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- Vamos atravessar! - a voz do Comandante era como o quebrar de uma fina camada de
gelo. Estava de uniforme de gala e tinha o boné branco, cheio de galões, caído
displicentemente sobre um dos olhos frios e cinzentos.
- Não vamos conseguir, Senhor Comandante. Vem aí um furacão, se quer saber a minha
opinião.
- Não quero saber a sua opinião, Tenente Berg - disse o Comandante - Potência
máxima! Aumentem a velocidade de rotação até os 8.500! Vamos atravessar!
- O Velho vai fazer-nos atravessar - diziam entre si - O Velho não tem medo do
Inferno...
- Não vá tão depressa! Você está correndo demais! - disse a Sra. Mitty - Por que você
dirige tão rápido?
- Você estava a mais de oitenta por hora - disse - Você sabe que não gosto de andar a
mais de sessenta. Você estava a mais de oitenta.
- Você está ficando tenso outra vez - disse a Sra. Mitty - Você está num daqueles dias.
Devia deixar que o Dr. Renshaw o examinasse.
- Já discutimos isto - disse, saindo do carro - Você não é mais uma criança.
Walter Mitty levou a mão ao bolso e tirou as luvas. Colocou-as, mas depois que a
mulher virou-se e entrou no prédio e que ele chegou ao sinal, começou a tirá-las
novamente.
- Vamos com esse carro! - repreendeu o policial, quando o sinal abriu. Mitty tirou
apressadamente as luvas e avançou num solavanco. Dirigiu sem destino pelas ruas
durante algum tempo e passou em frente ao hospital, a caminho do estacionamento.
- Sim? - respondeu Walter Mitty, tirando lentamente as luvas - Quem está tomando
conta do caso?
- O Dr. Renshaw e o Dr. Benbow, mas há também dois especialistas, o Dr. Remington
de Nova Iorque e o Dr. Pritchard-Mitford de Londres. Veio de avião.
Abriu-se uma porta em um corredor comprido e frio e apareceu o Dr. Renshaw. Parecia
aturdido e extenuado.
- Olá, Mitty - disse - Estamos passando um mau bocado com McMillan, o banqueiro
milionário que é amigo íntimo de Roosevelt. Obstrução terciária de canal. Gostaria que
você o olhasse.
- Não sabia que você estava nos Estados Unidos, Mitty - resmungou Remington -
Chamaram-me e ao Mitford para ensinar o padre nosso ao vigário!
Alguém lhe passou uma caneta-tinteiro. Ele puxou um pistão avariado da máquina e
introduziu a caneta no seu lugar.
Uma enfermeira veio correndo e sussurrou uma coisa qualquer a Renshaw, e Mitty viu o
médico empalidecer.
Mitty olhou para ele, para a figura amedrontada de Benbow, que suava em bicas, e para
a fisionomia carregada e hesitante dos dois grandes especialistas.- Se você prefere -
disse.
Vestiram-lhe uma bata branca; ajustou a máscara e colocou umas luvas finas; as
enfermeiras passavam-lhe reluzentes instrumentos cirúrgicos...
- Para trás, chefe! Cuidado com esse Buick! - Walter Mitty pisou fundo no freio - Você
está na contra-mão! - disse o empregado do estacionamento, olhando fixamente para
Mitty.
- Ih! É! - murmurou Mitty.
O empregado saltou para dentro do carro, recuou com uma perícia insolente, e o
arrumou no lugar.
São tão terrivelmente convencidos, pensou Walter Mitty, caminhando pelas ruas do
centro da cidade; pensam que sabem tudo. Uma vez tentara tirar as correntes das rodas
do carro, nos arredores de New Milford, e as enrolou todas nos eixos. Teve que vir um
homem num reboque para desenrolá-las. Um jovem mecânico que não parava de rir.
Desde então a Sra. Mitty sempre o fazia levar o carro à oficina para tirarem as correntes.
Da próxima vez, pensou, vou com o braço na tipóia; eles assim já não vão sorrir. Vou
com o braço na tipóia e eles hão de ver que eu não poderia de modo nenhum tirar as
correntes sozinho. Enterrou o pé na lama do passeio. - Galochas - disse para consigo
mesmo, e pôs-se à procura de uma sapataria.
Quando voltou para a rua, com as galochas numa caixa debaixo do braço, Walter Mitty
começou a pensar qual seria a outra coisa que a mulher lhe tinha dito para trazer. Ela
falara duas vezes, antes de saírem de casa para Waterbury. De certa forma ele detestava
estas viagens semanais à cidade - sempre fazia alguma coisa errada. Lenços de papel –
pensou – pomada, lâminas de barbear? Não. Pasta de dentes, escova de dentes,
bicarbonato, esponja-de-aço, desiderato, estardalhaço? Desistiu. Mas ela ia lembrar-se.
"Onde está o não-sei-o-quê", perguntaria. "Não me diga que esqueceu do não-sei-o-
quê". Passou um rapaz a vender jornais e a gritar uma coisa qualquer sobre o
julgamento de Waterbury.
- ...Talvez isto lhe refresque a memória - O promotor agitou uma arma pesada diante da
figura calma no banco das testemunhas - Já viu isto alguma vez?
- Imagino que o senhor seja um atirador de primeira com todo o tipo de armas de fogo -
prosseguiu o promotor, num tom insinuante.
- Objeção! - gritou o advogado de Mitty - Demonstramos que o réu não pode ter
disparado. Demonstramos que ele tinha o braço direito na tipóia, na noite de 14 de
julho.
- Com todo o tipo de arma conhecido - disse, tranqüilo - eu poderia ter matado Gregory
Fitzhurst a cem metros de distância com a minha mão esquerda.
- Cão desprezível!...
"Ração pra cachorro", disse Walter Mitty. Estacou o passo e os prédios de Waterbury
emergiram do tribunal nebuloso para novamente o rodearem. Uma mulher que passava
sorriu.
- Ele disse "ração pra cachorro" - disse ao seu companheiro - Aquele homem disse
"ração pra cachorro", falando sozinho.
Walter Mitty apressou-se. Entrou numa loja de animais, não a primeira que encontrou
mas uma segunda, menor, um pouco acima na mesma rua.
- Na caixa está escrito: "Os cachorros ladram por ela" - disse Walter Mitty.
- ...O bombardeio deixou o jovem Raleigh muito nervoso, Capitão - disse o Sargento.
O Capitão Mitty levantou os olhos para ele, por entre os ralos cabelos despenteados.
- Não pode fazer isso, Capitão - disse, ansioso, o Sargento - São necessários dois
homens para controlar esse bombardeiro e os inimigos estão fazendo do céu um inferno.
O palco dos combates vai daqui até Saulier.
- Alguém tem que chegar àquele paiol - disse Mitty - Lá vou eu. Uma dose de
conhaque?
Serviu uma dose para o Sargento e outra para si. A guerra trovejava e gemia à volta da
trincheira e fustigava a porta. A madeira estalou e farpas atravessaram a sala.
- Só se vive uma vez, Sargento - disse Mitty, no seu sorriso leve e rápido - Não é?
- O quê? - disse a Sra. Mitty - Você trouxe o não-sei-o-quê? A ração pra cachorro? O
que é que está dentro dessa caixa?
- Estava pensando - disse Walter Mitty - Nunca lhe ocorreu que eu às vezes posso estar
pensando?
James Thurber
James Thurber (1894-1961) nasceu em Columbus, Ohio, onde, depois de freqüentar a
Universidade, começou a sua longa carreira de jornalista. Foi repórter em Paris para o
Chicago Tribune, mudando-se em 1926 para New York, onde começou por trabalhar
para o Evening Post. No ano seguinte entrou para a redação do New Yorker,
recentemente fundado por Harold Ross. Durante anos o jornal foi marcado pelo humor e
pelo rigor conciso da sua escrita, acompanhada muitas vezes pelas suas inconfundíveis
ilustrações. Aí saíram quinze dos seus livros e aí foi publicado, pela primeira vez, A
Vida Secreta de Walter Mitty, o conto que tornaria Thurber conhecido em todo o
mundo. O seu breve retrato de um sonhador compulsivo penetrou rapidamente na
língua. Criaram-se clubes Walter Mitty. A personagem de Thurber passou do New
Yorker para o Reader's Digest e daí para revistas de medicina, para o cinema, para a
ópera, para o rádio e para o musical. Thurber morreu afetado pela cegueira que o
ameaçava desde a infância. Um dos seus últimos pedidos foi que, no dia da sua morte,
"A vida secreta de Walter Mitty" fosse publicado no New Yorker.
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© 20/05/1996 Atualizada em 16/09/2004