Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
UBU CORNUDO
COLEÇÃO
TEATRO
NACIONAL
SÃO JOÃO
Ubu Cornudo
Ubu Cornudo
Título original Ubu cocu (1895-96)
Autor Alfred Jarry
Tradução e notas Luísa Costa Gomes
UBU CORNUDO
Tradução e notas
Luísa Costa Gomes
Ubu Cornudo
Cinco actos.
Personagens
Dom Ubu
Sua Consciência1
Dona Ubu
Achras2
Rabonado3
Mémnon4
Merdampo
Mousched-Gogh
Quatrozonelhas, Os Três Empaladores
O Sapateiro Cortacouros5
O Crocodilo
Um Criado
Um Cão Com Meias De Lã
CENA I
Achras.
Achras: Mas é qué, não sei se estais a ver, não tenho a bem dizer
razão para não estar satisfeito com os meus poliedros: fazem
filhos de seis em seis semanas, são piores que coelhos. E é bem
verdade que os poliedros regulares são os mais fiéis e os mais
afeiçoados ao dono; só que o Icosaedro revoltou-se esta manhã
e vi-me obrigado, não sei se estais a ver, a afinfar-lhe uma esta-
lada em cada uma das faces. E ficámos entendidos. E o meu tra-
tado, não sei se estais a ver, sobre os costumes dos poliedros lá
vai avançando: só falta fazer vinte e cinco volumes.
CENA II
Achras, O Criado.
CENA III
Achras, Ubu (em fato de viagem, com uma mala.)
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, temo que…
Dom Ubu: Nós compreendemos: temeis incomodar. Por isso é que
não vamos tolerar a vossa presença aqui senão a título gracioso.
Além disso, enquanto inspeccionarmos as vossas cozinhas e
sala de jantar, ireis buscar os nossos três caixotes de bagagem,
que omitimos no vestíbulo.
Achras: Oh, mas é qué – isto é inédito, instalarem-se assim sem
mais em casa das pessoas. É impostura manifesta.
Dom Ubu: Postura magnífica! Perfeitamente, falastes verdade, uma
vez na vida.
(Achras sai.)
CENA IV
Dom Ubu, depois a sua Consciência.
CENA V
Dom Ubu, Achras, O Criado.
Achras entra às arrecuas, em vénias de medo diante
dos três caixotes vermelhos que O Criado empurra.
CENA VI
Achras, depois Os Três Empaladores,
que saem dos caixotes.
Os Três Empaladores:6
Cá estão os Empaladores,
Cá estão os Empaladores,
Fuças de coelho, senhores!
Mas mesmo assim
Mui bem preparados
Pra matazar os mais abonados
Nós Somos os Em –
Nós somos os Dores
Nos somos os Empaladores.
Merdampo:
Em caixas de lata
De qualquer maneira
Empilhados a semana inteira
É só ao domingo que a gente
Sai pra respirar livremente
Orelha ao vento, sem se pasmar;
E quem nos vê pela frente
Na marcha firme a passar
Toma-nos por militar.
Os Três Empaladores:
Cá estão os Empaladores, etc.
Mousched-Gogh:
Acordamos de alvorada
A pontapés no traseiro
Desce-se a escada, numa cegada
UBU CORNUDO 17
CENA VII
Achras, empalado, Dom Ubu, Dona Ubu.
Dom Ubu: Pla minha candeia verde, minha doce menina, vamos
ser tão felizes nesta casa!
Dona Ubu: Só falta uma coisa à minha felicidade, meu amigo: ver
o respeitável anfitrião que nos deu estas mordomias.
Dom Ubu: Bem, lá por isso… Prevendo vosso desejo, mandei que
o instalassem no lugar de honra.
(Mostra a estaca. Gritos e crise de nervos da Dona Ubu.)
Fim do Acto I
ACTO II
CENA I
Achras, empalado, A Consciência, meia saída da mala.
A Consciência: Senhor.
Achras: Rom.
A Consciência: E assim por diante.
Achras: O que é qué foi agora, rom, mas o qué? Devo estar morto,
deixe-me em paz.
A Consciência: Senhor, embora a minha filosofia condene abso-
lutamente a acção, como o que o senhor Ubu fez foi demasiado
indigno, vou-vos desempalar.
(Estica-se até chegar à altura de Achras.)
Achras: (Desempalado.) Isso não se recusa, sanhor.
A Consciência: Senhor, e assim por diante, desejo ter convosco
uma pequena conversa, sentai-vos, por favor.
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, nem pensar nisso.
Não cometeria a indelicadeza de me sentar na presença de um
puro espírito que é meu salvador, e além disso, não sei se estais
a ver, é coisa que não me agrada lá muito.
A Consciência: O meu senso íntimo e o sentimento de justiça impõem-
-me o dever de castigar o senhor Ubu. Que vingança projectais?
Achras: Bem, mas é qué, não sei se estais a ver, há muito que
está tudo pensado. Vou só abrir o alçapão da cave… hã… pôr
o cadeirão na borda, não sei se estais a ver; e quando o fulano,
não sei se estais a ver, voltar do jantar, desaba tudo, essa é que é
essa, e assim ficamos entendidos!
A Consciência: Será feita justiça, e assim por diante.
20 ALFRED JARRY
CENA II
Os mesmos, Dom Ubu.
A Consciência esconde-se na mala.
Dom Ubu: Pancichouriça, chiça! Senhor, não ficastes onde vos pus.
Já agora, que ainda estais utilizável, não haveis de vos esquecer
de dizer à cozinheira que tem o hábito de servir a sopa muito
salgada e o assado passado de mais. Não gostamos assim. Não
é que não pudéssemos, em virtude da nossa ciência em Patafí-
sica, fazer surgir da terra as iguarias mais requintadas; mas são
os vossos processos, senhor, que nos indignam!
Achras: Oh, mas é qué, não voltará a acontecer. (Dom Ubu cai no
alçapão.) Não sei se estais a ver.
Dom Ubu: Pancichouriça, chiça, senhor! Que brincadeira é esta?
O vosso sobrado está num estado deplorável. Vemo-nos obri-
gados a recorrer à sevícia.
Achras: Mas é só um alçapão, não sei se estais a ver.
A Consciência: O senhor Ubu é gordo de mais, não conseguirá passar.
Dom Ubu: Pla minha candeia verde, um alçapão tem de estar ou
aberto ou fechado. A beleza do Teatro das Phynanças reside no
bom funcionamento dos alçapões. Este aqui estrangula-nos,
esfola-nos o cólon transverso e o grande epíploo. Se não nos
tirardes daqui, ainda morremos.
Achras: O que posso fazer, não sei se estais a ver, é encantar estes
vossos instantes pela leitura de algumas passagens caract’ísticas,
não sei se estais a ver, do meu tratado sobre os costumes dos
poliedros e da tese que demorei sessenta anos a compor sobre
a superfície do candrado. Não quereis? Bem, então vou-me
embora, não quero ficar a ver isto, é triste de mais.
(Sai.)
UBU CORNUDO 21
CENA III
Dom Ubu, A Consciência.
CENA IV
Dom Ubu, Os Três Empaladores
(de pé dentro das caixas).
CENA V
Os Empaladores imóveis cantam, enquanto se ergue, a meio
da cena, a estátua de Mémnon, cujo pedestal é um barril.
Os Empaladores:
Temei e tremei do Mestre das Finanças,
Ó mais abonados, que de mão n’algibeira
Só pensais em gritar quando sois esfolados!
Plo Empalador nojento de luneta faceira
Sois degolados!
Ubu acorda ao raiar o dia
A faina começa sem atrasá-la –
Abre com estrondo a porta da sala
Onde dorme a piolhosa canalha da empala.
Torce a orelha e abate-a silvando,
Sobre o Empalador que acorda guinchando,
Sem mais aquelas, que regalo de estalo!
E de roldão, ao som do tambor,
Formar na parada! Com todo o rigor!
Dom Ubu lê as disposições
Que fixa a todos as suas missões;
Dá-lhes uma côdea, três cebolos crus
E despacha-os pra fora a pontapés no cu…
Regressa ao seu quarto em passo magistral
UBU CORNUDO 25
Fim do Acto II
ACTO III
CENA I
Os Empaladores atravessando a cena.
Os Empaladores:
Marchemos prudentes e vigiemos constantes.
Tal a vigilância dos bravos Empaladores; e
Saibamos, sensatos, distinguir se quem vai
São os piores sacripantas ou meros passantes.
Olhai o traje, penachos, meia de fantasia,
Não engana ninguém, é ricaço abonado,
Miserável cobarde, carão odiado,
Levas mil bordoadas que é uma alegria.
Tenta debalde acalmar os Empaladores.
É amarrado e esmurrado e outros horrores.
O senhor Dom Ubu ficará mui agradado,
Haverá ao jantar miolos de Rabonado.
(Saem.)
CENA II
Rabonado, Achras.
Vindo um da direita, outro da esquerda.
A primeira estrofe ao mesmo tempo.
CENA III
Rabonado, os Empaladores,
Mémnon, este em cima do barril.
Rabonado vai sentar-se; no mesmo instante,
Mémnon preludia na flauta, pois o dia chega.
Rabonado ouve, horrorizado, o que segue, diante do pedestal,
o que faz com que os Empaladores, que aparecerão do outro
lado para acompanhar o refrão, não o vejam.
Mémnon:
Fui tempos sem fim marceneiro ebanista,
Paróquia de Santos, ao Campo de Marte;
A esposa exercia profissão de modista,
E nunca nos faltou nada – digo eu em aparte.
E se a manhã de domingo vinha soalheira
Vestíamos o nosso melhor fatinho
E íamos ver saltar mioleira
À Rua do Esquentadinho.
Olhai, olhai a máquina a girar,
Olhai, olhai o miolo a saltar,
Olhai, olhai os ricos a abanar…
Os Empaladores:
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!11
Mémnon:
Os dois miuditos todos lambuzados
De doces, geleias e mais rebuçados,
Brandindo contentes os seus bonequinhos.
Iam na carroça bem alto sentados,
Rolando prà Rua do Esquentadinho.12
Lançamo-nos todos à grossa cancela,
30 ALFRED JARRY
Mémnon:
Sou logo lançado por cima da cancela,
Empuxado e levado pla turba possessa
E atirado de cabeça pela clientela
No buraco negro donde não se regressa.
E é nisto que dá ir ao domingo passear
À Rua do Esquentadinho ver o miolo a saltar,
Mais o Desmancha-Comanches e a Pinça-Porco:
Pra lá vai-se vivo, pra cá vem-se mozorto!
Os Empaladores e Mémnon:
Olhai, olhai a máquina a girar,
Olhai, olhai o miolo a saltar,
Olhai, olhai os Ricos a abanar…
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!
CENA IV
Os Empaladores entram nos caixotes ao verem a luz.
Achras chega, seguido de Cortacouros,
trazendo a sua insígnia e um sortido de sapatos
numa banquinha de vendedor ambulante.
Mémnon, Rabonado, Achras, Cortacouros.
CENA V
Os mesmos, Os Empaladores.
CENA I
Entretanto, Mémnon levantou-se,
ajeitou o capacete de três pontas e borzeguins
de limpa-latrinas e vai fazer sinal à porta.
Mémnon, Dona Ubu.
CENA II
Os mesmos, no quarto do fundo, cuja porta fica entreaberta.
Voz do Dom Ubu e dos Empaladores, de fora.
Dona Ubu: Mas nem pensar, meu querido pequeno, vais-te matar!
Mémnon: Matar-me? Por Gog e Magog, ali dentro vive-se, respira-
-se. É ali que eu trabalho. Um, dois, upa!
CENA III
Os mesmos, A Consciência.
CENA IV
Os Empaladores, com candeias verdes.
Dom Ubu, em camisa.
Dom Ubu: (Sem dizer palavra, toma assento. Desaba tudo. Ree-
merge em virtude do princípio de Arquimedes. Então, muito sim-
ples e digno, em traje que se tornou mais escuro.) Então, mas a
bomba de merdra não funciona? Respondei, ou faço-vos sal-
tar os miolos.
CENA V
Os mesmos, Mémnon, mostrando a cabeça.
Fim do Acto IV
ACTO V
CENA I
Achras, Rabonado.
CENA II
Os mesmos.
Dom Ubu, abrindo a porta, Os Empaladores iluminam-no.
CENA III
Achras, Dom Ubu, A Consciência.
CENA IV
Os mesmos, o Crocodilo.
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, que é aquilo?
Dom Ubu: É um passarinho.
A Consciência: É um réptil bem caracterizado, e aliás (tocando-o)
as mãos dele possuem todas as propriedades das das serpentes.
Dom Ubu: Então é uma baleia, pois a baleia é o pássaro mais
inchado que existe, e este animal parece estar bastante inchado.
A Consciência: Estou a dizer-vos que é uma serpente.
Dom Ubu: O que deve provar ao senhor minha Consciência a sua
estupidez e o seu absurdo. Já o pensáramos muito antes de ele
o ter dito, é de facto uma serpente, até mesmo uma cascavel!
Achras: (Cheirando-o.) O certo é, não sei se estais a ver, que não
se trata de um poliedro.
Fim
NOTAS