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INTRODUÇÃO:
A urgência com que nos nossos dias se procede ao estudo dos limites da
modernidade, deve ser inseparável da investigação rigorosa do sentido complexo deste
conceito, sob a pena de incorrermos na “ignorantia elenchi”. Não há primado de
qualquer acesso racional, que avance do círculo da realidade finita até ao ser
incondicionado, mas é a totalidade da essência divina que intuitivamente se oferece por
si mesma e não por qualquer esforço ou método traçado pelo sujeito. Se para alguns a
consciência de si é base inconcussa de filosofar, para outros, o grande facto inicial é a
consciência divina, que serve de padrão ou instancia crítica de valor a todo o restante
conhecimento: porque a razão nenhum poder tem de nos conduzir à nossa felicidade,
então resta apenas que esta espécie de conhecimento de nada de diferente deriva mas
nasce de uma revelação imediata do objecto ao intelecto; e quando este objecto é
excelente e bom, então a alma une-se necessariamente a ele. No entanto é comum a
concepção de que os afectos são gerados pelo pensamento como actos seus, donde se
colige que é no intelecto que está a raiz de todas as paixões, que vontade e intelecto são
a mesma realidade e que pertence ao conhecimento racional a tarefa de dominar e de
superar a vida afectiva. Pensar que a razão usada correctamente jamais nos defrauda, é
incapaz de conduzir à felicidade, ficando reservada para o conhecimento intuitivo, por
natureza supra-racional, onde as paixões não germinam. Se para Descartes o topos das
ideias e da intuição era o intelecto, para nós o conhecimento intuitivo, embora do
intelecto, revela-se uma manifestação imediata do objecto, donde procedem as ideias.
Por isso intuir é um pouco padecer, em que acontece um pouco a união do entendimento
e do objecto, e com esta, o sentimento e a fruição da própria realidade. Aqui reside
precisamente, o amor ou a união com o objecto pelo nosso entendimento considerado
excelente e bom, a ponto de amante e amado se converterem numa só coisa, num todo
único, como aliás ensinava a vertente mística da Renascença. No cume intuitivo da
razão, para além de todo o discurso, está o fim mais elevado do homem.
Os interesses da razão estão pois subordinados aos fins e, tal como estes,
apontam para um interesse supremo: o homem. É a questão do seu ser, do seu destino,
do que se deve fazer de si próprio. A maior tarefa do homem, é saber como desempenha
devidamente e correctamente o seu lugar na criação, é saber o que tem de ser para se ser
um homem. Se a questão do homem está no coração, e define a sua tarefa, não é numa
perspectiva de um saber a constituir. É uma antropologia prática. É por isso que feitas as
contas, o projecto não é assim tão inocente; é um esforço imenso para fundar, em todos
os domínios, a autonomia do homem e, por uma elucidação sem precedentes, traz à luz
do dia os poderes, os deveres e as esperanças deste ser racional que é o homem. Porque
aí reside o paradoxo desta nova revolução: de um lado o entendimento é reconhecido
como o fundamento da objectividade científica, o agente moral põe a lei à qual ele
obedece, a razão é a fonte do sentido que é preciso dar à natureza a à história... Mas por
outro lado, a filosofia permanece uma filosofia do homem em condição humana. O acto
constituinte do espírito não se estende ao infinito. A noção de poder está ligada à de
limite e o homem conhece a sua finitude. O primeiro acusado trazido perante o tribunal
da razão, é a própria razão, condenada nas suas pretensões de constituir uma ciência do
ser; o espírito humano deve reconhecer que não é capaz de ir nem ao ser nem a Deus, e
esta separação ontológica traz ao homem uma obscuridade irremediável sobre a sua
essência e o seu destino: vê-se através do espelho dos fenómenos e lê, como num
enigma, as intensões da natureza. Há duas maneiras de se estar alienado, pela privação
de um poder que no pertence de direito e pela ilusão de um poder que não é nosso. O
fim desta dupla alienação é quando se fundamenta a autonomia do conhecimento e da
acção, na medida em que acaba como os sonhos de uma humanidade na infância.
Tudo quanto existe só é, portanto, verdade enquanto ideia, pois só a ideia tem
existência verdadeiramente real. Um fenómeno é verdadeiro, não porque possua uma
existência exterior ou interior, não porque seja realidade em geral, mas porque a sua
realidade corresponde ao conceito. Só então aquilo que é se torna real e verdadeiro.
Verdadeiro não no sentido subjectivo da palavra, que é o da conformidade com as
minhas representações, mas no sentido objectivo pois o eu ou um objecto exterior, uma
acção, um acontecimento, um estado constituem, pela sua realidade, a realização do
próprio conceito. Quando falta esta identidade do real e do conceito, o existente não
passa de uma simples aparência onde se objectiva, não o conceito total, mas apenas um
seu aspecto abstrato que se torna independente da unidade e da totalidade e chega a
adoptar uma atitude de oposição para com o verdadeiro conceito. Por isso a única
realidade conforme ao conceito é a realidade verdadeira, a que manifesta a própria ideia.
As leis da ordem ética não são obra do acaso, mas a própria razão. Fazer por
que o substancial seja eternamente válido, presente e inevitável na conduta real e no
espírito dos homens – tal é o fim do Estado. É do interesse absoluto da razão que este
todo ético exista e é este interesse da razão que fundamenta o direito e o mérito dos
heróis que criaram Estados, qualquer que possa ter sido a sua imperfeição. O Estado não
existe para o cidadão. Poder-se ia dizer que o Estado é o fim e os cidadãos os meios.
Mas a relação fim/meios não tem validade aqui, pois o Estado não é uma abstracção que
se ergue diante dos cidadãos, mas estes são os seus momentos, tal como na vida
orgânica onde cada membro não é fim nem meio de um outro. O Estado é pois a forma
histórica específica na qual a liberdade adquire uma existência objectiva e frui da sua
objectividade. Pois a lei é a objectividade do espírito e a vontade na sua verdade; só a
vontade que obedece à lei é livre; pois ela obedece a si mesma, encontra-se junto de si
mesma e é livre na medida em que o Estado, a Pátria, constituem uma comunidade de
existência, na medida também em que a vontade subjectiva se submete às leis, a
oposição entre a liberdade e a necessidade desaparece. O racional enquanto substancial
é necessário e nós somos livres quando nós o reconhecemos como lei e quando lhe
obedecemos como à substância do nosso ser; a vontade objectiva e a vontade subjectiva
encontram-se então reconciliadas e formam a mesma totalidade imperturbável.
Mas tendo a arte o seu antes, possui também como na natureza e nas esferas
finitas da vida, o seu depois, quer dizer, um domínio que ultrapassa o seu modo de
apreensão e de representação do absoluto. É que a arte tem em si os seus limites e deve,
por isso, ceder o lugar a formas de consciência mais elevadas. Também esta limitação
determina o lugar que em geral atribuímos à arte na nossa vida actual. Para nós a arte, já
não é a forma mais elevada que a verdade escolhe para afirmar a sua existência. De um
modo geral, já há muito que o pensamento deixou de atribuir à arte a representação
sensível do divino. Isso aconteceu já, por exemplo, com os judeus e os maometanos e
até com os gregos, pois Platão adoptava uma atitude de firme oposição aos deuses de
Homero e Hesíodo. Todos os povos que atingem um avançado estádio de civilização
chegam, em geral, a um momento em que a arte alcançou qualquer coisa que a
ultrapassa. Assim, por exemplo, os elementos históricos do cristianismo, a aparição de
Cristo, sua vida e morte, proporcionaram à arte, sobretudo de à pintura, numerosas
ocasiões de se manifestar, o que a própria Igreja favoreceu e encorajou; mas quando o
movimento em favor do saber e da investigação, e a correlata exigência de
espiritualidade, provocaram a Reforma, também a representação religiosa foi despojada
do seu carácter sensível e orientada para a interioridade da alma e do pensamento. Deste
modo, o depois da arte consiste em que é inerente ao espirito a exigência de só
reconhecer como verifica a verdade, a que descobre no interior de si próprio(a). Em seus
primórdios, a arte ainda dá uma impressão de mistério, ainda provoca uma espécie de
pesar que se explica pela incapacidade de as suas produções darem uma representação
sensível e exaustiva de todo o conteúdo. E quando este conteúdo obtém na arte, uma
representação completa e total, então o espirito, cujo olhar vê mais além, desvia-se
dessa objectividade para reentrar dentro de si. É o que em nossos dias acontece.
Poderemos ainda esperar que a arte não cesse de se elevar e aperfeiçoar, mas o certo é
que a sua forma já deixou de satisfazer as exigências mais altas do espírito. Pareçam-
nos embora, incomparáveis as imagens dos deuses gregos, tenham maior dignidade e
perfeição as representações de Deus Pai, de Cristo, da Virgem Santa: a admiração que
estas estátuas e imagens nos provocam é impotente para nos obrigar a cair de joelhos.
Só um ser real e total pode ter por objecto o real, na sua realidade e na sua
totalidade, este é o novo primado. Razão por que a filosofia toma por princípio de
conhecimento e por sujeito, não o eu, nem o espírito absoluto, isto é, abstrato, nem
numa palavra, a razão para si, mas o ser real e total do homem. Só o homem é a
realidade e o sujeito da razão. É o homem que pensa, e não o eu ou a razão. O novo
primado filosófico apoia-se não sobre a divindade ou sobre a vontade da razão para si,
mas sobre a divindade ou verdade do homem total. Dito de outro modo: ela apoia-se
sobre a razão, mas sobre a razão que tem o ser humano por essência; apoia-se não numa
razão sem ser, sem cor ou nome, mas sobre uma razão impregnada de sangue do
homem. Assim, enquanto que a antiga filosofia dizia: só o racional é o verdadeiro e o
real, esta filosofia apoia-se num princípio em que só o humano é o verdadeiro e o real;
pois o humano é o racional; o homem é a norma da razão.