Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vou iniciar esse texto trazendo o primeiro artigo da nossa constituição federal nos
Direitos e Garantias Fundamentais quando reza: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito a vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”. E grifo a igualdade, pois é a partir dela que irei divagar um
pouco.
Escolhi começar pela família para falar de Identidade e Cidadania, pois é lá que
começa o grande processo de exclusão dessas pessoas, a criança ao nascer lhe é dado
um nome escolhido pela família pelo qual será reconhecida e com ele viverá durante
toda a sua existência, se gostam e se identificam, parabéns! Está fácil para você. Se
não gostar, azar o seu, pois terá que brigar muito judicialmente para modificar. E se
esse nome é completamente diferente daquilo que você se identifica, aí o problema é
quase para toda a vida, ainda na família.
E assim não se tem um referencial e sem referencias você está sozinho no mundo e o
que fazer? A quem recorrer? O que buscar? Tem ainda o golpe de misericórdia? Os
pais, ao descobrirem verdadeiramente a diferença desse filho em relação aos demais,
não hesitam em expulsá-los de casa, quando não é por concordância dos dois, uma das
partes tem o direito de ser o carrasco do seu próprio filho. Então entrega aquele ser
humano a sua própria sorte, e que sem esse referencial, sente-se que está sozinho no
mundo. E é lá que começam as descobertas, é lá que se formará o caráter, é lá que
você aprende de fato a vida, sem ter um ideal próprio busca se o ideal de quem está
mais próximo, vive-se a vida de quem está convivendo com você e não se pode esperar
muito de quem não tem responsabilidades com você.
Mais uma vez você está sozinho no mundo, agora perto de pessoas que são
entendidas como iguais, mas você descobre que nesse mundo é cada um por si e
ninguém por todas. Mas você precisa sobreviver e abraça a guerra. Começa a sua
grande batalha, sem emprego, sem escola, não por que você não queira, mas é que na
escola você é tratada pior do que em casa, sem respeito a sua identidade, sem
respeito dos seus pares, sem respeito dos seus superiores. E porque ficar nesse lugar?
Trabalhar em quê? E como? Não deu para se formar, pois você foi excluída de casa e a
escola não soube te dar o mesmo tratamento que dispensado aos demais alunos,
sobra quase nada, ou tenta-se fazer algo por conta própria ou então vai fazer o que é
bem mais fácil nesse meio de referencias que você começou a ter.
A rua, a prostituição não são de todo más, não quero aqui dizer que a prostituição seja
negativa, porque não a vejo como tal. Ela é sim, uma profissão muito dura, mas é bem
rentável para quem sabe explorá-la. Temos muitos exemplos positivos de boas
profissionais e é para elas que escrevo essas linhas. Se uma travesti desenvolve a
prostituição e faz dela o seu trabalho cotidiano, aplicando todas as suas forças e
experiências dentro desse trabalho, ela é bem rentável. Agora, a se optam pelo
contrário, não será rentável de maneira sustentável jamais.
Das populações excluídas a que causa mais estranheza é sem dúvida a das travestis,
pois como a identidade é visível fica difícil ocultar ou se misturar a multidão para
passar despercebido, mas será que elas querem passar despercebidas? Acredito que
não, as travestis vieram ao mundo para jogar o gênero de cabeça para baixo, tudo
passa a ser questionável em matéria de gênero quando essas pessoas se auto afirmam
que não querem ser homem nem mulher, reivindicam a identidade travesti sem,
contudo, querer pensar em um terceiro sexo. Arnaldo Jabor escreveu: “ As travestis
não querem a identidade, elas querem a ambiguidade”, eu defendo que as travestis
até querem a ambiguidade, mas desejam sim a identidade. A vida vista do ponto de
vida da travesti é bem dura , é verdade, mas elas seguem aquele velho ditado: se o que
eu tenho é um limão, farei então uma limonada.
Alguém escreveu uma vez que travestis vieram ao mundo para virar o gênero de
cabeça para baixo. Eu concordo. Travestis não querem ser homem nem mulher, e nem
precisam. Pelo menos as travestis que conhecemos, reivindicam a identidade travesti,
nenhum / nenhuma queria ser homem ou mulher todas, todos dizem: sou travesti. E
isso também é o que atrai travestis aos homens que as procuram, conversando com
diversos deles nas abordagens, nos momentos de jogar conversa fora sempre
perguntávamos: mas o que vocês procuram num relacionamento afetivo sexual com
travestis? Eles respondiam: a vantagem de estar com duas pessoas num mesmo corpo,
essa aparência feminina com esse algo mais de masculino é que realmente nos atrai,
embora nem usemos os seus atributos masculinos, mas poder ver aquela confusão de
gênero é realmente excitante. A Fernanda Farias de Albuquerque, no livro “A
Princesa” , já chamava atenção para essa questão falando dos homens italianos,
quando dizia que não sabia se lá os homens que a procuravam queriam uma mulher
com pênis, ou um homem com seios. Dizia ela ainda: “o que atraía aqueles clientes era
sentir um membro dentro deles e um par de seios roçando em suas costas”.
Isso reforça a tese de que os homens que procuram travestis não estariam
interessados em homens como eles e sim nessa dubiedade de corpo e sexo.
Entretanto desejam o direito de se identificar segundo o gênero pré-estabelecido de
acordo com as suas identidades sociais.
Talvez essa seja uma das maiores bandeiras desse movimento, mas existem outras, é
claro. Por exemplo, conseguir aprovar um projeto de lei que altere o seu nome social
sem modificar a sua genitália também está na pauta de reivindicações, voltar a escola
e encontra-la preparada para receber essa população faz parte de sonhos antigos de
velhas e velhos militantes. Porém, é no campo da saúde que mais se avança no
respeito a esse segmento. A partir da resposta à epidemia de AIDS é que nossas
reivindicações foram visibilizadas e aprendidas durante esses anos.
Por fim, é preciso dizer que muito tem sido feito, pouco tem se reconhecido, mas
dizer que essa população não se renderá jamais, quem sobreviveu a violência e as
torturas policiais presas sem ter cometido crime algum, quem enfrenta uma sociedade
machista e preconceituosa, simplesmente porquê não se comporta segundo os seus
mandamentos, quem resiste a vida nas ruas após ser expulsas de casas, apenas por
não parecer com os irmãos do sexo masculino, quem aprende na escola da vida
porque a escola não está preparada, essas pessoas vistas desse ponto de vista só
podem ser realmente especiais e realmente precisam estar a cada dia matando um
leão se quiserem sobreviver nessas selvas de pedras.
A advogada e ativista Janaina Dutra do Ceará definiu bem o contexto pelo qual é vista
as travestis, mas também afirma nessa mesma citação a dor e a delicia de ser o que é.
É mais fácil você contratar um advogado que fale grosso, que tenha bigode, que coce o
saco, do que essa metamorfose ambulante, esse objeto não identificado que, quando
você olha diz: é um homem? É uma mulher? É uma sereia? É um tubarão? É um
macho? É uma fêmea? E, o que me faz sentir bem com a minha travestilidade é essa
androginia que passo para as pessoas, de ser uma metamorfose ambulante, de não ter
um contexto, uma definição.
“Eu sou aquilo que seus olhos vêem”. (Janaina Dutra in memorian)