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O EU E O OUTRO (Ensaio sobre o Individualismo na Pós-modernidade)

INTRODUÇÃO:

A urgência com que nos nossos dias se procede ao estudo dos limites da
modernidade, deve ser inseparável da investigação rigorosa do sentido complexo deste
conceito, sob a pena de incorrermos na “ignorantia elenchi”. Não há primado de
qualquer acesso racional, que avance do círculo da realidade finita até ao ser
incondicionado, mas é a totalidade da essência divina que intuitivamente se oferece por
si mesma e não por qualquer esforço ou método traçado pelo sujeito. Se para alguns a
consciência de si é base inconcussa de filosofar, para outros, o grande facto inicial é a
consciência divina, que serve de padrão ou instancia crítica de valor a todo o restante
conhecimento: porque a razão nenhum poder tem de nos conduzir à nossa felicidade,
então resta apenas que esta espécie de conhecimento de nada de diferente deriva mas
nasce de uma revelação imediata do objecto ao intelecto; e quando este objecto é
excelente e bom, então a alma une-se necessariamente a ele. No entanto é comum a
concepção de que os afectos são gerados pelo pensamento como actos seus, donde se
colige que é no intelecto que está a raiz de todas as paixões, que vontade e intelecto são
a mesma realidade e que pertence ao conhecimento racional a tarefa de dominar e de
superar a vida afectiva. Pensar que a razão usada correctamente jamais nos defrauda, é
incapaz de conduzir à felicidade, ficando reservada para o conhecimento intuitivo, por
natureza supra-racional, onde as paixões não germinam. Se para Descartes o topos das
ideias e da intuição era o intelecto, para nós o conhecimento intuitivo, embora do
intelecto, revela-se uma manifestação imediata do objecto, donde procedem as ideias.
Por isso intuir é um pouco padecer, em que acontece um pouco a união do entendimento
e do objecto, e com esta, o sentimento e a fruição da própria realidade. Aqui reside
precisamente, o amor ou a união com o objecto pelo nosso entendimento considerado
excelente e bom, a ponto de amante e amado se converterem numa só coisa, num todo
único, como aliás ensinava a vertente mística da Renascença. No cume intuitivo da
razão, para além de todo o discurso, está o fim mais elevado do homem.

Este conhecimento intuitivo beatificante, não arranca o homem ao mundo e à


sociedade, mas exige uma nova relação política e ética, pois a vida intuitiva é o
verdadeiro renascimento, não do corpo, mas do espírito, que fruia apenas de um
descanso temporal gerado na força do conhecimento e no amor divino. Devemos
procurar nos actos de pensar e deduzir da natureza do entendimento o que realiza a
forma verdadeira do pensamento. Uma vez assegurada a actividade do pensamento,
intellectio e imaginatio separam-se rigorosamente e opõem-se, enquanto uma linha
fronteiriça intransponível divide os espaços da experiência e da razão. A esta nova
concepção das relações entre experiências e razão acresce a definição de dois graus do
saber dentro da mesma razão: o saber a posteriori e o saber a priori, o mediato e o
imediato, ao mesmo tempo que desaparecem as expressões de origem mística como
sentimento de fruição da realidade e união amorosa com o objecto, que denotavam um
conhecimento super-racional na união intuitiva com Deus e um pressentimento de
mistério. Agora é no conceito que aparece a substância única, que em si, por si mesma
se concebe e cuja essência pertence necessariamente à existência. Modos são as
afecções da substância ou tudo o que é noutro e por este se concebe. Este movimento
conceptual surge como uma racionalização ou secularização do mistério.

O emaranhado de coordenadas que formam o quadro berço de concepções


filosóficas da modernidade, é caracterizado pelo pluralismo das Luzes, distinguindo-o
da pluralidade medieval, que, embora repartida pelo platonismo, aristotelismo, realismo
e nominalismo, era, na sua intenção, uma filosofia perene, que se concebia participante
da unidade e do saber absolutos do Espírito Divino. O pluralismo iluminado tinha traços
de maioridade visíveis na consciência do sujeito, que se emancipava da onto-teologia
medieval e, com esta, do primado da totalidade do ser e da logicidade universal do real
acessível à inteligência. Nesta consciência crítica, a verdade não era algo de imediato
mas apenas se obtinha através da produção das condições do próprio conhecimento, isto
é, a verdade exigia que se começasse pela natureza específica do modo de conhecer do
homem. Tanto no racionalismo como no empirismo, o sujeito destruiu o realismo
objectivo da identidade imediata da ideia e da realidade, ao instituir como ponto de
partida o facto originário da certeza imediata do pensamento, o sentimento instintivo de
si mesmo ou o impulso da auto-conservação, a experiência empírica no acesso à
natureza ou as sensações articuladas segundo um sistema de signos em proposições
subjectivas. Não há portanto neste ponto de vista um sujeito isolado com certeza
absoluta de si mesmo, nem tão-pouco um método que possibilite interpretar a realidade
a partir de dentro, sem a necessidade de exteriorização – alienação suprema. À recusa
do cogito e do método cartesianos, junta-se a crítica aos universais da tradição
escolástica julgados criações verbais do sujeito, à teoria nominalista do conceito e do
signo e ao empirismo.

Numa concepção diferente de razão, cujas ideias têm sentido objectivo e


referência real, os conceitos adequadamente objectivos são modos do atributo
Pensamento necessariamente coordenado com o atributo Extensão, que são os dois
momentos essenciais de uma Substância Única. Pensamento e Extensão (entendida
como Acção), consciência e ser , porque são momentos distintos de uma reciprocidade
estrutural indestrutível, asseguram, logo na raiz, a referência ao cosmos externo de
todos os conceitos essenciais, vários no seu conteúdo mas integrados modalmente na
matriz do Pensamento. Neste acordo entre conceito e objectividade real, idea e ideatum,
ser-pensamento e ser-objecto, consiste a verdade, que não carece de qualquer método
especial e rigoroso traçado pelo sujeito, nem de uma consciência prévia de si, que,
separada do conhecimento real, lhe serviria de fundamento lógico e certo e de critério
evidente de verdade. A ordem do pensamento e das ideias não pode prescindir da
referência ontológica e ter como método o processo de investigar na sua ordem a
verdade ou as essências objectivas das coisas no horizonte envolvente do pensamento e
extensão da acção, mediante a ideia ideae ou a cognitio reflexiva, que é o regresso da
ideia verdadeira a si mesma, ao sentido e à referência, que lhe são imanentes. Quanto
mais intensamente se desenvolve o pensamento da ordem e do método e por ele se
realiza a explicitação de verdadeira ideia, com tanto maior rigor se articula o todo
necessário das ideias e mais certo de si se torna o eu como ideia ideae sempre referida
ao atributo do pensamento. Só na relação à realidade da Natureza acontece a auto-
relação do eu e, por isso, o pensamento processa-se sob condições, que o homem finito
não pode compreender nem produzir por si mesmo.
O homem é um ser racional: esta definição clássica não significa que a razão
seja apenas um instrumento universal do conhecimento e da acção, que na óptica de
Descartes, nos permite compreender tudo e comunicar os outros. Com efeito, ela tem
tarefas mais altas, que brotam da sua espontaneidade própria, uma vez que só pode
contar consigo própria para as imensas tarefas que a esperam: medir e avaliar os seus
campos de acção e os seus interesses específicos, ditar as leis que humanizarão o real e
tornem perceptível a comunicação humana. A razão, mostra sob o nome das ideias uma
espontaneidade tão pura que por ela ultrapassa de longe tudo o que a sensibilidade pode
fornecer ao entendimento; e mostra a sua mais elevada função na distinção que
estabelece entre mundo sensível e mundo inteligível, marcando também assim os limites
ao próprio entendimento. Mas o aspecto fundamental da razão é bem vincado – trata-se
de uma razão legisladora. Rigorosamente, se atendermos a que o terreno da experiência
tem dois domínios diferentes (natureza e liberdade) e que a cada um desses domínios
deve competir uma legislação diferente, a razão tem apenas poder no que é prático, nada
podendo decidir no terreno da teoria. Mas o termo razão aparece muitas vezes com um
sentido mais amplo, designando o conjunto da actividade cognoscente (como, por
exemplo, quando fala do uso teórico e uso prático da razão) e neste âmbito se pode dizer
que a razão humana é autónoma e legisladora. O termo razão pode ser utilizado também
no seu sentido técnico restrito – os seus raciocínios não podem levar a conclusões
válidas, uma vez que perderam o controlo e a garantia necessários a todo o
conhecimento objectivo. São assim rigorosamente delimitados os dois domínios e as
respectivas legislações, que caracterizam dois mundos diferentes e em certo modo
opostos, como são o mundo sensível e o mundo inteligível, o reino da natureza e o da
liberdade, o primeiro estritamente determinado, onde as mesmas causas produzem
sempre os mesmo efeitos e, por isso mesmo previsível; o outro que encontra na
liberdade, como propriedade fundamental da vontade humana, a sua própria razão de
ser. Ora se estes dois mundos são radicalmente diferentes, nem por isso são alheios um
ao outro: o mundo da liberdade com a sua legislação prática tem que ter um certo poder
sobre o mundo da natureza, porque a natureza deve ser pensada de modo a que a
liberdade seja possível. Com efeito quando pensamos o modo de ligação dos dois usos
da razão, o primado é sempre da razão moral, porquê? Uma vez que esta acaba
necessariamente por incluir aquela dentro dos seus limites, pois todo o interesse da
razão é finalmente prático e mesmo o da razão especulativa (isto é, o conhecimento da
natureza) só é condicionado e completo no uso prático. Esta actividade organizadora da
razão é sublinhada ao longo de toda a obra e sem cair na ideia de uma razão
absolutamente criadora e infinita, assinala de modo inconfundível o vigoroso do seu
carácter constitutivo do real, ainda que se mantenha sempre nos limites de uma razão
finita e condicionada. Por isso, segundo Deleuze, a razão humana demarca-se
radicalmente tanto do empirismo como do racionalismo. Contra o empirismo afirma que
há fins de cultura, fins inerentes à razão. Mais ainda só os fins culturais podem ser
considerados absolutamente derradeiros. O fim último é um fim de tal ordem que a
natureza não pode bastar para o efectuar e realizar em conformidade com a ideia, pois
tal fim é absoluto. Contra o racionalismo, coloca-se em realce que não somente os fins
supremos são fins de razão, como ainda a razão não estabelece outra coisa senão ela
própria ao estabelecê-los. Nos fins da razão, é a razão que se toma a si mesma como
fim. Há, pois, interesses da razão, mas além disso, a razão é o único juiz dos seus
próprios interesses. Os fins ou interesses da razão não são julgáveis nem pela
experiência nem por outras instâncias que permaneçam exteriores ou superiores à razão.
Recusam-se de antemão as decisões empíricas e os tribunais teológicos. Todos os
conceitos, mesmo todas as perguntas que se nos apresentam não estão de forma alguma
na experiência, mas apenas na razão e é por isso que podem ser resolvidos e pode
compreender-se o seu valor ou nulidade. Também não temos direito de por de lado estes
problemas, a pretexto da nossa impotência, como se a solução deles residisse realmente
na natureza das coisas, e de recusar a sua investigação posterior, porque só a razão é que
engendrou estas ideias no seu seio e, portanto, deve prestar contas da sua validade ou
aparência dialéctica.

Este sistema de conhecimento racional por conceitos transporta-nos para a


noção cósmica, segundo a qual a filosofia é a ciência dos fins últimos da razão humana.
Esta concepção confere dignidade à filosofia, isto é, valor absoluto. E, efectivamente, é
a única que só possui valor intrínseco e que confere originalmente valor aos outros
conhecimentos. No sentido escolástico da palavra, a filosofia visa apenas a habilidade;
do ponto de vista do seu conceito cósmico, a utilidade. No primeiro ponto de vista, é
uma doutrina da habilidade; no segundo, uma doutrina da sabedoria – a legisladora da
razão e nesta medida, o filósofo não é um artista da razão, mas o seu legislador. O
artista da razão, ou como Sócrates o chama, o filodoxo, visa apenas o conhecimento
especulativo sem perguntar em que medida o saber contribui ao fim último da razão
humana: dá regras para por a razão ao serviço de todas as espécies de fins. O filósofo
prático, o mestre da sabedoria pela doutrina e pelo exemplo, é o verdadeiro filósofo.
Porque a filosofia é a ideia de uma sabedoria perfeita, que nos designa os fins últimos
da razão humana. Não só a filosofia permite uma tal organização estritamente
sistemática, como é a única ciência que possui, no sentido mais próprio, uma
organização sistemática e que dá a todas as outras ciências uma unidade sistemática.
Mas tratando-se da filosofia segundo o seu sentido cósmico, pode-se também chamá-la
uma ciência das máximas supremas do uso da nossa razão, se entendemos por máxima o
princípio interno de escolha entre diferentes fins. Porque a filosofia, neste último
sentido, é a ciência da relação de todo o conhecimento e de todo o uso da razão ao fim
último da razão humana, fim ao qual, porque supremo, todos os outros fins estão
subordinados e no qual devem ser todos unificados. O domínio da filosofia, neste
sentido cosmopolita, reduz-se às questões seguintes: 1) o que posso saber? 2) que devo
fazer? 3) que me é permitido esperar? 4) o que é o homem?

À primeira questão responde a metafísica, à segunda a moral, à terceira a


religião, à quarta a antropologia, uma vez que as três primeiras questões levam à última.
Assim, o filósofo pode então determinar a fonte do saber humano, a extensão do uso
possível e útil de todo o saber, e, enfim, os limites da razão. Esta última determinação é
a mais indispensável, é também a mais difícil, mas o filodoxo não se preocupa com isso.
Com efeito, toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem prática e para a
lei moral, precisamente da mesma forma que o saber e a lei natural estão para o
conhecimento teórico das coisas. Por fim, tudo se pode resumir à questão antropológica,
à questão sobre o homem, porque é sempre do homem única e exclusivamente que se
trata.

O entendimento legisla a priori para a natureza, como objecto dos sentidos, em


função de um conhecimento teórico desta numa experiência possível. A razão legisla a
priori para a liberdade e sua própria causalidade, em função de um conhecimento
prático e incondicionado. O domínio do conceito da natureza sob a primeira legislação e
o do conceito de liberdade sob a outra legislação são, apesar de toda a influência
recíproca que possam ter um sobre o outro (cada um segundo as suas leis
fundamentais), totalmente divididos por um grande fosso, que separa o supra-sensível
dos fenómenos. O conceito de liberdade não determina nada relativamente ao
conhecimento teórico da natureza, tal como o conceito de natureza nada determina
relativamente às leis práticas da liberdade, não se tornando assim possível, deste modo,
estabelecer uma ligação entre estes dois domínios. No que diz respeito às faculdades da
alma em geral, na medida em que elas são consideradas como superiores, isto é, quando
implicam uma autonomia, o entendimento é para a faculdade de conhecer
(conhecimento teórico da natureza) aquilo que contém os princípios constitutivos a
priori; para o sentimento do prazer e da dor, é a faculdade de julgar, para a faculdade de
desejar, é a razão que é prática sem a mediação do menor prazer, qualquer que seja a
sua proveniência, e que determina para esta faculdade, como faculdade superior, o fim
último, que traz consigo também a pura satisfação intelectual. O conceito da faculdade
de julgar de uma finalidade da natureza, pertence ainda aos conceitos da natureza, mas
apenas como princípio regulador da faculdade de conhecer; ainda que o juízo estético
sobre certos objectos (da natureza ou da arte) que dá lugar a este conceito, seja
relativamente ao sentimento do prazer e da dor um princípio constitutivo. A
espontaneidade no jogo das faculdades de conhecer, cujo acordo contém o fundamento
deste prazer, torna o conceito assim pensado apto à mediação da ligação dos domínios
do conceito de natureza com o conceito de liberdade nas suas consequências,
promovendo a receptividade do espírito pelo sentimento.

De um lado, a natureza, cujas leis o entendimento conhece a priori; é o campo


do finito e do condicionado. De outro, a liberdade, que anuncia o domínio do supra-
sensível, do que está para além da natureza. Ora o homem, tem em si próprio a lei
moral, lei da sua razão e tem uma vontade autónoma que lhe permite cumprir ou não
cumprir essa lei. Por isso é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como
inteligência, não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao
mundo inteligível. É assim que no campo da moral, a filosofia vai recuperar os grandes
temas da metafísica tradicional, a liberdade, Deus, a alma, e vai, de certo modo
reabilitar essa metafísica humilhada no campo teórico. Assistimos aqui, a uma inflexão
importante da filosofia; por um lado, da “recuperação” da filosofia, sem dúvida, mas por
outro, e numa significativa medida, de uma abertura da filosofia ao campo da ética.
Com efeito, esses fins essenciais só poderiam ter realização plena num mundo moral,
isto é, num mundo submetido às leis da razão, num mundo conforme ao que deveria ser
(incondicionalmente livre) e, por consequência, diferente do mundo tal como é,
determinado, onde a moralidade encontra obstáculos de toda a ordem (inclinações,
egoísmos, individualismos, etc.) Esse mundo de liberdade seria precisamente o mundo
inteligível, que apenas pode ser pensado, e o fim supremo de todos os fins essenciais da
razão seria o ideal de supremo bem, o ideal de uma inteligência e vontade perfeitas que
fossem a causa de toda a felicidade no mundo.

Os interesses da razão estão pois subordinados aos fins e, tal como estes,
apontam para um interesse supremo: o homem. É a questão do seu ser, do seu destino,
do que se deve fazer de si próprio. A maior tarefa do homem, é saber como desempenha
devidamente e correctamente o seu lugar na criação, é saber o que tem de ser para se ser
um homem. Se a questão do homem está no coração, e define a sua tarefa, não é numa
perspectiva de um saber a constituir. É uma antropologia prática. É por isso que feitas as
contas, o projecto não é assim tão inocente; é um esforço imenso para fundar, em todos
os domínios, a autonomia do homem e, por uma elucidação sem precedentes, traz à luz
do dia os poderes, os deveres e as esperanças deste ser racional que é o homem. Porque
aí reside o paradoxo desta nova revolução: de um lado o entendimento é reconhecido
como o fundamento da objectividade científica, o agente moral põe a lei à qual ele
obedece, a razão é a fonte do sentido que é preciso dar à natureza a à história... Mas por
outro lado, a filosofia permanece uma filosofia do homem em condição humana. O acto
constituinte do espírito não se estende ao infinito. A noção de poder está ligada à de
limite e o homem conhece a sua finitude. O primeiro acusado trazido perante o tribunal
da razão, é a própria razão, condenada nas suas pretensões de constituir uma ciência do
ser; o espírito humano deve reconhecer que não é capaz de ir nem ao ser nem a Deus, e
esta separação ontológica traz ao homem uma obscuridade irremediável sobre a sua
essência e o seu destino: vê-se através do espelho dos fenómenos e lê, como num
enigma, as intensões da natureza. Há duas maneiras de se estar alienado, pela privação
de um poder que no pertence de direito e pela ilusão de um poder que não é nosso. O
fim desta dupla alienação é quando se fundamenta a autonomia do conhecimento e da
acção, na medida em que acaba como os sonhos de uma humanidade na infância.

O ilumismo é a saída do homem da sua menoridade, de que só ele é


responsável. Menoridade é incapacidade de se servir do seu entendimento sem a
orientação de alguém, facto de que só o homem é culpado, uma vez que a causa desta
situação não está num defeito de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem
para se orientar sem o auxilio dos outros. Sapere aude! (Ousa pensar!). Tem a coragem
de usares o teu próprio entendimento! Tal é divisa do iluminismo. A preguiça e a
cobardia são as causas da maioria dos homens continuarem de bom grado menores
durante toda a vida. É tão cómodo ser menor. Tenha eu um livro que substitua o meu
entendimento, um director espiritual que substitua a minha consciência, um médico que
decida a minha dieta, etc. e então não precisarei de me esforçar mais. Não preciso
pensar quando posso simplesmente pagar; outros se ocuparão por mim dessas questões
complicadas. A imensa maioria dos homens (incluindo todo o belo sexo) considera
difícil a passagem à maioridade e até mesmo perigosa, porque os tutores tomaram a seu
cargo, com prazer, a supervisão da Humanidade. Depois de terem embrutecido os seus
animais domésticos e de prevenirem cuidadosamente estas tranquilas criaturas a não
ousarem dar um passo fora do carro em que estão encerradas, para aprenderem a andar,
mostram-lhes seguidamente o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. É pois
difícil para um homem sair da menoridade, que se tornou para ele quase uma natureza.
Chegou mesmo a criar-lhe amor. Regulamentos e fórmulas, estes instrumentos
mecânicos do uso da razão, ou antes, do abuso dos dons naturais, são os grilhões de uma
perpétua menoridade. Quem se livra deles só será capaz de dar um salto inseguro sobre
uma pequena fenda, porque não está habituado à liberdade de movimentos. Para o
iluminismo nada mais se exige do que a liberdade. A mais inofensiva de todas as
liberdades, isto é, a de fazer um uso público da razão em todas as questões. Porém ouço
gritar de todos os lados: não pensem. O oficial diz: não penses, executa! O financeiro
clama: não penses, paga! O sacerdote proclama: não penses, crê! Que barreiras
impedem então o iluminismo? O que é que o não impede e até mesmo o favorece?
Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o
esclarecimento entre os homens.

Este forte pendor racionalista, ao contrário do que preconizava o próprio


Descartes e até Espinosa, não se dedica apenas á procura da verdade; entra afoitamente
no campo social para denunciar o abuso do poder político, a intolerância religiosa, o
fanatismo, a arbitrariedade, etc. Estamos sem dúvida, perante a crítica universal; exerce-
se em todos os domínios, na literatura, na moral, na política, na filosofia; é a alma desta
época controversa; não vejo período algum em que se tenham encontrado
representantes, em que haja sido mais generalizadamente exercida, em que se tenha
mostrado mais mordaz, não obstante a sua aparência juvial. Com efeito esta crítica
combate em várias frentes contra muitas autoridades: as dos poderes constituídos
(Escola, Estado, Igreja), a do saber organizado (Teologia, Metafísica), a das pretensões
da razão (Dogmatismo). Não se quer fazer moda com este neo-iluminismo, como
processo de destruição do passado, como indiferentismo aos problemas que em todas as
épocas se têm posto ao homem, isto é, o do mundo e o do seu próprio sentido. Rejeita-
se assim o caminho mais fácil, que muitos seguiram: o cepticismo, o materialismo
mecanicista, o ateísmo: esta filosofia centra-se mais na estratégia de desenvolver do que
no resultado de proclamar. A filosofia deve responder a um sentido de emancipação
humana. Trata-se de deixar passar o homem de uma natureza humana servil a uma
natureza humana verdadeiramente livre. A tarefa do filósofo consiste em libertar a
humanidade dos seus tutores, dando a cada homem o poder de pensar por si mesmo.
Mas o destino do homem não é apenas individual, é também histórico, porque como já
referimos, os fins da razão são fins culturais e através de uma legislação universal, se
define o reino dos fins. Resta saber qual o destino colectivo dessa humanidade, isto é, se
podemos vislumbrar um plano da história (plano esse que seria necessariamente
transcendente à história), a que chamamos o plano da natureza, ou se tudo se passa
única e exclusivamente na desordem e confusão dos cursos individuais, sendo a história
pura e simplesmente o somatório de todos esses destinos, qualquer coisa como, no dizer
de Shakespeare, uma história contada por um louco cheio de barulho e de furor. Temos
assim um fio condutor para representar como sistema pelo menos em conjunto das
acções humanas. Assim, no jogo da liberdade percebe-se um projecto: dos gregos aos
nossos dias, descobrir-se-á um curso regular da melhoria da constituição estatal. O
exemplo era político, mas não hesitamos em o estender a qualquer outro ponto de vista:
semelhante justificação da natureza, ou da proveniência, pode servir para exaltar, mais
do que a obra da criação, o grande teatro da sabedoria suprema – a história do género
humano – onde se espera encontrar uma intenção racional.

A realidade é aquilo que é, independentemente de qualquer outra coisa – é um


ser em si. As ideias platónicas, as ideias inatas de Descartes, as categorias kantianas, o
Eu fichteano, o Absoluto de Schelling, a Ideia, o Espírito ou a Razão de Hegel são seres
em si e para si. A aparência (ou o fenómeno) é aquilo cujo ser depende de outro ser. No
idealismo de Platão, a sombra da árvore depende da existência da árvore, esta da forma
geométrica, esta última da ideia (ou paradigma). Por isso, as ideias são reais e as árvores
e todas as coisas do mundo sensível apenas aparências. A simetria é real, as coisas
simétricas, uma materialização dessa realidade. A realidade tem de ser, mas não tem
existência, porque o real é universal. Assim, existem casas brancas, flores brancas, mas
a brancura em si, enquanto conceito universal, não existe. A brancura não é uma coisa, é
uma abstracção, é um universal. E algo será tanto mais abstrato e universal quanto mais
puder participar do maior número de coisas individuais existentes. Assim, o homem é
mais universal que português; vertebrado mais universal que homem; animal mais
universal que vertebrado e assim por diante numa dialéctica ascendente. Só as coisas
individuais, fenoménicas – só as aparências – existem. A realidade não existe, é – mas é
um ser lógico: a existência é pura aparência.

A história desenrola-se segundo um processo necessário onde a vontade de


Deus, ou do Espírito ou da Razão, se manifesta de modo que nada acontece por acaso,
nada é irracional, inútil ou repetitivo. Neste conceito da história perde-se totalmente o
conceito de pessoa enquanto criatura livre e autónoma.

As outras determinações próprias ao conceito porque inerentes à sua natureza,


são o universal, o particular e o individual. Isoladamente consideradas, todas estas
determinações seriam uma pura abstracção unilateral. Mas não se acham elas concluídas
no conceito enquanto unilaterais, porquanto nele realizam a sua unidade ideal. É pois, o
conceito, o universal que, por um lado, a si próprio se nega em favor da determinação e
do particular e, por outro lado, suprime esse mesmo particular como negação do
universal. É que do particular que provém de uma diferenciação do universal, este não
conduz a nenhum outro absoluto e é obrigado por isso, a restabelecer a unidade do
particular consigo próprio, ou seja com o universal. Por estes retornos a si próprio, o
conceito é uma negação que se não refere o outra coisa, quer dizer, a uma coisa exterior
ao conceito, mas que é o resultado de uma auto-determinação do conceito que deste
modo mantém, ao negar-se, a sua unidade afirmativa permanecendo ele mesmo. Ele é
assim, a verdadeira individualidade, como universalidade encerrada em si própria, com
todas as suas particularidades. A melhor demonstração de tal natureza do conceito
reside no que anteriormente dissemos acerca da essência do Espírito. Graças a esta
infinidade em si, o conceito como tal é já por si mesmo uma totalidade, porque implica
uma unidade que permanece através e apesar de todas as modificações e, por
conseguinte, implica a liberdade que permite que toda a negação seja uma auto-
determinação e não uma limitação imposta do exterior. Mas sendo esta totalidade, o
conceito já inclui tudo o que se há-de manifestar na realidade e que a ideia, graças á
mediação, fará regressar à unidade. Aqueles que pensam, que a ideia é algo de diferente
do conceito, algo de particular, desconhecem a verdadeira natureza tanto da ideia como
do conceito. Difere o conceito da ideia por só representar a particularização de um
modo abstrato porquanto o que há de preciso e concreto no conceito é representado pela
unidade e universalidade ideais que são elementos conceptuais. Apesar disso o conceito
ainda continua unilateral, pois apresentando-se como sendo uma totalidade, só favorece
o livre desenvolvimento para a unidade e para a universalidade. Como, no entanto, tal
unilateralidade não se adequa à sua essência, o conceito suprime-a a fim de permanecer
fiel a si próprio. Por isso nega-se precisamente como unidade e universalidade cuja
subjectividade ideal transforma em objectividade real e independente. Em virtude da sua
actividade, o conceito apresenta-se, pois, como objectividade. Considerada em si
mesma, a objectividade não é senão o conceito na sua realidade, o conceito na forma de
particularização independente e de diferenciação real de todos os momentos de que é
composto e cuja unidade ideal é a do conceito subjectivo. Ora como só o conceito deve
revestir uma existência real na objectividade, é esta que terá de lhe conferir o sinal de
realidade. Consiste a força do conceito em, precisamente, não perder a sua
universalidade pela dispersão na objectividade, antes manifestar e salvaguardar a sua
unidade através e no seio da própria realidade. Só assim, ele representa a totalidade real
e verdadeira. Esta totalidade é a ideia, que não corresponde apenas à unidade ideal e
subjectiva do conceito, mas também à sua objectividade que, sem apresentar a menor
oposição ao conceito, o relaciona consigo próprio. Do ponto de vista tanto subjectivo
como objectivo do conceito, a ideia é um todo e, ao mesmo tempo, é o acordo,
incessantemente renovável e renovado, de todas as totalidades parciais, é a unidade
mediadora delas. Só assim a ideia é a verdade, toda a verdade.

Tudo quanto existe só é, portanto, verdade enquanto ideia, pois só a ideia tem
existência verdadeiramente real. Um fenómeno é verdadeiro, não porque possua uma
existência exterior ou interior, não porque seja realidade em geral, mas porque a sua
realidade corresponde ao conceito. Só então aquilo que é se torna real e verdadeiro.
Verdadeiro não no sentido subjectivo da palavra, que é o da conformidade com as
minhas representações, mas no sentido objectivo pois o eu ou um objecto exterior, uma
acção, um acontecimento, um estado constituem, pela sua realidade, a realização do
próprio conceito. Quando falta esta identidade do real e do conceito, o existente não
passa de uma simples aparência onde se objectiva, não o conceito total, mas apenas um
seu aspecto abstrato que se torna independente da unidade e da totalidade e chega a
adoptar uma atitude de oposição para com o verdadeiro conceito. Por isso a única
realidade conforme ao conceito é a realidade verdadeira, a que manifesta a própria ideia.

Devemos reter primeiro que o nosso objecto – a história universal – se


desenrola no domínio do espírito. A natureza física intervém, mas a substância da
história é o espírito e o curso da sua evolução. A nossa consciência geral comporta a
noção de dois reinos: o da natureza e o do espírito. O reino do espírito compreende tudo
o que é produzido pelo homem. O domínio do espírito engloba tudo. O homem é aqui
activo. Faça o que ele fizer, ele é o ser em quem o espírito age. O espírito alcança um
conteúdo que ele não encontra já feito diante de si, mas que ele próprio cria fazendo-se
ele mesmo objecto e conteúdo de si próprio. O saber é a sua forma e o seu modo de ser,
mas o conteúdo é o próprio elemento espiritual. Assim, por sua própria natureza, o
espírito permanece sempre no seu próprio elemento – ou por outras palavras, é livre.
Segundo uma definição abstracta, pode-se dizer que a história universal é a
apresentação do espírito no seu esforço para adquirir o saber do que ele é em si. Os
orientais não sabem que o espírito ou o homem enquanto tal é em si mesmo livre. Como
não o sabem, eles não o são. Sabem unicamente que um só homem é livre. A
consciência da liberdade surgiu primeiramente entre os gregos, razão porque eles foram
livres. A história universal é o progresso da consciência da liberdade; é este progresso e
a sua necessidade interna que temos que reconhecer aqui. Dizemos portanto, que a
consciência que o espírito tem da sua liberdade e, por conseguinte, a realidade da sua
liberdade, constituem em geral a razão do espírito e, por isso, a destinação do mundo
espiritual. Ora, na medida em que este é o mundo substancial ao qual está subordinado o
mundo físico, na medida em que, parar, falar especulativamente, este último não tem
qualquer verdade frente ao mundo do espírito, elas (a consciência e a realidade da
liberdade do espírito) constituem assim o fim último do universo.

O espírito objectivo é a ideia absoluta, apenas em si; no terreno da finitude, a


sua racionalidade efectiva (real) conserva em si o aspecto fenomenal exterior. A
vontade livre inclui, de inicio, em si mesma, imediatamente, as diferenças, que
consistem em que a liberdade é a sua determinação e seu fim interiores e se refere a uma
objectividade exteriormente dada, que se cinde em três elementos: 1) um factor
antropológico, as necessidades particulares; 2) os objectos naturais exteriores, existentes
para a consciência e 3) a relação das vontades singulares (individuais) com as vontades
singulares, vontades que têm consciência delas mesmas enquanto diferentes e
particulares; esse aspecto constitui a matéria exterior necessária à existência da vontade.
Ora a finalidade dessa vontade é a realização do seu conceito, a liberdade no aspecto
objectivo, exterior, a fim de que esse aspecto seja um mundo determinado pela vontade;
e que a vontade, encontrando-se junto de si nesse mundo, unida a si mesma, complete o
conceito em ideia. A liberdade, assumindo a figura do mundo real, recebe a forma da
necessidade, cujo encadeamento substancial é o sistema das determinações da liberdade,
e cujo encadeamento fenomenal constitui o poder e o reconhecimento, quer dizer, o
valor da liberdade na consciência. Essa unidade da vontade racional e da vontade
individual, que é o elemento imediato e particular da realização da vontade racional,
constitui a simples realidade da liberdade. Dependendo tanto dela quanto o seu conceito
do pensamento, e sendo o universal em si, o seu conteúdo só adquire a sua verdadeira
determinação concreta na forma da universalidade. Posta nessa forma para a consciência
da inteligência, determinada como poder predominante, esse conteúdo é a lei. O
conteúdo, liberto da impureza e da contingência que possui no sentimento prático e nas
inclinações e informado não mais por essas formas, mas em sua universalidade, na
vontade subjectiva como hábito, mentalidade e carácter, constitui os costumes.

Essa realidade, de modo geral, como ser aí (presença) da vontade livre, é o


direito, que deve ser considerado como envolvendo não somente o direito jurídico, mas
todas as determinações da liberdade. Essas determinações, em relação à vontade
subjectiva, em que, enquanto universais, deve ter a sua existência, não podendo tê-la,
aliás, senão nessa vontade, essas determinações são os seus deveres, e são os seus
costumes, enquanto hábito e mentalidade. O que é um direito é também um dever. Pois
uma existência (presença) só é um direito no domínio livre da vontade substancial; é o
mesmo conteúdo que, em relação à vontade diferenciando-se como subjectiva e
individual, é dever. É o mesmo conteúdo que a consciência subjectiva reconhece como
dever e torna existente para os outros como dever. A finitude da vontade objectiva é,
assim, a aparência da diferença entre direitos e deveres. A vontade livre é: a)
inicialmente imediata e, portanto, individual (singular), é a pessoa; a existência que a
pessoa dá a essa liberdade é a propriedade. O direito, como tal, é o direito formal,
abstracto; b) reflectida em si mesma, existindo no interior de si mesma, e determinando-
se, assim, como vontade particular, (a vontade livre) é o direito da vontade subjectiva –
a moralidade; c) a vontade substancial é a realidade conforme o seu conceito no sujeito
e na totalidade da necessidade, - é a eticidade na família, na sociedade civil e no estado.

A filosofia do espírito compreende o espírito subjectivo, a sua negação que é o


espírito objectivo e a superação e conservação de ambos no espírito absoluto. O espírito
subjectivo é a primeira negação da natureza (e dos momentos desta: o puramente
mecânico, o puramente físico e o puramente orgânico): tal é o espírito natureza ou alma
objecto da Antropologia. A consciência é a negatividade da alma natural, o desdobrar
em interioridade e exterioridade e a fenomenologia ocupa-se exactamente da descrição
dos fenómenos da consciência. A recuperação e reconciliação da alma com o seu ser-
outro já analisada pela Psicologia.

O espírito subjectivo é um espírito não-livre. A primeira negação deste


momento é o direito, entendido como o mundo da liberdade realizada. A primeira
afirmação da liberdade do espírito objectivo é o direito; a segunda que é o negativo
desta, é a moralidade; a síntese superadora de ambas, a eticidade ou os bons costumes.
Portanto a doutrina da realização do espírito objectivo trata das criações da espírito
racional e livre e das formas ou instituições nas quais se incarna a liberdade. As
mudanças na vida histórica pressupõem algo de onde decoram, elas se devem à vontade
subjectiva. Mas como já demonstramos, a vontade subjectiva tem também uma vida
substancial, uma realidade, pela qual se move no essencial e dele faz o fim da sua
existência. Este elemento essencial onde a vontade subjectiva e o Universal se unem é o
todo ético e o Estado de que ele é a figura concreta. Na medida em que o indivíduo tem
em si o conhecimento, a fé e a vontade do Universal, o Estado é a realidade onde ele
encontra a sua liberdade e a fruição da sua liberdade. Assim o Estado é o lugar de
convergência de todo os outros aspectos concretos da vida, arte, direito, costumes,
comodidades da existência. No Estado, a liberdade torna-se objectiva e realiza-se
positivamente. Imagina-se que a sociedade é uma justaposição de indivíduos e que , em
limitando a sua liberdade, os indivíduos fazem com que esta limitação comum e este
constrangimento recíproco deixem a cada qual um pequeno lugar onde ele pode
entregar-se a si mesmo. Trata-se de uma concepção puramente negativa da liberdade.
Bem pelo contrário, o direito, a ordem ética, o Estado constituem a única realidade
positiva e a única satisfação da liberdade. É apenas no Estado que o Homem tem uma
existência conforme com a Razão. O fim de toda a educação é que indivíduo deixe de
ser qualquer coisa de puramente subjectivo e que ele se objective no Estado. Tudo o que
Homem é deve-o ao Estado: é lá que reside o seu ser. Todo o seu valor, toda a sua
realidade espiritual, é o estado que lhas confere. Quando a razão se torna um objecto
para ele enquanto sujeito cognoscente e se lhe apresenta como uma objectividade
imediatamente existente, esse facto constitui a sua realidade espiritual. É assim que o
homem tem consciência, é assim que ele participa dos costumes, das leis, da vida ética e
estatal. Pois o verdadeiro é a unidade da vontade subjectiva e da vontade geral: no
Estado, o Universal exprime-se nas leis, nas determinações racionais e universais.

As leis da ordem ética não são obra do acaso, mas a própria razão. Fazer por
que o substancial seja eternamente válido, presente e inevitável na conduta real e no
espírito dos homens – tal é o fim do Estado. É do interesse absoluto da razão que este
todo ético exista e é este interesse da razão que fundamenta o direito e o mérito dos
heróis que criaram Estados, qualquer que possa ter sido a sua imperfeição. O Estado não
existe para o cidadão. Poder-se ia dizer que o Estado é o fim e os cidadãos os meios.
Mas a relação fim/meios não tem validade aqui, pois o Estado não é uma abstracção que
se ergue diante dos cidadãos, mas estes são os seus momentos, tal como na vida
orgânica onde cada membro não é fim nem meio de um outro. O Estado é pois a forma
histórica específica na qual a liberdade adquire uma existência objectiva e frui da sua
objectividade. Pois a lei é a objectividade do espírito e a vontade na sua verdade; só a
vontade que obedece à lei é livre; pois ela obedece a si mesma, encontra-se junto de si
mesma e é livre na medida em que o Estado, a Pátria, constituem uma comunidade de
existência, na medida também em que a vontade subjectiva se submete às leis, a
oposição entre a liberdade e a necessidade desaparece. O racional enquanto substancial
é necessário e nós somos livres quando nós o reconhecemos como lei e quando lhe
obedecemos como à substância do nosso ser; a vontade objectiva e a vontade subjectiva
encontram-se então reconciliadas e formam a mesma totalidade imperturbável.

Também a arte participa da esfera absoluta do Espírito enquanto se ocupa da


verdade como de um objecto absoluto da consciência, e assim se coloca, pelo seu
conteúdo no mesmo plano da religião, no mais especial sentido desta palavra, e da
filosofia. Porque também a filosofia só tem como objecto Deus (na sua versão
metafísica) e constitui, por isso, uma teologia essencialmente racional e um serviço
divino de culto à verdade. Se assim têm o mesmo conteúdo, os três reinos do espírito
diferem, no entanto, pela forma em que, dentro de cada um deles, se apresenta à
consciência o mesmo objecto, quer dizer, o Absoluto. As diferenças das formas
reportam-se ao próprio conceito de absoluto. O espírito, enquanto espírito verdadeiro,
existe em si e para si; não é portanto uma essência abstrata, exterior ao mundo dos
objectos, mas reside no íntimo deste mundo e conserva no espírito finito a lembrança da
essência de todas as coisas, lembrança que permite ao finito a apreensão do finito, ou
seja de si próprio, de um modo essencial e absoluto. A primeira forma desta apreensão é
um saber que todas as coisas considera do ponto de vista sensível e objectivo e no qual
o absoluto é surpreendido pela intuição e apreendido pela sensibilidade. A segunda
forma é a da representação consciente, a terceira a do livre pensamento que é o
pensamento do espírito absoluto. A intuição sensível pertence à arte que confere à
verdade a forma de representações sensíveis. Estas representações, até como tais, têm
um sentido e uma significação que ultrapassam a esfera puramente sensível; não se
propõem, todavia, através destes modos sensíveis, tornar concebível o espírito em toda a
sua universalidade pois é, precisamente, a unidade deste com o fenómeno individual que
constitui a essência do belo e a sua representação pela arte. Ora esta unidade,
fundamento da arte, não se realiza apenas no domínio da exterioridade sensível, mas
também no da representação e, mais particularmente, na poesia. Até a poesia, que é a
mais espiritual de todas as artes, se caracteriza pela unidade da sua significação e da sua
forma individual, o que não a impede de também existir para a consciência
representativa, graças à qual todo o conteúdo é apreendido de um modo imediato e vem
a ser objecto de representação. Observemos que, sendo a verdade o objecto da arte, não
pode o espírito torná-la perceptível por intermédio de elementos naturais isolados, tais
como, por exemplo, o sol, a lua, a terra, as estrelas, etc. São estes elementos existências
sensíveis, é certo, mas particulares e, portanto, incapazes de dar a intuição ao espiritual.
Conferindo assim, à arte um valor absoluto, intencionalmente pomos de lado a ideia que
daria à arte o poder de utilizar os mais variados conteúdos e por isso servir interesses
que não seriam propriamente os seus. A religião, pelo contrário, serve-se muitas vezes
da arte para tornar a verdade religiosa mais sensível e mais acessível à imaginação;
podemos neste caso, dizer que a arte está ao serviço de um domínio que não é o seu.
Mas sempre que a arte se afirma na suprema perfeição, é ela precisamente que, pelas
formas imaginíficas, dá da verdade a mais apropriada expressão, a que melhor
corresponde à essência dela. Entre os gregos por exemplo, a arte era a forma mais
elevada de que um povo dispunha para representar os deuses e apreender
conscientemente a verdade. Por isso, os artistas e os poetas gregos vieram a ser os
criadores dos deuses, quer dizer, deram ao povo uma representação definida da vida e
acções dos deuses e à religião um conteúdo definido. Enganar-se-ia quem pensasse que
essas representações e reacções já existiam na consciência em forma abstrata, como
proposições e determinações religiosas de carácter geral, antes da poesia, e que só
posteriormente elas foram revestidas de imagens pelos poetas, cobertas do envoltório
exterior da poesia. Pelo contrário: empenhados na actividade artística, os poetas só
podiam exprimir o que neles fermentava mediante esta forma determinada da arte e da
poesia. Em outras fases da consciência religiosa, quando o conteúdo religioso se
apresenta menos acessível à representação artística, muito mais reduzida se torna a
interferência da arte no domínio da religião. Tal seria o lugar original e verdadeiro que à
arte deve pertencer como interesse supremo do espírito.

Mas tendo a arte o seu antes, possui também como na natureza e nas esferas
finitas da vida, o seu depois, quer dizer, um domínio que ultrapassa o seu modo de
apreensão e de representação do absoluto. É que a arte tem em si os seus limites e deve,
por isso, ceder o lugar a formas de consciência mais elevadas. Também esta limitação
determina o lugar que em geral atribuímos à arte na nossa vida actual. Para nós a arte, já
não é a forma mais elevada que a verdade escolhe para afirmar a sua existência. De um
modo geral, já há muito que o pensamento deixou de atribuir à arte a representação
sensível do divino. Isso aconteceu já, por exemplo, com os judeus e os maometanos e
até com os gregos, pois Platão adoptava uma atitude de firme oposição aos deuses de
Homero e Hesíodo. Todos os povos que atingem um avançado estádio de civilização
chegam, em geral, a um momento em que a arte alcançou qualquer coisa que a
ultrapassa. Assim, por exemplo, os elementos históricos do cristianismo, a aparição de
Cristo, sua vida e morte, proporcionaram à arte, sobretudo de à pintura, numerosas
ocasiões de se manifestar, o que a própria Igreja favoreceu e encorajou; mas quando o
movimento em favor do saber e da investigação, e a correlata exigência de
espiritualidade, provocaram a Reforma, também a representação religiosa foi despojada
do seu carácter sensível e orientada para a interioridade da alma e do pensamento. Deste
modo, o depois da arte consiste em que é inerente ao espirito a exigência de só
reconhecer como verifica a verdade, a que descobre no interior de si próprio(a). Em seus
primórdios, a arte ainda dá uma impressão de mistério, ainda provoca uma espécie de
pesar que se explica pela incapacidade de as suas produções darem uma representação
sensível e exaustiva de todo o conteúdo. E quando este conteúdo obtém na arte, uma
representação completa e total, então o espirito, cujo olhar vê mais além, desvia-se
dessa objectividade para reentrar dentro de si. É o que em nossos dias acontece.
Poderemos ainda esperar que a arte não cesse de se elevar e aperfeiçoar, mas o certo é
que a sua forma já deixou de satisfazer as exigências mais altas do espírito. Pareçam-
nos embora, incomparáveis as imagens dos deuses gregos, tenham maior dignidade e
perfeição as representações de Deus Pai, de Cristo, da Virgem Santa: a admiração que
estas estátuas e imagens nos provocam é impotente para nos obrigar a cair de joelhos.

O domínio que de mais perto ultrapassa a arte é o da religião. A consciência


religiosa adquire a forma de representação, o absoluto transita da objectividade da arte
para a interioridade do sujeito e oferece-se à representação de um modo subjectivo, pelo
que o coração e a alma, a subjectividade em geral, vêm a constituir o principal
momento. Pode caracterizar-se esta progressão da arte para a religião dizendo que a arte
só representa um aspecto da consciência religiosa. Se efectivamente, a obra de arte
representa, na forma mais sensível de um objecto, a verdade ou o espírito, e nessa
representação vê uma expressão adequada do absoluto, a religião acrescenta-lhe a
devoção que constitui a atitude interior para com o objecto absoluto. A devoção e sem
dúvida, estranha à arte como tal, ela provém de o sujeito se deixar penetrar
interiormente por aquilo que a arte objectiva, mediante a sensibilidade externa, e de com
esta se identificar de tal modo que a interioridade da representação e a intimidade do
sentimento se torna o elemento essencial da existência do absoluto. A devoção é o culto
da comunhão na sua forma mais pura, mais intima, mais subjectiva; é um culto onde a
subjectividade se acha, por assim dizer, assimilada e digerida e o seu conteúdo,
despojado daquela objectividade, torna-se propriedade do coração e da alma.

Por fim, a terceira forma do espírito absoluto é representada pela filosofia. Na


religião, Deus aparece, primeiro, à consciência como um objecto exterior, pois tem de
se começar por saber o que Deus é, como se revelou e revela; a religião constitui, assim,
um elemento interior que estimula e constitui a comunidade. Mas a interioridade que
caracteriza a devoção da alma e da representação não é a forma suprema de
interioridade. O pensamento livre é a forma mais pura do saber, o pensamento com o
qual a ciência faz o seu conteúdo e assim se torna o culto mais espiritual, no sentido de
que o pensamento se revela capaz de apropriar e apreender o que, sem isso, só seria o
conteúdo da representação e do sentimento. É assim, que a arte e a religião acham a sua
união na filosofia: une ela, por um lado a objectividade da arte que, perdendo o que
tinha de sensível, desta perda encontra uma compensação na forma mais elevada do
objectivo, isto é, no pensamento; une, por um lado, a subjectividade da religião que se
purifica até constituir a subjectividade do pensamento. O pensamento constitui,
efectivamente, a mais íntima e autêntica subjectividade, e a ideia verdadeira, que é
também a generalidade mais completa e objectiva, só no pensamento se deixa apreender
como tal. Concluindo, o pensamento é a forma mais pura do saber. Supera o sentimento
(arte) e a representação (a religião); ou seja, a arte é a tese; a religião a antítese; a
filosofia a negação da negação, isto é a união das duas anteriores. A antropologia é a
negação da negação (afirmação) de todas numa só questão – o que é o Homem?
A RELAÇÃO EU-TU E O PRIMADO DO REAL

Só um ser real e total pode ter por objecto o real, na sua realidade e na sua
totalidade, este é o novo primado. Razão por que a filosofia toma por princípio de
conhecimento e por sujeito, não o eu, nem o espírito absoluto, isto é, abstrato, nem
numa palavra, a razão para si, mas o ser real e total do homem. Só o homem é a
realidade e o sujeito da razão. É o homem que pensa, e não o eu ou a razão. O novo
primado filosófico apoia-se não sobre a divindade ou sobre a vontade da razão para si,
mas sobre a divindade ou verdade do homem total. Dito de outro modo: ela apoia-se
sobre a razão, mas sobre a razão que tem o ser humano por essência; apoia-se não numa
razão sem ser, sem cor ou nome, mas sobre uma razão impregnada de sangue do
homem. Assim, enquanto que a antiga filosofia dizia: só o racional é o verdadeiro e o
real, esta filosofia apoia-se num princípio em que só o humano é o verdadeiro e o real;
pois o humano é o racional; o homem é a norma da razão.

O homem para si não possui em si a essência do homem, nem a título de ser


moral, nem a título de ser pensante. A essência do homem não está senão na unidade do
homem com o homem, unidade que repousa unicamente na realidade da distinção do eu
e do tu. O real na sua realidade é o sensível – o objecto real dos sentidos. O objecto
dado pelo pensamento ou idêntico ao pensamento é apenas pensamento. Pelo contrário
o objecto real exige um outro ser que aja sobre mim, este outro ser são os sentidos. A
filosofia antiga, que separava estes dois mundos – o do pensamento e o da realidade.
Colocava-se então a questão de como é que agiam uns sobre os outros, por exemplo, em
Descartes, como age a alma sobre o corpo. Aqui, a questão é simples: só o sensível
resolve o mistério da acção recíproca. Só os seres sensíveis agem uns sobre os outros.
Eu sou eu (para mim) e ao mesmo tempo tu (para outrem). Feuerbach escrevera: «o
Homem é para si mesmo, simultaneamente eu e tu; e se ele se pode colocar no lugar do
outro, é precisamente porque tem por objecto a sua espécie e a sua essência e não
apenas a sua individualidade.» Mas qual é então a essência do homem de que só o
homem toma consciência, ou, por outras palavras: o que é que constitui a espécie, a
verdadeira humanidade do homem? O mesmo filósofo responde: «... é a razão, a
vontade e o coração. A razão, o amor e a vontade são perfeições, são as forças
supremas, a essência absoluta do homem como homem e o fim da sua existência. O
homem existe para conhecer, para amar e para querer.»

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