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Índice

4 Magnólia Gibson Cabral da Silva; Maria do Socorro Sousa e Kelly Eileen


Hayes, Esoterismo, Religiões Místico-esotéricas e Ciência
5 Nelson Job, Magia e Ciência ao longo da História: do Renascimento ao Presente

20 José Filipe P. M. Silva, A parapsicologia Freudiana: telepatia, espiritualidade e


ocultismo
32 Magnólia Gibson Cabral da Silva, Holismo E Saúde: O Despertar Mágico Da
Ciência?
47 Maria do Socorro Sousa, Saber Popular, Religião e Magia quando a Natureza e
a Fé são os últimos recursos

61 Nara Keiserman, O que há de mais sagrado


71 António Tavares, Eubiose
81 Carolina Jaramillo, Movimiento Gnóstico Cristiano Universal
94 Kelly Eileen Hayes, Esoterismo Ocidental e Novas Religiões no Brasil: O Vale
do Amanhecer
105 Celso Luiz Terzetti Filho, A Magia Como Liminaridade – O Ato Mágico Como
Expressão Da Communitas
Esoterismo, Religiões Místico-esotéricas e Ciência

Coordenação:
Magnólia Gibson C. da Silva (UFPB)
Maria do Socorro Sousa (UFPB)
Kelly E. Hayes (IU-PUI)

Nos últimos cinquenta anos têm-se tornando cada vez mais evidente o
crescimento, a diversificação e a difusão de estudos e práticas místico-
esotéricas nas mais diferentes camadas da população urbana ocidental. O
que chama a atenção dos estudiosos é que os reflexos destas práticas e
destes estudos, não se restringem aos estreitos limites da individualidade.
Espraiando-se muito além destes limites, objetiva-se numa miríade de
formas movimentos e práticas que não obstante a pouca representação
numérica nas estatísticas oficiais, configura-se como um dos fenômenos de
maior significância sociológica da atualidade, em razão do seu caráter
reflexivo e eclético, com incursões em quase todos os campos do
conhecimento e em todos os setores da vida. Com efeito, o esoterismo
estende-se a praticamente, todos os campos simbólicos de sentido –
religioso, artístico, cultural e científico. Projetos artísticos, culturais, bem
como científicos nas áreas da saúde, tecnologia e arquitetura, entre outros,
têm sido desenvolvidos com base no conhecimento esotérico. A proposta
deste simpósio é promover uma ampla discussão a respeito do esoterismo
ocidental hoje e sua influência na vida das pessoas, na cultura, e nas
atividades científicas e profissionais em geral, nas quais sua influência está
claramente evidenciada.
MAGIA AO LONGO DA CIÊNCIA RENASCENTISTA E MODERNA

Nelson Job1 (HCTE/UFRJ)

Resumo
Magia e ciência possuem relações históricas e conceituais que foram obnubiladas pelo
Iluminismo. A partir de conceitos como rizoma e obviação, mostraremos como os
cientistas renascentistas - Paracelso em sua medicina, Bruno enquanto frade e místico
conceituador herege do universo infinito, Kepler como astrônomo e astrólogo e
finalmente, Newton como filósofo natural, teólogo e alquimista - desenvolveram suas
obras que moldaram nossa visão moderna de ciência a partir do Hermetismo. A ciência
contemporânea permanece sob sua influência indireta através da física moderna.
Estabelecida as relações entre Hermetismo e física moderna, explicaremos como tais
relações produzem um campo híbrido simultaneamente ontológico e epistemológico,
dinâmico e permeável que nós chamaremos de “vortex”, um transaber, ou seja, a
transdisciplinaridade aplicada à vida, em que a obviação se tornará mais evidente.

Palavras-chave: magia, ciência, obviação, rizoma, vortex.

Abstract
Magic and science have historical and conceptual relationships, but these relationships
were muddled by Illuminism. Using concepts like rizhome and obviation, we will
demonstrate how the Renaissance scientists - Paracelsus in his medical capacity, Bruno
as a heretical friar and mystic who conceived an infinite universe, Kepler as an
astronomer and astrologer and, finally, Newton as a natural philosopher, theologian and
alchemist – were inspired by Hermeticism in the development of their works, which
shaped our modern vision of science. Contemporary science remains under your indirect
influence via modern Physics. This relationship produces a hybrid field, simultaneously
ontological and epistemological, dynamic and permeable, which will be called “vortex”,
a transknowledge, that is, transdisciplinarity applied to life, where obviation will
become more evident.

Key words: magic, science, obviation, rizhome, vortex.

1
Nelson Job é pós doutorando pela História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (HCTE/UFRJ) e atrator do grupo de pesquisa independente Coletivo
Transaberes. Contato: nelsonjob1@yahoo.com.br
Quando entras nessa dança,
Abandonas os dois mundos;
É fora deles que se encontra
O universo infinito do giro.
Rumi

Vamos evidenciar aqui as relações histórias e conceituais entre magia e ciência.


Historicamente, as relações com a magia se mostram mais óbvias com a ciência
renascentista, mas é com o advento da ciência moderna, sobretudo com a Mecânica
Quântica e a Teoria do Caos que as relações conceituais se tornam, ao nosso ver,
evidentes.
Utilizaremos para conceituar a magia ocidental o Hermetismo, pois sua influência é
gigantesca e sua organização, a partir do século XIX, em sete princípios, torna nossas
ressonâncias mais contundentes.
O Hermetismo recebe essa alcunha em função da figura de Hermes Trismegisto. Yates
(1964) afirma que ele não existiu, já os textos alquímicos medievais colocam o advento
de Trismegisto no mais tardar em 1800 a.C., no Antigo Egito. Sua figura se confundiria
com o deus Thoth, ora aparecendo como o próprio, ora como seu principal seguidor e
difusor.

Modernamente, organizam-se os princípios básicos do Hermetismo em sete, mas, como


é comum nos estudos herméticos, não se sabe com exatidão quem fez a organização.
Provavelmente foi organizado por William Walker Atkinson, que escreveu em 1912
(em conjunto ou não, mais uma vez, não se sabe) o famoso O Caibalion: estudo da
filosofia hermética do Antigo Egito e da Grécia com a alcunha autoral de Três Iniciados
(2006), ou até mesmo antes, pela médica Anna Kingsford e seu “parceiro espiritual”, o
escritor Edward Maitland, em sua introdução à tradução que ambos fizeram em 1885
da The Virgin of the World, atribuído a Hermes Trismegisto (GREER, 2011). Sendo
assim, os Sete Princípios Herméticos foram organizados em:

Mentalismo ― Tudo é mente, sendo que a matéria é força mental coagulada.


Vibração ― Tudo está em movimento, tudo se move, tudo vibra.
Ritmo ― Tudo tem fluxo e refluxo, um movimento para a frente e para trás.
Polaridade ― Tudo tem o seu oposto, que é, na verdade, o extremo de uma mesma
coisa; tudo tem o seu duplo, que é diferente em grau, mas o mesmo em natureza.
Correspondência ― O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está
embaixo é como o que está em cima. Existem três grandes planos: o físico (matéria,
substância etérea e energia), o mental (mineral, elemental, vegetal, animal e hominal) e
o espiritual, sendo que os sete princípios se encontram em todos eles.
Causa e Efeito ― Toda a causa tem o seu efeito. Os estudiosos do Hermetismo
conhecem os métodos da elevação mental a um plano superior, onde se tornam apenas
causadores, e não efeitos. Não apenas uma causa anterior gera um efeito, mas todas as
causas anteriores, até a mais longínqua, geram um efeito.
Gênero ― Tudo tem o seu masculino e o seu feminino, e eles se engendram, de modo
semelhante à complementariedade entre yin-yang no conhecido diagrama Taiji do
Taoismo.

O Hermetismo obteve sua maior popularidade na Idade Média. Apesar de o cristianismo


ter se mesclado inicialmente ao Hermetismo, na Inquisição, todos os tipos de paganismo
foram entendidos como heresia pela Igreja, sendo seus praticantes convertidos ou
condenados. Inicialmente, a ciência também tinha íntimas relações com o pensamento
hermético, mas, com o seu avanço, abandonou-o gradativamente.

Se pensarmos a ciência como um saber que busca o entendimento da natureza para sua
operação, controle e previsão, a magia, em suas vertentes naturais, apresenta uma clara
ressonância em seus objetivos epistêmicos e de ordem empírica com os da nascente
ciência. Contudo, como resultado do processo da Revolução Científica, que culmina no
século XVIII, magia natural e ciência já não são mais o mesmo saber, embora tenham
interagido e de alguma forma coexistido nas pesquisas de pensadores como Paracelso,
Giordano Bruno, Kepler, Robert Boyle e Newton. Referindo-se a estes pensadores,
Debus (2002) comenta que: “mais do que os outros, Paracelso pode ser visto como o
arauto da Revolução Científica”, e ainda Paolo Rossi (1997): “a ciência do século XVII,
junto e ao mesmo tempo, foi paracelsiana, cartesiana, baconiana e leibziniana”.

Theophrastus Paracelsus (1493–1541) foi um médico alquimista suíço, muito crítico da


medicina de sua época. Segundo o ex-editor da Nature, Philip Ball (2009), a concepção
de medicina e filosofia de Paracelso baseava-se no Hermetismo e no Neoplatonismo.
Paracelso estudava a natureza para entender o corpo, o que revelava, com tais relações
de micro e macro, a presença do Princípio de Correspondência do Hermetismo.

Paracelso acreditava nos arcanos, incorpóreos eternos que têm o poder de transmutar os
doentes. Esses arcanos combatiam doenças de calor com calor, frio com frio etc., o que
veio posteriormente a influenciar os homeopatas ― daí a máxima “similar cura
similar”.

Com o advento do oxigênio de Lavoisier e sua química, a influência de Paracelso foi


reduzida. Ball discute o mito de que essa “nova” química seria antiparacelso. De acordo
com o autor, poderíamos supor que ele aplaudiria a descoberta do oxigênio. A grande
perda da química é seu afastamento da filosofia, é o fato de ela ter se tornado uma
disciplina isolada, paradigma comum no Iluminismo. A alquimia prezava a consonância
entre experimento e filosofia. A ciência foi se distanciando da filosofia, limitando-se ao
experimento. Paracelso ainda influenciaria a sinfilosofia dos Primeiros Românticos
Alemães.

O italiano Giordano Bruno (1548–1600) foi um polêmico frade dominicano, teólogo,


filósofo e astrônomo, morto pela Inquisição. Influenciado pelo Hermetismo e pelo
Neoplatonismo, era divulgador da arte da memória, uma técnica mágica de
memorização.

Bruno (2008) afirmava no Tratado da Magia: “mago designa um homem que alia o
saber ao poder de agir”. Yates (1964) chama atenção para o fato de que o cálculo e a
experimentação diferenciavam os magos renascentistas dos gregos antigos e teólogos da
Idade Média, e que essa disposição de homens como Bruno foi o germe que tornou a
ciência tão poderosa.

Giordano Bruno conceberia filosoficamente um universo mutante, anímico, infinito,


eterno e descentrado; sendo que as duas últimas características foram sustentadas pouco
depois por Galileu Galilei. O filósofo Nuccio Ordine (BRUNO, 2010, p. XL),
comentando a peça cômica Castiçal de Bruno, faz uma síntese de toda a obra:
Tudo muda, tudo se transforma. Aos nossos olhos o que existe parece se perder
definitivamente, de uma vez por todas. Na verdade, não é assim. Aqui se anula uma
forma, se dissolve um indivíduo específico, mas ao mesmo tempo ali nasce outra
forma; um novo ser abre-se para a vida. Os agregados se desagregam e os elementos
indestrutíveis vagam, sem cessar, de um composto a outro, sem conhecer a
imobilidade e o repouso.

Se Galileu possuía diplomacia com a Igreja, diferentemente de Bruno, cujas ideias


pagãs e peças debochadas em relação à instituição o levaram à fogueira em Roma,
depois de um cruel processo de julgamento. O historiador da ciência Alexandre Koyré
(1979) escreve: “foi Bruno quem pela primeira vez nos apresentou o delineamento, ou o
esboço, da cosmologia que se tornou dominante nos últimos dois séculos”.

Johannes Kepler (1571–1630) foi um astrônomo, astrólogo e matemático alemão. Ele


formulou leis da mecânica celeste que viriam a ser muito importantes para a física
newtoniana. Segundo o teólogo, ex-padre e especialista em geociência James Connor
(2005), Kepler obteve grande fama como matemático imperial e astrólogo, fazendo
previsões certeiras e recebendo durante certo tempo a alcunha de profeta. Porém, ele
sempre foi ambíguo em relação à astrologia, mas a considerava importante para apurar a
astronomia. Sua mecânica foi decisiva para engendrar a de Newton, que tirou a
importância da astrologia, relegando-a a guetos.

Kepler obviamente sofreu influência do Hermetismo, citando Hermes Trismegisto em


sua Harmonia do Mundo (YATES, 1964), mas se diferenciando dos esotéricos
fraudulentos que também citavam textos herméticos. A concepção kepleriana de
harmonia era um misto de música, astronomia e, principalmente, geometria. Para ele, a
harmonia ― uma categoria primária da existência que permitia a experiência do mundo
― oferecia acesso à mente de Deus.

Devido a sua peculiar fé luterana, Kepler negou a concepção de universo infinito de


Giordano Bruno e Galileu, utilizando-se de argumentos aristotélicos.

Sua mãe, Katharina ― que era dada a costumes pagãos, fazendo poções de curas com
ervas, ainda que não fosse propriamente uma bruxa ―, foi condenada e presa pela
Inquisição já em idade avançada. Os esforços de Kepler permitiram uma soltura tardia,
mas logo depois Katharina faleceu.

Isaac Newton (1643–1727) foi físico, matemático, astrônomo, alquimista e teólogo.


Segundo a historiadora Betty Dobbs (1984), Newton se dedicou principalmente aos
estudos da alquimia, principal inspiração para o seu conceito de força. É conhecido o
discurso de Keynes (2002) dizendo que Newton não foi o primeiro homem da Idade da
Razão, mas o último dos magos.

Na primeira edição do Principia, Newton explicitava a sua crença na transmutação da


matéria. Com o advento de sua Optica, ele retirou a afirmação do Principia, deixando-a
apenas na primeira, considerada obra menor. Se Koyré acredita que Newton deixou de
acreditar na transmutação, Dobbs afirmaria que ela está subentendida na obra-prima de
Newton. Koyré (2002) faria ainda uma crítica ao legado de Newton; ele teria posto o
“movimento absoluto” no lugar do devir, gerando uma espécie de mudança sem
mudança, separando o mundo em dois: o da quantidade, que seria o mundo da ciência e
da qualidade, e o nosso mundo percebido e experimentado. Essa separação,
acreditamos, tem seu germe na “confusão” pitagórica sugerida por Bergson e culmina
na separação entre ciências e humanidades, “as duas culturas”. Os newtonianos, sem
acesso ao Newton alquímico, fortaleceram a imagem de uma ciência “pura”,
matemática, empírica, sendo que desde sempre esta emergiu por vetores múltiplos, que
envolvem tanto magia, quanto filosofia e religião.

Segundo Dobbs, a Optica é, praticamente, um tratado alquímico, visto que o espírito era
luz, para Newton. Ele ainda faria uma tradução comentada para o inglês do texto mais
importante do Hermetismo, “A Tábua das Esmeraldas”, dizendo que todas as coisas
derivam do caos fiosófico (DOBBS, 2002).

Caberia a questão se Newton seria “newtoniano”: não, se alimentarmos a hipótese de


que Newton realmente acreditava na transmutação da matéria, característica da alquimia
que envolve o Princípio de Mentalismo no Hermetismo. Assim, Einstein (1999) e sua
Teoria da Relatividade ― que equivaleria matéria e energia ― não apontariam um
acréscimo em relação à física de Newton, mas recuperaria e desdobraria o
Newton oculto. A Teoria da Relatividade é a versão da ciência moderna da
transmutação alquímica, uma espécie de Mentalismo sem mente, que é substituída pelo
conceito de energia. O Hermetismo presente na obra de Newton põe em dúvida se ele
acreditaria realmente no espaço absoluto ― visto que no Princípio de Vibração é
apresentado um universo dinâmico em sua mais profunda constituição ―, ou se a
postulação deste foi uma concessão para o seu pensamento ter mais alcance.

No tocante a este afastamento entre o nível ontológico, ou “mundo real”, e o nível


epistemológico, ou discurso e representação aceitável do primeiro, há uma
transformação significativa da magia para a ciência. O discurso mágico, os nomes e os
sons das palavras nas descrições, encantamentos e invocações não constituem modelos
ou representações das coisas a que se referem. Na magia o discurso é extensão da
ontologia:

Do século XVII em diante, as condições de conhecimento e a organização de signos


foram pensadas em termos muito diferentes. O importante agora sobre a linguagem
era a sua capacidade de espelhar a natureza, e não de se assemelhar a ela. A
linguagem entrou no que Foucault denominou “período de transparência e
neutralidade”; a representação tornou-se a sua tarefa essencial. (CLARK, 2006, p.
372)

O que Foucault (2002) faz em seu As Palavras e as Coisas é mostrar que o ser saiu da
representação, tendo como consequências, na linguagem, o fim de sua interdependência
com o mundo ― o que legitimava a magia ―, criando a ideia de separação entre as
palavras e as coisas, e na biologia, a separação entre o vivo e o não vivo, ou o fim do
mundo anímico, devido à taxonomia aristotélica levada as suas últimas consequências
por Lamarck etc. Para Foucault, um dos únicos abrigos do ser selvagem das palavras é a
literatura, ou, nas palavras de Blanchot (2011): “poderíamos mesmo sonhar em vê-la [a
literatura] desenvolvendo-se em uma nova Cabala, uma nova doutrina secreta que,
vinda dos séculos antigos, se criaria de novo hoje e começaria a existir a partir e além de
si mesma”.

Outra perspectiva relevante é a questão das “políticas místicas” que Clark levanta,
colocando que a Inquisição deve ser entendida tendo como pano de fundo a disputa pelo
poder entre o Império e o Papado, fazendo que os julgamentos e condenações de bruxas
contribuam para a manutenção do poder do Papa.
Pierre Hadot (2006) afirma que a revolução mecanicista levou a democratização do
saber, até então restrito a grupos de iniciados. O problema que nós trazemos aqui, é que,
se de um lado o conhecimento amplia seu alcance, de outro, a ciência perde em
qualidade de reflexão acerca de suas práticas. Hadot acrescenta que “o cristianismo
contribuiu para o desenvolvimento da representação mecânica da natureza e para a
dessacralização da natureza”. Tudo isso culminaria em seu estupor maior, a crítica
kantiana, separando a coisa em si do sujeito, resultante de um processo ontologicamente
“separatista” na História do pensamento, desde Parmênides (separação entre ser e não
ser), Platão (Mundo das Ideias e simulacro) e Descartes (naturezas diferentes de corpo e
mente), que constelaria a separação entre natureza e cultura. Bruno Latour (2002, p. 77)
vai definir bem essa problemática, envolvendo-a com a da representação:

Pode-se ver que o sujeito da interioridade serve de contrapartida para os objetos de


exterioridade. Para fazer a ligação, inventaremos, em seguida, a noção de
representação. Graças a ela, o sujeito da interioridade começa a projetar sobre “a
realidade exterior” seus próprios códigos ― os quais lhe seriam dados de fora, por
um encadeamento causal dos mais impressionantes, das estruturas da língua, do
inconsciente, do cérebro, da história, da sociedade.

Se as críticas de Latour nos são úteis, é preciso salientar que sua antropologia simétrica,
justamente por ser simétrica, vai denunciar muito bem o problema, mas não vai resolvê-
lo, ou seja, criticando um dualismo criando outro. Aqui, não nos interessa trocar uma
natureza e várias culturas por uma cultura e várias naturezas, e sim nos remeter a
antropologia de Tim Ingold (2001) e sua obviação, no sentido que natureza e cultura
são, de fato, uma extensão, ou seja, há uma “borra” ao longo da natureza e da cultura
em que sua distinção não faz mais sentido, assim como quaisquer dualidades.

Resta ainda explicitar uma consequência social do advento da ciência moderna: a


ciência, em conjunto com a lógica clássica, o sujeito liberal e a lógica transcendental,
recalcou o “feminino”, ou inconsciente, a lógica da diferença (do outro, da alteridade).
O resultado disso, entre outros, é a caça às bruxas na Inquisição. A “modernidade”, por
definição, é misógina. Abre-se espaço para o Iluminismo e sua maior vertente
separatista nos saberes: o enciclopedismo.
Vamos apreender nossas articulações (a princípio) “entre” magia e ciência como um
rizoma2 no sentido que desenvolvem Deleuze e Guattari (1995), ou seja um campo
imanente múltiplas de relações locais e não-locais de vetores que podem se conectar a
quaisquer outros vetores. É aqui que magia e ciência sofrerão uma obviação, no sentido
que Tim Ingold (2012) nos oferece. Então, magia e ciência não serão campos distintos
do saber, mas um campo que se percorre ao longo da magia e ciência, sabendo que
historicamente e conceitualmente, ou melhor, ontologicamente e epistemologicamente,
são apreendidos enquanto um campo híbrido.

Vamos agora relacionar os Sete Princípios do Hermetismo com conceitos da física


moderna3:

O Princípio de Gênero, no Hermetismo, afirma a relação dos princípios masculino e


feminino engendrando a continuidade do universo. Não “homem” e “mulher”, mas
princípios cósmicos diferentes e complementares. Já a cosmologia de Mário Novello
(2010) supõe um universo do tipo bouncing, eterno4 e dinâmico, diferente da proposta
do Big Bang, que propõe um “ponto zero” do universo, como no cosmos enunciado por
Heráclito. Aqui, as relações entre esses três saberes comungam um cosmos dinâmico,
processual, que se autocria de forma contínua em todos os níveis.
No Princípio de Causa e Efeito, de todas as causas anteriores emergem um efeito, ou
seja, o efeito não é gerado apenas por uma causa anterior, mas por toda a cadeia de
eventos até então, mantendo a ideia que os processos cósmicos são contínuos. Na física
corresponde tão somente às partículas não elementares, ou seja, sem as características
quânticas.
O mais popular Princípio do Hermetismo é o de Correspondência, que diz: tudo o que
está em cima é como o que está embaixo, relacionando o macro com o microcosmos.
Na Filosofia da Diferença, há o conceito de mônada, sistematizado por Leibniz,
desenvolvido por Gabriel Tarde. Deleuze (2000) conceitua a mônada a partir desses
autores afirmando que ela é o espelho vivo e perpétuo do universo, mas tem um andar
2
Tim Ingold (2015) vai preferir, com razão, a imagem biológica do micélio fúngico ao do rizoma da
botânica, para ser mais fiel ao conceito filosófico de rizoma.
3
Todas essas relações conceituais terão o suporta da filosofia da diferença e serão tecidas com mais vagar
e detalhe em nosso livro “Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica” (JOB,
2013).
4
“Eterno” aqui menos no sentido de sempre existiu e sempre existirá, mas num sentido intempestivo, que
existe “por enquanto”, enquanto é, sem uma escala transcendente de tempo, tampouco sem determinar
início e fim.
fechado e ressoante com todo o universo e outro que se conecta diretamente com o
universo. O filósofo articula as mônadas com os fractais, figuras auto-similares
relacionadas com a Teoria do Caos (GLEICK,1989) . O médico Stuart Hameroff, a
partir de seu modelo especulativo de consciência quântica criado com o físico Roger
Penrose (PENROSE e HAMEROFF, 1996), relaciona a versão do quanton – a proposta
do físico Mario Bunge (2005) de nomear um único objeto que tenha simultaneamente
características tanto de partícula como de onda - realizado pela suposta gravidade
quântica5, chamada Redução Objetiva, como um exemplo de mônada. Assim como a
Monadologia cria um novo estatuto do sujeito diferente do cartesiano - não apriorístico,
mas relacional em devir, em que a sequência de mônadas é de onde emerge o sujeito -
também a sequência de Reduções Objetivas no cérebro é que cria o fluxo da
consciência, diferindo das interpretações convencionais da MQ em que o observador
realiza o colapso de onda. Finalmente, a proposta especulativa de gravitação quântica
chamada Triangulação Dinâmica Causal desenvolvida pela física Renate Loll e equipe
(AMBJORN, JURKIEWICZ,e LOLL, 2008) estabelece uma auto-similaridade fractal
no nível quântico da matéria. Todas essas articulações evidenciam uma profunda
relação entre os níveis macro e micro do cosmos, mostrando que em cada porção do
cosmos abriga a totalidade, ainda que em devir.
O Princípio de Polaridade diz que tudo no cosmos tem o seu oposto que é, na verdade, o
extremo de uma mesma coisa; tudo tem o seu duplo, que são diferentes em grau, mas os
mesmos em natureza. Na MQ, o emaranhamento quântico é a relação de simultaneidade
entre duas partículas elementares em estado quântico, com algumas diferenças, como a
rotação do spin que são opostas. Aqui, verifica-se nesses dois saberes uma relação de
simultaneidade entre processos diferentes, mas interligados.
O Princípio de Ritmo mostra que tudo tem fluxo e refluxo no cosmos, padrões de
comportamento. O atrator é uma constante na turbulência e quando este sua bifurcação é
fractal, recebe a alcunha de “atrator estranho” na Teoria do Caos (GLEICK, 1989), ou
seja, é formado por vetores que se auto-organizam, bifurcando fractalmente. Com essas
relações, observa-se que o cosmos possui um processo de auto-organização,
manifestado em padrões identificados em vários níveis.

5
Na MQ não existiria gravidade, pois estamos falando de partículas elementares, em que a gravidade não
exerceria influência. No entanto, com o objetivo, entre outros, de produzir uma teoria da unificação da
física, existem propostas de articulação entre a MQ e a Teoria da Relatividade Geral. Dessas propostas, as
que envolvem gravidade no nível quântico são agrupadas como teorias de gravidade quântica.
O Princípio de Vibração afirma que o cosmos inteiro é vibracional, aqui os vetores
começam a aparecer, mas o sentido e a ligação ainda não estão definidos. Uma das
teorias de unificação, a Teoria das Supercordas (GREENE, 2005), também supõe um
cosmos vibracional, de cordas que vibram de formas diferenciadas gerando as diferentes
manifestações das partículas elementares. Não é preciso apostar nas supercordas como
um todo6, aqui é enfatizado apenas esse aspecto vibracional. Nesse item é fácil
relacionar tal aspecto vibracional tanto no Hermetismo, na filosofia e na física: tudo é
vibração.
Finalmente, no Princípio de Mentalismo o cosmos é mente, e a matéria é entendida
como uma coagulação dessa mente, em outras palavras: diferença pura, a velocidade
infinita, o “zero positivo”. Na MQ, o vazio quântico é a função que mais se aproxima
desses conceitos, pois é formado por uma complexa estrutura de relação de opostos, que
se cancelam, mas que podem ser excitados de forma a suscitarem alguma forma
material. Existem vários exemplos de uma estrutura semelhante, como o conceito de
Tao, oriundo do Taoísmo. Nessa última articulação, percebe-se que existe uma instância
no cosmos que quase não existe, mas existe minimamente, gerando a possibilidade de, a
partir de si, se emergir o cosmos. Mas, como observamos, o caminho não há apenas ao
caminhar a partir dessa instância primordial, mas em devir, chega-se a ele, também em
um processo de descoagulação da matéria, seja através da meditação, do estado quântico
ou do suscitar transformações sutis ou não, intensivas, nos corpos.
Estabelecidas essas relações, o campo de saber híbrido, que somado com elementos
oriundos da filosofia e da arte, nós vamos entender como o “conceito” de vortex (JOB,
2013), ou seja, um dinamismo auto-organizado e auto-similar, cujos vetores instáveis
possuem gradações de permeabilidade. Não vamos mais apreender “a relação entre
saberes” produzindo híbridos como a “transdisciplinaridade”, pois essa hibridização
parcial, além de evocar o disciplinar em sua alcunha, ainda não compromete as práticas
de vida com o conhecimento. O que de fato se compromete é um campo relacional
“epistemontológico” produzido ao longo dos saberes aplicados à vida, os assim
chamados transaberes, cujo conceito mais explícito é o vortex. Em outras palavras e à
guisa de conclusão: os saberes apreendem o vortex das seguintes formas: a ciência o
modela, a filosofia o ex-plica (des-dobra), a magia o modula (conjura e intensifica), a

6
Nossa relação de conceitos estabelecida aqui envolve um “encadeamento” de funções da física que
sugerem uma espécie de “guia” para uma teoria da unificação específica, diferente das propostas até então
pelos físicos.
arte o evidencia, a ética o cultiva, o amor o multiplica. Colocando-o, por exemplo, nos
nexos ao longo das dualidades, cabe-nos, à luz dos transaberes, vivenciarmos o vortex!
REFERENCIAS

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A PARAPSICOLOGIA FREUDIANA: TELEPATIA, ESPIRITUALIDADE E
OCULTISMO

José Filipe P. M. Silva (IF/FLUP)7

Resumo
O presente artigo tem por objectivo reflectir sobre as problemáticas da “telepatia”, da
“espiritualidade” e do “ocultismo” na obra de S. Freud. Estes vectores serão colocados
em contraste com as principais postulações psicanalíticas (metapsicológicas) do autor,
as quais afirmam não só a inexistência de fenómenos de comunicação inter-mentais e a
ineficácia geral dos métodos animistas, ritualistas e religiosos como também os conota
como mundividências supersticiosas e primitivas. Assim, e partindo de alguns textos
onde Freud reconhece, paradoxalmente, a possibilidade de existência de certos
fenómenos espirituais ocultos, nomeadamente a telepatia, procuraremos compreender
estes aspectos mais misteriosos e desconhecidos do grande público e entroncá-los numa
linhagem de pensamento proto-esotérico que, simultaneamente, interioriza e extravasa
os pressupostos teóricos da sua psicanálise.

Palavras-chave: espiritualidade; ocultismo; parapsicologia; telepatia.

Abstract
This article aims to reflect on the issues of “telepathy”, “spirituality” and “occultism” in
S. Freud’s work. These vectors will be put in contrast with the main psychoanalytical
(metapsychological) postulations of the author, whose affirm not only the inexistence of
the inter-mental communication phenomena and the general inefficiency of the animist,
ritualistic and religious methods but also defines them as supersticious and primitive
world views. Thus, and starting with some texts where Freud paradoxically recognizes
the existence of certain occult spiritual phenomena, namely telepathy, we’ll seek to
understand these mysterious aspects unknown to the general public as well as to connect
them with a line of proto-esoteric thought which, simultaneously, internalises and
surpasses the theoretical prepositions of his psychoanalysis.

Keywords: occultism; parapsychology; spirituality; telepathy.

7
Doutorando em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Grupo “Aesthetics,
Politics and Knowledge” do Instituto de Filosofia do Porto. “Grupo de Estudos Lusófonos” da FLUP.
Membro da plataforma “Report(h)a”. E-mail: josefsilva@live.com.pt.
Algumas considerações metapsicológicas
A psicanálise freudiana8 define clássica e primordialmente o «sonho» (Traum) como um
«fenómeno psíquico de pleno direito, mais precisamente um cumprimento de desejo» 9.
O sonho é o enigma que permite o acesso mais íntimo ao reservatório 10 «inconsciente»
(Unbewusste)11 onde se encontra a libido, a energia das «pulsões sexuais»
(Sexualtriebe)12 pertencentes ao primeiro dualismo pulsional, sendo que a psicanálise se
funda precisamente nesta «análise de sonhos»13. De facto, Freud escreve que todo o
sonho «está provido de sentido; a sua dificuldade deve-se a umas desfigurações que se
empreenderam sobre a expressão do seu sentido; o seu carácter absurdo é deliberado e
expressa burla, escárnio e contradição; a sua incoerência é indiferente para a
interpretação»14.
Estas palavras, não obstante, apenas revelam e reforçam a ideia de uma metafísica
onírica independente, bem distinta da realidade das coisas materiais e do mundo externo
– onde o «ego» (Ich), sublinhe-se, como «ser fronteiriço»15, tenta harmonizar essas
exigências da realidade com a anárquica libido do «id» (Es) e a moral superegóica –,
mas possuidora de idêntico estatuto de verdade, sobretudo por se constituir como o mais
antigo modo de ser e de pensar: «O núcleo do inconsciente anímico é constituído pela
herança arcaica do ser humano, e dela sucumbe ao processo repressivo tudo o que, no
progresso até fases evolutivas posteriores, deva ser relegado por inconciliável com o
novo e prejudicial para ele»16.

Estágios de pensamento e fases psicossexuais


Em boa verdade, e tendo como exemplo textos como Totem und Tabu ou Die Zukunft
einer Illusion, facilmente compreendemos este elemento «novo e prejudicial» reportado
8
Todas as citações/referências de Sigmund Freud remetem a: FREUD, S. (1992). Obras Completas,
Buenos Aires: Amorrortu Editores. Indica-se o título, volume e página.
9
Die Traumdeutung. Vol. IV, p. 142.
10
Cf. Abriss der Psychoanalyse. Vol. XXIII, p. 148.
11
Sublinhe-se que o inconsciente – independentemente do prisma pelo qual se analise, seja descritivo
[enunciador de estados] (cf. Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der
Psychoanalyse. Vol. XII, p. 272), funcional/tópico [lugar psíquico] (cf. Das Unbewusste. Vol. XIV, p.
169), dinâmico [construção derivada da teoria do «recalcamento» (Verdrängung)] (cf. Einige
Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse. Vol. XII, p. 272) ou económico
[medidor das magnitudes de excitação] (cf. Das Unbewusste. Vol. XIV, p. 178) – não se resume apenas
ao que é alvo de recalcamento, embora tudo o que é recalcado permaneça, necessariamente, inconsciente.
12
Cf. Psychoanalyse und Libidotheorie. Vol. XVIII, p. 250.
13
Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse. Vol. XII, p. 276.
14
Das Interesse an der Psychoanalyse. Vol. XIII, p. 174.
15
Das Ich und das Es. Vol. XIX, p. 56.
16
“Ein Kind wird geschlagen”. Beitrag zur Kenntnis der Entstehung sexueller Perversionen. Vol. XVII,
p. 199.
por Freud; tal trata-se, evidentemente, de uma alusão ao estágio psicológico animista 17
onde imperava a crença na omnipotência do pensamento18 e que se vê naturalmente
repercutida na mundividência geral das crianças (emergindo como protótipo da vida
intra-uterina, anobjectal19) e na dos psicóticos20: «Por isso estamos preparados para
descobrir que o homem primitivo transladou para o mundo exterior constelações
estruturais da sua própria psique»21; «É para ele natural, como inato, projectar a sua
essência para fora, para o mundo, e ver em todos os processos que observa uma
exteriorizações de seres que no fundo são semelhantes a ele» 22.
Simultaneamente, Freud refere-se também deste modo à própria evolução e
ultrapassagem das diferentes fases de desenvolvimento psicossexual 23 – «fase oral»
(orale Phase), «fase sádico-anal» (sadistich-anale Phase) e «fase fálica» (phallische
Phase) – por parte das crianças e que – inaugurado o «período de latência»
(Latenzperiode) – precipita a formação do «superego» (Über-Ich). Com a
dessexualização progressiva dos pensamentos e dos comportamentos assiste-se à
«criação ou consolidação do superego»24, à «edificação de barreiras éticas e estéticas»25
e ao aparecimento de sentimentos ternos. Trata-se, no fim de contas, de um duplo
movimento progressivo: social ou histórico e subjectivo.
Note-se ainda que a arcaicidade do «ego-prazer» (Lust-Ich) face ao «ego-realidade»
(Real-Ich) – que não constituem formas radicalmente distintas do ego, mas uma «fenda»
(Einriss) ou «clivagem» (Spaltung) de atitudes psíquicas face à realidade externa –
mostra precisamente aquela «confiança inamovível na possibilidade de dominar o
mundo e a impermeabilidade das experiências, fáceis de realizar»26, que nem por
caminhos mágicos ou sobrenaturais. Aqui somente importa a «estima psíquica
propagada desde o desejo e desde a vontade»27, utilizando-se o mecanismo da
«projecção» (Projektion) enquanto veículo de realização psíquica e de sobreposição
desta à realidade do mundo. O seu produto é o «fantasma» ou a «fantasia» (Phantasie).

17
Os «três sistemas de pensamento» (Totem und Tabu. Vol. XIII, p. 81) constituem tipos de
representação do universo: animista/mitológica, religiosa e científica.
18
Cf. Totem und Tabu. Vol. XIII, p. 89 et seq.
19
Cf. Hemmung, Symptom und Angst. Vol. XX, pp. 130-131.
20
Cf. Zur Einführung des Narzissmus. Vol. XIV, p. 73.
21
Totem und Tabu. Vol. XIII, p. 94.
22
Die Zukunft einer Illusion. Vol. XXI, p. 22.
23
Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. Vol. VII, passim.
24
Hemmung, Symptom und Angst. Vol. XX, p. 109.
25
Idem.
26
Totem und Tabu. Vol. XIII, p. 93.
27
Idem, p. 88.
Interpretação: a chave psicanalítica
Na metapsicologia freudiana, ou «psicologia das profundezas» (Tiefenpsychologie)28,
ou ainda, por vezes, «feiticeira»29, o sonho não pode ser dissociado da «interpretação»
(Deutung). Esta representa, por um lado, um processo de dedução analítica pelo qual se
tenta desvelar o sentido latente para as manifestações verbais e comportamentos dos
indivíduos; por outro lado, e entroncando-se com a noção propriamente clínica de
«transferência» (Übertragung) – e, também, de «contra-transferência»
(Gegenübertragung) –, ela procura, com a comunicação paciente/analista, encontrar a
«cura» (Heiling) para os diferentes objectos inconscientes [sonho, «sintoma»
(Symptom), «acto falho» (Fehlleistung), etc.] que se enraizaram no modus vivendi dos
pacientes e lhes causam, de alguma forma, um intenso sofrimento: «Depois de um
trabalho de interpretação completo o sonho dá-se a conhecer como um cumprimento do
desejo»30.
Nem sempre o indivíduo é capaz de discernir, no sonho, a presença de um «desejo»
(Wunsch); porém ele existe sempre, até mesmo nos mais ininteligíveis, uma vez que o
sonho é um «produto dotado de sentido que pode inserir-se na trama do acontecer
psíquico»31. Ressalve-se, contudo – e contrariamente à posição dos paranóicos –, que
nem tudo é interpretável, de tal modo que o «trabalho do sonho» (Traumarbeit), o de
transformar o «conteúdo latente» (Latenter Inhalt) em «conteúdo manifesto»
(Manifester Inhalt)32, de demonstrar a deformação33 e a lógica do inconsciente34,
poderá, por vezes, ser mal sucedido: fala-se aqui do «umbigo do sonho» (Nabel des
Traum), do limite, do ponto de contacto com o «desconhecido» (Unerkannter) onde
termina a inteligibilidade da interpretação35.
Realizadas estas considerações metapsicológicas introdutórias, facilmente
compreendemos que falar numa parapsicologia freudiana pode soar muito estranho ao
ouvido de um leitor – digamos assim – mais mainstream da psicanálise. O próprio

28
Die Frage der Laienanalyse. Vol. XX, p. 232.
29
Die endliche und die unendliche Analyse. Vol. XXIII, p. 228.
30
Die Traumdeutung. Vol. IV, p. 141.
31
Die Traumdeutung. Vol. V, p. 505.
32
Cf. Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse. Vol. XII, p. 276 et
seq. O conteúdo latente do sonho define um conjunto de «restos diurnos» (Tagesreste), recordações de
infância e impressões corporais que adquirem certo significado após a interpretação, ao passo que o
conteúdo manifesto se refere ao sonho como é apresentado perante o sonhador antes da investigação
analítica.
33
Cf. Die Traumdeutung. Vol. IV, p. 153 et seq.
34
Cf. Das Unbewusste. Vol. XIV, p. 183 et seq.
35
Cf. Einige Nachträge zum Ganzen der Traumdeutung. Vol. XIX, p. 137.
Freud aponta nesse sentido quando afirma que o abandono da hipnose – tão utilizada
nos primeiros tempos de psiquiatra – se deveu, em parte, ao seu misticismo 36, ou
quando apresenta a metapsicologia como retransformação e retradução científica das
obscuras metafísicas dos filósofos, teólogos e mitómanos37, ou ainda quando
ridiculariza como absolutamente ineficazes – de um ponto de vista não moral – os
cultos e práticas religiosas, sejam tais antigos ou modernos 38. Aliás, ele di-lo
taxativamente: «não existem premonições de verdade, sonhos proféticos, experiências
telepáticas, exteriorizações de forças suprasensíveis e coisas semelhantes» 39; «os
ocultistas (…) são uns convencidos, não procuram senão corroborações; querem ter uma
justificação para professar francamente a sua fé»40.

Ambivalência freudiana perante o oculto


Como devemos relacionar, então, estes conceitos psicanalíticos lapidares com a
heterodoxia das cuidadas investigações sobre «telepatia» (Telepathie), espiritualidade e
ocultismo, considerado na sua amplitude mais genérica, e que são alvo de reflexão e de
transmutação conceptual – como trataremos de demonstrar –, das quais fazem parte
textos como Psychoanalyse und Telepathie, Traum und Telepathie, Einige Nachträge
zum Ganzen der Traumdeutung e ainda a XXX Conferência das Neue Folge der
Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse? O que suscitou essa «ambivalência»
(Ambivalenz) – publicamente assumida, de resto41 – da parte do autor?
De facto, e para que se possa compreender o real interesse de Freud nestas matérias,
nada como lembrar a declaração feita a Hereward Carrigton, director do American
Psychical Institute, em 1921, por ocasião de uma recusa para co-editoriar um periódico
sobre ocultismo. Nessa altura, Freud terá afirmado o seguinte: «Se eu me encontrasse no
início da minha carreira científica, e não no seu fim, talvez escolhesse outros campos de
pesquisa»42. Estaria ele a incluir o campo da parapsicologia? Tal interrogação não é
nada despropositada, sobretudo se consideradas as íntimas convivências mantidas – por
intermédio de S. Ferenczi – com médiuns, astrólogos, videntes e profetizas de

36
Cf. Über Psychoanalyse. Vol. XI, p. 19.
37
Cf. Zur Psychopathologie des Alltagsleben. Vol. VI, p. 251.
38
Cf. Totem und Tabu. Vol. XIII, p. 91.
39
Zur Psychopathologie des Alltagsleben. Vol. VI, p. 253.
40
Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 170.
41
Cf. Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 173.
42
ROUDINESCO, E. & PLON, M. (1998). Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, p. 752.
Budapeste43, a aproximação e querela com o gnosticismo junguiano ou ainda outros
convites para que escrevesse sobre ocultismo 44. Todo este interesse circundante
demonstrava, segundo Freud, que os magnetizadores, místicos e ocultistas «querem
tratar-nos como meio aliado e contar com o nosso apoio para resistir à pressão da
autoridade exacta»45 dado que o inconsciente psicanalítico é «entre o céu e a terra, uma
daquelas coisas com que a sabedoria académica não se atreve a sonhar» 46.

Freud acredita na telepatia


É realmente curioso que por entre as sombras do gigantesco edifício psicanalítico, de
rigor mecanizado e positivista, possamos encontrar um Freud interessado em fenómenos
de mesas giratórias e em transmissões directas do pensamento 47, ao ponto de declarar
peremptoriamente que «já não parece possível recusar o estudo dos feitos chamados
ocultos, daquelas coisas que supostamente acreditam na existência de poderes psíquicos
diferentes dos que conhecemos na alma do homem e do animal, ou que revelam nesta
alma capacidades que até ao momento não se acreditava que tivesse» 48.
Em termos definicionais, a telepatia surge-lhe como um «presumível facto de que um
acontecimento ocorrido em determinado local chega de maneira quase simultânea à
consciência de uma pessoa distanciada no espaço, e sem que intervenham os meios de
comunicação familiares»49. Utilizando-se uma terminologia espírita, percebemos que tal
fenómeno estaria na base, por exemplo, da escrita automática ou psicografia
(popularizada por Jean-Paul Richter e Ludwig Börne), constituindo «um correlato
psíquico da telegrafia sem fios»50.
Entre as várias dezenas de casos de pacientes analisados por Freud e de cartas enviadas
por pessoas não consultadas mas que procuravam a sua interpretação, podemos, muito
sucintamente, destacar três exemplos: o primeiro diz respeito a um homem que havia
recebido uma carta a comunicar a morte do seu irmão e, antes que a abrisse,
pressentira51 instintivamente a sua morte; um outro conta-nos a história de uma mulher,
de trinta e sete anos, que teria clarividência desde muito nova e que contara ter recebido

43
Idem.
44
Cf. Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 169.
45
Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 170.
46
Idem.
47
ROUDINESCO, E. & PLON, M., Dicionário de Psicanálise, p. 753.
48
Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 169.
49
Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Vol. XXII, p. 34.
50
Idem.
51
Cf. Traum und Telepathie. Vol. XVIII, p. 195.
mentalmente a notícia da morte do irmão (combatente na I Guerra Mundial) antes da
chegada, dois dias depois, do comunicado oficial, sendo que neste caso também a sua
mãe tivera uma experiência semelhante, praticamente sincrónica, embora as duas não
estivessem, nesse mesmo dia, juntas em casa 52; finalmente, num terceiro exemplo,
podemos assinalar o sonho de um homem, de «evidente inteligência» 53 segundo Freud,
cuja filha – que lhe era muito querida mas vivia em lugar distante – esperava o seu
primeiro parto para meados de Dezembro; esse homem, na noite de 16 de Novembro,
sonha que a sua esposa havia dado à luz gémeos, sendo que pela manhã do dia 18
recebe um telegrama a informá-lo de que a filha já teria tido o parto, e que teriam
nascido gémeos, tendo tal ocorrido precisamente na noite de 16 para 17 e sensivelmente
pela mesma hora do seu sonho54.

O sentimentalismo dos fenómenos telepáticos


Poderíamos mencionar aqui muitos outros exemplos; porém, importa sobretudo
salientar que são acontecimentos deste género que levam Freud a concluir que uma das
premissas para existência de fenómenos telepáticos (sejam tais comunicações quase
simultâneas diurnas ou através de sonhos) reside no ponto-chave de que «esse
acontecimento afecte uma pessoa em quem a outra, o receptor da mensagem, tenha um
forte interesse emocional. Por exemplo, a pessoa A sofre um acidente ou morre, e a
pessoa B, muito chegada a ela – sua mãe, filha ou amada –, se apercebe mais ou menos
no mesmo momento através de uma percepção visual ou auditiva; em último caso, é
como se tivessem comunicado por telefone, embora não seja assim de facto»55.
Parece ser necessário que exista um intenso vínculo sentimental para a ocorrência de
fenómenos telepáticos e de transmissões directas de pensamento. Mas, voltando um
pouco atrás, à questão da ambivalência intelectual de Freud perante ocorrências
telepáticas – que são pertença do ocultismo e precipitam uma espiritualidade
parapsicológica, isto é, que extravasa os domínios da mundividência consciencialista e
da obscuridade primária do próprio Subjekt metapsicológico, permitindo assim uma
reformulação e reconstrução espírita para os fenómenos mentais –, convém
compreendermos em que medida elas podem, ou não, ser incorporadas – mesmo que
por caminhos mais ou menos enviesados – na doutrina psicanalítica estabelecida.

52
Cf. Traum und Telepathie. Vol. XVIII, p. 202.
53
Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Vol. XXII, p. 35.
54
Cf. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Vol. XXII, p. 35.
55
Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Vol. XXII, p. 34.
Transferência e contra-transferência de pensamento
Com efeito, essa transmutação conceptual parece não ser tão reduzida quanto se poderia
imaginar pelo início do artigo, a começar desde logo pela natureza da transferência e da
contra-transferência, momentos inalienáveis da prática analítica.
A transferência designa um processo psicológico mediante o qual os desejos
inconscientes dos pacientes relativos a determinados objectos externos (modelos da
sexualidade infantil) são repercutidos e substituídos pela figura do analista. Ela começa
por ser uma «resistência» (Widerstand) e um obstáculo à terapia, de modo que cabe à
interpretação a tarefa de – através da palavra – conseguir proporcionar um
reajustamento do investimento ao nível das representações psíquicas: «Em todo o
tratamento analítico (…) estabelece-se um intenso vínculo de sentimento do paciente
com a pessoa do analista, vínculo que não possui nenhuma explicação pelas
circunstâncias reais. É de natureza positiva ou negativa, varia desde o enamoramento
apaixonado, plenamente sensual, até à expressão infrene de rebeldia, desafio e ódio.
Esta “transferência” (…) logo substitui no paciente o desejo de ser curado e passa a ser,
enquanto terna e moderada, o suporte da influência do médico e o genuíno mote
impulsor do trabalho analítico em comum»56. Por outro lado, a contra-transferência
instala-se no médico por «influxo do que o paciente exerce sobre o seu sentir
inconsciente»57 e, particularmente, da transferência evidenciada.
Em termos directos, o que está em causa é a transmissão de pensamentos e de emoções
por via da palavra – naturalmente composta pelo duplo vector «associação livre» (freie
Assoziation) e «atenção flutuante» (Gleichschwebende Aufmerksamkeit) – que ocorre
entre os inconscientes do paciente e do analista. Não se trata de uma transmissão
telepática nos termos que mencionamos antes; porém não deixa de ser muito curioso – e
relevante – que estes processos ocorram ou tenham por finalidade atingir o que de mais
íntimo existe em cada indivíduo (o seu inconsciente) e, simultaneamente, necessitem,
para ocorrerem – como afirma Freud – de um «intenso vínculo de sentimento»,
independentemente da forma assumida (positiva ou negativamente) – sendo que aqui
existe realmente diferença para os fenómenos telepáticos, cuja carga predominante é
efectivamente positiva.
Deste modo, falar de inconsciente para inconsciente, é, no fim de contas, um
movimento muito estranho onde se encontram, quase que emaranhadas, as energias

56
Selbstdarstellung. Vol. XX, p. 40.
57
Die zukünftigen Chancen der psychoanalytischen Therapie. Vol. XI, p. 136.
pulsionais mais profundas e desconhecidas – para o ego consciente, claro está – dos id
do paciente e do analista.
Apesar de Freud tender – uma vez mais, ambivalentemente – a considerar a maior parte
dos casos reportados nos seus estudos sobre telepatia – sobretudo os derivantes de
consultas com médiuns e adivinhos58 – como simples «desejo de uma pessoa,
extraordinariamente poderoso, que mantém com a sua consciência um vínculo
particular, e que se pôde criar, com o auxílio de uma segunda pessoa, uma expressão
consciente levemente velada»59, e cuja interpretação pertence, por isso, ao domínio
psicanalítico, não é menos verdade que o seu elogio e concordância pública com a
existência daqueles fenómenos telepáticos – já o deixamos bem claro – deixa
entreaberta a porta para uma reinterpretação conceptual dos processos transferenciais no
campo da parapsicologia. Mas essas possibilidades não se esgotam aqui.
De facto, e ignorando propositadamente as óbvias ramificações psicanalíticas ultra-
simbólicas promovidas, por exemplo, por C. G. Jung – que encontra, na impalpabilidade
do inconsciente freudiano um solo fértil para a propagação da sua psicologia analítica
baseada no «arquétipo» (Archetyp) e em sistemas universais e interligados de
pensamentos e de crenças60 –, facilmente encontramos em Freud outros vectores
passíveis de uma apropriação ou indução parapsicológica, tais como os de
metapsicologia, projecção, «compulsão à repetição» (Wiederholungszwang),
«obsessão» (Zwang), «estado hipnóide» (hypnoider Zustand), «dissociação da
consciência» (Bewusstseinsspaltung), «clivagem do ego» (Ichspaltung) ou
«recalcamento originário» (Urverdrängung).

O chamamento da feiticeira
Em Die endliche und die unendliche Analyse, Freud refere a metapsicologia como um
inevitável modo de especulação: «Podemos apenas dizer: “Então é preciso que
intervenha a feiticeira”. A feiticeira metapsicologia, isto é. Sem um especular e teorizar
metapsicológicos – quase disse ‘fantasiar’ – não daremos um passo adiante.
Infelizmente, as revelações da feiticeira não são aqui nem muito claras nem muito
detalhadas»61. Através da evocação de Fausto, coloca-se a entrada em cena da
metapsicologia como uma espécie de último recurso ao qual o analista se dirige em

58
Cf. Einige Nachträge zum Ganzen der Traumdeutung. Vol. XIX, p. 139.
59
Cf. Psychoanalyse und Telepathie. Vol. XVIII, p. 176.
60
Cf. JUNG, C. G. (1988). Man and His Symbols, New York: Anchor Press, passim.
61
Die endliche und die unendliche Analyse. Vol. XXIII, p. 228.
desespero de causa. Tal como a personagem da feiticeira, também a metapsicologia
parece constituir uma outra dimensão de pensamento que extravasa as fronteiras daquilo
que é alcançado pelos meios tradicionalmente naturais (clínicos/científicos),
justificando uma teoria que pretende ir além das representações empíricas e que nos
permite pensar uma Weltanschauung parapsicológica.

Sintomatologia espiritual
No que respeita à projecção, à compulsão à repetição e à obsessão, muito facilmente as
poderíamos reciclar como sintomas de alteração ou anomalia espiritual; neste caso,
entroncaríamos a ideia de projecção – uma operação por meio da qual o indivíduo
expulsa e exterioriza qualidades, sentimentos ou desejos recalcados em si mesmo 62 –
com as referências sobre telepatia descritas por Freud, nas quais os pensamentos e as
notícias tendem como que a projectar-se entre as mentes dos indivíduos
emocionalmente conectados; por outro lado, a compulsão à repetição – da qual a
transferência se encontra ao serviço – reproduz certas sequências de actos, ideias ou
sonhos cuja origem gera enorme sofrimento63 e congrega naturalmente com o conceito
de obsessão – a insistência em realizar actos indesejáveis e uma luta permanente contra
a ruminação mental64 –, sendo que ambas pautariam, dentro de uma teoria
parapsicológica onde se incluísse a reincarnação, uma herança cármica.

Vectores de incorporação?
Quanto ao estado hipnóide, à dissociação da consciência e à clivagem do ego, embora
digam respeito, em termos metapsicológicos, a coisas distintas65, poderiam, mediante
alguma ginástica conceptual, ser igualmente incluídos dentro de uma historiografia
parapsicológica – sobretudo espírita – onde seriam entendidos como partes mentais
automáticas (ao género das incorporações mediúnicas, nas quais a força comunicacional
do espírito comunicante geralmente se sobrepõe à natureza psicossomática ou espiritual
dos indivíduos que incorporam, como que a dividindo, dissociando ou clivando),
levando, igualmente, à entrada em estados de transe, onde apareceriam como produtos
as glossolalias e as divinações.

62
Cf. Manuscrito H. Vol. I, pp. 249-251.
63
Cf. Jenseits des Lustprinzips. Vol. XVIII, p. 36.
64
Cf. Die Abwehr-Neuropsychosen. Vol. III, passim.
65
Os estados hipnóide são independentes dos fenómenos traumáticos propriamente ditos e dão origem a
um desdobramento alternante da consciência ou da personalidade do indivíduo (a dissociação), ao passo
que a Spaltung resulta de um conflito entre o ego e o mundo externo.
Recalcamento originário…sem origem
Importa notar que o recalcamento compõe um processo dinâmico assente em dois
tempos: o primeiro, chamado de recalcamento originário, recai sobre as
«representações» (Vorstellungen) que não chegam à «consciência» (Bewusstsein) e nas
quais ocorre uma «fixação» (Fixierung) da «pulsão» (Trieb), criando-se um primeiro
núcleo inconsciente que funciona como pólo de atracção para os conteúdos a recalcar; o
segundo, o «recalcamento propriamente dito» (eigentliche Verdrängung), constitui um
processo duplo: por um lado, une a esta atracção uma «repulsão» (Abstossung) por parte
do sistema «pré-consciente» (Vorbewusst) e, pelo outro, um retorno do «reprimido
primordial»66 sob a forma de sonhos, sintomas ou actos falhos.
O ponto importante destas considerações reside no facto de Freud não definir
explicitamente o que é e de onde vem este recalcamento originário, esboçando apenas
uma tentativa de resposta ao afirmar que «é inteiramente verosímil que factores
quantitativos como a intensidade hipertrófica da excitação e a ruptura da protecção
contra os estímulos constituam as ocasiões imediatas dos recalcamentos primordiais» 67,
ou seja, que tal decorre de uma força de excitação particularmente intensa.
Esta tímida hipótese poder-nos-ia levar a pensar, por exemplo – dentro de uma
perspectiva psicanalítica –, no momento do desmame (dado que tal constitui
efectivamente uma alteração energética drástica no quotidiano da criança,
possivelmente a primeira de muitas); porém, e de um ponto de vista parapsicológico –
relembrando que Freud praticamente nada diz sobre o assunto – não seria
despropositado suspeitar de uma fenomenologia espírita oculta, através da qual esse
recalcamento originário representaria, por exemplo, a encarnação do espírito no feto
com a respectiva perda de recordações e sentimentos de vidas anteriores.

Um proto-esoterismo maquilhado
A maior crítica que se pode tecer a estas interpretações parapsicológicas da obra de
Freud e que tentam – embora com as devidas ressalvas – introduzi-lo numa linhagem de
pensamento proto-esotérico que, simultaneamente, interioriza e extravasa os domínios
da sua psicanálise, reside no facto do autor se apresentar extremamente ambivalente
para com estes assuntos, apoiando-os em certos textos específicos mas renegando-os
completamente na maior parte do tempo. Porém, é precisamente por isto que se fala

66
Die Verdrängung. Vol. XIV, p. 143.
67
Hemmung, Symptom und Angst. Vol. XX, p. 90.
num “proto-esoterismo” e não num “esoterismo” em sentido lato. Lembremo-nos de
que Freud muito batalhou em prol da cientificação da sua disciplina, fazendo questão de
a separar dos sistemas filosóficos sempre que tal suspeitasse descrédito – embora o
próprio, em outras ocasiões, e de novo ambivalentemente, tenha manifestado a sua
intenção de ser filósofo e da sua metapsicologia constituir uma filosofia 68 – e até mesmo
das teorias psíquicas dezanovecentistas instauradas pela psiquiatria e psicologia, sendo
que não seria certamente por factores obscurantistas como os de telepatia ou de
espiritualidade (e eventual espiritismo) que o próprio deixaria ruir o seu corpus
epistémico.
Não obstante, a Tiefenpsychologie, a feiticeira metapsicologia, leva-nos sempre, em
última instância, para uma dimensão de pensamento inconsciente, subterrânea e
misteriosa, onde se revelam os mais fantásticos e inimagináveis segredos do ser
humano. De facto, e depois das ridicularizações e atestados de pseudo-ciência de que
foram alvo F. A. Mesmer, Armand de Puységur, Frederick Myers, entre outros, nada
nos garante que Freud não encarasse com bons olhos uma transfiguração conceptual das
suas próprias convicções ocultistas sob o modelo psicanalítico. Tal parece, aliás, muito
plausível, não fosse ele um adepto – crítico, sem dúvida, mas – entusiasta das práticas
da sua época, uma época de mesas giratórias, de comunicação com os mortos, de
experiências telepáticas e, enfim, de um elevadíssimo interesse por tudo aquilo que
escapava às explicações da ciência positiva.

68
Cf. MIJOLLA, A. & MIJOLLA-MELLOR, S. (2002). Psicanálise, Lisboa: Climepsi Editores, p. 78.
HOLISMO E SAÚDE: O DESPERTAR MÁGICO DA CIÊNCIA
HOLISM AND HEALTH: THE MAGIC SCIENCE AWAKENING?

Magnólia Gibson Cabral da Silva 69 (UFCG)

Resumo
Contra a fragmentação crescente em todos os domínios da ciência e da experiência
cotidiana, a nova ordem é unidade, globalidade, holismo. O Uno é divino, espiritual,
consciente: é 'energia-vida', o material ontológico e psíquico do Universo. Desse ponto
de vista, não existe dicotomia entre ciência e espiritualidade, entre material e espiritual
e, nem entre divino e humano. Essa visão de universo apresenta uma abordagem de
doença e de cura radicalmente diversa daquela utilizada na moderna medicina
ocidental. Esta comunicação destaca o novo influxo cultural que, de certa forma,
reverte à antiga visão da ciência médica ocidental a respeito da tradição.

Palavras Chave: holismo, ciência, religião, saúde

Abstract
Against the increasing fragmentation in all fields of science and everyday experience,
the new order is unity, totality, and holism. The Whole is divine, spiritual, conscious: it
is “life-energy”, which is the universe ontological and psychic material. Energy is the
essence of which is made the cosmos; through it we can find our own consistency. From
this perspective, there is no dichotomy between science and spirituality, nor between
material and spiritual nor between divine and human. In this vision of the universe the
disease and healing approach, is radically different from that used in modern Western
medicine. This paper deals with the new cultural flow that somehow reverts the western
medical science to its antique vision regarding the tradition.

Keywords: holism science, religion, health

69
Magnólia Gibson Cabral da Silva (magnoliagib@gmailcom) é Bacharel em Ciências Sociais/ Doutora
em Sociologia é Professor /pesquisador no Programa de Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado - em
Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).. Coordenadora do Grupo de
Estudos em Sociologia e Antropologia da Religião.
Religião, Saúde e Cultura
Como interpretação da realidade, a religião é um dos sistemas mais importantes de
produção, manutenção e transformação da cultura. A civilização ocidental, por exemplo,
tem como base a tradição judaico-cristã, que permanece até hoje, apesar da
secularização e da hegemonia do pensamento científico no campo do conhecimento.
Em todas as civilizações a religião aparece como código de conduta individual e social,
bem como de ética e de cura, para a manutenção da saúde física, moral e social,
formando grandes sistemas interligados, sem solução de continuidade. Nas sociedades
ancestrais, o sacerdote era, também, o médico (curandeiro, pajé, xamã etc.).
Consoante Ohsawa (1977) as religiões escritas seriam verdadeiros "tratados" onde as
pessoas encontram orientação para conseguir saúde e longevidade, que constituiriam a
base da felicidade humana (OHSAWA, 1977: p. 9).
A medicina na Índia, teve origem na tradição Vede (aprendizado, conhecimento). O
livro Ayurvede (Vede da longa vida), era especificamente dedicado à medicina. Eram
textos sagrados, revelados por entidades divinas, onde as referências históricas
entrelaçavam-se com lendas. A tradição foi seguida do período bramânico, IX a.C., que
marca o apogeu da medicina indiana (MARGOTTA, 1998: p. 16).
Segundo os interpretes da Ilíada, na época de Homero na Grécia, a medicina não se
baseava na magia nem na religião; era uma disciplina independente, praticada por
profissionais pagos. Com o tempo, porém, as influências orientais foram deixando sua
marca sobre a cultura grega, e a medicina foi se tornando mais sacerdotal. As práticas
médicas sacerdotais, alastraram-se por toda a Grécia durante o século V a. C.,
permanecendo em uso até os séculos IV ou V d. C., período no qual, o culto a Esculápio
(deus da cura) funde-se ao dos santos da Era Cristã (Op. cit., p. 22-23).
Após a elevação do pensamento científico ocidental moderno ao mais alto patamar na
escala do conhecimento, mais uma vez, foram separadas essas instâncias da vida que,
nas tradições antigas, eram constitutivas do sagrado. Mas a moderna ciência não
conseguiu responder satisfatoriamente antigas questões que insistem atormentando os
seres humanos. Uma destas questões mal resolvidas ou não satisfatoriamente explicadas
pela ciência é a própria religião e, nesta, o milagre da cura.
Esta comunicação destaca o novo influxo cultural que, de certa forma, reverte à antiga
visão da ciência médica ocidental a respeito da tradição representada pelo Movimento
Holístico.
Holismo e Saúde
O Movimento Holístico é o desdobramento mais significativo do chamado Movimento
Nova Era. O holismo é o grande princípio axial do movimento. Contra a fragmentação
crescente em todos os domínios da ciência e da experiência cotidiana, a nova ordem é
unidade, globalidade, holismo (BERGERON, op. cit., p. 67-68).
No nível ontológico (o do ser) o holismo designa a unidade última das coisas.
Fundamenta-se num monismo metafísico, segundo o qual tudo é uno, sendo o múltiplo
apenas ilusão da condição humana. O Uno é divino, espiritual, consciente: é 'energia-
vida', que é o material ontológico e psíquico do Universo. A energia é a essência de que
é constituído o universo; é através dela que podemos encontrar nossa própria
consistência (Ibid.).
O holismo ontológico manifesta-se, também, numa espécie de cosmologia orgânica,
onde tudo está interligado. Uma vez que a Energia divina é a substância básica e alma
do universo, conclui-se que seja o vínculo entre todos os seres e coisas. Nessa
perspectiva, o mundo não pode ser visto como máquina, ou sistema mecânico,
composto de parcelas de matéria elementar, mas, como organismo vivo.

Nesse mundo hierarquizado e interligado, as mesmas leis determinam o


funcionamento de todos os seres e de todos os sistemas, qualquer que seja
seu plano de existência: social, físico, psíquico, astral ou espiritual (divino)
(Ibid.).

Desse ponto de vista, não existe dicotomia entre a ciência e a espiritualidade, entre o
material e o espiritual e, nem entre o divino e o humano.
O terceiro lugar, onde o holismo ontológico manifesta-se é na antropologia de tipo
gnóstico, na qual o ser humano é visto como parcela divina, núcleo concentrado de
Energia Universal, alienado por sua incapacidade de perceber sua verdadeira essência
divina. Segundo essa visão, o humano não está no centro do cosmo; é parte integrante
do cosmo. É microcosmo. As leis e energias nele contidas, são as mesmas para todo o
universo. O ser humano não está diante do cosmo; está essencialmente no cosmo. É
tomando consciência de que é um núcleo de energia divina, que o ser humano descobre,
ao mesmo tempo, sua unidade com o universo e a unidade de todo o universo (Op. cit.,
p. 68-69).
Assim, o ser humano, não apenas está em unidade orgânica com o Universo, como
também, forma em si mesmo um todo unificado. Não é, de um lado, um corpo
composto de múltiplos órgãos, e de outro, uma alma, um espírito. Essa visão de
universo apresenta uma abordagem da doença e da cura, radicalmente diversa daquela
utilizada na moderna medicina ocidental. Enquanto a medicina ocidental divide o ser
humano em órgãos e em células, interessando-se, apenas, pelas reações bioquímicas, a
perspectiva holística, vê o corpo humano como um conjunto de canais de energias (os
meridianos - taoísmo) e de centros de energia ("chakras" - induísmo). Nessa
perspectiva, a cura passa pelo reequilíbrio das energias e, o corpo torna-se o receptor da
onda de energia-vida que percorre o universo (Op. cit., p. 69).
Do mesmo modo, o holismo apresenta uma abordagem analítica diversa daquela
utilizada pela ciência ocidental. No nível metodológico, o holismo apresenta-se como
conhecimento de tipo esotérico que, no encontro da racionalidade analítica e científica,
procura transcender a dicotomia "sujeito-objeto" no ato de conhecer, através do
exercício dos poderes superiores da inteligência: intuição, iluminação, clarividência,
experiência de consciência, transe, percepção extra-sensorial, ou iniciação. Pretende
ultrapassar, igualmente, o princípio de contradição ou do terceiro-excluído. De fato, não
pode haver contradição, tese ou antítese, exatamente porque, o real é uno e, por isso,
tudo está organicamente interligado. Assim, só pode existir analogia, correspondência e
similaridade entre todos os seres e entre todos os sistemas. Daí a idéia de procurar as
convergências e o vínculo orgânico entre as tradições espirituais e religiosas e as
ciências como o fizeram por exemplo: Fritjof Capra, na física, R. Sheldrake, na
biologia, Prigogine, na química, E. Schurmacher, na economia, R. Mullerna, na política,
S. Grof, na psicologia, entre outros (Op. cit., p. 69-70).
Tal como o paradigma científico, a visão holística de realidade vai, aos poucos, sendo
adotada como parâmetro para orientar as ações e as decisões em todos os setores da
vida. Com efeito, o holismo constitui-se, atualmente, num dos pilares, sobre os quais,
assentam-se inúmeras formas de religiosidade, de sociabilidade e de reflexividade
(SILVA, 2000).
Segundo Bergeron, o que se modificou foi, sobretudo, a natureza da religião (Op. cit., p.
55). A religião que no Ocidente moderno havia se recolhido aos estreitos limites das
cerimônias nas igrejas, começa a retomar seu lugar como centro de orientação das
ações, das escolhas e das decisões na conduta diária, tanto nas situações ordinárias, no
trabalho cotidiano, na disposição dos móveis (feng-shui), como nas imprevistas, no
tratamento dos males morais e físicos que afligem os indivíduos.
A pluralização dos fenômenos religiosos na América Latina é fato incontestável. Todos
os grupos sociais parecem ter canalizado maior cota de energias à prática de religiões,
cuja gama vai desde as novas correntes católicas, à expansão de religiosidades indígena
e afro presentes na religião, às expressões mais renovadas e populares da tradição
protestante, bem como o conjunto de práticas místicas, esotéricas e terapêuticas que em
termos gerais e provisórios, podem ser catalogadas como pertencentes ao Movimento
Nova Era (SEMÁN, em ORO, 1997: p. 130).
Podem-se identificar, ainda, ramificações da Nova Era na cultura, nos produtos e nas
técnicas. A cultura contemporânea incorporou o vocabulário e muitas idéias difundidas
pelos movimentos místico-esotéricos. Elas estão espalhadas por todos os lugares e
ambientes a nossa volta. Nas artes plásticas em geral, nas novelas, na literatura, no
cinema, nas músicas, etc. As músicas estão repletas de conceitos que poderíamos
qualificar como sendo da Nova Era. Conceitos como carma, reencarnação e alto astral
estão plenamente incorporados à linguagem corrente. A reencarnação como ideal social;
os cristais, os duendes e, sobretudo, as técnicas; as terapias de cura e de relaxamento; a
meditação, a acupuntura, o Tai-chi, o I Ching, o Tarô etc., têm apresentado alto índice
de aceitação popular.

Visão Sistêmica e Saúde


Na visão sistêmica, o mais importante a ser considerado são as relações entre eventos e
não, os eventos isoladamente, como se faz nas ciências exatas, como a mecânica e a
engenharia (FERREIRA, 1985: p.10).
A medicina oriental parte do princípio da unidade “homem-cosmo”, segundo o qual, a
natureza age sobre o ser humano, da mesma forma que este age sobre a natureza,
modificando-a e sendo modificado por ela. Na perspectiva sistêmica, nada é importante
fora de seu contexto de relações: se há tantos fatores em jogo, e se esse jogo se
interpenetra de múltiplas maneiras, existe, porém, um denominador comum, o chi (ou
“Qi”) cujo significado pode ser traduzido por “energia”. O chi é o aspecto imaterial
dessas relações, formando e mantendo o Universo.
“O corpo humano é a materialização dessa “energia” que flui através de linhas
imaginárias denominadas “meriadianos” ou “canais”, que são, por analogia, similares às
órbitas dos planetas, existindo, mas de forma abstrata”.
Baseados na idéia de um campo magnético, os chineses desenvolveram uma série de
técnicas curativas. Todas elas visam manter o organismo humano “equilibrado”, pois de
acordo com princípio YIN-YAN - filosofia taoísta - para que o indivíduo esteja
saudável, é preciso haver equilíbrio entre essas duas forças (positiva/negativa).
A acupuntura, o do-in, o moxa-bustão, são algumas dessas técnicas desenvolvidas pelos
chineses há mais de cinco mil anos; sua origem se perde no tempo. Segundo essa visão,
no corpo humano encontram-se lugares onde a energia chi se torna mais superficial,
capaz de ser manipulada. Esses são chamados de “pontos de acupuntura”. Os chineses
acreditam que a presença de germes só causam doenças se houver um desequilíbrio
energético anterior no organismo. Emoções básicas como medo, alegria, tristeza,
podem, quando excessivas, levar à várias doenças, que seriam o que no Ocidente
denominamos doenças psicossomáticas que vêm da psique (mente) ao soma (corpo).
Para que o tratamento seja eficaz, é preciso que a causa principal seja afastada, e o
organismo, livre dos fatores que originavam a desarmonia, seja capaz de curar-se a si
próprio (FERREIRA, op. cit., p.10-15).
Os fundamentos da medicina oriental foram trazidos para o Ocidente nos anos trinta do
século passado, pelo médico francês, Soulié Morant, que morou vinte anos na China
como Cônsul Geral da França, quando ainda era muito jovem. Morant consagrou o
resto de sua vida à introdução desta medicina estranha, a “acupuntura”, que desde a
década de setenta, era oficialmente praticada nos hospitais franceses. Em 1960, já
haviam mais de 5.000 médicos diplomados que praticavam acupuntura na França e na
Alemanha (OHSAWA, op. cit. p. 29).
Hoje, a acupuntura70 é aceita em praticamente todo o mundo, sendo regulamentada em
mais de 50 países, como uma prática pertinente a todos os profissionais que lidam com
a saúde. No Brasil, atualmente, existem cerca de 30.000 praticantes de acupuntura, dos
quais, mais da metade não possuem formação adequada e trabalham de forma
individual, mas há, também, milhares de profissionais de saúde de nível superior e
centenas de médicos que a exercem.
A idéia de energia também existia na antiguidade clássica ocidental. Foi mencionada
por Hipócrates, considerado pai da Medicina helênica. Seus estudos foram continuados

70
Existem cursos superiores de Graduação em Acupuntura com a formação independente da medicina e
um currículo próprio, em países como a China, Japão, EUA, Canadá, Inglaterra, Austrália e Chile.
Somente na Arábia Saudita e na Áustria, o exercício da acupuntura é restrito a médicos. Em todas as
demais nações do mundo, esta prática é multiprofissional.
www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=185423, consultado em 02/11/2010.
por Pitágoras. O nome que ele deu a essa energia curativa foi pneuma. A pneuma,
segundo ele, vem de um fogo central no universo e fornece ao homem não só vitalidade
como também sua alma imortal. Esse fogo central, segundo Pitágoras, era uma força
primordial cujas centelhas deram origem ao homem (CODDINGTON, 1978, apud.
CAPRA, 1986: p. 52).
A idéia de Hipócrates de energia curativa só foi desenvolvida no Ocidente no século
XVIII por Samuel Hahnemann, que nomeou seu sistema de Homeopatia (do grego,
homeo, semelhante, e patos, sofrimento).
Na concepção homeopática, a enfermidade resulta de mudanças em um padrão de
energia ou “força vital”, a qual é a base de todos os fenômenos físicos, emocionais e
mentais e a característica de cada indivíduo. A terapia homeopática consiste em
combinar o padrão de sintomas característicos do paciente com um padrão semelhante
característico do remédio. A idéia de que (“o semelhante cura o semelhante”).
Na homeopatia, o médico não é um simples observador passivo. Converte-se num
participante da vida do paciente (CODDINGTON, op. cit., p. 334-336).
Desde o início, a homeopatia foi muito antagonizada pelas instituições médicas. Mesmo
assim, prosperou rapidamente na Europa e nos Estados Unidos, onde 15% de todos os
médicos eram homeopatas, por volta de 1900. No século XX, porém, com o advento da
moderna ciência biomédica, teve que ceder terreno a esta última. Só recentemente
estamos assistindo ao renascimento da Homeopatia (Ibid.).
No Brasil, a homeopatia tem tido crescente aceitação, tanto por parte dos médicos como
da população, tornando-se uma especialidade médica reconhecida pelo Conselho
Federal de Medicina e pelo Conselho de Especialidades Médicas da Associação Médica
Brasileira, sendo utilizada por profissionais de saúde tanto nos setores públicos como
privados.
Segundo Dr. Gustavo Sá Carneiro (1986) (clínico geral, homeopata adepto da
acupuntura-Recife/PE) o homem ocidental moderno precisa reconhecer que:

- A cura de todas as doenças, a cura do câncer, está muito relacionada


com as condições de consciência: há no organismo de cada pessoa
substâncias curativas; o homem pode auto-curar-se. A condição frágil de
saúde que temos hoje deve-se à ignorância do homem acerca da
verdadeira realidade. As ciências que fazem parte do componente dessas
medicinas são muito antigas, muito especiais. A medicina atual é muito
nova, muito pouco explorada, daí seus efeitos colaterais. Hoje está
havendo um movimento de renovação em alguns setores da medicina que
recomendam iniciação de meditação, de alimentação, de limpeza. O
homem contemporâneo aprende tudo, menos o mais importante a viver.
Nosso movimento também acha que deve haver interdisciplinaridade dos
processos de cura para se tentar um caminho comum. O choque entre
esses dois tipos de medicina dá uma visão errada do conceito de saúde
(...). Toda doença tem um fundo energético. Isso deve ser reconhecido:
mas tem certos males em que é preciso recorrer à alopatia. O melhor
mesmo é a prevenção da doença através de uma vida equilibrada,
alimentação saudável, meditação, etc.

Em sua fala, Dr. Gustavo sintetiza alguns pontos fundamentais do atual debate acerca da
ciência moderna e sua relação com a tradição que, a nosso ver, poderiam ser tomados
como causas do retorno da visão sistêmica à arena científica.
Para ele, “A condição frágil de saúde que temos hoje deve-se à ignorância do homem
acerca da verdadeira realidade (...). Nosso movimento também acha que deve haver
interdisciplinaridade dos processos de cura para se tentar um caminho comum”.
É exatamente isso que propõe o movimento holístico na saúde. Ampliar fronteiras da
ciência através da interdisciplinaridade, somar esforços em prol do bem comum, em
substituição à visão sectária e autoritária que domina o pensamento médico oficial.
Outro aspecto fundamental que distingue essas duas visões de saúde é a visão holística
do paciente, e seus efeitos sobre a saúde. Para o médico holista: “O melhor mesmo é a
prevenção da doença através de uma vida equilibrada, alimentação saudável,
meditação, etc.”
O holismo vê o paciente como um todo e propõe a prevenção da doença, ao contrário
da biomédica, que se ocupa principalmente da cura de um mal específico, depois que
este já está instalado. Mais que isso, o holismo considera o todo e não apenas o homem
sem face, que parece viver solto no espaço. Razão pela qual ele faz uma crítica global.
A saúde humana é o reflexo da vida pessoal, familiar, social, emocional e espiritual.
Daí a necessidade de uma alimentação saudável e da meditação, como propõem o
vegetarianismo, a macrobiótica e a meditação transcendental71.

71
Meditação Transcendental é um método de relaxamento oriundo do misticismo oriental. De acordo com
Maharishi Maresh Yogi, seu fundador, trata-se de um sistema muito simples, que pode ser definido como
“um método capaz de conduzir a atenção a magnificência interior da vida; um método, através do qual,
nossa mente consciente pode explorar os caminhos internos do ser e sondar as profundezas da vida, reais e
permanentes” (MAHARISHI MARESH YOGUE, 1976).
A “Macrobiótica” (‘macro’ grande e ‘bio’, vida) é uma ciência alimentar que busca
estabelecer a harmonia entre o ser humano e o meio-ambiente. Segundo os adeptos, ela
proporciona, saúde, bem-estar e longa vida. Essa prática alimentar foi introduzida no
Brasil, na década de sessenta do século passado, com o Movimento Macrobiótico, de
inspiração oriental, uma das práticas introduzidas difundidas pelo Movimento Nova
Era, como parte de sua crítica ao modo de vida ocidental moderno, entre os quais, a
agressão ao indivíduo - através da alimentação artificial e industrializada - e à natureza,
com o uso de agrotóxicos.
Como o homem moderno pode ser saudável ingerindo alimentos produzidos à base de
agrotóxicos, artificialmente fabricados e repletos de conservantes e colorantes? Como
manter-se emocionalmente equilibrado numa sociedade violenta, cheia de perigos,
poluição ambiental, visual e sonora?
A ciência moderna oferece paliativos para quem pode pagar caro por eles. Mas mesmo
assim, não significa que estas pessoas estarão permanentemente a salvo destas
agressões, pois, todos nós, em algum momento, estaremos expostos a todos estes males
e ninguém está preparado para enfrentá-los. Esta seria, a nosso ver, uma das razões do
surgimento do Movimento Nova Era e do retorno da visão sistêmica de mundo, como se
pode ver no depoimento de Dr. Aureliano Ramalho 72, médico pediatra com curso de
Mestrado e Residência no Rio de Janeiro, Especialização em Homeopatia no Recife, na
época, professor universitário:

- Aderi à macrobiótica por volta de 1974 por motivo de saúde. A


macrobiótica ainda é muito subdesenvolvida no Nordeste. No Sudeste
existem médicos macrobióticos de renome como Zanata no Rio de Janeiro,
Kikuchi e Márcio Bom Tempo em São Paulo. O que me encucava na
medicina, eram suas limitações em certas doenças como asma, câncer,
amigdalite crônica, etc. Foi esse motivo que me levou a procurar
alternativas como a homeopatia, o do-in, a acupuntura, o moxa-bustão. Eu
considero a massagem um tratamento mais integral, elimina a doença e
acalma a criança. O problema é que os brasileiros estão condicionados ao
uso de medicamentos, por isso eu alio a massagem ao tratamento
homeopático. A grande dificuldade da medicina ocidental é que ela parte de
premissas diferentes. A medicina ocidental é puramente materialista, tudo
se mede a partir de reações químicas. A medicina oriental é mais

72
Um dos introdutores da medicina holística no Nordeste, falecido em 2013. (Entrevista concedida, em
Campina Grande, 1987.
metafísica, espiritual: dá muito valor às relações do homem com o meio.
Aqui no Brasil, de modo geral, os médicos consideram a macrobiótica
exotismo e vêem a acupuntura como uma espécie de magia. No início,
também foi muito duro entrar na minha cabeça os princípios da medicina
oriental. Eu só insisti porque estava em desespero de causa, com os
problemas respiratórios de meu filho mais novo. Só passei a acreditar, a
partir dos resultados básicos obtidos e do estudo mais aprofundado. Eu
estava por demais condicionado a tratar só aquilo que via: os micróbios. A
medicina ocidental trata a doença e não o doente. A homeopatia me ensinou
a tratar o doente como um todo; A doença individualizada.

Dr. Gil Braz de Vasconcelos, paraibano, médico psiquiatra, adepto da ioga, em sua
palestra “Ioga e Psiquiatria” fez a seguinte afirmação a respeito da filosofia oriental no
mundo moderno: “A filosofia hindu nos ensina que podemos estar no mundo em
cooperação, no amor e na harmonia, porém, é necessário treinamento profundo para
podermos atravessar as nuvens da tempestade sem sermos atingidos por ela”...

- É exatamente isso que propõem a ioga, a meditação transcendental e a


medicina sistêmica recomenda. Em 1977 usei a ioga de forma experimental
com meus pacientes que estavam sofrendo ou, passando por uma “viagem”
psicótica. Para a grande maioria a ioga permitiu maior autodomínio
através da respiração. A ioga ajuda a diminuir os estados depressivos e de
ansiedade. A prática da respiração ajuda em todos os sentidos. Nos estados
patológicos de esquisofrenia profunda, eu não consegui nenhuma melhora.
No entanto, o conceito da ioga vem modificando nossa idéia de Deus que é
limitada a um Deus castrador; isso ajuda a qualquer tipo de doença mental
(...). Dentro de cada um de nós, no mais íntimo de nosso ser, há uma
semente divina que pode despertar a qualquer momento (...) O poder do
qual a ioga nos fala é o do amor:e há um lugar dentro de nós que não
comporta certos sentimentos... Quando estamos em contato maior com o
divino que há em nós, estamos com a força criadora do universo, ou seja,
em harmonia (...) (Gil Braz de Vasconcelos: 1986).

Esoterismo, Ciência e Modernidade.


Apesar das divergências entre os pensamentos esotérico e científico, há também muitas
convergências entre ambos. Uma idéia estreitamente associada aos dois, é a crença no
aperfeiçoamento humano, ligada ao evolucionismo. O caráter universalizante, que,
segundo Touraine (1994) é uma das poucas unanimidades no debate sobre a
modernidade também está presente nos dois.
Em Magic, Religion, Science, and Secularization (1989) Stephen Sharot discute os
limites da magia e da ciência e as relações - às vezes amistosas - entre essas duas visões
de universo. Mostra que, no início, os cientistas modernos não rejeitavam (de maneira
nenhuma) a visão mágica de universo; foi somente no meio do século XVII, que muitos
investigadores da natureza, no Ocidente, passaram da visão animista para a mecanicista.

- A tese central do pitagorismo era a doutrina da transmigração das almas,


essencialmente a mesma dos hindus, embora seja possível que fosse
inteiramente independente de qualquer influência indiana... Pelo menos em
seus aspectos místicos, o pitagorismo relaciona-se com os mistérios órficos,
uma relíquia da antiga magia comunitária que já então se transformara
num meio de evasão das duras realidades da Idade do Ferro... (BERNAL,
1975: p.185).

Consoante Leon, Ciências Ocultas, os traços do discurso esotérico na Ciência Moderna


(1999) a Idade Clássica não separava o erudito do divino. O discurso clássico abrigava
ocultismo e ciência sem maiores conflitos (LEON, 1999: p. 173).

- A linguagem esotérica era a grande gramática do mundo. Através das


analogias dessa linguagem, era possível compreender processos complexos
como a cura... As Ciências Ocultas vão entrar no seu ocaso no final do
século VII, com a ruptura epistemológica que põe fim ao mundo das
similitudes para iniciar o mundo das diferenças (Op. cit., p. 174).

Há, portanto, uma ligação seminal entre as duas. O misticismo, tal como a ciência,
propõe-se a interpretar a origem da vida e do universo. A tese básica da modernidade, o
"triunfo da razão", estreitamente associada à idéia de racionalização, é o principal foco
de discórdia entre a concepção holística de mundo e o pensamento científico ocidental.
O pensamento holístico procura mostrar os limites da razão e o que é fundamental na
tradição. De acordo com esta visão de universo, a compreensão errônea de certos
aspectos da realidade explicados pelo esoterismo e desprezados ou ignorados pela visão
racional de universo pode trazer consequências funestas para a vida individual e social.
Mais que isso, constituiria ameaça iminente à própria sobrevivência da humanidade e do
planeta – um bom exemplo disso seria a atual crise ambiental73.
A disputa teórico/metodológica entre estas duas concepções de universo, continua sem
solução, principalmente em razão de dois fatores: o primeiro, relacionado às
contradições do próprio método científico e, o segundo, deve-se, sobretudo, à natureza
do fenômeno em questão. Em seu discurso, a ciência se propõe a buscar a verdade
universal. Entretanto, na prática, o método científico impõe limites à realidade. A
limitação da realidade imposta pelo pensamento científico moderno, obriga a ciência a
desconsiderar uma enormidade de fenômenos não passíveis de observação pelo método
científico atual. A ciência ocidental nega a legitimidade de outras formas de diálogo
com a natureza como: o senso comum, a magia, e a alquimia.
Um fator em favor da visão mística, é que a ciência ocidental é recente, enquanto a
visão mística é antiga. Muito antes do surgimento da cultura ocidental, outras culturas já
haviam dado suas contribuições, inúmeros caminhos tinham sido trilhados pelo homem,
em sua busca de respostas para seus questionamentos sobre si mesmo e, sobre o
universo. Os defensores da visão holística de universo estão convictos - e tentam
convencer seus opositores - de que "todas as versões que as culturas deram de seu
caminho para o mundo, podem nos ajudar a conhecer mais e a preservar melhor a nós
mesmos e o nosso habitat" (Op. cit., p. 29).
É nesse sentido que o holismo recusa o monopólio do modo moderno de decifrar o
mundo que nos cerca e, defende o "sentido de complementaridade".
Embora critiquem a pretensa onipotência da ciência ocidental moderna e o
obscurantismo da visão cartesiana de mundo, os místicos modernos não se opõem a essa
forma de conhecimento enquanto conhecimento, mas apenas, quanto aos princípios que
o regem. A grande maioria dos movimentos místico-esotéricos modernos (até mesmo
aqueles de caráter religioso) acredita que a ciência é uma forma válida de conhecimento.
Muitos cientistas, hoje, estão em busca de uma ponte confiável entre misticismo e
ciência. O movimento holístico que é o grande representante dessa vertente, que não
pára de se expandir.
Diríamos que as duas perspectivas, hoje, encontram-se diante de um impasse. O
pensamento científico ocidental moderno (embora hegemônico) não consegue destituir
a visão mágica de universo e esta, procura legitimar-se através do saber ao qual dirige

73
GAIA: ALERTA FINAL, James Lovelock. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010, p. 264.
sua crítica. Essa posição ambígua do misticismo moderno em relação à ciência aparece
como uma das principais características do esoterismo contemporâneo.
À primeira vista, isso pode parecer muito intrigante, pois ao lado de uma crítica, às
vezes mordaz, dos esoteristas à ciência mecanicista e seus efeitos nefastos, alguns
movimentos mágicos contemporâneos têm adotado em parte, a linguagem da ciência, se
não as pressuposições básicas da análise e da prática científica... (SHAROT, S. Op. cit.,
p. 278).
Para Sharot, é perfeitamente compreensível que, numa sociedade onde a ciência se
constitui como institucionalidade prestigiosa, sua imagem ideal e o que muitos
cientistas enxergam como idioma mecânico ultrapassado, sejam imitados por alguns
movimentos mágicos (...) (Ibid.).
Dentre os inúmeros sistemas simbólicos em competição na complexa sociedade
contemporânea, o pensamento místico-esoterismo se destaca entre aqueles que propõem
caminhos e soluções para redefinir e mudar, não apenas a visão subjetiva dos
indivíduos, mas, também, os limites morais da sociedade.
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SABER POPULAR, RELIGIÃO E MAGIA QUANDO A NATUREZA E A FÉ
SÃO OS ÚLTIMOS RECURSOS
POPULAR KNOWLEDGE, RELIGION AND MAGIC WHEN NATURE AND
FAITH ARE THE LAST RESOURCES

Maria do Socorro Sousa (UFPB)74

Resumo
Este trabalho trata da prática de doze “agentes de cura”, residentes no nordeste
brasileiro cuja população teve duas fontes majoritárias de elementos étnicos: europeu e
indígena, não sendo expressiva a população afrodescendentes. Foram realizadas
entrevistas e gravadas suas histórias de vida. Os dados foram colhidos de abril a julho
de 2012, analisados numa perspectiva de análise de conteúdo. As motivações e formas
de adquirir o conhecimento para a prática da cura, surgiram na sua totalidade, a partir da
necessidade de sobrevivência de sua pessoa ou de familiares, em momentos de difícil
acesso aos serviços de saúde. O sistema de aprendizado atende a uma lógica distinta da
racional, onde até uma criança de tenra idade pode ser considerada responsável e apta
para curar, desde que tenha o dom. Suas práticas apontam um mix do saber oral, religião
e magia, que sofrem atualizações sob a influência do meio e da mídia.

Palavras-chave: Saber Popular; Religião; Magia; Agente de cura

Abstract
This article deals with the practice of twelve “healing agents”, residents in northeastern
Brazil, whose two major sources of ethnic elements are European and Indigenous, with
no significant Afro-descendant population. The interviews were conducted, their life
stories were recorded and data were collected from April to July 2012 and then
submitted to an analysis from a content analysis perspective. The motivations and ways
of acquiring knowledge to the practice of healing arose always from the need for
survival of their own or their family in times of difficult access to health services. The
learning system follows a nonrational logic, where even a young child can be held
responsible and able to cure, provided you have the gift. Their practices show a mix of
oral knowledge, religion and magic, which are updated under the influence of the
environment and the media.

Keywords: Popular knowledge; Religion; Magic; Healing agent.

74
Graduada em Medicina, Mestre em Ciências das Religiões, Doutora em Ciências Sociais, Professora
Associada do Departamento de Fisiologia e Patologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade
Federal da Paraíba. marisousa@terra.com.br.
Introdução
Na concepção de Laplantine e Rabeyron (1989) o que caracteriza as práticas
denominadas medicina popular é um conjunto de técnicas de tratamento empregadas
por especialistas com diferentes denominações e que não têm o benefício da legitimação
da medicina acadêmica. No Brasil, a legitimidade da atividade médica rege-se pelo
Conselho Federal de Medicina, que é um órgão que possui atribuições constitucionais
de fiscalização e normatização desta prática
As medicinas populares, embora possam ser enquadradas na definição da Organização
Mundial de Saúde como Medicinas Tradicionais, no Brasil, não existem órgãos oficiais
que as regulamentem. Elas se legitimam socialmente pela sua prática. Seus praticantes
recebem diferentes denominações como curadores, curandeiros, parteiras, rezadeiras,
entre outros. Neste estudo, a eles nos referimos como agentes de cura.
A centralidade da racionalidade científica mecanicista na constituição da medicina
acadêmica ocasionou a separação entre a arte de curar e a disciplina das doenças,
apoiada pelos estudos anatomofisiológicos e pela classificação das patologias. Enquanto
a medicina acadêmica ganha legitimidade, o conjunto de saberes tradicionais são
considerados “não científicos” a partir do ponto de vista do saber dessa medicina
(BONET, 2004, p. 32-33).
Na prática, porém, o binômio saúde-doença guarda relações diretas com as concepções
e valores sobre a vida e a morte, que por sua vez recebe uma conotação de sacralidade.
A ciência e a religião são reconhecidas pelos antropólogos e filósofos como macros
sistemas simbólicos de cura e ocupam importante papel na esfera do poder de cura. A
sociedade, enquanto palco dinâmico e histórico, exerce influência sobre os sistemas
terapêuticos, de forma a modificá-los, suprimi-los e ou adaptá-los, de acordo com os
interesses e as tendências do momento.
Apesar do controle oficial, a religião nunca abriu mão de suas prerrogativas como
agente de poder sobre todas as esferas sociais, principalmente sobre a saúde. Trata-se de
um poder delegado pela divindade e legitimado pela sua eficácia. Representado pelos
sacerdotes, santos, magos ou similares, instrumentalizados, principalmente, pela fé 75,
pelos símbolos e pelas técnicas que lhes são próprias, é um sistema fortemente
respaldado na oratória. Nesse sistema, além dos representantes materialmente
identificados, outros seres ou entidades espirituais compõem o quadro de representantes

75
Fé – é cognata de Fides (fé em latim). É uma experiência pessoal, não comporta a dúvida, por isso é de
difícil explicação.
de uma força supostamente superior à humana. Na tradição judaico-cristã, Deus é assim
considerado, bem como, seu enorme cabedal de auxiliares.
Numa perspectiva foucaultiana, na sociedade ocidental contemporânea mais ampla, as
relações de poder estabelecidas entre os sujeitos submetidos aos processos curativos, os
representantes da ciência e dos sistemas de cura místicos em geral, compõem uma
ampla e complexa rede de “micropoderes” na qual a autoridade médica nem sempre é o
mais forte. Primeiro, porque o “paciente” dispõe de uma autonomia relativa, que
facilmente lhe permite desobedecer ou burlar as ordens médicas. E segundo, porque a
crença predominante de que humanos seriam “espíritos” e que o conhecimento dos
médicos se limita apenas a parte material. Muitas vezes, este confia mais nos agentes
com poderes extra-humanos do que no discurso cientifico.

Contexto e metodologia do estudo


Este estudo se refere ao relato das histórias de vida de 12 agentes de cura baseado em
uma pesquisa etnográfica76 desenvolvida na zona rural do município de Rio Tinto/PB,
nordeste do Brasil. Geograficamente, esse município é cortado por rios e riachos,
utilizados pela população para lavar roupas e animais. Apresenta um revelo relativamente
plano, com uma vegetação compatível com mangue. Essa geografia é relevante porque a
população, ao mesmo tempo ribeirinha e de zona rural, estabelece relações com esses
espaços ambientais, constituindo uma integração significativa entre moradores e
natureza, importante para sua subsistência e como fonte de recursos para as práticas de
cura adotadas nas localidades. O território do município contempla as áreas da Reserva
Indígena Potiguara.
O município surgiu a partir do estabelecimento da Companhia de Tecido de Rio Tinto,
fundada em 1920 por um teuto-sueco, Herman Theodor Lundgren. Após a aquisição de
terras de proprietários de engenhos locais, como também de terras habitadas por índios
Potiguaras e cobertas por mata atlântica, a fábrica têxtil instalada ficou ativa de 1924 a
1960, arregimentando trabalhadores locais e engenheiros alemães com suas famílias.
Após esse período as terras dos Lundgren foram vendidas ou arrendadas para o cultivo
da cana-de-açúcar (VALE, 2008), destruindo parte da reserva de Mata Atlântica da
região. Em termos de formação cultural, o município conta com duas fontes majoritárias

76
Este trabalho traz elementos da pesquisa de doutoramento, realizada por Maria de Socorro Sousa,
intitulada “Representações sociais do adoecimento e da cura em usuários do SUS, Rio Tinto/PB/Brasil”,
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFCG, sob orientação da profa. Dra.
Magnólia Gibson da Silva.
de elementos étnicos: europeu e indígena, não sendo tão expressiva a presença de
população afrodescendente.
A abordagem metodológica utilizada foi fundamentada na pesquisa de campo, e as
entrevistas com os agentes de cura foram realizadas no período abril a setembro de
2012. Seu estudo se deu numa perspectiva de análise de conteúdo, buscando a partir de
um tema central os subtemas correlatos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
em Pesquisa na Universidade Federal da Paraíba. Nomes fictícios foram usados com o
objetivo de preservar a identidade dos informantes.

Os agentes de cura: objetiva e subjetivamente


Ao todo foram entrevistados 12 Agentes de Cura, sendo quatro do sexo masculino e oito do
sexo feminino. As idades variaram de 44 a 74 anos. Uma particularidade observada foi de
que todas as mulheres entrevistadas nos receberam no interior de suas residências, e, no
momento da visita, estavam realizando algum trabalho doméstico. Ao passo que todos os
homens nos receberam no espaço “de fora” de suas casas e os encontramos descansando ou
conversando.
Tomando como tema central o agente de cura, subtemas foram considerados buscando
uma correlação entre a fala e os objetivos dessa investigação; assim aptidão 77/dom78,
especialidade que/quem cura e elementos usados para a cura são subtemas que dão
sentido as ações desses agentes de cura. O Quadro 1 mostra a caracterização dos agentes
de cura, relacionados aos subtemas considerados.

77
Aptidão no sentido de um aprendizado conseguido de forma consciente, em que a pessoa reconhece de
onde veio esse conhecimento.
78
Relativo ao dom de cura enquanto capacidade de realizar ações de cura recebida na maioria das vezes,
de forma involuntária ou inconsciente.
Quadro 1 – Distribuição dos Agentes de cura de acordo com idade, sexo, religião,
origem, aptidão, especialidades e elementos que usam para curar

Idad Elemento
Origem/
e Religião Aptidão Especialidade s
Sexo descendênci
Ano (prática) adquirida/dom que/quem cura que
a
s utiliza
Reza/pl.
Olhado Criança,
72 F Católica Nativa Dom medicina
adultos
is
Adquirida da Plantas
Não tem Região de Adultos/
66 M observação medicina
religião perto crianças
Dom com plantas is
Não tem Indígena Aptidão adquirida da Adultos Plantas,
60 F
religião natureza Crianças animais
Cristã.
Olhado, magia Reza/ Pl.
Não Região de
60 M Dom recebido Pessoas, medicina
frequenta perto
animais is
.
Natural da Crianças Plantas
63 F Católica Adquirida
região Adultos animais
Cristã. Olhado Reza/ Pl.
Indígena Aptidão adquirida
44 M Não Crianças medicina
Transmitida pelo avô
frequenta Adultos is
Plantas
Aptidão adquirida Crianças,
68 F Católica Sapé (PB) medicina
pela necessidade Mulheres
is
Crianças, Reza/ pl.
Aptidão adquirida
53 F Católica Nativa Adultos medicina
pela necessidade
Olhado is
Crianças, Reza/Pl.
Adquirida em parte
73 F Católica Nativa Adultos medicina
por opção
Olhado is.
Crianças, Reza/Pl.
Bananeiras Aptidão adquirida
74 F Católica Adultos medicina
(PB) pela necessidade
Olhado is
Adultos e Plantas
Evangélic Região de Aptidão
77 M crianças medicina
o perto adquirida/dom
Encantamento is
Plantas
Aptidão adquirida Adultos e
63 F Católica Nativa medicina
Transmissão familiar crianças
is
Fonte: Dados da pesquisa.

Em uma discussão ampla sobre o conhecimento no cotidiano, Sá (2004) recorre ao


pensamento de Moscovici quando analisa as formas de conhecimento que são
produzidas e mobilizadas em uma dada sociedade. Segundo esse autor, o psicanalista
social considera coexistirem nas sociedades contemporâneas duas classes distintas de
universos de pensamento: os universos consensuais e os universos reificados.

Nos universos reificados, bastante circunscritos, é que se produzem e circulam as


ciências e o pensamento erudito em geral, com sua objetividade, seu rigor lógico e
metodológico, sua teorização abstrata, sua compartimentalização em especialidades e
sua estratificação hierárquica. Aos universos consensuais correspondem as atividades
intelectuais da interação social cotidiana pelas quais são produzidas as representações
Sociais. As teorias do senso comum que são aí elaboradas não conhecem limites
especializados, obedecem a uma outra lógica, já chamada de lógica natural, utilizam
mecanismos diferentes de verificação e se mostram menos sensíveis aos requisitos da
objetividade do que a sentimentos compartilhados de verossimilhança ou
plausibilidade (MOSCOVICI, 1981, 1984a apud SÁ, 2004, p. 28-29).

É esse tipo de universo de pensamento dos universos consensuais que encontramos, por
exemplo, nos agentes de cura em sociedades rurais do nordeste brasileiro. Para estes
agentes, a natureza é provedora, norteadora, rege o tempo, a orientação espacial, possui
leis que deverão ser respeitadas:

“Tudo isso é do meu juízo, não aprendi com ninguém. [...] E pra quem sofre de ulça
(úlcera) no estombo é aroeira, tira o entrecasca do lado que o sol nasce, tira a casaca
dela, rapa bota pra ferver, cozinhar, mas é pouquinho, né muito não, é pouquinho! Aí
toda de manhã bem cedo, a pessoa vai, toma dois dedos de mel com um dedo de chá.
[...] Mastruz não é bem bom não, porque ataca o coração. [...] um escorpião me
mordeu no mato [...] A gente bate com o pau, corta ele no meio, desce uma lama e
bota em cima. Cura com o próprio veneno dele, né? Agora picada de abelha é
perigosa. Mais a abelha cura. O pé inchado, inchado, daí danei a abelha pra riba num
instante desmanchou. Botei a abelha pra morder a pancada e num instante
desmanchou. Tudo aprendi da minha cabeça, aprendi com a vida. Não vou dizer que
aprendi de ninguém nunca ninguém me explicou. Não lembro dos meus pais, porque
fiquei órfão nova, eu sou a caçula da família”. (Dona Jaci, índia potiguara).

Dona Jaci tem um conhecimento adquirido no cotidiano, suas teorias têm como limite a
própria natureza com seus elementos, utilizam à lógica, por exemplo, da orientação
espacial relacionada ao movimento solar – colhe a entrecasca do lado que o sol nasce.
Tem noção de posologia e toxicidade – o mastruz ataca o coração. Tem caso que usa o
próprio veneno para curar, doutra feita, usa como estímulo reativo para o organismo
doente. E como ela reconhece: nunca ninguém me explicou. É, portanto, um
conhecimento adquirido no modelo dos universos consensuais.
Em outros relatos, estão expressos o calendário da natureza – o tempo da lua: “[...] todo
ano tempo de lua, sai aqui, olhe detrás ...” (Seu Pedro). O horário de tomar o chá é o
tempo da natureza. “Quando ela esfria por ela mesma aí vai e dá” (Dona Jaci).
É na trajetória de vida desses agentes de cura que identificamos a motivação, a
transmissão ou momento de passagem da aptidão ou dom de curar. São narrativas que
falam das dificuldades de sobrevivência, da vida no campo, da carência na satisfação
das necessidades básicas, como alimentação, moradia, transporte, acesso a serviços de
saúde, entre outras. Nesses relatos é possível identificar a relação íntima entre prática e
conhecimento, além das motivações oriundas das relações sociais.

“Uma vizinha minha, ela mora ali. Eu peguei dois meninos dela, eu morava assim
pegada, as casas pegadas. Aí ela tava assim pra ganhar bebê. Aí não tinha quem
pegasse o menino. Aí, como ela ficava me chamando. Eu ia lá quando chegava lá o
menino já nascendo, aí eu fazia o parto. [...] Só assim, quando o menino nasce, aí
meço três dedinhos no cordão umbilical, aí amarro primeiro pra poder cortar. Depois
que corto, mais só depois que a placenta sai. [...] (a placenta) – tem delas que é limpa,
só aquela bolinha. Tem delas que é cheia de dedinhos assim ao redor. Eu vou olho. Se
tiver tudo direitinho, ajeito a mãe e pronto. Sozinha, na hora a pessoa tem que aprender
mesmo, vai fazer o quê? Pra salvar duas vidas. Vai fazer o quê? Pra tudo Deus dá
inteligência” (Dona Dorinha).
“Comecei a trabalhar prus outros com os sete anos, pastorando gado. [...] foi tempo
que meu avó morreu, eu fiquei tomando conta dela, da minha avó. [...] Home,
aprendi a curar, a rezar com Jesus. Comecei com sete anos. Home, eu nem lembro
sabe, quem foi a primeira pessoa, eu nem lembro porque era muito pequeno demais,
a pessoa com sete anos não conhece quase ninguém. Aí eu sei bem, que minha vó
também, um tempo, ela disse: Pedro, acolá tem um menino mordido de cobra. Eu
fui, parte com Jesus e curei. Fui”. (Seu Pedro).

Chama-nos a atenção à sensibilidade desses agentes de cura para com os demais se


colocando como defensor de suas vidas. O sistema de aprendizado, nesses casos, atende
a uma lógica distinta da racional, uma criança de tenra idade pode ser considerada
responsável e até apta para trabalhar com uma prática de cura. Essas pessoas estão
sempre prontas a agir e interceder em favor dos que estão passando por situações de
adoecimento, muitas vezes sem possiblidades de receber outro tipo de ajuda. Mas que
pela razão, são movidas pelo sentimento de solidariedade, nesse sentido, cumprem uma
missão. O contexto social e as circunstâncias temporais parecem ter um papel muito
importante nessas decisões. O modelo a ser copiado, a prática e os valores vigentes são
os grandes norteadores dessa forma de conhecimento.
Para tornar-se um agente de cura é comum a transmissão familiar ou de mulher/mulher,
ou pelos membros da comunidade: “Aprendi da minha mãe. A minha mãe aprendeu da
minha avó” (Dona Maria da Glória). “A experiência com reza foi do meu avô. Meu avô
me ensinou, poucas palavras, não era muito não, era pouquinha mesmo. Ele era índio
caboqueiro velho” (Seu Jailson).
Estudando os Xamãs asiáticos e americanos, de uma maneira geral, Mircea Eliade refere
que o futuro Xamã revela-se desde a adolescência, e as principais vias de recrutamento
são: a transmissão hereditária, podendo esta ser também pela linhagem feminina e a
transmissão por vocação espontânea, denominada “o chamado” ou “escolha”. Todos
passam por uma dupla iniciação: a extática, quase sempre por meio de sonhos ou transes
iniciativos e a didática efetuada por um velho Xamã instrutor (ELIADE, 2002).
O aprendizado desses agentes de cura se assemelha às iniciações xamânicas referidas
por Eliade. As circunstâncias de suas vidas os proporcionaram experiências fortes
traduzidas como vida difícil. Em seus relatos, foram comuns citações de experiência da
morte dos familiares. Muitos desses agentes perderam a mãe ainda em idade tenra. A
maternidade também é um marco não apenas de maturidade, mas também como
momento difícil (iminência de morte da mãe e da criança). O abandono, a precariedade
das condições de sobrevivência, fez com que muitos deles tivessem apenas a natureza
como último recurso.

“Fui criado pelo meio do mundo. Fui criado sem mãe. Desde 12 anos que eu fui
andar pelo meio do mundo. [...] Escapei, sabe? [...]. Aí chegou, meu papai, me levou
pro mato pra me matar-me, aí eu escapuli de lá. [...] Eu sozinho, lá dentro dos matos.
[...] Já tava com uns vinte e poucos anos, já tava velho, já. [...] quando eu fiquei
trabalhando lá (em São Paulo) botaram eu de vigia, numa casa velha... [...] tinha só
um homem, né? Era um português, era um doutor. Fazia remédio aqui no Brasil e
levava pra Portugal. Aí se demos a conhecer, lá vai. [...] . Foi quem me ensinou, o
que hoje eu sei”. (Seu Francisco).

Segundo Eliade (2002), a iniciação extática se dá pela morte e ressurreição ritual do


candidato e introdução de elementos mágicos em seu corpo. As variações ocorrem de
uma região para outra, podendo constar também de uma subida ao céu para levar ao deus
supremo os desejos do grupo e a descida ao inferno, seja representada ritualisticamente,
seja mediante sonhos ou em transe. Na iniciação didática, são ensinados cantos mágicos, a
utilização de ervas medicinais, a cosmologia do grupo e os “segredos”. Durante o
processo iniciativo, que poderá durar anos e ser dividido em várias etapas, o iniciado
passará a ter domínio de “espíritos” da natureza ou de mortos, passando a usá-los como
aliados, a exemplo dos animais de poder.
O aprendizado de Seu Francisco durou anos, após sobreviver de uma surra e viver
sozinho mudando de cidade, trabalhando para sobreviver, aos vinte e poucos anos já se
considerava “velho”. No seu percurso, envolveu aprendizado não apenas com plantas
medicinais, mas também sobre aspectos mágicos, como relata: “[...] Oie, inté me vultar
[?] eu me vultei, eu me vultava. Compreendeu?” (Seu Francisco).
Quando Eliade (2002) assegura que a principal função do Xamã é a cura, que nem
sempre é só mágica. Conhece e utiliza as propriedades das plantas medicinais e dos
animais, faz massagens, defumações etc. Para o tratamento, o transe é parte integrante e
a viagem extática, na maioria das vezes, é indispensável para encontrar a causa da
doença e a terapêutica eficaz. Às vezes esse tratamento redunda em uma possessão.
Essa morfologia de cura xamânica sul-americana é praticamente a mesma para toda
parte, e em geral comporta: defumações com tabaco, cantos, massagens na região
afetada do corpo do doente e, finalmente, a extração do objeto patogênico por sucção.
Alguns desses agentes de cura que fazem uso das plantas medicinais também se
utilizam de procedimentos de natureza mágica. É comum a citação de palavras ou
orações secretas: “As rezas não posso dizer. Quando passei a ser mãe, aí comecei a
rezar meus filhos e tô até hoje” (Dona Dorinha). De um modo geral, é muito comum as
rezas para tirar mau-olhado. Alguns desses agentes afirmam desmanchar magias, extrair
objetos patogênicos: “Na segunda eu fui lá, comecei a rezar. Saiu uma bola, desse
tamanho assim, tava o cigarro com o nome da mulher e o nome dele. [...] acabou-se,
deixou de beber”. (Seu Pedro).
Na prática do Xamanismo, a doença constitui-se um forte elemento de aprendizado.
Nesse sentido Eliade (2002, p. 41) afirma: “Assim como o doente, o homem religioso é
projetado para um nível vital que lhe revela os dados fundamentais da existência
humana, sentindo solidão, precariedade, hostilidade do mundo circundante”. Ao Xamã é
necessário o domínio da polaridade saúde-doença, e neste contexto, a vivência pessoal
faz parte do tornar-se Xamã. “Pois se ele se cura pessoalmente e sabe curar o outro é
porque, entre outras coisas, conheceu o mecanismo (ou melhor, a teoria) da doença”
(ELIADE, 2002, p. 46). Este também é um aspecto encontrado entre os agentes de cura.
Doenças, mordidas de cobra: “Estava de sete pra oito anos quando a cobra me picou, a
tal “pico de jaca”. [...] eu sempre curo de novo, tem que ser nove curação”. (Seu Pedro).
Situações em que eles são colocados no limite de resistência e, a partir daí eles se
tornam aptos a tratar os outros: “[...] Ai, quando eu adoecia, eu não tinha a quem pedir,
nem as minhas irmãs eu conhecia. (Choro). Comecei a fazer remédio do mato. Com
esses remédios eu me curava, com esses remédios, curava, não, curo os outros”. (Dona
Jaci).
Quase sempre as doenças, os sonhos e os êxtases constituem em si uma iniciação, e para
Eliade (2002, p. 49-50) é esse processo que transforma o homem profano de antes da
“escolha” em um ser que age no que é Sagrado. O autor compara o isolamento psíquico
de um doente escolhido muito semelhante ao isolamento e a solidão no ritual da
iniciação e complementa: “a imanência da morte enfrentada pelo doente (agonia,
inconsciência etc.) lembra a morte simbólica representada na maior parte das cerimônias
de iniciação”. Nos relatos dos agentes de cura, encontramos descrição de visões. A
religiosidade é um aspecto muito importante em praticamente todos eles, mesmo
aqueles que não frequentam nenhuma instituição religiosa.
“Aprendi assim: a gente pedindo pra Jesus, aí aparece aquele “dom” pra gente.
Quando eu comecei a rezar aparecia aquele homem baixinho, baixinho, num sabe?
[...] Pra mim era Jesus que veio. Só se apresentava, não falava, Vi bastantes vezes.
Aí, um tempo ele veio, ele disse assim como que ia subir, ele me disse pra mim. Ia
subir e vou deixar um curador e perguntou se eu queria, se eu aceitava e eu disse: eu
quero. Até a data de hoje. Eu disse que aceitava”. (Seu Pedro).

As circunstâncias de vida desses agentes de cura demonstram uma forte influência na


formação dessas pessoas. Da mesma forma, entendemos que as especialidades, isto é, a
quem mais eles se destinam a tratar são as crianças e as mulheres, sujeitos vulneráveis
quando colocados numa condição precária de sobrevivência. Entretanto, ainda com
relação às especialidades, dois aspectos devem ser considerados. O primeiro diz respeito
a relacionar as especialidades com divisão dos trabalhos. Assim sendo, as mulheres
cuidam mais das crianças, e nos relatos, a grande maioria das mulheres que se tornaram
rezadeiras assim o fez por necessidade de tratar os próprios filhos. O segundo refere-se
à cópia do modelo classificatório das doenças usado pela medicina alopática. Assim,
encontramos relatos relacionando plantas medicinais às patologias.
Outro aspecto presente nos relatos é a recitação de expressões carregadas de afeto que
esses agentes de cura usavam para referirem-se as suas práticas e ao trato com o outro.
Essa forma está presente nas falas das mulheres e dos homens. Forma amorosa, querida,
forma carinhosa como cuidados maternos e paternos. Esse caráter afetuoso das relações
sociais marca as formas de expressão local mediante uso do diminutivo: [...] vão preparar
o veinho... O veinho está perto de... [...] A fulô é para desmanchar e tomar três
golezinho. [...] Liamba, manacá, que tem uma fulô branca e roxinha (Seu Pedro). “Se
noitava com uma dor de cabeça, minha mãe, um chazinho, um remedinho, uma coizinha
[...] me pegando com Jesus e as minhas plantinhas, que eu planto [...] numa quenquinha
(Dona Maria da Glória). Esse aspecto afetuoso representa um vínculo social entre as
pessoas, e os recursos naturais utilizados para a cura. Segundo Luz (2013) esta visão
integrada homem-natureza é característica da medicina tradicional indígena, também
identificada como aborígine, primitiva, natural.
Os Espaços de atendimentos eleitos, em casa/fora de casa, são também considerados
uma forma de experimentação. Primeiro o uso no espaço interno, da casa, das pessoas
da casa, depois para os de fora. Primeiro em casa, filho; depois vizinhos, em seguida os
conhecidos (de fora): “Primeiro faço, eu mesmo tomo, ai me curo com aquele remédio e
com aquele remédio curo qualquer um, com a fé em Deus. Tudo que dou é porque já
usei, já usei nos meus filhos”. (Dona Jaci).
A Experimentação foi frequentemente encontrada como forma de construir o
conhecimento, ela não é aleatória, tem uma reflexão, é pensada. O processo de reflexão
para iniciar a intervenção começa com o reconhecimento de sua “aptidão”, passa pela
afirmação que precisa da ajuda de Deus e exige a limpeza ou pureza corporal para
garantir a consonância necessária com o sagrado. Purificação que exige uma atitude
constrita e certas restrições por parte do agente de cura. Mary Douglas (1976), no livro
Pureza e Perigo, aponta para os processos de diferenciação entre o que pode ser
considerado puro e, portanto, próximo do desejado socialmente e do sagrado daquilo
que o grupo social considera impuro e, dessa forma, perigoso, não permitido para o trato
com o sagrado. “E eu pensei na minha cabeça. Foi eu que pensei, dedurei assim: vamos
fazer isso aqui: ai cozinhou colônia, alfavaca e eucalipto, folha de eucalipto” (Dona
Maria da Luz). “Tomo banho de limpeza, sempre. A fulô do manacá. Ou 21 ou 11 fulô.
[...] Agora não se enxugue não. Se se enxugar não serve. Minha fé só quem tira é Jesus”
(Seu Pedro). “[...] eu procuro me preparar, me concentrar com Deus [...] Senhor, Lhe
peço! Dentro de mim eu faço primeiro essa reflexão. [...]. Por que? Porque pedi a Deus,
contrita”. (Dona Maria da Luz).

Dinâmica de atualização
Se na modernidade a tradição está sendo substituída pela nova geração, ao mesmo
tempo essa modernidade possibilita a ressignificação das preparações das plantas
medicinais e das orações. O que vem de fora, atualiza, informa, traz mais conhecimento,
dá status. “Agora eu aprendi outra que só basta rezar uma vez. A pessoa fica bonzinho
rapidinho, é um milagre de Deus” (Dona Maria da Conceição.). Muitas vezes essa
atualização se dá com elementos trazidos pela televisão ou vem do sudeste do país (Rio
de Janeiro): “Antigamente eu cozinhava primeiro, mas depois que eu vi uma vez na
televisão; ai eu faço assim: cozinho tudo misturado com açúcar” (Dona Irene).“[...] ele
veio do Rio, chegou aqui e viu meus pés de alfavaca e disse: Oxente, Dona Maria e a
senhora não bota na comida, não? [...] é bom, muito bom, ajuda na digestão [...] Eu uso
alfavaca até hoje” (Dona Maria da Luz).
É comum o uso da nomenclatura dos medicamentos industrializados - analogia com
analgésico/antitérmicos: “Depois aprendi outra, que me deram uma planta. Essa planta
veio do Rio de Janeiro, pra febre também, se chama anador, uma planta que tem até ai,
uma roxinha” (Dona Irene). No que se refere as plantas medicinais também
encontramos a transmissão do conhecimento escrito, além do oral, nesse caso, a união
do conhecimento acadêmico (livresco) e a natureza (plantas), reflete superioridade. “[...]
Ele tinha um livro com toda qualidade de peça de osso, de tudo, quando acabá
ensinando, dizia tudinho, o remédio, já tava lá. - Pia o remédio aqui! Ali tava a touceira
de mato, a folha do mato tudo ali, dizendo como é que é. [...] eu já passava a perna em
qualquer doutor” (Seu Francisco).

Considerações Finais
Encontramos que, para o grupo social estudado, é considerado como elemento
desencadeador de doenças, além dos aspectos objetivamente reconhecidos pela
medicina acadêmica, algo que se passa no nível das relações – seja entre vivos, seja do
mundo sobrenatural, como mau olhado e magia. E nesse sentido, aqueles agentes de
cura devem ter habilidade ou aptidão para curá-los.
O modelo experimental encontrado nos relatos revela uma forma distinta da científica
de construir o conhecimento desses agentes de cura. Embora não obedeça a modelos
rigorosos, ela não é aleatória, exige observação, reflexão, é pensada. Quando o
medicamento está pronto, ele é experimentado pelo ele próprio no espaço interno de
casa, das pessoas da casa, depois para os vizinhos, em seguida os conhecidos. Só após a
confirmação da eficácia é utilizado com as pessoas em geral.
Além dos elementos ponderados no texto, cabe ressaltar ainda a dimensão da
religiosidade e sua forte influência sobre esses processos. Todos referem a natureza e a
fé como os últimos recursos para trabalhar como curadores e suas práticas apontam um
mix do saber oral, religião e magia, que sofrem atualizações sob a influência do meio e
da mídia.
REFERÊNCIAS

BONET, O. Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da Biomedicina. Rio de


Janeiro: Fiocruz, 2004.

DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.

ELIADE, M. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. 2. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2002.

LAPLANTINE, F.; RABEYRON, P. Medicinas paralelas. São Paulo: Brasiliense,


1989.

LUZ, M. T. Novos saberes e práticas em saúde coletiva: estudos sobre racionalidades


médicas e atividades corporais. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.

SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPIINK, M.


J. P. (Org.) O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da
Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense, 2004.

VALE, E. C. Tecendo fios, fazendo história [manuscrito]: a atuação operária na


cidade-fábrica Rio Tinto (Paraíba, 1959-1964). 2008. 225f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: UFC, 2008.
O QUE HÁ DE MAIS SAGRADO – TEATRO E RITUAL

Nara Keiserman, (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro)79

Resumo
A investigação Ator rapsodo: pesquisa de procedimentos para uma linguagem gestual80
iniciada em 1998 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO,
encontra-se desde 2012 na etapa “Teatro e Espiritualidade”, em que se verifica de que
modo saberes de disciplinas e práticas com teor esotérico permeiam e sustentam o
trabalho dos atores. Têm sido objeto de investigação as terapias: Fogo Sagrado
(Mônica Oliveira81); Constelação Familiar (Bert Hellinger 82); Transmissão do Retorno à
Fonte - TRF (Serafim Vieira83); Leitura Corporal (Nereida Vilela 84). Como resultado, a
elaboração de um caminho artístico-pedagógico, experimentado em sala de aula e em
cena.

Palavras-Chave: Teatro e Espiritualidade; Teatro e Ritual; Pedagogia do Ator; Ator


Rapsodo.

Abstract
The investigation Actor rhapsode: research procedures for an gesture language started
in 1998 in the Federal State University of Rio de Janeiro - UNIRIO, is since 2012 in the
"Theater and Spirituality" stage, where the knowledge of disciplines and practices with
esoteric content permeate and sustain the work of the actors. Have been investigated the
therapies: Holy Fire (Monica Oliveira); Family Constellation (Bert Hellinger);
Transmission of the Source Return (Serafim Vieira); Reading Body (Nereida Vilela).
As a result, the development of an artistic and pedagogical process, experienced in the
classroom and on the scene.

Key Words: Theater and Spirituality; Theatre and Ritual; Actor pedagogy; Actor
Rhapsode.

79
Pós-doutora, professora Associada 2, Grupo de Pesquisa Artes do Movimento,
narakeiserman@yahoo.com.br
80
O termo “rapsodo” foi utilizado para reforçar o investimento artístico no modo épico-narrativo, sendo
“rapsodo” o nome dado aos que iam de cidade em cidade cantar poesias, sobretudo, fragmentos extraídos
da Ilíada e da Odisséia.
81
http://www.fogosagrado.net/
82
http://www2.hellinger.com/br/pagina/bert-hellinger/a-nova-constelacao-familiar/
83
http://www.retornoafonte.org/
84
http://www.leituracorporal.com.br/
A investigação realizada no contexto da pesquisa “Ator rapsodo: pesquisa de
procedimentos para uma linguagem gestual”, iniciada em 1998 na Escola de Teatro da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, vem atravessando
diferentes etapas, sendo as primeiras nomeadas de acordo com o material literário que
serviu de base para o exercício cênico que se organizava como resultado das práticas
formativas propostas aos alunos atores bolseiros de Iniciação Científica. 85 Após a
experiência realizada na disciplina optativa “Corpo: o que realmente importa?”,
oferecida aos alunos de toda a Escola de Teatro denominada em 2011, onde pela
primeira vez foram testados procedimentos ligados a conteúdos de caráter
espiritualistas, a Etapa da investigação em curso naquele momento foi denominada de
Teatro e Espiritualidade.
Os princípios e conteúdos que norteiam as experiências vêm de disciplinas terapêuticas
como o Alinhamento Energético ou Fogo Sagrado - trabalho de origem xamânica, que
integra a Psicologia e a Física Quântica (Mônica Oliveira), a Constelação Familiar (de
Bert Hellinger 86), a Transmissão do Retorno à Fonte (Serafim Vieira e Lígia) e a Leitura
Corporal, concebida como a linguagem da emoção inscrita no corpo (Nereida Fontes
Vilela) – todos vivenciados pela investigadora. Essas técnicas atuam numa alta
frequência vibratória, que pressupõe a presença de um universo sutil com o qual todos
podem se conectar.
O que uma investigação teatral, vinculada à pedagogia do ator e ao exercício cênico
pretende, ao trazer tais recursos para o ofício artesanal do ator é que este, em cena,
converta-se em um ser iluminado, independentemente da linguagem ou estilo teatral
adotado, independentemente de talento ou mesmo do domínio de habilidades atoriais
específicas. Mas, certamente, de acordo com uma pré-disposição para a entrega, o
desejo verdadeiro de uma transformação subjetiva, de ter na Arte um meio para
“alcançar os céus”, para estabelecer com os espectadores-testemunhas uma conexão que
ultrapassa o cotidiano. E fé.

85
Os objetivos do projeto original referem-se a três instâncias principais: teatralização de material
literário não escrito para o teatro; pesquisa de procedimentos gestuais na encenação dessa literatura;
formação do ator narrador, com formulação de metodologia e bateria de propostas de exercícios práticos.
Entre os autores encenados estão Nelson Rodrigues, Oscar Wilde, Heiner Müller, Thomas Mann, Caio
Fernando Abreu.
86
Não tivemos experiência direta com a Nova Constelação Familiar, que Bert Hellinger desenvolveu
mais recentemente com Sophie Hellinger.
As Terapias e o Teatro
Não vamos apresentar de maneira completa nem analisar, aqui, os efeitos e benefícios
propriamente terapêuticos das técnicas acima mencionadas. Cumpre-nos salientar, de
cada uma delas, aquilo que nos parece apontar para um aproveitamento deste ator que se
pretende iluminado.
Do Alinhamento Energético interessa principalmente o conceito de canalizador, cuja
função, nessa técnica terapêutica, é a de ler o campo energético do paciente e também
de falar em seu nome, o que ocorre de uma maneira muito simples. Após pedir a
autorização do Eu Superior do paciente e de invocar o Guardião “Nos Braços de
Deus”87, o canalizador se coloca num estado de conexão com o paciente e, de maneira
imediata e espontânea assume sua postura corporal, seus gestos e verbaliza, usando o
vocabulário do outro, as questões presentes no corpo energético que está sendo
trabalhado. Aconselha-se, como um recurso, que o canalizador imagine-se vestindo o
cliente, “como se fosse uma roupa, percebendo o rosto deste em seu rosto, a pele dele
em sua pele, como se por fora o canalizador fosse o cliente. E deixe a boca falar.”
(OLIVEIRA e TUI, 2008:19). As afinidades desta prática com a atuação cênica são
evidentes na recomendação de assumir o corpo de outro e deixar-se falar. As autoras
utilizam, inclusive, o “se fosse”, presente também no Método de Stanislavksi (1990).
Entendendo o paciente como sendo o personagem ou persona, no caso de não haver
propriamente um personagem ficcional, a chave para a atuação parece estar nas ações de
conectar e canalizar.
Na Constelação Familiar ou Sistêmica, método terapêutico criado por Bert Hellinger,
conforme experimentado pela investigadora, o paciente coloca para o terapeuta a
questão que pretende ter resolvida. Este, após avaliar se este é realmente o problema
chave ou se apenas encobre a verdadeira causa do desequilíbrio físico ou emocional88,
designa os papéis que serão constelados. O paciente escolhe entre as pessoas presentes
quais vão fazer que papéis, inclusive o seu próprio. Coloca-as no espaço, formando um
desenho entre elas. Para cada uma, colocando as mãos nos seus ombros e olhando-as
com firmeza, diz, por exemplo: “você representa minha mãe” 89. Imediatamente, vários
conteúdos começam a disparar na mente do representante. Em muitos casos, gestos,

87
Os Guardiões do Fogo Sagrado são Seres de Luz que tem se oferecido para fazer parte da egrégora que
sustenta o trabalho. Cada um deles possui qualidades específicas, destinadas a lidar com questões
definidas.
88
Neste caso, o terepeuta sugere outra questão como foco da constelação.
89
Pode-se representar sentimentos, doenças, etc.
posturas, timbre de voz e modo de falar alteram-se, numa clara aproximação com o
objeto da representação. Alex Fausti90, um dos discípulos brasileiros de Hellinger, o
constelador com quem tivemos contato direto, afirmava a base fenomenológica da
Constelação e que um campo sábio, um acontecimento cósmico entra em ação,
promovendo a sintonia com uma consciência que abrange a todos. Compete-nos não
interferir e aceitar sem julgamentos. Como no Fogo Sagrado, acessam-se níveis de
consciência sutis e reveladores de estados complexos da existência e os representantes
dos papéis são canalizadores espontâneos.
A Transmissão do Retorno à Fonte, segundo Serafim Vieira, seu criador 91 coloca a
pessoa em conexão com a Nova Energia e tem por finalidade ligar-nos à plenitude
original do nosso Ser, acessando a consciência multidimensional. O resultado imediato
e concretamente perceptível da TRF, conforme a experiência da investigadora, é uma
sensação de equilibração, da limpeza dos meridianos, por onde as energias físicas e sutis
passam a fluir sem obstáculos. É acessada uma conexão entre o que Serafim Vieira
nomeia como Estrela do Céu e Estrela da Terra. O paciente sente-se Um com Todos – o
que consideramos como um estado de base, a partir do qual o ator está em condições
favoráveis92 para o trabalho cênico espiritual.
A Leitura Corporal é uma técnica terapêutica que trabalha a relação entre corpo físico e
corpo emocional: cada segmento corporal é associado a um elemento emocional ou
comportamental, de modo que qualquer sintoma físico – desde adoecimentos graves até
uma simples coceira - sinaliza um desequilíbrio num destes dois campos. Mais que uma
terapia, a Leitura Corporal é uma filosofia, em que o corpo humano é percebido como
uma unidade multidimensional complexa, manifestada através de sete Corpos: Celestial,
Austral, Causal, Etérico, Emocional, Mental e Físico93. Os três primeiros se constituem
como campos de energia sutil, considerados como de pura espiritualidade. (Vilela e
Santos, 2010: 18-37). São estes quatro últimos que interessam diretamente ao trabalho
do ator. Acreditamos que quando atuam em estado de equilíbrio harmônico, a potência

90
Alex Fausti (1957-2013) foi psicoterapeuta com especialização em Terapia Sistêmica Familiar,
Cinesiologia Aplicada, Orgonoterapia/Psicoterapia Reichiana, Alinhamento Energético, CranioSacral
Therapy, Leitura Corporal, Extensão em Homeopatia e Neurolinguística.
91
“Não sou pai da TRF, sou apenas uma pessoa a quem foi dito, para divulgar e ensinar como se trabalha
com esta Nova Energia”. http://despertandodeuses.blogspot.com.br/2013/09/entrevista-com-serafim-
vieira-o-criador.html. Último acesso em 08/04/2016.
92
A Linguagem Orgânica, de Alex Fausti, ensina que não há obrigatoriedade possível. Aprende-se a
trocar os verbos duros, como nas expressões tão comuns: “tenho que”; “não posso”, etc., pelos verbos
convir, favorecer e outras expressões que indicam possibilidades e não fatalidades.
93
De acordo com as fontes, há diferenças nessas terminologias e conceituações exatas.
de presença e a expressão explodem. E, ainda, a ideia de se ter “a linguagem da emoção
inscrita no corpo”, como afirma Vilela (2010), traz imediata relação com Antonin
Artaud, que nomeou o ator como o “atleta afetivo”. (1986). Vilela aponta como Centros
determinados segmentos corporais que acionam componentes diretamente relacionados
com a artesania atorial. São exemplos: o Centro de Encaminhamento das Emoções e
Sentimentos, localizado no diafragma (2010: pp135, 275, 292); o Centro Estimulador
do Poder Criativo ou Centro da Criatividade (2010: 256, 241, 256, 323), na articulação
coxofemoral; o Centro de Organização da Expressividade, na articulação glenoumeral
(2010: 97, 209, 256, 261, 323).

Corpo infinito
A denominação do trabalho a que a investigação realizada na Etapa “Teatro e
Espiritualidade”94, em Ator rapsodo: pesquisa de procedimentos para uma linguagem
gestual como Corpo Infinito se dá por ter no Corpo (nos Corpos) a chave de acesso ao
estado de iluminação almejado; por considerá-lo como um processo sem fim, no sentido
de não haver um resultado concreto previamente formatado que significaria, certamente,
uma “morte” artística, e porque as esferas a que se pode atingir são infinitas e
inomináveis.
O que chamou a atenção da investigadora em suas experiências com as terapias foi a
presença, em todas elas, de uma noção de Consciência e o contato assumido com
diferentes Dimensões do Universo, que abrem caminhos para um processo de
Canalização. Passamos a compreender o ator como um Canalizador e a acreditar que o
que autoriza o ator a “abrir a boca e falar” (Fogo Sagrado e Constelação Sistêmica)
pode ser a harmonia entre seus Corpos (Transmissão do Retorno à Fonte e Leitura
Corporal) que, por sua vez, podem ser acessados pela Consciência - entendida aqui
como um estado de Atenção, de acordo com Moshe Feldenkrais (1977), em que estão
ativos os quatro fatores da vigília: Movimento, Sentimento, Sensação e Pensamento, ao
que acrescentamos intencionalidade e assertividade. E, mais uma vez, fé.
A investigação consiste precisamente na busca por caminhos que apontem para como
atingir tal Estado de Consciência de Ator ou um Corpo Infinito.

94
Sem a necessidade de evocar as origens religiosas do teatro e de como, em alguns momentos esta
ligação se tornou tênue ou mesmo inexistente, vale aqui citar, por afinidades, alguns mestres do século
XX que se dedicaram a processos de formação do ator, em que se pode observar a presença de diferentes
aspectos da espiritualidade, muitas vezes compreendida como uma ética. São eles: Stanislavski, Artaud,
Michael Chekhov, Grotowski, Brook, entre outros.
Acredito (é um sistema de crença) que é pela consciência inconsciente dos Corpos Celestial,
Astral Superior e Causal, e consciência consciente dos Corpos Etérico, Mental, Emocional ou
Astral e Físico (Vilela, 2010) que o ator pode ter acesso à percepção de sua conexão com o
Todo, o que significa: o contato com sua própria divindade e com conteúdos de potência
transformadora; a existência plena no espaço da cena 95; a possibilidade de acessar-existir de
forma harmonizada, equilibrada, nos Corpos mais próximos da humanidade encarnada.
Acredito também que o ator pode se engrandecer com as possibilidades de: mobilizar os
segmentos corporais adequados aos conteúdos emergentes; eliminar o espaço-tempo entre
pensamento e ação; colocar-se no estado de conexão consigo mesmo, com o outro, com os
conteúdos a serem partilhados, com a plateia, com o Cosmos; e, principalmente, compreender
que a amorosidade é a base do ato criador partilhado.
É interessante notar que Isha Lerner, no livro O tarô da deusa tríplice, (2005), ao apontar um
caminho para o conhecimento espiritual, descreve atributos perfeitamente cabíveis ao
processo de formação do ator. Considera como etapas: o desenvolvimento da capacidade de
imaginação, a inspiração intuitiva e a consciência espiritual. Cito:

Um caminho que leve a uma consciência superior tem de incluir discernimento,


concentração, observação inteligente, uma percepção aguçada do mundo e o despertar de
forças espirituais que abrem caminho para a intuição e o autoconhecimento. (2005, p.51).

Estabelece-se, assim, uma analogia entre crescimento espiritual, que se dá pela busca de
uma consciência ampliada, e o aprimoramento do ator que pretende exercer a sua arte
conectado com a experiência da espiritualidade. Assim, no momento presente,
considerando a Etapa da pesquisa que, desde 2012 denomina-se Teatro e
Espiritualidade, o objetivo geral é a experimentação de caminhos e processos
pedagógico-formativos para o ator rapsodo, compreendido em sua totalidade expressiva
e vivencial; como SER multidimensional inserido num mundo material e metafísico, de
modo que o aprimoramento artístico não esteja separado de um aprimoramento pessoal,

95
“Para que a dança comece é necessário que já não haja espaço interior disponível para o movimento; é
necessário que o espaço interior despose tão estreitamente o espaço exterior que o movimento visto de
fora coincida com o movimento vivido ou visto do interior. É, com efeito, o que acontece no transe
dançado, onde nenhum espaço é deixado livre fora da consciência do corpo”. (GIL, 2001, 60)
o “eu artístico” e o “eu pessoa” compreendidos como um só “Eu” que, por sua vez, não
existe desconectado do Todo96.
Considerando as experiências realizadas até este momento pela investigadora como
orientadora e como atriz, chega-se a ideia de que sendo atribuições do Corpo Etérico, no
plano sutil, transportar e transmitir os códigos que suscitam e impulsionam a inspiração,
o desejo e a vontade e que, no plano material, ele modela, sustenta e anima o Corpo
Físico, que por sua vez é agente da expressão e instrumento para a ação, (Vilela e
Santos, 2010), ousamos afirmar que é ali que se processa a criação artística,
concretizada na harmonia com os Corpos Emocional, Mental e Físico.
Sendo o impulso é o primeiro suporte para a ação cênica, definindo sua intencionalidade
expressiva, se acreditamos na possibilidade de preenchimento do espaço da cena para
além da fisicalidade restrita do ator, e na correspondência perfeita entre ação interna e
externa, o Corpo Etérico é o lugar onde pode se dar um Estado de Consciência de Ator.
É este Corpo que se “ilumina” no palco.

O que há de mais sagrado


Peço licença para passar a linguagem desta escrita para a primeira pessoa e adotar um
tom de certa oralidade, pelo caráter subjetivo do que vai ser exposto.
Nos primeiros anos da investigação, quando o foco estava na cena narrativa, eu podia
compreender o que se passava com os alunos atores por ter realizado, eu mesma, um
longo treinamento e espetáculos na estética do teatro rapsódico 97. Confesso minha
dificuldade em propor aos alunos-atores o que eu mesma não tenha experimentado
Quando a espiritualidade invadiu a sala de trabalho, os procedimentos pedagógicos
eram ainda novos para mim. Precisava experimentá-los, e foi o que fiz. Depois de cerca
de dois anos, precisei viver a experiência de levar à cena o que estava acontecendo
comigo.

96
Michael Checov, ao apresentar sua concepção sobre “individualidade criativa” refere-se a um eu
cotidiano e um eu artístico, que denomina de superior. (1988, pp.103-112).
97
A primeira experiência, em 1974-75 foi com a encenação da lenda gauchesca A salamanca do Sarau,
com direção de Luis Artur Nunes, produção de José de Abreu. Com o Núcleo Carioca de Teatro,
encenações de contos, crônicas e folhetim de Nelson Rodrigues; a novela Cândido, de Voltaire; contos de
outros autores como Machado de Assis, João do Rio, Rubem Fonseca, entre 1992 e 2000. Todas
dirigidas por Luis Artur Nunes.
Encenei No se puede vivir sin amor98, com contos de Caio Fernando Abreu, que já tive
oportunidades de apresentar em espaços distintos e sobre o qual realizei Palestras-
demonstração revelando o processo de criação e também expus a sua desmontagem,
segundo conceituação de Ileana Diegues (2009).99 Recentemente, em Palestra, afirmei
que ainda não poderia dizer que faço um teatro espiritual, porque meus temas são
profanos, mundanos, humanos. Mas que considerava que fazer/propor uma cena teatral
da espiritualidade, no contato direto com espectadores-testemunhas, poderia favorecer a
expansão desses mesmos limites do profano, mundano, do humano.
É o que começo a experimentar neste momento, com o exercício teatral denominado O
que há de mais sagrado, que se constitui como work in progress. Traz alguns aspectos
já presentes no trabalho anterior, o No se puede vivir sin amor, que são: 1) Não ensaio,
propriamente. Faço mentalmente, o que significa dizer que ensaio internamente, sem a
projeção dos impulsos no espaço fora do corpo. Na hora de apresentar, partilhar,
comunicar, “abro a boca e falo”, como aprendi no Fogo Sagrado. 2) Preparo-me para o
ato teatral andando aleatoriamente por todo o espaço, cena e plateia, invoco o Guardião
Velho Jardineiro, para a limpeza do ambiente e Bianashura, também Guardiã do Fogo
Sagrado, que tem correspondência com a deusa indiana Laksmi, as duas relacionadas à
fortuna e abundância. Percorro o espaço definido da cena, pronunciando o texto
mentalmente, canto os corimbas 100 dedicados à Jurema, Oxum e Iemanjá, aplico em
mim mesma a TRF e canto mantra dos Chakras. 3) Já na presença dos espectadores-
testemunhas, faço mentalmente uma oração, em que agradeço à Força Cósmica do
Amor Universal e a outras forças de Luz por estar ali, pisando em solo sagrado. Faço
um exercício corporal para o equilíbrio dos meridianos e pressiono pontos específicos
do corpo, conforme a Leitura Corporal: o ponto na face plantar dos pés que corresponde
às glândulas suprarrenais e ativam a Presença; os joelhos, intencionando um equilíbrio
nos valores interpessoais, na certeza de que os espaços da cena e dos espectadores têm o
mesmo valor; o esterno, para que a comunicação se estabeleça efetivamente e uma rede
de conexões amorosas se forme entre todos os presentes; os terços laterais direito e
esquerdo da testa, para as espontaneidades assertivas, de modo a assegurar minha
98
A peça estreou em Belo Horizonte, 2013. Foi apresentada no 28º Festivale – Festival de Teatro de São
José dos Campos; em 2015 cumpriu temporada, no Rio de Janeiro, no Espaço Sesc, no Teatro Cândido
Mendes e no Espaço Tom Jobim. Foi apresentado, ainda em 2015 no Festival de Inverno de Ouro Preto e
Mariana – Ouro Preto, e no Festival Aldeia Velho Chico – Sesc Petrolina.
99
“Desmontagem: partilhamento escancarado de performances solo”. Mesa temática. Jacyan Castilho,
Mara Leal e Nara Keiserman. VIII Congresso Abrace, 2014.
100
A mesma coisa que “ponto”, são os cânticos com que se homenageiam ou se evocam os orixás, nos
cultos afro-brasileiros.
inteligência cênica para o trabalho; a vértebra cervical denominada atlas, para que eu
possa estabelecer uma conexão com os espectadores, com o universo a ser evocado.
Embaralho as cartas dos Guardiões do Fogo Sagrado, intencionando a bênção de um
deles para guiar o acontecimento teatral que vai ser vivido por todos naquele momento.
Tiro uma carta “ao acaso” (na verdade é o Guardião que se oferece) e partilho com os
espectadores o nome, a imagem e a função básica do Guardião. E canto-danço “Quem
quer viver sobre as ondas / Quem quer viver sobre o mar / Salve a Cabocla Jurema /
Salve a sereia do mar”.
Essa lista de procedimentos ritualísticos não se realizam necessariamente da maneira
descrita, nem numa ordem já programada. As experiências me ensinaram que não posso
prever como “vai sair” e isso não me atemoriza. Não me sinto comprometida com
“fazer bem” nem sei exatamente o que isso significa.
O resultado cênico desses procedimentos ritualísticos também é sempre inesperado. Sei
os textos de cor, a sequência em que vou trazê-los à cena. E só. Os signos propriamente
teatrais, como corporeidades, entonações, gestos, timbres, tempo-rítmos vão surgindo
no momento mesmo de sua realização. Impulsos internos e externos convertidos numa
única Ação. Sinto efetivamente que meu estado de consciência se altera, a percepção da
realidade próxima não desaparece, mas se torna nebulosa, redimensionada. Posso
chamar de um estado de transe consciente. Tenho um controle, sim, do que faço, mas,
decididamente, não estou no comando. Entregar-me em confiança ao ato artístico
partilhado é uma das forças que me move. Aprendi com Hermógenes: “Entrego, confio,
aceito e agradeço”. (1967).
REFERÊNCIAS

CHEKHOV, Michael. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

DIÉGUEZ, Ileana. Des/tejiendo escenas. Desmontajes: procesos de investigación y


creación. (Compilação). México: Universidad Iberoamericana Ciudad de México, 2009.

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GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio d'Água, 2001.

HERMÓGENES. Autoperfeição com Hatha Yoga. São Paulo: Record, 1967.

LERNER, Isha. O tarô da deusa tríplice. Trad. Carmen Fisher. São Paulo: Pensamento,
2005.

OLIVEIRA, Mônica e TUI, Letícia. Fogo Sagrado. Alinhamento Energético. Apostila


do Curso Básico de Formação, 2009.

STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1990.

VILELA, Nereida Fontes e SANTOS, João Celso dos. Leitura corporal. A linguagem
da emoção inscrita no corpo. Belo Horizonte: Núcleo de Terapia Corporal, 2010.

WILLER, Cláudio (Seleção, tradução e notas). Escritos de Antonin Artaud. Porto


Alegre: LP&M, 1986.
EUBIOSE

António Tavares101

Resumo
No início do século XX surgia no Brasil, por iniciativa do teósofo Henrique José de
Souza, um movimento espiritualista que ele designa como Eubiose. Fundamentado nas
doutrinas e ensinamentos orientais, dinamizados e difundidos no ocidente por Helena
Blavatsky, o corpo doutrinário da Eubiose promove uma nova visão dos horizontes da
espiritualidade fundamentada na realidade dos Mundos Subterrâneos.
Esta comunicação pretende dar a conhecer este novo paradigma do esoterismo
ocidental. A Eubiose insere no pensamento contemporâneo uma linha de força que pode
constituir-se como um poderoso contributo para uma visão holística do Homem, capaz
de moldar o seu futuro numa perspectiva espiritual que contemple a dinâmica previsível
dos acontecimentos futuros.

Palavras-chave: Eubiose, esoterismo, subterrâneo, Agartha, Shambala.

Abstract
In the early twentieth century emerged in Brazil, initiated by the theosophist Henrique
Jose de Souza, a spiritual movement that he designates as Eubiose. Grounded in the
doctrines and Eastern teachings, streamlined and disseminated in the west by Helena
Blavatsky, the Eubiose’s doctrinal body promotes a new vision of spirituality grounded
in the Inner Earth reality.
This paper aims to present this new paradigm of western esotericism. Eubiose inserts in
contemporary thought a line of force that can be a powerful contribution to a holistic
view of Man, able to shape his future in a spiritual perspective that contemplates the
predictable dynamics of future events.

Keywords: Eubiose, esotericism, subterranean, Agartha, Shambala.

101
Investigador – a.t@sapo.pt
“Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.”102
Fernando Pessoa

Desde tempos imemoriais são constantes as referências a uma outra realidade, oculta
aos nossos olhos. Os textos tradicionais de todos os quadrantes são unânimes em referir
duas circunstâncias que marcaram o nosso passado colectivo: o dilúvio e a origem
subterrânea dos povos.
Se relativamente à primeira não subsistem dúvidas quanto às alusões existentes, o
enunciado de uma origem subterrânea da humanidade é gerador de alguma
desconfiança, mesmo entre os esoteristas.
O que é um facto é que se multiplicam de oriente a ocidente, de norte a sul, entre todos
os povos e culturas, as referências a um mundo subterrâneo, origem e fonte de vida, que
mantém nos dias de hoje uma relação com o mundo exterior pautada por um secretismo
absoluto que não permite, nem mesmo às correntes do esoterismo ocidental ou oriental,
um estudo sistemático e aprofundado.
Na tradição Inca, Inti, o Sol, envia um “Povo Dourado” do interior da Terra que, com os
gémeos Manco Capac e Mama Ocllo, fundarão a cidade de Cuzco. Na mitologia
Irlandesa os Tuatha Dé Danann residem no interior da Terra, sendo a partir desse local
que se relacionam com a Humanidade exterior. Para os antigos Gregos e Egípcios as
portas do Mundo Subterrâneo deviam ser franqueadas por todos aqueles que,
libertando-se da sua condição física, procuravam ascender a uma outra realidade
espiritual, eterna e incontingente. As tribos Berberes do norte de África acreditam que o
primeiro homem e a primeira mulher viviam num mundo subterrâneo e nos mitos
Africanos são frequentes os relatos de caçadores que se aventuram em cavernas,
perdendo-se num imenso mundo interior. A tradição portuguesa recorda as moiras
encantadas, ocultas no recôndito das grutas, esperando que os seus príncipes, cavaleiros
cristãos, as libertem do sortilégio a que se acham presas.
Em várias tradições esotéricas a sigla V.I.T.R.I.O.L. assume especial relevância. Na
iconografia alquímica, patente na obra Azoth, atribuída a Basílio Valentim e publicada
em 1613, surge como expressão da frase latina “Visita Interiora Terrae Rectificando

102
Cf. Fernando Pessoa, Poesias, Edições Ática, 9ª edição, Lisboa, 1973, p. 236.
Invenies Occultum Lapidem”, isto é, “Visita o Interior da Terra e Rectificando
Descobrirás a Pedra Oculta”.
Como justificar, então, o distanciamento dos estudiosos relativamente a esta vertente do
esoterismo? Há um motivo evidente no contexto ocidental. A influência da cultura
católica que entende o inferno como morada do mal e o coloca no interior da Terra. É
conhecida a descida aos infernos, no contexto da morte de Jesus, mas ela é tomada
como um percurso transitório, expiatório dos pecados do mundo. A origem do mal é
sempre subterrânea. Nem mesmo a compreensão da etimologia do termo “inferno” –
remetendo para o latim “infernus”, significando “inferior”, “aquilo que está em baixo” –
parece fazer dissipar algum constrangimento na abordagem deste tema.
Mas se isto é um facto no âmbito da nossa tradição cristã, no conspecto de outras
tradições religiosas o interior da Terra não suscita um ostracismo tão evidente. As raízes
para o distanciamento desta questão, por parte de muitas correntes do esoterismo,
devem ser procuradas noutro contexto.
No final do século XIX – por influência do colonialismo, vivendo uma época áurea – o
oriente e as suas tradições misteriosas exercem um fascínio cada vez maior nas
sociedades ocidentais. Proliferam, na Europa e na América, os clubes e os grupos de
reflexão sobre essas tradições longínquas. São organizadas várias expedições e muitos
se aventuram na exploração de outras paragens, legando-nos um profícuo conjunto de
escritos que, ainda nos nossos dias, são referência incontornável para os estudos
orientais.
Supondo que existe algum fundo de verdade na realidade da existência de vida humana
inteligente no interior da Terra e se essa verdade tem sido transmitida ao longo dos
milénios no seio das chamadas “escolas de mistérios”, de oriente a ocidente, por que
motivo o seu conhecimento não se generalizou do mesmo modo que “a constituição
oculta do homem”, tal como postulada pela escola teosófica?
É uma questão para a qual não encontramos resposta imediata. Talvez pela pressão
social exercida no ocidente por uma cultura cristã dominante, mesmo no seio das
escolas esoteristas. Falar abertamente do “inferno” e daquilo que poderá significar – em
termos de demanda espiritual – não seria, certamente, tarefa fácil. Talvez este factor
justificasse, de alguma forma, a necessidade de confinar esses ensinamentos ao escrínio
mais secreto das escolas de mistérios.
O transporte de escravos de África para o Brasil deu origem, naturalmente, à
disseminação dos substractos culturais e religiosos do continente Africano no novo
mundo. Surgiu, deste modo, uma corrente animista muito característica dos povos sul-
americanos e, especialmente, do povo brasileiro. A ritualística Africana fundamentou,
durante os séculos XVIII e XIX, a difusão do candomblé, uma corrente religiosa que
procurava adaptar os cultos africanos à sociedade brasileira. No final do século XIX e
princípio do século XX a Umbanda cria um sincretismo entre o candomblé e o
catolicismo.
O Brasil “oculto” do final do século XIX estava balizado por duas correntes distintas,
mas complementares: a do animismo africano e a da nova corrente da teosofia,
corporizada em Blavatsky e na Sociedade Teosófica, a qual deu origem a vários grupos
de estudo.
Política e socialmente o Brasil atravessa, no final do século XIX uma fase de intenso
crescimento económico e industrial. Os centros privilegiados de Minas Gerais, de S.
Paulo e do Rio de Janeiro convertem-se em focos de atração das povoações do interior.
Com a industrialização crescente ganham corpo as primeiras movimentações operárias.
O rápido crescimento económico motiva uma assimetria social nos principais centros
urbanos onde, em paralelo com o luxo dos grandes palacetes, a vida para os mais
desfavorecidos se torna insustentável. A produção cafeeira ganha preponderância e os
grandes armadores movimentam anualmente milhares de toneladas de carga.
Uma época conturbada, mas de grande dinamismo social e cultural. A independência do
Brasil em 1822 a que se segue, em 1888, a Lei Áurea, abolindo a escravatura,
imprimem à sociedade brasileira um novo élan. O tecido social estava sedento de
novidade e agitava-se num frenesim de renovação e inovação liberto da tutela
portuguesa e do fantasma da escravidão. Novos tempos se avizinhavam. Tempos de
mudança em todos os domínios, incluindo o espiritual.
No início do século XX, mais precisamente durante os anos 20, um pequeno grupo em
Niterói, a “Dhâranâ - Sociedade Mental Espiritualista”, fazia furor nos meios ocultistas.
Para todos os efeitos tratava-se de mais um grupo de estudo da fenomenologia esotérica
para o qual não se previa um futuro muito diferente do de outros que em S. Paulo e no
Rio de Janeiro surgiam e desapareciam periodicamente. Contudo, o grupo vai
ganhando, com o tempo, um dinamismo e um protagonismo crescentes.
Este crescendo fica a dever-se a dois factores principais: por um lado, a figura do seu
dirigente, a quem muitos chamavam “o Professor”, Henrique José de Souza e, por outro,
a tónica colocada nos escritos e ensinamentos divulgados, os quais radicavam numa
reflexão aprofundada sobre tudo aquilo que dizia respeito aos chamados Mundos
Subterrâneos. Henrique José de Souza cria mesmo um neologismo para cunhar o novo
conceito: Eubiose. Para ele “Eubiose é a Ciência da Vida. E, como tal, é aquela que
ensina os meios de se viver em harmonia com as leis da Natureza e, consequentemente,
com as leis universais, das quais as primeiras se derivam”103. Ou seja, para ele, a
Eubiose mais do que um conjunto de ensinamentos dizendo respeito a uma realidade até
aí oculta – Os Mundos Subterrâneos – afirma-se como um modelo de Vida, uma nova
forma de os estudantes do esoterismo se posicionarem face ao mundo que os rodeia.
Esta subtil transposição da fundamentação de um grupo esotérico, de um conjunto
específico de ensinamentos para uma dimensão normativa e ética, é uma das
características distintivas desta nova escola de pensamento.
Anos mais tarde, em 1955, Paulo Strauss, um dos afiliados na Eubiose, pessoa
conhecida e conceituada nos meios sociais, é convidado a pronunciar várias
conferências no Rio de Janeiro. Nelas, Strauss afirma, peremptoriamente, que os discos
voadores são de proveniência intraterrestre e não extraterrestre, como muitos defendiam
na época. Estas revelações produzem grande impacto nos meios esoteristas, mas acabam
por ser a sequência natural dos temas abordados e discutidos entre os eubiotas.
As palestras do comandante Strauss são compiladas pela revista “O Cruzeiro” 104. Um
dos números da revista chega ao conhecimento de um grupo de jovens portugueses que,
em 1956, inicia contactos regulares com o Brasil, conduzindo à difusão da Eubiose em
Portugal. Para esses jovens foi muito importante saber que Henrique José de Souza era
um profundo conhecedor da realidade oculta portuguesa e, particularmente, dos
meandros menos conhecidos da sua história, valorizando essa mesma realidade.
Mas onde a Eubiose ganha todo o seu particularismo é na abordagem que faz da
realidade da existência dos Mundos Subterrâneos e na forma como articula essa
realidade com os ensinamentos esoteristas do oriente e do ocidente. Na verdade, as
referências à existência de um outro mundo no interior da Terra eram conhecidas e
haviam sido objecto de estudo ao longo dos tempos, mas ninguém tinha conseguido
operar uma integração desses saberes com os vários ramos da chamada “Sabedoria
Tradicional”.
Uma das figuras incontornáveis nesta matéria é Saint-Yves d’Alveydre. Ocultista
francês, seria ele a desenvolver uma profunda reflexão em torno da problemática

103
Cf. Lorenzo Paolo Domiciani, revista O Luzeiro, Ano I Nº 5, S. Paulo, Outubro de 1952, p.54.
104
Cf. Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e
ciência no Brasil (1947-1958) – Dissertação de mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2009, p. 175.
respeitante à Sinarquia – tema tão caro à Eubiose e sua doutrina – relacionando-a com a
realidade dos Mundos Subterrâneos e da vida que neles existe. Escreve um vasto
conjunto de obras que designa como “Missões”.
Numa delas, intitulada “A missão da Índia na Europa - Missão da Europa na Ásia - A
questão do Mahatma e a sua solução”, publicada em 1886, Saint-Yves discorre
longamente sobre o misterioso reino subterrâneo de Agartha e a sua estrutura Sinárquica
à frente da qual se encontra um misterioso ser a que ele chama “O Soberano Pontífice
de Agartha”. Aí ele afirma: “A la surface et dans les entrailles de la terre l'étendue
réelle de l'Agarttha défie l'étreinte et la contrainte de la profanation et de la
violence”105. Um imenso reino, oculto aos olhares profanos.
Saint-Yves acaba por destruir o seu livro mantendo apenas duas cópias. Os que com ele
privavam de perto afirmam que estaria preocupado e perturbado por ter revelado
demasiado. Estranha preocupação esta. Revelado demasiado porquê? Que forças ocultas
se movimentariam na época para que essa realidade não fosse conhecida nem
disseminada, mesmo entre os círculos esoteristas? Teria este receio algo a ver com as
alegadas visitas de um denominado grupo de “Iniciados Orientais” recebidos por Saint-
Yves em 1885? Só em 1910, após a sua morte, a “Missão da Índia” volta a ver a luz do
dia, pela mão dos “Amigos de Saint-Yves”.
René Guénon, esoterista francês da primeira metade do século XX, estudioso de todas
as doutrinas hindus, procura lançar uma nova luz sobre os ensinamentos orientais, os
quais, na sua opinião, teriam sido vitimas de interpretações erróneas nos meios
esoteristas do ocidente. É autor de uma vasta obra onde gostaríamos de destacar “Le Roi
du Monde”, publicado em 1927. Nesta obra, Guénon procura reposicionar as matérias
que se relacionam com o misterioso reino de Agartha e o denominado “Rei do Mundo”,
temas sobre os quais se haviam pronunciado outros autores, com destaque para
Ossendowsky.
Nesse livro, Guénon tem algumas reflexões paradigmáticas sobre a realidade dos
Mundos Subterrâneos. Ele afirma: “Entre as tradições às quais fizemos alusão, há uma
que apresenta um particular interesse: encontra-se no Judaísmo e refere-se a uma
cidade misteriosa, chamada Luz. ...Perto de Luz há, segundo se diz, uma amendoeira
(chamada também luz em hebreu) na base da qual existe uma cavidade pela qual se

105
Cf. Saint-Yves d’Alveydre, Mission de l’Inde en Europe, Mission de l’Europe en Asie”, Librairie
Dorbon Ainé, Paris, 1910, p. 28. “À superfície e nas entranhas da terra a extensão real da Agartha
desafia a opressão e a coação da profanação e da violência”.
penetra num subterrâneo, e esse subterrâneo conduz à própria cidade que está
oculta.”106 E, mais adiante, ao deduzir que a luz no ser humano pode estar localizada na
base da coluna vertebral correspondendo à localização da força chamada Kundalini: “O
que parece resultar desta comparação é que a localização de luz na parte inferior do
organismo se refere apenas à condição do «homem pecador»; para toda a humanidade
terrestre, encarada no seu conjunto, passa-se o mesmo em relação à localização do
centro espiritual supremo no «mundo subterrâneo».”107
Outra figura incontornável dessa época é Ferdinand Ossendowsky. Escritor polaco,
membro da Academia Francesa, participa activamente na Guerra Civil Russa. Em 1922
é publicado o livro “Animais, Homens e Deuses” onde relata as suas viagens pela Ásia.
Aí nos dá conta das várias tradições existentes e de como os povos dessa região
entendem a relação com o divino e o misterioso reino de Agartha ou Agharti na sua
designação mongol. Todos esses povos nutrem um profundo amor e respeito pelo Rei
do Mundo, supremo dirigente do planeta, único e verdadeiro Pontífice no sentido
atribuído por Saint-Yves.
É precisamente nesta obra, “Beasts, Men and Gods” que encontramos, no capítulo
XLIX, a conhecida e tantas vezes citada “Profecia do Rei do Mundo em 1890”. Nesse
texto o dirigente do mosteiro de Narabanchi relata a Ossendowsky, no início de 1921, a
aparição do Rei do Mundo aos Lamas do Mosteiro, “favorecidos por Deus”, 30 anos
antes, em 1890. Durante essa visita, o Rei do Mundo faz uma profecia onde afirma,
prevendo acontecimentos futuros projectados para a próxima metade do século: “Then I
shall send a people, now unknown, which shall tear out the weeds of madness and vice
with a strong hand and will lead those who still remain faithful to the spirit of man in
the fight against Evil. ... Then the peoples of Agharti will come up from their
subterranean caverns to the surface of the earth.”108
Sim, o Rei do Mundo enviará, segundo aquela profecia, os povos de Agharti para a
superfície, para guiarem “aqueles que permaneceram fiéis ao espirito do homem na luta
contra o Mal”. Este prometido advento dos povos de Agartha tem fundamentado várias

106
Cf. René Guénon, O Rei do Mundo, Editorial Minerva, Lisboa, 1977, p. 81.
107
Idem, p. 88-89.
108
Cf. Ferdinand Ossendowsky, Beasts, men and gods, E. P. Dutton & Company, 24th Edition, New
York, 1924, p. 313. “Então enviarei um povo, agora desconhecido, que, com mão forte, arrancará as ervas
daninhas da loucura e do vício e guiará aqueles que permanecerem fiéis ao espírito do homem na luta
contra o mal... Então os povos de Agharti sairão das suas cavernas subterrâneas para a superfície da
terra”.
leituras escatológicas dos tempos futuros em paralelo com os escritos apocalípticos de
João de Patmos.
Através dos textos de Henrique José de Souza e de outros eubiotas é possível perceber
que a Eubiose opera uma extensão do conhecimento esotérico através de uma análise
aprofundada da realidade dos Mundos Subterrâneos, promovendo o estudo das suas
diferentes estruturas civilizacionais, humanas e espirituais, integrando esse
conhecimento com as várias vertentes do esoterismo. É esta nova abordagem que
permite compreender temas até há bem pouco tempo inexplicáveis. Onde antes existia
contenção na análise dos dados relacionados com a existência e significado dos Mundos
Subterrâneos, existe, agora, um novo paradigma. Henrique José de Souza afirmava: “O
mesmo Jesus ao dizer que, ‘meu Reino não é deste mundo’ não apontava apenas o Céu
como julgam as religiões ocidentais. Ele queria referir-se a um REINO secreto, que
nem todos os seres da Terra poderão alcançar.”109
A Eubiose postula a existência de uma outra civilização vivendo no interior do planeta,
possuidora de uma estrutura social organizada em função de parâmetros espirituais.
Esse grande grupo humano teria encontrado refúgio no seio da Terra em anteriores
ciclos da nossa vida colectiva. Esta convicção está fundamentada nos relatos das várias
tradições de todos os quadrantes, nos testemunhos diretos e indiretos que até nós
chegaram e na constatação dos fundamentos enunciados pela Eubiose e sua doutrina.
Vivendo uma continuidade civilizacional sem hiatos, após a sua interiorização, essa
humanidade alcançou grande brilhantismo e desenvolvimento em todos os domínios da
sua existência, tanto no plano material como no espiritual. Os laços com o mundo
exterior foram limitados a contactos indirectos sempre pautados pela maior descrição. É
convicção da Eubiose que, no futuro, esses contactos podem atingir níveis e expressões
mais frequentes e consistentes.
A Eubiose defende a noção de que a Terra é um imenso ser vivo, o qual, à semelhança
de um ser humano e na visão oriental da sua constituição, também possui centros
privilegiados. Para a Eubiose existem oito centros planetários relacionados com a
realidade dos Mundos Subterrâneos.
Mais do que locais de acesso a uma realidade interna do planeta, esses centros
universais constituem-se como focos de energia espiritual que, ao longo dos milénios,
dinamizaram toda a sua área de influência. Tomemos, por exemplo, o caso de Portugal.

109
Cf. Henrique José de Souza, revista Dhâranâ, Ano XXX - Nº 13 e 14, S. Paulo, Março a Junho de
1956, p. 17.
Para a Eubiose o quinto centro universal está localizado subterraneamente na área
geográfica da Serra de Sintra. Mas a importância desse centro não será tanto a de ponto
de ligação entre o exterior e o interior, mas, antes e principalmente, a de foco de
irradiação de energias cuja influência planetária se estende a toda a Europa, do Atlântico
aos Urais, e que têm moldado toda a nossa vida colectiva nacional e europeia.
A abordagem da Eubiose não se mostra exclusiva nem se configura como mais
importante que outras, apenas diferente. Ela surge como uma perspectiva abrangente
que fornece as ferramentas necessárias a uma visão inclusiva e holística que pode
sustentar as mais variadas análises de diferentes escolas do esoterismo, permitindo uma
compreensão mais alargada do universo e do devir oculto das coisas.
Fernando Pessoa possuía, sem dúvida, uma ampla e profunda percepção da realidade em
que nos movemos. Subtilmente e com a mesma elegância com que caminhou entre nós,
ele subordina alguns dos seus escritos ao tema “subsolo”, deixando várias pistas,
sugerindo interpretações, motivando a discussão. Não poderíamos terminar sem citar o
poeta quando na sua Mensagem se refere às “ilhas afortunadas”, esse lugar paradisíaco
da mitologia Grega:

“São ilhas afortunadas,


São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.”110
Fernando Pessoa

110
Cf. Fernando Pessoa, Mensagem, Edições Ática, 10ª edição, Lisboa, 1972, p. 86.
REFERÊNCIAS

d’ALVEYDRE, Alexandre Saint-Yves - Mission de l’Inde en Europe, Mission de


l’Europe en Asie, Librairie Dorbon Ainé, Paris, 1910.

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DOMICIANI, Lorenzo Paolo - Conselhos Úteis, Que é Eubiose e o mistério dos ciclos,
Revista O Luzeiro, Ano I Nº 5, S. Paulo, Outubro de 1952.

GUÉNON, René - O Rei do Mundo, Editorial Minerva, Lisboa, 1977.

OSSENDOWSKY, Ferdinand - Beasts, men and gods, E. P. Dutton & Company, 24th
Edition, New York, 1924.

ROSO DE LUNA, Mario – El Libro que mata a la muerte, Editorial Eyras, Madrid,
1981.

SANTOS, Rodolpho Gauthier dos - A invenção dos discos voadores. Guerra Fria,
imprensa e ciência no Brasil (1947-1958), Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2009.

SOUZA, Henrique José de - O Verdadeiro Caminho da Iniciação, Sociedade Brasileira


de Eubiose, S. Lourenço, 2001.

SOUZA, Henrique José de – A Eterna Tradição, Revista Dhâranâ, Ano XXX - Nº 13 e


14, S. Paulo, Março a Junho de 1956.
EL MOVIMENTO GNÓSTICO CRISTIANO UNIVERSAL DE SAMAEL AUN
WEOR: DEL OCULTISMO POS-TEOSÓFICO AL NEO-GNOSTICISMO
WEORITA
SAMAEL AUN WEOR'S UNIVERSAL CHRISTIAN GNOSTIC MOVEMENT
FROM POST-THEOSOPHICAL OCCULTISM TO WEORITA NEO-
GNOSTICISM.

Carolina Tamayo Jaramillo (U. DE. A.)111 112

Resumen:113
Organizaciones actuales en varios lugares del mundo, se presentan como la
personificación del gnosticismo que inició en los preludios del Cristianismo, como
interpretación disidente y esotérica del papel salvífico de Jesús (y la figura del Cristo).
Una de estas organizaciones es el Movimiento Gnóstico Cristiano Universal de
Colombia.
En 1961, Víctor Manuel Gómez Rodríguez (1917-1977) conocido como “Samael Aun
Weor”, fundó el Movimiento Gnóstico Cristiano Universal de Colombia en Ciénaga,
Magdalena. En la ciudad de Medellín, Colombia maniobran grupos que se presentan
como neo-gnosticismo weoritas, y que la autora plantea en un contexto de
secularización de lo esotérico y enmarcado en la “Nueva Era”, con una fuerte influencia
(casi el alma de la Nueva Era) del esoterismo no tradicional (ocultismo) y componentes
orientales.

Palabras Clave: Gnosticismo, Samael Aun Weor, Nueva Era, Ocultismo, esoterología.

Summary114
Current organizations around the world are introduced as the embodiment of
Gnosticism that had its origins when Christianism became as a dissident and esoteric
interpretation of Jesus' saving role (and the figure of the Christ). The Universal
Christian Gnostic Movement of Colombia is one of these.
In 1961, Víctor Manuel Gómez Rodríguez (1917-1977), known later by his esoteric
name “Samael Aun Weor”, founded the Universal Christian Gnostic Movement of
Colombia in Ciénaga, Magdalena. In Medellín, Colombia there are some groups
referred to as Weorita neo-Gnosticism and which the author brings up in a
secularization context of esotericism set within the “New Age”, with a strong influence

111
Antropóloga, Universidad de Antioquia. Grupo de Investigación Religión, Cultura y Sociedad-RCS y
Miembro del Centro de Estudios sobre el Esoterismo Occidental de la CEEO-UNASUR. E-mail:
carolina_tamayojaramillo@hotmail.com.
112
Anthropologist, University of Antioquia. Research Group Society, Culture, and Religion - RCS and
Member of the -CEEO-UNASUR Study Center about Western Esotericism. E-mail:
carolina_tamayojaramillo@hotmail.com.
113
El material de este articulo está basado en el trabajo de grado de la autora (del que se han hecho
algunas publicaciones), titulado: “Gnosce te ipsum: un análisis antropológico de la Iglesia Gnóstica
Cristiana Universal de Colombia desde la perspectiva de la esoterología”, la cual constituye el documento
de informe final de la investigación de pre-grado para obtener el título de Antropóloga, realizada en la
Universidad de Antioquia (Medellín, Colombia) entre el 2010-2012, bajo la asesoría del Dr. Johann
Hasler. .
114
The material from this article is based on the author's thesis -from which several publications have
been made- called: “Gnose te ipsum: an anthropologic analysis about the Universal Christian Gnostic
Church of Colombia from the esoterology's approach.” This document constitutes the degree research
final paper for acquiring the Anthropology degree, achieved at University of Antioquia (Medellín,
Colombia) 2010-2012, under the supervision of PhD. Johann Hasler.
(nearly the New Age's soul) of non-traditional esotericism (occultism) and Eastern
components.

Key Words: Gnosticism, Samael Aun Weor, New Age, occultism, esoterology.
Antecedentes:
Cuando en el año 2002, comienzo a frecuentar una serie de reuniones en la ciudad de
Medellín, para leer unos compilados que denominábamos de “ocultismo”, no
sospechaba que estaba adentrándome en uno de los movimientos ocultistas con mayor
impacto en el país. Este movimiento que era conocido entre nosotros de forma escueta
como: “La gnosis”, se alimentaría y engrosaría a su vez diversos grupos nacientes no
solo en el país si no fuera de él.
Para entonces, esta palabra (Gnosis) representaba ampliamente una doctrina específica,
que estaba remitida por un guía espiritual conocido como el Venerable Maestro Samael
Aun Weor, y abogaba por un conocimiento especial omnisciente.
Para el presente escrito nos centraremos primordialmente en el objetivo que buscaba
analizar la doctrina de la gnosis weorita y su relación con el gnosticismo tardío y
algunas corrientes teosóficas y pos-teosóficas influyentes en su formación en la ciudad
de Medellín.

La Gnosis Weorita En Las Espiritualidades Esotéricas Occidentales 115


Para nuestra investigación, el concepto de «esoterismo» será retomado desde el
investigador del esoterismo occidental Antoine Faivre, quien prefiere utilizar la
expresión «espiritualidad esotérica», evocando con ello un conjunto de actitudes que
están presentes en formas comparables de espiritualidad (Faivre et al, 2000).

El esoterismo se expresa entonces como otra forma de pensamiento, que se manifiesta


por unas condiciones particulares de espiritualidad y de orden, lo que nos permite hablar
de «perspectivas esotéricas», en las que sobresale un conocimiento interno o espiritual
que está reservado a un grupo limitado, cuya especial tarea es la búsqueda incesante de
la gnosis116, que es un conocimiento directo sobre verdades cosmológicas y metafísicas,

115
El siguiente apartado se encuentra basado en el capítulo «Las Instituciones Gnósticas De Medellín:
Del Fundador Iluminado A Los Discípulos Restauradores» de Tamayo y Hasler (2016) en Bubello, Juan
Pablo; Chaves, José y de Mendonca Junior, Francisco (eds.) Estudios sobre la historia del Esoterismo
Occidental en América Latina: enfoques, aportes, problemas y debates, México-Buenos Aires, UNAM-
UBA, en prensa.
116
La palabra gnosis como la de esoterismo, es semánticamente indeterminada, dentro de este texto puede
hacer alusión a la característica fundamental del esoterismo occidental como lo indica Verluis. A su vez
puede hacer referencia al gnosticismo (vale recordar que el gnosticismo tuvo sus primeros fundamentos
posiblemente en el s. I, desarrollándose más plenamente y logrando su apogeo en el s. II y con influencias
y diseminaciones importantes en el s. III). Finalmente la palabra gnosis puede hacer alusión al
gnosticismo weorita, que presenta la creencia en un conocimiento especial (característica del esoterismo
occidental) y a su vez incorpora en su enseñanza preceptos del gnosticismo antiguo, aunque esto no lo
diferente al conocimiento racional o epistémico, que busca comprender aspectos de la
existencia velados o invisibles. Las tradiciones esotéricas tienden a pertenecer también a
una de dos corrientes espirituales: externas, interesadas en los misterios cosmológicos, o
internas, inclinadas a conocimiento espiritual o conocimiento de lo divino (metafísico)
(cfr. Verluis: 2007).

Faivre, como resultado sus estudios históricos y tipológicos, define seis características
básicas de la «espiritualidad esotérica», de las cuales cuatro son condicionantes para que
un material intelectual sea entendido como esotérico. Ellas son: el principio de
correspondencia, la noción de la naturaleza viva, el poder de mediación de la
imaginación, y la experiencia de la trasmutación. Las otras dos características no
resultan fundamentales para la definición de la categoría de esotérico: se trata de la
práctica de la concordancia y la transmisión. (Faivre et al., Op. cit.:18-19).

Para Vicente Merlo (2007) en el s. XX el panorama esotérico se inunda de


organizaciones, autores, escuela, corrientes, dándose un renacimiento importante de la
astrología, la alquimia y el tarot, luego la teosofía cristiana y el estudio de kábala, las
fraternidades rosacrucistas, organizaciones próximas al anuncio de la Nueva Era como
La Gran Fraternidad Universal de Reynaud de la Ferriére, Gran Fraternidad Blanca y La
Gnosis de Samael Aun Weor, y otro grupo compuesto por Bailey y organizaciones
influenciadas por ellos, que han dado un salto entre los intereses por la Jerarquía
planetaria hasta la Jerarquía Galáctica (canalizaciones y contactos con organizaciones
extraterrestres).

Para el caso de la gnosis de Samael (transcribimos de forma casi completa [sin notas
explicativas] el subcapítulo «V. Aproximaciones a la doctrina de las organizaciones
neo-gnósticas colombianas» escritas en coautoría con el Dr.Hasler:

[…] el hombre está influenciado por los planetas y los astros, como en la máxima
Hermética que reza “como es arriba es abajo”, siendo cada uno de estos elementos
del macrocosmos importante en un momento cronológico específico del tiempo vital
del ser humano que es a su vez un microcosmos […]

hace un gneo-gnosticismo, ya que no puede hacerse un seguimiento histórico y continúo que los
relaciones más de lo que relacionaría otros grupos ocultistas.
El hombre está predispuesto a leyes como “La Ley De la Causa y el Efecto”, “La
Ley del Eterno Retorno”, “La Ley del Karma” o “La Ley de la Evolución e
Involución” […]

Por tanto la conducta del ser humano en la Nueva Era de Acuario es considerada por
momentos como descendida, excesivamente materialista, y libertina en aspectos
sexuales, al no tenerse la capacidad espiritual de desenvolverse de acuerdo con las
energías y vibraciones positivas que la Nueva Era emana, viéndose condicionado
por fuerzas que él no comprende, por estar en un estado de catalepsia espiritual.

En correspondencia con ello, Samael se denominaba a sí mismo como el Maestro o


Avatara enviado por la Logia Blanca, conformada por arcángeles, ángeles, maestros
y dioses, dispuestos a ayudar la humanidad, para enseñar o mostrar al iniciado (que
en sí es una experiencia directa) el secreto para comprender las energías del
macrocosmos y las del mismo hombre, de encarnar al Cristo que es considerado
como un principio impersonal […] que es en definitiva la que permite retornar al
Absoluto o al Ser.

El Absoluto envía a través de la vía láctea ubicada en otras dimensiones diferentes a


la nuestra, chispas de energía (esencia) que al llegar a la tierra ocupan un cuerpo
físico. Esta esencia debe desarrollarse espiritualmente sin ser atrapada y fragmentada
por el ego (demonios psicológicos) [….] Para construir los cuerpos luminosos es
necesario llevar a cabo Los Tres Factores de la Revolución de la Consciencia: 1)
Muerte Mística, 2) Nacimiento Alquímico y 3) el Sacrificio consciente por la
humanidad.

(Tamayo y Hasler, Óp. Cit., 386-


391)

Luego de revisar rápidamente la doctrina gnóstica podemos concluir que en el panorama


esotérico del que el Movimiento Gnóstico bebió ampliamente con o sin aceptación
oficial es muy heterogéneo, pues agrupa organizaciones de naturaleza tradicional como
el caso del gnosticismo antiguo (sin ser un gnosticismo resurgido), y de aquellas no tan
tradicionales, de posturas ocultistas como fue La Sociedad Teosófica, o del esoterismo
cristianizado como las fraternidades rosacruces, en especial la de Arnold Krumm-
Heller, o de obras como las de Eliphas Levi, de Georgi Gurdjieff, entre otras.
El antropólogo José Álvaro López Bella en su tesis de doctorado sobre el Movimiento
Gnóstico en España titulada «Un estudio de Antropología social de las organizaciones:
El caso del M.G.C.U. (Movimiento Gnóstico Cristiano Universal)» (2008), persigue
esta misma idea sobre las fuentes que se valió el ocultismo de Samael, dando un paso
más al intentar delimitar que elementos pudo retomar las organizaciones gnósticas de
cada una de estas escuelas, analizando múltiples textos. Por ejemplo en su examen de un
discurso corto (aparente conferencia): «Guía sobre los sueños», escrito por Gómez:

Con la mención de distintos “capítulos”, el texto evidencia que no es la conferencia


transcrita que en general las guías pretenden ser. Tal vez ni siquiera pertenece todo
él a una sola obra de Víctor Manuel Gómez. E incluso puede que atribuir al
venerable maestro Samael su autoría última sea pecar de optimismo. Detallo por qué
[…] Respecto a la Teosofía y la Antroposofía señala, de acuerdo con lo que he leído
en otras obras de Samael, que sus influencias impregnan la enseñanza por completo
[…] En esta guía, el rastro de ambas escuelas es sutil: las menciones de Platón o
Beethoven como iniciados son típicas del esoterismo europeo en la líneas de Rudolf
Steiner (fundador de la Antroposofía); la referencia a Isis, en tal contexto, es
claramente teosófica […] los valores son formulaciones especificas del debe y el
haber karmáticos, conceptos que los teósofos popularizaron en Occidente; la
orientación norte-sur del lecho, un tópico extendido en el mundillo paracientífico
por idéntica pandilla […] Por lo que atañe a G.I. Gurdjieff y el Cuarto Camino,
Elías indica que sus ideas constituyen parte substancial de lo que Víctor Manuel
Gómez hadado de llamar gnosis […] Así, esos elementos indeseables (a eliminar
por la diosa) son elaboración peculiar del yo múltiple gurdjieffiano; los centros del
organismo; el Rayo de la Creación, el recuerdo de sí, las octavas, la recurrencia, los
ejercicios retrospectivos, el estado de alerta, las comparaciones con parábolas
evangélicas, el hombre despierto como objetivo o los aspectos del Ser individual en
apariencias desconectados del sujeto ordinario, también remiten al Cuarto Camino.
Gómez plagia sin recato hasta los palabros inventados por Gurdjieff: Triamazicamno
(el santo afirmar, santo negar, santo conciliar o la Ley del Tres […] Okinanokh
(emanación del Sagrado Absoluto Solar […] (López, 2008, p. 218 del Volumen II)

Como no lo indicó López tal vez el autor que Samael más retomaría sería I. Gurdjieff,
para explicar su vinculación nos basaremos en los apartes finales del artículo de
PierLuigi Zocatelli: “Note a margine dell’influsso di G.i. Gurdjieff su Samael Aun
Weor” (2005):
La influencia teórica en la obra de Samael de la enseñanza de Gurdjieff,
principalmente aquellas referidas a la magia sexual, que no es largamente discutida
en la obra de este último por parte de quienes le estudian o siguen, pero que aparece
en la obra de Samael casi literal, debido tal vez a que la magia sexual no es el tema
prioritario en la doctrina del Cuarto Camino, como si lo es en la doctrina weorita.
Desde esta perspectiva la sexualidad es vista en estrecha relación con lo
trascendente, que en Gurdjieff hace alusión a una «alquimia interior».

Consideraciones
El primer aspecto indagado en el presente trabajo fue la clasificación de las
organizaciones gnósticas como instituciones, movimientos o espiritualidades de
características esotéricas. De tal aspecto se pudo concluir que las organizaciones
weoritas cumplen con una primera actitud para ser denominadas «espiritualidades
esotéricas», pues presenta cualidades concretas en las que sobresale la presencia de un
conocimiento interno o espiritual que está reservado a un grupo limitado, cuya especial
tarea es la búsqueda de la gnosis.

El segundo aspecto indagado en el presente trabajo fue lo relacionado con las posibles
organizaciones, movimientos y pensadores esotéricos del que el gnosticismo weorita
retomó aspectos esenciales para su formación, logrando concluir que el panorama
esotérico del que el Movimiento Gnóstico y algunas instituciones gnósticas actuales
bebieron ampliamente con o sin aceptación oficial es muy diverso, pues agrupa
organizaciones de naturaleza tradicional como el caso del gnosticismo antiguo (sin ser
un gnosticismo resurgido), y de aquellas no tan tradicionales, de posturas ocultistas
como fue La Sociedad Teosófica, o del esoterismo cristianizado como las fraternidades
rosacruces, en especial la de Arnold Krumm-Heller, pero siendo la obra de Georgi
Ivanovitch Gurdjieff lo que compone uno de los elementos principales de lo que se ha
denominado como gnosis weorita.
History:
Back in 2002, when I start to frequent a series of meetings in Medellín in order to read a
collection of titles we designated as “occultism”, I had no clue I was getting into one of
the occultist movements with the highest impact in my country . This movement known
plainly among us as: “gnose” would nourish and thicken through its many rising groups,
not only within the country but also out of it.
This word (Gnose), by then, widely represented a specific doctrine that was led by a
spiritual guide known as the Venerable Master Samael Aun Weor, and it pleaded for an
omniscient special knowledge. As for the current paper, we will basically focus on the
Weorita gnose doctrine and its relation with the late-gnosticism, and some influential
theosophical and post-theosophical trends for its constitution.

Weorita Gnose In Esoteric Western Spiritualities 117


In concerning our investigation, the concept of «esoterism» will be taken up again by
the Western esoterism researcher Antoine Faivre, who prefers using the expression
«esoteric spirituality» Through this he evokes a set of attitudes present in comparable
ways of spirituality. The esoterism is expressed then as another way of thinking
manifested by peculiar order and spirituality conditions, which allows us to talk about
«esoteric perspectives. » In such, an inner knowledge or spiritual stands out which is
reserved to a limited group whose special task is an everlasting search for the gnose118, a
direct knowledge about metaphysical and cosmological truths, other than the rational or
epistemic knowledge, which wants to understand unseen or seen aspects of existence.
Esoteric traditions tend, as well, to be part of one out of two spiritual trends: the
external ones, focused on cosmological mysteries or the internal ones, leaning towards
divine (metaphysical) or spiritual knowledge (cfr. Verluis: 2007).

117
The following section is based on the chapter «Medellin Gnostic Institution: From the Enlightened
Founder to the Restoring Disciples» from Tamayo y Hasler (2016) inside Bubello, Juan Pablo; Chaves,
José y de Mendonca Junior, Francisco (edi.) Studies on the history of Western esotericism in Latin
America: approaches, contributions, issues and debates, Mexico and Buenos Aires, UNAM-UBA, in
press.
118
Just like esoterism, the word "gnose" is semantically undetermined. Within this context it might refer
to the fundamental feature of Western esoterism as indicated by Verluis. At the same time, it might refer
to Gnosticism -let us bear in mind, the foundation of Gnosticism dates back to I AD, being fully
developed and reaching its zenith by II AD and with influences and substantial spreads in III AD. Finally,
the word "gnose" might refer to Weorita Gnosticism introducing the belief of a special knowledge (quite
peculiar about Western esoterism) and, at the same time, incorporating within its teachings precepts from
ancient Gnosticism. It does not make a neo-gnosticism though, since you cannot make a historical and
continuous tracking that relates them way more than it would other occultist groups.
As a result of his typological and historical studies, Faivre defines six basic features of
«esoteric spirituality», four of which are determining for an intellectual material to be
understood as an esoteric one. Such features are: correspondence principle, living nature
notion, imagination mediation power, and transmutation experience. The other two
features are not essential for defining the category of esoteric: it is about experiencing
concordance and transmission. (Faivre et al., Op. cit.:18-19).

For Vicente Merlo (2007) the whole esoteric scene is flooded with organizations,
authors, schools, and currents by XX century. It brings an important Renaissance for
astrology, alchemy and tarot. After that, Christian theosophy and the kabbalah study,
Rosicrucian fraternities, organizations close to the New Age ideology like Reynaud de
la Ferriére Great Universal Brotherhood, Great White Brotherhood and Samael Aun
Weor's Gnose, and yet another group composed by Bailey and organizations influenced
by them that have taken a leap from up the ladder for the Planetary Hierarchy all the
way for Galactic Hierarchy (canalizations and contact with other alien organizations).

For Samael Gnose's suggests as organizations close to the New Age becomes vital in
principle for providing quick indications about the doctrine system with observations of
possible influences. We almost fully transcribed subchapter «v. Approaches to the
doctrine of neo-gnostic Colombian organizations» written under shared authorship with
PhD. Hasler.:

According to Samael's gnosticism, man is influenced by planets stars, just like the
Hermetic maxim that reads “‘As below so above”, being each one of these
macrocosmos elements important at a specific chronological moment of vital time of
the human being who is, at the same time, a microcosmos[…]

Men is predisposed to laws such as “Cause and Effect Law”, “Eternal Return Law”,
“Karma Law” or “Evolution and Involution Law” […]

Thus, human behavior in Aquarius New Age is considered, at moments, as


descended, excessively materialistic, and liberal in sexual matters, by lacking the
spiritual capacity of evolving according to positive energies and vibrations that the
New Age emanates, finding himself conditioned by forces he cannot understand
because of being in a spiritual catalepsy state.

In accordance with that, Samael called himself the Master or Avatara sent by the
White Lodge, consisting of archangels, angels, masters and gods willing to help
mankind, in order to teach or show the initiate (which is already a direct experience)
the secret for understanding the energies of the macrocosmos and those of man
himself, for embodying the Christ who is considered as an impersonal principle, “a
cosmic substance diluted in all spaces of infinite with several expressions in several
Galaxies and Worlds according to the life system of every mankind” (Villegas
Quintero, 1980, p. 220), which, in short, allows him to return to the Absolute or to
the Self.

The Absolute sends, through the Milky Way, located in other dimensions other than
ours, sparks of energy (essence) that when reaching the Earth are hosted by a
physical body. This essence must spiritually be developed without being caught or
fragmented by the ego (psycholocal demons) or building Christic or light bodies in
every existing dimension, allowing to reach places where definite illumination will
be sought without requiring any sort of body […] For building light bodies it is
required to carry out the Three Factors of Consciousness Revolution: 1) Mystic
Death, 2) Alchemic Birth and 3) conscious Sacrifice for Mankind.

(Tamayo & Hasler, Op. Cit., 386


391)

After a quick review on the gnostic doctrine, we might conclude that the acceptance, or
rejection, within the esoteric scene of the Gnostic Movement was widely heterogeneous,
for it encompasses organizations of traditional nature -just like ancient gnosticism
(without it being a reloaded gnosticism)-, and those not as traditional, those of occultist
stances like the Theosophical Society or the christianized esoterism like Rosicrucian
Brotherhoods, especially Arnold Krumm-Heller's, or works like Eliphas Levi's, de
Georgi Gurdjieff's, among many others.

In his doctorate thesis about the Gnostic Movement in Spain named «An anthropologic
social study about organizations: the case of U.C.G.M. (Universal Christian Gnostic
Movement)» (2008), anthropologist José Álvaro López Bella goes after this same idea
about the sources Samael's occultism used, taking an additional step ahead by trying to
define what elements could he retrieve from the gnostic organizations from each one of
these schools by analyzing multiple texts. For example, in his assessment of a short
speech (an apparent conference): «Guide about dreams», written by Gómez:

1. By mentioning several “chapters”, the text proves it is not the transcripted


conference that, in general, guides intend to be. Perhaps, all of it does not eve belong
to a single work of Víctor Manuel Gómez. And even attributing its utter authorship
to venerable maestro Samael would be a bit too optimistic. Let me elaborate why
[…] Concerning Theosophy and Anthroposophy he remarks, according to what he
has read in other works of Samael, his influences impregnate teaching altogether
[…] In this guide, the traces of both schools is subtle: mentions of Plato or
Beethoven as initiates are typical from the European esoterism in the lines of Rudolf
Steiner (founder of Anthroposophy); references about Isis, in such a context, is
clearly theosophical […] values are specific formulations of karmatic being and
must, concepts theosophists made popular in the West; layer's north-south
orientation, a well-extended subject in the little prescientific world by identical load
[…] So it does concern G.I. Gurdjieff and the Fourth Path, Elías states his ideas are
a substantial part of what Víctor Manuel Gómez has proceeded to call gnose […]
Thereby, those undesirable elements (to be suppressed by the goddess) are a
peculiar production of the multiple Gurdjieffian self; the organism centers; the
Creation Beam, the memory of oneself, the octaves, the recurrence, the retrospective
exercises, the state of alert, the comparisons to evangelic parables, the awake man as
a goal or the individual aspects of the Self in appearances disconnected from the
regular individual, these also refer to the Fourth Path. Gómez shamelessly
plagiarizes even the made-up words created by Gurdjieff: Triamazicamno (el santo
afirmar (St. Stating), santo negar (St. Denial), santo conciliar (St. Conciliation) or
the Three Law […] Okinanokh (emanation from the Solar Sacred Absolute […]
(López, 2008, p. 218 from Vol. II)

As pointed out by López perhaps the author Samael would take up the most would be I.
Gurdjieff. In order to explain their connection, we will be based on the latter paragraphs
of Pier-Luigi Zocatelli's article: “Note a margine dell’influsso di G.i. Gurdjieff su
Samael Aun Weor” (2005):
The theoretical influence in Samael's work about Gurdjieff's teaching, mainly those
referred to sexual magic, which is not extensively discussed in Gurdjieff's work by
those following or studying him, but that does appear in Samael's work almost literally,
perhaps, because sexual magic is not the priority topic in the Fourth Path doctrine,
which definitely is in Weorita doctrine. From this perspective, sexuality is seen in a
very close relation with transcendence, a thing that in Gurdjieff insinuates as an «inner
alchemy».

Considerations
The first inquired aspect in this paper was the classification of gnostic organizations as
institutions, movements or spiritualties of esoteric characteristics. From such aspect, it
could be concluded that Weora organizations meet an initial requirement to be
considered as «esoteric spiritualties», since they show specific qualities where the
presence of an inner or spiritual knowledge, reserved for a limited group of people,
outstands and whose special task is the search of the gnose.
The second inquired aspect in this paper was about what was related with possible
organizations, movements and esoteric thinkers from which the Weoritan gnosticism
took up some essential aspect for its foundation, concluding then that the esoteric scene,
from which the Gnostic Movement and some current gnostic institutions widely drank
up from, with or without official approval, is very diverse, , for it encompasses
organizations of traditional nature -just like ancient gnosticism (without it being a
reloaded gnosticism)-, and those not as traditional, those of occultist stances like the
Theosophical Society or the christianized esoterism like Rosicrucian Brotherhoods,
especially Arnold Krumm-Heller's, but Georgi Ivanovitch Gurdjieff's constitutes one of
the main elements on what has been denominated as Weorita Gnose.
REFERÊNCIAS

Faivre, Antoine. (1994). Access to western Occidental. Estados Unidos: Edit. SUNY
Press.
---------------------y Needleman, Jacob (compiladores) (2000). Espiritualidades de los
movimientos esotéricos modernos. Barcelona: Edit. Paidós Orientalia.

Jonas, Hans. (2000) La religión gnóstica. El mensaje del Dios Extraño y los comienzos
del cristianismo. Madrid, España: Edit. Siruela.

López, José. (2008) Un estudio de Antropología Social de las organizaciones: El Caso


del M.G.C.U (Movimiento Gnóstico Cristiano Universal) Vol. I y II. Tesis de
doctorado. Departamento de Filosofía y Antropología Social Universidad de Santiago
de Compostela, España.

Merlo, Vicente. (2007). La llamada (de la) Nueva Era. Barcelona, España: Edit. Kairós.

Tamayo, Carolina y Hasler, Johann (2012). El Movimiento Gnóstico Cristiano universal


de Colombia: un movimiento Esotérico internacional nacido en Colombia. Cuestiones
Teológicas. Vol. 39. No. 92. Julio-Diciembre 2012. pp. 373-393.

Tamayo, Carolina y Hasler, Johann (2016). en Juan Pablo Bubello, José Ricardo
Chaves, Francisco de Mendonca Junior (eds.), Estudios sobre la historia del Esoterismo
Occidental en América Latina: enfoques, aportes, problemas y debates, México-Buenos
Aires, UNAM-UBA, en prensa.

Verluis, Arthur. (2007). Magic and Mysticism: An Introduction to Western Esotericism.


Edit. Lanham, MD: Rowman & Littelefield.

Zocatelli, Pier Luigi. (2000). Il paradigma esoterico e un modello di applicazione. Note


sul movimento gnostico di Samael Aun Weor. La crítica Sociológica. No 135, autumno.
ottobre-dicembre, pp. 33-49. Pag. Web: http://www.cesnur.org/2001/plz_weor.htm.
Consultada el: 28 de Septiembre de 2011.

------------------------- - (2005). Note a margine dell’influsso di g.i. Gurdjieff su samael


aun weor. Revista Aries, Vol. 5, No. 2. pp. 255-275.
ESOTERISMO OCIDENTAL E NOVAS RELIGIÕES NO BRASIL: O VALE DO
AMANHECER
WESTERN ESOTERICISM AND NEW RELIGIONS IN BRAZIL: THE
VALLEY OF THE DAWN

Hayes, Kelly (IUPUI)119

Resumo
A religião brasileira chamada Vale do Amanhecer é um novo movimento religioso
internacional conhecido por sua cosmologia eclética e cerimônias de cura espiritual
realizadas por adeptos vestidos com indumentárias deslumbrantes. Fundado no final de
1960 nos arredores do Distrito Federal de Brasília, o Vale do Amanhecer é a criação da
mente visionária de Neiva Chaves Zelaya, carinhosamente chamada Tia Neiva, uma ex-
motorista de caminhão, viúva, e médium clarividente. Junto com Mário Sassi, um
seguidor que renunciou à sua família e vida anterior para se juntar a ela como amante e
codificador intelectual de suas visões, Tia Neiva estabeleceu uma crescente religião
internacional, hoje com mais de 600 templos afiliados em todo o Brasil, bem como na
Europa, Ásia, e os Estados Unidos.
Com base na pesquisa etnográfica original, esta comunicação pretende examinar a
influência do esoterismo ocidental na teologia do Vale do Amanhecer desenvolvido no
contexto do Brasil nos anos 1960 e 1970. Fortemente influenciado por uma literatura
esotérica internacional, Mário Sassi, o arquiteto da teologia do Vale, tentou interpreter e
sistematizar as visões de Tia Neiva, criando uma cosmovisão singularmente brasileira e
universal de esoterismo.

Palavras-Chave: Esoterismo, Vale do Amanhecer, novos movimentos religiosos,


Brasil

Abstract
The Brazilian religion called Vale do Amanhecer is an international new religious
movement known for its eclectic cosmology and collective rituals of spirit healing
performed by adepts in elaborate garments. Founded in the 1960s in the federal district
outlying Brasília, the Valley of the Dawn is the product of the visionary mind of Neiva
Chaves Zelaya, affectionately known as Tia Neiva, a widowed former truck driver and
clairvoyant medium. Together with Mário Sassi, an early convert who renounced his
family and former life to become Tia Neiva’s companion and the codifer of her spiritual
visions, Tia Neiva established an international religion, today with over 600 affiliated
temples throughout Brazil as well as in Europe, Asia, and the United States.
Based on original ethnographic research, this paper examines the influence of Western
esotericism on the theology of the Vale do Amanhecer that developed in the context of
Brazil in the 1960s and 1970s. Mário Sassi, the architect of the Valley’s theology, was
strongly influenced by an international esoteric literature, which he drew on to interpret
and systematize Tia Neiva's visions, creating a form of esotericism that is both uniquely
Brazilian and universal.

Key Words: Esotericism, Valley of the Dawn, new religious movements, Brazil

119
Professor of Religious Studies, Indiana University-Purdue University-Indianapolis, EUA. E-mail:
keehayes@iupui.edu.
Introdução
O Brasil é um terreno fértil para os estudantes do esoterismo ocidental. Idéias e práticas
esotéricas têm florescido no Brasil durante muito tempo, interagindo com as realidades
locais para produzir uma rica variedade de religiões alternativas, terapias espirituais,
modalidades de cura, filosofias, movimentos de arte e literatura. Enquanto este "meio
esotérico" é evidente em centros urbanos como Rio e São Paulo, é especialmente forte
em Brasília, capital do país, conhecido internacionalmente como a "Cidade Mística"120
ou a "Capital da Nova Era" 121 devido à concentração especialmente intensa de
movimentos alternativos, esotéricos e da Nova Era que surgiram desde a construção da
cidade no final da década de 1950. O maior e mais conhecido destes movimentos
místico-esotéricos nos arredores de Brasília é o Vale do Amanhecer, um novo
movimento religioso cujos membros têm construído a sua própria cidade de 30,000
habitantes a 40 quilómetros de Brasília. Oficialmente chamado de Obras Sociais da
Ordem Espiritualista Cristã ou OSOEC, o movimento afirma templos afiliados em todo
o Brasil, bem como na Bolívia, Portugal, Alemanha, Inglaterra, Japão, Estados Unidos e
Caribe.
Conhecido por sua cosmologia eclética e singular estética visual, aparente na
iconografia colorida, arquitetura especializada e adeptos vestidos com indumentárias
deslumbrantes, o Vale do Amanhecer é a criação da mente visionária de Neiva Chaves
Zelaya, carinhosamente chamada Tia Neiva, uma ex-motorista de caminhão, viúva e
médium clarividente. Junto com Mário Sassi, um seguidor que renunciou à sua família e
vida anterior para se juntar a ela como amante e codificador intelectual de suas visões,
Tia Neiva desenvolveu um sistema religioso que assimilou várias idéias presentes no
Brasil durante os anos 1960 e 1970, reconfigurando-os dentro de uma estrutura
teológica fundamentada em grande parte na metafísica Teosófica, no espiritismo
kardecista, e uma versão esotérica do cristianismo enfatizando ensinamentos éticos de
Jesus como uma forma de redenção cármica. A colaboração entre o médium carismático
Neiva e o intelectual Sassi deu origem a um tipo de esoterismo ocidental que é, ao
mesmo tempo, universal e unicamente brasileira, como pretendo mostrar nesta
comunicação.

120
Deis Siqueira, As novas religiosidades no Ocidente: Brasília, cidade mística (Brasília: Editora
UnB/FINATEC, 2003); Deis Siqueira e Ricardo Barbosa de Lima, orgs., Sociologia das adesões: Novas
religiosidades e a busca místico-esotérica na capital do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond, 2003), 144.
121
Robert Carpenter, "The Mainstreaming of Alternative Spirituality in Brazil," in New Religious
Movements in the Twenty-First Century: Legal, Political and Social Challenges in Global Perspective,
edited by Phillip Charles Lucas and Thomas Robbins (New York: Routledge, 2004), 220.
Mário Sassi: Arquiteto Intelectual do Vale do Amanhecer
De acordo com o próprio relato de Mário Sassi, seu primeiro encontro com Tia Neiva
foi extremamente impactante. Já um médium de algum renome local, Tia Neiva tinha
um pequeno centro espírita nos arredores do Distrito Federal de Brasília onde ela dava
consultas e realizava trabalhos espirituais quando Sassi chegou um dia em 1965
accompanhando uma amiga. Sassi sentiu o seu ceticismo habitual desvanecer quando
Tia Neiva contou com precisão detalhes íntimos de sua vida que ele não tinha
confessado a ninguém. Refletindo sobre aquele encontro alguns anos depois, Sassi
descreveu sentindo como se ele tivesse sido invadido por forças desconhecidas. Pela
primeira vez certas coisas na vida dele faziam sentido e um novo mundo se abriu.122
Três anos mais tarde, convencido de que Tia Neiva era um "super-ser" que "representa o
Espírito da Verdade e que sua missão fundamental é nos preparar para o futuro," Sassi
abandonou seu emprego, a esposa e cinco filhos para se-juntar a ela.123 Sua própria
missão seria a de "dar testemunho do Espírito da Verdade," sintetizando as experiências
visionárias de Tia Neiva e criando um sistema doutrinal abrangente das revelações que
ela recebia de seus guias espirituais. 124 Durante os próximos vinte anos, Sassi se-tornou
o filósofo e teólogo da comunidade, dedicando suas habilidades intelectuais para
elucidar a matéria prima da clarividência de Tia Neiva. 125 Esta divisão do trabalho
espiritual continua a estruturar a comunidade hoje na parceria do apara, o médium de
incorporação que recebe espíritos desencarnados e comunica suas mensagens, e o
doutrinador, que usa a razão e persuasão intelectual para ajudar esses espíritos no seu
caminho evolutivo.
Através de uma série de livros auto-publicados e palestras pedagógicas, Sassi tentou
construir uma base metafísica coerente para uma religião emergente cujas crenças e
práticas ainda estavam sendo revelado, apoindo-se no seu conhecimento de espiritismo
e na literatura esotérica popular na época. Ele parece ter sido
influenciado especialmente pelo movimento Teosófico, que tinha havia estabelecido
uma Sociedade Teosófica no Brasil em 1919. De fato, grande parte da cosmologia do
Vale pode ser visto como uma versão abrasileirada de certas ideías chaves encontradas
na Doutrina Secreta de H.P. Blavatsky e na literatura inspirada pela Teosofia. Vou dar

122
Mário Sassi, 2000: A Conjunção de Dois Planos (Brasília: Editora Vale do Amahecer, 1974), 2.
123
Sassi, 2000, 4.
124
Sassi, 2000, 4.
125
Embora, muitas vezes, é difícil diferenciar quais ideias vêm de Sassi e quais vêm das visões de Tia
Neiva.
um breve resumo da metafísica do Vale na próxima seção antes de examinar como Sassi
se inspirou no conceito de "raças-raízes" de Blavatsky para explicar as origens do Vale
do Amanhecer, bem como algumas ideías dos autores brasileiros Chico Xavier e Edgard
Armond.126

A Metafísica do Vale do Amanhecer


Como a Teosofia, o Vale ensina que há sete planos de existência, incluindo as
dimensões espirituais, etéreos (ou psíquicas) e materiais, cada um composto por seu
próprio tipo de matéria-energia. A comunicação entre estes planos, e entre entidades
espirituais e seres humanos, é possível através da prática da mediunidade, que está
disponível a todo ser humano. O universo inteiro (incluindo a Terra e a humanidade)
segue um grande esquema de desenvolvimento evolutivo e espiritual que se desenvolve
em ciclos sequenciais, milenares. A transição entre estes ciclos é marcado por conflitos
sociais, catástrofes ambientais e aumento do sofrimento humano. De acordo com o
Vale, estamos atualmente no limiar da transição para o "Terceiro Milênio".
O motor do processo evolutivo são leis universais como karma e reencarnação.
Enquanto fisicalidade é um estado transitório associado com a existência terrestre, o
próprio espírito é "transcendental," existente antes e depois do corpo físico e, seguindo
as leis do karma, sujeito a reencarnação na Terra, a fim de expiar os erros passados e
aprender lições que vai facilitar a evolução contínua. Como muitos outros grupos
influenciados pela literatura esotérica popular no Brasil, desde que as obras de Allen
Kardec circularam no final do século XIX, o Vale entende a Terra como um lugar de
expiação, onde o indíviduo pode eliminar os débitos cármicos, evoluindo para um
estado mais elevado, ou pode acumular novas dívidas cármicas estendendo assim o
ciclo da reencarnação para o futuro. Reencarnação na Terra não é castigo, mas sim uma
preciosa oportunidade de trabalhar em prol da própria evolução espiritual, bem como a
de todo o planeta. Quando o indivíduo está evoluído ao ponto em que a encarnação na
Terra não é mais necessária, ele continua sua jornada no mundo espiritual até finalmente
chegar à perfeição de sua origem: o Absoluto, Infinito, Imutável Fonte que os
seguidores do Vale identifica com o Deus cristão.

126
Francisco (Chico) Xavier (1910 – 2002) era um conhecido médium brasileiro que psicografou
centenas de livros espíritas. Edgard Armond (1894 - 1982), um líder do movimento espírita em São
Paulo, foi envolvido na codificação e sistematização da doutrina espírita e na fundação de organizações
espíritas no Brasil.
Os seguidores do Vale se consideram membros de uma "tribo" exclusiva, chamada
Jaguares, cujos antepassados espirituais derivam de uma raça de extraterrestres
originalmente enviada à Terra para avançar a evolução cultural e espiritual da
humanidade. Liderados por um espírito de luz altamente evoluído conhecido como Pai
Seta Branca, que é retratado como um pajé ou chefe indígena, esses espíritos passaram
por vários ciclos reencarnatórios ao longo dos milênios, encarnando como guerreiros
espartanos, reis egípcios, soldados romanos, ciganos russos, revolucionários franceses, e
brasileiros coloniais, entre outros. A soma total destas encarnações através do tempo e
do espaço constitui a "herança transcendental" da comunidade - uma espécie de
contabilidade cármica de vidas passadas e suas consequências cármicas. Vestindo
indumentárias especiais que faz referência a episódios nesta herança transcendental, os
seguidores do Vale realizam vários rituais destinados a resgatar o seu karma negativo
antes da transição final para o Terceiro Milénio. Eles acreditam que no Terceiro Milénio
a Terra vai passar para uma nova fase, encerrando a era da redenção cármica. Os
espíritos mais evoluídos, seja encarnado em forma humana ou desencarnado, vão se
reunir no seu verdadeiro berço espiritual, a estrela distante conhecida como Capela, para
nunca mais reencarnar. Enquanto a Terra reverte para um nível espiritual-cultural mais
primitivo, os seus habitantes restantes serão condenados a repetir outro ciclo.127
A influência teosófica no sistema metafísico do Vale é evidente na natureza cíclica do
universo e tudo nele; a evolução da alma humana através de inúmeras vidas
impulsionadas pela força do karma; a estrutura setenária do cosmos; uma hierarquia de
"espíritos de luz" ou mestres altamente evoluídos que orientam os seres humanos ao
longo de seu caminho evolutivo; e a ênfase na sabedoria antiga que remonta ao antigo
Egito e outras civilizações avançadas. Em seguida, vou discutir como Sassi organizou
sua cosmologia com base no conceito de "raças-raízes" de Blavatsky. Embora Sassi não
tenha utilizado o termo "raça raiz," fica claro que sua discussão sobre as várias fases da
evolução cultural e espiritual humana tem com base o modelo de Blavatsky.

127
Veja Kelly E Hayes, "Intergalactic Space-Time-Travelers: Envisioning Globalization in Brazil's
Valley of the Dawn." Nova Religio: The Journal of Alternative and Emergent Religions 16, 4 (2013): 63–
92; Hayes, Valley of the Dawn profile, World Religions and Spirituality Project, posted September 2015.
http://www.wrs.vcu.edu/profiles/ValleyOfTheDawn.htm
As Raças-Raízes
Segundo Blavatsky, as raças-raízes representam as fases principais do desenvolvimento
da humanidade em sua interação com o mundo físico.128 Cada raça-raiz exibe uma
forma diferente da consciência devido a diferentes misturas de componentes físicos e
etéricos (ou espirituais). A primeira e a segunda raças-raízes apareceram nos primeiros
estágios da formação da Terra e eram mais etéreas do que materiais, existente em forma
espiritual em vez de forma corporal e, assim, não deixaram vestígios materiais. Com a
terceira raça-raiz, chamada de Lemurianos, a materialidade começou a superar a
espiritualidade. Uma raça de gigantes com grandes poderes psíquicos que habitou um
continente perdido chamado Lemúria, a terceira raça-raiz entrou em decadência e,
eventualmente, foi destruída quando seu continente submergiu. Dos sobreviventes
surgiu a quarta raça-raiz, chamada Atlante, habitantes do continente perdido de
Atlântida. Embora os Atlantes possuíssem grandes poderes espirituais e tecnológicos,
eles também sucumbiram às tentações da materialidade e do ambiente físico e foram
destruídos em um grande dilúvio, um evento reconstituído em todas as tradições antigas
como o Dilúvio Universal. Em seguida, surge a quinta raça-raiz, a Ariana, que marca o
atual estágio da consciência humana. Dali para frente, escreve Blavatksy, a trajetória
evolutiva inverte-se, passando de crescente materialidade para o aumento da
espiritualidade, um processo que continuará na sexta raça-raiz e culminará na sétima.
De acordo com Blavatsky, a sétima raça-raiz será a última, marcando o fim da evolução
da consciência humana na Terra com a volta à espiritualidade pura. 129
Mário Sassi, em seu livro 2000: A Conjuncão de Dois Planos (1974), apresenta uma
narrativa das origens humanas a partir das revelações de Tia Neiva. Nestas visões, que
assumiram a forma de viagens astrais, Tia Neiva (que aparece como uma personagem
no livro) descobre que a Terra foi colonizada por um grupo de espíritos altamente
avançados do planeta Capela, uma idéia tratada em dois livros espíritas de autoria
brasileira: A Caminho da Luz (1939) de Francisco (Chico) Xavier e Os Exilados de
Capela (1949) de Edgard Armond. 130 Em 2000: A Conjuncão de Dois Planos, estes
espíritos avançados, a quem Sassi denominou Equitumans, receberam a missão especial
128
http://www.themystica.com/mystica/articles/r/root_races.html
129
http://www.themystica.com/mystica/articles/r/root_races.html
130
Francisco Cândido Xavier, A Caminho da Luz: História da Civilização à Luz do Espiritismo, ditada
pelo espírito Emmanuel (São Paulo: Editora FEB [Federação Espírita Brasileira], 1939); Edgard Armond,
Os Exilados da Capela: Esboço Sintético da Evolução Espiritual no Mundo (São Paulo: Editora Aliança,
1987 [1949]). A ideia de que um grupo de seres espirituais avançados veio para a Terra e influenciou o
desenvolvimento da "raça adâmica" também foi um tema em La Genèse, les Miracles et les Preditions
selon le Spiritisme (Paris: Union Spirite Française et Francophone, 1868), de Allen Kardec.
de civilizar o planeta Terra e acelerar a evolução cultural e espiritual da humanidade.
Sassi descreveu os Equitumans como uma raça de seres gigantes, mais etéreos do que
físicos, muito parecido com a terceira raça-raiz de Blavatsky. E, como os Lemurianos,
os Equitumans tornaram-se cada vez mais aprisionados ao mundo físico e aos instintos
inferiores com o decorrer do tempo. Cedendo-se a luxúria e ao desejo de poder, os
Equitumans "começaram a distanciar-se de seus mestres e os planos originais," escreveu
Sassi. 131 No final, eles foram eliminados da Terra num cataclismo provocado quando
Pai Seta Branca bateu sua nave espacial no núcleo central da civilização dos
Equitumans. De acordo com Sassi, o impacto da colisão criou o atual Lago Titicaca,
local de nascimento mítico da civilização Inca. Por esta razão, muitos seguidores do
Vale hoje acreditam que os Incas eram Equitumans.132
Após o desaparecimento dos Equitumans, Pai Seta Branca reuniu os remanescentes
mais puros para continuar o processo civilizatório. Semelhante a quarta raça-raiz de
Blavatsky, esse grupo, os Tumuchys, possuíam habilidades científicas e tecnológicas
muito avançadas. De acordo com Sassi, o principal objetivo dos Tumuchys era a
"manipulação de energias planetárias." Eles conheciam o mecanismo de relações
energéticas entre os corpos celestes e a Terra e construíram pirâmides e outras estruturas
antigas para a integração e desintegração das energias siderais. Eles foram organizados
em sete tribos, cada uma dirigida por um grande chefe chamado Orixá, um termo usado
para divindades veneradas nas religiões afro-brasileiras. "Esta palavra afro-brasileira é
muito adequada," explicou Sassi, porque significa exatamente "divindade intermediária
entre os crentes e a suprema divindade.” 133 Distribuídos em sete centros ao redor do
mundo, os Tumuchys criaram sua sede e "centro de comunicação interplanetária" na
Ilha de Páscoa.
Depois os Tumuchys vieram os Jaguares, o equivalente da quinta raça-raiz. Como a raça
Ariana, os Jaguares evoluíram de um núcleo de Tumuchys. Na história do Vale, os
Jaguares eram "grandes manipuladores de forças sociais" que deixaram sua marca em
vários povos antigos, sendo responsáveis pelas civilizações avançadas dos Maias,
Egípcios, Incas, Romanos, e assim por diante. Esses experimentados espíritos
acabavam, sempre, ocupando posições de mando e se destacavam como reis, nobres,
ditadores, cientistas, artistas e políticos. No decorrer de milhares de anos, os Jaguares

131
Sassi, 2000, 42.
132
Sassi, 2000, 42-43.
133
Sassi, 2000, 47-48.
também se desviaram de sua missão civilizadora, seduzidos pelo poder material.
Finalmente, Deus enviou Jesus à Terra, onde ele estabeleceu o Sistema Crístico de
redenção cármica, baseado no amor incondicional, humildade, perdão e a prática da
caridade ou, como é conhecida no Vale, a "Lei de Assistência."
Segundo Sassi, aqueles espíritos que adotaram o sistema Crística como uma forma de
resgatar o seu karma negativo e voltar à sua missão original ficaram conhecidos como
Jaguares em homenagem a sua encarnação como uma tribo de índios andinos liderado
pelo Pai Seta Branca em sua encarnação terrena final. Desde então, os Jaguares vêm
pagando suas dívidas cármicas em diferentes encarnações no tempo e no espaço, do
Brasil colonial e França revolucionária para as planícies da Rússia no século XIX.
Tendo completado sua jornada evolutiva na Terra, Pai Seta Branca incumbiu Tia Neiva
a dar continuidade a sua missão de ajudar a humanidade na difícil transição para o
Terceiro Milênio. Os adeptos do Vale se consideram Jaguares atuais, reunidos por Tia
Neiva, de acordo com a missão de Pai Seta Branca. Seguindo o exemplo de Jesus
através da prática do amor, tolerância, humildade e perdão, os seguidores do Vale
acreditam que podem recuperar o karma negativo por eles acumulado ao longo de
vários ciclos de vida e, eventualmente, voltar a sua origem.

Esoterismo com um Toque de Brasilianidade


Como este breve resumo indica, Mário Sassi utilizou uma mescla de ideias esotéricas e
espiritualistas na construção de uma cosmologia que colocou os seguidores do Vale no
centro de um drama cósmico e universal. Ao mesmo tempo, o Brasil tem um papel
muito especial neste drama não apenas como um local importante para a redenção
cármica no passado do Jaguar, mas também como o berço de uma eflorescência
espiritual iminente. Em suas visões, Tia Neiva ficou sabendo que o Brasil "constitui a
reserva espiritual do futuro" já que o Brasil possui as "características espirituais" que irá
"permitir a retomada de novos ciclos." A prova disso, segundo os mentores espirituais
de Tia Nevia, é a capacidade da cultura brasiliera para absorver muitos povos diferentes,
a "vivacidade natural" do brasileiro, e a "religiosidade natural dele, sem a rigidez
dogmática."134 Seguidores do Vale acreditam que o Brasil será um centro importante na
evolução da consciência humana, um evento que eles se referem como o Terceiro
Milênio.

134
Sassi, 2000, 44.
Ainda mais, a situação política no Brasil naquela época representava o mais recente
campo de batalha nessa luta milenar. A turbulência da década entre 1960 e 1970, que
presenciou a renúncia do presidente Jânio Quadros, um golpe que derrubou o seu vice-
presidente João Goulart, e o estabelecimento de um regime militar que duraria até 1985,
foi, segundo Sassi, nada mais do que a manifestação de um drama primordial que
começou milênios atrás quando um grupo de Equitumans se revoltaram contra seus
mestres e fugiram para o plano etérico, onde permaneceram desde então. Deturpados
pelo ego e pelo desejo de poder, esses espíritos maliciosos, conhecidos como Falcões no
Vale, continuaram a sua luta ao longo dos tempos, trabalhando através dos políticos e
golpistas para realizar os seus planos para o domínio terrestre.135
Sabendo disso, os guias espirituais de Tia Neiva tinha avisado a ela que os Falcões
representavam uma ameaça tanto para o Brasil quanto para o Vale do Amanhecer. "Os
Falcões são hábeis em política, formam um grupo especializado," um espírito chamado
Johnson Plata informou Neiva. "Sua capacidade de influenciar os homens públicos é tão
grande que, muitas vezes, esses homens são tomados de verdadeira alucinação e
cometem os maiores desatinos."136 Quando a influência dos Falcões era forte, eles eram
capazes de perturbar "a vida político-administrativa do país, como estão fazendo
atualmente."137 Num determinado dia, Johnson Plata aconselhou Tia Neiva a
deslocalizar sua comunidade temporariamente, avisando:

Aquela beira de estrada para Brasília vai-se tornar muito perigosa nos
próximos dias. A atual administração de seu país está praticamente
dominada pelos Falcões, e estamos envidando todos os esforços para que o
problema brasileiro seja equacionado sem sangue. Uma das alternativas é a
renúncia do atual Presidente. Mas, isso irá acarretar problemas de outra
natureza, pois o Vice-presidente está sujeito à deturpação do seu poder. Há,
pois, muita probabilidade de uma revolução. Por isso, queremos que nossa
tribo se afaste dali. Nossa missão é muito delicada e não podemos nos
arriscar.138

135
Sassi, 2000, 29.
136
Sassi, 2000, 30.
137
Sassi, 2000, 28.
138
Sassi, 2000, 29-30. Isso reflete os eventos reais do início dos anos 1960, que presenciou a renúncia do
presidente Jânio Quadros e o subsequente golpe militar que derrubou o vice-presidente eleito João
Goulart, chamado pelos militares da "Revolução de 1964." No entanto, é difícil saber da descrição de
Sassi, que foi publicado vários anos após o fato, se a visão de Tia Neiva havia ocorrido antes ou depois do
golpe militar.
Trabalhando com seus mentores espirituais para combater os Falcões e realizar a sua
missão, Tia Neiva e os seguidores do Vale tornaram-se participantes em um grande
drama mítico com um significado tanto cósmico quanto nacional. Igualmente, no Vale
do Amanhecer, vemos uma forma de esoterismo ocidental que é unicamente brasileiro
e, ao mesmo tempo, universal.
REFERÊNCIAS

Armond, Edgard. (1987 [1949]) Os Exilados da Capela: Esboço Sintético da Evolução


Espiritual no Mundo. São Paulo: Editora Aliança.

Carpenter, Robert. (2004) "The Mainstreaming of Alternative Spirituality in Brazil," in


New Religious Movements in the Twenty-First Century: Legal, Political and Social
Challenges in Global Perspective, edited by Phillip Charles Lucas and Thomas
Robbins, pp 173-186. New York: Routledge.

Hayes, Kelly E. (2015) Valley of the Dawn profile, World Religions and Spirituality
Project. http://www.wrs.vcu.edu/profiles/ValleyOfTheDawn.htm

_______. (2013) "Intergalactic Space-Time-Travelers: Envisioning Globalization in


Brazil's Valley of the Dawn." Nova Religio: The Journal of Alternative and Emergent
Religions 16, 4: 63–92.

Sassi, Mário. (1974) 2000: A Conjunção de Dois Planos. Brasília: Editora Vale do
Amahecer.

Siqueira, Deis. (2003) As novas religiosidades no Ocidente: Brasília, cidade mística.


Brasília: Editora UnB/FINATEC.

_______ e Ricardo Barbosa de Lima, orgs. (2003) Sociologia das adesões: Novas
religiosidades e a busca místico-esotérica na capital do Brasil. Rio de Janeiro:
Garamond.

Xavier, Francisco Cândido. (1939) A Caminho da Luz: História da Civilização à Luz do


Espiritismo, ditada pelo espírito Emmanuel. São Paulo: Editora FEB [Federação
Espírita Brasileira]
A MAGIA COMO LIMINARIDADE - O ATO MÁGICO COMO EXPRESSÃO
DA COMMUNITAS
MAGIC AS LIMINALITY
THE MAGIC ACTION AS COMMUNITA’S EXPRESSION

Celso Luiz Terzetti Filho 139, (PUC-SP)

Resumo
As clássicas abordagens referentes a magia colocam-na em oposição a religião. Desde a
famosa distinção de Émile Durkhein até a recente Teoria da escolha Racional a magia
tem sido apresentada como amoral e individualizante se contrapondo, portanto, a
religião, esta sim moral e social. No entanto este paper tem como objetivo analisar os
rituais mágicos de grupos pagãos contemporâneos através dos conceitos de
liminaridade e communitas de Victor Turner. Nossa abordagem busca apresentar a
magia como um ato de sociabilidade que expressa elementos anti-estruturais e contribui
para o fortalecimento do ideal de comunidade no contexto das novas espiritualidades. O
presente artigo é parte de uma pesquisa que abrange observação de campo e
participação em grupos pagãos em dois contextos, Brasil e Estados Unidos.

Palavras chave: Magia – Neopaganismo – liminaridade – comunidade

Abstract
Classical approaches related to magic put it in opposition to religion. Since the famous
distinction of Émile Durkhein until the recent Rational choice theory, magic has been
presented as amoral and individualizing counteracting therefore to religion, that is moral
and social . However this paper will analyze the magical rituals of contemporary pagan
groups through the concepts of liminality and communitas Victor Turner. Our approach
seeks to present magic as an act of sociability that express anti-structural elements and
contributes to the strengthening of the community ideal in the context of new
spiritualties. This article is part of a research covering field observation and
participation in pagan groups in two contexts, Brazil and the United States.

Keywords: Magic – Neopaganism – liminality – community

139
Doutorando e Mestre em Ciências da Religião – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
Bolsista CAPES (PDSE) na University of Florida, EUA. Membro do CERAL (Centro de Estudos das
Religiões Alternativas e Orientais na América Latina).
Introdução
Os estudos relacionados as novas espiritualidades no Ocidente tem privilegiado uma
leitura que tende a considerar as diversas expressões religiosas no âmbito do
individualismo. As novas espiritualidades presentes no contexto da Nova Era enfatizam
a busca e a perfeição do indivíduo, ou como bem colocou Anthony Albert F. D’Andrea,
do self perfeito (2000). Neste contexto de religiosidade contemporânea a religião se
torna menos uma questão de tradição do que de escolha, relegando-se aos indivíduos o
poder de decisão. Quadro este evidenciado principalmente nos grandes centros urbanos
onde pode se encontrar e vivenciar diferentes formas de espiritualidade a disposição
daqueles que estão em busca de uma vida religiosa alternativa fora das instituições e
religiosidades tradicionais, em busca de uma religação com o “sagrado”, ou
simplesmente atrás de eficácias rituais para problemas urbanos (GUERRIEIRO 2009:
369).
Diante deste quadro de individualismo religioso, onde se encontraria o que nos estudos
da religião denominou-se de privatização da religião, a ideia de comunidade religiosa
seria eliminada, já que como bem colocou Zygmunt Bauman (2003: 10), comunidade e
liberdade parecem ser uma contradição. A partir deste quadro, que num primeiro
momento parece paradoxo, podemos perguntar: Em uma situação limite de
individualismo religioso onde impera o que Danièle Hervieu-Lérger (2008: 158)
chamou de autovalidação do crer seria possível falar em comunidade no contexto das
novas espiritualidades? Nossa resposta a essa problematização é de que é possível sim
falar em comunidade no âmbito das novas espiritualidades e que a magia concebida no
contexto do neopaganismo representa o ponto liminar do que seguindo Victor Turner
(1969) podemos entender como uma communitas neopagã.
Este artigo traz para a discussão da questão individualismo/comunidade uma categoria
crítica dos estudos da religião que sempre fora relegada a concepções anti-sociais, a
magia. Em relação as categorizações emicas do termo, ao longo do texto iremos recorrer
com maior frequência as nossas observações de campo do que as teorizações que se
encontram nas obras dos autores neopagãos. Não que estes sejam menos importantes,
mas por haver uma grande variação de concepções e que se trabalhadas em detalhes
neste curto espaço e entrecortadas por adendos e comparações, nossa objetividade em
relação ao cerne do que é de fato relevante em nossa análise se perderia. Por isso nos
limitaremos pelas definições e concepções encontradas em campo e nas considerações
dos autores mais expressivos quando necessário.
Nos Estudos da religião podemos dizer que a magia em suas clássicas concepções fora
considerada simultaneamente como irmã bastarda da religião, sendo vista como
egoísta, ímpia e materialista; e como irmã bastarda da ciência, já que era entendida
como primitiva, imoderada e irracional (STYERS 2013: 257). A magia configurava-se
num fracasso da modernidade, tanto em termos religiosos como científicos. Por isso,
como bem demonstra Peter Pels (2003: 31), as tentativas de definições de magia no
âmbito das Ciências Sociais nos fornecem um fértil campo de análise da articulação de
normas e aspirações da modernidade. Através das tentativas de definições do que vem a
ser magia podemos observar as idealizações do que deveria vir a ser a modernidade.
Estas generalizações dão conta de agrupar as caracterizações mais evidenciadas entre as
teorias sociais mais difundidas, desde Durkheim até a Teoria da escolha Racional, que
vê na magia práticas relacionadas a busca de compensadores específicos, ou seja, sua
função é estritamente mundana e ausente de referência mais gerais140. É nesta
perspectiva modernizante que consideraremos neste artigo as clássicas teorias de magia.
As observações de campo aqui analisadas foram realizadas entre 2012 a 2015 no Brasil
e nos Estados Unidos. Durante o ano de 2015 participamos de diversos eventos
neopagãos na Costa Leste dos Estado Unidos sendo a maioria deles rituais públicos. Em
todos os eventos que presenciamos era evidente o papel central que o ritual tinha para os
participantes. A nosso ver era nítida a expressão da identidade coletiva que acontecia
nestes momentos, mesmo quando haviam grupos de tradições diferentes. Cada vez mais
desconfiávamos que a língua franca que os unia nesse ato de reafirmação identitária
parecia ser a magia.

A magia como liminaridade


Numa tarde de Domingo no clube de jardinagem da cidade de Jacksonville, Flórida,
pagãos e bruxos, alguns ornamentados com roupas medievais, chapéu de bruxa, túnicas
e ornamentos característicos do universo neopagão circulavam dentro de um grande
salão em meio a vendedores, barraquinhas que ofereciam incensos, livros, cursos,
massagens, grupos de estudos, objetos ritualísticos, enfim mercadorias e serviços
comuns a este cenário místico que compõem o neoesoterismo. Caminhando entre as
mesas dispostas, os participantes recebiam e se serviam de panfletos informativos,
revistas e folders que ofereciam os serviços ou anunciavam o lançamento de um livro

140
Para uma definição detalhada de magia na Teoria da Escolha Racional ver: STARK, Rodney e
BAINBRIDGE, William S. Uma teoria da Religião. São Paulo: Vozes, 2005.
sobre feitiços, sobre runas ou que detalhava a programação de um próximo evento.
Pessoas de diferentes vertentes do Paganismo Contemporâneo estão prontas para
esclarecer dúvidas sobre espiritualidade, rituais, tradições ou somente conversar, ler o
horóscopo, as cartas de tarô ou como alguns grupos geralmente fazem nesses eventos,
coletar assinaturas para causas relativas à proteção ambiental, proteção animal,
liberdade religiosa, igualdade de gênero, enfim questões e reivindicações que sempre
estão presentes na pauta das diferentes coletividades que circulam por esse contexto de
novas espiritualidades.
Na parte de fora do grande salão, por entre os jardins do local, pessoas se aglomeravam,
algumas sentadas outras em pé, mas todas atentas para ouvir os palestrantes. Duas
tendas ali montadas não eram suficientes para proteger do sol o número de pessoas
interessadas em conhecer mais sobre magia, mitologia, cristais e práticas alternativas.
Em uma destas tendas, uma sacerdotisa da tradição wiccaniana correliana explicava a
um grupo heterogêneo composto por pessoas idosas, adultos e jovens adolescentes o
funcionamento da magia. Ela enfatizava que nossos pensamentos e nossas vontades são
poderes reais e que nossas orações (que em sua tradição é vista como uma forma de
magia) podem ser utilizadas para combater as forças caóticas que vemos todos os dias
propagadas nos meios de comunicação e redes sociais. Mais do que um simples
exercício de mentalização para a realização de um ato mágico, a sacerdotisa nos
informou que iríamos nos alinhar com a energia de outras pessoas em outros lugares do
mundo potencializando assim essa energia que seria então emanada através de uma teia
de cristal para àqueles que necessitassem de conforto e força. Ou seja, mais do que um
ato mágico enfatizava-se naquele momento uma conexão com o outro. Ela habilmente
explicava, apontando com o dedo para a teia que desenhara num painel, que o mundo
está conectado numa grande rede, sendo assim a cura para as mazelas sociais deveria se
dar numa perspectiva holística abrangendo todos em todos os cantos.
Após a explicação teórica do que constituiria nosso exercício mágico fomos então a
prática. A palestrante então invocou os quadrantes, e todos acompanhamos em resposta,
depois cada um recebeu dois cristais de quartzo branco que serviriam como receptáculos
e geradores de energia e que após o ritual mágico deveria ser aterrado. Todos se
sentaram, fecharam os olhos e começaram a seguir as instruções que eram passadas pela
sacerdotisa: Pensem nas pessoas que estão nos hospitais, pensem nas pessoas que
sofrem diariamente em zonas de conflito, nas mulheres que apanham caladas de seus
companheiros. Pensem nas crianças que estão neste momento passando fome nos
países subdesenvolvidos. Agora visualizem com o terceiro olho uma esfera de luz, sinta
essa esfera, vá modelando-a e fazendo-a crescer. Imagine que essa esfera está tocando
a esfera da pessoa ao lado, e todas estão ficando enormes. Agora imagine que neste
momento outras pessoas em outras partes do mundo também estão criando com sua
mente estas grandes esferas, agora vamos enviar essas enormes esferas de luz para
àqueles que precisam, juntem as mãos e lancem. Agora vamos pegar nossos cristais e
enterrá-los para que nossa energia se disperse para a Terra. Nossos cristais
concentraram muitas energias hoje141.
O círculo ritualístico foi desfeito, e no final a palestrante nos sugeriu um website onde
poderíamos nos juntar a um grupo mundial, chamado International Peace Warriors, que
se reúne online para realizar esse ato mágico em benefício dos mais necessitados. A
campanha promovida pela tradição correliana, é chamada de Spiritual War for Peace.
Segundo a tradição:

The idea of the Spiritual War for Peace is that we are actually in a metaphysical
struggle for the future of the world, in which negative energies of fear and hatred are
being actively magically promoted for the purpose of destabilizing certain societies.
By focusing our own energies on peace and love, we hope to counteract these
negative energies142.

Partindo da premissa de que uma batalha espiritual é necessária para dissipar essas
energias negativas que estão por trás dos problemas que afligem o mundo, diversos
horários e cronogramas são agendados e divulgados através das redes sociais para que
sempre haja em qualquer parte pessoas focadas nas energias positivas, seja orando,
realizando rituais mágicos, meditando enfim, auxiliando nessa batalha de acordo com as
práticas de sua crença.
O ritual mágico acima descrito, é apenas um dos muitos que acontecem nesses tipos de
eventos, e a nosso ver são ocasiões que nos levam a refletir sobre a questão do
individualismo e as comunidades religiosas no contexto pós-moderno. Tal reflexão, que
por si só já seria objeto de um esforço considerável, fica ainda mais problemática,
porém não menos interessante, quando acrescentamos no bojo dessa análise a discussão
sobre a categorização de magia. Por que então insistir em trazer para esta discussão tal
categoria que ao longo da história tem se mostrado tão problemática entre os estudiosos

141
Nota de observações de campo.
142
Disponível em: http://www.correllian.com/Peace.html acesso em: 03/04/2016.
da religião? Em primeiro lugar justamente pelo fato de que aquilo que está sendo
apresentado como um processo de conexão com o outro é chamado pelos neopagãos de
magia. E nesse caso, a magia definida classicamente como pertencente a esfera da
individualidade e oposta a comunidade e sociedade fica comprometida.
Marcelo Camurça (2014: 133) chama a atenção para o fato de que a espiritualidade new
age tem como uma de suas características uma articulação de elementos que refletem
uma faceta complexa dessa espiritualidade, a valorização de uma perspectiva holística
ao mesmo tempo em que valoriza o individualismo. Em nossas observações de campo
pudemos perceber que um dos elementos que contribuem para articular essa noção do
indivíduo integrado ao todo, seja esta expressa em termos de uma comunidade global ou
em um holismo que se expressa na concepção de uma comunidade espiritual.
No entanto, devemos estar cientes de que entre os adeptos das diferentes vertentes
religiosas que compõem o neopaganismo é possível perceber que a palavra magia pode
se referir à uma variada gama de experiências, que compreendem tanto fenômenos
incomuns como coisas mundanas. Magia pode ser vista dentro de uma concepção
clássica, em que a manipulação de objetos ritualísticos e símbolos tem como finalidade
alcançar um determinado fim, como também pode ser entendida como uma metáfora,
por exemplo na descrição do Mito da Deusa apresentada por Gerald Gardner sendo a
magia a expressão do ciclo de vida, morte e renascimento. No entanto, o que sobressai
entre as diferentes interpretações é o caráter de excepcionalidade, ou seja, estamos
diante de algo especial. O que é enfatizado entre os adeptos, apesar das diferenças, é que
o ato mágico é descrito como sagrado. A magia é acompanhada na maioria das vezes de
uma ritualização que evidencia a separação daquilo que é o profano. Apesar de toda a
Terra e todos os dias serem sagrados para os neopagãos, como bem observa Graham
Harvey (1997: 1), há momentos que são mais especiais. Estes geralmente são descritos
como mágicos, ou propícios à magia.
Se a magia pode ser considerada como um momento sagrado e o ritual mágico expressa,
como constatamos em nossas observações de campo, a identidade coletiva então
podemos pensar que a magia constitui um importante elemento de afirmação identitária.
É neste sentido que acreditamos que o trabalho seminal de Victor Turner The Ritual
Process: Structure and Anti-Structure de 1969 nos ajuda a pensar este elo entre magia e
comunidade, pois o livro de Turner reorientou os estudos antropológicos relacionados à
concepção de comunidade. Ele trouxe uma discussão detalhada sobre liminaridade,
conceito emprestado do antropólogo Arnold Van Gennep (1873-1957) e que se refere
àqueles momentos entre, tais como carnavais, peregrinações, ritos de passagem ou
rituais, onde a normalidade é suspensa, ou seja, o momento liminar seria o momento
fora do tempo, que frequentemente está conectado com momentos de renovação
simbólica quando uma sociedade ou grupo reafirma sua identidade coletiva.
O que é interessante notar segundo Gerard Delanty (2005: 46), é que Turner não aborda
a concepção de liminaridade em termos exclusivamente simbólicos, mas como uma
expressão do que ele chama de communitas. Nota-se que Turner optou por utilizar o
termo em latim ao invés de comunidade. Segundo o antropólogo tal diferenciação
permite desvencilhar communitas da ideia de comunidade como uma entidade fixa e
espacialmente agrupada (TURNER 2013: 99). A nomenclatura latina communitas
refere-se então a uma relação social que existe em todas as culturas. Essa característica
ahistórica da communitas está relacionada a universalidade da dialética estrutura/anti-
estrutura implícita neste processo de liminaridade.
A communitas reflete a anti-estrutura, que é a oposição às estruturas. Ela emerge
quando as anti-estruturas entram em jogo. Sendo assim, momentos liminares
caracterizam-se por serem importantes expressões da anti-estrutura, como se pode
observar por exemplo nas correntes contraculturais, tais como os hippies.
Se o ato mágico é o momento liminar que expressa a communitas neopagã, o que então
constituiria a estrutura e o que constituiria a anti-estrutura? Primeiramente devemos
observar que o neopaganismo tem uma tendência desinstitucionalizante e que a
centralidade não é uma característica dessas expressões religiosas neopagãs. Não
estamos querendo dizer com isso que formações comunitárias e outros tipos de
coletividade aglutinadoras estejam ausentes do contexto do neopaganismo, apenas que
há uma tendência ao individualismo, assim como na espiritualidade new age em geral,
que se reflete no discurso dessas expressões religiosas. A grande maioria de bruxos
wiccanianos nos Estados Unidos, por exemplo, é formada por praticantes solitários
(CLIFTON 2006; KELLY 2014). Com esta descentralização evidente e autovalidação
do crer podemos considerar que as fronteiras simbólicas que compõem a ideia de
comunidade neopagã são bastante fluídas e gerais, já que o símbolo está sujeito a
subjetivação (ANDERSON 1983; COHEN 1985). Caracterizações sobre o
neopaganismo geralmente compreendem valorização da natureza, expressa em termos
como Nature Religions e Earth Religions, valorização do feminino, expressa em termos
como Thealogia, Goddess Religions, Feminist Witchcraft. Estas duas caracterizações
abrangem diversas configurações e significados. Por isso as consideramos como
fronteiras simbólicas e que carregam discursos identitários anti-estruturais. Por
exemplo, quando Starhawk fala do relacionamento dos seres humanos com a Terra e
com as outras espécies ela diz:

Somente agora, quando os resultados da poluição e da destruição ecológica


tornaram-se graves o suficiente para ameaçarem até mesmo a adaptação urbana da
humanidade, é que reconhecemos a importância do equilíbrio ecológico e a
interdependência de todas as formas de vida. O modelo da Deusa, que é imanente
por natureza, estimula o respeito pelo espírito sagrado de todas as coisas vivas. A
Bruxaria poderia ser uma religião ecológica. O seu objetivo é a harmonia com a
natureza, de modo que a vida não apenas sobreviva, mas viceje (STARHAWK
2007: 45).

Os problemas ecológicos advindos do que em outras obras a autora denomina de poder


de cima, bem como a necessidade de um modelo religioso alternativo (imanente) aos
modelos vigentes que são expressões desse poder de cima refletem o elemento anti-
estrutural de seu pensamento. A estrutura é justamente o poder de cima. Pode-se dizer
que tais definições estão presentes no modo de representação destes elementos no
neopaganismo em geral, com variações na forma, mas não no conteúdo. A dialética
estrutura/anti-estrura no neopaganismo caracterizada por uma crítica ao patriarcado e
uma valorização da natureza desenvolveu-se nos Estados Unidos e foi dali exportada
com adaptações e modos diferenciados de recepção. A influência principal desta
dialética tem como base a contracultura.
Um caso registrado em nossas observações de campo que reflete muito bem a dialética
da estrutura/anti-estrutura e a liminaridade é de uma reunião de esbat143 organizada pela
ABRAWICCA144 ocorrida na cidade de São Paulo em 2012. Numa sexta-feira à tarde
um grupo de pessoas estava reunido em um espaço para participar dos círculos de
mistério. O grupo foi dividio entre homens e mulheres, cada um se dirigindo
respectivamente para o círculo de mistérios masculinos e para o círculo de mistérios
femininos. Os homens permaneceram numa sala enquanto as mulheres foram para outra
sala. Um dos bruxos que estava conduzindo as atividades perguntou quem estava ali
pela primeira vez para que pudesse explicar o que aconteceria e qual era o objetivo do
círculo.

143
Tradicionalmente são as reuniões dos adeptos da Moderna Bruxaria neopagã que ocorrem nas luas
cheias. No entanto é utilizado para quaisquer encontros de um determinado coven que não seja o Sabath.
144
Associação Brasileira de Arte e Filosofia Wicca
Bom, a história é muito complicada e longa para resumir. No entanto, tudo se
resume à uma dominação patriarcal na sociedade. Há hoje uma necessidade, já que
saímos da Era de Peixe, de um retorno à sacralidade feminina. Mas o homem
também deve ter sua importância neste momento145.

O bruxo estava se referindo ao pensamento retilíneo, como descreve Márcia Frazão ou


poder de cima como definido por Starhawk, ou seja, a narrativa de que a sociedade
patriarcal dominou boa parte da história humana e que com isso deixou marcas
profundas de sofrimento.
Para uma efetiva mudança de atitude masculina e reversão dos traços negativos do
patriarcalismo o sacerdote nos contou que a TDB146 havia elaborado um movimento de
Reconsagração do falo. E que essa reconsagração não tem fim, pois é sempre
necessário pensarmos nosso papel como homem já que o patriarcalismo tem raízes
profundas em nosso self e em nossa cultura147.
Outro participante nos informou que o Círculo de mistérios masculinos ajudaria
bastante neste sentido, porém a reconsagração do falo seria o ideal. Então disse que se
tivéssemos oportunidade deveríamos faze-lo.
O sacerdote sugeriu que cada um falasse sobre si, buscando encontrar em sua história de
vida traços que indicassem atitudes relacionadas ao patriarcalismo. Um dos
participantes disse que seu pai, mineiro, criava os filhos homens para serem
“verdadeiramente” homens, para cumprirem o papel de macho. Outro disse que a
relação com seu pai era boa, porém pouco distante. Outro participante disse que não
tinha contato nenhum com o pai e que a relação não era boa devido sua opção sexual. A
maior parte dos participantes era homossexual. E todos de alguma forma falavam da
figura paterna como distante ou indiferente.
Depois de conversarmos e cada um falar sobre sua história de vida e o que acreditava
serem traços do patriarcalismo, fomos todos conduzidos por outro sacerdote até uma
outra sala. Esta estava adaptada para aulas de yoga com um piso de borracha. Lá
sentamos todos em círculo. Uma vela e incensos foram acesos e começamos uma
espécie de meditação. Um dos participantes começou a tocar um tambor de modo suave
e o sacerdote nos conduziu pedindo que fechássemos os olhos e visualizássemos a

145
Fala de um dos sacerdotes da reunião. Notas de observação de campo.
146
Tradição Diânica do Brasil
147
Notas de observação de campo
imagem do deus de chifres. Então nos pediu para descrevermos como havíamos
imaginado e pensado o deus. Um dos participantes descreveu que para ele o deus
simboliza vida e morte, sendo assim ele é a imagem de nosso dia-a-dia, o nosso
cotidiano. Outro descreveu que o deus era o caçador e companheiro, àquele que ajuda
e está sempre presente. E assim por diante, um a um os participantes iam relatando
suas experiências. Depois de aproximadamente 30 minutos de meditação e respirações,
o sacerdote agradeceu a todos por terem vindo e pediu-nos que sempre buscássemos
refletir sobre nosso papel como homens, dizendo que o fim do patriarcalismo não é o
fim da figura do pai, mas o reconhecimento do sagrado feminino. E acrescentara: e que
como a magia é a arte de causar mudança de acordo com nossa vontade, devemos
sempre lutar para que os traços negativos sejam eliminados, como é da nossa vontade.
No relato acima, podemos perceber como a magia pode ser caracterizada como
liminaridade, ou seja, expressão da communitas.
Em primeiro lugar temos a estrutura, aqui representada pelo Patriarcado. Em segundo
lugar temos a anti-estrutura, representada pela valorização do feminino e em terceiro
temos o ato mágico como um momento liminar, em que a estrutura, ou seja, o
patriarcalismo é colocado em xeque e a identidade coletiva é reafirmada com a busca
pela redefinição do papel do homem na sociedade. Este não mais como o dominador,
mas como companheiro, amigo, enfim como iguais.

Conclusão
No presente artigo buscamos analisar a magia no contexto das expressões do
neopaganismo a partir do conceito de liminaridade teorizado por Van Genep e
articulado por Victor Turner para compor seu conceito de communitas. Debruçando-se
sobre nossas observações de campo com grupos neopagãos realizadas nos Estados
Unidos e no Brasil buscamos evidenciar os elementos que a nosso entender podem ser
compreendidos considerando-se a dialética estrutura/anti estrutura de Turner.
Iniciamos com um relato que acreditamos ser representativo do que ao longo do artigo
buscamos identificar, o vínculo entre magia e comunidade. Num segundo momento
buscamos apresentar os elementos que constituem a estrutura e anti-estrutura do
discurso neopagão, bem como propor uma interpretação da magia como um momento
de liminaridade que expressa a communitas.
Diferentemente do caráter egoísta, autorreferente e clientelista que sobressai nas
concepções clássicas sobre magia, pudemos observar ao longo do trabalho, que a
aplicabilidade dessas concepções no que se refere a questão do aspecto coesivo da
magia pode nos levar a um labirinto sem saída quando observamos o papel desta entre
os adeptos das expressões do neopaganismo. O ritual mágico, pode também funcionar
como uma forma de expressão da identidade coletiva de um grupo. O ato mágico a
nosso ver é um momento liminar que expressa a communitas. Essa concepção nos deixa
mais próximo da resposta a nossa pergunta inicial sobre que formas de comunidade
ainda podem exisitir quando impera o regime de individualização do crer. Para
responde-la, primeiro devemos considerar o que entendemos por comunidade. E a nosso
ver a comunidade deve ser entendida como uma construção simbólica148. O argumento
de Turner é que a communitas deve ser entendida em oposição à estrutura, seja esta
expressa, a nosso ver, numa unidimensionalidade (Marcuse 1964), Tecnocracia
(Roszcak 1969) ou o Patriarcardo (Starhawk 1979). À oposição a essa estrutura é o que
forma simbolicamente a anti-estrutura: Holismo, idealização de um passado matriarcal
que forneça os fundamentos de uma valorização feminina, justiça global etc. O que
interessa é que o ato mágico reafirma a identidade coletiva, ou seja, a comunidade
neopagã construída simbólicamente.
A teodicéia new age149, não elimina o individualismo de sua idealização comunitária e
vice-versa. A articulação da esfera individual e comunitária está presente no discurso
neopagão e o ato mágico pode ser, a nosso ver, uma expressão liminar das
aparentemente frágeis ligações entre os membros de uma comunidade ou grupo social.
No final a teoria de Turner sublinha o carácter vinculativo da communitas e nesse
sentido entendemos que magia vista por uma perspectiva de liminaridade, não é nada
mais do que a expressão da communitas neopagã.

148
Aqui estou em concordância com a concepção de comunidade trabalhada por Anthony P. Cohen em
seu livro The symbolic construction of community (1985)
149
Me refiro aqui a expressão teodiceia new age como detalhada por Colin Campbell (2001: 73).
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