c Súiudlin em seu Geschichte 1111d Geist des Skepticismus, op.clt. li, pág. r76). Há várias referências a Pirro feitas por Agrippa, porém
vol. I, pág. 558, o considera "uma vingança em relação ~s ciências". ;\,lg~n.s nenhuma delas indica muita familiaridade com as fontes pirrônicas. Naucrr, op.
comcntadorcs franceses são generosos, e dispostos a assumtr que a obra c Jron~­ cit., nota 30, afirma que Agrippa não cita Sexto porque suas obras não tinham
ca "trata-se de um panfleto irônico contra a estupidez", segundo Strowskt, ainda sido publicadas.
M~ntaigne, págS.IJ2-1.B· Villcy procura relacionar.a obra dc.Agripp~ com o ., Cf. Strowski, op.cit., págs. 130 e IH nota r; c Villey, op. cit., 11, págs. 176 c t78-
gênero da literatura paradoxal do século XVI. ~f. V!lley, op. CJt., li, p~g. I7J- 8o. Villcy parece convencido de que o que Montaignc toma de empréstimo a
I75· A afirmação de !'anos P. Morphos, Thc Dralogues o( Guy de ~mes Uolms Agrippa teve pouco a ver com a formação do ceticismo de Montaigne. Para uma
Hopkius Swdies in Romance Literatures, Extra Volume XXX, Balnmore, 1953, comparação entre o ceticismo de Agrippa c o de Montaignc, ver Ernst Cassirer,
p4g.77l de que "o propósito de Agrippa era defender a posição pr?~estante", é Das Erkenntnisproblem in der Phi/osopbie und Wissenscha(t der neueren Zeit,
questionável, uma vc-t que Agrippa aparentemc.nte p:rmancccu catohco durante Band I, Berlim, r922, págs. 192-194.
toda a sua vida c ataca a Reforma em seu Vamt1e, pags. 2or-v.

6o
Diversas outras discussões de temas céticos no início O cardeal Jacopo Sadoleto, bispo de Carpentras, um
do século XVI indicam um crescente interesse pelo ceticismo amigo de Reginald Pole, escreveu uma resposta ao ceticismo
acadêmico derivado sobretudo de Cícero e não do pirronismo acadêmico, Phaedrus sive de Laudibus Philosophiae, prova-
·ou de Sexto Empírico. O interesse pelo ceticismo acadêmico, velmente como resultado de sua correspondência com Pole
tal como apresentado nos Academica de Cícero, parece de- acerca da possibilidade de se ter conhecimento de algo por
senvolver-se dentre os adeptos da teologia fideísta. Um bom meios racionais47. Esta obra foi escrita em 1533 e publicada
número de teólogos havia denunciado os limites da capaci- pela primeira vez em 1538 48 , Na primeira parte deste livro,
dade da razão humana c insistido que o conhecimento só Fedro apresenta a visão dos acadêmicos, baseada principal-
poderia ser obtido pela fé. O cardeal Adrian? di Corn:to mente em Cícero, e defende a tese fideísta, apontando a futi-
havia dito em 1509 que "a'penas as Santas Escnturas contem lidade da filosofia natural. Deus ocultou os segredos da na-
tureza de tal forma que jamais podemos conhecê-los. Aque:..
0 verdadeiro conhecimento e a razão humana é incapaz de
elevar-se por seus próprios meios até o conhecimento das les que acreditam ter descoberto algo sobre a natureza con-
questões divinas e da metafísica''H, Pensadores. que com~ar­ tradizem a si próprios e uns aos outros acerca de seus princí-
tilhavam este ponto de vista encontraram apmo em mmtos pios e teorias. Só podemos conhecer a Deus pela Revelação e
dos argumentos dos antigos céticos do período tardio da aca- não pela filosofia. Nosso objetivo é agir virtuosamente e não
demia de Platão. discorrer c discutir sobre a virtude e o bem. Do mesmo modo,
Como Busson mostrou, autores como Reginald Pole, a dialética é inútil, apenas um conjunto de figuras e silogismos
Pierre Bunel e Arnould du Ferron recorreram a elementos e por meio dos quais se pode provar o que se quiser, até mes-
afirmações do ceticismo· acadêmico ao manter seu anti- mo absurdos. Assim, argumenta Fedro, podemos apenas
racionalismo e como um prelúdio a seu apelo fideísta45 • Vá- aprender a verdade através da Revelação Divina, e não pela
I rias obras apareceram contra estes nouveaux academiciens e filosofia49,
I A segunda parte da obra apresenta a resposta de
este grupo parecia suficientemente forte para dar a impres-
I são de que o ceticismo acadêmico era uma força a ser levada Sadoleto. Para descobrir a verdade, devemos seguir a verda-
i em conta. Porém, além da obra de Teodoro Beza contra o deira filosofia; esta filosofia não é a das escolas, mas as anti-
!
! nouveau academicien (examinada no capítulo anterior), a gas visões de Platão e de Aristóteles que estavam sendo
obra de Castellio, c a discussão por Gentian Hervet dos
I
calvinistas como novos acadêmicos no prefácio de sua edi-
iI ção de Sexto, não há muitas outras obras que mereçam ser ., Cf.Ibíd,, pág. 95· Há uma discussão interessante desta correspondCncia no
Dictiomuzire de Bayle, vcrbc1e Buncl, l'ierre, Rem.E.
consideradas46• •' Cf.jacopo Sadolcto, Elogio del/a Sapíenza (De Laudibus 1'/Ji/oso/Jhiac), traduzi-
do c editado por Antonio Altamura, introdução de Giuseppe Toffanin, Nápoles,
«Citado da obra de Cometo De Vem Fhi/osophia em Hcnri Busson, Lc Rationa/isme 1950, pág. 206, Esta obra foi originalmente publicada em Lyon em 1538.
drms la Litterature Française, pág. 94, notr. 2. "Jacopo Sadolcto, l'haedrus, em Opera quae exstanr onmia (Verona, 1738), vol.
« Jbid., pógs. 94-106. Busson apresenta Du Fcrron como um filósofo um tan!o lU. Um sumário, que segui aqui em parte, encontra-se em Busson, op,cit.,
dilct\lntc c eclético, muito mais do que um fidcísta sério. Por motivos que .n~o págs.Ioo-roi. Esta obra é também descrita brevemente em Panos 1'. Morphos,
ficam claros, Uusson constantemente denomina estas visões derivadas do ccttc.tS· Dialogues o( Guy de Rrui.is, pág. 78. O material em f'haedrus parece baseado em
mo acadêmico de pirrônicas, o que causa uma certa confusão sobre a manetra Cícero e Diógenes Laércio. Há uma menção do pirronismo na pág, 168, mas
como o conhecimento do ceticismo grego c o interesse por ele dcsenvolvcu-s~ ~o nenhuma indicação de familiaridade com a obra de Sexto Empírico. Busson, na
século XVI, c dá uma impressão enganosa sobre a força e extensão da tradtçao nova edição de seu estudo, citada acima, diz que "estes paradoxos são na verda-
pirrônica antes de Montaignc. de um resumo do De lucertitudine scientiamm de C. Agrippa", mas nenhuma
<'Ver Schmitt, Cícero Scepticus, para um exame destas obras. evidência é apresentada para substanciar esta afirmação.

I .

II
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'i,l
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it, •.
revividos pelos humanistas e pelos paduenses ~a I~~lia. Esta da esta visão, que parece baseada apenas na incapacidade de
verdadeira filosofia não tem as falhas nem a mutdtdade do distinguir o pirronismo do pensamento acadêmicos>·,
pensamento escolástico, mas ao contrário é a fonte da verda- A obra de Sadoleto não parece ter causado muito impac-
deira sabedoria e da virtude. A pedra fundamental desta to. Em I 55 6 apareceu uma paráfrase dela em L e Courtisan
maravilhosa filosofia é a razão, e pela razão podemos desco- second de Louis Le Caron53 • Algumas semelhanças superfici-
brir os universais. Esta descoberta nos afastará do nível da~ ais entre a obra de Sadoleto e uma consideração posterior do
opiniões e dúvidas e nos levará ao conhecimento _cert~ e a pensamento acadêmico por Guy de Bruês (que será examina-
felicidade. O objeto próprio da razão é a verdade, mclumdo do em breve) apresentam indicações sugestivas, porém
especialmente a verdade da religião. Portanto, _a b~sca d_as inconclusivas, da influência de Sadoletos4. A possibilidade de
verdades da religião pertence também à verdadetra ftlos~fl~. Montaigne ter sido influenciado por Sadoleto foi examinada
Assim, contrariamente às pretensões dos fideístas academt: cuidadosamente por Villey, que mostrou ser isto improvávelss.
cos, a razão humana, quando adequadamente empregada, e Outro humanista, contemporâneo de Sadoleto, que
capaz de descobrir o verdadeiro conhecimento e pode mes- parece ter se sentido perturbado pelo fideísmo baseado no
mo alcançar 0 conhecimento mais elevado, a verdade da re- ceticismo acadêmico foi Guilherme Budé. Ele considerou esta
ligião50. . . ~ . posição como lançando dúvidas não apenas quanto à razão
A resposta do cardeal Sadoleto ao cettctsmo a~ade~t­ humana, mas também em relação às verdades reveladas:
co consiste mais em um panegírico dos méritos da ftlosof~a
antiga e da razão humana do q_oe uma resposta ao desa~to 5
Um caso ainda menos plausível é introdu2ido por Busson, op.ât., págs. 233-234,
'
cético. Sua fé extrema na capactdade do pensamento racto- e Buckley, op. cit., pág. u8, como evidência de que o pirronismo era corrente na
França na primeira metade do século XVI. Eles citam o poeta Sainct-Gelays,
nal não parece baseada em nenhuma análise gen~í~a ou res- como tendo sido o primeiro a atacar o pirronismo em seu Advertissement sur /es
posta aos argumentos dos acadêmicos. Ao contrano, ele pa- iugemens d'astrologie de 1546. Mas a única coisa que Sainct-Gclays disse foi que
rece ter tentado deslocar o centro do ataque, fazen~o _com havia apenas um caminho correto, e vários errados, várias opiniões diferentes
apresentadas sobre várias questões. "Esta foi a razão pela qual os céticos diziam
que a artilharia acadêmica se conce~trass~ nos esc~lasttcos, que todas as questões estão sujeiras a controvérsias, c que não há nada tão óbvio,
enquanto mantinha uma enlevada e mabalavel conftança nos nem tão sujeito a consenso por todos que não possa ser debatido nem tornado
duvidoso por razões aparentes, do mesmo modo que Anaxágoras esforçou-se
poderes racionais do homem, desde que adequadamente para provar em uma argumentação sofisticada que a neYe é negra." Me!in de
empregados. Sainct-Gclays, Oetwres Completes de Me/in de Sainct-Ge/ays, editadas por Prosper
Blancemain, Paris, 1873, 3 vols., Bibliothi:quc Ehévirienne, vol. ITI, pág. 248.
Tanto Busson quanto Buckley afirmam que Sadoleto Estas observações dificilmente podem ser consideradas um ataque ao pirronismo,
estava atacando os pirrônicos, sendo que _a ocor~êr:ci~ deste 5
e também não evidenciam um conhecimento da tradição pirrônica.
ataque, na visão deles, indica qu~ ? ~etictsr;to ptrron;~o e:a
' Louis Le Caron, Le Courtisan second, ou de la vrai sagesse et des /ouanges de la
phi/osophie, em Les Dialogues de Loys Le Caron, Parisicu, Paris, 1556. Esta
bastante conhecido na França no mtcto do seculo XVI · M s obra é descrita em Busson, Les sources et /e développement du rationalisme dans
não há nada na obra de Sadoleto qu~ permita se defenda esta la littérature française de la Renaissance (1530-1601), Paris, 1922, págs. 417-
418. Sobre Le Caron, ver Lucien Pinvcrr, "I.ouis Le Caron, di r Charondas, 1536-
1613", Revue de la Renaissauce, 11, r9o2, págs. 1-9, 69-76 c I8I-I88.
,. Esta questão é discutida em Morphos, op. cit., págs. 78-79. As citações em Busson,
'"A visão positiva de Sado!eto encontra-se sumariada em Busson, op._cit., ~ágs.JOI­
~e Ratimwlisme dans la Littirarure Frauçaise, pág. 101, n. 2, mostram que a
Ilustração comum que consistia em comparar Deus com o rei da Pérsia ocorre
I03 onde várias citaçõe~; são feitas. Ver também Morphos, op.clt., pag. 78. O também em outras obras .
.' 1·!SIDO re 1·Jgtoso
racmna · d•~ S•d•lo<~
a u u vai além da visão dos pensadores usualmente 55
Cf. Pierre Villey, "Momaignc a-t-il lu \e Trai! é de l'Éducation dcJacqucs Sado\et?",
classificados como paduenses. . - h E 11 em Bul/etin du B1bliophi!e et du Bibliothécaire. 1909, págs. 265-278. A sugestão
'' Cf. Busson, op. cit., pág. 233; c George T.Buckley, Atlmsm m t e ng ts 1 de que isto poderia ter ocorrido foi de Joscph Dedieu, "Montaigne et \c Cardinal
Renaissance, Chicago, 1932, pág. II8. Sadolet", Bul/etill de Littérature Ecclésiastiqw;, ser. IV, vol. 1, 1909, págs. 8-22.

64
Gs
ve~dadeir: filos?fia é livre na avaliação e juízo que faz das
Oh Deus, Oh Salvador, miséria, falha vergonhosa e cmsas, e nao esta presa a uma opinião ou a um autor">8,
ímpia: acreditamos nas Escrituras e na Revelação Para alcançar este objetivo, Talon traçou a história do
apenas com dificuldade{ ...]este é o resultado de fre- movimento acadêmico, tal como apresentada por Cícero de
qüentarmos as cidades e as multidões, senhoras de Platão a Arcesilau e Carnéades, examinando suas raízes'em
todos os erros, que nos ensinam a pensar de acordo
Sócrates e no pen~a~ento pré-socr~tico, c indicando a lógica
com os métodos da academia c de não considerar nada pela qual os acadcmtcos chegaram a conclusão de que não se
como certo, nem mesmo o que a Revelação nos ensi- deve emitir um julgamento acerca de nenhuma questão. Os
na sobre os habitantes do céu c dos infernoss6 , a~adêmicos, afi~m~~ Talon seguindo Cícero, "são tão supe-
nores aos demats ftlosofos quanto homens livres são superi-
É difícil dizer a quem Budé está criticando, uma vez que os
~res a escra~os, os sábios superiores aos tolos, os espíritos
acadêmicos que encontramos, como Fedro, isentam o conhe-
ftrmes supenores aos obstinados"s9.
cimento religioso de seus ataques céticos. Esta exposição acerca da posição dos céticos acadêmi-
Uma década mais tarde um interesse mais desenvolvi-
cos, por ~lguém q~e aparentemente aceita esta filosofia, pa-
do pelo pensamento acadêmico é encontrado no círculo de rece ter stdo a mats completa e fiel apresentação do ceticis-
Pedro Ramos. Um de seus amigos, Omer T alon, escreveu uma
mo na versão de Cícero. Talon, entretanto, acrescentou uma
longa e favorável exposição deste tipo de ceticismo e de seu nova conclusão, o que ocorreu com quase todos os nouveaux
prolongamento fideísta, enquanto que outro, Guy de Brues,
academiciens c os nouveaux pyrrhoniens dos séculos XVI e
escreveu um diálogo que se pretendia uma refutação deste
XVII, a saber, a distinção entre um ceticismo referente à ra-
ponto de vista. Ramos ele próprio discutiu as várias escolas
zão e um ceticismo religioso.
céticas de filosofia usando material de Cícero, Diógenes La-
ércio e de outras fontes, e embora mencione Sexto Empírico,
O que então deve ser feito? Não devemos acreditar em
não há nenhuma indicação de que de fato conhecia sua obra.
nada sem um argumento decisivo, devemos nos abster
Ramos nunca manifesta uma real adesão ao ceticismo aca-
de aprovar qualquer coisa sem uma razão evidente? Ao
dêmico, apesar de ter sido acusado de ser um nouveau
contrário, no que diz respeito a questões religiosas uma
academiciens7, fé segura e sólida terá maior peso do que todas as de-
Em I548 Omcr Talon publicou uma obra intitulada
monstrações de todos os filósofos. Minha dissertação c.;-
Academica, que consistia principalmente em uma apresenta- se aplica apenas à filosofia humana, na qual é necessá~
ção da visão de Cícero do ceticismo acadêmico. O objetivo do rio ter conhecimento antes de acreditar. Com relação
livro de Talon era, aparentemente, justificar os ataques de
aos problemas religiosos, que vão além do entendimen-
Ramos a Aristóteles e ao aristotelismo e "libertar os homens to, ao contrário, é necessário primeiro acreditar para
obstinados, escravos de crenças determinadas em filosofia e depois alcançar o conhecimento" 0
.-,

reduzidos a uma servidão indigna; fazendo-os entender que a

'"Citado em Busson, Le Ratioua/isme dans la Littérature Française, pág. 143, a '


8
Citado em Hcnri Busson, Le Rationa/ismc dans la Littérature Fraw,ise p;g
partir do De Transitu Helleuismi de Budé. Busson, pág. 143, n. 2, interpreta o 235· ,.,.. ' ' .
ponto de vista que Budé está comentando como sendo o pirronismo, mais uma
~: C~tado em Busson, te Rationalisme, pág. z36.
vez confundindo os dois tipos de teoria> céticas. Cnado em ihid., pág. 237.
" Citado em ibid.

66
'!I
I
Mais uma vez, a argumentação cética é ligada a um fideísmo O objetivo de Ramos e Talon, segundo Galland, só poderia
completo em relação às crenças religiosas. ser atacar os Evangelhos após ter arruinado toda a filoso-
Em conseqüência da obra de seu amigo Omer Talon, fia6l,
Pedro Ramus viu-se acusado de ser um nouveau academicien. Alguns anos depois um outro membro do círculo de
Tanto Ramus quanto Talon concordaram no ataque ao Ramos, Guy de Bruês, escreveu uma crítica muito mais mo-
aristotelismo como uma filosofia não-cristã e anticristã. T alou derada aos nouveaux academiciens em seu Les Dialogues de
chegou mesmo a rotular Aristóteles como o "pai dos ateus e Guy de Brues contre les Nouveaux Academiciens de 1557·
fanáticos" 6 '. Em resposta, Galland, um professor que lecio- O autor pertencia, provavelmente, a uma família de juristas
nava no Collêge de France, escreveu uma obra intitulada de Nimes e nasceu entre 1526-rs3664 • Por volta de 1555 aju-
Contra novam academiam Petri Rami oratid\ na qual acu- dou Pedro Ramos, traduzindo algumas citações de autores
sa os dois antiaristotélicos de quererem substituir a filosofia latinos para a edição francesa da Dialetique, e nos Dialogues
peripatética pelo ceticismo da nova academia. Depois de de- de Bruês emprega material derivado de Ramus 65,
fender Aristóteles da acusação de não ser religioso, Galland Os Dialogues, eles próprios, têm a peculiaridade de
ji
passou a acusar Ramos e seu amigo deste crime, devido a seu que os personagens que discutem os méritos do ceticismo
'" ceticismo. acadêmico são quatro contemporâneos de Guy de Bruês com
'"
os quais ele se relacionava: o grande poeta Pierre de Ronsard,
Jean Antoine de Balf, Guillaume Aubert e Jean Nicot, todos
,I Todas as outras seitas, incluindo até mesmo a de
Epicuro, se ocupam em salvaguardar alguma religião, relacionados à Pléiade. Balf e Aubert argumentam em favor
II enquanto que a academia se empenha em destruir to-
das as crenças, religiosas ou de outro tipo, nas mentes
da causa dos céticos, enquanto Ronsard e Nicot a refutam. É
difícil saber se os Dialogues de fato se referem a um evento

I dos homens. Assumiu a luta dos Titãs contra os deu-


ses. Como pode acreditar em Deus aquele que man-
histórico ou mesmo a uma discussão entre os membros do
grupo de Ronsard 66,
tém que nada é certo, que passa seu tempo refutando Os Dialogues consistem em três discussões, a primeira
as idéias dos outros, que recusa toda credibilidade a sobre epistemologia e metafísica, a segunda sobre ética e a
seus sentidos, que arruína a autoridade da razão! Se terceira sobre direito. Os céticos, Balf e Aubert, argumentam
ele não acredita naquilo que experimenta e quase toca,
como pode ter fé na Natureza Divina que é tão difícil
de se conceber? '' Cf. Busson, Le Rationalisme dans la Littérature Frm•çaise, págs. 269-271. A
passagem citada se encontra na pâg. 271.
'• !'ara um exame de toda a informação disponível, além de algumas conjecturas
sobre a biografia de Guy de Bruês, ver Panos Paul Morphos, The Dialogues of
G11y de Bnús. A Critica/ Edition witb a St11dy i11 Reuaissauce Scepticism and
Relativism, págs. 8-19.
'' Sobre Ramus e de Bruês, ver Morphos, op.cit., págs. 15-16, c seções 88 e r I3-
61 Citado em ibid., pág. 268. II4 da edição dos Dialogues feita por Morphos c encontrada nessa obra; ver
6
' 1'. Galland, Contra Novam Academiam Petri Rami Oratio. Lutetiae, 1551 (há também Thomas Grccnwood, "G11y de Rmi!s", Bibliothi!que d'Humanisme et
uma cópia desta obra na Ncwberry Library de Chicago). Busson, em Le Renaissance, XII, 1951, págs. 8o c 181-184-
Rationalisme dm1s la Lirtérature Française, págs. 269-271, indica que Galland .. Sobre de Bruês e a Pléiade ver Morphos, op.cit., pãgs. 19-25 e 71-73. Morphos
mantinha a posição dos paducnses. Thomas Grccnwood, em seu "L'édosion de conclui, "Face à evidência disponível, nossa conjectura é que Bruês reproduz o
scepticisme pendam la Renaissancc ct lcs premiers apologistes", Revue de contexto das reuniões e discussões mantidas por Ronsard c seus amigos, bem
I'U>ziversité d'Ottawa, XVII, 1947, pág. 88, nega isto, mas não oferece nenhuma como o caráter geral dessas conversações, muito mais do que as posições reais de
evidência de sua posição. cada um", pág. 73· Ver também Greenwood, "Guy de Brui:s", pág. 70-82.

68 69

lili , , '
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'I
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que as idéias éticas e jurídicas são simplesmente opmtoes, Como resultado disto, Balf sugere que a verdade só pode ser
esboçando um relativismo ético acerca de qualquer conside- encontrada nas Escrituras7'. Com base neste retrato sobre
ração sobre valores. São refutados, com argumentos um tan- como os homens sábios discordam entre si, Balf justifica o
to fracos, por Ronsard e Nicot, mas se sentem convencidos, seu ceticismo.
e felizes por ter sido refutado o ceticismo. O primeiro diálo- Se este argumento em favor do ceticismo não tem a
go é o mais filosófico, enquanto que os dois últimos parecem mesma força da crítica dos céticos antigos à razão humana, a
representar o principal interesse do autor, bem como consti- defesa da razão por sua vez é até mais fraca. Ronsard indica
tuem o que seria uma interessante aplicação._do ceticismo a que se o ceticismo fosse verdadeiro, os homens seriam redu-
problemas de ética prática. zidos a animais. Mas, felizmente, os homens de juízo equili-
O argumento filosófico em defesa do ceticismo desen- brado concordam entre si, porque seus sentidos, quando usa-
volvido por Balf no primeiro diálogo baseia-se na posição dos adequadamente, são precisos. O senso comum e o racio-
I ética de que os homens que se conduzem naturalmente estão cínio são capazes de descobrir verdades de caráter geral a
I partir dos dados da sensibilidade. Nosso intelecto é capaz de
em melhor condição do que se estivessem em um mundo or-
I denado moralmente, já que as prescrições morais são na ver- conhecer as essências reais, independentemente dos sentidos,
I dade opiniões fantasiosas, responsáveis pela introdução de por meio de algum tipo de consciência de idéias inatas. Com
' este tipo de combinação de ingredientes das teorias do co-
idéias antinaturais e perversas como castigo, propriedade
privada etc. 67 Ronsard responde a isto insistindo que nossos nhecimento de Platão e de Aristóteles, Ronsard defende a
padrões de valores são baseados na razão, e que não há uma tese de que o conhecimento genuíno é possível mesmo que
bondade natural c primitiva68 • Balf contesta dizendo que as acerca de certos assuntos só sejamos capazes de ter uma boa
leis são opiniões sem base em nenhuma evidência racional 69, opinião 7 ~. Ba"if desiste de seu ceticismo e aceita esta teoria,
Esta posição o leva a um argumento genérico contra declamando, "Ó miserável Pirro, que transformou tudo em
todas as realizações racionais humanas, baseado em materi- opiniões e indiferença! " 73 Os outros dois diálogos seguem
' al derivado de Cícero e Diógenes Laércio. O argumento de um esquema semelhante, ambos procurando dar uma solu-
"!I Balf não consiste propriamente em uma análise epistemológica ção para as questões céticas sobre a variedade de opiniões e
dos antigos céticos, mas sim em uma listagem da diversidade tentando convencer os céticos.
I das opiniões humanas sobre todos os assuntos. Ele está dis- Brues, na epístola dedicatória ao cardeal de Lorena e
posto a abandonar a idéia cética central de que os sentidos no prefácio, diz que seu objetivo era salvar os jovens que
I, não são confiáveis, mas insiste que mesmo que fossem preci- seriam desviados da religião pelas dúvidas céticas74, Uma vez
sos, os cientistas e filósofos ainda assim teriam divergências que os céticos nos Dialogues não se defendem com vigor nem
sobre todas as coisas; portanto, seus pontos de vista não são
objetivos, mas apenas opiniões pessoais. Listagens e mais
'' Ibid., sec. 70, "Tudo que os homens inventaram, c pensaram saber, é apenas
listagens são apresentadas para mostrar a variedade e diver- opinião e ilusão, exceto o que é ensinado pelas Escrituras Sagradas". Morphos
gência de pontos de vista sobre todo o tipo de questão7°, insiste que o ponto de vista de Balf aqui não é um fideísmo autêntico, como o de
Agrippa, mas apenas um expediente e uma conclusão temporária, uma vez que
Bai'f não tem a fé nem o ardor de Agrippa c de outros fidcístas ardorosos. Cf.
"'De BruCs, Dialogues, seção s-8. Morphos, ap. cit., págs. 35 c 77-78.
•• Ibid., ~eçào 9-10. ''De BruCs, Dialogues, seção I3l-JJ6.
'·• Ibid., seção t i e seguintes. "Ibid., seção 139 c seguintes.
'' lbid. Dialogue I, até a seção 97· "lbid. Epístola e prefácio na edição de Morphos, págs. 87-92.

70 7'
se abatem diante de uma resposta convincente, mas simples- cética" 78 • Mais plausível é a visão segundo a qual esta obra
mente desistem sem grande resistência, é difícil de ver como representa uma explofação provisória do ceticismo que emer-
esta obra seria capaz de cumprir este seu objetivo. A medio- ge da observação da relatividade das opiniões humanas e das
cridade da resposta ao ceticismo acabou por levantar a con- possíveis conseqüências disto em uma moralidade aplicada,
sideração da possibilidade de que Bruês de fato estivesse do um tema que bem pode ter surgido nas discussões sobre o
lado dos céticos, porém com medo de admitir isto (embora ceticismo acadêmico e a suposta nova academia, no círculo
não haja nenhuma indicação de que adotar o ceticismo em em torno de Ramus e da Pléiade. Bruês dificilmente pode ser
1557 traria sérios problemas para alguém)7s. Outros insisti- considerado como tendo o zelo anticético de seu admirador
ram que mesmo que sua refutação do ceticismo seja fraca, atual, o professor Greenwood79,
não resta nenhuma dúvida de que Bruês estava tentando al- O impacto da obra de Bruês foi fraco senão mesmo
cançar o propósito ortodoxo de responder ao ceticismo de nulo. Busson cita P. Boaistuau, em Le Théatre du Monde de
modo a salvaguardar a religião dos que duvidavam7G, 1558, como se referindo à obra de Bruês contra os nouveaux
Mas mesmo que não possamos determinar com preci- academiciens como uma fonte 80• Villey mostrou que os Dia·
são qual a posição do autor, os Dialogues de Bruês são inte- Jogues foram uma das fontes de Montaigne8 ',
ressantes porque demonstram a preocupação com as idéias Essas várias indicações do interesse pelo ceticismo an-
céticas e a relevância destas idéias para as discussões em tigo na primeira parte do século XVI são o que Villey cha-
meados do século XVI. A esta obra falta uma compreensão mou de "pequenos fogos de ceticismo que. lançam um pálido
séria da força e da natureza do ceticismo grego, possivel- e breve brilho de luz e logo desaparecem" 8 ~. Nenhuma das
''i mente porque, como sugeriu Villey, Bruês não conheceu "os figuras que consideramos são particularmente competentes
irresistíveis argumentos de Sexto", mas apenas a apresenta- enquanto pensadores; nenhum deles parece ter descoberto a
ção menos filosófica do ceticismo antigo em Cícero e em verdadeira força do ceticismo antigo, possivelmente porque,
Diógenes Laércio. A virtude desta Obra reside talvez no fato à exceção do jovem Pico, conheceram apenas as apresenta-
de que "Bruês sintetiza de certa forma a inquietação e a in- ções menos filosóficas encontradas em Cícero e Diógenes
certeza que se sentia em toda parte e que os Academica de Laércio, ou possivelmente ainda porque ficaram desconcer-
Cícero ajudaram a tornar mais claras" 77• Busson e Greenwood tados com a profusão de desavenças que sempre existiram
vêem os esforços de Bruês como parte de um grande retrato entre os homens acerca de questões intelectuais.
dos primeiros apologistas a lutar contra um conjunto de De qualquer forma, antes da publicação de Sexto
monstros renascentistas surgindo do aristotelismo de PádUa, Empírico não parecem ter havido muitas considerações filo-
do pirronismo etc.; alinham Bruês junto a um movimento sóficas sérias sobre o ceticismo. Busson tentou interpretar as
contínuo no séc. XVI de lutas contra todo o tipo de "irreligião
" Busson,_ Les So11rces et /e développement, págs. 419-423, e Grecnwood,
"L'édosJOn du sccpticismc", págs. 95·98 (este artigo é quase todo baseado em
"Cf. Morphos, op. cit., pág. 7; e Busson, Les Sources et /e déve/oppement, pág. Busson, sem indicação disto. Busson omite esta seção na edição revista de sua
423. Outra discussão da obra de Brui:s em George Boas, Domiuant Themes o( obra).
Modem l'hi/oso{Jhy (Nova Iorque, 1957), págs. 7.1-74, conclui com a sugestão '• Os horrores do ceticismo são um tema constante no "L'édosion du scepticisme"
de que a profundidade com que Brui:s define as teses do ceticismo pode indicar de Grccnwood.
8
que de fato de estava advogando o ceticismo c não refutando-o. " Busson, Les So11rces et /e dêveloppemeut, pag. 4;-.5.
11
'" Ver, por exemplo, Grccnwood, "Guy de BruCs", pág. 268, c Grccnwood, Villcy, op.ât., H, pág.172. As controvérsias de Talon, Galland e Brui:s são cxa·
1

"L'édosion do seeptieismc", págs. 97·98. minadas em detalhe por Schmitt em Cicero Sceptims, págs. 81-108.
11
Picrre Villey, Sources et l'Evolutiou des Essais de Mnutaigue, 11, pág. 173· "Villey, op. ât. 11, pág.165.

73
poucas obras tratando do ceticismo ~cadêmico como um si- Memmius, com o qual ele primeiro brinca em um tom cético
nal de um vasto movimento intelectual desenvolvendo-se a sobre seu trabalho. Em seguida, explica como encontrou Sex-
partir do impacto do pensamento de Pád.ua na França83 • E~­ to, relatando que no ano anterior tinha estado doente e du-
tretanto embora sem dúvida tenha havtdo um desenvolvi- rante esta doença desenvolveu uma repulsa pelas belles-lettres.
mento c~njunto, 0 aristotelismo dos pensadores italianos e~­ Um dia, por acaso, descobriu Sexto entre a coleção de ma-
tava muito distante do pensamento cético, exceto no que dtz nuscritos de sua biblioteca. A leitura desta obra fez com que

respeito a suas conclusões finais fidcístas. Os ~aduens~s era~
li racionalistas confirmados, cujos pontos de vtsta em ftlo~ofta
risse, e aliviou sua doença (de algum modo, aparentemente
como pretendia Sexto, por ser o ceticismo como um purgan-
li!·I eram 0 resultado da aceitação de uma certa visão filosóftca e te). Percebeu quão inútil era toda a cultura, e isto curou seu
J.:' de construções racionais que eram parte disto. ?s céticos, ao antagonismo contra as questões eruditas, fazendo com que
contrário, negavam ou duvidavam do ~r~cedtmento e das as levasse menos a sério. Ao revelar a temeridade do
i bases dos aristotélicos por completo. O umco ponto em que
havia acordo entre ambos era a posição segu~d~ a .qual ~s
dogmatismo, Estienne descobriu o perigo dos filósofos que
procuram julgar todas as questões, especialmente as teológi-
artigos de fé não podiam ser sustentados p~r evtdencms raci- cas, por seus próprios critérios. Os céticos pareciam superio-

;I
I onais e deveriam ser objeto de crença e nao de demonstra-
ção. As poucas discussões do ceticismo anteriores .a 15~62
res aos filósofos cujo raciocínio finalmente culminava em
pontos de vista perigosos e ateus.
'!' podem ter ocorrido his~?ricame.n~e no contex.to da :nflue~­ À luz de tudo isso, Estienne sugeriu, em sua introdu-
!:'I
;;
cia de Pádua, mas as idetas se ongmaram de dtscussoe~ anti- ção, em primeiro lugar que esta obra poderia servir de cura
!i gas sobre 0 ceticismo. Longe de serem o ponto culmmante para os filósofos ímpios de seu tempo, trazendo-os de volta a
do aristotelismo italiano, como Busson sugere, parece~ ser posições sensatas; e em segundo lugar, que a obra de Sexto
I devidos mais à redescoberta isolada da filosofia do helemsmo.
Aqueles que escreveram sobre o ceticismo não parecem ter
poderia ser uma boa síntese da filosofia antiga; e por fim,
seria de utilidade para os estudiosos interessados em ques-
estudado as obras uns dos outros, nem parecem pre~c?pa­ tões históricas e filológicas.
dos com unia análise filosófica séria dos problemas cettco~. Caso alguém argumentasse que era perigoso publicar
Foi apenas após a publicação das. obr_a~ de. Sexto que o ceti- a obra de um autor que declarava guerra à filosofia, Estienne
cismo tornou-se um movimento ftlosoftco tmportante, espe- respondia que Sexto ao menos não era tão nocivo quanto
cialmente como resultado de Montaigne e de seus discípulos: aqueles filósofos que não são capazes de salvaguardar seus
Ao publicar as Hipotiposes de Sexto .em 1562, Henn dogmas por meio de argumentos decentes. Uma vez que os
Estienne apresentou suas razões para tr?duzt~ esta obra, be~ argumentos de Sexto são mais sutis que verdadeiros, não há
como sua avaliação dela. A obra e dedtcada a Henn motivo para temer nenhuma conseqüência desastrosa já que
a verdade resplandecerá mais vivamente após os ataques do
pirronismos4,
" Esta tese é mantida ao longo de toda a obra Sources et /e d1veloppement .du
rationalisme e da versão revista Le rat10nalisme ~~~~~~ la littera;ure (rançmse.
Veja-se, por exemplo, as págs. 258 c 438-439 na prm.lCira, e as pags. :!.33 c 4l0-
4n, na última. De uma forma mais extrema esta c a te.sc ~c. G.~ecnw~od no '• Cf.. o prefácio de Henri Estienne a Sexto Empírico, Pyrrhouiarum Hypotipwsewn,
"L'éclosion du sccptidsmc". Tanto Villey qu~nto Strow~.k• mLmmnam a J_mpor- ed1ção de 156:.:., págs. 2-8. Este prefácio foi traduzido para o francês nas Ouevres
tânda do pensamento cético anterior a I>.;~ontmgnc. Ver VLllcy, op. Clt. li, pag.165 Choisies _de Sexto Empírico, trad. de Jean Grenier c Genevii:vc Goron (Paris,
c Strowski, MontaigiiC, pág. no c segumtcs. 1948), pags. n-;:o,4,

74
75
'1'1
'
,I
il
i Em contraste com a leveza da apresentação de Esticnnc,
I No diálogo La Cena dele Ceneri de 1584 há uma refe-
do que mais tarde será chamado de "o m'ortífero veneno rência aos efettici e pirroni que professam não serem capazes
pirrônico" 8 ', Gentian Hervet ofereceu razões semelhantes po- de conhecer nada87, No diálogo Cabala del Cavallo Pegaseo
rém mais sombrias para a sua edição de I569. Em sua epís- de 1585 há vários comentários acerca dos efettici e pirroni.
tola dedicatória a seu patrão, o cardeal de Lorena, Hervet Saulino, no primeiro diálogo, afirma que estes pensadores e
relata ter encontrado um manuscrito de Sexto na biblioteca outros como eles mantêm que o conhecimento humano é
do cardeal em um momento que se encontrava exausto de apenas uma forma de ignorância e compara o cético com um
suas atividades na Contra-Reforma e de seu trabalho sobre asno que não quer e não pode escolher entre duas alternati-
os padres da Igreja. Tomou o manuscrito para lê-lo como vas. Passa, em seguida, a elogiar o ponto de vista cético, afir-
uma distração durante suas viagens. Então, segundo relata, mando que o máximo de conhecimento que podemos ter é
após tê-lo lido com um prazer incrível, achou que se tratava saber que nada é conhecido ou pode ser conhecido; da mes-
de uma obra de grande importância por mostrar que nenhu- ma forma isto indica que ninguém é mesmo mais capaz do
ma forma de conhecimento humano é capaz de resistir aos que um asno, de fato não somos mais do que asnos. Esta
argumentos que lhe são opostos. A única certeza que pode~ visão é atribuída aos socráticos, aos platônicos, aos efettici,
mos ter é a da Revelação Divina. Em Sexto encontramos mui~ aos pirroniani e a outros como cstes 88 •
tos argumentos contra os pagãos e heréticos de sua época, os No segundo diálogo, Saulino.faz uma distinção entre
quais procuravam medir as coisas pela razão, e que não com~ os efettici e os pirroni, que Sebasto desenvolve fazendo uma
preendem porque não crêem. Em Sexto podemos encontrar análise do ceticismo. Os efettici são identificados com os cé-
uma resposta adequada aos nouveaux academiciens e aos ticos acadêmicos, aqueles que afirmam que nada pode ser
calvinistas. O ceticismo, ao levantar controvérsias sobre to- conhecido, enquanto que os pirroni sequer sabem isto ou
das as teorias humanas, curará as pessoas do dogmatismo, afirmam tal coisa. Os pirroni são então considerados como
dando-lhes humildade e preparando-as para aceitar a dou- sendo mais asininos que os efettici89, No discurso subseqüen-
trina de Cristo 86 • te, feito por Onorio, algumas das informações c a própria
Esta visão do pirronismo por um dos líderes do catoli- fraseologia parecem ser derivadas diretamente da obra de
cismo francês iria determinar a direção de uma de suas prin- Sexto9°, Assim, parece que Bruno teve contato com os escri-
cipais influências nos próximos três quartos de século. Logo tos de Sexto, considerando suas idéias suficientemente inte-
após a publicação de Sexto, entretanto, encontramos sinais ressantes para serem incluídas e comentadas em sua discus-
de que sua obra estava sendo lida por razões filológicas c são das diferentes teorias.
como fonte de material sobre a filosofia antiga. Um destes
leitores foi Giordano Bruno que discutiu o pirronismo em 07
Giordano Bruno, La Cena de /e Cencri, em Opere ltaliaue, ~ vols., editado por
alguns de seus diálogos. Giovanni Gentilc (Bari, 1925-27}, I, pág..~6. ·
"Bruno, Cabala de! Cava/lo Pegaseo, em Opere Italiane. II, pág. 266-267 c 270.
'• lbid., li, pág. 289-291. Esta distinção entre os dois grupos não está de acordo
com os usos nem de Sexw Empírico nem de Diógenes Laércio. Sexto em H.P. I,
''Uma expressão atribuída ao filósofo católico inglês do séc. XVII Tbomas Wbitc, §7, trata "cético", "zetético", "cfético'" e "pirrónico" como tcnnos equivalentes·
no artigo sobre "Thc Pyrrbonism o f Joseph Glanvil\", na Retrospective Review, c Diógenes, I, §16, usa "efético" para referir-se ao oposto de "dogmático", in~
I (I8SJ}, pág. 106. cluindo tanto pirrônicos quanto acadêmicos.
"' Prefácio de Hervet à edição de 1569 dos Adversus Mathematicos de Sexto ""Bruno, Cabala, Il, pág. 291, e Gentil e notas 4 c 6. A passagem referida na nota 6
Empírico, págs. a2-a3. Este prefácio será examinado mais tarde em relação ao se encontra em H. I~ III, caps. 27-29, §§252-256, especialmente §252. que parece
ceticismo e a Contra-Reforma na França. ter sido em sua maior parte simplesmente traduzido.

77
,,
1

1.,, . , I
Um outro autor italiano deste período, Marsílio que quase todos possuíam96 • A posição pirrônica é apresen-
Cagnati, um doutor em medicina e filosofia, apresenta uma tada apenas em linhas gerais, enquanto que mais detalhes e
breve discussão das obras de Sexto em seu Variarum críticas são dados acerca dos principais pensadores acadêmi-
Observationum de rs87. Um capítulo9' é dedicado à discus- cos, Carnéades e Arcesilau. Ao final da obra, o autor explica
são da biografia de Sexto, sua carreira médica, se Sexto foi que teria discutido estas questões de forma mais completa se
mesmo sobrinho de Plutarco9 ' e se se trata do mesmo Sexto a o texto grego de Sexto estivesse disponível. As traduções la-
que se refere Porfírio. O interesse por Sexto parece exclusi- tinas, especialmente as de Hervet, ele considerava inadequa-
vamente histórico e não filosófico. Um uso semelhante de das para um exame mais sério e portanto não desejava de-
Sexto como fonte histórica aparece no Manuductionis ad pender delas9 7 • Valentia mantinha que seu exame do ceticis-
Stoicam Philosophiam de Justus Lipsius. Nesta obra, ao dis- mo antigo deveria ter um valor filológico e também filosófi-
cutir a divisão dos filósofos em dogmáticos, acadêmicos e co. Ajudaria na compreensão de vários autores antigos como
céticos e ao explicar quem eram os céticos e no que acredita- Cícero, Plutarco e Santo Agostinho. Mais importante ainda,
vam, Lipsius se refere aos escritos de Sexto Empírico93 . este exame nos faria perceber que os filósofos gregos não
Há uma obra interessante por Petrus Valentia que apa- haviam encontrado a verdade. Aqueles que a buscam, devem
rentemente foi pouco conhecida em sua época, mas que foi desviar-se dos filósofos em direção a Deus, já que Jesus é o
lida seriamente no século XVIII 94. Em 1596 este autor publi- único sábio9 8• Portanto, não devido aos argumentos céticos,
cou Academica, uma história do ceticismo antigo bastante mas pelo estudo da história do ceticismo, presumivelmente
objetiva, tratando dos movimentos acadêmico e pirrônico se chegaria à mensagem fideísta de que a verdade é encontra-
'
até meados do período do helenismo95 • Sexto é, é claro, uma da pela fé e não pela razão.
' das principais fontes e Valentia descreve sua obra como algo Em uma perspectiva mais filosófica, duas sérias apre-
'i! sentações do ponto de vista cético, uma escrita por Sanchez c
outra por Montaigne, apareceram cerca de vinte anos após a
primeira edição de Sexto. Antes de examinarmos a visão de
•• Marsilio Cagnati, Veronensis Dnctoris Medici ct Philosophi, Variamm Montaigne, que será o assunto do próximo capítulo, preten-
Observationum Libri Quawor, Roma, 1587, Lib. III, cap. VI, "De Sexto, quem
empiricum aliqui vocant", págs. 203-206.
do concluir este exame do ceticismo do século XVI com uma
''Este problema irritante ocorre em toda a literatura sobre Sexto do século XVI ao discussão da obra de Sanchez.
século XVIII. Cagnati distingue corretamente Sexto Empírico de Sexto de O único cético do século XVI, além de Montaigne, que
Queronéia, o sobrinho de Plutarco.
•• Juste Lipsc, Mmmductiouis ad Stoicam Philosophiam Lihri Tres (Antuérpia, alcançou um certo reconhecimento como pensador foi o
1604), Lib. ll, dissert. Ill e IV, págs. 69-76. Isaac Casaubon também utilizou
Sexto para informações filológicas c históricas, possuindo seu próprio manus-
crito grego, atualmente na King's Library do British Muscum, o qual de tomou •• Ibid., pág. 27.
de seu sogro Henri Esticnnc. Cf. Mark Pattison, Isaac Casaubon 1559-1614, "Ibid., pág.123. A discussão do pirronismo se encontra nas págs. 27-33.
:z.a. ed., Oxford, 1892, págs. 30-31. •' Ibid., págs. I23-124. "Verum cnimucró illud intcrim his admonemur, Graecos
•• No século XVIII a obra de Valentia apareceu na ~dição de Durand dos humanumquc ingenium omne sapientiam quaerere sibique & aliis promittere,
Academiques de Cícero como Les Acadcmiques ou des Moycns de ]uger du quam tamen ncc invenire nec praestare uuquam posse. Qui igitur vcra sapienria
Vrai: ouvragc puisé daus les sources; par Pierre Vaie>Jce. Ver, por exemplo, a indigcrc se mecum sentiet, postulet non ab huiusmodi philosophia; sed à Oco,
edição de 1796 dos Academiques de Cícero ua qual o livro de Valentia se encon- qui dat omnibus affluemcr & non impropcrnt. Quod siquis videtur sapiens esse
tra entre as págs. 327-464. O livro foi também resumido e resenhado na in hoc seculo, fiar stultus, ut sit sapicns: Abscondit enim Deus verum sapientiam
Bibliothi!que Britamlique, XVill, Out.-Dez. 1741, págs. 6o-146. a falsac sapicntiae amaturibus, revelar verO paruulis. lpsi soli sapienti per lesum
"' l'etrus Valentia {Valencia), Academica sive De Iudicio erga vemm, Ex ipsis Chtistum gloria. Amen. H Sobre Valentia, ver Schmitt, Cícero Scepticus, págs.
primis {rO>Itibus, Antuérpia 1596. 74·76.

79
:.''•

médico português Francisco Sanchez (ou Sanchcs), 1552- Seu Quod nihil scitur foi escrito em 1576 e publicado
r623, que ensinou em Toulousc. Seu Quod nihil scitur99 re- em rs8r. Esta obra difere radicalmente das outras conside-
cebeu muitos elogios c foi bastante discutido. Com base nis- radas antes neste capítulo na medida em que se trata de um
to o grande pirrônico Picrre Bayle, em um momento de exa- livro de filosofia de valor próprio. Nela Sanchez desenvolve
gero, disse a propósito de Sanchez, "Ele foi um grande seu ceticismo por meio de uma crítica intelectual do aristo-
pirrônico" '"". telismo, muito mais do que apelando para a história da estu-
Sanchez nasceu em 1552 em Tuy ou em Braga, de pais pidez humana ou para a variedade e contrariedade das teori-
judeus que tinham se tornado cristãos. Devido às turbulênci- as anteriores. Sanchez começa afirmando sequer saber que
as da época, tanto religiosas quanto políticas, a família mu- nada sabe' 0 ~. Procede então a uma análise passo a passo da
dou-se para Bordeaux, na França. O jovem Francisco Sanchez concepção aristotélica de conhecimento para mostrar por que
estudou no Colégio de Guyenne, depois viajou pela Itália isto ocorre.
por um período e finalmente graduou-se em Montpellier. To da ciência começa com definições, mas o que é uma
Tornou-se professor de filosofia e de medicina em Toulouse definição? Ela indica a natureza do objeto? Não. Todas as
onde foi muito bem-sucedido e famos0' 0 ' . definições são apenas definições nominais. Definições nada
mais são do que nomes arbitrariamente impostos às coisas
como por um capricho, não tendo nenhuma relação com as
•• Francisco Sanchez, Quod 11ihilsci/llr, em Sanchez, Opem Philosophiw, editada coisas de que são nomes. Os nomes mudam o tempo todo, de
por Joaquim de Carvalho, Coimbra, 1955· Na literatura o último nome do au- tal modo que quando achamos que estamos dizendo algo
tor aparece tanto na forma portuguesa Sanchcs, quanto na espanhola, Sanchcz.
Aparentemente nasceu em Portugal de família de judeus espanhóis que eram sobre a natureza das coisas ao combinar pala~as e definições,
couversos. Viveu na França a maior parte de sua vida c lá seu nome era grafado estamos apenas nos iludindo. E, se os nomes atribuídos a
S:mchcz.
1
"" Baylc, Dictiomuúre, verbete, "Sanche1., François". Qualquer um que tenha cite-
determinados objetos, p. ex. ao designarmos o homem, como
gado até a este ponto na leitura do Diciowírio de Bayle deve ler o verbete seguin- "animal racional", todos têm o mesmo significado, então são
te sobre Thomas Sanchez, jesuíta espanhol, antes de devolver a obra às estantes.
Este é um dos verbetes mais surpreendentes de todo o Dicionário. O final de
supérfluos e não nos ajudam a explicar o que é o objeto. Por
Rem.C pode ser a fome das observações de Humc no Treatisc of Hwmm Naturc, outro lado, se os nomes têm significados diferentes do obje-
Sdby-Biggc ed., pág. r 14, livro I, parte III, sec. IX. to, então não são realmente nomes do objeto' 03, Por meio
'"'Para detalhes biográficos, ver o "Prólogo" por Marec!ino Mcnêndez y Pelayo,
págs. 7-9 da tradução para o espanhol de Quod tribil sâtur, Que 11ada se sabe desta análise Sanchez adota um nominalismo radical.
(Colccción Camino de Santiago no 9, Buenos Aires, 1944). Ver tambêm o mate- Após a consideração das definições Sanchez passa ao
rial introdutório por Carvalho em sua edição da Opera Philosophica onde ele
indica que a data de nascimento pode ter sido 1551. Uma boa quantidade de exame da noção aristotélica de ciência. Aristóteles define a
dados biográficos se encontra também no estranho livro de John Owen, The ciência como "uma disposição adquirida através de demons-
Skcptics o f thc Frcnc!J Rcnaissancc, Londres, 1893, cap.IV c em Emilicn Senchct,
Essai sur la méthode de Frmzcisco Smrc/;ez, l'aris, 1904, págs.i-xxxix. A mais
abundante coleção de informações sobre Sanchcz se encontra nas caixas de do-
cumentos de Henri Cazac, na biblioteca do Institut Catholiquc de Toulousc. '"' Sanchez, Quod uihil scitur, cd. Carvalho, pág. 4· Um resumo extenso com cita-
Este material fornece muitas pistas biográficas, bem como sugestões sobre as ções do latim é encontrado em Strowski, Momaigne, págs. IJ6·I44·
01
influências céticas dentre os cristãos-novos portugueses no Colégio de Guyennc, ' Sanchez, Quod nihil scitur, págs. 4-5. Ver também Owen, op.cit., págs. 630-
que podem ter afetado tanto Sanchcz quanto Montaigne. Os documentos de 63 r. Strowski mantêm que esta discussão sobre os nomes é a fonte do ponto de
Cazac revelam que muitos professores no Colégio de Guyennc eram cristãos- vista um tanto estranho de Mersenne sobre esta questão em seu La Verité des
novos portugueses e que muitas idéias céticas c radicais eram levadas em conta Scieuces. Strowski, Montaigne, págs. 137-138, n.r. Em seu Pascal et son temps,
ali. Ver també01 sobre Sanchez, Carlos Mellizo, "La Preoccupadón Pcdagogica vol. I, Paris, 1907, págs. U2·:UJ, n.r, Strowski diz que Sanchez era o cético que
de Francisco Sanchez", em Cuadcrnos Salmautinos de Filosofía, 11, 1975, pág. Mersenne tinha em mente em sua obra; mostrarei que isto não é o caso na discus-
217·229- são de Merscnne mais adiante em outro capítulo.

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,,
trações". Mas o que quer dizer isto? Isto equivale a explicar cimento perfeito de uma coisa (SCIENTIA EST REI PERFECTA
o obscuro por meio do ainda mais obscuro. Os particulares COGNITIO). Esta noção, ele insistia, é perfeitamente clara. O
que se tenta explicar por meio desta ciência são mais claros conhecimento genuíno é a apreensão imediata, intuitiva, de
que as idéias abstratas que supostamente deveriam esclarecê- todas as qualidades reais de um objeto. Assim sendo, a ciên-
los. O particular Sócrates é mais bem compreendido que algo cia deverá tratar de particulares, cada um devendo ser de
denominado "animal racional". Em vez de lidar com parti- alguma maneira entendido individualmente. As generaliza-
culares reais, estes assim chamados cientistas discutem c ar- ções vão além deste nível de certeza científica e introduzem
gumentam acerca de um vasto número de noções abstratas e abstrações, quimeras etc. O conhecimento científico para
ficções. "Chamais isto de ciência?", pergunta Sanchez, e res- Sanchez consistiria, em sua forma perfeita, na apreensão ex-
ponde, "Eu o chamo de ignorância"' 04. perimental de cada particular em si mesmo e por si mesmo' 07,
O método aristotélico da ciência, a demonstração, é Mas, tendo lançado dúvidas sobre se algo pode ser
atacado em seguida. Uma demonstração é supostamente um conhecido pelo método de Aristóteles, Sanchez passou então
silogismo capaz de produzir ciência. Mas este maravilhoso a analisar sua própria teoria do conhecimento, mostrando
método do silogismo, ao invés de engendrar novas informa- que, estritamente falando, os seres humanos são incapazes
ções, envolve um círculo vicioso. Para demonstrar que de atingir a certeza. A ciência de objetos conhecidos um a
Sócrates é mortal, argumenta-se a partir das afirmações de um não pode ser alcançada, em parte devido à natureza dos
que todo homem é mortal e de que Sócrates é homem. As objetos, em parte devido à natureza do homem. As coisas
premissas, entretanto, são construídas com base na conclu- estão todas relacionadas umas às outras, e não podem ser
são: o particular Sócrates é necessário para que se tenha um conhecidas individualmente. Há um número ilimitado de
conceito de homem e de mortalidade. A conclusão é mais coisas, todas diferentes, de tal forma que jamais poderiam
clara do que a prova. Além disso, o método silogístico é tal ser conhecidas. E, pior ainda, as coisas mudam de tal forma
que qualquer coisa pode ser provada se começamos com as que nunca se encontram em um estado definitivo e completo
premissas certas. É um meio inútil e artificial, que não tem em que possam ser verdadeiramente conhecidas' 08 •
nenhuma relação com a aquisição do conhecimento•os. Na perspectiva do ser humano, Sanchez dedicou-se
Sanchez conclui que a ciência não pode ser a certeza bastante à apresentação das dificuldades que impedem o
adquirida por definições, nem pode ser o estudo das causas, homem de obter o conhecimento verdadeiro. Nossas idéias
pois se o verdadeiro conhecimento consiste em conhecer uma dependem de nossos sentidos, que apenas percebem os as-
coisa em termos de suas causas, jamais chegaríamos a co- pectos superficiais das coisas, os acidentes e nunca as subs-
nhecer nada. A busca de causas continuaria ad infinitum na tâncias. A partir de sua formação médica Sanchez também
medida em que se estudaria a causa da causa e assim por pôde mostrar quão pouco confiável é nossa experiência sen-
diante' 06• sível, como muda quando nosso estado de saúde se altera
No lugar do que considerava as falsas noções da ciên- etc. As muitas imperfeições e limitações, que Deus decidiu
cia, Sanchez propunha que a verdadeira ciência era o conhe- que deveríamos ter, impedem nossos sentidos, c nossas ou-

0
' ' Sanchez, Quod uihil scitur, págs. s-6.
0
' ·'Ibid., págs. 6-9. '"' Ibid., págs. 15-17.
'"" Jbid., págs. 13-14· '"' lbid., pág. 17 c seguintes.

82 ,,
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,I tras capacidades e faculdades de jamais atingir qualquer co- Cícero e Diógenes Laércio, Sanchez parece também dever
I
nhecimento verdadeiro'"9. um pouco a Sexi:o Empírico, apesar de não mencioná-lo.
! A conclusão de tudo isso, para Sanchez, é que a única Carvalho sugere que tanto o estilo quanto parte dos argu-
mentos são derivados da tradução de Sexto por Estienne"l.
il forma verdadeiramente significativa de conhecimento cientí-
fico não pode ser conhecida. Tudo o que o homem pode al- Um estudo sobre Sanchez chega mesmo a considerá-lo um
I cançar é um conhecimento limitado e imperfeito de algumas
coisas que estão presentes em sua experiência através da ob-
sucessor de Sexto"4.
O experimentalismo defendido por Sanchez tem sido
servação e do juízo. Infelizmente, poucos são os cientistas considerado por alguns como evidência de que ele de fato não
que fazem uso da experiência e poucas as pessoas que sabem era um cético, mas um empirista abrindo novos caminhos e
julgar" 0 • preparando o terreno para Francis Bacon. Segundo esta inter-
Sanchez é mais interessante do que quaisquer dos de- pretação, Sanchez é visto como apenas se utilizando de argu-
mais céticos do século XVI, à exceção de Montaigne, na mentos céticos com o propósito de se opor ao então corrente
medida em que suas razões para duvidar não são as de tipo dogmatismo aristotélico, assim como Descartes mais tarde iria
antiintelectual como as de Agrippa, nem as suspeitas de que empregar o método da dúvida. Tendo destruído o inimigo, ele
o conhecimento é inalcançável porque houve desacordo en- poderia então desenvolver uma nova concepção de conheci-
tre os cientistas até então. Ao contrário, sua afirmação de mento, a ciência empírica, que segundo estes intérpretes apa-
que nihil scitur é defendida por argumentos filosóficos, com receria nas obras subseqüentes"s. Entretanto, considero que
base na rejeição do aristotelismo, e em uma análise a análise do conhecimento do próprio Sanchcz lança dúvidas
epistemológica sobre a natur_eza do objeto e do sujeito do sobre esta avaliação. Diferentemente tanto de Bacon quanto
conhecimento. De modo geral, a conclusão totalmente nega- de Descartes, que se consideravam dispondo de um método
tiva de Sanchez não se equivale à do pirronismo, a suspensão para refutar o ataque cético, Sanchez o aceitava como decisi-
do juízo acerca da possibilidade do conhecimento de algo, vo, e então, não como uma resposta a este ataque, mas em
mas ao contrário, está mais próxima do dogmatismo negati- concordância com ele, apresentava seu programa positivo.
vo dos acadêmicos. Uma teoria sobre a natureza do verda- Este programa positivo foi apresentado não como uma manei-
deiro conhecimento é apresentada, mostrando-se em seguida ra de obter o conhecimento verdadeiro, mas como o único su-
que este conhecimento não pode ser alcançado. Os pirrônicos, cedâneo possível uma vez que nihil scitur, de maneira seme-
com seu ceticismo permanente, não poderiam nem concor-
dar com a teoria positiva do conhecimento, nem com a con-
a~sinado "Cameadcs philosophus". Cf. Iriartc, "Francisco Sanchez c! cscéptico
clusão definitiva de que nihi/ scitur'". dtsfrazado de Carncadcs en discosión epistolar con Chrisróbal Clavio",
Embora Quod nihil scitur pareça apresentar uma vi- Grcgorimwm, XXI, 1940, págs. 413-45 I. O texto desta carta aparece na edição
são próxima à atribuída a Arcesilau e Carnéadesm segundo das obras de Sanchez por Carvalho, págs. 146-153·
"' Carvalho, introdução a Sanchcz, Opera Phi/osophiw, págs. LVII-LIX.
"• Senchct, Essai sur la mét/Jode de Francisco Sa11chez, págs. 13, 72-96. A parte
'09Jbid., págs. 23 e seguintes. final compara o marerial em Sexto com o material em Sanchez e mantém que
Sanchez utilizou c desenvolveo em grande parte o material de Sexto.
"" lbid., págs. 47·53.
111
Cf.Joscph Morcau, "Doute cr sa\·oir chcz Francisco Sanchcz", em Portugiemc/Je "' Cf. Owcn, op. cit., págs. 640-641; o Dictiomzaire des Scieuces Philosop/Jiques,
ed. Ad. Franck, za ed., Paris, 1875, verbete Sanchcz(François}, págs. 1524-1525;
Forsc/J•mgen des GOrresgese/lsdmft, Erste Reihe, Au(siitze zur Portugiesischeu
A.Coralnik, "Zur Geschichte der Skcpsis. I. Franciscus Sanchez", Archiv fiir
Kulturgescbicbte, I, Band(196o), págs.24·50.
1 Geschtc/Jte der l'hilosophie, o classificam como um pirrônico. Strowski,
" É inrcrcssantc que em uma carta de Sanchez ao matemático Clavius sobre o
problema da descoberta de verdades na Física c na Matemática, Sanchcz tenha Momaigue, págs. 136 c 143-145; e Senchet, op.cit., piigs. 89-146.

Bs
lhante ao desenvolvimento posteriormente por Mersenne de Montaigne, e em termos do desenvolvimento da filosofia
seu "ceticismo construtivo"'' 6 • parece-se mais com um precursor de Bacon e de Descartes.
Quanto à influência, Sanchez parece não ter tido mui- (Com efeito, uma tradução recente para o inglês, não-
ta em sua época. Ao final do século XVII apareceram duas publicada, com a qual tive contato, faz com que Quod nihil
refutações de seu pensamento na Alcmanha" 7 • Montaigne scitur se pareça muito com os textos da filosofia analítica do
·' provavelmente não conheceu Quod nihil scitur, assim como
Sanchez não conheceu os Essais'' 8 • O historiador do ceticis-
século XX.)
Na retomada do ceticismo grego no século XVI o pen-
mo do final do século XVIII, Súiudlin, não considerou Sanchez sador que mais absorveu a nova influência de Sexto Empírico
particularmente interessante"9. Parece que apenas nos últi- e que usou este material em relação aos problemas intelectu-
mos cem anos ele passou a ser considerado um dos mais agu- ais de sua época, foi Michel de Montaigne. Seu pirronismo
dos e avançados pensadores do século xvnm, superior até contribui para gerar a crise pyrrhonienne do início do século
mesmo a Montaigne, porque "Sanchez foi o único cético que XVII. O próximo capítulo mostrará como, através de
foi ao mesmo tempo um pensador positivo", e, como tal, Montaigne, o ceticismo do Renascimento se torna crucial na
pode ser considerado um precursor de Descartesn'. formação da filosofia moderna, contrariamente à visão que
Pode ser que a formulação por Sanchcz da problemáti- o considera apenas um momento transitório na história do
ca cética esteja mais próxima da linguagem moderna do que pensamento.
a de qualquer outro de seus contemporâneos, inclusive

"''Sobre o papel de Sanchez no desenvolvimento do "ceticismo construtivo", ver


Popkin, prefácio a H. van Lecuwcn, TI! e l'roblem o(Certaimy in Englisl! Thought.
1630-1680 (Haia, 1963); resenha da Opera P/Ji/osophica de Sanchez em
Rcnaissance News, X, 1957, págs. 2o6-2o8; c resenha de Gassendi, Díssertatious
cn Forme de Paradoxe, Iús, Llll, 1962, pág. 4J 4· Há urna discussão interessante
sobre o papel do ceticismo em Pedro de Valência c em Francisco Sanches em
Marcclino Mencndez y l'clayo, E11sayos de Cririca Filosófica, Madrid, 1918,
vol. IX de suas Obras Completas, no capítulo intitulado "De los orígencs dcl
Criticismo y dcl Esccpticismo y especialmente de los precursores cspaiiolcs d~
Kant", p:ígs. 119·22r.
" 7 Ulrich Wi!d, Quod aliquid scitur (Lcipzig, 1664); c Daniel Hartnack, Sanc!Je~

aliquid sciens (Stcttin, 166s). Lcibniz também aparentemente se interessou por


Sanchez por volta desta época.
"' As possíveis relações entre Sanchez c Monraigne são examinadas em Villcy,
Sources & Évolutimz, 11, p:ígs. 166-r69, chegando a uma conclusão bastante
negativa. Villey nesta obra e Strowski em Momaigne, p:íg.14_1:, indicam que é
bem possível que Sanchcz c Montaignc podem ter sido parentes pelo lado da
mãe de Montaignc. (Após examinar os documentos de Cazac concluiria que
Sanchcz e Montaignc eram primos distantes, uma vez que QS famílias Sanchcz c
Lopcz foram relacionadas através de vário~ casamentos. Amba> estas famílias
foram proeminentes na Espanha antes do estabelecimento da Inquisição e da
expulsão dos judeus c estiveram cnvol\'idas em uma trama para assassinar um
líder da lnqui.1ição.)
''" Sti:iudlin, Gesdnchte der Skcpticismus, I[, págs. 53-57.
"" Owcn, op.cit., pág. 640.
'" Coralnik, op. cit., págs. 193 c 195·

86
III. Michel de Montaigne e os Nouveaux
Pyrrhoniens

Michel de Montaigne foi o personagem mats tmpor-


tante da retomada do ceticismo antigo no século XVI. Não
•• só foi ele o melhor escritor e pensador dentre os que se inte-
ressaram pelas idéias dos acadêmicos e dos pirrônicos, mas
foi também o que mais fortemente sentiu o impacto da teo-
ria pirrônica da dúvida total, bem como sua relevância para
os debates religiosos desta época. Montaigne foi ao mesmo
tempo uma criatura do Renascimento e da Reforma. Foi um
humanista completo, com um vasto interesse e grande preo-
cupação pelas idéias e valores da Grécia e de Roma, bem
como por sua aplicação à vida dos homens no mundo em
rápida mudança da França do século XVI. Estava atento,
talvez mais do que qualquer contemporâneo seu, ao signifi-
cado vital da redescoberta e exploração da "glória da Grécia
e da grandeza de Roma", bem como à descoberta e explora-
ção do Novo Mundo. Em ambos estes mundos recém-desco-
bertos Montaigne percebeu a relatividade das realizações in-
telectuais, culturais e sociais do homem, uma relatividade
que viria a solapar totalmente o próprio conceito de nature-
Za humana e do lugar do homem no cosmo moral.
A vida pessoal de Montaigne foi um microcosmo do
macrocosmo religioso de sua época, pois ele se originava de
uma família dividida pelo conflito religioso. Seu pai era ca-
tólico, sua mãe uma cristã-nova de origem judaica'. O pai de
Montaigne era um homem interessado nas várias correntes
religiosas e teológicas de sua época, tendo passado um longo

Donald Frame, em sua recente biografia, Montaig~Íe, (Nova Iorque, 1965), diz
que os zs% de sangue judaico de Montaigne (sua mãe era meio-judia) foram
provavelmeme responsáveis em parte por sua profunda tolerância, "sua atitude
de distanciamento típica dos marranos c natural neles em relação às outras reli-
giões foi praticada por ele de maneira comistente c consciente; sua curiosidade
infatigável, principalmente, mas não exclusivamente intelectual, c u cosmopo-
litismo natural em um membro de uma família de laços tão amplos", pãg. z8.
: :·
,,
tempo em conversas com personagens como Pierrc Bunel e A Apologie se desdobra no inimitável estilo zigueza-
tendo estudado os escritos de Raymond Sebond em sua bus- gueante de Montaigne em diversas vogas de ceticismo, com
ca do entendimento religioso e da paz. O jovem Montaigne pausas ocasionais para examinar e digerir os vários níveis de
era, como seu pai, católico, mas tinha um profundo interesse dúvida, mas sempre com o tema dominante da defesa de uma
pelas várias correntes de pensamento da Reforma e da Con- nova forma de fideísmo - um pirronismo católico. O ensaio
•• tra-Reforma. Incentivado por seu pai, traduziu a obra sus-
peita de Sebond sobre teologia natural. Por iniciativa pró-
começa com um relato provavelmente impreciso de como
Montaigne chegou a ler e traduzir a audaciosa obra do teó-
pria veio a conhecer intimamente personagens como o líder logo do século XV, Raymond Sebond6 • O pai de Montaigne
protestante, Henrique de Navarra, e o jesuíta que foi um havia ganho de Pierre Bunel uma cópia da Theologia
grande representante da Contra-Reforma, Juan Maldonado. Naturalis, o qual lhe havia dito que esta obra o havia salvo
Durante suas viagens, Montaigne freqüentemente parava para do luteranismo, uma doença, acrescentou Montaigne, "que
conversar com adeptos das várias religiões e mostrava um facilmente degeneraria em um execrável ateísmo"7_ Alguns
profundo interesse por suas crenças e práticas~. anos mais tarde o pai de Montaigne encontrou o livro e pe-
Muitos aspectos de Montaigne se encontram em seu diu a seu filho para traduzi-lo para o francês (Montaigne
mais longo e filosófico ensaio, a Apologie de Raymond costumava brincar dizendo que o original era em espanhol
Sebond, o extraordinário resultado de sua crise pyrrhonienne com terminações latinas). Foi assim que Montaigne veio a
pessoal. Embora, como indicou Frame, o pirronismo de fazer esta tradução 8 •
Montaigne seja anterior a este ensaio e permaneça mesmo Mais adiante, segundo nos é dito, alguns leitores de
depois, ele serve como foco lógico de nossa atenção\ Villey, Sebond, especialmente senhoras, necessitaram de auxílio para
em seu estudo sobre as fontes e o desenvolvimento dos Essais entender e aceitar a mensagem de sua obra, a de que todos os
de Montaigne, mostrou que uma grande parte da Apologie artigos da religião cristã podem ser demonstrados pela razão
foi escrita entre 1575 e 1576, quando Montaigne, através do natural. Dois tipos principais de objeções tinham sido levan-
estudo dos escritos de Sexto Empírico, estava passando pelo tados a este respeito, o primeiro mantinha que a religião cristã
trauma extremo de ver todo seu mundo intelectual se dissol- deveria basear-se na fé e não na razão, e o outro, que as
ver na dúvida completa. Slogans e frases de Sexto Empírico razões de Sebond não eram muito boas ou bem argumenta-
foram gravados nas vigas do teto de seu escritório, de tal das. O primeiro ponto permite a Montaigne desenvolver sua
forma que ele poderia contemplá-los na medida em que com- temática fideísta e o segundo, seu ceticismo. Ele alega pri-
punha a sua ApG!ogie~. Foi neste período que seu lema "Que meiro "defender" Sebond expondo uma teoria do cristianis-
sais-je?"s foi adotado. mo baseada exclusivamente na fé; em segundo lugar, procu-
ra mostrar, à maneira de Pirro, que se todo tipo de razão é

'Ver Michel de Montaigne, joumal de Voyagc, editado por Louis Lautrcy (2a.cd.), 'Ver a ediçao de Ja~ob Zeit!in, The Essays o( Michel de Montaigne (Nova Iorque,
Paris, r9o9. 1935), vol. ll, pags. 481-487, especialmente a pág: 485, para uma discussão
' Donald Framc, Montaig11c's Discovcry of Man. TI! e Hmmmizatio11 o( a Humanist, desta questão. Na Faculdade de Medicina da Universidade de Toulouse os retra-
(Nova Iorque, 1955 ), caps. lli e IV, O ceticismo dos primeiros ensaios é tratado tos de Sanchcz c Scbond têm um lugar de honra. Scbond ensinou em Toulouse c
em detalhe por Craig B. Brush, Montaigue and 13ayle, Variations 011 t!Je Theme foi, provavelmente como Sanchcz, um cristão-novo de origem ibérica.
1
o( Skepticism (Haia, 1966), cap. lll. Montaignc, 'Apologic de Raymond Scbond', em I.es Essais de Michel de
• Villey, Sources et Évoil<twn, I, pãgs. :.?.18 c 365, c 11, pãgs.r64-r6s. , Montaignc, editados por Picrre Villcy, tomo li (Paris, 1922), pâg.147.
'"O que sei cu?"(cm francês no original), (N. do T.) fbid., págS.147-148.

9'
''\

questionável, Sebond não deve ser responsabilizado por seus magar e pisotear a arrogância e o orgulho humanos,
erros9, fazê-los sentir a inanidade, a vaidade e o nada do ho-
A afirmação inicial da mensagem fideísta é apresenta- mem; arrancar de suas mãos as minúsculas armas de
da de modo peculiar. De um modo um tanto irônico,

.
sua razão; fazê-los baixar as cabeças c morder a poei-
Montaigne desculpa o racionalismo teológico de Sebond di- ra diante da autoridade e da reverência da majestade
zendo que embora ele, Montaignc, não seja versado e~ teo- divina. É apenas a isso que pertencem o conhecimen-
logia considera que a religião é baseada apenas na fe que to e a sabedoria, apenas isso pode nos dar algum amor
i
nos dada pela Graça de Deus. Entretanto, não há nada de -próprio, e é disso que roubamos aquilo de que nos
errado em se usar a razão para apoiar a fé, "mas sempre com orgulhamos'>.
esta reserva de não se pensar que é de nós que a fé depende,
ou que esfo~ços e argumentos podem alcançar um co~heci­ De modo a justificar a fraqueza do raciocínio de Sebond,
mento tão sobrenatural e divino"•o. Isto leva Montatgne a Montaigne procurou mostrar que o raciocínio de ninguém é
afirmar com maior vigor que a religião só pode ser baseada melhor, e que ninguém pode alcançar a certeza por meios
na fé, e que qualquer fundamento humano para ~ ~eligião é ractonats.
demasiado fraco para sustentar o conhecimento dtvmo. Isto, Após apresentar alguns sentimentos anti-racionais to-
por sua vez, leva a uma digressão sobre a fraqueza da reli- mados de São Paulo, Montaigne começa seriamente sua aná-
gião da época, conseqüência de fatores hu~a~os como cos- lise. O homem pensa que sem a ajuda da Luz Divina pode ser
tumes e localização geográfica. "Somos cnstaos da mesma capaz de compreender o cosmo. Mas ele é apenas uma cria-
maneira como somos perigordianos ou alemães"''. Mas se tura vaidosa e insignificante, cujo ego faz com que creia que
tivéssemos a verdadeira luz da fé, então os meios humanos, ele, e apenas ele, compreende o mundo e que o mundo foi
como os argumentos de Sebond, poderiam ser úteis. Assim, criado c existe para seu benefício. Entretanto, quando com-
de modo a "defender" a tese de Sebond de que as verdades paramos o homem com os aniinais, vemos que ele não tem
da fé podem ser demonstradas racionalmente, Mo~t~!gne nenhuma qualidade maravilhosa que falte a eles, e que sua
primeiro tornou a fé pura a pedra fundamental da rehgtao, e assim chamada racionalidade é apenas uma forma de com-
em seguida considerou os esforços de Sebond com~ de se- portamento animal. Para ilustrar isto, Montaigne escolhe
gunda classe, sendo úteis, porém, não antes de acettarmos exemplos de Sexto Empírico, como o do cão lógico que su~
Deus. postamente elaborou um silogismo disjuntivo. Mesmo are-
Para responder à segunda acusação, de que os argu- ligião, diz Montaigne, não é uma característica que apenas o
mentos de Sebond são tão fdigeis que podem facilmente ser
homem possui, mas parece existir também entre os elefantes,
derrubados, Montaigne apresenta uma variedade de argu- que aparentemente rezam'J.
mentos céticos. A longa e desmoralizante comparação entre os homens
e os animais tinha a intenção de gerar uma atitude cética em
Os meios pelos quais pretendo conter esta loucura, c
relação às pretensões intelectuais humanas. As glórias do reino
que me parecem mais adequados, consistem em es-
~mimai são contrastadas com a vaidade, a estupidez e a imo-
• Ibid., pág. 148 149·
'" lbid., pág. rso. "/bid., págs. 159·16o.
"lbid., pág. I55· '' Jbid., pág. 186.
"!•

9'
93
ralidade do mundo humano. Montaigne diz que nossas su- prios poderes. Deus nos ensinou isto de modo sufici-
postas realizações da razão nos aj~da~am não a e.ncontrar entemente claro pelas testemunhas que escolheu den-
um mundo melhor do que o dos ammats, mas um pwr. Nos- tre as pessoas comuns, simples e ignorantes, para nos
sos conhecimentos não nos impedem de sermos governados instruir em seus admiráveis segredos. Nossa fé não é
por nossas funções físicas e paixões. N<:ssa assi~ chamada
• sabedoria é um escárnio e uma presunçao que nao nos .traz
nada. Se examinarmos todo o domínio biológico e analisar-
adquirida por nós, é um presente puro dado pela libe-
ralidade de outrem. Não foi pelo raciocínio ou pelo
entendimento que recebemos nossa religião, mas por
mos as vidas dos animais e do homem, e então os com~arar­ autoridade e comando externos. A fraqueza de nosso
mos com 0 vangloriar-se dos filósofos sobre a capactd~de juízo nos ajuda mais neste sentido do que sua força, e
mental do homem não podemos evitar ficarmos com a Im- nossa cegueira mais do que a clareza de nossa visão.
pressão de uma "~omédia de elevada demê!lcia" .. "A praga É pelo intermédio de nossa ignorância mais do que de
do homem é a opinião do conhecimento. E por tsso que a nosso conhecimento que aprendemos esta sabedoria
ignorância é tão recomendada ~or nos.s~a r7li~,i,~o como uma divina. Não é de surpreender que nossos poderes na-
qualidade adequada à crença e a obedtencta. . . . turais e terrenos não possam conceber o conhecimen-
Até este ponto, o ataque cético de Mo~t~tgne dtfenu to sobrenatural e celeste; não ponhamos nisso mais
muito pouco do antiintelectualismo do Elogto a loucura de do que nossa obediência e submissão 16 •
Erasmo. Este argumento é desenvolvido agora em termos da
um tanto desastrosa (para o leitor) comparação entr: ~h~­ Em apoio a este completo fideísmo, Montaigne apresentou o
mem e os animais. (Qualquer um que leia todas evtden_ct-a: texto das Escrituras que viria a se tornar o texto predileto
as que Montaigne apresenta neste sentido~ acabara se s:ntm- dos nouveaux pyrrhoniens, a declaração de São Paulo em
do abalado, mesmo que a eficácia da razao humana _?ao t:- Coríntios I, cap.l, "Pois está escrito, destruirei a sabedoria
nha sido realmente refutada.) Mais adiante, a elaboraçao mats dos sábios, e rejeitarei a inteligência dos inteligentes. Onde
filosófica de seu ceticismo se desenvolverá com um breve está o sábio? Onde está o erudito? Onde o argumentador
panegírico à ignorância, e uma defesa ~o fid:ísmo co_mpl~to. deste mundo? Por acaso Deus não tornou louca a sabedoria
A sabedoria (diz Montaigne) nunca fot de a1uda a nmguem, deste mundo? Pela sabedoria o homem não conhecia a Deus,
enquanto que os nobres da natureza, os :ecém-descobert~s quis então Deus pela loucura que pregamos salvar aqueles
habitantes do Brasil, "passavam as suas vtdas em ~ma admt~ que acreditam".
rável simplicidade e ignorância, sem letras, sem_le:s, sem ret Neste tom inspirador Montaigne levantou o segundo
e sem religião de nenhum tipo" ' 5 • A mens_agem cns~a, de ~co:­ conjunto de argumentos céticos que incluem uma descrição e
do com Montaigne, é que devemos culttvar uma tgnorancta defesa do pirronismo com uma explicação de seu valor para
semelhante a esta de modo a crer pela fé apenas. a religião. O pirronismo é primeiro distinguido do dogma-
tismo negativo do ceticismo acadêmico; os pirrônicos duvi-
A participação que temos no conhecimento da verd:- dam de tudo e suspendem o juízo sobre todas as proposições,
dc, seja ela qual for, não foi adquirida por nossos pro- até mesmo a de que duvidam de tudo. Eles se opõem a qual-
quer asserção, e sua oposição, quando bem sucedida, mostra
'4 lbrd., pág. 2I4·
"Ibid., pág. 2r8. " lbid., pág. 230.

94 95
pos da investigação intelectual, segundo ele, os filósofos fi-
a ignorância do oponente, se não é bem sucedida, a sua pró-
nalmente tiveram que confessar sua ignorância, ou inabili-
pria ignorância. Neste estado de dúvida completa, os
dade de chegar a qualquer conclusão definida e definitiva.
pirrônicos vivem de acordo com a natureza e os costumes 17 •
Mesmo na lógica, paradoxos como o do "Mentiroso" mi-
Esta atitude, Montaigne considerou ser não só a mais eleva-
nam a nossa confiança'9, Pior ainda, mesmo os pirrônicos
t I da realização humana, como a mais compatível com a religião.
acabam se perdendo no caos dos empreendimentos intelec-
Não há nenhuma invenção humana que possua tanta
tuais humanos, porque se afirmam, em conclusão a seu exa-
me das opiniões, que duvidam, então terão afirmado algo de
verossimilhança e utilidade. Apresenta o homem nu e
vazio, reconhecendo sua fraqueza natural, preparada
positivo que conflita com suas dúvidas. (0 defeito, sugere
para receber do alto algum poder externo, destituída Montaigne, se encontra na natureza de nossa linguagem, que
do conhecimento humano, e por isso mesmo mais apta
é assertiva. O que os pirrônicos necessitam é de uma lingua-
a alojar em si o conhecimento divino, aniquilando seu
gem negativa na qual possam formular suas dúvidas, sem
juízo para dar lugar à fé, nem desacreditando nem dar a elas um caráter positivo.)~ 0
estabelecendo nenhuma doutrina contra as práticas Quando olhamos para os tristes esforços dos filósofos
comuns; humilde, obediente, ensinável, zelosa; uma em todas as mais diversas áreas de seu interesse, podemos
inimiga declarada das heresias, e conseqüentemente apenas concluir, diz Montaigne, "de fato a filosofia é apenas
livre das vãs e irreligiosas opiniões introduzidas pelas uma poesia sofisticada"". Tudo que os filósofos apresentam
falsas seitas. É uma tábua lisa, preparada para rece- em suas teorias são invenções humanas, ninguém de fato
ber da mão de Deus as formas que quiser gravar nela 1g. descobre o que se passa na natureza. Ao contrário, algumas
opiniões tradicionais são aceitas como explicações de vários
Não só estes antigos pirrônicos alcançaram o ápice da sabe- eventos, c aceitas como princípios inquestionáveis, dotados de
doria humana, mas também, como afirmariam Montaigne e autoridade. Mas se alguém se perguntar sobre os princípios
seus seguidores no século seguinte, forneceram a melhor de- eles próprios, receberá como resposta que não se pode discu-
fesa contra a Reforma. Uma vez que o cético completo não tir com aqueles que negam os primeiros princípios. Porém,
possui pontos de vista positivos, ele não pode possuir pon- Montaigne insiste, não podem haver primeiros princípios para
tos de vista errôneos. E já que o pirrônico aceita as leis e o homem exceto se Deus os revelou; tudo o mais - começo,
costumes de sua comunidade, ele aceitará o catolicismo. Fi- meio c fim - nada mais é do que sonhos e fumaça~~.
nalmente, o cético completo se encontra no estado ideal para Ao chegar a este ponto, Montaignc se encontra agora
receber a Revelação, se Deus assim quiser. O casamento da pronto para a questão filosófica central, a evidência pirrônica
Cruz de Cristo com as dúvidas de Pirro consistia na combi- de que se deve duvidar de tudo. Aqueles que afirmam que a
nação perfeita para dar à Contra-Reforma francesa sua ide- razão humana é capaz de conhecer e entender as coisas, te-
ologia. rão que mostrar como isto é possível. Se recorrerem à nossa
Montaigne contrastou em seguida a magnificência do experiência, terão que mostrar que temos experiência, bem
pirronismo com as querelas sem fim das posições irreligiosas
dos filosófos dogmáticos da Antiguidade. Em todos os cam- •• lbid., págs. 239"266.
'"lbid., pâgs. 266-267.
"Ibid., pâgs. 236-237. "lbid., pág. 279·
"Ibid., págs. 238-239. "Ibid., pâg. 285.

96 97

,l:..
i]
como que de fato temos experiência daquilo de que preten- cada mudança em nós mesmos, mudamos os nossos juízos, e
demos ter cxperiência~3. Mas estes dogmáticos não são capa- há sempre discordância, conosco mesmo, ou em relação aos
zes, por exemplo, de nos dizer o que é o calor, ou qualquer outros. Montaigne recorre, no estilo dos tropas de Sexto, à
outra qualidade, no que consiste sua real natureza. E, o pon- interminável variação dos juízos, acrescentando seu leit-motif

. to mais crucial, não são capazes de determinar qual a essên-


cia de nossas faculdades racionais. Os especialistas todos dis-
cordam entre si acerca disto, tanto quanto no que diz respei-
fideísta, "As coisas que nos vêm dos céus são as únicas a ter
o direito e a autoridade de serem persuasivas, as únicas a
terem a chancela da verdade; que não podemos ver por nos-
to ao que é, quanto a onde se encontra~ 4 • sos próprios olhos apenas, nem receber por nossos próprios
I' ' meios"• 8• Nossas próprias faculdades, Montaigne mostra, se
Pela variedade e instabilidade de suas opiniões, eles alteram de acordo com nossas condições físicas e emocio-
nos conduzem como que pela mão, tacitamente, a esta nais, de modo que algo que julgamos verdadeiro em um de-
inconclusão de seu caráter inconclusivo [...]Não que- terminado momento, consideramos como falso ou duvidoso
rem professar abertamente a sua ignorância c a imbe- no momento seguinte. Devido a isto, tudo o que podemos
cilidade da razão humana, de modo a não assustar as aceitar é o conservantismo pirrônico, isto é, viver de acordo
suas crianças; mas revelam-na a nós de modo sufici- com as leis e costumes de nossa própria sociedade.
entemente claro na forma de um conhecimento con-
fuso c inconsistente.'-' E uma vez que não sou capaz de escolher, aceito as
escolhas feitas por outros c me mantenho na posição
Nossa única base para entendermos a nós mesmos é através em que Deus me pôs. De outra maneira cu não conse-
! da Revelação Divina, "tudo o que vemos sem a lâmpada des- guiria evitar mudar o tempo todo, incessantemente.
ta graça, é apenas vaidade e loucura"'6 • Nós certamente não Assim eu tenho, pela graça de Deus, me mantido
somos a medida de nós mesmos, nem de nenhuma outra intacto, sem agitação nem distúrbio de consciência,
cmsa. nas antigas crenças de nossa religião, em meio a tan-
Os acadêmicos, face a isto, procuram manter que em- tas seitas e divisões que nosso século tem produzido'9 •
bora não possamos conhecer a verdade acerca de nós mes-
mos e de outras coisas, podemos afirmar que alguns juízos Quando examinamos as realizações científicas humanas,
são mais prováveis do que outros. Quanto a isto, Montaigne constatamos a mesma diversidade de opiniões, a mesma in-
insiste, "a posição dos pirrônicos é mais ousada e ao mesmo capacidade de descobrir a verdade. Os astrônomos ptolomai-
,.. tempo mais plausível"•7 • Se pudéssemos reconhecer a apa- cos acreditaVam que os céus se moviam em torno da Terra,
rência da verdade, ou a maior probabilidade de um juízo em mas Cleantes e Nicetas, e agora Copérnico, afirmam que a
relação a outro, então seríamos capazes de alcançar algum Terra se move. Como podemos dizer qual está certo? E tal-
acordo genérico sobre no que consiste uma determinada coi- vez daqui a um milênio uma outra teoria será apresentada
sa, ou pelo menos no que consiste provavelmente. Mas, a que derrubará estaS3°. Antes que os princípios aristotélicos
"Ibid., pág. 286.
" Ibid., págs. :z.87-288.
'' lbid., págs. 291-292. ,, Ibid., pág. p6.
' 0 lbid., pág. 302. '' lbid., págs. 324-325.
' 7 /bid., pág. 314- ,, Ibid., pág. 325-

99
oito ou dez sentidos, e de sua contribuição para percebê-la
fossem aceitos, outras teorias eram consideradas satisfatórias.
com certeza e em sua essência. "34
Por que então devemos aceitar Aristóteles como a palavra
Mas mesmo que possuíssemos todos os sentidos neces-
final em questões científicas? No campo da medicina,
sários, há uma dificuldade ainda maior no fato de que nos-
Paracelso argumenta que os antigos praticantes da medicina
sos sentidos são enganadores e incertos em seu modo de ope-
estavam causando a morte das pessoas, porém pode ser que
rar. As várias ocorrências de ilusões nos dão motivos para
ele seja tão ruim quanto eles. Mesmo a geometria, suposta-
desconfiar de nossos sentidos. Os efeitos das qualidades sen-
mente a ciência mais certa, tem as suas dificuldades, uma vez
síveis nas paixões indicam que nós facilmente somos levados
que podemos produzir demonstrações geométricas (aparen-
a opiniões falsas ou duvidosas pela "força e vivacidade" das
temente como as de Zenon') que entram em conflito com a
experiências sensíveis. Além disso, nossa experiência sensí-
experiência3 '. Recentemente as descobertas no Novo Mundo
v_el_ e nossa experiência dos sonhos são tão parecidas que di-
abalaram nossas crenças nas leis estabelecidas acerca do com-
fictlment~ podemos distingui-lasn. Montaigne então apre-
portamento humano. senta rapidamente o argumento pirrônico tradicional, segun-
Com base nisso Montaigne passa a deter-se no tema do
do o qual nossa experiência sensível difere da dos animais, a
décimo trapo de Sexto, as variações nos campos do compor-
experiência individual de cada um varia de acordo com as
tamento moral, legal e religioso. Munido das evidências so-
circunstâncias, nossos sentidos diferem uns do.s outros bem
bre os selvagens da América, dos exemplos da literatura an-
como em relação aos de outras pessoas, e assim por diante,
tiga e dos costumes da Europa contemporânea, Montaigne
Deste modo, "já não será mais considerado um milagre se
lança a mensagem do relativismo éticoF,
nos disserem que podemos admitir que a neve se parece branca
Logo em seguida passa ao exame de um aspecto mais
a nós, mas que não podemos ser responsáveis pela prova de
teórico do argumento pirrônico, a crítica do conhecimento
que ela o é verdadeiramente e em sua essência; e com este
sensível, "o maior fundamento e prova de nossa ignorân-
ponto de partida abalado, todo o conhecimento no mundo
cia"33. Todo conhecimento provém dos sentidos, que nos dão
necessariamente cai por terra"l 6 •
nossas informações mais seguras, como "o fogo esquenta".
Descobrimos que por meio de diferentes instrumentos
Mas ao mesmo tempo, há certas dificuldades fundamentais
somos capazes de distorcer nossa experiência sensível. T ai-
no conhecimento sensorial que só podem nos lançar na dúvi-
vez nossos sentidos também façam isso, e as qualidades que
da completa.
percebemos sejam impostas aos objetos, e não se encontram
Em primeiro lugar, se pergunta Montaigne, temos to-
neles. Nossos vários estados de saúde, a vigília, o sono etc.,
dos os sentidos necessários para obter o verdadeiro conheci-
parecem condicionar nossa experiência, de tal modo que não
mento? Não temos como decidir isto, e tanto quanto possa-
temos como dizer qual corresponde à verdadeira natureza
mos saber estamos tão distantes de perceber adequadamente
das coisas.
a Natureza quanto um cego de enxergar cores. "Formamos
uma verdade pela consulta a nossos cinco sentidos c pela Bem, como nossa condição acomoda as coisas em re-
contribuição deles; mas talvez precisássemos do acordo de lação a si mesma e as transforma de acordo consigo

"lbid., pág. 353·


"lbid., págs. 326-p.7. 11 lbid., pág. 36l.
"lbid., pág. 329-349· '"lbid., pág, 364.
11
Ibid., pág. H9·

,00
mesma, nós não sabemos mais o que as coisas verda- rantir se nossas idéias, ou impressões sensíveis, correspondem
deiramente são; uma vez que nada chega até nós, se- ou não aos objetos reais. É como se tentássemos saber se um
não falsificado e alterado pelos nossos sentidos. Quan- determinado retrato de Sócrates parece com ele sem jamais
do o compasso, o esquadro, c a régua são imprecisos, termos visto Sócrates.
todas as proporções desenhadas com base neles, to- Estas sucessivas ondas de argumentos céticos levam fi-
dos os edifícios construídos por sua medida, são tam- nalmente à constatação de que tentar conhecer o verdadeiro
bém necessariamente imperfeitos e defeituosos. A in- ser é como tentar pegar a água com uma peneira. Tudo o que
certeza de nossos sentidos faz com que tudo que pro- podemos fazer em nosso estado atual é continuar neste mun-
duzem seja incerto.l7. do de aparências incertas, a menos que Deus decida nos ilu-
minar e nos ajudar. Apenas através da Graça Divina, e não
A crítica do conhecimento sensível leva a um crescendo nes- pelo esforço humano podemos alcançar algum contato com
ta sinfonia de dúvidas, que é o problema do critério. Se nossa a Realidade4°,
experiência sensível varia tanto, com base em que padrô, No curso de todo este vagar, atravessando tantos ní-
podemos julgar quais são as verdadeiras? Necessitamos de veis e correntes de dúvidas, Montaigne consegue introduzir
alguma base objetiva para julgar, mas como podemos deter- a maior parte dos principais argumentos epistemológicos do
I minar a objetividade? "Para julgar as aparências que recebe- pirronismo antigo, embora de uma maneira muito pouco sis-
I ,
mos dos objetos, necessitaríamos de um instrumento de jul- temática. À exceção da crítica dos signos e das inferências,
gamento; para verificar este instrumento necessitamos de uma toca praticamente em todos os lances argumenta ti vos e aná-
demonstração, para verificar a demonstração necessitamos lises de Sexto Empírico. Embora a maior parte da Apologie
de um instrumento, e aí nos encontramos em um círculo. "J 8 lide com as fraquezas da humanidade, seus desacordos e va-
Além deste problema circular de ter de julgar o instrumento riações, e a superioridade dos animais em relação ao homem,
que julga por aquilo que ele julga, há também uma dificulda- o ponto culminante do ensaio é a revelação do poço sem fim
de que gera regresso ao infinito, na busca da base do conhe- da dúvida total. A análise da experiência sensível, base de
cimento. "Uma vez que os sentidos não são capazes de deci- todo conhecimento que possamos ter, leva ao problema do
dir a nossa disputa, sendo eles próprios cheios de incertezas, critério, que por sua vez leva ao círculo vicioso do regresso
a razão é que deve fazê--lo. Nenhuma razão pode ser ao infinito. De tal modo que finalmente percebemos que ne-
).. estabelecida sem uma outra razão, e desta forma regressa- nhum de nossos pontos de vista tem qualquer certeza ou fun-
I mos ao infinito."l9 damento confiável, e que o único caminho é seguir o

I Podemos assim concluir que nossas idéias são deriv;~


das de nossa experiência sensível. Nossa experiência sensível
pirronismo antigo e suspender o juízo. Mas, juntamente com
este desdobramento ziguezagueante porém vigoroso da crise
l não nos revela como os objetos são, mas sim como se pare- pyrrhonienne, Montaigne constantemente introduz seu tema
cem para nós. julgar os objetos por meio de nossas idéias é fideísta: a dúvida completa a nível racional, combinada com
" um procedimento altamente duvidoso. Jamais podemos ga- uma religião baseada na fé exclusivamente, que nos é dada
não por nossas capacidades mas somente pela Graça de
Deus4',
"Ibid., págs. 365-366.
,, lbrd., pág. J66. '"Ibid., pág..167.
41
,. Ibid., pág. 366-367. Ibid., págs. 367 c 371. Um exame muito mais detalhado dos elementos pirrônicos
i
A Apologie trata das três formas de crise cética que humanista para o mundo da ciência ameaçava destruir a pró~
iriam perturbar os intelectuais do início do século XVII, fi- pria possibilidade de qualquer tipo de conhecimento. A últi-
nalmente ampliando esta crise da teologia para todos os ou- ma série de dúvidas de Montaigne, o nível mais filosófico de
tros campos das realizações humanas. Em primeiro lugar, seu pirronismo, levanta todo um conjunto de problemas so-
Montaigne se concentra na crise teológica, insistindo no pro- bre a confiabilidade do conhecimento sensível, sobre a ver-
blema da regra da fé. Devido à nossa inabilidade em desco- dade dos primeiros princípios, sobre o critério do conheci-
brir, ou justificar, um critério para o conhecimento religioso, mento racional, sobre nossa incapacidade de conhecer algo
ele apresenta o ceticismo total cúmo uma "defesa" da regra exceto aparências, e sobre nossa falta de qualquer evidência
da fé católica. Uma vez que não podemos decidir por meios segura sobre a existência e a natureza do mundo real. Estes
racionais quais os padrões verdadeiros, permanecemos na problemas, quando considerados com seriedade, minam a
dúvida completa e aceitamos a tradição; isto é, aceitamos a confiança na capacidade humana de descobrir qualquer ci-
regra católica da fé. ência no sentido aristotélico: verdades sobre o mundo que
Em segundo lugar, Montaigne amplia a crise humanís~ sejam certas.
tica do conhecimento, aquele tipo de dúvida engendrada pela Apesar de Busson afirmar que o ceticismo total de
redescoberta de uma grande variedade de pontos de vista Montaigne não era novo, mas apenas uma repetição de seus
dentre os pensadores da Antiguidade. Diante desta vasta di~ predecessores no século XVI 4\ há uma novidade crucial na
versidade de opiniões, como podemos decidir qual a teoria apresentação de Montaigne que o torna radicalmente diferen-
verdadeira? Este tipo de ceticismo erudito é tornado mais te e mais importante do que qualquer outro cético do século
persuasivo por Montaigne, não apenas através da citação de XVI. Ao contrário de antiintelectualistas como Erasmo,
I autores antigos, como os céticos anteriores fizeram, mas por Montaigne desenvolveu suas· dúvidas através de raciocínios.
meio da combinação do impacto da redescoberta do mundo Diferentemente de seus predecessores céticos que apresenta-
I j;, antigo com o da descoberta do Novo Mundo. Do outro lado vam basicamente uma série de relatos sobre a variedade das
li do Oceano Atlântico existe um outro universo cultural, com opiniões humanas, Montaigne elaborou seu pirronismo com-
i i' padrões e ideais diferentes. Com base no que podemos julgar pleto através de uma seqüência de níveis de dúvida, culminan-
se a visão de mundo do nobre selvagem é melhor ou pior do do em uma dificuldade filosófica crucial. As reflexões
,i i'
que a nossa? A mensagem de que os méritos de todas as opi~ assistemáticas da Apologie têm um método em sua loucura,
(' ' '
! [i ·i niões humanas são relativos às culturas em que foram pro- um método que consiste em elevar a febre da dúvida até que
' duzidas foi lançada por Montaigne como um novo tipo de esta destrua qualquer resistência possível da atividade racio-
constatação cética, que teria efeitos de longo alcance até nal4J.
mesmo quatro séculos depois. A revitalização do pirronismo de Sexto Empírico por
A terceira e mais significativa das crises céticas precipi~ Montaigne, em uma época em que o mundo intelectual do
''11
,, tadas por Montaigne foi a crise do conhecimento científico. século XVI estava desmoronando, fez com que seu nouveau
:i Em uma época em que toda a visão científica de Aristóteles pyrrhonisme fosse, não o beco sem saída como o considera-
se encontrava sob ataque, a extensão das crises religiosa c
"Busson, Sources et DétJeloppement, págs. 434-449.
"E~ relação ao que é dito aqui, deve-se lev"ar em conta o artigo recente por Ela in e
L1mbruck, "Was Montaigne really a Pyrrhonian?", em Bibliothf:que
na Apo/ogie se encontra em Brush, Mmuaigue and Bayle, cap. IV, págs. 62-120. d'Humanisme ct Renaissauce, XXXIX(1977), págs. 67-80.
ram historiadores como Copleston e Weber44, mas uma das O fideísmo de Montaigne é compatível com qualquer
forças fundamentais na formação do pensamento moderno. uma das duas interpretações. Tanta faz que Montaigne esti-
Ao englobar as tendências céticas implícitas na crise daRe- vesse de fato tentando minar o cristianismo ou defendê-lo,
forma, a crise do humanismo, e a crise científica, em uma em ambos os casos ele poderia ter formulado o mesmo non
crise pyrrhonienne total, a genial Apologie de Montaigne sequitur que formulou, isto é, uma vez que se pode duvidar
tornou-se o coup de grâce de todo um mundo intelectual. Foi de tudo, devemos aceitar o cristianismo com base exclusiva-
também a incubadora do pensamento moderno, no sentido mente na fé. Tal afirmação foi feita por Hume e Voltairc,
de que levoU à tentativa seja de refutar o novo pirronismo, aparentemente de má fé, e por Pascal e Kierkegaard, aparen-
seja de encontrar um modo de viver com ele. Assim, ao lon- temente de boa fé 47 • O tipo de pirronismo cristão apresenta-
go dos séculos XVII e XVIII, Montaigne foi visto, não como do por Montaigne e seus discípulos foi considerado por al-
uma figura de transição, ou como alguém fora das principais guns líderes religiosos como a melhor das teologias, e por
correntes de pensamento de sua época, mas sim como o fun- outros como puro ateísmo48 ,
dador de um importante movimento intelectual que perma- Creio que tudo o que podemos fazer ao avaliar a since-
necia preocupando os filosófos em sua busca da certeza4s. ridade dos supostos fideístas é fazer uma conjectura prová-
Antes de deixarmos Montaigne, é preciso dizer uma vel com base em seu caráter e em suas atividades. Os especi-
palavra sobre o irritante problema de suas intenções. Ao lon- alistas contemporâneos que consideram fraudulento o
go dos séculos em que desempenhou um papel tão importan- pirronismo dos libertins do século XVII, ao mesmo tempo
te na vida intelectual do mundo moderno, talvez só inferior a aceitando o de Montaigne como autêntico, enfrentam um
Erasmo, Montaigne foi interpretado tanto como um cético problema difícil, já que suas opiniões são quase idênticas. As
total, duvidando de tudo, até mesmo das posições religiosas
que pretendia defender, quanto como, mais recentemente,
um sério defensor da fé. ( "Montaigne, não-cristão! É possí- Montaignc acerca da religião é apresentada em Cassirer, Erkemttnisproblem, I,
vel que isto tenha sido dito em algum momento?") 46 Não é págs.I89-190. Frame, em seu artigo recente, "What next in Montaignc Studies?",
Fre11ch Relliew, XXXVI, 1963, pág. 583, afirma que "com toda a discussão
,, '
possível aqui avaliar as evidências oferecidas por ambas as
interpretações, mas algumas observações, que serão mais tar-
sobre o ceticismo de Montaignc c todo o _debate sobre sua religião, nós devería-
mos ter avançado mais do que avançamos. Acho que a discussão chegou ao fim
-pelo menos por ora - c que o ônus da prova pertence àqueles que na tradição
de desenvolvidas neste estudo, devem ser feitas. de Saint-Bcuvc-Armaingaud-Gide consideram Montaigne um pérfido incrédu-
lo". Logo em seguida, Frame indica as dificuldades em se decidir quais as verda-
deiras crenças religiosas de Montaignc. Após eu ter escrito isto, o finado Don
Cameron Allen reafirmou a interpretação irreligiosa de Montaigne em seu Doubt's
" Frcderick Co.plcston, A History o( Philosophy, OckiMm to Suarez, vo!. IH, Bouud/ess Sca (Balrimore, 1964), cujo capítulo Jll é intitulado "Thrce Frcnch
(\Vcstminster, Maryland, 1953), págs. 228-230; c Alfrcd Wcbcr, History o( Athcists: Montaignc, Charron, Bodin".
:I Philosophy, (Nova Iorque, 1925), pág. 218. 47 Cf. David Humc, Dialogues CottCeming Natural Religion, editado por Nonnan
I "Ver, por exemplo, a discussão de Montaignc na Geschichte des Skeptiâsmus de Kcmp Smith, 2a. Ed., Londres e Edinburgo, 1947, pág. 228; Voltaire, Dictiomwire
'' Stüudlin, vo!.ll; ou a avaliação de Montaignc em J. H. S.Formcy, Histoire Abrégrfe
de la Phi/osophie (Amsterdam, 1760), no capítulo "De la secte des sceptiques
Pbilosophíque, editado por Julien Bcnda c Raymond Naves, Paris, 1954 verbe-
te ufoi", págs. 202-203; Blaisc Pascal, Pensées, cd. por Brunschvicg, co~ intro-
modcrns':, págs. 243-248. dução c notas por Ch.-Marc Des Grangcs, Paris, 195 I, número 434, págs.183-
'' Cami\lc Aymonier, "Un Ami de Montaignc, Lc Jésuitc Maldonat", Rerme 186; c ~ercn Kicrkcgaard, Philosophiwl Fragmems or A Fragmento( Philosophy,
Historique de Ilordeaux ct du Départmcnt de la Gironde, XXVITI, 1935, pág. ~raduz1do por David F. Swcnson, Princeton, 1946, especialmente caps.lll e IV e
25. A melhor exposição desta interpretação aparece na obra do abade Maturin 1nterlude". Ver também R.H.l'opkin, "Humc and Kierkegaard ",em ]ou mal o(
Dréano, ta Pensrfe Religieuse de Montaigne, Paris, 1936. Ver também Clément Re/tg<on, XXXI, 195 I, págs. 274-281; c "Theological and Re!igious Scepticism"
Sdafcrt, "Montaigne et Ma\donat", Bul/etilt de Littérattae Ecclésiastique, UI, ,. em Christim1 Scholar, XXXIX, 1956, págs. I50-IS8. '
:11 19.'il• págs. 65-93 c 129-146. Uma interpretação bastante diferente da visão de Cf. Caps. IV c VI.
:r
personalidades destes pensadores, tanto quanto se pode esti- seu mentor, Montaigne, e também devido a seu repúdio do
mar após tanto tempo, admitem tanto uma interpretação libertinismo. Mas, em sua época, e nos cinqüenta anos logo
religiosa quanto uma não-religiosa. Minha visão pessoal é após a sua morte, Charron teve uma influência pelo menos
que, no máximo, Montaigne foi moderadamente religioso. tão grande quanto a de seu mestre no sentido de intensificar
I Sua atitude parece ser mais de indiferença ou de aceitação a ruptura com a tradição e na formação da ideologia tanto
'111 sem entusiasmo, sem qualquer experiência ou envolvimento da libertinage érudit quanto na da Contra-Reforma france-
religioso sério. Ele se opôs ao fanatismo, principalmente sa. Devido ao fato de ter sido um teólogo profissional,
manifestado pelos reformadores franceses, mas ao mesmo Charron pôde conectar o ceticismo de Montaigne de modo
tempo não parece ter tido as qualidades espirituais caracte- mais sistemático com as principais correntes anti-racionalistas
rísticas dos grandes líderes da Contra-Reforma na França no pensamento cristão, com isso oferecendo um cristianismo
como São Francisco de Sales, o cardeal Bérullc e São Vicente pirrônico mais completo ao unir as dúvidas de Pirro com a
de Paula49, teologia negativa dos místicos. Da mesma forma, uma vez
Independentemente das convicções pessoais que que Charron tinha sido um doutor culto, ele pôde defender o
Montaigne possa ou não ter tido, seus escritos tiveram um novo pirronismo de um modo em que este poderia ser estu-
papel imenso no mundo intelectual do século XVII. O im~ dado por aqueles que foram treinados pela escolástica, ao
pacto do pirronismo de Montaigne deu~se tanto diretamente contrário do modo mais assistemático e, em sua época, con-
através da influência dos Essais, que foram amplamente li~ siderado mais esotérico, do Sócrates francês.
dos e reimpressos nos anos logo após sua publicação inici- Quem foi Pierre Charron? Nasceu em Paris em 1541, de
atso, quanto também através da apresentação mais didática uma família de vinte e cinco filhos. De alguma forma conse-
feita por seus discípulos, o padre Pierre Charron e Jean~Pierre guiu freqüentar a Sorbonne, onde estudou grego, latim e filo-
Camus, bispo de Bellay. sofia. Depois disso, foi para Orléans e Bourges estudar direi-
Pierre Charron é uma figura esquecida no desenvolvi- to, tendo obtido o título de Doutor em direito. Exerceu sua
mento da filosofia moderna, esquecida sobretudo porque nem profissão em Paris por algum tempo, aparentemente sem
seu pensamento, nem seu estilo alcançaram o nível dos de muito sucesso, já que não era bem relacionado na corte. Vol-
tou-se então para a teologia, tornando-se um renomado teó-
logo e pregador. A rainha Margarida escolheu-o como seu
•• Pesquisas recentes me levam a crer que não será possível a-:_aliar quais as rca~s predicateur ordinaire, e Henrique IV, mesmo antes de sua
crenças religiosas de Momaignc c de Sanchez, enquanto nao soubermos mats
acerca dos pontos de vista e das práticas religiosas das famílias de refugiados conversão ao catolicismo, freqüentava seus sermões. A carrei-
,, cristãos-novos de Bordcaux c Toulousc. Eram estas famílias criptojudaicas, cris- ra de Charron consistiu em ser théologal de Bazas, Acqs,
tãs genuínas, cristãs apenas no nome, ou o quê? Uma vez que t_anto Montaigne
quanto Sanchez cresceram c viveram entre cristãos-novos de ongem portuguesa
Leictoure, Agen, Cahors, e Condom, bem como chanoine e
e espanhola do sul da França, suas "verdadeiras" crenças provavelmente estão écolâtre da igreja de Bordeaux. Apesar de seu imenso suces~
J. relacionadas às crenças dessas pessoas com quem conviveram. Alg.uns d~dos que so, ele desejou abandonar sua vida mundana e retirar-se para
encontrei parecem sugerir que o criptojudaísmo estava bastante dtsscmmado no
I sul da França no sêculo XVI, especialmente em Bordeaux, e que quase todas as um claustro. Entretanto, como já tinha quarenta e oito anos,
:~·
famílias de cri>tãos-novos eram suspeitas de praticarem secretamente o judaís- foi recusado por duas ordens religiosas devido à idade, e foi
I
' ' mo.
aconselhado a permanecer no mundo secular. Em r 5 89, para
" <0 Para um estudo detalhado do impacto de Montaigne, ver Alan M. Boase, The
Forttmes of Moutmgne: A History o{ the Essays in Frauce, 1580-I 669, Londres, o bem ou para o mal, após ter fracassado em sua tentativa de
"' 1935; e sobre o período imediatamente após a publicação dos Essais, a obra de
entrar para o claustro, aconteceu o mais importante evento na
l'ierrc Villey, Montaigne deuant la postérité, Paris, 1935·
I'
vida de Charron, seu novo encontro com Michel de Mon~ apenas de um bispo excêntrico, Claude Dormy. Suas obras
taignes•. Durante os últimos três anos da vida de Montaigne, só se tornaram significativas por volta de 1620. São necessá-
Charron estudou e conversou com ele, adotando como suas rios mais dados para decidir qual a versão correta, se a ofici-
as visõe!; céticas do Sócrates francês. Montaigne encontrou no al, se a revisão sugerida por Soman.}H
pregador o herdeiro intelectual ideal, e deixou-lhe um vasto Charron dedicou-se a duas vastas obras após a morte
legado mundano e espiritual, ao mesmo tempo que o adotou de Montaigne. Em 1594 apareceu em Bordeaux sua obra
como seu filho. (O único presente que, segundo sabemos, teológica, Les Trois Veritez, sendo atacada por ateus, pa-
Montaigne deu a Charron em vida foi uma obra herética, o gãos, judeus, muçulmanos, e, principalmente, calvinistas. Sua
catecismo do reformador extremamente liberal, Ochino.) parte principal consiste em uma resposta ao Reformador
Após a morte de Montaigne, Charron revelou a verdadeira Duplessis-Mornay. No ano seguinte após a publicação de
extensão de seu legado, mostrando em seus escritos uma uma resposta, Charron publicou uma nova edição bastante
!" magnífica união entre ceticismo e catolicismo 51 • ampliada. A outra obra, seu escrito filosófico, La Sagesse,
(A principal fonte de informações biográficas sobre apareceu em I6oi, sendo um livro em grande parte baseado
Charron e seu relacionamento com Montaigne é o Eloge às nos Essais de Montaigne. Charron faleceu em 1603 enquan-
suas obras publicado em 1606 após a sua morte por Gabriel to preparava uma versão revista e um pouco mais moderada
'' Michel de la Rochemaillet. Recentemente Alfred Soman le- de La Sagesse. Uma luta feroz foi desencadeada por seus
vantou sérias dúvidas sobre a correção deste relato, em gran- opositores teológicos e filosóficos visando impedir a
de parte porque não pôde ser confirmado. Montaigne nunca reimpressão desta obra, porém em 1604 a versão ampliada
mencionou Charron em nenhum documento que tenha so- foi publicada, sendo seguida de um grande número de re-
brevivido e os amigos de Montaigne não pareciam conhecer impressões no início do século XVIIH,
Charron. Além do livro que Montaigne teria dado a ele, a Les Trais Veritez pretendia ser fundamentalmente um
única evidência sólida existente é que Charron deixou em tratado no espírito da Contra-Reforma contra o calvinismo,
seu testamento uma grande quantia em dinheiro à irmã de mas de modo a preparar o palco para a cena principal,
Montaigne. Charron discute a verdade primeira, a existência de Deus.
A partir do exame dos dados Soman argumenta que Apresenta aí um "Discurso sobre o conhecimento de Deus"
I Charron foi na verdade um teólogo medíocre sem lugar de no qual relaciona o fideísmo de Montaigne à tradição da
' destaque no mundo das letras, tendo conseguido proteção teologia negativa. Argumenta que a natureza e a existência
de Deus são incognoscíveis tendo em vista "nossa fraqueza e
''Seu primeiro encontro com Montaigne foi aparentemente em 1586. a grandeza de Deus"ss, A infinitude de Deus ultrapassa qual-
"Para informação sobre Charron ver Jean-Baptiste Sabrié, De /'Humanisme au quer possibilidade de conhecimento, uma vez que conhecer é
Rationalisme: Pierre Cl!arron (1541-1603), 1'/;omme, l'ouevre, l'influe>lCC, Pa-
ris, 1913. A cópia de Ochino está na l\ibliothi:que Nationale, Rés.D2, 5240. O definir, delimitar, e Deus está além de qualquer limite. Os
pro f. Jean D.Charron questionou recentemente a afirmação de que os pontos de
vista de Charron foram todos derivados de Montaigne, insistindo na originali·
da de do pensamento de Charron. Ver seu "Did Charron Plagiarized Montaigne?",
'! na French Review, XXXIV, 1961, págs. 344-351. Sobre este ponto ver a respos-
ta do pro f. Floyd Gray, "Rcflexions on Charron 's Dcbt to Montaigne", na Fre>!cb n Alfred S?m:m, "Picrrc Charron: A Rcvaluation", em Bibliothi:que d'Hummúsmc
Re11iew, XXXV, 1962, págs. 377-382. Com base nas evidências apresentadas 50
~t Renmssance, XXXII, 1970, pág;. 5?"79 .
i.·
cu ainda manteria a posição de que o ceticismo de Charron é basicamente deri- der, por. e~cm~lo, o gra?dc número de edições relacionada> no catálogo publica-
vado de Montaigne, sendo apenas apresentado de forma mais organizada, um '' p_o da B1bhothequc Nanonalc, sendo que esta lista não é nem de longe exaustiva .
., I ponto de vista que o prof. Gray parece compartilhar. !erre Charron, Les Tro1s Veritez.l'aris, IS95· pág. I7.
'.l

~,:
no
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maiores teólogos c filósofos não sabem nem mais nem me- ja Católica é a única verdadeira Igreja. O argumento é basica-
nos acerca de Deus do que o mais humilde artesão' 6 • E mes- mente negativo, mostrando que à luz de evidências históricas,
mo que Deus não fosse infinito, a fragilidade do homem é tal tais como milagres e profecias, as outras posições não são
que mesmo assim não poderia conhecê-Lo. De modo muito razoáveis. O principal ataque negativo é lançado contra os
breve Charron menciona algumas das razões habituais, deri- calvinistas, argumentando que fora da Igreja nenhuma verda-
• vadas principalmente da análise histórica das mudanças nas
opiniões humanas, que nos levam a duvidar de nossa capaci-
de religiosa pode ser encontrada, nenhuma leitura das Escri-
turas legitimada, c, portanto, apenas se aceitarmos a autorida-
dade de conhecer qualquer coisa, natural ou sobrenatural, de da Igreja podemos encontrar uma autêntica regra de fé. As
declarando em seguida, " Ó que triste e miserável é o homem alternativas propostas, a luz interior e as Escrituras, são rejei-
e todo o seu conhecimento! Ó que tola c insana pretensão de tadas, a primeira porque é privada, pouco clara e incerta, e a
pensar que se conhece a Deus!"S7 A única maneira de se co- segunda porque o sentido das Escrituras é indefinido exceto
nhecer a Deus é conhecê-Lo negativamente, conhecer o que quando interpretado pela Igreja. As Escrituras são apenas um
Ele não éS 8 • Positivamente, "O verdadeiro conhecimento de conjunto de palavras, cujo significado verdadeiro só pode ser
Deus é a completa ignorância Dele. Aproximar-se de Deus é estabelecido por um juiz verdadeiro, a lgreja 6 ~. Charron con-
ter consciência da luz inacessível e ser absorvido por ela" 59. clui com uma exortaçilo aos cismáticos, na qual eles são acu-
Uma vez tendo unido a posição do teólogo negativo de sados de "orgulho insuportável" e de "presunção excessiva"
que Deus é incognoscível porque é infinito à afirmação do ao julgar que a tradição religiosa de tantos séculos está erra-
cético de que Deus é incognoscível devido à incapacidade da, e que outra deve substituí-la63. Ao lançar dúvidas em rela-
humana de conhecer o que quer que seja, Charron empregou ção ao catolicismQ, os calvinistas tiveram a afronta de tomar
este duplo fideísmo para atacar os ateus 60 • A evidência que as suas próprias fracas e miseráveis faculdades mentais como
eles apresentam para pegar a existência de Deus depende de critério da verdade religiosa. O calvinismo, segundo-Charron,
definições de Deus das quais conclusões absurdas são deri- é a forma mais perigosa de dogmatismo no sentido de que
vadas. Mas estas definições são simplesmente exemplos da tenta fazer do homem a medida das questões mais importan-
presunção humana de medir Deus em termos humanos. Suas tes, e insiste que as medidas humanas devem ser preferidas a
conclusões são sem valor, já que o ateu não pode saber do quaisquer outras. O homem, sem a certeza fornecida pela Igre-
que está falando 6 '. ja através da tradição e da autoridade, cairá totalmente na
O restante de Les Trois Veritez consiste em um típico dúvida, porque as próprias fraquezas humanas, sem outras
tratado contra-reformista no qual Charron tenta mostrar de formas de apoio, naturalmente geram o ceticismo. Assim, ao
maneira tediosa que devemos acreditar na existência de Deus, destruir o único fundamento sólido da verdade da religião de
que o cristianismo é a única religião verdadeira, e que a Igre- que dispomos, os calvinistas fazem com que a religião dependa
do juízo humano que é sempre dúbio, e nos deixam sem ne-
'' lbid., págs. 19-20.
nhuma certeza64.
"l'ierre Charron, Les Trois Veritez. Dcrniere cdition, l'aris, I635, pág. 15, em A teoria subjacente a este tipo de catolicismo que se
Toutes les Oetwres de Pierre Charrou, Paris, 1635. baseia apenas em um completo ceticismo aparece mais expli-
<' lbid., pág.I8.
"Charron, Trois Veritez, Paris, cd. de 1595, pág. 26.
""Sexto Empírico é incluído entre os ateus como "Sextos Empyricus, grand professeur :• lbid., Livre Troisiimte, especialmente págs. 2I5-249, 280 c 306.
du Pyrrhonisme'', ibid., pág. 67 {67 está numerada erroneamente como 76). ~ Ibid., págs. 552 . 55 s. ·
"' Ibid., págs. 67-70. Ibíd., págs. 554•558 .

"' "'
~I
citamente na obra filosófica de Charron, La Sagesse, e em teoria do conhecimento aristotélica, mostrando que se nossa
sua defesa dela, Le Petit Traicté de Ia Sagesse. O principal razão dispõe apenas dos dados sensoriais para operar, então
tema desta obra é que o homem é incapaz de descobrir qual- está fadada a ser tão incerta quanto sua fonte.) Além disso,
quer verdade exceto pela Revelação e, em vista disso, nossa mesmo os homens supostamente racionais discordam acerca
li
.I
!;
:I:
. vida moral à exceção de quando guiada pela Luz Divina,
deve basear-se em seguir a natureza. Este tratado de Charron
é pouco mais do que a Apoiogie de Montaigne em uma for-
de tudo; com efeito, não.há um juízo formulado pelo homem
que não possa ser contestado por "boas" razões. Não temos
padrões ou critérios que nos permitam distinguir a verdade
ma mais organizada. Ao ordená-la desta maneira, Charron da falsidade. Acreditamos nas coisas por paixão ou pela for-
produziu um dos primeiros textos filosóficos em linguagem ça da pressão da maioria. A isto se acrescenta que as grandes
moderna. Também, na medida em que desenvolve uma teo- mentes racionais conseguiram pouco mais do que justificar
ria da moralidade independente de considerações religiosas, opiniões heréticas, ou derrubar posições anteriores {como o
a obra de Charron representa um importante passo na sepa- fizeram Copérnico e Paracelso). Portanto, é melhor enfren-
ração entre a religião e a ética como uma disciplina filosófica tarmos o fato de que apesar de nossa suposta racionalidade
independente. A ética de Charron baseava-se em elementos somos na verdade apenas animais, e não dos mais impressi-
do estoicismo. onantes. Ao invés de buscarmos a verdade, devemos aceitar
O argumento de La Sagesse inicia-se com a proposição o dito de Montaigne: "Não podem haver primeiros princípi-
de que "o verdadeiro conhecimento e o verdadeiro estudo do os para o homem, exceto se Deus os revelou: tudo o mais é
homem é o homem" 6s, e que o entendimento do homem leva, apenas sonhos e fumaça" 67 ,
I de uma maneira um tanto surpreendente, ao conhecimento No segundo livro de La Sagesse, Charron apresenta
' de Deus. Parte deste tipo de autoconhecimento é proveniente seu discours de Ia méthode, os meios para se evitar o erro e
do exame das faculdades humanas, em primeiro lugar os sen- encontrar a verdade, uma vez que as faculdades humanas
tidos, porque as escolas ensinam que todo o conhecimento são tão fracas e pouco confiáveis. Devemos examinar todas
nos vêm dos sentidos. Charron desenvolve em seguida a crí- as questões com liberdade e sem paixões, deixar os precon-
tica de Montaigne ao conhecimento sensível, mostrando que ceitos e emoções de fora de nossas decisões, desenvolver uma
podemos não ter todos os sentidos necessários para o conhe- mente universal e rejeitar toda e qualquer solução que seja
cimento, que há ilusões sensoriais, que as experiências sensí- duvidosa 68 , A atitude cética é o que presta mais serviço à
veis variam, dadas as condições diferentes em nós e no mun- piedade, à religião, ao trabalho divino, mais do que qual-
do externo. Portanto, não temos como decidir quais as sen- quer outra coisa59, ao nos ensinar a nos esvaziarmos de todas
sações que são verídicas c quais as que não o são; logo, não as opiniões e ao preparar nossas almas para Deus. Quando
temos nenhum meio de obter informação segura através dos aplicamos o método charroniano da dúvida sistemática até
sentidoé6• limparmos totalmente a mente de todas as opiniões duvido-
N assas faculdades racionais também não são confiáveis.
'I (A maior parte do argumento de Charron é voltada contra a
.., lbid., livro I, caps. xiii-xl. A citação se encontra na pág.I44·
•• Ibid., livro TI, eaps. i-ii, págs.IO·J2. Ver tamhêm Sabriê, Humauisme au
ratimwlisme, eap. xii, especialmente págs. 303-319; c R. H. Popkin, "Charron
"' Picrrc Charron, La Sagesse em Totttes /es Oeuvres de Fierre Charron, l'aris, and Descartes: Thc Fruits of Systcmatic Doubt", no ]oumal o{ Pbilosopby, LI,
1635, pág.I. (Cada obra neste volume tem paginação separada.) I954, pág. 8p..
"'· Ibid., livro I, cap. X, págs. 35·39· •• Charron, La Sagesse, livro 11, eap. ii, pág. :u.
sas, então podemos nos apresentar "puros, nus e prontos" para o conhecimento seguro. Enquanto Deus agir, suprindo
diante de Deus70• Quando chegamos a este ponto, a Revela- a verdàde revelada, o homem está seguro em sua completa
ção pode ser recebida e aceita com base na fé apenas. A van- ignorância natural. Podemos nos desfazer de todo apoio ra-
tagem deste treinamento pirrônico é que "um acadêmico ou cional na busca da certeza, e esperar o apoio do Céu. Se acei-
um pirrônico jamais será um herege" 71 • Uma vez que o efeito tamos, como aparentemente Charron o fez, a posição segun-
• do método da dúvida é remover todas as opiniões, o prati-
cante não pode ter opiniões errôneas. As únicas opiniões que
do a qual Deus, através da Igreja Católica, nos supre de uma
revelação contínua, podemos questionar todas as evidências
ele terá serão aquelas que Deus quiser imprimir nele. (Se al- e padrões empregados para justificar a regra da fé e jamais
guém sugerir que além de não ter nenhuma posição pouco perder a fé7~.
ortodoxa o pirrônico charroniano pode não ter simplesmen- Maryanne C. Horowitz discordou de minha interpre-
te nenhuma opinião e tornar-se indiferente ao invés de cris- tação da visão de Charron sobre a fonte da sabedoria7s. Ela
tão, Charron responderá que isto não é uma questão de es- insistiu que uma análise cuidadosa do texto revela que
colha, Deus, se quiser, pode forçar uma decisão. F~ Charron foi um neo-estóico. Penso que podemos concordar
. O sábio cético, tendo se purgado de todas as opiniões, que Charron foi um pensador bastante eclético. Ele tomou
vtve, à parte os mandamentos divinos, segundo uma morale de empréstimo um grande número de idéias de Montaigne,
provisoire, vivendo de acordo com a natureza. Esta mas também deDu Vair e de outros pensadores estóicos clás-
moralidade natural faz dele um nobre selvagem, mas não um sicos e contemporâneos seus. Muitos autores deste período,
ser humano perfeito. A Graça de Deus é necessária para se como o finado Julien Eymard D'Angers indicou76 , utilizaram
alcançar a virtude completa. Mas, na falta desta ajuda, o idéias e material do estoicismo. Apesar disso o que podemos
melhor que podemos conseguir em nossa ignorância é rejei- considerar como a mensagem e o significado de Charron é o
tar todo o pretenso conhecimento e seguir a natureza. Este seu pirronismo cristão. (A evidência de que ele alterou algu-
programa, embora insuficiente para nos dar a salvação, ao mas passagens de seu texto não indica que ele estava tentan-
menos nos prepara para a ajuda Divina. E, até que esta ajuda do mudar sua posição, mas apenas que estava tentando ter
nos seja dada, fazemos o melhor que podemos ao sermos seu livro aprovado.}n
céticos e naturais73. O completo pirronismo cristão de Charron foi consi-
Assim, de acordo com Charron, o pirronismo fornece derado, como logo veremos, uma faca de dois gumes. Mui-
a base intelectual para o fideísmo. O reconhecimento da in- tos líderes da Contra-Reforma na França o consideraram
capacidade do homem em conhecer qualquer coisa com cer-
teza pelo uso de suas próprias faculdades o livra de todas as '• Cf. Popkin, "Charron c Descartes", págs. 832-835.
opiniões falsas e duvidosas. A partir disso, diferentemente 75
Maryanne Cline Horowitz, "Pierre Charron's VÍew o f tbc Source o f Wisdom",
Jouma/ of the History of Philosophy, IX, 1971, págs. 443·457·
do cogito cartesiano que descobrimos em nossa mente e que '" J?_lien Eymard D'Angcrs, "l.c stoicisme en Francc dans la prcmii:rc moitié du
desfaz toda a incerteza, o ato da Graça fornece a única base s1~clc; les origines 1575-1616", em Etudes Frm1ciscaiucs, nouv. sér.ll, dez.1951,
pags.389-410.
"Alfrcd Soman, "Mcthodology in the History ofldcas: The Case ofPierre Charron",
emjouma/ o( the History of Phi/osophy, Xll, 1974, págs. 495-sor; resposta de
70 Ibid., livro H, cap. ii, pág. 22. Maryanne Cline Horowitz, "Complcmcntary Methodologies in the History of
7' Ibid., loc.cit. Ideas", mesmo número, págs. 501-509. Ver também L. Auvray, "l.cttrcs de Pierre
"Ibid., _ioc.cit., e ~harron, Tra!cté de Sagesse, Paris, 1635, pág. 225 (esta obra é fharron a Gabriel Michel de la Rochcmaillet", em Rcvue d'Histoirc Littéraire de
tambcm conhcc•da como Pet1t Traicté de Sagesse). a Frauce, I, 18 94, págs. 30 8_ 329 .
'' Charron, Petit Traicté, pág. 226.

n6
como a base filosófica ideal para a sua postçao frente ao do tinha apenas dezenove anos. Embora mais tarde ele se sen-
calvinismo78 , Outros viram nos argumentos de Charron uma tisse embaraçado pelo tom leve desta obra, ela contém de fato
insidiosa corrosão de todas as crenças, naturais e sobrenatu- sua posição fideísta básica. Mesmo tendo posteriormente
rais. Uma vez tendo chegado até a dúvida, o cético continu- condenado o estilo e a forma literária de Montaigne, nunca
aria duvidando de tudo, mesmo das verdades do cristianis- abandonou as idéias deste, e chegou mesmo a defender seu
mo, até tornar-se um libertin c, uma geração mais tarde, um mentor contra a acusação de ateísmo 8 ~.
espinozista. Desta forma, os adversários de Charron viram O Essay foi escrito quando "eu era então recém-saído
sua obra como "o breviário dos libertinos"79, Charron, ele da oficina de Sexto Empírico" 8 >. É uma tentativa de tipo bas-
próprio, pode ter sido um fideísta sincero e não um "ateu tante novo de produzir uma suspensão de juízo pirrônica
secreto" 8o, pelo menos assim o sugerem sua longa carreira como preparação para a verdadeira fé. Como Pierre Villey
teológica e seu piedoso Discours Chrétien. Independentemen- indicou, "o medo do racionalismo protestante está na base
te de qual tenha sido sua posição pessoal, Charron teve, en- do ceticismo de Camus" 84, portanto, ao minar as pretensões
tretanto, uma influência comparável apenas à de Montaigne racionalistas humanas, ele apresenta uma defesa fideísta do
tanto nos intelectuais franceses de vanguarda do século XVII catolicismo.
quanto nos teólogos ortodoxos desta época. Aqueles que ten- A defesa do ceticismo por Camus tem um caráter úni-
taram denunciá-lo no início do século XVII descobriram que co, embora, como ele próprio foi o primeiro a admitir, o
uma estranha aliança de poderosos defensores montava guar- conteúdo "seja apenas um puro resumo de Sexto Empírico",
da diante da memória do padre Pierre Charrons'. c o estilo uma imitação de Montaigne85, Em vez de vagar
Um outro discípulo de Montaigne neste período foi pelos vários temas da filosofia pirrônica, como Montaigne,
Jean-Pierrc Camus, rs84-1654• que foi doutor em direito aos ou de juntá-los em uma bateria de argumentos principalmente
dezoito anos, padre alguns anos depois e bispo de Bellay aos contra o aristotelismo, como Charron, Camus criou uma vasta
vinte e cinco. Tornou-se secretário de São Francisco de Sales estrutura hegeliana consistindo em tese, antítese e síntese. A
c passou a maior parte de sua vida escrevendo novelas pasto- tese é o ceticismo acadêmico - nada pode ser conhecido -
ris e atacando as ordens monásticas. Sua obra mais filosófica, a antítese é o dogmatismo - algo pode ser conhecido - e a
o Essay Sceptique, foi escrita antes de sua vida religiosa, quan- síntese, a "indiferença cética", a suspensão pirrônica do juízo.
A maior parte da obra, cerca de 300 páginas, é dedicada
à tese. Após um ataque genérico às bases do conhecimento
1•O cardeal du Perron, o bispo C!aude Dormy c Saint-Cyran, o líder janscnisra, humano, especialmente do conhecimento sensível, usando os
todos estes aprovaram a teologia de Charron (embora por vezes com reservas).
Discutiremos isto no próximo capítulo.
'"Quem o coosiderou assim foi o padre François Garassc, S. J., que será discutido
no capítulo VI. Algumas críticas a Charron são examinadas em Hcnri Bremond, ''Sobre Camus, cf. Boa se, TI! c Fortrmes of M01rtaignc, págs. 114-134.( A defesa de
"La Folle Sagcssc de Pierre Charron", em te Correspolldant, CCUI, 1913, págs. Montaigne contra a acusação de fidcismo é levada em conta na pág.r2o.) Villcy,
Mo_?~aigue deuant la l'osterité, págs.r85-2.34; c Julicn Eymard d'Angers, Du
357-364.
'"Acerca do problema de como avaliar Charron, ver meu artigo sobre ele na edição Storctsmc Chrétieu à /'Humamsmc Cbràieu: Lcs "Di11rrsités" de]. I'. Camus
mais recente da Eucydopacdia Brittanica. Jean Charron defendeu a sinceridade c (!609-1618) (n .p. 1952). O verbete de Baylc sobre Camus contém um interes-
a ortodoxia da visão de Picrrc Charton em seu Tbc "\Visdom" o( Picrrc Clmrr01z, sante material anedótico.
An Original and Orthodox Code o{ Mora/tly, Univcrsity o(Norrb Carolina Stm/ics "' Jcan-Picrre Camus, Essay ScefJtique, em Les /)iiiNSitCZ de Messire ]eau-l'ierrc
in thc Romance Languages and Literaturcs, n". 34, Chapcl Hill, 1961. Discuti isto famus, Evesquc & Seigr1eur de Bel/ay. l'riucc de I'Empirc, tomo IV, Paris, 16ro
com algum detalhe em minha resenha de Eu gene F. Rice,Jr., T/Je Rcuaissance Idca '• t;ro XV, cap. iii, pág. 187v. '
o{Wisdom, em Rcnaissmrce Ncws, XII, 1959, págs. 2.65-2.69. • ~dlcy, Montaignc dcuaut la l'ostcrité, p:Íg. 202.
"Cf.cap.IV c a discussão do a((airc Garassc no cap.VI. ' amus, Essay Sccptiquc, págs ..~68r c r89r.

n8
argumentos familiares de Sexto e de Montaigne, Camus bom- repetir todos os detalhes da primeira parte, sugerindo aos
bardeou as cidadelas individuais do dogmatismo, as várias interessados que lessem diretamente Sexto Empírico. 88 (Uma
ciências. Levando em consideração cada uma individualmen- reimpressão da edição de 1596 tinha acabado de ser
te, Camus procurou mostrar que há dificuldades teóricas que publicada.) 89
tornam impossível obter o conhecimento certo, há proble- Um tom fidcísta permeia todo o Essay, declarando que
mas práticos insolúveis e razões suficientes, em cada caso, o melhor é uma fé sem razões, uma vez que não está erguida
para se duvidar que a ciência em questão tenha qualquer sobre fundamentos instáveis que alguns dos novos Arquime-
valor. Esta ampla disCussão cobre a astronomia, a física, a des podem derrubar. As únicas verdades que os homens po-
matemática, a fógica, a jurisprudência, a astrologia, a políti- dem conhecer são aquelas que Deus quis nos revelar, "tudo
ca, a economia, a história, a poesia, a gramática e a música, o mais é apenas sonhos, vento, fumaça e opiniões"'~'>, Deve-
dentre outras disciplinas. (Mais uma vez, Copérnico é intro- mos suspender o juízo e aceitar a revelação com humildade.
duzido para mostrar que mesmo os mais aceitos primeiros "A fé antiga" é nossa única base, não pode nos enganar por-
princípios são negados por alguém.) 86 O material emprega- que vem de Deus. Aqueles que se recusam a aceitar este
do varia, incluindo desde argumentos de Sexto e anedotas de fideísmo católico e tentam desenvolver um caminho racional
Montaigne, até várias observações tomadas das ciências da para a fé, produzem apenas erros, heresias e teorias refor-
época. mistas. Estes são os frutos da vã pretensão humana de que
Após o desenvolvimento da tese, é feita uma tentativa sua razão pode encontrar a verdade. A solução para os pro-
fraca de cerca de 50 páginas de defesa da antítese, ou seja, de blemas humanos é desenvolver uma suspensão do juízo
mostrar que há conhecimento científico. Admite que a bate- pirrônica, que nos leva a Deus na medida em que, reconhe-
ria de objeções anteriormente apresentadas é correta, porém cendo nossa fraqueza, nos contentamos em acreditar no que
não decisiva. Algum esforço é feito no sentido de explicar a Deus nos diz9',
teoria do conhecimento de Aristóteles e sua análise dos erros Embora Camus tenha sido uma figura importante no
e ilusões sensoriais. O tema genérico é que mesmo que as século XVII c suas obras tenham sido freqüentemente
ciências estejam cheias de afirmações questionáveis, há ver- publicadas, ele não parece ter tido uma grande influência na
dades científicas das quais nenhum homem são pode duvi- maré crescente do pirronismo de sua época. Ele representa a
dar: que o fogo é quente, que o mundo existe, que 2+2=4 aceitação ortodoxa do pirronismo cristão, mas sua obra teve
etc. 87 um papel pequeno ou quase nulo na crise pyrrhonienne des-
Camus passa então à síntese, o pirronismo, suposta- te período. Foram Montaigne, Charron e Sexto que mina-
mente resultante das duas partes anteriores do Essay. Em ram as certezas dos filósofos, que serviram de inspiração e
vinte e cinco páginas ele esquematiza brevemente a natureza fonte para os céticos, e em torno dos quais as lutas contra a
do ceticismo completo e do argumento básico no qual se fun- ameaça cética se realizaram. Mesmo Bayle, sempre à procu-
damenta - o problema do critério, a incerteza dos sentidos, ra de heróis céticos, lembra Camus por seus ataques contra
e a discordância entre os dogmáticos. Mostra a visão pirrônica
em relação a várias ciências, dizendo em seguida que não iria
""Ibid., págs. J6or-370v. O comentário sobre Sexto se encontra na pág. 368r.
'• Cf. eap. li, pág. 18, n. 1·
""C~mus, Eswy Sceptiqu~, pág. 254r. Ver também p:ígs. 224r-226r, 244v e :q8r.
91
•• Ibid., págs. I90f-J35V. Copémico é mencionado nas págs. 268r e 3I9V. Ib!d., págs 274v, 278r e 335v. Ver também Boase, The Fortuues of Montaigue,
'
7
Ibid., págs. 3J6r-36or. pags.u6-127. ·

no
"'
os monges, mais do que por sua apresentação do pirronismo IV. A Influência do Novo Pirronismo
em forma dialética 9i .
O novo pirronismo de Montaigne e seus discípulos, ves-
tido em uma roupagem fideísta, iria ter uma tremenda reper- Ao final do século XVI e início do XVII a influência da
cussão no mundo intelectual, em relação à teologia, às ciên- retomada do pirronismo antigo pode ser notada em várias
cias e às pseudociências. Iremos nos dedicar em seguida à áreas da atividade intelectual.
indicação desta influência, antes de examinarmos os nouveaux Charles Schmitt mostrou que temas pirrônicos apare-
pyrrhoniens em sua glória, como a vanguarda intelectual na ceram em questões debatidas em Oxford 1 • Um caso que pode
França. ser considerado típico do que ocorreu com muitos jovens
intelectuais ingleses no início do século XVII, é o de Joseph
Mede, rs86-r638. Mede freqüentou o Christ's College de
Ca~bridge entre r6o2 e r6ro, tendo estudado filologia, his-
tóna, matemática, física, botânica, anatomia, astrologia e
até mesmo egiptologia (seja lá o que fosse isto naquela épo-
ca). Apesar de toda a sua erudição "suas leituras filosóficas o
l~v_aram ao pirronismo". Mas ele não podia aceitar a possi-
bthdade de que a mente não era capaz de conhecer a realida-
de, e poderia estar lidando apenas com idéias ilusórias acer-
ca do mundo externo\
O jovem Mede salvou-se dos labirintos de um comple-
to pirronismo por um esforço de sua vontade, em primeiro
lug~r buscando encontrar verdades na física, e em seguida se
dedtcando ao estudo de textos sobre o Milênio na Bíblia.
Tornou-se catedráticb de grego em Cambridge e sua obra-
prima, The Key to the Apocalypse (A Chave do Apocalipse),
fez dele uma figura de proa no pensamento milenarista até o
século XIX3,
O caso de Mede, que provavelmente não é único, mos-
tra ~orno o pirronismo estava triunfando em relação a visões
acettas no início do século XVII. Talvez a influência mais
sign_ificativa tenha sido nas lutas teológicas da época, para as
quats os argumentos e pontos de vista do ceticismo grego
'Charles B• Schm·,, "l'h.l
1 osop h y an d SCJCnccs
· · s·JXtccm h Ccntury UmvcrsttJO'·
m · ··
S
ed" · I ,Commcnts
ornei'r crJmmary .. , em The Cultural . Lcarning•·
Contexto f Medteval
, ]os~tato por J. E. Murdoch c E. D. Sylla, Dordrecht, I975, pág. $OI. '
•• Cf. Bayle, Dícti01mmre, verbete "Camus". Na Gesclnchte des Skep!icí:mus de L./ ~ede, The Works of ]oscp/; Mede, B. D., Londres, r67:z., T!Jc All!hor's
Stiiudlin, embora Charron receba um amplo tratamento, Camus nao e sequer lte, pag. 11.
discutido no capítulo "Von Montaignc bis la Mor hc Ie Vaycr". ' Mede ' Work s, c·tavts· & comme11tatwncs . Apocalypt1cac,. p. III.

UJ
foram considerados extremamente úteis·. O arsenal pirrônico própria fé aparece nos escritos das principais figuras da Con-
provou ser uma excelente fonte de muniçã? P?ra_devasra: os tra-Reforma na França. Durante cerca de setenta e cinco anos
adversários, bem como a base de uma teona ftdetsta que JUS- após o Concílio de T rento, parece ter havido uma aliança
tificava a posição da Contra-Reforma francesa. entre os pensadores da Contra-Reforma e os nouveaux
O uso dialético do pirronismo, antigo e novo, é exempli- pyrrhoniens, uma aliança que visava aniquilar o calvinismo
ficado no relato acerca do grande polemista protestante inglês, como força intelectual na França. O sucesso desta entente
\Villiam Chillingworth, r6o2-1644- Chillingwonh mudou do cordiale foi, sem dúvida, devido ao fato de que durante este
protestantismo para o catolicismo, c depois para o anglicanis- período a visão dominante na teologia católica na França era
mo, ambas as vezes devido à força dos argumentos, mostran- basicamente negativa e agostiniana; estes teólogos eram muito
do que cada uma destas teologias levava à incerteza total mais contra a escolástica, o racionalismo e o calvinismo, do
quanto a questões religiosas. Aubrey, em sua vida do Dr. que a favor de qualquer defesa intelectual da fé, coerente e
Chillingworth nos diz que, sistemática6 • Como veremos, esta aliança não se baseava ape-
nas em um acordo temporário entre os céticos e os católicos
Meu tutor, W. Brownc, disse-me que o Dr. ortodoxos no plano das idéias, mas era também uma aliança
Chillingworth não estudava muiw, mas quando o fa* de amizades pessoais e admiração recíproca7.
zia, estudava muito em pouco tempo. Tinha grande Em meados do século XVI o movimento calvinista na
prazer na leitura de Sexto Empírico. Dava caminha- França cresceu rapidamente, e em poucos anos o país estava
das no bosque do colégio, onde se dedicava à contem- envolvido em uma guerra civil tanto militar quanto intelec-
plação c encontrava-se com alguns tolos e disputava c tual. De modo a impedir que as cidadelas do pensamento
batalhava com eles. Era assim que ele se preparava francês caíssem nas mãos dos reformadores, medidas fortes
com antecedência. Estava sempre disputando, assim tiveram que ser tomadas. Uma dessas medidas foi colocar o
como meu tutor. Creio que era um mal epidêmico pirronismo a serviço da Igreja. O primeiro passo nesta dire-
naquela época, o qual agora creio que passou de moda, ção foi a publicação em I569 das obras de Sexto Empírico
sendo considerado uma coisa mal-educada e infanti1 4 • em latim pelo importante líder católico francês, Gentian
Hervet, secretário do cardeal de Lorena. Como menciona-
Este uso do pirronismo como uma arma em disputas reflete- mos antes, Hervet, em seu prefácio, ousadamente afirma que
se nos escritos de Chillingworth, como, por exemplo, na es- neste tesouro de dúvidas se encontraria uma resposta ao
trutura da argumentação de seus Discourses 5• Numa época calvinismo. Eles tentavam teorizar acerca de Deus, logo, ao
de controvérsias é fácil imaginar as vantagens do estilo de
debate fornecido por Sexto e seus seguidores.
O emprego do pirronismo tanto como um meio para • Cf. Henri B~sson, l.a Pensée Relrgieuse Française de Charrou à Pascal, Paris,
1933, espeaalmeme os caps. IV e V; Henri Gouhicr, "La Crise de la Théologie
se destruir o adversário teológico quanto para a defesa da
au temp_s de Descartes", em Revue de Théo/ogie et de Philosophie, 3'.série, IV,
1954 •. P:~gs. 19-54; c resenha do artigo de Gouhier por Julien-Eymard Chesneau
,' 7
Êsm Dlx·Septii!me Siilc/e, 11°,28, julho de 1955, págs. 295·297·
• John Aubrcy, "'H ri e( Lifes ", chiefly o f c.outemporaries, set do um by ]olm Aubrey, Rtet tema~ ta~bém discutido em R. H. Popkin, "Skcpticism and thc Counter-
betweeu the Years 1669 & 1696, editado por Andrcw Clark, Oxford, r898, :.~nnation m Francc", in Archiv (iir Reformationsgeschichte, LI, 1960, págs.
vol.I, pág.t?3· . .
< William Chi!lingworth, Additimml Discourses of Mr.CIJtllmgworth. uever bc,ore
1
k. J:• c em um resumo em francês, "Sccptidsmc ct Contrc-Réformc cn France"
n;c erches et Débats du Centre Catho/iquc des Jntellectucls Français, caderno'
prmted, Londres, I704. • 4o, out. 1962, págs. rsr-18 4 . '

>24

I
'I
destruir todas as pretensões humanas à racionalidade atra- O ataque começa com o problema do critério levanta-
vés do ceticismo, Hervet acreditava que as teses dos calvinistas do pela Reforma; como podemos decidir qual é a regra da fé,
seriam destruídas também. Uma vez que se reconhecesse a a medida pela qual a verdadeira fé pode ser distinguida da fé
vaidade das tentativas humanas de compreender as coisas, a falsa? Lutero e Calvino tinham desafiado o critério da Igreja,
mensagem fideísta de que Deus só pode ser conhecido pela o apelo à tradição dos Apóstolos, escrita e não-escrita, aos
fé, e não pela razão, tornar-se-ia clara8• escritos dos padres da Igreja, às decisões dos papas e concíli-
O objetivo confesso de Hervet, empregar o pirronismo os. Mas como podemos decidir se Lutero e Calvino estão
para minar as teorias calvinistas e então defender o catolicis- certos? Tudo que nos oferecem é a sua própria opinião de
mo em bases fideístas, iria se tornar a posição explícita ou que porque a Igreja pode errar e de fato erra em matérias de
implícita de muitos dos principais combatentes contra aRe- fé, por conseguinte a regra católica da fé é pouco segura e
forma na França. Ao adaptar a estrutura dos argumentos pouco confiável. Porém, como diz São Francisco de Sales em
dos céticos à questão em pauta, os pensadores da Contra- suas Controverses escritas em 1595,
Reforma construíram "uma nova máquina de guerra" para
reduzir seus adversários a um "desalentado ceticismo" em Se então a Igreja pode errar, Ó Calvino, Ó Lutero, a
que não poderiam ter certeza de nada. Começando com o quem poderei recorrer em minhas dificuldades? Às
grande teólogo jesuíta Juan Maldonat, que veio ensinar em Escrituras, eles dizem; mas o que farei, pobre homem
Paris no início da década de 1560 (Maldonat foi amigo de que sou? Pois é em relação às Escrituras que me en-
Montaigne e de Hervet, e parece ter compartilhado algumas contro em dificuldades. Eu não duvido se devo ou não
de suas idéias fideístas)9, um novo tipo de dialética foi desen- adequar minha fé às Escrituras, pois quem não sabe
volvido, especialmente pelos polemistas jesuítas, para minar que se trata da palavra verdadeira? O que me preocu-
o calvinismo em seu próprio campo, levantando uma série pa é como entender as Escrituras' 0 •
de dificuldades céticas. Encontramos este estilo de argumen-
! I tação, no todo ou em parte, em vários autores que ensina- Quem pode decidir o que as Escrituras dizem? É aqui que se
vam ou tinham estudado nos colégios jesuítas, especialmente encontra a disputa, não apenas entre católicos e reformadores,
os de Clermont e Bordeaux, tais como São Francisco de Sales, mas entre Lutero, Zwinglio e Calvino também. Se a Igreja
o cardeal du Perron, o cardeal Belarmino, e os padres Gontery erra, por que procurar uma pessoa e não outra para encon-
e Veron, por exemplo. trar a regra da fé? São Francisco de Sales formula o proble-
ma da seguinte maneira,

Mas o absurdo dos absurdos e a mais horrível das


'Gemian Hervet, prefácio à sua edição de Sexto Empírico, Adversus Mathematicos,
págs. a2r-a2v. loucuras é esta que ao mesmo tempo que mantêm que
• Avmonier, "Un Ami de Montaigne, Le Jésuite Maldonat", em Rev. Hist. de a Igreja tem estado errada por mil anos no entendi-
Bordeaux, XXVlll, 1935, págs. 5-25; c Sdafert, "Momaignc ct Maldonat", Buli.
Litt. Ecclés. Lll, 1951, págs. 65-93 e 129-146; sobre Maldonat c Hervetus ver mento da Palavra de Deus, Lutero, Zwinglio e Calvino
Joannis Ma\donati, Opera Varia Tl!eologica. Lutetiac, 1677, págs. 2-7 e ro-rs podem estar seguros de entendê-la tão bem, até mais
onde se encontram duas cartas de Ma\donat a Hervetus. Maldonat parece ter se
sentido perturbado por algumas das estranhas opiniões religiosas de seu amigo
ainda, quando um único pároco, pregando a Palavra
Hervetus. Sobre a carreira de Maldonat ver j.M.Prat, Ma/douat et l'Uuiversité ;;-,.-,c,_,-,-,---,.-
de Paris, Paris, 1856. Esta obra inclui o texto da interessante aula inaugural de ~0 rancisco de Sales, Lcs Controverses, em Oeuvres, tomo I, Annecy, 1892,
pag. 73-
Maldonat em Paris, págs. 555-567, contendo algumas sugestões de fideísmo.

n6
de Deus, pode sustentar que a Igreja errou c Calvino c era estudante), Veron tornou-se tão bem-sucedido no debate
todos os homens podem errar, e ousa escolher entre e na desmoralização dos protestantes que foi liberado de seus
todas as interpretações das Escrituras aquela que mais deveres como professor e mais tarde de sua ordem para assu-
o agrada c se acha certo dela e mantém ser ela a Pala- mir a posição de defensor oficial nas polêmicas sobre a fé
vra de Deus; e pior ainda quando vós outros que ou- contra os Reformadores, estando sempre sob a proteção do
vem dizer que qualquer um pode errar em questões de rei, sempre e em qualquer lugar. Assim, ele rapidamente se
religião, até mesmo toda a Igreja, sem desejar procu- tornou o açoite dos protestantes franceses que procuravam
rar outros pontos de vista dentre os milhares de seitas desesperadamente evitá-lo e a seus ataquesn.
que se vangloriam de compreender bem a Palavra de O método de Veron, que ele atribuía a Santo Agosti-
Deus e pregá-la bem, acreditam com tanta teimosia nho, era mostrar passo a passo tanto que os calvinistas não
em um ministro que vos prega, que não desejam ouvir tinham nenhuma base para considerar quaisquer de seus
nada diferente. Se todos podem estar errados no en- pontos de vista como artigos de fé, quanto que a aplicação
tendimento das Escrituras, por que não vós e vosso sistemática de uma série de objeções céticas à regra de fé dos
ministro? Estou surpreso que vós não andais sempre reformadores os levaria a um completo e total pirronismo.
trêmulos e tremendo. Estou surpreso que vós podeis O núcleo da redução por Veron do calvinismo ao ceticismo
viver com tanta segurança na doutrina que seguis, se total consistia em um ataque ao uso de procedimentos e evi-
não podeis todos errar, e entretanto vós mantendcs dências racionais para justificar qualquer afirmação de uma
como certo que todos têm errado c podem errar". verdade religiosa. Veron insistia que não estava afirmando
que nossas faculdades ou realizações racionais eram duvido-
Esta versão inicial deste estilo de argumentação tinha a in- sas, mas apenas que não deveriam servir de fundamento ou
tenção de mostrar que tão logo os reformadores admitissem apoio à fé, que é baseada "na Palavra de Deus apenas,
que a Igreja podia errar, negando assim a regra tradicional estabelecida pela Igreja"•;,
da fé, poderiam ser reduzidos ao desespero cético. Se o crité- O argumento se inicia pela pergunta dirigida aos
rio alternativo da verdadeira fé é o apelo às Escrituras, en- calvinistas: "Como sabeis, cavalheiros, que os livros do Ve-
tão, segundo São Francisco de Sales, o cardeal du Perron, lho e do Novo Testamentos constituem as Sagradas Escritu-
Pierre Charron, o bispo Camus e outros, ninguém pode deci- ras?"'4 Esta questão sobre a canonicidade levanta uma difi-
dir com base apenas nas Escrituras o que elas querem dizer
ou significam. Tudo o que os reformadores podem oferecer "Sobre a carreira de Veron, ver o abade P. Fuet, La Faculté de Théologie de Paris
são as opiniões duvidosas de Lutero, Calvino e Zwinglio. et.se~ docteur~ les plus célé&res, Époque Modcmc, tomo IV, XVII siêcle, Rev1te
LJttcra~r~: Pans, 190~, cap.iii, "Fra~çois Veron", págs. 53-92; c verbete "Veron,
Esta arma dialética foi incorporada à perfeita máquina ~rançms na Cat/w/Jc Encyâopedm, XV, Nova Iorque, 1912, págs. 359-360.
de guerra por dois ardentes debatcdores da ordem dos jesuí- Vayle, sc~~ndo Ha_ng c Haag, La Frm1ce Protestante, li, pág. 319, chamava
eron .de o polcnnsta autorizado. encarregado de todo o reino" .
tas, Jean Gontery e François Veron. Este último, cuja apre- ~h
ançms Veron, Metllodes de Trmter /es Colltroverscs de Religion Paris 1638
sentação iremos examinar, foi um dos mais fabulosos perso- c , pag. 170. [Rf
parti' c erir-nos-emos a esta obra como Oeuvrcs, uma 'vez ' que' se
~ata na verdade dc uma coleção de obras, e para evitar confusão com outros
nagens da Contra-Reforma. Originariamente professor de ~t;:.los ~e Veron. Igunl"!ent~ tod~s as rcfcrênci~s a esta obra são à Parte I. A
filosofia e teologia em La Flêche (na época em que Descartes IVerstdadc de St. Loms for gentil em me permrtir usar a sua cópia desta obra
rara.) '
Bib/ • La. v·IC t oneuse
'•Veron · M'let ;o de pau r combattre tous /es Mi11istrcs: Par la seu/e
c, Pans, 162.1, págs. 45 . 4 6
"Ibid., pág. 335·

u8
culdade peculiar, pois se os calvinistas mantêm que as Escri- rentes maneiras pelos caprichos de nosso intelecto"' 6 • E, por-
turas são a regra da fé, então como podemos decidir que tanto, uma vez que os escritos sagrados são apenas palavras,
obra faz parte das Escrituras? A resposta de Calvino, que é sem nenhuma instrução sobre como lê-las, precisamos de
por meio da persuasão interior pelo Espírito Santo, em pri- algum tipo de regra para interpretá-las. Mais uma vez, are-
meiro lugar admite que algo além das Escrituras é a regra da gra calvinista da fé, que mantém que as Escrituras são a re-
fé e, em segundo, levanta o problema da autenticidade da gra, deve ser abandonada. Um refúgio na persuasão interior
persuasão interior isto é, como distingui-la da loucura, do está aberto ao mesmo tipo de objeção, ou seja, de que a per-
falso entusiasmo etc. De modo a fazer isto seria necessário suasão interior é in verificável e pode até ser ilusória.
um critério para julgar a veracidade da persuasão interior. Se os calvinistas dizem, em defesa própria, que estão
Tanto Pierre Charron quanto São Francisco Sales já tinham lendo as Escrituras de forma razoável, e tirando as conclu-
anteriormente apontado a fraqueza do apelo à persuasão in- sões lógicas óbvias a partir do texto, então se tornam clara-
terior. mente alvos da "máquina de guerra". Em primeiro lugar,
qualquer pretensa leitura é incerta e pode estar errada, a
Vejamos agora de que regra eles dispõem para discernir menos que haja uma regra infalível para a interpretação. Ir
os livros canônicos de todos os outros livros eclesiás- além das palavras e fazer inferências, como Veron afirmava
ticos. "O testemunho", dizem eles, "c a persuasão in- que os calvinistas faziam ao estabelecer seus artigos de fé, é
terior pelo Espírito Santo." Ó Deus, que lugar para se definitivamente um procedimento pouco compatível com as
esconder, que neblina, que noite! Desta forma não Escrituras. A Bíblia não estabelece ela própria que deve ser
somos esclarecidos em relação a questões tão graves e interpretada desta maneira, nem estabelece nenhuma regra
importantes. Perguntamos como podemos saber quais lógica. Em lugar nenhum temos qualquer garantia de que as
os livros canônicos. Gostaríamos muito de ter uma verdades da religião devem ser baseadas em procedimentos
regra para detectá-los, c nos falam de lugares no inte- l6gicos'7, Os reformadores gritavam que a razão é uma fa-
rior da alma que ninguém vê, ninguém conhece, exceto culdade natural dada ao homem, e também que Jesus e os
a própria alma e seu Criador'-'. padres da Igreja raciocinavam logicamente' 8 • Veron respon-

De modo a aceitar a persuasão interior como regra das Escri-


'6 John Scrgeant, Sure-Footiug iu Christimlity, or Rational Discourses 011 the Rufe
turas, deveríamos ter certeza de que é causada pelo Espírito o{Faith, Londres, 1665, pág. 68.
Santo, e de que não se trata de mera fantasia. ' 1 Veron, Oeuvres, págs. 192-199. Na verdade esras afirmações reaparecem ao
longo de todo o texto de Veron repetidamente. O mesmo tipo de ataque aos
Mas mesmo que pudéssemos dizer quais as obras que calvinistas foi feito pelo bispo Camus, o discípulo de Montaignc, em seu La
constituem as Escrituras, como poderíamos decidir o que Démolition des Foudemens de la Doctrine Protestaute, Paris, 1639, pág. 2. Em
seu I:Avoisinement des Protestauts vers /'Eglise Romaine, Paris, 1640, ele suge-
querem dizer, e no que devemos acreditar? O texto, segundo re que se os reformadores realmente acreditassem em sua própria regra de fé,
um usuário católico do Victorieuse Méthode de Veron, "con- eles não escreveriam comentários sobre as Escrituras, mas simplesmente citari-
am a Bíblia. Quando o padre Gomery estava se correspondendo com o pai do
siste apenas em palavras como que de cera, nem seguras nem cético, bispo l'icrre-Danid Huet, para convertê-lo ao catolicismo, ele indicou
tendo um intérprete certo, mas podendo ser usadas de dife- que as Escrituras "não falam em absoluto de regras da lógica", portanto os
reformadores não têm meios de provar os artigos da fé com base nas Escrituras
apenas. Ver BibliothCque Nationale, Ms.fonds français, TI909, ng. 41.
" Jean Daillé, La Foy Fondée sur /es Saiutes Escritures: Contre /es Nouveaux
'·'.São Francisco de Sales, Colltroverses, pág. 169. Ver tmnbém Charron, Trois M_ethodistes, 2a.ed., Charenton, 1661, págs. 55-65; c Paul Ferry, La Dernier
Veritez, cd. de 1595, livro III, cap. li, p.ígs. 216-221. desespoir de Ia tradition coutre /'Escriture, ou est amplemellt re{utí;/e livre du P.

,,,
deu que as regras da lógica foram estabelecidas por um pa- O núcleo dos argumentos de Veron contra se chegar a
gão, Aristóteles, e ninguém o nomeou juiz das verdades da verdades da religião por meio de inferências a partir do texto
religião, embora ele possa ser o árbitro da argumentação das Escrituras se encontra sintetizado no que ele chamou de
válida. Nem Jesus nem os padres da Igreja afirmaram que seus oito moyens: r) As Escrituras não contêm nenhuma das
seus pontos de vista eram verdadeiros porque tinham sido conclusões tiradas pelas inferências dos protestantes; 2) Es-
estabelecidos por procedimentos lógicos, mas ao contrário, tas inferências nunca são feitas nas próprias Escrituras; 3)
os consideravam verdadeiros por serem a Palavra de Deus'9, Ao fazer inferências tornamos a razão, e não as Escrituras, o
Alguns dos reformadores responderam atribuindo as regras juiz da verdade religiosa; 4) Nossa razão pode errar; 5) As
de inferência a Zenão e não a Aristóteles, ao que Veron re- Escrituras não nos ensinam que conclusões tiradas com base
trucou, "Grande objeção! Que seja Zenão ou qualquer ou- em procedimentos lógicos são artigos de fé; 6) As conclusões
tro, serão eles melhores juízes de nossas controvérsias?":tO a que chegaram os protestantes eram desconhecidas dos pa-
Quando Pierre du Moulin, um dos principais líderes protes- dres da Igreja; 7) As conclusões são, na melhor das hipóte-
tantes franceses, respondeu em seus Elements de la Logique ses, apenas prováveis, e são construídas com base em uma
Françoise que a lógica não é baseada na -opinião de alguns má filosofia e na sofística; 8) Mesmo uma conclusão neces-
pensadores gregos antigos, "Pois há uma lógica natural, da sariamente verdadeira a que se tenha chegado com base nas
qual o homem faz uso naturalmente, sem recorrer a nada de Escrituras não é um artigo de fé~s. {Já que nada é um artigo
artificial. Mesmo os camponeses formulam silogismos sem
pensar neles"z', Veron exclamou, "Pobre pretensa religião
baseada nas regras da lógica de Zenão, ou na força do racio- 1949), livro I, parte IV, sec.I, págs. r8o-183. Uma interessante versão deste
cínio de camponeses!"n Algo de tão pouco confiável quanto problema, que pode ter sido a fonte de Hume, se encontra em l'icrrc Judeu, Le
Vray Systême de I'Eglise & la Veritable Analyse de la Foy (Dordrecht, 1686),
o raciocínio natural de camponeses dificilmente poderia for- págs. 277-280.
necer bases absolutamente certas para a fé. Finalmente, Veron •s Veron, Oeuures. Os oito moyens são apresentados em detalhe na 1". parte, cada
um deles justificado c todas as objeções a cada um deles respondidas uma a uma.
indicou, a aplicação dos princípios de inferência é, por vezes, Um exemplo fascinante da aplicação do método de Veron e da frustração que
falha; isto é, as pessoas algumas vezes fazem inferências er- produ:Uu no opositor calvinista aparece nas Actes de la Con(ermce te1me a Caen
entre Samuel Bouchart & Jean Bml/ehache, Miuistre de la Paro/e de Dieu e>l
rôneas. Como podemos ter certeza em qualquer caso concre- l'Église Rcfomtée et François Veron Pred1catetrr des Cmttroverses, 2 tomos,
to que um erro lógico não foi cometido?z3 {A verificação do Saumur, 1630. (A cópia na BibliothCque Nationale, D.22117, pertenceu ao cató-
lico cético francês, Pierrc-Danicl Huet, que foi aluno de Bouchart.) Repetida-
·raciocínio pelas regras da lógica leva ao problema levantado mente os protestantes tentam provar sua posição com base nas Escrituras, c
por Hume no Tratado, como podemos ter certeza da corre- Veron continua indicando que as afirmações dos protestantes não são idêmicas
ção da própria verificação?}z4 às palavras das Escrituras, mas são inferências tiradas das Escrituras, que as
~scri!Ur~s não autorizam estas inferências, que a razão pode errar ao fazer
1nferencms etc. Depois de repetidamente tentar provar sua posição, o Protestan-
Frtmçois Verou Iesuite, par leque/ i/ prete11d enseigner à toute persmme, quoy te finalmente diz em desespero, "E quanto ao ponto levantado por M. Vcron de
que uon versee eu Theologie, 1111 bref & facile moyeu de reietter la paro/e de que nossa razão é falha, e pode errar em suas conclusões, pode-se responder que
Dieu, & COitvaiucre les Eglises re(ormées d'erreur & abus en tous & rm chacun se devemos duvidar de todas as conclusões tiradas das Escrituras, com base no
poiuct de leur doctrine, Scdan, 1618, págs.II9-12o c 185. fato de que a razão é falha, também deveríamos colocar em dúvida tudo que
•• Veron, Oerwres, págs. 169-170. lemos nelas em termos precisos, já que também é possível que nossos olhos nos
0
' Jbid., pág. 169. enganem, c o mesmo em relação a nossos ou,·idos, e assim a fé não poderia vir
"Pierrc du Moulin, Elements de la Logique Françoise, Genebra, 1625, págs. 3-4. de se escutar a palavra de Deus, contrariamente ao que o Apóstolo diz explicita-
"Veron, Victorieuse Methode, pág. 67. mente, a fé vem de se escutar, de se escutar a Palavra de Deus. Portanto seria
"Veron, Oeuvres, pág. 177. nec;ssário duvidannos de tudo, até mesmo de que estamos vivos. É de fato a
'' David Hume, A Treatise of Humau Nature, editado por Selby-Biggc (Oxford, ~ao que tira conclusões a partir da Palavra de Deus, mas a razão iluminada

,,, '33
de fé se não tiver sido revelado por Deus.)~ 6
dos sentidos, e portanto consideraram que a solução para as
O tipo de crise cética que Veron estava tentando criar dificuldades propostas estava na destruição do ceticismo.
para seus opositores calvinistas era de certa forma diferente Assim, muitos dos reformadores tentaram mostrar o com-
das de Montaignc c Charron. Estes, em seu pirronismo total, pleto e catastrófico pirronismo que resultaria do uso do mé-
procuravam minar todas as faculdades racionais humanas, e todo de Veron, ou ainda, mostrar que há um conhecimento
assim lançar dúvidas, juntamente com tudo o mais, às razões verdadeiro sobre o mundo, baseado no emprego de nossas
dos protestantes em defesa de sua fé. Veron, ao contrário, faculdades dos sentidos e da razão.
tomava o cuidado em não advogar um "ceticismo em rela- Um dos grandes polemistas protestantes, Jean Daillé,
ção à razão" ou um "ceticismo em relação aos sentidos". manteve que ao levantar dúvidas sobre a confiabilidade de
Mas insistia em desenvolver um ceticismo em relação aos nossas faculdades do raciocínio em sua aplicação a proble-
usos dos sentidos e da razão em questões religiosas, bem como mas específicos, estamos abrindo a possibilidade de um tipo
em relação à sua aplicação em casos particulares. Desta ma- de ceticismo que pode ser empregado da mesma maneira em
neira, ele procurou mostrar que uma vez que os reformadores relação a qualquer conhecimento racional. "Se a razão é por
tivessem desistido do juiz infalível, não poderia ter uma fé vezes enganadora, como podemos ter certeza que não come-
segura, já que não teriam nenhuma regra de fé defensável. te enganos em relação a verdades da matemática e da física,
Cada critério que quisessem adotar, as Escrituras, a persua- e mesmo em relação a verdades óbvias como 'A neve é bran-
são interior e a razão, podia ser mostrado como sendo extre- ca', 'O fogo queima' etc.? Julgais qual não deve ser o deses-
mamente duvidoso enquanto regra de fé, mas não necessari- pero destes metodistas [os que se utilizam do método de
amente duvidoso para outros propósitos. E a conclusão final Veron] que estão revivendo o ceticismo completo. " 28 Com o
deste bombardeio pela "máquina de guerra", segundo Veron objetivo de impedir os protestantes de justificar a sua fé nas
era, "Ó confusa Babilônia! Ó quão incerta é a pretensa reli- Escrituras, "ele~ destroem tudo, suas próprias bases, a ciên-
gião com relação a todos os pontos da controvérsia"~7 • Os cia, o conhecimento sensível, e envolvem a raça humana em
calvinistas estavam excluídos de qualquer certeza no campo uma 'escuridão eterna''-9, Porque os sentidos e a razão às ve-
do conhecimento religioso, porque não dispunham de ne- zes erram isto não é motivo para não confiarmos neles na
nhum padrão para determinar o verdadeiro conhecimento maior parte do tempo. "A pessoa que passa do reconheci-
religioso que não pudesse ser minado pelo tipo de ceticismo mento de que nossas faculdades são às vezes falhas para a
de Veron. dúvida completa acerca delas deveria procurar um médico
Os calvinistas, pressionados, tentaram diversas manei- para ter seu cérebro purificado com heléboro. "3o Daillé in-
ras de reagir. Em linhas gerais, só conseguiam ver o ataque sistia, segundo a tradição aristotélica, que nossas faculdades
de Veron como uma forma de ceticismo acerca da razão e eram naturalmente confiáveis, e que poderíamos sempre con-
fiar nelas dadas condições favoráveis. Um homem de "bom
pela luz da fé, em relação à qual as conclusões são cspiriruais c poderosas de-
senso" poderia sempre saber quando sua razão funciona ade-
monstrações como as descreve o Apóstolo çm Corí11tios I, cap. 2, versículo 4· É ql,ladamente3'. Em sua obra clássica, Traité de l'Employ des
fato que todos os artigos da nossa fé necessários diretamente para a salvação são ·
provados por conclusões que são tão claras que não há nenhum homem sensato
que não seja obrigado a aceitar esta evidência, se a paixão ainda não o alterou", '"Daillé, La Foy Foudée sur /es Saintes Escritures, págs. 57-59.
Tomo I, págs. 404-405. •• Ibid., pág. 59 .
10
'" Veron, Oeuvres, pág. 143. lbid., pág. 6o.
1' Ibid., págs. 6 -6 .
"Ib1d., pág. 169. 3 5

'34 '35
Saincts Peres, Daillé procurou mostrar quão instável era a e, portanto, Daillé estava "lutando contra a sua própria som-
base dos católicos para a sua fé, e como o estilo veroniano de bra"35. As questões levantadas por Veron eram de dois tipos.
argumentação teria resultados devastadores se aplicado às Em primeiro lugar, uma vez que os calvinistas insistiam que
fontes católicas, os padres da Igreja. Do lado positivo, Daillé a Igreja errava em sua leitura das Escrituras, e que todos os
afirmava que os pontos de vista dos protestantes eram acei- homens são falíveis, como podiam então estar certos de que
tos tanto pelos católicos quanto pelos reformadores, o que eles próprios não erravam em suas interpretações especificas
estava em questão eram os pontos de vista adicionais que os das Escrituras? Este tipo de problema não é levado para os
católicos derivavam dos padres. Aqui um tipo de ceticismo campos da matemática e das ciências, dizia Veron, pois aí os
acerca do significado de documentos históricos poderia ser princípios e inferências são "evidentes e certos"3 6 , Mas afir-
desenvolvido. Não podemos ter certeza que os escritos dos mar que o mesmo se dá com a leitura protestante das Escri-
padres tenham sido de fato feitos por eles, que não tenham turas, "Não é isto ver-se reduzido ao desespero? O quê?!
sido alterados, que significavam a mesma coisa para os auto- Tantos dos Santos Padres não tiveram bom senso, nem seus
res que significam para nós, que os autores acreditavam e predecessores? E o ministro ele próprio e seu sapateiro te-
continuaram acreditando no que escreveram, que os autores rão? E estarão certos disto? Etc. E com base nesta certeza e
pretendiam que seus escritos fossem verdades necessárias, loucura ele correrá o risco de ser condenado?"l7 Neste caso,
ou apenas prováveis, e assim por diante3~. Mas, dizia Daillé parece ser o cúmulo da pretensão e da audácia considerar
que não iria tão longe quanto Veron dizendo que nunca se que só os protestantes, nos últimos cem anos, foram capazes
poderia ter certeza de nada do que foi dito pelos padres, pe- de ter bons sens e interpretar a Bíblia corretamente, enquan-
los concílios e pelos papas. "Mas deixo de lado todos os to que a tradição católica inteira estava errada. E assim, Veron
pontos menos importantes, como mais adequados aos continuou, o mesmo tipo de dúvida acerca da interpretação
pirrônicos e acadêmicos, que querem colocar tudo em dúvi- das Escrituras não leva a uma dúvida mais geral acerca de
da, do que aos cristãos que buscam na simplicidade e na todo o nosso conhecimento.
sinceridade de seus corações a base de sua fé. "n Mas então surge de novo o segundo ponto. O fato de
Veron respondeu acusando Daillé de não ter percebi- que nosso raciocínio pode ser "evidente e certo" em algumas
do o sentido de seu método, tendo Daillé se tornado "Minis- questões, não significa que o que é evidente e certo é um
tro de Charenton, Novo Pirrônico e Indiferente em Reli- artigo de fé. Daillé, "este ignorante, confunde não ser um
gião"3~. O problema da aplicação da razão a questões espe- artigo de fé com ser um conhecimento dúbio"J 8 , Muitas coi-
cíficas não acarreta o ceticismo universal suposto por Daillé sas, o conhecimento científico, as evidências da religião cris-
tã etc., não são duvidosos segundo Veron, mas, ao mesmo
tempo, tampouco são artigos de fé e não o serão a menos
"Dai!lé, Traité de l'Employ des Saíncts Peres, pour le jugemcut des di((ereuds, qui que sejam revelados por Deus39,
sout aujottrd'lmi cuia Rcligiou (Genebra, 16_p), caps.r-2. Pontos semelhantes
foram levantados pelo grande especialista na Bíblia, o padre Richani Simon, em
sua obra A Crítica/ History o( thc Old Testamellt, traduzido por Dodwell, Lon-
dres, r68z, a respeito dos textos bíblicos.
"Daillé, Emp/oy des Saiucts Peres, págs. 62-63. H Veron, Oeuvrcs, pág. 17 8.
" Veron, Du Vray Juge et Jugement des Differe11ts qui sout aujourd'lmi ~~~ la "Ibid., pág. 177.
J; Ibid., pág, 178,
Religiou; oit est respondu au sieur Dml/é, Miuistre de Charenton, uouveau
Pyrrhonien & Indi((erem eu Religion, contraíre à ses Co/lêgues & à sm1 party, Jl lbid., pág, 177-
Paris, s. d. l. Ibid., págs, l7o, I77. 196-197 e 227.
O contra~ataque de Daillé, desenvolvendo uma "má~ racionalidade que é natural em nós. Questionar esta
quina de guerra" contra os padres da Igleja, foi considerado racionalidade natural fundamental é tentar destruir nossa
realmente perigoso por Veron. O tipo de argumento apre~ humanidade e tornar-nos animais. Na medida em que temos
sentado poderia ser aplicado a qualquer espécie de livro, in- estas capacidades e habilidades, podemos então desenvolver
cluindo os de Daillé. "As mesmas dúvidas podem ser levan- raciocínios a partir do que conhecemos com certeza, e por-
tadas, se o livro de Daillé foi de fato escrito por ele, ou se tanto raciocinar partindo de algumas verdades religiosas para
apenas se supõe isto, se ele estava realmente em sua juventu~ chegar a outras43,
de quando o escreveu etc."4o Uma vez que Veron se recusava Veron afastou esta defesa da racionalidade dizendo,
a admitir que seu conhecimento das proposições da verda- "Quem duvida disso? Mas isso não é suficiente para estabe-
deira religião era baseado em qualquer evidência, interpreta- lecer um artigo de fé, pois nada disso é a Palavra de Deus, e
ção de documentos ou experiências, mas que continha ape- ter uma crença nada mais é do que considerar algo verdadei-
nas a Palavra de Deus revelada, ele observava que a forma de ro porque foi dito por Deus" 44, A defesa da razão não é b
argumentar de Daillé, "introduziria a seita do pirronismo e a ponto em questão, mas sim se um artigo de fé pode ser esta-
indiferença na religião" 4 '. belecido pela razão. Gente como Ferry, ao glorificar nossas
Outro protestante apareceu para responder a Veron, habilidades racionais, chega perto de adotar o que Bayle cha-
um certo Paul Ferry, que considerou que a solução para o mou de heresia sociniana, isto é, que a razão é a regra da fé4s,
bombardeio de Veron se encontrava na defesa da racionali~ Para Veron, a razão pode ser perfeitamente sólida e
dade, quase que uma inversão completa da posição calvinista inquestionável, mas isto não supera o ceticismo em relação a
inicial. Depois de tentar mostrar que os artigos da fé calvinista seu uso para estabelecer artigos de fé. Mesmo o raciocínio
se encontravam nas Escrituras (o que Ferry não provou ao teológico, que Veron admitia poder ser "necessário e certo",
contrário do que pretendia, já que indicou que estes artigos não torna suas conclusões verdades religiosas, a menos que
consistiam simplesmente em interpretações razoáveis do tex~ tenham sido reveladas por Deus4 6 •
to)~z, Ferry defendeu o uso da razão para estabelecer as ver~ O método de Veron visava isolar os reformadores de
dades da religião. Sua posição era que temos uma disposição qualquer critério que permitisse assegurar a verdade de suas
ou capacidade natural, nossas faculdades racionais, que são convicções religiosas. Para ter certeza que os protestantes não
uma característica básica da natureza humana, e que nos poderiam justificar a sua fé pelas Escrituras, ou desenvolver
permitem conhecer as coisas. Por meio de nossa "experiên- raciocínios com base nas Escrituras, ele introduziu uma for-
cia universal" somos capazes de dizer que o fogo é quente, e ma de ceticismo parcial, aplicando algumas das técnicas tra-
outras verdades naturais; por meio de nossos "primeiros prin- dicionais do pirronismo para mostrar a falta de certeza com-
cípios" ou de "verdades que já nascem conosco" conhece- pleta na posição dos reformadores. Concluiu então, "pobre
mos algumas verdades gerais como "O todo é maior que religião, sem certeza, abandonada à decisão de qualquer tra-
suas partes"; e por meio dos "juízos" somos capazes de palhão"47. Por meio de um hábil uso da "nova máquina de
discernir as conseqüências lógicas das verdades que conhece-
mos. Tudo isto nos fornece uma base indubitável de
., Ibid., págs. q6-q8.
•• Veron, Oeuvres, pág. 170.
'" Vcron, Du Vray juge et jugemeut, pág. 13. <l Bayle, Dictionnaire, verbete, "Socin, Fauste", comentários finais.
6
•' Ibid., pág. 3· " Veron, Oeuvres, pág. r
97.
•• Ferry, Demier Desespoir de la Tradition, págs. 64-68. 47
Vcron, La Victorieuse merhode, pág. 58.

'39
guerra", a fortaleza dos protestantes viu~se reduzida a tal mesmo tempo eles se desarmam. E ao se esforçarem
ponto que eles se encontraram empunhando um livro cuja para prejudicar a causa das Igrejas Reformadas, aca-
autenticidade não podiam estabelecer, e de cujo significado bam prejudicando a si próprios completamente. Pois
não podiam ter certeza; se encontravam apenas de posse das se nossos raciocínios deste tipo são insignificantes em
frágeis faculdades humanas a serem empregadas em uma ta- relação a eles, o mesmo ocorre com os deles em rela-
refa para a qual não se podia ter certe'za de que eram apro- ção a nós. E pela mesma arte segundo a qual eles con-
priadas. Assim, acreditava Veron ter mostrado o caráter du~ seguem cegar o fio de nossas espadas, da mesma for-
vidoso das afirmações dos protestantes, bem como que o mé- ma acabam jogando fora as suas próprias49.
todo deles para estabelecer as verdades religiosas levava a
um ceticismo religioso, e, talvez mesmo, a um pirronismo Ambos os lados podiam levantar perplexidades céticas sobre
total. como os outros sabiam ou podiam ter certeza que seus pon-
Os protestantes, entretanto, perceberam que a mesma tos de vista eram verdadeiros. Uma vez tendo Veron-estabe-
abordagem cética poderia ser voltada contra o seu inventor, lecido seu ceticismo em relação ao emprego da razão em as-
efetivamente com. os mesmos resultados. A "nova máquina suntos religiosos, nenhum lado podia agora encontrar evi-
de guerra" parecia ter um peculiar mecanismo de disparo dências satisfatórias em defesa de sua própria causa. Ao con-
com o estranho efeito de envolver o alvo e o atirador em trário, iriam então concentrar seu fogo em ampliar as difi-
uma catástrofe comum. Se os reformadores não podiam de- culdades céticas do adversário.
terminar a infalibilidade da verdade dos artigos de fé com Mas a "máquina de guerra" de Veron, tão admirada
base no texto das Escrituras por meios racionais, tampouco em sua época pelos líderes da Contra-Reforma, não consis-
os católicos podiam descobrir quaisquer verdades religiosas, tia simplesmente, ao contrário do afirmado por Bredvoldso,
uma vez que se encontrariam diante das mesmas dificulda- em um uso estratégico do ceticismo para enfrentar o desafio
des em relação a estabelecer o significado e a verdade do que do calvinismo. Creio, na verdade, que resultava de uma in-
os papas, os concílios e padres da Igreja disseram. Tanto quan- fluência diferente e mais profunda do ceticismo no século
to os reformadores podiam ver, Veron tinha desenvolvido xvn, a aliança dos pirrônicos e católicos na defesa de um
um ceticismo completo para derrotá-los, mas tinha ao mes- cristianismo fideísta. Nestes termos, como veremos, os cató~
mo tempo derrotado a si mesmo através de seus argumen- licos não podiam ser atingidos pelo bombardeio cético par-
tos48. tindo de seus próprios canhões, uma vez que não tinham
uma posição a defender. Seu ponto de vista não era funda-
Excluam-se as Conseqüências das Escrituras e os mentado em nenhuma afirmação factual ou racional, mas na
Papistas não serão capazes de impugnar sequer um aceitação da tradição católica e na fé inquestionável nesta
dos lemas dos protestantes, nem terão eles capacida- tradição. Eles perceberam, como Maldonat sugeriu, que se
de de provar o primeiro artigo da Fé Romana, a sa-
ber, a pretensa Infalibilidade de sua Igreja. Enquanto •• ~o~crt Ferguson, The lnterest of Rcason iu Religioll, with the lmJJOrt & Use of
eles lutam para tirar estas armas de nossas mãos, ao Lcnptllre-Metaph?rs; and the Nature of tbe Union betwixt Christ aud Be/ievers,
A~ndres, I675, pag.190. Vc_r também joscph Glanvill, AOrOY 0PH~KEIA: or
A :~sonable R~corr:mendatiOn aud De(e~I~e of Reaso11, Iuthe A((airs of Religiom
g mst lnfideiity, Scepttcism and Fauattctsms of ali sorts, Londres l67o pâgs.
•• Cf. Gottfricd Wilhelm Lcibniz, Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la 32-33, '
/iberté de /'!10mme et /'Origine du Mal, Amstcrdam, 1710, pág. 74, par. 62. Jo Bredvold, lntel/ectual Millieu of DT)•den. pâg. 76 c seguintes.
alguma vez duvidassem desta fé baseada na aceitação da tra~ ponto de vista fideísta é sugerido quando consideramos os
dição, então eles também afundariam na areia movediça na filósofos e teólogos que admiram. O cardeal du Perron, um
qual estavam tentando afundar os protestantes 5 '. E desta for~ dos principais líderes da Contra-Reforma54, e ele próprio um
ma, encontramos um fideísmo implícito em muitos doS pen~ convertido ao catolicismo, praticamente não se dedicou em
sadores da Contra~Reforma na França, o qual pode muito suas obras. de polêmica a apresentar evidências para seus
''11'1
bem ser justificado, e provavelmente o foi, pelo fideísmo ex~ pont~s de vista, mas se preocupou em primeiro lugar em apon-
plícito dos nouveaux Pyrrhoniens. tar a madequação da teoria calvinista do conhecimento reli~
Começando no século XVI com Hervet e Maldonat, gioso. O cardeal, entretanto, era amigo da filha adotiva de
encontramos muitos indícios de que os principais líderes do Montaigne, Mlle. de Gournay, e um grande admirador dos
catolicismo francês adotavam um tipo de fideísmo cujo de~ escritos fideístas do filho adotivo de Montaigne, Pierre
senvolvimento teórico. e expressão aparece nas obras de Charron55 • Uma estória sobre Du Perron revela bem a sua
Montaigne e seus seguidores. Hervet, como vimos, no prefá~ avaliação dos méritos da razão humana em questões teológi-
cio à sua tradução de Sexto Empírico, insistia no caráter não- ~as. Ele foi certa vez co~vidado a jantar com Henrique III, e
racional da fé, e na necessidade de crer mais do que de co- a mesa apresentou um dtscurso contra o ateísmo, oferecendo
nhecer. O ceticismo deveria ajudar o cristianismo destruindo provas sobre a existência de Deus. Quando o rei manifestou
os filósofos dogmáticos de modo que a fé apenas permane- o seu prazer em relação a este discurso, elogiando Du Perron,
cesse como o caminho para a verdade da religiãos 1 , E a ami~ este respondeu, "Senhor, hoje demonstrei por razões fortes e
zade de Maldonat com Montaigne deve-se, em parte, à se- evidentes q?e Deus existe. Amanhã, se Vossa Majestade qui-
melhança de visão entre ambos. O ponto central da teologia ser, poderei mostrar e provar que Deus não existe". O rei,
de Maldonat parece ter sido libertar as crenças religiosas dos que aparentemente não era um cristão fideísta, ficou aborre-
argumentos diaiéticos, negar a pretensão do homem racio~ cido e expulsou o seu convidado>6,
nal de julgar as questões religiosas. A base do cristianismo é Mesmo no caso do mais espiritualista dos pensadores
a fé tal como estabelecida nas Escrituras e na tradição. "Deve da Contra-Reforma na Françal São Francisco de Sales há
ser o bastante para nós respondermos em uma só palavra alguns sinais, apesar de fracos, de inclinações fideístas. Em-
que somos cristãos e não filósofos. A Palavra de Deus é nos- ~ora São Francisco tenha condenado aqueles que "em nossa
so sustento e enquânto a tivermos clara e simples daremos epoca professam colocar tudo em dúvida", ao mesmo tempo
pouca importância aos ditames da mera razão natural." sJ escolheu como seu secretário um cristão pirrônico, Jean-Pierre
Muitos dos outros pensadores da Contra-Reforma não
apresentam uma defesa racional de sua posição, mas um 54 Navidad D p · 1UL'd a em Les DlliCrses
·
d e u crron me Ouevres de /'IIIustrissl/ne Cardi-
1 4 Perro11, ~ari~, 1622, relata-se que o Papa dis~c em uma ocasião; "Rezemos
11:ra
P . q~c ~eus msp1rc o cardeal du Pcrron, porque e!c nos convencerá do que ele
qUJscr , pag . .:u.
-" John Ma\donatus, A Commeutary 011 the Holy Gospels, trad. por G.L.Davie,
H ~an~uvergicr du Haurannc (Saint-Cyran) menciona a admiração deDu Pcrron
Londres, 1888, especialmente vol. I, págs. XlX-XX, c vol. 11, págs. 109·1 10.
'' Hervct, prefácio a Sexto Empírico, Adllersus Mathematicos. S or Larron em seu La Somme des Pautes et Faussetez Capitales coutemws eu/a
0 m me Theologique du Pere François Garasse de la Compagnie de]esus l'aris
-" Maldonatus, A Comme11tary 011 the Holy Gospels, vol. 11, págs. 420-42I. Em 6 6
sua aula inaugural em Paris, Maldonat enfatizou a necessidade da fé de modo a
l2,!omollp'
vc M . '. ag. 324. Sb o re as rc I . dc Du Perron com Mlle. de Gournay
açocs ' '
se obter o entendimento em teologia, c a falta de importáncia de filósofos como , r a~o Sclnff, La Filie d'AIIiauce de Montaigue Marie de Goumay Paris'
~"'-.IO,pag.
9 37 . ' ' >
Platão c Aristóteles comparados às Escrituras c à Igreja na solução de questões 1
Pterre_de I'E SI OL"I _c, M.emones-]oumaux,
-
teológicas. Cf. l'rat, Maldmwt et I'Université de Paris, págs. I79, I85, ssS-s6o I2 vols., 2". Tomo, ]ourna/ de H eu ri fi I,
1581 1 8
c 566. 5 6, Pans, 1888, entrada relativa a novembro de 158.~. págs. qo-1 4 1.

'43
Camus, e dedicou algum tempo à orientação espiritual da ser "secretamente um ateu" 6 4, ele foi defendido pelo padre
herdeira de Montaigne, Mlle. de Gournay 57 • Em sua obra Ogier6s e também pelo grande teólogo jansenista Saint-Cyran
inicial, Les Controverses, ele cita Montaigne como uma das (Jean Duvergier du Hauranne). Este último, que disse que o
poucas autoridades contemporâneas em questões religiosas. cardeal du Perron tinha lhe recomendado a teologia de
O livro, como um todo, definitivamente não é fideísta, mas Charron, insistiu que se tratava fundamentalmente apenas
na defesa dos milagres, uma passagem dos Essais, possivel- de um bom agostianismo, e que o pirronismo cristão de
mente irônica, é citada para "provar a fé pelos milagres"s 8 • Charron estava de acordo com o melhor pensamento religio-
Há muitos outros indícios das ligações entre os pensa- so, bem como com as Escrituras66 •
dores da Contra-Reforma c o nouveau Pyrrhonisme. Apa- Estes indícios da aprovação do nouveau Pyrrhonisme
rentemente, para surpresa de Montaigne, até mesmo o e dos nouveaux Pyrrhoniens por parte de muitos dos princi-
Vaticano manifestou apenas uma leve desaprovação dos pon- pais líderes espirituais da Contra-Reforma na França ilus-
tos de vista dos Essais, convidando-o a dedicar-se a escrever tram, segundo creio, a imensa influência da retomada do ce-
em defesa da lgrejas9, A maioria dos discípulos de Montaigne ticismo grego neste período. O objetivo do pirronismo cris-
no início do século XVII recebeu proteção e incentivo dos tão de pensadores como Montaigne e Charron pode ter sido
cardeais Richelieu e Mazarin6o. O bispo de Boulogne, Claude "aumentar a distância entre a razão e a revelação" e "cons-
Dormy, foi um grande admirador de Charron e ajudou-o a truir uma moralidade que fosse não racional, mas racionalista,
obter aprovação para La Sagesse. O bispo tinha uma tal ten- na qual a religião ocuparia apenas um lugar secundário" 67,
dência ao fideísmo que viu com desaprovação os poucos es- Mas, além disso, o ceticismo de Montaigne, Charron, Camus
forços de Charron em mOderar o seu cristianismo pirrônico e Sexto Empírico fornecia tanto um método para combater o
diante da oposição da Sorbonné'. O confessor do rei, o jesu- calvinismo (e também, na visão dos reformadores, um méto-
íta Nicolau Caussin, publicou uma adaptação das questões do igualmente bom para combater o catolicismo), quanto
centrais do ceticismo fideísta de Charron em seu La Cour uma forma de emprego deste método. Os enigmas céticos
Sainté•. O cardeal Bérulle em sua crítica do conhecimento ajudam a destruir o adversário, enquanto que o fideísmo
racional apresenta uma concepção muito próxima à de impede que ao mesmo tempo este pensamento se autodestrua.
Charron 63. Nos anos r62o, quando Charron foi acusado de A teoria cética do conhecimento religioso proposta por
Montaigne e seus discípulos fornecia um esquema teórico no
" Sào Francisco de Sales, "Carta a Cclse-Bénignc de Chantal, 8 de dezembro de qual a "máquina de guerra" poderia funcionar sem atingir o
1610", em Ocuvres, tomo XIV (cartas tomo IV), Annecy, 1906, pág. 377· Boas e,
Fortmu:s o( Montaigne, pág. 61; c Schif~ La Filie d'A/Iinace de Mmztaigne, atirador também, um esquema segundo o qual o ceticismo
págs. 29-30. total no plano racional se transformava na preparação para
"São Francisco de Sales, Coutrouerses, pág. p.8, e "notas preparatórias", pág.
a revelação da verdadeira fé.
'7·
"Momaignc,Joumal de Voyage, págs. 250-252 c 274·
''"Por exemplo, Gabriel Naudé e François La Mothc Le Vaycr foram prmcgidos de
Richclieu c Mazarin. .. Por François Garassc, S.J., em seu La Doctrilw cmicuse dcs beaux esprits de cc
" C f. L Auvray, "Lcttres de Picrre Charron à Gabriel Michel de la Rochcmaillet'', • temps, 011 prete11dus tels, Paris, 1623, e em obras posteriores.
1
em Rcvue d'Histoire Littéraire de la France, l, 1894, especialmente págs. 323- C{. François Ogicr, ]ugcmeut ct Ceusure du Livre de la Doctrine curicuse de
327. .. Fr?nçois Garasse, Paris, 1623 ,
"' Cf. Boasc, Fortuncs of Montaigne, pág. 186. Samt-~yran, La Somme des Falltes et Faussctez, tomo 11, págs. 321-469. ESta
"' Cf. Joscph Dedieu, "Survivances et lnfluences de ]' Apologétiquc traditionclle ., qu~stao será discutida dctalhadamcnte adiante no cap. VI.
dans les l'emées", em Revue d'Histmre Uuérairc de la Fraucc, XXXVII, 1930, {;'hcn-Eymard d'Angers, "Si:neque ct lc Sto'icismc dans l'ouevre du cordclicr J.

..
págs. 498-499, no. 3· u Bosc", em Dix-Scpt<lõme Siàc/e, n°. 29, 1955, pág. 376.

, '45
Uma vez que o tipo de método cético usado pelos pen- da razão a regra da fé. Tendo conseguido isto, tentavam de-
sadores da Contra-Reforma podia ser aplicado a qualquer senvolver, seja um ceticismo em relação ao uso da razão na
teoria do conhecimento religioso, a segurança e a salvação religião, seja um ceticismo em relação à própria razão. En-
estavam em não se ter qualquer teoria. Eles podiam defender quanto isso, no que dizia respeito tanto aos ~ensa~~:es da
seu catolicismo com base na fé apenas, ao mesmo tempo de- Contra-Reforma quanto aos céticos, a verdadeira rehgtao era
molindo seus inimigos, engolfando-os em dificuldades céti- constantemente revelada por Deus, através de sua Igreja. Ao
cas. Ao se aliarem aos nouveaux Pyrrhoniens, os pensadores permanecerem no lado tradic~~nal e sobre. a. Rocha da Fé
da Contra-Reforma podiam se apropriar da munição dos podiam atacar os novos dogmattcos, os c~lvm~stas, os novos
céticos, bem como de uma "justificativa" fideísta para a sua defensores da eficácia das faculdades ractonats humanas na
própria causa. Os calvinistas podiam gritar que tanto os pro- determinação das verdades da religião. Durante toda esta
testantes quanto os católicos seriam envolvidos em uma mes- luta os católicos podiam se sentir seguros em sua fortaleza
ma catástrofe, uma vez que ambos tinham que basear seus fideísta é claro, desde que Deus, do seu lado, os sustentasse.
pontos de vista em documentos, pronunciamentos, e raciocí- O que Mue. de Gournay dizia de suas crenças religi?sas e
nios a partir destes. Mas os católicos parecem não ter sido das de Montaigne era, em larga escala, verdade tambem so-
afetados por estes gritos, isto porque, segundo creio, já ti- bre os pensadores da Contra-Reforma em geral. A pedra fun-
nham aceito a afirmação dos cristãos pirrônicos de que o damental, para eles, da verdadeira religião era
ceticismo é o caminho para Deus. Os esforços humanos po-
dem ser apenas negativos, eliminando de suas mentes as cren- A Lei Sagrada de nossos pais, sua tradição c autorida-
ças falsas e duvidosas. Qualquer conteúdo positivo que per- de. Quem pode agüentar estes novos Titãs de nosso
maneça é suprido por Deus, e não pelo homem. Enquanto tempo, estes alpinistas que pensam que podem alcan-
Deus estiver do lado dos católicos, as dúvidas de caráter ge- çar o conhecimento de Deus por seus próprios meios e
ral de Montaigne e as dúvidas aplicadas de Charron têm ape- drcunscrevê-Lo, Suas obras e suas crenças nos limites
nas a função benéfica de curar-nos de nossas falsas crenças e de seus rneios e razões: não querendo aceitar como
fazer-nos evitar as falsas religiões. Se desistirmos da tentati- verdadeiro nada que não lhes pareça provável68•
va de entender questões religiosas, estaremos a salvo de che-
garmos a conclusões heréticas. Deus, através da Revelação, Além de influenciar as lutas teológicas da época, a retomada
nos mantém na verdadeira religião. O católico racionalista e do- pirronismo também teve um efeito sobre algumas outr~s
o protestante racionalista podem ser destruídos pela "má- lutas do final do Renascimento, especialmente no que dtz
quina de guerra", mas o homem de fé é salvo através de Deus, respeito às pseudociências como a astrologia, a. alquimia, a
e não por razões ou evidências. O verdadeiro crente está à feitiçaria etc. bem como em relação aos envolvtdos no con-
mercê de Deus, mas também sob sua proteção. flito entre as ~iências aristotélicas e a "nova filosofia"· Já em
Qualquer mudança em relação à Igreja tradicional en- 1581 encontramos uma discussão do pirronismo na obra de
volveria uma decisão humana sobre o que é certo ou errado Jean Bodin De ta Demonomanie des Sorciers, quando num
em questões religiosas. De modo a tomar uma decisão desta preâmbulo' à discussão deste tópico Bodin acha necessário
importância é necessário que se tenha razões adequadas. tratar do problema do critério, de modo a mostrar que a
Assim, os pensadores da Contra-Reforma c seus aliados céti-
cos tentaram mostrar que os reformadores estavam fazendo 1
" Citado em Boase, Forttmes o{ Montaigne, pág. 61.

I
evidência que tinha a oferecer era sólida. Três teorias do co- am a propósito de todas as ciências, não devendo portanto
nhecimento são esboçadas, a de Platão c Demócrito segundo serem levados a sério73.
a qual apenas o intelecto é o juiz da verdade, em seguida um Um espiritista francês, Pierre Le Loyer, levou muito
empirismo grosseiro atribuído a Aristóteles e, por fim, o ce- mais a sério as críticas do pirronismo ao conhecimento hu~
ticismo total de Pirro (bem como, segundo Bodin, de Nicolau mano, acrescentando uma seção de onze páginas a seu
'I ~·1 de Cosa). Todos estes Pontos de vista, e especialmente o ce- Discours et Histoires des Spectres, em resposta a esta posi-
ticismo, são rejeitados em favor de um empirismo sofistica- ção74. O que aparentemente o perturbou foi o ataque cético
do, que Bodin denominou de teoria do senso comum de à confiabilidade dos dados sensoriais, já que ele pretendia
Teófastro, que permite que se obtenham verdades derivadas basear sua obra em uma variedade de testemunhos, apari-
de interpretações da experiência sensível. Com base nisso, ções etc. Assim, Le Loyer primeiro esboçou uma história do
suas evidências a respeito da "demonomania" são então ceticismo antigo até Sexto Empírico (contra a obra do qual,
justificadas69. segundo ele, Francesco Pico, conde de Mirandola, sobrinho
Por volta da virada do século, os adversários da astro- de Gian Pico, a Fênix de sua época, teria escrito, refutando
logia aparentemente começaram a introduzir material tirado todos os argumentos dos pirrônicos e céticos Fs. Em seguida,
de Sexto Empírico, especialmente de sua obra contra os as- voltou-se para uma refutação da crítica cética do conheci-
trólogos. Em r6or, John Chamber combateu os astrólogos, mento sensível, apresentando uma resposta essencialmente
usando como parte de suas fontes alguns elementos de Sexto aristotélica na linha de que quando nossos sentidos estão
Empírico1o. Um defensor desta "ciência", Sir Christopher funcionando adequadamente, em condições favoráveis, per-
Heydon, publicou uma resposta na qual Sexto é listado na cebemos dados verdadeiros, e que, quando necessário, nosso
capa como um daqueles a quem esta resposta era dirigida7'. intelecto pode corrigir as informações dos sentidos e assim
Uma das acusações a Chamber era que ele-não tinha admiti- chegar a um conhecimento confiável acerca do mundo sensí-
do quanto de sua oOra era derivada de Sexto7~. Heydon fez vel76.
apenas um esforço fraco de refutação de Sexto, apontando Outra evidência importante de posições céticas sendo
que os pirrônicos duvidavam de tudo, fazendo meras obje- usadas na luta contra as pseudociências se encontra nos ata-
ções cavilosas à astrologia da mesma maneira como o fazi- ques à alquimia pelos padres Mersenne e Gassendi. Mersenne,
em seu La Verité des Sâences de r625, apresenta um diálogo
entre um cético, um alquimista e um filósofo cristão, e em~
""Jean Bodin, De la Demonomanie des Sorciers, Paris, 1581. Prefácio e páginas hora o principal objetivo da obra seja o ataque ao cético,
r o, 11 eu (não numeradas). este lança muitos golpes certeiros contra o alquimista usan-
7° John Chambcr, A Treatise against Judicial/ Astrologic, Londres, r6or, págs.r6 e
23-14. Lynn Thorndike em seu A History o( Magic and Experimental Scie11Ce, .do os elementos céticos tradicionais derivados de Sexto con-
vol.VI, Nova Iorque, 1941, págs. 105-206, diz que Tommaso Giannini em uma
obra publicada em 1618 também usou material de Sexto Empírico contra os
astrólogos. >) lbid., pág. '34
><p· •
7r Sir Christopher Heydon, A De(ence o( judicial/ Astrologie, h1 Answer to a Treatise
Éerr~ Le Loyer, Discours et Histoires des Spectres, Visions, et Apparitions des
lately pub/ished by M. ]olm Chamber. Wherein ali those p/aces of Scripture, I' spnts, A11gcs, Demmts et Ames, se lllOIIStraus visible aux hommes, Paris, r 6os,
Councdls, Fathers, Schoolmen, /ater Divines, Philosophers, Histories, Lmves, tro I, cap. VI, págs. 35-46, "Les Sceptiques & aporrhetiques Philosophes
Constitutions, aud reasons drawne out ofSixtm Empiriws, Picus, Pererius, Sixttls e ~u~eux, & ceux de la secoudeacademie refutez, qui dissoient que /e seus humaius
ab Heminga, and othcrs, agail1st this Arte, are partiwlarly Examined: and the >J [,.dOicntJaux et nostre imaginative fausse".
Lawfulues thereof, by Equivalent Proo(es Warramed, Cambridge, 1603. ,. 1 ~ ., pag. 39·
"lbM., págs. u7 e 135. Ib,d,, págs. 40-46.

'49
tra a pretensa ciência da alquimia 77 • Gassendi, ele próprio "humanistas céticos", homens como François de La Mothe
um pirrônico confesso nesta época, escreveu uma refutação, Le Vayer e Guy Patin, assim como o pirrônico puro Samuel
a pedido de Mersenne, do teórico rosa-cruz Robert Fludd, Sorbiêre, pareciam ter pouco ou nenhum apreço pela revolu-
na qual emprega uma atitude cética para demolir os pontos ção científica que estava acontecendo ao redor deles, e consi-
de vista de Fludd78 • deravam as novas teorias como uma outra forma de
Na guerra contra a ciência escolástica encontramos dogmatismo, ou insistiam em suspender o juízo acerca de
argumentos típicos da tradição cética sendo empregados. todas as teorias científicas, novas ou antigas. Patin, quando
Tanto Sir Francis Bacon quanto Gassendi empregaram algu- reitor da Faculdade de Medicina da Sorbonne, se opôs a qual-
mas das críticas ao conhecimento sensível em sua luta contra quer inovação no ensino, insistindo em um conservadorismo
o aristotelismo das escolas. Com efeito, o protesto de Bacon pirrônico, se atendo às visões tradicionalmente aceitas dos
contra a filosofia c a ciência tradicionais foi considerado por gregos82 • La Mothe Le Vayer considerava todo e qualquer
Mersenne uma imitação dos pirrônicos79 • E Gassendi em sua tipo de pesquisa científica como uma forma de arrogância
primeira obra, um dos mais fortes documentos anti- humana e de impiedade, que deveria ser abandonada em nome
aristotélicos desta época, arregimentou todos os argumentos da dúvida completa e do fideísmo puro. O valor do ceticis-
rotineiros da tradição pirrônica em uma vasta denúncia, con- mo para as ciências, segundo ele, era que uma doutrinação
cluindo que nada pode ser conhecido, e nenhuma ciência é adequada no pirronismo levaria o homem ao abandono de
possível, muito menos a ciência aristotélica80• Vemos que uma todas as suas pretensões científicas8 3, SorbiCre, um apaniguado
característica comum aos "novos filósofos" é sua aceitação de Gassendi, pretendia suspender o juízo até mesmo em rela-
da crítica pirrônica ao conhecimento sensível e seu emprego ção a hipóteses científicas, caso estas extrapolassem as apa-
como um golpe mortal contra o aristotelismo. rências84.
Mas o ceticismo não esteve sempre do lado dos anjos. Em relação à matemática a atmosfera cética do início
Ao mesmo tempo que argumentos pirrônicos estavam sen- do século XVII foi aparentemente forte o bastante para fazer
do empregados no ataque contra os pseudocientistas e com que fosse necessária uma defesa desta "rainha das ciên-
escolásticos, alguns céticos estavam usando o mesmo mate- cias". Há uma obra de Wilhelm Languis de r6s6 sobre a
rial contra a "nova ciência" e a matemática. {Deve ser men- verdade da geometria contra os céticos e Sexto Empírico 8s. E
cionado que um dos maiores céticos do final do século XVII, Mersenne dedicou a maior parte de sua La Verité des Sciences
Joseph Glanvill, empregava sua habilidade cética em defesa à exibição do vasto número de verdades da matemática como
de sua crença nas feiticeiras, demolindo os argumentos da o melhor meio de "derrubar o pirronismo" 86 •
facção antifeitiçaria.) 8 ' Aqueles que denominarei de "Cf. Pierre Pie, Guy J>atin, Paris, 1922, págs. XIX c seguintes.
'' Cf. o ensaio de François de La Mothc Lc Vaycr, "Discours pour montrcr que lcs
doures de la Philosophie sceptiquc sont de grand usagc dans les scienccs", em
" Marin Mersennc, La Verité des Sciences, contre /es Sceptiqucs ou PyrriJOniws, , Oeuvres, Paris, 1669, XV, págs. 61-124.
Paris, 1625. Os pontos de vista desta obra serão discutidos no cap. VII. • Samuel SorbiCre, Discours sceptique sur /e passage du cl!yle & /e mouvement du
'' Petrus Gassendi, Exameu Philosop!Jiac Roberti Fluddt Medici, em Opera, vai. •sW·eur. Lcydcn, .t6 4 s, págs. ISJ-1 54 .
III. (Esta obra foi inicialmente publicada em 1630.) A visão de Giissendi será S dhclm Langu1s, De Veritatibus Geometricis, Libri Il, prior, coutra Scepticos &
discutida nos caps.V c VII. extum Empiricwn &c. Posterior, contra Marwm Meibomium, Copenhagcn,
"Mersenne, La Verité dcs Sâeuces, livro I, cap.XVI. ~65_6. Ver também Jcan-Eticnne Montucla, Histoire des Mat!Jcmatiques, vo!. I,
'" Gassendi, Exercitationes fJaradoxicae adversus Arístoteleos, publicado inicial- an~, 1758, págs. 23·28. Há também uma interessante carta de Lang para Ismael
mente em Grcnoble, 1624. Ver também Opera, vol. III. 8 ~udlard~ não publicada, sobre Sexto e a matemática, datada de 9 de julho de
" Ver, por exemplo, joseph Glanvill, A B/ow at Modem Sadducism i11 some
l'hilosop!Jical Considcratious about Witchcraft, Londres, 1668.
10M 57· HaJa, Biblioteca Nacional, ms.français 13037, fol.t31.
. ersenne, La Verité des Scicnces, livros II-IV.
De modo geral a retomada do ceticismo grego parece V. Os Libertins Erudits
ter tido uma grande influência nas controvérsias intelectuais
do início do século XVII. Seu primeiro e principal impacto
foi na teologia, provavelmente devido ao fato de que a ques- No início do século XVII uma versão mais ampla do
tão-chave da discussão, a regra da fé, estabelecia uma forma
ceticismo de Montaigne, Ch~rron e Camus surgiu na Fran-
do problema clássico pirrônico do critério. Além disso, o
ça, florescendo brevemente co~ o o pont~ de vista ~os j~vens
fideísmo envolvido no nouveau Pyrrhonisme servia como uma
brilhantes da época. A populandade matar e a aphcaçao do
defesa ideal para aqueles que empregavam os recursos céti-
nouveau Pyrrhonisme trouxeram à tona de forma mais agu-
cos nas controvérsias religiosas da época. Na medida em que da suas implicações religiosas e científicas. Isto, por sua vez,
a ciência de Aristóteles começava a perder a sua autoridade e deu origem a uma série de tentativas, culminando com o fra-
ciências e pseudociências alternativas a ela começaram a apa-
casso heróico de Descartes, de salvar o conhecimento huma-
recer, vemos surgir uma outra área para a aplicação dos ar-
no pela destruição do ceticismo.
gumentos pirrônicos. Nesta última área o desenvolvimento
Os céticos do início do século XVII, os assim chama-
de um certo tipo de crise cética que já havia acontecido na
dos libertins érudits, foram, em parte, descendentes diretos
teologia viria a ocorrer. O nouveau Pyrrhonisme viria envol- de Montaigne e Charron, em parte filhos de Sexto Empírico,
ver todas as ciências e a filosofia em uma crise cética comple- e, em parte, simplesmente antiaristotélicos. A maioria deles
ta, da qual a filosofia moderna e o pensamento científico pertencia, devido a cargos que lhes foram concedidos por
finalmente iriam emergir.
Richelieu e Mazarin, a círculos intelectuais da corte. Eram
Passaremos agora ao ponto alto do nouveau Pyrrho- eruditos humanistas dispostos a impulsionar a França para a
nisme, o ponto no qual deixou de ser um mero aliado da Con- Idade de Ouro, /ibertins dispostos a romper com a tradição e
tra-Reforma na França e um auxílio para qualquer um que es- criar uma nova tradição.
tivesse envolvido nas controvérsias científicas da época, tor- Estes personagens, Gabriel Naudé, bibliotecário de
nando-se a vanguarda da nova era intelectual na França no Richelieu e Mazarin e secretário do cardeal Bagni; Guy Patin,
alvorecer do século XVII.
um erudito doutor em medicina que tornou-se reitor da Fa-
culdade de Medicina da Sorbonne; Leonard Marandé, secre-
tário de Richelieu; François de La Mothe Le Vayer, preceptor
do irmão do rei; Petrus Gassendi, o grande cientista, filósofo
e sacerdote, que tornou-se catedrático de matemática no
Collége Royal; Samuel Sorbiêre, editor das obras de Gassendi;
e lsaac La Peyrêre, secretário do príncipe de Condé, foram
todos classificados como ·os libertins do mundo intelectual
de sua época, os livres-pens3dores que minavam as crenças
tradicionalmente aceitas. Eles têm sido retratados como ho-
mens sutis, inteligentes, sofisticados, engajados em um tipo
.de para minar a confiança na ortodoxia e na
intelectual tradicional. Seus pontos de vista têm
considerados um elo entre Montaigne, Bayle e Voltaire

'53
no desenvolvimento da visão moderna. Os libertins érudits, nho, e acredita que seu corpo queimqria se o bebesse,
adversários da superstição e do fanatismo, têm sido retrata~ É por i~so que posso dizer tanto sobre um quanto so-
dos como duvidando de tudo com o propósito de destruir os bre o outro este verso de Ovídio, "Ele evita o vinho, o
antigos caminhos e de se divertirem'. Por exemplo, o pirrônico abstêmio elogia a água sem vinho". Quanto a mim
do Le Mariage Forcé de Moliêre é o típico cético do século posso apenas jogar poeira nos escritos destes grandes
XVII que abre caminho para a completa libertinagem inte- homens. Bebo muito pouco, e no entanto deverá ha-
lectual e moral do Don ]uan do mesmo Moliêre. ver um débauche, embora de caráter filosófico, c tal~
Para fazer este retrato da libertinage intelectual pare- vez algo mais. Pois nós três estando curados das su-
cer tão imoral e risqué quanto possível, o retrato típico deste perstições e livres dos males dos escrúpulos, que é o
movimento enfatizou as atividades de sua sociedade infor~ tirano das consciências, iremos talvez quase até os lu-
mal, a Tétrade, seus débauches pyrrhoniens e banquets gares santos. Um ano atrás eu fiz esta viagem a Gentilly
sceptiques, bem como sua amizade com libertinos notórios com o Sr. Naudé, só cu e ele. Não houve outra teste-
como o padre Jean-Jacques Bouchard, e seu interesse por munha, não deveriq ter havido. Falamos livremente
filósofos italianos "suspeitos" como Pomponazzi e sobre todos os assuntos, sem escandalizar uma almal.
Cremonini'. Também muito tem sido dito sobre a carta de
Guy Patin descrevendo seus planos para um débauche. Além da revelação de que nenhum dos participantes bebia
vinho, há indicações de que talvez os libertins érudits fossem
O Sr. Naudé, bibliotecário do cardeal Mazarin, ami- esprit forts capazes da libertinagem de Théophile de Viau e
go íntimo de M. Gassendy, tanto quanto o é meu, com- de Des Barreaux\ que tanto escandalizou o período inicial
binou de irmos os três cearmos e passarmos a noite do século XVII, e que se opusessem à "massa dos crentes
em sua residência de Gcntilly no próximo domingo, humildes e dos fiéis simplórios"s. Entretanto, um exame dos
desde que sejamos apenas os três e que haja um pontos de vista destes céticos indicã que é, no máximo, em
débauche; mas só Deus sabe que débauche! O Sr. um sentido bastante peculiar, ou de acordo com uma inter-
Naudé só bebe água e nunca bebeu vinho. O Sr. pretação do que defendiam, que podem ser classificados como
Gassendy é tão delicado que jamais ousaria beber vi- libertins perigosos e imorais.
Nem Naudé nem Patin eram filósofos. Aplicavam uma
atitude embebida em ceticismo antigo e moderno a certos
' Cf. jacques Denis, Sceptiques ou Libertim de la fJTemiére m01tié du XVIUme problemas, mas não teorizavam de modo a estabelecer uma
sii!cle: Gassendi, Gabriel Naudé, GuiPati11, La Mothe-Le Vayer, Cyrmw de base para esta sua atitude. Admiravam imensamente os es-
Bergerac, Cacn, 1884, pãgs. 5-16 e 52-54; François-Tommy Perrcns, Les Uberti11s
eu Fra11ce au XVIICme siiJc/e, Paris, 1889, págs. 1-27 c passim; J.-Roger critos de Montaigne e Charron; c Naudé em seu Advis pour
Charbonnel, La Peusée ltaliemw ai< XVli:me sii;c/e et le couram liberti11, Paris,
1919, págs. 49-71; c Rcné l'imard, Le Liberti1wge érudit dans la premii!re moitié
du XVIIi:me siúle, Paris, 1943, tomo I, 2' pane, cap.1, c 3' parte.
'Pcrrens, Les Li/Jertius, cap. II; Charbonncl, La Pe11sée ltalremw, especialmente 'Gui Patin, Lettres de Gui Patin, ed. por Paul Triairc, tomo I, Paris, 1907, pãgs.
págs. 49-71; Busson, La Peusée Religieuse Française, caps. III e IV; Fortunat 616·617-
Str?wski, Pascal et son temps, 1' parte, _De Moutaigne à Pascal, • Sobre Théophilc de Viau c Dcs Barrcaux, Ycr Antoine Adam, Théoplúle de Viau
Pans, 1938, cap. III; Pintard, Le Liberti11age Emdit, csp.tomo I, 2' parte, et la lrberté ~e la fJensée {ram;aise en 1620, Paris, 1935; c Frédéric Lachevre,
cap. l e 3' parte; e Julicn-Eymard d'Angcrs, L'Apologetique e11 France tcques .Val/ee Des llarreaux, Sa Vie ct ses poésies (1599-1673), Paris, 1907, c
de 1580 a 1670; Pascal et ses précurseurs, Paris, 1954, cap.I,"Le Couraut , p· e proces du_ poêtc Thé?phi/e de Viau, :z. vols., Paris, 1909.
LJbertil1". lntard, Le L1hertmage Erudit. pág. 177.

'54 '55
dresser une bibliothi!que sugeriu que em uma biblioteca não Em relação à religião Naudé foi geralmente considera-
poderiam faltar Sexto Empírico, Sanchez e Agripa, dentre os do ateu, um homem que não acreditava em nada, e Patin, na
que tinham escrito contra as ciências 6• Mas a visão cética melhor das hipóteses, como um católico sincero que no en-
que aparece nas obras de Naudé e nas cartas de Patin dificil- tanto não desejava sacrificar seus princípios intelectuais à
!11111
mente pode merecer a extravagante avaliação de Saint-Beuve autoridade da Igreja. As coleções de supostas observações
quando este chamou Naudé de "grande cético" com um lu- por ambos estes pensadores, a Naudaeana e a Patiniana, con-
" gar entre Montaigne e Bayle7, nem tampouco o juízo de têm vários comentários críticos às práticas e pontos de vista
Pintard que descreveu Naudé como um "incrédulo culto" 8, religiosos. Mas há também sinais de uma teologia implícita
Em sua primeira obra, uma defesa de pessoas famosas na admiração que tinham por muitos pensadores fideístas.
acusadas de magia, Naudé deixou bem clara sua atitude céti- (Quando o cardeal Bagni perguntou a Naudé qual era o
ca. Tanto ele quanto Patin eram humanistas incansáveis, pro- melhor de todos os livros, este respondeu que depois da Bí-
fundamente interessados nos grandes autores do passado e blia era La Sagesse de Charron. Relata-se que o cardeal ma-
do presente. De modo a formar juízos sobre os méritos das nifestou seu pesar por não conhecer esta obra.)" Creio que é
opiniões dos vários autores, deve-se ter um "método", e quase impossível determinar qual era a posição religiosa de
Naudé sugeriu que "a menos que reconheçamos algo como Naudé e Patin. Eles podem ter sido libertinos autênticos, ou
justo e razoável e como resultado de um exame diligente e de fideístas moderados, que permaneceram do lado católico por
uma exata censura" 9 , não devemos julgar. Àqueles que dese- medo do dogmatismo protestante'~. De qualquer modo, se
javam aprender a julgar de modo razoável, ele recomendava Naudé de fato não tinha religião, procurando ativamente
a leitura de autores críticos excelentes como Charron, minar a Igreja Católica, ele conseguiu ocultar este seu lado
Montaigne e Bacon. Como resultado de toda esta leitura cui- pernicioso de seus patrões, os cardeais Bagni, Barberini,
dadosa, ele dizia que se terminaria aceitando "a correção Richelieu e Mazarin. E tanto Naudé, quanto Patin passaram
dos pirrônicos, baseada na ignorância de todos os homens"'". toda a sua vida em constante associação e amizade com figu-
O que estes estudos humanísticos parecem ter realizado para ras destacadas da Igreja'l,
Patin e Naudé foi torná-los extremamente críticos das su- O mais filosófico dos humanistas céticos foi François
perstições correntemente aceitas, duvidando de todo tipo de de La Mothe Le Vayer, conhecido tanto como "o cristão cé-
fanatismo dogmático. tico", quanto como "o incrédulo epicurista". O interesse de
La Mothe Le Vayer, conforme vemos em suas obras, era pri-
6
Gabriel Naud~, Adl!is pour dresser um: bibliothCque, Paris, 1627, págs. 49 e 75· mariamente desenvolver evidências sobre as variações no
(Esta obra fm pubhcada recentemente em inglês, Advice 011 ~stablishing a !ibrary comportamento ético e religioso no mundo. Em praticamen-
com introdução de Archer Taylor, Bcrkcley & Los Angcles, 1950. As passagen~
em questão aparecem nas pâgs. ::.;3 e 36.) te todas as suas obras, que se baseiam nos pontos de vista do
'Charlcs A. Sainte-Beuvc, "'Ecrivains criÚques et Moralwes de la Fra,ce. XI. Gabriel
Nm~dé", em Revuc des Deux Mmzdcs, IV, 13 2 :mo, N.S., 1~43, págs. 755-756.
'Este c o título da seção sobre Naudé em l'intard, Ubcrtinage Emdit, z' parte, cap.
I, scc.V, pág. 1.')6. "Naudaeaua et Patinimw, 011 Siugularitez Remarquablc5, prises dc5 C01wcrsati0115
'Na.udé, Apolog_te ~our les grands Hommes soupçonnez de Magie, Amsterdã, 1712, de Mess. Naudé et Patiu. 2• ed., Amsterdã, 1703, pág.4. (O catálogo da
pag. 4· Isto nao c nem um pouco parecido com o método da díivida de Descar- BibliothCquc Natioua/e lista l'ierre Bayle como o provável editor.)
tes, ao contrário do afirmado por Rice. Cf. James V. Rkc, Gabriel Naudé 1600- "Patiniana, pâg. n5.
1653, emjolms HopkiusStud1es i11 Rommrce Literaturesmzd Languages, XXXV '·' De acordo com Patin, um de seus melhores amigos foi o fidcísta Jcan-Picrre
llaltimorc, 1939, pág. 63. ' Camus, bispo de Bellay, cf. Gui Patin, Corrcsprmdm1ce de Gui l'atiu, editada
'" Naudé, Advis. pâg. 165 {edição em inglês, pâg. So). por Armand Brcnc, Paris, 1901, pág.1o2.

'57
"divino Sexto", prega-se um tipo de fideísmo cego ou puro diversidade das religiões, a vaidade das ciências, as virtudes
cristianismo pirrônico. dos céticos e do ceticismo etc. Sua obra não é nem incisiva-
La Mothe Le Vayer herdou o manto de Montaign~, IH mente crítica nem altamente teórica, mas sim predominante-
chaves do reino do ceticismo, através de Mlle. de Góurnay. mente ilustrativa. A mensagem fideísta perpassa toda a sua
Como herdeiro espiritual de Montaigne e intérprete do novo obra. A Epístola de São Paulo aos Coríntios I, O lema de
decálogo de Sexto, ele se dedicou à apresentação da beleza, dn Tertuliano, credo quia absurdum, e a posição dos teólogos
sabedoria e da praticidade da epoche cética em discursos eru- negativos são cantadas em uníssono com os "livros de ouro"
ditos e bem-hum orados. Suas realizações literárias, apesar de de Sexto Empírico' 7 • O resultado concreto é o de um
seu estilo (geralmente imitações pedantes de Montaigne), fize- Montaigne insípido. Infelizmente, La Mothe Le Vayer não
ram com que se tornasse membro da Academia Francesa. Suas tinha a personalidade de Montaigne, nem a capacidade teó-
pretensões intelectuais fizeram dele o herói daqueles que ti- rica de Charron. Ele era mais erudito do que ambos, porém
nham uma tendência ao ceticismo, bem como um protegido menos estimulante intelectualmente.
do cardeal de Richelieu. Foi assim que passou a perteficer àOS A melhor apresentação de seus argumentos aparece em
círculos palacianos como preceptor do irruão do rei, o duque alguns de seus discursos. Em seu Opuscule ou Petit Traitté
d'Anjou' 4 , onde seu fideísmo cético extremo provocou a ira de ScejJtique sur cette Façow de Par ler, N'Avoir pas le Sens
fanáticos tais como Guez de Balzac, Antoine Arnauld e Remi Commun, La Mothe Le Vayer começa por perguntar se po-
Descartes's. demos realmente conhecer algo. As coisas mais óbvias como
Começando com seUs Dialogues de Oratius Tubero, o Sol não são compreendidas. Talvez as coisas pareçam ver-
datado de "rso6" por razões peculiares de um pedantismo dadeiras a nós apenas devido a sua relação conosco e a nos-
perverso, porém publicados no início dos anos r63o' 6, La sas faculdades. É possível que tenhamos os instrumentos para
Mothe Le Vayer acumulou evidências em favor da causa do buscar a verdade, mas não os meios para reconhecê-la. Nos-
pirronismo sobre as variações no comportafilento moral, a sos sentidos não são confiáveis, como os trapos de Sexto
facil~ente nos mostram, e não temos nenhum critério ga-
'4 Sobre a carreira de La Mothe Le Vaycr ver a introdução por Erncst lisserand a ranttdo para distinguir as experiências verídicas das outras,
seus Deux Dialogues faits à l'imitation des rmciens, Pari~ 192.:1, Uodsc, Tlie "~m_a vez que existe apenas a imaginaç_ão que julga as apa-
Fortmres o f Montaigne, cap. XVIII; e Pintard, Libertinage Jfrudrt, 2.' parte, cap,
I, sec.iii, e 3' parte, cap. m.
renctas conforme lhe parecem certas", E apenas no Céu que
''Ver, por exemplo, os comentários sobre La Mothc Le Vaycr em "1-ettres de ]ean-
Louis Guez de Ba/zac", publicados por Philippc Tamizcy de Larroque, em
Col/éction de Documeuts lnédits sur I'Histoire de Frm1cc, pub/iées sur /e soiu du
Miuistre de /'lustructiorz Publique, Mélanges Historiques, tomo I, Paris, 1873, '' U11_1 _exemplo disto é a afirmação final de seu "Dialogue de la diversité des
págs. 393-820; o ataque à obra de La Mothe Lc Vayer em La Verftl des J>aye11s, ... ~ , on dc e- d'lto: "P onanto, cu nao
rehg•"•••" - tcn h o s1'd o 1mpertmcntc
- - -
nem 1mpio ao
ma~t~r que São Paulo nos ensinou a crer c não a conhecer, c que em termos das
em Antoinc Arnau!d, De la Necessité de la Foy en ]esHs-Christ pour être sauué,
~ ~ ÇOes verdadeiramente aporéticas que abundam nas Escrituras, temos uma
0 1
Paris, 1701, tomo 11, esp. págs. 181-221; e comentários de Descartes acerca de
um "livro perverso" em suas cartas a Mcrsenne de 15 de abril de 1630 e 6 de llçao explícita sobre a vaidade c até mesmo a nulidade de todas as ciências do
maio de 1630, em Oeuvres de Descartes, publ. por Charlcs Adam & l'aul Tannery, homem, tanto quanto o que nos provêm das escolas cética>... Professemos poc-
tantoco m coragem a ·tgnorancta - · d e nosso hem-amado ceticismo, uma vez que
tomo I, Paris, 1897, págs.144-145 c 148-149. l'intard apresentou fortes evidên-
cias de que o livro em questão é os Dialogues de La Mothe Lc Vaycr, em seu dpenas ele pode preparar o caminho para o conhecimento revelado da Divinda-
"Descartes et Gasscudi", Trauaux du Ixi!me Congri!s Intemationale de / ' c uma vez que todas as outra> seitas filosóficas simplesmente nos afastam
Philosophie {Cangri!s Descartes) 11, parte ii, 1937 (Actualités Sâeutifiqucs et Isto, amarrando-nos a dogmas c confundindo nossas mentes com suas máxi-
Iudustricl/es nQ 531), págs. 120-122. ~~s científicas, em vez de nos esclarecerem c purificarem nosso cntendi~cn~o"
'' Cf.l'intard, La Mothe Le Vayer, Gassendi, Gui Pmin, Paris, s.d., Publications de ;ncq Dialogues fairs à l'imitation des Ancie11s, par Oratius Tubero, Mons, 1671:
pags. 329-330.
I'Uni1.1crsité de Poitiers, Série des Scimces de I'Homme, n9 5, págs. 5-13.

'59
qualquer verdade indubitável pode ser conhecida e não nas las frágeis faculdades humanas, insistem em impor suas leis
ciências do homem' 8 • às ações e manifestações divinas. Deus pode fazer qualquer
O Discours pour montrer que les Doutes de la coisa, portanto nenhuma condição ou princípio necessário
Phi/osophie Sceptique sont de grand usage dans les sciences se aplica às suas atividades. Logo, nenhum conhecimento
desenvolve este último tema, levando à afirmação niilista de necessário, ou ciência (neste sentido metafísico), é possível.
que o valor do pirronismo para as ciências está na elimina- A tentativa de encontrar os princípios da natureza é na ver-
ção da possibilidade da pesquisa científica c do interesse nela. dade um tipo de blasfêmia, uma tentativa de restringir e li-
As ciências mais importantes para os dogmáticos, a lógica, a mitar a liberdade de Deus. Mas os físicos, como nós, prefe-
física, a ética, estão todas postas em dúvida, basicamente rem "culpar a natureza, e talvez o seu autor, do que admitir
porque nossa natureza é fraca demais para alcançar o conhe- a ignorância"~•. E na ética também não há conhecimento
. cimento do divino e do eterno sem a ajuda de Deus. E assim, confiável, todos os padrões éticos são relativos a condições,
infelizmente, "o desejo de conhecer coisas em demasia, ao culturas etc. u
invés de nos tornar ilustrados, nos lança na escuridão da pro- À luz de todas estas reflexões (e na verdade é nisto que
funda ignorância" '9, consistem, muito mais do que em conclusões a partir de ar-
Todos têm consciência de que a lógica está cheia de gumentos racionais), podemos reconhecer o caráter duvido~
ambigüidades, sofismas, e paradoxos. Assim, La Mothe Le so de todas as atividades e realizações humanas.
Vayer apresenta uma série de lugares-comuns sobre a lógica
e os lógicos, sem jamais considerar a questão sobre a possi- Não é, portanto, sem razão que temos defendido nes~
bilidade ou não de se encontrar uma base sólida para questi- te pequeno discurso que as dúvidas da filosofia cética
onar os princípios e procedimentos do raciocíniow. Passa en- são de grande valor para as ciências, uma vez que a
tão à física, mantendo que esta disciplina é ela toda proble- instabilidade c a incerteza são óbvias nelas tanto quan-
mática. Os físicos tolos tentam conhecer todas as coisas e to mostramos. Com efeito, o sistema geral composto
não conhecem nem mesmo a si próprios. Os físicos, sejam de lógica, física e ética, do qual todos os estudos hu-
eles seguidores de Demócrito, de Aristóteles, ou de qualquer manos tomam de empréstimo suas características con-
outro, simplesmente reúnem conjuntos de opiniões confli- sideráveis, nada mais é do que uma massa de opiniões
tantes. A dificuldade básica na tentativa de conhecer os prin- contestadas por todos aqueles que tiveram tempo de
cípios da natureza está em que a natureza é a livre manifesta- examiná-las um pouco'J.
ção da vontade divina e não está sujeita às leis de Aristóteles
ou de Euclides. A única maneira de compreender as razões Para La Mothe Le Vayer, ao contrário do que ocorreu com
pelas quais as coisas acontecem é através do conhecimento seus contemporâneos, Descartes e Bacon, o método da dúvi-
de Deus. Mas os físicos, ao se recusarem a admitir que tais da consiste na eliminação das ciências bem como do interes-
informações só podem ser obtidas pela Revelação e não pc- se científico. Tudo o que resta é a suspensão do juízo acerca de
tÓdas as questões e a Revelação Divina. "Ó preciosa Epoche!
" Esta obra aparece no vol. IX das Oeuvres de Frauçois de La Mothe Le Vayer,
Couseiller d'E5tat Ordmaire, Paris, 1669, p5gs. 259-295· A passagem citada se
encontra na pág. 287. · "lbid., pág.1o3. A discussão sobre a física se encontra nas págs. 96-rq.
•• La Mothc !.c Vaycr, Oetwres, vo!, XV, pág. 88. "Ibid., págs. IIS·I20.
'"Ih1d., págs. 91-95· ., lbid., pág. 124-

,,,
Ó seguro e agradável refúgio mental! Ó inestimável antídoto O pirrônico que duvida de tudo, até mesmo da Palavra
contra a presunção de conhecimento e os pedantes! " 24 de Deus, está causando sua própria queda. Uma tal rejeição
Esta maravilhosa suspensão de juízo é totalmente não- da Graça Divina não seria resultado do ceticismo, mas um
dogmática. Não se baseia na pressuposição de que nada pode ato de vontade de um cético em particular30 • E o deixaria na
,.
11'1 I~~ '
ser conhecido. Os pirrônicos não estão admitindo ter desco- triste posição de Pirro, para sempre excluído da salvação.
Apesar da virtude do sábio cético, bem como de seu discípu-
berto um princípio certo e indubitável, o de que tudo é incer-
to. Os céticos completos não têm certeza sequer sobre isto. lo Sexto, eles não dispunham da Iluminação Divina, e por-
Longe de se caracterizar como uma teoria dogmática negati- tanto estavam condenados para sempre 3 '.
va, suas dúvidas consomem até mesmo isto e os deixam em Os libertins érudits ficaram um tanto preocupados por
uma completa suspensão de juízo, inclusive sobre os méritos seu associado Isaac La Peyrhe ter aplicado o ceticismo à Bí-
de estar em dúvida acerca de tudo >. 2 blia em seu Os homens antes de Adão, escrito em 1641 e
Este ceticismo total tem duas vantagens; em primeiro publicado em 1655· Naudé, Patin, La Mothe Le Vayer e
lugar, mina o orgulho e a confiança dos dogmáticos; e, em Gassendi todos tiveram receio de apoiar a afirmação de La
segundo, está mais próximo do verdadeiro cristianismo. De Peyrêre de que a Bíblia não é uma história precisa da huma-
todas as filosofias antigas, "não há nenhuma que se dê tão nidade, mas apenas dos judeus. O ceticismo de La Peyrêre
bem com o cristianismo quant"a Oceticismo, respeitoso em sobre a Bíblia será discutido no capítulo XI.
relação aos Céus e submisso à Fé"z6 , Afinal, São Paulo não O ceticismo antiintelectual e destrutivo de La Mothe
pregou o ceticismo puro como o caminho para Deus?'7 O Le Vayer unido a um cristianismo completamente irracional
perfeito pirrônico se encontra depurado de todos os erros e e anti-racional foi usualmente interpretado como o ponto
está pronto para receber a Palavra de Deus. culminante da libertinage. Embora La Mothe Le Vayer pos-
sa não ter contribuído muito para a teoria do nouveau
A alma do cristão cético é como um campo limpo e Pyrrhonisme, ele levou o esquema geral desta posição a um
livre de todas as ervas daninhas, tais como os perigo- extremo absurdo, negando completamente o valor de qual-
sos axiomas de uma infinidade de pessoas sábias, que quer atividade intelectual, e insistindo no caráter totalmente
recebe então as gotas de orvalho da graça divina de cego da fé. Praticamente todos os intérpretes concluíram que
modo muito mais feliz do que se estivesse ainda ocu- seu motivo deve ter sido fazer com que as crenças religiosas,
pado com as vãs presunções de conhecer tudo com especialmente as do cristão, parecessem tão ridículas que se-
certeza c não duvidar de nada 2M, riam inteiramente abandonadas'~z. Por outro lado, alguns
comentadores reconheceram que a teologia de La Mothe Le
O cristão cético deixa suas dúvidas ao pé do altar e aceita o Vayer é bastante semelhante à de Pascal e Kierkegaard e que
que a Fé o obriga a crerz9.
l• Ibid., págs. 366-367.
3
•• La Mothe ~e Vayer, Pctit Traitré Sceptique sur cette (acon de parler, em Oeuvres, ' LaMothe Le Vayer, De /a Vertu des Payens, em Oeu!Jres, voi.V, págs.226-227.

vol. IX, pag. 28o. ."Ver, por exemplo, Busson, La l'ensée Religieusc (rm1çaise, págs. 210-214; Jean
'' Ibid., pág. 228. G;enier, "Le Sceptique Masqué: La Mothe Le Vayer", Table Ronde, XXII, 1949,
,, lbid., pág. 290· pags. 15II-1512;julien-Eymard d'Angers, "Stoi"cisme et Libertilwge daus l'oeuvre
"La Mothe Le Vaycr, Prose Clwgriuc, em Oeuvres, \'OI. IX, págs. 359-360. de François La Mothe Le Vayer", em R e!.lu e des Sciences H!1maines, fasc.75· Jul.
'' lbid., págs. 361-362. Ser., 1954, csp. págs. 281-283; e Pinlard, Le Libertiuagc Erudit, págs. 140-147
'•lbid., pág. J6I. e 509-515.
é essencialmente, embora um pouco acentuada e exagerada,
a mesma de Montaigne33, O princípio de Tertuliano ta~bém não se segue ~e uma co~­
sideração das razões de que dtspomos para duvtdar. O ceti-
Portanto, tem sido difícil avaliar a sinceridade de La cismO completo é uma via de mão-dupla, a partir da qual
Mothe Le Vayer. Começando com Balzac e Arnauld no sé~ podemos chegar tanto à "posição razoável" do Iluminismo,
culo XVII até críticos contemporâneos como Pintard, Grenier quanto à fé cega do fideísta. Em ambos os casos o argumen-
e Julien-Eymard d'Angers, tem havido uma posição unifor~ to cético seria o mesm0 35 •
me no sentido de que este assim chamado "cristão cético" Ao indicar que um grande número de pensadores céti-
foi na verdade um "cético oculto" que não possuía o fervor cos diferentes disseram aproximadamente a mesma coisa que
religioso de Pascal nem a possível intenção ortodoxa de La Mothe Le Vayer, e que enquanto alguns foram famosos
Montaigne34, Os críticos têm indicado que a lógica da posi- por seu cristianismo, outros o foram por sua descrença, o
ção de La Mothe Le Vayer é tal que uma vez que se tenha problema passa a ser como encontrar critérios adequados
abandonado todos os princípios racionais, não se terá mais para determinar a sinceridade e a intenção destes pensado-
nenhuma base para escolher o cristianismo. Mas isto é ver- res. Julien-Eymard d' Angers, em seu excelente ensa~o sobre
0 "Estoicismo e a libertinagem na obra de Franç01s de La
dade sobre toda a história do cristianismo fideísta cético, e,
como foi indicado nos capítulos anteriores, é o que ocorre Mothe Le Vayer", encontrou "evidências" de sua intenção
com muitos dos grandes céticos e pensadores da Contra-Re- não~religiosa em seu estilo e em seu uso de exemplos36 • Jean
forma no século XVI. Se duvidarmos que dispomos de meios Grenier encontrou "evidências"no sabor peculiar de seus es-
racionais para distinguir a verdade da falsidade, então estamos critosl7, Renê Pintard, em sua carreira, em seus associados
eliminando a base para justificar as crenças. Mas este tipo de etc,38 Outros, como Tisserand, se consideraram satisfeitos
ceticismo, mesmo em relação à teologia, acarreta algum tipo com a semelhança de sua atitude com a dos "racionalistas"
de ceticismo religioso? Não creio que acarrete. Se não há do século XVIII3 9 •
fundamentos para crenças, como se pode determinar que se Mas é minha opinião que toda a informação de que
deve ou não crer?~Hume e Voltaire parecem ter decidido não dispomos sobre La Mothe Le Vayer é compatível tanto com
crer, quando não dispunham de evidências em favor das cren- a interpretação dele como um "incrédulo epicurist~" ~ ~u~n~
ças:jMas isto é um non sequitur tanto quanto a decisão de to como um "cristão cético". Seu estilo não é mats rromco
crer. O princípio segundo o qual se deve crer apenas naque- ou anticristão que o de Kierkegaard, nem seus exemplos são
las proposições a respeito das quais há evidências adequa- mais blasfemos. O sabor peculiar de seus escritos depende,
das, não se segue de nenhuma reflexão cética, embora possa em larga medida, de como decidimos previamente interpre-
ser um princípio amplamente aceito por "homens razoáveis". tar a sua obra. A biografia de La Mothe Le Vayer não é.

"Busson, I.a Penséc Religieusc {rauçaisc, págs. 212-214; Grenier, "Le Sccptique
Masqué'', págs. 1505 e 15 n; julien-Eymard d' Angers, uSi:neque et Ie Sto'icisme l'oeuvre de La Mothe Le Vayer"; e l'intard, Libertinage Émdit, 2' parte, cap. 1·,
dans ]'oeuvre du cordclier j.du Bosc", em Dix-Septii!me Sii!de, nº 29, out., 1955, seção m, "Un Voluptucux Incrédulc: ta Mothe Le Vaycr".
págs. 376-377; Popkin, "Theological and Religious Sccpticism", em Ch:istiau H Cf. Popkin, "Theological and Rcligious Scepricism", esp. págs. 155-157·
Scholar, XXXIX, 1956, págs. 151-152 c 155-156, e "Kierkegaard and Sccpttcism" J& Julien-Eymard d'Angcrs, "Stolci.1mc et Libcrtinagc dans l'oeuvre de La Mothc
em Algemeen Nederlands T1/dschn{t voor Wlj'sbegeerte en Psychologie, I, I9.'i9• le Vayer", págs. 259-284.
págs. 126-128. "G_renier, "Lc Sceptique Masqué'', esp. págs. 1509-1512.
"Cf. As referências às obras de Bahac e Arnauld na nota 4 da pág.1o8; e Grcnicr, '' PJntard, Le Libertinage Émdit, págs. 1Jl-I47 e passim. .
"l.e Sccptique Masqué''; Julien-Eymard d'Angcrs, "StoTcisme et Libcrtinage dans n TisseJ:and em sua introdução aos Deux Dialogues de La Mothc Le Vaycr, pags.
56-s&.
I
esclarecedora, uma vez que ele foi amigo de muitos persona- ples e o funcionamento da organização religiosa a que perten-
gens religiosos, bem como de outros que não o foram. As- ciam, sem contudo condenar o que poderiam ter considerado
sim, permanecemos com o problema de termos que fazer al- como o núcleo do cristianismo.
gum tipo de conjectura razoável sobre sua motivação e in- O que estou sugerindo é que a assim chamada libertinage
tenções. éruditpode ser uma interpretação errônea de certos movimen-
rlrl 111111 111
Apesar da longa tradição de classificá-lo como uma tos na França no século XVII. Se estamos preparados para
das figuras-chave da libertinage no século XVII, penso ser admitir a possibilidade de que a retomada do ceticismo no
perfeitamente possível que a ênfase contínua no ceticismo século XVI foi mais antiprotestante que anti-religiosa, e que
cristão em sua obra tenha uma intenção sincera, ao menos pode ser considerada compatível com o catolicismo, a visão de
tão sincera quanto a de Montaigne e Charron. Sei que a mi- LaMothe Le Vayer, N audé e Patin pode ser mais bem compre-
nha é uma posição solitária, à exceção de L. M. Kahle, o endida como uma continuação de um desenvolvimento típico
editor dos Dialogues de La Mothe Le Vayer no século XVIII4°, do século XVI do que como uma distorção maliciosa ou
Mas me parece perfeitamente possível que o objetivo da as- prazerosa (dependendo da perspectiva de cada um) de uma
sim chamada libertinage érudit não fosse destruir ou minar o tradição anterior. Eles podem não ter sido tão profundos,
cristianismo, mas servir de apoio a um certp tipo de catoli- incisivos ou perpicazes quanto seus predecessores, mas isto não
cismo liberal que se opunha tanto às crenças supersticiosas os impede de pertencerem à mesma tradição.
quanto ao fanatismo protestante. Ao julgar estes persona- Em contraste com os humanistas céticos, que levaram
gens do século XVII pelos artigos de fé que afirmavam, os adiante suas dúvidas quase que ignorando a revolução inte-
críticos contemporâneos podem estar introduzindo critérios lectual ocorrendo em seu redor, encontramos também alguns
atuais que não se aplicavam naquela época. pensadores de inclinação cética, que formularam seus argu-
Em uma época em que fideístas como Jean-Pierre mentos à luz das descobertas científicas da época. Montaigne,
Camus podiam ser figuras proeminentes da Igreja, e uma gran- Charron, Camus, Naudé, Patine La Mothe Le Vayer critica-
de tolerância existia na Igreja (afinal Sexto nunca foi posto no ram a ciência, porém entendida geralmente ou como a con-
Indexe Montaigne só o foi a partir de r676}, parece perfei- cepção renascentista dos cientistas escolásticos, ou como o
tamente possível que vários indivíduos de mentalidade liberal conjunto variado de alquimistas, astrólogos, numerólogos,
se sentissem mais à vontade na Igreja do que no mundo panteístas etc. do Renascimento. Alguns dos humanistas cé-
dogmático dos reformadores. Eles podem perfeitamente ter ticos conheciam e admiravam pessoalmente heróis da revo-
aderido a algum tipo de "cristianismo simples" que tanto eles lução científica, tais como Galileu. Mas a maneira usual pela
quanto a Igreja da época consideraram uma formulação per- qual trataram o que viria a se tornar a "nova ciência" consis-
feitamente aceitável da mensagem cristã, uma formulação de tiu apenas em breves comentários a Copérnico e Paracelso,
fato mais ética do que religiosa. Além disso, homens como La não como descobridores de novas verdades, mas como figu-
Mothe Le Vayer, Naudé, Patin, todos extremamente eruditos ras peculiares que negaram teorias aceitas, sugerindo assim
c sábios em relação à política das organizações eclesiásticas, que· se até mesmo a teoria mais tradicionalmente aceita pode
poderiam muito bem desprezar a credulidade dos homens sim- ser questionada, então nada no campo científico deve ser
aceito como verdadeiro.
•o A introdução de Kahlc aos Cinq Dialogues ((lifS à l'imitation des mzciens, par Por outro lado, pensadores como Leonard Ma.randé,
Oratitrs Iitbero. N01wel/e edition augnwlfée d'une re(i<tation de la Philosophie .Petrus Gassendi e o discípulo de Gassendi, Samuel SorbiCre,
sceptique ou{;reservmi( contre /e PyrriJOmsme (Berlim, 1744), págs. 9-ro.
íI
! tinham interesses científicos, e participaram na formação da pouco confiáveis dados sensoriais? Daí que "nosso conheci-
"nova ciência", O ceticismo destes pensadores não envolvia mento é apenas vaidade"H,
11' o propósito de millar ou de rejeitar toda ciência, sem nenhu- De modo a termos uma ciência genuína, necessitamos

t. lttlll~
ma compreensão real da monumental revolução científica
que ocorria em seu redor. Ao contrário, seu ceticismo desen-
volveu-se à luz destas novas idéias.
Marandé, secretário do cardeal de Richelieu, apresen-
tou seu ceticismo em relação às ciências em sua obra]ugement
de princípios seguros, mas nada deste tipo nos é revelado. Os
princípios em torno dos quais os filósofos se põem de acordo
são apenas "falsos pressupostos"4s, idéias imateriais por meio
das quais pretendem medir coisas materiais 46 . Aqueles que
pretendem empregar princípios e conceitos matemáticos para
des Actions Humaines, de r624, dedicada a Richelieu. Gran- obter conhecimento científico estão apenas tornando seus
de parte dos argumentos desta obra parece ser derivada de resultados mais duvidosos. A matemática diz respeito a ob-
Sexto Empírico~', ou baseada nele. O tema geral do livro jetos imaginários, assim como pode ser aplicada à realidade
consiste em mostrar por que somos incapazes de alcançar o física, que não tem as mesmas propriedades? Não há pontos
.i' conhecimento científico, no sentido do conhecimento das
coisas tais como elas são. Aceitando a tese aristotélica de que
na física sem comprimento, largura e profundidade, e assim
por diante47, As conclusões matemáticas conflitam com os
nosso raciocínio científico depende dos sentidos, Marandé dados sensoriais como ocorre no caso do ângulo de contato
começa seu ataque com uma crítica do conhecimento sensí- entre o círculo e a tangente4 8 , E os matemáticos, assim como
vel. Nossos sentidos nos dão informações conflitantes, alte- os outros cientistas, discordam entre si. Por exemplo, alguns
ram os dados que trazem até nós etc. Ilusões, tais como a que dizem que a Terra é fixa, outros, como Copérnico, que ela se
ocorre quando pressionamos nosso globo ocular, indicam move. Ambos os lados se baseiam em princípios racionais,
que não temos meios para distinguir as percepções veddicas ·assim, como podemos decidir qual está certo? Toda afirma-
das ilusórias4~. Assim, podemos apenas concluir que "nossos ção científica já foi questionada, e não temos nenhum crité-
sentidos são demasiado fracos para estudarmos e compreen- rio para julgar qual a verdadeira e qual a falsa 49 •
dermos o que é a verdade. Não podem sequer representar Na religião devemos aceitar a revelação em questões
imagens para nós, pois não há relação nem semelhança do de fé. Mas não temos nada tão seguro para fundamentar as
verdadeiro com o falso"H. Ou aceitamos nossos frágeis sen- ciências. A maioria dos princípios científicos são justificados
tidos com seus dados sobre imagens cuja relação com obje- através de um apelo ao consenso ou ao acordo. Mesmo algo
tos é indeterminável, ou teremos que abrir mão inteiramente básico como "I+I=2" é aceito com base nisto. Entretanto, o
do conhecimento científico. Tudo o que percebemo~ são ima- consenso não é um padrão confiável de verdade científica, já
gens e não coisas. E, como Berkeley dirá mais tarde, nossos que algo aceito por consenso pode ser falso. Com efeito, nunca
dados sensoriais são apenas um conjunto de idéias, portanto há um consenso total, envolvendo todos, uma vez que há
como podemos conhecer os objetos externos? Pensamentos
e coisas são completamente diferentes, assim, como pode- "lbid., págs. 53-59, a passagem citada se encontra na pág. 59·
mos julgar a verdade sobre as coisas com base em nossos .. lbid., págs. 59-60.
•~ lbid., pág. 6o.
"Ib'd '
,, I ~ ·• r:gs. 6o-64.
"Para informações sobre Marandé, ver Boase, Fortwws o( Moutaigne, cap. XV. ~ld., pag. 71. Este problema também preocupou Hum e. C f. E11quiry Coucerning
''Abade Leonard de Marandé,}ugement des Actious Humahws, Paris, 1624, págs, uman Uuderstandiug, ed. Selby-Bigge, Oxford, 1955, seção XII, parte li, págs.
39 e 52-53. IS6-I57-
"Ibid,, pág. 52. "M"""d'e, op. cit., págs. 71-75·

.J
sempre os pirrônicos que duvidam de tudo 5°. Podemos ape- da catedral de Digne, e em 1645 catedrático de matemática
nas concluir, "não temos nada mais certo do que a dúvida. no Collêge Royal em Paris. Aposentou-se em 1648 e faleceu
E, eu mesmo, se duvido dos argumentos e princípios das ci- em 1655 53 •
ências que discutimos acima, talvez duvide mais ainda dos Apesar de seu imenso papel na formação da "nova ci-
argumentos que apresentet. contra ej es "5' . I
ência" e da "nova filosofia", a fama de Gassendi sobreviveu
Este pirronismo, ou pirronismo do pirronismo, de graças principalmente às suas críticas às Meditações de Des-
Marandé, representa uma tentativa, ·par alguém familiariza- cartes, e não devido a suas próprias teorias, que ao longo de
do com os progressos científicos de sua época, de desenvol- todo o século XVII se rivalizaram com as de seu adversário.
ver a crise pyrrhonienne em relação a todas as ciências, no- Ele também é lembrado pelo papel que teve na retomada da
vas e antigas. Um ataque de maior alcance e mais amadure- teoria atomista de Epicuro. Mas, em linhas gerais, até recen-
cido, nesta mesma linha, foi publicado neste mesmo ano - temente, o status de Gassendi como um pensador indepen-
r624 - de autoria de um dos maiores heróis da revolução dente tinha sido bastante negligenciado. Talvez isto seja de-
científica, Pierre Gassendi. vido em parte ao juízo que Descartes fez dele, e em parte
Gassendi (ou talvez Gassend) 52 foi um dos prodígios devido ao fato de que geralmente apresentou suas idéias em
do início do século XVII. Nasceu em 1592 na Provença, fre- extensos tomos escritos em latim, que apenas agora estão
qüentou um colégio em Digne, no qual com a idade de 16 sendo traduzidos· para o francês 54 •
anos já estava dando aulas. Após estudar teologia em Aix- Mas Gassendi em sua época teve uma carreira intelec-
en-Provence, ensinou teologia em Digne em r612. Quando tual extremamente importante, cujo desenvolvimento, tal-
recebeu seu doutorado em teologia, tornou-se professor de vez mais do que o de Descartes, indica e ilustra a "formação
filosofia em Aix e depois cânone de Grenoble. Muito cedo, da mentalidade moderna". Gassendi começou sua jornada
Gassendi começou suas extensas pesquisas científicas, aju- intelectual como cético, ao que tudo leva a cref fortemente
dado e encorajado por alguns dos mais importantes intelec- influenciado pela leitura da edição de Sexto publicada em
tuais de Aix, como Peiresc. O curso de filosofia que lecionou 1621, bem como pelas obras de Montaigne e Charron. Esta
fez com que Gassendi compilasse uma extensa crítica a fase do "pirronismo científico" serviu de base a seus ataques
Aristóteles, a primeira parte da qual aparece como sua pri- a Aristóteles, bem como a pseudocientistas da época, e fez de
meira publicação em 1624, as Exercitationes Paradoxicae Gassendi um dos líderes da Tétrade. Entretanto, ele conside-
adversus Aristoteleos. A esta se seguiram diversas obras filo- rava insatisfatória a atitude negativa e derrotista do humanis-
sóficas e científicas, que trouxeram a Gassendi um grande mo cético, especialmente devido a seu conhecimento da "nova
renome no mundo intelectual e o puseram em contato com ciência" e a seu interesse por ela. Ele anunciou então que
aquele que se tornaria seu amigo da vida inteira, o padre estava buscando uma via media entre o pirronismo e o
Mario Mersenne. Em r633 Gassendi foi nomeado preboste dogmatismo. Encontrou-a em sua formulação hipotética e

'" Ibid., págs.76-87. No mesmo ano em· que apareceu a obra de Marandé, foi
publicada a obra de Herbcrt de Cherbury defendendo um critêrio de consenso. '' Para informações sobre a vida de Gasscndi, ver Rochot, "La vie, le caractCre" e
P Marandé, op. ât., pág: 106. Pintard, Le Libertiuage Érudit, págs. 147-156. .
'' O problema do verdadeiro nome do filósofo é discutido por llernard Rochot em '' O professor Rochot tinha se encarregado desta tarefa. Desde seu lamentavel
alguns comentários introdutórios a seu artigo "La vi e, Ic caracti:re et la formation falecimento, este trabalho foi interrompido. Uma tradução para o inglês de a_l-
intcllcctuclle" no volume do Centre International de SynthCse, Prerre Gassendi, gumas amostras representativas da obra de Gasscndi foi publicada por Cratg
1592-1655, sa vie et sou oeuvre, Paris, 1955, págs. 11-12. Bmsh, The Se/ected Works o{ Pierre Gasseudi, Nova Iorque, 1942·.
experimental do atomismo de Epicurq, uma formulação que Desde o início, Gassendi se autoproclamou um discí-
em muitos aspectos se aproxima bastante do empirismo da pulo de Sexto, e para ele isto envolvia dois elementos bási-
filosofia britânica moderna. Neste capítulo trataremos da cos, uma dúvida acerca de todas as pretensões a conheci-
visão cética das primeiras obras de Gassendi, e em um capí- mento sobre o mundo real e uma aceitação do mundo da
tulo posterior discutiremos seu "epicurismo tentativa" ou experiência ou aparência como a única base para nosso co-
"ceticismo mitigado". nhecimento natural59 • Após apresentar esta atitude cética no
Bayle, em seu artigo sobre Pirro, dá a Gassendi o cré- prefácio, Gassendi critica a insistência dos aristotélicos em
dito de ter introduzido Sexto Empírico no pensamento mo- seu modo de filosofar. Ao contrário disso, ele defendia uma
derno, com isso abrindo nossos olhos para o fato de que "as completa liberdade intelectual, incluindo o reconhecimento
qualida.des dos corpos que afetam nossos sentidos são ape- de que as doutrinas aristotélicas não merecem nenhuma po-
nas aparências" 55 • Este ataque às tentativas de construir ci- sição especial ou privilegiada. Os aristotélicos se tornaram
ências da natureza seguras e necessárias com base em nossa {segundo ele) meros disputadores frívolos, em vez de pesqui-
experiência sensível é o ponto de partida do pensamento de sadores em busca da verdade. Discutem sobre problemas
Gassendi. Já em r62r ele anunciara sua admiração pelo verbais, em vez de estudarem a experiência. Submetem-se
pirronismo, antigo e novo> 6 , Em suas aulas sobre Aristóteles servilmente à palavra do filósofo e de seus intérpretes em vez
em Aix ele começava empregando o arsenal cético para de- de pensarem por si próprios; uma submissão que devemos a
molir as pretensões dos dogmáticos, especialmente as de Deus, mas não a um filósofo. Os pontos de vista de Aristóteles
Aristóteles. As Exercitationes Paradoxicae adversus não são tão maravilhosos que mereçam todo este respeito.
Arsitoteleos de r624 representam a primeira etapa deste ata- Para mostrar isto Gassendi tenta apontar todos os erros e
que cético contra os que pretendem ter conhecimento sobre dúvidas que existem nas teorias de Aristóteles 60 ,
a natureza das coisas, e que não conseguem ver que tudo que ?
segundo livro das Exercitationes, publicado apenas
jamais podemos ou poderemos conhecer são as aparências. postenormente 6 ', contém o coração da crítica cética ao
{A obra fora planejada como devendo ter sete partes, das aristotelismo e à filosofia dogmátic~ em geral. A tentativa de
quais apenas duas vieram à luz. É possível que Gassendi te- alcançar o conhecimento científico, no sentido aristotélico é
nha interrompido seu trabalho nesta obra depois que soube fadada ao i~sucesso porque os princípios e definições só p~­
dos ataques de alguns filósofos entrincheirados contra os anti- dem ser obt1dos por meio da experiência. A única informa-
aristotélicos de Paris em r624-r625 .)s7 Neste texto Gassendi ção clara que temos é do que percebemos. De modo a che-
afirma de modo direto que ele preferia muito mais a garmos a definições reais ou essenciais de objetos, necessita-
acatalepsia dos acadêmicos e pirrônicos à arrogância dos mos de alguns conceitos básicos por meio dos quais entende-
dogmáticos> 8 • ·
s• Cf. carta de Gassendi para Hcnricus Fabri Pybracii abril de r621 em Opa"
"Bayle, Dictionnaire, verbete "Pirro", Rem. B. vol.VI p;g 1 . i' f · ,, - · .' ' '
_ •. · • rac ano a c.:erCitattoue~ Paradoxtwe, em Opera, vol.lll,págs.
-'' Cf. A ca_rta de Gasscndi a Hcnricus Fabri Pybracii, abril de 1621, em Pctrus 8
9 104, c carta. de Gassendt de 15 de runho de 1629, em I.cttres de Peiresc
Gasscndt, Opem Onmia, Lyon, 1658, vol.VJ, págs. 1-2. tomo IV, publJcadas por Philippe Tamizcy de Larroquc, Paris 18 3 c~
"E;~te ass_unto é discutido em ~ochot, T.es Travaux de Gassmdi sur Épicure et wr 9
""go/lectwn de Documents inédits sur /'hisrom: de Frauce pág 196~ '
ll}tonusme, 1619·1658, Pans, 1944, cap.I, c em seu anigo, "La vi c, Ie caractCre", a:scndi, Exercita:ioues Paradoxicae, livro I, em Ope;a, v~[. IH, ·págs. 105 •
pags.18-2o; ~em Gaston Sortais, La Phi/osophie Moderne depuis Baco11 ;usqu'à 1
D4 ._Um resumo dJsto encontra-se em Sonais, I.a Philosophie Modeme, tomo
Le1bmz, Par1s, 1922, tomo li, págs. 32-36. , , pags. 28-30.
'' Gassen~i, Ex_ercitationes Paradoxicae Adversus Aristote/eos, em Opera, vol. Jll, ' Sorrais
_ • op .c1 , ., to~o 11, pags.
· 23-24 e 32; c Rochot, Travaux de Gasse•tdi, págs.
Praefat10, pag. 99· 9 2 2, onde as razoes para a demora na publicação siio discutidas.

'73
mos as coisas, mas na realidade conhecemos apenas os obje~ é uma das primeiras formulações da distinção entre qualida~
tos sensíveis. Com base na experiência não podemos obter des primárias e secundárias na filosofia moderna 6s.
por indução proposições gerais e princípios, porque é sem~ Uma vez que não podemos conhecer nada "por sua
pre possível que uma instância negativa seja encontrada de~ natureza e em si mesmo, e como resultado de causas básicas,
pois. (Embora Gassendi estivesse familiarizado com a obra necessárias e infalíveis" 66, nenhuma ciência, no sentido de
de Bacon, este problema, bem como a maioria dos pontos de conhecimento necessário sobre o mundo real, é possível. Tudo
vista de Gassendi sobre estas questões, são mais provavel~ que podemos conhecer da natureza é como esta aparece para
mente derivados das discUssões de lógica encontradas em nós, e, como os argumentos céticos mostram, não podemos
Sexto Empírico.) 62 Mesmo que conhecêssemos alguns princí- nem julgar nem inferir a real natureza das coisas que causam
pios e definições, não poderíamos obter conhecimento cien- ou produzem as aparências. Variações na experiência sensí-
tífico por meio do raciocínio silogístico, já que, como os vel nos impedem de definir ou descrever os objetos reais com
pirrônicos mostraram, as premissas do silogismo só são ver~ base no que percebemos- Devido à falta de sinais indicativos,
dadeiras se sabemos de antemão que a conclusão é verdadei~ isto é, inferências necessariamente verdadeiras da aparência
ra. A conclusão ou é parte da evidência para as premissas e para a realidade, e devido aos defeitos do raciocínio silogístico,
neste caso o silogismo é um argumento circular, ou o silogismo não temos meios para raciocinar a partir de nossa experiên-
é inconclusivo porque não sabemos se as premissas são ver~ cia até as suas causas, ou a partir das causas até os seus efei-
dadeiras (problema este mais tarde levantado por J. S. Mill} 6l, tos. Não podemos sequer estabelecer um critério de conheci-
O ponto alto do ataque pirrônico de Gassendi se encon- mento verdadeiro, portanto não podemos dizer no que con~
tra no último capítulo, intitulado "Que não há nenhuma ciên~ sistiria uma ciência. Tudo que podemos concluir é que nada
cia, especialmente nenhuma ciência aristotélica". Aqui os pode ser conhecido67.
trapos do pirronismo antigo, de Sexto, Agripa, Enesidemo e Com tudo isso, Gassendi não estava desafiando nem a
outros, são empregados de modo a mostrar que nosso conhe- Verdade Divina, que ele aceitava primordialmente a partir
cimento está sempre restrito às aparências das coisas, e não de bases fideístas, nem os dados do senso comum, o mundo
pode jamais alcançar sua real natureza, oculta e interior. Po- das aparências 68 • Ao contrário, ele estava atacando qualquer
demos dizer como as coisas são para nós, não como são em si tentativa, fosse de Aristóteles ou de qualquer outro, de cons~
mesmas. Assim, por exemplo, sabemos pela nossa experiência truir uma ciência necessária da natureza, uma ciência que
que o mel parece doce. Porém, não podemos descobrir se é transcendesse as aparências c as explicasse em termos de al-
realmente doce6 4 • A distinção feita por Gassendi entre quali~ guma causa não~evidente. Na experiência, e na experiência
dades aparentes, a maneira como as coisas aparecem para nós, apenas (segundo ele}, cncontra~se o único conhecimento na-
e qualidades reais, as propriedades que o objeto de fato tem, tural que o homem pode obter. Tudo o mais, sejam funda-
mentos metafísicos ou matemáticos, ou ainda interpretações
de dados da sensibilidade, são apenas conjecturas inúteis.
'' Cf. Sexrus Empiricus, Outlines o( Pyrrhouism, H, seção 204. Como disse de Gassendi seu discípulo Samuel Sorbiêre, "Este
' 1 Gassendi, Exercitationes Paradoxicae, li, em Opera, vol. m, págs. 187-191. Ver
também F. X. Kicfl, "Gassendi's Skepticismus und scine Stellung zum
Materialismus", Philosopliische ]ahrbuch der GOrres·Gesellscha(t, VI, 1893, págs. ~~ Cf Kiefl~ "G asscn ,..
~ G • 1 s Sk cptiCISmus
.. , , pags.
- JOI-.~05·
27-34· "'lb~sej.d1, Exercitationes Paradoxicae, livro 11, Opera, vol. lll, pág. 192.
'• Gasscndi, Exercrtatimzes Paradoxicae, livro II, Exer. VI, Opera, vol. m, págs.192- .. Ib~i' ~vro 11, Exerc. VI.
21o. '' hvro Il, Exerc. VI, pág.192.

'75
i i homem culto não mantém nada de modo muito afirmativo; futuros7~. O lado positivo do pensamento de Gassendi levou-
! e seguindo as máximas de sua profunda sabedoria, ele não se o a procurar mitigar seu pirronismo inicial, transformando-
' o em um tipo de "ceticismo construtivo" e a desenvolver uma
'I afasta da Epoche, o que o protege da imprudência e da pr:e-
sunção em que todos os filósofos caíram"69, teoria intermediária entre o ceticismo completo e o dogma-
O jovem Gassendi estava preocupado primordialmen- tismo73, Esta visão posterior, desenvolvida mais completamen-
te com o lado destrutivo da crítica cética ao conhecimento te em seu Syntagma, bem como a teoria: do conhecimento de
científico, atacando qualquer um que buscasse descobrir um seu amigo Mersenne, constituem, talvez, a formulação, pela
conhecimento certo e necessário sobre as coisas. Se este conhe- primeira vez, do que pode ser chama?o de "uma visão cien-
cimento precisa ser demonstrável a partir de certas premissas, tífica". Esta visão será examinada ma1s tarde, e mostraremos
ou ser auto-evidente, e no entanto precisa também alcançar que constitui possivelmente o mais frutífero resultado do
algo além das aparências, então tudo o que pode ser conclu- impacto do pirronismo na filosofia moderna.
ído é que "nada se pode conhecer'\ Começando seu ataque Na avaliação de Gassendi duas questões têm sido dis-
com Aristóteles, Gassendi logo o ampliou incluindo os natu- cutidas pelos muitos comentadores: em primeiro lugar, foi
ralistas da Renascença, os platônicos, e todos os filósofos que Gassendi realmente um cético? E, em segundo lugar, foi
pretendiam conhecer a verdadeira natureza das coisaÇ0 , Gassendi um libertin? O problema da primeira questão gira
Por outro lado, ao mesmo tempo que Gassendi se decla- em torno do que se quer dizer com "cético". Se se supõe que
rava um seguidor de Sexto, incluía nisto uma aceitação um cético é alguém que duvida de tudo, e nega que tenhamos
inquestionada da experiência como fonte de todo o conheci- ou possamos ter algum tipo de conhecimento, então Gassendi
mento. E como uma das maiores figuras da revolução cientí- definitivamente não foi um cético, especialmente em seus
fica, Gasscndi procurou ampliar o conhecimento humano últimos escritos, onde ele especificamente nega estes pontos
através de um exame cuidadoso da natureza. Ele deu impor- de vista e critica os céticos antigos 74 . Entretanto, há um sen-
tantes contribuições nos campos da astronomia e da fisiolo- tido mais fundamental de "cético", como aquele que duvida
gia, descobrindo e descrevendo aspectos do mundo natural7', que razões necessárias e suficientes possam ser_ encontradas
Mais tarde ele deu o que foi talvez sua mais importante con- para nosso conhecimento ou nossas crenças; ou ainda, aque-
tribuição à ciência moderna, desenvolvendo a teoria atomista le que duvida que possa ser encontrada evidência adequada
de Epicuro como uma hipótese, ou modelo mecânico, para mostrando que sob nenhuma condição podem nosso conhe-
estabelecer relações entre as aparências e prever fenômenos cimento ou nossas crenças ser falsos, ilusórios, ou duvido-
sos. Neste sentido, creio que Gasscndi permaneceu cético
"'Citado a partir do manuscrito de SorbiCrc, Discours de M. Sorbiiire 51tr la Comete, durante toda a sua vida. No capítulo tratando do ceticismo
em Gerhard Hess, "Pierre Gassend. Der franzOsischc Spãthumanismus und Jas
Pr~blcm.von Wissen und Glauben", em Berlilwr Beitriige zur Rommlischen
Phdologw, Band IX, Heft 3/4, 1939, pág. 77·
10 Ver, por exemplo, a obra de Gassendi contra o rosa-cruz Robert Fludd. Exame11
7' Cf. o artigo de Rochot, «Le Philosophe", no volume sobre Pierrc Gassendi de
Synth€se, págs. 74-94 e l04·Io6, c Rochor, Les Travaux de Gassmdi. passim.
Phil~sophiae Roberti Fluddi, c a resposta a Herbert' de Chcrhury, "Ad Libmm, 71 ~Media quadam via inter Scep!Ícos & dogmaticos vidctur tencnda", Gassendi,
D. Edoardi Herberti Ang/i, de Verirate", e a Disquisitio Metaphysica seu
Syntagma phi/osopllicum, Logica, livro II, cap.V, em Opera, voi. I, pág. 79·
DulmatiOIICS et [>ISta>Jâae adversus Rena/i Carresii MetaphysiCt/111, todos no
vol. III da Opera.
74
<;:f. a discussão por Gasscndi sobre o ceticismo e o conhecimento no segun~o
1 ' Sobre as realizações científicas de Gassendi, ver o artigo de Alexandre Koyré,
hvro do Syntagma philosophicmn, Logica, em Opera, vol. I, págs. 69 e scgum-
res; Henri Berr, An Jure iuter Sceplicos Gassend11s Numerams Fuerit, Paris, 1898.
::Lc Sava~t", em Syuthése, v':llume s?bre Picrrc Gasscndi, págs. 59-70; c Rochot, Esta obra foi recentemente traduzida para o francês por B. Rochot, sob o título
~asscndt ct !c Syntagma l'h1losophleum", em Revue de Synthése, LXVII, 1950,
Du Scepticisme de Gassendí, Paris, 1960. Kiefl, "Gasscndi's Skcpticismus", págs.
pags. 72.-77, c Rochot, Les Travaux de Gasscndi.
construtivo de Mersenne e Gassendi tentarei mostrar que - 1s Por outro lado Rochot argumentou que nenhuma das
embora ambos estes pensadores ataquem o ceticismo e pre- çao. '. l"b""
evidências contra Gassendt de fato provam seu 1 erttmsmo,
tendam responder a ele, suas visões positivas constituem na e que há fortes evidências _do contrário79 • _ • •
verdade um tipo de Pirronismo epistemológico, muito pare- Em discussões antenores sobre a questao da smcenda-
cido com o de David Hume. Como disse um autor jesuíta, d dos assim chamados libertins érudits, tentei mostrar que
I
111111 n;: Gabriel Daniel, a propósito de Gassendi, "Ele parece ser um
tanto pirrônico em relação à ciência, o que do meu ponto de
h~ um problema na avali~ção dos reais po~tos de vista dos
cristãos pirrônicos. A mator parte das razoes que levam a
vista não é mau para um filósofo"7s.
classificá-los como incrédulos perigosos ou exemp_lar_:s ba-
A outra questão, sobre o lihertinismo de Gassendi, é seia-se em avaliações tradicionais e culpa por assoctaçao. As
mais difícil de se decidir. Gassendi era um sacerdote, que avaliações tradicionais foram feitas em larga escala ou por
desempenhava suas funções religiosas de forma satisfatória pensadores extrema c intensamente religiosos como P~scal e
segundo seus superiores. Era um fideísta, em linhas gerais Arnauld, ou extremamente anti-religiosos como V~ltatre. Os
apresentando uma visão teológica semelhante às de Montai- dados sobre as vidas e os pontos de vista dos asstm chama-
gne e Charron76 • Era também um membro da Tétrade junto dos Jibertins érudits são compatíveis, tanto filosófica quanto
com figuras suspeitas como Naudé, Patine La Mothe Le Vayer psicologicamente, seja com u~a interpret~ção segundo a qual
e freqüentava seus débauches pyrrhoniennes. Foi amigo de eram sinceros, quanto com a mterpretaçao oposta. M~s, no
alguns libertins bastante imorais como Lullier e Bouchardn. caso de Gassendi vai contra os limites de nossa credulidade
Seus amigoS religiosos o consideravam um cristão bastante ' . .
considerá-lo totalmente insincero. Se, como sugen antenor-
sincero. Em vista destas informações aparentemente mente, é possível que Naudé, Patin e La Mothe -~e Vayer
conflitantes, alguns comentadores franceses têm discutido o tenham sido autênticos cristãos fideístas na lmha de
"caso Gassendi". Pintard reuniu recentemente evidências Montaigne e Charron, então isto é aind~ mais. p.lausível em
sugerindo que Gassendi foi na verdade um /ibertin de cora- relação a Gassendi, tendo em vista sua vtda rehgtosa, os tes-
temunhos de seus amigos religiosos etc. Segundo a coloca-
ção do problema pelo abade Lenoble,
31 I c 361-362; Rochot, ~casscndi ct lc Syntagma Philosophicum", págs. 76-77;
Lcs Travartx de Gasse1idi, págs. 79-80, "Lc Philosophc", p.ígs.78 e seguintes; e Se quisermos a todo custo penetrar na mais profunda
Sortais, La Phi/osophie Modeme, vol. II, págs. 252-257· O mais completo estu-
do atualmente disponível sobre o pensamento de Gassendi é o de Olivicr R. intimidade de Gassendi para determinar a realidade
llloch, La Philosophie de Gassmdi, Haia, 1971. Ver também, Tullio Grcgory, de sua fé e a extensão de sua libertinage (na qual cu
Scetticismo ed Empirismo; studi 511 Gassendi, Bari, 1961. Bloch procura expan-
dir c modificar algumas interpretações minhas c de Grcgory.
" Gabriel Daniel, Voyage du Mmtde de Descartes, citado por Sortais, op. cit., vol.
11, pág. 257, n~ 1. 71
Pintard, Le Libertinage Érudit, esp. págs. 147-156 e 486-so.z, c tamb_ém os
•• Cf. Rochot, "Lc l'hilosophc", em Pierre Gassendi, págs. 98-99 e 102-ro_~ (nas vários elos entre Gasscndi c os libertins discutidos ao longo de todo o hvr~; c
págs. 81-82 Rochot indica que Gasscndi tinha algumas inclinações cmpiristas _Pintard, "Modemisme, Humanismc, Libcninage, petit suitc sur I~ 'cas Gasscnd1"',
em teologia). Ver também o capítulo de Hcss sobre "Wissen und Glaubcn" em em Revue d'Histoire Littriraire de la France, ano 48 2 , 1948, pags. I-52. .
Pierre Gassend, págs. zo8-zs8. 79
Rochot, TraMux de Gassendi, págs. 137-139 c 192-194; "Lc 'cas Gassend1"',
" Sobre a amizade de Gassendi com Lullier e Bouchard, ver Rochot, "La vic ct lc em Re11ue d'Histoire Littéraire de la Frauce, 47º ano, 1947, págs. 298-313; c
caractêrc", em Picrre Gassendi, págs. 26-32; Gassendi, Lettres fami/ieres à "La ;ic ct lc caracthe", págs. 23-54- Ver também a c~cclcntc discussão por
Françoi> Lullier pendaut l'liiller, 16J2.·16JJ, com introd~ção, notas e índice por Henn Gouhicr do "caso Gassendi" em sua resenha de Pmtard, Le L1bertmage
Bernard Rochot, Paris, 1944; c l'intard, Le Libertinage Erudit, págs. 191-195 c I::rndit, e La Mothe Le Vayer, Gasse11di, Gt<y Patin, em Re11ue Philosophique de
200-2;03-
14 Prance et de I'Étranger, CXXXIV, jan.-jun.r944, págs. 56-6o.

'79
não creio), é necessário analisar de perto as cartas de é possível que cada um dos pensadores em questão fosse um
Launoy c Boulliau. Ambos falam do fim profunda- fideísta sincero, e bastante provável que Gassendi o era, en-
mente cristão de sua vida, sem nenhuma ansiedade ou tão nada fica provado pelo fato de que todos eles, que estive-
arrependimento pela libertinage. Mas por outro lado ram em alguma medida envolvidos nos negócios da Igreja e
(mais uma vez), como podemos julgar as intenções do Estado cristão, e que tinham visões céticas e teologias
111~~ K profundas destas duas testemunhas? fideístas semelhantes e confessas, eram amigos íntimos. (Pode-
se mencionar que todos eles eram, aparentemente, amigos
Se suspeitamos que as duas testemunhas, bem como Gassendi, do padre Mersenne que jamais, tanto quanto eu saiba, foi
possam estar mentindo, "Caímos então, segundo creio, em acusado de libertinagem.) Se considerarmos os libertins érudits
uma impossibilidade psicológica, a menos que possamos su- sem preconceitos quanto a suas intenções, podemos decidir
por que os dois (seria necessário então dizer os três) amigos positivamente seja com base em seus pontos de vista, seja
fossem de um excepcional cinismo, do qual não temos, por com base em suas carreiras, seja com base no círculo de figu-
sua vez, nenhuma prova" 80 • ras religiosas e irreligiosas com quem se davam, se eram o
A longa tradição que leva a assumir que deveria haver centro de uma campanha contra o cristianismo, ou parte de
duplicidade nas obras e nas atitudes dos libertins érudits de- um movimento sincero dentro da Contra-Reforma visando
pende, me parece, da suposição de que nenhuma· outra expli- minar o protestantismo através da defesa do fideísmo?
cação de seus pontos de vista pode ser encontrada. Mas, como Voltando ao material histórico, o último deste grupo de
tentei indicar, existe outra possibilidade, a saber, que ho- pensadores céticos do início do século XVII que mencionare-
mens como Naudé, La Mothe Le Vayer, e Gassendi fossem mos aqui é o discípulo de Gassendi e de La Mothe Le Vayer,
cristãos sinceros (embora talvez não particularmente fervo- Samuel Sorbiêre. Ele não foi um pensador original, mas um
rosos). Na ausência de evidências totalmente decisivas sobre repetidor do lado mais pirrônico de seus mentores. Talvez no
as reais intenções destes pensadores, por que devemos presu- contexto da história do ceticismo francês, o que é diferente ou
mir o pior (ou o melhor?), ou seja, que estivessem engajados novo sobre Sorbiêre é que ele foi tanto um cético filosófico,
em uma conspiração contra o cristianismo? O imenso núme- quanto um protestante8 '. Entretanto, ele superou esta peculi-
ro de seus amigos Íntimos e contemporâneos não encontrou aridade mais tarde em sua vida tornando-se católico. Amai-
sinais de insinceridade. E uma das principais fontes· de sus- do sucesso de Sorbii!re nas letras veio da publicação
peita de libertinage no caso de cada um foi a amizade com o "'' ol>ra<S de outros autores, como Hobbes e Gassendi. E, para
outro; Naudé era amigo de La Mothe Le Vayer e de Gassendi; causa cética, ele tentou fazer uma tradução para o francês
Gassendi era amigo de Naudé e de La Mothe Le Vayer etc. Sexto Empírico que não chegou a ser concluídah,
Se soubéssemos definitivamente que: a) pelo menos um deles Nas duas cartas de Sorbiêre que contêm os fragmentos
era um libertin procurando minar o cristianismo; e b) os de- sobreviveram de sua tradução de Sexto Empírico, ele
mais aceitaram sua amizade devido a (a), então o argumento que iniciara esta tarefa ao deixar o colégio de modo a
da culpa por associação poderia ser significativo. Mas como o seu conhecimento de grego, e aprender um tipo de

'" Robert Lenoble, "Histoire et Physique. A propos des conseils de Mcrsenne aux
historiens et de ['intervention de Jean de Launoy dans la qucrelle gassendiste",
Rev11e d'Hístoíre des Sâences, VI, 1953, pág. 1:.1.5, nº 1.

,,,
i 'J
filosofia que não lhe tinha sido ensinada83. Ele evidentemen- Sorbiêrc parece ter sido bastante versado nos movi-
te tornou-se um admirador completo e um defensor do mentos intelectuais de sua época, considerando~os todos em
pirronismo e, portanto, um discípulo dos nouvea.ux termos de uma constante atitude pirrônica. Com este tipo de
pyrrhoniens. Com uma consistência quase fanática, ele con- visão, ele apenas considerava como significativas as questões
tinuou durante toda a sua vida a defender um ceticismo com- relacionadas às aparências, as demais eram apenas vãs pre-
pleto em relação a todas as questões que fossem além das sunções dos dogmáticos. Sorbiêre não foi um teórico do
aparências, e a formular suas observações de tal maneira que nouveau Pyrrhonisme, mas na realidade representava a ge-
não pudesse ser acusado de transgredir as dúvidas dos céti- ração seguinte que absorveu as conclusões destes e aplicou-
cos. Em um Discours sceptique sobre a circulação do san- as quase que automaticamente a quaisquer problemas com
gue, Sorbiêre diz, "Permita-me, assim, Monsieur... , perma- que se defrontou.
necer em suspensão de juízo acerca de questões científicas. Os céticos franceses da primeira metade do século XVll
Sobre as outras, acerca das quais a revelação divina nos con- confrontaram a nova e otimista época em que viveram e pros-
vence, ou o dever nos ordena, vós me encontrareis mais afir- peraram com uma completa crise pyrrhonienne. Como van-
mativo. Estas últimas não se encontram na província ou ju- guarda intelectual de seu tempo eles lideraram o ataque ao
risdição de meu ceticismo" 84 • Apenas quando lhe mostraram dogmatismo ultrapassado. dos escolásticos, ao novo
que a teoria sobre a circulação do sangue era uma teoria dogmatismo dos astrólogos e alquimistas, às gloriosas afir-
empírica, e não um juízo sobre o que existia além das apa- mações dos matemáticos e cientistas, ao entusiasmo fanático
rências, ele se dispôs a aceitá-la. Em um relato de sua viagem dos calvinistas e, em geral, a qualquer tipo de teoria dogmá-
à Inglaterra, Sorbiêre cuidadosamente afirmou que estava tica. Alguns, como La Mothe Le Vayer, reuniram informa-
apenas contando "o que lhe parecera, e não o que talvez seja ções sobre o mundo clássico e sobre o Novo Mundo, e, é
a realidade das coisas" 8s. O bispo Sprat em sua resposta para claro, material do "divino Sexto" para minar as ciências
a Royal Society a alguns dos comentários maldosos de morais. La Peyrêre lançou dúvidas sobre algumas das afir-
Sorbiêre admoestou-o por não ter mantido sua suspensão de mações básicas da Bíblia. Outros, como Marandé e Gassendi,
juízo acerca da questão sobre se a cozinha inglesa era ruim 86 • usaram as dúvidas pirrônicas e novas informações para mi-
nar as ciências naturais.
A Reforma tinha produzido uma crise pyrrhonienne
fiir (rm1zOische Sprache uud Utteratur, XXXIII, 1908, págs. 214-265; Pintard, no conhecimento religioso com sua busca de certeza absolu-
Le Libertinage Erudit, págs. 334"345; Popkin, "Samuel Sorbiêre's Translation
ofSextus Empiricus", págs.617-6I8; c Sortais, I.a philosophie modeme, TI, págs. ta para as verdades religiosas. O novo pirronismo havia co~
192-:nS. meçado como um meio de defender o catolicismo destruindo
'' Samuel Sorbiêre, Lettres et Discours de M. de Sorbiáe sur diverses matiCres
curieuses, Paris, 166o, cana a Ou Bosc, págs. 151-152. todás as bases racionais para a certeza religiosa. De Montaigne
' 4 Sorbiêre, Discours sceptique sur /e passage du chyle & /e moul!emcnt du coeur, a Charron, até a Tétrade, um abismo de dúvidas havia sido
Leydcn, 1648, págs. I5J-I54· Esta passagem é citada por Sortais, La philosophie
modemc, II, pág. 194.
''Citado em Vincent Guilloton, "Autour de la Relation du Voyagc de Samucl
SorbiCrc en Angleterre !66)-1664", em Smith Co//ege Studies in Modem do longamente se existe o paladar, se a fumaça na panela não é apenas fantasia,
Languages, XI, n~ 4 (julho de 19.~0), pág. 21. ou uma coisa real, se o fogo da cozinha tem realmente boas condições para assar
"Thomas Sprat, Observatious 011 Mo11sieur de Sorbier's Voyage into England, . e ferver, ou se se trata apenas de aparência. Esta seria uma disputa mais adequa·
Londres, 1665, págs. 275-276. "Mas devo ainda dizer-lhe que talvez esta rígida da a um cético, do que concluir assim sobre toda~ as Intrigues o( haut gousts, e
condenação da culinária inglesa não sefa (llUÍto adequada a seu tão amado títulq levantar uma discussão cspcculativa sem fim entre estas duas até então pacificas
de cético. De acordo com as leis desta profissão, ele deveria primeiro ter discuti- e práticas seitas, os Hasche's e os Surloincrs."
revelado, destruindo não só as bases do conhecimento reli- VI. Começa o Contra-Ataque
gioso, mas também de todo o conhecimento natural. Com o
começo da reforma científica e a crítica ao sistema de Di·ante desta situação crítica, os cientistas, filósofos e
Aristóteles, o ataque cético rapidamente ampliou o proble- teólogos teriam que lutar pela sobrevivência, ou abandonar
ma tornando-o um ataque às bases de todo o conhecimento. a busca da certeza. Gradualmente, primeiro no campo da
Nas duas ordens do conhecimento humano, revelado e natu- religião e depois na ciência e na filosofia, a ameaça do
ral, os fundamentos desapareceram. pirronismo foi reconhecida e iniciou-se um contra-ataque.
Não só havia sido levantado o velho problema do cri- Desta luta os filósofos modernos emergiram como São Jorge
tério na teologia, fazendo com que os homens buscassem preparado para matar o dragão cético; só que neste caso o
justificar uma "regra da fé", mas a mesma dificuldade ocor- dragão nunca chegou de fato a ser morto, e na verdade con-
rera em relação ao conhecimento natural, forçando os ho- seguiu em um século consumir muitos cavaleiros que tenta-
mens a buscarem alguma "regra da verdade". A "nova ciên- ram salvar o conhecimento humano.
cia" de Copérnico, Kepler, Galileu e Gassendi tinha "posto Envolvido nesta luta estava o paradoxo de que por mais
tudo em dúvida". As descobertas no Novo Mundo e no mun- que os céticos criticassem e argumentassem, empurrando a
do clássico haviam fornecido novas bases para o ceticismo. todos para a dúvida, nem todas as questões pareciam sujei-
E os nouveaux pyrrhoniens mostraram a incapacidade de se tas à dúvida. Apesar das críticas céticas, as ciências, novas
justificar a ciência de Aristóteles, dos naturalistas do ou antigas, pareciam conter algum conhecimento real sobre
Renascimento, dos moralistas, e também dos novos cientis- 0 mundo. Em conseqüência.disso, a luta consistia em parte
tas. Os ataques cumulativos dos humanistas pirrônicos de numa tentativa de conciliar a força das dúvidas dos pirrônicos
Montaigne a La Mothe Le Vayer, e dos pirrônicos científicos com a rápida expansão do conhecimento humano. Para al-
como Gassendi e Marandé, deixaram a busca de um conhe- guns pensadores, a luta não consistia tanto em uma busca da
cimento garantido sobre o mundo "real" sem um método, certeza, mas sim em uma busca de estabilidade intelectual na
um critério, ou uma base. Nenhum tipo de investigação raci- qual tanto a dúvida quanto o conhecimento poderiam ser
onal sobre a verdade das coisas parecia possível, uma vez aceitos. Para outros, tratava-se de uma Guerra Santa para
que em relação a qualquer teoria, ou a qualquer dogma, uma suplantar a dúvida de tal modo que o homem pudesse se
bateria de argumentos aparentemente irrefutáveis podia ser sentir seguro em seu conhecimento, religioso e científico.
lançada. A crise pyrrhonienne havia solapado a busca da cer- Como freqüentemente ocorre, os primeiros matadores
teza tanto em relação ao conhecimento religioso quanto ao do dragão foram os piores. Os primeiros adversários do
científico. nouveau Pyrrhonisme foram ao mesmo tempo ingênuos e
ferozes, e, portanto, não conseguiram realmente sequer cap-
tar os problemas em questão. Estes primeiros antagonistas
ora usavam mais inventivas do que argumentos, ora caíam
em um círculo vicioso pressupondo que a posição de
Aristóteles não era passível de dúvida e portanto podia ser
recitada ao cético para fazê-lo desaparecer. Os primeiros a
a ameaça da retomada do ceticismo foram astrólo-
como Sir Christopher Heydon, ou espiritistas como Pierre
Le Loyer'. Este último, como já dissemos, dedicou uma bre- não é nada para nós. A obra de Charron é um tanto elevada
ve seção de sua obra em defesa dos espectros a responder a para mentes baixas e vulgares como a sua"4,
crítica cética do conhecimento sensível através de um apelo à A crítica severa de Ogier levou Garasse a ataques ain-
epistemologia aristotélica, uma linha B.e defesa que será bas- da mais fortes, sendo o primeiro, em r624, intitulado
tante comum, como veremos neste exame que faremos dos Apologie du Pere François Garassus, de la Compagnie de
anticéticos da primeira metade do século xvn. Jesus, pour son livre contre les Atheistes & Libertins de nostre
Mas a resposta ao ceticismo que realmente deslanchou siecle. Além de ofender seu crítico, Ogier, Garasse tentou
o contra-ataque foi menos filosófica e mais bombástica sen- tornar mais forte seu ataque a Charron, "que sufoca e es-
do de autoria do padre François Garassc da Companhia de trangula docemente os sentimentos religiosos com a corda
Jesu~. Aparenteme~te chocado pela libertinage de Théophile de seda da filosofia"s. Nesta obra encontram-se dois capítu-
de 'Vtau, los que listam as "Ímpias e ateísticas proposições" e as
. e pelas cotsas escandalosas que ouvia em confissão, "Ímpias e brutais proposições" tiradas da Sagesse de
pratt~a.s corruptas a que as pessoas eram levadas, segundo
lhe dlZtam, pela leitura de La Sagesse de Charron Garasse Charron 6 • Finalmente, em r625, Garasse produziu seu
... ' magnum opus sobre este problema, La Somme Theologique
mrcrou uma cruzada contra o ateísmo e as tendências liberti-
nas de sua época... Em r623 publicou sua obra La Doctrine des veritez capita/es de la Religion Chrestienne. Na dedica-
curieuse des beaux esprits de ce temps, ou pretendus tels, na tória ao cardeal de Richelieu o autor explicou por que uma
qual nova Summa era necessária. "Este título que coloco na aber-
. por meio de uma série de acusações sensacionais , ele
a f rrmava ser capaz de ver por detrás da máscara de piedade tura de minha obra, tendo sido usado durante quatro ou cin-
d? pirronis~o católico de Charron, descobrindo aí uma per- co séculos, merece ser revivido, e uma vez que os tipos liber-
mcwsa e pengosa falta de religião. A "pretensa piedade" de tinos têm obscurecido nossa época com uma nova escuridão,
Charron é revdada como consistindo em um real desserviço devemos buscar novas luzes para iluminar a Verdade. "7 O
a seu país e a sua fé. O livro, de mais de mil páginas, ataca "terror dos ateus secretos" e dos "tipos incorrigíveis e deses-
Charron por sua impertinência e ignorância em matérias re- perados", dos quais Charron era o pior, exigia este novo
ligiosas, usando invectivas como sua principal arma3, trabalho teológico 8• De modo a realizar esta tremenda tarefa
. Um discípulo de Charron, o padre François Ogier, ime- adequadamente, Garasse atacou os pontos de vista de todo e
dratamente respondeu à altura em seu ]ugement et Censure qualquer ateu, todo tipo de "verdadeiros trogloditas e ratos
du Livre de la Doctrine curieuse de François C arasse criti- de aldeia"9, Praticamente todo tipo ·de ponto de vista que
cando o estilo de Garasse, seu temperamento, sua igno~ância não seja o de Garasse é considerado ateísmo, desde a visão
etc. !alvez a observação mais cortante nesta resposta seja a
segumte: "Garasse, meu amigo, aquilo que está acima de nós
•Fra
G nço1s· 0 g1c~,
· 1ugement et Censure .du livre de la Doctrine Curieuse
· de François
G arasse, Pans, 1623. A passagem Citada se encontra na pág. VII.
5
aras~e, Apo/ogie du Pere François Garassus, de la Compag1zie de Jesus, pour
' Sobre este assunto ver o capítulo IV. 5011 lwre contre /es Atheistes & Libertins de 110stre siiic/e, et repo11se aux ceusu-

'Sobre Garasse ver ~achCvre, Le proâ!s du po6te Théophile de Viau; Boase, Fortuues et ca/omnies de /'autur ano11yme, l'aris, 1624, pág. 135.
o( Moutmgne, _pags:~64-170; e Joseph Leder, "Un Adversaire dcs Libertins au caps, 21-22.
debut d~ XVIIemc S1ede - Le P.François Garasse (1585-1631)", Études, CCIX, La Somme Theologique des veritez capita/es de la Religio11 Chrestiemw,
1931, pags. 553-572.
'François ~arasse, La Doctrine CI<rieuse des beaux esprits de c e temps, ou preteudus
J·::~d~:~·,';A~·d::'~'~n,~is;semcnt", pág.7.
-;; , págs. l4·3!f·
tels, Pans, 1623. pág. 15-
dos calvinistas até a dos pirrônicos. Cinco tipos de ateísmo aprovação oficial, na qual se afirmava que esta obra estava
são relacionados: r) "o ateísmo furioso e enraivecido"; 2) "o de acordo com as doutrinas da Igreja Católica, e que era útil
ateísmo da libertinagem e da yorrupção dos costumes"; 3) publicá-la "para servir de antídoto contra as i~piedades dos
"o ateísmo da profanação"; 4) "o ateísmo hesitante ou in- ateus e libertinos"'s. Mas ficou claro imediatamente que
crédulo"; 5) "o ateísmo brutal, preguiçoso e melancólico"'o. Garasse tinha desafiado a entente cordiale entre a Igreja e os
Os pirrônicos, como Charron, são incluídos no quarto gru- nouveaux pyrrhoniens, acusando estes últimos de constituí-
po. "Ateísmo hesitante ou incrédulo é o espírito vagabundo rem uma "quinta coluna". Em conseqüência disto, um dos
dos pirrônicos, que afirma serem todas as coisas indiferen- mais dinâmicos teólogos da época correu a travar uma bata-
tes, e não se torna apaixonado nem contra nem a favor de lha contra Garasse e forçou a condenação de sua Somme
Deus, portanto adotando a fria política de deixar as coisas Theologique.
. indecididas. "''As pessoas deste tipo, monstros que surgiram Jean Duvergier du Hauranne (mais conhecido como
no século XVII'~, são indiferentes em relação à religião; não Saint-Cyran), o líder francês do movimento jansenistaj o chefe
são a favor de Deus nem do Demônio. Para eles a religião é espiritual de Port-Royal, e discípulo do cardeal de Bérulle,
uma questão de convenção e não uma questão séria. Garasse denunciou Garasse num imenso tratado, combateu os seus
não se preocupou em responder aos argumentos sobre a sus- pontos de vista até que a Sorbonne condenasse a sua obra e,
pensão de juízo em relação a todos os assuntos, mas apenas fmalmente, conseguiu o silêncio dd bombástico jesuíta. O
em fazer suas denúncias c a mostrar os horrores da indife- ataque a Garasse, como mostrou Orcibal, desempenhou um
rença religiosa' 3 • Com efeito, o próprio Garasse era um tan- papel vital no desenvolvimento do jansenismo na França e
to cético a respeito da teologia racional, negando a existên- foi talvez o lance inicial da cruzada jansenista' 6 • Do ponto de
cia de provas a priori sobre a existência de Deus e insistindo vista teológico, Saint-Cyran estava comprometido com um
que a melhor maneira de conhecer a Deus era pela fé' 4 • Mas tipo de anti-racionalismo não muito distaJ?.te do de Charron' 7
ele recusava-se a acreditar que esta era a visão adotada por e, portanto, estava disposto a aliar-se aos católicos pirrônicos.
Charron e pelos católicos pirrônicos. Ao contrário, ele inter- A publicação do monumental opus de Saint-Cyran em
pretava a teoria deles como sendo a da suspensão do juízo quatro volumes, La Somme des fautes et faussetez capitales
sobre todos os assuntos, incluindo os religiosos. contenus en la Somme Theologique du Pere François Garasse
A acusação por Garasse de que o catolicismo pirrônico, de la Compagnie de Jesus, provocou uma tremenda como-
especialmente o de Charron, fazia parte de uma conspira- ção. Cartazes foram espalhados por toda Paris anunciando a
ção, levantou uma torrente de controvérsias, e colocou o pro- obra. O livro, tal como o de Garasse, era dedicado ao carde-
blema do pirronismo e de sua refutação no centro da cena al de Richelieu. Nesta dedicatória e em toda a obra, violen-
intelectual. Garasse pouco tratou das questões filosóficas tas acusações foram feitas contra o jesuíta que ousara atacar
envolvidas nisso, limitando-se a rotular os pirrônicos de o "ateu secreto". Nela nos é dito que Garasse "desonra a
"ateus". Em r625 sua Somme Theologique tinha obtido a

'"Ibid., livro I, pág. 44· '' lbid., ~ Advcrtisscmcnt", pág. 56.


"Ibid., livro I, pág. 45· '" Cf. Lcclcr, "Un Advcrsaire des Libcrtins", pág. 569; e Jean Orcibal, Les Origines
" lbid., livro I, pág. 61. du]ansénisme, tomo 11, Paris e Louvain, 1947, cap. V.
"Ibid., livro I, págs. 6o-65. '' Cf. o excelente eswdo de Gouhicr, "La Crise de la TI1éologic au tcmps de Des-
'' Ibid., livro!, págs. 8I-III. cartes", págs. 29•3 2 c 3 s.
Majestade Divina"' 8; que "o autor desta Summa Theologica Garasse como sendo a obra mais ímpia e ateística jamais
destruiu a Fé e a Religião em todos os seus pontos princi- produzida. Mas as indicações acerca do pensamento de
pais"'9; que as acusações de Garasse são de tal ordem que Charron dadas por Garasse não correspondiam a esta visão.
"não sei se os tempos passados e os que estão por vir jamais Portanto, nos diz Saint-Cyran, ele adquiriu uma cópia da
verão, notadamente em um sacerdote, uma tamanha afron- obra acusada e chegou à conclusão, ao contrário do que di-
ta, malícia e ignorância, dominantes a este ponto" o, que a 2
zia Garasse, de que os pontos de vista do católico pirrônico
obra de Garasse é "enquanto livro, uma monstruosidade eram inteligentes e razoáveis, merecendo o elogio e a estima
impressionante" e que seu autor "é o mais horrendo autor
2
', que recebera dos melhores pensadores católicos da França,
que já se viu, levando-se em conta as inumeráveis falsidades incluindo o eminente cardeal du Perron~ 5 •
de que seu livro está cheio" 22 • Saint-Cyran considerou A posição antifilosófica dos jansenistas, sua oposição
inacreditável que uma ordem religiosa permitisse a publica- à teologia racional e seu apelo a uma leitura quase que exclu-
ção de tal obra2 3. Garasse, segundo ele, tinha defendido he- sivamente fideísta de Santo Agostinho levaram Saint-Cyran
resias, tinha feito citações errôneas e calúnias, tinha sido ímpio a encontrar muitas das teses básicas do jansenismo em
e impertinente, e tinha proferido bufonarias. Ao longo de Charron~6 • A insistência dos céticos na incompreensibilidade
seu ataque Saint-Cyran acusou ainda seu adversário jesuíta de Deus, na fraqueza da razão humana e no perigo de tentar
de pelagianismo, arianismo, luteranismo, calvinismo e paga- medir Deus pelos padrões humanos, foi endossada por Saint-
nismo24. Cyran como sólido cristianismo agostiniano. Sem tentar, ou
O que perturbou Saint-Cyran, além do grande número mesmo desejar, defender todos os pontos de vista de Charron,
de erros nas citações e interpretações das Escrituras, dos pa- Saint-Cyran procurou mostrar que a mensagem do catolicis-
dres da Igreja e dos teólogos, foi o ataque de Garasse ao mo pirrônico era na verdade a mesJ:!Ia que o jansenismo con-
pirronismo fideísta como uma forma de ateísmo. Mais adi- siderava como cristianismo ortodoxo - a miséria e a fra-
ante, no segundo volume, quando Saint-Cyran discute a po- queza do homem sem Deus. Agostinho é freqüentemente ci-
sição de Charron, ele afirma não ter lido nem conhecido a tado para justificar o quadro pintado por Charron das limi-
obra de Charron antes de vê-la atacada e vilipendiada por tações desesperançadas da busca humana do conhecimento
e da necessidade da Revelação para o conhecimento. Os
mesmos pontos de vista que Garasse considerou como ateís-
''Jean Duvergier du Hauranne (Saint-Cyran), La Somme des fautes et faussetez mo, Saint-Cyran insistia que constituíam posições cristãs só-
capitales cmrtenues en la Somme Theologique du Fere François Garasse de la
Compag11íe de Jesus, Paris, 1626, tomo l, Dedicatória ao cardeal de Richelieu,
lidas e tradicionais'7,
primeira c segunda páginas. Embora a página de título afirme ser esta uma obra
em quatro volumes, apenas apareceram os dois primeiros e um resumo do quar-
to. Sobre isto, ver Orcibal, Origilres du jausmisme, 11, pág. 263, no 3 e :z.So e
scguirnes, Sobre o aparecimento e recepção da obra, ver Orcibal, op .cit., 11,
págs. 278-280, c Lecler, "Un Adversairc dcs Libertins", pág. 569. 5
' Ibid., tomo 11, págs. 321-324.
•• Saim-Cyran, Sommes des {autes, tomo I, dedicatória, pág. 42. •• Cf.Orcibal, Origines du imrsbrisme, 11, págs. 275-277; c Gouhier, "Crise de la
'
0
Jbid., tomo H, dedicatória a Richelicu, págs. I o c n. Théologic", págs. 29-3 I e 5 r. A apresentação por Gouhier dos pontos de vista
" Ibid., tomo H, "Advis a 10us les sçavants et amateurs de la Verité, wuchant la de Janscn c de Saint-Cyran torna a defesa por este último de Chanon perfeita-
réfutatio,? d: la Somme Théologique du Pcrc François C arasse de la Compagnie mente inteligível. Como mostra Gouhier, os jansenistas originais defendiam uma
de Jesus , pag. 2. teologia simples c eficaz, livre de qualquer base filosófica. Consideravam a filo-
"lbid., tomo II, pág. 241. sofia como fonte de erros c heresias, e a 1eologia racional como o caminho para
'' Ibid., dedicatória, pág. 49· a incerteza total.
'' Ibid., tomo IV. '' Sahu-Cyran, Somme des fautes, 11, págs. JZ.I-469.
Como resultado desta defesa do catolicismo pirrônico cientemente fortes para suportar a luz brilhante da
por um dos mais importantes teólogos do período, a contra- verdade, se sacrificam vergonhosamente aos erros, e,
ofensiva de Garasse ao ceticismo chegou a um completo e ao limitar todo o conhecimento do homem ao campo
drástico fim. Saint-Cyran pressionou até que a Faculdade de dos sentidos e da aparência externa das coisas, nos
Teologia da Sorbonne finalmente condenasse Garasse e suas reduzem indignamente ao estado mais vil c à condi-
tiradp.s. O relatório da Sorbonne indica que devido às quei- ção mais baixa dos animais mais estúpidos, privando-
xas eles haviam estudado e examinado a Somme Theologique nos de todo discurso e razão genuínos' 9 •
durante vários meses até que, finalmente, em setembro de
r626, concluíram que esta obra de François Garasse O padre Jean Boucher, um franciscano importante, acusou
os pirrônicos de realizarem atividades perigosas e subversi-
Deveria ser inteiramente condenada, porque contém vas. O alentado tomo de Boucher, Les Triomphes de la
muitas proposições heréticas, errôneas, escandalosas Religion Chrestienne, de r628, apresenta uma estranha com-
e precipitadas, e muitas passagens das Sagradas Escri- binação de uma forma modificada de catolicismo pirrônico
turas e dos santos padres citadas erroneamente, cor- com uma enérgica denúncia dos pontos de vista de Montaigne
rompidas c desviadas de seu sentido verdadeiro, c e Charron. Estes últimos são acusados de impiedade e de
muitas bufonarias que são indignas de terem sido es- escrever livros perigosos e venenosos, cujos méritos literári-
critas e de serem lidas por cristãos e por teólogos'H. os escondem a serpente que espreita em seu interior. O efeito
dos escritos dos dois grandes nouveaux pyrrhoniens é com-
Embora a resposta ofensiva do padre Garasse ao pirronismo parado ao dos médicos "empíricos" que, segundo Boucher,
possa ter encontrado um fim apropriado, o tipo de contra- matavam quinhentas ou seiscentas pessoas para cada cinco
ataque feito por ele se refletirá em várias obras deste perío- ou seis que curavamJo, Mas, apesar dos perigosos e insidio-
do, nas quais nenhuma acusação é considerada forte demais sos efeitos dos escritos de Montaigne e Charron, o tipo de
para ser lançada contra os céticos. Mersenne, sem nomeá-los visão teológica apresentada por Bouchcr não é muito dife-
explicitamente, chamou-os de monstros, indignos de serem rente. Se a verdade religiosa fosse baseada na razão natural,
considerados homens. E as primeiras polêmicas de Mersenne, "nós não teríamos nada certo ou sólido, uma vez que vemos
datando de r623 a r625, estão cheias de denúncias e insul- os juízos naturais divergirem tanto uns dos outros, quanto
tos, tais como o seguinte: também a mesma faculdade de julgar ser variável e contrária
a si mesma"3', Não possuímos nenhuma ciência perfeita por-
Eles se denominam céticos, e são pessoas libertinas e que nosso conhecimento é baseado na razão e nos sentidos, e
indignas do nome de homem que levam já que, como estes últimos freqüentemente nos iludem, e a primeira é in-
as aves malignas da noite, por não ter os Olhos sufi-
'• M'erscnne, Verité des Sci<mces, epístola dedicatória, págs. 2 c 3· Ver também
Mersennc, Quaestiones celeberrimae in Geuesim, Paris, 1621, c L'lmpieté des
Deistes, Athees et Ubertius de ce temps, combattue et ren~erséc de point en
"Anon., Ceusure de la Sacrée Fawlté de Theo/ogie de Paris, coutre w11itJre intitulé Po_i'!t par raisrms tirécs de la Philosophic et de la Tl!eologie, Paris, 1624. A
La Somme Theologique des veritez capitales de la Religiou Chrestimnc, par R. '" cnttca de Mcrsenne ao ceticismo em geral será discutida no próximo capítulo.
P. François Garasse &c., l'aris, 16:1.6, págs. 3-14. A passagem citada está nas Jean Bouchcr, Lcs Triomphes de la Re/igion Chrestiemw, Paris, 1628, págs. uS-
132,
págs. u-13. Sobre o pano de fundo desta condenação ver Orcibal, Origines dtJ
]auséuismc, 11, págs. :1.63-267. "Ibid., págs. 99-roo.

'93
constante e vacilante 3 ~. De modo a obter um conhecimento ração de um fideísmo como o dos nouveaux pyrrhoniens
infalível, devemos consegui-lo pela Fé, através da Revelação. aparece também na posição de Guez de Balzac, um conheci-
A Verdade deve ser descoberta na Bíblia, e não pelo uso de do apologista dos jesuítas. Balzac em sua correspondência
nossas frágeis faculdades33. investe constantemente contra La Mothe Le Vayer, que con-
Um estudo da posição de Boucher pelo padre Julien- siderava um ateu, e contra Mlle. de Gournay, que é tratada
Eymard d'Angers procurou mostrar que esta aparente cópia como uma pessoa vaidosa e presunçosaJs. Mas esta antipatia
de algumas características do fideísmo de Montaigne era na pessoal pelos discípulos vivos de Montaigne não impediu
verdade a visão ortodoxa da Igreja Católica. De modo a apoi- Balzac, em seu Socrate Chrestien, de defender um tipo de
ar esta interpretação ele enfatiza que embora Boucher negas- cristianismo pirrônico.
se a possibilidade de "argumentos evidentes" em matéria re-
ligiosa, ele afirmava a existência de "argumentos prováveis e Esta verdade [que Sócrates buscava] não é outra se-
persuasivos". Assim, nenhuma evidência completamente certa não Jesus Cristo; e foi Jesus Cristo que criou as dúvi-.
poderia ser apresentada para estabelecer qualquer verdade das e a irrcsolução da academia; que chegou mesmo a
religiosa, mas ao mesmo tempo, excluindo-se a fé, seria tam- garantir o pirronismo. Ele veio para parar os pensa-
bém possível apresentar algum tipo de evidência moralmen- mentos vagos da mente humana c para firmar seus
te certa e persuasiva, que seria adequada para convecer-nos e raciocínios no ar. Após muitos séculos de agitação e
para apoiar, embora não para estabelecer, uma verdade reli- de confusões, ele veio para trazer a filosofia para a
giosa34. Esta forma modificada de fideísmo não é·assim tão Terra, e para fornecer âncoras e portos para um mar
diferente da de Charron, para quem a certeza das verdades sem fundo nem praias3 6•
religiosas depende somente da fé, mas que também apresen-
tava um bom número de "razões" supostamente persuasivas Assim, sem ] esus, tudo permanece em dúvida, e por meios
para convencer-nos destas verdades. O fideísmo, como uma naturais só podemos chegar ao ceticismo. A verdade depen-
epistemologia religiosa, parecia envolver uma pretensão de de apenas da fé.
que a garantia da verdade do conhecimento religioso deriva- Um outro que se juntou à denúncia da ameaça cética
se apenas da fé. Esta afirmação de nenhuma maneira nega que foi o futuro membro da Academia Francesa, Charles Cotin.
possa haver outras evidências que tornam este conhecimento Mas no seu caso a preocupação é apenas de tornar claros os
plausível ou provável, ou que possam levar-nos a crer nele. terríveis, apavorantes efeitos do pirronismo de Montaigne e
Mas as evidências nunca podem ser inteiramente adequadas Charron, não de desenvolver também qualquer tipo de
para estabelecer a verdade das proposições religiosas. fideísmo. Em seu Discours à Theopompe sur les Forts Esprits
Este tipo de anticeticismo violento aliado a uma acei- du temps, de 1629, Cotin descreve o terrível estado das coi-
sas em Paris, onde há monstros, Forts-Esprits, que se pare-
cem com homens, mas que negam que qualquer coisa seja
'' lbid., págs. 147-152. verdade e aceitam apenas aparências. Estas criaturas perver-
"lbid., pág. 152. -
" C f. julicn-Eymard d'Angers, "Lc 'Fideísmc' de j.Bouchcr, Cordclicr(r62S)", em
Étudcs Frmzciscaiues, L, págs. 579-593. Uma interpretação mais fidcísta de
Bouchcr_aparecc em Busson, La pe11sée religieuse, págs. 257-259 c uma visão lJ Cf. Bahac, "Lettres de jcan-Louis Guc2 de Bahac". .
men_o_s fldeísta em Dcdicu, "Survivanccs ct influences de l'Apologetiquc J• Babac Socrate Cbrestien, Discurso I, em Les Oezwres de Monsreur de Balzac,
tradmonelle dans lcs 'Pensées'", em Rev. d'Hist. litt. XXXVII, 1930, págs. 507- Paris, ~66s, tomo II, pág. :;-.13. Ver também Busson, La pensée religieuse, págs.
soS. Ver também Boasc, Fortunes of Montaigne, págs. 174-178. 266-269 ..

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sas, geradas pela leitura de Montaigne e Charron, querem Chanet, um médico protestante, publicou suas
nos reduzir a meros animais, e submeter nossas almas a nos- Considerations sur la Sagesse de Charron em 1643. No pre-
sos corpos. O resultado da visão destes Forts-Esprits é arai- fácio o autor indicava sua preocupação com a recepção que
va e o desespero. E o que é mais apavorante, há agora um seu livro teria, já que tantas pessoas admiravam os escritos
número quase infinito destes monstros37. de Charron. Mas Chanet considerava que não devia temer
Além das refutações do pirronismo por meio de ofen- pois estava apenas expondo as opiniões que todos aceita-
sas e a convocação às armas por Garasse, Mersenne, Boucher, vam, o ponto de vista da escolástica. Os únicos que discor-
Cotin e outros, começou a aparecer um grande número de darão, ele nos diz, são aqueles que tomam Charron por
respostas filosóficas ao nouveau Pyrrhonisme, por volta de Sócrates e a Apologie de Raymond Sebond pelas Escriturasl 8 •
1624, o ano da primeira publicação de Gassendi. Estas res- A primeira parte da obra de Chanet é dedicada a refu-
postas podem ser classificadas, em linhas gerais, em três ca- tar certas afirmações céticas peculiares de Montaigne e
tegorias, embora algumas das obras a serem consideradas se Charron dizendo respeito à semelhança entre os homens e os
enquadrem em mais de uma categoria: r) refutações basea- animais. Estes autores tinham argumentado que se tratava
das nos princípios da filosofia aristotélica; 2) refutações que de uma vaidade do homem considerar-se como tendo um
admitem completamente a força e a validade dos argumen- lugar especial ou privilegiado no esquema de todas as coisas,
tos pirrônicos e depois procuram mitigar os efeitos do ceti- ou considerar-se como tendo faculdades e habilidades não
cismo total; e 3) refutações que tentam construir um novo compartilhadas com os animais. Eles também tinham argu-
sistema filosófico de modo a enfrentar o desafio cético. mentado que não havia razão para supor que os cinco senti-
A resposta de tipo aristotélico a alguns dos argumen- dos humanos constituíam a totalidade dos meios de que dis-
tos céticos já tinha sido oferecida, como indicamos anterior- punham as criaturas do mundo natural para obter conheci-
mente, por Pierre Le Loyer em sua defesa da espiritologia. mento sobre o mundo. Chanet procurou mostrar que as evi-
Também foi usada por alguns dos adversários protestantes dências apresentadas para justificar estas afirmações (em gran-
de François Veron como Jean Daillé e Paul Ferry. Ao tentar de parte material de anedotário baseado em Plutarco, Sexto
mostrar a confiabilidade de alguns dados sensoriais, ou a e outros), poderiam ser entendidas de uma forma que não
justificação dos procedimentos racionais, estes pensadores acarretava as "Conclusões drásticas de Montaigne c Charron39.
tinham apelado à teoria aristotélica do funcionamento natu- Na segunda parte de sua obra, Chanet enfrentou o
ral dos sentidos e da razão e da necessidade de condições núcleo filosófico do nouveau pyrrhonisme, os argumentos
adequadas para o emprego de nossas faculdades. Na luta apresentados para levar o ceticismo acerca dos sentidos e
contra os nouveaux Pyrrhoniens do segundo quarto de sécu- acerca da razão. Apesar dos tropos céticos sobre as variações
lo do século XVII apareceram formas mais elaboradas e com-
pletas deste tipo de rejeição aristotélica do ceticismo. Um
dos exemplos mais claros deste tipo de abordagem é a res- '' Pierre Chanet, Cousideratious sur la Sagesse de Charrou, Paris, 1643, prefácio,
posta de Pierre Chanet a Charron. págs. 2 e 3· Busson, La l'e>1Sée Religieuse, págs. I94-195, diz que "Chanet pare-
cia não e~nhecer Montaigne" c não conhecia a Apologie, o que é patentemente
falso. A referência a Montaigne foi retirada na 2a. edição da obra de Chanet. C f.
Boase, Fortunes of Montaigne, pág. 186, nv 4•
17
Charles Cotin, Discours à Theopompe sules Forts Esprits du temps (sem local de "Chanet, Considerations, págs. 1-250. As várias discussões no século XVII sobre
publicação, 1629), págs. 4-28. Mcrsenne afirmava que havia 6o mil ateus em os méritos dos animais são tratadas em George Boas, The Happy Beast in French
Paris em 1623. Thought of the Sevmteenth Century, Baltimore, 1933·

'97
etc., em nossa experiência sensível há uma base, insistia normais e saudáveis e com os meios, distância e objetos ade-
Chanet, para se afirmar a "Certeza dos Sentidos". Algumas quados, podem ser verídicas. A simples reafirmação do crité-
vezes os sentidos nos enganam, mas há condições, tais como rio, que, se verdadeiro, nos permitiria classificar as percep-
as indicadas por Aristóteles no De Anima, que uma vez satis- ções verdadeiras e as enganosas, envolve um círculo vicioso,
feitas tornam nossos sentidos incapazes de erro ou engano. a menos que possamos mostrar também que o critério
Se o órgão sensorial está funcionando adequadamente, se o aristotélico do conhecimento sensível é justificado.
objeto está a uma distância adequada, e se o meio através do Em seguida Chanet voltou-se para as dificuldades céti-
qual a percepção se dá é apropriado, então nenhum erro pode cas levantadas em relação à razão. Aqui, como em sua dis-
ocorrer. Contrariamente a Charron que afirmava que mes- cussão do conhecimento sensível, ele continua a manter que
mo nas melhores condições os sentidos podem nos enganar, embora às vezes possamos nos enganar, há juízos que são tão
Chanet insistia que erros, ilusões e enganos só acontecem se evidentes que "uma pessoa teria que estar louca para duvi-
algo de anormal ocorre em relação ao órgão, ao meio, à lo- dar de sua certeza"~'. Existe um padrão do raciocínio corre-
calização ou à natureza do objeto. Com estes parâmetros to, a saber, as regras da lógica aristotélica, e este padrão nos
aristotélicos ele passa então a analisar todos os exemplos permite distinguir o que é evidente do que é apenas provável.
tradicionais de ilusões sensoriais apresentados pelos céticos. Por meio deste padrão somos capazes de reconhecer as pre-
O problema do remo que parece quebrado dentro d'água é missas verdadeiras e de empregá-las para descobrir novas
explicado pelo fato de que o meio "não é como deveria ser". verdades. As premissas verdadeiras são aquelas ou que já
A torre quadrada que parece redonda à distância é explicada foram demonstradas com base em verdades evidentes, ou que
pela afirmação de que os órgãos sensoriais, os olhos, não são tão evidentes que isto as torna indubitáveis. Assim, com
percebem bem as formas retangulares. As imagens duplas base nos cânones da lógica e no caráter auto-evidente de ver-
que percebemos quando pressionamos nosso globo ocular dades como "O todo é maior que as suas partes" somos ca-
são devidas ao fato de que nosso órgão sensorial não se en- pazes de construir um conhecimento científico racional~~.
contra em um estado saudável ou natural. Problemas de pers- Mais uma vez Chanet evitou os problemas céticos, assumin-
pectiva são explicados como conseqüência de se perceber do que as teorias aristotélicas não estavam sob suspeita, e
objetos a uma distância inadequada, e assim por diante~ 0 • aplicando-as às dificuldades apresentadas.
Em tudo isso, Chanet não percebeu que estes exemplos fo- Na Theologie Naturelle do padre Yves de Paris encon-
ram introduzidos por Charron como desafios ao conheci- tramos o uso de um tipo de resposta aristotélica ao pirronismo
mento sensível e não como ilustrações de seu modo de ope- rapidamente introduzida den'tre outras críticas aos libertins,
rar. A questão levantada pelos céticos referia-se à existência a quem ele retratava como tendo suspendido o juízo sobre
de algum meio para se decidir quanto à experiência sensível todas as questões, religiosas e naturais. Em primeiro lugar, é
quando esta era verídica ou não. Chanet mantinha que sim, levantado o problema da auto-referência. Quando os céticos
empregando o critério aristotélico do conhecimento sensí- afirmam que nada é verdadeiro, que deve-se duvidar de tudo,
vel. Mas os céticos estavam questionando este critério, e se eles são forçados a se contradizer uma vez que consideram
perguntando sobre como podemos ter certeza que mesmo est~s afirmações como verdadeiras. Mas então, diz Yves de
experiências que tenham ocorrido com órgãos seô.soriais
•• Ibid., pág. 29 1.
'' Chanct, Considerations, págs. 257-272. "lbid., págs. 288-304.

'99
Paris, há uma maneira melhor de fazer os cet1cos verem o de quem as formula, e outras cuja verdade é evidente e mani-
erro de sua posição, mostrando a eles o conhecimento natu- festa, desde que nossas faculdades racionais e sensíveis sejam
ral que não podem rejeitar, nossos dados sensoriais. Quando usadas adequadamente e em condições apropriadas. Nestes
termos, ele dá uma resposta aos argumentos básicos dos cé-

..
nossos sentidos estão funcionando em estado normal, sob
circunstâncias normais, e nossas faculdades racionais são ticos e elabora uma detalhada teoria da verdade 45 •
, -fi' empregadas adequadamente, então não há razão para dúvi- Uma forma modificada de uso das teorias aristotélicas
das, e podemos conhecer a verdade. Portanto, ao invés de em resposta ao ceticismo aparece em alguns outros pensado-
permanecer com "as tormentas e ansiedades desesperançadas res deste período. Como veremos em discussões posteriores,
destas miseráveis almas", os libertins céticos deveriam reco- alguns elementos da teoria aristotélica do conhecimento fo-
nhecer que o conhecimento é possível por meio de um uso ram usados para rejeitar algumas afirmações dos pirrônicos,
adequado de nossas faculdades, e não há necessidade de dú- mesmo por pensadores cuja posição em um sentido mais ge-
vidas em relação ao conhecimento natural ou revelado. Te- nérico não pertencia à tradição aristotélica, como, por exem-
mos o~ meios para descobrir as verdades científicas, e Deus plo, o padre Mersenne e Herbert de Cherbury. No vasto ~ro­
nos da a conhecer a verdadeira religião. Assim, nestas cir- jeto eclético de Charles Sorel, La Science Universelle, mmtos
cunstâncias, o ceticismo só pode ser uma estupidez ou uma ingredientes da teoria aristotélica foram introduzidos como
perversão43, parte de sua rejeição ao ceticismo, juntamente com vários
Uma rejeição mais elaborada do pirronismo, ainda que outros tipos de resposta, algumas tomadas aparentemente
de certa forma no mesmo espírito, apareceu em r644 no de fontes contemporâneas suas, como os escritos de Mersenne.
Apologeticus fidei de Jean Bagot da Sociedade de Jesus. As Sorel foi um escritor e historiador bastante conhecido
partes iniciais desta obra tratam diretamente das teorias neste período, e um amigo do libertin érudit Guy Patin. A
pirrônicas e acadêmicas em suas formulações clássicas, tal primeira parte da grandiosa obra filosófica de Sorel, La
como apresentadas em Sexto, Cícero, Diógenes Laércio e Science des choses corporelles, de 1634, começa no estilo de
Santo Agostinho. Só mais tarde são considerados os pontos muitas das obras dos novos pensadores do século xvn, la-
de vista dos céticos modernos, especialmente Charron. Bagot mentando o baixo nível do conhecimento humano, a inutili-
viu as afirmações céticas como ameaçando a fé, e, como ob- dade e estupidez do que é ensinado nas escolas, e oferecendo
servou em uma anotação marginal, "Hoje em dia há muitos uma nova panacéia, a ciência universal, "Na qual a verdade
pirrônicos" 44 . Após esboçar os argumentos dos céticos gre- sobre todas as coisas do Mundo é conhecida pela força da
g~s, Bagot apresenta sua resposta, afirmando que há deter- Razão, e se encontra a refutação dos Erros da Filosofia co-
mmadas verdades que são baseadas na autoridade infalível mum"46, Esta nova ciência, segundo nos é dito, será total-
mente razoável e certa, e levará ao progresso da humanida-
de. Depois de toda esta fanfarra, Sorel discute dois tipos de
"Yves de P_aris? La ~h:ologie Nature/1~, 3• ed., l'aris, 1641, tomo IV, págs. 393- crítica à possibilidade de uma verdadeira ciência da nature-
4~3· A pnm~1r~ ed1çao do tomo IV fm de 1636. Ao considerar aqui Yvcs de Paris
nao P_r~tendl d1z~~ que sua ~l?sofia_fossc Hist?télica, mas apenas que este tipo
za. A primeira, que parece ser um tipo de platonismo, nega
c~pcc1~JCO de crmca ao ceuc1smo t.lustra o upo de refutação aristotélica do
p1rromsmo. Outras razões para a rejeição do ceticismo são apresentadas ein ou-
tras partes de suas obras. Para um retrato detalhado da filosofia de Yves de Paris « lbid., prefácio, livro I, págs.1·l9 sobre o ceticismo, págs. 20-102 para a teoria
ver Charles Chesneau Qulien-Eymard d'Angers), Le Pi:re YtJes de Paris et sou de Bagot, e o livro H, págs. 17-18 trata de Charron. . . .
temps {1590-I678), .t vols., Pans, 1946. · •• Charles Sorel, La Sâence des c/JOses corporelles, prenuere part1e de la Sne11ce
44 Jean Bagot, Apo/ogeticus fidei, Paris, 1644, livro J, pág. 6. humaine, Paris, 1634, página de título c prefácio.
que seja possível qualquer tipo de conhecimento real das coi- Sorel apresenta uma resposta de tipo aristotélico às
1
sas deste mundo, e insiste que a verdade só pode ser encon- dúvidas introduzidas pelos pirrônicos acerca da confiabilidade
trada no Mundo Celestial. A outra, uma forma de ceticismo, de nosso conhecimento sensível. Os dados que nos são for-
mantendo que não podemos realmente conhecer nada. Em necidos pelos nossos sentidos externos devem ser pesados e
vista dos pontos de partida estabelecidos para a ciência uni- julgados pelo nosso "senso comum" de modo a evitar o en-
versal, algumas modificações um tanto extremas são formu- gano. Temos uma variação da experiência devida à disposi-
ladas em relação a estas críticas. O homem, nos diz Sorel, ção de nossos órgãos sensoriais, do temperamento do obser-
pode conhecer em relação a todas as coisas o suficiente para vador, da localização do objeto, e do meio através do qual a
a sua felicidade. Suas faculdades naturais dos sentidos e da percepção ocorre. Mas no~sos sen~idos são capaz~s de perce-
razão são capazes de receber informações e de formular juízos ber as qualidades dos obJetos tats como elas sao, e nosso
com base nelas. Mas, mesmo assim, pode haver segredos da sentido interno, o "senso comum", tem a capacidade de jul-
natureza que não são, nem podem ser, explicados. Pode ser gar quando os sentidos fornecem dados corretos, e de corri-
difícil conhecer a essência das coisas incorpóreas, pode ser gi-los quando isto não se dá. Em todo o seu exame detalhado
impossível conhecer a Deus. Entretanto, isto não destrói nossa dos exemplos apresentados pelos céticos sobre a diferença
possibilidade de conhecimento, mas, ao contrário, nos per- entre a percepção humana e a animal {que ele parecia dispos-
mite perceber a falsidade de certas teorias que nos são ofere- to a aceitar tal como apresentada), e sobre as variações na
cidas, bem como nos possibilita ver os limites do conheci- percepção humana, Sorel nunca chegou a per~eber que o q~e
mento humano. Podemos pelo menos conhecer o que não os pirrônicos estavam questionando era prectsamente se dts-
podemos conhecer, e portanto ter uma ciência de nossa igno- pomos de alguma maneira de decidir se e quando nossos sen-
rância47, Sarei estava disposto a aceitar um pouco menos que tidos são precisos. Ao contrário, ele pressupôs que podemos
o conhecimento completo de todas as coisas, de modo a jus- reconhecer e de fato reconhecemos algumas percepções verí-
tificar a certeza daquilo que podemos conhecer. dicas e podemos julgar as outras desta maneira. Assim, pro-
Em partes posteriores de sua apresentação épica da ci- blemas de perspectiva e distância não atrapalham, uma vez
ência universal, Sarei enfrenta o desafio cético, que segundo que temos estas percepções confiáveis, e ao usá-las aprende-
ele deve ser vencido para podermos fazer um bom uso de mos a julgar e a corrigir as percepções especiais pela experi-
nossas faculdades e capacidades~ 8 • As escolas e a lógica dos ência. Circunstâncias pouco usuais podem ocorrer, e neste
textos não davam uma resposta satisfatória, mas Sarei consi- caso é melhor não fazermos nenhum juízo, mas, de modo
derava que ele e Mersenne tinham encontrado uma boa res- geral, podemos usar estas percepções para avaliar quase que
posta49. A partir do estudo dos clássicos do pirronismo como todo o tipo de circunstância, e, empregando nosso "senso
Sexto, e da observação de que "há algumas vezes libertinos comum", podemos determinar como as coisas realmente são
que revivem estes clássicos para o grande prejuízo da religião com base em sua aparência. Podemos então desprezar todas·
e da sociedade humana"so, Sorel se dedicou ao trabalho de as advertências dos céticos sobre as experiências e pontos de
viciar os argumentos do ceticismo, antigo e moderno. vista dos loucos e delirantes, já que sabemos que estas pesso-
"lbid., p~gs. 15-27.
'' Sorel, la Bibliotheque françois de M. C. Sord, Paris, 1664, pág. 392.
.oJbid., págs. 3.~-35, e o quarto volume de La Scimce Universelle de Sorel, intitulado pirrônicos ou céticos. A passagem citada se encontra na pág.3o, onde Sorcl diz
La Per(ectio11 de /'Ame, Paris, 1664, parte li, pág. 30. também que estes libertius são muito poucos c têm medo de admitir seus pontos
<o Sorel, ta Perfection de /'Ame, págs. 2I-30, apresenta um resumo da visão dos de vista em público.
as têm órgãos sensona1s deturpados e, portanto, vêem as então acordar e sentir fome, saberá que estava sonhando.
coisas diferentemente de como sãor. Podemos ter contato com algo além das aparências das coi-
A única justificativa apresentada por Sorel para sua sas? Mesmo que apenas percebamos a superfície ou aparên-
constante pressuposição de que pessoas normais, com órgãos cia dos objetos, podemos julgar a natureza interior do obje-
sensoriais normais c em circunstâncias adequadas têm sensa- to, da simples forma como fazemos nos casos comuns quan-
ções confiáveis e precisas, ou uma habilidade normal ou na- do julgamos o que se encontra dentro a partir do que vemos
tural para pesar e julgar a confiabilidade de suas experiênci- por fora, ou quando julgamos o que um objeto inteiro é pela
as, é apenas que seria estranho que aqueles que se encontram percepção de suas partes. Os efeitos fornecem uma base ade-
em condições perfeitas não conheçam a verdade e apenas quada para se determinarem as causas9 •
pessoas anormais a conheçam. Mas os céticos argumentavam Os céticos que tentaram gerar um regresso ao infinito
que não temos maneira de decidir se as condições que consi- de dificuldades na passagem do efeito para a causa, envolven-
deramos como ideais para observar o mundo são de fato as do mais e mais causas, criaram um falso problema. Eles man-
mais adequadas para se perceber as coisas como realmente tinham que só podemos conhecer um objeto se soubermos de
são. Poderia parecer estranho que só algumas pessoas forma completa por que ele é o que é, quais são as causas de
idiossincráticas vissem as coisas como realmente são, mas todas as suas propriedades. Sorel descartou este problema,
também é estranho que apenas pessoas com a visão normal primeiro admitindo que algumas coisas podem ser incognos-
sejam capazes disso. Sorcl, ao apresentar como solução das cíveis, e outras cognoscíveis apenas em parte, mas ainda as-
dificuldades céticas uma descrição de nossos procedimentos sim podemos ter conhecimento seguro sobre muitas outras
normais para julgar os dados sensoriais, não tratou do proble- coisas. O conhecimento seguro é tudo o que precisamos e pode
ma de como podemos decidir se nossa maneira normal e na- ser obtido a partir de informações pertinentes disponíveis a
tural de distinguir as percepções confiáveis das não-confiáveis nós e do uso de nossas faculdades naturais 53 •
está de fato de acordo com as reais características dos objetos. Dispomos de informações sufi~ientes e de faculdades
O mesmo tipo de resposta, apenas mais embelezada e adequadas para desenvolver as ciências. Os pirrônicos ne-
elaborada foi apresentado por Sorel para todos os outros gam que conheçamos com certeza quaisquer primeiros prin-
argumentos céticos. Podemos decidir se toda a nossa experi- cípios que possamos usar como premissas de nosso conheci-
ência não é apenas um sonho? Este problema, que o famoso mento científico. Eles suspendem o juízo acerca das verdades
contemporâneo de Sarei, Descartes, iria valorizar bastante, é as mais óbvias, de que o todo é maior do que suas partes, de
resolvido com facilidade. A pessoa normal, quando acorda- que algo, inclusive eles próprios, existe, de que o Sol brilha
da, pode saber a diferença entre estar dormindo c estar acor- etc., porque consideram que tudo isto é incerto. "Finalmente
dada. Se algn_ém sonhar que comeu uma lauta refeição, e se vê aqui quão perniciosa é a indiferença deles, e que ten-
dem a subverter toda a ciência, a política e a religião" 54 • Mas
nós possuímos primeiros princípios que são indiscutíveis, co-
'
1
Sorcl, La Science Universelle de Sore/, oú i/ est traité de /'usage & de la perfection nhecidos seja pela experiência comum de toda a humanida-
de toutes les choses du monde, tomo III, Paris, r647, págs. 2.57-2.69. Ou Pleix,
que foi o predecessor de Sorel como Historiographe du Roy, apresenta a mesma
explicação das ilusões sensoriais, mas não se refere aos pirrônicos em relação a
isto. Cf. Scipion Ou Pleix, Cours de Philosophie, revue, il/ustré & augmenté, Science Universcile, tomo lll, pág~. 270-272.
Paris, 1632, na parte intitulada "La Physique ou Science des Choses NatureUes", págs, 272-274.
livro 8, caps. 14-19. pág. 277.
de, seja pela "luz da Razão". Através do emprego de nossa tos, mas neste caso ela própria é sem base; e se, de
razão natural podemos chegar a um conhecimento científico modo a defendê-la, eles afirmam que ela tem funda-
confiável com base nestes primeiros princípios. Os céticos, mentos, então ela será mais uma vez derrubada, uma
de modo a questionar nosso conhecimento científico, têm vez que não deveria ter fundamentos de acordo com
que discutir a confiabilidade de nossos órgãos sensoriais nor- suas próprias máximasH.
mais e naturais, de nosso "senso comum" normal e de nossa
razão ou entendimento natural. Mas podemos ver que nosM Portanto, ao tomar a posição dos céticos como uma afirma-
sas faCuldades têm a perfeição que se exige para as suas funM ção definida, Sorel indica seu caráter auto-referente e o dile-
ções, e portanto não há razão para nos preocuparmos com ma aí envolvido. O problema de como formular a posição
as objeções dos céticos acerca da possibilidade de obtermos pirrônica sem autocontradição é um dos problemas persis-
o conhecimento científico. Pode haver dificuldades, pode ha- tentes admitidos pelos céticos, e uma das respostas continu~
ver coisas que jamais conheceremos, mas se tomarmos gr<tn- amente oferecidas por seus adversários.
des precauções, poderemos conhecer aquilo de que precisa- Ao empregar elementos da teoria aristotélica do co-
mos suficientemente bem, e com completa segurança, de tal nhecimento, insistindo na adequação do conhecimento que
modo que podemos estabelecer as artes e a ciência em uma obtemos por este meio para nossos propósitos, ao conceder
base firme. Nosso "senso comum" e os primeiros princípios, algumas possíveis limitações em nosso entendimento total e
manifestos c indubitáveis, são a porta para o conhecimento completo das coisas, e ao mostrar a autocontradição da
da verdade sobre os objetosH, asserção do ceticismo total, Sarei considerou ter destruído a
Após este apelo às condições e faculdades normais e ameaça pirrônica.
naturais que nos permitem obter o conhecimento verdadei- Uma variação interessante do uso das teorias de
ro, Sorel apresentou mais uma resposta aos pirrônicos, o pro- Aristóteles para rejeitar o ceticismo aparece em alguns comen-
blema tradicional da natureza au~ocontraditória da posição tários de Sir Francis Bacon (que foi ele próprio acusado de ser
cética56 • Os céticos, afirmava Sarei, não podem ser tão igno- um imitador dos pirrônicos por Merscnne devido a sua insis-
rantes quanto pretendem, uma vez que procuram justificati- tência em algumas das dificuldades céticas em se encontrar o
vas para as suas posições, e parecem preferir as que ofere- verdadeiro conhecimento js8 • Em seu O f the Advancement and
cem, às dos dogmáticos. Eles têm certeza de que nada é certo Proficiencie of Learning Bacon criticou os céticos por repre-
(uma afirmação que Sexto, Montaigne, La Mothe Le Vayer e sentarem erroneamente os problemas envolvidos na obtenção
outros tiveram o cuidado de evitar); e, portanto, encontram do conhecimento através dos sentidos. Eles haviam insistido
uma determinada verdade e não podem assim estar total- (segundo ele) nos erros e enganos dos sentidos de modo a
mente em dúvida. "arrancar as ciências pela raiz". O que eles não tinham con-
~eguido perceber era que a verdadeira causa dos erros eram os
Devemos nos vangloriar aqui de termos derrubado seus ldolos, e que a solução adequada para as dificuldades era o uso
fundamentos, a doutrina deles consistia em provar que de instrumentos, "assim, se ajudados por nossa indústria, os
não há nenhum ponto de vista que tenha fundamcn- sentidos podem ser suficientes para a ciência" 59 • Em outras

"Ibid., págs. 275-281. '" Sorel, Science Uuiverselle, tomo IH, pág. 281.
•• l'odc ser este o acaquca que La Mothc Le Vayer respondeu no início da segunda 1' Mersenne discutiu Bacon em La Verité des Scieuces, livro I, cap. XVI.
parte da Prose Chagrme, em Oeuvres, tomo IX, págs. 354-356. "Francis Bacon, O{ the Advancement and Pro(iciencie o(Leaming; or the Partitiom

zo6
palavras, um conjunto de condições pode ser dado, para a Aqueles que recorriam a este tipo de resposta aos
correção dos sentidos não ajudados, as quais, acrescentadas a pirrônicos recusavam-se a reconhecer que os céticos questio-
algumas reformas internas, especificarão quando são verídicas' navam até mesmo a confiabilidade de nossas faculdades na-
as nossas percepções assim adaptadas. Mas nossos sentidos turais, sob as melhores condições, e negavam os critérios que
naturais e normais não são suficientes para nos dar conheciw Aristóteles havia estabelecido para decidir quando nossas
menta confiável, a menos que possamos empregar certos insw faculdades estavam funcionando adequadamente. Pode até
trumentos e ajudas. Portanto, devemos adotar um ceticismo ser que o sistema aristotélico seja construído de forma enge-
Parcial ou temporário até que o auxílio e os procedimentos do nhosa, evitando assim os argumentos céticos tradicionais,
Novum Organum sejam empregados com sucesso. ou por meio da especificação de uma maneira de resolver os
Problemas através de um padrão que não seja questionado,
Tampouco precisa se sentir alarmada com esta sus- ou simplesmente considerando tolos estes argumentos. Por-
pensão de juízo uma pessoa que mantenha não que tanto, de acordo com os aristotélicos, uma pessoa ·que real-
nada pode ser conhecido, mas apenas que não pode mente tenha dúvidas sobre os primeiros princípios e os crité-
ser conhecido senão de determinadas maneiras; c en- rios não está preparada para filosofar. Mas, o nouveau
tretanto estabelece certos graus de certeza para o seu Pyrrhonisme estava questionando precisamente o sistema dos
uso e alívio até que a mente chegue a um conhecimen- aristotélicos, que não podia ser justiftcado nem defendido
to das causas em que possa descansar. Pois mesmo meramente pelo emprego do próprio sistema.
aquelas escolas de filosofia que mantinham a absolu- As críticas ofensivas ao ceticismo simplesmente deixa-
ta impossibilidade do conhecimento de qualquer coi- ram de considerar os problemas levantados, e os aristotélicos
sa não eram inferiores àquelas que se pronunciavam levaram em conta estes problemas, porém de uma maneira
ao contrário. Mas elas não forneciam auxílios aos sen- circular. Os primeiros tentaram destruir a força do pirronismo
tidos c ao entendimcntq, como cu o fiz, mas simples- por meio de denúncias. Os segundos tentaram resolver os
mente lhes retiravam toda a autoridade, o que é algo problemas, lidando com eles como se fossem questões a se-
bastante distinto, quase o oposto60 , rem tratadas dentro de seus próprios sistemas, dificuldades a
serem resolvidas pelos critérios que eles próprios adotavam.
Os diferentes tipos de respostas aristotélicas à crise cética têm Não perceberam que para dissipar a crise cética eles teriam
em comum a visão, apesar de algumas variações, de que há primeiro que estabelecer a base para seu sistema filosófico,
condições adequadas tanto para a percepção quanto para a antes de poder mostrar que o que era verdadeiro, segundo a
razão, e que temos faculdades que, quando operando adequa- teoria de Aristóteles, era de fato verdadeiro. Nos próximos
damente nestas condições, são capazes de nos dar conhecimen- capítulos examinaremos algumas tentativas de tratar a crise
to. Portanto, não há necessidade nem de um ceticismo referen- cética através de uma avaliação mais séria dos problemas
te aos sentidos, nem de um referente à razãO. O tipo de evidên- básicos levantados.
cia introduzida pelos céticos é falsa, ou então é relativa ape-
nas a condições anormais ou a faculdades deturpadas,

o(Sciellce, Londres, l674, livro V, cap. li, págs. 144-145·


~ Bacon, b1stauratio Magna, tradução para o inglês em Thc \Vorks of Franâs Bacon, editado por Spcdding, Ellis c Hcath, vol. III, Boston, 1863, pág. 52.
VII. Ceticismo Construtivo ou Mitigado
Uma outra forma de enfrentar a crise cética se encon-
tra na formulação de uma teoria que pudesse aceitar a força
total do ataque cético à possibilidade do conhecimento hu-
mano, no sentido de verdades necessárias sobre a natureza
da realidade, e no entanto admitir a possibilidade de conhe-
cimento em um grau inferior, como verdades convincentes
ou prováveis acerca das aparências. Este tipo de visão, que se
tornou o que muitos filósofos hoje em dia consideram a con-
cepção científica, foi apresentada pela primeira vez no sécu-
lo XVII no grandioso ataque de Mersenne ao pirronismo,-La
Verité des Sciences, contre les Septiques ou Pyrrhoniens, e
mais tarde, de uma forma m.ais sistemática, pelo bom amigo
de Mersenne, Gassendi. Em algUns outros autores, tais como
o teólogo inglês Chillíngworth, e o franciscano francês Du
Bosc, encontramos a busca e a defesa, ao menos parcial, des-
te tipo de ceticismo mitigado. Esta tentativa de encontrar
uma via media entre a tendência totalmente destrutiva do
Nouveau Pyrrhonisme e um dogmatismo questionável, aca-
I ,
I:. bou por tornar-se uma parte crucial da filosofia moderna,
!' nos movimentos do pragmatismo e do positivismo. Mas,
mesmo as formulações mais teóricas deste ceticismo mitiga-
do ou construtivo tendo ocorrido provavelmente já no início
do século XVII, um novo dogmatismo teria ainda que ser
desenvolvido e destruído antes que esta nova solução para a
crise pyrrhonienne pudesse ser aceita. Só após a apresenta-
ção deste ponto de vista por David Hume, e sua assimilação
por Mill e Comte, é que ele pode tornar-se filosoficamente
! ' '
respeitável.
Marin Mersenne, xs88-r648, apesar de uma das figu-
ras mais importantes na história do pensamento moderno,
. permaneceu até bem pouco tempo esquecido e mal interpre-
Ele é lembrado principalmente devido a sua amizade e

o. tra.halho monumental do finado abade Robert Lenob\e trouxe à luz, pela


ptimetra vez, as tremendas realizações e a importância de Mcrsenne. Ver especi·
almente, Lenoble, Mersemw ou la 11aissa11ce du mécmúsme, Paris, 1943·

'"
tudo isso, Mersenne provavelmente contribuiu mais do que
correspondência com Descartes, e tem sido classificado usu-
qualquer um dos seus contemporâneos para o desenvolvimen-
almente como um pensador religioso preconceituoso, tendo
to do conhecimento e do interesse nas imensas realizações
sido salvo por suas amizades e não por suas idéias. Entretan-
científicas da sua época.
to, este quadro dificilmente corresponde ao papel vital de
A parte da contribuição de Mersenne que examinare-
Mersenne na revolução científica do século XVII.
mos aqui consiste no novo entendimento que ele desenvol-
Ele foi um dos primeiros alunos a freqüentar o colégio
veu acerca do significado do conhecimento científico, e a
dos jesuítas em La Fleche, o qual Descartes também freqüen-
importância disto à luz da crise cética da época. A última das
tou um pouco mais tarde. Depois disso, Mersenne entrou para
grandes polêmicas de Mersenne, La Verité des Sciences contre
a ordem dos Mínimos e tornou-se um modelo de piedade cris-
les Septiques ou Pyrrhoniens (1625), faz uma tentativa de
tã e sabedoria. Sua carreira literária teve início na terceira
dar um novo tipo de resposta aos argumentos pirrônicos.
década do século XVII, com a publicação de uma vasta obra
Mersenne pretendia estabelecer que mesmo que as afirma-
polemizando contra todos os inimigos concebíveis da ciência
ções dos céticos não pudessem ser respondidas, ainda assim
e da religião - os ateus, os deístas, os alquimistas, os natura-
seria possível termos um tipo de conhecimento não sujeito a
listas do Renascimento, os cabalistas e os pirrônicos~. Após
questionamento, o que é tudo de que necessitamos para nos-
este começo, Mersenne dedicou o resto de sua vida à tarefa
sos propósitos nesta vida. Este tipo de conhecimento não é o
mais construtiva de fazer a propaganda da "nova ciência",
que os filósofos dogmáticos anteriores haviam procurado, o
demonstrando seu amor a Deus através deste monumental
conhecimento da real natureza das coisas. Na verdade, con-
serviço à revolução científica. Ele era um homem com um
sistia em dados sobre as aparências, hipóteses e previsões
interesse voraz por questões científicas e pseudocientíficas
sobre as conexões entre eventos e o curso da experiência fu-
indo desde problemas complexos em física e matemática'
tura. Para Mersenne o conhecimento científico e a matemá-
filologia hebraica e teoria musical, até problemas como "Quai
tica não nos forneciam informações sobre uma realidade
era a altura da escada de Jacó?", e "Por que homens sábios
transcendente, nem se baseavam em verdades metafísicas
ganham menos dinheiro do que os tolos?" Mersenne publicou
sobre a natureza do universo. Uma concepção positivista-
um grande número de sumários, explanações e apresentações
pragmática de conhecimento foi estabelecida, omitindo qual-
sistemáticas de obras científicas, incluindo a de Galileu3. Ele
quer busca de fundamentos racionais para o que conhece-
também ajudou e apoiou os principais pensadores da "nova
mos e negando que uma busca deste tipo pudesse ser bem
filosofia", incluindo além de Descartes, Gassendi, Galileu,
sucedida, entretanto, insistindo, contra a força destrutiva do
Hobbes, Campanella, Herbert de Cherbury, o super-herético
pirronismo total, que o conhecimento científico e a matemá-
Isaac La Peyrêre e muitos outros. Sua imensa correspondência
que so' agora começa a ser publicada, trouxe encorajamento'
tica pudessem ser seriamente postos em dúvidas.
La Verité des Sciences, uma obra de mais de mil pági-
para cientistas em toda parte, e os manteve informados4, Por
nas, começa, como indicamos anteriormente, no estilo de

Marin Mersemze, Quaes.tioues celeberrinal iu Genesim, Paris, 1623; L'Impieté


des_ Dezstes, Athees: et Lzber/ms de ce te~zps, combatue, et reuversrie de poizzt en • .~erscnne, C_orrespondance du P.Marin Mersemw, publicada por Mme. Paul
anuery, edttada por Cornelis de Waard com a colaboração de René Pintard
poll.ttpar razsons tzrees de la Plnlosophze, e/ de la Theologie, Paris, 1624; c La tomos.•IIV · 1932-55· V"
Vente dcs Scwuces cmztre les Septiques ou Pyrrhouiens, Paris, 162;. doz - • p ans, anos outros vo 1umes estao
- sendo preparados. Os'
Ver, por exemplo, as questões tratadas em Mersenne, Questi011~ inouyes 011 1
Cf le Ja publicados cobrem o período de 1617-1643·
Recreation des Sçavmzs, Paris, 1634. ' enoble, Mersetme. págs. 310-333.

"3
"'
Garasse. Na epístola dedicatória ao irmão do rei, Mersenne últimas, não podemos entender sequer as experiências parti-
denunciá os céticos em termos bastante extremos, acusando- culares com as quais nos confrontamos9.
os de todo o tipo de pontos de vista e intenções vergonhosos Tendo consentido ao cético a primeira formulação ge-
e perigosos6 , Posteriormente, no prefácio à obra, mais acusa- ral de sua posição, Mersenne entra em cena, no papel do
ções são feitas, culminando na afirmação de que os céticos filósofo cristão, para fazer sua apresentação inicial de seu
são libertins que receiam mostrar sua verdadeira impiedade. tipO de resposta ao pirronismo. Em primeiro lugar, segundo
Eles, portanto, tentam convencer a todos de que nada é certo ele, o problema levantado pelo cético não mostra que nada
de modo a atacar indiretamente as ciências, a religião e a pode ser conhecido, mas sim que apenas algumas coisas, os
moralidade. O propósito de Mersenne ao publicar seu imen- efeitos, podem ser conhecidos. Se nosso conhecimento é res-
so volume era o de fazer cessar o impetuoso curso do trito deste modo, ainda assim tem algum valor pragmático,
pirronismo7 • Qualquer cético que lesse esta obra veria que uma vez que "este pouco conhecimento nos é suficiente para
"há muitas coisas verdadeiras nas ciências, e que é necessá- servir de guia em nossas ações"' 0 • De modo a nos conduzir-
rio abandonar o pirronismo se não quisermos perder nosso mos no mundo, o conhecimento dos efeitos é suficiente, pois
juízo e nossa razão" 8 • nos permite distinguir objetos etc. Este ponto aqui estabele-
A obra, ela própria, consiste em um diálogo entre um cido constitui o esquema geral da resposta de Mersenne ao
alquimista, um cético e um filósofo cristão, no qual tanto o cético. Os argumentos céticos mostram que há certas coisas
pirrônico quanto o alquimista recebem o tratamento que que não podemos conhecer, a saber, a real natureza das coi-
merecem. A cena é estabelecida com a declaração do alqui- sas que os filósofos anteriormente procuraram compreen-
mista de que a alquimia é a ciência perfeita. O cético apre- der. Entretanto, apesar de esta base metaflsica não poder ser
senta uma refutação disto, primeiro criticando as pretensões encontrada, podemos conhecer algo sobre aparências e efei-
do alquimista, e em seguida apresentando um argumento em tos, a saber, como nos orientarmos neste mundo de som-
defesa de um ceticismo completo, não apenas acerca dos bras. O tipo de conhecimento que Platão, Aristóteles,
méritos de uma pretensão específica a conhecimento verda- Demócrito e outros afirmaram possuir, Mersenne está dis-
deiro, mas sobre a possibilidade de existir qualquer meio pelo posto a conceder que não pode ser obtido. Mas, mesmo as-
qual o ser humano possa alcançar conhecimento sobre a real sim, ele mantém, há um tipo de conhecimento, radicalmente
natureza das coisas. Um breve sumário geral da posição do diferente, que possuímos e que nos é suficiente neste mun-
pirronismo clássico é apresentado, dirigido contra as filoso- do''.
fias platônica e aristotélica. Somos incapazes de conhecer a Assim, os argumentos sobre as variações dos sentidos
verdadeira essência das coisas, as formas platônicas. Só po- e as ilusões, que os céticos desenvolveram extensamente,
demos ter contato com os efeitos, as aparências, e nunca com podem muito bem mostrar qúe não podemos conhecer as
as causas últimas ou a natureza real. As causas podem ser coisas em si mesmas. Entretanto, os dados sobre como nos-
procuradas ad infinitum, sem se chegar jamais ao objeto de
conhecimento, e a menos que possamos encontrar as causas
•Ibid., págs. I · I I .
10
lbid,, pág. 14•
• Merscnnc, La Verité des Sciences, epístola dedicatória. Pane deste texto foi citado " A. sem.clhança de algumas das posições de Mersenne com as de Charles Sorcl,
no cap.VI. di~~uudas no capítulo anterior, é sem dúvida devida ao fato de que este úbimo
• Ibid., Prefácio, pág. 2. utJ.II:oou o livro de Mersenne como fonte. As diferenças entre ambas as visões
• Ibid., Prefácio, pág. 3· serão discutidas posteriormente neste capítulo.

H4
sas experiências diferem, sob condições diferentes, nos per- segundo. Os dez tropas são apresentados um a um, sendo
mitem formular certas leis sobre as observações sensoriais, refutados através da indicação de que há leis científicas so-
por exemplo, as leis da refração. Com base nessas leis sobre bre as variações sensoriais, tais como os princípios da ótica,
as aparências podemos corrigir ou explicar os dados sensori- e que apesar de todas as discordâncias e diferenças de opi-
ais e assim eliminar quaisquer problemas sobre as ilusõesn. nião, há um consenso sobre certos assuntos. Ninguém duvi-
(É interessante que Mersenne parece ter sido o primeiro a da de que o fogo é quente, de que o gelo é frio, ou de que um
notar que os argumentos do pirronismo clássico acerca das elefante é maior do que uma formiga. Os sonhos e as aluci-
diferenças entre a experiência humana e a animal são nações não constituem razão para o ceticismo, uma vez que
in conclusivos porque os animais não se comunicam conosco quando acordados e t:m condições mentais normais, pode-
e não nos dizem nada sobre o que percebem.)' 3 Sobre o caso mos reconhecer nossos sonhos enquanto tais. Quando o cé-
dos relatos sobre as variações no comportamento religioso e tico aponta que os dez tropas nos mostram que não conhece-
moral, Mersenne insistiu que uma vez que conhecemos as mos a essência das coisas, o filósofo cristão de Mersenne
regras divinas e naturais de conduta, não importa como ou- repele este argumento com o seguinte comentário, " isto não
tras pessoas e culturas se comportam'4, é necessário para estabelecermos alguma verdade" ' 6 • Apesar
Em linhas gerais, Mersenne tentou estabelecer a posição das dificuldades levantadas por Sexto Empírico, nós não nos
de que em todos os campos da experiência humana algumas encontramos em dúvida sobre todas a~ coisas, e temos mei-
coisas são conhecidas, como: "o todo é maior que suas par- os, como instrumentos de medida, para lidar com algumas
tes", "a luz ao meio-dia é mais forte do que a das estrelas", "o das situações problemáticas que surgem. Com estes instru-
mundo existe", "não é possível que uma coisa tenha e não mentos e com as leis que descobrimos sobre a perspectiva, a
tenha as mesmas propriedades", "devemos evitar o mal" etc. refração, o efeito do vinho na visão etc., podemos evitar os
Pode não haver uma refutação filosófica dos argumentos cé- problemas causados por remos partidos, pescoços de pom-
ticos, mas há muitas coisas que não estão sujeitas à dúvida. Se bos e torres redondas. Sendo razoáveis podemos encontrar
alguém adota uma posição razoável, então perceberá que um modo de viver apesar de todas as variações no comporta-
algumas coisas podem ser conhecidas e será feliz. Caso con- mento humano. Portanto, "todos os argumentos dos
trário, se sentirá completamente miserável. Alguém pode até pirrônicos nada mais são do que bobagens e paralogismos
chegar a duvidar das regras óbvias da moralidade, tornando- com os quais não devemos nos entreter por muito tempo"' 7 •
se um lihertin, o que o levará "diretamente para o inferno com O pirrônico não é silenciado por esta rejeição de seus
todos os demônios para ser queimado para sempre"•s, argumentos ao estilo do senso comum. Mas, em vez de res-
Após se dedicar ao ataque à alquimia, Mersenne retoma ponder, ele apresenta outros argumentos derivados de Sexto,
à sua guerra contra o pirronismo, desenvolvendo sua crítica sumariando as partes restantes do livro I, c introduzindo em
geral sob a forma de um comentário detalhado e de uma seguida os argumentos principais do livro 11 contra a possi-
refutação aos Esboços do pirronismo de Sexto Empírico, tra- bilidade do conhecimento racional. Tudo é matéria de con-
tando de praticamente todo o primeiro livro e de parte do trovérsia, e toda tentativa de se estabelecer a verdade de uma
teoria leva ou a um regresso ao infinito ou a um raciocínio
"Mcrserme, La Veríté des Sciences, págs. 16-20. 16
"Jbid., pág. 20. lbid., págs. I50·l5I·
11
·•lbid., pág. 21. lbid., pág. 153· O material tratadO neste parágrafo se encontra nas págs. IJ0-
'' Ib1d., págs. 22-74· A passagem citada se encontra na pág. 57· 156.
circular. O primeiro ponto é posto de lado indicando-se que luz do Sol ao meio-dia, sabemos que é dia, e nenhum argu-
muitas das controvérsias citadas pelos céticos dependem de mento sobre critérios e julgamentos pode fazer qualquer di-
algo dito por uma pessoa estúpida. Mas, como Mersenne ferença. Se empregamos nossas faculdades adequadamente,
argumentou repetidas vezes, algun;:~as questões nunca são descobriremos máximas genuínas que todos aceitam. Não é
matéria de controvérsia. E nenhum ~egresso ao infinito ocor- necessário mostrar de modo indubitável qual o critério de
re nas explicações porque há certos pontos auto-evidentes verdade para ter certeza destas máximas. Sem responder às
que podem ser usados como máximas com base nas quais afirmações dos céticos, Mersenne indica como de fato deci-
construímos o conhecimento científico; isto por sua vez pode dimos estas questões. Usamos nossos sentidos, ou normas,
ser certificado pela verificação experimental das previsões ou instrumentos, e os avaliamos por meio de nossas faculda-
feitas com base no que conhecemos' 8• des racionaiS 20 •
O cético procura apoiar seu argumento no ataque de De modo semelhante, as objeções dos pirrônicos ao
Sexto contra o raciocínio silogístico. Para que um silogismo raciocínio silogístico podem ser ignoradas. Simplesment-e não
seja verdadeiro, suas premissas devem ser verdadeiras. Para é o caso que as conclusões constituem parte da evidência
mostrar que as premissas são verdadeiras, novas evidências para as premissas. As primeiras podem sugerir as últimas,
são necessárias, levando ou a um regresso ao infinito, ou ao mas nunca estabelecê-las. A evidência para as premissas con-
emprego das conclusões como evidências para as premissas. siste ou na indução a partir de material diferente das conclu-
Além disso, não poderíamos saber se as premissas são verda- sões, ou na auto-evidência das premissas. Se os céticos real-
deiras, a menos que as conclusões fossem previamente co- mente duvidam que há premissas que "arrebatam" o enten-
nhecidas como verdadeiras. E, de modo a saber se as premis- dimento e o levam a certas conclusões, pode ele duvidar que
sas acarretam as conclusões, teríamos que mostrar que há sabe que duvida? Se ele duvida disto, pode ele duvidar de
uma conexão entre as primeiras e as últimas, e que há uma que duvida, e assim por diante? Não importa quanto o céti-
conexão entre esta conexão e o silogismo. Como se isto não co se debata, ele terá de admitir que algo é verdadeiro, e
bastasse, há ainda os problemas sobre o critério. Para deter- portanto, "é necessário dar um adeus para sempre a seu
minar se algo foi demonstrado, é necessário uma instância pirronismo" 21 •
para julgar e um critério de julgamento. Mas qual o critério O lugar intermediário que Mersenne estava tentando
para se decidir qual a instância e qual o critério? Até que estabelecer entre a negação cética de que possuímos qual-
estas dificuldades sejam resolvidas, não podemos conhecer quer tipo de conhecimento, e a afirmação dogmática de que
nada, exceto as aparências'9, podemos conhecer a verdadeira natureza das coisas é apre-
A resposta de Mersenne a esta crítica ao conhecimento sentado em uma digressão relativa aos méritos das propos-
racional consiste em uma versão pragmática da teoria tas de Francis Bacon. Bacon foi acusado de ir aos dois extre-
aristotélica das condições adequadas para se obter conheci- mos. Os ídolos nada mais são do que os velhos argumentos
mento empírico e intelectual. Sem oferecer qualquer argu- céticos, e podem ser afastados por um meio do senso co-
mento, ele indita que, de fato, o homem é o juiz, e cada mum, prático. Os procedimentos positivos oferecidos por
sentido é o juiz de seus próprios objetos. Quando vemos a Bacon para se descobrir a verdade não funcionam. Além do

"lbid., págs. 156-16l.. '"lbid., págs. I90·I95·


•• Jbid., págs. 179·1/l9. "Ibid., págs. 196-:2.04. A passagcll\ citada se encontra na pág. 204.
fato de que não se baseiam em nenhum método científico O tipo de resposta apresentada por Mersenne ao ceti-
existente, eles deixam de levar em conta nossa total incapa- cismo foi descrita por Lenoble como semelhante à maneira
cidade de chegar à real natureza das poisas. Em relação "a pela qual Diógenes refutou Zenão, simplesmente caminhan-
qualquer fenômeno que possa ser considerado em filosofia, do. Respondeu-se ao pirronismo através da mera apresenta-
não devemos supor que podemos penetrar na natureza dos ção do que conhecemOS 2'. Mas os argumentos em defesa do
objetos individuais, nem no que ocorre em seu interior, pois ceticismo completo foram de fato ignorados e não rcfuta-
os nossos sentidos, sem os quais nosso entendimento nada dos26. Segundo dizia Bayle, a propósito de Diógenes, o apelo
pode conhecer, só percebem aquilo que é externo"u. à experiência do movimento não constitui uma resposta aos
Por outro lado, ao concluir o primeiro livro de La Verité argumentos em questã0 27, Tampouco o apelo a um conheci-
des Sciences, pondo de lado os argumentos pirrônicos sobre mento que obviamente possuímos constitui uma resposta aos
a física e a metafísica, indicando mais uma vez que há coisas argumentos levantados por Sexto Empírico. Mas Mersenne
que podemos conhecer, e meios práticos para dissolver as estava· disposto a conceder este ponto. A refutaç~o do
dúvidas, Mersenne declarava que, "não devemos mais sus- pirronismo visava fazer cessar o lado destrutivo dos
pender o juízo. Devemos aceitar a verdade em nosso enten- humanistas céticos, aqueles que duvidavam de tudo e sus-
dimento como o ornamento e o maior tesouro que este pode pendiam o juízo acerca de todas as questões. As ciências (con-
receber, caso contrário permaneceremos na eterna escuridão sideradas como o estudo de relações fenomênicas) e a mate-
e não teremos nenhuma consolação" 2l, mática (considerada como o estudo de relações hipotéticas),
Caso esta aceitação da forç.a do ceticismo e este meio nos deram um tipo de conhecimento que não pode realmente
pragmático proposto para resolver as dúvidas não fossem ser duvidado, exceto por loucos. Porém, o tipo de garantia
suficientes para eliminar o pirronismo, então Mersenne apre- desejado pelos filósofos dogmáticos jamais poderia ser con-
senta sua resposta final ao ceticismo completo - o vasto seguido para este tipo de conhecimento. Assim, um ceticis-
corpo de conhecimentos físicos e matemáticos de que dispo- mo fundamental teria de ser aceito, consistindo na dúvida
mos. Quando confrontados com isso, podemos ainda ter sobre a possibilidade de encontrar <iualquer fundamento se-
dúvidas? E assim, as Soa páginas seguintes de La Verité des guro sobre aquilo que conhecemos. Entretanto, este ceticis-
Sciences consistem em uma lista do que conhecemos sobre mo não deve ser estendido de uma dúvida sobre fundamen-
estas ciências, questões em relação às quais não há necessi- tos para uma dúvida sobre aquilo que, independentemente
dade de suspender o juízo. Na medida em que a aritmética e de qualquer argumento cético, nós de fato sabemos.
a geometria são descritas, juntamente com alguns problemas Em alguns de seus escritos posteriores, quando não se
estranhos na filosofia da matemática e na "teologia" da ma- ocupava então de atacar o ceticismo, Mersenne deixou bem
temática, o pirrônico gradualmente descobre que este corpo claro seu pirronismo "epistemológico" ou "teórico". Nas
de conhecimento é "excelente para derrubar o pirronismo Questions Theologiques, ele argumenta que uma ciência das
que me fez duvidàr de todas as coisas até que eu tivesse a boa
sorte de encontrar-me com você" :I..!,
•s Lcnohle, Mersmne, pág. 32.
•• Charles Adam, em sua hrc\'C discussão da crítica de Mersennc ao pirronismo,
indica que Mcrsenne nunca questiona a verdade das leis científicas que emprega
"Tbid., p;ig. 212. A discussão de Bacon ocorre nas págs. 205-218. na resposra ao ceticismo. Cf. Adam, Vte de Descartes, em Oeuvres de Descartes,
"Ibid., págs. 219-:~:2.0. A passagem citada se encontra na pág. 220. cd. Adam-Tannery, vol. xn, Paris, l9IO, pág. qr.
'' Ibid., pág. 751. '' Cf.Baylc, Dictimmaire, verbete ~zcnon d'E\ée", Rem. K.

220
'"
verdades eternas não é possível, e que o ápice da sabedoria para Mersenne. Pierre Le Loyer, que tinha anteriormente es-
humana é o reconhecimento de nossa própria ignorância. crito contra o ceticismo, acusa Mcrsenne de adotar este pon-
To do o nosso conhecimento está aberto a algum tipo de dú- to de vista, mas suaviza seu golpe acrescentando ter certeza
vida, e nenhuma de nossas crenças pode ser adequadamente de que Mersenne não era de fato um pirrônicol'. Gassendi,
fundamentada. O sábio reconhece que ele não tem conheci- que mais tarde veio a compartilhar o "ceticismo construti-
mento de nenhum assunto com evidência e certeza suficien- vo" de Mersenne, confessa que ele próprio era um cético, e
tes para estabelecê-lo como ciência, no sentido de um corpo que sabia que isto perturbava Mersenne. Mas Gassendi dizia
de conhecimento indubitável e demonstrável. que podiam chegar a um compromisso, e ambos viviam suas
vidas cotidianas com base no probabilismol~. La Mothe Le
Pois pode ser dito que apenas vemos a parte externa, Vayer, o "cristão cético", acrescentou uma nota a Mersenne
a superfície da natureza, sem sermos capazes de pene- em seu Discours Sceptique sur la Musique, que Mersenne
trar no seu interior, e jamais possuiremos nenhuma havia publicado como parte de um de seus próprios livros,
outra ciência além da dos seus efeitos externos, sem na qual La Mothe Le Vayer tentou indicar as áreas em que
sermos capazes de encontrar as razões deles, e sem havia acordo entre Mersenne e os nouveaux Pyrrhoniens.
sabermos por que agem, até que Deus queira nos li-
vrar de nossa miséria e abrir nossos olhos por meio da Não tenho criado dificuldades ao lidar convosco acerca
luz que Ele reserva a Seus autênticos admiradores'~. das maneiras de se suspender o juízo, sabendo bem que
vós nunca a desaprovastes dentro dos limites do conhe-
Nas Questions inouyes, Mersenne se pergunta, "Podemos ter cimento humano, e que vós jamais responsabilizastes
conhecimento de algo com Certeza na física e na matemáti- o cético, quando respeitoso em relação aos céus, e sub-
ca?" E responde que não podemos explicar as causas dos efei- jugando sua racionalidade à obediência da fé, ele se
tos mais comuns, como a causa da luz, ou da queda dos cor- contentava em atacar os dogmáticos mostrando a in-
pos. De fato, sequer podemos provar que o mundo que per-
cebemos não consiste apenas em meras aparências. Assim
sendo, "não há nada certo na física, ou há tão poucas coisas '' Cartas de Picrre Le Loyer a Mersenne, 13 de fevereiro de 1627, publicadas em
~orr_esp011danc_e _du P. Ma:ÍII Merse1111e, tomo I, pág. 521, na qual diz Lc Loycr:
certas que é difícil determiná-las"'~\ Na matemática, as ver- Vejo que vocc e um segmdor da segunda academia c de Carnéadcs, que acredi-
dades são apenas condicionais: se há objetos como triângu- tava que se podem fazer juízos prováveis acerca de questões propostas e coloca·
das em ~isputa. ~c~ adoto a posição de Varron, que era favorável à primeira
los, então certos teoremas da geometria são verdadeiros 30 • academm, que d1fcna da segunda apenas em palavras c não em atos. Não era
O pirronismo teórico de Mersenne; combinado com como a segunda, a de Arcesilau, c estava bem próxima dos filósofos pirrônicos
dos ~u:Us sei que você se encontra tão distante, quanto está próximo da filosofi~
sua veemente oposição ao ceticismo aplicado, fica ainda mais platomca... "
claro em alguns comentários feitos a seus correspondentes e ''Can
. a de G asscn d'La Mcrsenne, 4 de fevereiro de r629, que aparece como prcfá.
CIO ao ataque do primeiro ao rosa-cruz Roben Fludd. Esta carta está publicada
amigos, que parecem perceber que o ceticismo é um desafio ~m Corr:spondance du P. Marm Mersemw, tomo II, págs.184·185, na qual diz
d.:~endL: "c vós não desconheceis que meu escasso c cético talento (inteligência)
1 ICd~ente será capaz de produzir algo que possa ser verdadeiramente satisfatório
'' Mersenne, Les Questiom theo/ogiques, 11hysiques, morales et mathémariques, para vos ... Pois embora proibais que cu seja quase pirrõnico c estejais acostuma·
dOasem
b. pre me urg1r· quanto a Isto,
· como se houvesse algo que eu pudesse
Paris, 1634, págs. 9·11. A passagem citada se encontra na pág. 11.
'' Mcrsennc, Questious inouyes, págs. 69-71. A passagem citada se encontra na ~~~;car d?g.~aticamente, por outro la.do~ co?L basc_n~ amiza~e, vós ?cvc~s con-
pág. 71. que c hcJto que se tenha a sua propna vtda cottd1ana e na o pubhcar Jamais
00
10 lbid., págs. 72-74. afirmar explicitamente nada, exceto dentro dos limites da probabilidade".

223
certeza de suas disciplinas. A mesma espada pode ser para este conhecimento, e nenhum conhecimento real sobre
usada por uma pessoa perversa para cometer um as- a natureza das coisas pudesse ser descoberto.
sassinato infame, ou pode ser o instrumento de um feito Mersenne, ao contrário de Charles Sorel, que se apro-
heróico nas mãos de um homem virtuoso. Aquele que priou de muitas de suas idéias, estava apresentando um tipo
permite que questões divinas sejam tratadas de um peculiar de solução nova para a crise cética. Ele não manti-
modo pirrônico deve ser tão condenado, quanto deve nha, como Sorel, que podemos ter conhecimento da verda-
ser louvado aquele que mostra que o que é apresenta- deira natureza das coisas, mas que não podemos conhecer
do como o máximo da sabedoria do mundo é um tipo tudo sobre a realidade. Ao contrário, a posição de Mersenne
de loucura diante de Deus, e que todo o conhecimen- foi que de um ponto de vista epistemológico não há solução
to humano depende dos sonhos da noiteB. para a crise cética. Mas isto não nega o fato de que na práti-
ca temos conhecimento, isto é, informação confiável sobre o
La Mothe Le Vaycr e Mersenne podiam estar de acordo quan- mundo. Podemos não ser capazes de estabelecer que .real-
to ao uso da espada cética para matar o dogmático, mas o mente existe um mundo, ou que este mundo realmente tem
primeiro desejava matar também o cientista. Mersenne acei- as propriedades que experimentamos, mas podemos desen-
tava o uso antimetafísico do pirronismo, mas insistia também, volver ciências das aparências, que têm valor pragmático, e
apesar de todas as dúvidas céticas, na verdade das ciências. cujas leis e descobertas não são duvidosas, exceto em um
Um outro elemento na carreira de Mersenne ilustra esta sentido epistemológico fundamental. O humanista cético
atitude, sua defesa da teoria política de Hobbes como uma destrutivo como La Mothe Le Vayer, que abandona a pouca
cura para o pirronismo destrutivo. Em r646 Mersenne escre- orientação que temos devido a suas dúvidas teóricas, é um
veu para o arquicético Samuel Sorbiêre, dizendo que se ele tolo e uma ameaça, tanto quanto o cético religioso que aban-
examinasse o De Cive de Hobbes, isto o faria renunciar a seu dona o cristianismo porque suas doutrinas não podem ter
ceticismo-'4 • O que Hobbes tinha descoberto, aparentemente um fundamento racional absolutamente certo.
segundo Merscnne, era uma nova ciência, a ciência do ho- Mersenne havia encontrado uma resposta para o desa-
mem. Se o cético visse o conhecimento que se poderia ter nesta fio do nouveau Pyrrhonisme, uma resposta que iria fazer his-
área, ele não mais formularia suas dúvidas, ainda que funda- tória em tempos mais recentes. Os céticos tinham levantado
mentos últimos continuassem não podendo ser apresentados dúvidas aparentemente insolúveis acerca de nossa capacida-
de de encontrar bases certas e indubitáveis para o conheci-
"La Mothc Lc Vaycr, Diswurs sceptique mr la nmoique, publicado em Mcrsennc,
mento de que dispomos. Em vez de tentar encontrar uma
Quesrions harmomques. Da11s /esquel/es wnt cvHtemiiJs p/usieurs choses solução para estas dúvidas, Mersenne procurou salvar o co-
remarquables {1m1r la l'hysique, tmur la Mora/e. & prmr les mttres scie11ces, nhecimento, mostrando que sua confiabilidade c utilidade
Paris, r634, p5gs.r6J-I62.
' 4 Carta de Merscnnc a Sorbii:re, 25 de abril de r646, publicada como prefácio a não dependiam da descoberta de fundamentos para toda a
Thumas I:Jubbcs, De Cive, Amsterdã, 1647, c em Surtais, Lal'hilosophie modernc, certeza. As realizações científicas não dependem de um siste-
vo!. ll, pags. 214-215, na qual Mcrscnnc diz: "Vós rcnuncJareis com prazer à
~uspc1:s~o de juízo c a_outras c~ll.JVcrsas inúteis dos céticos, quando fores forçado ma metafísico inabalável; portanto, não devemos duvidar
~ adnunr que a film.ufm dogmanca se sustenta em bases irrcmovivcis", Mcrsennc delas, nem descartá-las devido à ausência desta base. O
fez os maiores elogios au De Cwe de Hobbcs, enquanto Gasscndi, embora mani-
~est~s~e grande aprovaç5o a esta obra, pelo menos percebeu su<l inclinação
dogmático e o cético destrutivo estão ambos errados, o pri-
•rreligLOsa, e Descartes condenou violcnrmncntc esta obra porque se baseava em meiro por insistir que podemos e devemos ter conhecimento
"máximas que er;~m muito más c pcri!loSas". Cf. Surtais, op. cit .. 11, plÍ!l- 2I4- da realidade, O segundo por insistir que tudo pode ser posto
2r(,; c Lenoblc, Merscmw, págs. 57tí-57S.
em dúvida. Entre ambas estas posições se encontra um novo sentação e da organização mais convincente e mais útil da
ponto de vista, o ceticismo construtivo, duvidando de nossa informação que temos, o desenvolvimento do retrato do
capacidade de encontrar fundamentos para o conhecimento mundo como um mecanismo.
que temos, mas ao mesmo tempo aceitando e desenvolvendo Petrus Gassendi, o grande cientista, colega de sacerdó~
este conhecimento. O mecanicismo de Mersenne, sua má~ cio e melhor amigo de Mersenne, gradualmente adotou esta
quina do mundo, não foi apresentado como um retrato ver~ atitude de cetismo "construtivo" e dedicou grande parte de
dadeiro do mundo real, como o foi para seu amigo fanático, seus estudos posteriormente para desenvolver uma filosofia
René Descartes, mas como uma hipótese permitindo que se a meio caminho entre o ceticismo total e o dogmatismo 37 • O
organizasse e se utilizasse o conhecimento. Começando com atomismo de Gassendi foi apresentado, especialmente em sua
Mersenne, surgia um novo tipo de visão científica, uma ciên- forma final, como a melhor explicação do mundo das apa~
cia sem metafísica, uma ciência em última análise em dúvi- rências. Muito mais do que Mersenne, Gassendi tentou es-
da, mas para fins práticos, verificável e útills, clarecer em detalhe o estatuto epistemológico de sua visão
Em outras palavras, a crise cética resulta de se mostrar mecanicista de mundo através de uma análise séria, cuidado-
que a certeza que o filósofo dogmático busca é inatingível, sa e sistemática da natureza do conhecimento. Sua obra mag-
porque, em relação à sua busca, ·certas dificuldades insolú- na, o Syntagma, não trata de metafísica, mas sim extensa-
veis podem ser colocadas, que impedem a descoberta de um mente do que seu herói, Epicuro, denominou "canônica", a
conhecimento absolutamente verdadeiro e indubitável. Foi filosofia da lógica e a teoria do conhecimento. Nela Gassendi
por isso que Pascal admitiu que enquanto houvesse dogmá~ examina a visão que inicialmente adotara, a dos pirrônicos,
ricos, os céticos estariam certos. Mas se eliminamos os pa- e mostra por que estava abandonando sua dúvida total sobre
drões dogmáticos para o conhecimento genuíno, então o ata- a possibilidade do conhecimento.
que pirrônico torna-se ridículo, uma vez que se formula em Depois de apresentar um cuidadoso resumo da teoria
termos destas condições ou exigências fortes estabelecidas cética tal como aparece nos escritos de Sexto Empírico 38,
pelos filósofos dogmáticosl 6 , Tão logo Mersenne mudou os Gassendi tenta defender seu próprio compromisso entre o
padrões do conhecimento verdadeiro de verdades auto-evi- dogmatismo e o ceticismo, em termos do problema do co~
dentes e indubitáveis, ou de demonstrações verdadeiras para nhecimento tal como apresentado pelos pirrônicos. A quesH
estas verdades, para verdades inquestionadas ou mesmo tão básica é: há um critério absolutamente certo para se dis-
inquestionáveis psicologicamente {que poderiam ser falsas tinguir a verdade do erro? Algumas cois~s são óbvias em
pelos padrões anteriores), então os céticos perderam seus determinados momentos, por exemplo, "E dia ... enquanto
adversários, e seus ataques, quando aplicados ao tipo de co- outras não são. O cético, como todo mundo, aceita o que é
nhecimento defendido por Mersenne, tornaram~se risíveis e evidente ou aparente. O problema surge em conexão com o
tolamente destrutivos. O cético "razoável" poderia abando~ que Sexto denominou o não~evidente, aquelas coisas que es-
nar suas dúvidas em relação a esta nova concepção de co~ tão ocultas de nós. Algumas destas coisas são absolutamente
nhecimento, e juntar-se a Mersenne em sua busca da apre~ não-evidentes, tais como se o número das estrelas é par ou

'' Um exame mais detalhado deste lado de Mcrscnnc se encontra em R. H. Popkin,


"Father Mcrscnne's War against Pyrrhonism", em Modem Scboolman, XXXIV, 17
1956-7, págs. 61-78. Cf. Gasscndi, Syntagma Phi/osophicum, Logica, em Opera, vol. I, p:íg. 79- Ver
16
Blaise Pascal, Pensées, Classiqucs Gamicr, n" 374, págs. t66-167. também nota 1, pág.ro6, cap. V. ,
1
' Gasscndi, Syntagma, Logica, livro II, caps. II-ill, em Opera, vol. I, pags. 69-76.

"7
ímpar. (Este exemplo, como a maioria dos exemplos dados e que algumas coisas podem ser conhecidas, e o são. Portan-
por Gassendi na discussão do problema do conhecimento, é to, a dúvida total é indevida. Mesmo os céticos concordam
tomado da análise de Sexto da questão da existência dos sig- que conhecemos as aparências. Mas também somos capazes
nos indicativos.) Outras são naturalmente não-evidentes, mas de conhecer algo sobre a natureza da realidade por meio de
podem ser conhecidas através de alguns signos ou intermedi- critérios através dos quais podemos discernir algum tipo de
ários, como, por exemplo, a existência de poros na pele que signo indicativo. Nossos sentidos nos permitem conhecer 0
pode ser inferida do fenômeno do suor. Por fim, há algumas signo visível ou aparente, e nossa razão nos permite interpretá-
coisas que podem ser conhecidas como evidentes, mas, devi- lo, e assim descobrir o objeto oculto, não-percebido. Embo-
do a condições temporárias, se encontram ocultas de nÓs39, ra os sentidos por vezes sejam não-confiáveis e errôneos, por
Os casos de coisas naturalmente não-evidentes e tem- meio de um raciocínio cuidadoso podemos corrigir os seus
porariamente não-evidentes requerem algum instrumento ou erros. O teste sobre se raciocinamos corretamente e chega-
critério para serem conhecidos por nós. Estes últimos, até mos ao conhecimento verdadeiro consiste na experiência,
mesmo os céticos admitem, podem ser discernidos pelos "sig- através da verificação de previsões. As questões céticas sobre
nos sugestivos", isto é, fenômenos de conjunção constante, o valor e o fundamento do raciocínio são sem importância,
de tal forma que quando percebemos um, pensamos no ou- uma vez que há certos princípios inquestionados do raciocí-
tro. Assim, quando vemos fumaça, sabemos que há fogo, nio que são suficientemente evidentes para que os usemos
' mesmo que este esteja temporariamente oculto de nós. Os como base para nossas inferências4'.
'' pirrônicos consideram este tipo de conhecimento do não-evi- Esta resposta ao ceticismo, como a de Mersenne, não
dente por meio de signos sugestivos como valioso para a vida nega a força do pirronismo enquanto aplicado ao conheci-
prática4°, Entretanto, há uma oposição total entre os céticos mento que os dogmáticos buscam, o conhecimento da ver-
e os dogmáticos em relação aos signos por meio dos quais dadeira natureza das coisas, "a qualidade que realmente está
podemos descobrir o naturalmente não-evidente. Os céticos no o_bjeto" 43 , e as razões pelas quais os objetos têm estas
duvidam que haja tal critério, e que possamos conhecer as qualidades. De fato, o tipo de informação que os estóicos
coisas de outra maneira além daquela pela qual estas nos pretendiam obter por meio dos signos indicativos44 Gassendi
aparecem. Os dogmáticos insistem que a verdade sobre as os céticos consideravam inalcançável. Mas Gassendi consi-
coisas pode ser descoberta por nós por meio de signos que havia um outro tipo de signo indicativo, menos
indicativos4'. · mas mesmo assim útil, aquele que nos cosi-
Gassendi critica o ponto de vista dogmático porque as ca~sas ~as aparências em termos científicos. A partir
este exagera o poder da mente humana. Os segredos da na- através do raciocínio cuidadoso, podemos
tureza, as coisas em si mesmas, estão para sempre ocultos de as leis ou razões que explicam por que temos as
nós. Mas, ao mesmo tempo, os céticos também foram longe que temos, por que o mel nos parece doce, por
demais. Um caminho para o conhecimento pode ser encon- vemos determinadas cores4s, A partir das variações de
trado entre os dois campos opostos. É óbvio que existe algo,
t~0i;•<ogm", Logica, livro II, cap.V, em Opera, vol. I, especialmente
,. lbid., livro 11, cap. V, em Opera, vo!. I, págs. 79-81. 'pág. 12.
4o Ibid., livro ll, cap. V, em Opera, vo!. I, pág. 81. por Sexto dos signos indicativos em 011tli11es of Pyrrhonism, li,
" Ibid., livro li, cap. V, em Opera, voi. I, pág. 79; ver também George S.Brelt, 11
Phi/osophy o(Gasseudi, Londres, 1908, pág. 8. ,..' • '''"'"''"·· Logica, livro 11, cap.V, em Opera, vol. I, págs. 81 e seguin-
nossa experiência podemos formular algumas verdades so~ trário da atitude e da teoria anticientífica e destrutiva de seu
bre a maneira como os objetos aparecem para nós sob dife~ bom amigo, La Mothe Le Vayer'.
rentes condições, leis sobre as causas das variações no que Quando Gassendi se confrontava com uma teoria
percebemos. Gassendi não estava disposto a concluir que uma dogmática, com uma visão metafísica da estrutura do universo
vez que não podemos conhecer a natureza essencial das coi- e de nosso conhecimento dela, então a base pirrônica de seu
sas, então não podemos conhecer nada além do que aparece pensamento-vinha à tona de forma clara e direta, não como
para nós ou das regularidades observáveis nestas aparências. um equivalente disfarçado do ceticismo como em Mersenne,
Entre o conhecimento no sentido dos dogmáticos, e as apa- mas como uma aceitação explícita de um pirronismo
rências e signos sugestivos dos pirrônicos, existe um nível de epistemológico completo. É assim que quando considerava as
conhecimento científico. Este conhecimento é baseado em posições de Aristóteles, Herbert de Cherbury, Descartes, ou
um exame minucioso e cuidadoso das aparências, e em inter- mesmo os físicos matemáticos, os quais ele considerava como
pretações c explicações racionais destas aparências, não a platônicos ou pitagóricos, Gassendi defendia um ceticismo
partir da natureza dos objetos reais que as produzem, mas total sobre a realidade além das aparências. Sua primeira obra,
com base nas condições que tornam nossa experiência possí~ dirigida contra Aristóteles, tinha como conclusão: nihil sciri48.
vel e inteligível. Assim, as explicações científicas, que para Seus comentários ao De Veritate de Herbert, tanto ao autor
Gassendi se dão em termos da teoria atomista, dão conta de quanto a seu amigo comum Diodati, mais uma vez afirma-
nossa experiência de qualidades sensíveis, mas não nos di~ vam seu pirronismo fundamental. "A verdade, segundo meu
zem nada sobre a natureza das coisas em si mesmas, exceto ponto de vista, se encontra bem oculta dos olhos dos homens
como aparecem em relação a nós. Este é o tipo de objeto e o Sr. Herbert me parece ter ido rápido demais e ter valori-
científico que Gassendi queria proteger das dúvidas dos céti- zado demais sua opinião ao condenar de maneira tão inde-
cos. Construímos ou aprendemos acerca deste objetos com cente os argumentos dos céticos. "49
base nos signos indicativos da experiência. Descrevemos en- Gassendi explicou a Herbert que, como os céticos, ele,
tão estes objetos científicos (os átomos) em termos das qua- Gassendi, só conhecia as aparências como o gosto doce do
lidades encontradas na experiência. E, finalmente, autentica- mel, e poderia explicá-las em termos de qualidades naturais
mos esta explicação atomista em termos de previsões e experimentais. Mas, além disso, infelizmente, não pode-
verificáveis sobre a experiência4 6, O atomismo de Gassendi mos e jamais poderemos conhecer a verdade sobre a realida-
pode não ter dado muitos frutos, enquanto descoberta cien- de. Aqueles que pretendiam revelar estas verdades últimas
tífica, ou enquanto explicação científica satisfatória, mas pelo não conseguiram convencê-lo. "Mas no que diz respeito ao
menos foi um resultado construtivo do pirronismo, ao con- que se considera ser a verdade sobre a coisa, ou a natureza
mais íntima do mel, isto é o que eu mais ardentemente desejo
conhecer e o que permanece ainda oculto de mim, apesar do
tcs. Ver também Sortais, La P!JJ!osophic Mudeme, 11, pá~s. 91-96; Brctt, op.
ât., p:igs. ro-q, c Rochot, "Gasscndi cLlc Synragma", p:igs. 76-77.
'''Sobre as características gerais da visão positiva de Gasscndi. ver além do Syntas;ma,
Ikrr, A11 Jure lmer Scept,ços Gassendus mtmcratus fuerit, csp. cap. 11; Brett, "O valor científico do atomismo qualitativo defendido por Gassendi é discutido
l'hiloso{JI!y of Gassendi; Kicfl, "Gassrndi'> Skcptici>mu>", págs. 36I-.373; Rochot, por A. Koyré em "Le Savant"; c em Rochot, Les Travaux de Gassendi St<r Épicure
et sur l'atomism,
"Gasscndi ct k Syntagma","Lc l'hilooophc", págs. 72-84 c I04·Io_:;; Sortais, La ••v .
., Cer cap. V, págs. Ioi-ro 3 .
l'hilosophw Modeme, I!, onde encontramos no act. H, cap. iv, um resumo deta-
lhado c uma an:ilisc do Sy11tagma; c Bloch, La Philosophie de Gasseudl, e>P· Cana de Gassendi a Diodati, 29 de agosto de 1634, publicada em Mcrscnnc,
parte Il. orrespondence du P. Mariu Mersenuc, tomo IV, Paris, 1955, pág. 337·
número quase infinito de livros publicados até o presente lasse de uma maneira bastante elaborada uma visão científi-
com a pretensão de nos comunicar o que eles denominam ca isenta de qualquer base metafísica, um ceticismo constru-
uma ciência demonstrativa."so De modo semelhante, seus lon- tivo capaz de dar conta do conhecimento científico que pos-
gos escritos sobre Descartes, as Quintas Objeções, a Institutio suímos ou podemos possuir, sem ultrapassar os limites do

.. .. ~ ::·'
e os comentários sobre a lógica de Descartes no Syntagma,
todos enfatizam em primeiro lugar o lado obviamente cético
das meditações, isto é, da Primeira Meditação, e em seguida
entendimento revelados pelo pirronismo. A via media desen-
volvida por ele e por Mersenne poderia fornecer uma justifi-
cativa adequada para os procedimentos e descobertas da ci-
o lado positivo de sua teoria, sua pretensão ao conhecimento ência, sem precisar estabelecer fundamentos inabaláveis para
verdadeiro da realidade, que é mostrado como grandemente 0 novo edifício do conhecimento científico. Mesmo tendo
exagerado, e de fato levando apenas a um ponto de vista Gassendi elaborado sua nova física em grande detalhe, ela
bastante duvidoso. Se tentamos obter conhecimento verda- talvez não tenha se tornado a nova visão de mundo e a nova
deiro sobre as coisas somente com base em idéias claras e ideologia em parte devido a certas limitações no tempera-
distintas em nosso entendimento, Gassendi insistia, estare- mento de seu autor, uma falta de ousadia e audácia que iria
mos sempre sujeitos ao erro, uma vez que aquilo que nos caracterizar os monumentais exploradores do novo meca-
parece claro e distintO em um determinado momento, pode nismo do mundo como Galileu e Descartes. Gassendi era
não parecê-lo assim mais tarde. Devido à nossa fraqueza, extremamente conservador, sem disposição para ir além das
devemos perceber que nunca poderemos tomar as precau- informações da experiência e das tradições intelectuais da
i: ções adequadas para assegurar-nos de que não fomos enga- humanidaden. Não estava disposto a romper com o mundo
nados quando tentamos construir o conhecimento com base qualitativo da experiência comum, ·ou a jogar por terra a
apenas em nossas idéias. Em vez disso, devemos voltar-nos herança da sabedoria humana de modo a ir em busca de uma
para a natureza, para a experiência, como nossos guias, e nova visão de mundo e de um novo quadro referencial54 •
devemos limitar nossa busca do conhecimento àquilo que Tendo menos compreensão sobre a natureza da matemática
pode ser descoberto com essas basess•. do que Mersenne, Gassendi foi cético em relação ao papel
A cautela extrema de Gassendi, sua constante depen- que esta poderia ter em nosso entendimento do mundo natu-
dência da experiência e da tradição inibiram sua criatividade ral, e receou que os físicos matemáticos fossem uma nova
como pensador científicos\ mas permitiram que formulasse espécie de metafísicos, procurando retratar a real natureza
das coisas em termos matemáticos, como os pitagóricos e
platônicos na AntiguidadeH,
'" Gasscndi, "Ad Lib~um D. Edoardi Hcrbcrti Angli, De Veritatc, Epistola", em
Opera, vol. III, pag. 413. Ver também Sortais, Le l'hilosophie Modeme, H,
pags. 254-255.
5
' Gassendi, Objectimws Quilrtae, em Descartes, Oeuvres, A.T., tomo VII especi- "Rochot, "Gassendi, Sa Place", págs. 35-45.
almente pãgs. 1..57-258 e 277-279; Gasscndi, Disquisitio metaphy;ica seu ,. Portanto, Gasscndi insistiu em um atomismo qualitativo e não matemático, con-
Dubitationes, et lustamiae adversus Re1wti Cartesii Metaphysicam et Respoma, cebendo os átomos como tendo propriedades do tipo das encontradas na experi-
em Opera, vol. III, csp.págs. 1..78-284 c 314-317; c Syntagma, Logica, livro I, ência comum, c não qualidades precisas, abstratas, geométricas. Cf. Rochot,
cap.xi e li_vro li, cap.vi em Opera, vol. I, págs. 65-66 c 90. Ver também Rochot, Travaux de Gasscudi, págs. 196 c seguintes. Ver também a discussão de Koyré,
{ "Gassendt et la Logique de Descartes" em Revue Philos. De la France et /'Etranger, Rochot e Lenoblc sobre o atomismo de Gassendi no volume Pierre Gassendi do
.i'; ano LXXX, 1955, págs. J00-308. Centre lnternational de Symhi:se.
,,
·I;
'' Cf. Koyré, "Le Savant", págs. 6o-6l; e Rochot, "Gassendi, sa placc dans la -'-' Rochot, "Gassendi ct \e Syntagma", pág. 77; Travaux de Gasseudi, p~g. 196; e
I! pensée du XVII Cmc sil:de", em Revue de Symhi!se, LX, 1940-1945, págs. 35- "Le Philosophc", pág. 87. (Uma versão em inglês de parte deste matcnal apare-
45, "Le Philosophc", pãgs. ro2-1o7; e Bloch, pãgs. 279~282 e 485-495· ce em Brush, Se/ected \Vritings of Gassendi, págs. 157-278.)
'i'·•
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'33
Porém, sejam quais forem suas limitações, Gassendi, aceitou a crítica cética da filosofia tradicional como válida,
talvez mais do que Mersenne, realizou uma das mais impor- mas considerou suas conclusões excessivas. O caminho in-
tantes revoluções do período moderno, a separação entre a termediário, l'indifférence ou la médiocrité é encontrado atra-
ciência e a metafísica. Construindo sua nova ;visão com base vés de um tipo de auto-análise, ao percebermos que nos en-
em um pirronismo completo em relação a qu~lquer conheci- contramos a meio caminho entre a ignorância dos brutos e a
mento da realidade ou da natureza das coisas, foi capaz de sabedoria dos anjoss8 • Através de um tipo de preparação es-
desenvolver um método, um sistema de ciências, o qual, den- piritual desenvolvemos um critério para ,discernir as verda-
tre todos os do século XVII, é o que mais se aproxima da des intelectuais das religiosas 59 • Assim, embora admitindo a
visão antimetafísica dos positivistas e pragmáticos. Rochot, solidez do bloqueio pirrônico, Du Bosc insistia em um cami-
em seus muitos estudos sobre o atomismo de Gassendi, e seu nho para um conhecimento positivo e importante especial-
lugar na história do pensamento científico e filosófico, mos- mente nos campos da teologia e da moral. Este tipo de ceti-
tra sua importância como um elo entre Galileu e Newton, ao cismo mitigado tem sido analisado recentemente por Julien-
passar de uma concepção da "nova ciência"como um retrato Eymard d' Angers como antecipando a filosofia de Blaise
verdadeiro da natureza para uma concepção em que é vista Pascalõo.
como um sistema hipotético baseado apenas na experiência, Uma outra indicação da aceitação de argumentos
uma concepção segundo a qual a ciência nunca é pensada pirrônicos juntamente com uma solução construtiva se encon-
como um caminho para a verdade sobre a realidade, mas tra nos escritos do teólogo liberal inglês William-Chillingworth,
apenas sobre as aparênciass 6 • Depois de ter dominado por completo a mensagem de Sexto
A atitude de ceticismo mitigado ou construtivo de Empírico, e de ter visto como o raciocínio cético minava a busca
Mersenne e Gassendi também aparece de uma forma mais da certeza tanto para católicos quanto para protestantes, ele
embrionária em alguns de seus contemporâneos. O escritor retornou ao rebanho protestante e procurou justificar a sua
franciscano Jacques Du Bosc, que foi aparentemente, em um posição em termos de um tipo de probabilismo baseado na
determinado momento, um seguidor dos nouveaux aceitação em última análise do pirronismo. Esta visão mode-
Pyrrhoniens, considerou o ceticismo digno de admiração rada em relação ao conhecimento religioso, de certa forma
como antídoto ao dogmatismo, mas como filosofia conside- parecida com a de Castellio, iria ter um papel importante no
rou-o tão perigoso quanto o dogmatismo que atacava. O que desenvolvimento da base filosófica quase empírica de vários
era necessário era uma posição intermediária que ele deno- teólogos anglicanos, como Wilkins e Tillotson.
minava l'indifférence. O pirrônico "ao fugir do demasiado, Chillingworth percebeu que os católicos exigiam um
caiu no muito pouco, ao fugir do encantamento pelo conhe- tipo de certeza, um conhecimento infalível, como base para
cimento, caiu no encantamento pela ignorância" 57. DuBosc a religião, e que este tipo de certeza era inalcançável não só
nesta área, mas tampouco em qualquer outra, Mas, uma vez
-'"Ver especialmente Rochot, "Gassendi et lc Syntagma", págs. 73 e seguintes c que isto tinha sido reconhecido, a conclusão não deveria ser
"Le l'hilosuphe", págs. l02·l07.
' 7 jacqucs Du llosc, te Phi/osophie indifférent, 2 vols., Paris, 1643, 2' parte, págs. uma dúvida completa sobre todos os assuntos, mas, ao con-
1, 124. Ver também C. Chcsncau Oulicn-Eymard d'Angcrs), "Un Prccurscur de trário, a aceitação de um grau menor de evidência, a certeza
Pascal? Le Franciscainjacques Du Bosc", em XVllhne Sii!clc, nº 15, 1952, págs.
p.6·448, no qual os pontos de vista deDu Bosc são discutidos c muitas citações,
incluindo esta, são feitas. De acordo com a Sorberiana oules peusécs critiques de "Julien-Eymard d'Angers, "Jacques Du lloscH, págs. 429-436.
M. De Sorbiere, reweillics par M.Gravcrol, Paris, 1695, verbete "Bosc", págs. : lb~d., págs. 436-444, especi:J.lmcntc as citações nas págs. 443-444.
55-56, Du Bosc foi um amigo íntimo do 110twca11 Pyrrhonicu Samuel SorbiCre. lbtd., págs. 445-448.

'34 '35
moral. Nossos sentidos podem às vezes nos enganar, nosso O ccttctsmo mitigado ou construtivo representa um
raciocínio pode às vezes ser falho, nosso juízo pode não ser novo caminho, possivelmente o mais próximo dos métodos
infalível, e podemos até não ser capa;zes de encontrar uma pragmático e empírico contemporâneos, de tratamento do
base demonstrativa para o que conhecemos, mas mesmo as- abismo da dúvida que a crise da Reforma e a revolução cien-
sim temos garantias suficientes para utilizar as informações tífica tinham aberto. {Era uma novidade nesta época, embo-
de que dispomos para formular juízos razoáveis e moralmente ra traga ecos óbvios de algumas atitudes de pensadores gre-
certos6 '. Aquele que quiser ter mais certeza do que isto é um gos como Carnéades.) Para alguns, a era de Montaignc e de
tolo. "Pois é um mestre pouco razoável aquele que requer Lutero e Calvino tinha dado início a uma busca da certeza, a
um assentimento mais forte para suas conclusões do que busca de um fundamento absolutamente certo para o conhe-
merecem seus argumentos; portanto considero um estudioso cimento humano. Para outros, a busca era apenas de estabi-
presunçoso e indisciplinado aquele que deseja argumentos lidade, de um modo de vida, uma vez que a busca de funda-
mais fortes para sua conclusão do que é adequado ao seu mentos infalíveis para o conhecimento tinha sido abandona-
assunto. " 61 Uma vez que se tenha reconhecido que não há da, e de um modo de vida que pudesse aceitar tanto as dúvi-
certeza matemática ou infalível a ser obtida em relação ao das irrespondíveis dos nouveaux Pyrrhoniens, quanto as des-
conhecimento científico ou religioso, então não se deve sus- cobertas inquestionáveis do novo mundo intelectual do sé-
pender o juízo, mas ao contrário, deve-se julgar os proble- culo XVII. Mcrsenne e Gassendi tentaram reconciliar o tri-
mas de acordo com o grau de certeza que se puder obter. unfo dos céticos contra os dogmáticos com o triunfo do
Esta teoria de Chillingworth contém a semente de uma longa mecanicismo contra o aristotelismo c o naturalismo do
tradição que irá se desenvolver mais tarde na Inglaterra do Renascimento. Encontraram esta reconciliação não em um
século XVII como a solução prática, do senso comum, para novo dogmatismo, ou em uma metafísica materialista, mas
a crise cética6>, no reconhecimento de que as dúyidas propostas pelos
pirrônicos de modo algum afetavam la vérité des sciences,
'' William Chillingworth, The Religiou o{ the l'rotesta!l/s. A Safe \Vay to Salvatiou,
desde que as ciências fossem interpretadas como sistemas hi-
em Tbe \Vorks of \Vi/liam Cl!illingwortb, Londres, 1704, pág. 108. "Pois meus potéticos sobre as aparências, e não como descrições verda-
sentidos podem algumas vezes me enganar, ainda assim cu estou suficientemente deiras da realidade, como guias práticos para a ação c não
certo de que vejo o que vejo, c de que sinto o que sinto. Nossos juízes não são
infalíveis em seu julgamento, no entanto estão suficientemente certos de que como informação última sobre a verdadeira natureza das
julgam corretamente e que procedem de acordo com a evidência apresentada, coisas. Se a crise pyrrhonienne não poderia ser fundamental-
quando condenam um assas'>ino ou um ladrão à forca. Um viajante nem sempre
tem certeza de seu caminho, mas freqüentemente se engana: e deve-se seguir mente resolvida, pelo menos poderia ser ignorada, ou se po-
disto que ele não pode ter certeza de que Charing-Cross está à sua direita na deria conviver com ela, se se pudesse relegar a dúvida aos
direção a Templc c Whitchall1"
'' Ibid., prefácio, pág. :z.. problemas da filosofia dogmática, ao mesmo tempo que se
'' 1 Há muita semelhança com a visão de Chillingworth em The Rufe of 1:-"ait/J de continuaria a seguir o conhecimento científico como guia para
John Tillotson, em Of The Principies aud Duties of Natural Religion de John
Wilkins, c nos Essays ou Seueral Important Subjects iu Phi/osophy and Religion
a vida prática. A crise fJyrrhonienne teria conseqüências de-
dejoseph Glanvill. O livro do prof. Henry Van I.ccuwen, The Problem o{Certaillty sastrosas se aceitassem as conclusões dos humanistas céticos
in Euglisl! Thought, 1630-1680, Haia, t963, trata em grande detalhe do desen- destrutivos, estendendo-se as dúvidas à ciência e mesmo à
volvimento e influência da teoria de Chillingworth. O impacto desta visão na
teoria jurídica inglesa é discutido em Thcodorc Waldman, "The Origin of thc religião. Mas poderia ter resultados benéficos se fosse restri-
Concept o f Rcasonable Doubt", em ]ou mal o f the History o{ /deas, XX, 1959, ta à esfera epistemológica como um meio de se eliminar a
págs. 299·316, c em Robert Todd Carroli, TI! e Fhilosophy o{Bishop Sti/lingf/eet
Íll its Seuentee11th Century Coutext, Haia, 1975. busca infrutífera dos dogmáticos pela certeza absoluta, ao

,,, '37
..
~r"
.' ..

mesmo tempo deixando-se o cientista e o teólogo livres para dores, deixando-os apenas com dúvidas acerca da busca
' descobrir verdades sobre as aparências. aristotélica da certeza, e não acercá da busca ela própria.
Esta atitude do ceticismo construtivo ou mitigado se Descartes criticou Galileu por ter sido demasiado mo-
encontra em um contraste direto tanto com a nova visão desto em suas afirmações e por não ter visto que as verdades
metafísica de alguns dos "novos cientistas" como Galileu, da nova ciência baseavam-se em um fundamento metafísico
Campanella e Descartes, quanto com a atitude científica que certo que garantia sua aplicabilidade à realidade, e que for-
'' se desenvolveria no Iluminismo. Embora Galileu, Campanella neciam uma segurança completa que separa estas descober-
e Descartes ocasionalmente afirmassem, por razões táticas, tas da opinião ou da informação provável. Segundo Descar-
que suas teorias eram apenas hipotéticas64, e que havia um tes comentava,
nível de conhecimento sobre essências que o homem jamais
poderia atingir 6s, ao mesmo tempo eles pareciam comparti- Concordo inteiramente com ele quanto a isso, c man-
lhar a convicção de que o homem é capaz de alcançar o ver- tenho que não há nenhum outro meio para se encon-
dadeiro conhecimento sobre o mundo real, e que a visão trar a verdade. Mas me parece que lhe falta muito na
mecanicista do universo é uma descrição precisa de como a medida em que constantemente faz digressões e não
natureza opera. Na visão de Galileu e Campanella, Deus nos se detém para explicar um assunto de modo comple-
deu as faculdades necessárias para obter o conhecimento da to; o que revela não ter examinado as coisas de um
natureza das coisas. Entretanto, nosso conhecimento é ape- modo ordenado, e que sem ter considerado a causa
nas parcial, ao contrário de Seu conhecimento completo. primária da natureza, procurou apenas as razões para
Apesar disso, não temos motivo para questionar ou duvidar determinados efeitos particulares, construindo portan-
I
do que conhecem9s, e não há razão para restringirmos nosso to sem fundamentos. P~rém, é exatamente na medida
.·I!
conhecimento apenas a aparências sem alcançar a realida~ em que sua filosofia está mais próxima da verdade,
'
i I,
de 66• A crise cética parece ter passado ao largo destes pensa- que se pode reconhecer mais claramente as suas fa-
''
I! lhas, assim como se pode verificar mais facilmente
'4 Cf. Thomas Campaoella, The De{euse o( Galileo, Matl!ematician o( Floreuce, quando se perdem as pessoas que geralmente seguem
·! traduzido por Grant McColley, em Smitb College Studies in History, XXII,
nº" 3-4, 1937, pág. 70; e Galileo Galilei, Dw/ogo sopra i due massimi Sistemi de/
o caminho certo, do que quando se perdem aquelas
que nunca sequer entraram neste caminho,é?
Mtmdo em Le Opere de Galileo Galilei. Edizione Nazionalc, vol.VII, Florcn~a,
1933, Giomata Prima, pág. 127 e Giornata Quarta, págs. 487-488; c na cdi~ão
em inglês, Galileo Galilei, Dialogue on t/;e Great \Vorld Systems, ed. por Giorgio No caso destes três pensadores, Galileu, Campanella e Des-
de Santillana, Chicago, 1935, Primeiro Dia, págs. 112-113 c Quarto Dia, págs.
470•471. cartes, embora possa haver alguma discordância entre eles
"'James Collins em sua A Htstory o( Modem Europeml I'l!ilosophy, Milwaukce, acerca dos fundamentos das verdades da "nova ciência", não
1954, pág. 82, cita Galileu como tendo afinnado que nós não podemos penetrar
na "verdadeira e intrínseca essência das substâncias naturais". Ver também há dúvida de que a "nova ciência" é verdadeira, e verdadeira
Campanella, op. cit., pág. 21; e Descartes, Meditations, em Oeuvres, A. T., em relação à real natureza do mundo físico. Não há aí ne-
tomo IX, Med. IV, pág. 44·
"'Campaoella, op.cit, págs.r8, 24-25,30 c 32; Galileu, Massimi Sistemi, Giomata nhum tipo de pirronismo epistemológico, mas sim um tipo
Prima, págs. 128-129 (edição em inglês, First Day, pág.n4). Ver também os de realismo. A ciência não é o resultado construtivo da dúvi-
comentários sobre esta passagem de Galileu em Edwin A. Burtt, The Meraphysical
Foundations o( Modem l'hysical Science, cd.Anchor, Nova Iorque, 1955, págs.
8:.:.-83; c a excelente discussão de Leonard Olschki em seu "Galilco's Philosophy "D~scartcs, carta a Mcrscnne, 11 de outubro de 1638, em Oeuvres, A. T., tomo li,
o f Science", em Philosophica/ Ret.riew, LI!, 1943, págs. 349-365, esp. pág. 358, pag. 3So.
onde discute por que Galilcu não pode ser considerado um cético.

'39
da completa, mas um tipo de conhecimento que não está se deu até que tentativas fossem feitas para dar um fim à crise
aberto ao questionamento, seja a nível teórico, ou filosófico. pyrrhonienne, erigindo-se um novo fundame~t.o intelectual
Um século mais tarde um tipo de visão filosófica iria para a certeza humana. Por algum tempo os cettcos constru-
prevalecer também fora da via media do ceticismo mitigado tivos foram relegados ao segundo plano, enquanto um novo
ou construtivo. O cientificismo de várias figuras do Ilumi- drama metafísico se desenrolava no centro do palco, enquanto
. nismo como Condillac e Condorcet iria considerar o novos sistemas eram propostos como resposta ao desafio
pirronismo apenas como um tipo de douta ignorância que cético. Depois que sistemas como os de Herbert de Cherbury,
poderia justificar-se nos tempos obscurantistas e metafísicos Jean de Silhon e Renê Descartes tiveram o mesmo destino ~ue
do inicio do século XVII, mas que não tinha lugar na era: os anteriores, então o ceticismo construtivo pôde ser absorvtdo
esclarecida do século XVIII. Os motivos para se duvidar ti- pela corrente principal do pensamento filosófico.
nham agora, supostamente, caído no esquecimento, uma vez
que o progresso da ciência tinha revelado o mundo verdadei-
..' ro, real 68 •
Mas como Mersenne e Gassendi tinham percebido, as
realizações da ciência em nenhum sentido refutavam o
pirronismo, a menos que o cético fosse tolo, ou ímpio bastante
para duvidar das descobertas científicas, como duvidava de
seus fundamentos. Estes últimos estavam sujeitos a questio-
namento, e tinham sido minados pelos ataques do nouveau
Pyrrhonisme, mas as primeiras eram tão convincentes e
confiáveis quanto possível. A verdade das ciências não esta-
va em questão, mas esta verdade, para o cético mitigado, só
poderia ser apreciada em termos da crise pyrrhonienne, e não
como uma resposta filosófica e racional a ela.
O sucesso do ceticismo construtivo como núcleo da
visão moderna, pragmática e empírica, o reconhecimento de
que fundamentos absolutamente certos não poderiam ser
estabelecidos para nosso conhecimento, e que ainda assim
possuímos padrões para a avaliação da confiabilidade e da
aplicabilidade de nossas descobertas sobfe o mundo, teve de
esperar pelo surgimento c queda de um novo dogmatismo.
Embora em sua época Mersenne e Gassendi tivessem sido
amplamente lidos e recebido grande aprovação, a aceitação de
seu tipo de visão filosófica como concepção predominante não

"' Ao menos era o que afirmavam pessoas como Condillac, Condorect, Hartley c
Henry Home (Lord Kames).
~· ,_

'

.•
VIII. Herbert de Cherbury e Jean de Silhon
Nem Herbert de Cherbury nem Jean de Silhon foram
.l
:j- capazes de avaliar adequadamente a extensão em que o
,:;,.~ '"" ' nouveau Pyrrhonisme havia minado os fundamentos do co-
' nhecimento humano. Mas ambos perceberam que deviam
enfrentá-lo e de uma maneira nova. O primeiro propôs um
método elaborado para se descobrir a verdade; e o segundo
procurou apresentar algumas verdades fundamentais que não
pudessem ser postas em dúvida. E, como o principal adver-
sário do ceticismo, Renê Descartes, percebeu, ambos falha-
ram em um sentido crucial, pois não compreenderam o pro-
,! blema básico em questão.
'
Edward, Lord Herbert de Cherbury (1583-1648), foi
' embaixador na França de 1618 a 1624 1, quando entrou em
i contato tanto com a corrente de idéias céticas, quanto com
I' as tentativas de refutá-la. É possível que nesta época tenha
também conhecido Mersenne, que supõe-se ter sido o tradu-
'•' I' tor de seu livro para o francês 2 , e Gassendi, a quem sabemos
j: que presenteou com um exemplar de sua obra 3 • Foi também
iil
\11
amigo do diplomata Diodari, que era membro da Tétrade, a
sociedade dos libertins érudits. Enquanto se encontrava em
'' Paris, Herbert mostrou seu manuscrito a Grotius, que tinha
familiaridade com a obra de Sexto Empírico4 • Finalmente,
I em 1624, depois de anos de trabalho em sua obra-prima (que

i. 1
Edward, Lord Hcrbcn de Cherbury, De Veritare, trad. por Mcyrick H.Carré,
Bristol, 1937, imrod.por Carré, págs.10-11. O melhor ~studo sobre Herbert de
Cherbury é o de Mario Rossi, La Vita, /e oj1cre, i tempi di Edoardo Herhert di
! Chirbury, 3 vols., Florença, 1947.
I l Cf. Lenablc, Mersemte, págs. 561-563.
J Gassendi, carta a Elie Diodati, 29 de agosto de 1634, em Merscnnc,

I Corres{'o>Jdm1Ce, IV, págs. 335-340, e carta a Herbert de Cherbury, em Gasscndi,


ÜfJera, III, págs. 411-419.
Hugo Grotius refere-se a Sexto em De Jure Bel/i ac Pacis, trad.Franci~ W. Kdscy,
4

Oxford, 1925, livro I, xii, pág. 42, livro 11, vii, pág. 233, c xxvii, pJg. 256.
Herberr em sua Autobiogra/Jhy, cd. Sidney Lee, 2a. ed., Londres, s.d., pág. !3.3,
menciona ter mostrado o manuscrito do De Vcritatc a Grotiu> c Tilcnus. Há
uma nova cdiçi\o da Autobiography, editada por J.M.Shutrlcworth, Londr~s,

243
tinha sido começada em r6r7, antes de ocupar a embaixada mos nossas verdades subjetivas, as aparências e os conceitos
em Paris), cheio de receio e temor pela maneira como possi- (veritas intellectus). A primeira classe de verdades é absolu-
velmente a obra seria recebida, Herbert teve o que conside- ta; trata-se da coisa tal como é8, e é isto que procuramos
rou um sinal dos céus e publicou o De Veritates. conhecer por meio das três classes de verdades condicionais,
Esta obra começa com um quadro do lamentável esta- aquelas que dizem respeito a quem conhece e não ao objeto
do do saber contemporâneo, o caos das crenças e as muitas ele próprio. Começando com a informação de que dispomos
controvérsias. Há aqueles que dizem que não podemos co- sobre como o objeto aparece para nós, nossa tarefa é encon-
nhecer todas as coisas, e há aqueles que dizem que não pode- trar um padrão ou critério pelo qual podemos determinar
I mos conhecer nada. Herbert insistia que não pertencia a ne- quando nossa informação subjetiva corresponde à verdade
nhuma dessas escolas, mas sim afirmava que algumas coisas da coisa em si mesma. O que conhecemos com base na apa-
podiam ser conhecidas. O que é necessário para que se reco- rência pode ser enganoso ou ilusório enquanto guia para se
nheça e avalie o conhecimento que temos é uma definição de saber como é o objeto. A aparência enquanto tal é sempre
verdade, um critério de verdade, e um método para se encon- genuína; isto é, aparece tal como aparece. Porém não é ne-
trar a verdade, Quando tivermos encontrado tudo isso, não cessariamente uma indicação de qual deve ser a verdade so-
teremos mais paciência com o ceticismo porque entendere- bre a coisa9 • De modo semelhante, os conceitos que forma-
mos que há certas condições sob as quais nossas faculdades mos com base na experiência que temos são inteiramente
são capazes de conhecer os objetos.._, nossos e podem ou não coincidir ou corresponder com as
I' A primeira proposição do De Veritate é enunciada se- coisas das quais são supostamente conceitos. "Se o órgão
'' camente, "A verdade existe". Herbert nos diz: "O''lÍnico pro- sensorial é imperfeito, ou se é de qualidade fraca, se a mente
pósito desta proposição é afirmar a existência da verdade está cheia de preconceitos enganosos, o conceito estará intei-
contra os imbecis e os céticos"7. Tendo marcado sua posição ramente viciado' 0 " _Portanto, a última classe de verdades, as
contra a mensagem dos nouveaux Pyrrhoniens, Herbert pros- verdades do intelecto, é necessária de modo a "decidirmos
segue mostrando o que é a verdade e como pode ser obtida. em virtude de suas capacidades inatas ou de suas noções co-
Há quatro tipos de verdades, a verdade das coisas como são muns se as faculdades subjetivas exerceram adequadamente
em si mesmas (veritas rei), a verdade das coisas tais como suas percepções ou não."''
aparecem para nós (veritas apparentiae), e por fim as verda- Por meio deste padrão ou critério podemos julgar se
des intelectuais, as noções comuns por meio das quais julga- há uma conformidade entre a verdade da coisa e as verdades
subjetivas das aparências e dos conceitos, e, portanto, se pos-
suímos conhecimento objetivo.
1976.
J Hcrbert, Autobiography, ed. Lce, págs. IJJ-134 e De Veritate, introdução, pág. De uma maneira bastante laboriosa, Herbert procede
n. então ao detalhamento, passo a passo, do método para se
• He.rbert, De Veritate, pâgs. 75-80. "Aqueles então que duvidam de todas as ques-
tões, chegando a afirmar que é impossível conhecer qualquer coisa, não conse- chegar às diferentes classes de verdades subjetivas ou condi-
guem entender as condições sob as quais nossas faculdades podem vir a cionais, para se reconhecer as noções comuns ou o critério
corresponder com os objetos."
7
lbid., pág. 83. Na edição francesa, De La Verité(sem local de publicação, 1639},
pág. r o, esta sentença se encontra da seguinte forma: "Não tenho outra intenção • Hcrbert, De Ventare, cd. Carré, pág. 84.
com esta proposição senão dizer que a verdade existe, contra a impertinência e • Ibid., pág. 84.
toli~e dos céticos." O texto latino é o seguime, "Ex propositiune ista quae con- 10
lbid., pág. 86.
tra tnsanos & Scepticos instituitur", De Veritate (sem local, r6s6}, pág. 9· "Ibid., pág. 86.

244 245
r
para avaliar se as verdades subjetivas correspondem à verda- defeito em nossos órgãos sensoriais e em nossa razão, tais
de das coisas, e por último para aplicar todo este mecanismo como a icterícia que influencia nossa percepção das cores ou
à busca da verdade. Uma vez que a cada nível há dificulda- a embriaguez que influencia nossos conceitos das coisas'4,
des que foram levantadas pelos céticos, uma formulação cui- Herbert mantém que quando as condições relativas às
dadosa deve ser feita das condições para se estabelecer cada aparências verdadeiras e aos conceitos verdadeiros são satis-
classe de verdade. Herbert inicialmente apresentou quatro feitas, estamos então preparados para obter verdades intelec-
condições que o objeto deve satisfazer para ser cognoscível, tuais inquestionadas. A aparência corresponde ao objeto, ou
i
!: apresentando algumas delas como noções comuns, univer- está em conformidade com ele, e o conceito corresponde à
salmente admitidas, ou verdades inatas. Estas condições es- aparência, ou está em conformidade com ela. Então o intelecto
I
I pecificam que o que pode ser conhecido deve estar no nível pode chegar ao conhecimento verdadeiro sobre o objeto ao
de nossas capacidades ou faculdades, e ter características que julgar que o conceito se relaciona à coisa ela própria. "É
possam ser acessíveis a elas. Então, de modo a que a aparên- importante nos darmos conta de que o intelecto nunca é en-
cia do objeto possa estar em conformidade com o objeto, ganado quando um objeto real está presente, ou quando as
uma nova série de condições é estabelecida, em grande parte verdadeiras regras de conformidade são aplicadas ... quando
seguindo a análise de Aristóteles dos meios para se obter per- um objeto real está presente, mesmo que seja baseado na me-
cepções verdadeiras. Regras são apresentadas especificando mória, e as condições verdadeiras estão satisfeitas, eu mante-
quando o objeto se encontra em circunstâncias tais que po- nho que o intelecto afirma a verdade, mesmo em sonhos."'s
demos obter uma imagem ou aparência adequada dele. Mui- A base para esta grande certeza de que algo pode ser
tos dos casos de percepção enganosa ou ilusória apresenta- conhecido sobre o mundo real é a teoria das noções comuns.
dos pelos céticos podem ser explicados devido à ausência de Nossas faculdades dos sentidos e da razão sozinhas, não im-
uma ou mais destas condições'n, porta quão bem estejam operando, seriam insuficientes para
Quando um objeto adequado de conhecimento é perce- garantir-nos qualquer verdade sobre os objetos, uma vez que
bido sob estas condições de tal forma que uma aparência por meio destas faculdades sozinhas jamais teríamos condi-
verdadeira pode ser obtida, então somos capazes, sob condi- ções de dizer se não nos encontramos diante da dificuldade
'I ções determináveis, de obter um verdadeiro conceito da coi- descrita pelos céticos, vivendo em um universo mental ilusó-
sa. A aparência, presumivelmente, se encontra "em uma con- rio, ou pelo menos em um universo cuja objetividade jamais
formidade externa precisa com o seu original"'l, e o que é poderíamos determinar, ou se nos encontramos de posse de
necessário agora é um meio para decidir quando uma idéia alguma verdade sobre o mundo. A ponte entre o mundo que
interna do objeto corresponde exatamente à aparência verda- nos é revelado por nossas faculdades subjetivas e o mundo
deira. Outras concepções de Aristóteles são apresentadas di- real são as noções comuns, que nos permitem julgar a veraci-
zendo respeito às condições adequadas para os órgãos senso- dade de nosso retrato do mundo. É por meio destas verdades
riais, e ao método adequado para a formação de conceitos. inatas que "nossas mentes são capazes de decisões acerca
,.' Isto eliminaria as dificuldades levantadas pelos céticos com dos eventos que têm lugar no teatro do mundo". É apenas
base nas idéias que formamos das coisas quando há algum devido a seu auxílio que o intelecto "pode ser levado a deci-

"Ibid., págs. 90-100. '• lbid., págs. 102-104.


,, Jbid., pág. lO I. '·' Ibid., pág. 101.

'47
dir se nossas faculdades subjetivas têm conhecimento preci- V árias passagens sugerem que o esquema de Herbert
so dos fatos". E é ao empregá-las que somos capazes de dis- para se descobrir estas verdades que são universalmente acei-
tinguir a verdade da falsidade' 6 • tas é a simples inspeção empírica. Para encontrar a noção
Onde se encontram estes tesouros, as noções comuns? comum da lei, nos é dito, devemos investigar e descobrir as
"Verdades do intelecto, então, são determinadas noções co- leis "que são aprovadas por todo mundo"u. Alguns casos
muns que se encontram em todas as pessoas normais; noções que Locke levantaria contra a teoria de Herbert são anteci-
essas que são, por assim dizer, constituintes de todos e são pados e tratados aqui. Idiotas e loucos não precisam ser exa-
derivadas da sabedoria universal e estão impressas na alma minados, uma vez que as noções comuns são encontradas
pelos ditames da natureza ela própria." '7 O que não é conhe- apenas em pessoas normais. (Isto, é claro, cria um problema
cido por meio do auxílio destas idéias inatas "não pode ser não reconhecido por Herbert, a saber, como decidimos quem
provado, no sentido estrito, verdadeiro"' 8 • Estas verdades é normal? Se for através do consentimento que alguém dá a
fundamentais do intelecto não podem ser negadas exceto por uma noção comum, então como podemos estabelecer estas
loucos, idiotas e outros que são incapazes de compreendê- verdades inatas para começar?) De modo semelhante, as cri-
las. Se somos lúcidos, devemos aceitá-las, exceto se preferi- anças e embriões são eliminados deste exame, porque são
mos ficar para sempre na incerteza'9, O primeiro e mais bá- regulados de modo inconsciente por Beusz3 • Mas, através do
sico teste para se saber se uma determinada proposição con- exame de pessoas normais e maduras em toda parte, desco-
siste em uma destas indubitáveis noções comuns é se ela en- brimos que há algumas idéias que são compartilhadas por
volve ou não um consenso universal. Se este for o caso, então todos, tais como que existe uma causa primeira ou um pro-
nada pode nos convencer de sua falsidade. A menos que esta pósito para o mundo"'. Por que temos estas noções comuns
norma seja aceita, não haverá estabilidade na atual turbu- não podemos dizer, assim como não podemos explicar por
I lência de opiniões em conflito na ciência e na religião. "A que temos as experiências sensíveis que temos. Tudo que
I
'I infeliz massa aterrorizada não terá refúgio, a menos que al- podemos observar é que as temos e que são universais. "Qual-
'
:i' gum fundamento inabalável da verdade, baseado em um con- quer um que prefira persistente e teimosamente rejeitar estes
.jl
;:I
senso universal, seja estabelecido, ao qual possam recorrer princípios poderia bem tapar os seus ouvidos, fechar os seus
em meio às dúvidas da teologia ou da filosofia."•o Assim, olhos e despir-se de toda a sua humanidade."'5
proclamou Herbert, "Segundo meu ponto de vista, portan- Por meio das noções comuns somos capazes de chegar
to, o consenso universal deve ser considerado o pónto de a uma convicção, a uma certeza matemática, que não pode-
partida e o fim da teologia e da filosofia"''. Deus nos deu ríamos conseguir de outra maneira. Aqueles que tentam ob-
providencialmente todas estas verdades; portanto, elas são ter conhecimento pelos sentidos externos não podem "pene-
confiáveis, bem como são as únicas bases que possuímos para trar além da casca superficial das coisas", e poderiam mes-
obter conhecimento sobre o mundo real.
"Ibid., pág. 121 . Ver também as págs. 129 c 139, onde Hcrbcrt di:.:.: "Porta~w, eu
considero 0 principal critério do instinro natnral como sendo consenso umversal
I ''lbid., págs. 105·106. (deixando de lado pessoas fora de si ou mentalmente incapa~:es)."
17
lbid., pág. Io6. '' lbid., págs.119 e 1:t5. Ver John Lockc, An Essay Coucemi11g H~mau
"Ibid., pág. ns. Uuderstandiltg, em \\7orks of jolm Locke, na.cd., Londres, 18n, voi. I, hvro I,
'• fbid., pág. II6. cap. :.:., págs. 13-3:t.
' 0 lbid., pág. II7. '• Herbert, De Veritate, pág. n6.
"Ibid., pág. u8. '' Ibid., pág. 131.
mo "se alimentar pelas orclhas"~ 6 • Mas nossas idéias inatas, Este novo sistema para se enfrentar a crise pyrrho-
nosso instinto natural, nossas noÇões comuns fornecem uma nienne está obviamente aberto às objeções céticas em pra-
base para se chegar à certeza. Nosso raciocínio lógico e nos- ticamente todos os níveis. Pode ser questionado, o que foi
sa interpretação da experiência como fontes de informação de fato feito, se existem noções comuns, quaisquer princí-
sobre o mundo real têm seus fundamentos nestes princípios pios sobre os quais haja um tal acordo universal. Os ,a~ti­
e estes princípios são tão fundamentais que não se pode du- gos pirrônicos procuraram mostrar que toda crença basxca,
vidar deles sem destruir toda possibilidade de conhecimento. fosse ela em lógica, metafísica, ciência, ética etc., já tinha
Assim, Herbert nos diz, "estas noções exercem uma autori- sido contestada por alguém. Herbert poderia ignorar isto,
dade tão profunda que qualquer um que duvidasse delas per- considerando estes questionadores como loucos. Mas isto
turbaria toda a ordem natural e perderia sua humanidade. apenas levanta um novo problema cético: como podemos
Estes princípios não podem ser discutidos, e enquanto forem decidir quem é louco e quem não o é, sem circularidade em
compreendidos é impossível negá-los"'-7. nosso argumento? Mesmo que se pudesse aceitar a afirma-
Sem irmos muito adiante quanto à solene teoria de ção de que há noções comuns que todos aceitam, ainda
Herbert de Cherbury, podemos vê-la como uma tentativa de assim caberia o ceticismo quanto ao esquema geral de
responder aos problemas do conhecimento levantados pelos Herbert sobre o conhecimento objetivo. Por que deveria
céticos, contendo um elaborado método para estabelecer as aquilo que todos aceitamos ter um papel decisivo na deter-
aparências e _conceitos verdadeiros e precisos, e oferecendo minação de como o mundo realmente é? Mesmo que pu-
as noções comuns como os muito procurados critérios para déssemos estabelecer critérios confiáveis para julgar a pre-
se julgar _a verdade de nossas informações mais confiáveis. cisão dos dados (embora se possa questionar por que os
To das as pessoas normais possuem estes padrões ou regras critérios de Herbert devem ser considerados os corretos), e
da verdade. (Se não tiverem consciência disso, podem mesmo que tivéssemos conceitos precisos (embora mais
encontrá-los todos descritos e sistematizados no De Veritate.) uma vez possamos questionar as afirmações de Herbert a
Portanto, tudo o que se tem a fazer é, em primeiro lugar, ter este respeito), e mesmo que todos concordássemos sobre
certeza de que as condições adequadas para a percepção e a como aplicá-los, o que isto tudo poderia nos revelar sobre
formação de conceitos estão satisfeitas, e, em seguida, em- a natureza das coisas em si mesmas? O apelo de Herbert a
pregar as noções comuns adequadas, obtendo assim um co- nosso sentimento de certeza e a nossa necessidade de acei-
nhecimento que corresponde à coisa ela própria. Portanto, tar este esquema se quisermos ter algum conhecimento real
embora todas as nossas idéias sejam subjetivas, temos um é simplesmente circular. Mesmo se concordássemos com
critério por meio do qual podemos julgar quando têm refe- sua teoria sobre a verdade das aparências, a verdade dos
rência objetiva, e assim podemos descobrir verdades genuí- conceitos, a verdade do intelecto, ainda assim não poderí-
nas. A regra da verdade é garantida por Sua universalidade e amos decidir se pode haver verdades sobre as coisas. E, até
pela convicção de certeza que implanta em nós, bem como que possamos estabelecer isto., como podemos assegurar
pelo fato de que qualquer questionamento deste padrão teria que os procedimentos propostos por Herbert de fato culmi-
a desastrosa conseqüência de destruir a própria possibilida- nam na descoberta de conhecimt:nto genuíno sobre o mun-
de de qualquer conhecimento objetivo. do real?
Embora o antídoto de Herbert de Cherbury contra o
ceticismo tenha aparentemente sido bem recebido em sua

'50
,, '
época~ 8 ,
este foi alvo de críticas devastadoras antes mesmo anularia todos os esforços de Herbert de Cherbury. De acor-
de Locke, por Gassendi e Descartes. O primeiro atacou-o do com o esquema deste, o critério ou padrão de verdade é o
como um dogmatismo indefensável que na verdade fracassa- instinto natural e nossas faculdades interiores (as noções co-
ra em conquistar os céticos, enquanto o último atacou-o por muns), por meio dos quais cada um de nós é capaz de julgar
ser um dogmatismo inadequado que fracassara em refutar o a verdadeira natureza das coisas. Mas, se for assim, como
pirronismo, porque fracassara em enfrentar os problemas fun- poderemos explicar "a grande contrariedade de opiniões en-
damentais em questão. contrada sobre praticamente qualquer assunto"? Cada um
Duas versões das objeções de Gassendi chegaram até está convencido de seu próprio instinto natural e de suas fa-
nós, uma numa carta bastante polida dirigida a Herbert, que culdades interiores. Se usarmos os meios de Herbert para
nunca chegou a ser enviada, levantando algumas questões explicarmos nosso desacordo, cada um de nós declarará que
básicas; e outra, escrita ao amigo comum de ambos, Diodati, 0 outro "não está são nem inteiro", c cada um acreditará
contendo uma irada denúncia. A segunda parece representar nisto com base em suas próprias verdades do intelecto. Por-
a verdadeira opinião de Gassendi sobre o novo sistema filo- tanto chegaremos a um impasse, uma vez que cada um de
sófico proposto por Herbert para enfrentar o desafio cético, nós naturalmente acreditará que está certo e apelará aos
a saber, que este esquema é um labirinto de confusões que mesmos critérios interiores. Não teremos nenhum critério
não chega a nenhum resultado. Primeiro Gassendi expressa para determinar qual a posição verdadeira, pois "quem será
,,!I seu espanto em relação ao fato de que tantas pessoas, inclu- o juiz disto e será capaz de provar que tem o direito de não
I!·
' indo o Papa, tenham elogiado o De Veritate. (Mas, como ser considerado como uma das partes?" 3 '
veremos em breve, Gassendi, em sua carta a Herbert, cumula Enquanto houver discordância sobre praticamente qual-
o autor e seu livro de elogios extravagantes.) A verdade que quer assunto, o mesmo problema cético surgido na Reforma
Herbert pretendia ter descoberto, Gassendi afirma ser desco- contaminará também a filosofia de Herbert. Cada indivíduo
nhecida e incognoscível. Mesmo sem saber exatamente o que poderá encontrar a verdade das coisas subjetivamente, de
é a verdade, podemos perceber que Herbert não a encon- acordo com os padrões que tem dentro de si, mas quem po-
trou, e não respondeu aos céticos. Assim como podemos di- derá julgar a verdade quando houver discordância entre pes-
zer que o rei não está nem em Aix, nem em Marseille, sem soas diferentes c cada um estiver subjetivamente convencido
sabermos definitivamente onde ele está, podemos ver que há daquilo em que crê? Herbert insistia que havia um consenso
algo de errado com o esquema de Herbert mesmo sem ter universal em torno de certas questões básicas, excetuando-se
um contradogmatismo para pôr no seu lugar'9, Tudo o que os idiotas, as crianças etc. Mas então, quem poderá ser o juiz
:i
,,, podemos dizer sobre o novo sistema é que "se trata apenas da sanidade, da saúde mental, da maturidade mental, se as
de um novo tipo de dialética, que pode ter as suas vantagens, partes em conflito todas elas pretendem possuir estas quali-
mas que não nos impede de formular cem outros esquemas dades? Portanto, concluía Gassendi, o esquema de Herbert
de valor semelhantes e talvez até maiores"3°, era incapaz de determinar as verdades da natureza, uma vez
Tendo feito estes comentários, Gassendi formula en- que se baseava em um padrão tão frágil e inconstante como
tão rapidamente uma dificuldade cética que ele acreditava o instinto natural e a convicção interior3' .
"Gassendi relata que o Papa tinha uma alta opinião da obra de Herbert. Ver a
carta de Gassendi a Diodati, em Mersenne, Correspondance, IV, pág. 336.
'" Ibid., págs. 336-337· ,, Jbid., pág. 337·
'" Ibid., pág. 337· "lbid., pág. 338.

'I'r'. '53
,,
k,;
A outra carta de Gassendi, dirigida ao próprio autor, de Gassendi tinha grande simpatia com o objetivo de refutar
desenvolve um tipo semelhante de crítica de uma maneira o ceticismo, e portanto, era mais consciente de seu fracasso.
muito mais elaborada e compreensiva. Diz, com efeito, que Mersenne tinha enviado a Descartes uma cópia do livro de
Herbert não refutou o ceticismo, e que as dificuldades céti- Herbert em r639 e recebera uma discussão detalhada da obra.
cas básicas podem ser levantadas para minar o valor do com- Esta obra, observou Descartes, "trata de uma questão sobre
plexo esquema de Herbert. Depois de elogiar o autor desme- a qual trabalhei durante toda a minha vida", porém, "ele
suradamente, chamando-o de "tesouro da Inglaterra", que segue um caminho bastante diferente do meu". A diferença
haVia surgido para suceder a Francis Bacon, Gassendi mos- básica entre a obra de Descartes e a de Herbert, era que este
:: tra que uma vez que foi feita a distinção cética tradicional último estava tentando descobrir o que é a verdade, enquan-
entre a verdade das coisas em si mesmas e a verdade das to que o primeiro insistia que jamais tinha tido qualquer
aparências, então o esquema de Herbert não nos ajudará nem dúvida ou dificuldade sobre isto, porque a verdade é "uma
um pouco na extensão de nosso conhecimento das aparênci- noção tão transcendentalmente clara que é impossível não
as à realidade. Tudo o que sabemos é como as coisas apare- conhecê-la "34,
cem, que o mel parece doce, e o fogo quente. Tentar ir além O problema fundamental na abordagem de Herbert,
do conhecimento destas aparências demonstra um infeliz tipo segundo Descartes, era que se não soubermos de antemão o
il ' de mente, porque, até agora, só Deus conhece a real natureza que é a verdade não teremos como apreendê-la. Por que de-
' das coisas. Todo o mecanismo do De Veritate não revela a veríamos aceitar as conclusões de Herbert se não estivermos
nós a verdade em sua pureza, mas apenas revela um pouco certos de que são verdadeiras? Se podemos decidir que são
melhor as condições sob as quais nos aparece, as condições verdadeiras, teríamos de poder saber já o que é a verdade
sob as quais podemos obter conhecimento adequado e útil para reconhecermos que o esquema de Herbert no De Veritate
sobre a experiência, mas não as condições sob as quais pode- era de fato um método para se avaliar ou descobrir a verda-
mos descobrir a veritas rei incondicionada. Conforme indica de. O problema levantado é semelhante ao de Platão no
a Diodati, a teoria das noções comuns não resolve de fato Ménon e a uma das críticas contra a ~'via de exame" do
nada, já que, em primeiro lugar, não há consenso universal calvinismo: como podemos encontrar a verdade por meio de
sobre as questões, e, em segundo lugar, não temos padrões um conjunto de operações a menos que saibamos o que
ou critérios para· determinar quais as noções comuns que de- estamos procurando?Js O único conhecimento que podemos
vem ser a medida ou regra da verdade. Portanto, a crise céti- obter nesta área é o do uso de palavras; como o termo 'verité'
ca permanece, e tudo que podemos fazer é procurar as ver- é usado em francês. Mas nenhuma definição nos ajuda a co-
dades das aparências, ignorando o grandioso esquema de nhecer a natureza da verdade. Esta noção, como algumas
Herbert sobre tipos de verdade, condições de verdade, no- outras idéias fundamentais como figura, tamanho, movimen-
ções comuns etc., que não nos ajudaria em avaliar quando to, lugar e tempo, só podem ser conhecidas intuitivamente.
nossas experiências e conceitos se relacionariam ao mundo Quando tentamos defini-las, "nós as obscurecemos e fica-
real, ou corrcsponderiam a eleH. mos confusos". Aquele que anda em um quarto entende
Uma outra, e possivelmente mais incisiva, crítica ao
De Veritate foi feita por Renê Descartes, que diferentemente 1' Rcné Descartes, carta a Merscnnc, r6 de outubro de 1639, em Descartes, Oeuvres,
cd. por Adam-Tanncry, vol. H, págs. 596-597.
" lbid., pág. 597· Compare-se isto com o Mén011 de Platão c os verbetes "Nicolle",
"Carta de Gassendi a Herbert, em Gasscndi, Opera, Ill, págs. 411 e seguintes. Rem. C c "l'cllisson", Rem. D & E no Dictionuaire de Baylc.

,,.
r I
.melhor o que é o movimento do que o que aprende a defini- nantes e nossa natureza animal pode nos levar a crer em todo
ção a partir de um livro-texto. E supostamente a mesma coi- 0 tipo de coisas que não são verdadeiras.
sa se dá com a verdade. Aquele que já experimentou ou co- A resposta de Herbert ao ceticismo foi considerada
nheceu uma verdade pode entender melhor o 'problema do insatisfatória por dois lados diferentes, o ceticismo mitigado
conhecimento do que aquele que estabelece uma série de de- e o dogmatismo completo. Gassendi percebeu que o novo
finições ou procedimentos para descobrir a verdade. Herbert esquema não só não descobria a verdade das coisas, mas le-
possuía muitos instrumentos de medição, mas não podia di- vava a um tipo de ceticismo, já que de fato não havia um
zer o que estavam medindo. Descartes partia de uma visão consenso universal acerca de nada. Descartes considerou que
da verdade e construía sua medida da verdade com base nis- Herbert havia tomado um ponto de partida errado, ofere-
to. Herbert pode ter tido um critério, mas não podia dizer se cendo um critério inadequado. Para derrotar o ceticismo,
era o critério da verdade. Descartes possuía uma verdade 0 precisamos saber o que é a verdade, e não procurá-la por
. ' meio de uma série de procedimentos cuja relação com esta
cogtto, para testar o seu critério36,
Quanto ao critério do próprio Herbert, Descartes con- procura não pode ser determinada. E devemos ter um crité-
siderou-o sujeito a sérias objeções. Hcrbert "tomava o con- rio de verdade que não confunda o verdadeiro, o falso e o
senso universal como regra de suas verdades". Porém, mui- duvidoso.
tas pessoas ("por exemplo, todos os que conhecemos") po- Se Herbert não havia oferecido uma solução satisfatória
dem concordar acerca de algo errôneo, de tal forma que o para a crise pyrrhonienne, outros estavam dispostos a tentar
consenso universal não é um critério confiável. A regra de encontrar esta solução. Dois anos após a publicação do De
verdade de Descartes, a luz natural, é a mesma para todos os Veritate, Jean de Silhon, uma curiosa figura eclética, entrou
em campo. Ele era um dos jovens brilhantes que haviam aju-
homens, e se eles a usarem, concordarão com as me·smas ver-
dades. Mas, uma vez que praticamente ninguém usa sua luz dado Richelieu e Mazarin a construir a nova França, e era
amigo de René Descartes e de Guez de Balzac, e de muitos
., natural, é bem provável que a maioria das coisas sobre as
quais as pessoas estão de acordo sejam duvidosas e errôneas outros que tentavam destruir os monstros que ameaçavam a
'i•.1· religião. A resposta de Silhon ao ceticismo apareceu como
I e que várias verdades que podem ser conhecidas não forarr:
parte de um amplo programa apologético, atacando o inimi-
r11.'' a_inda reconhecidas, nem se pensou nelas37. Além disso, 0 ins-
tinto natural, que Herbert usa como fonte fundamental das go interno, isto é, o ateísmo que se encontrava em ascensão
jl.I, noções comu':s, não é necessariamente um guia confiável que em toda a parte, à sua volta. A resposta apresentada por
fi deva ser segmdo. Esta parte de nossas tendências naturais Silhon é interessante, não só devido a seu lugar na história
derivada de nossa natureza animal ou física pode ser enga- do contra-ataque aos nouveaux Pyrrhoniens, mas também
nosa, sendo que só é confiável o instinto natural derivado da devido a algumas extraordinárias semelhanças com o pensa-
mento de Descartes, bem como por conter algumas idéias
luz natural 38 • Portanto, o critério introduzido por Herbert,
baseado no consenso comum e no instinto natural, pode le- nas quais Pascal pode ter se baseado.
var a resultados infelizes. Os erros universais são predomi- O plano geral da obra de Silhon pode ser entendido
melhor em relação ao movimento apologético da época.
Aqueles que duvidam da verdadeira religião estão em toda
'" ?csc~utcs, carta a Merscrme, 16 de outubro de 1639, Oeuvres, A. T., n, pág.
.197- parte. De modo a defender a fé, não basta indicar que Deus
'7 lbid., págs. 597-5 9 8. exige que tenhamos fé. Precisamos estabelecer primeiro que
'"lbid., pág. 599·
Deus existe e que possuímos uma alma imortal. Mas antes que conhecemos sobre ele sugere que ele fosse contrário à
de podermos chegar a estas verdades básicas, precisamos eli· causa apologética, ou indiferente a ela, mas sim que à sua
minar uma das causas da falta de religião - o ceticismo. Os maneira um tanto tímida, estava tentando conter a maré do
pirrônicos negam a própria possibilidade do conhecimento, ceticismo e da irreligião4'.
portanto, antes que as duas verdades básicas da religião pos- A campanha de Silhon começou em I626 com a publi-
•• sam ser conhecidas, precisamos mostrar primeiro que o co- cação de sua obra Les Deux Veritez, um título que nos lem-
nhecimento em geral é possível, e em seguida que este conhe- bra o de Charron. No começo, em seu Discours Premier,
cimento em particular pode ser alcançado. Assim, o objetivo Silhon atacava a opinião aceita até mesmo por alguns cris-
apologético só pode ser atingido após a rcfutação39 do tãos de que não há ciência sobre nada e de que tudo pode ser
pirronismo de Montaigne4°. posto em dúvida. Os cristãos têm as Escrituras que os infor-
Antes de examinar a resposta de Silhon ao pirronismo, mam que as coisas visíveis podem levar às invisíveis, e que
gostaria de acrescentar algumas palavras, em um parêntese, portanto não devem ser céticos. E os filósofos têm consciên-
acerca da estranha interpretação apresentada pelo famoso cia de "proposições e máximas investidas de tanta clareza e
especialista francês Fortunat Strowski, que acusou Silhon de trazendo em si tanta evidência, que no momento em que são
ser um livre-pensador como Naudé. O único elemento concebidas estamos convencidos delas, sendo impossível ha-
apologético que Strowski pôde perceber foi que Silhon esta- ver um entendimento que possa rejeitá-las" 4 \ Como exem-
va defendendo a política de seu chefe, Richelieu. Strowski plos destas verdades Silhon apresenta: "tudo é, ou não é.
classificou Silhon dentre os piores vilões do período porque, Que tudo que tem um ser o recebe de si mesmo ou de outro
segundo ele, em primeiro lugar, Silhon era um "escritor me- ser. Que 0 todo é maior do que suas partes etc."43 A partir
díocre" (o que embora seja verdadeiro não chega a mostrar destas proposições somos capazes de fazer inferências.
que ele fosse insincero) c em segundo lugar, Silhon erà um O pirrônico, se não está ainda convencido é porque ou
I,.,i plagiário se apossando de idéias das obras não publicadas de bem sabe que não há ciência, e portanto tem uma ciência que
''' Descartes ("Silhon rouba dele desavergonhadamente"). Mas consiste nesta verdade, ou não sabe que não pode haver ciên-
'
mesmo que isto fosse verdade, dificilmente constituiria evi- cia, e portanto não tem motivos para fazer esta afirmação.
dência de libertinage. Além do mais, como veremos, há uma "Quanto a esta cadeia ou série de dúvidas formuladas por
grave dificuldade em se decidir qual dos dois, Silhon ou Des- M. Montaigne em favor do pirronismo, ela consegue o con-
cartes, era responsável por algumas das idéias comuns a trário de seu objetivo, e desejando provar que não há conhe-
ambos. De qualquer forma, nada no texto de Silhon, ou no cimento; de modo a tornar mais humilde a vaidade que isto
freqüentemente nos inspira, torna nosso entendimento ca-
'"Sobre o plano apologético de Silhon em geral ver Erncst Jovy, Pascal et Silho11,
paz de um progresso ao infinito de atos. " 44 O último ponto
f:tudes l'ascaliezmes, II, Pnris, 1927, págs. 9-16; Julien-Eymard d'Angcrs, Pascal formulado por Silhon é semelhante a uma questão de Herbert,
et ses Préwrsems, Paris, 1954, pág. 86; c l'intard, Lzbertinage, págs. 67-68. a saber, 0 apelo ao caráter natural de nossas habilidades de
" Momaignc é sempre o vilão nas discussões de Silhon sobre o ceticismo. Em sua
primeira obra ele também fez alguns comentários maldosos sobre Charron, mas
desculpou-se por isso na errara de seu l_es Deux Vcritcz de Silhon. L' Une de
Dieu, et sa J>rorlidence, L'Amre de l'lmmorta/ité de /'Ame, l'aris, 16.1..6, onde ele ''Sobre a interpretação de Strowski, ver o seu Pascal et son Temps, 3' parte, págs.
diz: "Algumas pessoas respeitáveis acharam errado que eu acusasse Charron um z8z-286.
pouco em minha Introdução à Segunda Verdade, sinto muito por isso, c desejan- "Jean de Silhon, Les.Deux Veritez, pág. 16.
do apenas que ninguém fique ofendido por minha obra, eliminaria a causa disto "lbid., págs. 16-17.
., se estivesse ao meu alcance". C f. Boasc, Fortuncs o{ Montaigne, págs. t6j-J66 . " lbid., pág. 18.

259

'I
raciocínio, nossa inclinação natural a aceitar a racionalidade. era 0 mesmo qite antes; de modo a mostrar que Deus existe e
Assumindo que estas tendências tenham sido implantadas que a alma é imortal, é necessário primeiro mostrar que ?
em nós pela natureza, teriam sido elas implantadas em nós conhecimento é possível. Se duvidamos de nosso conheci-
se não levassem à verdade?45 mento, então podemos duvidar que a Revelação vem de Deus,
Em seu primeiro esforço para derrotar os pirrônicos, e então toda a certeza desapareceria. As dúvidas que os céti-
Silhon errou em muito o alvo, seja através de argumentos cos lançam sobre nosso conhecimento sensível têm grav~s
circulares, seja por perder de vista a questão principal. O conseqüências para um cristão, uma vez que seu co_nhect-
pirrônico não estava questionando que certas proposições mento religioso depende de sinais divinos, como os mtlagres
pareciam verdadeiras, mas sim que tenhamos evidências ade- de Jesus, que são conhecidos através ~os se~tido~49 . Po~tan­
quadas disto. Ele estava tentando evitar a posição afirmativa to, "Se os cristãos que haviam protegtdo o ptrromsmo ttve.s-
de que nada pode ser conhecido, mas pretendia suspender o sem previsto as conseqüências deste erro, não duvido que o
juízo sobre esta questão. E, finalmente, o pirrônico poderia teriam abandonado"so, Mesmo Montaigne, sugere Silhon, não
facilmente questionar o pressuposto de Silhon de que nossas acreditou realmente por completo no pirronismo, mas esta-
faculdades são o resultado de uma natureza benévola, e que va apenas atacando a presunção daqueles que tentavam usar
portanto devemos confiar nelas. a razão em demasia 5 '.
Após este ataque inicial contra o pirronismo, Silhon O ataque ao pirronismo que irá mostrar que "se trata
começou a perceber que seus argumentos podiam não ser de uma visão extravagante, um erro insuportável no raciocí-
muito adequados à tarefa de derrotar o ceticismo, se seus nio comum e contrário à experiência"s• começa com uma
adversários fossem de fato determinados. Portanto, em seu extensa ver~ão do ponto segundo o qual afirmar que não há
segundo livro, de 1634, De ['Immortalité de /'Ame, um ar- ciência de nada é auto-refutar-se. Se sabemos que isto é ver-
gumento muito mais completo e interessante é formulado, dade, então temos algum conhecimento, e se. não o for, por
refletindo talvez seu contato com o jovem René Descartes46 , que devemos assumir a ignorância como medtda ou regra de
ou possivelmente seu contato com alguns pirrônicos contem- todas as coisas? Se a proposição "Não há ciência de nada" é
porâneos como La Mothe Le Vayer47. Depois de roa páginas auto-evidente ou demonstrável, existe ao menos uma ciên-
dedicadas à teoria de Maquiavel de que a doutrina da imor- cia, a saber, aquela que contém este princíp~o verdad_eiro 53 •
talidade da alma é uma invenção motivada por razões políti- Quanto a este ponto, depois de cobrir terreno já exammado,
cas, Silhon, em seu Discours Second, apresenta uma "Refu· Silhon observou que Montaigne não tinha caído nesta arma-
tação do pirronismo e das razões formuladas por Montaigne dilha, uma vez que seu pirronismo era por demais cheio de
para estabelecê-lo" 48 • O propósito em discutir o ceticismo dúvidas e irresoluto para chegar a afirmar sequer que nada
pode ser conhecido. Mas esta defesa, segundo Silhon, levaria
"Ibid., págs. IS·lo.
4
a uma ridícula infinidade de dúvidas sobre se se pode ter
" Sobre a relação de Silhon com Descartes ver Charlcs Adam, Vie & Oeul!res de
Descartes em Descartes. Oe1wres, A. T., Xll, págs. 463n-6n; Lcon Blanchct,
certeza que se deve duvidar que se duvida, e assim por dian-
Les Amécédems historiques du ']e pense, donqe suis', Paris, 192o, págs. H·H·
"Embora seus contemporâneos não sejam mencionados, Silhon, como imp~rta~tc
funcionário do governo, provavelmente conheceu La Mothc Lc Vayer, Naudé e <9 Silhon, I.:lmmortalité, págs. 103-107.
outros. 50
lbid., págs. 107·Io8.
'' Silho~, De I'Immortalité de !'Ame, Paris, 1634, pág. 101. La Mothc Lc Vayer J• lbid., pág. ro8.
tambem escreveu uma obra sobre este tema intitulada Petit Discours Clm:stie11 "lbid., pág. ro8.
de l'lmmortalité de !'Ame. ~' lbid., págs. 109-II2.
te. Qualquer um que tenha senso comum e razão poderá per- alguma verdade e pudéssemos mostrar que os padrões utili-
ceber que se deve ter "um conhecimento certo e infalível de- zados de fato fossem medidas adequadas desta verdade.
finitivamente experimentado" 54 pelo qual se compreende as Depois disto, Silhon passou ao exame do que conside-
coisas de modo evidente e necessário, seja que se conhece rava "o principal argumento de Montaigne", o caráter ilusó-
algo, seja que não se conhece, ou então se tem dúvidas. E, rio de nossos sentidos. Se não há nada no intelecto que não
neste ponto, a defesa de Montaigne terá caído por terra. tenha estado antes nos sentidos, e os sentidos são falhos e
Mas, supondo que o pirronismo seja uma posição ra- enganosos, então todo o nosso raciocínio é incerto. Silhon
zoável, vamos considerar se nossos sentidos e nosso entendi- lista o tipo de evidências apresentadas por Montaigne, as
mento são tão frágeis e falaciosos quanto os céticos preten- ilusões, a loucura, os sonhos, perguntando-se então se
dem. Nós temos, como Silhon manteve previamente em seu Montaigne estava certo5 8 • Se ele estivesse, isto equivaleria a
Deux Veritez, princípios básicos que tão logo se apresentam blasfêmia, uma vez que seria a negação da bondade e compe-
a nosso entendimento, "este os compreende e aceita sem di- tência de nosso Criador. Precisamos acreditar na confiabili-
ficuldades"H, isto é, que tudo é necessário ou contingente, dade de nossos sentidos, "porque a confusão é grande 'de-
que o todo é maior que suas partes etc. Só aqueles que estão mais para se supor que Deus não soube como impedi-la, e
determinados a negar tudo podem negar estas verdades. Os seria por demais injurioso à Sua Bondade e contrário aos
demais podem usar estes princípios como fundamentos para infinitos testemunhos que temos de Seu Amor, pensar que
desenvolver as ciênciass6 • ele não teria desejado isto"s9, A sabedoria e a bondade de
Silhon procede então ao desenvolvimento da última Deus exigem que nossos sentidos sejam precisos. Mas então
parte de sua resposta a partir de seu volume anterior. A na- como podemos explicar os exemplos de Montaigne? Silhon
tureza teria feito um grande erro se tivéssemos este forte im- explica as ilusões como maus usos de nossos sentidos em
pulso para conhecer e o conhecimento fosse impossível. Nos- termos das análises de Aristóteles. Se os sentidos estão funci-
sas artes e ciências para descobrir a verdade seriam supérflu- onando adequadamente e as condições são apropriadas, en-
as se não houvesse verdade. Não podem existir ciências e tão não erram. Ilusões são "casos fortuitos e raros, coisas
artes de coisas impossíveis, e, portanto, se temos ciências e que acontecem acidentalmente à visão e são contrárias à or-
artes elas devem ter objetivos possíveis. O fato de que temos dem que a natureza estabeleceu para seu modo de funcio-
regras lógicas para descobrir verdades e distingui-las de fal- nar"60. A razão e o funcionamento confiável dos sentidos
sidades parece exigir algum conhecimento com base no qual podem eliminar qualquer possibilidade de engano quando
as regras são construídas, assim como o desenho dos mapas percebemos um remo partido etc. O problema dos sonhos
do Novo Mundo pressupõe que tenha sido descoberto57, As- pode também ser facilmente resolvido. Pessoas racionais po-
sim, deste modo circular, Silhon insiste que se temos um cri- dem fazer a distinção entre o sono e a vigília, e portanto não
tério que aceitamos ser verdadeiro, devemos estar de posse há aí nenhuma dificuldade. Quando acordam podem dizer
da verdade; entretanto, ele não percebeu que o critério ainda que sua experiência prévia era parte de um sonho. O mesmo
assim podia ser questionado, a menos que já conhecêssemos se dá acerca das experiências estranhas que ocorrem quando
se está embriagado ou doenté'.
-" Ibid., pág. llJ. "Ibid., pág. 153.
"Jbid., pág. II7. '• fbíd,, pág. I)6.
<• lbid., págs. II?-122. 6o lbid., pág. 167.
17 lbid., págs, l2J-I27. "' Ibid., pãgs. 168-176.
Ao chegar a este ponto Silhon anuncia triunfantemen- des Connoissances Humaines de r66r, após ter tido muitas
te que havia refutado a afirmação de que nosso conhecimen- oportunidades de estudar os escritos de Descartes, Silhon ain-
to é enganoso e incerto. Mas, possivelmente a partir de suas da derivava seu cogito do princípio segundo o qual a ação ou
conversas com Descartes, Silhon percebeu que um cético tei- operação pressupõe a existência, e nem mesmo Deus pode
mosO não estaria convencido desta suposta refutação de fazer agir aquilo que não existé5.
Montaigne. De modo a satisfazer o mais determinado dos Em sua resposta ao ceticismo Silhon parece ter perce-
pirrônicos, Silhon tinha um argumento final, "eis aqui um bido que a verdade ou certeza de nossa própria existência
conhecimento certo, não importa em que sentido seja consi- era significativa, e também que esta verdade poderia ser usa-
derado ou quando seja examinado, e acerca do qual é impos- da para estabelecer a existência de Deus 66 , Mas não enten-
sível que um homem que é capaz de reflexão e razão possa deu por que, ou como, esta certeza crucial refutava o ceticis-
duvidar e não ter certeza" 6 '. Este conhecimento certo consis- mo, e portanto não chegou a dar início à revolução no pen-
te em que cada pessoa pode dizer que é, que tem um ser. ..mento que a publicação de Descartes três anos depois viria
Mesmo que seus sentidos sejam defeituosos e mesmo que a realizar. Ao derivar o cogito de uma máxima metafísica
não possa distinguir alucinações, coisas imaginadas e sonhos que jamais mostra que deve ser verdadeira, ele permite ao
de experiências reais, uma pessoa não pode se enganar ao cético o mesmo tipo de resposta que poderia ser dada a todas
julgar que "é", e acontecer que "não seja " 63, Tendo apresen- as refutações por Silhon do pirronismo; ou seja, como sabe-
tado o que parece ser ou uma antecipação do argumento de mos que as premissas adotadas são verdadeiras, como sabe-
Descartes contra o ceticismo, ou uma apropriação deste ar- mos que as regras da lógica servem de medida para o verda-
gumento, Silhon explica então por que alguém não pode ne- deiro e o falso, que nossas faculdades sensíveis são o produto
gar sua própria existência. A explicação revela que ele não de um criador benévolo, que nossos sentidos são precisos
percebeu realmente a natureza crucial do cogito. Silhon de- dadas determinadas condições, e que tudo que age, existe? A
clara que Deus poderia criar algo a partir do nada, "mas menos que Silhon possa oferecer provas de suas premissas, o
criar aquilo que não existe, agir como se existisse, isto envol- cético pode continuar a formular suas dúvidas. Na melhor
ve uma contradição. É isto que a natureza das coisas não das hipóteses, tudo o que Silhon conseguiu, ao acrescentar o
permite. É isto que é totalmente impossível"f4, cogito, foi destacar o fato curioso (embora esteja quase que
Portanto, de acordo com Silhon, a impossibilidade de perdido na confusão de seu texto) de que parece impossível
negar nossa própria existência não é devida à verdade do •egarmos nossa própria existência. E, se isto tiver que ser
cogito, que é indubitável, mas depende de sua derivação do Imitido, então há ao menos uma coisa que o cético não
princípio metafísico segundo o qual aquilo que .age existe. Se pode questionar 67. Mas foi seu amigo mais reflexivo, Des-
eu pensar que existo e, no entanto, não existir, isto consisti- cartes, que percebeu as imensas implicações do cogito, e cons-
ria em uma contradição da lei metafísica, e aparentemente truiu um novo dogmatismo com base nele.
nem sequer Deus poderia contradizê-la. Até mesmo em sua
última apresentação de seu argumento em De la Certitude

•< Silhon, Le Millistre d'Estat, 3' parte, De la Certit11de des Comwissauces Humaiues,
"Ibid., pág. 178. Amsterdã, r66l, pág. 41. (A l.libliothi:que Nationale também possui urna edição
"' Ibid., págs. r78-179· desta obra de r66l.)
.. Ibid., pág. 179. .. Siihon, Immortalité, pág. r8o; De la Certi/llde, pág. 41 .
"'Sobre o cogito de Silhon, ver Blanchct, Autécédems, págs. 34-37.

'
'!ll' I.
I··''
A teoria positiva do conhecimento de Silhon é bastan- demonstration morale pode entrar em conflito com um co-
te eclética e pouco interessante, exceto por alguns elementos nhecimento que já tenhamos. Se houver informações em con-
que viriam a ter um papel importante na luta contra o flito, não seremos capazes de chegar a nenhuma conclusão.
pirronismo, especialmente na visão de Blaise Pascal. De modo Portanto, uma demonstration morale, embora não seja ab-
a manter que podemos conhecer verdades genuínas, Silhon solutamente certa, produz um tipo de certeza que é suficien-
"' modificou o dito de Aristóteles/ nihil in intellectu ... , defen- temente confiável a ponto de nos dar conhecimento verda-
dendo que a verdade envolve universais, e não particulares deiro, a menos que per impossible, toda a informação dispo-
sensíveis, e que verdades certas e infalíveis podem ser obti- nível a nós fizesse de alguma forma parte de uma conspira-
das sem qualquer informação sensível, já que "nosso enten- ção para nos enganar, "é impossível que a Demonstration
dimento não é tão pobre e estéril quanto alguns crêem" 68 • Physique jamais nos iluda ... e também jamais ocorrerá que a
Há alguns princípios que não necessitam "de nenhuma ou- Morale falhe"7~.
tra iluminação para serem conhecidos"69, e aos quais nin- Qualquer um capaz do discurso racional, que seja livre
guém pode recusar a adesão. Estes princípios podem ser uti- dos preconceitos inculcados pela educação e pelos costumes,
lizados para se obter mais conhecimentos por meio de e que pesar as informações disponíveis cuidadosamente, che-
demonstrations physiques, nas quais as conclusões estão li- ga~á às mesmas conclusões por meio das demonstrations
gadas a certos princípios por "uma tinta indissolúvel", e nas morales. Se, apesar disso, ainda estivermos preocupados quan-
quais as conclusões emanam dos princípios e recebem "a in- to ao fato de que estas demonstrações podem ser convincen-
fluência e a luz de todos os princípios de que dependem" 70 • tes, porém enganosas, devemos nos dar conta que este tipo
Infelizmente, o tipo de certeza que resulta das de conhecimento nos é dado por Deus, em sua sabedoria e
demonstrations physiques é bastante raro, e portanto Silhon bondade, de modo a resolver· a maior parte dos problemas
introduz um grau inferior de certeza, as demonstrations com que nos confrontamos. Questionar a confiabilidade deste
morales, para dar conta da maior parte de nosso conheci- tipo de conhecimento é blasfemar contra Deus e acusá-Lo de
mento. Diferentemente do tipo de conhecimento mais certo, permitir que nossa forma de comportamento mais racional
que não pode ser duvidado, este outro tipo é conclusivo, nos engane nos assuntos mais graves e importantesn. E é por
"porém não de maneira evidente, e nele o entendimento não meio das demonstrations morales que somos levados à reli-
vê suficientemente claro a ponto de não ser capaz de duvidar, gião cristã. Se examinarmos as informações históricas, éticas
ou de assumir uma posição oposta se quiser, e se algum im- e das Escrituras, disponíveis, "após termos considerado to-
pulso o dirigir para isso"7'. O peso de todos os elementos, das estas questões, não há nenhum entendimento que tenha
autoridades e opiniões produz uma convicção na um pouco de bom senso e não seja levado pelas paixões, que
demonstration mora/e, mas nunca produz l'evidence neces- não infira que é apenas a religião cristã que se origina imedi-
sária para se obter certeza completa. Uma vez que este tipo atamente de Deus"74. Os judeus têm preconceitos em dema-
mais fraco de demonstração só é formado depois que toda a sia derivados de sua educação e costumes, os protestantes
informação disponível tiver sido examinada, nenhuma são excessivamente argumentativos e não prestam atenção

''' Silhon, Immortalité, pág. r84.


6
' Ibid. pág. 184.
7' Ibid., págs. 193-194·
1° lbid., pág. 186. 7J Ibid., págs. 195-196.
7' lbid., pág. 189. "Ibid., pág. 204.

!!
às evidências. Mas os que são razoáveis podem perceber que ras. Mesmo as demonstrations physiques poderiam ser ques-
só o cristianismo é apoiado pelas demonstrations morales e tionadas, seja negando-se a auto-evidência dos princípios
que este tipo de demonstração é suficiente para justificar adotados como premissas, seja negando-se que sejam de fato
1
nossas ações até que Deus nos revele a verdade em toda a sua demonstrativas. As demonstrations morales, como seu pró-
firmeza. prio autor admitia, não chegam a ter a certeza necessária
' O último aspecto da teoria positiva de Silhon diz res- para vencer os pirrônicos, a menos que aceitemos a posição
peito ao problema da decisão quando não dispomos de in- de Silhon acerca das fontes de nossas faculdades e da bene-
formação suficiente para construir qualquer tipo de demons- volência divina. E quanto a isso os céticos, antigos e moder-
tração. N assa escolha nestes casos é baseada em algo seme- nos, já haviam levantado dúvidas suficientes acerca das ba-
lhante à aposta de Pascal. Se "Deus existe" e "Deus não exis- ses para se assegurar a origem divina e a garantia de nossas
te" são igualmente duvidosos, o mesmo ocorrendo com "A capacidades sensíveis e racionais. O amigo de Silhon, Renê
alma é imortal" e "A alma não é imortal", devemos escolher DescarteS, evidentemente percebeu o quanto esta tentativa
acreditar na alternativa religiosa, porque, embora não seja de refutar o ceticismo errou o alvo, pois ele tentou responder
capaz de demonstração, não corremos nenhum risco caso à crise cética assumindo não a melhor, mas a pior das alter-
seja falsa. Mas se for verdadeira, há um risco na alternativa nativas, ou seja, que nossas faculdades são corruptas e defi-
não-religiosa75 • cientes, e até mesmo possivelmente organizadas por um de-
Silhon conclui indicando que apesar de podermos não mônion. E Pascal, que aparentemente admirava Silhon o bas-
gostar disso, nós somos constituídos de tal maneira que te- tante a ponto de tomar de empréstimo algumas de suas idéi-
mos muito pouco conhecimento baseado em demonstrations as, percebeu que a possibilidade de refutar o pirronismo de-
physiques, e não podemos mudar isto. Temos de levar nos- pendia da origem de nossa natureza, que poderia ter sido
sas vidas com base nas demonstrations morales, o que faz de criada por Deus, por um demônio ou .pelo acaso. Apenas se
nossas vidas um desafio, uma vez que é apenas por meio de pudéssemos estabelecer a primeira alternativa poderíamos
nossa vontade, que nos faz dar o assentimento, que somos confiar em nossas faculdades, e infelizmente só podemos con-
levados a verdades importantes como a divindade de Jesus, a seguir isto pela fé7 8 •
verdade da religião cristã, c a imortalidade da alma 76 • Mesmo ao apresentar sua importante resposta nova
A resposta de Silhon ao ceticismo é provavelmente ainda ao ceticismo, o cogito, Silhon não chegou a perceber nem a
menos satisfatória do que a de Herbert de Cherbury. Ele re- força daquilo a que se opunha, nem o caráter crucial da ver-
corre repetidamente ou ao fato de que certas coisas devem dade inegável que havia descoberto. Descartes, em duas car-
ser aceitas, ou à afirmação de que levantar dúvidas sobre tas que podem ser sobre o cogito de Silhon, indica o que está
determinadas questões equivale a blasfemar contra a sabe- faltando aí. Ao considerar a sugestão de que nossa existência
doria e a bondade de Deus. Mas o cético poderia facilmente pode ser estabelecida a partir do fato de que respiramos,
questionar as' premissas metafísicas ou os argumentos circu- Descartes insiste que nada além do fato de que pensamos
lares apresentados por Silhon, a menos que Silhon mostrasse pode ser absolutamente certo. Qualquer outra proposição
que as proposições que ele aceitava tinham de ser verdadei- está sujeita a dúvidas sobre a sua verdade79. Mas o cogito,

"Descartes, Meditatious, I, em Oeuvres, A. T., IX, pâgs. q-18.


"lbid., pâgs. n8-:u9. Cf. Jovy, Pascal et Silhou, págs. 39 c seguintes. '" Blaisc Pascal, Peusées, Classiqucs Garoicr, nQ 434, págs. I8J-I84.
'" Silhon, lmmortalité, págs. 2J0-2J:I.. "Descartes, carta a *, março de 1638, Oeuvres, A. T., li, págs. 37-38.
Descartes indicava em uma carta que pode ter sido dirigida IX. Descartes: Conquistador do Ceticismo
ao marquês de Newcastle ou a Silhon, não é uma "realização
de nossa razão, nem uma lição de nossos mestres", mas, ao Em sua resposta às objeções do padre Bourdin, Des-
contrário, "nossa mente a vê, a sente e a toca" 80• Não chega- cartes anunciava ter sido o primeiro a derrubar as dúvidas
,. mos ao cogito com base em outras proposições, que seriam dos céticos'. Mais de um século depois um de seus admira-
todas elas menos certas e sujeitas a dúvidas, mas encontra- dores diria: "Antes de Descartes existiram céticos, mas que
mos a verdade e a força do cogito apenas nele mesmo. Silhon, eram apenas céticos. Descartes ensinou à sua época a arte de
na melhor das hipóteses, percebeu que o cético não poderia fazer com que o ceticismo desse à luz a certeza filosófica"~.
negar o cogito, e portanto não poderia negar que algo era Este retrato do papel de Descartes como um adversário do
verdadeiro. Mas não percebeu o que era verdadeiro ou o que nouveau Pyrrhonisme, e de sua filosofia como um novo
isto poderia mostrar. dogmatismo surgindo do abismo das dúvidas de seus con-
Tanto Herbert de Cherbury quanto Jean Silhon traba- temporâneos céticos, recebeu pouca atenção na vasta litera-
lharam com afinco para construir novas respostas aos tura que trata das origens e características do cartesianismo.
nouveaux Pyrrhoniens. Mas por não terem conseguido per- Embora a interpretação tradicional de Descartes o tenha vis-
ceber totalmente a força da crise cética, não conseguiram to como um inimigo científico da escolástica e da ortodoxia,
tampouco apresentar uma solução satisfatória para ela. O lutando para fundar uma nova era de liberdade intelectual e
esforço heróico para salvar o conhecimento humano seria de aventura, esta posição tem gradualmente dado lugar a
feito pelo grande contemporâneo destes pensadores, Renê uma interpretação mais conservadora de Descartes como al-
Descartes, que percebeu que apenas admitindo a força e o guém que tentou restaurar a visão medieval diante da novi-
impacto do pirronismo total, poderia se preparar para en- dade do Renascimento, e como um pensador que procurou
frentar o sério problema em questão. encontrar uma filosofia adequada à visão cristã de mundo à
luz da revolução científica do século XVW. Pouca atenção
tem sido dada à cruzada intelectual de Descartes face à crise
cética de sua época. Gilson indicou que Descartes tomou de
empréstimo idéias de Montaigne e de Charron; Brunschvicg
mostrou que alguns elementos do pensamento cartesiano
podem ser mais bem entendidos em comparação com os pon-
tos de vista da Apologie de Raimond Sebond4 • Mas, à exce-

I Descartes, ob,ectiones Septimae cum Notis Authoris sitJe Dissertatio de


J>rimaPhilosophia, Oe111Jres, A. T., VII, pág. 550.
' O abade François Para du Phanjas, Théorie des êtres inseusib/es, ou Cours comp/et
de Mérap/Jysique, sacrée et profaue, mise à la portée de tout /e monde, 3 vols.,
ParisJ 1779, I, pág. XX.
Cf. Eticnnc Gilson, Études sur /e rôle de la pe11Sée nuidiétJale daus la formation
du sysreme cartésieu, Paris, 1930( .l), c La liberté cbez Descartes et la théologie,
Paris, 1913; Gouhier, La pcnsée religieuse de Descartes, Paris, 1924, cEssais sur
Descartes, Paris, 1949; Koyré, Essai sur /'idée de Dicu et /es pretll/es de sou
existence chez Descartes, Paris, 1922; e Lenoble, Mersenue, introdução.
0
' Descartes, carta a*, março ou abril de 1648, OeutJres, A. T., V, pág. 138. • Cf. Descartes, Discours de la Méthode, Texte et comrnemaire par Étien11e Gi/so11,
ção dos estudos recentes de Dambska e de Gouhiers, há pou- de ria responder aos argumentos pirrônicos7. E Descartes foi
cos trabalhos tratando da relação entre o pensamento de aluno lá quando François Veron ensinava filosofia e teologia
Descartes e o de seus contemporâneos pirrônicos. e possivelmente até mesmo o uso de material cético contra
Em contraste com isso vemos que Descartes ele pró- os seus adversários 8 • Bem cedo em sua vida Descartes leu
prio manifesta grande preocupação com o ceticismo de seu Camélia Agripa, e na época do Discours parecia conhecer
tempo e demonstra ter tido muito contato com escritos beril os escritos de Montaigne Charron9. Ao responder às
pirrônicos, antigos e modernos; que ele aparentemente de- objeções apresentadas por Mersenne, Descartes observou:
senvolveu sua filosofia como resultado de ter se defrontado "Há muito tempo já tinha visto diversos livros escritos pelos
com o significado pleno da crise pyrrhonienne em r628-29, acadêmicos e êéticos"•o. Durante o período de formação de
e que proclamava ser o seu sistema a única fortaleza intelec- sua concepção filosófica, entre r628 e r637, ele parece ter
tual capaz de resistir aos ataques dos céticos. É difícil dizer tido contato com os Dialogues d'Orasius Tubero de La Mothe
quando e como Descartes entrou pela primeira vez em con- Le Vayer, de r63o, tendo se sentido bastante perturbado por
tato com os pontos de vista céticos. Mas ele parece ter tido esta obra pirrônica" (de fato ele ficou tão indignado com
bastante conhecimento não apenas dos clássicos pirrônicos, esta leitura, quanto quando foi, mais tarde, acusado de ser
mas também das correntes céticas de sua época e do crescen- um pirrônico).
te perigo que causavam à ciência e à religião. Segundo escre- Não apenas Descartes conhecia parte da literatura céti-
veu em sua resposta ao padre Bourdin, "Nem tampouco de- ca, como também tinha plena consciência da crise pyrrhonienne
vemos pensar que a seita dos céticos está há muito tempo como uma questão bastante viva em sua época. Ele havia exa-
extinta. Ela floresce hoje em dia tanto quanto antes, e quase minado, como vimos, as tentativas de Herbert de Cherbury de
todos os que julgam ter alguma habilidade além da do resto resolver esta crise. Era amigo de Mersenne e Silhon que esta-
da humanidade, não encontrando nada que os satisfaça na vam constantemente tratando do problema da resposta aos
filosofia comum, e não percebendo nenhuma outra verdade, argumentos céticos. É bem possível que ele tenha lido as obras
buscam refúgio no ceticismo"6. destes autores, e com certeza terá ouvido os seus argumentos.
Tem sido dito que o currículo de estudos em La FlCche Além disso, as evidências encontradas nas seções autobiográ-
incluía considerações sobre como a filosofia aristotélica po- ficas do Discours e das cartas indicam que por volta de r628-
r629 ele se encontrava sob o forte impacto dos ataques céti-

Paris, 1947, no qual pennciam os comentários muitas indicações do uso feito por 'lenoble, Mersemte, pág. 192. Nenhuma evidência é apresentada em apoio a esta
Descartes de Montaignc c Charron; c Léon Brunschvicg, Descartes et Pascal, afinnação.
I.ecteurs de Montaigne, N. Iorque c Paris, 1944· Ver também Adam, Vie de Des- 'C f. Gilson, Liberté chez Descartes, págs. 6-9 e 13; e Sirven, Années d'AP/Jrentissage,
cartes, em Descartes, Oetwres, A. T., XII, págs. 57 e 1p; cJ.Sirven, Les Années págs. 41-45. Após uma cuidadosa consideração das evidências disponíveis, Sirven
d'appmttissage de Descartes 1596-1628, Albi, 1928, págs. 259-271. chegou à conclusão que Vcron [amais foi professor de um curso que Descartes
-' Izydora Dambska, "Meditationcs Descartes na de sccptycyzmu francuskicgo XVD tenha feito.
wieku", em Kwartalnik Filosoficzny, XIX, 1950, págs. I -24 (resumo em francês • Descartes, Oeuvres, A. T., X, págs. 63-65 e 165, referências a Charron e Montaignc
nas J?ágs. 161-162); c Gouhicr "Doure méthodique ou négation méthodiquel~ se encontram no comentário de Gilson ao Disco~~rs; e em Sirvcn, A11nées
em Erudes Philosophiques, IX, 1954, págs. 135-162 c Les premiáes Pensées de d'Appremissage, pág. 271.
Descartes: Contribution à I'Histoire de l'mtti-renmssance, Paris, 1958. •• Descartes, Repouses de l'ameur aux secoudes objections, em Oeuvres, A. T., IX,
' Descartes, The Seventh Set o( Objections with the A11thor's Amwtations thereott, pág. IOJ.
othenvise a Disscrtatiou conc<mtillg First Philosophy, em Philosophical Works o( "Cf. Pintard, "Descartes et Gasscndi~, págs. 120-122; e os comentários de Des-
Descartes. cd. Haldanc-Ross, N. Iorque, 1955, vol. 11, pág. 335. O original latino cartes sobre um "livro perverso" em suas canas a Mcrsenne de 1610, em Oeuvres;
se encontra nas pâgs. 548-549 das Oeuvres, A. T., VIl. A. T., I, págs. 144-145 c 148-149· .

273
cos, percebendo a necessidade de uma nova e vigorosa respos- De acordo com o relato de que dispomos, Descartes de
ta a eles. Foi à luz deste despertar para a ameaça cética que, início falou favoravelmente do antiescolasticismo de Chan-
1. quando estava em Paris, Descartes deu início à sua revolução doux. Em seguida passou a atacar o fato de que tanto o
filosófica descobrindo algo "tão certo e seguro que todas as mais palestrante quanto a audiência estavam dispostos a acehar a
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de probabilidade como critério de verdade, pois se fosse assim
abalá-lo"'\ coisas falsas poderiam na realidade ser tomadas como verda-
Infelizmente, não dispomos de informações suficientes deiras. Para mostrar isso, Descartes apresentou alguns exem-
sobre esta visita a Paris que produziu tão formidáveis resul- plos de verdades supostamente incontestáveis, e usando argu-
tados. Mas temos uma pista sugestiva e intrigante. Em al- mentos ainda mais prováveis que os de Chandoux, demons-
gum momento, provavelmente por volta de fins de r628, trou serem elas falsas. Então, tomou o que se poderia conside-
Descartes foi convidado a um encontro na residência do rar como algo de evidentemente falso, e usando argumentos
Núncio Papal, o cardeal Bagni {de quem o libertin érudit prováveis fez com que parecesse uma verdade plausível. Cho-
Gabriel Naudé em breve se tornaria secretário). Um grande cada com esta demonstração de como "nossas mentes podem
número dos principais savants da época, incluindo Mersenne, ser lu.dibriadas pela probabilidade", a audiência perguntou a
estavam presentes para ouvir uma palestra do estranho quí- Descartes se não havia algum "meio infalível" de se evitar
mico Chandoux, um especialista em metais básicos, que foi estas dificuldades. Ele respondeu falando-lhes de seu Methode
executado em I63 I por falsificar dinheiro'J, Chandoux apre- Naturelle, e mostrando-lhes que seus princípios "são mais
sentou uma palestra que deve ter sido bem típica dos pontos bem estabelecidos, mais verdadeiros e mais naturais do que
li de vista da vanguarda da época, denunciando a filosofia quaisquer outros já aceitos pelos sábios"' 7 •
J escolástica. Sua posição sobre esta questão, nos é dito, era
bastante semelhante às de Bacon, Mersenne, Gassendi e
O cardeal Bérulle, talvez o mais importante pensador
religioso da Contra-Reforma na França, ficou muito impres-
Hobbes' 4• E nesta ocasião, "Chandoux fez um longo discur- sionado com a fala de Descartes, e convidou-o a visitá-lo
so refutando a maneira como a filosofia é usualmente ensi- para discutirem melhor essa questão. Descartes foi visitá-lo e
nada nas escolas. Apresentou um sistema filosófico bastante disse ao cardeal por que acreditava que os métodos
comum que ele afirmava ter estabelecido e que pretendia que comumente empregados na filosofia eram inúteis, e o que
fosse considerado novo" •s. O que quer que tenha sido dito considerava que deveria ser feito para substituí-los. Bérulle
por Chandoux, pirronismo ou materialismo, foi muito aplau- ficou muito contente e insistiu que Descartes aplicasse o seu
dido pelos presentes, exceto por Descartes. O cardeal Bérulle, método aos problemas que afligiam a humanidade em sua
fundador do Oratório, percebendo isto, perguntou 0 que vida cotidiana' 8 •
Descartes havia achado do discurso que "parecera tão belo à O' episódio de Chandoux e o encontro com Bérulle
audiência" ' 6 • podem ter sido o começo da busca de Descartes. Há indica-

"Descartes, Discours de la Méthode, em Oeuvres, A. T., VI, p:Íg. 32.


'-'Ver Louis Moréri, Le Graud Dictiomwire historique, tomo III, P:iris, 1759, ver- '7 Cf. O relato em Baillet, págs. 70 c seguintes; c carta de Descartes a Villebressieu,
bete Chandoux (N. de}, p:íg. 465. I6JI, em Descartes, Oeuvres, A. T., I, p:íg. :1.13.
'' Ibid., p:íg. 465. •• Baillet, Vie de M.Descartes, págs. 72-74. Uma análise da informação conhecida
'·' Adricn Baillct, V,e de M. Descartes (Collcction Grandcurs, La Tablc Ronde}, sobre o caso Cbandoux e sobre as relações de Descartes com o cardeal Bérullc se
Paris, 1946, pág.7o. encontra em Gouhier, "La crise de la théologie au tcmps de Descartes", Rev.de
,, lbid., p:íg. 70. Théol. Et de la Phil., IV, 1954, págs. 45-47.

274
ções de que antes de r628-29, ele não havia se preocupado
va também ocorrendo na filosofia c na ciência. E o cardeal
com questões metafísicas'9. Descartes chegara a Paris como
Bérulle, que havia buscado e encontrado um caminho claro e
um jovem cientista e matemático de sucesso que já havia
seguro para a verdade religiosa em suas Méditations pôde
demonstrado surpreendentes habilidades teóricas, chaman-
apreciar e encorajar mais alguém em busca da verdade, que
do assim a atenção de algumas pessoas destacadas neste cam-
viria a construir na filosofia uma teoria em muitos aspectos
po. Enl Paris ele encontrou-se com Mersenne, e possivelmen-
semelhante ao bérulismo~'.
te foi apresentado a seu círculo que incluía todos os proemi-
Descartes deixou Paris e retirou-se para a Holanda para
nentes nouveaux Pyrrhoniens, descobrindo como os melho-
desenvolver solitariamente sua solução para a crise
res cérebros de sua época passavam o seu tempo defendendo
pyrrhonienne. Em seu Discours de la Méthode ele nos diz
o ceticismo, ou aceitavam apenas pontos de vista prováveis e
que embora tivesse há muito percebido as dificuldades e in-
possivelmente incertos, em vez de buscar a verdade absoluta.
certezas que assolavam o conhecimento humano, ele não
Os estudos filosóficos e científicos que ele fizera no colégio,
havia "começado a buscar os fundamentos de uma filosofia
assim como os pontos de vista de seus contemporâneos, não
mais certa do que a vulgar" até aquele momento. Até então,
forneciam nenhuma certeza. Tudo estava sujeito ao questio-
segundo relata, ele apenas confessara sua ignorância, "de
namento e à discussão, e ·apenas a probabilidade servia de
forma mais engenhosa do que os qu'e estudaram um pouco
fundamento para as várias teorias então apresentadas~0 • Di-
costumam fazer", e duvidara de "muitas coisas que outros
ante disto, o encontro com Chandoux foi como um consideravam como certas"n. Para buscar a verdade ele reti-
microcosmo da situação que enfrentava todo o mundo cien- rou-se para a Holanda a fim de meditar. Suas poucas cartas
tífico. Encontravam-se reunidos ali alguns dos homens mais
deste período nos relatam que ele estava trabalhando em um
sábios e eruditos da época e eles foram capazes de aplaudir tratado metafísico sobre a divindade. Ele tinha se desviado
um homem que denegria as concepções tradicionais e lhes. da ciência e da matemática para a metafísica teológica de
oferecia no lugar delas apenas probabilidades. Descartes le-
modo a encontrar os fundamentos do conhecimento huma-
vantou-se para mostrar-lhes as profundas conseqüências dis-
no. A Reforma, a revolução científica, e o ataque do ceticis-
to, dando-lhes uma lição de ceticismo. Se apenas a probabi-
mo tinham feito ruir os velhos fundamentos que costuma-
lidade servia de base a seus pontos de vista, então jamais se
vam sustentar toda a estrutura das realizaçõc:;s intelectuais
poderia chegar à verdade, porque não se poderia mais distin-
humanas. Uma nova época exigia uma nçva base para justi-
guir o verdadeiro do falso. O critério, a regra da verdade,
ficar e garantir as suas descobertas. Descartes, na tradição
tinha desaparecido. O que se supunha que a Reforma teria
dqs grandes pensadores medievais, buscou fornecer esta base
realizado no campo religioso (segundo os Contra-refor-
ao apoiar a superestrutura, o conhecimento natural huma-
madores franceses) reduzindo todas as concepções a meras
no, no fundamento o mais forte possível, Deus todo-podero-
·opiniões a serem julgadas quanto à sua plausibilidade, esta- so e eterno. A crise cética seria superada por uma nova teolo-
gia servindo a um velho propósito. O mecanicismo teológi-
•• Cf.Gouhier, Pensée re/igieuse de Descartes, pág. 72;j.Millet, Histoire de Descar· co, o teocentrismo de Bérulle combinado com o materialis-
tes avant 1637, Paris, 1867, pág. r6o; e a declaração de Descartes em seu Discours
sobre quando começou a usar o seu método c a desenvolver o seu sistema em
OeurJres, A. T., VI, pâgs. JO·JI. . " Cf. comentários de Gouhier sobre Bérulle e Descartes em seu "Crise de la
•• Cf. o exame por Descartes dos vários ramos do saber aos quais ele foi introduzi· théo\ogic", pág. 47·
do no colégio, em Discours, Oeuvres, A.T., VI, págs. s-ro. "Descartes, Discours, Oeuvres, A. T., VI, pág. 30. Toda esta passagem parece ter
ecos do episódio Chandoux.

277
mo racional forneceriam a nova rocha para substituir aquilo ciclo para se desenvolver a crise pyrrhonienne possivelmente
que tinha se revelado apenas lama, barro ou mesmo areia ainda com mais força do que tinha até então sido feito por
movediça. qualquer pirrônico, antigo ou moderno. Começando com a
Se a fuga de Descartes para a teologia metafísica viria seguinte regra:
a ser sua proposta de solução para o colapso do conhecimen-
to humano devido à probabilidade, às opiniões, e às dúvidas, Não aceitar nada como verdadeiro que não possa ser
o meio para se levar as pessoas a perceberem a verdadeira claramente reconhecido como tal, isto é, evitar cuida-
natureza metafísica e religiosa da realidade consistia primei- dosamente a precipitação e o preconceito nos juízos, c
ro em fazê-las perceber "a miséria do homem sem Deus". A não aceitar nada além do que se apresente à minha
perplexidade dos homens cultos no encontro com Chandoux mente de maneira tão clara e distinta que não possa
foi provavelmente uma etapa no caminho para o método da duvidar disto''.
dúvida. O que parecia bastante certo foi revelado como sen-
do duvidoso. O que parecia bastante duvidoso foi revelado Descartes prossegue então revelando a extensão em qUe oca-
como sendo certo. A base para um ceticismo total foi apre- siões para a dúvida possam surgir. A regra ela própria é bas-
sentada de modo a chocar a audiência e fazê-la buscar a cer- tante semelhante à proposta anteriormente no La Sagesse de
teza absoluta. Charron, mas ao aplicá-la Descartes mostra que os níveis de
Uma passagem autobiográfica no Discours sugere ter dúvida neste caso ultrapassam as simples e moderadas dúvi-
s~do em r628 ou r629 que Descartes começou sua revolução das até então introduzidas pelos céticos 26•
ftlosófica, provavelmente ao aplicar o seu método da dúvida Os primeiros dois níveis da dúvida levantam apenas
sistemática a todo o edifício do conhecimento humano de motivos tradicionais para se duvidar. As ilusões dos senti-
modo a descobrir os fundamentos certos do que conhece- dos, sobre. as quais os nouveaux Pyrrhoniens tanto insisti-
mos:~.3. O método, como veremos, inicia-se como pouco mais
ram, indicam que há alguma base para o questionamento da
do que uma aplicação sistemática e reforçada das dúvidas de confiabilidade ou da veracidade de nossa experiência sensí-
Montaigne e Charron. Em seus Discours, nas Meditationes e vel comum. A possibilidade de que toda a nossa experiência
em La Recherche de la Verité24, um procedimento é estabele- seja apenas parte de um sonho, que constitui o segundo ní-
vel, nos permite construir um cenário para pôr em dúvida a
'' Ibid., págs. 30-31. A passagem não deixa muito claro como teria sido o começo realidade de qualquer objeto conhecido, e até mesmo a reali-
de Descartes, mas sim que foi aí quando ele começou, c que o resultado era dade do mundo. Em ambos estes níveis os problemas céticos
tornar passível de dúvida a maior parte daquilo que os filósofos consideravam
certo.
tradicionais são suficientes para descrevermos uma situação
' 4 Embora Gouhicr e Cassirer tenham apresentado muitas evidências de que esta é
uma obra t_a~d!a de Descartes, há algumas indicações d~ que possa ter sido uma sonagcns. Tratarei da questão da possível data de La Recherche em um estudo
obra hem m\Cial, provavelmente dos anos r63o. A hipótese do demônio não futuro. Sobre o ponto de vista de Cassirer, ver o seu "La Pince de La Recherche
aparece aí, o que sugere que esta obra pode ser anterior às Meditações. Além de la Vérité par la /mniére 11aturel/e dans l'ocuvre de Descartes, em Revue
dtsso, o ~er~o "~yrrhoniens" aparece nesta obra, enquanto que no Discurso e Philosoplnque de la France et de l't.trm1ger, CXXVII, 1939, págs. 261-3oo; e
nas Medttaçoes_c usado o termo "Sccptiqucs". Em algumas das primeiras cartas sobre Gouhier, seu "Sur la date de La Recherchc de la Vérité de Descartes", em
de Descartes, d•scutcm-sc os "Pyrrho11ims".l'or último, os personagens no La Revue de l'Histoire de la 1'/Ji/osopbie, III, 1929, págs. 1-24.
Rccherche parecem ser inspirados nos dos Dialogues de La Mothe Le Vayer, que ''Descartes, Discours, em Oeuvres, A. T., VI, pág. r8.
Descartes provavelmente leu em r630, na medida em que têm nomes semelhan- '" Cf. Charron, Sagesse, livro II, cap. li; Sabrié, De 1'/mmmúsme au rationa/isme,
tes e pontos de vista parecidos. La Mothe Le Vayer escreveu um Dialogue traittmlt págs. 303-321; c Popkin, "Cbarron and Descartes", ]ourna/ o( Philosophy, LI,
de la Ph1/osoph1e Sceptique, _cujos personagens são Eudoxus c Ephcstion, en-
'954. pág. 8J2.
quanto que Descartes emprega Polyander, Epistcmon c Eudoxus coino seus per-
i'
'79

lil
em que nossas crenças usuais sobre nossa expenencia co- seu nível mais alto, e então a superássemos, nada poderia ser
mum sejam duvidosas ou mesmo falsas. E, portanto, se apli- considerado certo, uma vez que sempre permaneceria uma
carmos a regra mencionada acima, estes dois tipos de dúvida dúvida à espreita, nos assombrando, que poderia contami-
bastam para nos "levar diretamente à ignorância de Sócrates, nar tudo o que conhecemos e tornar tudo isto, de alguma
ou à incerteza dos pirrônicos, que parecem águas tão pro- maneira, incerto.
fundas que não dão pé" 27, As terríveis conseqüências da crença em um gênio en-
Mas o nível seguinte, a hipótese do gênio maligno, é ganador, de um ceticismo acerca de nossas próprias faculda-
muito mais eficaz para revelar a incerteza de tudo o que pen- des, estavam claras para Descartes. No Discours, uma ver-
samos conhecer. Esta possibilidade mostra a força total do são mais moderada deste tipo de superpirronismo tinha sido
ceticismo do modo o mais incisivo, e revela uma base para a apresentada, sem a introdução do ma/in génie. O simples
dúvida aparentemente nunca pensada antesz8 , Se, por acaso, fato de que podemos errar, de que nossa razão por vezes
existir um malin génie capaz de distorcer tanto as informa- produz paralogismos, e de que Descartes, como qualquer pes-
ções que possuímos, quanto as faculdades de que dispomos soa, estava sujeito ao erro, levaram-no a rejeitar tudo o que
para avaliá-las, sobre o quê poderemos ter certeza? Qual- antes aceitara como sendo demonstravelmente verdadeiro 9, 2

quer critério, qualquer teste de confiabilidade acerca de nos- Na Primeira meditação, Descartes indicou ser possível que
so conhecimento está sujeito ao questionamento, porque tanto "Eu me engane todas as vezes em que somo dois e três, ou
o critério, quanto a sua aplicação podem estar infectados em que conto os lados de um quadrado, ou quando julgo
pelo gênio maligno. Diferentemente de Silhon, de Herbert de coisas ainda mais simples, se é que podemos imaginar algo
Cherbury e dos aristotélicos, Descartes estava disposto a le- ainda mais simples do que isto" 3o. A possibilidade de estar-
var em consideração a mais radical e devastadora das possi- mos sendo sempre enganados por algum ser maligno levanta
bilidades céticas, a saber, que não só nossas informações po- dúvidas sobre as coisas as mais evidentes e sobre quaisquer
dem ser enganosas, ilusórias e distorcidas, mas também que critérios de evidência que possamos ter. Segundo Pascal e
nossas próprias faculdades, mesmo sob as melhores condi- Hume perceberam, com isso foi atingido o mais alto grau da
ções, podem ser errôneas. Se este for o caso, então não im- dúvida cética3'. Assim que se sugeriu que a confiabilidade de
porta quão cuidadosos nós sejamos ao examinar nossas in- nossas faculdades as mais racionais era questionável, o ho-
formações e ao avaliá-las, jamais poderemos ter certeza de mem deixou de ser um repositório da verdade e passou a ser
que não estamos sendo enganados pelos únicos meios a nos- um poço de incerteza c de erro>z. Nos comentários sobre o
so dispor para obter conhecimento. Silhon tinha recuado às malin génie nas conversações de Descartes com Burman, nos
portas da hipótese do gênio maligno, rejeitando-a como uma é dito que Descartes transformara o homem em um grande
blasfêmia contra o nosso criador. Descartes, porém, tinha formulador de dúvidas, expondo-o a todas as objeções pos-
percebido que ao menos que elevássemos a febre da dúvida a
"Descartes, Discours, em Oeuvres, A. T., VI, pág..P·
''Descartes, La Rechercbe de la vénté par la lumiúe naturelle, em Oeuvres, A. T., 10
Descartes, Meditations, I, em Oeuvrcs. A. T., IX, pág. 16.
X, pág. 512. '' Cf.Pascal, Pensées (Classiques Garnicr}, n2 434; e Hume, Enquiry coucerning
'"O professor Alexandre Koyré me chamou a atenção para o fato.dc que esta nova Human Understanding, Sclby-Bigge (ed.), Oxford, 1951, sec. XII, págs. 149-
contribuição de Descartes ao argumento cético é atribuida por Pascal a Montaigne 150.
em seu "Entrerien de Pascal avec Saci sur Épicti:te ct Montaignc" em Oeuvres de "Pascal, Pensées (Classiques Gamier}, ll 0 434, pág. r84. O finado prof. A. G. A.
Blaise Pascal, editadas por Brunschvicg, Bourroux c Gazier (Grands Eerivains Balz sugeriu-me que a possibilidade de Deus ser enganador, discutida na Medi·
de la France}, tomo IV, Paris, 19I4, pág. 43· fação IV, levanta uma dúvida de alcance ainda mais amplo, e que apenas a este

28,
síveis, a todas as razões possíveis para se duvidar 33 • Apenas dade de usá~ las. Enquanto pudermos ser vítimas de alguma
quando o ceticismo foi levado a este extremo, engendrando força ou agente que seja capaz de enganar-nos delibera~
uma crise pyrrhonienne ainda maior do que foi jamais so~ damente, aquilo que consideramos perfeitamente certo, aquilo
nhado pelos nouveaux Pyrrhoniens, é que poderemos supe~ de que não podemos (psicologicamente) duvidar, pode na
rara força do ceticismo. A m(inos que estejamos dispostos a realidade ser falso ou duvidoso 36• Ao introduzir este nível de
levar a possibilidade de levantar dúvidas até o fim, não po~ dúvida, criando a possibilidade do ma/in génie, Descartes
deremos ter esperança de descobrir qualquer verdade que derrubou o intuicionismo matemático das Regulae como fun~
não seja manchada pela dúvida e pela incerteza. damento de toda certeza. A crise pyrrhonienne foi levada a
Nas Regulae, escritas por volta de 1628, aparentemen~ seus limites últimos. Não apenas tinham sido postas em dú-
te antes da tentativa de resolver a crise pyrrhonienne, Des~ vida todas as teorias e opiniões de todos os pensadores ante~
cartes havia insistido que, "Apenas a Aritmética e a Geome~ riores, mas também as do jovem Renê Descartes. Porém, a
tria se encontram livres de qualquer mancha de falsidade e partir desta viagem às profundezas do ceticismo total, Des~
incerteza", e que a intuição, as concepções indubitáveis de cartes iria encontrar uma nova justificativa metafísica e teo~
uma mente clara e atenta, é perfeitamente certa, e as dedu~ lógica para o mundo da racionalidade humana37,
ções "não podem ser errôneas quando realizadas por um Antes de considerar como o método da dúvida é
entendimento que tenha um mínimo de racionalidade"H, Na visto como levando~nos à certeza e não à suspensão total
medida em que Descartes trilhou o caminho do demonismo, do juízo, gostaria de mencionar brevemente uma possível
ele passou, segundo Gilson, "do plano científico para o pla~
no puramente filosófico, substituindo a simples crítica de -'
6
Gouhier, Essais sur Descartes págs. l46-148 e l94-l96.
nosso conhecimento pela crítica de nossos meios de conheci~ 1' Uma interpretação complctamcntC contrária a esta acerca da dúvida de Descar-
tes e da natureza do sistema cartesiano é apresentada por Willis Doncy em seu
mento"Js, Não é que Descartes estivesse negando ou duvi- interessante artigo, "The Cartcsian C irei c", no ]ournal of the History of Ideas,
dando da auto-evidência de nosso conhecimento matemáti- XVI, 1955, pâgs. 324-328, onde defende o ponto de vista de que Descartes ao
co, ou mais certo, mas, na realidade, ele estava mostrando longo de toda a sua obra manteve a concepção das Regulae, de que ele jamais
percebeu a necessidade de uma justificação metafísica do uso da razão, e de que
que enquanto pudermos estar contaminados pelo gênio ma~ o mais elevado nível de dúvida formulado, mesmo nas Meditaçi5es, di:.:. respeito
ligno, o que nos parece auto-evidente pode ser falso. O sim~ apenas à confiabilidade da memória c não atinge as idéias claras c distintas. Na
interpretação de Doney temos uma leitura radicalmente diferente de muitos dos
pies ponto de partida das Regulae, de que a razão, ao intuir textos a que me referi. Não creio que uma justificativa definitiva possa ser dada
e deduzir, é infalível, estava agora sendo questionado por em favor de uma interpretação, mais do que de outra, mas sim que devemos
examinar as passagens-chave em questão c decidir qual leitura é mais adequada
um ceticismo referente a nossas faculdades e a nossa capaci- a uma interpretação mais ampla da natureza c da estrutura da filosofia de Des-
cartes. Minha própria visão é obviamente influenciada pela situação das obras
de Descartes em relação ao contexto dos argumentos contra c a favor do ceticis-
nível nossas faculdades se tornam duvidosas. Parece-me que a hipótese do ma/in mo em sua época. E, de modo geral, creio que minha interpretação da natureza
géuie c a possibilidade de um Deus enganador diferem em grau mas não em radical do ceticismo do Descartes da Primeira meditação está de acordo com as
espécie. O gênio tem poder suficiente para derrubar todos os critérios. O Deus análises de Gilson, Gouhier, Koyré e outros, que defenderam durante várias
enganador dá a esta questão um alcance cósmico c totalmente irremediável. O décadas o primado das considerações metafísicas c teológicas na filosofia de
primeiro representa a miséria do homem sem Deus; o segundo, a ruína eterna do Descartes. (Isto não sugere que cu creia que qualquer uma dessas autoridades
homem s'e Deus for o demônio. concordaria com a minha avaliação dos méritos da resposta de Descartes ao
" Descartes, E"tretiens avec Bumwn, Paris, 1937, págs. 4-5; c Oeuvres, A. T.,V' ceticismo.) Como indicado nas citações anteriores, essas autoridades localizam
pág. 147· no Discours e nas Meditatim1s o desenvolvimento de um ceticismo radical em
-"Descartes, Regulae ad directi011em iugeuii, em Oeuvres, A. T., X, págs. 36:.:.-366, relação à razão que vai além dos pontos de vista das Regulae e que requer um
c Philosopbical Works, I, págs. 3-5. fundamento radicalmente diferente para a certe:z.a da razão humana do que o
" Descartes, Discours, cd. Éciennc Gilson, pág. 290 do comentário de Gilson. anteriormente propost.o.

'I

.ri
fonte histórica para a hipótese do gênio maligno, bem gamento de Loudun pode lançar alguma luz sobre as fon-
como porque este tipo de ceticismo em relação a nossas tes e o significado neste momento da grande contribuição
faculdades pode ter dado a impressão de ser uma idéia de Descartes aos argumentos céticos3 8 •
séria e forte na época. Um dos grandes acontecimentos Mas, voltando ao método da dúvida de Descartes, além
dos anos r63o foi o julgamento em Loudun de um padre, de ser mais engenhoso, de que outro modo ele difere dos
Grandier, acusado de ter infestado de demônios um con- argumentos céticos tradicionais de Charron, La Mothe Le
vento. O caso, e as evidências apresentadas no julgamen- Vayer e outros? As séries de formas de dúvidas oferecidas
to de Grandier em r634, despertaram um grande interes- nas apresentações mais sistemáticas do pirronismo indicam
se sobre questões demoníacas, bem como sobre os crité- passo a passo o caráter duvidoso das várias crenças, opiniões
rios com base nos quais estas questões poderiam ser e pontos de vista que temos. Cada uma dessas indicações, de
julgadas. Alguns dos problemas que surgiram a partir da acordo com a teoria cética clássica, deve ser acompanhada
consideração da questão se Grandier tinha o poder de da suspensão do juízo em relação à verdade ou falsidade da
infestar os outros com demônios, foram os seguintes: questão considerada. Formulações da posição pirrônica de
a) poderia ele jamais ser detido, uma vez que, presumivel- Montaigne, Charron e seJs sucessores propõem uma reação
mente, sua força poderia ser exercida contra qualquer um mais forte, a saber, que pontos de vista e opiniões sujeitos à
que tentasse impedir suas nefastas atividades; e h) poderia menor sombra de dúvida sejam rejeitados pela mente até que
um testemunho confiável ser apresentado contra ele por esta rejeição minuciosa resulte em tornar a mente uma carte
suas vítimas, uma vez que, presumivelmente, ele teria o blanche. Este processo de esvaziar-se a mente, Gouhier, em
poder de influenciá-las e enganá-las? De modo a avaliar o seu excelente e importante artigo sobre o método da dúvida,
testemunho apresentado contra Grandier pelos membros considera como mais um elemento metódico crucial em Des-
do convento, a Sorbonne teve de decidir a espinhosa ques- cartes, o método da negação, que, segundo ele argumenta,
tão sobre se testemunhos feitos sob juramento por um de- separa o desenvolvimento cartesiano da dúvida do dos céti-
mônio (isto é, os demônios que Grandier havia supostamen- cos, e leva à conquista final do ceticismo pelo cogito. De
te colocado em suas vítimas), poderiam ser verdadeiros. À acordo com Gouhier, Descartes, ao intensificar o método da
luz dessas questões sobre a confiabilidade da evidência, Des- dúvida até o ponto em que qualquer coisa que estivesse mini-
cartes pode ter percebido que se fosse possível a existência mamente sujeita ao questionamento fosse considerada falsa,
de um agente demoníaco no mundo, sem levar em conta o foi capaz de desenvolver um meio de separar o aparentemen-
caso Grandier, uma séria base para o ceticismo seria te evidente e certo do verdadeiramente evidente e certo. Ao
estabelecida. E se a questão fosse considerada no plano mais tornar o seu teste tão severo, transformando a dúvida cética
amplo da razão humana em geral, do que no dos infortú- comum em negação completa, Descartes preparou com isso
nios dos membros do convento de Loudun, uma surpreen-
dente possibilidade surge, a saber que, quer saibamos ou 3
' Sobre o julgamento de Loudun, ver Aldous Huxley, The Devils of Louduu, N.
não, podemos ser todos vítimas da ação do demônio e Iorque, 1952; Bayle, Dictionnaire, verbete uGrandier"; Merscnne,
sermos ao mesmo tempo incapaú:s de saber que somos Correspondauce, IV, págs. 192, 198 c 230; c a can:a de Ismael Bouillard a Gassendi
d~ 7 de setembro de 1634, publicada por P.Tamizcy de Larroque uo Cabliwt
vítimas disso, devido à ilusão sistemática causada pelo agen- h1storique, série II, vol. ITI, 1897, págs. 1-14. Ver também Michel de Certeau La
te demoníaco. Um exame mais profundo das questões discu- de
Pos~ess1011 de Loltdun, Paris, 1970. É interessante uotar que nos Elements la
tidas no mundo culto da época como resultado do jul- log1q11~ françois de Pierre du Moulin, de 1!'i25, é dado como exemplo à pág. 12
o scgumte euundado: "Deus não é um mentiroso".

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:I
a cena para a força única e avassaladora do cogito, de tal do método dos céticos. Como disse um cartesiano do século
forma que por nenhum ato de vontade se pode resistir ao XVIII, "O cético ou pirrônico duvida de tudo, porque ele
reconhecimento de sua certeza. Apenas ao sermos forçados a tolamente deseja fechar os seus olhos para a luz", mas duvi-
duvidar e a negar no mais alto grau possível podemos ser dar como Descartes, "não é ser pirrônico, mas sim ser filóso-
levadOs a apreciar o caráter indubitável do cogito-19 • fo. Não é abalar a certeza humana, mas fortalecê-la"43,
O método negativo, bem como o método da dúvida, já Os nouveuax Pyrrhoniens poderiam insistir que esta-
aparecem, embora não com a mesma força impulsionadora, vam sendo mal interpretados, uma vez que seu objetivo tam-
no processo de eliminação mental proposto por alguns dos bém era o de encontrhr um conhecimento certo. Mas eles es-
nouveaux Pyrrhoniens. Mas, como Descartes percebeu, a peravam encontrá-lo miraculosamente, tê-lo subitamente
diferença mais crucial entre o procedimento dos céticos e o apresentado por Deus. Descartes, por outro lado, esperava
seu consistia no propósito para o qual o método era empre- localizar as verdades fundamentais e indubitáveis, os funda-
gado, e nos resultados a serem obtidos por meio de seu uso. mentos do conhecimento humano, na mente, soterrados ou
Os céticos, segundo Descartes, duvidavam apenas por per- escondidos debaixo dos escombros de nossos preconceitos e
versidade, eram pessoas que "duvidavam apenas por duvi- opiniões. Esperava localizá-los pelo próprio processo da dú-
dar, e fingiam estar sempre incertos" 40 e ganham "tão pouco vida e não por um deus ex machina após a dúvida. Os céticos
com seu método de filosofar, que têm estado em erro duran- não acreditavam que pudéssemos estar de posse de alguma
te toda a sua vida, e não têm sido capazes de se libertarem verdade, enquanto que Descartes estava convencido de que
das dúvidas que introduziram na filosofia" 4'. A afirmação sim, mas que não éramos capazes de perceber isto. Ao duvidar
deles de que ao conseguir a dúvida total e o vazio mental e negar, nossas opiniões e preconceitos qu~ nos cegavam seri-
estariam preparados para receber a verdade da Revelação am removidos para que a verdade pudesse brilhar.
não foi aparentemente levada a sério por Descartes. Tanto .. Para Descartes, é o método cético aplicado apropriada
quanto ele pôde perceber eles não tinham obtido nada com e dthgentemente que produzirá este momento de revelação,
suas dúvidas, e não tinham conseguido nada apenas porque este reconhecimento da verdade genuína e certa. O primeiro
preferiram permanecer na incerteza total. Porém, "embora estágio da dúvida engendrará uma crise pyrrhonienne. Os
os pirrônicos não tenham encontrado nada de certo como ~árias níveis da dúvida na Primeira meditação nos deixarão
resultado de suas dúvidas, isto não quer dizer que não pu- hvres de todos os pontos de vista falsos e questionáveis, bem
dessem consegui-lo"4~. Se duvidamos de modo a obter a cer- como completamente incertos de tudo, em um "ceticismo
teza, então algo de importância monumental pode resultar desolado". Mas exatamente neste momento mais sombrio e
justamente porque mergulhamos no poço da incerteza, a so-
,. Cf. Gouhier, "Doute méthodique ou négation méthodique?", em Étudcs Phi/., lução é encontrada no cogito, e o ceticismo é completamente
IX, págs. 135·I62. É interessame a este respeito que Gassendi, comentando _a
Primeira meditação, não conseguiu perceber por que Descartes achava necessa· derrubado. Diz Descartes no Discours:
rio considerar tudo como falso, e fingir que Deus pudesse ser enganador, ou que
um demônio podia estar à solta, em vez de simplesmente indicar as coisas que
eram incertas. Cf. Gassendi, Obiectiones Quiutae, em Descartes, Oeuvrcs, A.T., Resolvi assumir que tudo o que penetrava em
vn, págs. 256-257· mente não era mais verdadeiro do que as ilusões de
<0 Descartes, Discours, em Oeuvres, A. T., VI, pág. z9.
•• Descartes, The Search after Tmth by the Light of Nature, em P!Jilos. Work-; o{ meus sonhos. Mas logo em seguida percebi que em-
Descartes, I, pág. 320. O texto latino se encontra em Oe1wres, A. T., X, pags. bora eu quisesse assim considerar todas as coisas como
1. 519-520. ;;;;:,-;-;::---c
<'Descartes, carta a u~, março de 163S, em Oemnes, A. T., Il, pág. JS. " Para du Phanjas, Tl!éorie des êtres iusensibles, pág. 209.
falsas, era absolutamente essencial que o "eu" deve- sim da contínua e permanente ação da Graça que sustenta
ria de alguma forma existir, e observando que esta nossa mente com suas idéias inatas e com sua luz natural que
verdade, "Penso, logo existo", era tão certa e segura nos compele a aceitar como verdadeiro aquilo de que não
que todas as mais extravagantes suposições dos céti- podemos duvidar. Assim, o método da dúvida leva natural-
cos seriam incapazes de abalá-la, cheguei à conclusão mente ao cogito, e não sobrenaturalmente à verdade como
de que poderia aceitá-la sem escrúpulos como o pri- os nouveaux Pyrrhoniens pretendiam.
meiro princípio da filosofia que buscava 44 • A descoberta de uma verdade absolutamente certa, o
cogito, pode derrubar a atitude cética de que tudo é incerto,
O próprio processo de levar a dúvida a seu extremo acaba mas, ao mesmo tempo, uma verdade não constitui um siste-
acarretando a derrubada do ceticismo total; e assim o ataque ma de conhecimento sobre a realidade. Para descobrir ou
pirrônico se transforma em sua própria vítima. O método justificar o conhecimento sobre a natureza das coisas, uma
que supostamente deveria eliminar todas as manifestações série de pontes deve ser construída uma vez que a experiên~
da doença do dogmatismo termina por eliminar também a si cia do confronto com o cogito já forneceu um sólido e firme
mesmo, ao descobrir uma verdade inabalável que mesmo o ponto de partida. Entretanto, a verdade produzida pelo mé-
cético mais engenhoso não será capaz de tornar duvidosa todo da dúvida não é uma premissa a partir da qual outras
mesmo no menor grau possível. verdades se seguem. Ao contrário, é a base para um discurso
O cogito funciona, não como alguns críticos afirma- racional que torna possível reconhecer outras verdades. A
ram, como a conclusão de um silogismo~ 5 (como no caso de experiência do cogito acende a luz interior de tal forma que
Silhon), mas como conclusão da dúvida. Simplesmente ao podemos então ver que outras proposições são verdadeiras.
levar o ceticismo a seu limite, nos defrontamos com uma Sem a dramática reversão da dúvida que ocorre com a desco-
verdade que ninguém pode colocar em dúvida de nenhuma berta do cogito, não poderíamos estabelecer se afirmações
maneira concebível. O processo de duvidar nos compele a como "2+3=5" são realmente verdadeiras, porque ainda po~
reconhecer a consciência que temos de nós mesmos, nos com- deríamos questioná-las. O que de fato o cogito realiza ao
pele a perceber que estamos duvidando ou pensando, e que produzir a iluminação é a revelação também do longamente
estamos aqui, existimos. Esta descoberta de um conhecimen- procurado critério de verdade, e portanto com isso a capaci~
to verdadeiro não é miraculosa, não é um ato especial da dade de reconhecer outras verdades, o que por sua vez nos
Graça Divina. Ao contrá!-'io, o método da dúvida é a causa, permite construir um sistema de conhecimento verdadeiro
mais do que a simples ocasião, de aquisição deste conheci- sobre o real. {É interessante notar em relação a isto que na
mento. Sua verdade, como veremos, é resultado da interven- apresentação formal de sua teoria que Descartes acrescentou
ção Divina, mas não de uma súbita intervenção nova, mas às respostas ao segundo conjunto de objeções às Meditações,
o cogito não é oferecido como uma premissa, axioma, ou
"Descartes, Discours, em Oeuvres, A. T., VI, pág. 32. postulado, mas o método da dúvida é apresentado como um
" Cf. Descartes, Repouses de l'autenr aux secondcs objectirms, em Oeullres, A. T.,
IX, págs. Ilo-Il 1. Esta passagem parece ser a mais forte em favo~ da interpret.a- processo mental que torna possível estabelecer quais os axio-
ção de Doney, na medida em que Descartes afirma que o conhecimento da eJ(IS· mas e postulados que são verdadeiros.)46
tência de Deus não é necessário para conhecermos algumas verdades com certe-
za. O único eJ1emplo apresentado é o cogito, o qual Descartes insiste não ser a
conclusão de um silogismo cuja premissa maior seria tudo que pensa é, ou ex~s~e­
Ao contrário, o cogito é conhecido por si mesmo, por "um simples ato de v1sao
men1al".
Ao examinar-se esta única verdade, o critério de ver- ro, mas também podemos mostrar que, na realidade, o que
dade é encontrado. Como Descartes havia dito a respeito do quer que seja claro e distinto é verdadeiro. Portanto, o pri-
sistema de Hcrbert de Cherbury, apenas se conhecermos uma meiro passo em tudo isso consiste em estabelecer os princípi-
verdade poderemos então prosseguir na construção de uma os claros e distintos que nos permitem raciocinar a partir de
teoria da verdade. Temos certeza da verdade deste único nossas verdades intelectuais para as verdades sobre a reali-
caso com que temos contato apenas devido à sua clareza e dade. O axioma segundo o qual a realidade objetiva de nps-
distinção. sas idéias exige uma causa na qual esta mesma realidade é
contida de modo não objetivo, mas formal e eminentemen-
Certamente neste primeiro conhecimento não há nada te49, fornece a primeira ponte crucial que nos leva das verda-
que me assegure de sua verdade, exceto a percepção des da mente às verdades sobre algo além de nossas idéias, a
clara e distinta do que afirmo, o que na realidade não primeira ponte que vai de uma consciência subjetiva de uma
seria suficiente para assegurar-me de que o que digo é verdade sobre as idéias para um conhecimento da realidade.
verdadeiro se ocorresse que algo que concebo de ma- A base apresentada para este estágio inicial para a reconstru-
neira tão clara c distinta pudesse ser falso; c portanto ção do conhecimento verdadeiro e o enterro do ceticismo
me parece que já posso estabelecer como regra geral consiste em: a) que seja claro e distinto, e h) que este axioma
que todas as coisas que percebo de maneira tão clara seja necessário para que possamos ser capazes de conhecer
e distinta são verdadeiras4 7 • algo além do mundo de nossas idéiasso.
Tendo apresentado o caminho das idéias para a reali-
Nos Princípios, estas propriedades de clareza e distinção são dade, este caminho é então usado como meio para se estabe-
explicadas; a clareza sendo aquilo que é presente e aparente lecer a existência de Deus e sua natureza. A idéia de Deus
a uma mente atenta, aquilo que exige nossa atenção mental, requer uma causa tendo pelo menos as mesmas propriedades
e a distinção é a clareza que diferencia esta percepção de to.- formal e eminentemente, isto é, a causa como um objeto real
das as outras48 • O cogito nos afeta de maneira tão forte com independente deve ter pelo menos as mesmas características
sua clareza e distinção que não podemos duvidar dele. Se algo essenciais que a idéia. Assim sendo, as perfeições em nossa
pudesse ser claro e distinto e no entanto falso, poderíamos ser idéia de Deus devem ser também perfeições em DeusSI. A
enganados até mesmo pelo cogito, mas isto não pode ocorrer visão teocêntrica do cardeal Bérulle transforma-se de idéia
como a própria experiência do cogito nos revela. em objeto, com todas as verdades dependendo da Vontade
De posse de um critério de verdade podemos encon- desta divindade todo-poderosa que deve existir como causa
trar as premissas de um sistema metafísico de conhecimento
verdadeiro, o que por sua vez nos fornece os fundatitentos de •• Descartes, Meditations, III, Oeuvres, A. T., IX, págs. 32-33, e Repouses de
um sistema físico de conhecimento verdadeiro. O sistema l'auteur aux secondes ob;ections, Oeuvres, A. T., IX, pág. 128.
'" Descartes, Repouses de /'auteur aux secondes ob;ections, Oeuvres, A. T., IX,
metafísico nos dá uma justificativa ou garantia do critério. pág. 127 (onde Descartes mantém que seguindo este método veremos que seus
Não só somos feitos de tal modo que o que quer que descu- axiomas são "verdadeiros c indubitáveis"), c 128 (onde o axioma V é defendi·
do pela afirmação de que, "temos que notar que a admissão deste axioma é
bramos ser claro c distinto podemos aceitar como verdadei- extremamente necessária pela razão de que precisamos dar conta de nosso co·
nhecimcnto de todas as coisas, tanto dos objetos sensíveis, quanto dos não-
"Descartes, Meditatious, III, Oeuvres, A. T., IX,'pág. 27. sensíveis").
•' Descartes, Les Priuâpes de la Philoso[Jhie, Oeuvres. A. T., IX, parte I, seção 45• ''Descartes, Meditations, III, Oeuvres, A. T., IX, págs. 33·36 e Reponses de /'auteur
pág. 44· aux secondes obiectious, Oeuvres. A. T., IX, pág. r29, proposição II.
da idéia que temos Dele e que possuímos de modo tão claro Descartes elimina a possibilidade de que Deus possua
e distinto. características demoníacas enfatizando os elementos de nos-
Do cogito até o critério de verdade, a,té.o elo de ligação sa idéia de Deus. Se a idéia de Deus não pode incluir caracte-
entre as idéias em nossa mente e a realidade objetiva, final~ rísticas demoníacas, então o que é claro e distinto acerca da
mente até Deus, Descartes criou toda uma estrutura que em idéia deve seJ\ verdadeiro sobre o objeto, Deus, ele próprio.
última análise sustentará nosso conhecimento da natureza,
mas apenas após reforçar nossa certeza interior relacionan~ ... Reconheço ser impossível que Ele jamais possa me
do~a à Vontade Divina. O Deus onipotente deve ser a base enganar; pois em toda fraude c em todo engano existe
final que garante a nossa certeza. Se, como a construção des~ alguma imperfeição, e embora possa parecer que a
tas pontes indica, temos certeza de várias coisas porque são capacidade de enganar é um sinal de sutileza ou po-
claras e distintas; isto é, não podemos duvidar delas por mais der, no entanto, o desejo de enganar sem dúvida indi-
que tentemos, uma vez que fomos iluminados pelo cogito; e ca a malícia e a fraqueza, e portanto não pode ser
esta certeza interior sobre nossas idéias nos convence de que encontrado em Deusn.
deve existir objetivamente um Deus do qual somos totalmente
dependentes em nosso conhecimento e em nosso ser, então a Descartes não considerou a possibilidade de que poderia ser
justificativa objetiva de nossa certeza interior (isto é, suare~ um demônio e não Deus que tivesse colocado nele a idéia de
ferência ao mundo real), depende de Deus e não de nós. Deus, compelindo-o a chegar a conclusões antidemoníacas
Esta série de reconhecimentos conduz a um ceticismo sobre a natureza moral de Deus. Mas, com esta concepção
mais elevado, um superpirronismo, que deve ser superado de Deus, baseada em nossa idéia clara e distinta Dele, Des-
nos céus e não na mente humana. Talvez, o demonismo que cartes estava agora pronto para marchar triunfalmente para
destruiu nossa fé na razão na Primeira meditação seja um a sua Terra Prometida, o novo mundo do dogmatismo no
aspecto do Mundo Divino! Talvez Deus queira que creia~ qual o conhecimento da verdade e da realidade estariam com-
mos, nos force mesmo a crer, em uma série de coisas que não pletamente assegurados, uma vez que, "tenho agora diante
são verdadeiras! Talvez Deus seja um enganador, um demô~ de mim uma estrada que nos levará da contemplação do ver-
nio! O caminho da dúvida total para o cogito, para a reali~ dadeiro Deus ... ao conhecimento dos outros objetos do uni-
dade objetiva, pode ser a última etapa de uma armadilha que verso"s4,
se fecha, isolando-nos de todo o conhecimento, exceto do de Portanto, já que Deus não pode nos enganar, e é nosso
nossa própria existência, e nos deixando para sempre à mer- criador, e somos criados com a faculdade de julgar que tudo
cê de um inimigo onipotente que deseja que erremos sempre que é clara e distintamente concebido é verdadeiro, então
e em todos os lugares. Esta possibilidade aterrorizante que nossa faculdade de julgar está garantida. Não só temos de
poderia transformar o sonho cartesiano de um paraíso raci- acreditar que aquilo que percebemos de modo claro e distin-
onal na Terra em um inferno kafk:iano, no qual todas as nos-
sas tentativas de conseguir um conhecimento verdadeiro da pendência Dele, a única maneira pela qual podemos lançar dúvidas sobre as
realidade seriam frustradas por um gênio maligno, exige um idéias que concebemos de maneira clara e distinta é supondo que Deus seja enga-
nador. E se esta fosse uma possibilidade a ser levada a sério, então não podería-
exorcismo cósmico, uma limpeza dos céuss•. mos confiar nem em nossas faculdades, nem em nossas idéias claras e distintas.
Ver Rcponscs de /'autcur aux secondes obiectio11s, Oeuvres, A. T., IX, pág. 113.
-" Na resposta de Descartes às objeções submetidas por Merscnne, ele disse que n Descartes, Meditatious, IV, Ocuvres, A. T., IX, págs. 42-43·
depois da prova da existência de Deus c do reconhecimento de nossa total de- " lbid., pág. 42.

'93
to é verdadeiro, mas pela Graça de Deus em Sua Bondade, se vez a dúvida não lhe ocorra, apesar disso ela pode
trata de algo efetivamente verdadeiro. Com esta garantia surgir, se ele examinar a questão, ou se outra pessoa a
monumentaL Descartes podia agora dissipar as dúvidas da sugerir; ele jamais estará a salvo dela se não reconhe-
Primeira meditação sobre o conhecimento racional. Tendo o cer primeiro a existência de Deus~ • 6

demônio sido exorcizado dos céus e da Terra, então não res-


tava qualquer questão sobre as verdades da matemática. Uma Portanto, não importa que verdades o ateu possa conhecer,
vez o critério de dar:eza e distinção das idéi~s tendo sido ele jamais poderá estar certo de que são verdades, já que ele
estabelecido pela honestidade garantida de Deus, as dúvidas não pode jamais erradicar a possibilidade de estar enganado
iniciais, o pirronismo inicial, desapareceriam, porque agora por mais certo que ele se sinta. Nenhuma base para a certeza
podemos decidir o que é verdadeiro, o que constitui evidên- ou garantia secular pode ser encontrada. Em um mundo se-
cia, e assim por diante. Tudo passa então a ser relativamente cular há sempre a possibilidade assustadora da ilusão demo-
seguro e fácil. As verdades da matemática são claras e distin- níaca ou da auto-ilusão, mesmo sobre as questões as mais
tas, somos portanto compelidos a acreditar nelas, e temos evidentes. Assim, em um mundo sem Deus, qualquer "ver-
garantia disso, já que Deus não é enganador. As relações dade" pode ser considerada duvidosa (na medida em que
entre as verdades da natureza podem também ser descober- pode ser falsa), e nenhuma "ciência verdadeira" pode ser
tas graças a nossa confiança em Deus. Podemos estar certos descoberta. Só Deus pode dissipar todas as dúvidas se Ele
de que existe um mundo físico ao qual as verdades sobre a não for enganador, e portanto só Deus pode garantir que as
pura extensão se aplicam, uma vez que Deus não nos faria verdades que conhecemos na matemática e na física são mais
pensar assim a menos que de fato existisse um mundo deste do que meras aparências da verdade em nossa mente57,
tipo além do alcance de nossas idéiasss. Portanto, levando-se tudo isso em conta, Descartes
O ateu não é capaz de ter esta garantia sobre a verdade considerou que tinha conseguido, a partir das profundezas
objetiva de suas idéias claras e distintas, porque ele não tem desesperadoras da Primeira meditação, uma completa rever-
um Deus para garantir aquilo que ele pensa conhecer. Ao são do ceticismo, marchando da dúvida total para a certeza
responder à afirmação de Mersenne de que um ateu é capaz totaL Esta surpreendente mudança só foi possível porque o
de conhecer uma verdade da matemática de forma clara e pirronismo tinha sido levado suficientemente a sério. Ao du-
distinta, Descartes declarou:
'"Descartes, Repouse de /'auteur aux seco11des ob;ectians, OeiJvres, A. T., IX,
Não nego isso, mas apenas afirmo que, por outro lado, pág. UI.
"Doney apresenta uma interpretação bastante diferente da passagem sobre a ma-
um tal conhecimento de parte dele não pode consti- temático ateu em seu "Cartesian Cirde", pág. 337· Ele afirma que Descartes
tuir a verdadeira ciência, porque nenhum conhecimen- m;mtém que o ateu pode ter um conhecimento certo de uma verdade particular,
ou de demonstrações simples, mas de não poderia "ter uma certeza real sobre a
to que possa ser tornado duvidoso deve ser chamado matemática considerada como um corpo de proposições verdadeiras". Entre-
de ciência. Uma vez que ele é, como supomos, um tanto, parece-me que Descartes vai muito além disso, afirmando que o ateu
~não pode estar ccrw de que não foi enganado sobre as coisas que parecem mais
Ateu, ele não pode ter certeza de que não está sendo evidentes para de". Portanto, mesmo em relação a verdades particulares e a
iludido em relação àquilo que lhe parece mais eviden- deduções simples, o ateu não pode estar certo, pois o demônio não foi exorciza-
do de seu universo. O ateu sabe que os três ângulos de um triângulo são iguai~>
te, como foi suficientemente mostrado, c embora tal- a dois ângulos rews em um sentido bastante diferente do do matemático religi-
oso, para o qual este é um conhecimemo verdadeiro. O ateu pode saber isto da
mesma maneira pela qual o homem comum sabe que a neve é branca. Eles
"Cf. Descartes, MedíratimJs, V c VI, Oeuures, A. T., IX, págs. 42-56. pensam que é assim, acreditam nisso, mas mesmo assim isto pode ser falso.

,,
.:I
vidar dos limites da capacidade humana, a força do cogito Esta resposta dramática à crise pyrrhonienne se defron-
pôde emergir como uma onda na praia, arrastando a crise tou com o problema colocado pela Reforma em seu nível
pyrrhonienne e levando o indivíduo recém-iluminado para o mais profundo, e, com efeito, apresentou uma solução típica
terreno de uma verdade sólida c inabalável. Cada etapa no da Reforma a nível racional, mais do que a nível religioso. O
caminho para a verdade absoluta após o cogito fortalece o desafio de Lutero e Calvino tinha dado origem à busca de
afastamento do ceticismo, e torna seguras as etapas já ultra- uma garantia da certeza de nossas crenças e princípios bási-
passadas. O critério levava a Deus, Deus levava à completa cos. Tanto os reformadores quanto seus adversários podiam
garantia, e a completa garantia ao conhecimento do univer- cada um mostrar que a visão do outro não tinha fundamen-
so mecanicista. Apenas após termos atravessado o vale da tos defensáveis e podia estar contaminada por dificuldades
dúvida completa poderíamos ser levados para a paz e a segu- céticas. A extensão deste tipo de problema para o campo do
rança de um mundo visto como uma teodicéia, nossas idéias conhecimento natural revelou que o mesmo tipo de crise cé-
e verdades como fiats divinos, para sempre garantidos pelo tica existe também aí. Qualquer fundamento filosófico po-
reconhecimento de que o Todo-Poderoso não pode nos enga- deria ser questionado, um fundamento exigiiia um novo fun-
nar. Quando a jornada da mente até Deus estava completa, damento e assim por diante.
Descartes pôde escrever sem hesitação nos Princípios: Os reformadores, especialmente calvinistas, apresenta-
vam como defesa de suas crenças a afirmação de que pela
Não podemos errar quando damos nosso assentimen- "voye de l'examen" poderíamos descobrir uma verdade reli-
to apenas a coisas que conhecemos de modo claro e giosa, a verdadeira fé, que nos revelaria seu critério, a regra
distinto. da fé, que por sua vez nos revelaria sua fonte e garantia, Deus.
Mas é certo que jamais tomaremos o falso por verda- A iluminação envolvida na descoberta da verdade religiosa
deiro se dermos nosso assentimento às coisas que per- tinha dois aspectos, por um lado seríamos iluminados pela
cebemos com clareza e distinção. Porque uma vez que verdade, por outro lado, pela Graça Divina seríamos capazes
Deus não é enganador, a faculdade do conhecimento de reconhecer esta verdade. A iluminação, a luz interior, for-
que Ele nos deu não pode ser falaciosa, nem a facul- neceria uma segurança completa, uma convicção, uma certe-
dade da vontade, desde que não as estendamos além za subjetiva. E pretendia-se que a própria experiência desta
daquelas coisas que percebemos claramente... E mes- certeza formidável nos convenceria de que aquilo que sentía-
mo se esta verdade não puder ser racionalmente de- mos de modo tão certo era também objetivamente verdadei-
monstrada, nós estamos por natureza tão dispostos a ro, isto é, correspondia ao estado atual das coisas no univer-
dar nosso assentimento às coisas que percebemos cla- soGo. Sabemos que encontramos a verdadeira fé, e sabemos
ramente que não temos a possibilidade de duvidar de disso porque se trata da fé medida pela regra da fé, as Escri-
sua verdade [enquanto as percebermos assim)-1~. turas, que por sua vez sabemos ser a regra da fé porque é a
Palavra de Deus, a qual ele nos tornou capazes de reconhecer
E ele pôde dizer ao estudante Burman ·que ninguém seria um e compreender. O ponto de partida básico, inquestionável, é
'1,
cético se observasse com atenção suas idéias inatas, porque
1
' seria impossível duvidar dclass9, "'Estou aplicando o tenno "certeza subjetiva" ao estado mental do indivíduo, aos
seus sentimentos psicológicos, quando sabe, ou está certo de que, por exemplo:
"Descartes, Pri11cip/es, Oeuvres, A. T., IX, parte I, sec. 43, pág. 4.~· 2+2=4· "Verdade objetiva" refere-se ao fato de que, não importa como nos sen-
"Descartes, Emretia11s avec Burma11, págs. 4-5, c Oeuvres, A. T., V, pág. 146. timos, :!.+2 realmente é igual a 4·

297
a certeza subjetiva, ou convicção total, acerca da verdade O cogito nos leva à regra da verdade, a regra nos leva a Deus,
religiosa. De modo a garantir que esta certeza completa não e Deus nos dá a garantia objetiva de nossa certeza subjetiva,
é meramente um sentimento pessoal ou loucura, deve ser Tendo começado no caminho da verdade ao experimentar a
mostrado que aquilo de que nos sentimos seguros é objetiva- iluminação pelo cogito, acabamos por reco"nhecçr que o cará-
mente verdadeiro, e não apenas o que subjetivamente acredi- ter indubitável de todas as idéias claras e distintas é não só um
tamos ser verdadeiro. Portanto, a busca envolve encontrar fato psicológico que aceitamos e com o qual convivemOs, mas
"ganchos" para prendermos esta certeza subjetiva de modo é um fato ordenado por Deus, e portanto objetivamente ver-
que possa transformar-se de uma experiência individual inter- dadeiro. Não só acreditamos, e em um sentido psicológico,
na em uma característica objetiva do mundo. E, de alguma devemos acreditar, em qualquer proposição clara e distinta,
forma, a certeza pessoal de que encontramos a verdadeira fé, mas também temos agora a garantia de que aquilo em que
que pode ser verificada por esta regra verdadeira (da qual acreditamos corresponde ao que objetivamente ocorre. O que
estamos subjetivamente certos), proveniente de Deus, é trans- sei ser verdadeiro em meu mundo das idéias (isto é, aquilo de
formada de uma opinião ou crença inquestionada em uma que estou subjetivamente eerto), torna-se aquilo que é verda-
verdade objetiva pela experiência subjetiva da iluminação da deiro no mundo real, independentemente do que eu penso,
verdade e de sua fonte. A experiência religiosa nos convence sinto ou acredito. Minhas verdades pessoais tornam-se as
de determinadas verdades religiosas e as verifica, de modo que verdades objetivas conhecidas por Deus devido à garantia
estas são ao mesmo tempo aquilo em que acreditamos por divina de que o que tenho de aceitar como verdadeiro {subje-
completo e o que é efetivamente verdade. O próprio evento tivamente) é verdadeiro (objetivamente).
mental por meio do qual obtemos certeza de alguma forma Utilizando o sentimento psicológico da certeza subje-
transcende a si mesmo e nos revela a Deus, fonte deste acon- tiva como o início da solução da crise cética, incorre-se no
tecimento, que então garante que o conteúdo deste aconteci- risco de tornar duvidoso todo o conhecimento·transubjetivo.
mento, as verdades religiosas, não são apenas crenças pesso- Lutero e Calvino foram acusados de tomar suas próprias
ais, mas também verdades que Ele ordenou. opiniões pessoais e seus sentimentos sobre elas e_tentar fun-
Na resposta de Descartes ao ceticismo encontramos o damentar toda a estrutura da religião em fatos subjetivos,
mesmo tipo de desenvolvimento da Reforma, e a mesma ten- em suas vidas mentais. Ao insistir que há uma garantia de
tativa de objctificar a certeza subjetiva unindo-a a Deus. A que o que é subjetivamente certo é verdadeiro não só para o
"vaie d'examen" cartesiana é o método da dúvida, o exame indivíduo, mas de modo absoluto e objetivo, os reformadores
daquilo em que acreditamos. Ao passar do pirronismo parci- declararam ter evitado as armadilhas do ceticismo. E Des-
al que duvida da confiabilidade dos sentidos para o cartes, ao iniciar a sua reforma na filosofia teve de seguir o
pirronismo metafísico da hipótese do sonho, duvidando da mesmo caminho. No drama do cogito ele "mina as bases do
realidade de nosso conhecimento, ao pirronismo total da hi- pirronismo" 6 '. Mas, de modo a transformar isto em mais do
pótese do gênio maligno, que· duvida da confiabilidade de que uma vitória pessoal sobre as idéias em sua mente e seus
nossas faculdades racionais, finalmente descobrimos o cogi- sentimentos sobre elas, a inabalável certeza de Descartes teve
to, uma verdade tão subjetivamente certa que somos simples- de estar ligada a uma fonte que pudesse garantir sua verda~e
mente incapazes de duvidar dela. Este é o primeiro aspecto da
iluminação - a constatação de que existe a verdade. O segun-
•• Jcan-Baptistc Cochet, La C/ef des sciences & dcs heuax-arts, ot1ia/ogique (Paris,
do é o reconhecimento da fonte da verdade, de sua garantia. 1750), pág. 58-

'99

li
objetiva igualmente. Para que pudesse ser vitorioso, o que X. Descartes; Sceptique Malgré Lui
Descartes pensava ser verdadeiro tinha de ser verdadeiro;
aquilo de que ele estava subjetivamente certo tinha de Assim que apresentou sua conquista do dragão cético,
corresponder ao estado de coisas objetivo. Descartes logo se viu denunciado tanto como um perigoso
A derrubada revolucionária do ceticismo por Descartes pirrônico quanto como um dogmático malsucedido cujas te-
e a sua reivindicação de ter obtido um conhecimento objetivo orias eram apenas fantasias e ilusões. Os pensadores ortodo-
pode ter sido a mais firme solução para a crise pyrrhonienne. xos c tradicionais consideraram Descartes como um cético
Mas foi precisamente na passagem da certeza subjetiva para vicioso porque seu método da dúvida negava a base mesma
a verdade objetiva que Descartes e sua filosofia, bem como do sistema tradicional. Portanto, apesar do que ele próprio
Calvino e o calvinismo, enfrentaram a mais séria oposição, dizia, Descartes foi considerado o ponto culminante de dois
oposição que viria transformar o triunfo cartesiano em tragé- milênios de pensamento pirrônico, desde Pirro de Élis, todo
dia. Os inimigos lutaram para mostrar que embora uma cer- ele dedicado a tentar minar os fundamentos do conhecimen-
teza possa ter sido encontrada, os esforços heróicos de Descar- to racional. Aqueles que tinham inclinações céticas por sua
tes ou não foram esforços, ou foram um fracasso completo, vez não consideravam Descartes como um dos seus, e pro-
permanecendo a crise pyrrhonienne sem solução c insolúvel na curavam mostrar que ele não havia conseguido nada, c que
base de toda a filosofia moderna. todas as suas afirmações eram apenas opiniões e não certe-
zas. Questionavam assim todo avanço além do cogito (e
mesmo o próprio cogito), de modo a afogar o heróico Des-
cartes no poço da incerteza. Os dogmáticos atacaram sobre-
tudo a Primeira meditação, pois aí se encontrava o mais for-
te argumento pirrônico, o qual, uma vez admitido, eles per-
cebiam que não poderia ser superado. Os céticos atacavam o
restante das Meditações como um duvidoso non-sequitur à
Primeira meditação. De ambos os lados, o mesmo tipo de
bombardeio que tinha reduzido os reformadores a pirrônicos
foi lançado contra os novos dogmáticos, o São Jorge que
pretendia ter matado o dragão cético. O passo da certeza
subjetiva das idéias na mente para a verdade objetiva sobre o
mundo real foi negado, e mesmo o ponto de partida foi redu-
zido a nada além da simples opinião de um homem. Se a
opinião de Calvino tinha sido insuficiente para estabelecer a
verdade religiosa, a opinião de Descartes seria igualmente
insuficiente para estabelecer a verdade filosófica.
Quase que imediatamente após a primeira publicação da
filosofia de Descartes, surgiram críticos acusando-o de aderir
ao pirronismo. Começando com Pierre Pctit c o padre Bourdin
na França, c com Gisbert Voetius c Martinus Schoockius em

JOO
Utrecht, foi feita a acusação de que Descartes havia feito con- em primeiro lugar para termos certeza de todas as outras
cessões em demasia desde o início, e tinha adotado um ceticis- coisas, tudo o que conhecemos seria posto em dúvida e o
mo do qual nada de certo poderia emergir. Com seu método conhecimento genuíno seria impossível, uma vez que está além
da dúvida ele havia derrubado todas as evidências aceitáveis de nossas capacidades finitas e limitadas compreender a Deus
que possuímos, havia rejeitado o senso comum, a experiência por meios racionais4,
e a autoridade, havia eliminado todas as possibilidades de se O padre Bourdin, um importante professor jesuíta em
encontrar um fundamento seguro para o nosso conhecimen- Paris, usava a Primeira meditação e parte da Segunda como
to. Uma vez que um ceticismo deste tipo era perigoso não só ponto de partida.para um ataque, mostrando que o método
para a filosofia, mas para a religião também, Descartes, cético de Descartes era o de um cético completo, e portanto jamais
e ateu, deveria ser destruído'. levaria a qualquer certeza, mas apenas a destruiria. A crítica
Já em r638 encontramos um crítico não identificado de Bourdin, vindo de um membro da ordem que o havia
escrevendo a Descartes para reclamar que as regras de sua educado, incomodou profundamente a Descartes. Em uma
morale e de seu méthode eram demasiado céticas e que, as- carta de protesto ao provincial jesuíta, padre Dinet, Descar-
sim como as dúvidas dos pirrônicos, não levarão a nenhuma tes se indignou contra Bourdin, suas ofensas, suas denúncias
verdade básica•. Durante o.mesmo período, Petit escreveu as e a maneira como o condenava em sala de aula. Mas Descar-
suas objeções, tentando mostrar que Descartes tinha inverti- tes afirmava que a principal acusação de Bourdin era que o
do todo o processo do conhecimento das coisas, e que na autor das Meditações tinha formulado uma dúvida excessi-
verdade iria torná-las incognoscíveisJ. Infelizmente não dis- va, "ele não fez nenhuma objeção a mim além de eu ter leva-
pomos das queixas de Petit contra o método da dúvida, mas do a dúvida longe demais">.
as passagens de que dispomos indicam o ponto de vista geral As críticas de Bourdin, tais como se encontram nas
a partir do qual argumentava que Descartes estava lançando Sétimas objeções às Meditações, têm a intenção de ridicula-
tudo em dúvida. A posição de Petit era que o conhecimento rizar a posição de Descartes, mostrando-o de uma maneira
mais elevado e final que podemos ter é o conhecimento de· cômica. Mas, embora Bourdin seja freqüentemente culpado
Deus, o qual, do nosso ponto de vista, é pouco claro e indis- de má compreensão, má interpretação e de fazer citações er-
tinto. Temos de começar com a informação disponível a nós rôneas, seu ataque contra o método da dúvida e a posição
no estado em que nos encontramos, os fatos da- experiência positiva desenvolvida logo em seguida ao cogito indicam al-
sensível, que são os mais claros para nós, e com base neles guns dos problemas que de fato reduziam o esforço cartesiano
construir nosso conhecimento. Se tivermos de conhecer a Deus ao pirronismo. As duas principais acusações são: primeiro,
que o método de Descartes é inteiramente negativo, jogando
fora todos os meios prévios de se buscar a verdade, e não
' Adrien Baillct, e~ seu La_ Vie de M. DesCartes, Paris, 1691, ;:.• pane, pág. 92,
relata que Voet1us considerava sua cruzada contra Descartes uma defesa da colocando nada no lugar disso; e, segundo, que devido a seu
~eligião contra um "cético e ateu". Voerius chegou mesmo a tentar que Mersenne caráter negativo o método não pode alcançar nenhuma cer-
JUntasse suas forças às dele, já que tinha se m:H1ifesmdo tão enfaticamente con-
tra o ceticismo e o ateísmo. teza.
'Ca_rta de S. P. a Descartes, fevereiro de 1638, em Descartes, Oeuvres, A. T., I,
pags. 5II-517.
4
' As objeções de Picrre Petit foram publicadas com base em um manuscrito na De Waard, "Les Objections de l'ierre Petit", págs. 72-75. Descartes considerava
Bi~liothl:que N~tionale por Corn~lis de Waard, em seu "Les objections de Pierre estas críticas muito pobres Cf., ibid, pág. 64. .
PetJt contre I c D1scours et lcs Essms de Descartes", Revue de Métaphysique et de 'Descartes, Carta a Dinet, em PhilosoJ!hical 'iilorks, li, pág. 354· O original latino
Mora/e, XXXII, 1925, págs. 53-89. se encontra em Oeuvres, A. T., VIl, pág. 573·
A primeira afirmação pode ser resumida nesta seguin- ou natureza de alguma matéria e dizer que isto é ver-
te passagem instigante: dadeiro sobre esta matéria. Entretanto, a existência
etc." O que se pode fazer acerca de outras coisas des-
[O método] retira todos os nossos instrumentos ante- te tipo? Se o pressionarmos, ele dirá: "Espere até que
riores, e não traz nenhum outro para ocupar o lugar eu saiba que Deus existe e até que eu veja que o Espí-
deles. Outros sistemas têm fórmulas lógicas, silogismos rito maligno está acorrentado". Mas nós podemos res-
e métodos seguros de raciocínio; seguindo-os, como o ponder: "Isto tem pelo menos a vantagem que, embo-
fio de Ariadne, encontramos o caminho jJara sair do ra não Produza silogismos, ao menos evita cuidado-
labirinto e podemos facilmente desfazer as questões samente todas as falácias". Isto é de importância ca-
intrincadas. Mas este novo método, ao contrário, des- pital; para impedir que a criança tenha catarro, ar-
figura as velhas fórmulas, ao mesmo tempo empalide- rancamos seu nariz! Não poderiam outras mães ter
cendo diante de um novo jJerigo, ameaçado por um uma maneira melhor de limpar o nariz de seus filhos? 6
Espírito maligno de sua própria invenção, teme estar
sonhando, duvida se não está delirando. Ofereça-se a O método, segundo Bourdin, rejeita todos os instrumentos da
ele um silogismo, ele tem medo da [premissa] maior filosofia anterior, especialmente os do aristotelismo. Mas
seja ela qual for. 'Talvez", diz ele, "um Espírito me quando até mesmo os dados sensoriais e o silogismo se torna-
engane." A [premissa] menor? Ficará alarmado e dirá ram duvidosos, o que nos resta? Todos os meios possíveis que
que é duvidosa. "E se eu estiver sonhando?" Quantas podemos empregar para obter conhecimento podem ser ata-
vezes algo não pareceu certo e claro a alguém que so- cados devido aos problemas dos sentidos, o problema do
nhava o qual, ao final do sonho, descobriu ser isto sonho, a hipótese do gênio maligno. O método de Descartes
falso? O que finalmente dirá o método acerca da con- pode evitar que erremos, porém, insistia Bourdin, também
clusão? Evitará todas igualmente como se fossem ar- evitará que conheçamos. Os métodos antigos, que Descartes
madilhas e redes. "As pessoas delirantes, as crianças e desprezava, haviam sido testados e foram considerados sufi-
os loucos não acreditam que raciocinam de modo ex- cientemente certos. O que ele oferecia no lugar deles era um
celente, embora lhes faltem os sentidos e o juizo? E se método completamente destrutivo, que também estava sujeito
o mesmo acontecer comigo? E se o Espírito maligno ao questionamento. As bases que Descartes oferecia para a
tiver lançado poeira em meus olhos? Ele é maligno e dúvida, seus níveis de ceticismo poderiam ser questionados.
eu não sei ainda se Deus existe e se é capaz de contro- Temos certeza de que os sentidos nos enganam? De que o
lar este enganador." O que se poderia fazer aqui? O sonho e a vigília podem ser confundidos? De que existe um
que pode ser feito, quando este método declara e man- gênio maligno? A evidência apresentada por Descartes é alta-
tém obstinadamente que a necessidade da conclusão é mente suspeita. Consiste em apontar o que ocorre ocasional-
duvidosa, a menos que saibamos primeiro com certe- mente, ou como pessoas doentes ou loucas se comportam. Se
za que não estamos sonhando, nem somos loucos, que não temos certeza destas dúvidas elas próprias, por que aban-
Deus existe, é veraz, e tem o Espírito maligno sob con-
trole? O que pode ser feito quando o método repudia
tanto a matéria quanto a forma deste silogismo? "É a
• Padre Bourdin, tal como citado por Descartes, The Seve11th Set of Obiections, em
mesma coisa dizer que algo está contido no conceito Philos. \Vorks, II, págs.318-319; Oeuvres, A. T., VII, págs. 528-529.
danar o caminho verdadeiro e bem trilhado, para mergulhar ainda mais forte. Embora Descartes tivesse se sentido bas~
em um pirronismo total do qual nada de certo se segue? 7 tante perturbado pelas críticas do jesuíta de Paris, ele ficou
A segunda afirmação consiste em dizer que uma vez ainda mais incomodado com os ataques dos cavalheiros de
tendo aceito o ceticismo total da Primeira meditação, o mé- Utrecht. Gisbert Voetius era o reitor da grande universidade
todo de Descartes não pode levar-nos a nenhuma verdade holandesa desta cidade, e Schoockius, seu discípulo. Ambos
' I
segura porque negou todo caminho possível para a verdade. estavam preocupados em primeiro lugar em eliminar as in-
A conquista do pirronismo na Segunda meditação é uma frau- fluências cartesianas de sua instituição, onde Regius, um dos
de e uma farsa devido "ao procedimento suicida do Método, primeiros convertidos ao cartesianismo, ensinava' 0 • Após
[devido] à maneira como ele se afasta de toda esperança de salvar a universidade do perigo imediato, passaram a esten-
alcançar a luz da verdade" 8 , Repetidamente Bourdin exami- der suas críticas ao próprio autor desta nova filosofia, publi-
nou e reexaminou o cogito e as "verdades" que se seguiram cando um ataque à teoria de Descartes.
dele, para mostrar ao ambicioso Descartes que nada disto Em 164 3 estes dois opositores holandeses publicaram um
poderia sobreviver imaculadamente, uma vez adotado o mé- livro, Admiranda Methodus Novae Philosophiae Renati Des
todo da dúvida. Cada passo dado por Descartes em uma di- Cartes, aparentemente obra sobretudo de Voetius". No pre-
reção positiva poderia ser considerado duvidoso por seus fácio, Descartes é relacionado aos mais perigosos inimigos da
próprios critérios, uma vez que ele poderia estar enganado, religião: os céticos, os socinianos e os ateus'\ Em seguida, no
ou poderia estar sonhando. O que quer que parecesse claro e texto, Descartes é acusado de ter adotado o estilo de vida dos
distinto a Descartes, poderia não ser assim, se o método da pirrônicos, e de apresentar um argumento inadequado contra
dúvida fosse levado a sério. Uma vez tendo assumido a im- o ceticismo e o ateísmo'3. Finalmente, na quarta seção, a crí-
precisão de nossa razão, de nossos sentidos e de nossos prin- tica mais crucial é formulada, a saber, que a filosofia de Des-
cípios, percebemos qUe qualquer conclusão a que chegamos cartes leva diretamente a um tipo de pirronismo denominado
pode ser errônea, não importa quão firme nos pareça, ou "semiceticismo", "semi" porque Descartes chega a fazer algu-
quanto possamos acreditar nela. Portanto, o cogito não esta- mas afirmações positivas. {"De fato, não desejo que nosso
belece nada de que possamos ter segurança que seja certo, amigo, Renê, seja um cético publicamente, basta que ele o seja
nem tampouco os argumentos que se seguem dele, uma vez secretamente.") '4 De modo semelhante ao de Bourdin, a afir-
que todoS podem estar sujeitos à dúvida simplesmente se mação feita é que o método da dúvida mina todas as nossas
rediscutirmos os motivos para a dúvida e os aplicarmos a bases seguras para o conhecimento, tais como nossos sentidos,
estes pontos9. nosso juízo e nossa confiança em Deus. Ao fazer com que as
Se o padre Bourdin atacou a rejeição por Descartes do dificuldades que ocorrem no processo de conhecer também se
método filosófico tradicionalmente aceito, procurando mos-
trar que o inovador se encontrava preso ao ceticismo que ele '" Para detalhes sobre este assunto ver a carta de Descartes a Diner, em Philos.
próprio criara, seus adversários mais notórios, Voetius c Works, II, pág~. 361-376; Oeuvres, A. T., VII, págs. 582-6o3. Para informações
sobre as carreiras e visão filosófica de Voetius c Schoockius, ver Paul Dibon, La
Schoockius, desenvolveram esta linha de crítica em um grau Philosophie uêerlcmdaise au sikcle d'or, tomo I, Amsterdã, 1954, c C. Louise
11lljssen-Schoute, Nederlands Cartesimúsme, Amsterdã, 1954·
'Bourdin, em Descartes, Philos. Works, H, págs. 273-274 c 318; Oeuvres, A. T., '' Martinus Schoockius c Gisbert Voerius, Admiranda methodus Nova e Philosophiae
VII, págs. 469-470 c 528. Renati DesCartes, Ultraiecri, 1643.
'Bourdin, em Descartes, Philo>. Works, 11, p,ág ..F9i Oeuvres, A. T., VII, pág. 529. "Ibid., pág. 2.
9 Bourdin, em Descartes, Phi/os. Works, II, págs. 287-305 c 319-320, Oeuvres, A. 'l Ibid., págs. 30 e 172-180.
T., VII, págs. 488-509 c 529-530. '' Ibid., pág. 254.

I
''
apliquem à confiabilidade do próprio conhecimento, Descar- Os opositores tradicionalistas de Descartes martelaram
tes tornou tudo passível de dúvida. Os aristotélicos como o ponto de que, intencionalmente ou não, ele havia criado com
Voetius e Schoockius admitiam a existência de problemas na seu método um ceticismo total. Ele rejeitara o caminho
obtenção do conhecimento certo e verdadeiro, mas, diziam eles, aristotélico para o conhecimento ao duvidar primeiro da fonte
se aceitamos os meios de que dispomos como os dados senso- de toda informação, os sentidos, e em segundo lugar dos prin-
riais, e assim por diante, podemos prosseguir com sucesso. Des- cípios básicos e verdades por meio dos quais raciocinamos. Ao
cartes, na opinião deles, entretanto, levava o problema tão a usarmos o método, o conhecimento mais claro e firme que
sério que destruía os únicos meios possíveis para eliminá-los; possuímos é posto de lado como incerto e possivelmente fal-
portanto, ele terminava por nos ensinar apenas o ceticismo ou so. Uma vez que chegamos a este ponto, não resta nenhum
a dúvida completa's, outro meio para se alcançar qualquer verdade indubitável, já
É interessante notar que nove anos mais tarde, quando que os dados, os princípios e os critérios que empregamos
Schoockius escreveu um estudo mais completo do ceticismo, foram todos eliminados. ·
no qual examinava a história deste movimento, seus princí- Descartes se indignou contra esta crítica, protestando
pios e as bases para derrubá-lo, Descartes não foi vilipendia- violentamente contra as acusações de ceticismo feitas pelo
do como pirrônico. As raízes do ceticismo foram remonta- padre Bourdin e por Voetiuszo. Não apenas eles apresenta-
das ao pensamento dos pré-socráticos. Em seguida, basean- ram mal os seus pontos de vista, disse ele, mas não consegui-
do-se sobretudo em Sexto, Schoockius faz um exame do de- ram perceber que os princípios a que recorreram, os da filo-
senvOlvimento dos pontos de vista dos acadêmicos e dos sofia escolástica, estavam sujeitos a questionamento, e que
pirrônicos. Dentre os céticos modernos ele discute Nicolau só após termos rejeitado todos os princípios duvidosos po-
de Cusa, Sanchez, Cornélio Agripa, e Gassendi, mencionan- deríamos então proceder à descoberta de algo que fosse cer-
do Francesco Pico na seção sobre aqueles que haviam escrito toz'. Entretanto, os adversários poderiam indicar, e de fato o
contra o ceticismo' 6 • Na discussão sobre as respostas ao ceti- fizeram, que se todos os princípios fossem tão duvidosos
cismo, o cogito é apresentado como uma verdade que os cé- quanto Descartes pretendia na Primeira meditação, então não
ticos não poderiam evitar'7, Entretanto, Schoockius se dedi- havia meio nem esperança de se sair jamais do desespero
ca com grande detalhe a mostrar que o cogito não é a verda- cético que ele havia introduzido. Em um diálogo artificial
de mais básica, mas pressupõe outras, os princípios válidos escrito ao final do século XVll pelo jesuíta francês Gabriel
da metafísica tradicional• 8• E, em sua própria análise e rejei- Daniel, Aristóteles é invocado para mostrar que Descartes
ção do ceticismo, que é voltada contra os argumentos de Sex- tinha negado que a auto-evidência poderia ser considerada
to, uma resposta aristotélica é apresentada, na qual, contra- um sinal da verdade, uma vez que de acordo com a Primeira
riamente à teoria cartesiana, a validade dos dados da sensi- meditação, 2+3=5 poderia ser falso. E Daniel argumentava
bilidade é tomada como a tese básica'9, que o ceticismo do gênio maligno que precedia o cogito mi-

>o O último oponente parece tê-lo incomodado mais. C f. Descartes, carta a Colvius,
'5 Ibid., págs. 245-254. 2.3 de abril de l643, em Oeu!'res, A.T.,Ill, pág. 647, onde Descartes diz que após
' Martinus Schoockius, De Scepticismo Pars Prior, si ve Libri Quatuor, Groningen,
6 ter lido o Admirrmda, "Deixei os céus por alguns dias, c usei um pedaço de papel
1652, Lib. r, págs. l-76. para tentar defender-me dos males que me foram feitos na terra".
17
Ibrd.,Lib. li, págs. 88-89. " Descartes, Epistola Renati Des Cartes ad Celeberrimum Virum D. Gisbertum
•• Ibid., Lib. 11, págs. 90-99. Voetium, em Oeuvres, A.T., VII, B, págs.I69-171, e carta a Dinet, em
••Ib1d., Libs. III e IV. Phi/osophica/ Works, li, págs. 358-359; Oeuvres, A.T., VII, págs. 578-58o.

I.
nava 0 valor de verdade do critério (uma vez que sua aceita- do")'\ as objeções apresentadas por Gassendi e Mersennel4
ção poderia ser resultado de um ato do gênio), e minava a são suficientes para derrubar, ou tornar duvidosas, as con-
prova da existência de Deus, uma vez que isto dependia da clusões monumentais a que Descartes chegou. Um tema cen-
confiabilidade do critério. De fato, sequer poderíamos deci- tral destas críticas é a questão acerca de se a afirmação de
dir se Deus ou o gênio maligno (qualquer que fosse a fonte) Descartes de que estava certo, percebendo com clareza e dis-
tinham tornado cogito, ergo sum uma proposição falsa ou tinção que as proposições que formulava eram verdadeiras,
verdadeira. Portanto, Daniel faz Aristóteles dizer que após bastaria para torná-las verdadeiras. Talvez, eles sugeriam,
examinar a débâcle cética, que resulta de se levar a sériO a apesar de como Descartes se sentia acerca destas pi.-oposi-
Primeira meditação, "Com base em seu Princípio eu duvida- ções, elas poderiam ainda assim ser falsas.
rei não apenas como um cético, mas sinceramente"". Gassendi se dedicou extensamente ao velho argumento
Se os tradicionalistas tentaram destruir Descartes, dos contra-reformadores de que o mundo está cheio de tolos
mostrando que a Primeira meditação minava tudo e criava que se julgam absolutamente certos, mas que estão errados, e
uma crise pyrrhonienne total e incurável, outros de inclina- em conseqüência, talvez o grande Renê Descartes seja também
ção mais cética concentraram-se na solução, o novo mais um desses infelizes indivíduos. Ao considerar o critério
dogmatismo que supostamente resultava da iluminação do cartesiano de verdade, que o que quer que seja percebido de
cogito. Estes pensadores tentaram mostrar que as pretensas modo claro e distinto é verdadeiro, Gassendi indicou, em pri-
verdades da filosofia cartesiana poderiam ser postas em dú- meiro lugar, que muitos grandes espíritos que aparentemente
vida, pelas próprias dúvidas que ele introduzira no início, e perceberam algumas coisas de modo claro e distinto concluí-
que cada passo dado após a dramática revelação do cogito ram no entanto que jamais poderíamos ter certeza se algo era
teria que ser abandonado, até que o triunfo de Descartes se verdadeiro. Em segundo lugar, nossa experiência pessoal deve
transformasse em tragédia. Todas as verdades absolutas, cer- causar-nos algumas preocupações, pois muitas coisas que em
tas, distintas, a beleza inteira do sistema do mecanicismo um determinado momento acreditamos ter percebido de
teocêntrico se transformariam simplesmente nas opiniões e modo claro e distinto, e aceitamos como verdadeiro, foram
ilusões de Renê Descartes. As pontes que supostamente de- depois rejeitadas. A única coisa que parece ser clara, distinta
veriam ligar as certezas subjetivas do autor com as verdades e verdadeira é que o que nos aparece, aparece. Mesmo na
objetivas do mundo governado divinamente foram demoli- matemática, algumas proposições que foram consideradas
das, e mostrou-se que Descartes jamais poderia dar um pas- claras e distintas, descobriu-se depois serem falsas. As contro-
so seguro além do cogito, se chegasse até ele. vérsias infindáveis que encontramos pelo mundo afora suge-
Sem entrarmos nas críticas ao cogito, especialmente as rem, em terceiro lugar, que "Cada pessoa julga perceber de
desenvolvidas pelo pirrônico do final do século xvn, o bis- modo claro e distinto aquilo que defende"•s. Não se trata do
po Pierre-Daniel Huet (que dissecou o início da Segunda
meditação em tanto detalhe que finalmente transformou
"Penso, logo existo" em "Pensei, logo talvez eu tenha existi- '' Cf. Pierrc-Danid Huet, Censura Philosophiae Cartesianae, Paris, r689; c Censu-
re de la reponse faite par M.Regis au livre iustiflllé Censura Pbilosophie
Car;esimme par Theocrite De La Roche, Seigneur de P/uvígny, lliblioth1:que
Nat10nalc Me. Fr. 14703, n2 3, cap. r, fols. 22-IIJ.
''Embora o segundo conjunto de objeções apareça listado como tendo sido rcuni-
" Gabriel Daniel, A Voyage to the World o{ Cartesius, traduzido por T. Taylor, d~ por Mcrsennc, pode ter sido de sua allloria, pois reflete o seu "ceticismo
2 mmgado".
2' ed., Londres, 1694, pãg. 84. O método dcDescartcsédiscutido naspãgs. y6-9 •
caso de que estas pessoas estão apenas fingindo que realmente Como Gassendi tentou mostrar, a reforma de Descar-
'acreditam nas proposições que defendem, mas estão tão cer- tes na filosofia se sustentaria ou ruiria dependendo deste
tas disso que estão dispostas a ir até à morte em defesa de seus mesmo ponto. Descartes reagiu insistindo, no início, que ele
pontos de vista. Portanto, o que isto parece indicar é que .a não se importava com aquilo em que várias pessoas poderi-
clareza e a distinção são critérios inadequados para determt- am acreditar, ou em quão firmes eram suas crenças, uma vez
nar o que é verdadeiro, a menos que haja um critério adicio- que "nunca pode ser provado que de fato percebem com cla-
nal para se distinguir o que é realmente claro e distinto daquilo reza e distinção aquilo que persistentemente afirmam"~ 8 • Se
que apenas parece sê-lo~ 6 • (Isto, é claro, geraria a necessidade pessoas sérias, sem preconceitos se dessem ao trabalho, seri-
de um número infinito de critérios para se distinguir o que am sempre capazes de distinguir para si mesmas o que ape-
parece ser claro e distinto do que é realmente claro e distinto nas pensam perceberem de modo claro e distinto do que de
e assim por diante.) fato percebem desta forma~9. Aqueles infelizes que não per-
O ponto levantado aqui por Gassendi é essencialmente cebem nada de maneira clara e distinta terão de permanecer
o mesmo que líderes católicos como São Francisco de Sales céticos até que tenham esta experiência. Mas, uma vez que
utilizaram para atacar os protestantes. Se nossa posição de- isto ocorra, suas dúvidas se evaporarão por completo, "Pois
pende de nossa segurança subjetiva de que estamos certos, pelo simples fato de terem precebido algo claramente, eles
não podemos estar de fato errados? Os calvinistas insistiam cessarão de duvidar e de ser céticos"3°,
que a luz interior, ou a qualidade compulsiva da verdade, os Nada disso responde à questão, mas como a solução
tornava absolutamente certos. Mas os pensadores da Con- dos calvinistas, consiste meramente em uma reiteração da
tra-Reforma argumentavam que isto não era suficiente, uma idéia de que a certeza subjetiva é verdadeira, e qualquer um
vez que seria sempre possível que o que alguém pensava ser que tiver esta experiência acreditará nisso. Isto simplesmen-
verdadeiro, ou sentia ser verdadeiro, ou considerava te reafirma a posição de Descartes de que há algo na clareza
indubitável, e assim por diante, fosse na verdade apenas a e distinção de uma idéia ou proposição que nos compele ao
sua fantasia privada. Tudo o que os protestantes tinham a assentimento total e sabemos imediatamente quando nos
oferecer era apenas o que Calvino considerava verdadeiro, o defrontamos com este tipo de situação. A compulsão natural
que Lutero considerava verdadeiro, e o que cada membro e avassaladora que nos leva a assentir às idéias claras e dis-
individual de sua igreja considerava verdadeiro. Mas, não tintas torna-se em última análise a garantia de sua verdade3'.
importa quão certos eles poderiam se sentir, estariam apenas Ao fazer disso a garantia da verdade dessas idéias, Descartes
medindo a verdade por sua própria certeza privada, a menos
que pudessem, de alguma maneira, estabelecer a norma de •• Descartes, The Author's Reply to the Fi(th Set of Objections, em Phi/os. Works,
II, pág. 214, c Oeuvres, A. T., VII, pág. 361.
que aquilo de que tivessem certeza era realmente verda- •• lbid.~ Philos. Works, 11, pág. 226, e Oeuvres, A. T., VII, pág. 379· Craig Brush
deiro~7. consrdcra que Descartes pode escapar da devastação desta objeção. Ver seu
Montaigne e Bay/e, pág. r7r, n.I.
Jo Descartes, Sevent/1 Set o( Objections, em Philos. Works, II, pág. 279, c Oeuvres,
'' Gassendi, The Fiftb Set o( Ob,ections, em Descartes, Philos. W~r~s, H, p~g. 151; A. T., VII, pág. 477·
A discussão deste tópico se encontra nas págs. 151-152. O ongmallatmo esta "Descartes, Principies, parte I, seção 43, em Oeuvres, A. T., IX B, pág. 43, "nós
em Descartes, Oetwres, A. T., VII, págs. 278-279· tenros por natureza a disposição de dar nosso assentimento às coisas que perce-
•• Gassendi, Fifth Objectiom, em Descartes, I'hilos. Works, TI, pág. 152, e Descar- bemos claramente, c não é possível duvidarmos da verdade delas ... ". Ver tam-
tes, Oetwres, A. T., VII, págs. 278-279· bém Benedito de Spinoza, The Principies o( Descartes' Philosophy, La Salle, Ill.,
'' Cf. os argumentos de São Francisco de Sales contra os protestantes citados no 1943, parte I, prop. xiv, pág. 46; c Descartes, Reponses de /'auteur aux Secondes
cap. IV. Objections, em Oeuvres, A. T., IX A, págs; I13-114.

3 '3

I
parece estar enfatizando ainQa mais a ex?eriência psicológi- ra~e~t~ como o Sol". A menos que se possa mostrar qué o
ca, subjetiva como base da certeza, mats do que qualquer prmctpto da clareza e da distinção é realmente claro distinto
. '
e verdadetro, de tal forma que não podemos nos enganar
característica objetiva das idéias ou daquilo a que elas po-
dem se referir. Enquanto o argumento em defesa do critério nem ser enganados ao usá-lo, "não podemos ainda estabele-
de clareza e distinção for baseado primariamente na consci- cer que há uma possibilidade de certeza em nenhum grau
ência intuitiva e na experiência do confronto com algo de relativa a nosso pensamento ou ao pensamneto da espécie
que não se pode duvidar, as objeções de Ga~sendi e os ata- humana" H,
ques dos contra-reformadores podem ser aphcados, lançan- Ao responder a esta crítica tanto ao critério quanto a
do dúvida sobre os fundamentos da filosofia cartesiana. Cada sua garantia na honestidade de Deus, Descartes tratou esta
princípio central introduzido po_: Descartes como cla:o e dis: objeção como um ataque básico à simples possibilidade de
tinto pode ser questionado - e realmente verdadeiro ou e obtermos o conhecimento verdadeiro.Talvez as verdades que
apenas algo que Descartes pensa ser verdadeiro? aceitamos porque são claras e distintas não sejam verdades.
Para fortalecer a sua posição, Descartes passou da cer- Mas nossas concepções claras e distintas não podem ser en-
teza subjetiva que o indivíduo tem do critério para a consi.de- ganosas porque Deus é perfeito, e Deus não pode ser engana-
ração de Deus como o juiz, que iria confirmar e garanttr a dor (o que sabemos com base em nossa idéia clara e distinta
regra da verdade, e as verdades medidas por esta regra. Mas de Deus). Uma vez que tenhamos tomado consciência da
Mersenne e Gassendi apresentaram ambos objeções devasta- existência de Deus, as dúvídas extremas e problemas levan-
doras à manobra filosófica que transformava a segurança tados na Primeira meditação deveriam desaparecer, pois, de
pessoal e subjetiva em certeza sobre a verdade objetiva, obje- acordo com Descartes, ele havia encontrado, "o que me pa-
ções que só poderiam ser respondidas con~edend_o-se q~e em rece [uma boa atitude cética!] a única base sobre a qual a
um sentido fundamental o sistema cartesiano nao havta su- certeza humana pode se apoiar" H, A explicação sobre no
perado a crise pyrrhonienne, nem poderia superá-la. De modo que consiste este fundamento de toda a certeza é bastante
semelhante, os críticos céticos usaram o assim chamado "cír- reveladora.
culo de Arnauld", para mostrar que a garantia objetiva da Para começar, tão logo pensamos em qualquer verda-
nova filosofia ainda se encontrava aberta ao questionamento. de somos espontaneamente persuadidos dela. E, se tal
Mersenne levantou a questão sobre se seria certo que crença for tão forte que jamais possamos ter qualquer
Deus não pode mentir ou nos enganar, apontando que al- razão para duvidar daquilo em que acreditamos desta
guns teólogos mantinham que Deus já havia feito isto. Mes- forma, não há mais nada a buscar; temos aqui toda a
mo que Deus não pudesse ser enganador, talvez nós n~s _en- certeza que podemos razoavelmente desejar. Pois, o
ganemos' a nós próprios, mesmo sob as melhores condtçoes, que nos importa se talvez alguém fingir que mesmo
uma vez que somos falíveis. Pois, "Mas que evidência existe aquilo de cuja verdade nos sentimos tão fortemente
de que não nos enganamos e não podemos nos enganar mes- persuadidos parece falso aos olhos de Deus ou dos
mo em relação àquilo de que temos conhecimento claro e
distinto?"J~ Como outros já haviam indicado, há pessoas que
lJ lbid., pág. 100.
se enganaram sobre coisas que julgavam "perceber tão ela- " ~esc~rtes, Reponses de l'auteur aux Secondes Objections, em Oeuvres, A. T., IX
, pa?. I 13. Descartes observa que "percebo aqui que vós ainda estais enredado
" Mcrsenne, Secondes Obiections, em Descartes, Oem.m:s, A. T., IX A, págs. 99- nas ~tficuldadcs q.ue formulei na Primeira Meditação, e que eu pensava ter re-
movtdo com suficlC!Ite cuidado na Meditação seguinte".
Ioo.

Jl4 3'5
anjos c que, portanto, em termos absolutos, é falso? maneira não intencional a introdução de uma cunha sepa-
Por que devemos nos inquietar com essa falsidade rando nossas verdades conhecidas ·subjetivamente, e garanti-
absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela das por nossas crenças naturais, ou convicção total, das ver-
não temos a menor suspeita? Assumimos ':'ma crença dades objetivas do mundo de Deus. Não podemos ter mais
ou uma persuasão tão firme que não pode ser elimi- nenhuma garantia de que há uma correspondência entre es-
nada, c esta persuasão é claramente o mesmo que uma tes dois tipos de verdades.
certeza perfeitaH, Tendo desenvolvido este ceticismo completo no inte-
rior de seu sistema, Descartes argumenta então, em sua res-
Na própria formulação do argumento Descartes admite que posta a Mersenne, que isto não é importante, uma vez que
existe um tipo de problema cético em relação ao tipo de cer- temos todas as garantias que um homem razoável pode dese-
teza que podemos alcançar. Este problema, quer Descartes jar. Nossa certeza subjetiva é suficiente porque de fato é o
queira ou não, permite supor um estado de coisas em que máximo que jamais poderemos ter. Não podemos decidir se
todo o nosso conhecimento mais seguro seja falso. Se é pos- nossas verdades são "em um sentido absoluto" verdadeiras
sível que as verdades das quais estamos mais persuadidos ou falsas. E uma vez que não podemos decidir isso, e não
sejam falsas de acordo com algum critério absoluto, então acreditamos na possibilidade de que tudo o que conhecemos
jamais podemos ter certeza de que o que devemos aceitar possa ser realmente falso, podemos ignorar isso, e nos satis-
subjetivamente como verdadeiro seja com efeito objetiva e fazer com nossas verdades cuja certeza é assegurada por nos-
absolutamente verdadeiro? Aqui Descartes não só introduz sa convicção total e crença nelas, e por nossa incapacidade
esta possibilidade cética como admite que não temos como de duvidar delas.
eliminá-la. Tudo de que dispomos é uma "convicção tão for- Descartes havia iniciado sua conquista do pirronismo
te" que a dúvida é impossível para nós, e é nisto que consiste insistindo que o que quer que fosse minimamente duvidoso
nossa certeza. Mas enquanto for possível que tal crença, per- deveria ser tratado como falso e completamente rejeitado.
suasão ou convicção não corresponda às verdades divina- Mas, após este começo impressionante, acabou admitindo
mente conhecidas ou ordenadas, tudo o que conhecemos ou que temos de aceitar aquilo que somos forçados a considerar
em que acreditamos pode ser falso. No início de sua conquis- como verdadeiro e certo, mesmo que possa ser na realidade
ta do ceticismo Descartes havia insistido que deveríamos re- falso. Talvez porque tenha percebido o quanto caíra dos céus
jeitar qualquer proposição sobre a qual houvesse o menor do conhecimento verdadeiro em suas concessões a seu amigo
motivo para a dúvida. Aqui um motivo monumental para a Mersenne, Descartes tentou nos comentários seguintes recu-
dúvida é apresentado, pois tanto quanto possamos saber, perar sua posição altiva, mas apenas conseguiu reforçar o
apesar de todas as garantias que possamos sentir ou possuir problema cético fundamental que havia sido revelado em seu
subjetivamente, tudo o que possamos conhecer ou em que sistema. Tentou argumentar que uma certeza completa po-
possamos acreditar pode "em um sentido absoluto" ser fal- deria ser encontrada nas percepções claras do intelecto, corilo
so. O critério absolutO, que Deus ou um anjo empregam, o cogito. Afirmou que tão logo tentássemos duvidar delas,
pode gerar resultados diametralmente opostos dos nossos veríamos que tínhamos de acreditar serem verdadeiras. Esta
padrões de clareza e distinção. Assim Descartes permitiu de situação surgiria apenas em relação às idéias claras e distin-
tas do intelecto. (Portanto, aqueles que se sentem certos so-
"Jbid., págs. II3"ri4- bre todo tipo de outras coisas, completamente certos, não

3'7
importam, já que não estão baseando sua certeza no funda- ou conceber seja apenas uma criação de nossa mente sem
mento de toda certeza.) Mas, apesar do que Descartes pu- relação com a realidade37, A menos que esta possibilidade
desse dizer, isto ápenas mostra, na melhor das hipóteses, que seja excluída, seremos envolvidos em uma outra forma de
há proposições de que nós, com nossas faculdades humanas crise pyrrhonienne, o segundo nível de ceticismo da Primeira
e limitações, não somos capazes de duvidar. Ainda assim es- meditação, no sentido de que mesmo que aceitássemos nos-
tas proposições podem ser falsas de acordo com os padrões sas percepções claras e distintas como verdadeiras, jamais
de Deus. Esta possibilidade Descartes tentou então eliminar poderíamos decidir se eram de fato verdadeiras em relação a
dizendo, "Mais uma vez não há dificuldade, embora alguns algo além de nossos pensamentos. PortantO nosso conheci-
possam fingir que a verdade parece falsa a Deus ou a um mento se reduziria a afirmações sobre como as coisas se pa-
anjo, porque a evidência de nossas percepções não nos per- recem ou sobre como pensamos serem. Mas seríamos inca-
mite prestar nenhuma atenção nessas ficções"3 6 , Assim, em- pazes de conhecer qualquer coisa sobre o universo objetivo,
bora possamos dar razões para duvidar de todas as nossas as coisas em si mesmas.-
percepções claras e distintas, não podemos levar a sério estas A resposta de Descartes à "objeção das objeções" con-
razões por causa do impacto avassalador destas percepções. siste em indicar as terríveis conseqüências que ocorreriam se
Nossa certeza subjetiva é tão grande, que somos incapazes a levássemos a sério. Se acontecesse que tudo que jamais
devido a nossa constituição de sequer entreter a possibilida- pudéssemos saber fossem apenas os pensamentos em nossa
de de que o que conhecemos seja objetiva ou absolutamente mente, que poderíamos ter inventado, "segue-se que nada
falsa. Uma vez teodo Descartes formulado a questão desta existe que possamos compreender, conceber, imaginar, ou
forma, torna-se claro como cristal que ele não ·havia elimina- admitir como verdadeiro, e precisaremos fechar as portas à
do o dragão cético, porque, possamos ou não entreter este razão, e nos contentarmos em sermos macacos ou papagaios
pensamento de um ponto de vista psicológico, uma dúvida e não mais homens" 38 • Mas é isto precisamente que os
incurável existia no interior de seu sistema que iria para sem- pirrônicos afirmam que aconteceria. Devemos fechar as por-
pre impedi-lo de estabelecer qualquer conhecimento verda- tas à razão porque somos totalmente incapazes de encontrar
deiro, no sentido de conhecimento necessário sobre a reali- qualquer certeza objetiva, qualquer ponte entre nosso co-
dade. nhecimento subjetivo, mesmo que indubitável, e o conheci-
Este ponto torna-se mais agudo nos comentários de mento sobre o mundo real. Descartes havia construído todos
Descartes às objeções de Gassendi, quando tratou daquilo os seus elos a partir do cogito até o critério, até o axioma
que chamou de "objeção das objeções", a qual embom l-1 claro e distinto que nos permitiria raciocinar do conteúdo de
não atribua a Gassendi, observa ser muito semelhante às Cl uma idéia até a sua causa real, Deus, e até a verdade sobre o
ticas deste. Esta objeção consiste em manter que, talvez, todo . universo. A "objeção das objeções" indicava que esta estru-
o nosso conhecimento da matemática, mesmo apesar de cla- tura racional toda ela poderia ser nada mais do que um con-
ro e distinto, não se relacione a nada fora da mente, e por- junto de crenças que nos sentíamos compelidos a aceitar como
tanto, toda a física cartesiana pode ser apenas imaginária e verdadeiras, mas sem poder jamais relacionar ao mundo real
fictícia. Descartes interpretou isto como equivalendo à su-
gestão devastadora de que tudo que possamos compreender
"Descartes, Lettre de M. Des Cartes ii Mmtsieur C. L. R. em Oeuures, A. T. IX A,
págs. 211-212.
16 lbid., pág. IJ4. "lbid., pág. 212.

3 ,, 3'9
fora de nós, nem garantir como sendo absolutamente verda~ sas provas. Portanto, o caminho da suposição parece
deira. Descartes, o suposto conquistador do ceticismo, podia ser mais racional do que o da dúvida4o _
apenas contemplar essa crise pyrrhonienne iminente e pro~
clamar, no estilo de Cassandra, quão catastrófico seria se Arnauld havia indicado a aparente circularidade em se estabe-
esta crise não pudesse ser evitada. Mas, não obstante quão lecer o critério de clareza e distinção de idéias com base na
desastrosa ela pudesse ser, Descartes não dispunha mais de existência de um Deus que não fosse enganador, e a existência
nenhum meio em seu sistema filosófico de evitá-la. A única desta divindade com base em nossas idéias claras e distintas
coisa que podia fazer era proclamar que não iria desistir, e sobre ela4'. A versão cética simplesmente amplia esta dificul-
que, mal ou bem, justificadamente ou não, pretendia perma- dade afirmando que primeiro devemos empregar nossas facul-
necer com sua certeza pessoal, completa e subjetiva. Como dades para provar que Deus existe, mas é apenas após o esta-
os calvinistas, ele estava disposto a arriscar a condenação belecimento desta prova que podemos saber se estas faculda-
eterna devido à sua certeza subjetiva, às verdades das quais des são confiáveis. Portanto, apenas devido a uma circularidade
estava convencido em seu íntimo (mesmo que pudessem ser acerca da questão da confiabilidade de nossas faculdades
falsas ou imaginárias). podemos justificar o conhecimento obtido através delas4z.
Uma outra forma pela qual os adversários céticos ata- Os opositores, tanto tradicionalistas quanto céticos,
caram o "triunfo" cartesiano, dizendo que o sistema argumentaram que dado o ponto de partida de Descartes, a
cartesiano deixava uma dúvida quanto à possibilidade de dúvida total, cada passo poderia ser questionado, de tal forma
termos conhecimento objetivo acerca do mundo real, foi pelo que o progresso da mente até Deus consistiria em uma série de
aperfeiçoamento do argumento conhecido como "círculo de passos dúbios, cada um mais duvidoso que o anterior, culmi-
Arnauld". O problema cético envolvido nisto se encontra: nando não em uma garantia completa do que se passou antes,
bem formulado no Dictionnaire de Bayle' 9 , onde é dito o mas em um círculo vicioso, viciando toda a força que possa ter
seguinte sobre Descartes, existido no raciocínio anteriormente feito. As dúvidas da Pri-
meira meditação enfraqueceram as afirmações sobre o crité-
Um de seus primeiros princípios do raciocínio, após rio, o que por sua vez tornou duvidosa a prova sobre a existên-
ter duvidado de tudo, parece ser tão circular que não cia de Deus, tornando assim a posição de que Deus não é en-
permite qualquer desenvolvimento, pois ele prova a ganador sujeita a questionamento. E se esta última não for
existência de Deus com base na verdade de nossas fa- estabelecida como sendo completamente certa então a garan~
culdades e a verdade de nossas faculdades com base tia divina definitiva a todos os passos anteriores não pode ser
na existência de Deus. Teria sido melhor supor a ver- dada, ou pelo menos não pode ser conhecida racionalmente.
dade das nossas faculdades, pois sendo elas instrumen-
tos que usamos em todas as nossas provas c deduções, '' Bayle, Dictiom1aire, edição inglesa, Londres, 1734-40, verbete "Cartes {Renê
a menos que façamos esta suposição, nos encontra- Des)", Rem. AA.
" Antoine Arnauld, Quatriemes ObjectiOIIS, em Descartes, Ocuvres, A.T., IX A,
mos em um impasse, c não podemos avançar em nos- pág. 166.
'' Sobre a resposta um tanto desconccrtante de Descartes à acusação de Arnauld c
a afirmação de Descartes de que não há circularidade, ver Descartes, Répouses
w Esta passagem aparece na edição inglesa em de:z: volumes do Dictionnaire de de /'alltellr aux Quatriémes Objectious, em Oeuvrcs, A. T., IX A, págs. 189-
Bayle, no verbete "Cartes (Renê Des)" que não é de autoria de Bayle. A passa- 190. Gouhier recentemente publicou uma interessante defesa de Descartes quan-
gem discutida aqui é tirada da obra cética de TI1omas Baker, Ref/ectwns on to a este ponto em Etudes Philosophiques, XI, 1956, "La \'éradté di\'ine dans la
Learning, 4' ed., Londres, I7o8, pág. 73· Méditation V", págs. :z.96-310. Ver também Doney, "Tl1e Cartcsian Circlc".

320 3"
O ponto crucial que deve ser preservado é a primeira c artes de volta ao ceticismo total. O problema se encontra
ponte do cogito, a doutrina das idéias claras e distintas, o formulado de modo agudo nos comentários de Malebranche
critério do qual todos os outros passos seguintes dependiam. à passagem da Lógica de Port-Royal citada acima. O grande
Arnauld, na época em que escreveu a Lógica de Port-Royal, oratoriano proclamou que esta posição "estabelece então este
percebeu que a própria possibilidade de se alcançar qualquer ridículo pirronismo, uma vez que este princípio pode ser dis-
conhecimento objetivo dependia da preservação deste elo cutido, e com bons motivos "44, Pode-se argumentar que 0
entre a certeza subjetiva e a verdade objetiva sobre a realida- princípio é verdadeiro apenas se as coisas de fato corres-
de. Caso contrário, não importando quão seguros nós nos pondero às nossas idéias, mas, "é disto que não temos certe-
sentimos acerca de algo, ainda assim estaríamos ureme- za". Não temos nenhum meio de decidir previamente, como
diavelmente perdidos na crise pyrrhonienne. os céticos sempre mostraram, se nossos pensamentos
correspondem à realidade. "Portanto, não é certo que a coisa
E este princípio [tudo que estiver contido na idéia cla- corresponda à nossa idéia, mas apenas que pensamos que isto
ra e distinta de alguma coisa pode ser verdadeiramen- ocorre." 4 s Enquanto tentamos pensar a partir das idéias em di-
te afirmado sobre esta coisa] não pode ser posto em reção às coisas, estaremos presos à crise pyrrhonienne. Tudo
questão sem destruir todas as evidências do conheci- que seremos capazes de faze:Í:' será reiterar repetidamente que
mento humano, estabelecendo um ridículo pirronismo; pensamos que nossas idéias são verdadeiras em relação à re-
pois só podemos julgar as coisas a partir das idéias alidade, que acreditamos nisso totalmente, mas jamais pode-
que temos delas, já que não temos meios de concebê- remos realmente afirmar nada além de que nos parece que
las exceto estando elas em nossa mente, c isto só ocor- aquilo que percebemos com clareza e distinção é verdadeiro
re por meio das idéias. Ora, se os juízos que formula- em relação à realidade. Se de fato isto se dá, permanecerá para
mos considerando estas idéias não se referirem às coi- sempre um mistério.
sas elas mesmas, mas apenas a nossos pensamentos ... Portanto, de todos os lados, os filósofos atacaram o
é óbvio que não teríamos conhecimento das coisas, triunfo cartesiano, convertendo-o em pirronismo, apesar dele
mas apenas de nossos pensamentos. Conseqüentemen- próprio. Se devemos levar a sério a Primeira meditação, eles
te, não saberíamos nada sobre as coisas das quais argumentavam que nada poderia se seguir a partir daí. Se
estamos convencidos que conhecemos de maneira a começarmos com a Segunda meditação, com o cogito, cada
mais certa, mas apenas saberíamos que pensamos se- passo adiante será minado, e todo o belo sistema reduzido às
rem elas de uma determinada maneira, o que certa- simples opiniões de Renê Descartes, que jamais poderá de-
mente destruiria todas as ciências. 41 terminar se são verdadeiras. A cada momento, o dragão céti"
co que ele supunha ter matado se levanta de novo para atacá-
Mas se a conquista cartesiana do pirronismo dependia does- lo. D~ mesma maneira pela qual François Veron tinha redu-
tabelecimento do critério das idéias claras e distintas e de seu zido os protestantes no período da Reforma a um estado de
uso como uma ponte levando das idéias à realidade, foi exa-
tamente quanto a isto que seus oponentes empurraram Des-
•• Nicholas Malebranchc, Reponse du Pere Malebranche, Prestre de /'Oratoire, a
la troistime lettre de M.Amauld, Docteur de Sorboune, touchaut /es idées & /es
plaisirs, em Recettil de tOIJti!S les réponses du P.Ma/ebranche â M. Amauld, tomo
"Arn;~u!d, La Logrqtw otil'cm de pensa, ed. LBarré, Paris, J859, parte IV, cap. IV, Paris, 1709, pág. 51.
45
VI, pág. 329. lbid., págs. 51-52, a citação se encontra na pág. 52.

3'3
desespero cético, exibindo um livro cujo significado eles não simples fato de que ele chegara a conclusões positivas mos-
podiam compreender e cuja verdade não podia~ esta~ele­ trava que não considerava tudo passível de dúvida4 8,
cer os adversários de Descartes tentaram reduztr o Pat da Mas a insistência de Descartes em suas realizações e
' ' . .
Filosofia Moderna a um homem que, no maxtmo, tena ape- intenções nobres não resolveu o problema. Não importa como
nas o conhecimento e a experiência do cogito. Mas o que a Primeira meditação possa aparecer, se levada a sério, ela
isto significava, ou por que era verdadeiro, ou o que mai~ era conduz a marcha do pirronismo a tal ponto que não pode ser
verdadeiro, ele jamais poderia descobrir. Qualquer cammho respondida. Não só os procedimentos duvidosos são elimi-
que ele seguisse do cogito ou para o cogito conduziria direta- nados, mas todos os outros também. Como observou sabia-
mente ao pirronismo total. mente Hume um século depois,
Descartes tentou reagir, insistindo, por um lado, que
os princípios que o levaram ao conhecimento verdadei~o .não Há uma espécie de ceticismo anterior a todo estudo e fi-
podiam ser questionados, e, por outro lado, que as duvtdas losofia que é bastante inculcado por Des Cartes e ou-
da Primeira meditação não podiam ser levadas a sério. Mas tros, como um soberano preservativo contra o erro e
seus adversários mostraram repetidamente que as dificulda- juízo precipitado. Recomenda uma dúvida universal,
des céticas tradicionais podiam ser formuladas contra as re- não só acerca de nossas opiniões c princípios anterio-
alizações construtivas de Descartes, e, usando-se o método res, mas também acerca de nossas próprias faculdades;
cartesiano da dúvida, tudo que aparecesse após o cogito po- de cuja veracidade, dizem eles, devemos nos assegurar,
deria ser questionado. Descartes tinha levado os céticos d~­ através de uma cadeia de razões, deduzidas a partir de
masiado a sério, ou então insuficientemente a sério. Ele ti- algum princípio originário, que não pode ser falacioso
nha inadvertidamente se unido a eles, ou então não tinha ou enganoso. Mas não há um tal princípio, que tenha
conseguido estabelecer sua filosofia em um fundamento tão uma prerrogativa em relação aos outros, e que sej~
sólido que não pudesse ser abalado por alguns dos argumen- auto-evidente e convincente; e se houver, como
tos tradicionais do arsenal de Sexto Empírico. poderíamos avançar um passo adiante dele senão pelo
Descartes protestou dizendo que sua fase cética era próprio uso dessas faculdades que supostamente deve-
apenas simulada, que ele jamais tinha tido as dúvidas da Pri- ríamos ter em dúvida? A dúvida cartesiana, portanto,
meira meditação, e que nenhuma pessoa séria, atenta e sem se fosse possível de ser alcançada por qualquer
preconceitos poderia tê-las, enquanto tivesse consciência de criatura humana (como claramente não acontece) seria
algumas idéias claras e distintas~ 6 • _As dúvi~as~ ele disse, !~­ inteiramente incurável; e nenhum raciocínio poderia
ram formuladas para terem um efetto terapeuuco e dramatt-
co, para fazer com que o leitor visse em primeiro lugar a
fragilidade daquilo em que acreditava, e em seguida a força
dos princípios de Descartes. Ele jamais tivera a intenção de les réponses de /'auteur, em Oeuvres, A. T., IX A, págs. 133-134; Seventh Set of
inculcar em ninguém o ceticismo, mas estava simulando a Objections, em Philos. \Vorks, li, p:íg. 277, e Oeuvres, A. T. VII, p:ígs. 473-474;
Letter to Dinet, em Philos. \Vorks, li, p:íg. 355, e Oeuvres, A. T. VII, págs. 573-
doença para mostrar com mais eficácia qual seria a cura47• O 574; e Notes Directed against a certain Programme published in Be/gium, em
Phi/os. Works, I, p:íg. 448, e Oeuvres, A. T. VIII B, pág. 367; cjohann Clauberg,
Opera Omnia Pbilosophica, Amsterdã, 1691, págs. 1311 e seguintes. Vertam-
•0Descartes, Seventh Set of Objections, em Philos. \Vork~, li, pág. 279, Oeuvres, bém Gouhier, "Doute méthodique ou négation méthodique?", págs. 157-162.
A. T., VI, p:ígs. 476·477; e Entretiens avec Bumwn, pag~. 4-5. . "Dcscarres, Seventh Set o{ Objections, em Phi/os. \Vorks, II, pág. 333, e Oeuvres,
"Descartes, TroisiCmes Objections faites par ml celebre Phdosophe Ang/o1s, avec A. T. VII, pág. 546.

325
jamais levar-nos a um estado de certeza e convicção opiniões, do qual pretendeu ter salvo a si mesmo por
sobre qualquer assunto4,, meio de uma purgação universal, e por uma total der-
rubada de todas as nossas idéias, o que é completa-
Possivelmente porque já estava cansado de explicar por que mente impossível, ou do qual seria muito difícil ara-
havia levantado as dúvidas que levantara, Descartes, em uma zão humana recuperar-se. Não é necessário fazer tan-
carta à princesa Elisabeth, observou que embora ele acredi- to para ser considerado um cético, mas isto deve ser
tasse ser necessário passar por tudo isso pelo menos uma vez feito com mais seriedade e constantemente. A Épochc
na vida, não deveríamos ficar presos a isso o tempo tod0 50 • deve ser tomada em pequenas doses, e deve ser em-
Portanto, Descartes ficou com a seguinte escolha, ou pregada para a saúde da mente, como um remédio
ele havia proposto um método para descobrir a certeza abso- doce c benigno que nos salva de opiniões mal dirigidas,
luta, um método que poderia conquistar o ceticismo levan- c não como um veneno que erradica tudo até os pri-
do-o a sério; ou ele era apenas mais um dogmático que se meiros princípios de nosso raciocínio~·.
recusava a questionar seus próprios princípios e ao mesmo
tempo não podia estabelecê-los. No primeiro caso, gostasse No esforço e fracasso de Descartes ao tratar de dar uma so-
ele ou não, seria levado a uma crise pyrrhonienne, e não po- lução para a crise pyrrhonienne, encontramos uma das ques-
deria escapar do ceticismo engendrado por seu método. No tões cruciais do pensamento moderno. A controvérsia daRe-
segundo caso, não teria sequer começado a responder ao forma havia aberto a caixa de Pandora ao procurar os fun-
pirronismo, porque, como muitos outros de seus contempo- damentos para o conhecimento certo. A retomada do ceticis-
râneos, ele não tinha percebido que todos os dogmas que mo grego, a redescoberta de Sexto Empírico tinham ido de
aceitava estavam sujeitos a questionamento a menos que pu- encontro a esta busca da certeza. Cada lado podia usar as
desse apresentar evidências em favor deles. Tudo o queDes- armas pirrônicas para minar as bases racionais das afirma-
cartes finalmente poderia fazer era apelar para o fato de que ções dos outros. Cada lado podia forçar os outros a basear
não podia duvidar de seus dogmas, portanto, era forçado a seus argumentos em crenças injustificáveis, ou na fé, da qual
acreditar que eram verdadeiros, e além disso, insistia, eram só se poderia dizer que se estava seguro de que era certa, mas
mesmo verdadeiros. Quanto a este ponto, o cético Sorbiêre não se poderia prová-lo. A extensão deste problema do âm-
rejeitou qualquer conexão entre as glórias do nouveau bito da religião para o da filosofia levou ao esforço heróico
Pyrrhonisme e o dogmatismo de René Descartes, suposta- de Descartes. Os nouveaux Pyrrhoniens bem como Descar-
mente construído contra o ceticismo. tes mostraram que as afirmações básicas da filosofia
aristotélica eram passíveis de serem questionadas, mas os
Não é suficiente, como bem sabeis, Monsieur, para céticos e os escolásticos mostraram igualmente que dúvidas
merecer o modesto nome de cético ou acadêmico, que podiam ser levantadas sobre o cartesianismo. Tanto a filoso-
alguém tenha duvidado uma única vez em toda a sua fia tradicional, quanto o novo sistema dependiam em última
vida, nem que tenha assumido este terrível tumulto de análise de um conjunto indefensável de pressupostos aceitos
apenas com base na fé .

., Hume, Enquiry Conceming Hwnan Undcrstanding, ed. Sdby-Biggc, seção XII, '' Samuel Sorbii:rc, Lettre et Discours de M.Sorbiere sur dil!erses matieres curicuscs,
págs. 149-150· , Paris, I66o, págs. 690-691.
'"Descartes, Lctterto Elisabeth,28de junho de 1643,em Oeuvres, A. T. ill, pag. 69·

p6 3'7
Descartes, percebendo o progresso do pirronismo, pôde de certa, cogito ergo sum. Mas uma vez tendo perdido a visão
ver que seus contemporâneos haviam fracassado quanto à cética da Primeira meditação (se é que ele realmente chegou a
destruição do dragão liberado dos textos de Sexto Empírico, tê-la), então suas realizações poderiam ser minadas pelos ar-
porque haviam subestimado a força do monstro. A única gumentos dos nouveaux Pyrrhoniens e dele próprio.
,,, maneira pela qual o dragão poderia ser morto seria através Depois de Descartes, a filosofia moderna teve de en-
da descoberta de uma verdade tão indubitável que nenhum frentar a crise pyrrhonienne. Se alguém tentasse ignorá-la,
pirronismo, humano ou demoníaco, poderia abalá-la. Assim, permitiria que todos os seus pressupostos básicos e conclu-
o cogito matou o monstro e triunfou sobre todas as dúvidas. sões estivessem sujeitos a questionamento, que fossem ataca-
Mas poderia ser encontrada uma garantia para o cogito e dos por algum novo pirrônico. Viver com a crise significava
para as conseqüências desenvolvidas a partir dele? Ambos aceitar que em um sentido fundamental nossas crenças bási-
poderiam ser indubitáveis, mas isto porque eu penso assim, cas não têm fundamento e devem ser aceitas com base na fé,
ou porque o são de fato? No primeiro caso, como mostrou seja ela animal, religiosa ou cega. Poderíamos observar e in-
mais tarde Malebranche, estamos de volta ao Pirronismo. sistir que mesmo com um ceticismo completo, temos uma
No segundo caso, estamos de volta a um dogmatismo certeza que nos permite alcançar um tipo de conhecimento e
indemonstrável. Todo o esforço de Descartes em dar subs- entendimento das coisas.
tância à segunda alternativa, ou desistia do triunfo sobre o Pascal enfatizou esta situação em que nos encontramos,
ceticismo ao negar a força das dúvidas originárias, ou anun- entre um pirronismo total que não podemos evitar e a natu-
ciava seu próprio fracasso por ser incapaz de mostrar que o reza que nos faz crer mesmo assim·s~. Mesmo o mais cético
cogito era mais do que uma certeza subjetiva (em suas res- dentre todos os pirrônicos, Pierre Bayle, admitiu: "Sei dema-
postas a Mersenne e a Gassendi), portanto admitindo que siado para ser um pirrônico, e sd muito pouco para ser um
seu sistema era apenas mais um conjunto de premissas, re- dogmático" H. Uma das principais maneiras pelas quais se
gras e conclusões não demonstradas e indemonstráveis. As resolveu esta situação nos séculos XVTI c XVIII foi através do
pontes entre a certeza subjetiva e a verdade objetiva se reve- desenvolvimento do "ceticismo mitigado". Esta solução en-
laram também apenas certezas subjetivas. contrada de modo embrionário em Castellio e Chillingworth,
A vitória da Segunda meditação dependia do e em detalhe em Mersenne e Gassendi, seria desenvolvida
superpirronismo da Primeira. Mas isto torna então o sucesso ainda mais pelos céticos Foucher, Glanvill e finalmente por
impossível. O abandono das dúvidas iniciais, entretanto, trans- David Hume. Eles viriam mostrar uma maneira pela qual o
forma Descartes de conquistador do ceticismo em apenas mais pirronismo teórico poderia ser conciliado com meios práticos
um dogmático a ser destruído pelos céticos da segunda meta- para se determinar verdades adequadas aos propósitos huma-
de do século XVII: Huet, Foucher, Bayle e Glanvill. Descartes nos. Outros ficariam horrorizados com o rápido progresso do
não poderia sustentar tanto a sua formulação radical do pro- pirronismo54, discutindo de modo erudito sobre as origens
blema levantado pelos pirrônicos quanto a solução deste pro- desta monstruosidade, considerando se teria sido engendrada
blema. Enquanto ele pudesse ver quão devastadoras eram as
dificuldades levantadas por Sexto e seus discípulos modernos,
"Pascal, Pensées, ed. Brunschvicg, n"'. 374, 387, 395, 432 e 434·
o problema da confiabilidade de nossas informações e facul- 5
' Citado por Christoph. Matt. Pfaff, Disser/ationes Ami-Bae/ius, Tübingen, 1719,
dades, da realidade de nosso conhecimento c do critério, esta- 14
I, págs. 3n-4n.
Ver por exemplo a resenha de Villemandy, Scepticismus debellatus em H isto ire des
ria impedido de adotar qualquer outra solução além da ver,da- Ouvrages des Savans. Fev. 1697, págs. 240-250, especialmente págs. 241-242.

P9
,I,
.~
por Jó, Salomão ou pelo Diabo55 • Mas o pirronismo perma- XI. Isaac La Peyrere e o Início do Ceticismo
neceria como um espectro assombrando a filosofia européia Religioso
enquanto os filósofos lutavam para encontrar uma maneira de
superar a dúvida teórica total, ou de descobrir como aceitá- Para continuar a delinear o drama da crise pyrrhonienne
la sem destruir toda a certeza humana5 6 • epistemológica, poderíamos examinar a batalha travada pos-
teriormente entre os cartesianos e os céticos, especialmente
Simon Foucher, Pierre-Daniel Huet e Pierre Bayle. Podería-
mos também acompanhar o desenvolvimento de temas céti-
cos na filosofia inglesa com Hobbes, Boyle e Locke, o ceti-
cismo integral de Glanvill, os esforços heróicos de Berkeley
em refutar o ceticismo, e a derrota destes esforços com o
pirronismo de Hume.
Tudo isso tem sido estudado, pelo menos em parte,
por mim c por outros. Um outro e igualmente significativo
tipo de ceticismo que se desenvolveu· a partir dessas mesmas
raízes e que forma um aspecto crítico do pensamento moder-
no do Iluminismo em diante é o ceticismo religioso, as dúvi-
das relativas à verdade dos elementos básicos da tradição
judaico-cristã.
Vimos que assim que surgiram os primeiros adversá-
rios do ceticismo epistemológico de Sexto-Montaigne-
Charron, foi feita a afirmação de que dúvidas de um caráter
tão fundamental acabariam por levar a dúvidas acerca da
religião. Os céticos foram acusados de serem ateus, embora
ninguém pudesse apresentar uma doutrina religiosa ortodo-
xa, ou sequer mesmo crenças religiosas, que fossem negadas
pelos céticos. O ataque ruidoso de Garasse meramente con-
duziu a uma defesa mais forte do cristianismo pirrônico pelo
líder jansenista, Saint-Cyran'.
O problema crítico viria de outra fonte, a aplicação do
ll C f. Gabriel Weddcrkoff, Dissertatio11es duae quarum prior de Scepticismo profa- método científico "cartesiano" à Bíblia ela própria, origina-
no et sacro praecipue remorlstrantium ... posterior de Atheismo praeprimis riamente para fins religiosos especiais. A pessoa que é consi-
Socinianorum, Argentorati, r665, pág. 3; Joh.Valent.Bützcr, Q. D. B. V. de
Scepticorum Praecipuis Hypothesibus, Ki!oniens, 1706, pág. 4 ("0 primeiro autor
derada como tendo dado início aos estudos sobre a Bíblia
do ceticismo foi o demônio"); e Ephraim Chambcrs, Cyclopaedia, vol. 11, Lon- em uma perspectiva crítica (e cética) moderna foi Isaac La
dres, 1743, verbete "Ceticismo".
'"Para uma breve visão do ceticismo da época de Descartes até Bay!c, ver Popkin,
"The Higb Road to Pyrrbonism", em AmericmJ Philosophical Quarterly, II, 1965, ' Ver as obras de François Garasse discutidas no cap.vi, págs. IJ4-n6; c a resposta
págs. 1-15. de Jean Duvergicr du Hauranne (Saint-Cyran), págs. n6-u8.

l
,, 33'

~I
Peyrêre, I596(?)-1676. La Peyrêre veio para Paris em 1640, mília calvinista de Bordeaux e no início de sua vida teve pro-
tornando-se secretário do príncipe de Condé. Envolveu-se blemas com o sínodo calvinista. A documentação é demasia-
com os principais pensadores deste período, incluindo os do vaga para nos revelar que doutrinas ele supostamente
nouveaux Pyrrhonienes. Teve relações próximas com Mersenne, adotava nesta época. Foi acusado de ateísmo e impiedade,
Grotius, Gassendi, La Mothe Le Vayer, Patin, Bouillard e mas em 1626 foi inocentado com o forte apoio de sessenta
Hobbes, bem como com figuras importantes nos Países Bai- pastores. Por volta de r64olr64r ele havia escrito suas duas
xos como Claude Saumaise de Leyden e com Ole Worm e obras mais importantes, Du Rappel des juifs e Prae-
Thomas Bangius na Dinamarca~. Adamitae5. Levando em consideração estas duas obras em
La Peyrêre tem sido freqüentemente descrito como um conjunto, bem cómo a correspondência relacionada a elas e
ateu na literatura especializada3• Paul Kristeller e eu tenta- os manuscritos não-public_ados, creio que podemos concluir
mos mostrar que o termo "ateu" no final do século XVI e que La Peyrêre adotava uffia pouco usual teologia messiânica
início do século XVTI era usado com um sentido pejorativo, mas não que fosse um ateu. Ele certamente não acreditav~
e não descreve de fato a posição de ninguém, se "ateu" for em algumas das doutrinas-chave do judaismo e do cristianis-
entendido como aquele que nega a existência de Deus e a mo, mas por outro lado tinha crenças místicas em sua pró-
visão judaico-cristã da natureza e do destino humanos. Pen- pria teologia 6 {derivada em parte de Guillaume Postei)?.
sadores críticos tinham interpretações diversas e dúvidas so- Dentre as muitas teses heréticas de La Peyrêre (mais
bre aspectos da verdade da posição religiosa. Mas o ateísmo tarde ele abjurou cerca de cem), se encontravam as afirma-
como negação da existência de um Deus atuante na história ç~es ~e que Moisés não teria escrito o Pentateuco, de que
e como uma negação do relato bíblico como retrato verda- nao dtspomos atualmente de um texto preciso da Bíblia de
deiro de como a história teve o seu início e progrediu, é uma que teria havido homens antes de Adão; de que a Bíblia é
visão típica de meados do século XVII que se desenvolveu apenas a história dos judeus e não de toda a humanidade· de
com base nas heresias de La Peyrêre e no seu ceticismo apli- que o Dilúvio foi apenas um evento local ocorrido na Paies-
cado ao material religioso4, t~n?; de que o mundo pode estar existindo a um tempo inde-
La Peyrêre parece ter estado distante do ateísmo quan- fmtdo; ?e ~~e a ún~ca história significativa é a dos judeus; de
do desenvolveu esta sua visão. Ele era originário de uma fa- que a htstona dos judeus começou com Adão, e se divide em
três grandes períodos: a) a escolha dos judeus cobrindo o
período de Adão a Jesus; b) a rejeição dos judeus, cobrindo 0
'O retrato mais detalhado da vida de La PeyrCre aparece em Jean-Paul Oddos, período de Jesus a meados do século XVII; e, c) a convoca-
Recherches sur la vie et l'oeuvre d'Isaac La Peyràe (1596?-1676), tese de 3êmc
cycle, Grenoble, 1974; ver também Pintard, Le Libertiuage Émdit, págs. 355- ção dos judeus que estava a ponto de ocorrer; de que o Mes-
361, 379, 399,420-424 c 430; e Richard H. Popkin, uThe Marrano Theology of sias esperado pelos Judeus estava prestes a aparecer; e por
Isaac La Pcyri:re" em Studi lntemazionali di Filosofia, V, 1973, págs. 97-126.
1 No início de sua carreira em 1626 de foi acusado de ateísmo c impiedade, mas foi

inocentado pelo Sínodo da Igreja Francesa Reformada. Nenhuma infonnação é


' Um_a carta de Gabriel Naudé ao cardeal Barberini de r641, Bibl.Vat.Barberini,
conhecida acerca das acusações. Cf. Bibliothi:que Nationale Ms. Fonds Français
laum, 6471, foi. 22v., indica que o Prae-Adamitae já havia sido concluído, e
15827, fols. 149'e 162. Ver a interpretação de Don Cameron Allen, The Lege11d
P?r~ue o cardeal Richelicu a havia proibido, as pessoas estavam tentando obter
o{ Noah {Urbana, 1963) pãgs. 89-90 c IJO-IJ7; David McKec, "Isaac La Pcyri:rc, copms desta obra.
a Precursor of thc cighteenth century Criticai Dcists", em Publications o{ the
: C f. ~o_pkin, "Thc Marrano Theology o f Isaac La PcyrCre".
Modem Limzuages Associatimt, LIX, 1944, págs. 456-485; c l'intard, Le
A diVIda de L~ PcyrCre em relação a Postei bem como a semelhança entre as
Lrberti11age Erudit, páginas citadas na nota 2.
mensagens umvcrsalistas de ambos serão discutidas em um volume que está sen-
• Paul Oskar Kristeller, "The Myth ofRenaissancc Athcism and the Frcnch Tradition do preparado por mim c por Marion Daniels Kuntz.
of Frec Thought", em ]oumal of the History of Philosophy, VI, 1968. ·

332 333
último, que todos seriam salvos, independentemente de suas trata, estritamente falando, apenas de eventos judaicos. É
crenças. por isso que o Dilúvio ocorreu apenas na Palestina, que o Sol
A ordem pela qual La PeyrCre desenvolveu sua teolo- parou no céu apenas onde Josué se encontrava etc.
gia não é conhecida, mas aparentemente a teoria pré-adamita No segundo estágio da história judaica, os judeus fo-
e a teoria da origem poligenética da humanidade foram ele- ram rejeitados. Desde Jesus até o presente, os judeus não
mentos iniciais. La Peyrêre tinha todo o seu "Sistema de teo- foram mais os portadores da História Divina. Os gentios fo-
lQgia baseado no pressuposto de que existiram homens antes ram incorporados ao mundo dos judeus9, E, atualmente, por
de Adão" desenvolvido na época em que foi membro dos fim, os judeus serão convocados. Eles se tornarão cristãos
libertins érudits em r64o-r64r. Ele utilizou evidências cien- judaicos, reconstruirão a Palestina, e formarão a corte do
tíficas e históricas tomadas de outros autores para sustentar Messias judaico que governará o mundo juntamente com o
seus argumentos 8• Foi isso que deu início a um genuíno ceti- rei da França ' 0 •
cismo acerca do conhecimento religioso. Com bas.e neste breve esboço da teologia de La Peyrêre
Antes de examinarmos os esforços de La Peyrêre que podemos perceber como se desenvolveram suas principais
levaram a Spinoza e à moderna crítica bíblica, gostaria de heresias. Em primeiro lugar, uma vez que outras pessoas que
esboçar brevemente o que creio ter sido a verdadeira teolo- leram a Bíblia não a interpretaram como La PeyrCre, ele pre-
gia de La PeyrCre. O ponto-chave em sua visão teológica é a cisou questionar a autoria de Moisés e a precisão do texto.
centralidade da história judaica no mundo. A teoria pré- (Esta não é a ordem pela qual ele desenvolveu seus argumen-
adamita, que, como veremos, foi desenvolvida com base no tos.) Como sabemos que Moisés é o autor do Pentateuco?
texto bíblico, em documentos históricos pagãos, e em dados "Isso é dito, mas nem todos acreditam nisso. Essas razões
antropológicos da época, tem o objetivo básico de separar os me levaram a crer que estes Cinco Livros não são os origi-
pré-adamitas (que incluem todos, exceto os judeus) dos ju- nais, mas foram copiados por outra pessoa."'' As evidências
deus. O mundo pré-adamita era um mundo hobbesiano - de La Peyrêre, que formam a base da moderna crítica bíbli-
terrível, brutal e limitado - sem nada de significativo acon- ca, consistem em indicar os conflitos 'e repetições no texto,
tecendo. Quando Deus criou o primeiro judeu a História Di- notadamente nas seções supostamente escritas por Moisés
vina teve o seu começo. E embora apenas os judeus fossem relatando a sua morte. La Peyrêre conclui: "Não preciso in-
os protagonistas dela, o resto da humanidade participou dela comodar o leitor muito mais para provar algo suficientemente
por "imputação mística". No primeiro estágio da história evidente, ou seja, que os Cinco Livros da Bíblia não foram
judaica - a escolha dos judeus, de Adão a Jesus - a Bíblia escritos por Moisés, como se pensa. Nem é necessário que
ninguém se impressione com isso, quando ler muitas coisas
' La PcyrCrc parece ter se preocupado sobre se a esposa de Caim poderia ter sido confusas e fora de ordem, obscuras, deficientes, muitas coi-
descendente de Adão e E,·a. Ver o seu "Proêmio" a A Theo/ogical System up011
the Presupposition that Men rvere before Adam (segunda parte de Men before
Adam), sem indicação de local, r6s6, c Prae-Adamitae, sem indicação de local • Esta teoria "judaicocêntrica" é desenvolvida principalmente nos livros IV e V do
[Amsterdã], r655· Ao desenvolver seu argumento, especialmente no livro m, La l'rae-Adamitae.
PeyrCrc cita material derivado de Boulliard, Gassendi, La Mothc Le Vayer, .e "Esta é a tese central deDu Rappel des Juifs, Paris, 1643. Encontra-se resumida
particularmente de Julius Scalingcr c Claudc Saumaisc. Sobre suas fontes, anti· ao final do livro V do l'rae-Adamitae.
gas c modernas, ver Popkin, "The Dcvelopmenr of Rcligious Sccpricism and .thc "La PeyrCre, Mcn Before Adam, livro III, cap. I, págs. 204-205. Uma vez que há
lnflucncc of Isaac La PcyrCre's Prc-Adamism and Bible 'Criticism'", em C/assJCal várias diferentes edições do Prae-Adamitae, não adianta fazermos referência ao
Influences 011 European Culture, AD 1500-1700, Cambridge, 1976; e Anrhony original. As passagens podem ser facilmente encontradas uma vez que a ordem
Grafton, "Joscph Scalinger and Historical Chronology: The Risc and Fali of a dos capítulos é a mesma na tradução para o inglês c no original latino.
Discipline" em History and Theory, XIV, 1975, esp. págs. 176-177 c nota 83.

334 335
sas omitidas e postas no lugar errado, basta considerar que Este tipo de inconsistência interna era bem conhecido
são um amontoado de cópias feitas de modo confuso"n. muito antes de La Peyri:re, incluindo o fato de que Moisés
Thomas Hobbes no Leviatd é geralmente considerado não poderia ter descrito a sua própria morte. (Esta descober-
o primeiro a negar a autoria mosaica. A data do texto de ta é geralmente atribuída ao rabi Ibn Ezra do século XII.) Em
Hobbes é r6sr, dez anos após La PeyrCre ter escrito seu 1632 o mestre de Spinoza, rabi Menasseh ben Israel, publi-
manuscrito, e Hobbes é muito mais cauteloso, dizendo: "Mas, cou o primeiro volume de uma obra, O conciliador, na qual
embora Moisés não tenha compilado estes textos inteiramen- ele examinou várias passagens contraditórias nas Escrituras,
te, e na forma pela qual os temos, entretanto _ele escreveu oferecendo todo o tipo de maneiras pelas quais se poderiam
tudo que aí se diz ter ele escrito"'J, conciliar estas passagens sem levantar dúvidas sobre a pró-
O significado do questionamento da autoria mosaica pria Bíblia'S. O que Menasseh estava fazendo era típico da
da Bíblia para a tradição judaico-cristã é tremendo, se leva- tradição rabínica, bem como da dos padres da Igreja. La
do a sério. Em primeiro lugar, a garantia última da informa- Peyri:re obviamente não queria um modo de harmonizar as
ção revelada está em ser ela derivada de Moisés, que a rece- Escrituras com os seus dados. Ao contrário, ele pretendia
beu do próprio Deus. Se o elo com Moisés for rompido, en- levantar uma forma básica de ceticismo religioso sobre as
tão um sério ceticismo relativo a afirmações religiosas pode Escrituras de modo a justificar seus próprios pontos de vista
ocorrer. Se Moisés não foi o autor da Bíblia, então quem terá religiosos.
sido, e qual a autoridade de que dispõe para garantir a vera- As evidências baseadas na história pagã, é claro, ti-
cidade de seu relato? nham sido conhecidas pelos judeus e cristãos da Antiguida-
O questionamento à autenticidade do texto bíblico tem de. Eles sabiam que os egípcios, os gregos, e os babilônicos
conseqüências céticas. Se duvidarmos da autenticidade de uma todos eles pretendiam ter tido uma história de duração mui-
passagem, por que critério podemos justificar a aceitação de to mais longa do que a bíblica. Uma resposta partidária a
qualquer outra passagem? La PeyrCre afirmou que a Bíblia todos estes dados tinha sido desenvolvida e reforçada por
não era precisa ao declarar ter sido Adão o primeiro homem, Santo Agostinho e por Judah Ha-Levi, mantendo que todas
e imprecisa ao declarar que todos os povos que atualmente estas culturas estavam mentindo sobre suas pretensões à
habitam a Terra são descendentes dos sete sobreviventes do Antiguidade, e uma vez que não tinham tido a Revelação,
Dilúvio de Noé. La PeyrCre baseou suas acusações de falta de não sabiam realmente do que se tratava' 6 •
autenticidade nas evidências internas encontradas na própria Em vez de adotar esta saída, La Peyri:re juntou os dados
Bíblia, sobre pessoas que não são descendentes de Adão como históricos dos pagãos com os dados dos novos exploradores,
Lilith e a esposa de Caim; na evidência da história dos pa- argume.ntando que com base em tudo isso, a hipótese pré-
gãos relacionando-a à história bíblica; e finalmente nas des- adamita (negando uma afirmação crítica da Bíblia) era o
cobertas de povos e culturas pelo mundo afora nos séculos melhor modo de reconciliar as Escrituras com os fatos conhe-
XVI e XVII que aparentemente não tinham nenhuma rela- cidos sobre a humanidade. Os mexicanos e chineses têm da-
ção com o mundo bíblico'4,
'' Mcnasseh ben Israel, O conciliador ([Frankfurt] Amsterdã, 1632). As demais
partes foram publicadas até 1651.
"Ibid., livro III, cap. I, pág. :.:.oS. •• Subre as discussões anteriores da teoria prê-adamita, ver l'opkin, "Thc Pre-
'' Thomas Hobbes, Leviat!Jan, parte UI, cap. XXXIII, pág. 369 na edição Adamitc Thcory in the Renaissance", em Edward P.Mahoney, cd. P!Jilosophy
Molesworth dos Euglish Works o(T!Jomas Hobbes, Londres, 1839, vol. UI. and Humanism, Retwissmtce Essays 111 Honor o( Paul Oskar Kristeller, Leiden,
•• Ver livros I-IV do Prae-Adamitae. 1976, págs. 50-54·

337
dos que mostram que suas histórias antecedem a história bí- car sua obra. Uma vez que o manuscrito era volumoso e ele
blica. A existência das várias espécies humanas levantava uma não podia carregá-lo por toda parte, mas tinha medo de perdê-
questão genuína sobre se poderiam todos ter tido um ances- lo, "senti-me obrigado devido a isso a ceder à gentileza dos
tral comum dentre os sete sobreviventes do Dilúvio. Uma editores de Amsterdã e da liberdade que tive para publicar
explicação poligenética faria mais sentido, de acordo com La esta obra"".
PeyrCre. E não apenas isto conciliaria os dados com a Bíblia, O livro foi lançado e imediatamente denunciado na
mas também tornaria possível converter os chineses, mexica- Holanda, Bélgica e França. Se La Peyrêre não havia percebi-
nos etc., que sabiam que suas histórias antecediam a Bíblia'7, do as implicações céticas de sua teoria, seus críticos as perce-
La PeyrCre desenvolveu seu argumento cético como uma beram. A primeira condenação veio do presidente e do Con-
maneira de justificar sua própria teoria messiânica sobre a selho da Holanda. e Zelândia em 26 de novembro de r655
convocação dos Judeus e a vinda do Messias judaico. Ele {cerca de dois meses após o lançamento do livro), na qual o
pode não ter percebido as implicações do que estava dizen- Prae-Adamitae é acusado de ser escandaloso, falso, contrá-
do, embora seus amigos tenham afirmado tê-las indicado a rio à palavra de Deus e um perigo para o Estado~ 3 • Em Namur,
ele' 8 • Após ter mostrado seu manuscrito a eruditos na Fran- onde La Peyrêre estava então vivendo, o bispo fez com que
ça, Holanda e Escandinávia, acrescentando novas evidências fosse condenado em todas as igrejas de sua diocese no dia de
obtidas em suas via:gens' 9 , ele mostrou a obra à rainha Cristina Natal de r655 como "calvinista e judeu" 14 • Após um ano de
da Suécia, que após a sua abdicação estava morando em Bru- sua publicação pelo menos doze respostas haviam sido escri-
xelas, perto dele•o. A rainha Cristina gostou muito da obra e tas, e uma crescente lista de "refutações" foi produzida du-
provavelmente estimulou La PeyrCre a publicá-la, talvez che- rante o século seguinte~s_
gando mesmo a pagar a publicação". La PeyrCre dirigiu-se a As refutações, tais como as do ministro protestante de
Amsterdã e sua versão de como o livro foi publicado é mais Groningen, Samuel Desmarets, enfatizaram o fato de que
cômica, porém menos precisa. Segundo narra, não teve ne- todas as autoridades - judaicas, católicas e protestantes -
nhuma culpa de como as coisas aconteceram. Quando che- discordaram de La PeyrCre6 • (Desmarets também afirmou
gou a Amsterdã teve que carregar o manuscrito consigo por- que havia um perigo para a sociedade nos pontos de vista de
que não tinha onde deixá-lo. Em Amsterdã, disse ele, "es- La PeyrCre, porque uma seita de pré-adamitas ~avia sido des-
barrei com uma multidão de editores" que desejavam publi-
" La Peyri:re, Lettre de la Peyráe à Philotime, Paris, 1658, pá.:;s. ~ 14-11_8.
" Condenação do presidente e do Conselho da Holanda/Zelandta, Hma, 26 de
"La Peyri:re, "A Discoursc upon the twelfth, tirtheenth and fourtccnth Verses of
novembro de 1655· A British Libmry possui uma cópia deste documento.
the Fifth Chapter of the Epistle of thc Aposde Paul to thc Romans", em Meu
"La PcyrCr.e, Lettre à Philotime, págs. 123·124. A obra també~ foi condena?~ em
Before Adam, especialmente cap.viii, pág. 22 c cap.xxvi, p:igs. 6o-61. Roma e Paris. O cardeal Grimaldi disse que se tratava de "un hvrc tres pcrmcteux
'' Cf. Popkin, "The Marrano Theology oflsaac La l'eyri:re", p:igs. I04·IOj. Ismael [parce] que la doctrine qu'il eonticnt est damnablc, eontraire à la paro\~ de Dieu
Boulliard afirmou, após a publicação do livro, que ele tinha aconselhado La
& à l'Escripture Saiote", Bibl. Nat. Coli. Bal~ze 325,, foi. ,~3-66. O ~-mt.?O d; La
l'eyri:rc a não publicá-lo. Ver sua carta a Portncro, 3 de de2embro de 165;, Pcyri:rc, Gillcs Mcnagc, pediu-lhe que lhe cnvmsse o hvro avant qu ti fut mts en
Bibliothi:quc Nationalc Fonds français qo41, foi. 1?9·
lumii:re", Menagiana, tomo III, Paris, 1729, pág. 68. . •
'• Popkin, "Marrano Thcology", págs. I04--105 c respectivas notas. '·' Nenhuma lista completa das refutações chegou a ser compdada. Alem de obras
0
' Duque d'Aumalc, Histoire des Princes de Condé, torno VI, Paris, 1892, pág. que são totalmente dedicadas a refutar o Prae-Adamitae, há seções em uma
699; c Popkin, "Marrano Thcology", pág. 105 c nota 55· grande quantidade de obras teológicas, históricas e filosóficas, apresentando
" Sven Stolpc, Christina o( Sweden, N. Iorque, 1966, pág. I.W- O autor afimta
que quando a rainha Cristina leu o manuscrito! "ela persuadiu o autor a publicá- respostas. .. .
'" Samucl Desmarets, Refutaria Fabulae l'rae Admmtrcae, Gromngen, 1656, que
lo sem demora". Pintard, em Le Libertinage Erudit págs. 399 c 420, sugere que teve duas edições. Esta foi a única crítica a que La l'eyri:re respondeu em uma
Cristina foi responsável pela publicação do Prae-Adamitae. obra ainda não publicada que eu c o prof.l'aul Dibon pretendemos publicar.

339
coberta em Amsterdã. Esta afirmação foi repetida em enci- dade e Infalibilidade das Sagradas Escrituras" 3 '. E o autor
clopédias posteriores, embora não haja evidência de que uma católico de enciclopédias teológicas, Louis Ellies-DuPin, de-
tal seita jamais tenha existido.)~7 clarou: "De todos os paradoxos que têm sido formulados
Os autores das primeiras refutações ficaram mais cho- em nosso século [o XVII} não há nenhum, em minha opi-
cados pela rejeição por La Peyrere da Palavra de Deus do nião, mais temerário nem mais perigoso do que a opinião
que pelas implicações céticas de seus pontos de vista. Mas daqueles que ousaram negar ter sido Moisés o autor do
em breve, especialmente após o uso por Spinoza da crítica Pentatcuco"J~. Ellies-DuPin relaciona Hobbes, La Peyrêre,
bíblica de La Peyrere, o lado cético foi visto claramente. An- Spinoza e Richard Simon como os que defenderam est_e ~on­
tes disso o Geral dos Jesuítas pôde dizer a La Peyrêre que ele to de vista33. Ellies-DuPin claramente percebeu o cettctsmo
e o Papa tinham rido muito ao ler o Prae-Adamitae~ 8 • O tom acerca da religião revelada que resultaria disto, e considerou
geral da maioria das primeiras refutações, da de Grotius em esta posição a maior ameaça cética desta época. Por outro
164 3 ~ 9 em diante, é a afirmação de que a posição de La Peyrêre lado 0 especialista bíblico protestante Louis Cappel (a quem
representa um grande perigo para a religião, e é contrária a La PeyrCre havia consultado), insistiu que se as Escrituras
de todos os padres da igreja, de todos os doutores em teolo- não fossem claras, então qualquer interpretação seria possí-
gia da Idade Média, a todos os especialistas cristãos da atua- vel e isto resultaria em pirronismo. E, se a interpretação das
lidade de qualquer tendência, e a todos os rabinos desde os Escrituras fosse apenas humana, então neste caso também
tempos do Talmud até o presente. Alguns críticos tentaram seríamos levados ao ceticismo total34 .
detalhar estes perigos. Um século mais tarde um dos mais importantes céti-
O grande especialista bíblico Richard Simon, que co- cos em relação à religião, Tom Painc, pôde olhar retrospecti-
nhecia La Peyrere bem, e parecia gostar de sua companhia vamente e ver os efeitos monumentais da dúvida sobre a au-
no Oratório, em sua correspondência com La Pcyrere não toria mosaica. "Retiremos do Gênesis a crença de que Moisés
parece chocado com os pontos de vista deste. Simon mencio- foi 0 seu autor, da qual dependeu simplesmen~e a estranh_a
na casualmente, em uma carta de 27 de maio de r67o, "Pa- crença de que se trata da Palavra de Deus, c nao resta mats
rece-me que suas reflexões irão arruinar inteiramente a reli- nada do Gênesis, que se converte em um livro de estórias
gião cristã"3o_ Uma afirmação mais forte foi feita por um anônimo, com fábulas, absurdos tradicionais ou inventados
leitor hostil, Sir Matthew Hale, que disse que a crença na c mentiras óbvias."Js
veracidade da interpretação de La Peyrere da Bíblia, "neces-
sariamente não só enfraqueceria, mas derrubaria a Autori- '' Sir Manh~-w Hale The 1'rimititJe Origimuion o(Mankind, Londres, 1677, pág. 185.
'' Louis EUies-Dur'in, Nouvel/e Bibliotheque des Auteurs Ecclesiastiques (2' ed.),
''Isto aparece na Eucyc/opedie de Dideroc, verbete "Pré-Adamitcs". tomo I, Paris, 1690, pág. 4·
''Citado por Christian Huygcns,Jounwl de !!Oyage à Paris et à Loudres, Oct.1660- "Ibid., pág. 30. . . . 1
Maf 1661, c em H. L. Brugman, Le Sejour de Cbristüm Huygens à Paris, Paris "Louis Cappcl, T/Jeses thcologicae de sumnw controverswrum ludtce (Sahn.[Scdan_,
1935• anotação de 21 de fevereiro de x66r. La PeyrCre contou a Huygens o que r6~5), seção XXXIV, pág. 107 c sec. XXXIX, pág. 109; Arcamml ptmctatt~!us
o Geral dos Jesuítas lhe rinha dito,, quando ele esteve em Roma. re~e/atum {sem local, 1624), livro li, cap. XII, reimpress? em Commen_tam et
'• Hugo Grorius, Dissertatio altera de origim: Geutium Americanamm adversus uotae criticae i11 Vews Testamentum, Amsterdã, 1689, pags.794 c scgumtes; c
obtractatorem {sem local, 1643), págs.q- 14. Grotius tinha aparentemente vis- Critica adversus injustem cel/sorem, justa de(ensio em Critica sacr~, ed. ~?r_Yogcl
~o um .manuscrito a~terior do padre Merscnnc que admirava a obra de La Peyrêre, (HaUe, I77S-J786), tomo m, pág. 327· Agradeço ao pro f. Jean-Plerrc (llt!OU do
mdus1ve sua teologia, La l'eyri:re respondeu a Grorius no livro IV cap. XIV do Trinity Collcgc, Dublin, por m: haver. indicado estas passagens, e por ter me
l'rae-Adamitae, pág. l75 de Men Before Adam. ' mostrado parte de seu estudo nao pubhcado sobre Lou1s Cappc\.
1
° Carta de Richard Simon a La Peyri:re, em Simon, Lettres c/J01sies de M. Simoll, "Thomas Paine, The Age of Reasott, Part the Secoud, beiug ml Itwestigation o(
tomo li, Roterdã, 1702, págs. 12-13. Tme and Fabu/ous Theology, Londres, 1795, pág. 14.

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I
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Um polemista judeu, David Lcvi de Londres, que argu- anterior a Adão"3 8 , La Peyrêre recebeu então ajuda acadêmi-
mentou contraJoseph Pricstley e Tom Paine, afirmou em sua ca para preparar sua retratação, e no dia I I de março de
segunda resposta a Priestley que: "se um judeu em qualquer I657, na presença dos cardeais Barberini e Albizzi, ajoelha-
momento questionar a autenticidade de qualquer parte do do diante do Papa, abjurou seus erros39,
Pentateuco, observando que uma parte é autêntica, isto é, foi Sua retratação deixa transparecer a insinceridade. La
Peyrêre pôs a culpa de sua teoria pré-adamita em sua forma-
entregue por Deus a Moisés, c outra parte não é autêntica, ele
não será mais considerado como judeu, isto é, como um ver- ção calvinista. Os calvinistas aceitavam apenas a autoridade
dadeiro crente". Levi continuou, insistindo que todo judeu é da razão, do espírito interior, ou da leitura das Escrituras. La
obrigado de acordo com o artigo oitavo (dos treze princípios Peyrêre insistiu que enquanto fora calvinista tivera de aceitar
de Maimônides) "a acreditar que toda a lei dos cinco livros ... a teoria pré-adamita, uma vez que esta estava mais de acor-
origina-se de Deus" c foi revelada por Ele a Moisés. Levi do com a razão correta, com o sentido natural das Escrituras,
sugeriu que os cristãos deveriam ter as mesmas obrigações em e com sua consci~ncia individual4°, Seus adversários declara-
relação ao Velho e ao Novo Testamentos, pois "se qualquer ram que sua intCrpretação ia contra a de todos os rabinos,
parte for uma vez considerada espúria, isto abrirá uma porta todos os padres da Igreja e todos os doutores em teologia. Mas
para q?e outras e mais outras, sem fim, também o sejam"J 6 , estes adversários não apresentaram nenhuma outra evidência
E difícil dizer se La Peyrhe percebeu o fantástico po- contra a sua teoria, nem argumentos, nem textos das Escritu-
tencial cético de suas idéias. Toda sua vida foi dedicada à ras4'. La Peyrêre disse então que para julgar quem estava cer-
to, se ele ou se seus adversários, seria necessário encontrar
expressão de sua visão messiânica. Quando em r6s6 ele en-
alguma autoridade ou juiz. (La Peyrêre estava se valendo da
frentava oposição completa do mundo teológico e erudito,
pretendeu esperar a tempestade passar na Bélgica, mas, ao disputa entre católicos e calvinistas acerca da regra da fé.)
contrário, foi preso por ordem do arcebispo de Malines. Fi- Quem além do Papa poderia ter tal autoridade ou ser um juiz
adequado? "Sua vontade será minha razão e minha lei."4' La
cou durante um tempo na prisão e nem seu poderoso patrono,
Peyrêre declarou então estar disposto a abjurar sua teoria pré-
o príncipe de Condé, foi capaz de conseguir libertá-lo. Foi
adamita e suas muitas outras heresias, embora continuasse a
sugerido a La Peyrêre que se ele se convertesse ao catolicis-
mo e se oferecesse a apresentar pessoalmente desculpas ao insistir que não havia nada contrário à razão ou às Escrituras
em seus pontos de vista anteriores. Se o Papa dissesse que seus
Papa Alexandre VII, ele seria libertado37. Como um cortesão
pontos de vista eram falsos, então ele os abjuraria. Mas ele
há~i~, ~le aceitou a sugestão e a cumpriu. Mudou de religião
também afirmava, ao mesmo tempo que "aceitava" a conde-
e dmgm-se a Roma, onde sua amiga a rainha Cristina havia
nação papal de seus pontos de vista, que sua teoria pré-
chegado recentemente como a mais importante convertida
daquela época. La Peyrêre relatou que o Papa abraçou-oca- adamita e suas conseqüências forneciam um excelente meio de
conciliar a história pagã antiga e a história bíblica43, Sua te-
lorosamente, dizendo, "Deixe-nos abraçar este homem que é
'"Isto é relatado na biografia de La Peyri:rc escrita por Richard Simon para um tal
M. Z. S., em Simon, Lcttres choísies, tomo li, págs. 24-:>.5.
"Pintard, Le Libertinage Éntdit, p:íg. 422, com base em documentos de Condé.
''' David.Levi, Letters to Dr. l'ricst/ey in Answer to his Letters to the ]ews, PartI/,
occaswned by Mr. David Levi's Reply to the Former Part, Londres, 1789, págs.
•o La Pcyri:re, Apologie de La Peyráe, Paris, 1663, págs. 1-7.
"Ibid., págs. 42-43.
14-15·
"Popkin, "Manano Thcology", p:íg. 107 c notas 73 c 74· Enquanto ele estava •' La l'cyrCrc, Lettre à Philotime, pág. 139·
"Cf. La PcyrCrc, Recuei/ deslettres escrites à Monsieur /e Comte de la Suze, pour
~rcso uma cart~ papal declarou-o um "herético detestável", cf. ta Peyrêre, l.ettre
l'obliger par raison à se faire Catholique, Paris, r661, págs. 55-62, c IOI-112,
a Pln/ottme, pag. 130.

343
342
oria também permitia explicar a origem dos diversos povos
encontrados pelo mundo afora. Com efeito, La Peyrêre afir- passava a maior parte de seu tempo estudando a Bíblia, bus-
mou, após tê-la abjurado, que sua teoria pré-adamita era cando mais munição para a sua teoria pré-adamita e reescre-
como a teoria copernicana: não alterava nenhum fato sobre vendo seu Rappel des ]uifs47 , Publicou algumas obras sobre
o mundo, apenas a forma de avaliá-los44, sua conversão, uma carta ao conde de Suze insistindo para
Como veremos, La Pcyrêre aparentemente não mudou que este se convertesse ao catolicismo, e um livro sobre a
seus pontos de vista, mas permaneceu cético em relação à Islândia que havia escrito muito tempo antes 48 • Particular-
Bíblia até o fim de sua vida. Manteve-se também sempre fir- mente ele continuou a discutir as suas teorias e a procurar
me em seu messianismo. Em sua Lettre à Philotime depois de um meio de publicâ-las. Seus amigos admitiam que sua cabe-
explicar por que estava rejeitando suas concepções calvinistas, ça estava sempre ocupada com sua teoria pré-adamita49,
ele apresentou mais uma vez a visão messiânica da obra Du O maior especialista na Bíblia desse período era opa-
Rappel des ]ui(s, insistindo que não estava longe o momento dre Richard Simon, um membro do Oratório e que conhecia
em que judeus e cristãos se uniriam. Desta vez, .entretanto, La Peyrêre muito bem. Simone La Peyrêre discutiram algu-
ele afirmou que este importante evento seria realizado não mas das posições bizarras deste último por carta e pessoal-
pelo rei da França, mas por seu novo amigo o Papa Alexan- mente. Em uma carta contendo a biografia de La Peyrêre,
dre VII. O Papa Alexandre concluiria o que Alexandre o Simon ·relata que tudo que este fazia em seu retiro religioso
Grande começara, presumivelmente unindo toda a humani- era ler o texto da Bíblia de modo a reforçar certos pontos de
dade. Recorrendo a interpretações cabalísticas ele encontrou vista que ele tinha sobre a vinda de um novo Messias que iria
mais razões para justificar que Alexandre VII fosse o instru- restabelecer a nação judaica em ]erusalémso, As cartas de
mento de Deus. Esta obra conclui com um maravilhoso re- Simon a La Peyrêre em r67o indicam que este último estava
trato de todas as grandes coisas que acontecerão quando os constantemente à procura de fiais evidências para sua teoria
judeus se converterem e judeus e cristãos se unirem45. pré-adamita. Ele descobriu que Maimônides menciona um
O Papa aparentemente estava suficientemente bem im- grupo, os sabeus, que afirmava que Adão teve pais e era oriu~­
pressionado com a abjuração de La Peyrêre e com sua apolo- do da Índia. Descobriu uma história que relatava que Adao
gia, tanto que lhe ofereceu um cargo para que ele permane- tinha morrido de gota, e gota é uma doença hereditária. En-
6
cesse em Roma4 • La Peyrêre, entretanto, escolheu, provavel- controu uma afirmação cabalística de que Adão teria tido
mente com sabedoria, regressar a Paris, para seu patrono, o um mestre, e uma dos muçulmanos de que houve algumas
príncipe de Condé. Tornou-se bibliotecário do príncipe, bem
como irmão leigo em um seminário dos Oratorianos perto
de Paris. Em seu retiro monástico, sabemos que La Peyrêre
v Ver as seis cartas de Richard Simon a La Peyrêre, I670·1671, em Lettres Choísies,
tomo II, págs. 1-23 e tomo IV, págs. ,16·45; c a carta de Simon a M. Z. S., romo
H, pág. 24 e seguinres. ,
onde La l'eyrCre lista os pontos de vista que passou a abjurar. Ver também La
PeyrCre, Apo/ogie, págs. 40-sS, c tettre à Philotime, págs. 11 l·llJ. Quando ta " A Apo/ogie de La PcyrCrc foi publicada nesrc penudo, bem como a _carta ao
PeyrCrc converteu-se ao catolicismo diz-se que um grande número de protestan- conde de Su~e. A obra sobre a Islândia, Relation d'ls/ande, Pans, 1663
tes também se converteu. O conde de Suze parece ter sido o único realmcme a ter complemema sua obra anterior, Relation du Groen/and, Paris, 1647, am~ms
feito isto. escritas como cartas a François La Mothe le Vayer. Estas obras foram cscn~as
«La Peyri:re, Lettre à Philotime, págs. 105-107; c Apologie, págs. 20-z3. durante a estada de la Peyri:re na Escandinávia, 1644-47, e fizeram dele a pnn-
«La PeyrCre, Lettre à Philotime, págs. 142-16S. cipal autoridade sobre os esquimós na época.
•• Richard Simon, cana a M.Z.S., Le_ttres Choisies, tomo li, págs. 24-25 .. •• Segundo Simon e o informante de Baylc, Jean Morin du Sandat (Baylc,
Dictionuaire, verbete Peyri:re, Isaac La, Rem. B).
'"Trata-se da carta a M. Z. S., tomo II.

344
345
pessoas antes de Adão. Simon tinha de fazê-lo ver o valor adamita, e em parte porque continha uma teoria sobre dois
real destas informações 5 '. Messias que seria rejeitada tanto por judeus quanto por cris-
La Peyrhe tentou fazer com que seus pontos de vista tãos e iri~ "destruir por completo a religião cristã"H, Após
chegassem ao público escrevendo notas de pé de página à este conselho franco, La Peyrêre alterou seu manuscrito e
tradução para o francês da Bíblia por Michel de Marolles. enviou-o a um censor, que o rejeitou e recusou-se a dar· a
Nas partes iniciais do Gênesi~ La Peyrêre acrescentou notas autorização para a sua publicação55 • La Peyrêre reescreveu
a todas as passagens que indicavam a existência de pessoas seu manuscrito outra vez em 1673, mas ainda assim não con-
antes de Adão. Acrescentou ainda à sua primeira longa nota seguiu comover o censor. Fez então uma concessão colossal,
sobre este assunto: abandonou sua teoria pré-adamita, mantendo sua posição
messiânica sobre a convocação dos judeus, indicando que
Esta opinião tem sido sempre rejeitada, embora aque- esta última era mais importante para ele do que a primeira56 •
les que tenham desejado estabelecê-la nem sempre o La Peyrhe faleceu no início de 1676. Richard Simon
fizessem contra a autoridade das Sagradas Escrituras, afirmou que La Peyrêre não fizera nada no Oratório que pu-
às quais dedicam todo o respeito que lhes é devido. desse levar alguém a questionar a pureza de sua religião. Por
Mas tendo a Igreja julgado de modo diferente, eles se outro lado, um outro amigo deLa Peyrêre,Jean François Morin
submeteram a seus decretos e aos pontos de vista dos du Sandat, escreveu a Bayle relatando que La Peyrêre era ape-
padres da Igreja51. nas superficialmente papista, mas plenamente convencido de
suas idéias sobre os pré-adamitas, que ele discutiu secretamente
Apesar disso, La Peyrhe continuou com suas notas, introdu- com seus amigos até a sua morte. Morin concluiu seu relato
.'1
zindo sua visão de que o Dilúvio fora apenas um evento lo- dizendo, "La PeyrCre era a melhor das criaturas, a mais doce,
cal, de que nem todos os povos do mundo poderiam ser des- que tranqüilamente acreditava em muito poucas coisas" 57 •
cendentes de sobreviventes do Dilúvio, e assim por diante. A Simon ouviu falar que em seu leito de morte La Peyrêre fora
cada vez que La Peyrêre apresentava sua posição, acrescen- pressionado a retratar-se de suas teorias pré-adamita e
tava também que aceitava a posição ortodoxa. Apesar des- messiânica, mas evitou fazê-lo, e finalmente proferiu as pala-
sas formulações cautelosas, a obra foi suprimida antes de a vras da carta de São Judas, "Hi quaecunque ignorant
impressão estar completa. Tudo o que restou foram a tradu- blasphement"s8 •
ção e as notas até Levítico 23 53 •
Em r67o-r67r La Peyrêrc preparou uma nova versão tivesse fornecido a La Peyri:re alguns dados que aparecem no Prae-Adamitae,
não aceitou esta teoria afirmando que se auto-refutava. Cf. Michel de Marolles,·
deDu Rappel des juifs que ele esperava conseguir publicar. Memoires, Amsterdã, 1755, págs. 63-70 e 7..J4·7..J6.
Enviou-a a Richard Simon, que lhe disse que a obra não po- ~· La Peyrêre enviou seu manuscrito a Simon em maio de 167o, Simon lhe disse que
era impublicávcl, em Lettres CIJOisies, tomo 11, págs. Il·IJ.
deria ser publicada, em parte porque continha a teoria pré- ~· Sobre isto ver Simon, carta a M. Z. S., tomo ll, pág. 26.
'~O manuscrito desta obra interessante se encontra na coleção do príncipe de Condé
em Chantilly, Ms.191(698). Simon relata que La Peyri:re tinha receio que apôs a
.n Cf. cartas de Simon a La Peyri:re, I670·167I, Lettres Choisies, tomo ll, págs. I· sua morte os padres do Oratôrio sacrificariam sua obra a Vulcano. Portanto, o
1..3, e IV, págs.36·45· A afirmação de que Adão teria morri do de gota já consta manuscrito foi guardado na biblioteca do príncipe de Condé. Simon, Lettres
do Prae-Adanútae. Cboisies, li, pág. 1..6.
s• Michel de Marolles, Le Livre de Geuese, pág. 1...
" Há côpias desta obra rara na Bibliothi:que Nationale c na British Library. D~ta~ "Citado em Bayle, Dictionnaire, verbete Peyri:re, Isaac La, Rem. B. O original se
lhes de sua supressão são encontrados em Niceron, Memotres pour servtr a encontra na Biblioteca Real de Copenhagen na coleção de cartas a Bayle.
/'!Jistoire dos hommes i/lustres, tomo XX, Paris, 1731.., pág. 43· Embora Marolles s• Citado na carta de SilJIOO a M. Z. S., Lettres CIJOisies, li, pág. 30.

347
Após a morte de La Peyrêre um de seus amigos escre- A tarefa de se avaliar a influência de La Peyá:re será objeto
veu o seguinte como seu epitáfio: de um outro estudo 6s. Gostaria aqui apenas de mostrar seu
papel na inspiração e desenvolvimento do ceticismo religio-
Aqui jaz La Peyrêrc, o bom is,rae\ita, so. Por volta de meados do século XIX, o reverendo Thomas
huguenote, católico c fina!me'nte pré-adamita Smyth dizia, "Quando, entretanto, nos tempos modernos, a
Quatro religiões o agradaram ao mesmo tempo descrença tratou de levantar seus domínios sobre as ruínas
E sua indiferença foi tão pouco comum da cristandade, Voltaire, Rousseau, Peyrêre, e seus seguido-
Que após oitenta anos, tendo de escolher alguma, res introduziram a teoria de uma diversidade originária das
O bom homem morreu sem escolher nenhumas9, raças humanas, de modo a com isso derrubar a verdade e a
inspiração das Sagradas Escrituras" 66 •
A influência de La Peyrêre foi muito grande. Refutações de O papel de La Peyrêre em causar novas dúvidas acerca
suas posições continuaram a aparecer por mais de cem anos. da Bíblia foi devido sobretudo a sua influência em Richard
Aspectos de seus pontos de vista foram assumidos por al- Simon e em Spinoza. Simon conheceu bem La Peyrêre na
guns espíritos ousados e algumas idéias suas foram adotadas época em que estava trabalhando em sua Critica! History o f
por aqueles que tentaram justificar o racismo no Novo Mun- the Old Testament (publicada pela primeira vez em 1678) 67 •
do6o. Poderia ser feita uma lista de um grupo bastante eclético, Dispondo de um conhecimento muito maior sobre a docu-
incluindo desde Richard Simon, Spinoza, e Vico 6 ', até os an- mentação, as línguas em que estava escrita, a história dos
tropólogos dos séculos dezoito e dezenove 6 ', desde Napoleão judeus, da Igreja primitiva e das seitas do Oriente Próximo,
Bonapartél até um certo professor Alexander Winchell, que Simon começou a se utilizar de todo este material como vara
publicou nos Estados Unidos em r88o uma obra intitulada contra os calvinistas que afirmavam obter as suas verdades
Pre-Adamites or a Demonstration of the Existence of Man religiosas exclusivamente da Bíblia. Simon levantou toda a
before Adam, incluindo fotografias de alguns pré-adamitas 64. sorte de dificuldades céticas sobre a questão da origem do
texto bíblico, a autenticidade do texto atual, e o significado
"Citado em Gilles Ménage, Meuagitma, Paris e Amsterdã, 1715, vol. m, pág. 69. deste texto. Em parte, Simon levantou um pirronismo histó-
6" O primeiro que pude encontrar foi Morgan Godwin, The Negro's mtd the Iudian's
rico genuíno sobre a Bíblia (que se aplicaria aliás a qualquer
Advocate, Londres, 1680, onde ele descreve a teoria pré-adamita sendo usada
i por fazendeiros da Virgínia para justificar suas posições em relação aos africa- outro documento). Em sua defesa contra os protestos sobre
nos. Os estudos listados na nota 62 discutem o uso posterior do pré-adamismo os seus livros, Simon insistiu que acreditava que o verdadei-
li 6
nas teorias c práticas racistas.
' Sobre Simon c Vico ver Popkin, "Biblc Critidsm and Social Science", em Boston
ro texto da Bíblia seria de inspiração divina, mas não sabia
Swdies i11 the Phi/osophy o( Scíence, XIV, págs. 344-345 e 347-350 c notas. A
influência de La Pcyri:re em Spinoza será discutida mais adiante, c também em
meu artigo "ta Pcyri:re and Spinoza", em R.Shohan eJ. Biro, eds. Spinoza: New umas duas reimpressões posteriores, apresentando na página oposta à da pági-
l'erspectilles, Norman, Okla., 1978, págs. 177-195· na-título retratos de prê-adamitas. Os retratos são de um drávida, um mongol,
6
' Ver Popkin, "The Basis o f Modero Racism", em Philosophy and the Cillilizing um negro, um esquimó, um hotentote, um pápua, e um aborígine australiano.
Arts, Essays presented to Herbert w; Sdmeider 011 bis eig/Jteenth birthday, ed. 65 Estou preparando um volume sobre T.a Pcyri:re e a história da teoria pré-adamita.

por Craig Walton c John P. Anton, Athens, Ohio, 1974, págs. 126-165; e "' Reverendo Thomas Smyth, The Unity of the Hmnan Race proved to be the
"Speculativc Biology and Racism: Pre-Adamism iu Early Ninctccnth Ccntury Doctri1w o( Scri/Jture, Reason m1d Science, Edinburgo, 185 I, pág. 35·
American Tiought", em Phi/osophia. VIII, 1978, págs. 205-239· '" Simon acusou La Peyri:re pelas heresias de Spinoza. "Par~ce que ele [Spinoza]
6
' Cf. Popkin, "La Peyrêre, thc Abbé Grêgoire and thc Jcwish Question in the não fez muitas reflexões sobre as questões de que tratava, se contentando
Eighteemh Century", em Studies i11 Eighteemh Century Culture, vol. IV (1975}, freqüentemente em seguir o sistema mal digerido de La l'eyrhe, autor dos prê-
págs. 209-222. adamitas", em Richard Simon, De /'Inspiration des Lillr«S Sacrés (Roterdã, 1687},
"< O livro de Winchell publicado pela primeira vez em Chicago, em 188o, teve pág. 48.

349
qual das versões atuais seria esta versão inspirada. Simon neste período.) O mestre de Spinoza, Menasseh ben Israel,
também manteve que o texto bíblico não poderia ser de au- admirava muito o Du Rappel des ]uifs de La Peyrêre, e em uma
toria de Moisés, e provavelmente foi redigido ao longo de obra escrita em fevereiro de r655 relaciona-o como um dos
muitos anos, provavelmente algo em torno de oito séculos. muito poucos que sabiam que a vinda do Messias era iminen-
Desdê então tem sido copiado e sofrido acréscimos, bem como te~. Um documento escrito por um amigo de Menasseh, Paul
todo o tipo de erros, glosas, variantes etc. Para Simon atare- Felgenhauer, indica que ambos haviam lido o Prae-Adamitae
fa de um estudo crítico consiste em tentar separar a Mensa- de La Peyrêre antes de sua publicação, eFelgenhauer queria que
gem Divina dos acréscimos e variações humanas. O trabalho Menasseh o ajudassé a realizar um debate público com La
de Simon revelou as impressionantes dificuldades históricas Peyrêre73 • Não há evidência de que o debate tenha ocorrido, mas
e epistemológicas envolvidas na separação entre a dimensão tanto Menasseh quanto Fclgenhauer escreveram refutações do
divina e a humana. Embora Simon não compartilhasse nem Prae-Adamitae74 • Isto tudo indica que as teorias de La Peyrêre
o messianismo de La Peyrêre nem o naturalismo de Spinoza, eram conhecidas e rejeitadas por um dos líderes da comunida-
e embora aparentemente de fato acreditasse na existência de de judaica de Amsterdã7s.
uma Mensagem Divina, seus esforços ajudaram em muito na A primeira condenação do Prae-Adamitae ocorreu na
transformação do estudo da religião em uma matéria secu- Holanda. Em vista do grande número de condenações e refu-
lar. Sua erudição bíblica ajudou a difundir o estudo científi- tações entre r6ss-r6s6, La Peyrêre, na época em que foi
co da Bíblia. Esta erudição, combinada com um ceticismo preso, era um dos mais notórios autores da Europa. E parece
acerca do conhecimento religioso e com o naturalismo plausível que um jovem rebelde como Spinoza teria interesse
spinozista, teve como conseqüência a descrença na religião em saber as razões de toda essa comoção ..
tradicional68 • O que faz com que isso pareça muito mais provável é a
Dentre os seus contemporâneos o que La Peyrêre parece recente descoberta do finado I. S. Révah sobre a excomunhão
ter influenciado mais foi Spinoza. Spinoza possuía o Prae- de Spinoza. Révah descobriu que três pessoas foram
Adamitae69 e usou partes dele em seu Tractatus-Theologico- excomungadas na mesma semana em Amsterdã: Spinoza,
Politicus7o. La Peyrêre esteve em Amsterdã durante seis meses Juan de Prado e Daniel Ribera, sendo que os três eram ami-
em r6ss, pouco antes da excomunhão de Spinoza pela Sina-
goga desta cidade. Não temos até agora evidência de um en-
contro entre ambos 7 '. (Sabemos muito pouco sobre Spinoza é derivada de uma carta que ele escreveu a Ismael Boulliard em 16 de fevereiro
de r661. A única pessoa que La Pcyrêre menciona ter encontrado foi o secretário
"'Sobre 11 teoria de Simon, ver Popkin, ~Biblical Critidsm and Social Sciencc", da Rainha da Polônia. Cf.l'hilippe Tamizey de Larroque, Que/ques /ettres inédites
págs. 347-350 c notas; e "Scepticism, Theology and the Scientific Rcvolution in d'lsaac de la Peyràe à Boul/iard, Paris e Bordeaux, 1878, pág. 24. ·
the Seventccnth Century", em Prob/ems iu tbc Philosophy o( Sâcucc, ed. por I. " Carta de Menasseh ben Israel de 1~ de fevereiro de 1655, public."lda em Paul
Lakatos c A. Musgrave, Amsterdã, 1968, págs. 23-25. Fcgcnhaucr, Bomm Nunâam lsraeli quod offerlllr Populo Israel & Judac in
<·o Ver a relação de livros de Spino2a em Jacob Freudcmhal, Díc LcbciiSgeschichtc hiscc tcmporibus novissimus de Messiah (Amsterdã, 1655}, págs. 89-90.
Spiuoza's, Lcipizig, 1899; o item 54 é "Prae-Adamitac 1655"·
71
Ver o 'Beschluss' ao A11ti-Prac-Adamitae de Fclgcnhauer.
74
70
Para a relação dos empréstimos tomados por Spinoza, ver Leo Strauss, Spiuoza's A de fclgenhauer é o Anti-Prae-Adamitac, identificado na nota anterior. Nesta
Critique ofthc Biblc, Nova Iorque, 1965, págs. 264 c 327. O capítulo terceiro obra Fclgcnhaucr argumentou que o único pré-adamita era Jesus, já que ele
desta obra é dedicado à análise da contribuição de La l'eyrCre, concluindo da existiria antes c depois de todos os homens. Menasseh ben Israel relaciona em
mesma forma que eu e Hans Joachim Schoeps (em l'lnlosemitismus in Barok, seu Vil,diciae ]udaeomm (Londres, 1656) dentre as suas ohras que estão prontas
Tübingen, 1952, págs. 3-18) que a teoria de La PeyrCre é basicamente a de um para a publicação, na pág. 41, a Refutatio libri qui titu/us Prae-Adamitae. Esta
marrano, isto é, a de um judeu convertido ao cristianismo c que La PeyrCre foi ohra nunca apareceu e nenhum manuscrito foi encontrado.
71
provavelmente um marrano. Cf. Popkin, "Menassch ben Israel and Isaac La l'eyri:re", em Studia Roscnthalia
" A única informação sobre a estada de La PeyrCrc em AmMerdã de que dispomos vm, págs. 59-63. '

350
"'
gos7 6 , Prado era dez anos mais velho que Spinoza, c Ribera espanhol que esteve com ambos num clube de debates entre
era da mesma idade. Prado havia aparentemente se tornado r6s8-r659, mantinha que "Deus existe, porém apenas em
um livre-pensador sem religião antes de deixar a Espanha e um sentido filosófico" 80 • O restante da carreira de Spinoza
ir para a Holanda. Ele havia escrito uma obra, da qual ne- consiste no desenvolvimento das implicações desta afirma-
nhuma cópia foi encontrada, afirmando que as leis da natu- ção, ao mesmo tempo que elabora um ceticismo total de tipo
reza têm precedência sobre as leis de Moisés. (Existem duas acadêmico contra a religião tradicional.
refutações desta obra por Isaac Orobio de Castro, e é com
base nelas que podemos ter idéia das afirmações de Prado.)n
Registros das acusações c investigações sobre Prado e Ribera
sobreviveram, o que não aconteceu em relação aos referen-
tes a Spinoza. Prado utilizou-se de temas de La Peyrêre, espe-
cificamente de sua afirmação de que o mundo era eterno e de
que a história da humanidade é mais antiga do que a história
judaica. A evidência que Prado apresenta para esta afirma-
ção é uma das teses de La Peyrêre mantendo que a história
chinesa tem pelo menos ro.ooo anos 78 , Orobio de Castro em
uma de suas respostas a Prado o acusa de sofrer da mesma
i' loucura que aqueles que afirmam que embora seja verdadei-
ro que Deus criou o universo, esta criação ocorreu há milha-
res e milhares de anos, e não no período em que acreditamos
que isto tenha ocorrido com base na Bíblia79,
Algumas teses de La Peyrêre parecem ter estado envol-
vidas na excomunhão. Spinoza escreveu uma resposta à
excomunhão, a qual foi desenvolvida, tornando-se finalmente
o Tractatus. Nesta obra ele utilizou material de La PeyrCrc
para elaborar seus desafios à Bíblia. Portanto é bem possível
que La Peyrêre o tenha influenciado diretamente do tempo
da excomunhão em diante.
Entretanto, como foi indicado, La Peyrêre permaneceu
um crente em sua estranha forma de messianismo. Spinoza
(e Juan de Prado}, segundo sabemos pelo relato de um espião

'"I. S. Révah, "Aux Origines de la Rupture Spino:úenne: Nouveaux documents sur


l'incroyancc d'Amsterdam à l'époquc de l'cxcommuuication de Spinoza", em
Revu~ des études jui(s, tomo III {XXill), 1964, págs. 370-373 c 391-408.
17
I.S.Révah, Spi11o;;a et Juan de Prado, l'aris-Haia, 1959, csp. págs. 84-153.
' Révah, "Aux origines de la Rupture Spinozicnnc", págs. 378-393.
1 00
Révah, Spinow et fuan de Prado, págs. 31-32 e 64 {onde o texto em espanhol é
•• Révah, Spi110;;a et ]uan de Prado, pág. 43· apresentado).

35' 353
XII. O Ceticismo de Spinoza e seu Anti ceticismo

A posição desenvolvida por Spinoza em sua crítica à


religião revelada envolve um ceticismo completo acerca das
pretensões a conhecimento religioso, um ceticismo que
freqüentemente vai além da simples dúvida, chegando à ne-
gação direta. O ceticismo de Spinoza sobre a religião revela-
da, que aparece primordialmente no Tractatus- Theologico-
Politicus, no apêndice ao livro I da Ética e em algumas de
suas cartas, desenvolveu-se a partir de seu contato com as
idéias de La Peyrêre e de sua aplicação do método cartesiano
ao conhecimCnto revelado. O resultado, como é sabido, foi
uma crítica devastadora às pretensões ao conhecimento re-
velado, que tiveram um impressionante efeito nos últimos
três séculos na secularização do homem moderno.
Ao mesmo tempo que era tão cético acerca das pre-
tensões religiosas ao conhecimento, Spinoza era completa-
mente anticético em relação ao "conhecimento racional", isto
é, a metafísica e a matemática.
Esta atitude, o exato oposto da dos fideístas como seu
contemporâneo Pascal, não é necessariamente esquizofrênica.
De fato, muitos dos grandes pensadores modernos reconhe-
ceram Spinoza como o primeiro a aplicar métodos científi-
cos e racionais à religião com resultados previsivelmente
destrutivos, e a recusar-se a aplicar os mesmos métodos ao
mundo científico ou racional que é visto como de alguma
maneira se autojustificando .
.Obviamente Spinoza transferiu o lugar da verdade da
religião para o conhecimento racional na matemática e na
metafísica. Para conseguir isto ele teve de começar com uma
análise extremamente crítica das pretensões ão conhecimen-
to religioso revelado. Spinoza, no prefácio ao Tractatus afir-
mou que antes de se decidir se as Escrituras eram verdadeiras
e divinas, deveria haver um exame estrito pela luz da razão
desta afirmação'. Quando este exame for feito, se descobrirá
Beoedictus de Spinoza, Opera Quotquot reperta sunt, cd. por J. Van Vloten e J.
P. N.Land, tomus sccundus, Haia, 1914. Tractatus Theologico-Politicus, pág.

355
que "A Bíblia deixa a razão absolutamente livre, não tem O que podemos então aprender com as profecias?
nada em comum com a filosofia, de fato, a revelação e a filo- Spinoza excluiu o conhecimento de fenômenos naturais e
sofia pertencem a áreas totalmente distintas"•. Spinoza mos- espirituais, uma vez que este pode ser obtido através de pro-
trará que isto significa que não há nenhum conteúdo cognitivo cessos intelectuais normais. Por outro lado, o processo ima-
na revelação. Seu argumento é desenvolvido em parte por ginativo "não envolve, por sua própria natureza, nenhuma
meio do uso da crítica bíblica de La Peyrêre, em parte apli- certeza da verdade, tal como encontrada em toda idéia clara
cando o método cartesiano às questões religiosas. e distinta, mas exige alguma razão extrínseca para assegu-
A investigação de Spinoza começa com a análise de rar-nos de sua realidade objetiva" 7 • (Aqui começa a ficar cla-
uma pretensão a conhecimento central à tradição judaico- ro que Spinoza está aplicando o método cartesiano ao co-
Cristã-Islâmica, a da profecia. A definição deste fenômeno é nhecimento bíblico, bem como utilizando, como o faz neste
a seguinte, "a profecia, ou revelação é o conhecimento certo mesmo capítulo, os motivos de La Peyrêre para duvidar d0
revelado por Deus ao homem"J, Mas de que tipo pode ser texto das Escfituras.)
este conhecimento? O conhecimento natural comum é aces- A profecia, por si mesma, diz Spinoza, não apresenta
sível a todos, nós o adquirimos por meio de nossas faculda- nenhuma certeza e os próprios profetas tiveram, de acordo
des, que dependem de nosso conhecimento de Deus e de Suas com a Bíblia, que pedir um sinal Divino para ter certeza de
l~is eternas. O conhecimento profético consiste em algum que haviam recebido uma Mensagem Divina. "Neste aspec-
tipo de segredo, um conhecimento especial que não nos vem to, o conhecimento profético é inferior ao conhecimento na-
através de nossas faculdades? Depois de examinar cuidado- tural que não necessita de nenhum sinal." 8 Na melhor das
samente as possibilidades, Spinoza concluiu que todos os hipóteses, o conhecimento profético tinha uma certeza mo-
profetas, exceto Jesus, usavam a imaginação e não estavam ral e não uma certeza matemática, o que significava, segun-
de fato apresentando informações através de faculdades da- do Spinoza, que o conhecimento do profeta não se seguia da
das por Deus, que não estão disponíveis a todos. Afirmar percepção para a coisa, mas dependia dos sinais dados a ele9,
~ue o que ocorreu com os profetas para lhes dar esta suposta E isto variava de acordo com as opiniões e a capacidade de
u:formaç~o é de alguma forma resultado do poder de Deus, cada profeta. Assim, um sinal que poderia convencer um pro-
nao nos dtz nada, porque todos os acontecimentos, inclusive feta, não necessariamente convenceria um outro. Spinoza
o conhecimento humano, são resultado do poder de Deus~. passou então a examinar algumas afirmações proféticas
Portanto.' "segue-se do último capítulo [sobre a profecia] que, conflitantes, utilizando-se de dados de La Peyrêrc, c dene-
~omo dtsse, o.s profetas eram dotados de imaginação grindo ainda mais a profecia bíblica. « ... A profecia nunca
tn~omumente vtva, e não de mentes incomumente perfeitas"\ tornou os profetas mais cultos, mas deixou-os com suas opi-
srmoz~ sugeriu também que este tipo de imaginação era "ins- niões habituais, e por isso não estamos obrigados a confiar
tavel e mconstante" 6 , neles em questões intelectuais'o". Depois do exame das afir-
mações de vários profetas Spinoza sumaria seu argumento
89; The Chie'( Works o( IJ~l/edict de Spilwz<l, trad. por R. H. M. Elwcs, Nova de que os profetas não têm nenhum conhecimento especial,
Iorque, 1955, Tractarus, pág.S. mas que Deus adaptou a revelação à compreensão e às opi-
Trnduçào de Elwes, pág. 9; texto btino, piig. 9o.
• Trnduç~o de Elwcs, p~g. q; texto latioo, piig. 9J· 7 Tradução de Elwes, piig. 2.8; texto latino, pág. ro8.

Traduç~o de E!wes, p<lg. :z.s; rcxro !ntino. piig. ro6. • Tradução de Elwes, pág. :z.8; texto latino, págs. I08-ro9.
: Traduç~o de Elwcs, p~g. 27; texto lntino, pág. Io7. • Tradução de Elwes, págs. 29-30; texto latino, págs. IIO-JII.
Trnduçao de Elwcs, pag. :z.s; texto lntino, piig. ro7. •• Tradução de Elwes, pág. 33; texto latino, pág. IIJ.

356 357
niões dos profetas. Os profetas ignoravam o conhecimento tiva histórica, uma vez que esta lei divina é compreendida apenas
científico c matemático, c mantinham opiniões conflitantes. pela consideração da natureza humana"'~. Portanto, nenhuma
"Portanto se segue que não devemos buscar conhecimento lei especial, como a lei mosaica, tem de ser encontrada por meios
nos profetas, seja de fenômenos naturais ou espirituais."" não~racionais. As leis divinas para o homem podem ser encon-
A profecia, uma das pretensões centrais ao conheci~ tradas através do estudo da natureza humana.
menta das quais o significado teológico da Bíblia depende, é Em relação aos milagres, que eram empregados por
reduzida por Spinoza às opiniões pouco interessantes de ai~ muitos teólogos como prova da existência de um mundo so~
guns homens que viveram faz muito tempo. Enquanto Spinoza brenatural, Spinoza foi além da simples posição cética que
reduzia com tal desenvoltura o conhecimento profético à seria apresentada no século seguinte por David Hume. Hum e
opinião, muitos teólogos na Holanda, França e Inglaterra argumentou que era extremamente improvável e implausível
davam início a um novo e vital movimento tentando encon- que qualquer eyento fosse milagroso. Spinoza simplesmente::
trar a chave para a interpretação das profecias bíblicas. Sir manteve, na linha de um tipo de afirmação cética acadêmica,
Isaac Newton pertenceu a este grupo de pessoas que estavam que a ocorrência de milagres seria impossível. As leis univer-
certas de que quando esta chave fosse encontrada, as profe- sais da natureza são decretos divinos's, "a natureza não pode
cias seriam compreendidas, especialmente as de Daniel e do ser contrariada, pois ela segue uma ordem fixa e imutável" ' 6 •
livro do Apocalipse que ainda não haviam sido cumpridas•z. Portanto, não pode haver' uma exceção à ordem natural divi-
Para Spinoza, que deve ter tido conhecimento deste grande na. O que pode haver é apenas ignorância do que ocorre de~
interesse pelas interpretações proféticas de teólogos a sua vida à falta de conhecimento sobre aspectos desta ordem.
volta, o resultado dessas investigações não poderia produzir Como se supõe que devemos perceber a partir de um enten-
nenhum conhecimento de valor cognitivo, porque tal conhe~ dimento racional de Deus e da natureza, milagres não podem
cimento só poderia ser obtido pela razão. realmente existir. (Se existissem estaríamos vivendo em um
. Se a profecia não produzia nenhum conhecimentoespe- mundo sem ordem, caótico.) Disso se segue que não podemos
ctal, o segundo bastião da religião revelada, os milagres, for- conhecer a natureza, a existência e a providência divinas com
neciam apenas informações errôneas e base para a superstição. base em milagres, mas podemos conhecê~ las a partir do enten-
Antes de examinar os casos de atos supostamente milagrosos, dimento da ordem fixa e imutável da natureza' 7 • Tendo resol-
Spinoza lança dúvidas sobre a possibilidade de milagres em vido a questão dos milagres em geral, Spinoza passa então a
geral, e de uma lei Divina especial conhecida por meio de in- considerar os supostos milagres bíblicos em particular.
formação religiosa. Quanto a esta última questão Spinoza Após negar óu minar as afirmações daqueles que pre-
argumentou que a lei divina natural é "universal ou comum a tendiam ter encontrado um tipo especial de verdade na Bí-
todos os homens, pois a deduzimos da natureza humana uni- blia, no capítulo sete Spinoza voltou-se diretamente para o
versal"'3 e tal lei "não depende da Yerdade de nenhuma narra- problema da interpretação das Escrituras. Algumas pessoas,
'' Tradução de Elwes, pâg, 40; texto latino, pâg. I20.
ele indicou, "sonham que mistérios profundos estão ocultos
''Esta escola de teólogos ingleses c holandeses derivava seus fundamentos teóricos na Bíblia, e se cansam na investigação destes absurdos"' 8 •
?o C!av~s Apoca/ypt!ca d~ Josc~h Mede (Cambridge, 1632). Muitos teólogos
1ngleses importantes mclmndo S1r Isaac Newton em seu Observatious upo 11 tbe •• Tradução de E\wes, pâg. 61; texto latino, pâgs. 137·138.
Prophecies of Daniel, a11d tbe Apoca/ypse o(St. jolm, Londres, 1733, e William '·'Tradução de Elwes, pâg. 83; texto latino, pág. rs8.
Wluston, o sucessor de Newton, seguiam o quadro interpretativo estabelecido '"Tradução de Elwes, pâg. 82; texto latino, pág. 157.
por Mede. "Tradução de E\wcs, pág. 85; texto latino, pâgs. 159·160.
'-'Tradução de Elwcs, pâg. 61; texto latino, pág. 137· "Tradução de Elwes, pâg. 99; texto latino, pág. 172.

359
[i
I
Ao invés de interpretar a Bíblia desta maneira, Spinoza ado- Os adversários de Descartes, especialmente os jesuítas
I tou a alternativa mais radical, o emprego do método e os calvinistas, viram implicações potencialmente anti-reli-
cartesiano. "Posso resumir esta questão dizendo que o méto- giosas se seu método fosse aplicado à religião e à teoria' 3 •
do para a interpretação das Escrituras não difere muito do Nem Descartes, nem aqueles que na geração seguinte se con-
,, método de interpretação da natureza, de fato são pratica- sideraram cartesianos, fizeram esta aplicação, e insistiram
mente os mesmos."'9 Para Spinoza, o método de interpreta- que eram ortodoxos em sua religião' 4 •
ção da natureza é basicamente o método cartesiano. Logo, o Foi Spinoza que deu em primeiro lugar o passo drásti-
que encontramos na análise de Spinoza da Bíblia é uma com- co de fazer a aplicação de sua versão do cartesianismo tanto
binação de várias posições céticas, muitas delas tomadas de à teologia, quanto às Escrituras com resultados tão terríveis.
La Peyá:re, com uma análise cartesiana das Escrituras. Como mencionamos no capítulo anterior, a primeira opi-
É importante notar que Descartes e seus seguidores nião de Spinoza,~que conhecemos é a afirmação de Prado e
foram muito cuidadosos em restringir o domínio em que o dele próprio que Deus existe, mas apenas em um sentido fi-
método cartesiano seria útil, excluindo seu emprego em rela- losófico'S. Entendendo esta afirmação literalmente, o méto-
ção à teologia e à religião. Descartes, ele próprio, respondeu do para se estudar Deus seria um método filosófico. Não há
a acusações de que era infiel em relação à religião, insistindo lugar para o estudo de Deus em termos da Revelação ou de
em que não tratava de questões religiosas, e que aceitava as supostos fenômenos sobrenaturais. Portanto, o método de
posições da Igreja Católica sem questioná-las' 0 • Pascal leu Spinoza para o estudo de qualquer coisa, um desenvolvimento
Descartes desta maneira e acusou-o de tratar apenas do Deus do método cartesiano, aplica-se também a Deus.
dos filósofos e não do Deus de Abraão, Isaac e JacÓ''. Com base nisso, Spinoza procedeu a seu estudo da Bí-
Por um longo tempo os historiadores da filosofia assu- blia, examinando as afirmações das Escrituras para ver se
miram que a revolução cartesiana levava automaticamente, coincidiam com a análise baseada em idéias claras e distintas
ou necessariamente, à irreligião e que as razões dadas por acerca de Deus e da Natureza. Segundo manteve, uma vez
Descartes para rejeitar a escolástica se aplicariam também à que a maior parte das questões discutidas na Bíblia não po-
visão judaico-cristã de mundo. Por outro lado, especialistas dem ser demonstradas, então devem ser interpretadas em
franceses do século XX como Gilson, Gouhier e Koyré fize-
ram-nos perceber a possibilidade do cartesianismo e do cris-
tianismo serem compatíveis e que Descartes ele próprio pode "La crise de la théologie au temps de Descartes" e La Pensée re/lgieuse de Des-
cartes; c Alexandre Koyré, Essa i sur /'idée de Dieu et /es preuves de sou existence
ter sido um pensador genuinamente religioso, tentando aliar chez Descartes.
a religião com a nova ciência em uma relação harmoniosa''. " Ver, por excmp~o, as críticas a. Descartes pelo jes?~ta padre Bo_urdin c pelos
calvinistas Martmus Schook c G1sbcrt Vocuus. A cnt1ca de Bourdm aparece em
"Obicctioucs Septimae, wm 11otís authorís", A. T., vol. VII, págs. 451-561. As
•• Tradução de Elwes, pág. 99; texto latino, pág. 172. críticas de Schook c Vocrius aparecem em Admiranda methodus 110vae
'
0
Ver, por exemplo, a carta de Descartes :ios doutores da Sorbonne que serve de philosopiJiae Renati DesCartes.
prefácio às Meditações, inti!Ulada, "Aos mais sábios c ilustres, o Decano c os '' A resposta de Descartes ao padre Bourdin aparece em "Obiectiones sep~imae
Doutores da Sagrada Faculdade de Teologia", Haldanc-Ross, vol.I, págs. 133- cum no tis authorís", A. T., vol. VII, págs. 451·561, c a carta de redamaçao de
137; A. T., vol. VII, págs. 1-16. Descartes ao padre Dinet, provincial dos jesuítas, em A. T., vol. VII, págs. 563-
" Pascal, Oeuvres completes, Paris, 1963, prefácio por Hcnri Gouhicr e notas de 603. Sua resposta a Schook e a Voetius se encontra em "Epístola Rcnati Des
Louis Lafuma, "le Mémorial", pág. 618. "Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus Cartes ad Celeberrimium virum D. Gisbertt<lll Voetium", A. T., vol. VII-2, Pa-
de Jacó, c não dos filósofos c sábios." ris, 1965. Cartesianos como Gculincx, Amauld, Malcbranchc e Bernard Lamy
" Cf. Etienne Gilson, Études sur /e rôle de la pensée médieva/e dans /a formation todos afinnaram ser católicos ortodoxos.
du systCme cartésian, c La Liberté chez Descartes et la théologie; Hcnri Gouhier, '·' Cf. nota 79• cap. XI. ·

'I

~I
outros termos, por exemplo, filológicos, históricos, psicoló- ponto de vista, o dogmatismo, mantinha que "o significado
gicos, isto é, em termos do conhecimento científico. Isso pode das Escrituras deve conformar-se com a razão"•9.
explicar por que determinadas coisas aparecem no livro, e A visão dogmática ele considerou como representada
por que as pessoas acreditam nelas, embora não possamos por Maimônides e seus seguidores, que alteraram e até mes-
dizer se são verdadeiras. Spinoza, c'omo fica evidente, rapi- mo violaram o sentido das Escrituras. Eles reescreveram e
damente transformou a Bíblia de fonte de conhecimento em reinterpretaram passagens para torná-las de acordo com
objeto de conhecimento, ao usar os critérios cartesianos em parâmetros racionais. Spinoza insistiu, de um modo quase
relação a ela. As Escrituras são então reduzidas a um texto fundamentalista, que cada texto deve ser considerado literal-
estranho dos hebreus, de mais de dois mil anos, devendo ser mente.
entendidas neste contexto•6 • Para Spinoza, o resultado básico de seu método de in-
Tomando as afirmações das Escrituras literalmente e terpretação das-Escrituras é que muitas passagens simplesmen-
julgando-as com base nas idéias claras e distintas de Deus e te deixariam de fazer sentido. Ao invés de trapacear quanto a
das leis da natureza, Spinoza se perguntou se este processo isto, como, segundo ele, Maimônides teria fe itoJo, haveria pelo
levava a alguma informação demonstrável ou moralmente menos uma possibilidade igualmente perigosa, acomodar a
certa sobre a realidade. O máximo que pode ser encontrado razão às Escrituras. Este, o ponto de vista cético, destruiria
nas Escrituras com base nesses critérios eram verdades mo- todos os critérios racionais (uma vez que a razão teria de ser
rais fundamentais, que poderiam também ser encontradas ajustada para adequar-se a um texto não-racional, o das Es-
através de um exame filosóficoz?, {Poderíamos também apren- crituras). "Quem, a menos que estivesse desesperado ou lou-
der muitos fatos sobre o que pensavam e como agiam os co, daria um adeus incontinenti à razão, ou desprezaria as
antigos hebreus, mas isto seria relevante para o estudo da artes e as ciências, ou negaria a certeza da razão?" 3 '
história, e não para o entendimento da realidade.)' 8 Spinoza resolveu então o problema em questão insistin-
No importantíssimo capítulo XV do Tractatus, inti- do que a filosofia e a teologia deveriam ser separadas, no lugar
tulado "A Teologia é mostrada como não sendo subservien- de acomodadas uma à outra. A filosofia é julgada por crité-
te à razão, nem a razão à teologia: uma definição da razão rios racionais, pelas idéias claras e distintas. A teologia é
que nos permite aceitar a autoridade da Bíblia", Spinoza dei- julgada em termos de uma realização significativa, o ensina-
xou bem claro o resultado dessa análise. Começa delineando mento da piedade e da obediência. Não oferece e não pode
duas alternativas que iria rejeitar: o ceticismo e o dogmatismo. oferecer provas da verdade do que prescreve. A teologia, se
'' Neste contexto, Spinoza considerou o ponto de vista cético mantida em seu pape~ estará de acordo com a razão, uma vez
como sendo o de que a razão deveria se conformar com as que aquilo que pede às pessoas que façam e acreditem é jus-
Escrituras. Isto equivaleria a negar a certeza da razão. O outro tificado por evidências filosóficas. A verdade das prescrições
teológicas será decidida pela filosofia, e a teologia ela própria
não poderá ser considerada falsa ou verdadeira.
"Spinoza, Tractatus, capur. VII," De Interpretatione Scripturae"; c caput. viii, "In
quo ostcnditurc, Pcntateuchon ct librosjosuac, Judicum, Rue, SamuClis, Ct Rcgurn
non esse autographa, Dcindc inquiritur, an eorurn ornnium Scriptorcs plures
fuerint, an unus tanturn, et quinam"; tradução de Elwcs, págs. 98-1p. · •• Tradução de Elwcs, pág. 190; texto latino, pág. 250.
' 7 Tradução de Elwes, págs. roo-101, n9, 175·18r e 186-187; texto latino, págs. ,o Tradução de Elwes, págs. II4-l r8 c 190-191; texto latino, págs. 186-189, e
173. 190, 237•243 c 247-248. 250·251.
"Tractatus, caps.VII-Xlll. "Tradução de Elwes, pág.197; texto latino, pág. 256.
Isto acarreta uma especte -de ceticismo total sobre a La PeyrCre sobre a aucoria mosaica etc. e aplicando de modo
teologia e a religião. Suas proposições se encontram fora do crítico o método da ciência cartesiana ao conteúdo do texto,
plano cognitivo (exceto as que podem ser justificadas pela desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da
filosofia). É inútil questionar, ou mesmo duvidar de proposi- crítica bíblica moderna. Spinoza negou que houvesse qual-
,,i' ções teológicas e religiosas, uma vez que se encontram fora
do domínio em que estes atos mentais são relevantes. Assim
quer mensagem especial na Bíblia que não pudesse ser apren-
! dida por meios filosóficos. E insistiu que grande parte da
como os positivistas no início deste século declararam que os Bíblia poderia ser mais bem entendida em termos da história
discursos ético e estético não eram cognitivos, e portanto judaica, da psicologia primitiva e de questões afins. A exten-
seus enunciados valorativos não estavam sujeitos à questão são, por Spinoza, da metodologia cartesiana à avaliação da
sobre a verdade ou falsidade, de modo semelhante Spinoza maneira como as Escrituras interpretavam o homem e seu
tinha reduzido o poder da teologia e da religião ao removê- lugar no. url.iverso, levou-o a concluir que as Escrituras não
las do campo da discussão significativa filosófica (no sentido tinham lugar no mundo intelectual. Em vez disso, a Bíblia
amplo em que Spinoza usa este termo) ou cognitiva. era apenas uma fonte de ação moral para aqueles que não
Após ter rebaixado a teologia e a religião de maneira eram capazes intelectualmente de encontrar as bases racio-
tão drástica, afastando-as do mundo racional, Spinoza ten- nais da conduta humana.
tou mostrar que ainda assim havia um papel importante para Embora a posição de Spinoza possa parecer extrema ao
ambas. Ele concluiu o capítulo XV declarando: expulsar as questões religiosas do campo epistêmico, e ao
tornar a avaliação e interpretação delas primordialmente uma
Antes de ir adiante quero declarar expressamente (em- tarefa do cientista social, mesmo assim o grande especialista
bora já tenha dito isso) que considero serem muito bíblico do século XVII, o padre Richard Simon, adotou mui-
grandes a utilidade e a necessidade das Sagradas Es- tas das técnicas de Spinoza de crítica à Bíblia. A primeira obra
crituras e da Revelação. Pois como não podemos dei- importante de Simon, A história crítica do Velho Testamento
xar de perceber pela luz natural da razão que a obedi- (1678), examinou a história dos documentos em sua passagem
ência é o caminho para a salvação, c nos é ensinado dos tempos antigos para o presente, explorando a história
pela Revelação exclusivamente que isto ocorre pela filológica dos textos grego e hebraico, e a antropologia dos
graça especial de Deus que nossa razão não pode al- antigos judeus. Simon tinha uma erudição muito maior do que
cançar, segue-se disso que a Bíblia trouxe um grande a de seu amigo La Peyrêre e do que a de Spinoza. Ele insistiu
consolo para a humanidade. Todos são capazes de que não estava querendo gerar um pirronismo sobre o texto
obedecer, embora haja apenas alguns poucos, compa- bíblico, uma vez que estava certo de que havia uma mensagem
rados com a totalidade da humanidade, que são capa- na Bíblia se o texto fosse corretamente compreendido. A ta-
zes de adquirir o hábito da virtude sem a orientação refa de correção e compreensão adequada poderia durar eter-
da razão. Assim, se não tivéssemos o testemunho das namente, mas isto não negava a existência da Mensagem
Escritura~, duvidaríamos da salvação de quase todos Divina. Quando Simon foi acusado de ser um spinozista, ele
os homens". respondeu que concordava com os métodos de Spinoza de
i· estudo da Bíblia, porém não com suas conclusões 33 •
i.: A análise de Spinoza da Bíblia, u:>ando elementos céticos de
" Sobre Simon ver A. lleruus, R1chard Smum ct son Hi>toire Critique du Vieux
Testamem. Lausannc, r869; Luuis l.llrcdvold, Thc lutellectual Md/ieu o( jolm

..
''Tradução de Elwes, págs. 19z- J99; texto latino págs. zs7-Z58.

,
Outros não tiveram uma atitude tão tranqüila. As im- Ocorreu que mesmo antes da publicação da Ética com
plicações revolucionárias da crítica bíblica de Spinoza ficaram sua metafísica naturalista plenamente desenvolvida, muitos
imediatamente evidentes. O Tractatus, como o Prae-Adamitae haviam percebido que o ceticismo sobre a religião revelada
q:uinze anos antes, foi banido da Holanda. {Muito poucos se encontrava explícito nos escritos de Spinoza, sendo que
livros tiveram esta distinção na Holanda no século XVII). esta maneira de tratar a Bíblia negaria a validade e impor-
Circulou com títulos falsos como Traitté des ceremonies tância da tradição judaico-cristã. O Tractatus e a Éthica iri-
superstitieuses des ]uifs3 4 • Devido a este livro Spinoza veio a am abrir uma perspectiva inteiramente nova acerca da expe-
ser atacado como um arquiateu. Ele aparentemente se cansou riência humana. O que Pascal denunciara como a miséria do
dos ataques e decidiu não publicar a Ética em 1675, após homem sem o Deus bíblico, representava para Spinoza uma
conclui-la, porque não quis se envolver em uma briga com os libertação do e'spírito humano das cadeias do medo e da su-
pastores locaisH. perstição. -
Alguns dos adversários do cartesianismo que estavam O ceticismo de Spinoza acerca dos valores do mundo-
certos de que este levaria à infidelidade e ao ateísmo viram bíblico e de sua visão sobre como este mundo poderia ser
em Spinoza uma prova disto. Henry More, por exemplo, substituído pelo homem racional se encontrava muito além
depois de romper com Descartes passou a ter certeza de que do que os pensadores de meados do século XVII podiam acei-
a teoria deste era apenas uma forma de infidelidade. Disse tar. Anos após a morte de Spinoza ainda era uma expressão
ter ouvido que na Holanda havia cartesianos que eram "me- pejorativa chamar alguém de "spinozista"; levou um século
ros irreverentes em relação à religião e ateus"J 6 • Surgiu então para que alguém pudesse dizer com segurança que era um
"Spinoza, primeiro judeu, depois cartesiano e agora ateu"l7. seguidor de Spinoza. Mas mesmo algumas das figuras do
O Tractatus, afirmava More, atacava as bases da religião Iluminismo alemão que fizeram esta declaração tiveram pro-
bíblica. blemas38. O extremamente tolerante Pierre Bayle afirmou que
Spinoza "era um ateu sistemático que empregava um méto-
do inteiramente novo"l9, E, de acordo com Bayle, o Tractatus
Dryden, Ann Arbor, 1959, esp.págs. 98-107; Paul Hazard, La Crise de ia era "um livro pernicioso e detestável"4o que continha as se-
COIISCÍence européenne, Paris, 1935, deuxiême partie, cap. m, págs. 184-.202; mentes do ateísmo da Ética.
Henry Margival, Essai sur Ricbard Simon et ia critique biblique eu Fra11ce au
XV[Jeme sii<cle, Paris, 19oo; Jean Steinmann, Richard Simon et les origi11es de O que Spinoza realizou em relação à religião revelada
i'exégi<se biblique, Paris, 1960. não pode ser considerado ceticismo pirrônico, nem sua ver-
A visão usual de Simon sobre Spinoza ~ra que "Spinoza pôde desenvolver em seu
livro muitas coisas verdadeiras, que ele tomou mesmo de nossos autores, mas tirou
são teológica, o agnosticismo. Parte do argumento de Spinoza
disso conseqüências falsas e ímpias". Richard Simon, De l'Inspiration des Liures consiste em desenvolver as dúvidas de La Peyrêre sobre o
Sacrés, pág. 43· Uma das razões para os maus resultados de Spinoza, segundo texto bíblico. Mas a maior parte de seu argumento consiste
Simon, foi que ele, "não parece ter feito muitas reflexões sobre as questões de
que tratou, se contentando freqüentemente de seguir o sistema mal digerido de em negar o conteúdo cognitivo das Escrituras com base nas
La PeyrCrc, autor dos pré·adamitas", pág. 48. profecias, milagres e coisas deste tipo. Isto pode ser dassifi-
"Outros títulos falsos induem La Cief du Sanctuaire, e Reflexions curieuses d'uu
esprit des-interessé s11r ies matieres pius importautes au salt<t. Todas estas obras
foram publicadas em 1678, sem indicação de local de publicação.
"Ver carta de Spinoza a Oldenburg, verão de 1675, tradução de Elwes, vo!. 11,
págs. 296-297, carta xix (LXVIII}; texto latino, vol. III, págs. 218-219. ''Como ocorreu com Lessing e jerusalem. Ver o artigo sobre Lessing por Henry
16
Henry More a Robert Boyle, carta de 4 de dezembro de 1670[?], em The Works Chadwick na Encyclopedia o f Philosophy, vol. IV, págs. 443-446.
of Robert Boy/e, ed. por Thomas Birch, Londres, 1772, vol. VI, pág. 514. "Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, começo do verbete "Spinoza".
'' Ibid., inc. cit. •" lbid., texto principal, ames da observação E.
cada como ceticismo negativo ou acadêmico. Spinoza não "Spinoza e lo scetticismo dassico" explora a possibilidade de
duvidou apenas das pretensões à verdade das Escrituras, ele Spinoza ter conhecido outras fontes. Di Vona considera mais
as negou à exceção de sua mensagem moral. A partir desta provável que Spinoza tenha conhecido Cícero e Diógenes
negação não faz mais sentido considerar as afirmações da Laércio do que Sanchez, Montaigne e Charron43,
religião revelada como sendo verdadeiras ou falsas. Elas se Para nossos propósitos não importa quanto Spinoza
encontram fora do domínio no qual provas e dúvidas se apli- conhecia da literatura cética já que sua visão bastante nega-
cam. Podem ser estudadas como parte da história da estupi- tiva se fundamenta basicamente em termos de conceitos
dez humana no que representam histórica, sociológica e psi- cartesianos nos Princípios da filosofia de Descartes, e pontos
cologicamente, mas não podem ser estudadas em termos de iguais ou semelhantes são encontrados em outras obras. Con-
sua verdade ou falsidade. siderando quão séria foi a crise pyrrhonienne em meados do
A negação do valor da religião revelada foi logo rotula- século XVII, e especialmente quão séria foi para Descartes, é
da de "ceticismo" e os teólogos passaram a combater os céti- de alguma forma surpreendente ver quão calmamente Spinoza
cos e infiéis. Provavelmente o uso mais comum do termo "cé- a enfrentou, e quão fácil ele considerou descartar-se dela. O
tico" hoje em dia é "alguém que não acredita na religião"4'. problema do ceticismo aparece pelo menos uma vez nas prin-
Neste sentido, com as ressalvas do parágrafo anterior em cipais obras de Spinoza. Creio que sua concepção do proble-
mente, creio que é correto considerar Spinoza como um céti- ma pode ser entendida começando-se com os Princípios da
co acerca da religião, mesmo que sua posição vá muito além filosofia de Descartes (r666), examinando-se o que Descar-
da simples dúvida, chegando à negação completa. Se Spinoza tes e Spinoza disseram a respeito da mesma questão.
era um cético sem religião, ele era totalmente anticético em No início dos Princípios, Spinoza omitiu a dúvida
relação às áreas do conhecimento científico e filosófico. Como cartesiana como um dos meios de se buscar a verdade44 • Dis-
tentarei mostrar, isto não é um sinal de inconsistência, mas ao se que o efeito do método de Descartes era que "ele preten-
contrário, engloba uma das afirmações básicas de Spinoza deu reduzir tudo à dúvida, não como um cético, que não
sobre o conhecimento, que se aplica a todas as questões, inclu- apreende outro fim senão a própria dúvida, mas de modo a
sive à religião. libertar a sua mente de todos os preconceitos" 45 . Descartes,
Spinoza obviamente passou muito tempo estudando as nos é dito, esperava descobrir os fundamentos firmes e ina-
Meditações e os Princípios de Descartes, e portanto não pôde baláveis da ciência, que não poderiam escapar-lhe se seguis-
evitar o contato com idéias céticas e com os problemas formu- se o método. "Pois os verdadeiros princípios do conhecimento
lados pelos céticos. Além do que aprendeu sobre o ceticismo deveriam ser tão claros e certos que não necessitariam de
com a leitura de Descartes, Spinoza tinha conhecimento de . provas, deveriam ser postos além do alcance de qualquer
pelo menos uma fonte cética clássica, Sexto Empírico, que é dúvida, e deveriam ser de tal ordem que nada poderia ser
citado em uma de suas cartas 4 ~. Piero di Vona em seu artigo provado sem eles."~ 6 É à existência de tais princípios (e à
" Piero di Vona, "Spinoza e lo scetricismo classico", em Rívísta critica di Storia
•• O Webstcr's Third Inremational Dictionary dá como um dos três significados de
del/a Filosofia, ano 1958, fasc.III, págs. Z91-J04.
~~ético:•:, "uma pessoa marcada pelo ceticismo em relação à religião e a princí- « Spinoza, The Principies of the Philosophy of René Descartes, em Earlier
PIOS rehg10sos"; c como um dos três significados básicos de "ceticismo": "dúvi-
Philosophical Wlritings, trad. por Frank A. Hayes {Indianápolis, 1963), pág. 13;
da, ma~ não n~ccssariame~t~ n~gação, relativa aos princípios básicos religiosos texto latino, vol. IV, pág. I 10.
(como 1mortahdade, prov1denaa, revelação)".
4 •s Spinoza, Pri11ciplcs of Descartes Philosophy, trad. de Haycs, pág. 13; texto lati-
' Carta LX (L VI) para Hugo Boxcl, Haia, 1674, tradução de Elwcs, vol. 11, pág.
no, vol. IV, pág. no.
387; texto latino, vol. m, pág. 191.

..
• 6 Spinoza, Principies, trad. de Hayes, pág. 13; texto latino, vol. IV, pág. l i I.

,., ,
catástrofe intelectual que ocorreria se não ·existissem) que mente enganador"so. Descartes havia recorrido ao critério
Spinoza apelará em suas escaramuças contra os céticos, es- para mostrar que Deus não era enganador. No mundo de
caramuças porque na verdade ele não se engaja em grandes Spinoza, a idéia de Deus evita o engano e garante que idéias
batalhas contra eles. O que elimina todas as dúvidas claras e distintas sejam verdadeiras.
cartesianas é que sabemos que "a faculdade de distinguir o Em sua tentativa de desenvolver sua filosofia de um
verdadeiro do falso não lhe foi dada pelo Deus supremamente ponto de vista metodológico (o inacabado Tratado sobre a
bom e verdadeiro de modo a enganá-lo"47. Ao discutir isto, correção do intelecto), após ter desenvolvido seu método para
Spinoza deixa claro a sua base fundamental para a certeza. a descoberta da verdade certa, Spinoza se deteve na conside-
ração da possibilidade de ainda haver algum cético que duvi-
Pois, como fica óbvio a partir do que já foi dito, o pon- dasse de nossa verdade primária, e de todas as deduções que
to central de toda a questão é o seguinte, não podemos fazemos. Tornando tais verdades como parâmetro, ele deve,
formar um conceito de Deus que nos disponha de tal ou estar argumentando de má fé, ou devemos confessar que
maneira que não possamos com igual facilidade supor se trata de homens em completa cegueira mental, inata ou
que ele seja e não seja enganador, mas nos compele a devida a conceitos mal formados - isto é, devido a alguma
afirmar que é veraz. Mas quando formamos esta idéia influência externas'. A classificação do cético como mental-
a razão para duvidar das verdades da matemática está mente cego já havia ocorrido nos Princípios da filosofia de
eliminada. Pois aí sempre que prepararmos nossa men- Descartes. Porém, podemos nos perguntar que evidência
te para duvidar destas coisas, tal como no caso de nossa Spinoza pode nos dar disso além do apelo a quão claras e
existência, não encontramos nada que nos impeça de certas determinadas verdades lhe parecem.
concluir que são inteiramente certas 4 ~. Spinoza estava obviamente perplexo com este suposto
cético. Continuou dizendo que não poderia afirmar nem du-
Spinoza prosseguiu, apresentando a teoria de DesCartes, e vidar de nada. Não poderia sequer dizer que não sabe nada,
durante a apresentação deixou clara a centralidade da idéia com efeito, "ele deveria permanecer mudo por receio de su-
de Deus. Afirma que é fora de propósito argumentar contra por casualmente algo que tivesse o sabor da verdade" 5 ~. Se
aqueles que negam ter esta idéia. Seria como tentar ensinar esses céticos, "negam, concedem ou contradizem algo, eles
as cores para um cego. "Mas a menos que estejamos dispos- não sabem 0 que negam, concedem ou contradizem, de tal
tos a considerar estas pessoas como um novo tipo de animal, forma que devem ser considerados como autômatos, total-
a meio caminho entre o homem e as bestas, devemos prestar mente privados de inteligência" 53 •
pouca atenção ao que dizem. " 4 9Esta centralidade é mostrada Em todos os comentários de Spinoza até agora o que
mais uma vez quando Spinoza apresenta as proposições que encontramos é basicamente um argumento ad hominem so-
constituem a filosofia de Descartes. O critério de verdade, bre a mentalidade e o caráter do cético ou formulador de
"Tudo que percebemos de modo claro e distinto é verdadei- dúvidas. É necessário ainda que Spinoza enfrente os argu-
ro" segue-se a "Deus é inteiramente veraz e não é absoluta-
w Spinoza, Principies, parte I, prop. XIII c XIV.
''· Spinoza, On the lmprovement of the Ut~derstmzdiug, tradução de El":'es, vol. II,
41
Ibid., trad. de Huyes, pág. 17; texto latino, Voi. IV, pág. I I4· pág. 17; texto latino, Tractatus de lutcllectus Emendatione, vol. I, pag. 14.
•• Ibid., trad. de Hayes, pág. ::.o; texto latino, voi. IV, pág. I I6. s• Ibid., /oc. cit.
"Ibid., trad. de Haycs, pág. 33; texto latino, escólio à proposição VI, pág. 126. "Ibid., loc. cir.

370 37'
mentos ceucos, independentemente de se o cettco está em se notar qu.e Spinoza discutiu o ceticismo com pouca freqüên-
condições de afirmá-los ou não. Mais adiante no Tratado da cia e quand~ o fez foi geralmente de modo marginal.) No
correção do intelecto, Spinoza deixou claro qual era a ques- Tractatus, ao lidar com a prova da existência de Deus, Spinoza
tão. "Portanto, não podemos lançar dúvidas em relação a começou dizendo: "Como a existência de Deus não é auto-
idéias verdadeiras com base na suposição de que há um Deus evidente"~6, acrescentando então uma importante nota, que
enganador, que nos ilude mesmo a respeito do que é mais aparece ao final do livro: "Duvidamos da existência de Deus
certo. Só podemos manter esta hipótese se não tivermos idéi- e conseqüentemente de tudo o mais, enquanto não tivermos
as claras e distintas." 54 Quando refletimos sobre a idéia de nenhuma idéia_clara e distinta de Deus, mas apenas uma idéia
Deus, sabemos que Ele não pode ser enganador com a mes- confusa. Pois acÍuele que não conhece bem a natureza do tri-
ma certeza que sabemos que a soma dos ângulos de um tri- ângulo, não sabe que seus três ângulos equivalem a dois ân-
ângulo equivale a dois ângulos retos. Spinoza, também no gulos retos, do mesmo modo, aquele que concebe a natureza
Tratado da correção do intelecto, afastou a possibilidade de divina de maneira confusa, não percebe que pertence à natu-
a busca da verdade levar a um regresso infinito na procura reza de Deus existir". Ao final da nota Spinoza declarou que
de um método para se encontrar um método etc. Spinoza quando se torna claro para nós que Deus necessariamente
insistiu que, existe e "que todas as nossas concepções envolvem nelas
mesmas a natureza de Deus e são concebidas através dela,
•.. a saber, para se descobrir qual o melhor método de vemos por fim que todas as nossas idéias adequadas são
inyestigar a verdade, não é necessário outro método verdadeiras"(os itálicos são meus) 57 •
para investigar qual o método de investigar a verda-
Portanto podemos ser céticos, e de fato o somos, até
de; e para que se investigue este segundo método não que tenhamos uma idéia clara e distinta de Deus. Tudo é
é necessário um terceiro, c assim ao infinito. Por esse
duvidoso (ou confuso) sem a idéia de Deus. Spinoza constan-
modo nunca se chegaria ao conhecimento da verda- temente comparava esta situação com a matemática, onde se
de, ou, antes, a conhecimento algum [...] também o não temos uma idéia clara e distinta de um triângulo, não
intelecto, por sua força nativa, faz para si instrumen- saberemos quais as propriedades que o triângulo tem. Mas a
tos intelectuais e por meio deles adquire outras forças situação em relação à idéia de Deus é muito mais significati-
para outras obras intelectuais, graças às quais fabrica va, uma vez que todas as nossas idéias claras "estão envolvi-
outros instrumentos ou poder de continuar investigan- das na natureza de Deus" e são concebidas através Dele. E é
do, e assim prosseguindo gradativamente até atingir o através do conhecimento de Deus que_sabemos que todas as
ápice da sabedoriaH, nossas idéias adequadas são verdadeiras.
Portanto, antes de conhecermos a idéia de Deus so-
Em obras posteriores, o Tractatus e a Ética, Spinoza deixou mos, ou podemos ser, céticos acerca de tudo. Porém para
I superar esta terrível situação não é necessário o esforço he-
ainda mais claras as suas razões para rejeitar o ceticismo como
uma possibilidade séria no mundo racional da filosofia. (Deve- róico de Descartes, mas apenas um esforço racional, e um
senso racional em relação ao que é claro e certo, ou claro e
distirito. Spinoza continuou no texto do Tractatus,
"Ibid., rradução de Elwes, pág. 30; texto latino I pig. •5·
«Jb"d
· t ., tra d ução de Elwes, págs.u-u; texto latino,
' ' I, págs. 10-rr. Gostaria de
•• Spinoza Tractatus tradução de Elwes, pág. 84; texto latino, li, pág. 159·
agradecer ao pro f. J. N. Watkins, da London School ofEconomics por me fazer
perceber a importância dessas passagens. '
"Tractat~s, traduçã~ de Elwcs, pág. :1.70; texto latino, 11, pág. 3l5·

373
37'
I

[A existência de Deus] deve necessariamente ser não é o resultado de tropas ou argumentos, mas da ignorân-
infcrida com base em idéias tão firme c incontrover- cia. Não é refutado, mas sim substituído pelas conseqüências
tidamente verdadeiras, que nenhum poder pode ser profundas de se ter uma idéia clara de Deus. E uma tal idéia
postulado ou concebido com força suficiente para elimina as considerações céticas adicionais de Descartes, de
impugná-las [como o demônio de Descartes ou o seu que Deus pode ser enganador. A verdadeira e adequada idéia
Deus enganador]. Elas devem nos aparecer assim quan- de Deus imediatamente elimina esta possibilidade.
do as inferimos da existência de Deus, se quisermos O cético poderia ainda perguntar como sabemos que
colocar nossa conclusão fora do alcance da dúvida temos a idéia clara e certa, ou verdadeira e adequad€1 de Deus?
[os itálicos são meus]; pois se pudéssemos perceber Esta idéia, para Spinoza, aparentemente seria capaz de vali-
que estas idéias poderiam ser impugnadas por algum dar-se a si mesma. Ela será "tão firme e incontrovertidamente
poder, poderíamos duvidar da verdade delas, poderí- verdadeira, que nenhum poder poderá ser postulado ou con-
amos duvidar de nossas conclusões, a saber, da exis- cebido com força suficiente para impugná-la". A pessoa que
tência de Deus, c não poderíamos jamais ter certeza quer impugnar a idéia de Deus é apenas um ignorante e não
de nadasR. sabe realmente de que idéia se trata. A pessoa que tem mes-
mo esta idéia, perceberá que é verdadeira e não pode ser
Além de apresentar um argumento com base em uma catás- falsa, não importa que considerações céticas sejam introdu-
trofe, isto é, se pudermos duvidar da verdade fundamental zidas. E uma das razões pelas quais não pode ser falsa é o
de que
'
Deus existe, não poderíamos ter certeza de nada, e argumento da catástrofe, segundo o qual tudo isso se torna-
estanamos reduzidos a ser céticos, Spinoza apresenta tam- ria incerto.
bém a tese central de sua teoria do conhecimento. Todo co- Próximo ao final do livro II, a Ética examina o ceticis-
nhecimento provém de nosso conhecimento da existência mo mais detalhadamente, diagnosticando-o como ignorân-
Dele, ou é valid<l;do por este conhecimento. Este conhecimento cia. A proposição XLIII afirma: "Aquele que tem uma idéia
fundamental, por sua vez, se autovalida, uma vez que nosso verdadeira sabe, ao mesmo tempo, que tem uma idéia verda-
sens? _racional não pode_ aceitar a possibilidade do argumen- deira e não pode duvidar da verdade da coisa percebida".
to cetrco de que Deus seJa enganador, se conhecemos a idéia No escólio a esta proposição, Spinoza diz:
de Deus, e não podemos ser forçados a um regresso ao infini-
to sobre como sabemos isto. Esta idéia imediatamente elimi- Na verdade, ninguém, tendo uma idéia verdadeira, ig-
na as possibilidades céticas do cartesianismo, devido ao que nora que a idéia verdadeira envolve a mais alta certe-
a idéia é, ou ao que a idéia expressa. Se não tivermos uma za. Com efeito, ter uma idéia verdadeira não significa
i~éia c~ara d: Deus, então não se trata apenas de que o ceti- senão conhecer uma coisa perfeitamente ou o melhor
ctsmo e posstvel, mas trata-se na verdade do destino do ho- possível. Ninguém certamente poderá duvidar disso,
mem, uma vez que nesta situação "não seríamos capazes de a menos que creia que uma idéia é algo de mudo como
ter jamais certeza de nada". uma pintura num quadro, e não um modo de pensar,
Assim sendo, o ceticismo é não só possível como neces- isto é, o próprio ato de conhecer. E, pergunto, quem
sário, se não tivermos claramente a idéia de Deus. O ceticismo pode saber que conhece uma coisa se, antes, não co-
nhece a coisa? Em outras palavras, quem pode saber
1, que está certo de uma coisa se, antes, não está certo
'' Tractatus, tradução de Elwes, págs.84-85; texco latino, li, págs." 159-160.

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374
f
'I
I dessa coisa? Além disso, o que pode haver de mais
revela a si mesma no ato em que a conhecemos, não devemos
claro e de mais certo que a idéia verdadeira como nor~
nos preocupar com o ceticismo, mas sim com a análise da
ma da verdade? Sem dúvida, do mesmo modo que a
verdade para descobrir o que a torna verdadeira, ou seja,
luz se faz conhecer a si mesma e faz conhecer as tre-
Deus. O cético não conhece nada já que tem todas as suas
vas, assim a verdade é norma de si mesma c da
falsidades 9 • supostas dúvidas. Ele se encontra em um estado de ignorân-
cia do qual apenas uma experiência genuína de conhecimen-
to pode curá-lo. Ele pode se encontrar em um estado de sus-
Spinoza resolveu com isso uma das questões básicas que pro-
pensão de juízo, o que significa que "ele não percebe o as-
vocaram o ceticismo em Montaigne e que Descartes tentou
sunto em questão adequadamente" 00• Assim que isto aconte-
superar. Uma idéia não é um objeto sem vida que tentamos
cer ele abandonará o seu ceticismo.
avaliar por critérios que necessitam eles próprios de justifi-
Spinoza não via o ceticismo como o espectro rondando
cação. Spinoza insistia que uma idéia é um modo do pensa-
a filosofia européia. As citações que fiz praticamente esgotam
mento cuja verdade ou falsidade exibe a si mesma. Nenhum
sua discussão desta questão. Ao contrário de Descartes, que
regresso ao infinito de métodos é necessário, porque ter uma
teve de lutar contra o ceticismo para chegar à verdade
idéia verdadeira é o mesmo que conhecer algo perfeitamen-
te, e isto revela a si mesmo através das faculdades naturais dogmática, Spinoza simplesmente partiu da ~erteza de que .seu
do intelecto. Não há problema cético possível porque conhe- sistema era verdadeiro, e qualquer um que nao percebesse Isto
era um cego em relação à verdade (como alguns o eram em
cem~os,.e sabe~os que conhecemos, ou então estamos na ig-
norancm. O cettco que quiser debater com Spinoza sobre isso relação às cores), ou um ignorante. O ignorante pode ser aju-
receberá como resposta que deve refletir sobre se conhece ou dado se pudermos fazê-lo aprimorar o s.eu entendimento, e
conhecer algo com clareza e certeza, ou adequadamente.
entende algo perfeitamente (o que equivale a ter conheci-
O dogmatismo epistemológico de Spinoza está prova-
mento claro e certo). Se o cético duvidar que tem um conhe-
velmente o mais distante possível do ceticismo de qualquer
cimento deste tipo ele será então considerado como um ig-
norante que não sabe o que é essencial ao debate. uma das novas filosofias do século XVII. Trata-se de uma
teoria genuinamente anticética, tentando :rrad~c~r a po~sibi­
Para Spinoza nenhuma prova muito elaborada contra
lidade ou o sentido da dúvida e da suspensao do JUlZO. Spmoza
os céticos é necessária uma vez que ele está afirmando 0 con-
iniciou 0 seu sistema do ponto a que outros pretendiam che-
trário de Descartes, que todo ato do entendimento enquanto
gar após a superação da ameaça cética; ~~iminou os. céticos
tal nos torna conscientes de que conhecemos e de que sabe-
formulando de início o axioma, "Uma tdeta verdadeira de~e
mos que conhecemos. Embora o cético afirme que alguém
corresponder a seu ideal ou objeto" 6'(o itálico é m~u), e ma~s
pode est~r errado, Spinoza mantém que isto é impossível se a
tarde insistindo que as pessoas têm idéias verdaderras. A evi-
p~s:o~ tiver uma idéia clara e distinta. Ela seria seu próprio
dência para uma tal afirmação consiste na experiência pes-
cnteno. Como algumas das citações anteriores indicam, a
soal. Em relação à primeira nenhuma evidência é apres~nta­
escolha, segundo Spinoza, se dá entre conhecer Deus e tudo
da, exceto a de que se trata de um axioma. Enquanto ax10ma
que disso decorre, ou não conhecer nada. Uma vez que co-
dispensa a necessidade de se construir uma ponte entre as
nhecemos algo, como, por exemplo, que os ângulos de um
idéias e os objetos.
triângulo equivalem a dois ângulos retos, uma verdade que
,. Spinoza, Ethica, tradução de Elwes, págs. ll4-1 15, texto latino, págs. 107-108. '"" Ethics, tradução de Elwes, pág. 124; texto latino, I, pág. 117.
"'Trata-se do sexto axioma do livro primeirO da Ética de Spinoza.

377
Para Spinoza não há verdadeiramente céticos, apenas Tudo isso mostra suficientemente como cada qual opi-.
ignorantes. Com esta trerrlenda certeza, baseada em sua idéia na acerca das coisas conforme a disposição de seu cé-
de Deus clara e certa, verdadeira e adequada, Spinoza pôde rebro; ou, antes, toma as afecçõcs de sua imaginação
responder a seu antigo discípulo, Albert Burgh, que havia como se fossem as próprias coisas; pelo que não é de
perguntado "Como posso eu [Spinoza] saber que minha filo- admirar que se tenham originado entre os homens as
sofia é a melhor dentre todas as que têm sido ensinadas no controvérsias que a experiência nos ensina e deram
mun do...."" 6 ~, a f.1rmand o, "N-ao presumo ter encontrado a ensejo ao ceticismo.[...] os homens julgam as coisas
melhor filosofia, sei que compreendo a verdadeira filosofia"6J. consoante a disposição de seu cérebro e as imaginam
Se se perguntar a Spinoza como ele sabe disso, sua resposta é em vez de as compreenderem. Se as percebessem pelo
que ele sabe disso da mesma maneira que sabe que os ângu- entendimento, como testifica a matemática, teriam o
los de um triângulo somam dois ângulos retos; "que isso seja dom senão de cativar, pelo menos de convencer a toda
suficiente não será negado por ninguém que tenha a mente a gente 66 •
sã, e não sonha sobre gênios malignos nos inspirando com
idéias falsas como se fossem verdadeiras. Pois a verdade é o Assim, para Spinoza, as controvérsias religiosas construídas
indício dela própria e do que é falso"64. sobre a ignorância da idéia de Deus simplesmente levam ao
O anticeticismo total de Spinoza em relação ao conhe- ceticismo. Se as pessoas se acercarem do problema primeiro
cimento reforça seu ceticismo sobre o conhecimento religio- através de idéias matemáticas e em seguida através do co-
so. Baseando-se na idéia verdadeira e adequada de Deus, que nhecimento de Deus, verão quão falsa e quão estúpida é a
é clara e óbvia quando a entendemos, fica evidente que Deus religião popular. O dogmatismo completo de Spinoza justifi-
não pode ser a figura representada pela religião popular. Os ca então a dúvida sobre a religião popular e finalmente a
juízos de Deus têm sido considerados como transcendendo negação desta.
nosso entendimento. "Uma tal doutrina poderia muito bem Spinoza considerou que havia encontrado um modo
ter servido para ocultar a verdade da raça humana por toda de eliminar a força do ceticismo, enquanto desenvolvia um
a eternidade, se a matemática não tivesse apresentado um (ou o) sistema filosófico totalmente certo. O Deus de sua
outro parâmetro de verdade ao considerar apenas a essência filosofia forneceria a base para um ceticismo completo acer-
e as propriedades das figuras sem levar em conta as suas ca da religião popular ou mesmo para a sua negação, o que
causas finais." 6 s Nossas idéias claras e certas mostram que se aplicaria também aos sistemas teológicos do judaísmo e
Deus não tem motivos, nem age para obter determinados do cristianismo. Este Deus, uma vez conhecido, forneceria
fins. Não há valores na natureza que Deus esteja querendo uma barreira contra qualquer desafio cético, uma vez que
aumentar. To das as tolices que as pessoas dizem a este res- este desafio seria interpretado meramente como ignorância
peito: ou cegueira em relação à verdade. Os céticos poderiam con-
tinuar discutindo questões do tipo: "Como podemos saber
que X é verdadeiro?", e Spinoza simplesmente diria que a
•• Carta de Spinoza a Albert Burgh, 1675, tradução de Elwcs, vol. II, pág. 416; verdade é o índice de si própria, portanto a questão só reflete
texto latino, UI, Epístola LXXVI, págs. 232-233·
6
' Ib~d., tradução de Elwes, pág. 416, texto latino III, pág. 233. a ignorância ou a estupidez.
••Ib1d., tradução de Elwcs, págs. 416-417; texto latino IH pág. 233.
6
' Spinoza,_ Ethic__s, traduç_ão ?c Elwes, pág. 77; texto latino: I, pág. 69 (esta citação
c a segumtc sao do apend1ce do livro I da Ética). ""Ibid., tradução de Elwes, pág. So; texto latino, págs. 71-72.

379
O hiper-racionalismo de Spinoza e seu anticeticismo isto politicamente no Período do Terror69, D'Holbach, por
foram atacados por apenas um cético. (É claro que o seu exemplo, foi capaz de defender dogmaticamente uma
ceticismo sobre a religião revelada foi atacado por teólogos metafísica naturalista ao mesmo tempo escrevendo Os três
em toda a Europa.) Pierre Bayle em Seu Dictionnaire impostores, Moisés, Jesus e Maomé 70 •
historique et critique dedicou seu verbete mais longo, do ta- A combinação de ceticismo religioso c metafísica rea-
manho de um livro, a Spinoza67, Este texto é geralmente lista constituiu a posição de muitos pensadores do Iluminismo.
desconsiderado como simplesmente uma interpretação errô- Foi só com Hume que tivemos alguém que foi cético tanto
nea das categorias de Spinoza, mas Bayle não costumava in- do ponto de vista religioso quanto epistemológico. O ceticis-
terpretar mal seus adversários deliberadamente. Para se fa- mo religioso disseminado por La Peyrêre e Spinoza dominou
zer justiça aos ataques de Bayle a Spinoza seria necessário as posições de vanguarda na Inglaterra, na França c na Ale-
um longo artigo, se não um livro. Para nossos propósitos manha. Após um século e meio de ceticismo religioso as de-
aqui, há um ponto que é interessante, ou seja, que o fesas tradicionais da religião revelada se encontravam seria-
racionalismo de Spinoza justificaria as conclusões as mais mente enfraquecidas. Seus defensores foram forçados a
irracionalistas. Nas observações Q e T, Bayle tentou mos- defendê-la com base na fé apenas, apesar das críticas céticas,
trar que se Spinoza tivesse argumentado logicamente ele te- como fica evidenciado em Hamann, Lammenais e
ria percebido que não há filósofo com menos razões para Kierkegaard. A história dramática de como o mundo oci-
negar a existência de espíritos e do inferno do que ele pró- dental perdeu sua inocência religiosa está assim estreitamen-
prio, Spinoza. Bayle procurou mostrar que se seguia da na- te ligada ao surgimento e florescimento do ceticismo religio-
tureza ilimitada do Deus de Spinoza que este poderia criar, e so nos séculos XVTI e XVIII. A aplicação da retomada do
provavelmente o fez, espíritos, demônios etc. e todo o mun- ceticismo às teses básicas da tradição religiosa judaico-cristã
do das trevas. O argumento de Bayle parece ser que a lógica provou ser um dos usos mais devastadores do instrumental
da posição de Spifloza não parece excluir nada como um cético. O caráter c a qualidade das crenças religiosas foram
componente possível do mundo 68 • Assim, o decantado severamente abalados por isso, e o tipo de crença que pôde
racionalismo de Spinoza acabaria por justificar todo o tipo sobreviver a este ataque baseava-se cada vez mais em uma
de irracionalismo. posição cética e fideísta. E este tipo de desafio permance ain-
Spinoza sobreviveu aos ataques de Bayle bem como a da mesmo ao final do século XX como uma das principais
muitos outros ataques. O ceticismo em relação à religião questões que um pensador religioso deve enfrentar. A mar-
combinado com um anticeticismo dogmático sobre o conhe-
cimento tornou-se um modelo para muitos dos deístas ingle-
ses e pensadores franceses do Iluminismo que levaram adi- .., A partir de 1792 o governo revolucionário francês tentou eliminar 10das as for-
ante muitos dos argumentos céticos levantados por La Peyrêre mas de religião tradicional. O abade Henri Grégoire, que lutou pela "liberté des
culre~·", afirmava que esta supressão era um experimento de engenharia social
c Spinoza até chegareJD. ao ponto em que consideraram que visando criar uma sociedade de ateus tal como descrita por Pierre Bayle, urna
haviam abolido a religião tradicional, tentando concretizar sociedade que seria mais ética do que a sociedade de cristãos. Cf. Grégoire,
Discours sur la /iberté des w/tes (sem local, ano UI, 1795), pág. I, e Histoire des
sectes religieuses, tomo I, Paris, 1828.
1° A última e mais conhecida versão do Três impostores é atribuída ao barão d'Holbach.
6
O verbete e mais as suas longas e numerosas notas chegam a cerca de trezentas
'
Sobre os Triis impostores, sua história e seus possíveis autores, ver Don Cameron
páginas comuns. Allen, Doubt 's Boundlcss Sea (Balrimore, 1964), págs. 224-243; e Gerhard Bartsch,
" Bayle, Dicti01maire, verbete "Spinoza", observações Q e T. ed., De Tribtrs Impostoribus, Berlim, 1960, "Einkitung", págs. 5-38.

,, '
cha do ceticismo epistemológico para o ceticismo religioso
levantou algumas das questões básicas que deram forma à
nossa busca do conhecimento tanto na ciência quanto na re-
ligião.

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