Nadejda Mandelstam lembrava as palavras dos poemas do marido, Ossip Mandelstam,
morto em um gulag. O bombeiro Montag, de Fahrenheit 451, relembra passagens do Livro de Eclesiastes. E o quê lembramos aqui? No espaço desta apresentação, falaremos das palavras de Tiago Rodrigues, dramaturgo português. Ou melhor, das palavras que não são dele. Nossa reflexão será sobre elas, mas sobretudo com ela, palavra que não são deste autor de textos em que o tema da citação se entrelaça à própria dinâmica de encenação. Em Sopro, por exemplo, assistimos o desenrolar das memórias de Cristina, que há 30 anos trabalha como “ponto” no mesmo teatro. A peça estrutura-se como um desfiar de trechos, falas e cenas de textos outros, que Cristina auxiliou os atores a lembrar, e que ela mesma não pode esquecer. Em nota menos doce, Três dedos abaixo do joelho é um texto composto por fragmentos retirados ao arquivo da censura salarazista: tanto trechos de peças rasurados, interditos, pelo controle da ditadura, quanto pedaços dos relatórios dos censores. Por fim, By heart, no coração deste procedimento, monta um dispositivo dramatúrgico em torno da tentativa de ensinar versos de um soneto de Shakespeare, o favorito de sua avó, ao público: enquanto isso, Rodrigues constrói uma longa tapeçaria de citações em torno justo da ideia de citação, com trechos de George Steiner, Ray Bradbury, Anna Akhmátova, entre outros. É esse “citar de cor”, de coração, que parece movimentar sua poética e incitar uma reflexão tanto sobre as formas de constituição de um arquivo, bem como de seu uso. Na operação semiótica singular de seus textos, Rodrigues parece constituir, por meio da rasura, um segundo arquivo sobre arquivos “oficiais”, na medida em que seleciona fragmentos por uma espécie valor de uso; e este segundo arquivo, por sua vez, existe apenas na medida em que é enunciado, encenado, performado. Ao propormos uma investigação do par arquivo/performance – com Rodrigues, e também com teorias estabelecida a respeito, de Jacques Derrida a Judith Butler, passando pelos estudos arquivísticos contemporâneos – buscamos desmontar uma oposição binária entre ambos os conceitos, na demonstração de uma dinâmica da apropriação que faz confundir os direitos de posse e custódia dos textos, das inscrições sígnica. Nesta manipulação do inventário, confundem-se seus sentidos de listagem, de herança e de designação, no sentido de uma comunicabilidade da memória, que só existe no coração da cena.