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Jun 30, '05 11:20

Cosmovisão Africana no Brasil: Elementos para uma Filosofia AM


Afrodescendente - Eduardo David de Oliveira by Cassius for
everyone
INTRODUÇÃO
 
           
Quanto mais acirra-se o sistema de exclusão social no planeta, mais torna-se
urgente encontrar outros caminhos para a organização da vida e da produção
que garanta o bem viver de todos e de cada um. O Sistema do Capital,
pretensamente universal e realmente imposto ao mundo todo, tem como
fundamento uma cosmovisão essencialista, excludente e individualista,
caucada no princípio da identidade, nos processos de legitimação formal e na
política de dominação. A exclusão econômica e social é legitimada por
princípios abstratos que, no plano do discurso, justifica ideologicamente o
estado de coisas que preserva e aumenta a injustiça social em todo planeta e
no Brasil particularmente.
Influenciados por uma cultura ocidental - judaico-cristã quanto aos valores,
helenocentrista quanto à concepção, elitista quanto à organização social -
somos levados a pensar alternativas para o futuro, reificando o pensamento
escatológico de encontrar o paraíso no devir. Essa armadilha cultural tem-nos
privado de reconhecer nossa própria história e modelos criativos que
inventamos ao longo do tempo e em diversificados territórios do planeta.
Reféns das dicotomias reforma-revolução, moderno-arcaico, progresso-
tradição, não valorizamos os modelos sócio-econômicos  e políticos-culturais
fabricados pela complexa tradição africana, que, não obstante, espalhou-se por
todo o planeta levando consigo uma cosmovisão includente, imanente,
dinâmica e alterativa.
Este livro tem como objetivo elucidar o que chamamos de cosmovisão
africana e sua atualização no Brasil, refletindo sobre suas consequências
políticas, sociais, econômicas e culturais na sociedade brasileira. Pretendemos
dar ênfase na cosmovisão africana e nos modelos decorrentes dela, uma vez
que são modos de organização social realmente existentes que se erigem
como manifestações históricas e contundentes  que respeitam as diferenças e
promovem a alteridade.
            Aproveitando das contribuições da filosofia quanto da antropologia, da
história quanto da sociologia, procuramos apontar paradigmas que promovam
o bem-estar social e não aqueles que lançaram nosso planeta numa crise sem
precedentes na história da humanidade. O motivo pela procura de novas
formas de organização social são claros e aberrantes: ou nos damos conta do
momento de crise planetária que estamos passando e descobrimos outros
modelos de organização da vida e da produção que sejam includentes - que
respeitem a alteridade e não a aniquile, que seja ética e não cínica, que prime
pela qualidade da vida e não pela destruição do ecossistema - ou
encontraremos o fim da nossa espécie no modelo capitalista.  Estamos nos
primeiros dias da guerra dos E.U.A. contra o Iraque. Essa é uma guerra
assentada na cosmovisão ocidental que prefere aniquilar o outro a dialogar
com ele. É o paradigma da destruição, da vontade de potência, do desejo de
dominação que engendra atitudes desastrosas como a do governo americano.
Estamos no limiar da história. Ou valorizamos sistemas de inclusão e
valorização da vida – como o são os africanos e indígenas - , ou tornamo-nos
reféns e cúmplices da concentração do capital e da universalização da miséria
e da violência.
            O Sistema do Capital, CMI – Capitalismo Mundial Integrado, organiza-
se em torno de dois pólos: produção econômica e produção subjetiva, sendo
que a última ocupa um papel fundamental para a acumulação do capital.
Geralmente privilegia-se a análise econômica em detrimento da análise
subjetiva. No entanto, o capitalismo vale-se dos agenciamentos dos desejos e
da produção de subjetividades massivas para reproduzir o sistema do capital,
introjetando nos indivíduos e grupos de indivíduos valores sociais próprios do
sistema, aumentando com isso sua eficácia de reprodução e adaptação a
novas realidades. Elegendo-se a si mesmo como Universo Único de
Referência, sobrecodifica os outros regimes valorativos e apresenta-se como
único caminho para a organização econômica e social – o que implica um
sistema político e cultural condizentes.
            Acontece que o CMI não é o único regime de signos existente. Muito
pelo contrário, existe uma pluralidade de regimes semióticos tanto entre
culturas diferentes, quanto no interior de um mesmo território nacional. Ocorre
que o CMI hegemonizou o sistema sócio-econômico e político-cultural. Mas
hegemonia não significa onipotência, predomínio não significa existência
exclusiva. Com efeito, a cosmovisão africana configura-se num outro regime
semiótico agenciando desejos e promovendo valores no mínimo antagônicos
aos agenciados pelo CMI. O Capitalismo Mundial Integrado, na sua pretensa
totalidade, não consegue evitar as linhas de fuga que se desprendem de sua
malha; linhas de fuga essas que potencializam a criação de outros regimes
semióticos.
            As linhas de fuga são vetores de subjetivação que não estão
dominadas pelo regime dominante de signos, e, portanto, pode criar outros
regimes semióticos. A máquina abstrata, espécie de categoria-potência, livre
de qualquer territorialização, é a base da existência das linhas de fuga e dos
vetores de subjetivação auto-referentes, contrastando com a semiótica
significante – que é a semiótica do CMI.
            Os regimes subjetivos, então, nascidos ou gerados através das linhas
de fuga e das máquinas abstratas, opõem-se radicalmente ao CMI, uma vez
que, denuncia a flagrante falácia da semiótica significante (semiótica
dominante), que sempre redunda no próprio significante, jamais alcançando o
significado, instaurando, assim, a repetição do mesmo incessantemente e ao
infinito. É a absolutização do princípio de identidade.
            O regime de signos dominante que originou o CMI é estruturado sob os
já referidos equivalentes gerais. Tais equivalentes se manifestam na ontologia
(SER), na linguística (SIGNIFICANTE) e na economia (CAPITAL),
sobrecodificando os outros universos valorativos. Esta lógica cria as categorias
binárias de certo e errado, bem e mal, deus e diabo, sagrado e profano, puro e
impuro, original e mestiço, etc., desqualificando as diferenças singularizantes,
vulgarizando a complexidade do real e atacando as subjetividades éticas auto-
referentes.
            O problema dos regimes de signos significantes é que se auto-elegem
como os únicos possíveis, mas, como dissemos, as linhas de fuga dão margem
aos regimes subjetivos - que são polivalentes e diversificados, promovendo a
alteridade, respeitando as diferenças, reconhecendo os outros universos
valorativos.
            Segundo esse raciocínio, se o regime de signos dominante é o CMI, ou
seja, a semiótica do capital como semiótica significante, as linhas de fuga
permitem-nos encontrar outros modelos semióticos que, ao contrário do CMI,
promovam a justiça social e a emancipação humana, bem como a preservação
do ecossistema planetário.
            As linhas de fuga, portanto, dão margem para a criação de novos
modelos. Por isso fomos à África anterior à invasão européia averiguar que
elementos estruturantes haviam lá que pudessem servir de modelos dinâmicos
para a organização da produção e da vida no início do século XXI.
            Esta discussão insere-se dentro de um contexto mais amplo, que é a
dimensão  eminentemente política na qual este livro está inserido. Não
queremos recair no romantismo dos séculos passados, muito menos nas
teorias naturalistas da Modernidade. Nosso intento é apontar caminhos
possíveis  de organização da vida, mostrando , depois de uma crítica ao
Capitalismo Mundial Integrado, como é possível alternativas desde a
cosmovisão africana. Recuperar os elementos estruturantes dos Grandes
Impérios Africanos e verificar como na história do Brasil eles foram atuando de
maneira a estruturar a cultura negra brasileira não é tarefa das mais simples,
mas, de maneira sumária, procuraremos demonstrar como essa leitura da
história dos africanos e seus descendentes no Brasil é compatível com a
discussão sobre a globalização. Essa é uma perspectiva crítica no sentido de
colocar em crise o sistema do Capitalismo Mundial Integrado, e propositiva, no
sentido de apontar caminhos baseados na experiência afrodescendente.
            Este livro dedicar-se-á, portanto, a um desses universos de referência
que é a Cosmovisão Africana – construída com sabedoria e arte pela tradição e
atualizada com sagacidade e coragem por seus herdeiros. A herança da
cosmovisão africana altera a discussão sobre a identidade brasileira. Com
efeito, os afrodescendentes foram alijados de sua terra de origem, por um lado,
e menosprezados em suas terras de ocupação, por outro. Negados
ontologicamente em qualquer parte do mundo, suas culturas foram rotuladas
como atrasadas, animistas, folclóricas, bárbaras, primitivas, o que evidencia o
racismo a que foram historicamente submetidas a população africana e seus
descendentes. No Brasil, a teoria do branqueamento, a defesa ideológica da
democracia racial, o ocultamento da realidade desfavorável aos
afrodescendentes, denota a falácia da convivência harmoniosa entre as raças e
a mentira da ausência do racismo em terras brasileiras.
            Seria um engano conhecer o Brasil sem conhecer a história dos
afrodescendentes. Seria um engodo compreender o Brasil sem antes conhecer
a África. Seria uma lástima procurar entender a realidade social brasileira sem
compreender a realidade racial do país. Combater a discriminação racial não é
tarefa exclusiva do poder judiciário. É preciso re-pensar a história brasileira a
partir do legado africano. Sem isso, perderíamos em profundidade e qualidade
o conhecimento sobre nós mesmos. A brasilidade, em muito, é tributária da
africanidade. As africanidades re-desenham e re-definem a identidade nacional
e, com isso, o projeto político, econômico e social brasileiro. Ainda que o
discurso acadêmico e político tenha excluído, durante séculos, a experiência
africana no Brasil, sua influência não deixou de exercer papel fundamental na
construção desse país. Chegou o tempo de ouvir quem foi calado. Chegou o
tempo, não de resgatar nossos conteúdos culturais, mais de fazer valer, política
e socialmente, nossos valores civilizatórios, nossa forma cultural, nossos bens
simbólicos, tão rica e criativamente reelaborados pelos afrodescendnetes. Em
momentos agudos de crise urge ressaltar outros modelos de organização da
vida. Em momentos de rigidez diplomática e totalitarismo beligerante,
experiências de paz ganham força e raiam no horizonte da humanidade.  Em
momentos de massificação e repetição de sistemas autoritários, dinâmicas
civilizatórias construídas sobre a diversidade impõem-se com a força do
imperativo da inclusão, da alteridade ..., da vida!
            A identidade está inserida no jogo político que, por sua vez, está
enredado pelo mundo da cultura. Não há ingenuidade neste livro. Não há
romantismo. Escrevemo-lo no calor das lutas sociais, no ardor dos desejos da
construção da cidadania dos negros e não-negros, na esperança de um mundo
de paz, no compromisso com a causa dos afrodescendentes, no empenho de
fabricar, dia-a-dia e incansavelmente, um mundo governado pela ética.
            É assim que convidamos ao leitor para adentrar na aventura desse
livro, onde as fronteiras culturais são continuamente transpostas, onde a forma
convencional de pensar é frequentemente transgredida, onde persegue-se
obstinadamente o desejo de aprender com a diversidade das experiências
humanas. Convidamos ao leitor para ser parceiro na trajetória dos
afrodescendentes que souberam, num diálogo criativo com o sistema de
dominação, responder não com ódio, mas ternura, não com guerra, mas com
sistemas de inclusão, não com lamentos, mas com atitudes estético-sociais à
situação desumana a que foram submetidos. O convite está feito. Não apenas
humanizar-se, mas africanizar-se quanto a valores e formas de vida.
 
  I.COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da invasão européia.
 
 
            A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo
contrário, é analisando a história da África que podemos identificar sua
dinâmica civilizatória e a formação de sua Cosmovisão. A África, entretanto, é
continente grande demais e múltiplo em demasia em suas expressões
culturais. Por isso nos limitaremos a algumas regiões daquele continente,
sobretudo ao Império do Gana, Mali e Songai que tiveram sua existência entre
o século X e XV de nossa era. Não é possível aprofundar um trabalho como
esse, sequer todas as nuanças destes impérios, quanto mais da África como
um todo. Assim, quando nos referimos à África, é a uma porção do continente
que nos referimos.
            Consideremos, então, os três grandes Impérios Africanos que se
ergueram entre o século X e XV de nossa era. São eles: Gana (X a XII), Mali
(XIII a XIV) e Songai (XIV a XV),  todos localizados entre o Saara e o Sahel, 
obedecendo o deslocamento de ocidente para oriente. Politicamente
alternaram seu domínio na medida em que um entrava em crise e o outro
chegava a seu apogeu. Veremos, adiante, como estes impérios surgiram sob o
domínio de algumas etnias que hegemonizaram a política e a milícia da época.
            Por se tratar de um período histórico muito vasto, nossa pesquisa
utilizará o método macrossociológico. Privilegiando as macro-estruturas,
intentaremos identificar os elementos estruturantes dessa sociedade,
consolidando sua história através de uma perspectiva sócio-estrutural. Na
medida em que perguntamos porque surgiram estes grandes impérios na linha
geográfica ocidente-oriente, durante os séculos X e XV, sob domínio de etnias
determinadas, e, qual o contexto internacional onde surgiram e, ainda, como
funcionavam suas dinâmicas políticas e sociais, estaremos fornecendo as
primeiras respostas à como se formou a Cosmovisão Africana.
            Uma análise pormenorizada dos três grandes impérios africanos é
motivo para um trabalho de pesquisa que não cabe à esse livro e nem é seu
objetivo. A meta é, como dissemos, ressaltar os elementos estruturantes que
nos permitem dizer que existia uma unidade cultural na África antes da invasão
européia.
            Há três barreiras epistemológicas que teremos de vencer antes de
entrarmos propriamente na caracterização dos três grandes Impérios Negros. É
notório o fato da África, durante séculos, ter sido excluída dos vários saberes
desenvolvidos pela academia. Esta exclusão é fruto de preconceitos em
relação ao continente, e não raras vezes, tal exclusão foi fruto da mais vil
discriminação racial. A inferiorização que a África e seu povo vem sofrendo
durante todos esses séculos constitui-se numa grande barreira epistemológica
para se desenvolver pesquisas a respeito do continente do Arco-Íris[1]. Não
obstante o preconceito e a discriminação racial que sofre este continente, seu
povo e descendentes, a África continua  sendo um continente onde a
diversidade e a multiplicidade de culturas vem sendo respeitada e servindo,
inclusive, de modelo de organização para a vida. Para elucidarmos alguns
desses elementos, temos, portanto, que vencer algumas barreiras
epistemológicas.
            A primeira barreira epistemológica, defendida até mesmo pelo filósofo
Hegel[2], é que a África não tem história. Sendo um continente primitivo, onde
não ocorre mudanças, onde as estruturas sociais sempre permaneceram
“tribais”, e onde as inovações jamais existiram, muitos autores, até o século
XIX, consideraram que a África era um continente a-histórico, vivendo no mais
primitivo dos sistemas naturais.
            A segunda barreira epistemológica é a ideológica, que se resume,
fundamentalmente, na tentativa de mostrar que o continente africano fica fora
da história. Ou seja,  que monumentos bem como  outras manifestações
artísticas, assim como estruturas arquitetônicas que revelavam bom nível de
desenvolvimento social e político em África,  foram construídos por outros
povos que não africanos, e, de preferência, povos brancos advindos do
ocidente (fenícios, persas etc.). Ou seja, segundo essa concepção os africanos
são essencialmente passivos, incapazes de, por si mesmos, construírem a
história.
            A terceira barreira é ainda mais racista. É o caráter da miscigenação,
que diz que a obra dos grandes impérios negros e seus grandes feitos culturais
e políticos foram realizados por sujeitos não negros, ou, pelo menos, por
sujeitos miscigenados. Ou seja, mesmo reconhecendo que a África possui e
construiu uma história, tal história, na visão dos defensores da tese da
miscigenação, só foi possível porque não foram os negros – ou pelo menos
não foram eles sozinhos – que a construíram. Este preconceito contra os
africanos foi também formulado da seguinte maneira: os africanos do norte,
miscigenados com os árabes, povo de tez branca, possui história – uma
história islamizada, arabizada. Já os africanos ao sul do Saara seriam povos
totalmente primitivos, vista que sua miscigenação com povos brancos era
praticamente nula.
            Não é de hoje que o continente africano e seus habitantes sofrem com
as teorias racialistas. Seja pela negação da autonomia dos africanos, seja pela
desqualificação de sua história, seja pela inferiorização de sua identidade, os
africanos e seus descendentes são sistematicamente negados em sua
existência. A mestiçagem, na África em geral e especialmente no Brasil,
tornou-se não apenas uma barreira epistemológica para a compreensão da
dinâmica civilizatória dos afrodescendentes, mas também uma ideologia que
embota as efetivas relações raciais neste país, que, sem dúvida, é marcado por
um racismo exacerbado. O argumento binário do puro/impuro, original/mestiço,
branco (puro)/ negro (impuro)/ mulato (mestiço) serviu como uma poderosa
arma de dominação da elite – em sua maioria branca, masculina e católica.
            Nos anos 70, diz KI-ZERBO (1980), muitos historiadores africanos
quanto europeus, voltaram-se a uma pesquisa mais científica da África, o que
equivale a dizer que buscaram superar os preconceitos acima relacionados.
Isso deve-se, pelo menos, a dois motivos: 1) subjetivo: pois existe o desejo de
encontrar uma identidade africana; 2) objetivo: pois a independência de vários
países africanos traz de volta ao cenário político estas questões.
            Estas mesmas questões são fundamentais para discutirmos a
cosmovisão de matriz africana no Brasil, pois o problema da identidade
africana e dos descendentes dos africanos bem como as questões políticas
que permeiam a história dos negros na África e no mundo estarão sempre
presentes no decorrer deste trabalho. Na verdade, esse texto estará sempre
em torno da questão cultural e da questão política. Se privilegiamos analisar os
três grandes Impérios Africanos foi porque eles nos dão uma exemplar idéia da
dinâmica cultural africana antes da invasão européia. Estrategicamente os
escolhemos por se tratar de um exemplo histórico, capaz de fornecer-nos
dados suficientes para a tese da manutenção de uma cosmovisão africana que,
muito embora a distância no tempo, é atualizada nas manifestações culturais
dos afrodescendentes, bem como em seu modo de organizar suas instituições
– atualizando, no cotidiano, sua cosmovisão originária.
           
            Aspectos Históricos        
 
            Antes de falarmos dos Impérios Africanos, especificamente,  convém
contextualizar a África ao Norte e ao Sul do Saara, a fim de termos em mente a
situação geográfica e política de onde surgiram os grandes Impérios Negros.
            O deserto do Saara é o que divide a África negra da chamada África
branca. O Saara está em constante expansão, e vai obrigando os povos do Sul
a recuarem.
            Acima do deserto do Saara ocorreu a invasão islâmica. Estes povos, de
fenótipo mais claro, continuamente empurraram bolsões de população negra
para o sul da África. É por isso que divide-se o continente em África do Norte
(África Branca) e África Negra (ao Sul). Esta divisão ocorre, pelo menos, desde
o século XVIII. Vale dizer que a relação das duas Áfricas  é, por vezes, de
confronto, e às vezes, complementárias.
            Nesta região da África (da faixa que congrega tanto a região desértica
do Saara quanto a região de Savana do Sahel) a população, em sua maioria, é
nômade e se dedica ao comércio. É aí que os grandes impérios africanos irão
germinar e expandir-se.
            Antes da invasão islâmica, havia a escravização dos africanos abaixo
do Saara, mas a escravização era diminuta. Com a invasão árabe este
processo se intensifica e ganha uma justificativa ideológica: a conversão dos
pagãos para o islamismo.
Com efeito, havia escravidão na África antes da chegada dos árabes e
europeus. Porém, há diferenças notórias entre o que se chama de escravidão
africana antes e depois da invasão islâmica e européia. Antes da formação dos
grandes impérios, na região ao sul do Saara, tínhamos o deslocamento de
populações inteiras, que procuravam outros territórios para ocuparem, o que
provocava guerras étnicas entre os clãs, famílias-aldeia ou cidades-estado.
Desses confrontos resultavam os prisioneiros de guerra, que, dentro da visão
de mundo africana, não eram obrigados a rejeitar seus deuses, perder suas
línguas ou alterar seu modo de produção. O “escravo” se integrava ao clã,
família ou cidade-estado. Ou seja, havia o Patriarca, o Antepassado, os Filhos,
os Empregados e os “Escravos”.
            A diferença da escravidão em África e na Euro-Ásia, é que na dinâmica
civilizatória européia o escravo é coisificado em sua existência, passando a ser
tratado como coisa (“res”) - podendo ser, por isso, explorado como a um animal
ou, como foi o caso do Brasil, explorado mais que a um animal[3]. A
experiência civilizatória européia teve como propulsora uma cosmovisão de
mundo assentada em valores individualistas, burgueses e liberais, que
privilegiava o acúmulo de capital e não a distribuição de riquezas. Assim o
escravo era tido como uma mercadoria a mais na rede comercial que
sustentava o processo civilizatório ocidental. Na África, por outro lado, o
escravo ocupa outra função no interior do circuito escravocrata. Geralmente
sendo prisioneiro de guerra, o “escravo” é integrado na dinâmica da etnia que
dominou seu grupo de origem. Ele é incorporado dentro deste sistema. Ele não
é nadificado na valorização de sua existência. Ele não é transformado em
mercadoria ou instrumentalizado para aumentar o acúmulo de capital. Há,
inclusive, o caso de um “escravo” que chegou a Rei em uma das monarquias
africanas. Enfim, são culturas diferentes que tratam seus subordinados de
maneira diferentes, resultando num grande erro o emprego equivalente da
palavra “escravo” para a situação africana e para  a situação européia.
            Defendemos, a partir de uma leitura macrossociológica, que os
Impérios Africanos que se ergueram na faixa Saara, Sahel e Savana, funcionou
como “parapeito” para  inibir a dominação do sul da África pelos árabes. A
formação dos Impérios foi uma estratégia de defesa e uma resposta crítica à
islamização imposta pelos berberes.
            A população dessa região migrou massivamente em direção ao sul,
fugindo ao processo de homogeneização do islão, que no afã de sua cruzada
econômico-religiosa, dizimou muitas etnias. Era uma fuga da escravização.
Tanto em Gana, como no Mali e no Songai ocorreu a islamização. Acontece
que essa conversão ao islão fora superficial, pois apenas as elites governantes
se converteram. A maior parte da população, sobretudo a rural, permaneceu
fiel às religiões tradicionais africanas.
            Cronologicamente os Impérios vão surgindo no sentido ocidente-
oriente, se contrapondo às rotas de escravização árabe. A dominação árabe, é
sabido, não tinha apenas uma motivação religiosa para invadir aquele território,
pois quem controlasse o comércio asseguraria a hegemonia política e
econômica da região.
            A região do Sahel é uma zona de intensa troca de mercadorias. De um
lado, temos a  influência da África Negra, que conserva as matrizes africanas,
de outro, temos a influência da África Branca[4], predominantemente árabe.
            Não foi por acaso que os três grandes Impérios Africanos surgiram
entre o Saara e a Savana. Além dos interesses econômicos e religiosos, há
explicações político-culturais.  Ao sul da África temos outros tipos de
organização social e política dada a tradição de povos como os yorubás, por
exemplo, que organizavam-se politicamente em torno de cidades-estado.
Urbanizados, os yorubás detinham a arte da metalurgia e podiam proteger-se
em unidades políticas menores e independentes. Já os povos da faixa Saara-
Sahel, habituados ao nomadismo, construíram os grandes impérios somente
quando foi necessário combater a progressão árabe.
            Enquanto na África do Norte a formação dos impérios está imbuída da
concepção de mundo árabe, onde existe a imposição de uma verdade religiosa
(Islão) e econômica (modo de produção árabe), gerando uma política de
dominação, na África ao Sul do Saara ocorreu outro processo - inédito -, onde
as etnias de territórios circunvizinhos especializavam-se em funções produtivas
(agricultura, caça, pesca, pastoreio, metalurgia), enquanto que a etnia
autóctone era apenas dona da terra, dividindo o governo político e militar com
as etnias que chegavam. Isso gerava uma política de cooperação.
            Os Impérios Africanos ergueram-se como construções político-sociais
fundamentadas pela cosmovisão africana. Analisaremos os Impérios de
maneira a ressaltar apenas os aspectos relevantes para a elucidação da
cosmovisão africana, por isso não nos deteremos em detalhes ou
aprofundamentos históricos importantes. Nosso interesse, neste livro, é
compreender a dinâmica civilizatória africana e sua correspondente
cosmovisão, ficando para outro momento o estudo detalhado da história
africana[5].
 
A primeira grande resposta dos negros ao processo de islamização
africana, iniciou no século VII com a soma de várias etnias para formar o
primeiro Império Africano que aflorou apenas no século X.
 
            Império do Gana
 
O Império do Gana surge num lugar privilegiado, pois situa-se no ponto
principal da travessia do Saara em direção ao Sul. A cidade principal é a capital
do comércio do Gana, Walata. No entanto, o Império Ganês não surge apenas
por causa da privilegiada localização geográfica e das rotas de comércio, pois
tais rotas existiam a pelo menos desde o séc. III de nossa era. O surgimento do
Império do Gana, portanto, como já afirmamos, surge como reação ao domínio
islâmico. Na verdade, a criação do Império é uma das respostas dadas à
expansão árabe, pois pode se verificar um grande movimento migratório para o
sul da África neste período. A hipótese é que os povos que viviam ao sul do
Sudão Ocidental fugiam do processo de escravização, seja migrando para
outras regiões, ou se organizando em estruturas estatais como o Império do
Gana.
            O Império surge a partir da convergência de elementos geopolíticos.
Em termos políticos a localização do reino do Gana é bastante estratégica, pois
é onde se controla importantes rotas comerciais, que definem o comércio entre
o norte  e o sul da África. O desenvolvimento aurífero da região, possibilitou
sua concentração de renda e também o domínio e controle sobre regiões
vizinhas através de cobrança de tributos e demarcação de territórios na região.
Além disso, ressalta-se a busca de mão de obra escrava, empreendido pelos
povos berberes que dominavam a região do Saara. Após a islamização pelos
árabes, há uma reordenação do Império do Gana que passa a servir como uma
“barreira” protetora, inibindo a expansão islâmica para o sul da África.
            Com sua localização privilegiada, Gana, situada na faixa do Sahel, tem
as condições para o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, que são
dinamizadas, criando um contingente de mão de obra especializada. Na Zona
do Sahel há uma forte produção de cereais. Essa produção especializada
permitiu que ocorressem dois fenômenos: 1) o surgimento das cidades; 2) as
estratificações sociais.
            É claro que no cenário econômico existem outras rotas para o
comércio. Mas é em Gana que se hegemoniza esse processo, e, por isto,
também o controle político. Isto não impede que haja disputa política na região.
A oeste encontramos Takrur que rivaliza com Gana.  Há também o império de
Bangug[6], onde se hegemoniza a extração do ouro. Gana não se preocupou
em anexar Bangug ou destruir Takrur; seu objetivo principal era controlar a rota
comercial.
            O que a região do Sahel exportava para o norte da África era mais
valioso do que o que recebia, o que dá a idéia exata da fartura e da força do
Império Ganês. Apenas que a dinâmica civilizatória dos árabes privilegiava a
guerra,  a destruição , o proselitismo e a universalização, enquanto a
cosmovisão africana privilegia a diversidade, a produção (riqueza), a lógica
própria de cada lugar e os valores culturais de cada clã.
            São os mandinga (etnia majoritária), através dos soninke (subgrupo da
etnia), que criam o império do Gana. A cidade de Kumbi-Saleh, capital política
do Gana, chega a ter nesta época vinte mil habitantes. Como vivem
principalmente da agricultura e do pastoreio, numa região prodigiosa para a
produção, a população ganense experimenta certa fartura, não padecendo de
miséria e falta de estrutura social. O povo não passa fome - mesmo os
camponeses -, e os nobres se destacam da população por causa do controle
do ouro.
            Quanto à organização social, são as relações de parentesco
consangüíneo que estruturam a sociedade, proporcionando uma conjuntura
política e ideológica que evidencia relações de produção e, consequentemente,
estratificações sociais. Antes, porém, da invasão islâmica, a região do Gana
estruturava-se em torno de uma organização mui tradicional, ou seja, de
acordo com as linhagens matriarcais – principalmente - ou patriarcais. Com a
formação do Império do Gana a estrutura social passa a ser mista, coabitando
o modelo tradicional e a organização “urbana” do Império.
            No cenário político o Imperador constitui-se na figura central do poder
administrativo e religioso. Além do mais era ele quem controlava a produção e
a comercialização do ouro. A riqueza do Estado provinha do comércio e da
tributação, o que permitia o bem-estar social relativo da população. A política
no Império está assentada numa organização central, com o poder centralizado
na figura do Imperador. A periferia do império, por sua vez, ainda que
considerada vassala em relação ao Imperador, tem uma estrutura de poder
descentralizada, e mantém suas tradicionais formas de organização.
            No interior do Império (e dos reinos periféricos) não havia coerção
quanto a prática de religiões diferenciadas. O espaço imperial permitia a
convivência de diversas matrizes religiosas, ou seja, as etnias não precisavam
subordinar-se a uma religião hegemônica.
 
Na região do Sahel há o cobre, a noz  e o marfim. Estes produtos
interviram no modelo tradicional da estrutura social africana. Nas estruturas
tradicionais a divisão dos bens de produção era de acordo com os clãs, que
recebiam equanimamente, ainda que respeitando o princípio da
proporcionalidade, os produtos, pois o Rei precisava distribuir igualitariamente
a riqueza para manter sua autoridade e prestígio. Com a intensificação do
comércio, a distribuição da riqueza passou a não  ser tão igualitária e abalou a
estrutura tradicional, pois chocou-se com os valores tradicionais da
comunidade que, outrora, pautava-se pela lógica da abundância e, com a
chegada dos árabes e o desenvolvimento do comércio, passou a ser regida
pela lógica do acúmulo e concentração da riqueza.
            Cria-se aqui um conflito entre os nômades do deserto (pastores) e os
habitantes do Sahel (povos sedentários). A rota do comércio através do Saara,
com a utilização do uso do camelo, era domínio dos berberes – povo africano
islamizado -, que viviam segundo os modos de vida nômades, isto é, não
ocupavam território fixo, não criavam instituições estatais e viviam basicamente
do pastoreio. Já os povos do Sahel organizavam-se de forma muito diferente:
suas principais atividades econômicas era a agricultura – principalmente de
cereais -, e construíram instituições estatais, devido a sua ocupação
permanente de território.
            Por vezes essa relação é complementária, e por vezes elas são
conflituosas. Com a invasão islâmica, entretanto, essa relação tensiona-se
cada vez mais. Os berberes são acostumados a armar estratégias de ataque
ao Sahel e voltar para o deserto. Essas são ações de rapinagem dos berberes.
O conflito entre os povos nômades (berberes) e os povos sedentários (da
região do Sahel) ocasionou um conflito político, pois dominaria política e
economicamente a região quem controlasse a rota do comércio. Daí surgiu o
Império do Gana, no entrecuzamento de interesses conflitantes de etnias
locais, de povos distantes e, também, como uma reação à expansão árabe,
que também tinha muito interesse na rota do comércio e no domínio da
extração do ouro, um pouco mais ao sul de Gana.
O Gana se afirma como Império no séc. X d.C., no mesmo período em
que os árabes consolidava o seu poderio. Ou seja, quando a poderio político e
militar dos almorávidas ficou mais forte, mais forte também ficou o Império dos
Malikes para lhe opor resistência.
O império era formado por diversas etnias, governados por um rei que
possuía o título de Ghana – senhor do ouro. Já a terra era propriedade de
todos, cabendo ao rei a administração dos conflitos, cumprindo o papel de
mediador - cuja função principal era a de manter as diferenças étnicas, o que
permitia a relação de troca onde interesses comuns do reino era privilegiado,
não de forma consensual, mas na medida do possível garantido os princípios
de justiça.
Uma característica marcante do governo no Império do Gana é o
regicídio[7]. O rei é morto se ele se desvia do que foi comunitariamente
determinado pela sociedade. Pode acontecer dele ser morto quando atinge
uma idade avançada, quando já não consegue desempenhar eficazmente seu
papel de liderança. O regicídio é uma maneira de exercer o controle político
pela comunidade e obriga a seu governante cumprir o que está estabelecido
pelos conselhos de anciãos que apresentam os anseios da população ao
governo central. Se o governo do Rei volta-se contra o bem-estar da
população, então ele será o responsável pelo mal estar social e deverá, por
isso mesmo, ser eliminado.
O Império Ganês é uma organização política e culturalmente complexa.
Congrega uma grande diversidade étnica em torno de um objetivo político
comum: barrar o avanço dos almorávidas para o sul da África. Apesar da elite
do Império converter-se ao islamismo, todo o Império mantém suas práticas
religiosas tradicionais, o que nos faz crer que a islamização na região do Gana
foi superficial e atingiu sobretudo as elites dirigentes. O que está em jogo,
muito mais que as conquistas religiosas são as conquistas econômicas. A
formação de uma brigada militar, por parte dos árabes, para dominar a
exploração do ouro, as rotas de comércio do Saara e a produção agrícola do
Sahel sofreu uma resistência da população africana, que só foi possível, graças
às suas idiossincrasias culturais de congregação de etnias, de solidariedade
continental, de fidelidade às suas religiões e de promoção do bem-estar social.
 
            Mas o grande Império do Gana sucumbe aos ataques dos árabes. Eles
fortalecem o poderoso exército almorávida e investem massiçamente contra os
povos do Sahel, sobretudo a oriente de Gana. Os berberes – base do exército
dos almorávidas - não atacam de imediato a região do Gana, pois ali se
constitui um forte império. Estrategicamente eles investem no processo de
conversão religiosa e alianças militares. Eles intensificam as conversões
forçadas ao negro. Esta justificativa religiosa “legitima” os ataques dos árabes,
que buscavam hegemonia política e econômica na região. Todo o séc. XI  é o
das investidas do exército almorávida, que, nesta época constitui-se de tribos
berberes mais ocidentais: os azenegues, que controlavam o tráfico de escravos
para o Marrocos. Para os berberes o islamismo representava a possibilidade
de resgatarem a hegemonia perdida sobre os Estados Africanos. Para Takrur a
aliança com os almorávidas representou a possibilidade de suplantar a
hegemonia maninke e, por isso, converteu-se ao islamismo, selando uma
aliança política e militar com os árabes. Em 1042 Ibn Yacine  organiza um
exército de 30 mil homens e invade o Gana, impondo a derrota ao Imperador.
Em 1076, Abu Bakr invade e vence o Gana ao mesmo tempo que os
almorávidas marcham para o norte, rumo ao Magrebe, graças à força
proporcionada por largos contingentes negros do Takrur e uma revolucionária
organização militar. Em 1086 Yussuf lidera a força islâmica, na Espanha,
contra os cristãos. O exército almorávida é formado de árabes e de negros
convertidos. Com este contingente bélico poderoso eles avançam em direção
ao Sul, procurando consolidar seu domínio no Sudão Ocidental.
            No início do séc. XII o poder almorávida se estendia por todo litoral da
costa ocidental africana, abrangendo também o território que ia desde o rio
Senegal até a Espanha. Pela primeira vez na história os povos do deserto se
unificaram sob uma administração permanente.
            A imposição do islamismo, no séc. XI, pelos almorávidas,
intensificou o deslocamento de etnias negras (os Serer, Volfo, Saracolé,
Bambara) para o sul do continente. Os deslocamentos populacionais impostos
pelo islamismo e o crescimento das disputas pela hegemonia na região
levaram ao fim o Império do Gana.
 
Império do Mali
 
Com a decadência do Império do Gana, apareceu, no século XII, o
Império Sosso, também conhecido como Império do Mali, onde, é claro,
dominava a etnia sosso, porém, com o consentimento das outras etnias da
região. A formação dos grandes Impérios Negros obedecem sempre o mesmo
modelo: desenvolvem-se a partir da formação de Grandes Federações Étnicas.
O sec. XII é conhecido como o século da turbulência. Os almorávidas,
além de seu poderio bélico, primam pela pureza religiosa e impõem a
conversão a todas etnias dominadas. Foram exatamente esses fatores que
levaram à derrocada o Império de Gana, a saber: 1)formação de um exército
islamizado, 2) conversões de populações negras ao islamismo.        
O sossos se posicionam claramente contra o islamismo.  Eles se
confrontaram com os berberes, que por conhecerem a rota do comércio e pela
convivência com os soninkes, quizeram dominar a política do ex-império do
Gana. Se em Gana a resistência foi camuflada, no Mali a resistência foi
explícita. No entanto há algo em comum na resistência à invasão árabe: ela
sempre é hegemonizada por uma grande etnia - os mandingas e soninkes, no
caso do Gana, e os sossos, no caso do Mali.
É importante notar que a demanda de escravização aumenta quando
aumenta-se as guerras em uma região. No ato da queda do Gana, que já
contava com uma grande população, a segurança torna-se frágil e a
escravização intensifica-se.
            Nós temos dois tipos de reação aos árabes. 1) contraposição radical ao
islamismo (os sossos do Mali); 2) a assimilação superficial do islamismo (os
maninkes do Gana). Ou seja, no caso da assimilação têm-se, na verdade, a
estratégia da dissimulação, pois as populações negras se revestem de um
“verniz” islâmico para manterem suas práticas religiosas tradicionais.
            Os Maninkes, Keitas, Camarás, Konatés e Tracrés uniram-se para
derrubar os sossos. Além de  interesses comuns na região controlada por seus
adversários (sossos) eles se reconhecem pertencentes a uma mesma
linhagem, o que possibilitará relações inter-linháticas tendo, como
consequência, uma organização política única – o que os torna uma grande
potência na região. Eles se compõem basicamente de comerciantes, de
caçadores e de exotéricos. Por isso o interesse na região do Império do Mali é
imensa.
            Neste contexto, os maninkes – que foram islamizados pelos
almorávidas - entram em guerra contra os sossos para obter a hegemonia do
comércio e  o domínio político na região. Na verdade, os sossos foram
suplantados pelos malinkes no intuito de “aliarem-se” ao islamismo como
estratégia para vencer as disputas regionais, e não para abraçarem
fervorosamente a ideologia do islã. É na batalha de Querino que os sossos são
suplantados pelo exército de Sundiata (Maninke).
            A estrutura política do Mali está centralizada no Mansa - o rei dos reis.
Como no Império do Gana, existem os governos periféricos e os  governos
aliados. A vida do reino se baseia principalmente na agricultura, abrangendo
também a pastorícia (criação de gado), as rotas comerciais do Saara e as
atividades  agrícolas na Savana (Sahel).
            O Império do Mali começa a entrar em decadência a partir do sec. XV.
Isto ocorre por causa de fatos políticos relacionados a eventos no interior da
própria corte. Mas há outros fatores, mais profundos, que explicam a queda do
Mali. Sem dúvida, o acirramento da disputa mundial entre islamismo e
cristianismo impeliu os árabes a dominar a região do Sudão, tornando mais
massiça a presença islãmica no continente africano. A disputa com o
cristianismo fez com que o Islão procurasse manter e expandir seu domínio na
região. No entanto, como há uma disputa entre essas culturas religiosas
monoteístas, também o cristianismo manifestará interesse em adentrar no
Sudão. O Império do Mali, não obstante, passa a ter que se defender não
apenas dos islâmicos pelo trajeto transaárico, mas também a se preocupar
com os portugueses, pois eles já sobrepujam a costa ocidental africana.      As
brigas internas da corte aparecem como um epifenômeno, ou seja, surgem por
causa da instabilidade regional provocada pela conjuntura mundial.
            O séc. XV é outro século de turbulência. Os conflitos se acirram. O
Império do Mali resiste até o séc. XVI. Ocorrem novas brigas internas entre as
etnias na tentativa de hegemonizar o comando da região. Novamente, neste
período de guerras intensas, a África tornou-se uma grande fornecedora de
escravos para o Mediterrâneo. Desgastadas pelas brigas internas e dilaceradas
pelo tráfico de escravos, o Mali sucumbi.
 
            Império do Songai
 
            O império  do Songai representa três deslocamentos:
            1º) Territorial: no Império do Mali a área ocupada era a do Sahel, na
linha da rota do comércio. Havia grandes cidades como Walata, Tombuctu, Jao
e Jenné. Na  formação do Império do Songai, por sua vez, houve a
necessidade de avassalar os reinados do oriente.
            2º) Organização do Império: o Império do Gana era muito
descentralizado e disperso. Com o Songai temos uma estrutura mais
burocrática e organizada. O poder queda-se, por vez, centralizado. Como há
uma intensificação da islamização da nobreza, aumenta-se as contradições
religiosas e culturais da população do Sudão. Frente às pressões externas há a
necessidade de uma estrutura burocrática e militar para defender-se da
invasão árabe.
            3º) Miscigenação étnica e estratificação social: se no Gana predominava
os Soninkes e no Mali os Mandingas, no Songai já não há predomínio de uma
etnia sobre outra. Já não há a hegemonia de uma única etnia, mas sim a
estratificação da sociedade em “classes” sociais.
 
A tradição política, entretanto, segue a tradição africana. Os grandes
rituais que reforçavam a organização política continuavam sendo os das
religiões tradicionais da África. Mesmo com a intensificação das campanhas de
conversão para a fé islâmica, as elites convertiam-se superficialmente. Do
ponto de vista macrossociológico, há mais uma jogo de cena político nestas
conversões,  do que propriamente adesões religiosas.
 A base da organização social no Império do Songai é a família extensa
ou clã. Com essa estrutura de organização social explica-se porque não houve
grandes desigualdades sociais entre a população camponesa do Império. Se
na área urbanizada correspondente ao Império propriamente dito havia a
estratificação social, no campo a propriedade segue sendo coletiva, tendo seu
uso determinado pelas regras tradicionais das famílias. O que irá desestruturar
estes núcleos familiares serão as guerras.
Mais uma vez as guerras regionais e a conjuntura internacional vai
intensificar o número de escravizações na África, desta feita no Songai. Agora
a lógica própria da escravização africana transforma-se, uma vez que
“contaminadas” pela visão euro-asiática de escravidão. Os escravizados
deixam de serem tratados como agregados das famílias para se tornarem
propriedades do Estado (rei). Adaptando-se a seu contexto e respondendo às
suas necessidades o Império do Songai burocratizou suas atividades e
fortaleceu o Estado centralizado. Assim, a produção agrícola é controlada, em
grande parte, pelo Estado. Ele está imerso em uma rede de tributação, o que o
fará dono de um grande contingente de escravos.
 Apesar das bases culturais (religião, transmissão do poder político,
estrutura social baseada no clã, etc.) permanecerem ligadas às tradições
africanas, o Songai precisou responder às exigências do desenvolvimento do
comércio, à antiga pressão árabe e à recente opressão européia. O Império
torna-se um híbrido curioso: por um lado adapta-se às exigências do comércio
internacional, perdendo sua característica tradicionalista de produção; de outro
mantém a forma de vida tradicional da população camponesa. Cria-se aqui um
dilema que não se resolveu com a queda do Império do Songai.  Até que ponto
é possível resistir às pressões internacionais que impõem modelos de
organização da vida e da produção em escala mundial? Visto de outro ponto:
em que medida essa imposição destrói realmente as respostas que cada
cultura dá a seus problemas sociais? O hibridismo cultural, em algum
momento, pode harmonizar essa tensão contínua? Os dilemas entre formas
tradicionais e atualizações modernas seguirão problematizando a compreensão
da história dos africanos em seu continente e das respostas dadas pelos
afrodescendentes em seus lugares de ocupação depois da  Diáspora Negra, e
as categorias de puro/impuro, original/misturado etc. seguirão armando
armadilhas ideológicas para a compreensão da cosmovisão africana...
 
 
 
Aspectos Filosóficos
 
            Os Impérios Africanos, no caso de Gana, se formaram em
contraposição à expansão árabe, no entanto, formavam-se de uma
confederação de etnias, que representava várias culturas africanas
organizadas em torno de um único Império dominado políticamente por apenas
uma etnia, que hegemonizou o poder na região. No momento de constituição
do Império do Gana a etnia dominante é a Soninke, do tronco dos Mandingas,
no Mali são os sossos que comandam a formação do Império. É interessante
notar que sob uma aparente unidade de etnia, existia uma pluralidade de
concepções religiosas.
            Já em lugares que não houve a presença islâmica não foram Impérios
que se levantaram, mas cidades-estado ou outras formas de organização
social. Ou seja,  o povo do Sudão Ocidental respondia às condições históricas
de acordo com as circunstâncias  que se lhe apresentavam. As cidades-estado
eram centros de poder multidiversificados e descentralizados.
            Um importante elemento que encontramos na maioria das populações
africanas  é a não separação entre natureza e política, poder e religião, ou seja,
não há uma estratificação entre estas camadas importantes da vida da
sociedade. Tudo é visto de acordo com o princípio da integração, onde os
vários elementos se comunicam e se complementam.
            Outra realidade que gostaríamos de identificar é o caráter da integração
social que a visão de mundo africana possibilita. Exemplo disso é que a
urbanização não é anti-ecológica – veja que os palácios centrais se situavam
no meio das florestas sagradas -; outro exemplo, é que nesse tipo de
organização social-religiosa, o sujeito não é individuado – como vemos por
exemplo, no ocidente,  a partir do esquadrinhamento da ciência -, mas faz parte
de um todo integrado, isto é, o sujeito é visto como parte do todo.
Os ritos de iniciação (socialização) são coletivos,  e esta é uma
característica fundamental nos três Impérios Africanos pois aí, a construção do
sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso. A iniciação forma
coletivamente a pessoa para a sociedade africana.
            Há, nisso tudo, uma sabedoria profunda. A força sagrada é eminente à
natureza. Os elementos (bioritmo) é determinado por essa conjugação.
            Nestas sociedades não existe a dualidade homem/natureza. Tudo está
interligado, por isso tudo interage. O uno é o todo e o todo é uno. O profano
tem sua dimensão sagrada como o sagrado manifesta-se no profano. Não há
escatologia. O tempo dos ancestrais é o tempo passado e o tempo do agora.
As cidades formadas nesse período segue o padrão político do Islã
mesclado à cosmovisão africana: 1) urbanização, 2)culto religioso, 3) um
bosque (floresta) sagrado (O palácio central instala-se na floresta). Esse
modelo de organização política no continente africano demonstra que: 1) há um
hibridismo cultural entre povos de matrizes culturais diferentes; 2) que a lógica
africana, dada a situação de dominação, sobrecodificou as instituições políticas
islâmicas, revestindo com a religiosidade nativa as instituições estrangeiras; 3) 
o princípio ecológico fora preservado; 4)a resposta africana é criativa e
includente, pois utillizou-se das instituições alheias para manter sua cultura de
base e promover o bem-estar de seu povo; 5) que a criação das cidades-
estado não podem ser vistas como uma evolução da civilização, e sim como
uma forma diferenciada de organização como resposta a uma determinada
circunstância.
Quanto à educação, p.e., o rei do Gana adotava os filhos de outros reis
para prepará-los para o governo e serem seus conselheiros. Na ótica de
pensadores ocidentais isso tratar-se-ia de um sequestro. Acontece que o filho
de tal rei não era refém do soberano de Gana. Ele era um pupilo a ser
preparado para as funções de mando e poder. Na ótica africana, os inimigos
não são estaticamente definidos. Em tempos de guerra pode-se educar o filho
do adversário. Isto é realmente extraordinário, pois a lógica, aqui, não é a da
aniquilação do outro, mas a da valorização de suas potencialidades.
            Um elemento de caráter mais geral, que refere-se a estrutura de
organização política da África é que existem diversos modelos de organização
política. Existem as cidades-estado, os clãs (ypós) e ainda outras maneiras de
organização como a da confederação das etnias no caso do Império do Gana,
mas também do Mali e em certa medida no Império do Songai.
Gostaríamos, nesse sentido, de elencar alguns elementos que
permitirão, posteriormente, a afirmação de uma identidade negra trans-
histórica:
            Nas cidades yorubás há uma referência constante a uma
ancestralidade para explicar a origem de suas sociedades. A organização
dessa região é marcada por uma forte autonomia. Será, portanto, no sul do
Sahel, que encontraremos a maior parte dos elementos estruturais com os
quais deveremos montar nossa identidade étnica.
            Os chefes são escolhidos de acordo com as linhagens. Essa é a
estrutura de poder nesta região. Na maioria das vezes essas linhagens
organizam-se em sociedades matrilineares. O exercício do poder administrativo
do Rei ou Imperador é controlado socialmente pela comunidade, através de
seus conselhos e sociedades secretas (como as Geledes, por exemplo).
            O comércio desenvolveu-se nesta região, criando estruturas estatais
(cidades-estado). Mas as cidades-estado não foram as únicas respostas
políticas à realidade africana. Como a realidade é diversificada, diferentes
foram as respostas sociais. Com isso queremos dizer que as comunidades
africanas responderam contextualmente às necessidades e características de
cada região, tecendo uma variedade muito grande de organização política,
jamais impondo um modelo de organização econômico-social, mas admitindo
várias expressões organizativas no continente. A cosmovisão africana, com
efeito, prima pela diversidade e não pela imposição de modelos únicos.
            O exercício do poder é simbolicamente centralizado, no caso das
monarquias, no Obá (Rei) e nos chefes das aldeias de sua etnia. No entanto,
pragmaticamente, há uma certa descentralização do poder. Na realidade ele é
dividido entre etnias variadas que se submetem politicamente à etnia
preponderante, no intuito de exercer o poder político com maior eficácia. Ora, já
dissemos que a finalidade do exercício do poder é a promoção do bem-estar da
comunidade, havendo inclusive o regicídio como mecanismo de controle social.
Sendo assim, a organização tradicional da política africana preserva a
autoridade do Rei, criando uma unidade simbólica entre a população, muito
embora o exercício pragmático do poder esteja descentralizado entre as etnias
que compõem o reino. Aqui não há dominação por eliminação, mas hegemonia
por competência. Não há uma política de destruição do outro. O que há é a
promoção da alteridade.
            A diversidade de formas de organização política é realmente
diversificada. Os Ibós, por exemplo, organizam-se em torno das aldeias,
constituindo-se, portanto, em uma política de povoação - onde a aldeia é
absolutamente autônoma, uma vez que nào existe poder centralizado, isto é,
não há Estado.
            Nesta região há uma grande complexidade de organizações políticas.
Quando, no séc. XV, os portugueses chegaram às cidades do Benin, tiveram
de reconhecer a superioridade da urbanização das cidades africanas. Porém,
três séculos de comércio de escravos desmantelaram parte significativa de sua
estrutura política e de seu desenvolvimento econômico.
É interessante notar que não foram as sociedades estatais aquelas que mais
resistiram à colonização. Foram as organizações nômades que resistiram com
afinco à dominação européia. Isto é um bom exemplo para não valorizarmos
apenas um modelo de organização política, como a estatal, prestando atenção
na potencialidade de outras formas de estrutura de poder. Combatemos o
pensamento evolucionista que enxerga um desenvolvimento linear  que vai das
sociedades nômades – consideradas primitivas –, às sociedades estatais –
consideradas avançadas. Destacamos a conivência de modelos políticos
diferentes na perspectiva de demonstrar como a cosmovisão africana prima
pela diversidade e singularidade das experiências do real, sem reificar o
evolucionismo, valorizando o modo próprio de cada organização política no
contexto da lógica cultural de cada grupo.
           
            Elementos estruturantes das sociedades africanas
 
            Feito um breve levantamento histórico dos Impérios Africanos,
interessa-nos, agora, destacar os elementos que, em nosso entender
estruturam aquelas sociedades africanas,  que antes da invasão européia tinha
condições de vivenciar sua cultura de maneira autônoma, apesar das muitas
influências extrangeiras e das fricções internas.
            A identificação desses elementos é um dos eixos centrais deste livro,
pois são eles que nos permitem a afirmação de que, em África, há uma
estrutura comum que sedimenta a organização social, política e cultural. Esses
elementos compõem a cosmovisão africana, e, apesar das modificações e
rupturas, seguem estruturando as concepções de vida dos africanos e seus
descendentes espalhados pelo mundo depois da Diáspora Negra.
 
Universo
 
            Para o africano “o visível constitui manifestação do invisível. Para além
das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das
aparências se manifesta” (RIBEIRO, 1996, p. 39). O universo está prenhe do
sagrado. O “segredo” faz parte do universo tanto quanto o revelado. Tudo que
se manifesta ou oculta-se, segundo a cosmovisão africana, compõe o universo.
Para estes povos o universo não pode ser entendido sem um múltiplo de
correspondências, analogias  e interações com o Homem e com todos os seres
que compõem essa totalidade.
            Para explicar a interdependência de todos os seres, Ribeiro recorre à
tradição bambara do Komo, no Mali, de onde extrai uma narrativa mitológica
que conta a origem do homem e do Cosmos pelo grande Deus Maa Ngala.
Não havia nada, senão um Ser.
Este Ser era um vazio vivo
a incubar potencialmente
todas as existências possíveis.
O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala.
Então, ele criou ‘Fan,
Um ovo maravilhoso com nove divisões
no qual introduziu 
os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo Primordial chocou
dele nasceram vinte seres fabulosos
que constituíram a totalidade do universo,
a soma total das formas existentes
de conhecimento possível.
Mas, ai!
Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas reve-
lou-se apta a ser o interlocutor que Maa-Ngala
havia desejado para si.
Então, tomando uma parcela de cada uma dessas
vinte criaturas misturou-as.
E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito
ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem
deu parte de seu próprio nome: Maa.
Assim, esse novo ser, por seu nome e pela cente-
lha divina nele introduzida, continha algo do
próprio Maa-Ngala. (RIBEIRO, 1996, p. 40-41)
 
            Esse mito ilustra como o Homem é dependente e interligado a todas as
coisas existentes; ele é o resultado da interação de todos os elementos
vegetais, minerais e animais. Além disso, ele participa da natureza divina, pois
nele fora insuflado o hálito divino, ou seja, o Homem está intimamente ligado a
todos os elementos da natureza e ao seu criador. Essa relação simbiótica com
a natureza (mundo natural) e com o próprio Deus (mundo sobrenatural)
compõe a própria essência do Homem, que por sua vez divide sua essência
particular com a totalidade do universo. Dito de outra forma: o Homem é a
micro-síntese  de todos os elementos que compõem o universo. Ele é um
micro-cosmos.
            Ronilda Ribeiro, citando Erny[8], refere-se ao universo africano como
uma imensa teia de aranha: “não se pode tocar o menor de seus elementos
sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária cada parte com
o todo. Tudo contribui para formar uma unidade (RIBEIRO, 1996, p. 41). Essa
unidade fundamental do universo realça o cuidado com a ecologia e com o
bem-estar das pessoas. Tanto o mundo natural (ecologia) quanto o mundo
social (bem-estar das pessoas) estão em harmonia no que tange a uma visão
unificada do universo. Sem o respeito e a preservação aos elementos naturais
não é possível ter uma vida social saudável e, inversamente, a  vida social sã é
impossível sem uma natureza salutar. Tudo está em tudo. Tudo participa de
tudo. Tudo influencia tudo. O todo é cada uma das partes, cada parte participa
do todo; é o todo. O todo é a unidade de todas as partes. As diferenças, no
esquema da autora, são respeitadas. O africano tem sempre em vista o
conjunto, o Universo do qual faz parte e do qual é dependente/interdependente.
Ele é o Universo na medida em que faz parte de seu todo, e o Universo não
existiria sem que o Homem participasse dele.
            O universo, segundo Yakemi[9], é sincrônico e não linear. Contrapondo
ocidentais a africanos, atesta que os primeiros são lineares, pois separam o
subjetivo do objetivo, acreditam em linhas evolutivas e baseiam-se no princípio
da causalidade. Os africanos, ao contrário, são portadores do “pensamento
sincronístico” que guarda “uma peculiar interdependência de eventos objetivos
entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou
observadores” (JUNG[10], 1970 citado por RIBEIRO, 1996, p. 42).
            O pensamento sincrônico dos africanos constrói o universo, então,
como uma “teia de aranha”, onde eventos objetivos e subjetivos estão
interligados. À totalidade desses eventos corresponde a concepção de universo
na tradição africana, de acordo com a antropóloga. Me referi, a pouco, que o
sagrado e o profano – sempre de acordo com Ronilda Ribeiro – não formam
uma dicotomia, antes, uma unidade. O sagrado, na verdade, permeia todos os
espaços do universo africano. Ele impregna com sua força vital qualquer
esfera da vida comunitária dos negros, tanto em África como nos outros
continentes para onde tenham ido os negros da Diáspora. Esse sagrado,
porém, no caso da África, emana da ancestralidade. A ancestralidade, então,
está no cerne da concepção de universo. O universo interliga todas as coisas.
Logo, a ancestralidade permeia todos os seres que compõem esse universo.
Se a ancestralidade é a expressão do sagrado, este sagrado manifesta-se
através da força vital, como demonstramos a seguir.
           
            Força Vital
 
            A Força Vital sempre foi associada aos bantos[11]. A importância dessa
categoria, porém, não se restringe a eles, podendo ser encontrada entre os
povos da África Ocidental e Setentrional. Fábio Leite, por exemplo, pesquisou
sobre a Força Vital entre os Agni - grupo Akan - e Senufos, civilizações
agrárias da África Ocidental, na região habitada pelos iorubás.
            Segundo LEITE (1984, p. 34), Força Vital “refere-se  àquela energia
inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo
separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem
uma única realidade”.
            A Força Vital como vitalidade universal é capaz de individualizar-se nas
relações entre o homem e a natureza. A profunda relação daquele com esta
está nela sedimentada, uma vez que ela é a força capaz de gerir tal relação.
Essas relações não se restringem apenas à relação homem-natureza, mas
também incide sobre a realidade social bem como sobre a relação do Homem
com o sobrenatural. Enfim, como vimos, o universo é como uma teia de
aranha, onde todos os elementos estão interligados. Assim também a Força
Vital. Ela é o suporte comum para que todas as coisas se conectem e  formem
um elo universal, que, sem ela, jamais poderiam manter sua unidade -
fundamental na concepção de mundo africana.
            Ela é, portanto, uma das categorias mais importantes que estruturam a
cosmovisão africana, pois ela é tomada como fonte primordial da energia que
engendra a ordem natural do universo e atua de maneira específica em cada
sociedade deste continente. “A origem divina da força vital e a consciência da
possibilidade de sua participação nas práticas históricas explicam a notável
importância que lhe é atribuída e, não raro, a sacralização de várias esferas em
que se manifesta” (LEITE, 1984, p. 34).
            A Força Vital não abrange apenas a relação do Homem com a
natureza. Ela abarca todos os seres, sejam eles minerais, animais ou vegetais
e “estabelece individualizações que se hierarquizam segundo as espécies e faz
a natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais variados domínios”
(LEITE, 1984, p. 35).
            Segundo Fábio Leite deve-se ressaltar o fato de que o preexistente é
quem cria o mundo. Ao criá-lo, injeta nele sua sacralidade que é a Força Vital.
Assim, cada ser criado passa a possuir a Força Vital e deve mantê-la no
transcurso de sua vida individualizada. Tais desdobramentos, de certa forma,
multiplicam a Força Vital inicial e dão vitalidade a todos os seres do universo.
Ela constitui-se, então, como a parte mais íntima da materialidade dos seres
criados pelo preexistente. Dessa forma, a “elaboração contínua do mundo é
também tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e
sociedade, exercendo ações transformadoras ao criar o ser humano no âmbito
de sua competência, assim como aqueles elementos ligados à organização da
sociedade” (LEITE, 1984, p. 35).
            A Força Vital não atua apenas no abstrato; não é uma generalização.
Ela também age no plano imediato, cotidiano[12], pois, segundo Fábio LEITE
(1984, p. 36), tal noção “não se limita às instâncias das formulações abstratas,
situando-se materialmente no interior das práticas históricas  e da explicação
da realidade”.
            Retornando à concepção de universo podemos dizer que ele forma uma
única rede de relações sustentada pela Força Vital. Nesta acepção, não há
lugar para a dicotomia entre espírito e matéria, entre profano e sagrado. O
sagrado permeia todos os espaços da vida dos africanos. “O valor supremo é a
vida, a força, viver forte ou força vital” (TEMPELS[13], citado por
RIBEIRO,1996, p. 39). Explica RIBEIRO (1996, p. 39) que essa força “não é
exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua
expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social”.
            A Força Vital, como se viu, é a própria manifestação do sagrado que
sustenta o universo e permeia a relação entre os homens e entre eles e a
natureza. Presente na esfera da produção, da socialização e da família, é na
palavra que a Força Vital manifesta-se com toda sua vitalidade.
 
Palavra
 
A palavra aparece visceralmente ligada à Força Vital. O detentor primordial da
palavra é o preexistente, assim como é ele o detentor daquela. A palavra, com
efeito, muitas vezes aparece nas cosmogonias africanas como um subsídio
fundamental para a criação do mundo e, neste caso, ela é portadora da “força”
que anima e vitaliza o mundo. O Homem, por sua vez, ao ser criado, recebe a
Força Vital e o poder da palavra, que são equivalentes, visto que a palavra é
concebida como uma energia capaz de gerar coisas.
Dessa forma, “o conjunto força vital / palavra / respiração é elemento
constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o homem
estrutura de maneira a criar a linguagem e o exterioriza através da voz” (LEITE,
1984, p. 36-37). A respiração é tida como uma espécie de manifestação da
palavra, sobretudo quando estamos atados aos fatores primordiais da criação,
e, conseqüentemente, da viabilização e multiplicação da vida. Portanto: “Sendo
a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do preexistente, é
necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí que sua
utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez emitida
algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se na
natureza” (LEITE, 1984, p. 37). Deve-se lembrar, entretanto, que a palavra,
uma vez proferida, é uma energia nem sempre controlável e interfere na
existência. Daí a necessidade de quem as pronuncia deter os conhecimentos
necessários para que faça bom uso da energia-palavra, posto que ela é capaz
de engendrar coisas, tanto construtivas quanto destrutivas. Tal é seu poder que
se for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu proferidor.
Além de ser expressão do préexistente, a palavra está intimamente ligada a
uma dimensão histórica. É aqui que ela se liga ao conhecimento e sua
transmissão. É o caso, por exemplo, dos especialistas das transformações
(ferreiros e tecelões); das manifestações da vida espiritual (culto aos ancestrais
e às divindades); do domínio específico da própria palavra (historiadores
tradicionalistas); e das explicações de realidades determinadas (conhecimento
esotérico, jogos divinatórios). Existe, não obstante, uma outra área de
aplicação da palavra, onde ela joga um papel definitivo: a política. É a palavra
que tem a função de fazer cumprir a jurisprudência dos ancestrais nos
conselhos de família ou nas assembléias comunitárias – lugares privilegiados
da prática política nas sociedades negro-africanas.
“A palavra - diz Fábio LEITE (1984, p. 38) - é dotada de origem divina, mas
encontra-se significativamente relacionada com as atividades humanas e não
deve ser considerada somente como fonte de conhecimento”. Para ele, não há
dúvida que a palavra é um instrumento do saber, porém “sua condição vital lhe
garante o estatuto de manifestação do poder criador como um todo,
transmitindo vitalidade e desvendando interdependências” (LEITE, 1984, p. 38).
            A palavra atua como criadora do universo, expressão da Força Vital,
organizadora da esfera política, tanto em relação à comunidade quanto em
relação às famílias. Ela gera e movimenta a energia, o que demonstra seu
poder de transformação. É constituinte de quaisquer atividades no tempo, seja
ele sagrado ou profano. É a energia primordial para o transcorrer da vida.
            A vida não transcorre, no entanto, apenas no mundo visível (ayê) dos
homens. O universo africano correlaciona o sagrado e o profano. Sagrado e
profano são interdependentes, como tudo o mais. Há, portanto, uma correlação
entre o mundo dos “vivos” e o mundo dos “mortos”. O mundo dos homens e o
mundo dos antepassados. Cada qual possui o seu tempo, que, não obstante,
se relacionam.
 
            Tempo
 
            Se nas sociedades modernas o tempo é orientado para o futuro, nas
sociedades tradicionais o tempo é orientado para o passado. É esse
precisamente o caso das sociedades africanas. Segundo Ronilda RIBEIRO
(1996, p. 50): “Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem
dos fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à
categoria de tempo potencial ou inevitável”. Esta concepção do tempo é
bidimensional, isto é, ele é “constituído pelo presente, um longo passado e uma
virtual ausência de futuro” (RIBEIRO, 1996, p. 50).
            Dá-se mais ênfase ao passado que ao futuro quando se trata da
concepção de tempo na cosmovisão africana. A referência mor é o passado. É
nele que residem as respostas para os mistérios do tempo presente. É no
passado que está toda a sabedoria dos ancestrais. Somente no passado o
africano encontra sua identidade. A idade de ouro dos africanos é
diametralmente oposta à dos ocidentais, uma vez que para os últimos os
melhores tempos ainda estão por vir (no futuro), enquanto para os africanos os
melhores tempos encontram-se muito vivos no passado.
            O passado como referência primordial da concepção de tempo africana
não dá margem à imobilidade das sociedades deste continente. Muito pelo
contrário! A concepção de tempo africana é dinâmica e sujeita a reformulações
e mudanças. Vive-se no tempo atual. A tradição é continuamente retomada e
atualizada.  A “voz” do passado é ouvida e merece muita atenção, mas sempre
na intenção de orientar e organizar o presente. Vive-se o agora, o hoje. O
futuro tem alguma importância, é claro. Mas é o tempo atual a base do tempo
vindouro. Por sua vez o tempo presente tem sua base no passado, assento
comum de toda a concepção de tempo africana (RIBEIRO, 1996).
            Segundo Ribeiro, o tempo atual é a combinação do tempo passado com
o tempo presente. Percebe-se, então, que para o africano, a “esteira do tempo
move-se para trás mais do que para a frente” (RIBEIRO, 1996, p. 50).
            É baseada nos estudos de Mbiti[14] que Ronilda Ribeiro define o tempo
na cosmovisão africana. Com efeito, Mbiti utiliza dois conceitos do vocábulo
swahili para explicar a concepção de tempo. São elas: Sasa e Zamani. Sasa é
o tempo vivido, tanto pelo indivíduo como pela comunidade. É o período mais
significativo para a pessoa; é o tempo do agora e principalmente o tempo já
percorrido pelo indivíduo. É o tempo atual; o tempo vivido. “Sasa constitui em
si, uma dimensão completa do tempo, incluindo futuro breve, presente
dinâmico e passado já experienciado” (RIBEIRO, 1996, p. 52). Depois que a
pessoa morre seu sasa continua se a lembrança dessa pessoa permanecer
entre seus familiares ou em sua comunidade. Sasa somente interrompe-se
quando a pessoa, nas gerações subseqüentes, é completamente esquecida.
Neste momento ela entra para outra dimensão do tempo, a Zamani.
            Sasa pode ser descrito como o micro tempo, essencial para o indivíduo
e sua projeção, enquanto que zamani pode ser considerado como o macro
tempo, no qual mesmo sasa está contido. Zamani é o tempo dos mitos. Nesta
dimensão do tempo estão contidos o presente e o futuro. Os mitos
cosmogônicos pertencem ao tempo Zamani. Enganam-se os que pensam que
zamani é um tempo morto. Pelo contrário! Ele contém a explicação para as
coisas que estão acontecendo. Zamani está presente, interferindo diretamente
nas ações dos povos tradicionais africanos. Segundo Ronilda RIBEIRO(1996,
p. 53) “zamani é o tempo do mito, que propicia firmeza e confere ‘segurança’.
Todas as coisas criadas, vinculadas umas às outras, encontram-se envolvidas
pelo macro-tempo”.
            De acordo com a antropóloga não há relatos de mitos que narrem o fim
do mundo dentre os povos tradicionalistas da África. O final do mundo para o
africano é impensável porque é impensável o final do tempo. A visão de futuro
geralmente é restrita para os dias subseqüentes ao dia atual, no máximo aos
meses seguintes. Uma concepção de final da história é absurda para o
pensamento tradicionalista africano. Esta afirmativa pode ser confirmada pelo
fato de que os Griots[15], segundo Obenga[16], “dificilmente trabalham com
uma trama cronológica, interessando-se mais  pelo homem apreendido em sua
existência, condutor de valores e  agindo na natureza de modo intemporal”
(apud RIBEIRO, 1996, p. 56-57). Os griots, personagens sociais que têm papel
destacado nas sociedades africanas, narram as histórias menos atentos à
periodicidade e linearidade do tempo que à inclusão de eventos vividos pela
comunidade[17].
            Os griots não trabalham com o tempo linear dos ocidentais, tampouco
considera a noção de final da história tão repetida entre os europeus - que
disseminaram essa teoria para todo o mundo colonizado. Os griots inserem-se
dentro da dinâmica própria do tempo africano, procurando apreender o
significado de cada acontecimento para a pessoa ou população nele envolvido.
Essa concepção de tempo é dinâmica e funciona como uma esteira que se
move, como já dissemos, da frente para trás - no sentido inverso atribuídos
pelos ocidentais.
            O tempo mítico é reatualizado nos rituais, onde os personagens
heróicos dos mitos indica os comportamentos e atitudes que os indivíduos
devem tomar frente a uma determinada situação. Os indivíduos encontram nos
mitos o sentido da vida e descobrem como atuar frente aos mistérios que se
lhes vão aparecendo. É o tempo do sagrado iluminando o tempo profano. O
que diferencia o espaço sagrado do espaço profano é justamente os rituais e
os acontecimentos iniciáticos que transmutam o tempo profano em tempo
sagrado. Mas note-se que é o mesmo espaço, e não outro. Diferentemente, por
exemplo, das igrejas cristãs, que separam da vida profana o espaço sagrado –
a igreja = Casa de Deus. Nas comunidades tradicionais africanas o mesmo
espaço serve tanto ao tempo profano quanto ao tempo sagrado. E, como disse
Ribeiro, não existe distinção definitiva entre os dois tempos. Aliás, como vimos,
o universo é concebido como uma “teia de aranha”, onde tudo está interligado;
onde a parte e o todo estão profundamente conectados, o que se dá com o
universo também ocorre com o tempo: o tempo é um só, porém guarda em sua
unidade suas diferentes manifestações (sasa e zamani).
            Característica importante da contagem do tempo africano é o fato dele
ser demarcado através dos fenômenos naturais. “A noite é separada do dia e
este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à altura do sol”
(RIBEIRO, 1996, p. 60). As horas do dia são definidas por atos concretos. “Em
Burundi, por exemplo, amakana  é a hora da ordenha (sete horas); maturuka é
a hora de saída dos rebanhos (oito horas); kuasase, hora em que o sol se
alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as colinas (10
horas)...” (RIBEIRO, 1996, p. 60). Nesta região, as formas de cumprimentos
estão baseadas - no transcorrer do dia - na luminosidade e na posição das
sombras. À noite, quando não se pode contar com a luminosidade do sol, como
é óbvio, o tempo é marcado através das “vozes” dos animais. O trabalho, por
sua vez, é definido a partir de tarefas e não por unidades de tempo. “O relógio–
diz RIBEIRO (1996, p. 60) - tem lugar [apenas] como objeto de adorno”.
            Ao insistir que o tempo africano não é um tempo linear e refletir que
essa concepção nada tem a ver com a projeção do futuro dos ocidentais,  a
autora não quer dar razão às barreiras epistemológicas que sustentam que as
sociedades africanas são apáticas, estáticas e que não possuem história ou
dinâmica social. Ela defende a tese de que a concepção de tempo dos
africanos é dinâmica e relacionada com mudanças que ocorrem em seu mundo
atual. “Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é prisioneiro de um
mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo desenvolvimento de sua
energia vital” (RIBEIRO, 1996, p. 63). Ronilda Ribeiro cita um poema do Songai
para ilustrar tal concepção:
 
 
Não é da minha boca.
É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C,
que o deu a D, que o deu a E,
que o deu a F, que o deu a mim.
Que esteja melhor na minha boca do que na dos
Ancestrais (RIBEIRO, 1996, p. 63).
 
            A relação privilegiada com o passado tem sua razão de ser: ela
permite uma relação especial com os ancestrais. A preservação da memória
dos antepassados não é causa de estagnação para os africanos; ao contrário,
são essas as causas para o dinamismo característico de sua cultura, uma vez
que a atualização deve estar sempre assentada na sabedoria dos ancestrais.
Os ancestrais, no entanto, não são os atores do mundo atual. Os protagonistas
do tempo vivido são seus descendentes que, ouvindo-os, respeitando e
cultuando-os, devem abrir caminhos para novos tempos. A tradição, neste
caso, é o fundamento da atualização e da novidade.
            O tempo africano é impregnado de Força Vital. É um tempo sagrado
(zamani) que envolve o tempo vivido (sasa). O passado é privilegiado, pois
esse é o tempo dos antepassados. O passado, no entanto, não é fossilizado.
Ele é potencialmente transformador, tal como a tradição – acúmulo de tempo
transcorrido. O tempo africano, tal como o universo africano, está prenhe de
ancestralidade. A mesma ancestralidade que permeia todos os seres do
planeta (universo africano) habita o tempo mitológico e atual. Assim como o
visível não se separa do invisível na concepção de universo iorubá, assim
também o tempo dos mortos não se encontra separado do tempo dos vivos. Os
antepassados regulam a vida de seus descendentes. A eles distribuem sua
“força”, e o conhecimento preservado pela tradição é transmitido através da
palavra. Esse universo e esse tempo não são vazios. Além de habitados pela
Força Vital (atributo do sagrado) e pela harmonizadora presença dos
antepassados (que vivem numa dimensão transcendente), o universo e o
tempo acolhem em suas entranhas a pessoa. A noção de pessoa, então, - de
acordo com nossos autores - tem uma importância singular no desenho da
cosmovisão africana.
           
            Pessoa
 
            Ronilda Ribeiro está interessada em demonstrar, apesar de admitir que
cada clã ou grupo africano tem sua própria noção de pessoa, que existe uma
estrutura comum entre os povos africanos. A noção de pessoa - assim como a
de universo, força vital, palavra e tempo - não é uma exceção, e pode ser
compreendida como mais um elemento estruturante da cosmovisão africana.
            Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 44): “A pessoa é tida como
resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e
simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica
enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social”.
            O estudo da noção de pessoa não pode estar dissociado do estudo das
instituições e dos modos de organização social que propiciam a vida para os
indivíduos. Ou seja, é impossível dicotomizar indivíduo e sociedade, ou
pessoalidade e coletividade. Na verdade, o indivíduo é uno, singular, porém,
mesmo essa singularidade que o caracteriza é forjada no coletivo, no social.
Ronilda Ribeiro, baseando-se em Mauss e Leenhardt, afirma que "o pessoal é
indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso
para compreender as instituições e as representações a ela associadas”
(RIBEIRO, 1996, p. 45).
            Segundo a autora, “ao eu transcendental, intangível e invisível
associam-se componentes de ordem material formando um corpo tangível e
visível e outros componentes de ordem imaterial, intangível e invisível”
(RIBEIRO, 1996, p. 109). Segundo ela e de acordo com a tradição iorubá, o ser
humano é constituído dos seguintes elementos: “ara, ojiji, okan, emi e ori”
(RIBEIRO, 1996, p. 109).
            Ara é o corpo físico, corpóreo. Ojiji “é a representação visível da
essência espiritual e acompanha o homem durante toda sua vida” (RIBEIRO,
1996, p. 109). O Ojiji pode ser traduzido como sombra. Okan é o órgão
intimamente relacionado com o sangue – o coração. Ele representa não
apenas o coração físico, mas também o okan imaterial, que representa a
inteligência, o pensamento e a ação. Já o Emi é o princípio vital – a respiração.
Não apenas a respiração corpórea, mas também o sopro divino, o hálito de
Deus. O Ori é a essência real do ser. “O sentido literal de ori é cabeça física,
símbolo da cabeça interior – ori inu” (RIBEIRO, 1996, p. 110). Daí a
necessidade dos homens escolherem bem o seu ori e cuidar para que ele se
conserve bom, pois o ori está sujeito a ações dos feiticeiros que podem
danificar a natureza da cabeça física e espiritual.
            Marco Aurélio LUZ (1995) ao falar da concepção de pessoa na
“filosofia” nagô  prefere referir-se ao orixá da morte – Iku. A tradição nagô narra
que Obatalá pediu a todos os orixás que procurassem por uma matéria prima
que constituísse o ara-ayiê (ser vivo). Depois de muita procura todos
concordaram que a melhor matéria prima fora a lama, encontrada por Iku.
Porém, ao entregar a lama para Obatalá, Iku lembrou-se de lhe dizer que a
lama havia chorado e se lamentado muito de sua perda. Assim, Obatalá
ordenou a Iku a restituição da lama do orun tomada para fazer o ara-ayiê. “Daí
por diante, Morte possui essa missão. De levar de volta matéria dos ara-ayiê
para o  orun” (LUZ, 1995, p. 52).
            Segundo o autor, a matéria com que são moldados os seres
humanos chama-se ipori ou oke ipori (LUZ, 1995, p. 52). A qualidade do ipori
dará as primeiras características ao indivíduo dela constituído. Porém, há um
outro elemento que marcará a pessoa constituída que é o egun ipori, ou seja,
as “matérias massas restituídas de seus antepassados, e agora renascido no
novo ser” (LUZ, 1995, p. 53).  O Oke ipori é a matéria da qual é feita a cabeça
física e interna, o  ori (LUZ, 1995, p. 53).
            De acordo com a tradição nagô cada elemento que constitui o ara-
ayiê é encontrado no orun. Logo, é lúcido deduzir que  existe um duplo do ara-
ayiê no orun. Os rituais estabelecidos no ayê para fortalecer o destino do ori no
ara- ayiê, chama-se ori-orun e ajuda a fortalecer o fluxo do destino pessoal.
            A cabeça (ori) é o centro das atenções dos povos nagôs. Segundo a
tradição são os próprios Homens que escolhem sua cabeça no  orun antes de
descerem para o  ayiê.  Em terra devem sempre fazer oferendas para seus
orixás para que mantenham uma cabeça forte, boa e restituam para ela a força
através das oferendas, que, por sua vez, aumenta o axé dos oris.  A cabeça,
em verdade, é o conjunto de partes complexas[18] deste que é o membro
principal da pessoa segundo a tradição nagô.
            A cabeça, apesar de ser a parte mais importante da pessoa, não é
auto-suficiente. Ela necessita do bom funcionamento de todas as outras partes
do corpo para seu bem-estar. O  ori  depende muito do orixá responsável pelo
interior do corpo, que é exatamente Exu Bara, que significa o Rei do Corpo.
“Ele é o princípio de movimento e circulação das vias internas” (LUZ, 1995, p.
56).
            Exu Bara é quem encarna no indivíduo e proporciona a este o
nascimento. Por isso mesmo, Exu Bara é também responsável pelo bom fluxo
do destino pessoal da pessoa. Presente nas cavidades do ser humano, Exu
Bara conhece nossas entranhas e conhece nosso destino, juntamente com Ifá,
o Orixá das adivinhações e da sabedoria.
            Para Marco Aurélio LUZ (1995, p. 57): “os seres humanos são resultado
dos despreendimentos de matéria massas dos orixá e de seus ancestrais
místicos e familiares falecidos, de onde é retirado o egun-ipori e que constituirá
a pessoa no  ayiê”.
            A pessoa é o resultado de forças divinas como naturais. Sua essência
está indissociavelmente ligada às divindades como aos elementos da natureza.
Ela é a síntese de todos os seres que compõem o universo, como vimos no
mito de Maa Ngala. Ela é  a expressão da vontade de Obatalá e fruto da
empreita de Iku. A pessoa, no entanto, não pode ser compreendida como um
ente individual. Com efeito, a pessoa é o resultado de uma ação coletiva. Não
se separa, segundo Ribeiro, pessoalidade de coletividade. A identidade do
indivíduo é forjada no interior das tramas sociais. Se a pessoa é resultado da
interação entre o sagrado e a natureza, é no meio-ambiente social que ela
encontra sua identidade. A formação da pessoa dá-se através de processos de
socialização, como veremos a seguir.
 
            Socialização
 
A socialização dentre os  africanos é o processo de formação dos indivíduos e
suas personalidades de acordo com as normas tradicionalmente estabelecidas
em suas sociedades. Esse processo de formação dá-se, geralmente, com ritos
iniciáticos, que são coletivos e abrangem a totalidade dos indivíduos viventes
em cada comunidade. “A formação da personalidade nas civilizações negro-
africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo”. Esse humanismo,
como afirma Leite, revela “que a sociedade propõe a superação, pela
consciência da realidade existencial, das limitações materiais e instrumentais,
harmonizando o homem com as práticas sociais suficientes” (LEITE, 1984, p.
42).
As crianças, assim que têm idade, sujeitam-se aos ritos iniciáticos, o que
faz com que o grupo de pessoas chegue à maturidade ao mesmo tempo e
criem vínculos de solidariedade entre si, ocupando agora seu novo papel social
e, é claro, cumprindo rigorosamente suas novas funções diante da sociedade a
que pertencem.
            Esses ritos são tão importantes que no caso de alguém se negar a
passar por eles sofrerá uma série de restrições e provavelmente ficará fora da
distribuição dos dotes de terra, da possibilidade de exercer algum cargo de
comando etc. Ou seja, somente são excluídos nestas sociedades aqueles que
se excluem do processo de socialização – sempre coletivo e sempre
garantindo o bem-estar social de seus membros.
            A formação da pessoa africana, então, é um processo coletivo; uma
responsabilidade social. Os ritos iniciáticos irmanam todos os membros de uma
comunidade. A preparação da pessoa para viver no meio social é uma tarefa
assumida coletivamente, obedecendo as normas dos ancestrais. Com efeito,
os ritos iniciáticos responsáveis pela socialização da pessoa são baseados na
tradição dos ancestrais e obedecem as regras determinadas pelos
antepassados. Ou seja, a lógica que empreende a socialização dos indivíduos,
em África, é a da ancestralidade.
            Esses ritos iniciáticos pautados no princípio da ancestralidade
introduzem os indivíduos – vivos – no seio de suas comunidades ou famílias-
aldeias. Há, entretanto, um outro rito, que ocorre entre os viventes, mas dirige-
se aos falecidos. São os rituais da morte ou, como são comumentos
chamados, os ritos funerários.
            A morte é um evento de fundamental importância para os africanos, e,
para o que me interessa mais de perto, a ancestralidade, pois ela é o
mecanismo comunitário que cria os ancestrais e, como rito de passagem, tem a
função de harmonizar as tensões do grupo.
 
            Morte
 
            A crença na imortalidade do homem explica, em grande parte, a grande
importância que a morte e os ritos funerários têm na cosmovisão de mundo
africana. Com efeito, “a morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por
excelência,  pois promove a dissolução da união vital em que se encontram os
elementos constitutivos do ser humano, estado esse que faz configurar a
existência visível” (LEITE, 1984, p. 43).
            A morte abrange as esferas mais importantes da vida africana, pois
abarca a concepção de homem, a necessidade das restituições dos papéis
sociais mais importantes, como chefes de família ou governantes políticos. Isto
porque, uma vez ocorrido o evento da morte o equilíbrio da comunidade está
posto em questão, pois as personagens que morreram sintetizam as ações
históricas do grupo. É neste momento que os ritos funerários ganham grande
importância, pois eles são capazes de reorganizar rapidamente as
comunidades restabelecendo o equilíbrio social.
            Os ritos funerários fazem ver aos africanos os elementos que
extrapolam a própria morte, ou seja, a participação do indivíduo morto no plano
do sagrado - no seio dos ancestrais. Além do mais, toda a sociedade participa
e é testemunha da distribuição da energia vital da pessoa que morreu para os
elementos naturais, como a terra que abrigará seu corpo. A vitalidade da
pessoa morta é transferida para os elementos naturais que vão contribuir para
a vida da comunidade. De certa forma, a morte de um indivíduo é o aumento
da força da comunidade já que sua energia volta-se para ela fortalecendo os
elementos naturais essenciais para a vida do grupo. Quanto ao indivíduo que
morreu ele passa, por causa da imortalidade,  a fazer parte de um outro plano
onde estão os ancestrais – a não ser que ele volte para a comunidade -, onde
sua energia vital fará parte agora do zamani.
            Segundo Fábio LEITE (1984, p. 44): “Esses fatores explicam a notável
importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser
consideradas como ritos de passagem, de outra se constituem em ritos de
permanência, pois delas nascem os ancestrais”. Os ritos funerários têm
importância fundamental no restabelecimento do equilíbrio social. Eles não
atuam somente no plano psicológico; mas revelam também “a capacidade de a
sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar continuidade à vida
ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se
configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social” (LEITE,
1984, p. 44).
            Para Marco Aurélio LUZ (1995) e BASTIDE (1989) os ritos funerários do
candomblé são os responsáveis pela geração dos ancestrais - primeiro como
ancestral individualizado, depois como ancestre coletivo. Julio Braga, por sua
vez, descreve a criação do ancestral através do culto dos babá eguns, dando
ênfase, também ele, aos ritos funerários e como esses se tornaram a matriz
referencial para o nascimento dos ancestrais. “É o ritual funerário que dignifica
o morto enquanto elemento indissociável da estrutura religiosa e do próprio
sentido da permanência e elaboração do sistema de transferência do poder
para a nova liderança que se instala na direção do grupo religioso”
(BRAGA,1992, p. 99). É o ritual funerário, ainda, que permite “a elaboração
social do ancestral coletivo”. Isto porque, de acordo com Fábio Leite, citado por
BRAGA (1992, p. 99), é nesse ritual que “a sociedade manipula a imortalidade
do homem com o pressuposto de inserí-lo no país dos ancestrais”.
            Podemos ver que os ritos funerários são ao mesmo tempo de
passagem e de permanência. De passagem, pois direcionam o destino de seus
mortos para a imortalidade entre os ancestrais. Têm a função, portanto, de
harmonizar o desequilíbrio causado pela morte de um membro da comunidade.
O ritual funerário transforma o morto num ancestral - aqui estamos diante de
um ritual de permanência. Sua vida fora desfeita, mas sua força vital, não. Ela
volta para a comunidade, alimentando-a. Sua morte é sinal menos de perda
que de ganho. A comunidade, com efeito, perde um membro, mas ganha sua
energia vitalizante. O indivíduo desaparece; a comunidade cresce. A força vital
que dantes o habitava, reside agora na sua família, entre os membros de sua
linhagem. A família é, sem embargo, o núcleo comum onde o africano pode
vivenciar seu universo, alimentar sua força vital, interagir no tempo com as
pessoas e as divindades, aprimorar seu sistema de socialização, dominar a
palavra e preparar seus ritos, tanto iniciáticos como de passagem ou
permanência.
           
            Família
 
            De acordo com Fábio LEITE (1984, p. 45): “A família negro-africana
típica, conhecida pela denominação  de família extensa, é constituída por um
grande número de pessoas ligadas pelo parentesco”. As famílias se organizam
ou por linhagem matrilinear, ou por linhagem patrilinear. No caso das linhagens
matrilineares, que na África são maioria, é comum encontrar no seio das
famílias-aldeia  as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. Para ele, “é
devido a essa configuração do parentesco que os direitos e os deveres são
institucionalmente transmitidos de mãe a filha,  de irmã a irmã, de tia a sobrinha
e, quanto aos homens, de irmão a irmão e de tio a sobrinho” (LEITE, 1984, p.
45). Esse modelo organizativo dos grupos está baseado nos laços sanguíneos
e conferem grande autoridade às mulheres. A mãe é o pivô da organização
familiar, e é através de sua linhagem que os postos de poder e
responsabilidade são transmitidos.
            Esse  modelo é  igualmente aplicado à sociedade. Assim, as funções do
governo, da administração geral dos interesses dos membros da comunidade -
interesses tanto materiais quanto espirituais - passarão necessariamente pela
linhagem matrilinear. “Sob o prisma de sua formulação sanguínea, a família
extensa de organização matrilinear transcende, portanto,  o espaço físico,
abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco uterino a ancestrais
mulheres comuns” (LEITE,1984, p. 45).
            Em relação à estrutura física, a família africana – família extensa - 
“compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela ligadas”
(LEITE, 1984, p. 45). A família do patriarca-chefe é formada por ele, sua
esposa(s), filhos, irmãos e mulheres dos irmãos com sua prole e parentesco,
enquanto  as famílias conjugais comportam  esposo, esposa e filhos. O
conjunto dessas relações familiares forma a família-aldeia,  unidade produtiva
que se ocupa  da sobrevivência da comunidade. Essa família-aldeia é a
unidade familiar que garante a existência do grupo. Ela está organizada sob o
modelo da matrilinearidade e tem sua estrutura baseada nas mulheres-
ancestrais que lhes conferem origem e sentido.
            Segundo LEITE, a família é o locus privilegiado do africano vivenciar
sua cultura. Dela nascem suas divindades, bem como sua subsistência. A
família é o núcleo primevo da sociedade. É sua unidade mais importante. A
estrutura social africana é formada pelos clãs ou famílias-aldeia e sua
importância é tal que até os deuses obedecem às linhagens! Os ritos, por sua
vez, refletem a organização singular de cada grupo; as etnias, ao que lhes
tocam, definem suas identidades no “útero” da sociedade (a família). Útero que
gesta tanto sua vida, digamos, espiritual, como sua vida material, através da
produção. A produção, no entanto, não é compreendida como uma tarefa
meramente material. Ela está intimamente ligada com a concepção sagrada do
mundo, principal característica da cosmovisão africana. Por isso, mesmo na
produção, uma vez mais a ancestralidade é o princípio norteador da vida dos
africanos.
 
Produção
 
Nas sociedades tradicionais africanas “os processos de produção são
baseados essencialmente na suficiência destinada ao atendimento comunitário
de necessidades vitais e específicas” (LEITE, 1984, p. 46).  Isto explica o fato
de em África não serem usados meios alternativos de produção. De acordo
com Fábio LEITE (1984, p. 46), “a natureza comunitária da produção formula-
se materialmente enquanto elemento decisivo da realidade social”.
Como essas sociedades são basicamente agrárias, é lógico deduzir que
a terra é o principal elemento da produção dentre elas. A terra é considerada
“como uma divindade e sua fertilidade tomada como doação do preexistente”
(LEITE, 1984, p. 47). Sendo uma divindade e tendo íntimas relações com o
preexistente, o homem não pode apropriar-se da terra; ele pode somente
ocupá-la[19].
Uma das principais características destas sociedades é a não
apropriação individual do solo e o dever de transmiti-lo da mesma forma às
próximas gerações. O homem deve ocupar o solo de acordo com os pactos
com a terra selados por seus ancestrais. Esses pactos demonstram o profundo
respeito e a importância arraigada na cultura desses povos no que se refere
aos ancestres.  Esses pactos são respeitados, o que não impede que possa
ocorrer pequenas transformações nesse espaço, como por exemplo, a terra
pode ser repartida com terceiros (que não fazem parte da família) desde que a
unidade produtiva mantenha o sustento da família extensa. Essas
transformações, no entanto, não podem desestruturar o modelo
tradicionalmente existente.
Quanto aos instrumentos de trabalho, também eles devem ser
confeccionados da terra, ou seja, somente pode-se utilizar os instrumentos que
têm como matéria prima a própria terra e, por extensão, a natureza. Isso
também é fruto do pacto estabelecido entre o Homem (sobretudo os ancestrais
fundadores) e a terra (elemento natural fundamental e elemento sagrado por
excelência). Os instrumentos de trabalho assim concebidos servem apenas
para suprir o necessário à comunidade. Não há excedente na produção
africana. O meio de produção (a terra) e os modos de produção (os
instrumentos utilizados) destinam-se tão somente ao suprimento das
necessidades vitais do grupo. Isso impede o desenvolvimento de tecnologias
que favoreçam a acumulação do excedente a partir de técnicas artificiais de
produção. O elemento natural, para Leite, é base para a manutenção de uma
sociedade em harmonia com o meio ambiente e com o meio social.
De acordo com o autor: “Das alianças seladas com a terra pelas famílias
nascem (...) as unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados
na família-aldeia” (LEITE, 1984, p. 48). Tudo está interligado e tudo é
interdependente. Esse é o segredo da harmonia social na África. Vê-se, assim,
que a concepção harmonizante de universo presente na cosmovisão africana
reflete-se na esfera da produção. O mesmo verifica-se com a noção de
trabalho, posto que “ele se traduz como ação comunitária por excelência”
(LEITE, 1984, p. 48). O trabalho transparece como mais um instrumento da
produção estando vitalmente associado às regras de interdependência
estabelecidas por fatores não meramente econômicos. As famílias conjugais
destinam dois terços de seu tempo de trabalho ao labor coletivo, sendo que um
terço de seu tempo de trabalho é ocupado em áreas privativas à família
conjugal. Já os jovens solteiros trabalham todo o tempo nas áreas coletivas,
até que chegue sua vez de constituir sua família conjugal.
Entre as sociedades africanas encontra-se também o trabalho em
mutirão, baseado na reciprocidade. Os jovens trabalham mais do que os
idosos, e as atividades são organizadas de modo a que os jovens possam
prestar ajuda aos mais velhos. Quando os anciãos já não conseguem trabalhar,
podem gozar sua velhice recebendo todos os donativos necessários à sua
sobrevivência até que chegue o dia de sua morte.
            Toda essa estrutura produtiva impede que exista um grupo que passe a
usufruir mais direitos e a ter privilégios. A produção suficiente, os instrumentos
de trabalho forjados da natureza e destinados à produção do essencial,
impedem que se formem camadas mais abastadas em detrimento de camadas
desprovidas dos bens necessários à sobrevivência. Sendo o trabalho um
elemento da produção essencialmente coletivo e destinado para toda a
comunidade dificulta-se a formação de camadas sociais privilegiadas. Com
efeito, “nessas sociedades a força de trabalho faz parte da personalidade e não
se encontra separada da totalidade vital que configura os indivíduos, não
podendo, portanto, ser apropriada” (LEITE, 1984, p. 49). A força de trabalho é
um serviço. O trabalho é uma prática social que ajuda a definir os papéis dos
indivíduos nas sociedades africanas. É por isso que LEITE (1984, p. 49) pode
dizer que o “trabalho integra-se qualitativamente nas práticas ligadas à
produção enquanto fator de vida social total, fazendo emergir o indivíduo
historicamente consciente das ações que deve à sociedade”.
            O trabalho é organizado dentro dos limites territoriais da família-aldeia,
seguindo o princípio da ancestralidade. A sociedade africana, porém, não se
restringe ao clã familiar. Com efeito, na África, existem sociedades com e sem
Estado, mas em qualquer caso o exercício do poder está centrado no seio das
famílias-aldeia, obedecendo a duradoura tradição africana que tem por
finalidade última o bem-estar de todos os membros dos vários grupos
africanos.
           
Poder
 
            Já sinalizamos que em África, segundo os autores referidods, pode-se
falar em sociedades com e sem Estado. Entretanto, num caso como no outro o
poder está concentrado nas unidades produtivas, ou seja, nas famílias-aldeia.
Em ambos os casos há mecanismos reguladores do poder, seja ele emanado
dos chefes das linhagens ou da côrte do rei.
            Tanto no caso das sociedades sem Estado como no caso das
sociedades com Estado o poder é moderado pela existência dos “conselhos de
família e de comunidade, as chefias de família, os encargos ancestrais
atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de iniciados que exercem
funções políticas” (LEITE, 1984, p. 50). Nos dois casos, observa Fábio Leite:
“evidencia-se uma consciência ótima acerca do território ocupado,
manifestando-se a unidade cultural, dada especialmente por uma língua básica
(não obstante suas eventuais variações regionais), origens ancestrais comuns
e organização social e política semelhante” (LEITE, 1984, p. 50).
            Quando se trata das sociedades sem Estado a ocupação dos territórios
é mais fragmentada, pois a ocupação se dá basicamente pela ocupação das
terras utilizadas pelas famílias-aldeia. No entanto, os grupos conhecem  as
origens mitológicas e históricas de suas terras. A diferença para com as
sociedades com Estado é que nestas o rei administra e tem sob sua
responsabilidade o território que seu grupo ocupa, não obstante haja diferenças
entre eles. O rei, na verdade, é um administrador de conflitos. Ele deve zelar
pelo bem-estar de sua comunidade. Se ele não cumprir essa norma pode
pagar com sua própria vida, pois em certas sociedades, como a dos três
grandes impérios (Gana, Mali e Songai), se o rei não garantir prosperidade a
seus súditos ele sofre o regicídio.
            De acordo com Fábio Leite, as mulheres e os homens ocupam
determinadas funções, que lhes conferem poder frente à sociedade. Quanto às
mulheres, elas “constituem fonte de legitimação na medida em que apenas elas
fazem configurar as descendências e as posições dos indivíduos na estrutura
da família para fins de sucessão e consequente acesso ao poder” (LEITE,
1984, p. 51). Este é o caso dos conselhos de mulheres formados pelas
descendentes das mulheres-ancestrais, que determinam quem pode ser
indicado aos cargos de comando, inclusive ao posto do rei.  Os homens,
portanto, são aqueles que têm o comando político da comunidade. Enquanto
chefes mandatários, guardiões dos pactos selados com a terra “são os
zeladores da ordem e também os principais elementos de comunicação entre a
comunidade e os ancestrais, pois a eles cabe a direção e mesmo a execução
dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos antepassados” (LEITE,
1984, p. 52).
            Temos, novamente, uma ordem tal, que apesar das diferenças entre os
elementos (masculino e feminino), vê-se claramente que são complementários
e fundamentais para o bom funcionamento do organismo social, pois sem os
quais não haveria o bem-estar da comunidade. As funções de homens e de
mulheres são complementares e benéficas à sociedade como um todo.
            O poder é um atributo dos viventes, mas emana dos antepassados. Os
que forem mais fiéis aos antepassados e seus pactos com a terra alcançarão
mais prestígio diante da comunidade. O poder é um exercício calcado na
tradição para garantir o bem-estar para a sociedade. Isso justifica porque o rei,
quando deixa seu povo às margens dos benefícios sociais, pode sofrer o
regicídio. O poder, portanto, é um instrumento da tradição dos ancestrais para
perpetuar no ayê a ordem do sagrado e a moralidade dos ancestrais.
 
            Ancestralidade
 
Quando Olorun procurava matéria apropriada para criar o homem todos
os ebora partiram em busca da tal matéria. Trouxeram diferentes coisas
mas nenhuma era adequada. Foram buscar lama, ela chorou, derramou
lágrimas e nenhum ebola quis tomar da menor parcela. Então Iku,
ojegbe-alaso-ona, apareceu, apanhou um pouco de lama – eerupe – e
não teve misericórdia de seu pranto. Levou-a a Oludamare, e este pediu
a Orisala e a Olugama que a modelassem e foi Ele mesmo quem lhe
insuflou seu hálito. Mas Olodumare determinou a Iku que, por ter sido
ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a
qualquer momento. E é por isso que Iku sempre nos leva de volta para a
lama. (SANTOS[20] citada por RIBEIRO, 1996, p. 158).
 
            O culto aos ancestrais é um dos elementos mais constantes na cultura
africana. Pode-se mesmo dizer que é um fenômeno universal em praticamente
toda a África Negra. Conforme Marco Aurélio LUZ (1995,p. 93): “Um dos
aspectos invariantes da religião negra é a existência do culto aos ancestrais.
Tanto a tradição nagô como a jeje e a congo-angola, que cultuam as forças
cósmicas que regem o universo, se complementam com o culto aos
ancestrais”. Essa constante na cultura africana e na cultura negra em geral é a
pedra fundamental da cosmovisão africana, pois o culto aos ancestrais sintetiza
todos os elementos que a estruturam. Aliás, aqui o movimento é o inverso: a
cosmovisão africana retira do culto aos ancestrais praticamente todos os seus
elementos.
            Desde a complementaridade dos gêneros, até o caráter coletivo dos
rituais africanos, o culto aos ancestrais preserva e atualiza, da melhor maneira
possível a originalidade e a genuinidade dos elementos estruturantes da
cosmovisão africana. A concepção de universo, de poder , de pessoa, etc.,
estão nele  contemplados. Sua dinâmica perpassa desde o caráter mais
eminentemente religioso até seu caráter de produção. A relação entre o ayê e o
orun   é exemplar; a relação entre a vida e a morte é singular; a relação entre o
Homem e a natureza e entre o Homem e as divindades são emblemáticas, ou
seja, tudo o que se passa nos cultos aos ancestrias está presente, de maneira
geral, no que estamos chamando de cosmovisão africana. O que equivale a
afirmar que a cultura negra, em África ou fora dela, deve muito de sua
estrutura, de seu fundamento, ao culto dos orixás.
            Em relação à tradição nagô no Brasil há três categorias de culto aos
ancestrais: Os Esa, os Egungun e as Iya-mi Agba. Segundo Marco Aurélio LUZ
(1995,p. 93) todos as três “estão englobados no conceito de ara-orun,
habitantes do orun, do além”.
            Os Esa “são considerados os ancestrais coletivos dos afro-brasileiros.
Seu culto se refere à comunidade em geral e não se caracteriza pela
pertinência a uma família ou uma linhagem” (LUZ, 1995,p. 93). Apesar de tanto
em África quanto no Brasil a linhagem tradicional possuir valor inestimável, os
Esa se destacaram por seu trabalho junto às comunidades, e é a elas que eles
vão servir e ajudar, e não às suas famílias de origem.
            Enquanto os Esa têm manifestação coletiva os Egungun têrm
manifestação individuada. Além dessa diferença há outra: a representação do
espírito individualizado, o Egungun, caracteriza-se pela aparição no aiyê. Os
Esa, por sua vez, não têm essa propriedade de espírito individualizado e não
se manifestam no aiyê.
            O culto dos Egungun é o culto dos ancestrais masculinos, “originário de
Oyó, capital do império nagô, foi implantado no Brasil no início do século XIX”
(LUZ,1995,p. 95). Seus principais terreiros, e hoje em dia praticamente os
últimos, se encontram na Ilha de Itaparica, na Bahia.
            Segundo Marco Aurélio LUZ (1995,p. 95-96): “Os Egungun concretizam
um valor característico da cultura negra, que é a busca da expansão da
existência pelo homem negro através das homenagens e lembrança eterna
mantida pelos seus descendentes, uma vez o espírito preparado e ritualizado
através da religião”.
            A participação dos Egungun na vida dos seres humanos é ativa. Eles
constituem-se nos protetores da comunidade e os guardiões da tradição e da
moralidade. O culto aos Egungun inspira adoração, respeito e temor (LUZ,
1995,p. 96).
            Os iniciados no culto aos ancestrais Egungun têm a certeza de que
tanto a vida como a morte é uma e a mesma coisa. Eles acreditam que vão
continuar existindo em outro plano, e ligados sempre à sua territorialidade, à
sua família, à sua linhagem.  Há uma cantiga retirada do livro de Joana Elbein
dos Santos e citado por Marco Aurélio LUZ (1995,p. 96) que explicita bem o
que acabamos de comentar:

Se awo ki’ku

Awo ki run
Nse é awo ma nlo so Itunla
Itunla  ilê awo
 
Aqueles que fazem o mistério nunca morrem
Os iniciados nunca se corrompem
Os iniciados vão somente para o Itunla (lugar da vida ilimitada
e verdadeira; da vida que se renova)
Itunla casa do mistério. (o ilê awo), de onde os Eguns também
são invocados.
 
            Há uma grande diferença entre o culto dos Egunguns e o culto dos
orixás. Tanto que os ritos religiosos não se podem fazer ao mesmo tempo e no
mesmo lugar. Ancestrais Eguns e orixás estão radicalmente separados. No
entanto, há muita semelhança na estrutura desses cultos, tanto no que diz
respeito à ancestralidade tanto no que diz respeito à relação dessas divindades
com os Homens. Não é uma questão para se adentrar agora, mas ancestrais e
orixás têm relações antigas, mesmo antes da criação dos ara-aiyê. A relação,
no orun, entre elas, era estreita e complementar. Só para citar um exemplo, há
orixás que antes de sê-lo eram ancestrais divinizados. Por sua vez, esses
ancestrais eram líderes comunitários em seu território, como foi o caso do Rei
Xangô, que acabou tornando-se o orixá da justiça, do trovão. Concluindo,
podemos citar Ronilda Ribeiro que assim define a diferença entre orixás e
ancestrais: “Os orixás, associados a elementos cósmicos ou à natureza,
significam matérias simbólicas de origem enquanto os ancestrais, significam
princípios de existência genérica a nível social” (RIBEIRO, 1996, p. 166)
            As Geledes é o culto às ancestrais femininas. Marco Aurélio LUZ    
(1995,p. 102)  narra a seguinte história: “No começo do mundo, era o nada.
Com a criação da terra e das florestas, Olorun enviou ao aiyê sete pássaros.
Três pousaram na árvore do bem, três pousaram na árvore do mal, e um voa
de uma para outra árvore”.  Esta história narra a ambiguidade do poder que as
ancestrais femininas, também chamadas de Iya-mi-Agba, receberam de
Olorun. Aqueles que não a respeitarem, morrerão; mas aqueles que a
agradarem e fizerem as devidas oferendas serão protegidos e agraciados por
elas.
            Segundo Joana Elbein dos Santos, citada por LUZ (1995,p. 103): “As
aje ou Iya-mi  constituem a representação da maternidade, fertilidade e
fecundidade relacionadas ao princípio feminino da existência e Oxun, Olori-iya
Agba Aje Eleye chefe suprema das mães ancestrais possuidoras de pássaros,
as apresenta coletivamente”.
            Para LUZ (1995,p. 103): “O que caracteriza o mistério e poder das Iya-
mi é a capacidade de criação e gestação da terra, Igba-nla, a grande cabaça
ventre fecundada. Para tanto, ela deve ser constantemente ressarcida,
restituída e umedecida, pois ela é constantemente  solicitada para gerar
abundância de grãos”.
            Ronilda Ribeiro, atenta ao culto das mães ancestrais como uma
maneira de restaurar a força pela restituição, afirma que as Iya-agba, “para
poderem cumprir sua função necessitam ser fecundadas, umedecidas,
restituídas.  A terra, associada ao que é seco e quente, precisa ser umedecida
continuamente, recuperar o “sangue branco” para poder propiciar novos
alimentos” (RIBEIRO, 1996, p. 165).
            De acordo com a autora, a sociedade das Geledes, simboliza aspectos
coletivos do poder ancestral feminino é dirigida “pelas erelu, mulheres
detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser
cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem
por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos;
favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta”
(RIBEIRO, 1996, p. 159).
            Por fim, vemos que o culto aos ancestrais representa de maneira
exemplar a cosmovisão africana, tanto porque compõe as camadas mais
importantes dessas sociedades (princípio masculino, princípio feminino e o
coletivo), quanto pela riqueza de funções que possuem os ancestrais. Vivendo
no tempo do passado, um tempo mitológico (zamani), os ancestrais interferem
e participam ativamente na vida de seus iniciados e de suas comunidades,
atuando e transformando o tempo sasa, construindo e restituindo a força vital
(ou axé) de seus descendentes, fazendo com que a vida seja um continuun
impregnada da energia dos entes sobrenaturais, que, em outros tempos, já
foram ara-aiyê,  e que agora emprestam sua energia, seu ser-força,  às
comunidades e seus membros, tornando o universo africano um universo
impregnado de energia e força.
 
            Os elementos que estruturam a cosmovisão de mundo de que estamos
falando advém, quase em sua totalidade, das religiões yorubanas e jêje
localizadas na costa ocidental do continente. No entanto, a África abriga
centenas de milhares de religiões. Para exemplificar esta diversidade,
trataremos de tecer comentários sumários e tirar conclusões filosóficas
decisivas de religiões de outras regiões africanas e, ainda que sinteticamente,
retirar daí lições filosóficas que contribuam para a cultura brasileira e, quiçá,
mundial.
 

            Religiões Africanas

 
            Certamente, na África,  as religiões jogam um papel primordial na
organização da vida comunitária e na estruturação das sociedades africanas.
Por isso gostaríamos de fazer rápidas considerações  a respeito de algumas
religiões  da África tradicional, mas que existem até os dias de hoje. Tais
considerações serão traçadas sobre as seguintes religiões que foram
sumariamente analisadas: Religião Akan[21], Banto[22], Dinca[23], Dogon[24],
Fon[25], Ganda[26], Religião Iorubana[27], Lovedu[28], Mbona[29], Mende[30],
Nilótica[31], Nuer[32], Shilluk[33], Shona, Zande e Zulu[34] e a veneração
africana aos Antepassados.

            O melhor seria relacionar cada conclusão geral com cada religião em
particular. Este artifício, no entanto, deixaria ainda mais extenso o presente
texto e, de  certa forma, ofuscaria nosso objetivo principal que é reter
justamente as conclusões de caráter mais genérico. Assim, elencaremos o que
consideramos as conclusões mais importantes a respeito da análise das
religiões tradicionais africanas, que vai desde a África Ocidental até o sul da
África negra.

As religiões africanas são eminentemente comunitárias. A dimensão


comunitária dessas religiões expressa sua concepção da vida e do universo. O
importante é o bem-estar de todos os membros da  comunidade. Não existe
divisão de classes ou privilégios sociais. Os benefícios da religião e da
religiosidade são universais (para o grupo, família, clã, ou cidade).

As religiões africanas são, ainda, pragmáticas. Os cultos visam a harmonia


social e espiritual. Todo o bojo de concepções presente nestas religiões estão
orientadas para a satisfação das necessidades imanentes e transcendentes de
seus membros. A religião não é uma esfera desvinculada da política e da
economia. Muito pelo contrário, a religião sacraliza estas esferas e com elas
formam um todo. Esse todo deve ser administrado em vista da satisfação das
necessidades de seus membros – necessidades estas que estão presentes
tanto na esfera do sagrado como na esfera do profano.

Os resultados da eficácia da religião são medidas pragmaticamente. Se


a comunidade está passando fome, morre o rei. Como dissemos, o regicídio é
uma maneira de controlar o poder real, já que o rei não detém apenas o poder
político-militar sobre seu povo, mas também o poder religioso. Ele não é
absoluto em sua função. Seu poder é finito. Assim, se sua comunidade não vai
bem, o responsável é o Rei, devendo, em muitos casos, pagar com a própria
vida o preço de sua responsabilidade. Jean ZIEGLER (1972) analisou muito
bem a dinâmica do poder das sociedades reais africanas ao demonstrar como
o rei está associado à lógica religiosa do grupo quanto à esfera da produção,
pois quando o rei morre a sociedade toda desiquilibra-se, uma vez que o rei é a
representação máxima do equilíbrio e estabilidade da comunidade. Por isso a
transição de poder será sempre traumática, pois o poder é o elemento que
harmoniza a comunidade, e tanto a sua estabilidade, quanto sua instabilidade,
serão celebradas pelo povo.

Não há salvacionismo. Não há pecado. Longe dos paradigmas cristãos, as


religiões africanas estão livres de noções como a culpa, paraíso e  inferno –
todas tributárias da concepção de tempo ocidental, ou seja, de um tempo
futuro. As religiões africanas vivem sobretudo o tempo do passado, tempo dos
antepassados, tempo privilegiado do preexistente. São religiões que sacralizam
o tempo passado e o tempo presente. O futuro é uma categoria ausente na
maioria das sociedades africanas tradicionais. Nessas religiões cada um tem
uma função e uma responsabilidade. Excluir-se dessas responsabilidades é
excluir-se da comunidade e de seus benefícios. A socialização dos africanos é
coletiva e não individual, o que dificulta, entre eles, a ramificação da idéia de
culpa.

Com efeito, nas religiões africanas privilegia-se o respeito e a


importância dos ancestrais. Os ancestrais, como vimos, é a base das religiões
africanas; sem eles não haveria religião possível. Pedra angular dos cultos
religiosos os ancestrais são ou personagens históricos que por sua notável
presença no aiyê lograram um posto de antepassados divinizados
transformados por suas comunidades em ancestrais, ou aspectos naturais
(rios, árvores, mata, etc.) que foram divinizados por sua importância à
sobrevivência do grupo humano. É bom esclarecer que os antepassados
podem ou não vir a ser ancestrais, porém todo ancestral, um dia, já foi um
antepassado, seja em forma humana ou em forma natural. No culto aos
ancestrais, como já foi trabalhado anterirmente, está a maior parte dos
elementos que formam a cosmovisão africana.

O poder masculino e feminino são complementários nestas religiões. As


divindades dividem-se em masculinas, femininas ou andróginas. Há também
entidades que representam o coletivo, a comunidade. Porém, o princípio da
complementaridade[35] e o respeito à diferença entre os gêneros está
contemplada nas religiões tradicionais da África, uma vez que em todo mito de
origem e em toda significação cosmológica a figura das divindades masculinas
e femininas estão presentes de maneira se não equitativa, pelo menos
complementar – sendo que muitas vezes ressalta-se ou as entidades femininas
ou as entidades masculinas de acordo com o contexto cultural  e social de cada
grupo.

As religiões africanas são fortemente marcadas por uma sacralidade profunda


e por uma habilidade secular exemplares. Todo o universo está inserido dentro
de uma dinâmica religiosa. Ela abarca todos os domínios da vida – produção,
cultura, vida privada, vida pública, etc. – o que configura a profunda sacralidade
dos africanos. Entretanto, essa sacralidade vivida em sua radicalidade não
impede, e mesmo favorece, uma habilidade secular impressionante. A
manutenção da tradição, por exemplo, é uma maneira de preservar a
identidade do grupo – única maneira de preservar o grupo -, porém, quando é
necessário transformações e modificações no seio desta tradição, elas ocorrem
pois o objetivo é manter o bem-estar da comunidade. É a vida para a religião e
a religião para a continuação da vida. Eis a fórmula da dinâmica cultural
africana!

Outra característica dos adeptos das religiões tradicionais da África é o


conhecimento profundo que detêm da realidade social e da natureza. Como
vimos insistindo, não há uma separação dos níveis religiosos e seculares.
Cada qual está impregnado um do outro. Assim, para que a religião seja
eficiente – como exige a comunidade religiosa africana -, é necessário que os
sacerdotes e os demais iniciados tenham um profundo conhecimento da
realidade social em que vivem, pois senão como fazer para manter o bem-estar
da comunidade? Na maioria dos casos, conhecimento social implica também
em profundo conhecimento da natureza, posto que estas sociedades são
dependentes dos elementos naturais. A natureza se constitui  como fonte da
vida. A relação entre o sagrado e a natureza é simbiótica. Como diz um velho
provérbio africano: “Kosi ewé, kosi orisá”, isto é, “Sem ervas (lê-se natureza)
não há orixás (lê-se divindades).” Natureza e divindade, aliás, muitas vezes, é
o signo de uma e mesma coisa.

Em praticamente todas essas religiões existem divindades criadoras e


entidades organizadoras. Respeitando a diversidade cosmogônica de cada
uma delas, pode-se dizer, entretanto, que há uma estrutura comum que as
unifica, ou seja, há sempre uma divindade criadora do universo, dos Homens, e
criadora de divindades auxiliadoras, sendo que estas é que gerenciam o
mundo para o Criador.

Se no plano cosmogônico há uma  comunidade hierarquizada, na esfera


secular há o controle social da religião em relação aos antepassados. Ou seja,
as linhagens controlam o poder da hierarquia formada no seio das sociedades.
As linhagens tem um critéiro muito bem definido para estabelecer as relações
de poder, a saber: são os antepassados que legitimam a moral e os costumes
que esta ou aquela sociedade assumem. Logo, as regras morais e os
princípios éticos que norteiam as sociedades negro-africanas são artefatos dos
antepassados.

Em todas as religiões africanas acima citadas há sempre um mito de


origem (cosmogonia), rituais (sacrifícios, relações com a natureza) e
sacerdócio (reis ou cidadãos consagrados). Esses elementos são constitutivos
do que chamamos religião. Por isso rejeitamos as denominações de seita,
animismo, primitivismo, etc., por serem tributárias de uma ideologia
preconceituosa que, aliás, transformaram-se em barreiras epistemológicas à
compreensão das religiões africanas e suas correlatas no Brasil.

É constante, nestas religiões, a interpenetração de culturas e a preocupação


com a legitimidade. Não existe nenhuma religião pura em África ou em
qualquer outro lugar do planeta. Os vários movimentos migratórios no território
africano forjaram a fusão de muitos povos e muitas culturas. Porém, caso
peculiar da África, as religiões africanas, mesmo sofrendo alterações,
conservaram/atualizaram sua cosmovisão de mundo. Veja, por exemplo, o
caso já estudado dos três grandes Impérios Negros (Gana, Mali e Songai).
Apesar de ter havido uma forte influência islâmica naquela região, inclusive
com a utilização de força militar (os almorávidas) ,  as religiões africanas
permaneceram fiéis a seus mitos de origem e a suas divindades, preservando
sua cultura e identidade, através, é óbvio, de fusões culturais e releituras
simbólicas. Muito embora houvesse a força das armas, a dinâmica civilizatória
africana soube preservar sua forma cultural.

Outra característica destas religiões é que são marcadas pela concepção da


dualidade do mundo: Os poderes “bem”, “mal”, se equilibram. Na verdade a
noção de bem e de mal são categorias da cultura judaico-cristã. Em África, por
oposição, falamos em energia construtiva e energia destrutiva. Não existe o
essencialmente mal e o essencialmente bom. As energias estão espalhadas
pelo universo. Dependendo da maneira pela qual elas são manipuladas e para
que fins sirvam, elas podem ser tanto construtivas quanto destrutivas. Talvez,
um critério interessante para se saber se uma energia é ruim ou não, é saber
quando ela prejudica a comunidade; neste caso, tudo o que favorece o bem-
estar da comunidade é “bom”, enquanto que tudo aquilo que perturba a
harmonia social é “ruim”.

Além da complementaridade entre as divindades masculinas e femininas


na esfera sobrenatural, tal equilíbrio é refletido na estrutura religiosa secular.
No entanto, neste plano (secular) é possível destacar a importância que as
mulheres têm. Com efeito, as mulheres ocupam importantes papéis nas
religiões africanas. São sacerdotisas, ocupam postos de comando político e
interferem definitivamente na organização hierárquica de suas comunidades –
sobretudo quando são comunidades matrilineares. No culto aos ancestrais,
como já foi visto, há o culto às mães ancestres, cultuada na sociedade das
Geledes. A  organização por gênero é uma possibilidade muito antiga em solos
africanos. Ora, a mulher esta relacionada com os grandes mistérios da vida e
da morte; com a fertilidade, com a fecundidade, com as divindades. Com efeito
elas participam mais interinamente dos mistérios da criação, porque elas
mesmas são gestadoras. No continente africano, as mulheres mereceram o
devido reconhecimento social e cultural, o que se reflete na cosmovisão
africana.

O reconhecimento de personagens históricos importantes para seu povo


é outra característica das religiões africanas. Os antepassados que foram
significativos para sua gente são cultuados, tornando-se, inclusive, ancestrais –
merecedores de cultos e templos específicos. Esta dinâmica social demonstra
como os africanos valorizam àqueles que se dedicam à coletividade e, de outro
lado, reflete bem o respeito e a importância conferida aos seus mais valorosos
membros, que abrange reis, sacerdotes, guerreiros, agricultores, caçadores,
etc.

Da Ancestralidade nasce a moralidade nas religiões tradicionais


africanas. Como diz Basil DAVIDSON (1969, p. 74), em África o “bem-estar  do
indivíduo era função do bem-estar da comunidade, e não o contrário. A ordem
moral era fortemente coletiva”.  Conforme o autor, a moralidade em África é
pensada a partir da comunidade, pois se pautada no bem-estar do indivíduo o
que ocorreria – como ocorre nas sociedades ocidentais – é uma acumulação
para o indivíduo em detrimento do bem-estar da comunidade. De acordo com
ele: “Num mundo onde existe um ideal de acumulação pessoal, o bem do
indivíduo opõe-se ao bem da comunidade” (DAVIDSON, 1969, p. 71).

Em sua maioria as religiões africanas são praticadas em comunidades


camponeses. Isto reforça o caráter comunitário e a vinculação atávica ao Meio
Ambiente.

A cosmogonia e cosmologia adaptam-se à região (cidade-estado ou


território das famílias extensas) dos fiéis. Não são, portanto, religiões
universais, mas religiões territorializadas, nascidas e forjadas pelos membros
dos grupos de origem e seus descendentes.

São religiões imanentes e não transcendentes as religiões africanas. Elas não


estão preocupadas com a metafísica - ao menos não na acepção ocidental do
termo. Elas se relacionam com os problemas concretos de sua comunidade.
Os seres sobrenaturais, sem exceção, tem relação visceral com a natureza. A
natureza é imanente. O transcendental – concepção ocidentalizada - configura-
se no tempo futuro. O futuro, para os africanos, é menos importante que o
passado. O futuro, na África,  quase sempre refere-se a cerca de dois meses
depois do tempo do agora. O transcendental, algumas vezes, tem uma
dimensão a-temporal, a-histórico, o que é impensável dentro da cosmovisão
africana. O imanente é o que é vivido. Mesmo que este imanente seja
sobrenatural, divinizado, ele está relacionado com a comunidade, com a
coletividade, com o social vivenciado, visto como experimento concreto do real.

A diversidade é um dos principais aspectos das religiões africanas. Como


vimos afirmando, não existe a exclusão do diferente na cosmovisão africana.
Homem, mulher, homossexual (ou andrógeno) são acolhidos. A diversidade é a
dinâmica própria dessas religiões. Diversidade com autenticidade. Diversidade
com legitimidade. A diversidade é um princípio sem o qual não haveria religião
tradicional na África, posto que sendo a África o continente do “Arco Íris”, isto é,
o continente das diferenças culturais, somente o princípio da diversidade
poderia congregar tantas culturas e preservar, de maneira estrutural, a
identidade de um continente.

A integração é o princípio complementar da diversidade. A exclusão gera a


dominação. A diversidade a integração. Sem a integração, não poderia haver
harmonia social. O bem-estar social coletivo só é alcançado quando dentro
desta dinâmica os possíveis excluídos são integrados, deixando de ser
excluídos para serem partícipes da coletividade. A integração, também, é um
componente essencial da cosmovisão africana posto que evidencia que todos
os elementos do universo estão conectados, interligados, em processo
dinâmico de interação. A integração desses elementos demonstra como o
universo funciona tal qual uma teia de aranha, onde tudo se relaciona com
tudo, e a harmonia das partes depende da harmonia do todo.

            Em suma, percebemos como na África tradicional existe uma estrutura


comum entre as sociedades, sobretudo dos três Impérios Negros
considerados: Gana, Mali e Songai.  Mas tal estrutura se verifica também em
outras regiões tanto ao sul do Sahel quanto a ocidente na África Negra, seja
nas regiões das savanas ou das florestas. Estas estruturas comuns das
sociedades africanas, foram aqui consideradas sob o prisma religioso, que
podemos dizer, hegemoniza as práticas culturais dessas populações.
Considerando também aspectos econômicos e políticos, bem como aspectos
da estrutura social, como a organização das famílias e o tipo de sociedade em
que vivem, sejam elas famílias extensas ou cidades-estado, podemos
evidenciar, apesar das flagrantes diferenças e da enorme diversidade, que
existe uma estrutura (forma cultural; dinâmicas civilizatórias) baseada em
princípios que sustentam a vida desse contingente negro-africano.
            Tais princípios regem os vários elementos dessa estrutura, que, por sua
vez, dão fundamento à afirmação de que na África antes da invasão européia
existe uma cosmovisão africana. Essa cosmovisão de mundo se reflete na
concepção de universo, de tempo, na noção africana de pessoa, na
fundamental importância da palavra e na oralidade como modo de transmissão
de conhecimento, na categoria primordial da Força Vital, na concepção de
poder e de produção, na estruturação da família, nos ritos de iniciação e
socialização dos africanos e, é claro, tudo isso assentado na principal categoria
da cosmovisão africana que é a ancestralidade.

            Todos esses elementos, singularizados pela estrutura cognitiva do


africano de organizar a vida e a produção revelam princípios organizadores de
suas sociedades. São eles: princípio da diversidade, da integração, da
harmonia com a natureza, princípio da senioridade – ligado à ancestralidade -,
o princípio da complementaridade, da polaridade do mundo em energias
destrutivas e construtivas, e o princípio comunitário, tendo o comunitário como
estância maior do bem-estar social.

            Como veremos, a identidade da população negro-africana é tributária


da manutenção de sua tradição e forma cultural, posto que todos os elementos
e princípios da cosmovisão africana são tributários da tradição destes povos.
Como foi analisado anteriormente, o passado é o ponto de referência na
organização da vida e da produção dessas sociedades. E, no passado, a
grande referência são os antepassados, os ancestrais – patronos e fundadores
da tradição africana.

            Com o processo de escravização promovido pela Europa os filhos da


África viram-se obrigados a reestruturarem sua cultura e tradição em várias
partes do mundo. No Brasil, a partir - e sobretudo -,  das organizações
religiosas, os negros africanos e seus descendentes recomporam as estruturas
e princípios tributários de uma cosmovisão de matriz africana e, em solo
brasileiro, reconstituiram seu universo cultural-religioso preservando, não sem
rupturas e alterações, os princípios fundamentais de sua tradição, fonte
suprema de sua identidade cultural.
           
 
 
 
 
 
 
 
II.                  COSMOVISÃO AFRICANA:  A Forma Cultural Africana no Brasil
 
 
Uma vez identificados os elementos e princípios da cosmovisão africana,
primaremos, neste capítulo, pela reflexão acerca da forma cultural afro-
brasileira nos dias atuais. É sempre bom lembrar, no entanto, que não estamos
querendo retornar a uma África idílica, que jamais existiu ou, se existiu, que
não existe mais. Não é nosso intento criar uma África mítica ou romantizar a
África real. No jogo de identidades, entretanto, está embutido um jogo político
e, na disputa pelo poder, está contida a disputa pela representação de si. No
jogo das representações identitárias no Brasil os afrodescendentes foram
ideologicamente representados como inferiores. Negativizados desde a sua cor
até sua condição social, os afrodescendentes viram-se sempre alijados das
vantagens sociais por consequência da negação de sua cultura e história. Falar
em cosmovisão africana, portanto, certamente tem uma dimensão política, bem
como uma dimensão social e econômica. Não estamos apenas recuperando
elementos culturais que ficaram sepultados no passado. Todo resgate histórico
é uma recriação. Toda recriação é política. O fazemos conscientemente, visto
que se a história oficial negou o SER negro, nós, por nosso lado, fazemos ver
não apenas suas edificações no pretérito, mas os possíveis modelos
econômico, político e culturais derivados da cosmovisão africana, fruto da
resistência dos negro-africanos, da atualização de sua forma cultural e da
recriação de sua cosmovisão.
 Como vimos, no mundo africano há concepções singulares do universo,
de tempo, força vital, socialização, poder, pessoa, morte, oralidade/palavra,
produção, família e ancestralidade,  bem como princípios que regem a vida
destas sociedades como o da integração com a natureza, a dimensão
comunitária da vida, estrutura cognitiva, o respeito e  a relação estreita com a
tradição, o princípio de inclusão e o princípio da diversidade.
Esses elementos indicam caminhos estruturalmente diferentes dos vivenciados
na cultura ocidental. A África, durante muitos séculos tem sido negligenciada
em sua cultura, em suas contribuições para o planeta, tanto na esfera
econômica como na esfera cultural.  Exatamente hoje quando atravessamos
uma crise planetária, que abrange não apenas o sistema da produção
econômica, mas também o sistema de produção de subjetividades, bem como
a crise do meio ambiente – que ameaça seriamente o ecossistema planetário,
urge criar alternativas ao modelo excludente e depredador do Capitalismo
Mundial Integrado.
Os elementos que elencamos na África antes da invasão européia,
principalmente aqueles destacados da esfera cultural-religiosa, mas
abrangendo também as esferas de produção material e da organização política
daquelas sociedades, são elementos que por si só sinalizam alternativas ao
modelo capitalista de organização da produção e da vida. Porém, como não
queremos cair num romantismo arcaico, a uma volta à natureza idealizada, ou
a uma ingenuidade política que em nada resolveria nossos problemas atuais,
uma vez que já se passou pelo menos meio milênio desde que esses povos
existiram em África. Assim, é que procuraremos neste capítulo identificar as
permanências – e rupturas – da cosmovisão africana no Brasil, principalmente
no complexo cultural-religioso.
Para tal analisaremos em rápidas linhas a escravidão e a cultura negra.
Em seguida refletirem sobre a questão de gênero e do Meio Ambiente no
candomblé. É assim que primamos por entender o papel de mulheres e
homens no interior do culto aos orixás e a relação dessa religião com a
ecologia. Tudo isso dá-se de maneira tal que estão incluídas no que
chamaremos de forma cultural de matiz africana, que recoloca a questão da
identidade nacional e o papel fundamental que exerceu e exerce o contingente
de afrodescendentes no Brasil.
Vale dizer que as práticas religiosas-culturais dos afrodescendentes têm
uma dimensão claramente política, e é esse alcance que pretendemos
destacar quando apresentarmos seus princípios como alternativa para se
construir maneiras diferentes e mais inclusivas de um sistema que critica e
combata o atual modelo capitalista.
 
Escravidão no Brasil
 
            A primeira experiência que povoa o imaginário social ao se pensar o
negro é a escravidão. A escravidão é um fator histórico básico para
compreender as várias facetas da vivência dos africanos e seus descendentes
no Brasil. A segunda grande experiência é a discriminação racial que essas
populações sofreram  no transcorrer dos séculos. Estes dois pontos permeiam
nossa reflexão acerca da Cosmovisão Africana nos dias atuais.
            Há aspectos da história da África que devem ser levados em conta.
Primeiro: há o engano de que os negros africanos trazidos para o Brasil eram
todos iguais; ou, segundo: que os negros africanos, de diferentes etnias,  não
tinham nada em comum. É preciso manter uma posição equilibrada que
conjuga estas duas posições.
Do ponto de vista da Antropologia Cultural é evidente que as etnias são
distintas entre si. Ressalta-se, aqui, a diversidade cultural africana. Já do ponto
de vista dos Valores Civilizatórios, pensando em termos da forma cultural, há
uma unidade entre elas.
            A escravidão sempre foi definida como uma dominação econômica:
escravos dominados pelos senhores. Ela sempre foi pensada do ponto de vista
funcional-econômico. O escravo foi visto como um ser desprovido de
propriedade, vontade e inteligência, tanto que era denominado como “coisa que
fala” (res vocabulun) ou como “instrumento de trabalho” (res instrumentalliun).
            Já os estudos históricos contemporâneos (dec. de 70 a 80) dizem que
as relações no escravagismo não eram monodirecionais. Esses historiadores
uilizavam-se do conceito de hegemonia, recuperado do pensamento de
Antonio Gramsci. Se a dominação não é monodirecional, ela é de mão dupla.
Como defendeu REIS (1988), há momentos de negociação entre escravos e
senhores, o que relativiza o poder dos senhores e deixa entrever a liberdade
restrita dos escravos. Não se pode esquecer, no entanto, que essa negociação
foi limitada por se dar no interior de um regime ostensivo de opressão.
            O que é visto como concessão, do ponto de vista da hegemonia, - dos
senhores - pode ser também visto como estratégia dos escravos para forjar seu
próprio jeito de vida.
            A hegemonia permite pensar o escravo não mais como instrumento ou
coisa,  mas humaniza o cativo negro.  Aqui existe espaço para a liberdade de
pensamento e de expressão. Apenas, é bom lembrar, a liberdade ainda não é
material.
Foram as religiões negras que construíram o espaço da liberdade negro-
escrava no Brasil . A hegemonia está em ver este aumento da liberdade dos
negros no espaço de dominação. Mesmo sob o ponto de vista econômico,
temos nas Irmandades um exemplo de conquista material, uma vez que os
negros escravizados organizavam-se em torno das Irmandades, mantendo
uma caixa de pecúlio onde depositavam suas economias e, muitas vezes,
conseguiam comprar a carta de alforria para  parcelas consideráveis de seus
membros.
Pode-se dizer, portanto, que a escravidão é uma dominação
hegemônica e não monodirecional. Ou seja, houveram espaços de negociação
entre escravos e senhores, e, nestes espaços de negociação[36], a hegemonia
do senhor não eliminava as práticas negro-africanas  que restituíam uma
cosmovisão de mundo de matriz africana  e preservavam sua tradição,
adaptando-a às novas exigências que a vida no cativeiro brasileiro
impunha.               
 
Cultura Negra
 
            Cultura é um conceito extremamente utilizado para compreender os
fenômenos sociais, sobretudo aqueles que dizem respeito às singularidades
dos povos e às relações entre eles. É utilizado, ainda, para compreender tanto
as mudanças conjunturais no seio desses povos quanto para entender as
transformações estruturais no interior do qual estão alocados. Mas, como disse
GEERTZ (1989), o conceito de cultura tornou-se tão utilizado que perdeu sua
instrumentalidade como categoria explicativa do real. Utilizado para tudo,
acabou por se tornar uma generalização abstrata. Daí o antropólogo norte-
americano ter efetuado a redução do conceito de cultura a fim de resgatar-lhe
sua operacionalidade. Para ele a cultura é semiótica, publica e contextual. É
semiótica, porque é composta de signos. Pública porque os signos são sempre
produzidos coletivamente. Contextual porque os signos ganham significados
sempre territorialmente. Ao falarmos de cultura negra, então, não poderemos
nos furtar aos signos produzidos historicamente pelos afrodescendentes, muito
menos desconsiderar o contexto em que surgiram seus múltiplos significados.
O conceito de cultura está intimamente ligado com o de história. Um não
se reduz ao outro, mas ambos se relacionam intrinsecamente. Não querendo
reificar o culturalismo que abstraiu da história para explicar como vivem e se
relacionam os povos, resgatamos a relação cultura-história para pensar as
formas pelas quais  produzem seus significados e se relacionam com o real. A
produção de signos e significados, no entanto, não são produtos abstratos.
Eles advém da ação dos agentes sociais e dão-se no interior de estruturas
produzidas na história desses povos. Para não reificar, também, o historicismo
– que abstraiu do indivíduo para explicar estruturas sociais, trabalhamos com o
duplo vetor entre história e cultura, pois consideramos, juntamente com
SAHLINS (1990, P. 7)), que  1) a história é ordenada culturalmente e, 2)
esquemas culturais são ordenados historicamente.
            Ao considerarmos o duplo vetor entre cultura e história, estamos
afirmando que as ações criativas é o ponto de partida para se entender 1)
como a cultura é historicamente reproduzida na ação e, 2) como a cultura é
alterada historicamente na ação. Isto nos permitiria entender tanto as
transformações históricas quanto as mudanças sistêmicas.
            Durante todo este livro estamos nos referindo às estruturas do
pensamento negro-africano, às estruturas da dinâmica civilizatória africana, à
cosmovisão de mundo produzida naquele continente e ressignificada no Brasil.
Com efeito, essa abordagem é estrutural. Mas é estrutural não no sentido de
negar a história ou de apagar o indivíduo. Pelo contrário, o que estamos
fazendo é reconhecer o papel ativo e criativo dos sujeitos e impedir o erro
conceitual de opor estrutura e história; cultura e indivíduo. Sem embargo, não
há oposição entre história e estrutura já que as últimas são produtos da
primeira. A história, por sua vez, é construída tanto no interior de uma
sociedade (perspectiva cultural), quanto entre sociedades (perspectiva
estrutural). Ora, existe a interação dual entre a ordem cultural enquanto
constituída na sociedade e a ordem cultural enquanto vivenciada pelas
pessoas. Por isso também não existe a dualidade entre indivíduo e cultura já
que esta é fruto das ações dos sujeitos. Estas, por sua vez, ganham sentido no
jogo de significados produzidos pela cultura, fazendo com que consideremos a
relação interativa entre sujeito e indivíduo, entre história e estrutura. Opor Ser
(estrutura) e Ação (eventos) seria um engano, pois eles são intercambiáveis.
Os indivíduos criam suas regras em movimento e fazem do fato social uma
ficção frente a seus interesses. A relação de mútua influência entre ser e ação
e estrutura e evento ganha luz se considerarmos que “ao nível do significado,
que é o nível da cultura, ser e ação são intercambiáveis” (SAHLINS,1990, p.
46), logo, a ação dos indivíduos não pode ser segregada das estruturas que ela
produz e que por ela é produzida.
            Ao tematizarmos o sistema de pensamento, as categorias filosóficas, a
cosmovisão de mundo concomitantemente com as estruturas políticas, as
organizações sociais, o sistema de produção, estamos justamente defendendo
esta inter-relação entre cultura e história, entre indivíduo e estruturas. Pois se
não há oposição entre história e estrutura, também no-la-a entre cultura e
história ou entre indivíduo e estruturas. Pelo contrário, é sempre uma relação
de duplo vetor e complementação que se dá entre essas categorias conceituais
do pensamento sócio-antropológico.
            A cultura é, com efeito, o manto que cobre as ações humanas. Nesse
sentido, o real é o conjunto de signos significados e ressignificados pela
sociedade que o produz. Sendo semiótica a cultura não é essencial. Ou seja,
ela é contingencial e dinâmica e não estática e formal. Acontece que as ações
imanentes dos agentes sociais estão intimamente relacionados a estruturas.
Essas estruturas, criadas historicamente, são semioticamente compreendidas
pelos agentes sociais. Ora, o que está em jogo, em última análise, é a
compreensão do real. O real, por sua vez, é constituído por signos e coisas.
            De acordo com SAHLINS (1990, p. 9), as coisas são, independentes do
que as pessoas fazem com elas. Elas são inevitavelmente desproporcionais
aos sentidos dos signos pelos quais são apreendidas, pois elas são
contextualmente mais particulares e potencialmente mais gerais que os signos,
uma vez que os signos são classes de significados e não estão restritos como
conceitos a um referente particular. Logo, as coisas são relacionadas a seus
signos enquanto emblemas empíricos para os tipos culturais, porém são mais
gerais que os signos por serem mais “reais” que eles. Por isso Sahlins afirmará
que a cultura é uma aposta com a natureza, no sentido de que as
denominações antigas recebem continuamente novas significações, quedando-
se distantes de seus sentidos originais. De outra feita, os sentidos de novos
signos são definidos por suas relações de contraste com outros signos do
sistema. Daí que o sentido do signo só é completo e sistemático na sociedade
como um todo (análise estrutural). No entanto, qualquer uso real de um signo
emprega apenas uma fracção do sentido coletivo (análise subjetiva). Ou seja, o
signo tem sentido se confrontado com a estrutura social na qual ele é
produzido, mas seu significado será sempre parcial visto que ele é um signo e
não uma coisa. A coisa, por seu turno, só é passível de entendimento se
mediada semioticamente num discurso (representação). Logo, ela não pode
ser tomada como uma essência imutável, mas como uma existência dinâmica
que produz e acaba sendo produzida pela relação entre os signos. Nessa
trama dá-se o que chamamos de real, e o real, com certeza, é modelizado pelo
jogo da cultura.
            As consequências da teoria de Sahlins para a análise antropológica são
muitas e fundamentais. Nosso interesse, no entanto, não é discutir em
profundidade a teoria antropológica, mas munirmo-nos de instrumentos
conceituais coerentes para entender os aspetos civilizatórios africanos.
Dissemos que na relação complexa entre coisas e signos encontramos o real.
Mas, o que é o real?
            De acordo com Muniz SODRÉ (1988, p. 49): “O real é (...) aquilo que,
resistindo a toda caracterização absoluta, se apresenta como estritamente
singular, como único”.  Definindo assim o real, Muniz Sodré nos ajuda a
entender melhor a relação entre as coisas e o signo e, de resto, poderá
avançar um pouco mais na conceituação de cultura. O real não é nem uma
mônada existencial, imutável e estática, nem uma relatividade signica absoluta.
Ele é uma singularidade. Como tal não repete-se a si mesmo, não se torna
refém dos significados atribuídos por um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas
também não se furta da relação concreta do grupo ou indivíduo que o
experimenta. Evita, dessa maneira, tanto o absolutismo dogmático das análises
estruturais quanto o relativismo alienante das análises culturalistas.
            A cultura, neste ínterim, passa a ser pensada como jogo da sedução do
real. Entrar em seu segredo é o objetivo. A isso Sodré chamará cultura, isto é,
adentrar no segredo da singularidade passa a ser a finalidade da análise
cultural. O conceito de cultura, para ele, valerá “como a metáfora de jogos ou
de dispositivos de relacionamento com o sentido e o real” (SODRÉ, 1988, p.
51). Contrapondo-se à psicanálise lacaniana, ele definirá, finalmente, cultura, 
como “a metáfora do movimento do sentido, não entendido como uma verdade
mística do além ou oculta em profundidades a serem sondadas, mas como
busca de relacionamento com o real, lugar de extermínio do princípio de
identidade” (SODRÉ, 1988, p. 53). 
            Exterminar o “princípio da identidade” é, com efeito, eliminar a
justificação filosófica do Mesmo e a política racista nela ancorada, para
defender a alteridade como critério ético da sociedade[37]. Muniz Sodré está
atento para a “singularidade misteriosa do real”[38]. Nesta feliz expressão
assenta-se toda uma filosofia africana e afro-brasileira caucada não na ordem
moderna – obcecada pela busca da Verdade e do Real, mas na ordem
tradicional – intrinsecamente ligada ao sentido e à troca ritualística[39];
comprometida não com a “verdade universal” e “profunda”, próprias da cultura
ocidental, mas com a cultura das aparências, característica da cultura negra.
            Uma cultura das aparências não pode ser pensada pejorativamente,
como o foi na cultura ocidental[40],  pois “as aparências não se definem por
nenhuma linearidade acumulativa, característica do movimento histórico. Elas
se definiriam, antes,  pela curva, uma espécie de realização cíclica que não se
pode memorizar segundo os princípios de irreversibilidade histórica” (SODRÉ,
1988, p. 137). Não é que a cultura negra não seja histórica. Isto nem se cogita.
É que, na cultura negra, “a troca não é dominada pela acumulação linear de um
resto (o resto de uma diferença), porque é sempre  simbólica e, portanto,
reversível: a obrigação (de dar) e a reciprocidade (receber e restituir) são as
regras básicas. É o grupo (concreto) e não o valor (abstrato) que detém as
regras das trocas” (SODRÉ, 1988, p. 127).  As trocas simbólicas no seio do
grupo concreto dá-se sob a lógica da ancestralidade, respeitando o segredo, a
luta e a regra[41] – elementos constituintes da dinâmica civilizatória dos
afrodescendentes.
            A filosofia subjacente à cultura negra afasta-se da concepção de uma
verdade metafísica, de uma lógica abstrata ou de um cientificismo
transcendental. Concebendo a cultura como um jogo de sedução do real, como
uma metáfora do sentido, a cultura negra não adotará o sistema linear do
historicismo ocidental posto que ele nega a reversibilidade. A cultura dos
africanos e seus descendentes no Brasil nega as relações baseadas no
princípio de causalidade, a concepção evolucionista de progresso contínuo, o
absolutismo formal e arbitrário das leis normativas, uma vez que são processos
abstratos e não-reversíveis. Tal cultura, pelo contrário, funciona como um jogo
que oporá “encadeamentos não causais, aleatórios, baseados em relações de
contiguidade (como na música ou na magia), arbitrados por uma  regra”
(SODRÉ, 1988, p. 145). Essa regra se dará não como ordenadora
extemporânea da cultura, mas como parceira de uma dinâmica civilizatória
baseada no segredo e na luta, ou seja, baseado no mistério e na resistência
política, que garantem a reprodução do grupo e a transmissão de seus
conhecimentos, bem como a preservação e multiplicação de seu encanto.
            A cultura pensada como jogo de sedução, reafirma a heterogeneidade e
vai além do direito às diferenças; ela desafia ao contato, ao encontro – e nisso
está sua força de sedução.  Como diz SODRÉ (1988, p. 180):
Cultura implica, portanto, num esvaziamento da unidade individual,
no que faz circular os termos polares da troca, no que reintroduz o
acaso e o Destino, no ato simbólico que extermina as grandes
categorias da coerência ideológica, no que se constitui em morte do
sentido e da verdade universais, no que faz aparecerem as
singularidades, num ato de delimitação e de atração – em resumo,
no movimento do jogo.
 
            A cultura negra é, portanto, um “lugar forte de diferença e de sedução
na formação social brasileira” (SODRÉ, 1988, p. 180). Talvez por isso mesmo a
elite brasileira, branca, católica e patriarcal, tenha engendrado mecanismos de
desqualificação e inferiorização do ser negro, produzindo a ideologia do
branqueamento num dado momento e, posteriormente, fazendo a defesa da
mestiçagem como engodo pra disfarçar a indisfarçável sedução que a cultura
negra exerce sobre o contingente social brasileiro[42]. O candomblé,
protagonizado por mulheres – contra a ordem patriarcal – , por negros – contra
a hegemonia branca –, e por pobres (já que a maioria dos afrodescendentes
pertencem ao substrato social menos favorecido da sociedade) – contrariando
a elite nacional – pode ser tomado como um modelo onde os aspectos
civilizatórios africanos foram reinterpretados na lógica da cultura negra,
apresentando-se muito além de um mero exemplo cultural para se tornar um
modelo ético-político.

            Aspectos Civilizatórios


 
            Na Diáspora africana o que vem para o Brasil não é a estrutura físico-
espacial das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-
africanos.  É a isto que doravante chamaremos de aspectos civilizatórios.
            São aspectos civilizatórios característicos da cultura negra, re-
construída no contexto brasileiro, preservando, entretanto, sua matriz africana.
Pensamos aqui na perspectiva da herança, considerando a produção dessa
cultura na história do povo negro, pois não existe identidade inata. A identidade
de um povo também é uma indústria da história. Como a cultura negra é
marcada pela reversibilidade, afugentamos de nós o conceito linear de história.
É exatamente por operar restituições simbólicas tradicionais em contextos
históricos contemporâneos que a cultura negra exerce seu poder de sedução
sobre a sociedade brasileira, re-introduzindo elementos culturais africanos no
intricado cadinho da identidade brasileira.
Essas restituições simbólicas, essa re-definição identitária não se faz a
partir do princípio da identidade, da afirmação do Mesmo. É a partir da
diferença que se constrói os referenciais identitários. A identidade se constrói
com relação à alteridade. Com aquilo que não sou eu. É diante da diferença do
outro que a minha diferença aparece. No Brasil, entretanto, a diferença do
afrodescendente foi negada, porque ele foi negado em sua integridade. Afirmar
a diferença cultural do negro é, ao mesmo tempo, um projeto político e social
de restituição da dignidade negra negada pela sociedade  que, no entanto, foi
preservada pela comunidade religiosa na sua tríplice relação com a luta, o
segredo e a regra.
            Quando falamos em luta anti-racista no Brasil nosso horizonte histórico
é  a construção da liberdade. Não fomos nós, os afrodescendentes, que
inventamos o ódio racial e a segregação social por causa da cor da pele ou da
origem étnica. Nosso horizonte é a liberdade porque nosso projeto político é
ético.
            Pensar a cultura negra é pensar a reterritorialização dos negros no
Brasil. O território afro-brasileiro não é o espaço físico africano, mas a forma
como os negros brasileiros singularizam o território nacional. O espaço físico
reterritorializado é um espaço simbólico-cultural. Este território, singularizado
pela cultura negra, por seu real vivido, por sua filosofia imanente, por sua
dinâmica civilizatória, marcou definitivamente a formação social brasileira.
Foram os aspectos civilizatórios africanos que, reinterpretados no Brasil,
desenharam o projeto ético-político dos afro-brasileiros.
             É no candomblé que tais aspectos civilizatórios podem ser melhor
percebidos. Sendo assim, neste sub-item, intentaremos mostrar a atualização
da cosmovisão africana no candomblé e sua influência na sociedade brasileira.

Nosso objetivo é deslocar o eixo de compreensão das religiões de matriz


africanas, de uma perspectiva exótica-folclorizadora para uma perspectiva
histórico-compreensiva. Não se limitar apenas a saber como são e como se
estruturam, mas interpretar os seus significados mais profundos. Para tal,
buscamos abordar alguns aspectos estruturais no sentido de compreender a
inserção dessas práticas religiosas no âmbito da sociedade brasileira, dando
ênfase, sobretudo, aos seus significados e sentidos. Assim, averiguaremos
duas questões fundamentais para se entender os aspectos civilizatórios
africanos.

1.      A questão do conhecimento, da memória e sua transmissão:

Não se pode falar  de uma identidade africana única, onipresente em toda


parte do planeta. Contudo, há uma experiência histórica que irmana todos os
negros do mundo: a diáspora. O sequestro dos africanos de seu continente, o
tráfico escravocrata – crime contra a humanidade, a exploração da mão de
obra negra, o ataque etnocentrista à cultura e tradição africanas, resultou numa
experiência dramática que interliga, política e socialmente, todos os africanos e
seus descendentes espalhados pelo globo. 

Acontece que a diáspora não irmana apenas pela desgraça comum


vivenciada pelas populações afrodescendentes. Ela irmana porque, através da
diáspora, símbolos outrora restritos às suas comunidades de origem,
desterritorializaram-se por causa do fenômeno histórico da diáspora,
transpondo fronteiras culturais e universalizando seus significados.  A
universalização de seus significados não se deu por motivos de proselitismo,
como o cristianismo e o islamismo. Deu-se como consequencia da imposição
de um regime de dominação que atacou violentamente a base social da
sociedade africana: a família.

Ao universalizar seus signos culturais, os africanos e descendentes deu


uma resposta criativa ao regime de dominação, pois não reproduziram em suas
organizações sociais as estruturas de dominação européia. Ao invés de
introjetar o ódio do dominador, recriaram instituições baseadas em sua
cosmovisão, muito embora não pudessem levar consigo, cruzando os oceanos,
a base material de sua cultura política. A resposta criativa dos africanos
traduziu-se numa multiplicidade de invenções sociais que permitiram manter
algum nível de coesão entre os negro-africanos e seus descendentes e,
também, uma fidelidade possível às tradições.

A diáspora ao mesmo tempo que significou uma ruptura violenta com os


valores civilizatórios afrianos, serviu para que esses valores espalhassem-se
mundo afora, não por proselitismo dos negros, mas pela imposição artificial de
viverem em terras estrangeiras. De qualquer maneira, seja alimentando dores
historicamente contraídas, seja constatando a multiplicidade de respostas
criativas que deram, a diáspora negra segue sendo um ponto comum no
entrecruzamento complexo dos caminhos trilhados pelos africanos nos
recantos do planeta.

Como não puderam transladar suas instituições sociais, os


afrodescendentes preservaram em sua memória os mitos e os ritos de suas
tradições. Marcada pela cultura oral, a sociedade africana criou centenas de
milhares de mitos para preservar e transmitir seu conhecimento ancestral. A
riqueza mitológica e ritualística africana, sem dúvida, é um dos principais
elementos para se entender o sucesso da recriação da vida nas várias partes
do planeta. A cosmovisão africana, temos dito, é fortemente marcada pela
religiosidade. A religiosidade é plenamente dependente dos ritos e mitos
criados pela tradição africana. A religiosidade escapa da dimensão restrita do
religioso e invade todas as esferas do cotidiano. Numa palavra: a vida é
sacralizada na cosmovisão africana. Se ela é sacralizada, e se a religião não
se separa dos ritos e mitos da tradição, pode-se afirmar que a vida é ritualizada
continuamente no cotidiano das sociedades negro-africanas.

Essa riqueza de mitos e ritos é que permitiu uma atualização criativa das
instituições negro-africanas em terras alheias. Exemplo disso é o candomblé.
Todo terreiro de candomblé é um micro-cosmo, uma síntese de várias
instituições sociais africanas. Ressemantização criativa dos símbolos da
tradição africana, foi também uma ressemiotização das organizações políticas
estatais e familiares. Se cada cidade-estado africana cultuava apenas uma
divindade, por exemplo, Oxum, no Brasil o panteão africano da tradição dos
orixás cultua pelo menos 16 orixás que, em África, encontravam-se espalhados
pelos territórios políticos, sendo, muitas vezes, inimigos de vizinhança. No
Brasil  não foi possível manter a mesma estrutura organizacional, uma vez que
a situação era de escravidão e não de liberdade. Juntando, inclusive, várias
etnias que outrora viviam em conflito e agora, diante de um mesmo mal (a
escravidão) recriam laços sociais e forjam uma solidariedade diante da
situação opressiva das senzalas brasileiras. Porém, não foi apenas a opressão
que pairou sob os africanos em solo brasileiro. Laços solidários, outrora
impossíveis, foram traçados sob o jugo da escravidão e recriaram as relações
entre nações e etnias adversárias ou desconhecidas. O candomblé, com efeito,
é uma constelação de etnias, nações, línguas, culturas, ideologias e
divindades. É um micro-cosmo brasileiro que reflete o macro-cosmo africano. É
uma síntese re-elaborada pelos afro-brasileiros das sociedades negro-
africanas. É uma instituição social que, em situações adversas, soube manter e
recriar os valores civilizatórios de seu lugar de origem, ao mesmo tempo que
incorporou os valores civilizatórios dos nativos do Brasil, bem como admitiu em
sua cosmogonia aspectos da cultura européia. A umbanda, as Irmandades
Negras, são exemplos dessas respostas criativas que as instituições calcadas
na cosmovisão africana deram à sociedade brasileira.

Dada a situação absolutamente nova em que se viram os africanos foi


preciso selecionar os ritos e determinados aspectos mitológicos, uma vez que a
fragmentação das famílias extensas fora uma estratégia utilizada pelos
senhores de engenho para evitar a organização e a resistência negra.
Portadores de religiões diferentes, línguas diferentes, costumes diferentes, os
negro-africanos selecionaram, ao longo da história, ritos e mitos que
respondiam melhor à situação de servidão e, é claro, inventaram outros tantos,
recriaram antigos ritos ancestrais e, numa síntese que ainda hoje está se
processando, criaram um corpo mitológico e ritualístico que estrutura o território
do sagrado das religiões de matriz africana no Brasil.

Dada a importância dos ritos e mitos na tradição negro africana, sua


recriação criativa em território brasileiro,  a atualização das instituições sócio-
culturais e a seletividade de aspectos mitológicos e ritualísticos, tudo isso em
situação de adversidade e opressão, os afrodescendentes souberam proteger
e preservar seu legado cultural-religioso através do uso controlado da palavra.
Como vimos, a palavra para os africanos é portadora da força vital. Portanto
seu uso é vital para a promoção de sua tradição. A palavra, sendo parte do pre-
existente, deve ser controlada ritualísticamente. Por isso existe o processo de
iniciação e os princípios que o regem, como o da ancestralidade, para garantir
acesso controlado aos segredos do culto. Com efeito, o segredo é utilizado
como arma na tradição dos orixás. Quem detém o conhecimento detém o
poder. A palavra é o principal meio para adquirir conhecimento, e, como para
se ter poder é preciso ter conhecimento, todo processo de iniciação e toda a
vida de santo será regida por rígidas normas religiosas que visam manter o
segredo e apenas revelá-lo aos poucos, para um grupo restrito de iniciados,
nos mistérios dos orixás.

2) Sincretismo religioso:

            Sob o manto do que se convencionou chamar de “sincretismo religioso”


ocultou-se, no Brasil, uma série de fenômenos sociais e religiosos tributários de
uma lógica religiosa ainda hoje pouco explorada pelos cientistas sociais. Ao se
falar em sincretismo tem-se a idéia de uma convivência harmoniosa entre
religiões diferentes. Passa-se, também, a idéia de uma fusão de culturas
diferentes resultando numa síntese que equilibra as influências de ambas
culturas envolvidas.

            No Brasil colonial a hegemonia, sem dúvida, era mantida pela religião
do senhor do engenho. O catolicismo, com efeito, foi declarado como religião
oficial do Estado. Qualquer religião que não fosse a católica era considerada
heresia. A religião dos negros escravizados, então, sequer era considerada
religião, mas práticas de feitiçaria, mandinga, culto ao demônio e tudo mais que
o preconceito racial e a ignorância da cultura negra levaram os senhores de
engenho a pensar. Como estratégia de sobrevivência e resistência cultural, os
negros escravizados tomaram os símbolos da religião do senhor para cultuar
seus próprios deuses. Assim que, prostrados frente a uma imagem de Santa
Bárbara estavam, na verdade, cultuando Yansã, divindade africana transladada
para o Brasil. Na verdade houve uma “malandragem” por parte dos
afrodescendentes: o “sincretismo” religioso foi uma estratégia de dissimulação
para manter os cultos às divindades africanas sob a máscara dos santos
católicos. Mais que uma fusão de culturas houve uma estratégia de
preservação de um código religioso que, por estar subordinado a uma estrutura
de dominação econômica e social, só poderia sobreviver fingindo assimilar a
cultura do senhor quando, na verdade, a partir da artimanha da dissimulação,
preservava os aspectos civilizatórios e a cosmovisão de seu grupo de origem.

            O sincretismo religioso não foi, com certeza, uma convivência


harmônica entre religiões diferentes. Foi uma relação conflituosa a que se
processou entre catolicismo e o nascente candomblé. Proibido de manifestar-
se livremente, de expressar suas facetas religiosas de maneira espontânea, o
candomblé foi perseguido e vetado pelo Estado. Mesmo assim, dissimulando
seu culto sob o verniz dos rituais católicos, o candomblé firmou-se em terras
brasileiras, redesenhando sua identidade e preservando a dinâmica civilizatória
africana.
            Esse processo de resistência pautado na dissimulação, sem embargo,
modificou as religiões africanas imigradas para o  Brasil. O candomblé, nesse
sentido, não é uma religião africana, mas uma religião brasileira pautada nas
matrizes culturais da África. É uma religião brasileira visto que foi forjada em
território brasileiro sob as agruras da escravidão. Esse contato com a religião
dos brancos veio modificar substancialmente a religião dos negros bem como a
própria religião católica. Houve o que Roger BASTIDE (1989) costumava
chamar de interpretação de culturas. Não uma terceira religião. Não o
predomínio de uma sobre a outra. Mas a convivência conflituosa de dois
códigos religiosos, havendo mútua influência entre ambos, coabitando rituais
religiosos diferentes, cosmovisão diferentes que, muito embora as diferenças,
modificaram a cultura do outro, levando a um processo dinâmico de novas
sínteses e recriações originais de suas culturas nativas.

As religiões são veículos privilegiados de manifestação da estrutura


mental de pensamento de um povo. Comparar, analiticamente, a estrutura
mental africana e ocidental é uma estratégia de compreender os aspectos
civilizatórios de diferentes povos e pode, ainda, elucidar as características
filosóficas da cosmovisão africana.

            Uma das categorias fundamentais da estrutura mental ocidental é


pensar por contradição. Ou seja, privilegia-se um ponto identitário. É-se puro
quando se é igual ao Mesmo. O princípio da identidade é aquele que elege
como equivalente geral não a diferença, mas a minha própria cultura. Ser igual
a si mesmo é o axioma valorizado. Encerrar-se na totalidade da minha
identidade, sem assimilar a novidade da cultura alheia é o mecanismo próprio
do etnocentrismo.

            A estrutura mental ocidental ao pensar a diferença - do ponto de vista


cultural – reproduz o sistema de pensamento do séc. XIX. Ou seja, a referência
é a idéia de originalidade e pureza, desvalorizando as misturas e os processos
híbridos. Por exemplo: você é negro se você é “apenas” negro; se você é igual
a você mesmo. Elevar a diferença a um grau absoluto é cair no discurso
naturalista que combatemos. Pensar assim é pensar por contradição. Pensar
assim é pensar excludentemente.

            As populações africanas não pensam por contradição: não faz parte da
estrutura cognitiva da população africana o princípio identitário. Ali se pensa
por analogia e participação, não por  pureza e contradição, diz BASTIDE
(1989).

Para explicar o que é analogia recorreremos a um exemplo retirado da


tradição dos orixás. Ogun, divindade do panteão afro-brasileiro, pode ser
considerado como um eixo de classificação: nele participa tanto o ferro quanto
a planta (makino), ou seja, Ogun é uma divindade que tem nos elementos
minerais e vegetais a sua essência. Ora, na cosmovisão africana não há
contradição entre mineral e vegetal. Tudo está interligado a tudo, mas cada
elemento simbólico tem sua função. A estrutura do simbolo é analógica. Quase
sempre a analogia é uma analogia por função: função Ogun, por exemplo.
Pode-se dizer, então, que para os afrodescendentes ligados à tradição dos
orixás as divindades funcionam como estruturas de classificação das coisas e
ordenação do mundo (cosmologia), baseadas numa rica cultura mitológica
(cosmogonia).

            A estrutura mental africana revela-se nas relações sociais


historicamente travadas na sociedade. Sendo resultado da dinâmica
civilizatória africana, a estrutura mental dos afrodescendentes reflete-se nas
relações de gênero no seio dos candomblés, bem como nas relações Homem-
Natureza que permeia toda prática religiosa afro-brasileira.  Apresentamos, a
seguir, não apenas uma reflexão pontual sobre as relações de gênero no
candomblé ou sobre as relações com o Meio-Ambiente, mas um modelo
alternativo ao sistema do Capitalismo Mundial Integrado, apresentando um
modelo econômico-político-social de inclusão e complementaridade,
promovendo a diferença do outro e o respeito à diversidade, operando num
universo interligado, compreendido por analogias e funcionando no plano das
funções simbólicas, com o objetivo de promover o bem-estar de todos e de
cada um.

Relações de Gênero e Candomblé


 
            Até o momento nos preocupamos em identificar elementos
estruturantes da África Pré-Colonial que tecem o emaranhado da Cosmovisão
Africana e de como ela chegou ao Brasil, sobretudo através das religiões de
matriz africana. Cumpre neste momento, atualizar a discussão a respeito de
duas questões: 1) Quais os principais conteúdos que diferenciam a visão de
mundo expressa pelo candomblé quando comparado com os da cultura
hegemônica e, 2) Como estes conteúdos se manifestam na concepção de
gênero presente no candomblé.
            A partir destas questões principais, trataremos de problematizar uma
gama de questões  pertinentes a este livro, tais como as dificuldades  de se
fazer uma crítica à cultura hegemônica; ou ao grande problema de, ao
intentarmos fazer uma crítica ao modelo ocidental, não recair nas mesmas
estruturas que esse modelo propaga. O objetivo é destacar os traços mais
importantes da visão de mundo africana, presentes no candomblé, e atentar
para as consequências que esta visão de mundo traz à discussão sobre a
questão de gênero, e, posteriormente, sobre o mundo  globalizado.
            Ao depararmo-nos com a questão de gênero no candomblé, optamos
por destacar como  a cosmovisão africana permeia o candomblé e favorece a
inclusão e não a exclusão; mostrar como as diferenças são aceitas e como o
princípio de complementaridade é essencial para a organização da vida e da
produção. Com referência à África tradicional temos, por exemplo, a
organização política a partir das linhagens matrilineares. Quem governa são os
homens, mas quem dá legitimidade são as mulheres. Ora, há uma
complementaridade entre o masculino e o feminino que garante a estabilidade
política da comunidade. Como vemos, o princípio de complementaridade
cunhado no candomblé é um princípio que administra o bem-estar social de
toda a comunidade.
            Por extensão, então, a partir da questão de gênero,  abordamos
também as diferenças dos aspectos civilizatórios presentes no candomblé com
os da cultura hegemônica.   
            Privilegiaremos a tensão que se torna explícita entre a visão de mundo
do candomblé e a visão de mundo ocidental. O candomblé, síntese de valores
civilizatórios africanos, ora está em conflito com o modo de vida ocidental, ora o
absorve. Este processo, mais concomitante que paralelo, permite-nos apontar
duas questões: 1) em que medida a visão de mundo inerente ao candomblé é
capaz de apontar alternativas para a crise do modelo ocidental, e 2) em que
medida o candomblé, ao absorver elementos da cultura ocidental, não perde
justamente os elementos estruturais de sua cosmovisão africana.
            Segundo Sueli CARNEIRO e Cristiane CURY (s/d a, p.176):
 
Quando a sociedade capitalista , através das relações sociais de
produção que estabelece, reifica o indivíduo, desumanizando suas
relações; quando propõe uma visão individualizante de mundo,
destituindo núcleos comunitários remanescentes de outros momentos
históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como função a
dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece
significativo o fato do candomblé se expandir vertiginosamente, levando-
nos a crer que este se coloca como uma forma de resistência à
fragmentação da existência do homem brasileiro, seja no plano concreto,
seja no plano ideal da explicação ontológica.
                       
            Podemos afirmar que o candomblé é uma religião de matriz africana
porque reúne diversas divindades de etnias diferentes africanas num só
panteão, preservando, entretanto, uma estrutura mítica semelhante  aos cultos
africanos. Na diáspora africana, etnias distintas, sob a hegemonia ora dos
yorubás, ora dos jêjes, ora dos bantos, criaram em solo brasileiro o que hoje
chamamos de candomblé. Esta religião possui um sistema mítico que contrasta
e conflitua com a ordem racionalista e excludente  do mundo ocidental.
            O sistema mítico do candomblé não é fragmentário nem excludente; é
sistêmico - no sentido de compreender a existência como um todo -, e
integrativo. Os mitos, os processos de iniciação, os rituais, enfim, toda a
estrutura mítica do candomblé obedece a uma lógica própria. Lógica essa que
concebe o tempo diferentemente do pensamento racional. Enquanto o que
regula a sociedade capitalista é o tempo cronológico e evolutivo, medido
sempre pela produção do capital, no candomblé prevalece o tempo mítico.
Enquanto o primeiro é fragmentado e linear o segundo se realiza plenamente
dentro de um ciclo que abarca a totalidade da existência.
            A racionalidade do tempo cronológico aprisiona o homem, estabelece a
perda da identidade, sustenta a particularização e especialização da cultura
ocidental.  Com efeito, a ciência moderna e a filosofia racionalista/empirista
esquadrinha o ser humano através da especialização dos saberes científicos.
Surge as ciências humanas, cada qual especializada em compreender uma
faceta do sujeito; o sujeito, categoria central no discurso filosófico da
modernidade, aparece como uma identidade particularizada, autodeterminante
e absoluta, no entanto, sempre permanece como um projeto ou como um
objeto de estudo para as ciências. Ora, podemos facilmente perceber que na
cosmovisão do povo-de-santo, mais que “santificar” a visão de sujeito, é
“sacralizada” a noção de comunidade; o sujeito, por sua vez, aparece em sua
plenitude, individuado, mas não isolado ou reificado; faz parte do universo, do
todo, e como parte do todo, traz em si esta dimensão sistêmica, isto é, a noção
de pessoa carrega consigo a compreensão ontológica da qual faz parte. Os
ritos e preceitos do candomblé lhe dá condição de assumir essa  dimensão
cosmogônica.
            Segundo as autoras, o candomblé recupera o indivíduo em vários
aspectos:
 
1. Inscreve-o numa ordem metafísica, propondo-lhe um ser mitológico
indivísivel; 2. articula esse ser ontológico, essa singularidade, a um
universal   expresso por um panteão; promove assim sua elevação
espiritual;
3. restitui-lhe sua dimensão natural, pois é estreita a correspondência
entre os elementos da mitologia e os elementos da natureza. Portanto,
ao inseri-lo nesta mitologia, inscreve-o ao mesmo tempo no reino da
natureza, recuperando assim a unidade entre homem e natureza;
 4. a mitologia, ao referir-se a todas as ações humanas significativas,
explica e compreende suas  contradições sociais e individuais, propondo
caminhos alternativos para sua ação sobre o real;
 5. em oposição ao projeto individualista da sociedade global, oferece-
lhe uma opção comunitária” (CARNEIRO;CURY, s/d a, p. 179).
 
Com Ronilda Ribeiro, vimos que a  noção de pessoa na África Negra, e
consequentemente no candomblé, é tida como resultante da articulação de
elementos estritamente individuais herdados e simbólicos, sendo que os
elementos herdados o posicionam na linhagem familiar e do clã enquanto os
simbólicos a situam na esfera cósmica, mítica e social (RIBEIRO, 1996, p.43-
44). Essa concepção de pessoa apesar de reconhecer a importância do
indivíduo não aparta-o da vida social; pelo contrário, um dos elementos que o
compõe é justamente o social, a dimensão coletiva e comunitária de sua
existência.
            Além da noção de tempo, espaço, pessoa, palavra, força vital, poder,
dentre outros elementos já por nós estudados, há também os princípios de
senioridade, da bipolaridade dos elementos, da unidade dos contrários e da
sexualidade. A estes últimos dedicaremos mais atenção nesta reflexão.
            A dualidade dos elementos não é negada no candomblé. Pelo contrário,
a bipolaridade é assumida. Não existe o “bem” e o “mal”, existem forças,
energias, que podem ser manuseadas tanto negativa como positivamente, ou
melhor dizendo,  que podem ser manipuladas tanto para a construção como
para a destruição, como já dissemos. É significativo perceber que nas religiões
africanas é comum a existência de divindades duplas, isto é, uma divindade
feminina e outra masculina, ambas possuindo o mesmo poder. Essa
característica estruturante das religiões africanas chegou ao Brasil através do
candomblé, e é por isso que podemos dizer que o princípio da sexualidade
estrutura todo o sistema desta religião de matriz africana.
            O sistema do candomblé é dialético e interligado. A interdependência é
a primeira coisa que se aprende no sistema. Há uma divisão social e sexual do
trabalho, mas ninguém é absoluto numa função pois existe a interdependência.
Não há um trabalho mais importante que o outro.
            Há uma tensão entre os sexos. O candomblé reconhece, mitifica, e
assume essa tensão. A mulher não é o equivalente do homem, não é a “costela
de Adão” .
            Vimos que o ser humano agenciado pela visão de mundo ocidental,
queda-se, cada vez mais, preso às teias da racionalidade e fragmenta-se com
a consequente fragmentação do mundo. Dessa forma experiencia um vazio
existencial, uma vez que a racionalização dá a impressão de a tudo dominar e
controlar a todos, quando, na verdade, é o sujeito que é por tudo dominado.
Max Weber já dizia que a racionalização característica do mundo moderno
acabaria por criar o desencantamento do mundo. Diante deste  quadro
apresentado pela cultura ocidental, o candomblé surge como uma alternativa
não apenas religiosa, mas também política e social, pois nele estão
sintetizados outros modelos de organização social.
            Talvez isto explique porque cada vez mais indivíduos cuja cultura
originária é ocidental tem se aproximado do candomblé. “Em oposição ao
anonimato da vida social moderna, o candomblé propõe uma existência
personalizada, nominalizada, propiciando ao indivíduo sua inserção numa
ordem comunitária como resposta específica ao vazio existencial decorrente de
sua fragmentação individual no social” (CARNEIRO;CURY, s/d a, p. 176).
 
            Ao problematizarmos como as mulheres inserem-se no candomblé,
estamos à volta, novamente, com a sociedade abrangente em que o
candomblé está inserido. Ou seja, mais uma vez identificamos aí elementos de
contraste com a visão de mundo, e consequentemente de gênero do
candomblé, ora rivalizando, ora absorvendo elementos da cultura ocidental -
que agora qualificamos de patriarcal ou machista.
            Enquanto o princípio que estrutura a sociedade ocidental é o
patriarcalismo, o machismo e o falocentrismo, nas comunidades de terreiro o
que estrutura o sistema é o princípio da unidade dos contrários, o princípio da
sexualidade.
            O princípio da sexualidade estrutura todo o sistema religioso e social do
candomblé. Aqui a bipolaridade entre os sexos é um princípio. O conflito entre
os sexos é assumido, e não descartado. Não subjuga-se um sexo em favor do
predomínio do outro. Existe a reciprocidade entre eles. Mas claro, como há
disputa pelo poder , existe conflito. Gesta-se, assim, uma política de gênero
que não prima pela dominação da alteridade, mas pelo controle mítico-social
dos elementos diacríticos de cada sexo. Nas roças de candomblé os trabalhos
são divididos sexualmente, obedecendo fundamentos mítico-religiosos
assentados na tradição africana. As funções obedecem à idade de iniciação do
filho(a)-de-santo (princípio da senioridade), bem como à condição sexual dos
iniciados (princípio da sexualidade). Uma mulher menstruada, por exemplo,
não poderá jamais tocar em alguns objetos sagrados por causa do seu estado,
assim como os homens da “roça” não  poderão jamais conhecer os segredos
de funções exclusivamente femininas. Mas o que é importante destacar é que
as funções femininas e as funções masculinas se complementam, isto é, uma
não existe sem a outra. É essa reciprocidade que é fundamental para a
estruturação do sistema mítico e social do candomblé.
Se na sociedade capitalista a mulher é tida como mera reprodutora,
subjugada pelo falocentrismo e machismo que permeiam as relações sociais,
no candomblé sua importância social será reconhecida tanto material quanto
simbolicamente. Ruth LANDES (1967) já demonstrara nos anos 30 como o
candomblé é um espaço social predominantemente de mulheres. Não apenas
elas formam o maior número de crentes, como também hegemonizam a
adminstração econômica e ritual das comunidades de terreiro. São elas que
ocupam as funções religiosas mais prestigiadas pela comunidade. Serão
yalorixás (mães de santo), êbómis, mães-pequena (yakekerê), etc. São elas
também que detém o poder e o reconhecimento comunitário para organizar e
cuidar da vida dos adeptos e simpatizantes que frequentam o espaço
sagrado/profano dos terreiros de candomblé. Nos terreiros mais tradicionais,
inclusive, apenas as mulheres podem receber os orixás. Somente elas
poderiam ter essa relação íntima de simbiose com os deuses. Apenas elas, por
serem seres constituídas pelo mistério de gerar a vida, é que poderiam receber
o mistério insondável dos “santos”. Como dizem CARNEIRO E CURY (s/d b, p.
19):
Acreditamos residir fundamentalmente no mistério da concepção da
vida a associação da mulher ao segredo, ao temor do desconhecido,
à natureza selvagem, às profundezas das águas e suas
turbulências, à terra, ventre fecundo onde tudo nasce e para onde
tudo retorna, e ao fogo sensual que conduz ao encontro.
 
            A importância da mulher tanto nos rituais das religiões brasileiras de
matriz africana, quanto na sustentação da vida social da família, tem motivos
históricos. A mulher negra, após a “abolição” da escravatura, viu-se frente a
uma estrutura social onde o homem negro, alijado do mercado de trabalho,
expropriado de sua força de trabalho e marginalizado por sua condição racial,
já não podia manter o núcleo familiar como outrora. Diante deste quadro a
mulher negra assume a responsabilidade de encontrar alternativas de
sobrevivência para a família e em última instância, para a sobrevivência do
grupo.
 
Ao homem negro, despreparado e marginalizado do processo de
industrialização nascente, restam as tarefas sociais mais humilhantes e
a marginalização. Neste contexto, a mulher negra tomará a si a
responsabilidade para manter a unidade familiar, a coesão grupal e
preservar as tradições culturais, particularmente as religiosas. Apesar
das condições subumanas que a escravidão/ “liberdade” deixou a
população negra, as mulheres negras lograram encontrar maiores
opções de sobrevivência do que o homem negro. Elas foram para as
cozinhas das patroas brancas, foram para os mercados vender quitutes,
desenvolveram todas as estratégias de sobrevivência; assim criaram
seus filhos carnais, seus filhos de santo  abrigaram seus candomblés,
adoraram seus deuses, cantaram, dançaram, e cozinharam para eles
(CARNEIRO;CURY, s/d b, p. 26).
 
            A mulher negra, assim, encontra no candomblé não apenas plenas
possibilidades de realizar-se religiosamente, como também política e
socialmente.  A mulher que quotidianamente vive em conflito, porque relegada
a um plano inferior da existência na sociedade capitalista, encontra nos ritos do
candomblé a forma de ritualizar este conflito[43]. Assim, se cozinhar é uma
tarefa menosprezada, sem valorização social, no candomblé será uma função
de valor inestimável. A realização de tarefas domésticas é um privilégio que
não cabe a todos. Essa valorização redimensiona o papel da mulher tanto no
plano místico do candomblé, quanto no plano social.
            Maria de Lourdes SIQUEIRA (1995, p. 443) vai dizer que:
 
Este  sentimento de intimidade da mulher negra com a mitologia e com a
ritualidade religiosas afro-brasileiras abre caminhos para que ela vai
conhecendo, ampliando, recriando e transformando, numa forma de
poder socialmente  construído, assumindo papéis que vão se redefinindo
a cada passo: ora mãe, ora educadora, ora curadora, estabelecendo
relações sociais, políticas e mesmo diplomáticas.
 
            Como a mulher, no candomblé, comumente dirige os “terreiros” na
figura da yalorixá, ela conhece todos os rituais e segredos da mística religiosa
afro-brasileira, além de ser a responsável pela administração da “roça” . Ora, “
aprendendo e ensinando a religião dos orixás, a mulher negra desenvolve suas
próprias capacidades administrativas, políticas-sociais, humanas e religiosas”
(SIQUEIRA, 1995, p. 444).
            A valorização da mulher não implica a dominação dos homens.  No
candomblé, apesar dos conflitos, não existe esta pulsão de eliminação do
outro. Como vimos insistindo, o que existe é a complementaridade das
funções, e não o predomínio de um gênero sobre o outro. Isto só é possível
porque na cosmovisão que permeia o candomblé , a “existência dos orixás
essencialmente femininos, de orixás essencialmente masculinos e de orixás
ambivalentes ou andróginos, expressa uma compreensão profunda da própria
sexualidade humana” (CARNEIRO;CURY,  s/d b,p. 24).
            Notamos, assim, que a cosmovisão implícita ao candomblé está em
conflitos estruturais com a cosmovisão ocidental. Seja pela valorização da
mulher em sua dimensão política, religiosa ou social, seja pela rejeição de
compreender o ser humano pelo binarismo, o candomblé apresenta-se com
valores civilizatórios mais coletivos, mais integrativos, mais humanos que os
modelos ocidentais. Daí, Sueli Carneiro e Cristiane  Cury afirmarem que “a
organização social do candomblé procurará reviver a estrutura social
hierárquica de reinos africanos (especialmente de Oyó) que a escravidão
destruiu, porém na diáspora esta forma de organização visará reorganizar a
família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo
e, ainda, a transmutação nos deuses africanos será a fonte de sustentação
dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil” (CARNEIRO;
CURY, s/d b, p. 26).
            Diante desta sociedade hostil aos afrodescendentes, perguntamos
novamente: 1) em que medida a visão de mundo inerente ao candomblé é
capaz de apontar respostas para a crise do modelo ocidental; 2) em que
medida o candomblé, ao absorver elementos da cultura ocidental, não perde os
elementos estruturais de sua cosmovisão africana?
            Como possíveis respostas a estas questões pensamos ter desenvolvido
alguns elementos que se constituem como alternativas ao sistema capitalista. A
visão de mundo do povo-de-santo , é integrativa e não excludente; é humanista
e não tecnicista; é polivalente e não totalitária; constitui uma unidade dos
elementos, e não uma fragmentação dos mesmos. Como as pessoas advindas
de culturas não-africanas não encontram em suas culturas de origem os
valores capazes de lhes proporcionar uma vivência digna e justa, elas
encontram nas religiões de matrizes africanas um outro sistema de valores e
princípios que não estão aprisionados pelo racionalismo, pelo cientificismo
ocidental, pelo individualismo liberal. Ao contrário, o inesperado, o
desconhecido, são esferas presentes nas religiões de origem africana. O afeto,
a emoção, a dança, a festa, a dor, o prazer, são esferas que se
complementam, são dimensões que abarcam toda a complexidade humana.
            O vínculo estreito do povo-de-santo com a natureza, e  o estreito
vínculo destes com as divindades, fazem do candomblé uma religião imanente,
longe das abstrações metafísicas das religiões transcendentais. Num mundo
onde o artifício domina o natural, onde o controle procura desesperadamente
conter o irracional, onde as pessoas e os saberes são fragmentados, onde os
interesses individuais subjugam os interesses coletivos, a religião comunitária
do candomblé representa uma alternativa viável, representa uma volta
simbólica à natureza, representa uma relação íntima e corporal com os
“deuses” (orixás), representam uma vivência coletiva, em sociedade,
representa uma potencialização da sexualidade humana e a valorização do
feminino num mundo predominantemente masculino. Assim, esses elementos
estruturantes do candomblé apontam  respostas concretas para a crise dos
modelos ocidentais.
            Porém, em que medida o candomblé, ao absorver elementos desses
modelos ocidentais, ao permitir o ingresso de pessoas não tributárias da
origem africana, ao se situar no seio do capitalismo, não perde a
caracterização de seus elementos estruturantes. A pergunta, de fato, é a
seguinte: como atualizar a tradição? Como vivenciar uma religião
eminentemente natural num mundo predominantemente artificial?  Como
vivenciar uma cultura africana se vivemos na cultura ocidental, sendo
influenciados por seus parâmetros de pensamento?         Aqui aparecem
problemas que muitos teóricos têm abordado, sem, no entanto, lograrem
resultados satisfatórios. De nossa parte, queremos apenas apontar chaves-de-
leitura para possíveis aprofundamentos no devir. A questão da linguagem, da
cultura, das estruturas de pensamento, tornam-se limites para o problema
levantado. Gostaríamos de avançar na discussão de maneira a não recair em
redundâncias semânticas ou em totalitarismos políticos, muito menos em
ramificações religiosas.
            O uso de códigos binários, bem-mal, certo-errado, céu-inferno,
masculino-feminino, direito-esquerdo, não contempla a pluralidade do ser
humano e suas sociedades. O real é muito mais dinâmico do que pretenderam
os metafísicos do séc. XVII e os iluministas do séc. XVIII; é mais contingente
do que imaginou a ciência moderna e muito mais sedutor do que imaginaram
os racionalistas e empiristas do nosso tempo.
            Talvez a física contemporânea, juntamente com a biologia e a química,
sejam os ramos da ciência que começam a detonar os antigos paradigmas
cartesianos-newtonianos. A interdependência, a interação e a flexibilidade que
esses saberes apresentam em muito lembra os princípios tradicionais das
religiões de matrizes africanas - em especial o candomblé.
            A condição humana, por exemplo, não é expressa pelo binário homem-
mulher. No panteão do candomblé existem orixás eminentemente femininos,
eminentemente masculinos, e orixás andróginos, isto é, feminino e masculino
ao mesmo tempo. Essa trindade, esse terceiro, é a possibilidade de várias
expressões do humano sem reduzi-lo à binaridade calcificante. O terceiro
elemento não é apenas um elemento a mais no par binário. O terceiro
elemento é a abertura para o infinito, para a diversidade, para o mistério do
Outro.
            Também no candomblé a flexibilidade do sistema é notável. Sua
cosmovisão é sempre redefinida e atualizada, mantendo, entretanto, princípios
estruturantes como a interação, a interdependência, o comunitarismo, a
ecologia, etc.
            Isto permite dizer ao menos que existem elementos tanto em ciências
consagradas, como a física, a biologia e a química, como em religiões
tradicionais, como o  candomblé, que permitem-nos afirmar que não existe um
único universo de valorização, uma única teoria interpretativa, um único
modelo de pensamento. A crítica ao eurocentrismo, ao falocentrismo, ao
etnocentrismo já foram feitas várias vezes. É preciso, no entanto, aprofundar
tais críticas, a fim de mostrar, seja no âmbito ontológico (SER), econômico
(CAPITAL), linguístico (SIGNIFICANTE) ou religioso (DEUS), que todos esses
elementos são erigidos como equivalentes gerais modelizando todos os outros
universos de valorização, reduzindo a realidade a uma repetição e adequação
a esses signos dominantes.
            Assim, falar em cultura ocidental é perceber no conjunto de regimes de
signos que se organizam seguindo uma lógica comum, de acordo com os
mesmos signos dominantes - os equivalentes gerais – com pretensão de
dominarem todos os outros regimes semióticos. Esta dominação, porém, é
apenas ideológica, pois além do regime dominante dos signos existem os
regimes passionais e os pré-linguísticos. Com efeito o Capitalismo Mundial
Integrado utiliza-se do truque semiótico de apresentar-se como única forma de
organização social, política e econômica. Promovendo universalmente seus
princípios, procura sobrecodificar os modos de vida de qualquer cultura a fim
de potencializar sua própria lógica interna (a acumulação de capital). A
globalização da economia, a planetarizaçào da política e a mundialização da
cultura são tentativas de universalização dos modelos ocidentais. No entanto,
apesar das estratégias de dominação, a diversidade de culturas e,
consequentemente, dos modos de organização da vida e da produção, gestam
diferentes modelos sociais, obedecendo à lógica do lugar próprio, respondendo
singularmente aos desafios surgidos em contextos sócio-históricos bem
definidos. Desvendar a armadilha dos Universais Gerais de Referência como
única possibilidade de interpretação e fabricação do mundo é tarefa que cabe a
qualquer intelectual que se pretenda crítico. Porém, além da crítica, é
necessário apresentar alternativas e a fundamentação filosófica dessas outras
possibilidades. Já o fizemos conquanto às relações de gênero. Agora o
faremos privilegiando a relação Homem-Natureza.
 
Meio Ambiente e Candomblé
 
O Candomblé é, por assim dizer, uma religião brasileira com heranças
africanas. Com essas heranças, diferentes formas de cultuar, de viver e de
encarar a vida (e a morte!) ultrapassaram o caráter estritamente religioso,
propondo uma maneira própria de viver na sociedade brasileira.
            Essa maneira de viver singular  à experiência religiosa do povo-de-
santo é tributária da forma cultural africana que, não obstante, foi recriada no
contexto nacional dos afro-brasileiros. A forma cultural negra privilegia a
relação homem-natureza. É uma forma cultural ecosófica pois não compreende
a natureza como um elemento passivo. Ao contrário, ela não reifica a
separação binária homem-natureza ou natureza-cultura. O homem é natureza.
Forma com ela um elo indissociável. Há aqui um holismo filosófico com
consequências políticas. E este é o ponto “chave”, o motivo no qual reside a
resistência da cosmovisão africana num espaço onde os valores
cristãos/capitalistas privilegiam a instrumentalização da natureza e sua
consequente exploração, onde a ênfase cultural recai sobre o extraordinário e
não sobre o ordinário, sobre o pós-morte, o pecado, a culpa, a moral e não
sobre o imanente, a liberdade, o prazer e a ética. Nas comunidades de
Candomblé as organizações se dão a partir de experiências religiosas de
caráter mágico, o irracional é racionalizado, sendo passível de ser controlado e
transformado.
 
Um Babalorixá nos disse uma vez: “o candomblé tem o veneno e o
antídoto para tudo”. Daí advém a capacidade da comunidade de
candomblé para absorver o comportamento “anti-social”. Explicando-se
assim a ausência em seu âmbito de um conceito de loucura ou
anormalidade ( “o indivíduo estava louco até fazer o santo, até entrar no
candomblé”), assim também como a grande quantidade de
marginalizados sociais que participam dessas comunidades: mulheres,
negros, homossexuais etc. (BARROS, 1994, p. 33).
 
            As representações materiais e simbólicas utilizadas pelo candomblé
são heranças africanas, que vindas para o Brasil, foram mantidas ou por vezes
recriadas. Estas representações transparecem na cosmovisão africana que
possibilita um modo particular de relações sociais, políticas e econômicas. Elas
possibilitam a emergência de elementos estruturantes das sociedades negras
tradicionais como por exemplo os orixás, que simbolizam suas existências.
No Candomblé, como já foi dito, existe uma relação dialética, uma
interação entre homem e natureza, e esta relação é responsável pelo processo
de socialização dentro de um contexto ecológico. E este aspecto ecológico é
um  “elemento formador de identidade cultural nesta tradição religiosa”
(BARROS, 1994, p.33).  
            Porém, o grande dilema que se apresenta todas as vezes em que se
discute visões de mundo diferenciadas, onde uma única visão procura
prevalecer, é como que a visão de mundo de uma cultura não hegemônica e
marginalizada poderia florescer em meio à cultura predominante.
Especificamente falando, o problema está em compreender como que a visão
de mundo advinda da cultura africana poderia sobreviver e se expressar no
interior de uma cultura “capitalística”[44], que não apenas não reconhece seu
valor, como também insiste em marginalizar e banir tais expressões culturais
de seu território hegemônico. Como que a visão de mundo africana,
integradora, inclusiva, diversificada, flexível, humanizadora – no sentido de que
se preocupa com a emancipação humana -, ecológica, dentre tantos atributos,
poderá conviver com a visão de mundo de uma cultura que é excludente,
destrutiva, egoísta, redutora, entre outras tantas características contrastantes
com a visão de mundo africana?
            Nós, os seres humanos, somos animais culturais. Somos determinados
por nossa cultura, isto é, nosso modo de vida é construído de acordo com o
contexto do qual fazemos parte, nossa relação com o mundo é sempre
tributária da maneira como essa relação foi construída histórica e
culturalmente. Não existe a origem primeva; não existe o inato. A cultura
constitui-se num processo profundamente complexo e diversificado, sendo
impossível identificar aí traços que permaneçam idênticos e intactos: a cultura
é sempre passível de ressignificações e reinterpretações. Estas considerações
exigem uma reflexão profunda e extensa, que, infelizmente, não temos tempo
de desenvolver aqui. Gostaria, entretanto, de destacar que como seres
culturais, nossa constituição enquanto seres humanos dá-se estreitamente com
relação à cultura na qual nascemos e da qual nos alimentamos. Esta é uma
dificuldade para desenvolver nossas questões, pois, se somos produtos do
nosso meio, como não ser capitalista vivendo num país capitalista; como não
ser ocidental, habitando o ocidente do mundo? Especulando, poderíamos dizer
que o ser humano forma seu “arsenal” simbólico utilizando-se das “armas” que
lhe estão a disposição. Ou seja, os referenciais de uma pessoa, ou grupo de
pessoas, formam-se, apesar da diversidade que aí encontramos, dos
referenciais que sua cultura lhe oferece. Já foi dito que só podemos pensar o
que conhecemos. Não podemos, com efeito, pensar como um indiano, uma vez
que não somos indianos. Retornemos, entretanto, à nossa questão original:
como viver de acordo com uma visão de mundo africana se estamos
“condenados” a referenciais simbólicos da cultura ocidental?
            Considerando o candomblé, como poderíamos integrar sua visão de
mundo diante de um sistema cultural que lhe é hostil? Como pensar uma
religião africana que conjuga sagrado e profano, enquanto que a ideologia
religiosa dominante no ocidente relega o ordinário em privilégio do
extraordinário. Dito de outra forma, a igreja cristã privilegia os aspectos
relacionados ao tempo sagrado, discursando sobre a morte, o pecado, a
salvação etc., enquanto que nas religiões de matriz africana o sagrado e o
profano se interpenetram. O imaginário social está marcado pelos ícones
religiosos do cristianismo: o diabo, a santa, o paraíso, o inferno. Neste sentido,
como lograr ser uma religião autêntica, que privilegia a ancestralidade, se a
cultura em que ela está inserida constitui-se em torno de símbolos cristãos que,
por sua vez, estruturam os pilares da cultura ocidental?
            Um caminho podia ser o da adaptação, ou seja, o candomblé
assimilaria os códigos simbólicos da sociedade capitalista a fim de, de alguma
forma, manter-se como uma religião de matriz africana. Ora, isto não resolve o
problema, apenas o recoloca, pois como as religiões de matriz africana
manteriam seus códigos se assimilassem símbolos alheios?
            A adaptação ou “modernização” do candomblé agudiza nossos dilemas,
pois quando eu transformo as práticas de candomblé em práticas comerciais,
quando me afasto do espaço natural (espaço-mato) para recriar o candomblé
em espaços artificiais (urbe), corremos o risco de perder elementos essenciais
da prática religiosa de matriz africana. Pessoa de BARROS (1994, p. 36),
entretanto, ao abordar esse tema, diz que:
 
A crença nas  formas naturais foi, e continua sendo, a responsável pela
reprodução e manutenção de um estilo de pensar e ser, de estar no
mundo. O impacto da urbanização não altera significativamente a
visão de mundo do povo-de-santo; pelo contrário, propicia o
surgimento de estratégias para a manutenção de seu patrimônio
religioso e cultural[45].
 
             Mas é o próprio Pessoa de BARROS (1994, p. 36) quem dirá que  o
“”exercício da fé nas divindades afro-brasileiras exige uma relação direta e
estreita com o meio ambiente natural e puro”.  Ocorre aqui um paradoxo, que
está justamente na afirmação de que a urbanização não altera
siginificativamente a prática ritual do povo-de-santo, de um lado, e que é
essencial para o candomblé a manutenção dos espaços naturais, de outro. O
problema é ainda maior se considerarmos o meio ambiente em sua totalidade,
uma vez que está ameaçado pela visão de mundo instrumental (ocidental) e
sua consequente prática destrutuiva, que privilegiou a industrialização em
detrimento do ecossistema.
            Sob este último aspecto, gostaria de ressaltar que os problemas aqui
levantados ultrapassam o âmbito privado do candomblé; o problema exige uma
reflexão em âmbito planetário. É preciso, por isto, recolocar sob outros
parâmetros, as questões. Para além do político, a ética. Para além da
preservação da minha cultura, a preocupação é com a preservação do planeta.
Refletir sobre as relações entre público e privado, entre indivíduo e coletivo,
entre local e universal, só faz sentido quando inseridos nessa contextualização
dilatada que, muito embora universal, não se constitui como abstração
metafísica, mas como necessidade. A pergunta que paira, então,  é a seguinte:
que elementos existem nas religiões de matriz africana capazes de
posicionarem-se frente a este quadro complexo que se nos apresenta?
            Antes, entretanto, de ensaiar uma resposta, gostaríamos de
problematizar outro aspecto. Todos sabemos que o capitalismo é um sistema
semiótico extremamente competente em recuperar os signos que se lhe
opõem. Ágil em capturar as práticas subversivas e ressemantizar os símbolos
que se lhe contrapõem, o capitalismo encontra mecanismos de assimilação e
sobrecodificação complexos, difíceis de serem combatidos. Este é um
problema muito sério, pois sem uma resolução aceitável do problema,
estaremos condenados ao papel de “inocentes úteis”, ou, o que é pior, à função
de reformadores do sistema, e até mesmo ao quixotismo delirantes em luta
inútil e infinita contra moinhos de vento... Para ser eticamente responsáveis e
politicamente consequentes teremos que pensar uma práxis que não possa ser
capturada pela semiótica capitalista? Formulando o problema de jeito: como
não reproduzir uma posição alienante ou passiva frente aos acontecimentos,
visto que o mundo apresenta-se, dentro desta perspectiva, sem esperanças; e,
por outro lado, como encontrar uma prática de vida que não recaia no
ostracismo e no fundamentalismo, mas que, considerando a complexidade da
realidade, conjuge desejos pessoais com os interesses comuns da
humanidade?
            É a partir da cosmovisão africana que intentaremos dialogar com esses
problemas/dilemas ditados pela contemporaneidade.
            Mesmo o pensamento europeu não assume a noção de história
evolutiva. Aliás, já está  na hora de dar fim a essa dicotomia
“ocidental/africano”. Se estamos operando com ela, é porque decidimos nos
contrapor, para fins de contra-discurso, ao sistema de dominação engendrado
pelo capitalismo que, de resto, foi arquitetado na Europa. Mas ao falarmos em
cosmovisão de mundo, não estamos nos remetendo a uma realidade
geográfica homogênea. Não estamos reféns do historicismo ou do romantismo.
Não estamos atados ao inatismo e ao atavismo. Falamos de cosmovisão de
mundo como um regime de signos próprios de uma dinâmica civilizatória e,
neste sentido, rompemos com a ideologia capitalística da existência de um
único modelo organizativo da vida e da produção. Ao referendarmos nossos
argumentos na cosmovisão africana queremos justamente demonstrar que há
muitos regimes de signos e, inclusive, muitos deles se opõem ao regime
dominante – e este é precisamente o caso da política da africanidade no Brasil.
Retornemos, então, ao início do parágrafo anterior, quando dizíamos
que a noção linear de história é criticada também pelos europeus. Com efeito,
desde Foucault, sabemos que a história não é evolutiva e que, em seu
desenrolar surgem brechas de tempo, como dizia Walter Benjamim, por onde o
passado pode irromper no presente e antecipar o futuro. Nietzsche dizia que
não existe verdade histórica mas interpretação da história, pois há uma
infinitude de possibilidades para a interpretação dos acontecimentos. Isto nos
remete a um enfoque mais plural e ampliado do universo social em que
vivemos. Quando consideramos a diversidade de culturas em nosso mundo, ou
mesmo, a diversidade de cultura dentro de um mesmo país já não poderemos
falar em cultura brasileira, por exemplo, pois seria uma generalização
massificadora. Se nos remetemos, constantemente, à cultura negra, à
cosmovisão africana, é para ressaltar aspectos culturais importantes para a
construção do nosso projeto político e não para reificar uma ontologia
essencialista do ser negro-africano.
            Vale dizer que a visão que apresenta o mundo a partir de uma cultura
dominante, é própria da visão de mundo dominante desta mesma cultura. Se
analisarmos o sistema capitalista com o mesmo olhar do capitalista, estaremos
apenas reificando este sistema de dominação. A realidade, com efeito, não se
comporta como uma definição binária de isto e aquilo, dominante e dominado,
escravo e senhor, mas ela é uma dinâmica complexa de relações sociais e
ambientais. Será preciso lançar mão de outras visões de mundo, com
referenciais em outras expriências de vida, para se fazer uma crítica ao sistema
capitalista, até porque a recuperação que o mesmo faz dos signos que
procuram subverter sua ordem, não é passiva, mas ativa, isto é, ele não sai
impune desta operação; se por um lado ele recupera e ressignifica as ações
que se lhe opõem, por outro lado seus códigos e estruturas também podem ser
ressemantizados por seus opositores. Além do que trabalhamos muito mais
numa perspectiva de possibilidades híbridas e variadas, do que na posição
antiquada de uma bipolarização sistêmica.
            Falar em cultura ocidental é tão generalizante quanto falar em cultura
africana, já foi dito. O que existem são culturas ocidentais, assim como existem
culturas africanas. Pensando assim, passamos a ter um gama muito maior de
possibilidades para a compreensão da realidade, o que favorece intervenções
e ações mais diversificadas. Voltar aos métodos de abordagem universalistas
seria recair em abstrações que não dizem nada de coisa alguma. É preciso
considerar cada caso – sem perder, é claro, a visão de conjunto -, e, daí,
enriquecer nossa análise.
            As comunidades de terreiro apresentam uma outra maneira de
organização social que extrapolam seu caráter meramente religioso. Melhor
dizendo, o caráter religioso das comunidades de terreiro concebem o espaço
religioso integrado às outras esferas da vida, que na concepção africana, é um
todo orgânico e não esferas específicas e particularizadas. Esse caráter
organizativo das comunidades de terreiro marcam distinções importantes frente
ao colonizador europeu: enquanto o colonizador marcava o seu tempo pelo
relógio, pelo tempo da produção, obedecendo a lógica do capital, os terreiros
marcavam o tempo pelo sistema lunar. Esse jeito de contar o tempo é
exatamente contrário ao do colonizador, pois enquanto esse artificializa o
tempo, valorizando-o ao inventar um sistema produtivo, a comunidade de
terreiro concebe o tempo a partir de um referencial natural (os ciclos da lua), o
que caracteriza bem a relação dos últimos com a natureza. Ao invés de um
tempo instrumentalizado pela produção, temos um tempo sacralizado na
natureza. A natureza é o princípio.
            A organização espacial das comunidades de terreiro congregam o
espaço público e o privado. A disposição das casas – espaço doméstico,
cotidiano, ordinário – em volta do terreiro, e o terreiro – espaço do sagrado, do
coletivo, da celebração da vida – ao centro demonstram bem a visão orgânica
do povo-de-santo. O espaço privado – mas que está institucionalizado no
espaço público -, e o público – a dimensão da comunidade, interagem
organicamente, e se confundem, por exemplo, nos momentos em que no
terreiro não se está realizando algum ritual, ele serve como espaço recreativo
para as crianças, como reunião da comunidade para resolver assuntos
domésticos etc. Em toda roça de candomblé o espaço-mato é considerado o
lugar mais importante. Lá vivem os orixás. Lá eles serão alimentados. É na
natureza que os orixás encontram os elementos que lhe dão existência. A
natureza é a essência do orixá. A essência do candomblé. Como dizem os
nagôs: “kosi ewé, kosi orisá” (sem folhas não há orixás).
           
            Um sacerdote de Ifá, outrora filho-de-santo de Yemanjá, certa feita me
confiou a seguinte história[46]. Dizia ele que, defronte ao mar, quis saber da
origem da vida. Tomado de emoção, ouviu a resposta de Olokun e Aziri
Tobossi. A água, diziam as Yamis, é a origem da vida. Dela tudo emerge e pra
ela tudo retorna. Olodumare, antes que o mundo humano existisse, retirou
pedaços de seu próprio corpo e jogou no mar. Depois soprou sobre as águas,
criando-lhe movimento. O movimento do mar em ondas fez com que os
pedaços de seu corpo se misturassem e formassem os primeiros seres vivos.
Olokun disse que o segredo da vida está contido no movimento do mar. As
ondas, no seu movimento de leva e traz inaugura a dinâmica da vida. As ondas
prepararam parte dos seres marinhos para viverem na terra. Ela os levava à
terra e os trazia, constantemente, periodicamente... Aos poucos, e com
paciência, os seres adaptaram-se à vida terrestre e passaram a habitar este
novo ambiente. Viver neste novo ambiente. Desde o início o princípio da vida é
a diversidade. A natureza é diversidade. Aziri Tobossi e Olokun ensina que a
face de deus é a face da natureza, e que a face da natureza é a diversidade.
Esse é o princípio da vida. A diversidade. A diversidade é a vida. O movimento
gera a vida. No ventre da mãe Yemanjá (o mar) o mistério da existência foi
gestado. Na vida tudo vem e tudo vai. O candomblé não é uma religião.
Candomblé é o princípio de submissão ao princípio da vida. Submissão como
condição para a participação. Participar da vida é submeter-se a ela e a seu
princípio: a diversidade. Por isso tudo começa na natureza e termina na
natureza. O que é o orixá? Orixá é a proteção do princípio fundamental que  é
a diversidade. É ele quem garante a presença do princípio fundamental da
diversidade. Eles sustentam a diversidade por que interagem entre si. É vento,
folha, raio, trovão, árvore, terra, água. Todo um círculo de elementos naturais
que, integrados, movimentam a vida. As danças no candomblé são em formato
de roda. A roda representa o movimento cíclico do mar ocasionado pelas
ondas. As rodas de candomblé representam o sentido da vida que está
expresso nas ondas do mar. Ifá, protetor da ética, ensina que a natureza de
deus é a natureza das folhas. Ensina que o homem não é um ser acima dos
outros seres. O homem é parte da natureza. Faz parte do todo orgânico. É um
ser vivente entre outros. Quando o ser humano se colocou acima da planta, do
mineral, do animal, iniciou a destruição. A causa dos males humanos foi sua
separação da natureza. A natureza é o início e o princípio de tudo. O princípio
de tudo são as águas profundas de Aziri Tobossi e a respiração de Olodumare.
As águas gesta a vida, a respiração a dinamiza. Dinâmica e sentido, água e
respiração, eis o princípio da vida. Tudo é vibração.
            A história do babalawo é mui significativa. Há aqui uma filosofia
profunda e um conhecimento sagrado. É sabedoria! A vida só é possível por
causa da diversidade. A diversidade não é apenas a expressão da vida. Ela é a
vida. É a possibilidade da própria vida. A origem da vida não partiu de uma
essência única. Foi a água de Yemanjá e a respiração de Olodumare que
criaram a vida. Lembramos dos itãs de Oxalá  onde narram-se histórias de
criação do mundo e dos orixás. Há sempre a complementaridade de elementos
naturais nos itãs. No caso, Oxalá é o ar - a respiração vital e Yemanjá a água,
o ventre do mundo. Na história do Babalawo esses elementos se repetem.
Entretanto há um elemento dinâmico: o movimento das ondas. O movimento
dinamiza a vida. Viver é movimentar-se. Como veremos adiante, a filosofia
banto já dizia que a vida é energia. A Força Vital é a energia que movimenta o
universo africano. Axé é a energia vital que dinamiza a vida! O leva e traz das
ondas  do mar é como as  ondas do tempo que levam e trazem ensinamentos.
Aqui está contido todo o princípio da ancestralidade. O tempo não é estático,
mas dinâmico. Sua dinâmica está engendrada pela lógica dos ancestrais. A
sabedoria é resultado da passagem do tempo. Essa é a dinâmica da
cosmovisão africana. O leva e traz das ondas do mar lembra-nos do
movimento do leva e traz erótico, amoroso - movimento originário do início da
vida. A relação sexual é o movimento de corpos se amando em ritmos de onda.
A fecundação de um ventre é a introjeção da semente da vida no ventre
materno. Ventre é a casa da água da vida. É o mar. As mulheres, como vimos,
são portadoras desse mistério. Por isso podem ter intimidades com os deuses.
Por isso são celebradas no mundo da cultura africana. Intimidade é o
movimento de seres que se amam. Não há intimidade na solidão. Intimidade é
uma experiência só passível de ser vivida em comunhão. A comunhão é uma
diversidade. Só há comunhão se há diversidade. Só há vida se há comunidade
(diversidade). Água e respiração, homem e mulher, são os pares entrelaçados
para a gestação da vida. A vida é movimento da diversidade. Diversidade é o
movimento da comunhão.
            A diversidade, princípio da vida, sustenta-se apenas porque existe o
princípio da integração. A diversidade não leva ao relativismo porque ela está
articulada pelo princípio da integração. A integração reúne numa unidade
sagrada toda a matéria do mundo. É reunião de diversidade o que chamamos
unidade. Toda integração e toda diversidade está baseada na sabedoria
ancestral. Assim, ancestralidade, diversidade e integração revelam a face de
Deus.
            A relação do candomblé com o meio ambiente é, portanto, essencial.
Não há candomblé sem meio ambiente, exatamente porque não há vida sem
natureza. O candomblé é um princípio de vida ligado essencialmente à
natureza. É a religião da vida! É o culto que sacraliza na vida cotidiana de seus
fiéis os segredos e encantos da natureza. O candomblé é o movimento da
natureza ritualizado nas festas religiosas para o culto dos orixás. Orixás são a
natureza. O Homem é natureza. Logo, somos deuses!
 
            As relações de gênero no candomblé e a dinâmica da integração com a
natureza são resultados da cosmovisão africana que, baseada na dinâmica
civilizatória africana, criou e expressa suas próprias formas culturais. Na forma
cultural africana a vida (Yemanjá) não se separa da ética (Ifá), assim como o
movimento não se separa da diversidade. Em todo caso, é do princípio da vida
que estamos a falar.
 
Formas Culturais
 
As formas culturais negro-africanas constituem-se politicamente como antítese
à cosmovisão greco-romana, ao mesmo tempo que aparece como um dos
modelos possíveis para a re-organização das relações da vida no mundo dito
globalizado. Ao mesmo tempo aparece como proposta universal, pois tem uma
perspectiva universalizante, no mesmo instante em que se diferencia por ser
uma cosmovisão pautada na pluralidade e não na unidade.
A forma cultural é o que permite e dá condição para o tecido da ética,
logo para o terreno da política e da economia. Exu é a entidade mítico/religiosa,
produto cultural da cosmovisão africana, que melhor representa a forma
cultural negro-africana da qual nos fiamos para tecer esse estudo.
Entendemos por forma cultural as condições que possibilitarão toda
relação baseada em troca, reciprocidade, dádiva ou mesmo individualismo.
Formas culturais é uma categoria que visa entender o padrão cultural no qual
as diversidades se expressam; é menos o conteúdo expressado e mais o
“lugar” onde este conteúdo é expressado. É mais as condições da expressão
que a obra propriamente dita. Se comparássemos à criação artística, diríamos
que é mais a tela onde a obra vai ganhar corpo que o corpo da obra de arte.
Utilizamo-nos da categoria forma cultural para pensar tanto as condições
estruturantes de um povo quanto as expressões singulares que lhes dão
identidade[47]. Como identidade elas formam um território identificável e  criam
uma ideologia a partir de representações sociais forjadas pelo próprio grupo.
No entanto, elas funcionam também como alteridade, na medida em que não
existem formas culturais sem a presença e o mistério do outro. A forma cultural
é tanto a configuração da cultura de um povo quanto a transformação da
cultura de uma comunidade.
A forma cultural  greco-romana privilegiou o estatismo e a imutabilidade
como padrão de compreensão do real; a forma cultural negro-africana privilegia
a dinamicidade como categoria para a compreensão do real e suas
significações. Por isso escolhemos Exu para elucidar como funciona o padrão
cultural africano e suas ressemantizações ocorridas no Brasil.
Exu não é exatamente um orixá. Ele é um princípio de comunicação que
interliga tanto os homens com as divindades, quanto o homem entre os
homens, os homens consigo mesmos e os homens com o meio ambiente. Exu
é o princípio dinâmico do universo africano. Exu existe antes mesmo da
existência, pois como forma cultural ele dá a possibilidade da existência da
forma cultural, e, enquanto tal, ele está presente em cada uma das
materializações/singularizações da forma cultural que se individualiza em cada
objeto de cultura produzido pela comunidade. Exu, é assim, onipresente e
absolutamente individualizado. É ele, em si mesmo, o princípio fundamental da
individualização. Mas, sendo individuação em todos os seres, ele representa
objetivamente o que teologicamente Olorum é para a religião dos orixás, ou
seja, a personificação da existência genérica. Exu é a existência
individualizada, mas enquanto existência onipresente é universal; enquanto
realidade fática, é singular em cada uma de suas expressões.
Exu é a unidade presente nos múltiplos seres que constituem o universo.
De fato há um Exu para cada modalidade de seres: divindades, homens,
animais, plantas, pedras etc. Exu, é assim, como que a força dinamizadora
capaz de não apenas interligar todos os seres, mas de os fazerem existir. Não
há existência sem Exu porque não há existência sem uma forma cultural que
lhe dê sentido. Exu dá sentido ao interligar todos os seres. Os seres são
porque são interligados. Exu é o princípio de comunicação e como toda
comunicação é pública, logo política, Exu é o princípio mais dinâmico da cultura
afro-brasileira na medida em que coloca todos os seres em intercâmbio
relacional conferindo-lhe a existência individualizada e, principalmente, o
sentido que faz com que as coisas sejam o que são, isto é, o sentido que
confere a inteligibilidade e a possibilidade de inteligibilidade sobre as coisas.
Exu está mais para significante do que para significado. Ele, em última análise,
é o signo de referência que dá siginificado aos outros signos. Mas não é um
signo déspota que se comporta como equivalente único de significação nem
como modelo último da realidade. Exu é, em si mesmo, múltiplo. Possui ele
não uma regra, mas o mistério – que detona com a regra;  possui múltiplas
funções, não apenas a função sobrecodificadora de signos. Ele é um símbolo
mutável porque se comporta como a natureza mesma do signo, representando
sempre parcialmente os objetos por ele refernciados e a eles referidos. Exu é
muitos, por isso pode inventar novas regras e preservar outras. Pode, como o
real, ser criativo, devastador, imperativo, compreensivo e até mesmo violento.
Exu não responde exatamente pela ética, mas, o que parece paradoxal, é a
condição para a ética negro-africana.
            Exu é o portador do axé. É ele o encarrregado de distribuir o axé.
O axé é a força vital que alimenta os seres. Sem axé não há vida. Sem vida
não há existência. Exu, como pricípio de comunicação, é também o portador do
axé que alimenta a própria existência e, como tal, é também o responsável pela
transformação das coisas existentes. Daí sua ligação estreita com Ogum,
senhor dos caminhos, e Yansã, senhora da transformação. Exu é irmão de
Ogun e com ele divide o reinado sobre os caminhos. Yansã é a orixá das
transformações, e, com Exu, defende o princípio da mutabilidade. Na
cosmovisão africana a mudança é para a inclusão e não para a exclusão. Está
excluído aquele que não aceita e não vive a regra comunitária que, tem em
Exu, a possibilidade para sua criação. Ou seja, exclui-se aquele que quer
excluir outrem. Exu  é outrem. É a própria personificação da alteridade. É ele
feito da natureza do mistério, do insondável, muito embora seja da matéria do
real, do presente do cotidiano. Assim como a alteridade Exu é uma presença
incontornável e ao mesmo tempo indefinida. É um mistério que açabarca a
existência de todos e tudo. Ele é todos e tudo, assim como a alteridade.
            Por ser preexistente à ordem do mundo é que Exu pode ser cada
um e todos ao mesmo tempo. Não é ele o criador do mundo. Ao contrário,
também ele é criatura. Mas, enquanto criatura, participa de qualquer coisa que
tenha existência dando-lhe consistência de existência, ou seja, conferindo ao
existente o status de dinâmico, isto é, de vivente. Sendo criatura, no entanto,
também ele se submete a seu criador. Seu criador é Olorun, representação da
existência genérica. Ele também segue os ditames de Ifá, gerador de toda ética
da cosmovisão africana. O que vemos aqui é uma relação complexa entre
criador e criatura, entre Ética e Forma Cultural. Com efeito criador e criatura se
confundem, ou melhor, um complementa a existência e o motivo da existência
do outro. O criador orgulha-se de sua criação viva. Se tal criação quedar-se
estática, a beleza do que foi criado fica relegada ao plano da memória, da
rememorização. Exu dinamiza o existente enchendo de vida a criação do
criador. De outro lado, (Exu) não poderia dinamizar a criação não fosse ele
criatura. Muito embora produto do criador, ele agora pode, enquanto criatura,
recriar o mundo e o próprio criador na medida em que sua voracidade criativa
dá novas formas àquilo que foi criado. Com isto estamos dizendo que a forma
cultural é, em si mesma, dinâmica e não estática, reinventando a si mesma,
sem no entanto abandonar o que ela é, a saber: uma forma cultural na qual as
relações entre os seres existentes são travadas.
A forma cultural negro-africana é, em si mesma, uma ética. É uma ética
porque composta da experiência coletiva dos afrodescendentes que
produziram uma cosmovisão que integra uma dinâmica civilizatória orientada
para a promoção da liberdade de todos e de cada um. A experiência africana,
como vimos no estudo dos três grandes impérios (Gana, Mali e Songai)
assenta-se numa prática política de integração de diversidades e promoção do
bem comum. Permeado por valores religiosos, ela ritualiza e sacraliza o
cotidiano a fim de manter a unidade do universo africano. A economia tem por
função organizar a produção para garantir o bem-estar material da
comunidade, ao mesmo tempo que preserva a memória (ética) dos
antepassados ao respeitar o pacto com a terra. A forma cultural, portanto, é o
solo comum onde enraizam-se as experiências políticas e econômicas das
sociedades africanas. Tais experiências só puderam ser éticas, isto é,
includentes, tolerantes, diversificadas, comunais etc., porque derivaram da
forma cultural africana.
O candomblé, no Brasil, é fruto da forma cultural africana porque
mantém sua ética. Melhor dizendo, o candomblé é a atualização da experiência
ética africana em terras brasileiras. Atualização que só foi possível dado o
caráter singular da cultura negra, dada à memória coletiva dos
afrodescendentes que preservou a forma da experiência africana.
O conceito de forma cultural vai além do conceito de estrutura, pois ela
não é apenas um conjunto de elementos que estruturam um sistema; ela é a
possibilidade da existência do sistema. Não é, com certeza, um conceito
apriorístico ou metafísico. É mais a expressão conceitual de uma experiência
coletiva que soube sobreviver na história de seus cismas e crises, atualizando
seus elementos, criando suas categorias e inovando em suas expressões.
Forma Cultural Negro-Africana, Cultura Negra e Cosmovisão de Matriz Africana
são os conceitos pilares que sustentam a argumentação desenvolvida neste
livro.
 
A forma cultural negro-africana atualizada pelos afro-brasileiros produziu
sistemas filosóficos complexos. Esse sistema de pensamento, obviamente, não
é único no Brasil muito menos na África. Com o intuito de análise, exporemos
uma rápida apresentação da filosofia banto, a fim de exemplificar como uma
forma cultural pode produzir uma filosofia original que, por sua vez, fundamenta
conceitualmente essa forma cultural. O fato de expormos a forma cultural a
partir de uma divindade yorubá (Exu)[48], e apresentarmos uma filosofia
localizada na região banto[49], não deve espantar o leitor. Busca-se, aqui,
estrategicamente, apresentar elementos africanos em seu conjunto e não
privilegiar apenas a cultura nagô (yorubá) ou angola (banto) que foram os dois
principais povos africanos que influenciaram a formação da cultura brasileira.
 
A Filosofia Banto
 
            A filosofia banto é uma filosofia da energia. Focada mais no movimento
que na racionalidade, os bantos dão ênfase ao movimento do ser, não ao ser
metafísico. A existência é o movimento da Força Vital. O que constitui o mundo
são energias. A matéria não é nada em si mesma senão o acúmulo de energia.
É uma espécie de metafísica da energia a filosofia banto. Placide Tempels[50],
missionário belga na República do Zaire, afirmava que o pensamento banto é
constituído por “uma filosofia fundamentada numa metafísica dinâmica e numa
espécie de vitalismo que fornecem a chave  da concepção do mundo”
(TEMPELS apud LOPES, 1988, p. 122) para esta população cultural.
Pensar a filosofia banto em termos de uma metafísica dinâmica é pensar
de outro modo que a racionalidade construída pela filosofia européia - da
clássica à  moderna. Não é preocupação para o pensamento banto o problema
da origem, da finalidade, da essência, do ser. Utilizando-se dos termos da
própria filosofia européia, pode-se dizer que a filosofia banto é mais uma
ontologia dinâmica que uma metafísica do ser. Na verdade a noção de “Ser”
não tem correlato na cultura banto. Lá fala-se em força. De acordo com o
missionário: “a noção de força toma o lugar da noção de ser,  e assim, toda a
cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa  força e da luta contra a
sua perda ou diminuição” (TEMPELS apud LOPES, 1988, p.122).
Para os bantos a realidade última das coisas é a Força-Vital que anima a
vida. Ela é a própria vida. Por isso o critério primevo e o valor supremo é a
Força-Vital. Assim, o  imperativo fundamental da filosofia banto é a afirmação
categórica de que todo ser é força.
 Em qualquer circunstância devemos aumentar a Força Vital. Tudo que
aumenta a Força Vital é benéfico para a comunidade, promovendo seu bem-
estar. O pensamento banto não é um pensamento de punição e restrição, de
culpa e de escassez; ao contrário, é uma filosofia da abundância e da
generosidade, da liberdade e da comunhão. O único mal é a diminuição da
Força-Vital.
Os adivinhos e sacerdotes conhecem as palavras e os ritos que
aumentam e reforçam a vida. De certa forma, eles são os “manipuladores” da
energia vital presente no mundo. Munidos de sabedoria ancestral, os
sacerdotes utilizam-se do princípio máximo da filosofia banto que é a
reprodução da vida. Já os feiticeiros, que também conhecem os ritos de
manipulação da energia vital, utilizam-se desse conhecimento para tirar
proveito próprio, esquecendo-se da comunidade. Utilizar a Força Vital em
benefício próprio é diminuir a Força Vital, posto que ela é um fenômeno
eminentemente social. Por isso os feiticeiros são afastados da comunidade e
passam a ocupar lugares ermos, uma vez que não aceitam as regras
comunitárias ditadas pela sociedade. Se seu trabalho beneficia apenas a si
mesmo, viverá consigo mesmo, em solidão, isolado da convívio social.
A relação sexual é um ato de reprodução da vida. Talvez por isso o vigor
sexual do homem e da mulher seja tão festejado. No sexo está presente uma
fração da força que faz crescer a vida, daí a fertilidade ser muito valorizada
entre os bantos.
Morrer é diminuição da Força. A morte é indesejada pois ela seria a
interrupção da Força Vital. No entanto, os ritos funerários funcionam como rito
de permanência e não de passagem, como dissemos anteriormente. Quando
morre um membro da comunidade, sua energia vital pode ser reconstituída
através do funeral ritualizado que tem a função de transformar a energia vital
deste indivíduo em Força Vital para a comunidade. A energia transmuta-se do
âmbito pessoal para a esfera social. A morte é apenas uma etapa do círculo da
vida. Vida e morte sucedem-se num movimento contínuo de circulação da
Força Vital. Vida e morte são etapas de perda e restituição da energia que
anima o universo. O pensamento banto busca compreender e experimentar
essa movimentação da vida. Por isso, os ritos funerários não enterram
defuntos, mas geram ancestrais. O nascimento de um ancestral é um aumento
qualitativo de Força Vital no mundo. Os rituais manipulam a Força Vital numa
relação de troca contínua. O sacrifício de animais, a utilização de folhas, o uso
dos minerais são elementos simbólicos constantemente ofertados porque
plenos de energia vital. Um pacto de restituição e promoção da vida foi selado
entre os ancestrais e seus descendentes.  Vida é movimento. Para que haja
movimento é preciso haver troca. Os sacrifícios e oferendas são as trocas
essenciais para a restituição da energia vital. As trocas simbólicas são
ritualmente controladas para que seus efeitos sejam pragmaticamente sentidos
pela comunidade.
A Força Vital não é um atributo exclusivo dos humanos. Ela é a fonte de
toda a vida. O universo africano, como vimos dizendo, é integrado e seus
elementos são interdependentes. Para que a integração exerça o seu papel de
conectar os seres, é necessário que todos os seres estejam animados pela
Força Vital. Ou seja, a concatenação dos seres no movimento de integração é
já o que chamamos de energia fundamental da vida: a Força Vital.
Na cultura banto, da região do antigo Reino do Congo, a Força Vital é
um elemento tão integrado no cotidiano do africano que seu nome recebe as
insígneas desta força. Seu primeiro nome lhe dá a identidade social, isto é, em
seu primeiro nome identificamos sua linhagem, qual sua aldeia de origem etc.;
do segundo nome em diante ele será identificado pelos feitos relevantes que
fez na vida, ou seja, quando ele passar pelo rito de iniciação, quando fizer uma
boa caça, quando se casar, se se tornar chefe do conselho de anciãos, se
vencer uma disputa esportiva... terá incorporado em sua identidade (seu nome)
os feitos que o destacam no meio social. O primeiro nome é indicativo de sua
identidade inata, fornecida pela comunidade, sem que ele tenha feito esforço
algum para isso. O primeiro nome é, por assim dizer, o recebimento da dádiva
da Força Vital. Do segundo nome em diante será acrescentado em sua
identidade tudo o que ele fez para aumentar a Força Vital recebida da
comunidade e do Préexistente. O indivíduo só terá outros nomes se realizar
atividades que aumentem a energia vital do grupo e, consequentemente, de si
mesmo.
 
            Com esse esboço da filosofia banto, podemos avançar na direção de
caracterizar os principais elementos estruturantes das sociedades banto. 
Esses elementos estruturantes, portadores de uma cosmovisão africana,
permaneceu entre os afrodescendentes no Brasil. Em síntese, pode-se afirmar
que as sociedades banto estruturam-se de acordo com o que Pe. Altuna[51]
chamou de PIRÂMIDE VITAL.
 
            A Pirâmide Vital dos bantos segue a seguinte ordenação:
 
 
 
 
 
Ser Supremo: Nzambi, Zambiapungo, Mulunga, Unkululu;
Fundadores do primeiro clã humano;
 Fundadores dos grupos primitivos;
 Heróis civilizadores;
 Espíritos tutelares e gênios da natureza;
 Antepassados qualificados;
 Antepassados simples;
 Humanos vivos.
 
A Pirâmide Vital dos povos bantos privilegia os antepassados. O culto
aos ancestrais, como estamos insistindo, é a base da cosmovisão de mundo
africana. Os bantos encontram em sua estrutura social, tanto produtiva quanto
cultural, a presença marcante dos antepassados e do culto aos ancestrais.
É bom notar que  na Pirâmide Vital aparece vários itens que se relaciona
somente com os antepassados, e não com os ancestrais. Como em todas as
religiões africanas consideradas neste livro, entre os bantos existe sempre o
preexistente, aquele que antecede a criação do mundo. Porém, quanto à
criação do universo temos a impressão de que os bantos não estão muito
preocupados com isso, e sim como esse mundo se estrutura. A estruturação
cosmológica desse mundo está baseada, sobretudo, na figura dos
antepassados - seja na forma dos fundadores do primeiro clã, dos fundadores
dos grupos primitivos, seja na forma dos heróis civilizadores. O respeito e a
repetida referência aos antepassados demonstra como esses povos valorizam
sua cultura e a atuação dos membros que marcaram as comunidades e sua
história.
Existem os antepassados qualificados e os antepassados simples. Os
qualificados são aqueles que conseguiram ascender, por causa de seus feitos
notáveis, a uma condição de divindade, tornando-se ancestrais. Os simples são
aqueles antepassados que se preservaram humanos, porém destacados pelo
empenho em aumentar a Força Vital de suas famílias e comunidade.
A concepção da vida, dentre esses povos, é cíclica. Como vimos, a
morte é a diminuição da Força Vital, mas ao nascer uma criança a restitui. Ao
se realizar um rito funerário, translada-se a energia do defunto para a Força
Vital da comunidade. Diminui a Força no sasa, mas aumenta a energia no
Zamani. Toda essa dinâmica está centrada no culto aos antepassados e aos
ancestrais.
Não apenas os antepassados são referendados na estrutura cultural dos
bantos. Também a natureza é referendada. Os espíritos tutelares e os gênios
da natureza é a própria natureza divinizada. Elementos essenciais para a
sobrevivência do grupo como os rios, as ervas, etc. são divinizados e a eles
são rendidos cultos plenos de oferendas e sacrifícios. O que se convencionou
chamar de animismo é, na verdade, uma forma sofisticada de culto à natureza.
 
Vale lembrar que a população banta veio em maior número para o Brasil
na época da Diáspora Negra. Se sua filosofia ainda não foi bem estudada, se
sua história ainda não foi bem contada, é porque sofreram uma discriminação
racial mais acirrada que qualquer outra etnia no Brasil. Mesmo os adeptos de
terreiros de candomblé ketu ou nagô relegaram as manifestações culturais-
religiosas dos bantos para um segundo plano. Tanto quanto ou mais que o
povo-de-santo das nações de língua yorubá, os intelectuais ligados
organicamente aos terreiros nagôs criaram o que se convencionou chamar de
nagocentrismo. Os bantos foram desvalorizados mesmo entre seus irmãos de
Diáspora. Já é tempo de reconhecer a enorme importância desses povos que,
mesmo inferiorizados e desprestigiados, souberam responder criativamente e
afortunadamente, aos desafios civilizatórios que se lhe apresentaram. Ninguém
mais que os bantos souberam viver os princípios que assentam a cosmovisão
africana, a saber: integração, diversidade e ancestralidade.
 
Integração
 
            Na cosmovisão africana as coisas não apresentam-se segregadas. Não
há um isolamento dos elementos, necessitando de especialistas para conhecer
suas características, independente do contexto em que esses elementos se
encontram. Na visão de mundo africana  tudo está em tudo, isto é, tudo se
complementa. As coisas são classificadas por categorias, por funções. Elas
sempre estão interligadas em um todo. O sistema é, todo ele, operacional.
            A integração possibilita a conjugação das diferenças. A integração na
visão africana supõe um todo orgânico que contempla as diferenças. Não há
diferenças que possibilitam a desagregação do conjunto, do todo orgâncio. O
que há são possibilidades diferenciadas de arranjos sociais, culturais, etc.,
sempre flexíveis, sempre passíveis de novos arranjos... O que há são várias
facetas que compõe uma mesma rostidade (chamaria também de identidade),
um mesmo organismo. Vale o princípio da inclusão!
            Consideraremos muito sumariamentente o caso de integração no que
se refere à doença e à saúde, e no que diz respeito ao meio ambiente. Basta
dizer que quanto às questões relacionadas com a vida e com a morte, com a
saúde e com a doença, a visão do povo-de-santo é mais sistêmica e harmônica
do que a visão ocidental. Os fenômenos de doença/saúde não estão
dissociados de todo um contexto social. As doenças não são apenas anomia
do corpo, mas são também desequilíbrios da realidade social, política,
econômica e cultural. A relação com as divindades responsáveis pelo manejo
de ervas que curam (principalmente Obaluaiê ou Omolu) mostram bem essa
relação: se você reverencia a divindade, mostrando respeito e temor, você é
agraciado por seus poderes; mas se você mostra desprezo e descaso para
este orixá, sofrerá as agruras do infortúnio advindos da ira do orixá. Note que o
plano da doença/saúde não está reificado apenas nas relações com o próprio
corpo, mas extrapola este plano e interage com os outros constitutivos de seu
horizonte cultural.
            A questão do meio ambiente, da ecologia, não é um problema que está
ligado apenas ao ambiente natural. O problema ecológico atinge todas as
esferas da vida humana e de seu mundo. Com efeito há autores que falam em
uma ecologia ambiental, mental e social[52]. Ou seja, a esfera da ecologia toca
transversalmente todas as outras esferas do planeta, e como elas estão
interligadas, seus efeitos se comunicam, seja positiva ou negativamente.
            É importante ressaltar que quando falamos em integração não é
possível falar de uma espécie de elevação de um elemento como o mais
importante. Não é porque Ogun abre o xirê que ele é o mais importante, isto é,
não é porque Ogun está relacionado com as atividades da guerra, da
metalurgia, da tecnologia, que esses elementos são os mais importantes. Tudo
é importante na medida em que tudo está interligado com o todo. O conjunto é
importante e não o particular. O organismo é importante, e não a parte. Melhor
dizendo, a parte é importante justamente e na medida em que ela é integrante
do todo.
 
            Diversidade
 
            A integração supõe uma abertura, uma flexibilidade,  uma vez que seu
modo operacional é dinâmico e não estático. O sistema integrado das religiões
de matrizes africanas está o tempo todo se remodelando, o que evidencia seu
caráter flexível e diversificado.
            A diversidade é, com efeito,  aquela que permite que a cosmovisão
africana tenha as características de ser pluriforme, polifônica e aberta. A
diversidade é o grande conceito que reúne a pluralidade das representações.
Neste sentido é interessante perceber como no candomblé há espaço para
todos: homens, mulheres – e as mulheres ocupam papéis de protagonistas em
sua estrutura religiosa -, homossexuais, brancos, negros, enfim, todas as
raças, ricos, pobres etc. No terreiro de candomblé há espaço para todo mundo,
não importando sua posição social, racial, econômica, política, etc. É evidente,
porém, que toda essa diversidade encontra lugar no candomblé porque sua
estrutura orgânica contempla todos esses aspectos, mas não se reduz a eles,
pois o candomblé tem sua própria maneira de organização. O candomblé inclui
a diferença e promove a diversidade dentro da lógica do lugar próprio – por
isso mantém sua identidade e seus traços diacrítios. A aceitação da diferença
não transforma o candomblé num espaço anárquico, mas num espaço de
inclusão.
            É a diversidade que permite uma ética da diferença, um sistema
integrado. Ela instaura uma organização diferenciada que contempla uma
constante mutação. Essa mutação, porém, não é desterritorializada. Ela está
baseada em princípios bem estruturados, como o da ancestralidade por
exemplo.
            Em um sistema integrado não é a homogeneidade que dá a tônica da
organização social, mas a heterogeneidade. Percebe-se, assim, que o distinto
é contemplado; o diferente é desejado e não apenas aceito.
            A diversidade é mãe da flexibilidade. É neste sentido que podemos
dizer que a diversidade possui uma grande capacidade de adaptação e de re-
significação, características que qualquer estudioso das religiões de matrizes
africanas identifica facilmente.
 
            Tradição (Ancestralidade)
 
            De nada adiantaria falar em integração, em identidade se não
falássemos em ancestralidade.
            A ancestralidade é o que estrutura a visão de mundo presente nas
religiões de matrizes africanas. Sem o princípio de senioridade a organização
social das comunidades de terreiro estariam esfaceladas. Sem a
ancestralidade não  haveria tradição. Sem a tradição não haveria identidade.
            A preocupação com a identidade e a legitimidade é uma das
características mais notórias das religiões de matrizes africanas, não apenas
para caracterizar o povo-de-santo, mas sobretudo para manter a originalidade
da tradição. É aqui que a autenticidade exige a tradição.
            Essa autenticidade, no entanto, não significa a reificação da essência.
Esta originalidade não significa unidade fechada de interpretação. Esta
identidade não é uma totalidade arbitrária. A tradição africana atualizada pelos
afrodescendentes é autêntica na medida em que fiel à sua forma cultural,
original na medida em advém da experiência (ética) coletiva dos africanos. A
tradição cria identidades pois ela é o manancial dos valores civilizatórios e dos
princípios éticos (filosóficos) que singularizam a história dos afrodescendentes.
A legitimidade da tradição africana dá-se, exatamente, por ela não ser uma
memória fossilizada no passado, mas uma experiência atualizada no calor das
lutas dos afrodescendentes.
            A tradição africana tem sua própria lógica. Tem sua forma cultural que
lhe dá desenho e contorno. Com efeito, a tradição não existe sem a
ancestralidade. Note-se o caráter integrativo desta cadeia de raciocínio. A
ancestralidade, por sua vez, não é a afirmação do eu, egóico, narcisista; na
ancestralidade o que conta é a história de um povo, o arsenal simbólico
adquirido por este durante os percursos do tempo. Quem conta a história do eu
é sua tradição. A história do eu está vinculada à história de seus ancestrais. O
eu faz parte de um todo e é importante justamente na medida em que compõe
esse todo, e não o contrário. É por isso que podemos dizer que sem
ancestralidade não há identidade. A identidade é encontrada na tradição e não
no olhar narcisista.
            A construção da tradição é coletiva. Não importa se esta construção é
cultural, isto é, que ela sofre modificações ao longo da história. O que importa é
que ela é capaz de identificar os elementos que congregam e caracterizam
uma certa visão de mundo. A cosmovisão africana é resultado da construção
da ancestralidade pelo povo que construiu as matrizes das religiões africanas.
           
            A cosmovisão de matriz africana é capaz de engendrar modelos
alternativos ao CMI na medida em que concebe sob a luz de sua própria
cultura as relações entre os seres. Já a filosofia banto sustentava que a força
vital é a energia que movimenta a realidade. Aumentar a força vital é saúde,
prosperidade, fertilidade, ética etc. Diminuir a força vital é doença, corrupção,
miséria, guerra. Sendo energia a matéria que compõe as artérias do real, as
interações entre os seres no tecido social são mais dinâmicas e baseadas em
relações de troca, dádiva e reciprocidade. Historicamente vivenciada na
trajetória civilizatória dos afrodescendentes a cosmovisão africana é
portadora/reveladora de uma experiência ética concretamente experimentada
que pode ser, destarte, universalizada enquanto contraponto ao sistema de
exclusão capitalista.
Geradora de princípios como o da diversidade e da inclusão,  imbuída de
concepções singulares sobre o tempo, o universo, a palavra, a política
(socialização) e a economia (produção), a cosmovisão africana encontra no
princípio  da ancestralidade sua concatenação interna e a força de sua
expressão externa, manifesta na tradição dos afrodescendentes. A atualização
de sua forma cultural através das diversas manifestações de matriz africana no
Brasil, por sua vez, permite-nos entrar no debate sob a identidade nacional e
sobre a globalização, munindo-nos de uma experiência civilizatória que
colocando-se a-si-mesma-como-valiosa é capaz de dialogar critica e
criativamente na perspectiva de colocar em crise o sistema de acumulação do
capital (capitalismo) e apontar caminhos alternativos baseados em realizações
efetivas da população afrodescendente no Brasil e no mundo.
III.                CULTURA BRASILEIRA E AFRODESCENDÊNCIA:  Sobre o Jogo
das Identidades e a Política da Africanidade no Brasil
 
 
Não há prática humana que não seja precedida por um modo de
compreensão da realidade. Toda práxis é precedida por uma determinada visão
de mundo. A visão de mundo que temos informa  nossa prática política,
econômica, cultural e social. A história das civilizações ocidentais consolidaram
o paradigma da representação, dando ênfase à racionalidade, valorizando a
análise e a síntese para a compreensão da realidade, banindo para as
margens as dimensões afetivas, perceptivas e energéticas. A Filosofia da
Libertação, que surgiu nos anos 60 no bojo da filosofia latino-americana, se
desenvolveu enquanto reflexão teórica nos anos 70 e 80. Refletindo
filosoficamente os problemas da América Latina (AL), esteve, desde o seu
nascedouro, comprometida com as lutas populares, não apenas criticando a
realidade de opressão, mas propondo caminhos de libertação. Como filosofia,
não toma para si o papel do político, mas pensa a política através da categoria:
libertação. Como movimento organizado de intelectuais, defendeu suas teses
ao longo da história da AL, ampliando sua reflexão para o território do humano
e não apenas do latino-americano. É filosofia, por isso pensa o universal. Mas
esse universal emerge desde um solo, um lugar: a AL. É desde os latino-
americanos que pensamos uma geo-política (DUSSEL,1974,1977,1993,2000;
ROIG,1993) e uma geo-cultura (KUSCH,1953,1975, 1978;  ZEA, 1953, 1970,
1971, 1974). É desde os movimentos sociais organizados em nosso solo e em
nossa cultura, que pretendemos fazer uma reflexão filosófica comprometida
com a ética a respeito dos movimentos sociais populares no Brasil. É desde o
Movimento Negro e as comunidades de candomblé que postulamos uma
cosmovisão africana e seu modelo sócio-político-cultural.
 
Movimentos Sociais Populares, Práxis e Subjetividade[53]
 
Os Movimentos Sociais Populares – MSPs- também se utilizam do modo
predominante de análise do real, reificando a racionalidade instrumental e
técnica, não dando margem, na compreensão da realidade, para a dimensão
estética e subjetiva que permeia qualquer ação humana. Por isso postulamos
que uma abordagem da história deve levar em conta os aspectos subjetivos-
estéticos, superar a lógica da significação, ultrapassar o paradigma da
representação e adentrar na lógica do sentido[54].
A categoria práxis constitui-se no cerne da filosofia da história. Ao
abordarmos os problemas a ela referidos, precisamos nos questionar em que
medida nossos conceitos são realmente satisfatórios para compreender a
complexidade histórica e mediar uma efetiva ação transformadora. Se
analisando a história nos deparamos com a reflexão sobre estruturas
duradouras por largos períodos e conjunturas em constante processo de
modificação, cabe entretanto destacar que as diversas dimensões de
subjetividade envolvidas nestes processos não se reduzem àquilo que
objetivamente podemos avaliar. Mais que isso, nos complexos processos
contemporâneos em que intervenções semióticas sobre o inconsciente
produzem tendências históricas - não apenas modas ou movimentos de
consumos, mas adesões políticas e construções de hegemonias ativas - cabe
investigar tais elementos subjetivos dificilmente captáveis pelas metodologias
históricas desenvolvidas até recentemente.  Perceber como as subjetividades
são modelizadas em suas dinâmicas e como as singularidades podem emergir
é reconstruir a categoria práxis para que seja potente o bastante a fim de
elucidar os complexos movimentos históricos contemporâneos no Brasil e no
mundo, sobretudo aqueles relacionados à experiência dos africanos e seus
descendentes.
Partimos do pressuposto que a práxis integra dialeticamente a teoria e a
prática em uma ação efetivadora, portanto histórica, que possibilita a realização
de fins premeditados.  Contudo, a práxis integra muito mais que isso. Envolve
também dimensões de subjetividade como o desejo, paixões, angústias e
sentimentos inerentes às ações humanas. Compreendê-la significa também
desvendar os inúmeros elementos agenciadores de tais intensidades que, por
sua vez,  promovem a elaboração de teorias, conjuntos de representações
interpretativas e ações históricas. O modo de pensar a prática  não pode
desconsiderar tais vetores sobre o risco de falsear sua explicitação, centrando-
se em aspectos parciais.  Despreocupados com a elaboração de leis que
desvendem regularidades substantivas  nos processos históricos, interessa-nos
compreender como as tendências históricas vão se constituindo em um
emaranhado de agenciamentos mediados por semióticas que passam a ser
modelizadas, de modo cada vez mais intenso pelos códigos do capital - que
modeliza inclusive grande parte dos códigos religiosos, éticos, estéticos e
afetivos. Interessa-nos, pois, entender como intensidades subjetivas são
capturadas sob códigos variados confluindo na emergência de complexos
processos históricos que possuem inúmeros sentidos somente compreensíveis 
sob uma metodologia capaz de identificar conjuntos de transversalidades que
articulam intensidades subjetivas em movimentos coletivos.
A práxis que visa realizar a cidadania somente pode resultar de um
movimento dinâmico que possa compreender e transformar os códigos e os
princípios da sociedade capitalista em que se produz mercadorias - objetos
sígnicos: um produto e sua marca, um político e sua imagem -, e subjetividades
produtoras e consumidoras de mercadorias. Com efeito a sociedade capitalista
obedece a um dinâmico movimento de recuperação dos signos subversivos a
ela, o que a reafirma em sua posição dominante (e opressora) diante da
realidade vigente. Tal recuperação que desterritorializa os signos, os esvazia
de seu conteúdo subversivo, capturando as intensidades a eles vinculados no
jogo do acúmulo do capital[55]. Ora,  nosso modo de teorizar  a sociedade no
sentido do exercício de compreensão dos seus mecanismos  não comporta
amplitude e flexibilidade o suficiente para detectar essas recapturas de
tendências históricas sob os códigos capitalistas, fugindo de nossa análise as
dimensões do desejo e da sedução[56], uma vez que são privilegiados, em
nossos métodos, o uso analítico da razão que não a percebe como mediação
de necessidades, paixões e desejos.  Para desvencilharmo-nos dessa
armadilha propomos que o modo de pensar a teoria  e a prática seja
transversal ou composto, ou seja, que leve em conta aspectos afetivos da
dimensão  emocional da subjetividade e os aspectos racionais dessa mesma
subjetividade, abordando-os de maneira teórico-analítica, mas também de
maneira estético-intuitiva, para que nossos signos interpretantes não percam a
complexidade do real e não caiam em configurações binárias.
A teoria e a prática capitalista codifica e sobrecodifica os signos dando-
lhes sentidos alheios a eles próprios visando o seu objetivo de movimento,
expansão e acúmulo de capital. Outras vezes recupera teorias sem alterar-lhes
os códigos, mantendo-as como um subsistema cultural de suporte.  Cabe-nos
usar  uma metodologia que dê conta de efetivar o conceito de práxis - 
movimento dialético que promove uma prática refletida e uma reflexão sobre a
prática - desmascarando as armadilhas capitalistas a partir da compreensão
complexa das modelizações semióticas que efetua; por outra  via, isso só é
possível se nosso movimento teórico tiver flexibilidade e dinâmica suficientes
para desvendar essas recapturas  e subverter  tal apropriação dos signos
realizada como mediação para a expansão e concentração de capital. 
Linguagem e cultura são duas dimensões de uma mesma condição de
pensamento e ação.  A mediação sígnica da construção das identidades  torna-
se instrumento de produção de subjetividade, de territorialização de
intensidades.  Na era dos meios de comunicação de massa a subjetividade é
perpassada por jogos semióticos que resultam em balizamentos do pensar , do
agir econômico, político e interpessoal. Interferindo nos domínios mais íntimos
da vida privada os Meios de Comunicação Social  modulam vontades, desejos,
angustias e anseios, mobilizando diversas formas de práxis e construindo
hegemonias.  Compreender como os signos são capturados nos diversos
imaginários, como operam inversões entre a fantasia e o efetivo, como os
discursos e práticas subversivas são modelizados com a finalidade de manter
estruturas  excludentes é um desafio urgente colocado à filosofia da práxis.
Como produzir códigos subversivos que não permitam capturas semióticas sob
a modelização das linguagens dominantes? Uma vez que todo signo é
polissêmico, será possível tal produção signica incapturável ? Haverá a
possibilidade real de uma cosmovisão africana que se oponha ao CMI e não
seja ressiginificada por ele?
O capitalismo amplia seus domínios configurando-se não apenas como um
sistema de produção de mercadorias, mas também de subjetividades. As
máquinas de produção capitalista  agenciam o desejo das pessoas em função
do acúmulo de capital. Em outras palavras, o sistema produz ou cria uma
realidade virtual que,  mobilizando os desejos e anseios dos indivíduos, os
predispõe ao consumo, à reprodução do capital, assumindo as regras que
apontam para a realização de sua humanidade. Tal processo se dá em
detrimento, contudo, da realidade existente na qual os indivíduos estão
inseridos e na qual sofrem a violência do sistema, a exploração e a
expropriação de seu domínio cultural.
As conseqüências desse processo são a mistificação da realidade e o
aprisionamento do desejo dos indivíduos em função de algo que não os
satisfaz e não os realiza.
Tais processos de subjetivação visam reforçar as estruturas sociais
capitalistas. Os indivíduos tornam-se mais facilmente controlados, são
domesticados por tais estruturas e passam a reproduzir as relações sociais
capitalistas que, por sua vez, viabilizam a reprodução das forças produtivas
capitalistas. 
 
Ética dos Movimentos Sociais Populares
 
A interação com os signos é simultaneamente estética e cognitiva. A
dimensão estética envolve os perceptos - sem os quais seria impossível haver
agenciamentos - mas também os afetos - aquilo que é provocado em nossa
subjetividade passional, desejante, etc. sem os quais não haveria mobilização
do  sujeito.  Deste processo resulta um signo ou representação cognitiva que 
evoca a identidade do objeto e do processo a ele associados.
A dimensão afetiva da práxis é, em geral, desconsiderada pelas análises
políticas. Contudo, desejos e outras intensidades acabam politicamente
aflorando em atitudes que desconsideram os interesses coletivos ao visar
apenas objetivos particulares ou que arrojam pessoas na defesa de objetivos
coletivos em detrimento de interesses particulares.
O pensamento de Leopoldo Sedhar Senghor, tributário da cosmovisão
africana, indica novos conceitos filosóficos para pensar a práxis não apenas
dos afrodescendentes, mas de todos os ativistas dos MSPs. Fundamentando
sua teoria do conhecimento na cultura africana, afirma SENGHOR (apud
AZOMBO MENDA-KOSSO, 1978, p.30):
 
Eis então o negro-africano, o qual simpatiza e se identifica, o qual
morre a si para renascer no outro. Ele não assimila. Ele se assimila.
Ele vive com o outro em simbiose, ele co-nhece o outro... Sujeito e
objeto são, aqui, dialeticamente confrontados no ato mesmo do
conhecimento, que é ato de amor.  “Eu penso, então eu existo”,
escrevia Descartes. A observação já foi feita, pensa-se sempre
alguma coisa. O Negro-Africano poderia dizer: “Eu sinto o Outro, eu
danço o Outro, então eu sou”. Ora, dançar é criar, sobretudo quando
a dança é dança do amor. É este, em todo o caso, o melhor modo
de conhecimento.
 
De acordo com SENGHOR (apud AZOMBO MENDA-KOSSO, 1978, p.
29-42), consideramos que o afetivo é uma característica fundamental do ser
humano e que, desenvolvida adequadamente, possibilita ampliar e qualificar o
resultado dos processos cognitivos. A idéia de assimilar-se ao outro em um
sim-pático movimento de mudança de ambos resulta em uma relação que
produz uma unidade comum ao mesmo tempo que resguarda a singularidade
de cada qual no exercício de sua liberdade.  Este ultrapassamento de uma
identidade singular que se modifica, movida por uma intensidade de
transcendência que encontra no outro humano a possibilidade de seu
renascimento, poderia ser expresso como um desejo de comunhão. Pensamos
que o Desejo de Comunhão pulsa vivamente no seio do ser humano, e que
este desejo é  um fator potencialmente subversivo, agregador, que promove a
interação da subjetividade de pessoas que se agregam em coletivos. Este
movimento afetivo - de comunhão com o outro -  é capaz de gerar uma práxis
comprometida com o coletivo e com o pessoal, na medida em que a
comunhão  é sempre uma relação singular e plural ao mesmo tempo. O Desejo
de Comunhão, efetivando-se  pelo processo de amar ( e de conhecer pelo
amor) agenciaria uma práxis ética que leva ao  encontro do outro.  É um “outro
modo que ser”[57]. É um modo de africanizar-se. É um modelo de vida forjado
pela experiência africana.
Toda práxis possui um telos, uma finalidade. Tanto na vida privada
quanto na pública, a realização histórica de qualquer finalidade envolve
exercícios de poder.  Por trás de toda práxis há algum interesse. As finalidades
que orientam as condutas podem ser aquelas socialmente dominantes, como
podem brotar de modo singular da criatividade humana, sempre relativamente
determinada pelos meios e condições que a tornam viável. A política da
africanidade visa justamente exercer o poder para a promoção de um sistema
de comunhão econômica e inclusão social, baseado na lógica própria de cada
cultura. A finalidade da práxis dos Movimentos Negros e das comunidades de
terreiro é exatamente a realização do bem viver de todos e de cada um. Para
realizar tal política é preciso ser consequente  quanto à práxis que efetuamos.
Cumpre, pois, distinguir uma práxis alienada de uma práxis ética.
A práxis alienada pode configurar-se como práxis de dominação. Deve-
se observar, entretanto, que a palavra dominação sugere coerção, no entanto, 
a sedução dos desejos das pessoas, que por sua vez   mobilizam  suas
práticas, também é um jogo de poder utilizável na práxis de dominação. Neste
caso, o problema é a direção que a sedução lhes dá, pois as ações dos
indivíduos podem ser direcionadas às práticas que os mantenham  cativos das
relações opressoras e alienantes, ou por outro lado, podem orientar a prática
para ações éticas no encontro subversivo das subjetividades maduras, que
desenvolveram adequadamente suas dimensões analíticas e afetivas,
cognitivas e estéticas. Esse é precisamente o caso da práxis ética.
Poderíamos chamar de singularizante a práxis ética, já que ela é
condensadora das subjetividades. Ela diferencia-se da práxis alienada na sua
raiz, ou melhor, no que tem de novo na relação  com o outro, em quem eu
posso me reconhecer  humano, convidado ao infinito ultrapassamento, ao co-
nhecimento como afirma Senghor.
Ainda que abortados pelo poder de massificação da mídia, esses
desejos transcendentes e singularizantes de ultrapassamento, produzidos
culturalmente, estão constantemente presentes. Talvez a própria negação do
desejo  ou do movimento em busca  de sua contínua satisfação na condição do
“ser aqui” promova essa mistificação atual advinda da privação da própria
realização da condição  humana minimamente cidadã.  Por outro lado,  o
sistema se apropria também disso, modelizando tal desejo, revertendo em seu
benefício tais intensidades.
O desejo de ser infinitamente outro, de transcendência, de
ultrapassamento,  que é agenciado em inúmeras linguagens modelizantes -
religiosas, políticas, econômicas, etc. -, sobrevive , entretanto, a toda
modelização, podendo ser reapropriado em outros jogos.  A questão parece ser
como  singularizá-lo e ressignificá-lo, libertando-o desses jogos de linguagens
que o mediatizam em processos de poder dominantes, para agenciar
movimentos coletivos de subversão que redundam em modelos sociais de
inclusão e justiça social, como vislumbramos nos Impérios Africanos (Mali,
Gana e Songai) ou na política da africanidade no Brasil.
Tanto as finalidades desejadas que, invariavelmente, se revestem de
signos, como as intensidades subjetivas que são, ambas,  produzidas
coletivamente,  podem ser subjetivadas singularmente. Distinguir entre modos
éticos e alienantes implica não apenas compreender se o outro é tomado como
mediação do processo que lhe é imposto pelo mesmo, mas entender como os
processos de sedução mobilizam as pessoas a escolherem “livremente”
finalidades que realizam seus interesses particulares e daqueles que a
mobilizam, mas que simultaneamente excluem aos demais do exercício da
cidadania, exclusão essa que não percebem mobilizados nos jogos de
sedução.
 
Subjetividade Subversiva  e Alteridade
 
Alguns agenciamentos provocam subjetivações, desmonte de códigos
éticos e políticos dominantes. Não sendo recapturados nas  lógicas de
dominação, podem molecularizar grupos agregadores de mudança, de
afirmação de diferenças. Tais movimentos podem avançar em perspectivas
éticas ou alienantes.  Quando mobilizados por um desejo alterativo, a irrupção
subversiva tende a produzir utopias coletivas não apenas singularizantes, mas
também  abertas e desejosas de se transformarem a partir de outras
subjetividades que se molecularizem. Quando a identidade do grupo se fecha,
passando a laminar ou territorializar a subjetividade dos novos participantes
que devem assumir os códigos anteriores de maneira inquestionável, então ele
vai perdendo o caráter subversivo, passando a ser conservador.
Assim, o diferente que renega o desejo alterativo não pode fecundar um
movimento molecular; por outro lado, a diferença que não nega o desejo
alterativo, fecunda o movimento e a práxis libertadora. Já o grupo que subverte
o código dominante, mas estabelece uma nova identidade territorializadora,
torna-se conservador e busca negar  o diferente  afirmando a identidade
alienante do coletivo.
Se a subversão, portanto, parte do desejo  alterativo - desejante do outro
em sua diferença - é preciso avançar em direção ao desejo de comunhão -
afirmação desejante da identificação (sem laminação) com o outro em um
movimento de ultrapassamento molecular no “ser aqui”.  Desejo de comunhão
como sentido das revoluções moleculares e ponte transversal para a efetivação
cotidiana da revolução molar.
A práxis resulta de um movimento cultural. Nenhuma linguagem ou
objetivo escapam de determinações históricas. Determinação não implica fim
inexorável, mas qualidades essenciais que o contexto impregna na ação. A
subjetividade é um produto tecido no seio das relações de poder em todas as
esferas de convivência.  Em cada ação entrelaçam-se o pessoal e o coletivo.
No Capitalismo o movimento de laminação de subjetividade é cada vez maior. 
Os espaços são quase todos recuperados sob a territorialidade dominante dos
valores de troca.
De outra parte, os movimentos coletivos que visam promover
transformações na ordem vigente em cada situação compõem um processo
envolvente de aglutinação de subjetividades particulares que podem resultar
em identidades coletivas duradouras como desagregar-se atingidos os
objetivos privados.
Para compreender a práxis de um movimento social ou de um grupo
étnico é necessário compreender como o coletivo recria a subjetividade
pessoal, singularizando-a ou laminando-a, isto é, possibilitando a vazão de
fluxos de desejo desterritorializados sob as linguagens até então dominantes
que são agora modelizadas por aquele grupo, possibilitando revoluções
moleculares ou criando novos códigos que se impõem sobre o coletivo,
promovendo novos processos de alienação militante na reprodução de normas
e códigos que subvertem a ordem vigente,  mas constituem uma outra ordem
similarmente laminadora.
Concordes com o pensamento africano de SENGHOR (apud AZOMBO
MENDA-KOSSO, 1978, p.32),  pensamos que é preciso ir em direção ao outro.
Ir ao seu encontro, mas não apenas desejando-lhe a diferença, mas
desejando-lhe a comunhão, um movimento de assimilação coletiva, de
renovação de subjetividades, que mantém a liberdade e a singularidade de
todos. Assim, eu transformo a mim mesmo para renascer no outro. Deixo de
ser um ser sozinho (individual) para ser um ser comunitário (social). Essa
mudança do eu para nascer como outro afirma a minha identidade e não a
dissolve, posto que é a subjetividade madura que pode transformar-se de uma
flor para um fruto. Em outras palavras,  só quando há vazão para fluir a
subjetividade é que ela aflora em sua vivacidade. Tal  movimento,
singularizador sem dúvida,  não cabe em si mesmo, pois o homem maduro é
um ser social e não egocêntrico. O homem maduro deseja o encontro com o
outro em um movimento de renascimento.   Aprender é um ato de amor,
porque conhecer é um ato amoroso. Amor é o ato do encontro. Uma das
formas de amor é a alegria da comunhão, é  o sentimento da participação no
coletivo, de ser amado.  É o sentido da própria vida, fonte do movimento do eu
ao outro, do indivíduo ao social, do particular ao coletivo.
Contudo, os indivíduos se relacionam com o coletivo também por
inúmeros interesses. Isto porque sobreviver é viver no mundo. Viver no mundo
é estabelecer inúmeras relações por inúmeros interesses, que são mediações
necessárias a esta própria sobrevivência. O sentido fundamental da vida para o
homem maduro, entretanto,  é amar e ser amado. Assim, o amor é a
necessidade fundamental, o desejo a partir do qual o homem maduro
reconstrói sua utopia. O entrelaçamento do indivíduo com o coletivo, na
perspectiva da comunhão utópica e transversalmente real, tira a ética do
domínio do privado e a política do domínio  coletivo, afirmando uma ética na
política e uma política na vida cotidiana  (micro-política).
Como  a práxis é mediada por signos de libertação e como eles também
são modelizados pelas linguagens dominantes, os participantes dos
movimentos podem ser afetados por essas comunicações; há, aqui, uma
disputa simbólica não apenas de destruição de identidades, mas de captura de
devires agenciados a novas tendências históricas.
 O sistema sempre captura os signos  que são subversivos, destruindo
seus significados moleculares e sobrecodificando-os (ou modelizando-os) para
a interação de sua própria rede de significações com o objetivo de direcionar,
via sedução, os desejos dos indivíduos na direção que lhes convêm.
É preciso, portanto, que possamos pensar se é possível e como produzir
signos não facilmente capturáveis pelo sistema capitalista.  Não se trata
apenas de produzir novos signos - posto que eles podem ser sobrecodificados
pelo sistema - e sim de lhes imprimir uma dinâmica capaz de livrar-se da
captura de si mesmo, e ainda, subverter os próprios signos dominantes.  Mas o
que não pode ser capturável  se os signos são polissêmicos?
A lógica capitalista é uma lógica acumulativa que visa a expansão de
seus próprios limites (uma lógica egocêntrica), expandindo seu domínio
coercitivo-sedutor sobre os indivíduos das sociedades.  Contra essa lógica
egocêntrica, individualista,   propomos uma lógica transversal ou composta.
Trata-se de uma lógica que supõe a subjetividade madura, o desejo de
comunhão, que funda uma outra sociabilidade (não egocêntrica).  Não
propomos esta outra sociabilidade apenas como proposta escatológica;
primamos por experiências histórias – como a dos afrodescendentes – que
foram capazes de gerir, desde o princípio da inclusão e da diversidade,
sistemas sociais dinamizados pelo desejo de comunhão e pelo desejo
alterativo.
Outrossim, pensamos que não é possível capturar o infinito desejo de
ultrapassamento humano - posto que é infinito - e sendo assim, o desejo de
comunhão também não pode ser recapturável  enquanto se recria
continuamente.   Noutras palavras, o que afirmamos é que as intensidades de 
transcendência - entendida aqui como mobilizações da subjetividade madura
que se transforma a si mesma para ir ao encontro do outro - não são
capturáveis posto que são singulares a cada  ser humano (ainda que sejam
uma necessidade cultural), embora possam ser sobrecodificadas. Ocorre,
porém, que a subjetividade madura, ou a maturidade subjetivada  em
movimentos moleculares cotidianos não se deixa capturar pelo egocentrismo
dos valores e artimanhas da semiótica capitalista.
 
Sob a égide de um novo paradigma: o ético-estético, vislumbra-se que
toda ação tem um móbile, e que este móbile tem como agente um desejo. A
relação que temos com a realidade é simultaneamente estética e cognitiva, o
que implica em dizer que os perceptos, os afectos e nosso campo energético
deve ser igualmente contemplados com o do cognitivo na análise do real.
Dessa forma, indicamos que o móbile da práxis dos agentes dos movimentos
sociais populares e da experiência dos afrodescendentes é o Desejo Alterativo
e o Desejo de Ultrapassamento. Desejos que articulados pela lógica da
diferença, não apenas respeita a diferença do outro, mas a deseja. O critério
passa a ser a inclusão e não a exclusão. A solidariedade e não o egocentrismo.
Essa fenomenologia dos desejos nos dá a possibilidades de lidar com as
semióticas do capital de maneira a não reificar seus signos de dominância e,
pelo contrário, desvendar a armadilha dos sistemas únicos de referência, que
se apresentam como o equivalente geral para qualquer significação; de outro
lado, pode-se demonstrar que existem vários regimes significantes, e que
aqueles que estão ligados à práxis dos movimentos sociais populares estão
impregnados dos signos que levam a ações de solidariedade, de comunhão e
ultrapassamento, no sentido da realização da cidadania de cada um e de todos
nós.
 
A práxis dos afrodescendentes, envolvidos em movimentos negros,
encantados pelo fascínio dos candomblés, acaba por produzir subjetividades
autoreferentes porque celebram sua identidade a partir da cosmovisão africana
ressignificada no Brasil. Essa identidade celebrada é ao mesmo tempo uma
arma ideológica na disputa pelo poder, e uma disputa política pela
universalização de seus valores civilizatórios.  Os valores civilizatórios negro-
africanos foram gestados no ventre da forma cultural africana. A forma cultural
africana é já uma ética. A ética é uma atitude e, por isso mesmo, relê a história
dos afrosdescendentes sob a ótica de sua cultura, por nós definida e defendida
como uma cultura da ética.
Os valores gerados por essa cultura foram o da interação, diversidade e
ancestralidade. Os três princípios, extraídos da experiência histórica dos três
Grandes Impérios Africanos e das comunidades-de-terreiro, revelam, em
conjunto, a face de Deus. Olodumare, segundo a tradição africana, é então a
existência na diversidade, a diversidade na integração, a diversidade e a
integração regidas sob a lógica da ancestralidade. Ele é a alteridade infinita,
posto que diversidade sem fim. Alteridade suprema, visto que nunca totalmente
revelada. Ele não é uma abstração, mas um fundamento. No candomblé o
fundamento não é conceitual; é prático. O fundamento não é uma categoria, é
vida. Vida é movimento. Vento, trovão, raios, folha, pedras, metal e água são o
corpo dos orixás. A natureza é os orixás. Os orixás são a natureza. Eles
garantem o princípio da integração porque são integrados. É a partir da
experiência dos orixás que os afrodescendentes revigoram o princípio da
integração, criando uma cultura de síntese exatamente porque sua cosmovisão
informa que a existência só é possível se a diversidade não for totalidades
relativas, mas unidades integradas. A unidade não é uma essência. A
essência, por assim dizer, é a Força Vital que, por ser energia, jamais é igual a
si mesma – gerando, por isso mesmo, a diversidade. O princípio, por ser
princípio, permanece: gerar e manter a vida. As formas pelas quais a vida será
promovida e gestada dependerá do contexto de cada grupo. Cultura não é um
conceito. É uma experiência. A experiência dos afrodescendentes tem gerado
subjetividades éticas e mobilizado desejos alterativos e de comunhão[58].
A integração permite a unidade do cosmos – cosmovisão. A diversidade
permite a expressão das diferenças – multiplicação. A ancestralidade permite a
reprodução da experiência – tradição. Os princípios da experiência africana
alteram a experiência no mundo. Comover é a finalidade. Comoção é o verbo
da transformação em ação. Comover é verbo que se conjuga em comunhão. A
natureza nos comove, a relação com a alteridade nos co-move, move-nos a um
compromisso ético com a vida. A ética é a pragmática africana. A cosmovisão é
a cosmogonia, comover é uma ontologia e ancestralidade a cosmologia. A
cosmogonia não narra a origem dos deuses, mas a unidade dos princípios do
mundo. A comoção é uma ontologia porque a finalidade da ética é a mudança
pragmática. A comoção é uma práxis. A ancestralidade é cosmologia porque é
a lógica que engendra a práxis ética dentro da unidade dos cosmos. A
cosmovisão é um princípio filosófico porque fundamenta o sentido; comover é
um princípio prático porque a ética é um acontecimento da experiência; a
ancestralidade é o princípio lógico, porque engendra a unidade e a ética,
porque dá sentido à diversidade e à experiência.
A identidade negra foi assim colorida e repintada nas cores da tradição
afrobrasileira. Identidade que se afirma como projeto político e como
construção cultural. Identidade que é ao mesmo tempo resgate e criação.
Ipseidade e alteridade. A contínua construção da identidade afrodescendente é
uma necessidade da experiência da forma cultural afro-brasileira. Mas, a
identidade, é um terreno pantanoso e cheio de armadilhas. A mestiçagem, foi
uma das artimanhas de dissimulação da identidade negra no Brasil.
 
            O Mito da Mestiçagem
 
            É preciso pensar a identidade brasileira desde os atores envolvidos na
complexa trama do tecido identitário brasileiro. Pensar a identidade nacional é
pensar o híbrido. Não há raças puras, como não há essência cultural. Pensar,
desde a práxis dos movimentos populares, o cadinho de etnias que teceram o
que chamamos de identidade nacional é um desafio enfrentado por poucos
intelectuais, e que, modestamente, pretendemos efetivar. Os movimentos
sociais populares, mormente o movimento negro, tem se esmerado para
compreender a trama política implícita no discurso nacional sobre a identidade
brasileira. Como vimos insistindo, não é suficiente fazer análises racionais da
situação brasileira. Para muito além, é preciso considerar os aspectos estéticos
e políticos. Para se entender a identidade nacional, é necessário, antes,
compreender a dinâmica política na qual ela se define e se recria
continuamente. Os argumentos biológicos sobre pureza racial há muito foram
superados. Comecemos, então, pela ideologia da mestiçagem, ou, em outros
termos, pela  realidade sociológica do hibridismo étnico no Brasil.
A mestiçagem sempre fora um tema tratado ideologicamente. As variáveis de
sua discussão sempre passou pelo crivo da ideologia. É assim que desde a
Antiguidade a mestiçagem é um tema fundamental para compreender as
representações que os homens fazem da alteridade e determinam, para este
outro, representações sociais que favoreçam ou desfavoreçam a situação
social do representado. O jogo de representações em torno da mestiçagem é
só uma das matizes dos jogos de identidade que foram travados na história
humana.
De fato a identidade é uma representação social determinante nas
relações travadas entre os Homens e nas suas relações com o Meio Ambiente.
O conjunto de representações associadas à identidade geralmente são as
mesmas que influenciam no jogo das representações políticas e,
consequentemente, nos móbiles e normatizadores das relações sociais, como
o desejo e a ética/moral.
O desejo como força energética, como libido, como energia não é em si
mesmo ideológico, mas pode ser ideologizado a partir das significações que a
ele são dados nas relações sociais determinadas. Assim o desejo pode ser
mobilizado ideologicamente para a reificação de representações sociais que
favorecem indivíduos ou grupos de indivíduos. Dessa forma pode-se entender,
por exemplo, tanto a atração incontinente dos europeus brancos aos negros
africanos e, principalmente, a repulsa dos mesmos brancos para com os
mesmos negros. Os desejos que aí estão em voga são mobilizados não de
acordo com a lógica própria do desejo, mas a partir das representações
ideológicas que são construídas a respeito da alteridade.
Da mesma forma a ética – princípios norteadores das ações coletivas –
pode ser significada pelas representações sociais/ideologias. A ética não é um
conjunto de princípios normativos estanques no tempo e no espaço. Pelo
contrário, ela é o próprio tecido das relações travadas entre indivíduos no
tempo e no espaço.  Como as relações são sempre mediatizadas por
representações construídas a priori ou a posteriori, a ética de um grupo é a
expressão mais significativa das representações construídas coletivamente.
Logo, não existe ética sem ideologia, como não existe a possibilidade de um
desejo que são seja mediatizado por representações. Esta é a matiz de toda a
discussão a respeito da identidade, da mestiçagem (identidades misturadas) e
da ética e moral delas consequentes.
A mestiçagem, portanto, não é nem um fato biológico, nem uma vontade
divina. Ela é uma representação das identidades historicamente construídas.
Tais identidades foram construídas ao longo do tempo e da diversidade de
espaços atendendo interesses diferentes, nem sempre coerentes e sempre e
sempre parciais. Para se compreender as nuances de tal jogo de
representações sociais é mister entender, não a especificidade de cada uma
das matizes da discussão sobre a mestiçagem, mas a(s) cosmovisão (ões) que
deu-lhe a possibilidade da existência. Trata-se, portanto, e em primeiro lugar,
de traçar as características gerais desta cosmovisão a fim de não se perder na
diversidade infinita das matizes culturais das identidades raciais.
A cosmovisão que sustenta a ideologia da mestiçagem nega, sempre, a
integridade da alteridade. Ora ela pauta-se pela pureza – o argumento ainda
vigente das purezas étnicas ou raciais - , ora pauta-se pela mistura. Ou a
alteridade está presa à totalidade da representação da pureza, que é a mesma
representação do Uno, do Único, da Essência, idéias que constituem o núcleo
mesmo do conceito de identidade, ou ela queda-se refém da relatividade das
misturas que, muito embora dependam conceitualmente da representação das
essências, escapa delas por considerar a diversidade racial/étnica
predominante no mundo. Bem, a cosmovisão que assegura a ideologia da
mestiçagem está ancorada, fundamentalmente, na visão essencialista da vida
e do mundo, dando ênfase às idéias de origem e finalidade. A origem como
lugar comum do nascimento de uma raça, idéia, povo, deus, é o lugar que
legitima a pureza como critério máximo de avaliação do real. Origem como
verdade. Verdade como unidade. Unidade como pureza. Quem habita o
território da origem habita o território da verdade, e aqui está o germe da
representações que tornaram-se dominantes em todo o mundo. Ao contrário do
que possa parecer, esta cosmovisão não afirma a alteridade. Ela a nega de
maneira cabal! Existe apenas o Eu. O Outro é apenas a imagem, distorcida ou
não, deste Eu. Alteridade que se reflete no espelho do Eu. Alteridade como
reflexo do Si-Mesmo. Ou seja, o Outro não existe por si mesmo, apenas como
reflexo/corrupção da imagem do realmente existente:  o Eu.
A cosmovisão que assegura a existência da identidade e relega a
identidade como mero jogo de imagens do Eu, procura diluir a existência da
alteridade na ideologia da mestiçagem. A mestiçagem é, sem embargo, um
simulacro que articula as imagens da identidade e diluem a alteridade num jogo
complexo de representações incoerentes e sem fundamento em si mesmas. A
alteridade passa a ser algo confuso e diluído num conjunto de representações
sobre pureza e não-pureza que acabam por perder-se no buraco negro da
mestiçagem. É nessa confusão proposital de representações que as relações
de poder se exercem sobre indivíduos ou grupos de indivíduos que foram
capturados pela lógica das representações ideológicas. Desta forma  valorizar-
se-á as representações positivas dos grupos dominantes e prejudicar-se-á as
coletividades vítimas dessas representações. É por isso que, p.e., brancos são
valorizados como “raça” superior, enquanto negros são taxados de “raça”
inferior, ou mulheres como seres meramente emocionais, enquanto os homens
possuem a qualidade da racionalização e assim por diante. Todo racismo e
todo machismo estão assentados nessas representações sobre a alteridade
enredada ou nas representações de pureza ou de mistura. Em ambos os casos
ela é negada em sua própria lógica e existência.
A mestiçagem é, portanto, resultado da negação da alteridade. Ao
“misturar” matizes raciais diferentes e qualificá-las como mestiças, essa
ideologia pauta-se na cosmovisão essencialista do mundo que para sobreviver
precisa da representação da verdade, da unidade, da origem e da finalidade.
Até aqui falamos da origem. Falar-mos-emos agora da finalidade.
A idéia de finalidade é a que dá o sentido para as operações ideológicas
travadas sobre o outro, negando-lhe a possibilidade de existência íntegra e
digna. Integridade e dignidade não como discurso moral, mas como modos de
existência. Ou seja, é íntegro aquilo que existe por inteiro, e é inteiro aquilo que
é. O Outro é um mistério para o Eu, pois sendo Outro jamais poderá ser
capturado pela lógica da identidade. O Outro não se mostra como é, a não ser
quando é compreendido em sua dimensão de mistério e mistérios não se
mostram como conteúdos identificáveis, mas como formas de existência que
escapam às armadilhas da identidade e das representações únicas. É digno
aquilo que existe dando significações próprias a respeito daquilo que é e é
reconhecido como tal diante de uma coletividade significadora. Assim
dignidade está associada tanto à ipseidade quanto à alteridade, muito embora
a ideologia da mestiçagem tenha reforçada a primeira e negado a segunda.
A finalidade funciona como a escatologia da ideologia dominante. É
preciso ter não apenas uma fonte de pureza no território da origem para
legitimar os discursos de dominação, mas também o discurso moral da
finalidade para justificar as ações presentes em vista de um futuro de ouro de
recompensas a ser encontrado por aqueles que mantiverem-se fiéis às
representações ideológicas do grupo dominante. É assim que a idéia de
paraíso, de céu, de bom futuro, de salvação etc. nasceram entre nós. A
finalidade é o que está no futuro muito embora controle e dê sentido as
relações travadas no agora. Ela é uma ideologia moral disfarçada em
escatologia. A finalidade apresenta-se como única, logo, determina o caminho
a ser percorrido para se alcançar o sentido profundo de uma ação
incompreensível no presente, mas iluminada pela clareza escatológica da idéia
de finalidade.
A finalidade, com efeito, é a significação última da origem, ou seja,
porque aquilo que é, é desta forma e não de outra. A origem é uma justificativa
que remonta ao passado. A finalidade uma justificativa que remete para o
futuro. Ambas formam o escopo da ideologia que sustenta a mestiçagem que,
por sua vez, ancora o discurso e a prática de dominação que temos visto na
história da humanidade, particularmente em relação às representações criadas
sobre negros e brancos.
 
A Negação do Negro Brasileiro
 
A Dra. Gislene Santos, em seu livro, bem como o Dr. Kabengele Munanga,
revisitam as matrizes teóricas que favoreceram a proliferação das idéias e
práticas racistas no mundo e, sobretudo, no Brasil.
            O livro da Dra. Gislene Aparecida dos SANTOS (2000) perfaz “um
percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros”. Se o Dr.
David Brion Davis[59] elucidou as idéias que corroboraram com a escravidão
dos africanos e seus descendentes na América do Norte, a Dra. Gislene,
guardada as devidas proporções, realizou a mesma empreita em relação aos
africanos e seus descendentes no Brasil.
            A autora dá uma contribuição preciosa para o conhecimento do
pensamento social brasileiro ao analisar, sob o prisma da identidade afro-
brasileira, importantes aspectos sociais do Brasil, denegados ao longo da
história, e autores fundamentais para entendermos a formação da identidade
nacional. Filosoficamente bem fundamentada, ela analisa as obras de José
Bonifácio, Louis Couty, Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre.
            No Iluminismo a autora encontra a genealogia das idéias e conflitos
que, por um lado, consolidarão a ideologia racialista no mundo, e, de outro
lado, a filosofia que servirá para a crítica do racismo. Este é precisamente o
que ela chamou de “enigma  do Iluminismo”, pois se foi neste período que a
tolerância e os direitos humanos foram politicamente defendidos e
filosoficamente justificados, concomitantemente foi também o tempo em que se
forjou a idéia de homem (universal) que, no entanto, era apenas o protótipo do
homem europeu, dando margem à formulação do racismo como negação do
Outro. Analisando sobretudo as idéias monistas de Diderot e poligenista de
Voltaire, crê a autora sintetizar o principal debate no seio do Iluminismo a
respeito do sistema filosófico que fundamentaria o racismo mundial. Perspicaz,
Gislene dos Santos envereda-se pelos (des) caminhos do Iluminismo e traz à
tona detalhes absolutamente relevantes na discussão a respeito das diferenças
raciais, morais, geográficas entre os povos. Como é óbvio, não esquece de
tratar do tema fundamental da sociabilidade e da educação, tudo isto
agenciado pelo exercício da razão, principal instrumento dos iluministas para a
compreensão do mundo e o domínio da natureza. Sem abandonar pensadores
como Turgot, D’Holbach, Buffon, esmiuça o tema do Progresso Social e, de
certa forma, está sempre nas fronteiras da definição do conceito de cultura e de
civilização, correlatos nesta época.
            Ao mapear as principais discussões a respeito das diferenças raciais no
Iluminismo, a autora se debruça na compreensão da idéia de raça. Para tal,
vale-se de clássicos como Todorov e Banton. Aqui a autora demonstra seu
domínio sobre o tema e consegue captar as discussões mais relevantes a
respeito do problema fundamental, ou seja, compreender o sistema de idéias
que naturalizaram a idéia de inferioridade do negro. Ela deslinda uma síntese
das idéias racialistas e racistas do século XIX e XX, passando pelo darwinismo
social, pela dita inferioridade negra e , com Cohem, busca responder o que é o
negro, analisando tanto a biologia de Lamarck, passando pela análise crítica da
estética branca até culminar com a posição de Hannah Arendt que,
lucidamente, afirmara: “Toda ideologia que se preza é criada, mantida e
aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica” (ARENDT apud
SANTOS, 2002, p. 60).
            A Dra. Gislene submetendo a uma leitura que se não é original, é, sem
dúvida, singular, a obra de José Bonifácio, Louis Couty e Joaquim  Nabuco
conseguiu adentrar na gêneses da invenção do ser negro brasileiro. Se escolhe
Bonifácio e Couty, é porque são autores que sintetizam o pensamento e as
problemáticas da época. Nabuco, de forte erudição, de posição intelectual
incontestável no cenário da abolição, é utilizado para demonstrar como o
pensamento social brasileiro sempre reificou as bases do pensamento racista
cunhados no calor  do Iluminismo europeu.
            Bonifácio e Couty  são representantes da elite brasileira. É deste lugar
que falam sobre a escravidão e o negro no Brasil. Segundo SANTOS (2002, p.
66), p.e., as idéias de Bonifácio “tornam evidente o caráter do movimento
emancipacionista ligado aos interesses da elite burguesa e distante dos
verdadeiros ideais populares”. Partidário das teses do liberalismo, Bonifácio
atribui aos negros a responsabilidade pela decadência moral brasileira ao
mesmo tempo que defende a abolição da escravatura. Motivo: é que
desenvolvimento industrial – principal tese econômica do liberalismo – não rima
com escravidão. Toda a argumentação filosófica deste abolicionista está
pautada no direito natural. É Assim que o Andrada humaniza o escravo. “Desta
forma , ele pode, simultaneamente, defender o direito à propriedade e ao
trabalho livre como forma de garantir a estabilidade sociopolítica e a
prosperidade econômica” (SANTOS, 2002, p. 71).  É por questionar se a
escravidão estaria de acordo com o direito natural, que os abolicionistas da
época se colocam contra a subjugação dos negros. Ora, o direito natural é a
pedra fundamental da filosofia liberal. O que temos é uma tríade argumentativa
baseada nos referenciais teóricos do liberalismo. Em primeiro lugar está a
liberdade individual, pois segundo o direito natural, todo homem é livre.
Segundo, a escravidão que se opõe ao direito natural é inútil, pois (terceiro) a
escravidão é nociva à economia nacional. Para Gislene Santos não há dúvidas
de que o terceiro argumento é o mais importante na obra de José Bonifácio.
            Louis Couty defende as mesmas teses, mas arregimenta seus
argumentos de maneira diferente. Diversamente de Bonifácio, Couty
argumenta que a escravidão brasileira sempre fora a mais amena das
Américas. Com isso, reforçava a idéia da debilidade moral dos negros e,
principalmente, a necessidade da imigração européia para o Brasil. Subjaz a
este argumento a idéia de que apenas os brancos possuem cultura. Os negros,
em quaisquer sociedades, são fatores de degenerescência e corrupção.
Estudando os costumes afro-brasileiros e a produção econômica no Brasil,
decidi que a solução é a imigração européia. Ou seja, Couty engendra uma
análise cultural baseada no moralismo liberal para explicar o
subdesenvolvimento da economia brasileira, e aponta uma solução política
para o problema, a saber: a imigração de mão-de-obra européia.  Se a
escravidão, no Brasil, é amena, resulta que aqui não há um problema
humanitário, mas apenas político e econômico. Por isso dar ênfase à economia
era mais importante que enfatizar o regime de escravidão. A escravidão,
enquanto sistema econômico em si, não era um problema. O problema era a
falta de habilidade e qualidade morais dos negros. “O trabalho escravo é
inferior não por obra e graça do processo escravista, mas pela inabilidade do
próprio escravo. É este, e não a escravidão, que deve ser suprimido”
(SANTOS, 2002, p. 93). O negro é preguiçoso, inútil, inválido. O progresso
(noção forte do Iluminismo) só advém com uma população culturalmente mais
evoluída. Vê-se em Couty a síntese perfeita dos ideais liberais
(desenvolvimento econômico) e iluministas (progresso, civilização) que, numa
perspectiva evolucionista, justificam “filosoficamente”  a escravidão e, no caso
de Couty, a idéia – que se tornará muito forte no Brasil – de eliminação dos
negros.
            José Bonifácio e Louis Couty não eram abolicionistas tão
comprometidos com a causa quanto foi  Joaquim Nabuco. Dono de grande
erudição, empregou sua inteligência brilhante e voraz contra o sistema
escravocrata. Mas, mesmo Nabuco, não deixou de ser homem do seu tempo e
com ele partilhar o racismo que lhe era inerente. Como jurista  Nabuco
condenou cabalmente o sistema escravocrata. Mas, se tratada como matéria
jurídica, este abolicionista sem dúvida foi seu principal porta-voz, ao
considerarmos a validade do seu discurso a favor dos interesses dos escravos,
definitivamente ele não ocupa a mesma posição. Nabuco não acreditava que o
escravo poderia, ele mesmo, ser o agente de sua libertação. Motivo:
incapacidade e inferioridade dos negros. Outro fator explicativo dessa ideologia
era o medo que Joaquim Nabuco tinha da possível revolução dos negros,
medo, aliás, compartilhado por toda a elite brasileira. De acordo com SANTOS
(2002, p. 117) “esse autor condenava uma escravidão geral, ele debatia com
uma teoria geral da escravidão de modo que pouco importava quem ou porque
este ou aquele povo era ou foi escravizado”.  Na esteira dos outros
abolicionistas, o que interessava para Nabuco era livrar o Brasil da ferida da
escravidão – ferida econômica – e não livrar os negros da subjugação branca. 
Isto é, “o cativeiro do qual o Brasil deveria livrar-se não era, necessariamente, o
do povo negro, mas o do sistema escravista que aprisionava a nação”
(SANTOS, 2002, p. 117). Nabuco foi muito mais um defensor do Estado
Republicano do que um defensor da causa dos negros. Para ele, o fim da
abolição era a condição para vigorar o Estado Liberal.
            Se até aqui a filósofa analisa o período brasileiro antes da abolição da
escravatura, ela não deixará passar incólume o período pós abolição e a
peculiaridade do racismo à brasileira no período republicano. Emblemáticos,
neste período, foram os pensamentos de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre.
Cada qual em sua época, teve forte influência sobre o pensamento social
brasileiro no que diz respeito à justificação/fundamentação da inferioridade
negra. Submetidos à análise crítica da autora, seus textos deixam entrever a
grande influência do pensamento racista mundial. Com isto denuncia o racismo
explícito do médico baiano e o racismo implícito da teoria da democracia racial
no pensamento de Gilberto Freyre, dedicando especial atenção à teoria do
branqueamento que explicita uma simpatia pelo negro, sem que, com isso,
consiga disfarçar o racismo contra o negro, igualmente explícito. Com
Rodrigues e Freyre a autora acredita ter compreendido toda a gama de
pensadores da primeira metade do século passado que tornaram justificável as
idéias que naturalizaram a inferioridade do negro brasileiro.
            O que está em discussão, com esses autores, é a formação do povo
brasileiro. Se para Couty o povo brasileiro não existe, Nina Rodrigues tem uma
posição mais amena quanto à identidade da nação e mais radical quanto aos
africanos e seus descendentes. Para ele a questão (que não é nova), “é a
inferioridade inata da raça negra, inapta à civilização e a qualquer forma de
desenvolvimento” (SANTOS, 2002, p. 130). O discurso biologizante de Nina
Rodrigues, segundo a autora, corrobora a idéia de que a morosidade brasileira
advém dos negros e que são eles os principais fatores do subdesenvolvimento
do país. Numa palavra, o negro, inatamente inferior, é a causa do não
progresso da civilização brasileira. Fazendo uma taxinomia dos tipos raciais,
Nina Rodrigues hierarquiza as raças segundo critérios de pureza biológica e
superioridade social, moral e religiosa.
            Se os autores que foram anteriormente analisados assumiam-se como
liberais e ilustrados, Nina Rodrigues será o grande evolucionista de sua época,
e fará escola. Pautado na ciência positiva (positivismo) ele vai dizer que: “1) as
raças apresentam graus de evolução, desenvolvimento, cultura e inteligência
diferentes; 2) a cada grau evolutivo compreende uma moral, portanto, não há
valores universais, atemporais e uniformes que possam servir como
sustentáculo para um direito universal e uma noção única de justiça; 3) uma lei
universal pressupõe uma identidade total entre todos os indivíduos que
compõem a sociedade; 4) não existe o livre-arbítrio” (SANTOS, 2002, p. 134).
Vê-se, assim, que Nina tem sua filosofia da natureza assentada numa
biologização dos homens. Ele é defensor da filogênese como explicação
científica para a evolução cultural dos seres, o que equivale dizer que ele
transfere os padrões científicos da biologia para explicar os fenômenos sociais
e culturais. Assim, como nos homens, as sociedades obedecem lentos
processos evolutivos. Existe uma igualdade abstrata entre os homens, mas se
não são iguais no transcurso da história, é porque as sociedades brancas são
moral e socialmente mais evoluídas que as dos negros. Dessa forma o médico
baiano poderia relativizar as noções de direito natural, de justiça universal e de
igualdade entre as raças. Em suma, um negro jamais será um branco. “Dessa
forma, igualdade e liberdade passam a ser elementos metafísicos e o direito
deixa de ser um campo da ética para pertencer ao rol das ciências naturais”
(SANTOS, 2002, p. 138), ou seja, deve-se sempre observar o criminoso (o
escravo) e não o crime (a escravidão). Se os iluministas partiam de princípios
metafísicos como a igualdade e a liberdade, os evolucionistas partem da
ciência positiva e opõem direito natural e ética. Dessa forma, o negro, é inferior
tanto do ponto de vista evolucionista quanto ilustrado, visto que sua
inferioridade é inata e que os princípios metafísicos não dialogam com a
história evolução das civilizações.
            Gilberto Freyre, por seu turno, buscou fugir do dogmatismo científico
predominante em sua época. Para tal vale-se do lusotropicalismo e cria o
importante conceito de mestiçagem. Com o pernambucano não se trata mais
de negar que o Brasil tenha povo (Couty), ou que uma fatia do povo brasileiro
deva desaparecer com o correr dos anos por ser inatamente inferior (Nina
Rodrigues). Para ele o “ponto de equilíbrio da sociedade brasileira passaria a
ser o mestiço e o caráter miscigenado de nossa população é posto em foco
como meio de um engrandecimento inigualável” (SANTOS, 2002, p. 150). Aqui
estaria o germe da teoria da democracia racial.
            Uma longa citação de Gislene dos SANTOS (2002, p. 150) pode ser
apropriada para revelar, em síntese, a análise que ela efetua sobre o
pensamento de Gilberto Freyre:
Embora a contribuição africana seja avaliada fora da perspectiva
racista de outrora, isso não significou a elevação do sujeito negro à
mesma categoria do branco. Ele ainda é o outro, diferente e
estranho, portador de uma cultura exótica. Mas agora é o estranho
desejado por essas mesmas características. Em Freyre, o negro
continua sendo objeto, complemento para o branco que se sobrepõe
a ele do alto dos casarões, das casas-grandes e que olha, a
distância, para as senzalas. Passa-se, então, a uma apologia da
mestiçagem, não na prática, mas na teoria, na qual ela é
reconhecida como elemento básico da composição do povo
brasileiro.
 
Diria eu que o negro é sempre a alteridade negada. Negada
substancialmente, juridicamente, ontologicamente, historicamente e é negada
até mesmo quando é “valorizada” e, com isso, transforma-se no exótico, no
folclórico. Ou ele é negado positivamente por ser negro, ou é negativamente
negado por ser negro. “Positivamente” quando lhe é reconhecida a
humanidade negra, muito embora por isso seja inferiorizado. Negativamente
quando sua própria humanidade é negada. Dessa forma, o negro é o Outro
demonizado. Um Outro desumanizado, mesmo quando lhe reconhecem a
humanidade.
 Kabengele MUNANGA (1999), em sua tese de livre docência:
“Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil” também percebe as armadilhas que o
conceito de mestiçagem arquitetou para os afrodescendentes. A mestiçagem
como signo de inferioridade, colocando, de qualquer maneira e em quaisquer
combinações, os elementos da cultura africana em situação de desvalorização.
Ora utilizada para exaltar o “mulato” e desvalorizar o negro, ora utilizada para
desvalorizar o negro e o mulato, ou utilizada para valorizar a mistura de índio e
branco em flagrante desmerecimento da mistura negro e branco, o conceito de
mestiçagem, sempre manipulado ideologicamente e não no plano da biologia,
ou seja, sempre ideologizando a biologia, serviu sempre como arma de ataque
do ser negro.  Como a Dra. Gislene Santos[60], MUNANGA (1999) volta aos
pensadores iluministas para encontrar a gênese do pensamento racista no
mundo. Aliás, seu retorno “às origens” é mais profundo, na medida em que,
sumariamente, revisita não apenas o conceito biológico e sociológica de
mestiçagem, como passeia pela história da mestiçagem na Grécia Antiga, no
Egito e no Império Romano, ao mesmo tempo em que revisa o pensamento de
Buffon e Voltaire, por serem eles pensadores ilustrativos da monogenia e da
poligenia, que marcaram a discussão sobre raça no século XIX e primeira
metade do XX. Se Buffon é filogenético e Voltaire ontogenético, isso interessa-
nos para melhor conhecer as posições dos pensadores brasileiros que se
colocaram o probelama da raça no Brasil, pois ao “abordar a questão da
mestiçagem no final do século XIX, os pensadores brasileiros se alimentaram
sem dúvida do referencial teórico desenhado pelos cientistas ocidentais, isto é,
europeus e americanos de sua época e da época anterior” (MUNANGA, 1999,
p. 50).
A perspectiva da unidade das raças ou da pluralidade delas marcou,
também no Brasil, o debate sobre mestiçagem. De acordo com o autor:
 
a idéia da mestiçagem tida ora como um meio para estragar e
degradar a boa raça, ora como um meio para reconduzir a espécie a
seus traços originais; as idéias sobre a degenerescência da
mestiçagem, etc., todo o arcabouço pseudo-científico engendrado
pela especulação cerebral ocidental repercute com todas suas
contradições no pensamento racial da elite intelectual brasileira
(MUNANGA,1999, p. 50).
 
 
            Certamente por isso Kabengele Munanga vai analisar criticamente –
sinal diacrítico  de sua obra – pensadores como Sílvio Romero, Euclides da
Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda,
Edgar Roquete Pinto, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Para além da
dissertação de Gislene Santos, a pesquisa de Kabengele Munanga investiga
não apenas os pensadores que reificaram as explicações estrangeiras, mas
considera também as vozes lúcidas de pensadores originais como foram
Alberto Torres e Manoel Bonfim. Como bom antropólogo, o professor uspiano
considera as várias vozes e os diversos olhares sobre o tema, fazendo os
autores dialogarem no interior de sua pesquisa.
            Não é o caso de passar em revista toda a análise efetuada pelo
professor africano. Interessa-nos, sobretudo, complementar os argumentos já
elucidados pela lavra da Dra. Gislene. Se ela concentrou-se na análise do
pensamento de José Bonifácio, Louis Couty, Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues
e Gilberto Freyre, nós, por outro lado, daremos atenção ao pensamento de
Silvio Romero e Euclides da Cunha, de um lado, juntamente com a análise de
Oliveira Viana – privilegiada por Kabengele Munanga -;  de outro lado,
consideraremos os olhares de Alberto Torres e Manoel Bonfim como
contraponto as idéias, já rapidamente explicitadas de Nina Rodrigues e Gilberto
Freyre.
            Sílvio Romero é desses pensadores que vê na mestiçagem do povo
brasileiro apenas uma etapa de transição para uma sociedade racial e
culturalmente branca. Segundo ele, o tipo genético caucasóide iria prevalescer
frente aos genótipos negróides. De acordo com MUNANGA (1999, p. 52),
Romero acreditava “no nascimento de um povo tipicamente brasileiro que
resultaria da mestiçagem entre as três raças e cujo processo de formação
estava ainda em curso. Mas, desse processo de mestiçagem do qual resultará
a dissolução da diversidade racial e cultural e a homogeneização da sociedade
brasileira, dar-se-ia a predominância biológica e cultural branca e o
desaparecimento dos elementos não brancos”.
            Apesar das contradições inerentes ao pensamento de Sílvio Romero, a
tônica de suas posições recai sobre a unicidade da raça na formação do povo
brasileiro e na consequente unidade da identidade nacional. À sua época,
Romero atribuía ao negro o atraso brasileiro, o que lhe põe em parceria com
Louis Couty, José Bonifácio dentre outros, que responsabilzava o negro pelo
fracasso social do Brasil, fórmula, aliás, também presente na obra de Nina
Rodrigues que atacava o “criminoso” e não o crime, ou seja, responsabilizava o
escravizado e não a escravidão. Fórmula, aliás, presente - por diferentes vias -,
na obra de abolicionistas como Joaquim Nabuco.
            A depreciação do negro é praticamente uma regra em todos os
pensadores da elite brasileira do final do XIX e início do XX. O que se
diferencia são os argumentos que justificam essa depreciação. Em decorrência
da diferença de argumentos, existe a diferença de posições. Se Romero é um
epígone do embranquecimento do brasileiro, defendendo a tese da unidade
racial no Brasil no porvir, Euclides da Cunha se contrapõe a ele defendendo a
heterogeneidade racial do povo brasileiro.  Essa heterogeneidade está longe
de ser uma apologia da mestiçagem; longe de valorizar as diferenças raciais.
Ao contrário, Euclides da Cunha pensa que “o mestiço, traço de união entre
raças, é quase sempre um desiquilibrado, um decaído, sem a energia física
dos ascendentes selvagens e sem a atitude intelectual dos ancestrais
superiores” (MUNANGA, 1999, p. 57).
            Seguindo a escola do pensamento atávico de Nina Rodrigues, Euclides
da Cunha acredita que o mestiço é um ser que vive em constante instabilidade
pois tem a tendência de remontar às características originais de sua raça. Se
preserva algumas “qualidades” da raça superior, volta inexoravelmente às
características atávicas da raça inferior.  Para ele, “a idéia de que a
mestiçagem entre raças superiores e inferiores apaga as qualidades das
primeiras e faz reaparecer a das últimas” (MUNANGA, 1999, p. 58). A
pluralidade considerada por Euclides ataca a idéia de uma unidade nacional.
Na verdade, o jornalista  e escritor dá-se conta de que no Brasil não existe
homogeneidade cultural, muito menos racial. Os tipos puros, p.e., índio puro é
mais valorizado que o mestiço, no caso o mameluco. Mas esse último, nos
sertões brasileiros, formam uma unidade cultural – o que é valorizado por
Cunha. De fato, no pensamento do autor de “Os Sertões”, há uma gradação
valorativa dos mestiços. A raça superior sendo a referência de qualquer
axioma, ao cruzar-se com índios é mais valorizada que a cruza com os negros.
Negros e índios miscigenados entre si ocupariam as últimas posições no
ranking do autor, sendo que os mestiços negros amargam as piores posições
nesse escalonamento axiomático. Ora, esse pensamento, em sua arquitetura é
a repetição das gradações estabelecidas por Nina Rodrigues, no final do século
XIX e início do XX, quando defendia, também ele, uma gradação valorativa
entre os negros mestiços, onde era mais valorizado aquele que estivesse mais
próximo ao padrão europeu de genótipo caucasóide.  Posterior a Nina, mas
harmônico com suas idéias, Euclides da Cunha defendia que o negro,  em
relação às três raças no contexto de mestiçagem no Brasil,  era um
desequilibrado incurável, pois “Na tríade da mestiçagem, o português, apesar
de demonstrar que já era mestiço, não deixa de ser a raça superior,
aristocrática. O próprio índio que ele ressaltava não tinha a capacidade de se
afeiçoar às mais simples concepções de um mundo mental superior. Quanto ao
africano, não há esforços que consigam aproximá-lo sequer do nível intelectual
do indo-europeu” (MUNANGA, 1999, p. 59).
            Se Sílvio Romero sentenciava o branqueamento da população
brasileira, defendendo a tese da unidade racial no Brasil, Euclides da Cunha
defendia a heterogeneidade das castas raciais em território nacional e
preconizava um pessimismo quanto ao futuro brasileiro, advertindo as
diferenças regionais entre o sul e o norte brasileiros, onde na região meridional
era mais desenvolvida por conta do tipo europeu predominante na região,
enquanto na parte setentrional do país imperaria o desiquilíbrio social pelo fato
da predominância de índios e negros miscigenados. Euclides da Cunha não
defendeu explicitamente o branqueamento da população brasileira, muito
embora fosse adepto do pensamento racista que defendia que os brancos
eram de uma raça superior. Já Nina Rodrigues, em flagrante contraste com
Sílvio Romero, defendia não o branqueamento dos brasileiros, mas seu
enegrecimento.
            Não que Nina Rodrigues fizesse apologia ao enegrecimento da
população canarinha. Pelo contrário, em contato com pesquisas demográficas
da época, via a tendência à africanização (em termos de cor) da população
nativa e se contrapunha à tese – defendida por Romero – de um paulatino
branqueamento do território nacional.  Esse enegrecimento anunciado pela
miscigenação negra no Brasil apontava para a decadência moral do povo
brasileiro. Quanto maior a presença do africano e seus descendentes no
contingente populacional maior seria a degeneração do povo. Nina Rodrigues
pauta seu pensamento na filogenia, ou seja, ele considerava que o indivíduo
(ontogenético)  era mera reprodução e evolução das características impressas
em sua raça. Esse atavismo do pensamento do médico baiano é que o levou a
propor a solução via legislação e institucionalização do problema da identidade
nacional. Ou seja, dada a inferioridade da raça negra e a consequente
corrupção da raça branca (superior) ao miscigenar-se com os negros, 
rebaixando assim o nível de moralidade da população, restava apenas a
solução legal, isto é, alterar o código penal adequando-o à realidade racial
brasileira que, por ser atávica, não mudaria jamais. É dessa forma que Nina
Rodrigues vai atuar no campo das responsabilidade penais.
 
Sendo dadas as desigualdades entre as raças, seriam necessárias
modificações na responsabilidade penal. A regra do contrato na
sociedade brasileira, que considera todos os indivíduos iguais
perante a lei, que é uma medida de defesa social, converte-se em
pura repressão: índios, negros e mestiços não têm a mesma
consciência do direito e do dever que a raça branca civilizada,
porque ainda não atingiram o nível de desenvolvimento psíquico,
seja para discernir seus atos, seja para exercer o livre-arbítrio
(MUNANGA, 1999, p. 54).
 
 
 
            De acordo com o médico-legista, então, era necessário tomar uma
medida jurídica já que as características raciais são inatas aos povos. Dever-
se-ia, sem embargo, ratificar socialmente o que é um dado da natureza, a
saber: a inferioridade dos negros. Com o enegrecimento da população, era
urgente, para ele, a mudança das leis penais pois uma ameaça rondava o
Brasil, uma vez que não apenas ocorria o enegrecimento da pele do brasileiro
mas uma africanização de sua cultura.
            Oliveira Viana será o autor mais citado, segundo MUNANGA (1999, p.
65), no debate sobre o branqueamento da população brasileira. É certo que foi
a ideologia do branqueamento a que imperou no primeiro decanato do século
XX, encontrando, depois, nos argumentos de Gilberto Freyre, argumentos mais
afinados com o desenvolvimento da antropologia cultural de seu tempo. Não
que Oliveira Viana fosse um autor original e defendesse teses inéditas sobre a
questão. Mas fora ele quem melhor sintetizou as idéias racistas de seus
predecessores e quem mais as divulgou.
            Contrariamente à tese de unidade racial  de Sílvio Romero, Viana não
acredita na homogeneidade racial. Apesar de serem homônimos na defesa da
tese do branqueamento, Oliveira Viana  percebe uma heterogeneidade entre os
mulatos.  Para ele o cruzamento entre negros e brancos “deu origem  a uma
variedade correspondente de mestiços. O que torna absurda a procura da
unidade psicológica do mulato e a fixação de sua unidade antropológica”
(MUNANGA, 1999, p. 67). Há mulatos inferiores e superiores no
escalonamento valorativo de Viana. “O primeiro, resultado do cruzamento do
branco com o negro do tipo inferior, é um mulato incapaz de ascensão,
degradado nas camadas mais baixas da sociedade. O segundo, produto do
cruzamento entre branco e negro do tipo superior, é ariano pelo caráter e pela
inteligência ou, pelo menos, é suscetível de arianização, outro modo capaz de
colaborar com os brancos na organização e civilização do país” (MUNANGA,
1999, p. 67).
Se se distancia de Silvio Romero quanto ao tema da unicidade
antropológica da população brasileira, aproxima-se de Euclides da Cunha
quanto à heterogeneidade dos mestiços. Tal como o jornalista, Viana acredita
que os mestiços de brancos com índios são mais superiores que os mestiços
de brancos e negros. Tanto quanto aquele, apesar de depreciar as qualidades
morais dos mamelucos, os têm em melhor conta que os mulatos, pois aqueles,
ao menos, parecem ter melhores condições físicas, sendo mais aptos para a
guerra. Ou seja, apesar da malícia e malandragem que denotam fragilidade de
caráter, são mais astutos em questão de luta – o que os colocam em melhor
posição que os mulatos, tidos como preguiçosos, lascivos e burros.
Se Nina Rodrigues diverge de Euclides da Cunha quanto ao
branqueamento da sociedade brasileira, Oliveira Viana se aproxima de Nina
Rodrigues, pois ambos acreditam no atavismo, ou seja, “numa lei antropológica
inevitável que faz com que os indivíduos resultantes da mestiçagem tendam a
retomar as características físicas, morais e intelectuais das raças originais”
(MUNANGA, 1999, p. 68). É claro que o fator de degenerescência é atribuído
unicamente à raça negra, visto que a raça superior, a branca, possui
superioridade mental e física, enquanto o mulato, como já foi referido, é um tipo
preguiçoso e incapaz intelectualmente.
A leitura de Kabengele Munanga de Oliveira Viana atesta que, para este,
tanto o mulato considerado inferior ou superior é assim classificado mais pelo
fenótipo do que pelo genótipo. Ou seja, Oliveira Viana seria o precursor do que,
mais tarde, Oracy Nogueira chamou de preconceito de “marca” e preconceito
de “cor”. Ora, no Brasil o racismo evidencia-se ligado mais à aparência que à
origem do indivíduo. Não importa sua mistura de sangue, ascendência etc.,
mas a cor da sua pele. É a coloração da tez da pessoa que vai ser matriz de
sua classificação social.  Oliveira Viana é precursor, também, da idéia de
harmonia racial presente na sociedade brasileira. Segundo ele,  no Brasil, há
uma igualdade e harmonia entre todos os segmentos raciais, o que não coloca
nenhum tipo de problema a nenhum desses segmentos no campo político e
econômico.  Mas se não há problemas políticos e econômicos por causa da
igualdade entre as raças o mesmo não se dá no plano psico-antropológico. Diz
MUNANGA (1999, p. 71):
 
Se a diversidade racial brasileira não cria nenhum problema do ponto de
vista político, graças à igualdade de oportunidade entre todos no plano
sócio-econômico, diz Viana, surgem gravíssimos problemas do ponto de
vista antropológico e psicológico, devidos às diferenças inconfundíveis
entre as três raças.
 
 
Apesar da crescente miscigenação da população brasileira com os
afrodescendentes, Viana acredita numa progressiva arianização da sociedade
visto que o aumento da imigração de europeus levaria a uma “purificação” da
população nacional. Neste sentido Viana segue de perto a doutrina do
darwinismo social, acreditando que a raça superior (branco) haveria  de
imperar sobre a raça inferior (negros e índios), se não completamente na cor
da pele ao menos em suas características morais e intelectuais. O que o
eminente sociólogo deixa de mencionar é “o fim do tráfico negreiro desde 1850,
a alta mortalidade da população negra devido às adversas condições de vida e
a eliminação do índio pelas doenças européias, álcool e arma de fogo”
(MUNANGA, 1999, p. 75). Ou seja, todo o discurso de Oliveira Viana é
ideológico, pois ao anunciar a arianização da sociedade brasileira ele
desconsiderara os fatores sociais que determinaram a diminuição da população
negra, índia e mestiça, dando ênfase simplesmente à imigração européia.
Se Oliveira Viana permaneceu ligado ao atavismo de Nina Rodrigues e
sua escola, ao darwinismo social do final do XIX, à taxonomia euclidiana dos
mestiços brasileiros, mantendo, assim, os preconceitos do evolucionismo e a
base teórica do iluminismo, Gilberto Freyre deu um passo significativo para fora
dessas matrizes de pensamento, muito embora tenha reificado, também ele, o
preconceito e a discriminação racial em relação ao negro e foi, sem dúvida, o
autor que melhor fundamentou a tese da “democracia racial” em terras
brasileiras.
Para Kabengele, que dá mais atenção ao pensamento de Oliveira Viana
que ao do pernambucano, “A grande contribuição de Gilberto Freyre é ter
mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas na
cultura brasileira; influenciaram profundamente o estilo de vida da classe
senhorial em matéria de comida, indumentária e sexo” (MUNANGA, 1999, p.
79). Se para o conjunto de autores analisados até agora a mestiçagem é um
signo negativo, em Gilberto Freyre ela será positivamente avaliada. Isso dá
margem à defesa da tese da harmonia racial em território canarinho. O mito da
democracia racial, em Freyre, esta baseado na mestiçagem cultural e biológica
– o que marca profundamente a sociedade brasileira. Ao exaltar a idéia de
convivência pacífica e harmônica entre todos os segmentos étnico-raciais no
Brasil, Gilberto Freyre permitiu às elites dominantes “dissimular as
desigualdades” e impedir que “os membros das comunidades não-brancas de
terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade” (MUNANGA, 1999, p. 80). No fundo Freyre faz uma dupla operação
argumentativa. Primeiro admite a diversidade étnico-racial no Brasil,
valorizando o até então denegado elemento negro e indígena. Com a tese da
democracia racial cria uma unidade antropológica que confere identidade ao “o
brasileiro”. Acima da diversidade racial existe a identidade cultural desse povo.
Segundo: ao considerar socialmente a presença de diversificados grupos
étnicos no Brasil para em seguido abstrair das diferenças em prol de uma
identidade nacional, consegue encobrir os conflitos sociais realmente
existentes na sociedade brasileira. De um lado reconhece a contribuição do
negro na formação do Brasil – sobretudo quanto as aspectos folclóricos:
comida, indumentária e sexo, esquecendo-se da contribuição econômica e
tecnológica dos africanos e seus descendentes -, de outro lado, oculta os
conflitos sociais onde o negro esta em flagrante desvantagem no sistema
social. O truque é simples: reconhece o valor da cultura negra, folclorizando-a,
para, em seguida, manter a dominação social e econômica a que os negros se
vêm submetidos durante séculos.
Exemplos notáveis de crítica ao pensamento vigente na elite dominante
da época são as obras de Alberto Torres e Manoel Bonfim. É de Alberto Torres,
por exemplo, as seguintes palavras:
 
Nenhum dos povos contemporâneos é formado de uma raça
homogênea e isto não lhe impediu de formar uma nação, moral,
política e socialmente (...) Se os indígenas, os africanos e seus
descendentes não puderam “progredir e aperfeiçoar-se” isto não se
deve a qualquer incapacidade inata, mas ao abandono “em vida
selvagem ou miserável, sem progresso possível” (TORRES apud
MUNANGA, 1999, p. 61).
 
            De fato, Alberto Torres muda drasticamente o eixo da discussão sobre
a questão nacional. Ao problematizar a nação brasileira, o autor não atribui à
diversidade racial os problemas do país. Segundo ele são as instituições
nacionais que são frágeis por não entenderem sua cultura, e não seus
compatriotas. Como diz Munanga, referindo-se a Alberto Torres: “O grande
problema nacional, segundo ele, não está na diversidade racial, mas sim na
inadequação entre a realidade do país e as instituições tomadas de
empréstimo das nações antigas, o que resulta na alienação da realidade
nacional” (MUNANGA, 1999, p. 61). Além do mais, para Torres, a nação não é
um conglomerado homogêneo de tradições comuns, mas uma unidade política
composta de heterogeneidades culturais. Antenado com a antropologia cultural
da época, Alberto Torres sabe que a nacionalidade é um construto social e não
a derivação atávica de características de raças humanas originárias. O
deslocamento que ele opera é tanto político quanto cultural. Político pois vê os
problemas sociais do Brasil decorrentes de sua alienação enquanto instituição
governamental, uma vez que copia modelos alheios e não volta-se para os
reais problemas brasileiros. Culturais pois não atribui à características inatas
das raças os desajustes sociais do Brasil, pois entende que o atavismo é uma
teoria frágil para explicar a formação das identidades nacionais.
            Já Manoel Bonfim analisa não apenas o Brasil mas a América Latina. 
Uníssono com Alberto Torres, ataca a fragilidade das instituições latino-
americanas – incluindo as brasileiras – por copiarem modelos estrangeiros e
não se apropriarem em suas próprias culturas. Sua análise para entender o
atraso relativo da América Latina é pautada por uma avaliação histórica e não
racial.  “Os problemas herdados da era colonial – mentalidade de ficar rico
depressa, ausência de tradição científica ou empírica, combinadas com uma
cultura hiperlegalista, arraigado conservadorismo político e ausência de
organização social – figuram entre os elementos que explicariam esse atraso”,
diz MUNANGA (1999, p. 62) ao comentar sobre Manoel Bonfim.
            Completamente na contramão do pensamento de seu tempo, o baiano
realizou uma crítica inédita – e perspicaz – do processo de abolição da
escravatura, que deixou os africanos e seus descendentes largados à sua
sorte, sem nenhum tipo de política de  inclusão para essa população, que,
aliás, figurava como a mais numerosa no Brasil. Como solução dos problemas
sociais brasileiros pedia uma reforma institucional e, sobretudo, uma atuação
contundente e eficaz no campo da educação. É ele mesmo quem diz; “A
despeito do parasitismo, os latino-americanos poderiam ainda vencer o seu
atraso. Seria preciso apenas corrigir, educar ou eliminar os elementos
degenerados. A real inferioridade da América Latina estava na sua falta de
habitação e educação[61]. Mas isso é curável, é facilmente curável” (BONFIM
apud MUNANGA, 1999, p. 62).
            Manoel Bonfim, Alberto Torres, foram felizes excessões na produção
intelectual de sua época. Munidos de uma teoria antropológica culturalista,
atentos às causas históricas, bem municiados conceitualmente para realizarem
análises políticas, conseguiram escapar dos paradigmas que marcaram seus
colegas contemporâneos, isto é, do darwinismo social – herança do
evolucionismo do século XIX-, do liberalismo – herança do iluminismo do
século XVIII e XIX -, do atavismo – principal corrente “científica” que estruturou
o pensamento médico e jurídico dos autores brasileiros. Livres das teorias
essencialistas, que privilegiam a origem e o inatismo, a permanência e não a
mudança, a unidade e não a diversidade, estes autores (Manoel Bonfim e
Alberto Torres) apontaram caminhos de reflexão absolutamente inéditos onde
não se criminalizava a vítima (o escravizado) e se absolvia o crime ( a
escravidão). Mesmo Gilberto Freyre, apontado como um divisor de águas no
campo dos estudos negros no Brasil, reificou, com sua tese de democracia
racial, o preconceito e a discriminação racial contra os afrodescendentes.
Alberto Torres e Manoel Bonfim, graças à sua lucidez política, não apenas
abandonaram os paradigmas racistas do XIX, mas entenderam que a
discussão racial e a social são facetas de um mesmo problema político-
ideológico.
 
Identidade Africana no Brasil
           
A discussão sobre uma identidade negra no Brasil é um tema polêmico e
que traz em seu bojo outras problemáticas como a da discriminação racial e da
situação social à qual o negro foi submetido neste país, tanto na época da
escravidão como nos dias atuais.
            Assim, discutir a identidade negra num país formado a partir da mistura
(seria melhor dizer conflito) entre várias raças, provindo de diversas regiões
geopolíticas diferentes e, consequentemente, de culturas díspares, não é um
problema meramente cultural, mas de alcance político e social relevantes. Até
porque o que define a identidade racial são as relações de poder entre os
povos. Não existe uma substância geográfica, biológica ou cultural que define
identidade racial. São as relações de poder que a definem (relações de
dominação).
            Buscar a identidade como se ela fosse alguma coisa inata que
caracteriza a essência de um povo é, no mínimo, uma falta de senso do
razoável. O mundo – a população mundial – se formou através de vários e
imensos movimentos migratórios que originaram a formação das nações no
decorrer dos séculos. Aliás, a formação histórica dos povos-nações é algo de
muito recente na história humana mundial. Não existe uma raça pura, um povo
puro, uma religião pura. Não existe no âmbito das sociedades humanas uma
essência, imutável, que caracteriza um grupo e somente aquele grupo. O
homem é um ser cultural. A cultura é construída, forjada de acordo com os
acontecimentos da história e criada a partir das contingências, sempre muito
singulares, das comunidades humanas.
            Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que  a identidade de um
povo só pode ser reconhecida quando consideramos sua história e as
singularidades desta história. Se podemos falar em uma identidade negra é
porque existe uma história deste povo, que comunga experiências comuns,
singulares, e que enfrentaram problemas semelhantes no decorrer do tempo,  e
que solucionaram estes problemas de formas diferentes ou equivalentes, mas
que, no entanto, permite uma aproximação existencial destes grupos. É o caso,
por exemplo, da escravidão dos africanos. Apesar deste fenômeno ter
espalhado os negros por diversas partes do globo, e, em cada parte, a
escravidão ter sido implantada de maneiras diferentes, há o acontecimento
escravidão que reúne todos os negros escravizados em uma experiência
existencial única – ainda que vivenciada de maneiras diferentes, e, por isso
mesmo,  sob condições diferenciadas. No entanto, o que é comum a eles,
fosse nos EUA, em Cuba ou no Brasil era o fato de viverem numa condição de
dominação, sendo obrigados a um trabalho não remunerado – o trabalho
escravo -, e sendo utilizados como instrumentos de trabalhos, sendo seres
privados de liberdade. Essa experiência, de certa forma, unia as diversas
etnias negras escravizadas dentro de um mesmo universo cultural. Neste
universo foram forjadas um sem número de estratégias de sobrevivência, o que
passou a integrar o universo cultural dessas populações subjugadas.
            Cultura, portanto, é um modo de organizar a vida e as relações para
mantê-la, seja em condição de liberdade ou de escravidão – até porque
ninguém é totalmente escravo e ninguém é totalmente livre.
            A discussão sobre a identidade, levando em conta essas
considerações, deve portanto ter um alcance político e social. A identidade de
um povo normalmente é pesquisada quando este povo passa por problemas de
afirmação social ou, pelo contrário, quando determinado povo procura
ascendência ao poder social. Tanto num caso como no noutro, ou seja, tanto
num contexto de dominador ou de dominado, a identidade joga aí um papel
fundamental: o de conferir legitimidade.
            Como falar de identidade negra, se os negros foram povos
massacrados durante séculos por “movimentos civilizatórios” que intentaram
destruir suas culturas no seu continente de origem? Como falar em identidade
africana, se o processo de escravização em África interrompeu toda uma
dinâmica histórico-cultural daqueles povos antes da invasão européia? Como
buscar elementos de identidade negro-africana se as várias etnias negras
espalharam-se pelo mundo, sendo forçados a processos cruéis de
desagregação familiar e muitas vezes religiosa? Enfim, como falar em
identidade africana, se o que sobrou da cultura africana, ao menos em seu
território de origem, foram fragmentos distribuídos de forma não coerente pelos
quatro cantos do mundo?
            Todas essas intrigantes questões ao invés de refutar uma teoria que
procure demonstrar a identidade negra de matriz africana apenas ressalta a
importância de se fazer tal discussão, visto que em relação às populações
negras no Brasil e no mundo, o tema identidade sempre ocupou um papel de
destaque, e visto que o momento brasileiro exige não apenas uma releitura da
identidade nacional, mas também uma releitura crítica da construção das
identidades étnicas que construíram a identidade brasileira.
            Tal destaque deveu-se, em grande parte, ao que parecia impossível.
Mesmo com todos esses fatores adversos à identidade negro-africana, os
negros espalhados pelo mundo, e, - o que mais nos interessa- sobretudo no
Brasil, conseguiram reconstituir e reconstruir a identidade negra com matriz
africana a partir da tradição iniciada muito tempo antes da invasão européia no
continente africano.
            A tradição, com base sobretudo no culto aos ancestrais e nas
ramificações dos princípios ligados a este culto na esfera da política e da
organização da produção e da sociedade, tornaram-se elementos estruturantes
da identidade dos povos africanos genericamente espalhados pelo mundo e,
especificamente, situados no Brasil.
            O candomblé é um exemplo vivo do que temos afirmado. Síntese de
várias expressões religiosas africanas, nele reuniu-se várias cosmovisões de
etnias diferenciadas e acabou por se estruturar uma cosmovisão de matriz
africana dos principais aspectos civilizatórios que existia na África tradicional.
Esses elementos atravessaram o Atlântico e apesar de estarem em novas
terras e sob novas condições, preservaram os elementos estruturantes
daquelas sociedades, mantendo sua tradição e afirmando sua identidade.
            Não seria exagero dizer que o candomblé, durante muito tempo, foi o
principal foco de resistência cultural dos negros brasileiros. Não apenas uma
resistência religiosa ou cultural. Mas uma resistência também política e social.
E muito mais que mera resistência, mas forma de preservação e continuidade
do modo de organizar a vida e a produção de um povo, permeada por
ressignificações simbólicas e sínteses criativas.
            Não é a cor da pela ou a língua de uma população que lhe confere sua
identidade. Nem mesmo os aspectos geográficos naturais e políticos que lhe
dão uma unidade. Tampouco a institucionalização de um povo através da
unidade política e jurídica de um Estado. A identidade é o que assegura a
unidade cultural de um povo. Como tal ela é uma arma política.
            A tradição, por sua vez, é o que sustenta, o que fundamenta tal
identidade. Como vimos, a tradição africana não é estática; pelo contrário a
dinâmica social em África deve muito à sua maneira de experienciar a tradição.
Os elementos estruturantes desta tradição são flexíveis e renováveis. Como
dizia aquele adágio africano: “Que esteja melhor em minha boca do que na dos
ancestrais” (Poema Songai). O tempo presente cobra atuações emergentes no
tempo presente. Em África essas atitudes são tomadas, mas não em vista de
um futuro incerto e improvável, mas assentado na sabedoria dos ancestrais.
            A cultura negra no Brasil ultrapassa a esfera religiosa. Poderíamos
considerar vários fatores do esporte, da música, da literatura, da dança e das
artes em geral, da economia, da política, das organizações populares etc. No
entanto, por uma questão de limitação de tema, procuramos ao longo deste
texto ressaltar alguns elementos principalmente ligados à religião a fim de
apontar uma cosmovisão de mundo de matriz africana presente no Brasil e
que, por sua vez, é o conteúdo desta tradição da qual nos referimos, que, por
seu turno, é o fundamento último da identidade negra brasileira.
 
Princípio do Corte e Memória Coletiva
 
            Muito embora os afrodescendentes recriem sua identidade na lógica de
sua tradição, eles vivem numa sociedade muito mais abrangente que os
territórios por ele habitados. Com efeito, vivem em mundos distintos. Se de um
lado o candomblé, por exemplo, é um espaço privilegiado da vivência da
cultura de matriz africana, a sociedade envolvente não o é, pois vive sob os
códigos do capitalismo mundial integrado. Essa dicotomia de mundos, foi
resolvida, segundo BASTIDE, através de um princípio forjado pelos afro-
brasileiros que permite sua dupla inserção na sociedade brasileira: no mundo
dos brancos e no mundo dos negros. Esse princípio é o que ele denominou
como princípio do corte.
 
O princípio de corte permitia que o negro vivesse em mundos
contraditórios sem, no entanto, esfacelar-se sua cultura de origem e sem
impedir sua ascensão na sociedade que lhe era hostil. Assim, pôde preservar
seus valores culturais nas novas estruturas que criou – o candomblé, por
exemplo -, ao mesmo tempo que conseguiu canais de ascensão social na
estrutura do mundo capitalista que se desenhava no Brasil após a abolição da
escravatura. O princípio de corte, traço generalizado entre os negros que
permaneceram “fiéis à África”, não se aplicaria ao “negro alienado do sul do
Brasil”[62]. Somente os primeiros foram capazes de viver “com toda
tranquilidade nas duas culturas simultaneamente, sem que essas culturas se
choquem, se interfiram ou se misturem” (BASTIDE, 1989, p. 238). Seria o
princípio de corte o que evitaria, para os negros fidedignos à suas tradições, “o
choque de valores bem como as exigências, no entanto contraditórias, das
duas sociedades” (BASTIDE, 1989, p. 517).
            O princípio de corte se constituiu no Brasil como uma espécie de
“reação instintiva ou automática, um ato de defesa contra tudo quanto pudesse
perturbar a paz dos espíritos” (BASTIDE, 1989, p. 529). Foi a resistência
cultural perpetrada pelos negros que possibilitou o surgimento dessa forma
peculiar de resistência. Dessa forma o negro escapava às armadilhas, ao
mesmo tempo social e cultural e igualmente fatais para sua existência: se de
um lado assimilasse a cultura do dominador, estaria aniquilando a sua própria,
ainda que aumentasse a possibilidade de ascensão social - o que lhe permitiria
viver no interior da sociedade capitalista, sendo, entretanto, freqüentemente
inferiorizado por ser da “classe” negra; se, de outro lado, mantivesse sua
cultura original, quedaria por terra sua possibilidade de ascensão social, visto
que a sociedade envolvente desvalorizava e repudiava suas práticas culturais
autênticas. Mas o princípio de corte teria feito do negro brasileiro “um fervoroso
patriota, tão ligado à sua pátria americana, quanto à sua cultura ancestral”
(BASTIDE, 1989, p. 529). É assim que vemos os negros participarem, “do
mesmo modo que os brancos”, das lutas sindicais, das ações políticas, do
mundo do trabalho etc., ao mesmo tempo que é membro de “uma seita
religiosa africana” tomando parte de um mundo onde “são outros os valores
que predominam” (BASTIDE, 1989, p.  530). No mundo dos brancos, então, o
princípio de corte permite que o negro ocupe estrategicamente lugares de
ascensão social; no mundo dos negros, permite que ele viva autenticamente
seu universo de valores culturais. “Num deles, trata-se de ‘papéis’ a
representar; em outro, de mundos mentais interiorizados” (BASTIDE, 1989, p.
530). No primeiro caso, o negro viveria num mundo moldado pelo “espírito
capitalista”; no segundo, num mundo delineado pelo “espírito
comunitário”(BASTIDE, 1989, p. 540).
            Na memória coletiva estariam preservados os valores tradicionais
africanos. Entre eles está embutido o princípio de corte. Os valores africanos
preservados na memória coletiva teriam gerado as estruturas sociais para que
pudessem vigorar. Quando falta a matéria é preciso que o espírito a invente
para nela se encarnar. “O espírito não pode viver fora da matéria e, se essa lhe
falta, ele faz uma nova” – eis a fórmula de Roger BASTIDE (1989, p. 32).
            É na memória coletiva que teríamos a solução para o problema da
relação entre as estruturas sociais e os valores religiosos. No Brasil este
problema se intensifica pois, segundo Bastide, sempre estamos diante de
“múltiplas estruturas” e de “subculturas diferentes” (BASTIDE, 1989, p. 541). As
representações coletivas, os símbolos culturais de um grupo, não subsistem
sem estruturas sociais que as recebam e sustentem. Isso não significa,
entretanto, que são essas estruturas que criam as representações coletivas. Ao
contrário, ao menos no caso dos candomblés, foram os valores culturais que
“secretaram” as novas estruturas sociais. A criação, por outro lado, não se
queda refém da memória coletiva tradicional. “Ao lado dos valores
conservados, há novos valores que nascem”(BASTIDE, 1989, p. 542). As
religiões em geral, e o candomblé em particular, são “coisas vivas”. Elas não
são apenas mantenedoras de valores tradicionais, mas também geradoras de
valores novos que retroalimentarão a memória coletiva, criando-se um círculo
de conservação e atualização de tradições vigoroso e coerente, ao mesmo
tempo tradicional e moderno.
 
Filosofia Africana
 
            No jogo das identidades a política da africanidade tem papel relevante.
Já vimos como o CMI preparou sua estratégia e armou sua armadilha.
Apresentando-se como Único Universo de Referência quis convencer-nos que
era o único modelo real para a organização da vida e da produção. No entanto,
há múltiplos regimes de signos, dos quais estamos destacando aquele gestado
na dinâmica civilizatória africana. Os MSPs, no Brasil, tornaram-se importantes
agentes na produção de subjetividade que escapem da armadilha capitalista e
recriem outros mundos possíveis[63], realizando a utopia de um mundo de
justiça social, de tolerância entre os diferentes, de solidariedade entre os
povos, de inclusão, de respeito e promoção da alteridade. As comunidades de
terreiro, o Movimento Negro – também ele herdeiro da forma cultural africana –
têm-se se esmeirado na produção de um outro pensamento assentado sob as
bases da experiência afrodescendente, revitalizando a forma cultural negra e
atualizando a cosmovisão africana.
            Da cosmovisão da matriz africana nasce a filosofia de matiz africana.
Pensamento que se re-pensa, é certo, mas também vai além de seus
domínios. Transborda as fronteiras do Si-Mesmo para encontrar a Alteridade.
Reconhece que a filosofia é antes de tudo uma atitude. Uma Ética. Uma atitude
ética baseada na sabedoria dos ancestrais. Por isso mescla racionalidade com
encantamento; logos com mito; magia com ciência. A filosofia de matizes
africanas é driativa e dinâmica. Cria seus próprios princípios e dinamiza sua
experiência civilizatória para além do eterno retorno da tradição, para manter,
atualizar e re-inventar sua forma cultural, para implementar seus projetos
políticos.
            Uma política da africanidade está fundamentada por uma ética
(filosofia) africana. No jogo das diferenças quem ganha é a diversidade
integradora e não a unidade massificadora. O diagrama da filosofia africana é
construído no plano horizontal da solidariedade e não na verticalidade
opressiva da dominação.
            As identidades, sabemos, são definidas contextualmente, obedecendo
aos imperativos do acontecimento. A filosofia africana é uma filosofia do
acontecimento uma vez que critica a filosofia ocidental fundamentada no
pensamento abstrato-transcendental (metafísico) e elege, em contrapartida, o
imanente como território do pensamento. No plano imanente aloja-se o real. O
real é a singularidade. Vivemos, no Brasil, um momento muito singular onde a
discussão da identidade nacional já não pode passar ao largo da identidade
afrodescendente. O negro brasileiro erigiu-se não como uma categoria racial-
biológica, nem apenas como uma categoria científico-sociológica, mas como
uma conquista política e, dessa forma, com finalidades propositivas na disputa
pelo poder. Poder esse que tem razão de ser, segundo a cosmovisão africana,
para assegurar o bem-estar da comunidade.
            Contra a negação do ser negro, a identidade africana recriada no Brasil
assume sua dimensão política, valendo-se da memória coletiva dos
afrodescendentes e assumindo sua herança civilizatória. Os Movimentos
Sociais, especialmente o Movimento Negro, têm pragmaticamente
implementado várias atitudes  na direção da edificação de outros modelos
sociais. Mas chegou o momento de pensar na filosofia que fundamenta essas
atitudes. É o que intentaremos fazer  a seguir. Não se trata, como é óbvio, de
desenvolver toda uma filosofia de matriz africana no Brasil. A intenção é iniciar
uma reflexão acerca da possibilidade dessa filosofia, de refletir sobre suas
fontes e de apresentar, seminalmente, alguns de seus desdobramentos
conceituais.
 
Filosofia Africana como Filosofia do Encantamento
 
            Por tudo o que foi visto é preciso recolocar a questão das essências.
Não há dúvida que não há matérias que não sofrem a influência dos territórios
culturais. Somos o que vemos. Vemos o que produzimos. Muito embora não
possamos negar a realidade das coisas, as coisas não podem negar que são
vistas senão pelos olhos da cultura. Não há nada que pode subtrair-se aos
olhos da cultura. Agora, a cultura não pode subtrair-se de suas formas de
expressão. As formas de expressão não são imateriais, muito menos seus
modos de apreensão. Somos o que vemos e o que fazemos. Somos também o
que fomos. A cultura local não se furta da história mundial. Pensar em longos
períodos de tempo é necessário para compreender a intensidade do tempo
presente. Só é possível relativizar em curtos espaços de tempo. Em longas
escalas de tempo pode-se perceber a maneira pela qual as formas culturais
podem ser constituídas. Toda mudança ocorre num padrão de estabilidade.
Nenhuma estabilidade se mantém sem o processo dinâmico das mudanças
culturais.
            Fora sempre um problema para a antropologia entender como se deram
as mudanças culturais e, para a filosofia, o problema é compreender a
diversidade alojada na unidade. Se a antropologia ocupou-se da diversidade e
a filosofia da unidade, é necessário atentar para os processos de inversão, mas
também os de reciprocidade. A reciprocidade, a lógica da dádiva é, então,
absolutamente importante para a compreensão das vias de mão dupla das
configurações das identidades étnicas que são solo de uma filosofia que
mesmo que universal nasce e dialoga em primeiro lugar com o território
identitário, num primeiro instante, mas, sobretudo,  como a forma que delineia
este terreno identitário no sentido mais profundo, no plano de intensidade mais
efetivo e efusivo.
            As essências não são coisas. São as condições ( culturais ) para as
coisas serem. As coisas são construtos dentro de determinadas balizas
culturais que, outrora, chamaram estruturas e que, doravante, prefiro  chamar
de formas culturais. As formas culturais são construções civilizatórias que se
originam das tradições. A tradição, no entanto, não é a história dos antigos. A
tradição é só uma categoria capaz de englobar os valores forjados por um
povo. Agora, a tradição é dependente, para se expressar, das formas culturais
existentes. Expressão é igual a existência. Só existe aquilo que se expressa.
Mas a existência não é tudo!  A existência também depende das condições
para que ela possa se expressar. Esta forma de expressão só pode ser
entendida a partir das formas culturais que, muito embora não exista como
ente, existe como possibilidade do ente. Uma possibilidade de condição da
criação do ente e de sua existência e que se comporte como forma cultural é o
encantamento.
            O olhar encantado não cria o mundo das coisas. O mundo das coisas é
o já dado. O Olhar encantado re-cria o mundo. É uma matriz de diversidade
dos mundos. Ele não inventa uma ficção. Ele constrói mundos. É que cada
olhar constrói seu mundo. Mas isso não é aleatório. Isso não se dá no nada.
Dá-se no interior da forma cultural. O encantamento é uma atitude diante do
mundo. É uma das formas culturais, e talvez uma das mais importantes, dos
descendentes de africanos e indígenas. O encantamento é uma atitude frente a
vida. É do encantamento que nasce a filosofia africana. Roger Bastide só pode
tornar-se uma autoridade nos estudos de candomblé porque passou pelo
encantamento. Pierre Verger passou pelo encantamento. Estrangeiros que
para compreender esse mundo tiveram que tomar a forma cultural do grupo
estudado, aí então,  converteram-se. Talvez seja isso que  Juana Elbeins dos
Santos, Marco Aurélio Luz, dentre outros, defendam que a pesquisa deva
acontecer “desde dentro”[64].
            O encantamento não é objeto de estudo como fosse uma coisa. Ele é a
condição para submeter objetos de estudo a uma pesquisa. A antropologia
racionalizou a magia. O encantamento pode encantar a antropologia e
fundamentar a filosofia. O encantamento é uma atitude. É da ordem do
acontecimento. Por isso a filosofia do acontecimento pode entender o
encantamento. Como atitude o encantamento está na ordem da escolha. A
escolha não é infinita, mas também não se dá de maneira absoluta. Ela sempre
dá-se  dentro de uma forma cultural. É possível, entretanto, escolher outras
formas culturais que não a nossa, muito embora, nossa forma cultural originária
não nos abandone. Dá-se aqui um hibridismo de formas culturais. No mundo
moderno, as fronteiras identitárias foram suplantadas. Quanto mais complexas
as sociedades, mais híbridas tendem a ser as formas culturais. As formas
culturais, no entanto, não são relativizantes em excesso, pois como formas elas
dão contorno aos conteúdos. O TAO, os hindús, dentre outros, já perceberam
isso a dezenas de séculos. Também as sociedades pré-coloniais da África.
Também as sociedades indígenas da América do sul.
           
            Forma Cultural e Filosofia Africana
 
As formas culturais contém energias e não matérias cristalizadas.
Energias são forças. Forças são a possibilidade das ações, das atitudes. Por
isso o poder é o exercício da força. A força só é limitada pela forma. A forma e
a força não se dissociam. A força é o de dentro da forma. A forma o de fora da
força. A energia se dissipa no espaço. O espaço não é vazio. Apesar do
espaço ser um conceito, esse conceito existe porque há a
possibilidade/condição desse conceito existir. O espaço é um construto
simbólico mediado por signos. Os signos fazem a mediação entre as forças e
as coisas. As coisas são signos. A força é signo. A forma é o invólucro do
signo. Por exemplo, a forma jêje está baseada no princípio da ancestralidade e
no solo. Na terra esta a forma do jêje. Nada fora da terra pode ser entendido.
Essa forma cultural pode ser alterada. Ela é construída. No entanto, é em seu
interior que qualquer alteração pode ser dada. A forma não é propriamente um
signo. Ela é a condição para o signo. Pode ser significada, mas extrapola o
signo, porque lhe dá a condição de existência. A existência não é tudo. A forma
também não. A possibilidade está aquém e além do ser. A possibilidade é a
matéria do devir. O devir é o quanta e não a matéria organizada. A matéria
organizada é a territorialização da molécula. A desterritorialização é a potência.
Só há potência se há energia. A energia é força. A força é a mãe da
possibilidade.
            A forma cultural africana, que sustenta a dinâmica civilizatória dos
afrodescendentes e que permite a manutenção/atualização da Cosmovisão
Africana no Brasil dá a possibilidade de um pensamento africano. Sem dúvida
a filosofia não paira além nem aquém da história. Ela é um seu produto. Como
tal, ela é definida nos contornos do solo de onde emerge. Se a filosofia é
universal enquanto saber autônomo e produtora de conceitos, ela é também
contextual, visto que os significados de seus conceitos são determinados de
acordo com a lógica do lugar próprio. Isto não impede, no entanto,  que os
produtos singularizados pelo solo cultural de onde emerge tenha validade e
pretensões universais. A fórmula já fora dada: quanto mais regional, mais
universal. Assim, pautamos a filosofia africana desde suas estruturas sociais e,
desde esse território político, econômico e cultural.
            Como vimos, toda a estrutura social africana é permeada pelo sagrado,
pela Força Vital que emana do preexistente ou dos ancestrais. A Força Vital
não é uma coisa, mas uma energia. Ela perpassa todo o universo africano. O
universo é um conjunto de interações de seres (minerais, animais, vegetais)
interligados, como se formasse uma imensa teia de aranha entre fenômenos
visíveis e invisíveis. A palavra flui como portadora de uma “força” divina, e por
isso mesmo capaz tanto de destruir como de construir, tornando-se, ademais,
um meio de transmissão de conhecimento sagrado ou profano. O tempo, para
os africanos, é o tempo dos antepassados. Tempo voltado para o passado -
“idade de ouro” dos africanos. Tempo sagrado envolvendo o tempo presente;
tempo dos mortos vivificando o tempo dos Homens. Tempo zamani[65] dando
sentido ao tempo sasa[66]. O tempo africano é o tempo dos ancestrais, seja no
passado, seja no presente. A pessoa é a síntese dos elementos que compõem
o universo. Resultado dos elementos naturais e sagrados, o “homem” não está
dissociado da sociedade. A dicotomia ocidental indivíduo/sociedade é
rechaçada pela concepção integralista da pessoa africana. Como o universo, a
pessoa é o resultado da integração de todos os seres que vivem
indissociavelmente interligados. A pessoa é forjada nos processos de
socialização, que tecem a identidade dos indivíduos ao mesmo tempo em que
constróem o tecido social. A socialização é sempre responsabilidade da
comunidade, o que fornece o controle social da produção da subjetividades dos
indivíduos africanos. Quando o indivíduo morre e uma tensão é criada na
comunidade africana, a harmonia prevalece ao se realizar os ritos funerários
capazes de restabelecer para o grupo a “energia” que se alojava no defunto.
Essa energia ou Força Vital passa agora ao domínio da comunidade, e se o
morto fora uma personagem significativa da vida comunitária poderá passar de
antepassado a ancestral. A “força” dos ancestrais alimenta o núcleo comum de
convivência dos africanos – a família. Locus da morada dos ancestrais, a
família cuida da produção para garantir o bem-estar material da comunidade.
Pautada na tradição dos ancestrais, a família matrilinear africana zela pela
inclusão e pelo equilíbrio, ao invés de promover o conflito e a exclusão – como
no caso dos ocidentais. Ela, então, centraliza não apenas a produção, mas
também o exercício do poder – que deve garantir o bem-estar social da
comunidade.
            A ancestralidade é a fonte de onde emergem os elementos
fundamentais da tradição africana. Ela mesma é um princípio capaz de
organizar a vida e as instituições dos africanos e seus descendentes. É a
categoria principal da “dinâmica civilizatória africana”, pois para além das
relações de parentesco consangüínea, a ancestralidade tornou-se o princípio
organizador das práticas sociais e rituais dos afrodescendentes no Brasil. É a
partir dela que se entende a lógica capaz de organizar os elementos
estruturantes dessa cultura, pois tanto a força vital, o universo, a palavra, o
tempo, a pessoa, os processos de socialização, os ritos funerários, a
família, a produção e o poder são estruturados a partir da ancestralidade. 
            A filosofia africana está baseada no princípio da ancestralidade, da
diversidade, da integração e da tradição. A ancestralidade responde pela lógica
que articula o conjunto de categorias e conceitos que revelam a ética imanente
dos africanos. A diversidade, enquanto princípio, respeita a diversidade étnica,
cultural e política dessas comunidades, valorizando as singularidades que
emergem de cada território africano. A inclusão permite que a diversidade não
se torne um cordão de isolamento, um motivo para o niilismo, mas submete as
singularidades territorializadas a um critério ético maior: o do bem-estar das
comunidades. Não existe bem-estar sem inclusão. A tradição, por sua vez, é a
malha que sustenta todos esses princípios historicamente produzidos. Trata-se
aqui de uma tradição dinâmica, capaz de se moldar aos novos tempos e
responder aos desafios contemporâneos.
            A filosofia africana, assim, não é nem estruturalista, apesar de pensar-
se desde os pontos comuns que lhes dão corpo, nem relativista, na medida em
que apesar de valorizar as singularidades, preocupa-se com as questões
estruturais do bem-estar da comunidade. Na mescla entre estrutura e
singularidade, dinamismo e estabilidade, encontramos uma filosofia pungente -
lamentavelmente negligenciada - e portadora de uma força criativa que tem
poucos paralelos na história. Filosofia tradicional que nos traz as novidades
para o mundo contemporâneo. Aprender as novidades dos antigos é sempre
uma sabedoria atual. E filosofia é sabedoria em qualquer tempo.
 
            Ética e Moralidade
 
            Rodolfo Kusch (1975, 1978)[67], sabiamente, dizia que a filosofia é
produzida desde a geocultura. Geocultura que engloba a geopolítica, a 
economia, a sociedade... De acordo com Kusch a filosofia como produto
cultural não pode ser pensada fora de seu solo. Este solo não é apenas uma
fronteira geográfica. Ele é uma delimitação identitária. Mais que delimitação
identitária, ele é o mundo mesmo. Mundo que pode ser perscrutado pela ótica
da tradição. Mundo tecido de símbolos que encontram seu significado profundo
no terreno onde é engendrado. Mundo encantado, onde uma paisagem é mais
que uma imagem; onde a paisagem é já a revelação profunda dos signos
constituidores da riqueza cultural de um povo. É a essência revelada na
aparência. O ser inteiramente presente no fenômeno.
            Os signos produzidos nos solos de cultura podem, por serem signos,
serem interpretados por quaisquer povos de quaisquer culturas. Podem ser
transmutados, ressemantizados, reelaborados em qualquer contexto. Mas é
desde o solo de sua produção que a riqueza de seus significados tornam-se,
por assim dizer, mais fortes. Não porque o signo é uma essência em si mesmo.
Mas porque o significado de um signo é sempre contextual (GEERTZ, 1989).
Ele nasce dos jogos interacionais de indivíduos ligados pelo mesmo código de
comunicação cultural. A significação cultural é simultaneamente semiótica e
pública. Semiótica porque composta de signos. Pública porque todo significado
é produzido coletivamente. Assim, a produção de signos obedece sempre a um
limite territorial - o que chamarei de territorialização do momento nascente do
signo cultural, ao mesmo tempo que possui uma linha de fuga para fora de
seus limites identitários – o que chamarei de desterritorialização do momento
ondulatório do signo.
            A territorialização é fundamental para a estruturação do signo. Sem ela
é muito difícil localizar o signo no tempo e no espaço. É o corpo do signo. Sua
carne que sustenta sua identidade. É a consistência do signo. A possibilidade
do seu vir a ser. A desterritorialização, por sua parte, permite que o signo
cultural não se torne um signo despótico. Sendo do plano das linha de fuga,
torna-se os planos de consistência desterritorializados. Leva os signos para
além dos territórios identitários e permite que sua consistência original possa
ser atualizada ad infinitun. É quando um signo pode vir a tornar-se outro.
Quando ele perde sua circularidade identitária e passa a ser a matéria da
alteridade.
            Na África foram produzidos muitos signos que, por efeito da ondulação
desterritorializada dos signos, tornou-se no Brasil fonte primordial da formação
da identidade brasileira. Pensar uma filosofia africana é, na verdade, pensar
uma filosofia brasileira com base na matriz africana. A filosofia é antes de tudo
uma ética, uma conduta frente aos outros, uma atitude frente ao mundo e a nós
mesmos. Na África de língua yorubá e no Brasil afrodescendente, a filosofia
não está apartada do sagrado. Não há a dicotomia sagrado/profano. Não há a
delimitação ciência (saber racional) e religião (saber da fé). Assim a filosofia de
matriz africana abrange essas dimensões em seu espectro. As divindades,
neste contexto, são princípios ao mesmo tempo religiosos, políticos,
econômicos e sociais.
            Oxalá e Exu são duas dessas divindades que podem ser interpretadas
como categorias fundamentais do pensamento social africano e afrobrasileiro.
Oxalá é o pai da criação. A representação máxima da moral africana. O caráter
(Íwà), a bondade (Oore), a paciência (Sùúru) e o respeito (`Qwò) são
características diretas dessa divindade funfun. A justiça, a sinceridade, a
prática da caridade (Olóòdodo), assim como manter-se uma pessoa verdadeira
(Olòótóo), são outras virtudes atribuídas a esse orixá e, por isso mesmo, se
perpetuam como valores culturais de seu povo. Poderíamos identificar Oxalá
como a força conservadora na cosmovisão africana. É uma força criativa a
força conservadora. Ele conserva a vida ao mesmo tempo que a cria. Criar é
conservar; conservar é criar. Numa palavra, é a energia criativa que conserva o
universo africano.
            Exu, de acordo com alguns mitos, é filho de Oxalá. Se o pai detém os
valores morais, o filho é o portador dos princípios éticos. Ele é o fiscalizador do
axé, a força vital dos yorubás. Segundo BENISTE (2002, p. 207), Exu “é a
efetiva regra do universo, o princípio de ordem e de harmonia, e o agente de
reconciliação”. Mas Exu não é comportado como o pai. Sopra onde quer. É o
mais autônomo das divindades do panteão africano. Faz tudo que lhe pedem;
destrói e constrói com a mesma força e empenho. Todos temem Exu. Exu foi
sincretizado com o diabo, tamanho o temor que inspira. Mas Exu não tem os
atributos de Lúcifer, pois ele não está em oposição com Deus. Pelo contrário, é
ele quem mantém viva a chama da ética. Ele rege os princípios da harmonia e
do bem-estar, ainda que para mantê-los precise destruir e ser enérgico. Exu é
a força dinâmica do universo de matriz africana. Exu é o próprio princípio ético,
por isso ele não é submetido a ninguém. Ele submete! Exu interliga todas as
coisas, orum e aye, homem e divindade, “bem” e “mal”, força e fragilidade.
Tudo que faz é para manter o equilíbrio dinâmico do universo africano. Nisso
reside a força de Exu, e a isso se resume a ética africana. Ética que não se
opõe à moral, mas é dela um complemento. É quando se encontram, no seio
da mesma cosmovisão, tradição e atualidade, movimento e estabilidade, moral
e ética. A lógica da cosmovisão africana privilegia a complementaridade e a
integração. Oxalá e Exu, assim, são expressões da mesma cultura, cada qual
com sua intensidade e cada qual com sua função. Um não existe sem o outro.
Um e outro são dinamicamente confrontados no jogo de interação social
produzido desde a matriz africana. Oxalá produz os signos territorializados, que
dão consistência à comunidade e forma para elas um terreno seguro de
identidade tradicional. Exu, enquanto princípio dinâmico, é o signo
desterritorializado, que atualiza a tradição e permite que a África não se torne
uma prisão para os signos ali produzidos e, pelo contrário, faz dela solo fértil
para a produção simbólica dos africanos em todas as partes do planeta,
especialmente no Brasil. Essa operação semiótica está no bojo mesmo da
concepção filosófica do povo africano e de seus descendentes. Essa filosofia
africana, é, portanto, filosofia universal, pois, graças a Oxalá, ela emerge de um
solo e pode ter o designativo “africana” e, graças a Exu, ela é universal, pois
desterritorializada que é, pode oferecer os princípios produzidos
contextualmente em solo cultural africano para o mundo todo, pois a vida – e o
equilíbrio dinâmico que a sustenta – é uma prerrogativa de todos os humanos.
            Voltando à questão da ética e dos princípios que são a fonte da forma
cultural negra, pode-se dizer que a ética africana não é normativa nem
prescritiva. Ela é educativa. Ela é erótica e estética ao mesmo tempo. Por ser a
ética a primeira filosofia, é a filosofia antes que tudo uma ética[68]. A ética é da
ordem do acontecimento e, por isso tudo, ela é uma categoria que se relaciona
antes que tudo com as atitudes. Somos condenados à escolha, e a escolha
pode-nos lograr a liberdade. A ética não é a ciência da liberdade, muito menos
as regras que conduzem à liberdade. A ética é uma atitude! Como toda atitude
só pode ser significada a partir de um território cultural, a ética está
condicionada aos contextos culturais que lhes dão significação. A Ética visa
mais o respeito às significações culturais que à liberdade em si mesma. O fim
da ética, no caso africano, é manter a forma cultural e não normatizar a
liberdade.
A ética é uma atitude que se tem diante do outro: outro animal; outro
vegetal; outro mineral; outro divindade. Essa atitude é organizada de acordo
com a forma cultural do grupo. A ética é precisamente esta atitude frente à
comunidade. É ética a atitude que preserva as formas culturais. Não é ética as
atitudes  guiadas contra os interesses/cultura do grupo. Assim, pode-se ter
inovações na tradição sem romper com a ética. Inversamente, pode ocorrer
que o tradicionalismo quebre com a ética do grupo, ao, p.e., engessar uma
norma que já não responde à forma cultural do grupo.
       A ética não é uma moral. A ética é mais que princípios que orientam as
ações. Ela é, em si mesma, uma atitude. Atitude que terá como instância de
avaliação as formas culturais – que foram coletivamente construídas por
gerações. Por isso a ética de matriz africana não queda-se submissa aos
filósofos de gabinete, aos chefes de estado, ao sacerdócio religioso, etc. Ela é
um patrimônio coletivo fabricado em uma larga escala de tempo.
       Para entender a ética africana é preciso que nos dediquemos a
compreender a atitude dos personagens míticos e estabelecer relações
possíveis desses personagens com a forma cultural africana.
       Há pouco, elegi EXU como o personagem que personifica a própria ética
africana. Elegi também a Oxalá. O primeiro para tratar da ética e o segundo
para compreender a moral africana. É que a ética é a desterritorialização das
normas e, para além dos princípios, resolve-se no calor dos acontecimentos.
Por isso admite a surpresa, o acaso, a incerteza, a sedução, o perigo, a
violência e até mesmo a violação. Já a moral é o espaço da criação, da
territorialização dos sentidos, da fabricação dos significados – territorialização
sem a qual não existe materialização – que é a base da existência. Oxalá cria a
existência. Exu a dinamiza. Oxalá constrói, Exu interliga. Oxalá é a pragmática.
Exu a sintaxe e a semântica. Na gramática  da forma cultural africana ética e
moralidade formam um conjunto inseparável.
A filosofia africana, como dissemos, é antes de tudo uma ética
(LEVINÁS, 1980, 1982). Desenquadrada dos moldes da filosofia clássica,
medieval e moderna, a filosofia de matiz africana abre-se para várias
possibilidades. Longe do paradigma da representação, é uma filosofia do
sentido. Dissonante com a filosofia da totalidade, intenta ser uma filosofia da
alteridade. Discordante com a filosofia da identidade, enviesa-se por uma
filosofia da diversidade[69]. Diversidade de estilos, de temas e de solos. A
filosofia emerge sempre desde um solo. Por ser filosofia não é filosofia de um
lugar, mas desde um lugar. É filosofia, portanto, com pretensões de conjunto e
fundamentação, mas sua matéria está embotada do solo de onde emerge...
            A ética que emerge da filosofia da atitude esta assentada na aderência
da pele do real: nos acontecimentos. Não é uma norma abstrata reguladora
das ações humanas. Não deixa de ser normativa, mas não é uma norma. O
código ético africano está baseado em princípios. Esses princípios não são
deduzidos de uma metafísica, mas de uma ontologia encontrada na textura das
coisas. As “coisas “ das quais falamos são compostas de “energia”, nos
mesmos moldes que falamos da Força  Vital.  A ontologia africana lida menos
com coisas que com forças. Ela está impregnada do conceito de força, e, a
base da ética e da moral é exatamente a ontologia da forças. Oxalá e Exu são
forças que tem função no universo. Enquanto forças eles podem criar e
transcender territórios; destruir e forjar identidades. É uma ética do
acontecimento. Uma ética mais fundamentada no sentido (que não tem um
fundamento) que na representação. Uma ética onde o bem-estar da
comunidade tem mais peso que os privilégios individuais. O que vai dizer o que
é “bem-estar” para a comunidade é o seu contexto, isto é, a própria
comunidade. Isso é o único universalizável, a saber: o princípio. As normas
variam de comunidade para comunidade, de contexto para contexto. O
princípio, apesar de sofrer mutações, permanece como o território de onde
nascerão os signos culturais que darão consistência às regras da comunidade
– neste caso, regras comunitárias – que tem como finalidade garantir o bem-
estar social. O princípio é a territorialização dos signos culturais africanos e as
normas a singularização desses princípios nas diferentes comunidades. A ética
é assim a territorialização da tradição, terrreno-mor de onde emergem os
princípios da forma cultural africana. Mas, atentem. Não são princípios
estabelecidos como conteúdos fixados pela tradição. São princípios de formas
de organização que ganham conteúdos diferentes, conforme diferentes são os
contextos sociais. A ética é menos um conjunto de princípios axiomáticos, e
mais uma forma de vida. A ética africana é já sua forma cultural. A forma
cultural africana manifesta-se como uma ética étnica. Essa forma de vida é
perpetuada e ressemantizada pela tradição. Não é a tradição que impõe a
continuidade dos valores cunhados pelos ancestrais. Na ética africana,
interessa mais a forma ancestral do repasse da tradição. Digo: a ancestralidade
é já uma ética. É a sua forma (cultural), o seu lado de fora que delimita
enquanto território a possibilidade de seus conteúdos, estes sim, mutáveis de
acordo com as cores regionais. Por isso a ética africana está associada a Exu,
pois ele é o princípio dinâmica do universo simbólico africano (yorubá).
            A moral africana que encontra seu ícone em Oxalá, é complementaria
da ética. Há, porém, uma singularidade na moral africana. Ela é criativa e não
apenas normativa. Derivada da ética, a moral normatiza a vida, isto é, cria a
possibilidade do bem viver. Por isso o código moral africano é implacável com
aqueles que não obedecem a forma ancestral de repasse do conhecimento e
da vida comunitária. Por isso ela regula a convivência social para garantir a
inclusão, a diversidade, a complementaridade e o bem-estar do grupo. Bem-
estar do grupo que depende das boas relações com a natureza – da qual o
grupo humano se sente parte e não à parte – e com as divindades. Moral,
então, é questão de responsabilidade social e comunitária. Moral é criar as
condições para a vida de cada um e de todos. A moral, neste caso, é o lado de
dentro da ética. Sendo criativo, muta-se constantemente ao sabor das
transformações do real. É signo desterritorializado que por causa de seus
movimentos ondulatórios proporciona a criação da novidade; esta criação, no
entanto, segue a forma da ancestralidade, que rege da mesma forma, mas com
diferentes normas, os conteúdos normativos de cada comunidade.
            A forma cultural, ela mesma, é mutável. Não enquanto substância, mas
por sua característica de modelar o real. Sendo a filosofia africana uma filosofia
do acontecimento, penso tanto a organização do acontecimento a partir das
regras comunitárias (moral) como a forma que envolve essas regras (a ética!).
Não existe moral sem ética e ética sem moral. Se existe o dentro existe o fora.
Tudo está em tudo, diz a tradição nagô. O universo se comporta como uma teia
de aranha: cada singularidade – regra da vida individual e comunitária – define
sua forma no confronto com a forma que lhe define os contornos.  É assim que
a forma cultural africana, definida como ética, traz no bojo de sua cosmovisão
um emaranhado de experiências que apontam outros caminhos para a
organização da vida e da produção, sendo, portanto, na razão mesma de sua
existência, uma crítica ao Capitalismo Mundial Integrado e uma alternativa ao
sistema de exclusão, visto que os princípios que sustentam sua dinâmica
civilizatória estão assentados na inclusão, na interação e na diversidade. A
ética é, com efeito, a construção da liberdade de mim mesmo e do outro. Essa
construção pode dar-se, não apenas como fundamentação filosófica coerente,
mas, sobretudo, se a experiência coletiva de um povo fornecer-lhe os
elementos para tal. Essa é, exatamente, a situação da África e de seus filhos
espalhados pelo mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
 
            Os afrodescendentes sempre foram negados pela representação
dominante da história do Brasil. Considerados máquinas de trabalho na
escravidão, estigmatizados como  vagabundos no período pós-abolição e
folclorizado em seus aspectos culturais no Brasil contemporâneo, teve sua
alteridade negada pelo sistema de dominação. Desde os tempos em que se
duvidava da existência de suas almas até nossos dias, onde se duvida de sua
competência e capacidade civilizatórias, o negro brasileiro fora desumanizado,
inferiorizado e discriminado, reduzido à uma identidade atribuída por outréns
(seus algozes). Identidade como armadilha ideológica de aprisionar o negro
num ciclo vicioso de repetição de esteriótipos e preconceitos que reificam o
racismo no Brasil. Já dizia Malcon X que não existe capitalismo sem racismo.
Com efeito, o CMI ao eleger-se como universo único de referência e
sobrecodificar os outros regimes de signos, fossilizou uma representação
negativa da população afrodescendente. Condenou os negros a viverem
alheios a seus próprios códigos culturais, na tentativa malograda de força-los a
reproduzir o sistema de dominação que lhes mantinham cativos.
            Ora, a história não possui apenas uma direção e, mesmo subordinados
a um sistema de dominação, os afrodescendentes souberam dar respostas
criativas a essa situação de opressão. Não obstante o jugo da escravidão, os
africanos e seus descendentes preservaram e recriaram suas manifestações
sócio-culturais por todo o território nacional. Se eram vistos como máquinas
(“res instrumentaliun”) pelos senhores de engenho, se foram tidos como
“marginais” no período pós-abolição, se são estigmatizados como resíduo
folclórico de cultura no presente, isto não significa que assim o sejam e se
comportem. A dinâmica civilizatória africana transladada para o Brasil gestou
uma cosmovisão que pode ser potencializada como modelo sócio-econômico e
político-cultural não apenas para os afrodescendentes, mas para todo o
planeta. Não se trata aqui apenas de defender uma representação positiva dos
afrodescendentes para diminuir os efeitos nefastos das representações
negativas a que foram submetidos durante os últimos séculos. Trata-se, isto
sim, de demonstrar a falência do CMI que danifica todo o planeta e apontar
outros caminhos para a humanidade. Paradoxalmente, é justamente no
contingente civilizatório ao qual foi negada a humanidade que agora surge os
modelos que re-humanizam nossa espécie. Alguém poderia pensar que esse é
um discurso megalomaníaco, grandiloquente e apaixonado. Sem dúvida é um
discurso carregado de afeto, posto que tomado de paixão, mas, também,
lúcido, pois evita as soluções fáceis e os discursos românticos. O modelo
econômico do Capitalismo agrediu de tal modo o Meio Ambiente que coloca em
risco a vida no planeta. O sistema do capital exclui cerca de 2/3 da população
dos benefícios de seu  modo de produção. O sistema político tornou-se refém
dos interesses privados das grandes corporações empresariais, chegando ao
absurdo de ficar subjugado, por exemplo, à indústria bélica – como é o caso
recente dos E.U.A. A segregação entre homem e natureza acabará por destruir
a humanidade e o ecossistema. O acúmulo do capital acabará por reproduzir
apenas capital[70] – como já acontece no sistema financeiro -, sem preocupar-
se em produzir os bens necessários à manutenção da vida da nossa era e das
gerações futuras. Enfim, vivemos o colapso de um sistema de exclusão que
teima afirmar-se como único caminho para a organização da vida e da
produção. A falácia dessa semiótica significante já foi desvendada. A armadilha
dessa ideologia dominadora já foi desfeita. Para além da crítica, no entanto,
apontamos outros caminhos.
            Novos caminhos, entretanto, exige a discussão acerca dos paradigmas
necessários para organizar a vida e a produção, sem que as diferenças sejam
massacradas, sem que a diversidade seja massificada na unidade de um único
referencial significante. Ao contrário, o paradigma que desenhamos é aquele
do arco-íris, capaz de conter numa unidade estética a diversidade e beleza das
várias matizes de cor. Da mesma maneira, o paradigma ecosófico que surge
da África e de seus filhos integrados em todo o mundo, congrega uma unidade
política e social capaz de gerir o bem-estar de todos e de cada um, sem reduzir
a diversidade – fonte da pluralidade cultural que inspira novos paradigmas
includentes.
            Desta forma, buscamos nos três Impérios Africanos e nas religiões afro-
brasileiras elementos que estruturaram estas sociedades e que apresentam
modelos concorrentes ao capitalismo (CMI). Não obstante, não basta
simplesmente resgatar a cosmovisão de uma população tradicional. Isso seria
recair no mito do bom selvagem. Não interessa-nos nem o naturalismo
primitivo, nem o romantismo ingênuo. Primamos, isto sim, por uma abordagem
política do fenômeno cultural, uma vez que a discussão da identidade de um
povo é antes de tudo a discussão de um projeto societário.
            Os ritos de iniciação, por exemplo, equivalem a processos de
socialização. São ritos coletivos que iniciam os jovens nas responsabilidades
da vida adulta, no caso da África, ou ritos de ingresso na comunidade dos
orixás, no caso dos candomblés. Ou seja, a construção dos sujeitos é uma
responsabilidade da comunidade. O social é organizado para lograr o bem-
estar da comunidade e de cada indivíduo, mantendo seus segredos e suas
normas coletivas de controle.
            A relação com o Meio Ambiente também é exemplar. A natureza é
divinizada pelos africanos e seus descendentes. “Kosi ewé, kosi orisá” (“sem
folhas não há orixá”), dizem os nagôs. Ou seja, se não houver uma relação
digna com a natureza não existe nem os deuses, nem os homens. Não há
separação entre homem e natureza, entre cultura e civilização. Os africanos
inventaram a civilização da natureza, ou seja, uma civilização assentada na
relação interativa com o Meio Ambiente e não contra ele.
            A ancestralidade é a maior e mais importante referência destas
sociedades. Ela é o coração vigoroso da cosmovisão africana. Ela é a lógica
que engendra e organiza os outros elementos do pensamento africano recriado
em nossas terras. É o epicentro do regime semiótico afrodescendente que
engendrou, concretamente, as formas culturais africanas e sua dinâmica
civilizatória. A ancestralidade é a referência no tempo, no espaço, no orun[71]
e no aiyê[72]. Ela é portadora privilegiada da Força Vital, é o centro da família,
quem dá a direção na produção e a fonte máxima de poder. Os ancestrais, com
efeito, é a representação genérica da sociedade africana.
A cosmovisão africana redefine as concepções filosóficas a partir de sua
própria dinâmica civilizatória, de acordo com o escopo de sua forma cultural.
Assim, o universo é pensado como um todo integrado; a concepção de
tempo privilegia o tempo passado, o tempo dos ancestrais, e sustenta toda a
noção histórica da cosmovisão africana; já a noção de pessoa é vista de modo
muito singular, cada qual possuindo seu destino e procurando aumentar a sua
Força Vital, o seu axé;  a Força Vital que é a energia mais importante dentre
esses povos, insufla vitalidade ao universo africano.  A palavra, por sua vez, é
tida como um atributo do preexistente, e por isso mesmo, promovedora de
realizações e transformações no mundo, veículo primordial do conhecimento. A
morte, por seu turno, não significa o fim da vida, mas parte do processo cíclico
da existência que tem como referência maior os ancestrais. A morte é a
restituição à fonte primordial da vida, a lama que está situada no orun. A
família é a base da organização social. Os processos de socialização forjam
coletivamente o indivíduo, fundamentando o objetivo a ser atingido
socialmente: o bem-estar da comunidade. Por fim, o poder, que é vivido
coletivamente, tem o objetivo de promover a comunidade e garantir a ética
africana.
As religiões tradicionais da África congregam todos esses elementos em
seu bojo.  Elas são imanentes e comunitárias. Pragmáticas, norteiam-se pela
eficácia e pela realização do crescimento da força vital de suas comunidades, o
que se traduz em bem-estar social. Organizadas em torno do culto aos
ancestrais e aos orixás, são controladas socialmente, uma vez que a religião
não está desvencilhada da política e da economia. Aliás, a integração e a
diversidade são outras características marcantes das religiões tradicionais da
África. Nelas, há uma sacralidade profunda e uma manifesta habilidade social.
Sagrado e profano coabitam o mesmo plano, o que equivale a dizer que o
cotidiano é sacralizado e que o religioso é imanente.
Ao refletir sobre estas características culturais quizemos rediscutir a
identidade nacional no seio de um cenário político ideológico em que estão
inseridos as comunidades de terreiro e a práxis dos MSPs, especialmente dos
Movimentos Negros organizados. Discutir a identidade é crucial para se
estabelecer um diálogo acerca da falácia da globalização e de possíveis
alternativas frente ao Capitalismo Mundial Integrado. As políticas, por mais
globalizadas que sejam, sempre erigem um polo de referência que estão
vinculadas à identidade de um povo, nação ou etnia. Não quizemos, como
dissemos muitas vezes, propor a inversão dos polos de dominação, propondo
um sistema negro-africano de dominação ao invés de um sistema branco-
europeu de opressão. Intentamos, isto sim, demonstrar como a cosmovisão
africana não polariza as dicotomias de dominação, efetuando planos
diagramáticos em que se cruzam, transversalmente, o negro e o branco, a
natureza e a cultura, a vida e a morte, o sagrado e o profano, o poder e o
serviço, a ética e a moral. Não se trata de inverter os pólos de dominação, mas
de combatê-la. Não se trata de globalizar a cultura negra, mas universalizar
seus valores. Não se trata de conquistar a hegemonia política negro-africana,
mas de promover sua experiência civilizatória a fim de criar novos regimes
sociais fundados na solidariedade e na justiça. Cumpre reconhecer que os
móbiles da práxis dos africanos e seus descendentes brasileiros
(especialmente aqueles participantes dos MSPs) foram o desejo de comunhão
e o desejo alterativo – verdadeiros articuladores da cosmovisão africana no
Brasil.
Oxalá a cosmovisão de matriz africana seja, contemporaneamente, um
suporte para a busca de alternativas reais ao Sistema do Capital Globalizado,
que até agora globalizou apenas a miséria humana, tanto em sentido real
quanto figurativo. Que existem práticas condizentes com os princípios
estruturais da cultura africana foi o objetivo subjacente deste livro que
preocupou-se em apontar realizações concretas dos povos que materializam,
em seu cotidiano, a cosmovisão de matriz africana. Esses princípios
vivenciados na dinâmica civilizatória dos afrodescendentes não são
experiências condenadas a habitar o círculo desse contingente populacional.
Eles extrapolam as fronteiras da cultura negra para africanizar a política, a
economia e os sistemas sócio-culturais em qualquer parte do mundo.
Africanizar, neste sentido, não é reduzir as diferenças ao equivalente geral da
forma  cultural africana. Africanizar é dignificar, é abrir-se à alteridade, é
desejar a diferença, é promover a ética, valorizando a expressão de todos e de
cada um, sem massificação ou imposição de modelos, mas fundamentando as
múltiplas respostas criativas num sistema ético que, por princípio, define-se
pela liberdade. Liberdade esta que está longe de ser a liberdade formal
cunhada pelos ocidentais. Buscamos tenazmente os processos de libertação
efetivos, includentes, que não fiquem esvaziados por discursos abstratos e sob
lógicas transcendentes. Viver sob um regime ético, que promova a justiça
social e a emancipação humana, bem como a preservação e valorização do
planeta, ao mesmo tempo que não se imponha modelos políticos totalitários,
que se evite o etnocentrismo, o machismo e o racismo são desafios que não se
encerram neste estudo, mas que, a partir deles, convidamos os leitores a
seguir para além das fronteiras deste livro, na aventura da construção da
CIDADANIA!
 

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[1]Fazemos questão de nos remeter à África como o continente do Arco-Íris posto que este último é uma
imagem que representa bem a diversidade e a beleza da multiplicidade cultural existente em solo africano
e carregada por seus descendentes em todas as partes do mundo.
[2] “No seu Curso sobre  a Filosofia da História, em 1830, declarava Hegel: ‘ A África não é uma parte
histórica do mundo. Não tem movimentos,  progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela.
Quer isto dizer que a sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que
entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto
em condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da história do mundo’.
In: KI-ZERBO, j. História da África Negra. Ed. Biblioteca Universitária, 1980.
[3] Haja visto que o trabalho escravo, considerado o mais atrasado pela elite rural, foi substituído pelo
trabalho de tração animal. Comenta-se que as condições de trabalho para uma res era mais favorável do
que para o africano escravizado.
[4] As designações “África Branca” e “África Negra” são completamente ideológicas. A chamada 
‘África Branca” não é branca, mas negra. Ocorre que ali predomina a cultura árabe, depois de séculos de
ocupação, muito embora interpenetrada com as culturas de origem.
[5] O IPAD – Instituto de Pesquisa da Afrodescendência, tem um projeto de publicar livros didáticos
sobre a História da África, onde teremos a possibilidade de escrever obras especializadas sobre a África
para orientar os educadores.
[6]Povos pastoris, que não constituem estruturas estatais e não coupam um território determinado.
[7] Sobre o regicídio e a lógica política de governos africanos, vide: ZIEGLER (1972).
[8] ERNY, P. L’enfant dans la penséé traditionnelle de l’Afrique noire. Paris: Le livre Africain, 1968.
[9] Yakemi é o nome-de-santo da antropóloga Ronilda Ribeiro.
[10] Prefácio de Jung ao I Ching – O Livro das Meditações – tradução de Richard Wilhelm. São Paulo:
Ed. Pensamento, 1987. 21a. edição.
[11]Sobre Força Vital entre os bantos vide a obra clássica: TEMPELS, R.P.P. La Philosophie Bantoue.
Paris: colléction Présence Africaine, 1949. Vide também no subitem: Filosofia Banto, p. 74, Cap. II.
[12] Segundo LEITE (1984, p. 35), essas relações tem como exemplo os “processos de socialização,
com suas etapas iniciáticas – que fazem configurar o homem proposto pela sociedade em sua dimensão
social -, e também das atividades relacionadas com outras instâncias históricas, onde as ações humanas
complementam  a obra inicial do preexistente, colocando-a – com o cuidado e conhecimentos exigidos
pela vitalidade que anima os seres – em estreita relação com a sociedade,  como ocorre, para citar outro
exemplo, com a manipulação da terra, fator básico da produção”.
[13] TEMPELS, R.P.P. La Philosophie Bantoue. Paris: Colléction Présence Africaine, 1949.
 
[14] MBITI, J. S. African Religions and Philosophy. London; Naiorobi; Ibadan: Heinemann, 1969.
[15] Os Griots são contadores de história africanos. São os responsáveis pela transmissão do
conhecimento dos antepassados para as novas gerações. São tradicionalistas, expressam-se através de
crônicas, armam genealogias e são incumbidos de transmitir oralmente a tradição histórica.
[16] OBENGA, T. “Fontes e Técnicas específicas da história da África. Panorama geral”. História Geral
da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática  [Paris]: UNESCO, 1982. Páginas
91-104.
[17] “O griot praticamente deixa de lado os afloramentos e emergências temporais denominados em
outros lugares “ciclo”(idéia de círculo), “período”(idéia de lapso de tempo), “época” (idéia de
momento marcado por algum acontecimento importante), “idade” (idéia de duração, de passagem do
tempo), “série”(idéia de sequência, sucessão), “momento” (idéia de instante, circunstância, tempo
presente) etc. É claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos), nem o passado humano,
já que o que ele relata é, de fato, passado” (OBENGA citado por RIBEIRO, 1996, p. 57).
[18] “A cabeça é composta da fronte, oju ori, que se relaciona com o iyo-orun,  nascente do mundo; do
occiptal, ikoko ori,  que se relaciona com o iwo-orun,  o poente; e dos lados direito, apa-otun ori,  e
esquerdo, apa osi-ori,  que se relaciona com a direita e a esquerda do universo; e finalmente, do centro,
que reúne todos os apectos” (LUZ, 1995. p. 55).
[19] “Dotada dessa energia vital que a sacraliza, a terra não pode ser apropriada pelo homem, que,
entretanto, está potencialmente habilitado a ocupá-la segundo as normas ancestrais” (LEITE, 1984, p. 47).
[20] SANTOS, Juana Elbein dos.  Os Nagô e a Morte: Pàdè, Asèsè e o culto Égun na Bahia. 3 ed.
Petrópolis: Vozes, 1984.
 
[21] Da região sudanesa.
[22] De toda região austral da África.
[23] Do Sudão.
[24] Da costa ocidental da África.
[25] Região do antigo Daomé, hoje Benin e partes da Nigéria.
[26] Sudeste da áfrica.
[27] Sobretudo da Nigéria.
[28] Região de Angola.
[29] Região da África Central.
[30] Região entre a África Central e Angola.
[31] Região ao longo do Rio Nilo, incluindo o Egito.
[32] Região oeste do Sudão.
[33] Sul da África.
[34] Região do Zimbzbue, que abarca toda a África do Sul e seus vizinhos.
[35] Sobre o Princípio da Complementaridade atualizada nos candomblés brasileiros vide o subitem:
Relações de Gênero e Candomblé, p. 57, Cap. II.
[36]  É claro que era a negociação possível dentro do contexto escravocrata da época.
[37] Ao menos é assim que entendemos suas proposições.
[38] SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 53.
[39] Cfe. SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 131.
[40] Cfe. SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 133.
[41] Sobre o segredo, a luta e a regra dos afrodescendentes consultar: SODRÉ, Muniz. A Verdade
Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 137-148.
 
[42] Sobre a ideologia do branqueamento e sobre a mestiçagem vide: O Mito da Mestiçagem, p. 91,
Cap. III.
[43] “O conflito constantemente vivido entre aquilo que é socialmente imposto se ritualiza todo o tempo”
(CARNEIRO;CURY, s/d b, p. 26).
[44] Cultura “capitalística” é aquela cultura própria do Capitalismo Mundial Integrado, ou seja, não se
refere apenas à sistemas formalmente capitalistas, mas a todas as sociedades que se organizam de acordo
com o sistema do capital, obedecendo e reproduzindo sua lógica.
[45] O grifo é meu.
[46] Trata-se de Willian Madson Calhoun Jr. (Bill), que,  no momento em que eu estava escrevendo este
texto sobre meio ambiente e candomblé em Icapuí - CE, surgiu em na minha frente, transfigurado, e me
narrou a história que Yemanjá lhe contava num ouvido, e Ifá ponderava no outro.
[47] Dessa maneira aprofundamos a definição de cultura negra através da reflexão sobre as formas
culturais gestadas pelos afrodescedentes. Estaremos a falar, então, de formas culturais produzidas pela
cultura negra, procurando evitar tanto as análises abstratos-universalizantes – que redundaram em
sistemas totalitários, quanto o relativismo absoluto – que redunda em paralisia política.
[48] Costa ocidental da África.
[49] Região centro ocidental e sul do continente africano.
[50] TEMPELS, P. La Philosophie Bantoue. Paris: Présence Africaine, 1949.
[51] Pe. Altuna citado por LOPES (1988).
[52] Referimo-nos a GUATTARI, F. As Três Ecologias. 4 ed. – Campinas, SP: Papirus, 1993.
[53] Este texto e  fruto, originalmente, de uma pesquisa coletiva sobre a Práxis e Subjetividade nos
Movimentos Sociais Populares,  no seminário: Movimentos Ssociais Populares: os desafios da práxis.,
ocorrido em Passo Fundo – RS.
[54] Para se entender o paradigma ético-estético e a lógica do sentido, vide: DELEUZE (1974,1992);
GUATTARI (1992, 1993); DELEUZE/GUATTARI (1995 a, 1995b,1996,1997 a, 1997b).
[55] Como discutimos no capítulo anterior ao tematizarmos as relações de gênero no candomblé e a
relação deste com o meio ambiente.
[56] Cumpre lembrar que definimos, com Muniz Sodré, a cultura como a sedução do real.
[57] Trata-se aqui de uma  reelaboração do conceito de Emmanuel Lévinas  desenvolvido pelo  autor  em:
LEVINAS, E. De Otro  Modo Que Ser, o mas alla de la Esencia, Salamanca: Editora  Sígueme, 1987.
[58] É certo que nem toda práxis dos afrodescendentes gera vida, muito menos comunhão e equilíbrio
social. Não queremos criar idealismos! Destacamos, entretanto, apenas os elementos filosóficos que
apontam para uma sociedade que tenha princípios e valores distintos do CMI, por entender que a
cosmovisão africana erige-se como uma proposta de mais vida para a humanidade.
[59] DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
[60] A obra citada de Gislene SANTOS (2002)  foi prefaciada por Kabengele Munanga.
[61] Os grifos em negrito são meus.
[62] “O ‘princípio de corte’ só tem um valor limitado. Supõe, com efeito, um certo equilíbrio entre os
dois movimentos de ‘enculturação’, africano e ocidental (...). Razão porque ele age sobretudo nas famílias
tradicionalmente ligadas ao candomblé, nas classes baixas da sociedade onde a influência da escola
multirracial permanece confinada a alguns anos da primeira infância e nas comunidades onde os
preconceitos de cor são mínimos. Quando, ao contrário, as inversões das estruturas sociais arrastam a luta
das etnias para o mercado de trabalho e, como consequência, a intensificação dos esteriótipos ou das
discriminações, mesmo larvadas ou disfarçadas, como meio de os brancos manterem o comando da
sociedade global, então a crise revela as contradições dos mundos justapostos e as ideologias negras
substituem as religiões africanas, ou as penetram com valores novos” (BASTIDE, 1989, p. 531). (O
grifo é meu).
[63] “Um Outro Mundo é Possível”  foi o slogam das três edições do Fórun Social Mundial que ocorrereu
em Porto Alegre em 2001, 2002 e 2003.
[64] Cfe SANTOS, Juana Elbein dos.  Os Nagô e a Morte: Pàdè, Asèsè e o culto Égun na Bahia. 3 ed.
Petrópolis: Vozes, 1984. P. 16.
[65] Zamani é o tempo dos mitos. Tempo dos Ancestrais. Tempo inesgotável.
[66] Sasa é o tempo dos viventes. Tempo da experiência. Tempo limitado.
[67] Rodolfo Kusch é filósofo da libertação. Nascido na Argentina fez um trabalho pioneiro na interface
filosofia/antropologia, trazendo novos elementos conceituais a partir da mescla da pesquisa de campo
com a investigação filosófica.
[68] Emmanuel Levinás, filósofo lituano, já defendia a tese da Filosofia como uma Ética. Vide:
LEVINÁS, E. Ética e Infinito. Lizboa: Ed. 70. Concordes com Levinás, cremos que a filosofia é antes de
tudo uma ética posto que baseada na relação com a alteridade. Sobre a Ética de Levinás vide: LEVINÁS
(1980, 1982, 1984).
[69]Diversamente da tradição predominante da filosofia tradicional (período clássico, medieval e
moderno), a filosofia da diferença é uma atitude. Se a pretensão da tradição da filosofia é  uma
explicação/compreensão do mundo, esta filosofia é uma atitude frente à filosofia e ao mundo. Como
atitude ela é da ordem do acontecimento. Por princípio não busca a unidade na diversidade mas a
diversidade da unidade. Reconhece o universal e o transcendental. A questão não é negar ou afirmar o
universal. A questão é de ênfase e de guinada de perspectivas. A perspectiva da filosofia da diferença é
atuar visando a diversidade do real e não a unidade dos fenômenos. Na diversidade dos fenômenos
encontra-se as diferenças do real. A ênfase, agora, recai sobre a singularidade e não sobre a
transcendentalidade. Busca-se, então, compreender a complexidade do real e não desvendar seus
complexos códigos em fórmulas simplificadas de filosofia. Compreender as dobras do real, os interstícios
dos contatos, o não dito, o diluído. Mais acompanhar que compreender. Mais criar que explicar. Mais
movimento que ossificação. Mais filosofia como vida, menos filosofia como alheamento. Mais
participação, menos observação. Mais desejo, menos interpretação. Mais usina, menos teatro. Mais
tolerância, menos rejeição. Mais diferença, menos repetição. A filosofia da diferença é antes de tudo uma
ética. Por ser uma filosofia que explicita sua atitude diante do mundo ela é, em primeiro lugar, uma ética.
Sua atitude estética diante da vida é a expressão de uma atividade ética diante do mundo. Estética aqui
não é compreendida como a vertente da filosofia que estuda a arte, o belo. É a “ciência da sensibilidade”,
que opera com os afetos, os perceptos, os energéticos e o cognitivo. É fazer filosofia não apenas com a
razão. É ampliar a definição mesma de filosofia, superando a máxima de que a filosofia é o pensamento
racional. Daí incorporar no tecido mesmo da filosofia, as categorias do desejo, da libido, dos afetos e das
sensações que nos ata ao mundo e sua complexa diversidade.
[70] A isso dá-se o nome de capital especulativo, ou seja, capital que ao invés de produzir bens e serviços,
produz apenas capital.
[71] Mundo invisível, sagrado.
[72] Mundo visível, tangente.
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