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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

DISCIPLINA PRODUÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS

SILVA, Beatriz Amorim de Azevedo e; GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Novos percursos da
ciência: divulgação científica no meio digital a partir de uma análise contrastiva. Bakhtiniana.
Revista de Estudos do Discurso, [s. l.] São Paulo, v. 14, n. 1, p. 51-73, nov. 2018. Disponível
em: https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/36377. Acesso em: 22 out. 2019.

Maytê Cristine do Nascimento Moreira1


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

O artigo intitulado “Novos percursos da ciência: as modificações da divulgação


científica no meio digital a partir de uma análise constrastiva”, publicado em 2018 pela
revista Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, foi resultado da pesquisa de Iniciação
Científica Análise comparativa de discursos: a popularização científica no canal brasileiro
Nerdologia e no canal americano SciShow. O projeto foi realizado pelas autoras Beatriz
Amorim de Azevedo e Silva, aluna de graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas na Universidade de São Paulo (USP), e Sheila Vieira de Camargo Grillo, orientadora
da pesquisa e professora associada na mesma instituição.
Grillo possui produções anteriores vinculadas à temática do artigo, tais como uma
tese para obtenção do título de livre-docência, intitulada Divulgação científica: linguagens,
esferas e gêneros (2013), bem como um ensaio de análise comparativa do discurso, escrito
com o autor M. Glushkova, intitulado A divulgação científica no Brasil e na Rússia: um ensaio
de análise comparativa de discursos (2016) – ambos utilizados na exposição de conceitos no
presente artigo. A produção da pesquisadora acerca dadivulgação científica não constitui
coincidência, pois o tema vai ao encontro do que foi o seu propósito ao realizar trabalhos
com arquivos de V. Volóchinov, em São Petesburgo, e de M. Bakhtin, em Moscou, durante
estágios pós-doutorais realizados na Rússia. Também conhecida hoje como uma das
tradutoras dos documentos do Círculo de Bakhtin, ficam claras as preferências do amparo
teórico utilizados no artigo mencionado.

1 Aluna de graduação em Letras/Língua Portuguesa na Escola de Humanidades da PUCRS.


A divulgação científica (DC) é alvo de discussões, e mesmo objeto de estudo, desde
quando se constituía quase exclusivamente na esfera de imprensa. Atualmente, ao ganhar
espaço na internet, as esferas com as quais a DC se relaciona tornam-se cada vez mais
indefinidas, o que faz com que a temática se torne passível de ser amplamente discutida. O
objetivo das autoras constrói-se nesse sentido, pois ao analisar os canais Nerdologia e
Scishow, pretendem provar a divulgação científica se adapta em discurso ao meio digital,
“passando a veicular e materializar fortemente a cultura discursiva a que seus interlocutores
presumidos se associam, a partir do seu fundamento aperceptível de compreensão
responsiva”. (SILVA; GRILLO, 2019, p. 52)
Silva e Grillo discutem o assunto voltando-se principalmente para caráter dialógico
do enunciado, o que faz com que o ambiente digital seja extensamente efetivo para o
estudo, pois “constitui um importante redefinidor das formas de produção de linguagem na
atualidade, influenciando e modificando gêneros e modalidades de relação dialógica pelas
características peculiares ao seu funcionamento [...].” (p. 52). Por se inserir em assunto que
aborda consequência do crescimento digital-tecnológico, o qual exerce influência em várias
áreas dos conhecimento, o estudo suscita grande gama de interesses e contempla a
comunidade acadêmica em seu espectro geral, envolvendo pesquisadores das áreas da
Linguística e da Comunicação, mas também pessoas ligadas a atividades de produção
científica inscritas em qualquer área do conhecimento, além de produtores de conteúdo cuja
produção se assemelha aos objetos de análise, entre outras diversas possibilidades.
As autoras introduzem o trabalho expondo seu objetivo e o meio pelo qual o
alcançarão. A análise é comparativa, alinhada à metodologia de análise contrastiva do
discurso, desenvolvida principalmente pelos pesquisadores que compõem o grupo Syled-
Cediscor – axe sens et discours. O foco na transmissão do discurso alheio possibilita que se
investigue a representação da voz científica nos enunciados veiculados nas mídias digitais.
Desse modo, expõe-se a complexidade da relação entre o meio digital e a divulgação
científica, já que, ao passo que o primeiro constitui “uma configuração peculiar do
interlocutor presumido, caracterizado por sua indefinição e indistinção” (p.52), a segunda
tem como característica manifestar-se “em função principalmente do interlocutor
presumido” (p. 53). A tensão entre indefinição do interlocutor presumido oferecido pelo
ambiente digital e a necessidade que a DC apresenta de manifestar-se em função da
compreensão responsiva de seu pressuposto interlocutor está presente no desenvolvimento
de toda a análise.
A primeira seção, intitulada Apontamentos sobre o conceito de DC, expõe definições
centrais sobre divulgação científica. Para tanto, traça-se um interessante paralelo, que
estabelece contraste entre a própria autora em produção anterior, Grillo (2013), e os
autores Authier-Revuz (1998) e Zamboni (2001). Grillo destaca-se e alinha-se à proposta de
análise por sua concepção sobre o conceito de divulgação científica, pois não a considera um
gênero discursivo isolado, e sim um movimento de exteriorização de uma esfera discursiva
para outra, em que “A diversidade de esferas de produção será responsável pela escolhas
dos gêneros de discurso e mesmo pelas diferentes feições que um mesmo gênero pode
assumir em relação da esfera de circulação e recepção” (GRILLO, 2013, p. 91-92 apud SILVA;
GRILLO, 2019, p. 54). Assim, Grillo destaca também a importância do autor divulgador na
construção do enunciado, por “selecionar e produzir a DC por meio da consideração do
fundo aperceptível da compreensão responsiva do seu destinatário, isto é, tudo aquilo que
ele supostamente sabe, e que não sabe.” (p. 54).
Na segunda seção do artigo, Metodologia de definição do corpus e métodos de
análise e interpretação: a análise contrastiva de discurso aliada à teoria do Círculo, as
autoras realizam um levantamento das práticas metodológicas e dos conceitos
fundamentais para compreensão da base teórica empregada na pesquisa. Quanto à
metodologia, expõe-se que a análise é baseada na definição de Von Münchow, para quem a
linguística de estudos comparativos é a “manifestação de um mesmo gênero discursivo em
ao menos duas línguas/culturas, buscando descrever e interpretar as regularidades
discursivas”. (2004, p. 52. grifo das autoras). A definição que se encaixa perfeitamente com a
citação de Bakhtin evocada posteriormente pelas autoras: “A cultura só se revela com
plenitude e profundidade (...) aos olhos de outra cultura” (2011, p.366 apud SILVA; GRILLO,
2019). Ambas as definições explicitam, portanto, a escolha das nacionalidades dos canais
que compõem o corpus, sendo o Nerdologia um canal brasileiro e o Scishow um canal
estadunidense.
Ainda na mesma seção, em vista da base teórica, alguns conceitos bakhtinianos
básicos são trazidos ao texto, para que se compreenda o que há de indefinido no
pressuposto interlocutor das mídias digitais. Assim, aborda-se a noção de cadeias de
enunciados inseridos em contexto ideológico, “conectados de diversas formas e fortemente
ligados à situação histórico-social em que foram produzidos, que refletem a forma de pensar
de determinadas épocas, grupos sociais ou indivíduos”. (p.55). Levanta-se, então, os
questionamentos pertinentes ao estudo: “a que cadeias de enunciados estão associados os
jovens no meio digital atualmente?” (p.55). A consideração pela esfera do entretenimento,
junto à educacional e à jornalística, diferencia as autoras do que vem sendo produzido a
respeito do tema. Além disso, elas discorrem sobre os conceitos iniciais de gêneros
secundários e gêneros primários, fazendo com que a compreensão do estudo seja possível
para pessoas não inseridas na área da Linguística. Finalizando a seção, as autoras discutem
os aspectos invariantes possíveis entre os objetos, necessários para a definição do corpus.
Seguindo análise realizada por Cavalcante Filho, escolhem os objetos justamente pela
materialização das relações dialógicas de DC nos enunciados, e não pelos gêneros com os
quais eles trabalham.
A terceira seção, Análise e interpretação de dados, divide-se em descrever e analisar
as ocorrências e em interpretar os dados. Para análise, as autoras citam Volóchinov (2017),
em obra Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico
na ciência da linguagem, essencial para o trabalho, pois o autor “discute o assunto [discurso
alheio] distinguindo os conceitos de modelo de transmissão do discurso alheio e modificação
deste[...]” (p.59). Para ele, portanto, existiriam o modelo, que é como um “’molde’ abstrato
e idealístico da transmissão do discurso alheio, enquanto a modificação seriam as variantes
concretas de realização desse modelo” (p.59). Na análise feita pelas autoras, foram
encontradas ocorrências de dois modelos básicos propostos pelo autor: discurso direto e
indireto.
Na primeira subseção, de análise de dados, as autoras passam, então, à definição e
conceito das modificações, à medida em que estas ocorrem na exposição das transcrições
coletadas nos canais analisado. Somam-se treze enunciados transcritos e analisados, e sete
modificações cujos conceitos são explicitados brevemente. Em relação às modificações feitas
no modelo do discurso indireto, abordam-se as modificações analítico-objetual e analítico-
verbal; no que diz respeito ao modelo do discurso direto, abordam-se as modificações de
discurso direto preparado e discurso direto reitificado, sendo inseridas, posteriormente, as
modificações do discurso direto retórico e o substituído.
As análises não foram realizadas somente com caráter classificativo, ou atribuindo
um enunciado a um modelo de reprodução do discurso alheio e sua modificação. Foram
realizadas também análises a respeito da intencionalidade e da função que os enunciados
exercem empregados nos contextos dos canais analisados. Por exemplo, na análise da
amostra de discurso direto preparado, esse aspecto aparece claramente, pois as autoras
definem que as ocorrências nessa modificação no canal Scishow “possuem função de
esclarecimento, aparecendo dentro de uma história que ilustra o conceito tratado pelo
autor” (p.62), ao passo que, no canal Nerdologia, “essa modificação aparece como forma de
citação literal do discurso científico, principalmente para concluir um argumento construído
ao longo do vídeo” (p.62). Verifica-se, então, a realizada.
Na segunda subseção, de interpretação de dados, sintetizam-se os dados e as
possíveis conclusões que eles suscitam, separados novamente pelas modificações nos
modelos de reprodução de discurso alheio. Destacam-se nos resultados alguns aspectos que
fizeram com que as autoras construíssem relevantes conclusões. Por exemplo, o modelo de
discurso mais recorrente foi o indireto, principalmente em sua modificação analítico-
objetual. As autoras observaram, porém, que “ambas as modificações do discurso indireto
nos dois canais apontam para um mesmo objetivo pretendido: a associação dos enunciados
com a esfera científica, na tentativa de firmar-se como fontes confiáveis de informações
científicas.” (p. 66).
As autoras expõem, na sequência, que “o discurso direto é definido por Volóchinov
como um estilo pictórico de transmissão do discurso alheio, de extrema leveza de interação
e de penetração mútua entre o discurso autoral e alheio e, portanto, desassociado de um
contexto científico e racionalista” (p.66). Retorna-se, então, aos conceitos de gêneros
primários e secundários de Bakhtin (2011), e conclui-se que a utilização do modelo de
discurso direto inserido nos enunciados tem objetivo de associá-los aos gêneros primários
do discurso, os gêneros do cotidiano.
Para finalizar a análise de dados, as autoras expõem quadros que possibilitam uma
visão geral das atividades exercidas pelas pessoas na internet no Brasil e nos Estados Unidos.
Considerando dados obtidos nesses quadros, Silva e Grillo conseguem estabelecer relação
entre a representação do discurso científico dos dois canais analisados. Destaca-se que o
Brasil e os Estados Unidos “possuem um número elevado de jovens em atividades de
pesquisa e estudo, e em atividades de lazer [...]. No entanto, nota-se um distanciamento
maior entre os jovens e as demais faixa etárias nas atividades de lazer em relação às
atividades de estudo, distância que é mais acentuada no quadro americano que no
brasileiro” (p. 70).
Voltando à ideia de interlocutor presumido, as autoras destacam que os
interlocutores presumidos são diferentes para cada canal e em cada país, embora os dois se
insiram na mesma plataforma no ambiente digital. Nesse sentido, o canal brasileiro busca,
então:
empregar o estilo científico sem ser associado aos gêneros acessados para
atividade de estudo: para tanto, parece se utilizar de uma linguagem
marcadamente científica [...] na qual recursos de gêneros secundários são
utilizados em abundância, e os recursos de gêneros primários são integrados às
necessidades dos primeiros, gerando uma didática disfarçada por trás dos
elementos cotidianos. (2019, p.70, grifos das autoras).

Paralelamente, conclui-se que o canal americano, por sua vez, não possui público
presumidamente familiarizado com a esfera científica e seus gêneros, “portanto, não
possuidor de um fundo aperceptível amplo sobre os assuntos por ela abarcados” (p. 71). Isso
faz com que a cultura discursiva não seja tão específica quanto a do Nerdologia, exigindo
abordagem mais generalizada do discurso científico.
Para finalizar, é importante considerar que o artigo se inicia com uma incessante
exposição de conceitos e teorias, e que, por fim, na análise dos dados, os resultados obtidos
são sólidos e facilmente visíveis. Essa situação demonstra que os conceitos incessantemente
expostos se tratam de uma especialização das autoras a respeito do tema tratado, e não de
uma abstração teórica sobre o campo da análise do discurso, sem experiência ou
aproximação com os enunciados que compõem a vida real. Os termos expostos são
utilizados em cada conclusão sólida tirada.
Considerando também que a problematização sobre a adaptação do discurso
científico não comporta em si uma novidade, as autoras, nesse sentido, afastam-se do lugar-
comum, visto que abordam a divulgação científica como discurso consolidado, sem que se
suscitem parâmetros de validade quanto à veracidade da informação – embora não
eliminem a reflexão, posto que o artigo pode servir ao leitor como recurso cultural para sua
própria formação de valores.

REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, J. A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica. In:
AUTHIER-REVUZ J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Trad. E. P. Orlandi et al.
Campinas: Editora Unicamp, 1998, p. 107-131.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 261-306.
GRILLO S. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. 2013. 333 f. Tese apresentada
ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas como requisito parcial para obtenção do
título de livre-docente na área de Filologia e Língua Portuguesa. Universidade de São Paulo,
São Paulo.

GRILLO, S.; GLUSHKOVA, M. A divulgação científica no Brasil e na Rússia: um ensaio de


análise comparativa de discursos. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v.
11, n. 2, p.69-92, mar. 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/. Acesso em: out. 2019.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método


sociológico na ciência da linguagem. Trad. S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34,
2017.

VON MÜNCHOW, P. Réflexions sur une linguistique de discours comparative: l ecas du jornal
télévisé em France et em Allemagne. Tranel. Neuchâthel, p. 47-70, jun. 2004. Disponível em:
http://www.unine.ch/cms/render/live/en/sites/tranel/home/tous-les-numeros/tranel-
40.html . Acesso em: out. 2019.

ZAMBONI, L; Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade


no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, FAPESP, 2001.

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