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“Travestis: Identidade e Cidadania – entre a atração e a aversão”

Keila Simpson- Conselheira do Conselho Nacional de Combate à Discriminação/LGBT


Coordenadora da Associação de Travestis de Salvador

Vou iniciar esse texto trazendo o primeiro artigo da nossa constituição federal nos
Direitos e Garantias Fundamentais quando reza: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito a vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. E grifo a igualdade, pois é a partir dela que irei divagar um
pouco.

Escolhi começar pela família para falar de Identidade e Cidadania, pois é lá que
começa o grande processo de exclusão dessas pessoas, a criança ao nascer lhe é dado
um nome escolhido pela família pelo qual será reconhecida e com ele viverá durante
toda a sua existência, se gostam e se identificam, parabéns! Está fácil para você. Se
não gostar, azar o seu, pois terá que brigar muito judicialmente para modificar. E se
esse nome é completamente diferente daquilo que você se identifica, aí o problema é
quase para toda a vida, ainda na família.

Os homens se comportam como homens e as mulheres como as mulheres. Se você


não está dentro desse contexto, parabéns! Você está emarginado, na margem
literalmente, ou será que nem na margem tem lugar para você? É o que veremos em
seguida. Assim começa a construção da identidade travestis já colocada a margem, isso
porque ao descobrir que o menino não se comporta como reza o padrão pré-
estabelecido ele será colocado de lado, as coisas para essa pessoas deixarão de ser
importantes e começa a questão da solidão, pois os irmãos não querem brincar com
esse, pois as suas brincadeiras são diferentes e as irmãs enciumadas também recusam
a aceitar essa feminilidade dentro do irmão que deveria se comportar como “homem”.

E assim não se tem um referencial e sem referencias você está sozinho no mundo e o
que fazer? A quem recorrer? O que buscar? Tem ainda o golpe de misericórdia? Os
pais, ao descobrirem verdadeiramente a diferença desse filho em relação aos demais,
não hesitam em expulsá-los de casa, quando não é por concordância dos dois, uma das
partes tem o direito de ser o carrasco do seu próprio filho. Então entrega aquele ser
humano a sua própria sorte, e que sem esse referencial, sente-se que está sozinho no
mundo. E é lá que começam as descobertas, é lá que se formará o caráter, é lá que
você aprende de fato a vida, sem ter um ideal próprio busca se o ideal de quem está
mais próximo, vive-se a vida de quem está convivendo com você e não se pode esperar
muito de quem não tem responsabilidades com você.

Mais uma vez você está sozinho no mundo, agora perto de pessoas que são
entendidas como iguais, mas você descobre que nesse mundo é cada um por si e
ninguém por todas. Mas você precisa sobreviver e abraça a guerra. Começa a sua
grande batalha, sem emprego, sem escola, não por que você não queira, mas é que na
escola você é tratada pior do que em casa, sem respeito a sua identidade, sem
respeito dos seus pares, sem respeito dos seus superiores. E porque ficar nesse lugar?
Trabalhar em quê? E como? Não deu para se formar, pois você foi excluída de casa e a
escola não soube te dar o mesmo tratamento que dispensado aos demais alunos,
sobra quase nada, ou tenta-se fazer algo por conta própria ou então vai fazer o que é
bem mais fácil nesse meio de referencias que você começou a ter.

A rua, a prostituição não são de todo más, não quero aqui dizer que a prostituição seja
negativa, porque não a vejo como tal. Ela é sim, uma profissão muito dura, mas é bem
rentável para quem sabe explorá-la. Temos muitos exemplos positivos de boas
profissionais e é para elas que escrevo essas linhas. Se uma travesti desenvolve a
prostituição e faz dela o seu trabalho cotidiano, aplicando todas as suas forças e
experiências dentro desse trabalho, ela é bem rentável. Agora, a se optam pelo
contrário, não será rentável de maneira sustentável jamais.

A construção da identidade social se dá a partir do seu entendimento como cidadã e é


a partir dela que as travestis buscam o respeito, mas ainda tem uma longa caminhada
até sentir o gostinho da cidadania plena, se sentirem.

Das populações excluídas a que causa mais estranheza é sem dúvida a das travestis,
pois como a identidade é visível fica difícil ocultar ou se misturar a multidão para
passar despercebido, mas será que elas querem passar despercebidas? Acredito que
não, as travestis vieram ao mundo para jogar o gênero de cabeça para baixo, tudo
passa a ser questionável em matéria de gênero quando essas pessoas se auto afirmam
que não querem ser homem nem mulher, reivindicam a identidade travesti sem,
contudo, querer pensar em um terceiro sexo. Arnaldo Jabor escreveu: “ As travestis
não querem a identidade, elas querem a ambiguidade”, eu defendo que as travestis
até querem a ambiguidade, mas desejam sim a identidade. A vida vista do ponto de
vida da travesti é bem dura , é verdade, mas elas seguem aquele velho ditado: se o que
eu tenho é um limão, farei então uma limonada.

Falar de trabalho formal ou convencional para travestis é ainda um grande desafio,


enquanto a gente não trabalhar a cabeça das pessoas desvinculando as travestis como
objeto de desejo sexual somente, não haverá grandes modificações acerca de
trabalho formal. A vida sexual das travestis está sempre na berlinda. Até parece que
não sabem fazer outra coisa, ou se, se propõem a fazer, deixarão de lado para fazer
sexo, ainda vinculam muito a vida de todas por uma só. Na nossa comunidade paga-se
muito a justa pela pecadora, basta ver em uma rua a noite se uma travesti comete um
delito que seja- a policia não investiga para prender a culpada sai pegando todas as
travestis para fazer a tal justiça, mas ele não está fazendo apenas faz o que é mais
conveniente no seu ponto de vista com essa população.

PARA TRAVESTIS É NATURAL DEMAIS SER HOMEM OU MULHER. O Brasil é um país


único no mundo em relação a várias diversidades existente nele e em toda essa
diversidade existe uma população que merece destaque; falo de Travestis, aqui não
vou usar artigo definido, nem masculino, nem feminino, para identificar as e os
Travestis, apesar de ter conhecimento que existem travestis identificados pelos dois
artigos, porém ao analisar contextos do dia a dia usarei sempre o artigo definido
feminino, pois é com esse artigo que as travestis se identificam. Nesse sentido, em
nenhum país no mundo existe populações tão visíveis e visibilizadas quanto a travesti,
são mais visíveis pela profissão que desempenham. Existem estimativas que 85 a 90 %
trabalham como profissionais do sexo nas ruas das grandes cidades, e, visibilizada
porque estão mais sujeitas a toda sorte de violências que circundam esse “trabalho”.
Se precisam se mostrar à noite nas ruas oferecendo os seus serviços,
consequentemente serão identificadas quase sempre somente nesse contexto, nas
manchetes de jornais aparecem quase somente em páginas policiais e quando estão
em outros cadernos quase sempre são manchetes “fantasias”.

Alguém escreveu uma vez que travestis vieram ao mundo para virar o gênero de
cabeça para baixo. Eu concordo. Travestis não querem ser homem nem mulher, e nem
precisam. Pelo menos as travestis que conhecemos, reivindicam a identidade travesti,
nenhum / nenhuma queria ser homem ou mulher todas, todos dizem: sou travesti. E
isso também é o que atrai travestis aos homens que as procuram, conversando com
diversos deles nas abordagens, nos momentos de jogar conversa fora sempre
perguntávamos: mas o que vocês procuram num relacionamento afetivo sexual com
travestis? Eles respondiam: a vantagem de estar com duas pessoas num mesmo corpo,
essa aparência feminina com esse algo mais de masculino é que realmente nos atrai,
embora nem usemos os seus atributos masculinos, mas poder ver aquela confusão de
gênero é realmente excitante. A Fernanda Farias de Albuquerque, no livro “A
Princesa” , já chamava atenção para essa questão falando dos homens italianos,
quando dizia que não sabia se lá os homens que a procuravam queriam uma mulher
com pênis, ou um homem com seios. Dizia ela ainda: “o que atraía aqueles clientes era
sentir um membro dentro deles e um par de seios roçando em suas costas”.

Isso reforça a tese de que os homens que procuram travestis não estariam
interessados em homens como eles e sim nessa dubiedade de corpo e sexo.
Entretanto desejam o direito de se identificar segundo o gênero pré-estabelecido de
acordo com as suas identidades sociais.

É um segmento ainda muito discriminado pela falta de compreensão por parte da


sociedade e também por ser visível mais que os outros segmento. Essa visibilidade de
travestis e transexuais é real posto que não podem esconder-se dentro do padrão de
gênero pré-estabelecido. Ao sair, nota-se com raras exceções que ali não está nem um
homem por que nenhum homem queria parecer com “aquilo”. E, por conseguinte,
observando mais acuradamente, nota-se não tratar de mulher por vários falsetes
cometidos, por isso travestis reivindicam essa identidade.

Talvez essa seja uma das maiores bandeiras desse movimento, mas existem outras, é
claro. Por exemplo, conseguir aprovar um projeto de lei que altere o seu nome social
sem modificar a sua genitália também está na pauta de reivindicações, voltar a escola
e encontra-la preparada para receber essa população faz parte de sonhos antigos de
velhas e velhos militantes. Porém, é no campo da saúde que mais se avança no
respeito a esse segmento. A partir da resposta à epidemia de AIDS é que nossas
reivindicações foram visibilizadas e aprendidas durante esses anos.

A partir de 2000 ,com a criação da ANTRA- Articulação Nacional de Travestis e


Transexuais- que já vinha sendo discutida desde 1993 na realização do ENTLAIDS,
começa a ser trabalhado mais especificamente e em linhas gerais as propostas em
rede que vinham corroborar com as reivindicações vindas de diferentes espaços do
país. Foi só a partir dela que começou a ser reivindicada várias propostas em nível
nacional que redundaram em políticas públicas, por exemplo: a inclusão da questão
do nome social nas instâncias de saúde (Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde),que
ainda precisa ser aprimorado, mas já é um inicio; a realização de campanhas de massa
como a “Travesti e Respeito”, que marca também uma fase importante na vida dessa
população.

Atualmente, muitas das forças de travestis estão voltadas par a implementação do


Plano Nacional para o Enfrentamento da Epidemia de Aids e outras DST na população
de travestis. Tem-se a ideia de que esse plano se tornará um divisor de águas no
combate a essa epidemia, posto que foi construído da sua amplitude, do seu
pioneirismo e da sua audácia. Ele é um plano audacioso, tem uma visão bem ampla de
tudo que é necessário para inovar e trabalhar nesses anos para barrar essa epidemia
ainda presente.

Por fim, é preciso dizer que muito tem sido feito, pouco tem se reconhecido, mas
dizer que essa população não se renderá jamais, quem sobreviveu a violência e as
torturas policiais presas sem ter cometido crime algum, quem enfrenta uma sociedade
machista e preconceituosa, simplesmente porquê não se comporta segundo os seus
mandamentos, quem resiste a vida nas ruas após ser expulsas de casas, apenas por
não parecer com os irmãos do sexo masculino, quem aprende na escola da vida
porque a escola não está preparada, essas pessoas vistas desse ponto de vista só
podem ser realmente especiais e realmente precisam estar a cada dia matando um
leão se quiserem sobreviver nessas selvas de pedras.

A advogada e ativista Janaina Dutra do Ceará definiu bem o contexto pelo qual é vista
as travestis, mas também afirma nessa mesma citação a dor e a delicia de ser o que é.

É mais fácil você contratar um advogado que fale grosso, que tenha bigode, que coce o
saco, do que essa metamorfose ambulante, esse objeto não identificado que, quando
você olha diz: é um homem? É uma mulher? É uma sereia? É um tubarão? É um
macho? É uma fêmea? E, o que me faz sentir bem com a minha travestilidade é essa
androginia que passo para as pessoas, de ser uma metamorfose ambulante, de não ter
um contexto, uma definição.

“Eu sou aquilo que seus olhos vêem”. (Janaina Dutra in memorian)

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