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DOM BOSCO:

HISTÓRIA E CARISMA
2
Expansão: de Valdocco a Roma
(1850-1875)

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Arthur J. Lenti

DOM BOSCO:
HISTÓRIA E CARISMA
2
Expansão: de Valdocco a Roma
(1850-1875)

EDB

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Título da obra original: Don Bosco: history and spirit. I. Don Bosco’s formative years in
historical context. 2. Birth and early development of Don Bosco’s oratory. 3. Don Bosco
educator spiritual master and founder of the salesian society.

©2007. LAS Librería Ateneo Salesiano, Roma. Editor da obra original: Aldo Giraudo.
©2010. Editorial CCS, Madri. Editores da edição espanhola: Juan José Bartolomé e Jesús
Graciliano González.
©2013. Editora Dom Bosco. Brasília.

Traduzido da edição espanhola Don Bosco: historia y carisma. Expansión: de Valdocco a


Roma (1850-1875) pelo padre José Antenor Velho.

Revisão: Cristina Kapor


Adaptação da capa e diagramação: Tiago Muelas Filú

Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas

LENTI, Arthur J.

L547 Dom Bosco: história e carisma 2. – Expansão:


de Valdocco a Roma (1850-1875). 1a edição.
Brasília-CIB, 2013.
824 p.

Isbn 978-85-7741-255-6

1. Biografia 2. Vida espiritual cristã

CDD 922.22

Todos os direitos reservados à editora EDB

EDITORA DOM BOSCO


SHCS CR Q. 506 Bl. B Ss. 65/66 Asa Sul
70350-525 Brasília (DF)
Tel.: (61) 3214-2300
atendimento@edbbrasil.org.br
www.edbbrasil.org.br

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Siglas e abreviaturas

Annali I-IV Eugenio Ceria, Annali della Società Salesiana. Vol. I: Dalle
origini alla morte di S. Giovanni Bosco (1841-1888). Tu-
rim: SEI, 1941. Vol. II: Il rettorato di Don Michele Rua,
parte I (dal 1888 al 1898). Turim: SEI, 1943. Vol. III: Il
rettorato di Don Michele Rua, parte II (1899-1919). Turim:
SEI, 1946. Vol. IV: Il rettorato di Don Paolo Albera (1910-
1921). Turim: SEI. 1951.
ASC Archivo Salesiano Central. Direzione Generale Opere Don
Bosco. Primeiro em Turim e depois em Roma.
BS Bolletino Salesiano. Edição italiana.
CCS Editorial Central Catequística Salesiana (Madri).
CFP Cuadernos de Formacíon Permanente (Editorial CCS, Madri).
Documenti 45 volumes de documentos para escrever a história de Dom
Bosco. Recompilados por Giovanni Battista Lemoyne.
Epistolario Ceria Epistolário de Dom Bosco, 4 volumes publicados por Euge-
nio Ceria. Turim: SEI, 1955-1959.
Epistolario Motto Epistolário: introdução, textos críticos e notas, 4 volumes edi-
tados por Francisco Motto. Roma: LAS, 1991-2003.
FDB Fondo Don Bosco. Microfichas. Direção Geral Obras
Dom Bosco: Roma.
F. Desramaut, Don Bosco Francis Desramaut, Don Bosco en son temps. Turim: SEI,
1996.
F. Desramaut, Memorie Francis Desramaut, Les memorie I de Giovanni Battista Le-
moyne: etude d’un auvrage fondamental sur la jeunesse de Saint
Jean Bosco. Lyon: Maison d’etudes Saint Jean Bosco, 1962.
G. Bonetti, Storia Giovanni Bonetti, Storia dell’Oratorio, publicada em capí-
tulos no Bolletino Salesiano, entre 1879 e 1886. Publicada
depois em um volume com o título Cinque lustri di Storia
Salesiana. Turim: Tip. Salesiana, 1892 (há uma tradução
em espanhol: Cinco lustros de historia salesiana. Buenos Ai-
res, Tip. e Librería Salesiana, 1897).

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JSS Journal of Salesian Studies (Don Bosco Hall, Berkeley,
EUA, 1990).
LDC Libreria Dottrina Cristiana (Elle Di Ci), Colle Don Bosco,
depois Turim, depois Leumann-Turim.
MB Memorie Biografiche di Don Bosco. 19 volumes: volumes
I-IX editados por João Batista Lemoyne; volume X editado
por Ângelo Amadei; volumes XI-XIX editados por Eugê-
nio Ceria.
MBe Memorias Biográficas de san Juan Bosco. Traduzidas para o espa-
nhol por Basilio Bustillo. Madri: Editorial CCS, 1981-1989.
MO São João Bosco. Memórias do Oratório de São Francisco de
Sales 1815-1855. 3ª edição. Tradução: Fausto Santa Catari-
na. Edição revista e ampliada, aos cuidados de Antônio da
Silva Ferreira. São Paulo: Salesiana, 2005.
MO Ceria Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco do
Sales dal 1815 al 1855. Editado por Eugênio Ceria. Turim:
SEI, 1946.
MO Silva Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco di
Sales dal 1815 al 1855. Texto crítico editado por Antônio
da Silva Ferreira. Roma: LAS, 1991.
OE Giovanni Bosco, Opere edite, 38 volumes. Roma: LAS,
1977 e 1988.
P. Stella, Canonizzazione Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica:
la canonizzazione. Roma: LAS, 1988.
P. Stella, Economia Pietro Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale.
Roma: LAS, 1980.
P. Stella, Spiritualità Pietro Stella, Don Bosco: mentalità religiosa e spiritualità.
Zurique: PAS-Verlag, 1969.
P. Stella, Vita Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica:
vita e opere. Roma: LAS, 1979.
RSS Ricerche Storiche Salesiane. Revista semestral do Instituto
Histórico Salesiano (ISS). Roma: LAS, a partir de 1982.
SEI Società Editrice Internazionale, Turim.
Sussidi 1,2,3 Sussidi per lo studio di Don Bosco e della sua opera. Vol. 1:
Il tempo di Don Bosco. Roma: Dicastério para a formação,
1988. Vol. 2: Dizionarietto: alcune situazioni e personaggi
dell’ambiente in cui visse Don Bosco. Roma: Dicastério para
a formação, 1988 (pro manuscripto). Vol. 3: Per una lettura
di Don Bosco: percorsi di storia salesiana. Roma, Dicastério
para a formação, 1989 (pro manuscripto).

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Apresentação do Segundo volume

Expansão: de Valdocco a Roma (1850-1875)


Este segundo volume da obra Dom Bosco: história e carisma abrange os
vinte e cinco anos da vida do santo nos quais Dom Bosco chega à surpreen-
dente maturidade pessoal como educador e guia espiritual de jovens, escritor
prolífico e editor de sucesso, formador de colaboradores e fundador de con-
gregações religiosas, personalidade socialmente comprometida e mediador
oficioso entre o novo Estado italiano e o Vaticano. É o período das grandes
decisões, nem todas previstas de antemão, e de realizações de enorme trans-
cendência. Dom Bosco ultrapassa os limites de Valdocco e consegue fama
mais do que notável em ambientes eclesiais, sociais e políticos de seu tempo,
que excederá de longe sua atuação educativa e evangelizadora em Turim.
Como educador e mestre espiritual da comunidade de estudantes na
Casa Anexa ao Oratório, ele iniciará e estimulará um método educativo e
um itinerário de santificação de validade perene. Como escritor e editor, en-
volverá seus seguidores no ministério da boa imprensa, indispensável para a
defesa da fé e a educação do povo em seu tempo. Como formador de seus
colaboradores e fundador da Congregação Salesiana, reunirá ao redor de si
e do seu projeto um grupo incondicional de pessoas às quais transmitirá um
estilo de vida e uma missão bem precisa.
Parte considerável do volume é dedicada à narração do longo e penoso
caminho percorrido necessariamente por Dom Bosco até conseguir a aprova-
ção, primeiro, da Congregação Salesiana (1869) e, mais tarde, de suas Cons-
tituições (1874). Enquanto a sociedade italiana caminhava, não sem violên-
cia, para a unificação nacional, Dom Bosco sonhava e trabalhava para dotar
seus Oratórios de uma nova associação apostólica que garantisse um presente
que se consolidava com força e um futuro de expansão incontida.
Eram tempos difíceis de guerras contra imperialismos estrangeiros e se-
nhores locais; tempos nos quais emergia uma jovem nação à custa de despojar
de seus direitos os legítimos proprietários, inclusive o Papa; tempos em que
um novo ideário político e social, herdeiro do bonapartismo francês, dividia

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profundamente o catolicismo europeu. Dom Bosco teve tempo de “sonhar”,


numa abundante produção literária de acentuada tonalidade apocalíptica, a
derrota dos inimigos de Deus e anunciar a vitória de sua Igreja (1870-1873),
enquanto se dedicava a superar as dificuldades que, na própria diocese de
Turim – sobretudo na dependência do governo episcopal de dom Gastaldi
(1871-1883) e na Congregação dos Bispos e Regulares, em Roma –, não
deixavam de se opor ao seu projeto original (1858-1874).
O volume narra as diversas etapas e redações pelas quais passaram as
Constituições Salesianas; identifica as opções de Dom Bosco para sua Con-
gregação, algumas tão inovadoras que não conseguiram ser aceitas; as obje-
ções e os motivos de oposição que encontrava nas autoridades eclesiásticas; e
oferece a análise de algumas das iniciativas nos diversos textos constitucionais
que Dom Bosco precisou apresentar para obter sua aprovação final. Isso nos
permite ter uma ideia mais segura do projeto original de Dom Bosco e, ao
mesmo tempo, apresenta-nos alguns dos elementos mais essenciais de sua
espiritualidade pessoal e do carisma institucional. A reflexão, contínua e ori-
ginal feita por Dom Bosco, sobre o colaborador leigo, consagrado ou não, é
uma demonstração da sua mentalidade e do seu zelo apostólico.
Preocupar-se plenamente para obter a aprovação da Congregação e de
suas Constituições não o impediu de liderar a expansão de sua obra educativa
dentro e fora do Piemonte. Enquanto as leis liberais promoviam uma legis-
lação educacional que levava à eliminação gradual da presença eclesiástica
nas escolas, Dom Bosco assumiu conscientemente obras educativas, especial-
mente internatos, que lhe permitiam a educação católica da juventude e a
promoção de vocações para a Igreja. A década de 1860 e a metade da década
de 1870 conheceram uma rápida e audaciosa sucessão de novas fundações
que confirmavam Dom Bosco como apóstolo da escola.
A escola, todavia, não foi a única tarefa que Dom Bosco se impôs para
responder às novas urgências apresentadas pela sociedade e pela Igreja. A
agitada situação política e eclesiástica fez com que ele abraçasse a devoção a
Maria, sob o título de Auxiliadora dos Cristãos, de que foi incansável propa-
gandista e à qual consagrou alguns anos mais tarde (1868) uma bela igreja
em Valdocco. Prova indiscutível de sua piedade mariana, toda ela urgida pelo
zelo apostólico, foi a fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora
(1864-1872), junto com Maria Mazzarello e seu grupo de jovens de Mornese.
É realmente assombroso o que, em apenas um quarto de século, um
simples padre, maduro pela idade e amadurecido pelas dificuldades, conse-
guiu realizar, ajudado apenas por um grupo de jovens seguidores formados
por ele.

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Capítulo I

A DÉCADA 1850-1861

Em capítulos anteriores já foram mencionados os fatos relacionados


com a promulgação de algumas Constituições liberais em 1848.1 Na Itália,
sobretudo no Piemonte, surgiram dois movimentos paralelos nos anos poste-
riores ao “ano revolucionário”.

1. Durante a década 1850-1861 deu-se no Reino da Sardenha a grande


transformação da sociedade (a secularização) para a qual se voltava
o programa da Revolução Liberal de 1848. As diversas disposições
legais criadas pelo Estado separaram a Igreja de algumas esferas da
sociedade e reduziram consideravelmente a sua influência.
2. O movimento nacionalista, que aspirava a libertação e unificação
da Itália, foi aglutinando forças até que o país conseguiu a unidade
por meio de uma intensa atividade política e militar, sob o rei da
casa de Saboia e a liderança parlamentar do seu primeiro-ministro,
conde Camilo Benso de Cavour. Após a unificação, o processo
de secularização, que estava em marcha no Reino da Sardenha,
estendeu-se gradualmente à Itália inteira.

1. O progresso da Revolução Liberal e suas reformas sociais

A reforma escolar Boncompagni (4 de outubro de 1848)


Até a Constituição de 1848, a Igreja no Piemonte gozava de uma posi-
ção privilegiada em matéria de educação. As relações entre o Estado e a Igreja
eram regidas pela Concordata de 1741, durante o papado de Bento XIV.
A casa de Saboia, conhecida desde sempre pela sua religiosidade, concedera
1
Cf. volume 1, p. 484-504.

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todo tipo de benefício à Igreja após o retorno ao poder, depois da queda


de Napoleão em 1814. Os jesuítas controlavam a educação secundária, e
os bispos, as universidades. A censura eclesiástica controlava a publicação e
impressão de livros e periódicos. Os tribunais canônicos tinham jurisdição
sobre qualquer caso em que seus interesses estivessem em jogo e as ofensas à
religião, como o sacrilégio ou a não participação na Igreja, que faziam parte
do código penal do Estado. Mais recentemente, o tema das “imunidades”
tinha sido dirimido pela Convenção de 1841, negociada entre Carlos Alberto
e o papa Gregório XVI. Esse acordo aboliu ou modificou alguns dos antigos
privilégios, mas a posição da Igreja no reino permaneceu “medieval” quanto
ao número de seus membros, esplendor e poder.
A Constituição de 1848 mudara o antigo regime absolutista pela mo-
narquia constitucional acompanhada de um parlamento basicamente liberal
(Câmara dos Representantes e Senado). Em seguida, tornou-se patente que o
antigo sistema legal do Estado precisava ser modificado de acordo com a Cons-
tituição e que essa revisão imporia a negociação de novos acordos com a Igreja.
O governo acreditava ser seu dever redigir as leis do país de acordo com
a Constituição. O primeiro movimento importante nessa direção foi a refor-
ma educacional proposta pelo ministro da Instrução Pública, Carlos Bon-
compagni. A reforma transferia ao Estado todos os aspectos relacionados à
instrução e à vida escolar. A educação era colocada sob o controle geral de um
conselho superior, a cujas ordens trabalhavam o conselho para os estudos uni-
versitários, o comitê para a educação secundária e o comitê para a educação
elementar, os três locados em Turim.
A instrução religiosa também passava ao controle do Estado com a cria-
ção do cargo de diretor espiritual, um padre designado pelo ministro da Ins-
trução Pública para supervisionar o ensino religioso nas escolas.
As leis da reforma do sistema escolar no Reino da Sardenha foram pro-
mulgadas durante a Primeira Guerra da Independência Italiana, em 2 de
março de 1848, alguns meses depois da expulsão dos jesuítas que, até então,
controlavam a educação.2 As novas leis substituíram os ordenamentos do rei
Carlos Félix, de 1822.

As Leis Siccardi (9 de março e 8 de abril de 1850) e a ascensão


política de Cavour
A subida ao trono de Vítor Emanuel (1849) pareceu o momento ade-
quado para iniciar o processo de reformas. O monarca já refletira sobre o

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Os jesuítas eram considerados os líderes da reação contrária às reformas liberais.

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A década 1850-1861

tema e esboçara algumas linhas de negociação com a Santa Sé. Depois de, por
carta, abordar o tema com Pio IX, o rei enviou três delegados, a intervalos de
seis meses, para estipular a nova concordata. O primeiro entrevistou-se com o
Papa em Roma; o segundo, em Gaeta. O terceiro, em Nápoles; nenhum de-
les conseguiu chegar a um acordo. A missão mais importante foi a do conde
José Siccardi, que encontrara o Papa em seu exílio de Gaeta, durante a época
da República Romana. O conde tinha poderes para negociar dois temas: as
novas designações episcopais para as sedes de Turim e Asti, cujos bispos não
eram aceitos pelo Estado, e a nova concordata. Turim queria negociar os dois
assuntos juntos, enquanto Roma recusou-se a fazê-lo dessa maneira. A missão
Siccardi foi um fracasso. Pio IX foi considerado o responsável.

As Leis Siccardi
A Constituição do rei Carlos Alberto, baseada como estava em mode-
los franceses, declarava que todos os cidadãos, sem distinção, eram iguais
perante a lei. A Igreja, porém, dispunha de seu próprio sistema de tribunais
para julgar os membros do clero. Reclamava, também, o direito de dar asilo
nos locais de culto, tanto para clérigos como para leigos que fugiam a uma
acusação criminal.
Era inevitável que os liberais de todas as facções quisessem tomar medi-
das quer no Parlamento quer no Senado. Eles eram maioria, levando-se em
conta que apenas 2% da população masculina (aristocratas e profissionais)
estavam aptos a escolher por voto os seus representantes. Os bispos, padres
e leigos católicos de tendência conservadora representavam a Igreja nas duas
câmaras, mas estavam em minoria.3
Em fins de fevereiro de 1850, o conde Siccardi, ministro da Justiça,
apresentou um projeto de lei para abolir os tribunais eclesiásticos. Foi o pri-
meiro de uma série de projetos conhecidos como “Leis Siccardi”. Além da
lei relativa aos tribunais, o ministro também dispôs a abolição do direito de
asilo, a limitação dos dias festivos de preceito [dias santos] e a necessidade da
aprovação do Estado para a Igreja adquirir terras.
Os debates no Parlamento e no Senado mostraram como a opinião públi-
ca estava dividida em relação a esses temas. Até mesmo alguns liberais se opu-
seram por considerar que essas leis, embora necessárias, eram prematuras. As
negociações com o Papa deviam continuar para se chegar a um acordo bilateral.

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Os liberais aduziam que na França, como também na Áustria, a Igreja aceitara essas reformas
já há alguns anos. Os conservadores citavam a recente concordata de 1841, negociada entre a Igreja
e Carlos Alberto, que mantinha esses privilégios. Arguiam que foram o galicanismo e a revolução, na
França, e o josefinismo, em Viena, que forçaram a Igreja a ceder.

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No primeiro dia dos debates, Ângelo Brofferio, advogado criminalista e


anticlerical implacável, falou a favor das leis, demonstrando o prejuízo que
poderia acarretar à sociedade um duplo sistema legal de juízos e penas. Argu-
mentava que, segundo o Direito Internacional, um Estado tinha poder para
revogar um tratado que considerasse danoso para seus interesses vitais.
No segundo dia, o conde Camilo Benso de Cavour, também favorável à
nova legislação, fez o seu primeiro discurso importante no Parlamento. Sua
carreira de deputado fora até então intermitente e pouco afortunada.4 As Leis
Siccardi deram-lhe a primeira oportunidade de dirigir-se à Câmara sobre um
problema grave e ainda sem solução. Cavour expressou-se de maneira direta e
numa língua – o italiano – à qual não estava acostumado. Sua personalidade
não era particularmente simpática a muitos, mas a clareza de pensamento e
sua capacidade de diagnosticar os problemas foram extraordinárias.
A questão, ele argumentou, não era de um partido político ou de algum
interesse particular, mas um problema nacional complexo. Alegando incom-
petência para tratar de aspectos legais e eclesiásticos, assinalou que as maiores
reformas são as que acontecem em períodos de paz, e esse era o momento.
Repassou a história das negociações com Pio IX, e disse que não tinha espe-
rança de se chegar a um acordo constatando o modo de raciocinar do Papa.
Descreveu, depois, a situação em que o reino se veria caso essa primeira e
importante reforma fosse postergada: os liberais que lutaram pela nova Cons-
tituição se sentiriam fracassados e se tornariam sempre mais extremistas; os
conservadores que se opuseram à Constituição haveriam de trabalhar mais
intensamente para enfraquecê-la, e até mesmo aboli-la. Consequentemente,
se chegaria a uma situação mais instável (até mesmo àquela em que, como na
Revolução Francesa, os extremistas acabaram com os moderados). Perguntou
aos deputados qual era o único país da Europa que escapara ao horror da
revolução nos últimos cem anos. Não havia sido nem a França, nem a Ale-
manha, nem a Áustria, mas apenas a Inglaterra. E isso porque a Inglaterra
se antecipara às crises revolucionárias com a Reforma. Citando o “Ato de
emancipação católica”, as “Leis de reforma do voto” e as “Leis sobre o trigo”
da Grã-Bretanha, argumentou que essas reformas reforçaram a nação porque
tinham sido feitas no tempo certo. Terminou exortando a Câmara a seguir o
exemplo britânico.

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Nas primeiras eleições celebradas depois de Carlos Alberto conceder a Constituição, Cavour
apresentara-se como deputado por quatro distritos e fora derrotado em todos eles. Numa eleição suple-
mentar conseguiu conquistar um distrito, mas em seguida foi derrotado nas eleições gerais. Foi eleito,
enfim, para o Parlamento em julho de 1849. Contudo, continuava a ser pouco popular e desconfiava-
-se dele. Brofferio, mais tarde, descreveu-o, certamente por inveja, como grosseiro e pouco refinado.

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A década 1850-1861

O discurso suscitou uma onda de aplausos. Numa única manhã, Cavour


converteu-se num dos deputados mais importantes do Parlamento, conse-
guindo que muitos tomassem partido a favor da reforma. A votação da lei
que abolia os tribunais eclesiásticos obteve o resultado de 130 votos favorá-
veis e 27 contrários no parlamento (9 de março) e 58 a favor e 29 contrários
no senado (8 de abril).

A reação do arcebispo Fransoni


Imediatamente após a aprovação da Lei Siccardi, o arcebispo Fransoni
enviou uma carta pastoral ao clero proibindo-o de obedecer às novas leis. O
governo, após fracassar na tentativa de demovê-lo de sua posição, prendeu-o
e julgou-o. A corte de apelação condenou-o a um mês de prisão e multa. Os
arcebispos de Cagliari e Sassari, na ilha da Sardenha, seguiram o exemplo de
dom Fransoni e sofreram sentenças semelhantes. Pio IX também reagiu com
firmeza. Retirou o núncio de Turim e exigiu a libertação dos arcebispos “per-
seguidos”. A população católica ficou dividida quanto à questão.
Para complicar ainda mais a situação, surgiu o caso Santa Rosa. Pedro
de Rossi di Santa Rosa, ministro da Agricultura, pediu a absolvição da Igreja
no leito de morte. Seu pároco, seguindo ordens do arcebispo, recusou-se a
dá-la se não se arrependesse de ter votado as leis Siccardi e não se retratasse
publicamente. O ministro negou-se, pois atuara de boa fé, e morreu sem a
absolvição, sendo-lhe negado o enterro cristão.
Quando os fatos se tornaram conhecidos, um sentimento de indignação
correu pela cidade. Multidões enfurecidas foram às ruas. O governo expulsou
da cidade os Servos de Maria, ordem a que pertencia o pároco. O arcebispo
fugira. Dois ministros visitaram-no em seu retiro no campo e, depois de uma
discussão, conseguiram convencê-lo a autorizar o enterro cristão. O funeral
converteu-se numa impressionante manifestação de apoio a Santa Rosa.
Esses incidentes agravaram a luta entre os liberais e a Igreja. Para desolação
de muitos moderados, parecia ser mais difícil chegar a um acordo com o Papa.
Mas não foi só isso; o fato levou Cavour ao cargo de ministro. Santa
Rosa falecera em agosto; menos de um mês depois, o ministro da Guerra,
Afonso La Mármora, pressionava o primeiro-ministro Máximo d’Azeglio a
nomear Cavour no lugar de Santa Rosa. D’Azeglio resistiu, mas acabou ce-
dendo às insistências de La Mármora e propôs ao rei a nomeação de Cavour.
Vítor Emanuel II tinha dúvidas. Talvez por não conhecê-lo ou porque, como
seu pai, não confiava em alguém que tivesse abandonado o exército para
acumular fortuna e que era, além disso, um eloquente liberal. La Mármora

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continuou a insistir; o poder de Cavour crescia de tal maneira no Parlamen-


to que não podia ser ignorado. Não havia senão duas opções: aceitá-lo ou
enfrentar uma oposição liderada por ele. Enfim, o rei cedeu. Em outubro de
1850 Cavour tornou-se ministro do Comércio e da Agricultura. Sua presença
no governo garantia a continuidade das reformas.

O arcebispo Luís Fransoni no exílio de Lyon, numa caricatura do diário


anticlerical satírico Il Fischietto (O Apito) (Turim, 1854).

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A década 1850-1861

A Lei Rattazzi, “lei dos conventos” (1854-1855)5


A Lei Rattazzi para a supressão das ordens religiosas foi outra ação, ainda
mais significativa, do Parlamento piemontês contra a Igreja, continuando o
programa reformista da Revolução Liberal.
Cavour era o primeiro-ministro desde novembro de 1852. Embora o rei
e ele estivessem de acordo no apoio à participação piemontesa na Guerra da
Crimeia, estavam em campos opostos em relação à Lei Rattazzi. A questão era
se o Estado, por meio do Parlamento, podia reformar as congregações e suas
leis de propriedade em detrimento da Igreja. O governo de Cavour levara ao
Parlamento uma lei, conhecida pelo nome do seu autor como Lei Rattazzi, que
continha uma série de disposições relacionadas às congregações religiosas.

Disposições da lei
A lei postulava a abolição de todas as ordens religiosas, exceto aquelas que
se dedicavam a pregar, cuidar dos doentes ou ensinar. Proibia a fundação de
qualquer nova ordem, a não ser que houvesse uma permissão especial do Es-
tado. Previa a supressão, com algumas exceções, dos cabidos e seus benefícios.
Propunha usar as entradas vindas das congregações suprimidas para pagar
pensões aos religiosos cujas ordens e prebendas fossem suprimidas. Também
sugeria reduzir o estipêndio dos bispos e direcionar o dinheiro economizado
para os padres que recebiam menor remuneração.
Havia outros motivos, basicamente financeiros, mas eram menos conhe-
cidos. A guerra de 1848-1849 esgotara as arcas do tesouro; o déficit financei-
ro estava incontrolável. O Fundo Eclesiástico do Estado (Cassa Ecclesiastica)
já não conseguia manter o baixo clero nem as paróquias mais pobres. Em
maio de 1854, o governo de Cavour-Rattazzi comunicara essa situação à San-
ta Sé, insinuando que estavam pensando em tomar algum tipo de medidas
oportunas.

O relatório do Comitê sobre o estado da Igreja no Reino da Sardenha


A lei fora desenhada acompanhando as conclusões do relatório feito por
uma comissão encarregada pelo Parlamento de fazer o recenseamento do cle-
ro e inventariar os recursos da Igreja em todo o reino. Embora cerca de 200

5
Cf. G. Martin, The red shirt, 433-445. Urbano Rattazzi (1808-1873), embora com ideias
políticas diferentes, uniu-se a Cavour em 1851, atuando como presidente da Câmara dos Deputados
(1852-1853); mais tarde foi ministro da Justiça (1853-1854) e do Interior (1854-1860) nos governos
de Cavour.

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conventos não tivessem apresentado seus dados, o relatório mostrava que, em


relação com a população, era extraordinário o número de padres, monjas e
frades no reino. Num país de 5 milhões de habitantes, havia 23 mil homens
e mulheres de Igreja, percentual muito mais elevado do que, por exemplo, na
Bélgica, Áustria e Estados Unidos. Em 1854, havia no Reino da Sardenha 41
bispos e arcebispos (1 para cada 12 mil habitantes). A Bélgica, por exemplo,
com uma população semelhante de 4 milhões e meio de habitantes, tinha
apenas 6 (1 para cada 750 mil habitantes).
Muitos pensavam que percentuais tão elevados eram um mal social,
permitindo que muitas pessoas fugissem aos deveres civis, ao pagamento de
impostos e ao serviço militar. A imprensa anticlerical criticava com maior
dureza, sobretudo, as ordens contemplativas e mendicantes.
A riqueza da Igreja era, também, extraordinária. Suas entradas estima-
das de terras e doações, sem contar honorários, coletas ou subvenções, eram
um terço das finanças públicas. O salário individual da hierarquia era muito
maior do que o de um leigo em posto semelhante.6

Tentativas de negociação
Enquanto isso, Cavour, fiel à sua promessa ao rei, retomara as negocia-
ções com a Santa Sé na esperança de chegar a um acordo, mas, como ante-
riormente, as negociações fracassaram. Contudo, o rei, que ansiava por ter-
minar com as disputas religiosas, enviou em seguida uma delegação pessoal
de três bispos até o Papa. Fê-lo sem a aprovação do governo, o que constituía
um perigoso ato inconstitucional que, por sorte, fracassou. Em seu relatório
ao rei, os três bispos expunham a posição da Santa Sé.

A lei baseia-se em princípios que a Igreja jamais poderá aceitar e que sempre
repeliu. Pressupõe que o Estado possa suprimir à vontade as comunidades
religiosas e seja senhor das posses da Igreja. Nesses termos, não é possível
chegar a um acordo.7

Vítor Emanuel ficou mortificado com a recusa, e aborrecido com Ca-


vour por tê-lo envolvido nisso. A questão religiosa não lhe dava um momento
6
Segundo um estudo de A. J. Whyte, citado por G. Martin, The red shirt, 434-435, o arcebispo
de Turim recebia um estipêndio de 100 mil liras, equivalente a duas vezes o do arcebispo de Paris e qua-
se tanto quanto o de todos os bispos belgas juntos. Na média, os bispos recebiam 30 mil liras, enquanto
os ministros do governo ganhavam 15 mil, o presidente do Supremo Tribunal 12 mil, o governador
do Banco Nacional 10 mil, um contra-almirante 8 mil e assim por diante. Aos párocos não se pagava
quase nada em comparação ao seu bispo.
7
Cf. G. Martin, The red shirt, 435.

16

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A década 1850-1861

de paz, como tampouco as mulheres de sua família. Escrevia ao ministro da


Guerra e seu amigo, Afonso La Mármora: “Minha mãe e minha esposa não
deixam de me dizer que estão mortas de vergonha por culpa minha, e podes
bem entender como me sinto com isso”.8
A lei foi apresentada ao Parlamento em 28 de novembro de 1854.
Cavour insistiu que fosse apresentada como assunto de finanças. Esperava
que, ao falar de economia, manteria os sentimentos religiosos distantes
do público e dos debates parlamentares. Contudo, todos perceberam que
a lei era, na verdade, uma tentativa do Estado de reduzir o status social e
político da Igreja.9 O Papa protestou rapidamente contra esse novo “hor-
rível e incrível assalto”. A controvérsia estava na imprensa e entre o povo.
As reivindicações e os protestos a favor e contra estavam na ordem do dia.
O Reino da Sardenha, como de fato a Itália inteira, estava dividido sobre
o tema.

Debate no Parlamento e mortes na casa real


Quando começou o debate no Parlamento, em 9 de janeiro de 1855, o
primeiro orador a discorrer contrariamente foi o irmão mais velho de Cavour,
marquês Gustavo, católico bastante conservador. O advogado anticlerical e
esquerdista furibundo, Ângelo Brofferio, falou a favor da lei, lançando graves
ataques à Igreja. A posição de Mazzini e de Garibaldi era a mesma. Em 12
de janeiro, o conde Solaro della Margherita, que fora ministro do rei Carlos
Alberto, profundamente católico e conservador, contra-atacou simplesmente
perguntando se eram católicos ou não. Aprovar medidas políticas contrárias
à Igreja era deixar de ser católico, e provocar a ira celeste.
Na manhã seguinte, 13 de janeiro, morria a rainha-mãe Maria Teresa da
Áustria, viúva de Carlos Alberto. A casa real anunciou dez dias de luto.
O debate continuou na imprensa e nas ruas, mas antes que se voltasse
a convocar uma sessão do Parlamento, em 20 de janeiro faleceu a rainha
consorte Maria Adelaide da Áustria. No início do mês, ela contraíra a febre
puerperal ao dar à luz seu sexto filho, que trazia o nome do rei.
Em 11 de fevereiro de 1855, uma terceira morte atingiu a família
real; faleceu em Turim o duque de Gênova e único irmão do rei, Fernando
Maria Alberto.

Cf. G. Martin, The red shirt, 435.


8

Cf. explicação do ministro Rattazzi sobre aspectos legais da lei discutidos em profundidade, em:
9

P. Stella, Vita, 136-138.

17

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Dom Bosco: história e carisma 2

Alocução de Pio IX, posição da Santa Sé e resposta do rei


Enquanto os debates sobre o tema religioso se acaloravam entre o povo
e no Parlamento, e os membros da casa real morriam e eram pranteados,
Pio IX, em 22 de janeiro de 1855, pronunciou uma alocução no consistório
dos cardeais, em que condenava a proposta de lei por ser “repugnante à lei
nacional, social e divina”, “inteiramente nula e inválida”. Publicaram-se e
distribuíram-se entre os cardeais alguns documentos que expunham a posi-
ção da Igreja. As seguintes afirmações merecem ser citadas:

A Igreja é de uma ordem superior à sociedade civil. O Estado não pode dar
ou receber uma constituição que tenha o efeito de submeter pessoas e bens da
Igreja às leis civis. A igualdade perante a lei não pode ser aplicada às pessoas
e bens eclesiásticos.
O Estado não pode permitir o culto público das religiões não católicas. A
permissão concedida em Turim e Gênova para a edificação de templos protes-
tantes é uma ofensa à Igreja católica.
O Estado não pode aprovar uma lei que regule o estado civil dos membros da
Igreja sem primeiro consultar a Santa Sé.
A liberdade de imprensa é inconciliável com a religião católica num Estado
católico.
O Estado não tem o direito de exigir que os atos da Santa Sé, mesmo sem
ser matéria de fé, sejam submetidos à aprovação real antes de se tornarem
efetivos.
Os bispos e o clero que recusam obedecer ou esboçam resistência a uma lei
civil como a que pretende abolir os tribunais eclesiásticos estão simplesmente
cumprindo seu dever.10

Estas premissas excluíam qualquer acordo. Deputados, senadores e o


povo em geral não tiveram alternativa a não ser escolher um dos lados. Até
mesmo o rei enfrentou o dilema de escolher entre seu dever diante do Es-
tado e sua consciência católica. Sua angústia ficava patente numa carta que
escreveu ao Papa. Pio IX enviara-lhe uma carta pessoal de condolências após
a morte da rainha, na qual lhe garantia não ter nada de pessoal em sua alocu-
ção. Vítor Emanuel respondeu com franqueza que a alocução fora um erro.
Só conseguira exacerbar os sentimentos anticlericais no reino. E numa folha
anexa acrescenta:

10
Cf. G. Martin, The red shirt, 438-439.

18

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A década 1850-1861

Sua Santidade deveria saber que fui eu quem evitou que a lei sobre o matri-
mônio civil chegasse à votação no Senado, e serei eu quem fará agora o que for
possível para evitar que se vote a “lei dos conventos”. Talvez, em poucos dias,
caia o governo de Cavour e seja nomeado alguém da direita; porei como con-
dição sine qua non que se chegue a um acordo com a Igreja tão logo quanto
possível. (Faça o favor de ajudar-me.) De minha parte, sempre fiz o que pude.
(As palavras [da alocução] contra o Piemonte não nos ajudaram; e temo que
tenham destruído tudo para mim.) Devo estar atento para que a lei não passe,
mas ajude-me, também, Santo Padre.
Por favor, queime esta folha.11

Aprovação da lei no Parlamento, sua introdução no Senado e a


“crise Calabiana”
Os discursos de Cavour e d’Azeglio ganharam a causa no Parlamento.
Em 2 de março de 1855, a lei foi aprovada por 116 votos contra 36; em
seguida, Cavour levou-a ao debate no Senado. Ter a lei aprovada com essa
maioria não garantia necessariamente uma tramitação fácil no Senado,
no qual a Igreja era mais forte, já que alguns bispos eram senadores por
designação real.
Em abril, os bispos passaram à ação. Num esforço para impedir a apro-
vação da lei escreveram uma carta ao rei com uma proposta idealizada pelo
bispo de Casale, dom Luís Nazari di Calabiana. A finalidade primeira da Lei
Rattazzi era econômica, para recuperar quase um milhão de liras que o gover-
no gastava para manter as paróquias pobres e seus padres. Os bispos, então,
com o consentimento da Santa Sé, garantiriam esse montante se a lei fosse
retirada. O conflito após essa proposta foi chamada de “crise Calabiana”.
Vítor Emanuel, acreditando erroneamente que se tinha dado uma so-
lução, informou a Cavour que estava inclinado a aceitar a proposta. Cavour,
lamentando ter apresentado a lei como medida econômica, tratou de con-
vencer o rei de que a solução era inaceitável, mas o monarca declarou sua
intenção de levar a ideia dos bispos à discussão no Senado. O bispo Calabiana
apresentou-a em 26 de abril. Em seguida, o governo reuniu-se; Cavour e seus
ministros, depois de estudarem a proposta, apresentaram sua demissão con-
junta em sinal de protesto.
O rei viu-se num verdadeiro dilema, pois não conseguia convencer al-
guém a formar um novo governo. Sofria uma enorme pressão de todos os

11
Cf. G. Martin, The red shirt, 439.

19

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lados, inclusive da corte, que era muito conservadora. Os dias passavam e a


crise de governo continuava sem solução. Máximo d’Azeglio, político influen-
te próximo ao rei, incapaz de obter uma audiência, escreveu-lhe uma carta
muito emotiva em que lhe rogava que não se desviasse das reformas liberais.
A carta surtiu efeito. No sétimo dia da crise, 2 de maio, Vítor Emanuel
viu que, se a situação se prolongasse, estaria brincando com fogo em relação
a si e ao país. Mandou uma mensagem ao partido clerical dando prazo até
às 3 da tarde para formar um governo, caso contrário, chamaria novamente
a bestia nera (a besta negra), ou seja, Cavour. Assim o fez e, em 4 de maio,
Cavour formava o seu gabinete de governo.

Turim, 1854. Caricatura do diário anticlerical satírico Il Fischietto (O Apito):


“Como ocupar os frades em coisas úteis”.

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A década 1850-1861

Morte do filho mais novo do rei. Aprovação e assinatura da lei


Enquanto isso, o debate sobre a lei terminara no Senado. Antes de seu
encerramento e votação, o rei passou por outra tragédia pessoal. Em 17 de
maio morria seu filho de cinco meses, Vítor Emanuel. Em 23 de maio de 1855,
o Senado aprovou a lei de supressão das ordens religiosas e confisco dos bens
eclesiásticos por 53 votos favoráveis e 42 contrários. Uma emenda excluía da
lei uma ordem de monjas, favorecida pela rainha-mãe. Embora Cavour tenha
se oposto a essa medida, Rattazzi o convencera. Provavelmente, Cavour, com
sua perspicácia política, compreendia que o rei sofrera com todo esse assunto.12
Vítor Emanuel II assinou a lei em 29 de maio de 1855.13 Em 26 de julho
do mesmo ano, Pio IX excomungou todos os responsáveis pela medida: o rei,
os ministros, os membros do Parlamento que votaram a favor da lei, “e todos
os seus ideólogos, colaboradores, assessores, executores e quem os apoiara”.

Comentário
A “lei dos conventos” foi, na história da Revolução Liberal, mais impor-
tante do que todas as outras reformas sociais juntas, inclusive a Lei Siccardi
de 1850. Graças a ela, o Reino da Sardenha converteu-se num estado secular.
Note-se que a lei não proibia a ninguém o direito de levar uma vida de con-
templação e oração, vestir roupa especial ou associar-se a outros para o mesmo
fim. Negava, porém, a essas pessoas, o direito de receber privilégios especiais, a
não ser que se dedicassem ao ensino, ao cuidado dos doentes ou à pregação. Fora
dessas instituições úteis à sociedade, não tinham direito à existência no interior
de um sistema legal e social diferenciado. Dessa forma, por exemplo, sem auto-
rização do Estado, não podiam possuir terras vitalícias, livres de impostos, nem
serem isentas de pagar impostos pessoais ou do recrutamento militar.
Tudo isso, em conformidade com os princípios básicos da jurispru-
dência liberal; enquanto, de um lado, todo direito individual é natural
(vem de Deus) e ninguém pode violar esse direito, por outro, todo direito
coletivo depende do Estado. O Estado é a única fonte de direito coletivo

12
Foi nesse contexto que Dom Bosco teve o sonho dos “funerais na corte” e escreveu a Vítor
Emanuel. Pode-se perguntar se Dom Bosco estava ciente dos apuros do rei e de sua difícil decisão.
13
As ordens masculinas diretamente afetadas foram: agostinianos (descalços ou não), regulares de San-
to Egídio, carmelitas (descalços ou não), cartuxos, beneditinos de Monte Cassino, cistercienses, olivetanos,
franciscanos menores, conventuais, da observância e reformados, capuchinhos, oblatos de Santa Maria, pas-
sionistas, dominicanos, mercedários, servos de Maria e filipinos. As ordens femininas foram: clarissas pobres,
beneditinas de Monte Cassino, cônegas de Latrão, capuchinhas, carmelitas (descalças ou não), cistercienses,
beneditinas da crucifixão, dominicanas, terciárias dominicanas, franciscanas, celestinas e batistas.

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e só ele pode julgar se uma associação de pessoas é ou não vantajosa para


a sociedade. A Igreja, porém, sempre afirmara ser uma fonte paralela de
direito coletivo e independente do Estado, e, também, de fato, acima dele.
O direito canônico postulava que a Igreja era uma sociedade perfeita, a
sociedade suprema (Ecclesia est societas perfecta, immo summa).
Nesse contexto, entende-se melhor por que Dom Bosco quisesse a So-
ciedade Salesiana como associação de cidadãos individuais e não como con-
gregação que estivesse tanto sob a lei do Estado, como sob a lei da Igreja.
Roma, porém, aprovou a Sociedade Salesiana como Congregação religiosa
segundo o Direito Canônico, porque a Igreja recusava os princípios da juris-
prudência liberal, que tornava possível a sua supressão. Dom Bosco, contudo,
sempre se apegou à ideia de que sua Sociedade era uma associação de pessoas
que exerciam seu direito civil como cidadãos individuais e não como uma
espécie de corporação.

A reforma educacional de Casati (13 de novembro de 1859)

Descrição geral e normativa14


Cerca de dez anos depois da reforma educacional de Boncompagni, uma
comissão especial que trabalhara durante quatro meses sob as ordens do mi-
nistro da Instrução Pública, conde Gabriel Casati,15 preparou uma lei que
reorganizou completamente a educação pública no Reino da Sardenha. A
lei recolhia a experiência educacional do Piemonte e Lombardia. O decreto
foi publicado em 13 de novembro de 1859 em virtude dos poderes especiais
votados no início da Segunda Guerra de Independência Italiana. A Lei Casati
marcou o início da escola na Itália moderna e proporcionou um quadro de
referência para a instrução pública, que durou até a reforma de Gentile, mi-
nistro da Educação, em 1923.
As disposições da Lei Casati afetaram a escola primária, “técnica”, secun-
dária e a educação superior.

P. Stella, Economia, 235-237.


14

Gabriel Casati era um patriota liberal que estava exilado. Nascido em Milão em 2 de agosto
15

de 1798, fora prefeito no final da década de 1830 sob o imperador austríaco Fernando I. Durante
a Primeira Guerra de Independência Italiana (1848-1849), foi presidente do governo provisório da
Lombardia depois dos Cinco Dias de Milão e a expulsão temporária dos austríacos. Exilado em Turim,
foi primeiro-ministro do governo constitucional. Depois da derrota de Carlos Alberto e a reocupação
austríaca de Milão, permaneceu ali e foi muito ativo na política. Seu nome está ligado à reforma edu-
cacional que concluiu como ministro da Instrução Pública (1859) no governo de Cavour. Faleceu em
Milão em 16 de novembro de 1873.

22

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A década 1850-1861

Os quatro anos da educação elementar foram divididos em elementar e


superior, com dois anos cada. O período elementar era obrigatório e gratuito.
As cidades com ao menos 50 crianças deviam abrir e financiar escolas elementa-
res. As cidades também providenciariam os professores, que deveriam certificar
sua aptidão e boa moral. As salas de aula não podiam ter mais do que 70 alunos.
As escolas “técnicas” também tinham dois níveis distintos: a escola téc-
nica (profissional) com três anos de duração, para a qual era necessário ter
cursado os quatro anos da escola primária, e o instituto “técnico” de três anos
no qual se cursavam várias áreas (contadores, agrimensores etc.).
A escola secundária ou “clássica”, baseada no estudo dos clássicos e da
filosofia, compreendia o ciclo elementar de cinco anos (gimnasio) e o superior
de três (liceo). Ao final de cada ciclo, para obter um diploma, era necessário
ser aprovado num exame de revalidação.
Somente com o diploma do liceo era possível iniciar a universidade e os
estudos de graduação. A universidade contava com cinco faculdades: Teolo-
gia, Direito, Medicina, Física e Matemáticas, e Filosofia e Letras.

Comentário
Embora a Lei Casati representasse para a Itália uma evolução na edu-
cação, também tinha sérios inconvenientes. Os dois anos de educação pri-
mária obrigatória eram pouco para permitir uma transformação social su-
ficiente. A situação tornava-se ainda pior pela habitual falta de fundos das
pequenas cidades que não recebiam ajuda estatal. A lei dava prioridade à
educação humanista e negligenciava a formação “técnica”. Não contemplava
normas para a educação profissional e a formação de professores para os
níveis inferiores. Enfim, o sistema estava demasiadamente centralizado, pois
era administrado por funcionários reais alocados em Turim.
Convém recordar que a escola de Dom Bosco, anexa ao Oratório de São
Francisco de Sales, teve início com a Lei Boncompagni e, em 1859, precisou
adaptar-se às disposições da Lei Casati. Da mesma forma, todas as suas es-
colas, a partir de 1863, deviam funcionar teoricamente de acordo com a Lei
Casati, embora nem sempre tenha sido assim.

2. Os dois sonhos de Dom Bosco sobre mortes na casa real


Cronologia
A moldura histórica do sonho era o processo de debate e aprovação da
Lei Rattazzi e sua assinatura pelo rei. Antes de abordar sua exposição convém
situar a cronologia dos fatos:

23

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Dom Bosco: história e carisma 2

A lei é preparada ao longo de 1854.


É levada ao Parlamento em 28 de novembro de 1854.
O debate começa em 8 de janeiro de 1855.
A rainha-mãe Maria Teresa morre em 13 de janeiro.
A rainha consorte Maria Adelaide morre em 20 de janeiro.
O irmão do rei, Fernando Maria Alberto, duque de Gênova, morre em 11
de fevereiro.
A lei é aprovada pelo Parlamento, em 2 de março.
O Senado aprova-a em 2 de maio.
O príncipe Vítor Emanuel, de apenas cinco meses, morre em 17 de maio.
O rei Vítor Emanuel II assina a lei em 29 de maio de 1855.

Desde o início, Dom Bosco esteve ao corrente dos acontecimentos por


meio da imprensa e de amigos que estavam envolvidos, como o marquês Do-
mingos Fassati e o conde Carlos Cays.
Foi nessa época, durante as primeiras etapas da aprovação da lei, que
Dom Bosco teve seus sonhos premonitórios, nos quais intuiu que alguns
membros da família real morreriam caso o rei assinasse o projeto de lei.

Data do sonho
Lemoyne deu uma atenção considerável a este duplo sonho e aos acon-
tecimentos que o envolveram.16 Ele menciona que Dom Bosco contou o pri-
meiro sonho a um numeroso grupo de salesianos, e nomeia 11, entre eles o
seminarista Ângelo Sávio, que atua como intermediário e secretário, e Pedro
Enria, posteriormente coadjutor. Lemoyne não estava presente, pois se uniria
a Dom Bosco uns dez anos depois, em 1864.
Parece fora de dúvida que o “sonho” aconteceu como conta a tradição
biográfica. As numerosas testemunhas mencionadas por Lemoyne deveriam
ser suficientes para confirmá-lo. Há também o testemunho do coadjutor Pe-
dro Enria em suas memórias posteriores. Entretanto, até o momento, não
nos chegou nenhuma das cartas de advertência escritas por Dom Bosco ao
rei. Uma carta, porém, datada em 7 de junho de 1855, escrita a um padre
benfeitor, recentemente publicada, é o testemunho de maior autoridade que
temos. Depois de se referir à situação desconcertante vivida em Turim após a
aprovação da Lei Rattazzi, Dom Bosco acrescenta:

16
MB V, 176-181.

24

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A década 1850-1861

Certa pessoa, inspirada por Deus e com grande audácia, escreveu várias
vezes ao rei avisando-o de que adviriam males sobre males, caso não vetas-
se esta lei fatal; manifestou-lhe e descreveu-lhe a morte das duas rainhas
vinte dias antes que ocorressem; a morte do duque de Gênova um mês
antes; a do filho do rei também um mês antes que acontecesse. Antes que
o rei assinasse a lei, foi-lhe escrito: “Se V. S. assinar esse decreto estará
assinando o fim da real casa de Saboia e não gozará mais da saúde de an-
tes. Em seguida, terá que deplorar novas perdas em sua casa; neste ano,
haverá graves desastres em seus campos; grave mortalidade entre seus sú-
ditos”. Logo veremos como isso ocorrerá. Não sabemos se será uma nova
epidemia de cólera ou de tifo, que há alguns dias se manifestou em vários
lugares do Piemonte.17

A carta, tal como foi redigida, revela uma série de coisas: 1ª) a pessoa de
que se fala foi identificada na tradição salesiana com o próprio Dom Bosco,
embora pelo estilo pudesse indicar uma terceira pessoa. Dom Bosco, porém,
foi o transmissor da profecia à corte. 2ª) A expressão “inspirada por Deus”
deve referir-se ao sonho ou experiência de “visão”. 3ª) Dom Bosco escreveu
mais duas cartas ao rei. 4ª) Estas cartas alertaram Vítor Emanuel não só sobre
“funerais na corte” como também sobre a morte de pessoas concretas. 5ª)
Uma última (?) carta, escrita quando o rei se preparava para assinar a lei, pre-
dizia maiores catástrofes. 6ª) Tendo “cumprindo com seu dever”, Dom Bosco
adota uma atitude de distanciamento esperando para ver como tudo termina.
Lemoyne data o primeiro sonho “em fins de novembro de 1854”, e o
segundo, “cinco dias depois”.18
Entretanto, a carta citada anteriormente diz-nos que o primeiro aler-
ta fora enviado “vinte dias” antes da morte das duas rainhas. A rainha-mãe
morreu em 13 de janeiro e a rainha consorte em 20 de janeiro de 1855. Isso
situaria o sonho entre dezembro de 1854 e janeiro de 1855. Em todo caso, o
terminus ad quem é 13 de janeiro (primeira morte).

Texto e fonte da narração


As duas experiências aparecem nas Memórias Biográficas como sonhos19
e são contados de forma muito breve.

17
Dom Bosco a Daniel Rademacher, 7 de junho de 1855, Epistolario I Motto, 257. Rademacher
era um padre português que ajudara Dom Bosco.
18
MB V, 178.
19
A tradição assume a natureza onírica da experiência, mas chamá-la de “visão” (alucinação
visual) ou simplesmente “imaginação” seria válido da mesma forma.

25

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeira narração20 Segunda narração21


Certa noite, em fins de novembro, teve Passaram-se cinco dias desde o sonho, e Dom
um sonho. Pareceu-lhe estar no pórtico Bosco voltou a sonhar naquela noite. Pare-
central do Oratório, do qual até então cia-lhe estar em seu quarto, sentado à mesa,
só se tinha construído a metade, junto à escrevendo, quando ouviu o galopar de um
bomba de água fixada no muro da peque- cavalo no pátio. Viu, em seguida, que a porta
na casa Pinardi. Estava rodeado de padres se abria e aparecia o pajem de libré vermelha
e clérigos; em seguida, viu aproximar-se que, aproximando-se até o centro do quarto,
pelo meio do pátio um pajem da Corte, gritou:
de uniforme vermelho que, aproximan- – Anuncio: não grande funeral na Corte, mas
do-se rapidamente dele, parecia gritar-lhe: grandes funerais na Corte!
– Notícia importante! E repetiu essas palavras mais duas vezes. Em
– Qual? – perguntou-lhe Dom Bosco. seguida, retirou-se apressadamente e fechou
Anuncia: – Grande funeral na Corte! a porta atrás de si. Dom Bosco queria saber,
Grande funeral na Corte! queria perguntar, queria pedir explicações; le-
Diante da repentina aparição e daquele vantou-se, então, da mesa, foi à sacada e viu o
grito, Dom Bosco ficou frio e o pajem pajem no pátio montado a cavalo. Chamou-o,
repetiu: perguntou-lhe por que voltara a repetir aquele
– Grande funeral na corte! aviso; mas o pajem desapareceu, gritando:
Dom Bosco, então, quis-lhe pedir ex- – Grandes funerais na Corte!
plicação do aviso fúnebre, mas o pajem Ao amanhecer, Dom Bosco escreveu pes-
desaparecera. Dom Bosco despertou, es- soalmente outra carta ao rei, contando-lhe
tava como que fora de si e, ao compreen- o segundo sonho, e terminava dizendo-lhe
der o mistério da aparição, tomou a pena “que procurasse conduzir-se de tal modo
e escreveu imediatamente uma carta a que evitasse os castigos anunciados, en-
Vítor Emanuel, manifestando-lhe o que quanto lhe rogava que a todo custo impe-
lhe fora anunciado e contando simples- disse aquela lei”.
mente o sonho.

Quanto à fonte do relato, há que se notar que Lemoyne não foi teste-
munha dos fatos. Contudo, pode ter chegado ao seu conhecimento através
das testemunhas nomeadas. A narração da história como tal é possivelmen-
te uma adaptação daquela narrada por Pedro Enria em suas memórias.22
Ao falar dos sonhos ou “visões com que Deus tinha honrado Dom Bosco”,
Enria escreve:

MB V, 176.
20

MB V, 178.
21

22
Pedro Enria, órfão aos 14 anos por causa da epidemia de cólera de 1854, foi acolhido por Dom
Bosco no Oratório. Mais tarde professou como salesiano coadjutor e foi enfermeiro de Dom Bosco até
sua morte em 1888. Além de escrever crônicas sobre as doenças de Dom Bosco, em 1892, por orien-
tação do padre Lemoyne, escreveu suas memórias autobiográficas. Nessas memórias, ele também fala
dos sonhos dos quais estamos tratando.

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A década 1850-1861

Recordo que certa noite, em 1854 ou 1855, se não me engano, Dom Bosco
contou um sonho que tivera quando estava em seu quarto. Um indivíduo
vestido de libré vermelha, um pajem da casa real, apareceu diante dele e disse:
“Dom Bosco, há funerais na corte”. Dom Bosco acordou agitado. Mas (pen-
sou) é apenas um sonho. Na noite seguinte, a mesma pessoa apareceu-lhe
(em sonho) e disse-lhe: “Dom Bosco, há grandes funerais na Corte”. E, de
fato, algum tempo depois, as duas rainhas, Maria Teresa e Maria Adelaide,
faleceram, e também o príncipe Fernando, duque de Gênova, e outro jovem
príncipe cujo nome não me recordo.23

Predições realizadas
A rainha-mãe, Maria Teresa, faleceu em 13 de janeiro de 1855, aos 54 anos
de idade, depois de “breve enfermidade”.24 Uma semana depois, em 20 de janei-
ro, a rainha Maria Adelaide, esposa do rei Vítor Emanuel, falecia aos 32 anos após
dar à luz, tendo contraído febre puerperal; por isso, já no dia 19 de janeiro fora
ordenado um tríduo de orações para obter sua recuperação. Algumas semanas
depois, em 10 ou 11 de fevereiro, o irmão do rei, duque Fernando de Gênova,
morreu por causa de “febres pulmonares”. Nesse momento, a Lei Rattazzi era
submetida ao debate. Em 17 de maio, poucos dias antes de o rei assinar a lei, em
29 de maio, morreu também o jovem príncipe Vítor Emanuel Leopoldo.

Teologia da retribuição
O rei Vítor Emanuel não era favorável ao projeto de lei; embora fosse,
pelo Statuto, chefe do Executivo com poder de veto, uma das grandes vitórias
políticas de Cavour fora tornar, na prática, o governo e não o rei o responsá-
vel pelo Executivo. Os escrúpulos pessoais e os de sua mulher e família leva-
ram Vítor Emanuel a opor-se à medida “anticlerical”. Ele mantinha contato
epistolar com Pio IX e, enquanto se debatia a lei, “conspirava” com os bispos
do Senado para bloqueá-la.25 Cavour descobriu “a conspiração” e, na noite de
26 de abril de 1855, com todo o seu governo, apresentou demissão. O rei não
encontrou um substituto conservador e viu-se forçado a nomear novamente
Cavour e ver a aprovação da lei que, “coagido”, assinou em 29 de maio.

P. Enria, Cronaca di Enria Pietro 1854-1888, ASC A013; FDB 932 E12.
23

Jornal católico L’Armonia, 13/1/1855. In: F. Desramaut, Don Bosco, 427, 459.
24

25
Como já se disse, o rei subscreveu uma proposta do bispo Luís Nazari di Calabiana, de Casale,
pela qual uma soma anual em dinheiro, quase 1 milhão de liras, seria garantida para o sustento de
paróquias (motivo alegado que justificava a lei) se o projeto de lei fosse retirado.

27

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Dom Bosco: história e carisma 2

As três primeiras mortes, portanto, não se justificam segundo os termos


do sonho... a não ser que pensemos que fossem infligidas simplesmente para
advertir o rei! Mesmo a morte do filho mais jovem, o príncipe Vítor Ema-
nuel, ocorreu antes da assinatura da lei. As grandes catástrofes prenunciadas
por Dom Bosco na carta ao padre Rademacher (fim da dinastia, epidemias,
enfermidade do rei) não se verificaram. A epidemia de cólera estava pratica-
mente extinta em fins de 1854.
Estes fatos colocam a questão de certa concepção da retribuição divina.
A ideia era comum entre os católicos conservadores do século XIX. O his-
toriador católico Tomás Chiuso viu a mão vingadora de Deus nessas muitas
mortes da família real num espaço de tempo muito curto, colocando-as em
relação com a Lei Cavour-Rattazzi. Padre Chiuso escreveu:

Jamais, mesmo no tempo da epidemia mais mortífera, houve evidência de


que em menos de um mês três túmulos fossem abertos para receber os restos
mortais de pessoas muito próximas ao rei. Não só católicos, como também
liberais, viam nesse fato um sinal de advertência divina para não seguir o
caminho escolhido.26

Na própria corte, temiam-se castigos divinos relacionados com as leis


punitivas do Estado contra a Igreja. A rainha-mãe expressa seus temores
numa carta ao filho Vítor Emanuel. Esta carta, publicada pela primeira vez
em 1936 e citada por Ceria, foi escrita em 1850 quando a Lei Siccardi era
debatida no Parlamento. Nela, recomendava ao filho que não assinasse a lei:

[Se vetares a lei] Deus te abençoará e recompensará. Se a assinares, temo que


duros castigos divinos venham a cair sobre ti, nossa família, o país inteiro.
Pensa em tua pena se o Senhor quisesse levar a tua Adele [a rainha consorte
Maria Adelaide] a quem tanto amas, ou tua querida Chichina [sua filha, a
princesa Maria Clotilde] ou teu Beto [filho e herdeiro presumido, príncipe
Humberto]. Se pudesses apenas dar uma olhada em meu coração e vir a dor,
angústia e temor com que eu vivo! A perspectiva de que possas assinar essa lei
sem consultar ou chegar a um acordo prévio com o Santo Padre, enche-me de
pânico, pois estou certa do castigo de Deus.27

26
T. Chiuso, La Chiesa in Piemonte dal 1797 ai nostri giorni. Turim, 1887ss. [5 vols.], IV, 197.
In: F. Desramaut, Don Bosco, 428, 459.
27
A. Monti, “Nuova antologia”, 1o/1/1936, 65. In: MB XVII, 898 (Documentos e fatos ante-
riores XXV).

28

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A década 1850-1861

A mesma teologia da retribuição é esboçada em um número das Leituras


Católicas editado durante o debate da Lei Rattazzi. O folheto, obra de um
autor francês, cita muitos exemplos de retribuição divina por ataques contra
a Igreja.28
Dom Bosco fez-se eco da mesma crença no almanaque Il Galantuomo,
de 1856, publicado em fins de 1855 nas Leituras Católicas, ou seja, pouco
depois da assinatura da Lei Cavour-Rattazzi e das mortes na família real:

Não digo que Deus quisesse a morte dessas pessoas inocentes devido a essa
lei. Contudo, é o que muitas pessoas acreditavam então, e ainda acreditam.
De fato, se diz que Deus quis levar essas boas pessoas com ele justamente para
castigar os malvados envolvidos nela.29

Pode-se perguntar se doutrina tão estrita, e duvidosa, sobre a retribuição


divina condicionou a experiência onírica de Dom Bosco e suas atividades
posteriores.

3. Evolução dos acontecimentos políticos até a unificação


da Itália (1861)
Descritas as reformas sociais que, no contexto da Revolução Liberal,
resultaram numa nova ordem social, faz-se agora breve menção ao Risorgi-
mento, movimento que levou à unificação da Itália.
O fracasso da Primeira Guerra de Independência Italiana (1849) levara
à abdicação e morte no exílio de Carlos Alberto e a subida de Vítor Emanuel
II ao trono do Reino Piemonte-Sardenha. A Áustria reclamou a Lombardia
e o Vêneto. Nas demais regiões italianas onde revoluções e levantes forçaram
a concessão de constituições liberais, os governantes absolutistas foram resti-
tuídos e as constituições, abolidas. Os Estados Pontifícios passaram por uma
sucessão de acontecimentos históricos. Pio IX concedera uma constituição
sendo, depois, obrigado a exilar-se. Os romanos do partido mazziniano [de
José Mazzini] fundaram a República Romana (1849), mas a intervenção fran-
cesa acabou com ela, e Pio IX foi reconduzido (12 de março de 1850). Em
muitos Estados italianos continuaram a contrarreação e a repressão sangrenta.

28
Jacques-Albin Collin de Plancy, baron de Nilinse, I beni della Chiesa, come si rubino [...]
(Como estão sendo roubadas as propriedades da Igreja [...]). In: Leituras Católicas, abril/1855.
29
Il Galantuomo (O Homem de Bem) [...] para o ano 1856 (Turim, 1855), 46. In: F. Desramaut,
Don Bosco, 428, 459.

29

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apenas no Reino da Sardenha teve continuidade o governo constitucional e


prosseguiram as reformas liberais e o programa do Risorgimento, impulsiona-
dos especialmente por Cavour.
Em fins de 1851, uma inverossímil aliança política, chamada Connubio
(casamento) pelos historiadores, foi feita pelo partido moderado de Camilo
Cavour e o esquerdista de Urbano Rattazzi. Em 21 e 22 de outubro de 1852,
quando o rei recusou apoio à lei sobre o casamento civil, o primeiro-ministro
Máximo d’Azeglio demitiu-se. Dias depois, em 4 de novembro, Vítor Ema-
nuel pediu a Cavour que assumisse como primeiro-ministro e formasse o
novo governo, com a condição de que a lei sobre o casamento civil não fosse
apresentada novamente. Cavour chegara ao vértice; a partir desse momento
seria o homem-chave da reforma e da unificação da Itália. Cumpriu a condi-
ção exigida pelo rei, mas pôde introduzir no Parlamento importantes refor-
mas sociais, como a Lei Rattazzi.
A liderança hábil de Cavour levaria, em última instância, à unificação
da Itália como nação. Contudo, o inteligente ministro sabia muito bem que
o Piemonte sozinho não poderia fazer a desejada unificação e que o único
aliado possível era a França. Em 2 de dezembro de 1851, um golpe de Estado
terminara com a Segunda República Francesa e instaurara o presidente Luís
Napoleão como imperador Napoleão III. Cavour, que almejava uma aliança
franco-italiana, contra a Áustria, declarou que o golpe não deveria afetar a
política exterior piemontesa.
Enquanto isso, por outro lado, Mazzini e seus seguidores republicanos,
que foram muito ativos organizando levantes, esperavam à sombra.

Mazzini, Garibaldi e o Partido da Ação


Em 23 de fevereiro de 1853, Mazzini, de Genebra, informou numa
mensagem a todas as células republicanas que a Associação Nacional Italiana
ia ser substituída por uma nova organização, o Partido da Ação. A mensagem
enfatizava a validade e necessidade da atividade revolucionária; o Partido da
Ação ia ser uma associação de patriotas, dedicada ativamente à conspiração
e à revolução, para libertar a Itália do domínio estrangeiro estabelecendo,
então, uma república democrática unida.
José Garibaldi lutara contra os franceses em defesa da República Romana
e conseguira escapar por um triz. Em 20 de julho de 1850, o Piemonte man-
dara-o para o exílio; finalmente, conseguiu ir a Nova York, onde vivia com um
amigo político e trabalhava numa fábrica de velas. O apelo de Mazzini deu-lhe
a oportunidade de regressar e reagrupar seus voluntários.

30

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A década 1850-1861

O Partido da Ação acolheu não só republicanos mazzinianos, como Ga-


ribaldi, mas também “democratas” radicais e socialistas, como Carlos Catta-
neo, José Ferrari e Carlos Pisacane. Mantiveram-se, apesar de todas as cons-
pirações, levantes e movimentos revolucionários, até a unificação da Itália e
mesmo depois. Contudo, a iniciativa tomada pelo Piemonte e a desenvoltura
política de Cavour frustrariam todas as tentativas.

A Guerra da Crimeia e a participação do Piemonte (1854-1855)


A chamada “questão do Leste” dominou a política europeia em
1854-1855. França e Inglaterra uniram-se à Turquia para se precaverem
contra a conquista da Rússia de parte do Império Otomano, que se des-
moronava. O Piemonte foi convidado a unir-se à coalizão. Cavour, Vítor
Emanuel e um grupo de liberais viram nisso a oportunidade de o seu
pequeno reino ser valorizado pelas grandes potências e assim conseguir
apoio contra a Áustria.
Em 18 de abril de 1854, Cavour apresentou ao seu gabinete a proposta
de aceitar o convite feito pela Inglaterra e pela França. Deviam contribuir
com 15 mil soldados. A maioria dos ministros opôs-se, mas Cavour assumiu
o Ministério dos Assuntos Exteriores em 8 de janeiro de 1855, e o Parlamen-
to aprovou o tratado de aliança em 8 de fevereiro. Depois da declaração de
guerra à Rússia, o general Afonso La Mármora marchou com um contingen-
te de 18 mil soldados piemonteses à linha de frente da guerra, na península
da Crimeia.30
Enquanto se debatia a participação na guerra, uma epidemia de cólera
assolava a Itália e outras partes da Europa chegando ao seu auge no verão de
1854. Na Crimeia, a cólera propagou-se entre os exércitos, e os piemonteses
sofreram cerca de 1.500 baixas, entre elas a do próprio general La Mármora.
Apesar da virulência da enfermidade, os franceses e piemonteses repeliram a
ofensiva do exército russo no rio Tchernaia pela posse da importante cidade
de Sebastopol. O corpo piemontês dos bersaglieri lutou honrosamente em sua
única participação na guerra, enquanto os franceses ocuparam Sebastopol,
concluindo assim a derrota dos russos.
Em fins de novembro de 1855, Vítor Emanuel II, Cavour e D’Azeglio
entrevistaram-se com o imperador Napoleão III em Paris e com a rainha
Vitória em Londres. No Congresso da Paz de Paris – 25 de fevereiro a 16

Crimeia é uma península da Ucrânia, que adentra pelo mar Negro. A guerra foi feita ali para
30

bloquear o avanço dos russos em território do Império Otomano.

31

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Dom Bosco: história e carisma 2

de abril de 1856 – Cavour sentou-se com as grandes potências; consegui-


ra-o depois de árduas negociações e, com a permissão do lorde Clarendon,
dirigiu-se aos representantes sobre a questão italiana. Outros temas tra-
tados foram a ocupação francesa de Roma, a ocupação austríaca de ter-
ritórios papais (Romanha) e o desgoverno nos Estados papais e no Reino
das Duas Sicílias. Cavour esperava algum tipo de compensação territorial
(Parma ou Módena) e a retirada imediata das tropas austríacas e francesas
do território italiano. Não alcançou seus objetivos, mas sua participação
ativa demonstrou que o Piemonte era a única alternativa à revolução repu-
blicana de Mazzini.
Em agosto de 1856, a Sociedade Nacional Italiana (a não se identificar
com a Associação Nacional Italiana, de Mazzini, nem com o Partido da Ação)
foi fundada em Gênova, encabeçada por José La Farina, com o propósito de
unificar todas as forças patrióticas. La Farina propôs que a libertação da Itália
devia ser seu objetivo imediato sem decidir sobre a organização política final
do país. Cavour deu seu apoio; Garibaldi, de volta de Nova York e por algum
tempo descontente com o idealismo de Mazzini, também aderiu. Enquanto
isso, uma conspiração de Mazzini para fomentar levantes em Gênova e Livor-
no, com a desastrosa expedição de Carlos Pisacane, republicano radical do sul
da Itália, marcou o fim da doutrina revolucionária de Mazzini, embora não
de suas conspirações.31

A aliança de Plombières entre Napoleão III e Cavour (1858)


Uma tentativa falida de assassinar Napoleão III em 14 de janeiro de
1858 ameaçou acabar com os planos de Cavour. A culpa foi de um pequeno
grupo de radicais republicanos mazzinianos, liderados por Félix Orsini, que
estava causando agitação para provocar uma revolução geral europeia. Como
outros revolucionários mazzinianos, foram condenados à morte.
Apesar do contratempo, em maio, Napoleão III convidou Cavour para
uma reunião secreta em Plombières, pequeno lugar de diversão nos Vosges,
[departamento a] oeste da França. A reunião aconteceu em 20 e 21 de julho
de 1858, com a finalidade de planejar uma estratégia para expulsar a Áustria e
unificar o norte da Itália sob a monarquia dos Saboia. Seria em troca de Nice
e da Saboia que passaram a fazer parte da França. Concordou-se que uma
falsa revolta seria o pretexto para uma declaração de guerra; a aliança seria
selada com o casamento da princesa Maria Clotilde, filha de 15 anos de Vítor
Emanuel, com o primo de Napoleão.

31
V. Ceppelini; P. Boroli; L. Lamarque (eds.), Storia d’Italia, 124-126.

32

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A década 1850-1861

Os preparativos foram feitos com rapidez. A Sociedade Nacional Italiana


convocou Garibaldi em Turim e deu-lhe permissão para recrutar um corpo
especial de voluntários que se chamariam “Caçadores dos Alpes”, enquanto
Cavour aprovava um plano pelo qual uma insurreição em Massa-Carrara de-
mandaria a intervenção piemontesa e a reação da Áustria.
Em 4 de fevereiro de 1859, surgiu um opúsculo em Paris, intitulado
Napoleão III e a Itália, assinado pelo jornalista Louis-Étienne de la Gué-
ronnière, a quem o próprio imperador incentivara a escrever. Nele se reco-
nhecia o direito de unificação da Itália e o direito da França de apoiar as
aspirações italianas.

Primeiro-ministro Camilo Benso, conde de Cavour (1810-1861).

33

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ao mesmo tempo em que se intensificavam os preparativos militares


no Piemonte, as nações europeias, particularmente a Inglaterra, esforçavam-
-se por encontrar uma solução política para a questão italiana, numa últi-
ma tentativa de evitar a guerra. Contudo, nesse momento, a Áustria decidiu
apresentar um ultimato ao Piemonte, exigindo a cessação imediata dos pre-
parativos para a guerra.

A Segunda Guerra de Independência Italiana e a anexação


da Lombardia
O ultimato foi recusado e um exército austríaco entrou no Piemonte
comandado pelo general Ferencz Gyulai. A Segunda Guerra de Independên-
cia Italiana começou em 27 de abril de 1859. Os exércitos francês e piemon-
tês repeliram o exército austríaco nas batalhas de Montebello, 20 de maio, e
Magenta, 4 de junho, e ocuparam Milão. Ao mesmo tempo, Garibaldi e seus
“caçadores” ocuparam as cidades lombardas do norte. O imperador Francis-
co José destituiu o general Gyulai e assumiu pessoalmente o comando, mas
foi derrotado nas batalhas de Solferino e São Martinho em 24 de junho. Os
austríacos perderam 16 mil homens, e os franceses, 12 mil. Os piemonteses,
apesar de suas numerosas perdas, ocuparam o chamado “Quadrilátero”,32
enquanto a frota aliada se preparava para atacar os austríacos em Veneza
desde o mar Adriático.
Ao mesmo tempo em que começava a guerra, estalaram revoltas em
Florença, Massa-Carrara, Parma, Módena e Bolonha, e se estabeleceram go-
vernos provisórios em vista da anexação ao Piemonte. As revoltas nas cidades
das Marcas e da Úmbria, territórios dos Estados Pontifícios, foram sufocadas,
e Pio IX excomungou os revolucionários em 20 de junho.
Quando parecia certa a vitória franco-piemontesa, Napoleão III enviou
em 5 de julho uma carta a Francisco José propondo um armistício temporá-
rio; a carta foi assinada por todas as partes, também por Vítor Emanuel II.
Mas em 11 de julho, contrariando o tratado de Plombières e sem a participa-
ção do Piemonte, os dois imperadores conversaram em Villafranca e chega-
ram a um acordo, que se materializaria em Zurique entre os dias 8 de agosto
e 10 de novembro de 1859. Segundo o acordo, a Lombardia seria cedida à
França e depois anexada ao Piemonte; os soberanos das cidades rebeladas se-
riam restabelecidos em seus respectivos domínios. Com o tempo, os Estados
italianos poderiam unir-se numa federação sob a presidência honorária do

O Quadrilátero compreendia as cidades fortificadas de Verona, Peschiera del Garda, Mântua e


32

Legnago, e dominava os vales dos rios Ádige e Míncio e as estradas até a Áustria.

34

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A década 1850-1861

Papa. Veneza faria parte da federação, embora sob a dominação austríaca.


Quando recebeu a notícia do armistício, Cavour apressou-se em ir à frente de
batalha. Depois de um violento enfrentamento com Vítor Emanuel, apresen-
tou sua demissão e foi formado um novo governo.
Enquanto acontecia a conferência de paz em Zurique, Mazzini foi se-
cretamente a Florença para fomentar uma revolução. Foi perseguido e quase
capturado, mas chegou à Suíça de onde escreveu sua famosa Carta a Vítor
Emanuel II, datada de 20 de setembro de 1859. Mazzini estaria disposto a
aceitar uma monarquia constitucional, escrevia ele, se o rei se afastasse dos
moderados e dos franceses para levar o “povo italiano” à unidade. A carta tem
um tom desesperado, mas os historiadores duvidam da sua sinceridade.

Anexação das regiões do centro da Itália


Em 22 de dezembro de 1859, um opúsculo publicado em Paris, e simul-
taneamente em Londres, Frankfurt, Turim e Florença, intitulado Le Pape e le
Congrès (O Papa e o Congresso), emocionou a comunidade internacional. Es-
crito pelo já mencionado De la Guéronnière, mas novamente encorajado por
Napoleão III, o folheto representava uma reviravolta na política francesa em re-
lação à unificação italiana e aos Estados Pontifícios. Nele se dizia ser necessário
garantir o poder temporal do Papa, mas que, quanto menor fosse o território
em que exercesse esse poder, mais efetivo ele seria. Napoleão III estava decidido
a defender Roma quer por motivos internos, quer também para adiantar-se à
influência austríaca; o opúsculo permitiu-lhe certa margem de manobra.33
O governo formado depois da demissão de Cavour pouco durou. Vítor
Emanuel viu-se forçado, muito a contragosto, a permitir que Cavour reto-
masse o poder; o novo governo, com um Parlamento liberal, constituiu-se em
21 de janeiro de 1860.
Em 10 de novembro de 1859, pelo tratado de paz de Zurique, o Pie-
monte anexara a Lombardia. As regiões do centro da Itália que se levantaram
no início da guerra – Parma, Módena, Romanha e Toscana – também tinham
solicitado a anexação, mas o rei Vítor Emanuel procedera com cautela, com
promessas, por culpa da França. Agora, porém, o caminho estava livre, e a
anexação tornou-se efetiva por uma grande maioria de votos em 11 e 12 de
março de 1860.

O periódico Il Giornale di Roma tachou a ideia como rendição à revolução e uma coleção de
33

muitos erros e insultos contra a Santa Sé, já rebatidos no passado. Pio IX, em sua alocução ao corpo
militar francês em Roma (1o de janeiro de 1860), descreveu o opúsculo como ignóbil e contraditório,
e acrescentou ter testemunhos escritos de que as opiniões do imperador sobre o tema eram diametral-
mente opostas às manifestadas no texto.

35

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Dom Bosco: história e carisma 2

A França, contudo, exigiu Nice e a Saboia. As negociações ocorreram em


12 e 14 de março e 15 e 22 de abril respectivamente. Nice e a Saboia votaram,
de novo com esmagadora maioria, a favor da França. O Parlamento piemon-
tês ratificou a transferência em 29 de maio e 10 de junho de 1860. Foi uma
perda dolorosa e a ação de Cavour, muito sentida, pois a Saboia era feudo
dinástico de Vítor Emanuel, e Nice, a cidade natal de Garibaldi.

Conquista do sul da Itália, invasão dos Estados Pontifícios e


unificação da Itália (1860-1861)34
Em 4 de abril de 1860 deu-se uma insurreição em Palermo (Sicília),
planejada como sinal para que uma revolução democrática armada libertasse
a Sicília, mas a insurreição fracassou. Alguns elementos democráticos do Par-
tido da Ação pediram a Garibaldi que liderasse uma expedição de voluntários
para ajudar os insurgentes, e ele aceitou. Apesar dos esforços de Cavour e
Vítor Emanuel para evitar essa expedição, foram fretados dois navios. Em 6
de maio Garibaldi zarpou de Gênova com seus voluntários, “Os Mil”. Após
algumas desventuras, desembarcaram em Marsala (Sicília) no dia 11 de maio
e, reforçado por insurgentes de todas as partes da ilha, Garibaldi tomou posse
de Palermo e do resto da Sicília em 6 de junho. A Constituição de 1848 foi
restabelecida. Enquanto isso, Cavour enviara José La Farina, da Sociedade
Nacional Italiana, para negociar a anexação da Sicília, mas Garibaldi o pren-
deu. Cavour também tentou organizar uma revolução em Nápoles com a
intenção de impedir o avanço de Garibaldi até Roma, mas fracassou.
Garibaldi, com um exército muito reforçado por voluntários, cruzou o
estreito de Messina em 18 de agosto e, no dia 7 de setembro, tinha Nápoles
sob seu controle. Enquanto isso, o exército da casa de Bourbon posicionou-se
no rio Volturno para a última batalha. Garibaldi escreveu a Vítor Emanuel,
solicitando a destituição de Cavour, que nada fizera senão interferir na cam-
panha, e “viesse a Roma” para ser coroado rei da Itália.
Ao mesmo tempo, o governo piemontês enviou um ultimato à Santa Sé
exigindo a dissolução do exército mercenário do Papa. Quando chegou a ne-
gativa, os piemonteses invadiram as Marcas a partir da Romanha e, em 18 de
setembro, na batalha de Castelfidardo, derrotaram de maneira esmagadora as
tropas papais. Pouco mais tarde, nos inícios de outubro, Garibaldi derrotou
o exército dos Bourbon no rio Volturno, acabando com o Reino das Duas
Sicílias. O rei Francisco II fugiu, refugiando-se na fortaleza de Gaeta.

34
Contado com detalhes (com mapas) em G. Martin, The red shirt, 532-626.

36

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A década 1850-1861

Com as Marcas e a Úmbria debaixo do controle piemontês, Vítor Ema-


nuel entrou no território napolitano e apressou-se em encontrar-se com Ga-
ribaldi, evitando assim que ele atacasse Roma, o que poderia provocar um
incidente internacional. O encontro aconteceu em Teano, onde trocaram o
famoso “aperto de mãos”. Garibaldi saudou Vítor Emanuel como rei da Itá-
lia, pois Cavour fez o Parlamento piemontês aprovar a anexação das Marcas,
da Úmbria e do Reino das Duas Sicílias, mesmo antes das votações populares
de 21 de outubro e 4 de novembro. Em 7 de novembro, Vítor Emanuel fez
sua entrada triunfal em Nápoles, enquanto Garibaldi dispensava seus volun-
tários e ia para o refúgio na ilha de Caprera.
Em 15 de fevereiro de 1861, depois de resistir ao cerco de 102 dias,
Francisco II de Bourbon deu Gaeta por rendida e, num navio francês, foi
levado a Roma, onde viveu como hóspede do papa Pio IX.
O recém-eleito Parlamento italiano reuniu-se em Turim no dia 14 de
março, e aprovou oficialmente a lei que concedia a Vítor Emanuel e a seus
descendentes o título de “Rei da Itália”.
Assim se obteve a unificação – parcial – da Itália. A Áustria ainda tinha
sob seu controle Veneza e o Vêneto. O Papa dominava Roma e uma consi-
derável região circundante, o Lácio. O Vêneto seria anexado pelo Piemonte
na Terceira Guerra de Independência Italiana em 1866; Roma e o território
vizinho, em 1870.

Consequência: a “questão romana”


Após a unificação parcial da Itália por meio da anexação dos Estados
regionais à monarquia constitucional do Piemonte-Sardenha em 1861, veio
à ribalta a questão romana. O Papa ainda retinha Roma e o território que a
rodeava. A questão era saber se o Papa cederia sua soberania ou seria deposto,
e se Roma seria convertida em capital da Itália unificada. Isso estivera sempre
implícito no pensamento político que buscava a unificação italiana. Mas,
como seria possível alcançar essa meta amigavelmente ou sem atacar nova-
mente o papado? Foi esse “o tema” depois da proclamação do Reino da Itália
sob Vítor Emanuel II e a casa de Saboia.
Nos dias 25 e 27 de março, em dois discursos feitos no Parlamento,
Cavour apresentou a posição do governo e sua estratégia:

1. A unificação da Itália só seria completada quando Roma se con-


vertesse em sua capital.
2. Deveria ser obtida com o apoio ou o consentimento de Napoleão
III da França.

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. Deveria ser obtida sem prejudicar a liberdade espiritual do Papa e


sua independência, garantidas pela Itália perante o mundo.
4. Deveriam ser garantidas ao Papa algumas entradas anuais compa-
ráveis às entradas obtidas pelos Estados Pontifícios.
5. A questão romana deveria ser resolvida através da negociação, não
pela força das armas, com a esperança de que o Papa renunciasse
livremente ao poder temporal.
6. Seria um exemplo para todos do princípio liberal de “uma Igreja
livre num Estado livre”.35
Só se pode especular sobre como teriam sido as coisas se Cavour não
tivesse morrido inesperadamente em 6 de junho de 1861, depois de breve
enfermidade.
Finalmente, Roma converteu-se em capital da Itália pela força, com a “to-
mada de Roma” pelo exército italiano, quando Napoleão III retirou a guarni-
ção francesa que a protegia e envolveu-se na desastrosa guerra franco-prussiana
de 1870-1871.

As consequências da unificação e a questão romana são discutidas detalhadamente em


35

G. Martin, The red shirt, 629-653 (637-639: discursos de Cavour).

38

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Apêndice

CONDE CAMILO BENSO DE CAVOUR (1810-1861)

Há três pessoas com o nome “Benso de Cavour” na Restauração e no


período revolucionário italiano. E, consequentemente, na história de Dom
Bosco. O primeiro é o famoso conde Camilo Benso de Cavour (1810-1861),
homem de Estado e primeiro-ministro cuja política levou à unificação da
Itália. O segundo é o irmão mais velho de Camilo, o marquês Gustavo Benso
de Cavour (1806-1864), deputado no Parlamento, muito ativo nos círculos
católicos. O terceiro é seu pai, o marquês Miguel Benso de Cavour (1781-
1850), assessor do rei Carlos Alberto e superintendente da polícia da cidade
de Turim na década de 1840. Aqui se fala do conde Camilo Benso de Cavour,
homem de Estado e primeiro-ministro, a quem se faz referência normalmente
com o nome de Cavour no contexto do Risorgimento e da unificação da Itália.

Os primeiros anos de Cavour e sua chegada ao poder


Nascido em Turim no dia 10 de agosto de 1810, o conde Camilo Benso
de Cavour era o filho mais novo do marquês Miguel Benso de Cavour, mem-
bro do governo local de Turim, e de Adela de Sellon Benso, nascida calvinista,
mas devota convertida. O irmão mais velho de Camilo, Gustavo, herdou o
título de marquês.
Em 1826, Camilo alistou-se numa academia militar para seguir a carrei-
ra do exército; sobressaía em humanidades mais do que em ciências. Apesar
disso, serviu no corpo de engenheiros do exército, mas renunciou à carreira
militar em 1831. Durante esse período apoiou abertamente os ideais repu-
blicanos de Mazzini, arriscando-se a comprometer sua carreira e seu futuro
como membro da nobreza dirigente, que era conservadora ou moderadamen-
te monárquica. A revolução de julho de 1830 na França, que colocou o rei
Luís Felipe de Orleans no trono, mudou a visão política de Cavour para a
monarquia constitucional.

39

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ele passou os quinze anos seguintes (1831-1847) em sua cidade natal,


dedicando-se a administrar com sucesso as propriedades da família através de
projetos agrícolas e a aquisição de terras. Também viajou muito, sobretudo à
França e Inglaterra. Converteu-se num grande admirador do sistema políti-
co, social e econômico deste último país. Muito antes, Cavour desenvolvera
uma atitude racionalista em relação à religião, talvez influenciado pelas visitas
da família de sua mãe, que vivia em Genebra (Suíça). Suas viagens frequentes
à França e Inglaterra também devem ter contribuído para isso.
Em 1847, fundou em Turim o jornal Il Risorgimento, no qual pressio-
nava o rei Carlos Alberto a conceder uma Constituição liberal e continuar a
guerra contra a Áustria. Nessa época, Cavour deixara para trás suas simpatias
republicanas e optara pela unidade nacional baseada em instituições dinás-
ticas, políticas, administrativas, sociais e econômicas. O fato de a unidade
italiana ter sido alcançada dessa maneira testemunha a visão de Cavour sobre
as forças políticas e históricas que agiam nesse momento. A sua foi uma
grande influência independente depois da Revolução Liberal de 1848, da
Constituição do rei Carlos Alberto e da Primeira Guerra de Independência
contra a Áustria.
Após algumas tentativas falidas, Cavour foi eleito deputado no Parla-
mento ou Câmara baixa, em junho de 1848, como um moderado que favore-
cia as reformas. Seu apoio às Leis Siccardi em 1850 foi um grande passo nessa
direção, pois essas leis introduziram reformas sociais significativas ao eliminar
alguns privilégios históricos da Igreja. Ficou marcado também como homem
de grande influência e líder no Parlamento. O primeiro-ministro, marquês
Máximo d’Azeglio, apoiou a sua candidatura a um ministério e, entre 1850 e
1852 obteve os ministérios da Indústria e Comércio e da Agricultura. Nesse
período, ele firmou alguns tratados de comércio com a França, a Bélgica e a
Inglaterra com o objetivo de prejudicar a Áustria.
Em fevereiro de 1852, Cavour e os moderados aliaram-se a Urbano Rat-
tazzi e os liberais de esquerda. Juntos, conseguiram acabar com o governo
conservador de d’Azeglio e, em novembro de 1852, foi nomeado primeiro-
-ministro, cargo que ocupou de forma contínua (exceto durante dois breves
intervalos) até sua morte em 1861. De 1852 a 1861, guiou o governo do
Piemonte e foi o principal arquiteto da unificação da Itália.

Cavour e a política eclesial piemontesa na década de 1850


Como muitos liberais, Cavour acreditava numa sociedade secularizada.
Em 1850 uniu-se aos deputados mais radicais e apoiou as Leis Siccardi para

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A década 1850-1861

abolir os antigos privilégios da Igreja, violando assim os termos da Concordata


de 1841. Nessa época, foi introduzido e aprovado pelo Parlamento um projeto
de lei para estabelecer o matrimônio civil, mas foi recusado pelo Senado.
Como primeiro-ministro, ele apoiou a Lei Rattazzi de 1855, que pre-
tendia a supressão de todas as ordens religiosas, exceto as que se dedicassem
à pregação, ao ensino e ao cuidado dos doentes. Cavour acreditava que as
congregações religiosas já não eram “úteis” numa sociedade moderna e secu-
larizada. Os bispos propuseram um acordo; o rei Vítor Emanuel II, sucessor
de Carlos Alberto depois de sua abdicação em 1849, opôs-se ao projeto, e o
governo hesitou. Como protesto, Cavour demitiu-se, mas foi rapidamente
devolvido ao poder, e a lei, aprovada. Cavour e os que apoiaram a lei foram
excomungados pelo papa Pio IX.

Cavour e a unificação da Itália


Em 1854, Cavour uniu-se à França e Inglaterra contra a Rússia na Guer-
ra da Crimeia. No final da guerra, conseguiu introduzir a questão italiana no
Congresso de Paris de 1856. Em 1858, reuniu-se em Plombières (França)
com Napoleão III, quando concordaram em retomar a guerra contra a Áus-
tria e libertar o norte da Itália (1859). O armistício prematuro de Napoleão
III com a Áustria provocou novamente a demissão de um enfurecido Ca-
vour. Não obstante, a guerra libertou a Lombardia e produziu plebiscitos
na Romanha e nos ducados para serem anexados ao Piemonte. Cavour foi
novamente excomungado pelas suas ações na Romanha.36 Em 1860, o exér-
cito piemontês, a mando de Vítor Emanuel, invadiu as Marcas e a Úmbria
para reunir-se com Garibaldi que, ajudado por seus voluntários, conquistara
a Sicília e Nápoles (1860).37 Esse fato impediu o avanço de Garibaldi sobre
Roma, mas levou à anexação dos Estados Pontifícios ao Piemonte, embora,
com a ajuda de uma guarnição francesa, Pio IX ainda mantivesse Roma e o
território circunstante em seu poder.
O novo Reino da Itália foi proclamado oficialmente em 1861, tendo
Vítor Emanuel II como primeiro rei. Cavour tratou de negociar imediata-
mente com Pio IX a rendição de Roma, oferecendo todas as garantias, mas
não obteve sucesso. Morreu pouco depois, em 6 de junho de 1861, deixando
a questão de Roma irresolvida.

36
A Romanha, região ao norte dos Estados Pontifícios, compreendia as chamadas legações de
Bolonha, Ferrara e Ravena.
37
As Marcas e a Úmbria eram as regiões centrais dos Estados Pontifícios.

41

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Dom Bosco: história e carisma 2

A personalidade de Cavour e seu modo de governar


Exteriormente, Cavour era um homem pouco atraente. Diversamen-
te do protótipo de deputado italiano, não era um grande orador. Falava de
modo monótono, não tinha grande domínio da língua e sentia-se mais con-
fortável falando em francês do que em italiano. Contudo, por causa da cla-
reza de pensamento e do raciocínio arguto, era sempre ouvido com grande
atenção.
Aparentemente, era o sonho de qualquer caricaturista: atarracado, bar-
rigudo, com pescoço grosso, cabelo ralo, penetrantes olhos cinzentos com
óculos, roupa descuidada com o colete manchado de rapé. Contudo, o exte-
rior simples, não podia ocultar o homem de Estado dotado de inteligência,
audácia, muito encanto pessoal e, sendo necessário, sem qualquer tipo de
escrúpulos. Era um autêntico patriota. As mentiras pelas quais foi constan-
temente criticado eram desculpadas, mas não justificadas, pelo grande ideal
pelo qual trabalhava. É o típico homem de Estado italiano do século XIX.
Cavour também dominou tanto o governo quanto o Parlamento ao lon-
go de seus anos no cargo, mas não foi de modo algum um ditador. Governou
de acordo com a lei, não por meio de decretos; não tentou suprimir a oposi-
ção; manteve a autoridade do Parlamento e o prestígio da monarquia; e deu
plena liberdade à imprensa.
O evento mais notável da vida de Cavour foi ter dirigido a unificação
da Itália, uma península dividida por séculos em muitos Estados regionais.
A unificação dessas repúblicas, ducados e reinos independentes foi algo que
muita gente não acreditava possível antes de acontecer. O sentido de nação
precisou ser imposto por uma pequena minoria de patriotas sobre uma popu-
lação pouco preparada para mudança tão grande. Isso fez com que o sucesso
do movimento nacionalista fosse ainda mais notável. Cavour, porém, não
viveu para ver Roma convertida em capital da Itália, ele que, com sua ação
política preparou o cenário para este, e talvez o mais considerável, sucesso do
Risorgimento: acabar com o poder temporal do Papa, que sobrevivera intacto
ao longo de muitos séculos.
Essas vitórias foram obtidas contra qualquer prognóstico, e foram ain-
da mais incríveis pelo fato de a região de Cavour, que liderou o movimento
nacional, ser pequena e não ter muito peso na península italiana. Ele não só
precisou superar a oposição no próprio Piemonte, como também nos outros
Estados italianos, porque apesar de uma minoria da população estar a favor
ou apoiar o processo, a maioria do povo desses Estados opunha-se firmemen-
te àquilo que Cavour estava fazendo. Como consequência, o Risorgimento

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A década 1850-1861

precisou ser não só uma luta contra a opressão estrangeira, mas uma série
de guerras civis. Inevitavelmente, isso abriu feridas que não se curaram fa-
cilmente. Cavour teve êxito ao conseguir apoios, mas foi impossível compor
algumas divisões internas (não simplesmente a divisão entre conservadores e
radicais, mas entre Igreja e Estado, entre os ricos latifundiários e os pobres
camponeses, entre as ricas regiões do norte e o sul empobrecido).
Contudo, a unificação da Itália foi afinal um grande sucesso. Só se pode
lamentar que Cavour não tivesse vivido o suficiente para aplicar sua habilida-
de e inteligência aos problemas iniciais do Estado que ele tanto contribuíra
para criar.

Atitude religiosa final


Cavour nunca compartilhou o anticlericalismo extremo da esquerda ra-
dical, nem o mais atenuado da esquerda moderada. Sua política relativa à
Igreja parecia mais bem motivada pela conveniência política.
Seus sentimentos religiosos no leito de morte estão envolvidos no mis-
tério. Oficialmente, falou-se que o padre Santiago Poirino, seu pároco, lhe
tenha administrado os últimos sacramentos da Igreja. Pio IX interrogou o
sacerdote, mas este jamais revelou os detalhes da sua ajuda: se Cavour se con-
fessou e recebeu a absolvição, ou se o tenha absolvido de forma condicional
enquanto estava inconsciente devido ao ataque que sofrera e que lhe causou
a morte.

JOSÉ GARIBALDI (1807-1882)

Garibaldi nasceu em Nice, então no Reino da Sardenha, em 4 de ju-


lho de 1807, numa família de marinheiros. Embarcado desde muito cedo,
conheceu todo o Mediterrâneo, demonstrou ter dotes excepcionais para a
navegação e foi promovido a capitão.
Inicialmente, não participou da política. Em 1833, conheceu a doutrina
social cristã do filósofo político utópico, Henri de Saint-Simon. Mais impor-
tante, ainda, foi conhecer os mazzinianos em Marselha, e uniu-se à associação
A Jovem Itália, de Mazzini, e à sua ideologia republicana.
Em dezembro de 1833, alistou-se na marinha do Reino da Sardenha com a
finalidade expressa de difundir a doutrina revolucionária e organizar um levante
entre os marinheiros, levante que estalaria em 4 de fevereiro de 1834, em coor-
denação com o plano fracassado de Mazzini de invadir a Saboia. O exército e a

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Dom Bosco: história e carisma 2

polícia inteiraram-se do complô e Garibaldi escapou por pouco sendo condena-


do à morte à revelia. Buscou refúgio na América do Sul, onde lutou ao lado da
república do Rio Grande contra o império do Brasil, e contra a Argentina pela
independência do Uruguai, onde viveu de 1836 a 1848.
Retornou à Itália em 1848 e uniu-se ao Piemonte na Primeira Guerra de
Independência Italiana (1848-1849) e, depois da derrota e posterior abdica-
ção de Carlos Alberto, foi servir como comandante no exército da República
Romana de Mazzini. Quando os franceses intervieram para pôr fim à repú-
blica (1849), Garibaldi fugiu com um contingente e foi para o norte defender
Veneza, que, com Daniel Manin, se tinha levantado contra a Áustria. Foi
interceptado pelos austríacos e fugiu para Gênova. De ali, emigrou para Nova
York, onde viveu com amigos e trabalhou numa fábrica de velas. De Nova
York foi ao Peru para lutar pela sua independência.
Em 1854, voltou à Itália e, embora nunca tivesse se desviado pessoalmente
do republicanismo de Mazzini, em 1856 uniu-se às forças do rei Vítor Emanuel
II para a unificação da Itália (1859-1861), com um papel relevante. Em 1859,
uniu-se ao exército piemontês e assumiu o comando de um corpo conhecido
como os Caçadores dos Alpes para enfrentar os austríacos na Segunda Guerra
de Independência Italiana. O rei voltou a chamá-lo depois do armistício de
Villafranca. Em maio de 1860, com seus voluntários denominados Os Mil
Camisas Vermelhas, encabeçou a expedição contra o Reino das Duas Sicílias,
que conquistou e cedeu ao Piemonte.
Após a unificação da Itália (1861), Garibaldi, já convertido em mítico
herói popular, divergiu repentinamente do governo italiano sobre a tomada
de Roma. Como republicano radical anticlerical queria eliminar o papado,
enquanto o governo desejava resolver a Questão Romana dando garantias
ao Papa. Apesar de se retirar na ilha de Caprera, em 1862, Garibaldi reuniu
seus voluntários e marchou sobre Roma. Foi derrotado no Aspromonte pelo
exército italiano, ferido e aprisionado, regressando a Caprera. Em 1866, foi
novamente detido por ordem do rei na sua tentativa de libertar Trento, ainda
sob o domínio austríaco. Em 1867, ele e seus voluntários marcharam nova-
mente sobre Roma apesar da expressa proibição do governo italiano, mas foi
derrotado pela guarnição francesa enviada para defender o Papa, frustrando
sua tentativa.38 Em 1870, assumiu um cargo no exército francês durante a
guerra franco-prussiana.
Em seus últimos anos, sua orientação republicana e anticlerical, aliada
às suas inclinações sociais, tornou-se mais pronunciada. Sob os governos da

Os serviços prestados por Garibaldi no passado e sua popularidade na Itália e no exterior evitaram
38

que o governo procedesse contra ele.

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A década 1850-1861

esquerda radical, no poder desde 1876, foi eleito várias vezes deputado, mas
raramente participava do Parlamento ou dos processos políticos, decepciona-
do com sua corrupção e seus comprometimentos.
Faleceu em 2 de junho de 1882, como último sobrevivente dos princi-
pais protagonistas do Risorgimento.39

General José Garibaldi (1807-1882).

39
Cavour morreu em 1861; Mazzini, em 1872; o rei Vítor Emanuel e o papa Pio IX, em 1878.

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Dom Bosco: história e carisma 2

CRONOLOGIA DOS FATOS SIGNIFICATIVOS


RELACIONADOS COM O ESTADO, A IGREJA E A
OBRA DE DOM BOSCO (1840-1861)
Década de 1840
1848, março: diversas reformas sob o rei Carlos Alberto, que acabaram com
a Constituição (Statuto) do Reino da Sardenha. “Emancipação” dos protes-
tantes (valdenses) e judeus com plenos direitos civis e religiosos, liberdade de
imprensa etc.
1848: reforma educacional do ministro Carlos Boncompagni, que pôs o en-
sino sob o controle do Estado.
1848-1849: Primeira Guerra de Independência Italiana, de Carlos Alberto
contra a Áustria, para a libertação da Lombardia e do Vêneto (Veneza); Car-
los Alberto é vencido, abdica, segue para o exílio voluntário e morre.
1849: Vítor Emanuel II sobe ao trono.
1849-1850: Pio IX foge, exila-se em Gaeta e retorna graças à intervenção
francesa. Fora eleito Papa em 1846. Institui reformas liberais nos Estados
Pontifícios, mas declara-se neutro na guerra (1848). Insurreição em Roma:
Mazzini e a República Romana (1849).
1846-1849: Dom Bosco estabelece-se na casa Pinardi; doença de Dom Bos-
co; a pequena casa anexa; os Oratórios de São Luís e do Anjo da Guarda.
1849, julho: Dom Bosco educa 4 jovens (Gastini, Buzzetti, Bellia e Reviglio)
como possíveis futuros ajudantes.

1850
9 de março: Leis Siccardi, que aboliram os privilégios especiais do clero,
principalmente os tribunais eclesiásticos e o direito de asilo, reduziram o
número das festas religiosas e proibiram que as congregações adquirissem
propriedades ou aceitassem doações sem permissão do Estado (discussão no
Parlamento sobre o casamento civil).
10 de abril: em protesto a essa discussão, o núncio abandona Turim.
1850, 12 de abril: Pio IX retorna a Roma com a ajuda francesa depois do
exílio em Gaeta.
4 e 23 de maio: o arcebispo Luís Fransoni é preso e encarcerado (um mês).
5 de agosto: são negados os últimos sacramentos a Pedro De Rossi di Santa Rosa no
leito de morte. O arcebispo Fransoni é preso e levado para o exílio (25 de agosto).

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A década 1850-1861

Dom Bosco começa o “apostolado da imprensa”: polêmica antivaldense com


o tratado A Igreja Católica... ou Advertências aos católicos.

1851
19 de abril: o conde Camilo Benso de Cavour é nomeado ministro das Fi-
nanças.
2 de dezembro: na França, o golpe de estado do presidente Luís Napoleão
Bonaparte acaba com a Segunda República (coroa-se como Napoleão III).
Aliança política (Connubio) entre o moderado Cavour e o esquerdista Rattazzi.
1851-1852: primeiras versões do Regulamento do Oratório.

1852
7 de janeiro: o latim é substituído pelo italiano como língua oficial para o
ensino universitário no Reino da Sardenha.
31 de março: crise do Oratório; com decreto do arcebispo Fransoni, Dom
Bosco torna-se diretor espiritual geral dos três Oratórios.
20 de junho: bênção da igreja de São Francisco de Sales.
24 de setembro: Miguel Rua passa a viver com Dom Bosco como interno.
Rua e Rocchietti recebem a batina (3 de outubro).
21 e 22 de outubro: o rei Vítor Emanuel II veta a lei do casamento ci-
vil, aprovada pelo Parlamento. O primeiro-ministro Máximo d’Azeglio
demite-se; Camilo Cavour forma o novo executivo como primeiro-mi-
nistro (4 de novembro).

1853
Fevereiro: Dom Bosco começa a publicar as Leituras Católicas, planejadas em
1852 com o bispo Luís Moreno, de Ivrea (apostolado da imprensa).
Outubro: Dom Bosco inicia as oficinas de sapataria e alfaiataria.
27 de outubro: Urbano Rattazzi (da esquerda anticlerical) é nomeado mi-
nistro da Justiça.
15 de novembro: em Turim, nas imediações do Oratório de São Luís, abre-se
ao culto uma igreja valdense.
Desaba a primeira parte do novo edifício que serviria como casa de acolhi-
da (a casa de Dom Bosco), mas é reconstruída e inaugurada na primavera
de 1854.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1854
26 de janeiro: constitui-se o grupo dos 4 (Rocchietti, Artiglia, Rua e Caglie-
ro), mais tarde referidos por Rua como salesianos (?), para se comprometerem
no “exercício prático da caridade”.
3 de março: Urbano Rattazzi, ministro do Interior e da Justiça.
10 de março: o seminário é confiscado e transformado em quartel.
19 de abril: surge a “questão do Leste” (repartição do instável Império Oto-
mano entre as potências ocidentais). Cavour propõe no Parlamento que o
Piemonte participe da Guerra da Crimeia contra a Rússia.
Abril: Rattazzi visita o Oratório e entretém-se em conversa com Dom Bosco
sobre a educação; em seguida, acontece o episódio da Generala [segundo a
Storia de Bonetti].
Julho-novembro: surto de uma epidemia de cólera em Turim e em outros
lugares.
Agosto: padre Vitório Alasonatti une-se a Dom Bosco no Oratório.
29 de outubro: Domingos Sávio (1842-1857) entra no Oratório.
Tem início a oficina de encadernação.
28 de novembro: a lei (Cavour-Rattazzi) para a supressão das ordens religio-
sas é apresentada na Câmara baixa.
8 de dezembro: proclamação do dogma da Imaculada Conceição.

1855
1854-1855: o duplo “sonho” de Dom Bosco sobre os funerais na corte e as
cartas de advertência ao rei.
12 de janeiro: morre a rainha-mãe, Maria Teresa (54 anos de idade).
20 de janeiro: morre a rainha consorte, Maria Adelaide (33 anos de idade).
26 de janeiro: Cavour apresenta no Parlamento um tratado com a França e
a Inglaterra, para a participação na Guerra da Crimeia. O tratado é aprova-
do em 10 de fevereiro e, em 4 de março, é publicada a declaração de guerra
contra a Rússia.
11 de fevereiro: morre Fernando, duque de Gênova, irmão do rei.
2 de março: é aprovada na Câmara baixa a Lei Rattazzi-Cavour, para a su-
pressão das ordens religiosas.
26 de abril: proposta de acordo do bispo Calabiana, de Casale, apresentada no
Senado, para evitar a aprovação da lei da supressão. Garantia-se o pagamento

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A década 1850-1861

de 1 milhão de liras à Igreja para cobrir o salário dos párocos. O rei apoia o
plano e é acusado de conspiração. Demite-se o governo de Cavour.
17 de maio: morre o filho mais novo do rei, príncipe Vítor Emanuel.
29 de maio: a lei da supressão é aprovada pelo Senado (23 de maio) e assi-
nada pelo rei. São suprimidas em todo o reino 35 ordens religiosas com 334
casas e 5.456 membros.
1o de julho: morre padre [beato] Antônio Rosmini Serbati.
16 de agosto: batalha de Chernaja (Guerra da Crimeia), a única em que os
piemonteses, devastados pela cólera, participam com os franceses. O exército
russo é derrotado.
8 de setembro: os franceses tomam Sebastopol.
4 de outubro: João Batista Francésia recebe a batina.
Outubro: Dom Bosco inicia em casa o gimnasio (escola secundária) de três
anos, tendo Francesia (de 17 anos) como professor e moderador.
24 de novembro: João Cagliero recebe a batina.
Dom Bosco publica a sua História da Itália.

1856
Janeiro: os Irmãos das Escolas Cristãs são expulsos das escolas de Turim.
15 de fevereiro a 16 de abril: Congresso de Paris. Cavour pede uma solução
para “a questão italiana”.
11 de maio: a Conferência “adjunta” de São Vicente de Paulo é aprovada no
Oratório.
25 de novembro: morre de pneumonia Mamãe Margarida, a mãe de Dom
Bosco, aos 68 anos de idade.
Construção de um novo edifício na casa (o piso afunda), que substitui a casa
Pinardi. Dom Bosco inicia a oficina de carpintaria.
Têm início o primeiro e segundo anos do gimnasio (escola secundária) no
Oratório (currículo de três anos).
É fundada a Companhia da Imaculada Conceição.

1857
22 de março: Áustria e Piemonte rompem as relações diplomáticas por causa
da visita do imperador Francisco José à Lombardia e ao Vêneto.
9 de março: Domingos Sávio morre em sua casa de Mondônio.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Maio: conversa de Rattazzi com Dom Bosco sobre uma Sociedade que dê
continuidade à obra do Oratório.
20 de junho: reforma educacional de Lanza: confirma o sistema Boncompag-
ni, mas estende a “liberdade na educação” ao nível local, especifica a liberação
das escolas particulares, coloca todos os centros de ensino sob o Ministério da
Instrução Pública.
1o de agosto: José La Farina funda a Sociedade Nacional Italiana (idealizada
um ano antes) com a finalidade de promover a causa da unidade italiana (li-
derada por Cavour e a casa Saboia).
Uma coalizão clerical-conservadora é criada para apresentar-se às eleições,
mas é derrotada. O partido de Cavour mantém o controle nas duas câmaras.
O periódico católico L’Armonia conclama os católicos a se afastarem da
vida política.
Dezembro: é fundada no Oratório a Companhia do Santíssimo Sacramento.

1858
14 de janeiro: um atentado falido do extremista Félix Orsini contra Napoleão
III põe em perigo as relações entre o Piemonte e a França, e a causa da unidade
italiana. Cavour, porém, argumenta que a unidade italiana é a única forma de
deter os extremistas, o que abre o caminho para a reunião de Plombières.
Fevereiro: aparições em Lourdes, conhecidas no mundo todo.
18 de fevereiro a 16 de abril: primeira viagem de Dom Bosco a Roma, tendo o
clérigo Rua como secretário. Depois de conversar com o padre Pagani, superior
geral dos rosminianos, Dom Bosco conversa em 9 de março com Pio IX sobre
a fundação e a “forma” da projetada Sociedade. Após a segunda audiência (6 de
abril) e a partida de Roma, primeiro rascunho das Constituições Salesianas.
13 de março: enquanto Dom Bosco está em Roma, o marquês Gustavo Ca-
vour, irmão do primeiro-ministro, pede-lhe que pergunte ao Papa sobre a
possível designação de um novo bispo para Turim; dessa forma, é estimulado
a ser intermediário no “caso Fransoni”.
20 e 21 de julho: Acordos de Plombières entre Napoleão III e Cavour sobre o
apoio francês ao projeto de unificação da Itália.
Outubro de 1858 a abril de 1859: aliança franco-piemontesa, e preparati-
vos para a guerra contra a Áustria.

1859
Janeiro: Dom Bosco publica a Vida de Domingos Sávio.
10 de janeiro: o rei Vítor Emanuel II dirige-se ao Parlamento (“O lamento”).

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A década 1850-1861

26 a 29 de janeiro: tratado militar franco-piemontês.


6 de março: é inaugurado o primeiro trecho da tubulação de água potável
em Turim.
20 de março (data tradicional): é fundada entre os aprendizes a Companhia
de São José.
23 de abril: ultimato do imperador Francisco José, da Áustria, ao Piemonte,
exigindo o seu desarmamento.
26 de abril: França e Piemonte declaram guerra à Áustria (guerra franco-
-austríaca, Segunda Guerra de Independência Italiana).
Abril-maio: levantes na Toscana, em Parma, em Módena e na Romanha (do-
mínios papais); os governantes fogem.
24 de junho: batalhas de Solferino e São Martinho, decisivas na guerra, en-
quanto Garibaldi repele os austríacos nos Alpes.
11 de julho: o inesperado armistício de Villafranca entre Napoleão III e
Francisco José é interpretado como traição. Ressentido, Cavour se demite.
Julho: segunda edição ampliada da História da Itália, de Dom Bosco (ataca-
da pela imprensa anticlerical liberal).
8 de agosto - 10 de novembro: Congresso de Paz de Zurique. Anexação da
Lombardia.
Agosto-setembro: a Toscana, Parma, Módena e a Romanha solicitam sua
anexação ao Piemonte.
11 de setembro: carta de Dom Bosco a Pio IX garantindo-lhe sua total rejei-
ção, bem como a de outros padres e leigos, da política do governo piemontês.
Outubro: implanta-se no Oratório o gimnasio (ensino secundário) de cinco
anos.
13 de novembro: a Lei Casati reorganiza o sistema educacional, reforçando a
secularização da escola pública, mas permitindo às escolas particulares atua-
rem sob o controle do Estado quanto aos programas e normas.
18 de dezembro: fundação oficial da Sociedade Salesiana.
22 de dezembro: publicação do panfleto Le Pape et le Congrès, que manifesta-
va extraoficialmente a posição do governo francês em relação à anexação dos
Estados Pontifícios, a Questão Romana.

1860
7 de janeiro: Pio IX responde brevemente à carta de Dom Bosco de 9 de
novembro de 1859, em que lamenta e condena os recentes acontecimentos
políticos e louva Dom Bosco e sua obra.

51

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Dom Bosco: história e carisma 2

21 de janeiro: Cavour forma um novo governo; novas eleições.


11 e 12 de março: plebiscitos na Emília (pertencente, em parte, aos domí-
nios do Papa) e Toscana concluem com sua anexação ao Piemonte. Pio IX
excomunga os “invasores e usurpadores” (16 de março).
12 e 14 de março: acordo franco-piemontês sobre Nice e Saboia, cedidas à
França por plebiscito, em 15 e 22 de abril.
5 de abril: partida da expedição dos Mil Camisas Vermelhas liderados por
Garibaldi e conquista da Sicília e Nápoles (6 de maio a 26 de outubro).
13 de abril: carta de Dom Bosco a Pio IX expressando seu total apoio à polí-
tica do Papa e informando-o sobre os planos de ocupar os territórios papais.
26 de maio: a polícia registra o Oratório e, mais tarde, o Colégio Eclesiástico,
6 ou 7 de junho.
9 de junho: inspeção malévola das autoridades educacionais e protesto de
Dom Bosco perante os ministérios do Interior e da Educação (cartas de 12
de junho).
23 de junho: morte do padre José Cafasso. Dom Bosco escreve dois artigos
em sua memória (10 de julho e 30 de agosto), publicados mais tarde como
biografia curta nas Leituras Católicas (novembro e dezembro de 1860).
29 de julho: Miguel Rua é ordenado sacerdote.
Agosto: Cavour ordena às tropas piemontesas, concentradas na Romanha,
que se dirijam para o sul através dos Estados Pontifícios. Após o ultimato do
secretário de Estado, cardeal Antonelli, derrotam as tropas papais e, em fins de
setembro, tomam as Marcas e a Úmbria, províncias que pertenciam ao Papa.
Setembro: o cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano passa a “viver com
Dom Bosco”. Os primeiros membros leigos [coadjutores] unem-se à Sociedade.
7 de setembro: entrada triunfal de Garibaldi em Nápoles.
3 de outubro: o rei Vítor Emanuel II assume pessoalmente o comando das
tropas piemontesas e entra no Reino de Nápoles, antecipando-se a Garibaldi.
Em 4 de novembro, os Bourbon de Nápoles fogem para a fortaleza de Gaeta.
11 de outubro: o Parlamento do Piemonte aprova a lei de Cavour para a
imediata anexação da Itália central e do sul, onde se vota a seu favor em ple-
biscito (21 de outubro).
26 de outubro: Garibaldi reúne-se com o rei Vítor Emanuel II em Teano e,
talvez com relutância, o reconhece como rei da Itália.

1861
27 de janeiro: primeiras eleições gerais para o Parlamento italiano; vitória de
Cavour e da ala liberal moderada.

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A década 1850-1861

18 de fevereiro: a primeira seção parlamentar inaugura o Reino da Itália e


proclama Vítor Emanuel II rei da Itália (26 de fevereiro).
25 e 27 de março: em vários discursos ao Parlamento, Cavour define a posi-
ção do governo italiano em relação à Questão Romana.
6 de junho: Cavour morre repentinamente depois de breve enfermidade.
Bettino Ricasoli forma o novo governo.
10 de setembro: Ricasoli apresenta a Napoleão III e a Pio IX um projeto
para solucionar a Questão Romana, segundo o programa estabelecido por
Cavour, incluindo a renúncia voluntária do Papa ao poder temporal e dando
garantias à liberdade pessoal do Papa e de sua soberania (proposta recusada
com indignação).
1861-1862: Dom Bosco cria a tipografia e a forjaria.

Vítor Emanuel II, rei da Itália (1820-1878).

53

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Capítulo II

AMPLIAÇÕES DA “CASA ANEXA”


AO ORATÓRIO (1852-1862)

O período 1844-1846 é o tempo do amadurecimento vocacional de


Dom Bosco e da fixação do Oratório de São Francisco de Sales na proprie-
dade Pinardi, em Valdocco; o Oratório conhecerá nos anos 1846-1849 sua
primeira ampliação com a Casa Anexa (residência internato) e os Oratórios
adicionais. Os anos 1850-1852 recobrem o primeiro período de consolidação
da obra de Dom Bosco em Valdocco.
A consolidação aconteceu em duas frentes. Primeiramente, o aluguel
gradual e, depois, a compra da propriedade Pinardi, em 19 de fevereiro de
1851, e a construção da igreja de São Francisco de Sales – 20 de julho de
1851 a 20 de junho de 1852 – contribuíram para a criação definitiva de uma
base de operações. Em segundo lugar, após a crise, com os desafios e os con-
frontos ao longo dos anos 1850-1852, os Oratórios de Dom Bosco ganham
proeminência e reconhecimento com o decreto do arcebispo Fransoni, de 31
de março de 1852.
Este período vai, pois, da dedicação da capela de São Francisco de Sales
no pequeno hospital da marquesa Barolo (1844) à dedicação da igreja de São
Francisco de Sales, em Valdocco (1852). O ano de 1852 é um importante
ponto de chegada, e, ao mesmo tempo, ponto de partida.

1. A década 1852-1862
A certeza à qual Dom Bosco chegou por meio dos acontecimentos já
mencionados permitiu-lhe reforçar e ampliar seu apostolado numa década de
opções e sucessos. Com visão clara e plano preciso, mas sempre respondendo
às circunstâncias e necessidades históricas, seu apostolado desenvolveu-se em
muitas frentes.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

A “casa de Dom Bosco” (1853-1856).

Enquanto acompanhou de perto sua primeira obra – o Oratório nos do-


mingos e dias festivos – Dom Bosco concentrou seus esforços na Casa Ane-
xa ao Oratório, em Valdocco, iniciada em 1847, aumentando notavelmente
seus espaços físicos e suas instituições.
Dom Bosco pôs em ação um plano de construção que, iniciado com a
igreja de São Francisco de Sales, foi ampliando gradualmente sua capacidade
até alojar cerca de 600 internos no final da década.

Cronologia das obras de ampliação


Tão logo adquiriu a propriedade Pinardi em 1851, Dom Bosco come-
çou a planejar sua ampliação. A primeira preocupação era construir uma
igreja maior do que a capela Pinardi e, depois, levantar um edifício capaz de
substituir a pequena casa Pinardi. Eis um elenco das alterações introduzidas
ao longo da década, algumas das quais já foram mencionadas.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1850 Dom Bosco compra o prado Filippi, conhecido mais tarde


como “o prado dos sonhos”.
1851-1852 Construção da igreja de São Francisco de Sales.
1852-1853 Construção da “casa de Dom Bosco”, primeira parte em forma
de “L” de um edifício maior que substituiria as primitivas estru-
turas Pinardi. Os aposentos de Dom Bosco foram transferidos
para o novo edifício.
1854 Dom Bosco vende o prado Filippi aos rosminianos.
1856 A casa Pinardi e a capela são derrubadas para ampliar a “casa de
Dom Bosco”.
1856 Constroem-se na rua da Jardineira duas salas para a escola ele-
mentar diurna e uma pequena portaria.
1859 Constrói-se no pátio norte uma ala com três salas para o ginásio
ou escola secundária.
1859-1860 Ampliam-se a entrada e a portaria.
1860 Aquisição da casa e da propriedade Filippi.
1860 Constrói-se uma nova sacristia para a igreja de São Francisco
de Sales.
1861 A casa Filippi é restaurada, adaptada e ampliada.
1861 Primeira ampliação da ala onde se localizam os aposentos de
Dom Bosco: acrescenta-se uma parte externa.
1862 Segunda ampliação da ala onde se localizam os aposentos de
Dom Bosco: acrescentam-se um pórtico e um terraço.
1862 Levanta-se um edifício de dois andares na rua da Jardineira, com
a tipografia, os dormitórios e uma nova entrada com portaria.
1863 Dom Bosco compra novamente dos rosminianos o prado Filippi,
com a intenção de aí construir a igreja de Maria Auxiliadora
(1863-1868).

Acontecimentos importantes. Decisões e realizações


Ao longo desta década, têm início várias oficinas para o ensino de aprendi-
zes pobres e cria-se na casa uma escola secundária, com currículo de cinco anos.
Dom Bosco assume o papel de educador, focando de maneira especial a
comunidade dos estudantes. Esta década é o período dourado de Dom Bosco em
relação à sua participação direta na atividade educacional. Embora seu compro-
misso com a educação através da escola fora de Turim ocorra na década seguinte,

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

o programa da escola secundária de Valdocco foi sua primeira experiência bem-


-sucedida. Mesmo que Dom Bosco não estivesse envolvido de forma direta com
o ensino na maior parte do seu tempo, ele era, de longe, a força educativa mais
importante em Valdocco. Dom Bosco exercia sua influência pelo contato pessoal
com os jovens fora da aula ou da oficina, nos encontros pessoais, no confessio-
nário, nos “boas-noites”, através de uma rede de colaboradores jovens e não tão
jovens e, sobretudo, através do papel de “pai” de uma grande família.
Em seu duplo papel de educador e mestre espiritual, particularmente na
comunidade de estudantes, Dom Bosco modelou obras-primas de santidade:
Domingos Sávio, Miguel Magone, Francisco Besucco e outros. Ele também
formou seus colaboradores mais próximos e de confiança: Rua, Cagliero, Bo-
netti, Barberis, Berto, Cerruti e muitos outros. Trata-se do núcleo do qual
logo surgirá a Sociedade Salesiana. Porque, apesar de Dom Bosco nunca ter
abandonado a ideia de contar com uma ampla colaboração na obra do Ora-
tório, sentiu a necessidade de criar um grupo interno de padres e coadjutores
que fossem totalmente dedicados à obra.
Dom Bosco não limitou sua atividade à Casa, mas assumiu plenamente,
nessa década, o apostolado da imprensa como escritor e editor. Já era autor de
vários livros piedosos e educativos; agora, em resposta às necessidades, optou
por um compromisso total com esse apostolado, especialmente em defesa da
religião católica através das Leituras Católicas.
Ao longo desse período começam a ter importância seus sonhos e pre-
gações sobre os jovens, as autoridades civis e eclesiásticas e os acontecimentos
na Igreja e no Estado. Aos poucos, foi-se criando ao redor de Dom Bosco um
halo de extraordinário e sobrenatural que, a partir de então, será permanente-
mente associado ao seu nome, dentro e fora da tradição salesiana. A proteção
do cão Grigio [Cinzento], as “graças” extraordinárias recebidas, que chegam
a ser conhecidas até mesmo fora do Piemonte, alimentam no povo a crença
de que Dom Bosco e o Oratório são objetos de um favor divino especial. As
publicações anticlericais escarnecem dessas notícias. A “lenda” toma corpo
através de um processo natural de interpretação. Os primeiros colaboradores
de Dom Bosco ficam tão comovidos com os fatos testemunhados que assu-
mem o compromisso de não deixá-los no esquecimento.

2. Oficinas para jovens artesãos e aprendizes


Uma das razões que levaram Dom Bosco a embarcar em projetos ambi-
ciosos de construção, descritos anteriormente, além do seu desejo de propor-
cionar melhores condições para um maior número de internos, foi desenvolver

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Dom Bosco: história e carisma 2

mais sistematicamente as duas comunidades que iam se formando na casa: a


dos estudantes e a dos aprendizes. Já se falou brevemente da comunidade de
estudantes e se voltará a comentá-las mais adiante. Agora, concentramo-nos
nas oficinas para aprendizes na casa, sua motivação e função.

As oficinas no plano educativo e prático de Dom Bosco


Modelos
Durante o período da Restauração, o Piemonte e a cidade de Turim,
de modo especial, viveram um renascimento de obras e projetos em vista do
crescimento moral e material da gente humilde em geral. Essa preocupação
podia ser entendida como parte de um esforço educativo genérico. Mas foi,
na verdade, em grande medida, expressão caridosa de uma estratégia com que
a Igreja e o Estado pretendiam que os jovens, perigosamente influenciados
pelas agitações políticas e sociais, voltassem à religião.
Nesse contexto, Dom Bosco e outros padres, sensibilizados pelo estado
de indigência da juventude “pobre e abandonada” responderam, com moda-
lidades diversas, às suas necessidades materiais, culturais e intelectuais. Dom
Bosco viu de imediato a urgência de ajudar a juventude a encontrar emprego
estável. Isso garantiria, junto com a religião e a orientação moral, a formação
de bons cidadãos.
Desde os inícios, os cuidados caridosos de Dom Bosco tinham uma verdadeira,
embora limitada, inspiração educacional. Suas atividades não eram improvisadas;
faziam parte do seu plano original. Assim, por exemplo, as aulas noturnas iniciadas
em 1845 foram, mais tarde, ampliadas como parte do programa do Oratório.
A fundação da Casa Anexa e nela, pouco mais tarde, a criação das ofi-
cinas, foram passos na mesma direção; expressavam a crescente preocupação
educativa de Dom Bosco.
A fórmula de dar alojamento, educação e trabalho a jovens carentes na
casa em que viviam não era nova. Padre Luís Pavoni já havia criado uma Scuo-
la d’Arti (escola de ofícios), em Bréscia, na década de 1820. Dom Bosco mui-
to provavelmente conhecia essa obra. Segundo Lemoyne, em fins de 1849,
Dom Bosco enviou padre Pedro Ponte, então diretor do Oratório de São
Luís, para que fosse conhecê-la e se informasse sobre o que se fazia em Brés-
cia e em outras cidades da Lombardia. Ele precisava perguntar e informar-se
“sobre a organização e os costumes religiosos, profissionais, disciplinares e
econômicos de alguns estabelecimentos destinados à classe popular”.1

MB III, 574. Essa viagem, de fato, deve ter acontecido com outro propósito diferente daquele
1

que Lemoyne supõe. Em 1849, surgiram divergências entre os padres do Oratório em Turim. Padre

58

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Mesmo em Turim existiam modelos da fórmula “internato-educação-


-oficinas”. Bom exemplo disso era o Real Albergue da Virtude, com que Dom
Bosco estava familiarizado por ter tido a possibilidade de exercer ali seu ser-
viço sacerdotal. Os jovens, que eram internos, aprendiam em oficinas alguns
ofícios relacionados com a indústria têxtil, a fabricação de móveis e utensílios
domésticos e corte e costura.2
Imitar modelos existentes não foi, sem dúvida, o principal motivo que
levou Dom Bosco a criar oficinas na casa. Ele o fez seguindo uma estratégia
educacional fundamental, ou seja, situar o jovem que se encontrava em peri-
go num ambiente protetor.

Estratégia preventiva
Dom Bosco recorreu a todas as estratégias imagináveis de proteção. Ao
solicitar contratos e visitar os jovens em seus locais de trabalho, Dom Bosco
erigia-se em protetor e garantidor do jovem no lugar de seus pais. A Socieda-
de de Mútuo Socorro garantia o básico nos períodos de desemprego “a fim
de impedir que os nossos jovens se inscrevessem”3 em sociedades perigosas.
As oficinas criadas por Dom Bosco na casa foram uma inovação posterior,
dentro do espírito educacional do Oratório, demonstrando sua preocupação
pessoal com a educação. Seu principal objetivo era proporcionar aos jovens a
maior proteção possível, afastando-os dos perigos que podiam encontrar nas
oficinas da cidade. Era uma finalidade de educação protetora.
Existe uma grande quantidade de obras escritas sobre o ambiente moral
reinante nas oficinas e fábricas nas quais trabalhavam os meninos corroboran-
do a afirmação de Lemoyne:
Aquele vai e vem todos os dias dos seus meninos às oficinas da cidade, por mui-
to que fossem escolhidos, vigiados e transformados, era um perigo, quando não
um dano, para a disciplina e o aproveitamento dos internos. Os maus costumes
e a irreligiosidade aumentavam entre os operários, e Dom Bosco percebia que
os desafios aos quais os seus alunos eram submetidos podiam destruir em mui-
tos deles o fruto da educação moral e religiosa que procurava dar-lhes.4

Ponte, apesar de ser diretor do Oratório de São Luís, era da oposição e estava próximo das ideias do
padre Cocchi. Não parece provável que Dom Bosco pudesse ou quisesse servir-se dele. Padre Ponte deve
ter feito a viagem por própria conta ou por conta do padre Cocchi que, associado com padre Roberto
Murialdo, naquele momento organizava uma Sociedade de Caridade com a finalidade de fundar o Col-
legio degli Artigianelli. Contudo, as divergências não devem ter sido muito importantes para impedir
que Dom Bosco se servisse dos préstimos do padre Ponte.
2
P. Stella, Economia, 170-171.
3
MO, 230s. Estatutos, MB IV, 74-77.
4
MB IV, 659.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O testemunho pessoal de Pedro Enria merece ser citado como confirma-


ção. Órfão depois da epidemia de cólera de 1854, ele foi recolhido por Dom
Bosco e levado ao Oratório. Enquanto ali viveu, ia trabalhar como aprendiz
de ferreiro numa oficina da cidade. Ele mesmo escreve:5
Nas oficinas da cidade a gente ouvia o pior tipo de linguagem. Se não fosse
pela força moral recebida todos os dias de suas [de Dom Bosco] palavras e
bons conselhos, não poderíamos ter resistido a tantos assaltos. Eu mesmo
recordo-me das inúmeras vezes em que precisei sair da oficina para não ouvir
conversas obscenas. Tinha apenas 14 anos, mas alguns operários eram ho-
mens adultos. Dois deles eram particularmente malvados e excitavam-se sem
vergonha alguma em debates irreligiosos e imorais. Viviam como animais.6

Objetivos de Dom Bosco


A criação de oficinas no Oratório foi motivada por uma intenção edu-
cativa e protetora, guiada, também, por considerações práticas. Alguns meni-
nos não podiam fazer outra coisa. Sua instrução, se é que tinham alguma, não
fora além da alfabetização básica. Eram pobres e tinham grandes carências.
Os jovens aprendiam um trabalho nas oficinas, proporcionando-lhes uma
maneira de viver. Além disso, proviam de roupa e calçado a todos no Orató-
rio. Os clientes e beneficiários das oficinas eram a comunidade estudantil em
Valdocco, como mais tarde em outras escolas salesianas, e o povo do bairro.
Os artigos produzidos eram certamente de baixa qualidade, como não podia
ser de outra maneira dada a qualidade primitiva das instalações e a falta de
profissionais, mas eram baratos.7
Inicialmente e durante muito tempo depois, parece que as oficinas de Dom
Bosco não proporcionassem uma aprendizagem e formação profissional seme-
lhante à do programa dos estudantes. O esforço era concentrado em melhorar
as habilidades dos jovens no seu trabalho para que lhes fosse mais fácil ter uma
maneira de sobreviver. Esse tipo de oficinas, porém, não foi muito adiante.

Oficinas, educação humanista e profissional


As oficinas da época eram quase como bazares medievais, com objetivo
limitado. Não davam um certificado das habilidades adquiridas que desse
5
Ver capítulo XXI, nota 21.
6
P. Stella, Economia, 250. Stella transcreve a primeira parte da emotiva biografia de Enria nas
páginas 495-506. Cf. também em MB IV, 663-664 os comentários de Lemoyne citando Dom Bosco
nas Leituras Católicas.
7
P. Stella, Economia, 246. Os comentários de Stella sobre as oficinas do Reale Albergo di Virtù
e as da prisão juvenil La Generala podem ser aplicados às oficinas de Dom Bosco.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

acesso a uma forma melhor de vida. Nelas, perpetuavam-se as tradições an-


cestrais de classe. No início, Dom Bosco não enviava um jovem à oficina
se ele pudesse “estudar” para ter maiores oportunidades. Pela mesma razão,
absteve-se durante longo tempo de criar “colônias” agrícolas. A maior parte
da gente dedicada à agricultura era formada por camponeses, peões ou apren-
dizes, e não tinha acesso a uma educação que fosse além do nível elementar,
permanecendo reduzidos, por isso, a um nível subordinado. Era um beco sem
saída; gente assim marcada não teria depois possibilidade de crescer social-
mente. Dessa forma, a divisão de classes na sociedade era garantida de forma
rígida. Por isso, a educação das massas preconizada pelo movimento liberal
era vista pelas “classes superiores”, e também pela Igreja institucional, como
vontade de romper a ordem estabelecida. Programas para a educação das
classes trabalhadoras como as aulas noturnas, que começaram na década de
1840 para trabalhadores desde os 16 anos de idade, reconheciam claramente
os limites definidos para essa gente. As aulas noturnas só pretendiam a alfa-
betização básica e tinham horários, programas e conteúdos diferentes dos das
aulas no currículo da educação humanista.
Na década dos anos de 1850, Dom Bosco percebeu a necessidade de ter
oficinas e enfrentou-a. Contudo, deveria esperar um momento melhor, vinte
e cinco ou trinta anos depois, para conseguir habilidade para o trabalho atra-
vés de uma educação sistemática que pudesse abrir caminhos para a ascensão
na escala social. Só então o sistema de oficinas seria desenvolvido para chegar
a ser uma escola profissional.
Enquanto via as possibilidades nesses primeiros anos, Dom Bosco per-
cebeu instintivamente que o caminho para melhorar a condição social de
um jovem era “através do estudo”. Já que a aprendizagem de um ofício na
oficina parecia ser simplesmente a forma de adquirir um meio de vida e nada
mais, Dom Bosco não mandaria o jovem às oficinas se este pudesse seguir
um caminho diferente. Por si só, essa intuição justificaria o grande esforço de
Dom Bosco para educar através das escolas no momento em que a educação
universal recebe grande impulso do Estado liberal e, como resposta, da Igreja.

As oficinas criadas na década de 1850

Oficinas de sapataria e alfaiataria


Em outubro de 1853, a oficina de sapataria é instalada num pequeno
corredor da casa Pinardi, perto do campanário da capela de São Francisco de
Sales. Seu primeiro mestre foi certo Domingos Goffi, que também trabalhava

61

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Dom Bosco: história e carisma 2

como porteiro. Em novembro de 1853, foi criada a oficina de alfaiataria na


antiga cozinha da casa Pinardi. Seu primeiro mestre foi o senhor Papino.8
O novo edifício foi concluído no outono de 1853; era a chamada “casa
de Dom Bosco”, capaz de hospedar cerca de 100 meninos. A nova cozinha foi
instalada ali, como também as novas salas de aulas diurnas e noturnas. A nova
ala possibilitou a Dom Bosco realocar e ampliar as duas oficinas. Portanto,
o grupo de meninos que se alojavam no Oratório, mas trabalhavam como
aprendizes de sapateiro e alfaiate na cidade, agora poderiam trabalhar na casa
em que moravam.

Oficina de encadernação
Em 1854, Dom Bosco fundou a terceira oficina, a de encadernação.9 Le-
moyne parece sugerir que essa oficina teve início casualmente, quando Dom
Bosco, ajudado por Mamãe Margarida, demonstrou como se encadernava
um livro. Na verdade, como as duas primeiras, também esta foi criada para
afastar outro grupo de meninos dos perigos da cidade e para responder a uma
necessidade concreta.
Em 1853, Dom Bosco iniciara as Leituras Católicas, publicadas pelo im-
pressor De Agostini. Contudo, pode ser que tenha pensado em publicar esses
opúsculos no Oratório. Rosmini, em 1853, sugerira a Dom Bosco que crias-
se uma tipografia em Valdocco, como o padre Pavoni fizera em sua Scuola
d’Arti, de Bréscia. Dom Bosco respondeu que “tal projeto esteve presente em
minha mente nos últimos anos; a falta de dinheiro e de um lugar adequado
são as únicas razões pelas quais preteri a sua realização até agora”.10 Nesse
momento, mesmo sem estar equipado para a impressão, podia, ao menos, as-
sumir uma fase da produção de livros em sua própria oficina de encadernação
com preço reduzido.
Do ponto de vista prático, para esta e para suas futuras oficinas, Dom
Bosco já buscava uma clientela maior. No outono de 1854, foi colocado um
anúncio no periódico católico L’Armonia procurando clientes para sua oficina
de encadernação. Oferecia aos seus possíveis clientes um preço reduzido e a
oportunidade de ajudar os meninos pobres que ficaram órfãos recentemente
por causa da epidemia de cólera e foram acolhidos no Oratório.
Aos poucos, a partir da oficina de encadernação, surgiu uma pequena livra-
ria que, dez anos mais tarde, se converteria num estabelecimento independente.

8
MB IV, 660.
9
Lemoyne situa o fato em maio; Stella, no outono de 1854; Wirth, em 1856.
10
Carta de Dom Bosco ao padre Rosmini, 29 de dezembro de 1853, Epistolario I Motto, 211.

62

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Oficina de carpintaria
A quarta oficina, de carpintaria e marcenaria, foi criada em novembro
de 1856 na ala do novo edifício, em frente à igreja de São Francisco de Sales.
Seu primeiro mestre foi um senhor chamado Corio, que tinha uma bela voz
de tenor e estudava música.11
Com as finalidades descritas acima, havia também o interesse prático de
preencher as novas necessidades da casa. A projetada ampliação do edifício e das
salas de aula precisava de muitos trabalhos de carpintaria, caixilhos de janelas,
portas, mobiliário, mesas etc. Como para as oficinas anteriores, também para
esta Dom Bosco saiu à procura de clientes. Parece que, apesar de não contar com
os melhores meios, em comparação com as outras três, a oficina de carpintaria
era consideravelmente mais bem equipada e podia oferecer um projeto aceitável.
Em todo caso, as oficinas não podiam competir com estabelecimentos similares
na cidade e, muito menos, com os da produção industrial que começava a sur-
gir no mercado. Dom Bosco procurava evitar o menor indício de competição
com outras oficinas ou empresas, o que poderia criar problemas e dificuldades
em suas relações. Nesse momento, procurava não se aventurar. Era tempo de
recessão econômica e oficinas como as do Albergo di Virtù e da Generala, prisão
correcional para jovens fundada em 1845, passavam por dificuldades.

Organização e administração das oficinas

Primeiro regulamento para as oficinas


Em 1853, esperando ter um trabalho organizado nas oficinas, Dom
Bosco escreveu uma lista de novas normas para os mestres artesãos; as normas
foram impressas e expostas, e havia a orientação expressa de serem lidas aos
aprendizes a cada quinze dias.12 Tais normas referiam-se mais ao comporta-
mento moral do que à administração.

Número de aprendizes
Citando os registros de Dom Bosco, Lemoyne conta que nos anos 1857
e 1858 os internos em Valdocco somavam 199: 121 estudantes e 78 apren-
dizes, mas destes, ele não indica a distribuição nas várias oficinas.13 Estes
números também incluem, sem dúvida, alguns que ainda trabalhavam em
oficinas da cidade.
11
MB V, 540.
12
Cf. MB IV, 662. Essas normas aparecem no capítulo 9, do Primeiro plano para as normas da
casa, p. 571. Não resta em ASC nenhum original ou cópia impressa dessas normas.
13
MB VI, 40.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Administração das oficinas


Dispomos de pouca ou nenhuma informação sobre a vida e o funciona-
mento interno das oficinas. Entretanto, Lemoyne conta que, quanto à admi-
nistração e organização geral, as oficinas passaram por quatro fases.
Inicialmente, Dom Bosco contratou mestres artesãos pagando-lhes
um salário. O inconveniente era que eles estavam mais preocupados com
o próprio trabalho e salário do que em ensinar e dar atenção aos meninos.
Depois, fez com que os mestres dirigissem as oficinas como se fossem empre-
sários. Recebiam os pedidos, programavam o trabalho, pagavam aos jovens
aprendizes um salário proporcional ao trabalho e ficavam com os lucros. As
contraindicações dessa opção foram mais graves: os meninos consideravam-
-se como contratados pelo mestre, responsáveis perante ele e sujeitos ao seu
calendário de trabalho. Isso enfraquecia a autoridade do educador e, às vezes,
desobedecia ao horário da casa. Dom Bosco recorreu, então, a uma solução
intermediária, compartilhando responsabilidades e lucros com os mestres. A
medida também não deu certo, pois os mestres, às vezes, ocultavam contratos
e ficavam com os lucros sem prestar contas. Dom Bosco acabou por assumir
a plena direção do setor.14
Lemoyne não comenta em que momento essas mudanças aconteceram.
Diz simplesmente que as três primeiras fases foram postas em prática e rapi-
damente descartadas. É provável que, quando se criou a oficina de carpinta-
ria, em novembro de 1856, o próprio Dom Bosco estivesse no comando e a
única missão do mestre fosse ensinar aos jovens e orientá-los em seu trabalho.
Contudo, também esta solução não estava isenta de problemas. Entre outras
coisas, por exemplo, o mestre, às vezes, abstinha-se de instruir os melhores
aprendizes com receio de que lhes roubassem o lugar. Enfim, as coisas se
assentaram quando Dom Bosco pôde dispor do seu próprio pessoal leigo,
os salesianos coadjutores, para dirigir e conduzir as oficinas; isso se tornou
realidade na década de 1860.

A jornada de um aprendiz
A jornada de trabalho dos aprendizes foi reconstruída através de teste-
munhos dispersos.15 Deve-se advertir que, nessa etapa, os aprendizes passa-
vam a maior parte do tempo trabalhando, sendo as aulas noturnas a única
instrução formal que recebiam. Era uma instrução principalmente elementar
(catequese, leitura, escrita e um pouco de aritmética), pois muitos deles não

14
MB V, 756ss.
15
Cf. M. Wirth, Da Don Bosco, 67ss.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

tinham tido qualquer aula de instrução. Não se tratava de ensino profissional


destinado a complementar as habilidades adquiridas na oficina.
Dom Bosco, através da experiência pessoal e do seu patrimônio de cam-
ponês, considerava que o trabalho tinha um valor fundamentalmente educa-
tivo e espiritual. Mas também acentuava a educação religiosa explícita, como
as atividades recreativas e culturais. Os aprendizes eram incentivados a cul-
tivar a vida cristã tanto quanto os estudantes. Foi por isso que o clérigo João
Bonetti, por sugestão de Dom Bosco, fundou em 1859 a Companhia de São
José exclusivamente para os aprendizes. Suas normas, corrigidas por Dom
Bosco, eram um simples, mas completo, programa de vida cristã.16

A tipografia do Oratório na década de 1870.

As oficinas na década de 1860 e o advento do salesiano coadjutor


A tipografia
Em vista de futuras possibilidades, Dom Bosco fundou a tipografia em
fins de 1861 ou início de 1862. Contava com duas máquinas impressoras a
pedal, de segunda mão, uma prensa e as caixas com suas caixinhas para os
caracteres tipográficos, feitas na carpintaria. Foi instalada numa das salas de
aula diurna, construída em 1856 junto à igreja de São Francisco de Sales.
Pouco depois foi realocada por breve tempo no primeiro andar da casa de
Dom Bosco, embaixo de seus aposentos. Mais tarde, foi transferida para o

16
MB VI, 193-197.

65

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Dom Bosco: história e carisma 2

espaço que lhe fora destinado no edifício construído ao longo da rua da Jar-
dineira. No seu lugar foi criada uma fundição de caracteres tipográficos.
Dom Bosco fez um pedido ao governador da província de Turim solici-
tando a licença para abrir uma oficina de tipografia. Inicialmente, ele negou
devido a uma norma legal de 13 de novembro de 1859 (não a Lei Casati, mas
outra aprovada na mesma data); ela exigia que o mestre de tipografia a serviço
da oficina fosse qualificado por ter cursado três anos de aprendizagem e que
a oficina estivesse num lugar acessível ao público. Quando Dom Bosco apre-
sentou os documentos adequados que garantiam esses requisitos, a permissão
foi concedida em 31 de dezembro de 1861.17
O primeiro mestre impressor foi um leigo chamado André Giardino. A
tipografia iria desenvolver-se mais do que as outras oficinas. De fato, quando
em 1883, foram instaladas máquinas de última geração, ela converteu-se na
oficina mais bem equipada de Turim.18 Era uma comprovação do compro-
misso de Dom Bosco com o “apostolado da imprensa” e não tanto para for-
mar impressores para a indústria.

A oficina de ferreiro
Em 1862, Dom Bosco fundou sua sexta oficina, a de ferreiro, na sala
que fora o primeiro local da tipografia. Os dois primeiros mestres foram des-
pedidos por motivos disciplinares e substituídos em 1863 por certo João B.
Garando, hábil artesão da velha escola. Trabalhar o ferro convertera-se num
importante negócio com a expansão imobiliária e industrial. Contudo, os
motivos de Dom Bosco eram mais práticos e domésticos: as necessidades
surgidas pela expansão da casa, com seus novos edifícios, e a igreja de Maria
Auxiliadora já na mesa de desenho. De fato, a oficina fabricou os caixilhos de
ferro forjado para as janelas da igreja.19
17
Cf. MB VII, 56-60. P. Stella, Economia, 246, enfatiza que Dom Bosco tinha em mente “um ne-
gócio e não uma escola” e, por isso, pediu ao governador da província a permissão para abrir um negócio e
não pediu ao superintendente de escolas a permissão de abrir uma escola profissional, “técnica”, segundo a
Lei Casati. L. Pazzaglia, Apprendistato, 30s., nega que a Lei Casati tenha importância neste caso, mas está
de acordo que nos inícios dos anos de 1860 Dom Bosco não estivesse pensando numa escola profissional.
18
MB XVI, 402.
19
Lemoyne, MB VII, 116, também menciona oficinas de tinturaria e chapelaria (1862?), mas pode
referir-se a atividades relacionadas com a alfaiataria, não a oficinas à parte. Ainda mais, nas Memórias da
Pia Sociedade de São Francisco de Sales, de 23 de fevereiro de 1874 (Documento n. 15 da Positio apresen-
tada para a aprovação das Constituições Salesianas), Dom Bosco escreve: “Os aprendizes exercitam-se
nas diversas oficinas do Instituto nos ofícios de sapateiro, alfaiate, serralheiro, carpinteiro, marceneiro,
padeiro, livreiro, encadernador, compositor de tipografia, impressor, chapeleiro, músico, artista, fundidor
de caracteres tipográficos, produtor de calcógrafo e litógrafo” (MB X, 946). Obviamente, muitos desses
são ofícios distintos, não oficinas distintas.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

A livraria
Em dezembro de 1864, surgiu oficialmente a livraria como atividade
independente. Anteriormente, existira uma pequena livraria ligada à ofici-
na de encadernação. Um folheto anexado ao número das Leituras Católicas
correspondente a esse mês chamava a atenção do público para a livraria. O
“catálogo” incluía alguns livros de texto em latim, obras teológicas, números
atrasados das Leituras Católicas, desde 1853, obras do mesmo Dom Bosco,
composições musicais do padre Cagliero etc.20 Com a tipografia, a livraria
iria adquirir grande importância e se converteria numa próspera aventura co-
mercial. Seu desenvolvimento também se alinhava ao compromisso de Dom
Bosco com o apostolado da imprensa.

O salesiano coadjutor
Contar com membros leigos, os salesianos coadjutores, certamente fez
parte da ideia de Dom Bosco em relação à Sociedade Salesiana desde o prin-
cípio, embora não possamos dizer com segurança como ele concebeu seu
ministério específico. Seria simplista pensar que Dom Bosco decidiu incluir
membros leigos pela pressão de problemas práticos e organizativos, como a
necessidade de contar com mestres artesãos de confiança nas oficinas, e não
como fruto de uma profunda compreensão da espiritualidade da vocação re-
ligiosa laical. O fato, porém, é que as oficinas só começaram a funcionar com
eficiência quando os coadjutores assumiram sua direção.
Em 1860, a Sociedade Salesiana, fundada oficialmente em 1859, acolhe
seus primeiros coadjutores. Na reunião do Conselho de 2 de fevereiro de
1860, José Rossi (1835-1908) foi admitido como membro leigo para “a prá-
tica do regulamento”, como aspirante a noviço. Em 1864, fez sua primeira
profissão e, em 1868, os votos perpétuos; chegou a ocupar postos impor-
tantes na Sociedade. Mais ou menos na mesma época, alguns cristãos leigos
adultos foram admitidos como coadjutores, por exemplo, o cavalheiro Frede-
rico Oreglia di Santo Stefano (1830-1912), que emitiu a primeira profissão
em 1862 e os votos perpétuos em 1865, e José Buzzetti (1832-1891). Oreglia
seria o motor do negócio da tipografia e da produção de livros.21

Novo regulamento para as oficinas


Enquanto isso, a quantidade e desenvolvimento das oficinas ainda exi-
giam empregar mestres não salesianos. Dom Bosco já escrevera e modificara os
regulamentos anteriores. Em 1862, redigiu uma nova normativa com 20 regras
20
Cf. MB VII, 788-789.
21
Sobre o tema dos salesianos coadjutores, ver o capítulo XXII.

67

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Dom Bosco: história e carisma 2

para o melhor funcionamento das oficinas. Agora, um salesiano coadjutor “as-


sistente” era o diretor, com a ajuda de um mestre de oficina. Os coadjutores
mencionados anteriormente foram os primeiros a ocuparem esse cargo.
Com o tempo, à medida que o trabalho nas oficinas se tornou mais
complexo e exigente, Dom Bosco introduziu novos avanços: um clérigo era
assistente e encarregado da supervisão moral e disciplinar dos mais jovens,
enquanto um coadjutor era o diretor e encarregado do trabalho material da
oficina. Não se queria, com isso, exonerar o salesiano coadjutor de respon-
sabilidades educativas, mas liberá-lo para a direção mais efetiva dos sempre
mais extensos e complicados programas das oficinas.22
As novas disposições, entre outras considerações, tornaram necessária
uma nova redação, a quarta, do regulamento. Não nos chegou nem o original
nem sua cópia impressa, mas Lemoyne diz que essencialmente estava escrito
o mesmo que nas Regras [Gerais] das Casas da Sociedade de São Francisco de
Sales de 1877.23

Formas de aprendizagem
Levando-se em conta a idade e os requisitos de admissão,24 mais ou me-
nos até 1860, a média de idade dos aprendizes era de 14-15 anos, semelhante
à dos estudantes. Nos anos de 1860, porém, de acordo com os livros de regis-
tro, a idade média aumentou para 18-19 anos.25 Isso aconteceu pelo fato de
o termo “aprendiz” designar também aqueles que, com mais idade, trabalha-
vam nas oficinas [tratados nesta obra como mestres artesãos].
Não existem informações disponíveis sobre a duração do período de
aprendizagem, os programas de instrução, a qualidade da aprendizagem e exa-
mes, se é que havia. Parece que variassem de caso a caso. Exigente como era,
a aprendizagem parece ter-se baseado na prática, e era organizada segundo
as necessidades pessoais. Alguns aprendizes permaneciam como trabalhadores
contratados. Outros se estabeleciam por conta própria.26
22
Deve-se dizer que, ao relacionar a vocação de coadjutor com o “trabalho” e ao oferecer a esses
leigos uma forma de expressão no “trabalho”, Dom Bosco respondia a circunstâncias históricas concre-
tas e tentava adaptar-se a elas. Não estava definindo a vocação leiga salesiana nesses termos.
23
Cf. MB VII, 116-117, com o texto das normas de 1862. Relacionado com isso, Lemoyne dedica
um espaço considerável a um incidente que possivelmente motivou a quarta revisão que Dom Bosco fez
das normas. Um de seus artigos proibia comer e beber nas oficinas. Mas os jovens da oficina e seus mestres
fizeram uma festa na oficina no dia do seu padroeiro, apesar da norma e da proibição de Dom Bosco,
e sofreram as consequências: os dois mestres, como se diz acima, foram despedidos. MB VII, 118-119.
24
Cf. MB IV, 735: Normas para a Casa Anexa, capítulo 1.
25
P. Stella, Economia, 183.
26
Como indicado em MBe VII, 42.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Deve-se notar que, ao relacionar a vocação do coadjutor com o “traba-


lho” e ao oferecer a esses leigos uma forma de expressão no “trabalho”, Dom
Bosco respondia a circunstâncias históricas concretas e tentava adaptar-se a
elas. Não estava definindo a vocação leiga salesiana nesses termos.
Também não existem informações sobre o modo como o trabalho dos
aprendizes era avaliado ou remunerado. Pelos registros, parece que até os
anos sessenta pagavam o alojamento e as refeições com seu trabalho.27 Após
essa época, os livros não refletem esse sistema de crédito. Segundo Stella, nes-
sa época, Dom Bosco já não considerava os aprendizes como trabalhadores,
mas como alunos que recebiam instrução. Pazzaglia, porém, duvida que, nos
inícios dos anos sessenta, a ideia de Dom Bosco sobre as oficinas tivesse evo-
luído a ponto de igualar aprendizes e estudantes.28

O desenvolvimento das oficinas nas décadas de 1860 e 1870

Números
Do número crescente de meninos acolhidos como internos em Valdoc-
co, a partir de 1853 – os novos edifícios tornaram isso possível – os aprendizes
(AA), inicialmente em maior proporção, foram aos poucos perdendo terreno
para os estudantes (EE). Até 1868, a proporção era inversa, segundo consta
nos registros: 1853: AA, 66%; EE, 26%. 1854: AA, 53%; EE, 33%. 1855:
AA, 37%; EE, 49%. 1856: AA, 36%; EE, 54%. 1860: AA, 18%; EE, 63%.
1861: AA, 13%; EE, 70%. 1867: AA, 22%; EE, 68%. 1868: AA, 23%; EE,
66%.29 Isso não foi casual; reflete o pensamento de Dom Bosco em relação às
grandes oportunidades oferecidas pela educação humanista.

Crise e recuperação
Algumas oficinas passaram por um período de crise nos anos sessenta,
durante a construção da igreja de Maria Auxiliadora e a desordem econômica
que supôs. A carta de Dom Bosco de 21 de janeiro de 1868 ao coadjutor
Frederico Oreglia di Santo Stefano, chefe da tipografia e da oficina de encader-
nação, afirma de forma um tanto crítica: “Os tipógrafos estão sem trabalho”.30
Isso pode referir-se apenas aos pedidos de fora, que aumentaram muito com
Oreglia. A crise econômica que sacudiu Turim com a transferência da capital
27
Cf. P. Stella, Economia, 374f.
28
L. Pazzaglia, Apprendistato, 35.
29
Cf. P. Stella, Economia, 180.
30
Epistolario II Motto, 488.

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Dom Bosco: história e carisma 2

para Florença, em 1865, teve repercussões no setor gráfico. A recuperação


econômica dos anos setenta teve efeitos favoráveis também na vida das oficinas
de Valdocco, especialmente na tipografia. A evolução permitiu a Dom Bosco
relançar as Leituras Católicas com um papel melhor etc.
É significativo que em 1870-1871, os estudantes somassem 425 en-
quanto os aprendizes eram 228, quase 30% do número total dos internos,
assim distribuídos: 36 impressores, 73 encadernadores, 33 alfaiates, 39 sapa-
teiros, 22 marceneiros, 14 forjadores, 6 fundidores de caracteres tipográficos,
5 chapeleiros.31 Ressalte-se que o número total dos meninos que trabalhavam
na produção de livros era quase metade do total.
Em 1872, num encontro de impressores e vendedores de livros em Tu-
rim, foi aprovada uma moção que pedia o fim das tipografias geridas por
instituições educativas. O Oratório de Dom Bosco e os Artigianelli do padre
Murialdo, embora não mencionados, eram os principais objetivos, pois es-
ses estabelecimentos eram vistos como concorrentes. Dom Bosco escreveu
uma carta à Associação de Impressores em que afirmava que, enquanto a
obra dos Artigianelli era uma pia instituição legalmente aprovada, o Oratório
era simplesmente uma casa particular e a tipografia era um negócio privado
como qualquer outro. A diferença era que, enquanto em outras tipografias os
lucros iam para os proprietários, no Oratório iam para os pobres aprendizes,
a fim de pagar sua alimentação, vestuário e educação. E não os prejudicava
ao vender mais barato; ao contrário, preparando bons impressores, estava
contribuindo para a arte e o negócio.32

Até a escola profissional


A situação a que se chegou pelos anos setenta levanta uma questão:
houve uma mudança na prática e no pensamento de Dom Bosco sobre a
finalidade das oficinas? Não parece ser o caso, apesar de os seus biógrafos
darem ênfase à preocupação de Dom Bosco no melhoramento da instrução
dos aprendizes. Foi tomada a decisão de que a iniciar em 1871-1872 seriam
dados prêmios, não só aos estudantes, mas também aos aprendizes, pelo êxi-
to nas matérias de educação primária e em francês.33 Segundo Pazzaglia, os
aprendizes do Oratório também estudavam música e desenho.34 Leve-se em
31
MBe X, VI.
32
P. Stella, Economia, 247-248.
33
MB X, 187.
34
L. Pazzaglia, Apprendistato, 73, nota 98, citando Pietro Baricco, Torino descritta, Turim: Pa-
ravia, 1869, reeditado por Edizioni L’Artistica Savigliano, Turim, 1988, vol. II, 812: “Tanto estudantes
como aprendizes eram instruídos em música vocal e instrumental, desenho e exercícios ginásticos”.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

consideração, porém, que isso não foi além do curso elementar que se minis-
trava nessa época nas aulas noturnas.
Ceria, por sua vez, anota que em 1875 foi decidido dar instrução aos
aprendizes também nas aulas diurnas. Essa medida, em sua opinião, assinala
o início da transformação das oficinas em “verdadeiras escolas profissiona-
lizantes”. Pazzaglia, porém, diz que para além do fato de Ceria não dizer o
que se ensinava nessas aulas noturnas, o assunto das aulas para os aprendizes
também foi debatido no Capítulo Geral II.35
Não resta dúvida de que algo estava mudando nos anos setenta. O te-
mor da mistura de classes sociais dava lugar ao temor de conflito entre as
classes sociais. Os reformistas começaram a pedir que se suavizasse a grande
diferença entre a educação humanista e profissional ou “técnica”, segundo a
Lei Casati, e se criasse um sistema educacional unificado, que não separasse
as duas categorias.

A educação [...] não deveria ser dada aos adolescentes através de programas total-
mente opostos, como se o objetivo fosse criar castas separadas, uma para os zan-
gões da aristocracia e outra para as abelhas trabalhadoras das classes inferiores.36

Além das considerações sociais e políticas, a necessidade da formação


profissional do trabalhador, que levasse a ter operários formados e mão de
obra qualificada, era uma demanda sempre mais urgente no contexto do de-
senvolvimento industrial em curso e o desaparecimento gradual das oficinas
de estilo medieval. O que abriu novas oportunidades para as classes trabalha-
doras e motivação para subir na escala social. Com toda a probabilidade, este
desenvolvimento foi a razão pela qual Dom Bosco optou por um compro-
misso real com a formação profissional em seus colégios na década de 1880.
As oficinas orientaram-se definitivamente para o novo mundo do trabalho,
convertendo-se aos poucos em escolas profissionais. O Capítulo Geral III
(1883) elaborou um programa completo de estudo, prática e formação, que
foi ampliado e concluído no Capítulo Geral IV (1886).

35
L. Pazzaglia, Apprendistato, 38.
36
Debate parlamentar citado em P. Stella, Economia, 244.

71

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Apêndice

PRIMEIRO REGULAMENTO (1854)

Chefes de oficina37
1. Os chefes de oficina são encarregados de instruir os jovens da casa
na arte a que foram destinados pelos superiores. Seu primeiro de-
ver é a pontualidade e, na oficina, dar trabalho aos alunos à medi-
da que entram.
2. Sejam cuidadosos em tudo que se refira ao bem da casa e re-
cordem que seu principal dever é ensinar aos aprendizes e fazer
com que não lhes falte trabalho. Conservem e, dentro do possí-
vel, façam conservar silêncio durante o trabalho; não permitam
que alguém fale, ria, brinque ou cante, fora do tempo de recreio.
Jamais permitam aos alunos saírem para outros encargos. Se for
necessário, peça-se a oportuna permissão ao Prefeito.
3. Não devem fazer contratos com os jovens da casa, nem aceitar, por
própria conta, qualquer trabalho de sua profissão. Conservem o
registro de todos os trabalhos realizados na oficina.
4. Os chefes de oficina são estritamente obrigados a impedir qual-
quer tipo de más conversas e, chegando ao conhecimento de al-
gum culpado, deverão avisar imediatamente ao Superior.
5. Mestres e alunos devem permanecer na própria oficina e ninguém
deve ir a outra oficina sem absoluta necessidade.
6. É proibido fumar, jogar e beber vinho nas oficinas àqueles que ali
vão trabalhar e não se divertir.
7. Antes de iniciar o trabalho deve-se rezar o Actiones quaesumus
(oração de oferecimento) e uma Ave-Maria. Ao meio-dia será dito
o Angelus Domini (Anjo do Senhor), antes de sair da oficina.

37
MB IV, 661-662.

72

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

8. Os aprendizes devem ser dóceis e submeter-se a seus mestres como


a superiores, demonstrando grande diligência em agradar-lhes e
muita atenção para aprender o que ensinam.
9. Os chefes, ou alguém que faça suas vezes, lerão em voz alta a
cada quinze dias estes artigos, que estarão sempre à vista de todos
na oficina.

Grupo de salesianos coadjutores e jovens aprendizes em 1870.

REGULAMENTO DAS OFICINAS (POR VOLTA DE


1860-1861)38
1. Os aprendizes de cada oficina devem ser submissos e obedientes ao
assistente e ao mestre de oficina, que são seus superiores imediatos.
2. Nenhum aluno pode iniciar ou mudar de ofício sem permissão do
Ecônomo ou do Diretor.
3. É absolutamente proibido fumar, beber vinho, jogar ou manter
qualquer tipo de diversão nas oficinas. Nelas se observará rigoroso
silêncio, compatível com o ofício ou profissão.
4. Nenhum aluno pode sair da oficina sem licença do assistente;
quando fosse necessário mandá-los para qualquer trabalho ou
encargo fora de casa, o assistente buscará a oportuna licença do
Ecônomo ou do Prefeito.

38
MB VII, 116-118.

73

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Dom Bosco: história e carisma 2

5. Nenhum trabalho alheio à casa ou de alguma importância pode


ser realizado sem prévio entendimento com o Ecônomo.
6. Todo trabalho será anotado pelo assistente num registro com data,
preço estipulado, nome e endereço daquele para quem se faz o
trabalho, e outras indicações necessárias.
7. O assistente vigiará atentamente a conduta moral dos alunos e sua
pontualidade no trabalho.
8. O assistente e o chefe da oficina devem impedir toda sorte de más con-
versas e, quando conheçam algum culpado, prestarão logo conta disso.
9. O assistente e o chefe de oficina procurarão estar a tempo na en-
trada dos alunos nas oficinas, para evitar os inconvenientes que
pudessem ocorrer nesse momento e distribuir o trabalho para cada
aluno, sem que percam tempo.
10. Quando o chefe de oficina precisar sair para algum trabalho ou
outras questões, avisará ao assistente.
11. Cabe de modo especial ao chefe de cada oficina ensinar o apren-
diz em sua arte e fazer com que todo trabalho seja feito bem e
com economia.
12. Para prover dos objetos e materiais necessários, o assistente avisará
o Ecônomo, de quem receberá as devidas orientações. Se preci-
sasse ausentar-se para providenciar material de que não se sentisse
suficientemente prático, irá acompanhado do chefe de oficina ou
de outra pessoa, deixando um substituto para a assistência dos
aprendizes.
13. Aos sábados, depois de consultar o parecer do chefe, o assistente
dará conhecimento ao Ecônomo da conduta dos aprendizes da
oficina, com atenção especial à diligência no dever e no compor-
tamento moral.
14. Ele também dará conhecimento ao Ecônomo dos trabalhos reali-
zados durante a semana.
15. Todos os meses, de acordo com o chefe da oficina, fará um inventário
dos materiais existentes no almoxarifado e das ferramentas e instru-
mentos de trabalho.
16. Caso houvesse algo estragado ou em falta por culpa de alguém,
será providenciado por conta do culpado e, se este não for conhe-
cido, será feito por conta de todos os alunos da oficina.
17. O trabalho começará com o Actiones quaesumus e uma Ave-Maria.
Ao meio-dia sempre se rezará o Angelus, antes de deixar a oficina.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

18. Lembrem-se os assistentes e chefes de oficina que com o zelo e a


caridade podem fazer um grande bem, e que serão recompensados
pelo Senhor.
19. Reflitam os alunos que o homem nasceu para trabalhar, e que
somente quem trabalha com amor e constância sente como leve a
fadiga e consegue aprender o ofício escolhido para ganhar honra-
damente o próprio sustento.
20. A cada quinze dias, estes artigos serão lidos com voz clara aos jovens
pelo assistente ou por quem lhe faça as vezes e se terá sempre uma
cópia exposta na oficina.

75

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Capítulo III

DOM BOSCO, EDUCADOR


E MESTRE ESPIRITUAL

Depois de criar a Casa Anexa ao Oratório de São Francisco de Sales na


casa Pinardi (1847) e ampliar as instalações com a construção de novos edifí-
cios (1853 e 1856), Dom Bosco contava com um grupo crescente de residen-
tes: aprendizes e estudantes. Tinha, então, a oportunidade de pôr em prática
os princípios educacionais que orientaram sua ação no Oratório com uma
comunidade que vivia num ambiente controlado. Foi essa a grande e afortu-
nada experiência educativa que originou o “método educativo salesiano”. A
Sociedade Salesiana nasceria dessa experiência. Os “homens” que fundaram a
Sociedade em 1859 eram todos, à exceção de Dom Bosco e do padre Vitório
Alasonatti, “meninos” da comunidade de estudantes da casa. A comunidade
de estudantes da casa foi o lugar de encontro dessa experiência recíproca de
educação e espiritualidade juvenil.

1. A opção e o amor pelos jovens, compromisso


vocacional de Dom Bosco
As experiências pessoais do jovem Dom Bosco e as vividas por ele como
fruto do seu ministério de padre recém-ordenado em Turim deram a base
para entender como apelo divino a dedicação de sua vida a serviço dos jovens
mais desfavorecidos.
Dom Bosco falava com frequência dessa propensão, dessa necessidade
interior. Em 1844, disse ao padre Cafasso: “Minha propensão é para cuidar
da juventude [...]. Neste momento parece-me estar no meio de uma multi-
dão de jovens que me pedem ajuda”.1 Mais tarde, em 1846, respondeu ao
1
MO, 131.

76

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

ultimato da marquesa Barolo com as palavras: “Minha vida está consagrada


ao bem da juventude. Agradeço-lhe as ofertas que me faz, mas não posso
afastar-me do caminho que a Providência me traçou”.2
Esta “propensão” transformou-se na opção decidida pelos jovens, que
se converteram na preocupação absorvente do seu ministério, a inspiração
especial das suas obras apostólicas e das outras instituições iniciadas a partir
desse carisma ou dele derivadas: a Família Salesiana inteira. As circunstân-
cias obrigaram-no a aceitar tarefas de outra natureza, como mediar entre a
Igreja e o Estado, mas mesmo então continuava a pensar em seus meninos,
escrevendo-lhes e sonhando com eles.
Sobre seu amor pelos jovens, ele escreve no prefácio de O jovem ins-
truído (1847):

Queridos jovens: eu vos amo com todo o meu coração, e basta-me que se-
jais jovens para que eu vos ame muito. Garanto-vos que encontrareis livros
escritos para vós por pessoas muito mais virtuosas e sábias do que eu, mas
dificilmente podereis encontrar alguém que vos ame mais do que eu em Jesus
Cristo e que mais deseje a vossa felicidade.3

Padre Rua também deixou escrito:

[Dom Bosco] não deu passo, não proferiu palavra, não iniciou qualquer traba-
lho que não tivesse como objetivo a salvação da juventude. Deixou que outros
acumulassem tesouros, que outros buscassem prazeres e corressem atrás das
honras. Dom Bosco realmente não amou outra coisa que não fossem as almas;
disse com os fatos, não só com as palavras: “Da mihi animas cetera tolle”.4

As Memórias Biográficas relatam muitos episódios sobre o modo de Dom


Bosco buscar os jovens e dirigir-se a eles.5

valorização dos jovens em Dom Bosco


O amor de Dom Bosco pelos jovens acompanhava a valorização so-
cial que fazia deles. Sua dedicação total aos jovens era motivada não só pelo
desejo de prevenir um dano social ou reabilitá-los se fosse necessário, mas
também educá-los. Por educação ele entendia ajudar o jovem a crescer e de-
senvolver-se como ser humano e como cristão, para que pudesse encontrar
2
MO, 158.
3
MB III, 11. Cf. também volume 1, capítulo XXI, Apêndice.
4
Carta de 24 de agosto de 1894, M. Rua, Lettere circolari, 130.
5
Exemplos em MB III, 583-592.

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Dom Bosco: história e carisma 2

um lugar adequado na sociedade. De fato, no contexto da Revolução Liberal


e da secularização total da sociedade, ele chegou à convicção de que só através
da educação dos jovens seria possível restaurar a sociedade cristã. Ainda mais,
via os jovens assim educados não só como “material de construção” de uma
sociedade renovada naquela época, mas como meio de renovação da socie-
dade em qualquer momento e lugar no mundo. Por isso, cada progresso em
sua obra, do Oratório original à escola e às missões, Dom Bosco tinha como
objetivo a “educação”. Em cada etapa, ele aplicava seu método e estilo de
forma apropriada, criando em todas elas um ambiente educativo adequado.

O relacionamento com os jovens


O amor de Dom Bosco pelos jovens expressava-se não só em sua dedica-
ção para “educar”, mas também no seu estilo e método educativo. Lemoyne,
que muitas vezes faz comentários sobre o relacionamento de Dom Bosco com
os jovens, escreve citando vários testemunhos:

O segredo do seu sistema estava na doçura: ele estava firmemente persuadido


de que para educar os meninos é preciso abrir seu coração, poder penetrar
nele como na própria casa [...]. Dom Bosco sempre usava de bons modos,
paternais, delicados, inspirados na mansidão para atrair os meninos à virtude
[...]. [Os meninos] sentiam-se imediatamente atraídos pela doçura e elegân-
cia de seus modos, a jovialidade de seu relacionamento, a oportunidade e
graça de suas palavras. Isso explica, em parte, o fascínio que exercia sobre os
meninos, aos quais atraía irresistivelmente [...]. Centenas de vezes ouviam-se
repetir pelos meninos que o rodeavam: “Parece Nosso Senhor!”, frase que se
tornou habitual.6

Isso era evidente em todas as situações nas quais Dom Bosco se encon-
trava com os jovens. Sem qualquer dúvida, vê-se melhor o seu estilo nas
ocasiões em que podia estar com eles de modo permanente. Isso foi possível
com a criação da Casa Anexa, que acolhia jovens residentes, os mais pobres
entre os pobres, para aprenderem um ofício, enquanto aos demais, também
eles pobres, dava formação escolar de nível secundário. As décadas de 1850 e
1860 foram o período em que Dom Bosco se envolveu de maneira direta na
educação, embora não em sala de aula como forma habitual. Foram os anos
de Domingos Sávio (1854-1857), Miguel Magone (1857-1859), Francisco
Besucco (1862-1864) e outros.

6
MB III, 115-116.

78

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Que tipo de ambiente educativo e espiritual foi criado por Dom Bosco?
Foi um estilo educativo que se converteu depois em “norma” para a educação
salesiana em todos os lugares?

2. Método e estilo educativo de Dom Bosco


Dom Bosco teve uma concepção integral de educação. Em sua opinião,
a educação ocupa-se do desenvolvimento integral da pessoa, trazendo à luz
suas melhores potencialidades, em vista do seu funcionamento individual
como cristão adulto na sociedade: bom cidadão e bom cristão, como ele diria.
Esta concepção também se baseava na valorização cristã, com impor-
tante relevância social, que Dom Bosco fazia dos jovens. Embora o internato
e a escola tenham se convertido no cenário privilegiado da sua experiência
educativa e muitos de seus escritos pedagógicos tenham sido influenciados
pelo ambiente do internato, os princípios educacionais que traçou têm uma
aplicação mais ampla e variada. Dom Bosco considerava que qualquer oca-
sião em que entrasse em contato com os jovens era uma ocasião educativa.

Dom Bosco, educador realista


Dom Bosco entrou pelo campo da educação através do trabalho no
Oratório, no internato e na escola, num momento em que havia grande
consciência da necessidade de educação. Foi uma época em que, com a legis-
lação pública, houve muitas correntes teóricas de pedagogia. Ele converteu-se
em referencial pedagógico. Criou um grande movimento educativo não como
teórico, mas como alguém que entrara nesse campo chamado por uma neces-
sidade imperiosa. Era um educador prático, que se dedicara a esse apostolado
com suas enormes qualidades e recursos pessoais, com uma concepção cristã
da realidade e grande zelo sacerdotal. Na verdade, de algum modo, ele sempre
esteve comprometido na educação dos jovens, totalmente envolvido durante
quase um quarto de século. Nunca se retirou totalmente.

Escritos pedagógicos de Dom Bosco


Dom Bosco também escreveu sobre educação. Como se podia esperar, o
seu enfoque foi eminentemente prático. As diretrizes educacionais que bro-
tam de suas obras e de suas ações, especialmente daquelas que tratam expres-
samente do tema, são numerosas e inovadoras. Todas as obras de Dom Bosco
contêm observações pedagógicas, mas estas merecem atenção especial:

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeiros escritos importantes

• Biografias e histórias
As biografias de Comollo (1844…), Sávio (1859…), Magone (1861) e Besucco
(1864) têm um objetivo educativo e espiritual específico. Sobre isso, as de Sá-
vio, Magone e Besucco são especialmente importantes, e nos oferecem em seu
conjunto um compêndio do estilo educativo e da direção espiritual de Dom
Bosco para com os jovens da comunidade de estudantes nas décadas de 1850
e 1860. Os vários tipos (Sávio, de boa família cristã; Magone, de lar “desfei-
to”, mas de modo algum um delinquente juvenil; Besucco, inocente pastor da
montanha) apresentam-nos três aspectos do enfoque de Dom Bosco.
O jovem instruído, 1847.7 A Introdução e a Parte I (Instruções introdutórias
e meditações) contêm teses importantes.
Os livros históricos, História eclesiástica (1845...), História da Itália (1855...),
História sagrada (1847...), foram escritos para educar, inculcando valores mo-
rais e espirituais.8

• Regulamentos
Tanto o Regulamento para o Oratório (festivo) com o título Regolamento
dell’Oratorio di San Francesco di Sales per gli esterni (Regulamento do Oratório
de São Francisco de Sales para alunos externos), como o da Casa Anexa ou Re-
golamento per le case della Società di San Francesco di Sales (Regulamento para
as casas da Sociedade de São Francisco de Sales) foram concluídos em 1877.
Os dois regulamentos, dos inícios de 1850, foram corrigidos e acrescidos antes
de serem impressos pela primeira vez em 1877. Eles estabelecem o ambiente em
que a obra educativa, como Dom Bosco a entendia e praticava, ia ser praticada.9

• Outros escritos
Memórias do Oratório (1873-1877).10 Nesta obra, Dom Bosco, entre outros
objetivos, procura mostrar como surgiu e evoluiu seu estilo e método de edu-
cação dos jovens.

7
Mais tarde, Dom Bosco escreveu uma obra semelhante para meninas, que não obteve o mesmo
sucesso: La figlia cristiana provveduta (A jovem instruída, 1878).
8
Sobre isso, tem especial importância a História eclesiástica ao tratar dos santos que se distingui-
ram pela caridade preventiva, especialmente pelos jovens e pelos pobres.
9
Sobre o Regulamento do Oratório, cf. MB III, 86-108, 574-575. Sobre o Regulamento da Casa,
cf. MB IV, 735-755.
10
Edição crítica publicada por A. da Silva Ferreira [Roma: LAS, 1991]. Esta obra, traduzida por
Fausto Santa Catarina para a Editora Salesiana: São Paulo, com várias edições, foi revista e ampliada
por A. da Silva Ferreira e reeditada pela Editora Dom Bosco [Brasília, 2012].

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Conselhos aos diretores (1863, 1871, 1875, 1876 e 8 de dezembro de 1886).11


Dom Bosco enviou essas normas e diretrizes pela primeira vez ao padre Rua
quando, em 1863, este foi designado diretor do colégio de Mirabello.
Pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo (março-abril de 1877).12 Foi publi-
cado primeiramente por Dom Bosco como apêndice ao discurso escrito em
1875 por ocasião da inauguração do orfanato salesiano de Nice (França). Es-
tabelece conceitos e princípios fundamentais na sua prática educativa. Apesar
do nome “preventivo”, que Dom Bosco preferiu provavelmente para situar
seu método numa categoria pedagógica geral, esta pequena obra contém
muitas, não certamente todas, das intuições adquiridas com sua experiência
educativa de muitos anos.
Circular sobre os castigos.13 Esta circular – publicada pela primeira vez só em
1935 – foi atribuída por muitos anos a Dom Bosco. José Manuel Prellezo de-
fende que, com quase certeza, Dom Bosco nem sequer chegou a conhecê-la;
fora escrita sem que ele o soubesse por alguém do seu entorno, provavelmente
por João Batista Francésia. Em todo caso, reflete substancialmente algumas
ideias de Dom Bosco sobre o tema: trata da disciplina e dos castigos na edu-
cação da juventude.
Carta de Roma (10 de maio de 1884).14 Dom Bosco é seguramente o autor
desta importante declaração de princípios educativos, embora padre Lemoyne
fosse o redator das duas versões, uma longa e outra reduzida. A carta repete,
em forma de sonho, princípios básicos e normas comprovadas como válidas
na educação dos jovens. Concretamente, ela descreve a relação na educação,
o que Dom Bosco via como mais importante.

11
Edição crítica: Francesco Motto, I “Ricordi confidenziali ai direttori” di Don Bosco (Piccola
Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 1). Roma: LAS, 1984.
12
Cf. Pietro Braido (ed.), Giovanni (San) Bosco, Il sistema preventivo nella educazione della
gioventù: introduzione e testi critici (Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 5). Roma: LAS,
1985. Cf. também RSS 4 (1985), 171-321. Cf. Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Fran-
cisco de Sales (1984), 266-274.
13
Epistolario Ceria IV, 201-209. José Manuel Prellezzo (ed.), “Dei castighi da infliggersi nelle
case salesiane: una lettera circolare attribuita a Don Bosco”, RSS 5 (1986), 263-308. Id., “Fonti lette-
rarie della circolare ‘Dei castighi da infliggersi nelle case salesiane’”, Orientamenti Pedagogici 27 (1980),
625-642. Id., “‘Dei castighi’ (1883): puntualizzazioni sull’autore e sulle fonti redazionali dello scritto”,
RSS 52 (2008), 287-307.
14
Pietro Braido (ed.), La lettera di Don Bosco da Roma del 10 maggio 1884 (Piccola Biblioteca
dell’Istituto Storico Salesiano, 3). Roma: LAS, 1984. Também em RSS 3 (1984), 296-374. Cf. Cons-
tituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales (1984), 275-287.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Carta sobre livros e leituras nas casas e escolas salesianas (1o de novembro de
1885).15 Esta circular expressa as ideias de proteção e prevenção de Dom Bos-
co em relação à educação, embora redigida por outrem.
Testamento espiritual (Memórias de 1841 a 1884-5-6).16 Foi escrito de modo
intermitente entre janeiro-fevereiro de 1884 e fins de 1886, com notas adicio-
nais finais entre 8 de abril e 24 de dezembro de 1887, ou seja, 38 dias antes
de sua morte. Esta é a data em que Dom Bosco confiou a obra a Carlos Ma-
ria Viglietti para que fosse entregue ao padre João Bonetti, diretor espiritual
geral. Esta última e importante obra de Dom Bosco contém muitas de suas
ideias sobre educação.
Cartas pessoais. Várias cartas de Dom Bosco, de vários períodos, evidenciam
suas preocupações educativas e espirituais.17

Capa da segunda edição da Vida do jovem Domingos Sávio (1860).

15
MB XVII, 197-200.
16
Francesco Motto (ed.), Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli Sa-
lesiani [Testamento spirituale] (Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 4). Roma: LAS, 1985.
Também em RSS 4 (1985), 73-130.
17
Para a coleção das cartas de Dom Bosco, cf. o antigo Epistolario Ceria (4 volumes), editado por
Eugênio Ceria, e mais recente, ainda incompleto, com edição aos cuidados de F. Motto, Epistolario
Motto (4 volumes até 1875).

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Método e estilo educativo de Dom Bosco


O método funciona em diversos níveis, mas relacionados entre si.
No nível de “filosofia” educacional, o método é uma síntese pessoal e ori-
ginal de humanismo e fé cristã, adquirida por Dom Bosco a partir de algumas
tradições educativas, da sua experiência cultural e da experiência pessoal com
os jovens ao longo de muitos anos.
No nível seguinte, esta filosofia educacional baseava-se num conjunto de
princípios resumidos no trinômio Razão, Religião e Carinho [amorevolezza].
Com estas bases, ele construiu um ambiente espiritual e educativo caracteriza-
do pela familiaridade, espontaneidade, confiança e alegria.
No nível das estratégias, dava-se importância à proteção-prevenção e à as-
sistência pela presença contínua e serviçal do educador.
No nível dos meios/ferramentas, fez-se uso adequado de reforços educa-
tivos e de instrumentos formativos tais como o trabalho e o estudo, a prática
religiosa, o rigor moral e a grande variedade de atividades como jogos, espor-
tes, passeios, teatro, música, celebrações.
O estilo educativo de Dom Bosco é definido pelo conjunto de todos
esses elementos.

3. A “filosofia educacional” de Dom Bosco


Se lhe pedissem uma descrição breve da missão do educador, Dom Bos-
co tê-la-ia comparado com a missão de bons pais cristãos em relação à edu-
cação dos filhos, uma vez que, no nível de pensamento e prática, ele baseava
o seu método educativo numa relação afetiva entre educador e discípulo tal
como a que se pode encontrar numa boa família. Pode-se descrever assim,
com simplicidade, a relação de Dom Bosco com os jovens, sem importar a
circunstância do seu encontro com eles. Com efeito, as palavras-chave do
método eram proximidade, carinho e confiança.

A “família” como modelo e o “espírito de família”


Familiaridade, para Dom Bosco, significava relacionar-se como numa
família e trabalhar e viver juntos da mesma maneira. O resultado é o espírito
de família, oposto à relação superior-inferior, ou ao modo de viver e trabalhar
juntos de forma oficial e institucional. Dom Bosco deu grande importância
a esse modo de fazer as coisas, porque acreditava que, somente através dele,
era possível que o educador estabelecesse uma relação pessoal com os jovens.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Sem familiaridade não há afeto, sem afeto não há confiança recíproca e sem
confiança recíproca não há contato pessoal e, portanto, não há educação.
Em 1883, um correspondente do jornal parisiense Le Pèlerin escre-
veu sobre a relação de proximidade observada no Oratório de Valdocco:
“Vimos este sistema em ação. O Oratório de Turim é um grande colégio
para internos, no qual não se conhecem filas, mas no qual se vai de um
lado para outro como numa família. Cada grupo rodeia um professor,
sem algazarra, sem alvoroço, sem resistência. Admiramos o rosto sereno
daqueles meninos e tivemos de exclamar: Aqui está o dedo de Deus!”.18
Aquilo que o repórter observou foi apenas um pequeno reflexo exterior do
espírito de família.
Por espírito de família Dom Bosco entendia que a casa salesiana (ora-
tório, internato ou escola, mesmo grande) fosse como um lar, e todas as
pessoas que formavam a comunidade educativa vivessem em comunhão
como numa família. O conceito de família-lar funciona aqui como modelo
do qual aproximar-se o mais possível. Em nossos tempos, a imagem da fa-
mília perdeu muito do seu valor real e simbólico. A própria ideia de família
perdeu grande parte de sua atração numa cultura que praticamente conse-
guiu despojar o lar da sua condição de espaço afetivo no qual o indivíduo
recebe amor e cuidado de forma incondicional das pessoas às quais ele ou
ela corresponderão com amor. No entanto, este é o conceito que Dom Bos-
co tinha de família. Suas experiências infantis, boas ou más, convenceram-
-no de que a vida familiar era um valor do qual não se podia prescindir. A
comunidade educativa, na opinião de Dom Bosco, só era verdadeiramente
educativa se promovesse ao máximo os laços afetivos e as relações existentes
numa família biológica.
Podem-se citar muitos testemunhos sobre o modo de Dom Bosco tentar
criar um ambiente familiar na comunidade do Oratório:

A vida em comum vivida por nós persuadia-nos de que vivíamos como numa
família, mais do que num colégio ou internato, sob a direção de um pai que
nos amava e só se preocupava com o nosso bem espiritual e material.19
Vivia-se no Oratório uma vida de família, em que o amor a Dom Bosco, o
desejo de vê-lo contente, a ascendência que se pode recordar, mas não descre-
ver, faziam florescer entre nós as mais belas virtudes.20

18
MB XVI, 168-169.
19
Padre João Cagliero, em MB IV, 292.
20
Padre Jacinto Ballesio, em MB V, 736.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Estar com os jovens era a santa e irresistível paixão de Dom Bosco. Se alguma
vez ele se irritava com alguma coisa era quando se via forçado a abandonar a
doce e familiar companhia dos jovens para fazer alguma visita.21
Dom Bosco entendia que viver juntos numa comunidade educativa era como vi-
ver numa família que compartilha afetos. Ele diria: “Quero que todos nós tenha-
mos um só coração”. Gostaria de ser capaz de descrever a vida que vivíamos, por-
que estive ali, no Oratório, na época de Dom Bosco. [...] Todos nós nos sentíamos
parte de uma família. Dom Bosco sempre se referia [ao Oratório] como a casa.22

Dom Bosco, de fato, nunca se referia ao Oratório como um collegio


(colégio, escola). Nos documentos oficiais, chamava-o de ospizio (abrigo, in-
ternato). Mesmo no Regulamento, chamava-o de esta casa, a nossa casa, a casa
do Oratório. Esta linguagem expressa mais acertadamente a ideia de que o
Oratório era um lar, uma família da qual ele era o pai. Quando fala da entra-
da de Domingos Sávio no Oratório, Dom Bosco escreve: “Chegou à casa do
Oratório e subiu aos meus aposentos”. O Oratório era diferente, quem sabe
único: não um internato, mas uma casa, um lar; não um escritório, mas um
aposento; não um diretor ou administrador, mas um pai.
O “modelo familiar” que descreve as relações educativas era um modelo
tradicional, do qual Dom Bosco destacava a relação pai-filho, não outro tipo
de relações familiares. O educador era um “pai” para o jovem, que se rela-
cionava com ele como “filho/filha”. Essa relação era certamente caracterizada
de um lado pelo afeto recíproco, mas também por certa severidade e estilo
distante, e, de outro, por admiração e distância respeitosa. Complementava
essa imagem com a ajuda de outras relações familiares. O educador devia viver
motivado por um tipo de ternura que se torna evidente na amorevolezza (amor
demonstrado, carinho). Na família, é a característica da relação mãe-filho. Ele
também queria que o educador vivesse próximo do jovem com espírito de
igualdade e camaradagem. Na família, isso define a relação entre irmãos e ir-
mãs. O educador devia ser então, pai, mãe, irmão e irmã para o jovem.
Este “modelo de família” que descreve uma comunidade educativa não era
o único que a tradição oferecia a Dom Bosco, mas parece que foi o que ele
considerou como o melhor. Em sua opinião, assim como a família é a primeira
comunidade educativa e, por sua natureza, desenhada para a educação da crian-
ça, assim também toda comunidade educativa deveria reproduzir idealmente
esse esquema.

21
Padre Jacinto Ballesio, em A. Amadei, Don Bosco I, 350. A obra de Amadei está repleta de citações e
testemunhos que descrevem o ambiente educativo e espiritual do Oratório e o estilo educativo de Dom Bosco.
22
A. Caviglia, La pedagogia, 18-19.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Havia ainda razões pessoais por trás dessa preferência de Dom Bosco.
Lemoyne afirma que “o amor espiritual tal qual se experimenta numa família
era uma necessidade imperiosa do seu coração”.23 Braido fala da sua paixão
pela intimidade familiar como de uma característica do temperamento de
Dom Bosco.24 Stella acredita que esse aspecto da personalidade de Dom Bos-
co é resultado da orfandade quando ainda criança.25

A palavra e o exemplo de Dom Bosco


Ao falar aos salesianos envolvidos na educação, Dom Bosco recomenda-
va em todas as ocasiões o estilo familiar. “Deveis ter o coração de um pai, não
a cabeça de um superior”.26 O educador “deve ser como um pai entre seus
filhos”.27 Ele escreveu numa carta que ser “superior” significa ser “educador” e
que isso significa ser “pai, irmão e amigo” para os jovens.28 “Todo jovem que
chega a uma de nossas casas deve considerar os companheiros como irmãos e
os superiores como aqueles que ocupam o lugar de seus pais”.29
Dom Bosco colocava em prática aquilo que pregava. Tinha um co-
ração verdadeiramente paternal/maternal no falar e agir. Amava todos os
jovens sem distinção, não de modo geral, mas de uma forma tão pessoal que
cada um deles se sentia como o seu preferido. Era essa a percepção muito
comum no Oratório, que brotava da forma como ele falava a um menino.
Sua serenidade imperturbável, sua cordialidade amistosa, sua compreen-
são do coração jovem e sua percepção instintiva das necessidades especiais
permitiam-lhe falar de uma maneira que ia diretamente ao coração. Os
“boas-noites” devem ser entendidos nesse contexto, pois eram de fato as
últimas palavras materno-paternas do dia, antes de a família retirar-se para
o repouso. Esta é a característica especial, e somente esta, que faz dos boas-
-noites a “chave da boa conduta moral, do bom funcionamento da casa e
do sucesso na ação educativa”. A maneira como Dom Bosco tratava a pes-
soa demonstrava uma sensibilidade e uma preocupação incríveis e era uma
prova instantânea de amor e respeito.
Lemoyne cita a afirmação de Brosio de como Dom Bosco recebia os jovens
que iam aos seus aposentos para pedir conselho ou simplesmente conversar:

23
MB IX, 687.
24
P. Braido, Il sistema preventivo, 159.
25
P. Stella, Vita, 253.
26
MB XVIII, 866.
27
Regulamento do Oratório [Festivo] (1877), 6.
28
Epistolario Ceria IV, 265.
29
Regulamento das casas (1877), 61.

86

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Recebia-os com o mesmo respeito que demonstrava aos visitantes importan-


tes, indicando-lhes que se sentassem no sofá enquanto ele se sentava à sua
mesa e escutava atentamente como se o que lhe contassem fosse muito impor-
tante [...]. Quando terminava a entrevista, acompanhava-os à porta, abria-a e
despedia-se dizendo: “Seremos sempre amigos; não é verdade?”.30

Padre Francésia contou ao padre Ceria que, sendo ele jovem seminarista na
época de Domingos Sávio, este ficou doente, com febre. Dom Bosco fora vê-lo na
enfermaria para animá-lo; quando estava para sair, perguntou-lhe se podia fazer
alguma coisa por ele. Sávio, doente como estava, pediu-lhe um gole de água do
balde usado pelos pedreiros.31 Dom Bosco saiu silenciosamente e, depois de algum
tempo, voltou com o balde dos pedreiros cheio de água fresca. Levantou a cabeça
do jovem e deu-lhe a beber da água fresca. Sávio bebeu e adormeceu.32

Pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo em edição bilíngue: italiano e francês (1877).

30
G. Brosio, Memoria, FDB 554 E10 - 555 D8. José Brosio, apelidado Il bersagliere, por ter sido
membro de um regimento militar de batedores (bersaglieri), foi um grande ajudante de Dom Bosco
nos inícios do Oratório.
31
Nessa época, estava em construção o edifício que substituiu a casa Pinardi; os pedreiros usavam
um balde de cobre para manter o cimento úmido, enquanto punham os tijolos.
32
Fato narrado pelo padre Ceria no Bollettino Salesiano, 15/6/1950, reproduzido por Terésio
Bosco. In: San Giovanni Bosco, Vita del giovanetto Domenico Savio: trascrizione e complementi di
Teresio Bosco. Turim: LDC, 1991, 120-121.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A influência moral e a eficácia educativa do método de Dom Bosco são


mais bem compreendidas levando-se em consideração que muitos de seus “fi-
lhos” nunca viveram o amor e o carinho de uma mãe, de um pai ou que, pior,
foram seriamente desamparados por eles. É notável a história do padre José
Bertello. Quando criança presenciara o assassinato do pai; depois, sua mãe
voltou a casar-se. O menino estava tão traumatizado por essas experiências
que aos 14 anos, em 1862, parecia estar gravemente perturbado. O pároco,
irmão do teólogo Borel, recomendou-o a Dom Bosco, que o acolheu como a
um filho. Chegaria a ser conselheiro e ecônomo geral da Sociedade Salesiana.
O primeiro Oratório era uma “casa” para os jovens, também porque
ali encontravam algumas mães. Era esse um traço especial que Dom Bosco
procurou manter o maior tempo possível, não só por razões de índole prática:
sua própria mãe, Margarida, a irmã dela, “Mariana” Occhiena, as mães dos
padres Rua, Gastaldi, Bellia e outros.

A familiaridade e o espírito de família na prática


Como a familiaridade, o espírito de família, afeta o enfoque pedagógico?
Em primeiro lugar, e por sua própria natureza, acaba com a mentalidade
institucional, a relação superior-inferior e o estilo burocrático. Sabe-se que
Dom Bosco, nos primeiros anos, não tinha nem sequer um escritório, mas
trabalhava em seus aposentos. Recebeu Domingos Sávio no seu quarto. Esse
famoso pequeno quarto, que os meninos viam como um santuário no qual se
devia entrar quase com adoração, esteve sempre aberto para todos e era um
ponto de referência muito importante. Ali, muitos jovens receberam consolo,
ânimo e orientação.33
Em segundo lugar, e acima de tudo, acabou com o autoritarismo. O
abuso da autoridade e do poder destrói a relação afetiva e, portanto, a ação
educativa, ao favorecer reações agressivas. Isso pode ser aplicado não só à
escola. O abuso da autoridade e do poder de um pai, por exemplo, pode ter
consequências devastadoras. A pessoa que abusa alega normalmente que é
pelo “bem do outro”, mas na verdade o faz apenas por seu próprio interesse
e benefício. O jovem humilhado ou intimidado sofre sempre um sério dano,
às vezes irreparável, como a perda da autoestima e da capacidade de decisão,
adquirindo profundas raízes de ódio.
Em seu breve Tratado sobre o Sistema Preventivo, Dom Bosco escreveu
que recorrer à repressão autoritária é a maneira mais fácil de resolver um

MB III, 30s. O edifício no qual ficavam os aposentos de Dom Bosco, desde 1853, era conhe-
33

cido como “a casa de Dom Bosco”.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

problema, mas nunca fez de alguém uma pessoa melhor. Ao contrário, só


produz amargura e ressentimento. Segundo ele, os educadores de uma esco-
la salesiana não são “chefes”. Não devem impor sua vontade aos jovens por
estarem no comando. Por isso, ele tanto insistia na “razão”. De fato, escreveu
que seu método educativo baseava-se na razão, na religião e no amor.

Significado e papel da razão na educação


O que Dom Bosco entendia por razão? Várias coisas.
Primeiro, a razão pode ser definida como justiça, no sentido de o edu-
cador, assim como o jovem, estar sujeito à norma. Há que prevalecer não o
chicote do educador, mas a norma: ordinariamente, direitos e deveres devem
ser respeitados por todos.
Em segundo lugar, razão significa também ser razoável ou sensato. Tudo
o que se pede ao jovem deve ser razoável no sentido de ser proporcionado e
factível, especialmente no que se refere à carga de trabalho, disciplina e prá-
tica religiosa.
Em terceiro lugar, razão é entendida como racionalidade. O motivo exis-
tente por trás de todas as exigências e decisões educativas deve ser evidente, e
o bem que há nisso deve ser apreciado pelos jovens.
Em quarto lugar, e em sentido mais amplo, razão é entendida como a
motivação do jovem para um compromisso intelectual. A importância do
processo de ensino e a validade do programa educativo devem ser explicadas
aos jovens e é preciso promover seu envolvimento.

Religião
Certa ocasião, fevereiro de 1878, Dom Bosco escreveu um memorando
sobre o seu sistema educativo para o ministro do Interior, Francisco Crispi,
sem fazer qualquer referência à religião. A explicação deve ser buscada na
situação “política” ou também na convicção de Dom Bosco de que os jovens
em situação de risco podiam ser ajudados pelo método da razão e do amor,
mesmo sem referência à religião. Mas parece que ele, pessoalmente, acredita-
va não ser possível conseguir a educação de uma pessoa sem tomar por base
a religião cristã. Na cultura europeia ocidental de sua época, não era possível
conceber um bom cidadão que não fosse um bom cristão, e vice-versa.
A religião como base do sistema educativo de Dom Bosco deve dis-
tinguir-se da “prática religiosa” como reforço educativo. Sobre este reforço,
não há dúvida de que Dom Bosco dava grande importância às práticas re-

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Dom Bosco: história e carisma 2

ligiosas. Aproximar-se de Deus mediante a oração e a escuta da sua palavra


reforça a ação educativa. Contudo, quando fala de religião como base do
seu sistema educativo, ele quer dizer mais do que isso. Como cristão e como
padre tinha fé na exclusividade, na absoluta necessidade da mediação de
Cristo e, portanto, na necessária mediação da Igreja de Cristo. Considerava
que a mediação de Cristo e a mediação da Igreja eram singularmente neces-
sárias não só para a salvação “espiritual” como também para qualquer em-
preitada humana, pessoal e social. Por isso não podia separar o ser um bom
cristão do ser um bom cidadão. Ele baseou o programa do seu Oratório na
“instrução religiosa”, e toda a sua atividade educativa, em suas inúmeras
formas, na tradição cristã. Unida à experiência religiosa da oração e dos
sacramentos que oferecia aos seus jovens, a “educação cristã” converteu-se
em “espiritualidade”. Foi nesse momento que se tornaram inseparáveis a
educação e a vida espiritual.

Amor, carinho, afeto


Dom Bosco aconselhava frequentemente: “Procura fazer-te amar mais
do que fazer-te temer”.34 Na “Carta de Roma” (1884), ele usou 27 vezes o ter-
mo “amor”. Em muitas outras ocasiões, Dom Bosco explicou o tipo de amor
que tinha em mente. Amor espiritualmente maduro, imparcial, generoso,
desinteressado, sacrificado. É o amor imposto por Jesus. Mais simplesmente
Dom Bosco diria que o educador deve amar os jovens do mesmo modo que
os bons pais cristãos amam seus filhos.
Sendo assim, não falamos simplesmente de amor, não importa o
quanto profundo e verdadeiro possa ser, mas de amor comprovado e de-
monstrado na prática. O amor expressa-se na prática como carinho (amo-
revolezza). Dom Bosco disse que “os jovens não só devem ser amados, mas
devem saber que são amados”. A educação só pode acontecer mediante o
amor e só quando o amor é manifestado. O educador “que quiser ser ama-
do deve amar por primeiro, e manifestar o seu amor”.35 Mesmo isso não é
suficiente. O amor, de certa forma, deve expressar-se como Jesus ou alguns
pais amorosos o expressariam: com preocupação carinhosa, com amor afe-
tuoso. Dom Bosco chamava de “amorevolezza” o amor assim expressado.
Só dessa forma o educador pode estabelecer uma relação de caráter pessoal
com o jovem.

34
“Lembranças confidenciais aos diretores”, 5. In: J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), Juan
Bosco, Obras fundamentales, 550.
35
As duas citações são da “Carta de Roma” (1884). In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 612.614.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Confiança
“A familiaridade gera afeto, e o afeto, confiança.”36 Há uma razão pela
qual Dom Bosco dava tanta importância à confiança considerando-a essen-
cial para a educação. Seu método educativo baseia-se numa relação afetiva;
a primeira consequência disso é a confiança, ou seja, o fato de abrir-se e
entregar-se a outrem de forma pessoal.
A “Carta sobre os castigos”, de 1883, finaliza com estas palavras que,
embora não sejam escritas por Dom Bosco, refletem bem seu pensamento:
“Recorda que a educação é coisa do coração e que só Deus é dono dele”.37
Braido comenta: “Se o educador não consegue conquistar o coração do jo-
vem, trabalha em vão. Se o jovem não abre o coração ao educador, a educação
é imperfeita”.38 Deveria haver, ainda, reciprocidade, confiança dada e recebi-
da. Isso é decisivo, mas, ao mesmo tempo, não está isento de dificuldades.
Não se estabelece facilmente a confiança. Dom Bosco estava plenamente
consciente das dificuldades inerentes a essa fase crucial do processo educa-
tivo. Maturidade espiritual, entrega e amor, expressos com a amorevolezza,
são condições necessárias para a confiança. Mas mesmo assim isso não se dá
facilmente. A confiança não pode ser comprada, forçada ou ordenada. E é
muito difícil aos educadores, mesmo aos pais, estabelecer uma relação de tan-
ta confiança e receptividade com os jovens, sobretudo com os adolescentes.
Dom Bosco nem sempre teve êxito na aproximação de um jovem, embora
geralmente o conseguisse.
Como se explica esse êxito? Primeiro, porque ele estava de tal modo
consagrado à sua missão, que sua sinceridade e autenticidade como educador
não eram postas em dúvida. Sua presença constante e sua disponibilidade,
sua maneira franca e simples de falar e agir, seus modos respeitosos e amáveis,
sua atitude não ameaçadora e cativante abriam-lhe normalmente o caminho
da confiança.
Em segundo lugar, Dom Bosco era um educador excepcionalmente do-
tado. Possuía uma empatia extraordinária e uma capacidade intuitiva inata.
Mesmo quando ainda era uma criança, conseguia adivinhar os pensamentos
e intenções dos outros meninos. Era capaz de falar com os jovens de modo
que eles não só entendiam o que ele dizia como também eram entendidos por
ele. Estabelecia-se de imediato uma relação de comunicação. Sua maneira de

“Carta de Roma” (1884). In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 613.


36

MB XVI, 447. Há base suficiente para, aparentemente, afirmar que Dom Bosco não foi o
37

autor da conhecida frase a ele atribuída. Cf. nota 14 deste capítulo.


38
P. Braido, Il Sistema Preventivo, 205.

91

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Dom Bosco: história e carisma 2

falar não era demasiadamente culta nem elaborada, mas sempre a conversa
informal de um amigo. Falava sem pressa, com clareza, com simplicidade, di-
retamente, com persuasão e, sobretudo, com total sinceridade: “Eu vos abro o
meu coração: se houver alguma coisa que não me agrade, eu o digo; se houver
um aviso a dar, eu o darei prontamente, em público ou em particular. Não
tenho mistérios: aquilo que trago no coração, eu o ponho nos lábios. Vós
também deveis fazer o mesmo, meus queridos filhos”.39
O episódio de Dom Bosco e o cardeal Tosti com os meninos de rua, na
Piazza del Popolo, em Roma, demonstra como Dom Bosco sabia “fazer-se
próximo” e “estar com” os jovens. Os fatos acontecem na sequência de um
diálogo sobre o modo de aproximar-se dos jovens e conquistar a sua confian-
ça. Padre Lemoyne conta o episódio assim:

[Dom Bosco disse:]


– Veja, Eminência, é impossível educar bem os jovens se eles não tiverem
confiança em seus superiores.
O cardeal replicou:
– Como é possível conquistar essa confiança?
– Fazendo com que eles se aproximem de nós, removendo tudo que os afaste
de nós.
– E como fazer para que se aproximem de nós?
– Aproximando-nos deles, procurando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-
-nos semelhantes a eles.40

A história continua: vão à Piazza del Popolo na carruagem do cardeal.


Dom Bosco aproxima-se de um grupo de jovens que brincam na praça e de-
monstra “sua técnica” ao cardeal.
Aproximar-se, porém, não é suficiente. O modo de o educador compor-
tar-se e tratar os jovens é primordial, porque é o jovem que deve aceitar o edu-
cador. Numa série de comentários dirigidos aos professores, Dom Bosco dizia:

Enfim, tratemos os alunos como trataríamos o próprio Jesus se ele estivesse


como aluno neste colégio. Tratemo-los com amor e eles nos respeitarão. É
preciso que eles mesmos nos reconheçam como Superiores.41

39
MB VII, 506.
40
MB V, 917.
41
MB XIV, 846.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Algumas características da vida na casa do Oratório nos


primeiros anos

Estilo espartano de vida


O estilo de vida dos que viviam no Oratório era ascético no nível mais
elevado. O próprio Dom Bosco adotou o estilo de vida dos pobres tanto
por princípio como por força das circunstâncias. Não havia qualquer tipo
de aquecimento, mesmo no inverno mais duro. As refeições eram frugais. A
roupa era já usada ou provinha de desgastados excedentes militares. Era tanta
gente que todos passavam por severas privações e desconfortos. É um tributo
ao sistema educativo de Dom Bosco que essas penúrias fossem aceitas com
serenidade e até se encaixassem no esquema pedagógico. Dom Bosco sem-
pre procurava melhorar as condições, apesar de mais tarde lamentar a perda
do modo primitivo de vida. Mesmo procurando proporcionar mais espaço,
recusou sistematicamente limitar a admissão para obter maior conforto. Sen-
sível como era às necessidades, sempre tentava encontrar espaço para um
jovem a mais. Sua inspiração pessoal foi o catalisador que uniu a comunidade
nos esforços heroicos; o número e a qualidade da gente que passou por aquela
“penosa experiência” são uma prova das habilidades extraordinárias de Dom
Bosco com as pessoas.

O espírito de sacrifício de Dom Bosco


Há coisas que os jovens do Oratório talvez nem chegassem a compreen-
der, mas que eram vividas como reais na comunidade. Havia especialmente
a forma de Dom Bosco sacrificar-se pelos seus meninos. Ele sustentava a
grande família à custa de incontáveis sacrifícios pessoais. O tempo, a energia
e as humilhações sofridas a fim de conseguir dinheiro suficiente para pagar as
faturas de cada mês custaram a sua saúde e o seu espírito além do suportável.
Os jovens não tinham condições de compreender esses sacrifícios ou só vaga-
mente o percebiam; mas a dedicação total do pai pelo bem-estar deles e o seu
visível amor por eles era suficientemente evidente. A correspondência deles
rendeu mais do que dividendos emocionais.

Premonições de Dom Bosco


No final da década de 1850 (a Sociedade Salesiana fora fundada oficial-
mente em 1859), Dom Bosco “sonhava” o futuro e fazia grandes planos para
ele. Contava seus sonhos, mas não falava abertamente de suas premonições,
em parte pela situação política, em parte pela frágil condição de seus jovens

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Dom Bosco: história e carisma 2

colaboradores, em parte porque “o projeto” ainda estava em gestação. Contu-


do, mesmo assim o ambiente fervia de entusiasmo, que se intensificava sem-
pre mais por causa da aura “sobrenatural” que cercava Dom Bosco. Isso não
pode ser descartado como fator educativo que afetava globalmente o pessoal
do Oratório; tinha, também, um impacto particular no círculo interno da
família do Oratório. O carisma pessoal do educador tem muito a ver com o
sucesso da ação educativa.

4. Estratégias do método educativo


As estratégias pedagógicas do sistema de Dom Bosco estão estritamente
associadas à filosofia educacional e ao ambiente.

Uso da religião
Já mencionamos a religião no sentido de ela desenvolver um contexto de
vida e fé cristãs e expressar-se em práticas de piedade adequadas para apoiar o
trabalho educativo e moral. A religião também deve ser considerada como estra-
tégia educativa que dirige e sanciona a forma de pensar e agir dos jovens. Dom
Bosco, certamente, usou a religião como estratégia. Ele enfatizou, por exemplo,
o exercício da presença de Deus e a meditação sobre os novíssimos, como no
Exercício da boa morte, para trabalhar a moral e o cumprimento do dever.
Deve-se falar da estratégia da palavra, ou seja, da contínua animação e
direção espiritual feita por Dom Bosco. Ele se dirigia a cada jovem com “pou-
cas palavras ao ouvido”, nas conversas pessoais e no confessionário, ministério
ao qual dedicava várias horas por dia. Exortava a comunidade dos estudantes
e aprendizes por meio de colóquios, especialmente nos “boas-noites”. Como
confirmado pelo testemunho de Pedro Enria, essas breves palavras familiares
dadas no fim do dia demonstraram-se de grande valor educativo.
Prevenção e assistência, como estratégias, ocupam um lugar de honra. Es-
tes conceitos são rapidamente reconhecidos como parte integral do método
educativo de Dom Bosco.

Prevenção
O método educativo de Dom Bosco é conhecido no mundo todo como
Sistema Preventivo. E, certamente, a preocupação com a prevenção é uma carac-
terística específica do método e um sinal reconhecível na tradição educativa
salesiana. Contudo, deve-se advertir que o método não pode ser descrito sim-
plesmente em termos de prevenção. De fato, até onde sabemos Dom Bosco só

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

depois de 1877 usou o termo preventivo para referir-se ao seu método. Parece
que ele adotou o termo para dar ao seu sistema um marco teórico, ou seja,
classificá-lo na história da pedagogia. O termo preventivo, em clara oposição a
repressivo, manifesta as preferências de Dom Bosco na prática educativa, mas
não expressa a riqueza e a complexidade do método. A prevenção, contudo,
é uma estratégia importante da sua metodologia.
A obra do Oratório tinha um caráter preventivo em seu conjunto. Preten-
dia proteger o jovem de influências maléficas ou reparar o dano afastando-o
de situações morais e fisicamente hostis. Essa é a razão pela qual Dom Bosco
abriu as oficinas na casa do Oratório entre 1853 e 1862. Queria afastar seus
meninos dos perigos físicos e morais das oficinas da cidade.
Num nível básico, a prevenção é uma estratégia desenhada para dar
apoio aos jovens em seus problemas pessoais e ajudá-los a confrontar-se de
maneira construtiva com as dificuldades e tentações que se apresentam em
sua vida como pessoas e como cristãos. Num segundo nível, a prevenção pre-
tende delimitar e controlar o perigo enfrentado pelos jovens, de modo que
possam ser resgatados ou, ao menos, possam evitar situações de alto risco.
Dom Bosco, certamente, teria preferido aplicar essa estratégia no nível
básico, isto é, com bons meninos que não corressem perigo, impedindo, por-
tanto, que as situações de risco fossem maiores e construindo em bases seguras.
Ele valorizava enormemente a “inocência”. Mas, apesar de ter sido beneficiado
em situações educativas ótimas com “Sávios” e “Besuccos”, o trabalho do Ora-
tório em seu conjunto era com jovens que viviam em situação de risco. Vemos
na prática de Dom Bosco sua estratégia em funcionamento com os jovens das
prisões de Turim. Vemo-la, também com os internos na casa do Oratório.

Assistência
Dom Bosco tinha um conceito amplo de assistência, como o tinha de
educação. Por assistência, referia-se a toda atividade caridosa em benefício
dos jovens. A palavra e o conceito estão disseminados nas Memórias; são pre-
cursores do termo “Sistema Preventivo” ou método educativo.

Prioridade educativa
“Assistência” e Sistema Preventivo compartilham significado em dois ní-
veis fundamentais: no nível de conteúdo e de objetivos, porque designam o
que se faz para satisfazer as necessidades espirituais e materiais do jovem; e no
nível de estratégia educativa, porque designam a “vigilância” e a “presença” do
educador em relação ao jovem.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os primeiros esforços de Dom Bosco para ajudar os jovens tomam a


forma de “assistência” em seu sentido mais amplo:

Pude então constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso
encontrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure
arranjar-lhes emprego com bons patrões e vá visitá-los de quando em quando
ao longo da semana, tais rapa­zes dão-se a uma vida honrada, esquecem o pas-
sado, tornam-se bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso
Oratório [...].
Consagrava o domingo inteiro à assistência dos meus meninos; durante a
semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas. Isso muito con-
solava os rapazes, que viam um amigo interessar-se por eles; e agradava aos
patrões, que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assis-
tidos durante a semana e, sobretudo, nos domingos, dias mais perigosos.42

Idealmente e, em grande medida, “assistir” os jovens em situação de


risco significava praticamente para Dom Bosco satisfazer às suas necessidades
reais de alimentação, vestuário, alojamento, trabalho, oportunidade de rece-
ber educação (“estudar”) e emprego útil do “tempo livre”. Trata-se de uma
promoção ou desenvolvimento humano integral e define o programa educa-
cional que, desde o ponto de vista de Dom Bosco, produz pessoas maduras,
“bons cristãos e honestos cidadãos”.

Estratégia educativa
Em geral, a literatura salesiana e não salesiana fala de “assistência” ape-
nas como estratégia. O pior é que só destacam o seu aspecto estritamente
“preventivo”, a “supervisão”, ou seja, a presença “preventiva” moral e física do
educador. É evidente que, neste sentido empobrecido, o conceito de assistên-
cia não faz justiça à concepção de Dom Bosco, nem sequer como “estratégia”.
Dom Bosco entendia “presença” e “disponibilidade” ao jovem em relação a
toda carência e em toda situação educativa. Obviamente, isso inclui “supervi-
são”, se fosse necessária, especialmente no internato.
O objetivo da assistência era colocar o jovem na impossibilidade mo-
ral de fazer algo deplorável e ajudá-lo a evitar experiências potencialmente
danosas. Isso é verdade. Mas considerada em si só, separada de toda a ação
educativa de Dom Bosco, essa visão redutiva e a prática da prevenção não
podem escapar à crítica que foi feita por alguns educadores. Pensam estes que

42
MO, 125. 128.

96

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

a prevenção revela um conceito negativo da natureza humana, especialmente


dos jovens, uma preocupação obsessiva pelo pecado, um protecionismo que
pode chegar a impedir a tomada de decisões livres e responsáveis pelo jovem
e impedir o desenvolvimento normal para a maturidade.
Pois bem, como resposta a essa crítica deve-se anotar que a psicologia
atual volta a insistir na importância da prevenção precoce, na proteção do
jovem em relação a experiências ruins que, sobretudo nas fases críticas do
desenvolvimento psicológico, podem ser até mesmo obstáculos insuperáveis.
Além disso, deve-se insistir que a estratégia preventiva de Dom Bosco não é
apenas presença que tenta evitar o mal, mas é rica em incentivos e propostas
para ajudar o jovem a tomar decisões livres.
Para ser educativa, a atividade preventiva deve: 1o, prever a situação psi-
cológica do jovem; 2o, permitir riscos calculados e responsáveis; e 3o, confiar
no idealismo e no senso de responsabilidade do jovem. Posta em prática dessa
forma, satisfeitas essas condições e num ambiente educativo impregnado de
razão, religião, amor e confiança recíproca, a “assistência preventiva” pode ser
educativa. Embora seja necessário defender os valores positivos, a liberdade
continua a ser uma condição geral para a educação.
Dom Bosco, com frequência, chamava a atenção sobre a necessidade da
presença contínua do educador entre os jovens. Em sua “Carta de Roma”, ele
insiste na importância dessa presença principalmente durante os recreios dos
jovens. Como a educação se baseia numa relação afetiva, é insuficiente estar
em contato com o jovem apenas na aula ou em outras situações formais. O
educador deve criar uma relação permanente com os jovens, estar com eles
em todas as situações, dentro e fora da jornada escolar, especialmente nos
divertimentos. Pausas, recreios, diversões e esportes em geral são atividades
que permitem ao educador se associar aos jovens, não simplesmente como
professores, mas como irmãos e amigos. Dom Bosco escrevia na carta:

Que ao serem amados nas coisas que lhes agradam, participando de suas in-
clinações infantis, aprendam a ver o amor também nas coisas que pouco lhes
agradam, como a disciplina, o estudo, a abnegação de si mesmos, e aprendam
a agir com generosidade e amor.

E quando, na mesma carta, pergunta sobre o modo de romper as bar-


reiras que separam o educador dos jovens, o intérprete do sonho responde:

Familiaridade com os jovens especialmente no recreio. Sem familiaridade


não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode existir confiança.
Quem quer ser amado deve demonstrar que ama. Jesus Cristo fez-se pequeno

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Dom Bosco: história e carisma 2

com os pequenos e carregou as nossas fraquezas. Aí está o mestre da familiari-


dade! O professor visto apenas na cátedra é professor e nada mais, mas se está
no recreio com os jovens torna-se irmão. [...] Quem sabe que é amado, ama;
e quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança estabe-
lece uma corrente elétrica entre jovens e superiores. Os corações se abrem e
dão a conhecer suas necessidades e manifestam seus defeitos. Esse amor faz
os superiores suportarem canseiras, aborrecimentos, ingratidões, desordens,
faltas e negligências dos jovens [...]. Se [esse amor] vier a definhar, então é
que as coisas já não vão bem [...]. É o que acontece necessariamente se faltar
a familiaridade.43

É principalmente no encontro com os jovens, por assim dizer, no seu


próprio território, que o educador pode converter-se em seu irmão/irmã e
amigo/amiga e abrir o caminho da confiança. Pela mesma razão, Dom Bosco
dava grande importância ao encontro com os jovens em suas brincadeiras.
Obviamente, “assistência”, aqui, é uma presença positiva e construtiva.

5. Alguns recursos educativos de Dom Bosco


Em meados da década de 1860, o Oratório convertera-se numa grande
e próspera instituição educacional, com cerca de 600 internos, estudantes
e aprendizes, com uma centena de estudantes externos, sem mencionar os
“oratorianos” nos domingos e dias festivos.

Trabalho, estudo e “piedade”


À medida que construía e ampliava a casa, Dom Bosco teve o cuidado
de insistir nos pontos básicos aceitos por todos como máximas para a vida:
“trabalho, estudo e piedade”. O programa de três frentes, ou de duas, era
assumido como básico e considerado válido para todos os níveis.
A seriedade com que a grande maioria assumia o trabalho e o estudo
no Oratório chama a atenção por ser algo realmente extraordinário. Dom
Bosco era intransigente com todos ao solicitar deles um grande esforço. O
cumprimento responsável do dever era a contribuição pessoal de cada jovem
ao projeto da sua educação. Dom Bosco deixava claro que o “cumprimento
exato do dever de cada aluno” (trabalho-estudo) era o principal pilar da vida
ascética e uma das bases da vida espiritual.

43
Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales. 2ª ed. 2003, p. 281-282.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

A outra base era, naturalmente, a vida “piedosa”, termo que inclui fé


e devoção, expressa na oração, na vida sacramental e na prática religiosa.
Inculcava-se a devoção a Maria e a prática de virtudes típicas, especialmente
a obediência, a disciplina, a generosidade e a pureza.
Estes elementos do programa educacional de Dom Bosco revelam de
imediato sua relação com a vida e a espiritualidade cristãs.

Grupos juvenis
As associações juvenis eram ferramentas educativas importantes. Na dé-
cada de 1850, quando Dom Bosco carregava praticamente sozinho o peso de
uma enorme e crescente iniciativa educacional, precisou confiar amplamente
nos grupos juvenis e na mediação deles para realizar seu programa educa-
cional. Esta mediação educativa reside no fato de ter sido capaz de cultivar
um seleto grupo de jovens que responderam mais rapidamente à sua direção
espiritual e às suas sugestões de se preocuparem com os companheiros. A
Companhia de São Luís foi exemplo dessa mediação entre os meninos do
Oratório. Na casa, o exemplo mais conhecido disso, mas não único, foi Do-
mingos Sávio e a Companhia da Imaculada.

Jogos e pátio: uma ferramenta educativa inovadora


Até fins do século XIX não havia, nos colégios ou clubes da Itália, es-
portes organizados como o futebol, embora jovens e adultos jogassem bola
nas ruas, dando-lhe chutes, lançando-a com a mão ou agarrando-a, de acordo
com algumas regras aceitas de antemão.
Aqui, porém, não se fala de esporte organizado, mas de jogo em geral,
como ferramenta educativa da qual os esportes organizados podem ser um fa-
tor. A diferença entre jogo e esportes está em que, enquanto o jogo é aberto a
todos, os esportes são restritos a um pequeno grupo de meninos que possuem
habilidades para tal. Obviamente, os esportes também podem ser educativos,
e Dom Bosco os desejaria usar com esse propósito.
É justo reconhecer que a ideia de Dom Bosco sobre o jogo como ferramen-
ta educativa foi inovadora e avançada para o seu tempo. Ele não só reconheceu
a utilidade do jogo, como também sua necessidade para o desenvolvimento inte-
gral do jovem. Para ele, educar significava ajudar o amadurecimento do jovem.
O jogo é uma atividade necessária para que o jovem chegue à maturidade.
Ajuda-o a sublimar certas inclinações, conhecer-se por meio da competição
com os outros, reconhecer e controlar os próprios impulsos etc.
O pátio, como funcionava no Oratório, foi uma das criações originais de
Dom Bosco. É certo que os colégios, especialmente os internatos, tinham um

99

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Dom Bosco: história e carisma 2

pátio. Mas, em geral, eram pequenos, “jardins de entretenimento”, como eram


chamados.44 Os jovens permaneciam em pé, formavam pequenos grupos, con-
versando ou brincando com algo não físico, sob a supervisão de um professor.
Dom Bosco queria um pátio suficientemente amplo para permitir que
grande número de jovens participasse dos jogos. Mais ainda, sua ideia de
diversão era pouco comum para a época. Em primeiro lugar, ele queria um
entretenimento muito ativo, que exigisse movimento físico e obrigasse a cor-
rer, embora isso obrigasse a ter vários jogos cruzando-se ao mesmo tempo. Os
meninos tinham liberdade de escolher os jogos que lhes agradassem, sempre e
quando não fossem física ou moralmente perigosos. Em segundo lugar, todos
os educadores deviam participar ativamente sem deixar, porém, de exercer
sua tarefa de vigilância. Dom Bosco não acreditava que isso atentasse à dig-
nidade do educador.45 Ele, de fato, pensava que fosse o melhor modo de con-
quistar a confiança dos jovens; acreditava que o pátio fosse uma das áreas em
que a presença do educador (“assistência”) era mais efetiva. Em terceiro lugar,
o próprio Dom Bosco aparecia normalmente no recreio e participava ativa-
mente dele. Isso ele fez até inícios da década de 1860. Quando não o pôde
mais fazer, aparecia de alguma maneira para “animar” o jogo. Surgindo uma
oportunidade, conversava com os jovens e deixava cair algumas “palavrinhas”
ao ouvido, isto é, palavras de incentivo, advertência, apelo etc.
Do ponto de vista pedagógico, esse tipo de passatempo possuía várias van-
tagens. Primeiro, beneficiava fisicamente os jovens. Segundo, beneficiavam-se
moralmente, pois o envolvimento nos jogos dissipava a tristeza, a preocupação,
os maus pensamentos e os problemas associados à ociosidade e ao perambular
ociosos pelo pátio. Em terceiro lugar, o jogo contribuía para criar um ambiente de
diversão, alegria e felicidade considerado por Dom Bosco como requisito prévio
para educar. Quarto, o comportamento informal e desinibido no jogo oferecia ao
educador a oportunidade de conhecer mais o jovem e o seu caráter. Quinto, a pre-
sença dos educadores nos jogos como “irmãos mais velhos”, quase como iguais,
elevava a moral dos jovens e promovia o espírito de família e confiança recíproca.

Outros recursos educativos


Além das atividades diárias de pátio, Dom Bosco servia-se também de
outros métodos para promover a alegria e reforçar o ambiente educativo.

Dom Bosco usa com frequência a expressão “jardim de entretenimento” (giardino di ricreazione)
44

para descrever o pátio do Oratório, mas o faz unicamente por motivos políticos e pragmáticos.
45
Uma das críticas feitas a Dom Bosco por padres e seminaristas durante o processo de aprovação
da Sociedade Salesiana e de suas Constituições era que brincavam com os jovens sem qualquer tipo de
decoro eclesiástico.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Excursões outonais
Eram passeios que aconteciam por ocasião da festa de Nossa Senhora do
Rosário, no primeiro domingo de outubro. Em 1848, Dom Bosco começou a
levar um grupo de jovens aos Becchi, lugar do seu nascimento, para a festa de
Nossa Senhora do Rosário, celebrada na capela que criara na casa de seu irmão
José, com uma entrada pelo pátio. Nessa ocasião aconteciam excursões aos ar-
redores. Essas saídas anuais continuaram até 1864, em itinerários sempre mais
amplos, com a banda e um grupo de atores, liderados pelo próprio Dom Bos-
co. Era uma recompensa pelo bom comportamento e pelas notas, e os jovens
competiam ao longo do ano para ter a honra de estar entre os escolhidos.46

Música
A música era algo comum no Oratório. Dom Bosco possuía dotes musi-
cais; apesar de não ter recebido educação musical formal, sabia solfejar, canta-
va com voz de tenor, tocava alguns instrumentos e ainda compunha canções
simples. O canto e a música coral foram logo introduzidos na programação
educativa. Naquela época, nas igrejas do Piemonte, o único canto ouvido,
além de simples canções piedosas cantadas pela comunidade ou por um gru-
po, era o solo masculino no ambão. Normalmente, a instrução musical era
recebida de forma individual e os coros eram criados por pessoas que se ti-
nham formado sob a direção de um mestre de coro.
Ainda em 1845, o próprio Dom Bosco começou a ensinar música aos
jovens em grandes grupos com a admiração de professores de música e edu-
cadores.47 Todos os meninos do Oratório recebiam algum tipo de instrução
musical, incluindo o canto, e o canto de um grupo de jovens no Oratório
era uma característica comum das celebrações religiosas. Foi organizado um
grande coro, que se converteu em instituição no Oratório. Na consagração
das igrejas de Maria Auxiliadora (1868) e do Sagrado Coração em Roma
(1887), os corais do Oratório executaram programas elogiados pela crítica.
A música instrumental também era importante. Tendo iniciado apenas com
um tambor, uma trombeta e um violão no prado Filippi em 1846,48 Dom
Bosco por volta de 1855 já tinha uma banda propriamente dita sob a direção

46
Para uma descrição mais longa e uma lista de obras que tratam das “excursões outonais”, cf.
o ensaio de Michael Mendl, “Comment on the fall outings as a synthesis of Don Bosco educational
method”. In: Memoirs of the Oratory of Saint Francis de Sales from 1815 to 1855. An Autobiography of
Saint John Bosco. Notes and Commentaries by Eugenio Ceria, Lawrence Castelvecchi and Michael
Mendl. New Rochelle: Don Bosco Publications, 1989, 332-338.
47
MO, 198.
48
MO, 151.

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Dom Bosco: história e carisma 2

de um bom músico, João Cagliero.49 A banda converteu-se em algo habitual


em muitas atividades religiosas e de entretenimento. Sobretudo como edu-
cador, Dom Bosco valorizava a música como uma influência humanística e
civilizadora sobre o coração e a imaginação dos jovens. Numa discussão com
um educador em Marselha, Dom Bosco insistia no valor da música: “Um
oratório sem música é como um corpo sem alma”.50

Capa de “L’orfanello” (O pequeno órfão), obra musical de João Cagliero (1863).

49
MB V, 346-347.
50
MB V, 347.

102

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Representações dramáticas
Dom Bosco também se serviu muito de representações teatrais com fi-
nalidade educativa e de entretenimento. Chamava-o de “teatrinho” (teatrino),
não só por modéstia, mas para distinguir essa forma de entretenimento edu-
cativo do teatro para o público. Desde os inícios, ele se serviu da apresentação
de diálogos, tendo escrito pessoalmente algumas pequenas peças. A casa da
fortuna e as cenas sobre o sistema métrico são um exemplo disso.51 A finalida-
de educativa do teatrinho, concebida por Dom Bosco, é expressa com clareza
nas normas escritas por ele.52 Até 1866, as representações aconteceram no
espaçoso refeitório do porão da igreja de São Francisco de Sales, e, depois,
na grande sala de estudo.53 Dom Bosco não podia permitir-se um teatro ou
salão de atos. O primeiro teatro-salão de atos foi construído pelo padre Rua
em 1895.

Conclusão
Padre Caviglia, testemunha ocular da vida vivida no Oratório, escreve
sobre a maneira como Dom Bosco tratava os jovens:

Falo de um tipo de bondade acolhedora, humilde, cordial, carinhosa e, às


vezes, paternal, maternal, fraternal. Não falo de um tipo de bondade con-
descendente, mas daquela que atrai as pessoas e procura viver com e para
essas pessoas: do tipo que cede lugar ao outro [...]. Apesar da grande carga de
trabalho suportado, [ele] sempre conservava uma parte da sua pessoa, do seu
pensamento, do seu coração, disponível para o mais insignificante, sem lhe
importar a hora ou o trabalho. Numa palavra, ele amava, e nós sentíamos o
poder do seu amor. O amor pelos jovens, expresso como amorevolezza [cari-
nho] é, certamente, um dos três pilares do seu método educativo.54

51
La casa della fortuna: rappresentazione drammatica, pel sacerdote Bosco Giovanni [ ]. Turim: Tip.
dell’Oratorio di S. F. di S., 1865, ver MB VIII, 443. Para as cenas escritas em 1849 por Dom Bosco sobre
o sistema métrico, cf. MB III, 623-652.
52
MB X, 1059-1061.
53
MB VI, 106.
54
A. Caviglia, Don Bosco: profilo, 91.

103

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Apêndice

ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS PARA OS INTERNOS


DO ORATÓRIO

As associações religiosas desejadas por Dom Bosco dividem-se em dois


períodos principais, cada um com seu contexto específico.
As primeiras surgiram no Oratório em resposta às necessidades dos
seus participantes. Foram a Companhia de São Luís e a Sociedade de Mú-
tuo Socorro. Associações mais tardias surgiram na Casa Anexa como res-
posta às necessidades espirituais e educacionais das comunidades de estu-
dantes e de aprendizes. Segue uma breve descrição das associações deste
segundo grupo.

Conferência “associada” de São Vicente de Paulo


As Conferências de São Vicente de Paulo foram fundadas em Paris
em 1833, por Frederico Ozanam e 7 companheiros. Foram criadas em Tu-
rim pela primeira vez em 13 de maio de 1850, sendo seu diretor o conde
Carlos Cays de Gilette e Caselette que, mais tarde, seria padre salesiano.
No verão de 1854, a epidemia de cólera chegou ao seu auge em Turim; foi
especialmente devastadora no bairro de Borgo Dora. Nessa ocasião, volun-
tários da Companhia de São Luís e um grupo de internos da Casa Anexa,
entre eles Miguel Rua e João Cagliero, uniram forças com a Conferência
local de São Vicente de Paulo para cuidar das vítimas da epidemia. Foi
uma grande manifestação de caridade cristã e uma prova do que os jovens
podiam conseguir.
A partir dessa experiência de serviço caritativo, Dom Bosco, atendendo
provavelmente ao pedido dos próprios jovens, depois de estudar o regula-
mento geral das Conferências, fundou uma Conferência de São Vicente de
Paulo entre os meninos mais velhos tanto da Companhia de São Luís quan-
to da Casa Anexa. Era um fato sem precedentes, por ser uma conferência

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

para gente jovem. Apesar disso, em 1856, foi reconhecida oficialmente pelo
Conselho Geral como Conferência “associada” de São Vicente de Paulo.55
Em 1857, a Conferência “associada” de São Vicente de Paulo absorveu a
Sociedade de Mútuo Socorro e, mais tarde, agregou à sua estrutura também a
Conferência de São Francisco de Sales que tivera início em 1854.

Conferência de São Francisco de Sales


Dom Bosco fundou esta pouco conhecida sociedade no outono de 1854
ou início de 1855. Correspondiam-lhe nos outros dois oratórios a Companhia
de São Luís e a do Anjo da Guarda. Sua finalidade era reunir os jovens mais
maduros e dedicados ao trabalho nos oratórios, apoiando-os. Os membros
mais estáveis eram os jovens mais regulares do Oratório (com 20 anos ou
mais); havia, também, o grupo dos “clérigos” (entre 18 e 20 anos); enfim, os
alunos mais velhos da escola do Oratório (de 14 a 17 anos).
Em fins dos anos de 1850, a Conferência de São Francisco de Sales foi
absorvida pela Conferência de São Vicente de Paulo. Esta manteve por mais
tempo os membros mais heterogêneos, pois incluía meninos do Oratório e
da Casa Anexa, estudantes, aprendizes e seminaristas.56

Transição na organização interna das associações juvenis


Chamará à atenção dos que leem as normas da Companhia de São Luís
e da Sociedade de Mútuo Socorro a variedade de cargos administrativos e dis-
ciplinares contemplados. O mesmo acontece com as alterações que se davam
nas comunidades de estudantes e aprendizes da Casa Anexa, como refletem
em suas normas. Contudo, ao assumir Dom Bosco o Oratório do Anjo da
Guarda em 1849 e com a diminuição gradual do pessoal que ali trabalhava,
cabe perguntar-se se os cargos de governo, assistência e administração que
tinham sido criados foram alguma vez desempenhados por alguém.
Em todo caso, entre 1850 e 1859, Dom Bosco tendeu a simplificar a
estrutura da comunidade e confiar mais nos grupos internos e associações, e,

55
MB V, 468-477. Para um estudo amplo dessa pequena, mas importante associação, cf. F.
Motto, “Le Conferenze ‘annesse’ di San Vicenzo d’ Paoli negli oratori di Don Bosco: ruolo storico
di un’esperienza educativa”. In: J. M. Prellezo (ed.), L’impegno, 468-492. Dom Bosco queria que se
criassem conferências em todos os seus oratórios (onde absorveriam ou somariam forças com os grupos
locais). A organização oficial das Conferências apoiou generosamente o trabalho de Dom Bosco em
todos os lugares.
56
Sobre a pertença, os fundos e as atividades, como foram comunicados ao Conselho Geral das
Conferências e anotados nos registros do presidente, conde Cays, cf. P. Stella, Economia, 266-267.

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Dom Bosco: história e carisma 2

portanto, nos próprios jovens. Eles exerciam influência espiritual no restante


da comunidade mediante o “exercício da caridade para com o próximo”.
Esse objetivo geral parece estar na base das associações juvenis promo-
vidas por Dom Bosco na Casa Anexa, especialmente na comunidade dos
estudantes. Funcionando secreta ou abertamente, essas associações eram, em
graus variados, experiências de “exercícios práticos da caridade para com o
próximo”, do tipo que enfim seria exercido pela Sociedade Salesiana.
Por exemplo, na tarde de 5 de junho de 1852, Dom Bosco e certo pa-
dre Guanti reuniram um grupo de 12 jovens que se comprometeram a rezar
todos os domingos, individualmente, as “Sete alegrias de Maria”.57 Em 26 de
janeiro de 1854, no contexto da festa de São Francisco de Sales, Dom Bosco
reuniu seus 4 jovens incondicionais: Artiglia, Cagliero, Rua e Rocchietti (16,
17 e 18 anos), e propôs-lhes “uma prova de exercício prático da caridade para
com o próximo”. Padre Rua, mais tarde, escreveu que desde aquela tarde os
que aceitavam a proposta eram conhecidos como “salesianos”.58
A carta de Domingos Sávio ao pai (5 de setembro de 1855) dá-nos uma
visão da atividade associativa com finalidade caritativa em Valdocco.59 Além
do grupo dos quatro “salesianos”, fundaram-se outras associações entre 1856
e 1859: 1) a Companhia ou Sociedade da Imaculada Conceição (1856); 2) a
Companhia do Santíssimo Sacramento (1857); 3) a Companhia do Pequeno
Clero (Piccolo clero) (1858); 4) a Companhia de São José (1859).

Companhia da Imaculada Conceição60


Dom Bosco atribui a Domingos Sávio a ideia da Companhia e a inicia-
tiva da sua fundação. Recorda:

Motivado pelo zelo na caridade que lhe era habitual, [Domingos] escolheu
alguns companheiros nos quais mais confiava e propôs-lhes unirem-se numa

57
Em um pedaço de papel que se conserva em ASC, Miguel Rua anotou os 12 nomes: Beglia
(Bellia), Buzzetti, Francisco Bosco, Cagliero, Francésia, Germani, Gianinati, Marchisi (aprendiz de
12 anos), Ângelo Sávio, Estêvão Sávio, Rua, Turchi (com idades entre 12 e 20 anos), além de Dom
Bosco e do padre Guanti. Padre Rua acabara de entrar como interno no Oratório e tinha 15 anos. Cf.
P. Stella, Economia, 262.
58
Em ASC, como também em P. Stella, Economia, 263. Contudo, acredita-se que o título
“salesiano” nesta nota de Rua foi acrescentado posteriormente.
59
Carta autógrafa transcrita em A. Caviglia, Opere e scritti IV, 86-87; a carta, um texto difícil, tam-
bém é discutida em A. Lenti, Life of Dominic Savio, 1-52, especificamente 23-24 e, em especial, nota 60.
60
Para um estudo mais amplo do tema, sobretudo em relação ao papel de Domingos Sávio na
fundação e organização da Companhia, ver A. Caviglia, Opere e scritti IV, 441-464.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

associação que se chamaria da Imaculada Conceição. Seu objetivo era garantir


[aos membros] a proteção da grande Mãe de Deus durante a vida e especial-
mente na hora da morte. Para realizar esse propósito, Sávio sugeria duas for-
mas: praticar e promover práticas de piedade em honra de Maria Imaculada
e comungar com frequência. Depois, de acordo com seus companheiros mais
estimados, redigiu um conjunto de normas. Enfim, após muito trabalho e
esforço, em 8 de junho de 1856, nove meses antes de sua morte, leu-as com
seus amigos diante do altar de Maria Santíssima.61

A biografia, depois desta afirmação, traz as atas da fundação que, exceto


pela lista inicial dos nomes, tem sua equivalência nas primeiras atas que se
conservam no Arquivo Salesiano e são citadas por Stella. As duas são transcri-
tas aqui à moda de comparação.

João Bosco, Vida de Domingos Sávio Manuscrito 63


(1859), 76-77 62
Nós, Domingos Sávio,… (seguem os no- Nós, José Rocchietti, Luís Marcellino, João
mes de outros companheiros): Bonetti, Francisco Vaschetti, Celestino Du-
rando, José Momo, Domingos Sávio, José
Com a finalidade de garantir para nós a Bongioanni, Miguel Rua e João Cagliero:
proteção da Imaculada Virgem na vida e Com a finalidade de garantir para nós a pro-
na morte, e com a finalidade de dedicar- teção da Bendita e Imaculada Virgem Maria
-nos inteiramente ao seu santo serviço; na vida e na morte, e com a finalidade de
tendo recebido os Santos Sacramentos e dedicar-nos totalmente ao seu santo serviço;
decididos a ser filial e constantemente de- tendo recebido os Santos Sacramentos e de-
votos de nossa Mãe; diante do seu altar e cididos a ser filial e constantemente devotos
perante nosso diretor espiritual, neste dia de nossa Mãe; diante do seu altar e perante
8 de junho, prometemos solenemente que o nosso diretor espiritual, neste dia 8 de ju-
com todas as nossas forças e capacidades nho, prometemos solenemente que com todas
procuraremos imitar Luís Comollo; obser- as nossas forças e capacidades: procuraremos
varemos perfeitamente as regras da casa; imitar Luís Comollo; observaremos perfeita-
edificaremos nossos companheiros admo- mente as regras da casa; edificaremos nossos
estando-os caridosamente, animando-os companheiros admoestando-os caridosamen-
com a palavra e o exemplo para que façam te, animando-os com a palavra e o exemplo
bom uso do próprio tempo. para que façam bom uso do próprio tempo.

61
Giovanni Bosco, Vita di Domenico Savio (1859), 76. In: OE XI, 226. Também: J. Canals; A.
Martínez Azcona (eds.), Juan Bosco, Obras fundamentales, 180.
62
OE X, 226. Cf. J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), Juan Bosco, Obras fundamentales, 180-181.
63
ASC A492.

107

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Dom Bosco: história e carisma 2

Na Vida de Domingos Sávio, Dom Bosco transcreve depois da ata funda-


cional os 21 artigos das normas com suas 7 emendas. Ele apresenta claramen-
te Domingos Sávio, de 14 anos, como o principal arquiteto da Companhia
e de suas regras.
José Bongiovanni (1836-1868) afirma diversamente na carta datada em
1857 e dirigida a Dom Bosco, em resposta ao seu pedido de informação para
a biografia de Sávio. Segundo cita Caviglia, Bongiovanni aos 20 anos, um
bom amigo de Sávio e mais tarde padre salesiano, escreve:

[Domingos Sávio] foi um dos fundadores, o quarto a aceitar a proposta, o que


fez com grande alegria. Não surpreende, pois Sávio, que se consagrara a Ma-
ria de corpo e alma no mês de maio anterior, não podia oferecer-lhe nada de
melhor do que entrar nessa sociedade. Dessa forma, ser-lhe-iam apresentadas
mais oportunidades para demonstrar a devoção a Maria que já conquistara
seu coração por inteiro. Ele cumpria as obrigações expressas em nossas regras
com fidelidade exemplar.64

Num ensaio monumental, Caviglia esforça-se bastante para refutar a


afirmação de Bongiovanni apresentando testemunhos de pessoas que tam-
bém estavam envolvidas, todas apoiando a concepção de Dom Bosco. Seria
preciso levar em consideração, porém, que, talvez, ninguém estivesse mais
envolvido do que Bongiovanni.65
Lemoyne, querendo combinar provavelmente a afirmação de Dom Bos-
co com vários testemunhos, oferece um cenário mais complexo, e escreve:

Certo dia da semana, coisa insólita, ninguém se aproximou para comungar [...].
O menino Celestino Durando estava presente [...]. Enquanto o acompanhava
[à escola], Durando disse-lhe [a Domingos]: “Percebeste esta manhã? Deve ter
sido muito triste para Dom Bosco”. Quando os dois voltaram para casa, deci-
diram, junto com os companheiros Bonetti, Marcellino, Rocchietti, Vaschetti
e Rua criar entre eles uma sociedade, cujos membros escolheriam um determi-
nado dia da semana para comungar, de modo que houvesse todas as manhãs al-
guns comungantes [...]. Domingos Sávio aderiu com entusiasmo a essa piedosa
associação e, aconselhado por Dom Bosco, pensou o que fazer para que fosse

64
A. Caviglia, Opere e scritti IV, 444. In: Summarium (coleção resumida de testemunhos dados
no processo de beatificação), 480. Testemunho escrito, número 14.
65
Dom Bosco elogiou padre Bongiovanni na quinta edição da Vida (1878). Esse dinâmico
salesiano, que faleceu repentinamente em 1868, fundou as Companhias do Santíssimo Sacramento e
do Pequeno Clero.

108

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

duradoura. Orientado, pois, pela sua caridade engenhosa, escolheu alguns dos
melhores companheiros e convidou-os a se unirem a ele para formar a pequena
Companhia que chamaram de Imaculada Conceição [...]. De acordo com seus
amigos, e com a ajuda eficaz de José Bongiovanni, redigiu um regulamento e,
depois de não poucos retoques, em 8 de junho de 1856, nove meses antes de
sua morte, lia-o com eles diante do altar de Maria Santíssima.66

O mesmo Caviglia escreve de forma resumida em outro lugar:

Guiados unicamente pelos testemunhos que possuímos, não podemos estabe-


lecer com certeza, e muito menos com unanimidade, a história da fundação
da Companhia da Imaculada Conceição. Isso é verdade quanto ao seu autor
original, que é o próprio Sávio, suas finalidades e a data de fundação. A razão
para tal incerteza deve-se buscar no fato de os motivos que levaram à criação
da Companhia serem confidenciais e secretos, além de restritos a alguns ami-
gos escolhidos. Só Dom Bosco seria capaz de nos contar a verdadeira história.
Dessa forma, devemos nos guiar pelo que ele escreve na Vida. Quanto a Sávio,
a fundação e as atividades da Companhia representam o ponto culminante de
sua vida santa e seu maior e mais nobre sucesso [...].67

Inicialmente, a existência da Companhia não era de domínio público.


Seus membros eram um grupo selecionado, comprometido com um apos-
tolado solidário. Devem ser considerados como os precursores da Sociedade
Salesiana num período em que ela ainda não existia oficialmente.
Na reunião de 27 de julho de 1856, João Batista Francésia foi admitido
como membro. Estavam presentes: os clérigos Rua, que presidia, e Cagliero,
além dos estudantes Bonetti, Vaschetti, Marcellino, Durando e Bongiovanni.
Sávio estava ausente porque Dom Bosco o mandara à sua casa para descansar,
esperando que recobrasse a saúde.

Companhia do Santíssimo Sacramento


Foi fundada em fins de 1857 pelo clérigo José Bongiovanni, entre os estu-
dantes, por sugestão de Dom Bosco e segundo sua inspiração. A finalidade era
promover a recepção regular dos sacramentos e a devoção à Sagrada Eucaristia.68

66
MB V, 479-480.
67
A. Caviglia, Ricordo, 117, nota 2.
68
Sobre a origem, normas, fundador e primeiro diretor, o clérigo José Bongiovanni, ver MB V,
759s. Outras passagens: duas conferências de Dom Bosco: MB VI, 185-189. Exemplo de atas: MB
VIII, 1056ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Parece que essa associação adotou como seu objetivo principal o da


Companhia da Imaculada Conceição. Durante algum tempo, este último
grupo, sempre pequeno e seleto, foi usado principalmente como instrumento
secreto de finalidades educativas.

Companhia do Pequeno Clero


José Bongiovanni também fundou a Companhia do Clero Infantil (pe-
queno clero) em 2 de fevereiro de 1858, entre os estudantes, à semelhança
da Companhia do Santíssimo Sacramento, e quase uma sua seção. Suas fi-
nalidades eram garantir que as cerimônias religiosas fossem celebradas cor-
retamente e promover vocações ao sacerdócio entre os melhores estudantes.
“Dedicavam-se ao serviço do altar na festa da Purificação de Maria.”69

Companhia de São José


O clérigo João Bonetti fundou a Companhia de São José por decisão
de Dom Bosco e sob a sua orientação. A finalidade era promover a prática
da vida cristã virtuosa entre os aprendizes.70 Com o aumento dos aprendizes,
a associação dividiu-se em duas seções, uma para os meninos mais novos e
outra para os jovens.

À moda de conclusão

Características gerais
Neste acúmulo de atividades associativas, nunca em contraposição, mas
frequentemente sobrepondo-se umas às outras, podem-se identificar as se-
guintes características gerais:

1. Eram inspiradas e incentivadas conjuntamente por Dom Bosco e


por jovens entusiasmados e clérigos/seminaristas orientados por ele.
2. A aspiração comum era “o exercício da prática da caridade para
com o próximo”, especialmente nos inícios e em meados da déca-
da de 1850; mais tarde, as preocupações espirituais e educativas da
Casa Anexa tornaram-se mais evidentes.
3. Os mesmos nomes aparecem entre os dirigentes: um grupo de
nomes familiares que estava se formando ao redor de Dom Bosco.
69
Sobre a origem, normas, importância e dificuldades, ver MB V, 788ss. Quanto aos membros
ridicularizados, cf. MB VIII, 348ss.
70
Sobre a origem, associados, estímulo e frutos, ver MB VI, 193ss.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

José Bongiovanni era muito ativo na organização e direção. Rua


proporcionava uma ligação com Dom Bosco etc.
4. Nos anos de 1850, os líderes e membros pertenciam à mesma
faixa etária; mais tarde, os líderes eram mais velhos e mais bem
formados, e os membros, mais jovens.
5. Antes da fundação da Companhia de São José, as várias associações
eram distinguidas pela finalidade específica, e não pelo grupo de
pertença dos seus membros. Desse modo, por exemplo, todos po-
diam inscrever-se em qualquer associação se estivessem interessados
no que nela se fazia, e um jovem podia pertencer a uma ou várias
associações. Mais tarde, devido à evolução da instituição, foram es-
tabelecidas as categorias, e os estudantes se converteram no elemen-
to predominante em todas elas, exceto na Companhia de São José.
6. A associação que permaneceu em funcionamento por mais tem-
po, como já mencionado, foi a Conferência “associada” de São
Vicente de Paulo, que aglutinou as antigas associações oratorianas
da Sociedade de Mútuo Socorro e a Conferência de São Francisco
de Sales.
7. As associações serviam não só como instrumentos de ação cari-
tativa ou educativa, mas como meios de seus membros levarem
vida cristã. As práticas especiais de piedade, instrução e orientação
espiritual eram familiares aos seus membros.

Características especiais
As várias associações também respondiam a necessidades específicas e
apresentavam traços característicos:

1. A Companhia de São Luís foi criada no Oratório como meio de


levar vida cristã e fazer apostolado, inicialmente para os meninos
melhores, mas com a intenção de chegar ao maior número pos-
sível. O programa de vida cristã era baseado na imitação de São
Luís, mas na prática era o que se esboçava em O jovem instruído
(1847). Funcionava também como um grupo de ação cristã, como
se demonstrou na epidemia de cólera.
2. Inicialmente, o Oratório dos meninos foi quem proporcionou
iniciativa e também energia, embora a Companhia de São Luís
estivesse aberta aos internos da casa. Em fins dos anos de 1850,

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Dom Bosco: história e carisma 2

porém, foram a casa e seus internos a proporcionarem iniciativa


e energia ao Oratório. Com as novas companhias, a Casa Anexa
oferecia ao Oratório não tanto os membros, quanto o pessoal para
a catequese e outras atividades, ao menos nos finais de semana.
3. As novas associações eram fruto de preocupações educativas e es-
pirituais na Casa Anexa. Assim sendo, a Companhia da Imacu-
lada Conceição surgiu para promover a Santa Comunhão. Mas
como seus membros eram os melhores meninos, a Companhia
serviu rapidamente como extensão da atividade educativa de Dom
Bosco, especialmente em épocas como aquelas em que o pessoal
era escasso. Para que isso fosse concretizado, o grupo funcionava
como uma sociedade quase secreta. Nesse papel, pode ser compa-
rada à experiência das escolas dos jesuítas, nas quais grupos seletos
eram usados com o propósito de formação cristã. O caráter secreto
não favorecia que a Companhia cumprisse a sua intenção original,
como, por exemplo, em relação à recepção da comunhão por tur-
nos para dar exemplo à comunidade.
4. Para essa finalidade, e com o incentivo de Dom Bosco e nova-
mente com o espírito empreendedor do clérigo Bongiovanni, foi
fundada a Companhia do Santíssimo Sacramento. O objetivo es-
pecífico desse grupo era dar exemplo na recepção dos sacramen-
tos, promover a devoção à Eucaristia em geral e ajudar no altar por
meio da Companhia do Pequeno Clero.
5. Pelo seu explícito programa “devocional”, a Companhia do San-
tíssimo Sacramento, de modo especial, sofreu duros ataques de
alguns grupos “anticlericais” do Oratório de Valdocco. O anticle-
ricalismo que prevalecia nessa época (anos de 1860, depois da uni-
ficação da Itália) encontrou algum eco em segmentos do Oratório
de Valdocco como reação às práticas piedosas. Os membros da
companhia foram ridicularizados e chamados de “bongiovannisti”.
Dom Bosco manteve-se firme no seu apoio à Companhia e na
defesa de sua utilidade pedagógica.71
6. As companhias tinham, portanto, um lugar no conjunto do sis-
tema educativo em vista da sua ação contagiosa e da colaboração

71
MB IX, 455.

112

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

quando havia escassez de pessoal. Entretanto, além dessas consi-


derações “utilitaristas”, elas promoviam valores religiosos e espi-
rituais na comunidade (dando exemplo) como também em seus
membros. Esse é o “cristianismo explícito” que Dom Bosco exigia
como parte integrante da vida espiritual.
7. Justamente pela sua função no interior de um sistema específico,
as companhias agiram historicamente apenas nas instituições sa-
lesianas sem promover um sistema de afiliação externa. Mesmo a
Sociedade de Mútuo Socorro, cujo objetivo era amplamente com-
partilhado, nunca foi além dos limites da Companhia de São Luís.
Isso se refere também à Conferência “associada” de São Vicente
de Paulo, embora este grupo fosse afiliado ao sistema mais amplo
das conferências.
8. O internato salesiano (collegio) garantia a sobrevivência e conti-
nuidade das “quatro companhias”. Em sua evolução e ramificação,
passaram a fazer parte do programa educativo salesiano.

A CONVERSA DE DOM BOSCO COM O MINISTRO


URBANO RATTAZZI, SOBRE A EDUCAÇÃO DOS
JOVENS E O EPISÓDIO DA GENERALA, NARRADO
NA HISTÓRIA DE BONETTI (1854-1855)

A conversa de Dom Bosco com o ministro Rattazzi


O “relatório” desta conversa de Dom Bosco com o ministro de Justiça
e Graça, Urbano Rattazzi, sobre o método educativo do Oratório, apareceu
pela primeira vez na obra do padre Bonetti, Storia dell’Oratorio di San Fran-
cesco di Sales.72
É significativo que nem a “conversa” nem o episódio da Generala, da-
tados por Bonetti em 1854 e 1855, fossem mencionados por Dom Bosco
nas Memórias do Oratório, apesar de as Memórias chegarem até 1854 e ter o
sistema educativo como um de seus temas principais.

72
Publicada em capítulos no Bollettino Salesiano, outubro e novembro de 1882, p. 171-172 e
179-180. O texto italiano da conversa na Storia, do Boletim Salesiano, foi editado criticamente e com
comentários, por Antônio da Silva Ferreira, “Conversazione con Urbano Rattazzi (1854)”. In: G.
Bosco, Scritti pedagogici e spirituali. Roma: LAS, 1987, 53-69.

113

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Dom Bosco: história e carisma 2

O colóquio entre Rattazzi e Dom Bosco, tal como editado por Bonetti,
tem o estilo de um artigo de revista escrito para fazer publicidade, partilhan-
do da mesma preocupação educativa das Memórias e do restante da Storia.
Bonetti escreve em 1882, vinte e oito anos depois do fato. Deve ter
obtido o essencial do episódio e do diálogo do mesmo Dom Bosco; é menos
provável que a fonte fosse padre Francésia, que afirma ter estado presente.
Dom Bosco escrevera seu pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo alguns
anos antes (1877) e, àquela época, refletia sobre vários aspectos de sua obra
e os horizontes de expansão do apostolado salesiano. Entretanto, a forma de
Dom Bosco recordar e narrar episódios dos primeiros tempos do Oratório é,
frequentemente, “imaginativa”, como se documenta, por exemplo, na crôni-
ca do padre Júlio Barberis.
Está comprovado que Rattazzi visitou o Oratório, pela primeira vez,
provavelmente em 1854. Naquele momento, Rattazzi era ministro de Justiça
e Graça no governo La Mármora. Era advogado e trabalhara na reforma do
Código Penal. Estava interessado especialmente em delinquentes juvenis e,
portanto, no trabalho humanitário e “reformatório” de Dom Bosco com os
jovens. Nessas circunstâncias, é mais provável que sua conversa tenha tocado
o tema da educação dos jovens.
Contudo, não parece verossímil que Dom Bosco lhe tivesse explicado o
Sistema Preventivo, citando quase ao pé da letra o que mais tarde escreveria
no pequeno tratado de 1877. Teria sido algo prematuro, se não anacrônico
em 1854!

O episódio da Generala
Tanto na Storia como em Cinque lustri, a conversa com Rattazzi conti-
nua com o episódio da Generala.73 Bonetti situa-o em 1855, apresentando-o
como exemplo de que o “sistema” funciona. Cita como referência, não Dom
Bosco, mas um esboço biográfico do Oratório, do conde Carlos Conestabile
(1878), com algum material adicional. Bonetti também menciona alguns
registros públicos.
Deve-se ter em consideração o seguinte:

1. Não surgiu nenhum registro público, nem do ministério, nem da


Generala, nem da “Crônica oficial” referida por Bonetti [p. 322].

73
A Generala era uma “moderna” prisão correcional para jovens, construída em 1845, como
parte das reformas do rei Carlos Alberto. Situava-se uns 16 quilômetros a sudoeste de Turim, na estrada
que levava à pequena localidade de Stupinigi.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

2. Pesquisas posteriores entre os salesianos de Stupinigi não deram


certeza que confirmasse o assunto.
3. Não existem evidências de que Dom Bosco tivesse sequer men-
cionado o episódio. Bonetti não cita Dom Bosco, mas o conde
Conestabile como sua fonte. Dom Bosco, porém, supostamente,
deixou que Bonetti publicasse a história no Boletim Salesiano.
É difícil crer que o ministro Rattazzi ou o diretor do reformatório
tivessem posto em risco sua reputação e o seu trabalho autorizando uma
aventura tão arriscada como a descrita por Bonetti, com cerca de 300 me-
ninos sem vigilância.

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Capítulo IV

DOM BOSCO, DIRETOR ESPIRITUAL


NA EDUCAÇÃO DOS JOVENS

Para descrever melhor o tipo de direção espiritual de Dom Bosco edu-


cador, aqui será apresentado primeiramente o ideal de santidade oferecido
aos seus meninos na casa do Oratório, especialmente à comunidade de estu-
dantes, ideal que demonstrou sua validade para todo jovem com quem um
educador salesiano vier a entrar em contato. Num segundo momento, será
tratada a importância dada por Dom Bosco aos “novíssimos” como meio de
educação e itinerário de espiritualidade.1

1. O ideal de santidade proposto aos jovens.


Meios para alcançá-lo
Domingos Sávio encarna a realização do ideal. Stella estudou a origem e
a história desta espiritualidade juvenil e o modo que Dom Bosco usava para
apresentá-la aos jovens como programa de vida de santidade, analisando-a a
partir de diversos pontos de vista e em várias de suas obras, sendo a biografia
de Domingos Sávio, talvez, a mais relevante.
Segundo Stella, a Vida de Luís Comollo (1844) oferece um ideal de vida
cristã, “um exemplo para qualquer um, leigo ou religioso”. O jovem instruído
(1844) apela para que os meninos tomem o caminho da santidade enquanto
são jovens e indica-lhes o caminho. A tríade biográfica formada pelas vidas
de Domingos Sávio (1859), Miguel Magone (1861) e Francisco Besucco (1864)
exemplificam o modo de Dom Bosco orientar esses jovens de diferentes con-
dições espirituais e sociais no caminho da santidade. Sobre isso, as três bio-
grafias completam-se reciprocamente. De maneira negativa, a lamentável e

Para a primeira parte, seguimos P. Stella, Spiritualità, 205-275, e A. Lenti, Don Bosco’s second
1

great hagiography, “The life of young Dominic Savio”, JSS 12 (2001), 1-52.

116

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

sórdida história de Valentino (1866) descreve a destruição do ideal juvenil de


um jovem.2
Depois de algumas reflexões de índole metodológica e histórica, Stella
analisa determinadas “virtudes importantes” na forma de Dom Bosco educar
os jovens na santidade. Entre elas, ocupam lugar de destaque a obediência e
a pureza.3 Ele dedica, também, um espaço considerável à oração e aos sacra-
mentos, insistindo na confissão, na comunhão e, em geral, numa vida devota
como apoio na luta para chegar à santidade.4 Stella conclui com algumas
palavras significativas:

Luís Gonzaga, Luís Comollo, Domingos Sávio, Miguel Magone e Francisco


Besucco desenvolveram um gosto extraordinário pela oração em idade preco-
ce. Esse gosto cresceu, enriquecido com dons do Senhor, e se tornou patente
com sinais do grau de perfeição que alcançaram.5
Domingos Sávio destaca-se como a encarnação desse ideal.

A proposta de Dom Bosco de santidade juvenil articulada na


biografia de Domingos Sávio
Quinze anos após a edificante Vida de Luís Comollo (1844), Dom Bos-
co publicou a Vida do jovem Domingos Sávio (1859). Envolvido em sua
grande experiência educativa, Dom Bosco desejava apresentar para os seus
meninos o exemplo de alguém como eles que alcançara a santidade: o ideal
levado à prática.
A estrutura da biografia é clara. Vistos pelos seus primeiros professores
de Murialdo, Castelnuovo e Moriondo, os primeiros anos da vida de Domin-
gos foram verdadeiramente edificantes (capítulos 1-9). No capítulo central
da biografia (capítulo 10), Domingos decide “ser santo”, dando assim nova
orientação à sua vida toda. Os capítulos seguintes (11-18) descrevem a prá-
tica heroica da virtude, o zelo pela salvação dos outros, a caridade fraterna, a
devoção, o espírito de penitência, as amizades espirituais; Dom Bosco fala,
em seguida, de graças especiais que foram concedidas a Domingos e relata
vários fatos extraordinários: casos de arrebatamento, êxtase e oração mística
(capítulo 19). A descrição dos últimos dias de Sávio, sua morte em odor
de santidade (capítulos 20-24) e os testemunhos adicionais dessa santidade
2
Cf. P. Stella, Spiritualità, 206-215; F. Desramaut, Don Bosco, 694-696.
3
Cf. P. Stella, Spiritualità, 227ss.
4
Cf. P. Stella, Spiritualità, 275ss; 303ss.
5
P. Stella, Spiritualità, 342.

117

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Dom Bosco: história e carisma 2

(capítulos 25-26) demonstram que, na verdade, ele era modelo para todos e
candidato à canonização.6

Domingos conhece Dom Bosco nos Becchi e matricula-se


como estudante no Oratório (1854)
O encontro “decisivo” de Domingos Sávio com Dom Bosco não foi algo
fortuito. Em meados da década de 1850, Dom Bosco era bastante conhecido
naqueles lugares, inclusive pelas suas excursões anuais de outono, quando le-
vava os seus jovens. Ele tinha recrutado ou aceitado vários meninos da região
de Castelnuovo.
Dom Bosco relata as circunstâncias do encontro. Padre José Cugliero,
professor de Sávio em Mondônio, falara-lhe de um aluno, “verdadeiro São
Luís”. Concordaram que o menino se encontraria com Dom Bosco nos Bec-
chi em outubro, quando chegasse com seus jovens para celebrar a festa de
Nossa Senhora do Rosário na excursão anual. Domingos, acompanhado do
pai, participou da reunião. Era o dia 2 de outubro de 1854.7
O “bom tecido” estava agora nas mãos de um alfaiate competente para
fazer “uma bonita roupa para Nosso Senhor”. Domingos entrou no Orató-
rio em 29 de outubro de 1854 e o deixaria, depois de uma permanência de
apenas vinte e oito meses, no dia 1o de março de 1857. Morreria nove dias
depois em sua casa de Mondônio. Quando Domingos, um pequeno garoto
de 12 anos, enfermiço e grácil, chegou ao Oratório no outono de 1854, a epi-
demia de cólera que se estendera sem controle e causara numerosas vítimas,
especialmente em Turim, estava recuando; Domingos gostaria de unir-se ao
grupo que assistia os afetados pela calamidade.
Na cena política, as leis de supressão das ordens religiosas e do confisco
das propriedades da Igreja eram debatidas no Parlamento e, em breve, seriam
aprovadas e assinadas pelo rei Vítor Emanuel II. Na frente religiosa, Dom
Bosco estava totalmente envolvido, através da imprensa (as Leituras Católi-
cas), numa amarga polêmica contra os valdenses, que, com a Constituição,
obtiveram liberdade de culto e faziam um proselitismo combativo.
No Oratório, como parte do seu projeto de construções, Dom Bosco
construíra a igreja de São Francisco de Sales em junho de 1852. Em 1853-
1854, terminara a primeira parte de um novo edifício (“a casa de Dom Bos-
co”, a nova “Casa Anexa ao Oratório”), com a matrícula de 65 internos para
o curso de 1854-1855. A construção continuou durante a permanência de

6
Cf. J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio. J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.). Juan
Bosco, Obras fundamentales, 217-220. É citada uma carta do pai de Domingos na qual escreve que seu
filho lhe aparecera, garantindo que estava no paraíso.
7
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 143-146.

118

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Domingos no Oratório. A antiga casa Pinardi foi demolida em 1856 para dar
lugar a uma segunda seção da casa de Dom Bosco. O número dos internos
subiu a 153. Quando, em 1o de março de 1857, Domingos deixou o Orató-
rio para não mais voltar, os internos eram 199.
Enquanto isso, a principal preocupação de Domingos era ser um bom
tecido nas mãos do alfaiate, e, obviamente, continuar seus estudos secundá-
rios para o sacerdócio.

Progresso até a santidade, sob a orientação de Dom Bosco


Em 8 de abril de 1849, Domingos fizera sua primeira comunhão aos 7
anos de idade na paróquia de Castelnuovo.8 Nessa ocasião tomara duas reso-
luções importantes: “Meus amigos serão Jesus e Maria” e “Antes morrer que
pecar”. O cardeal Cagliero, que havia três anos fizera sua primeira comunhão,
atesta a devoção de Domingos:

O povo de Castelnuovo d’Asti estava impressionado com a devoção de Do-


mingos, quando comungou pela primeira vez na Páscoa de 1849. Seu com-
portamento exemplar, seu espírito de piedade e devoção eram extraordinários
para um menino de 7 anos. Eu estava presente; participava da cerimônia, pois
era a terceira vez que comungava pela Páscoa.9

Sobre o primeiro encontro com Domingos nos Becchi, em 1854, Dom


Bosco escreve:

“Logo percebi naquele jovenzinho um coração totalmente de acordo com


o espírito do Senhor; fiquei não pouco admirado ao considerar o quanto a
divina graça já o tinha enriquecido, apesar da sua tenra idade”.10

Os propósitos de Domingos e estas palavras de Dom Bosco iluminam


seu estilo anterior de vida e também são presságios de sua vida no Oratório.
Parágrafo após parágrafo, a biografia é um registro do itinerário de Domingos
para a santidade.
A frase que provavelmente ele leu nos aposentos de Dom Bosco, “Dai-
-me almas e ficai com o resto” e sua própria consagração a Nossa Senhora no
dia 8 de dezembro de 1854, por ocasião da definição do dogma da Imaculada
Conceição, marcam o início de um combate incessante.11 Escreve Dom Bosco:

8
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 135s.
9
J. Cagliero, Summarium, 132-133; A. Caviglia, Ricordo, 101.
10
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 145.
11
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 147-148.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Depois de se colocar sob a proteção de Maria, a vida e a conduta de Domin-


gos tornaram-se tão edificantes, que decidi tomar nota de fatos tão virtuosos,
para não esquecê-los [...]. Acumulei tal quantidade de fatos exemplares e vir-
tuosos, todos merecedores de serem apresentados ao leitor, que decidi narrá-
-los de acordo com o tema em vez de cronologicamente [...]. Comecei falando
de seus estudos de latim [para o sacerdócio], pois foi esse o motivo principal
pelo qual ele foi admitido nesta casa.12

Início dos estudos secundários


Os estudos secundários (gimnasio) compreendiam cinco anos, segundo
a reforma escolar de Boncompagni (1848). A lei permitia que pessoas ou ins-
tituições ministrassem aulas particulares, desde que cumprissem os requisitos
estabelecidos para as escolas públicas, especialmente no que se referia aos
programas e à preparação dos professores.

Domingos Sávio e Maria Imaculada


num quadro do artista Pedro Fávaro (1959).

12
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 148.

120

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Quando Domingos ingressou no Oratório em 1854, este ainda não con-


tava com qualquer programa escolar. Os estudantes iam às escolas particu-
lares dos professores Carlos José Bonzanino (†1888) e padre Mateus Picco
(1812-1880), que admitiam gratuitamente os alunos de Dom Bosco. A esco-
la do professor Bonzanino oferecia a seção inferior dos cinco anos da escola
secundária, e a do padre Picco a superior.
Domingos uniu-se ao grupo que ia à escola do professor Bonzanino. Os
estudantes reuniam-se à entrada; Domingos repreendia frequentemente os
que se atrasavam; sob a supervisão de um guia de confiança, os “meninos de
Dom Bosco” iam à escola duas vezes por dia.
Como Domingos já iniciara o estudo de latim em Mondônio com o
padre Cugliero e por causa de sua diligência e vontade foi capaz de fazer dois
anos em um: 1o e 2o do gimnasio (ou gramática).

Fatos edificantes
Durante o primeiro ano no Oratório, Dom Bosco recorda com detalhes
a heroica intervenção de Sávio para deter uma briga entre dois companheiros
e conseguir que se reconciliassem. Ele também fala da conduta exemplar de
Domingos no caminho para a escola e da sua contínua recusa aos apelos dos
companheiros para ir brincar em vez de voltar diretamente para casa.13 Do-
mingos vivia muito atento para ajudar seus companheiros de outras formas,
com o bom exemplo, com preocupação e zelo, dando conselhos aos novos,
ajudando na catequese etc.
João Roda-Ambrè, aprendiz que também entrou no Oratório em 1854,
testemunhava no processo apostólico de beatificação:

Conheci o Servo de Deus em 1854, quando fui admitido no Oratório. O


Venerável Dom Bosco confiou-me a ele para que me orientasse durante os
primeiros dias e me dissesse o que devia fazer. Passou os primeiros dias quase
inteiramente ao meu lado e fui sempre objeto de suas atenções e preocupação.
Foi essa a tarefa que lhe fora indicada pelo Venerável [Dom Bosco]. Gostaria
de acrescentar que, quando entrei no Oratório, desconhecia completamente
as orações que um bom cristão deve conhecer; nunca me tinha confessado ou
comungado. Devo ao zelo do servo de Deus ter começado a receber os santos
sacramentos uma vez por semana e, mais tarde, quase diariamente.14

13
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 150-153.
14
Summarium, 22 e 55; A. Caviglia, Ricordo, 15.

121

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em um de meus primeiros dias no Oratório, enquanto Sávio e eu jogávamos


bochas, deixei escapar uma blasfêmia, hábito que adquirira ao viver sem os
cuidados paternos, educação ou instrução. Logo que Sávio ouviu a blasfêmia,
parou de jogar e reagiu instintivamente com um suspiro de dor e surpresa.
Aproximou-se de mim e da forma mais amável insistiu que eu fosse sem de-
mora confessar-me com Dom Bosco. Fiz isso imediatamente, e sua admoes-
tação resultou tão útil que, desde então, não voltei a blasfemar.15

A “segunda conversão” de Sávio: uma mudança na busca da santidade


e na vida espiritual
Seis meses depois de chegar ao Oratório, talvez em abril de 1855, Do-
mingos viveu algo semelhante a uma segunda conversão. Uma homilia, pro-
vavelmente de Dom Bosco, sobre “como é fácil chegar à santidade” converteu
o seu propósito inicial em orientação para uma nova vida. Ele mesmo se
expressa nestes termos:

Sinto como um desejo e uma necessidade de fazer-me santo. Eu nunca ima-


ginara que alguém pudesse chegar a ser santo com tanta facilidade; agora,
porém, vendo que alguém pode ser santo mesmo sendo alegre, quero absolu-
tamente e tenho absoluta necessidade de ser santo.

Sentia que seria um completo fracasso caso não se transformasse em


santo. Ao ouvir de Dom Bosco que “Domingos” significa “do Senhor”, res-
pondeu: “Vê, até o meu nome diz que sou de nosso Senhor”.16
Em seguida, Dom Bosco traçou-lhe um itinerário de vida espiritual, de
santidade através da prática da caridade.

A primeira coisa que lhe aconselhou para chegar a ser santo foi que trabalhas-
se para conquistar almas para Deus, pois não existe coisa mais santa na vida
do que cooperar com Deus na salvação das almas, pelas quais Jesus Cristo
derramou até a última gota do seu preciosíssimo sangue.17

A proposta de uma espiritualidade para os jovens serve de base hagiográ-


fica de toda a história. A partir desse momento, quase toda a biografia des-
creve a ascensão de Domingos à santidade através do amor ardente e prático

15
Summarium, 55 e 220; E. Ceria (ed.), San Giovanni Bosco, Il beato Domenico Savio allievo
dell’Oratorio di San Francesco di Sales. Turim: SEI, 1954, 82.
16
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 156.
17
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 157.

122

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

a Deus e ao próximo. Corrige um jovem que blasfemara, expressa seu desejo


de ser missionário e instrui outros meninos na fé. E quando um companheiro
o repreende: “O que isso tem a ver contigo?”, a resposta de Sávio foi: “Tem
a ver comigo, porque Jesus derramou seu sangue por nós e todos nós somos
irmãos”.18
Esse tema é novamente mencionado um pouco mais adiante: “O pen-
samento de conquistar almas para Deus estava sempre em sua mente”: ele
animava o recreio com conversas agradáveis; dissuadia os companheiros de
gazetearem a aula para ir nadar; criou, com alguns bons amigos, um grupo
dedicado aos companheiros volúveis e os animava a receber os sacramentos.19
O ardoroso espírito de oração de Sávio e sua devoção a Maria, especial-
mente durante o mês de maio, torna-se mais intenso. Fala de Maria e convida
seus companheiros a honrá-la. Organiza uma pequena rifa para arrecadar
fundos em vista de um altar em honra de Maria, no dormitório.20
Ao falar do espírito de piedade de Domingos, Dom Bosco enuncia ou-
tro princípio importante de vida espiritual para os jovens: os sacramentos.
“A experiência comprova, sem deixar dúvidas, que a confissão e a comunhão
são fontes de força espiritual para todo jovem”, escreve Dom Bosco, que
continua a descrever o uso regular que Domingos fazia dos sacramentos da
confissão e da comunhão. Domingos começou escolhendo um confessor fixo
que o iria orientar na vida espiritual. Recebia a comunhão, cada dia com um
propósito diferente, e vivia em união com Cristo com grande alegria.21
Por amor a Cristo, Domingos tinha o desejo ardente de fazer penitência
do tipo que castiga o corpo. Dom Bosco proibiu-lhe esse tipo de penitência
e recomendou “obediência” e “suportar insultos, calor, frio, cansaço, vento,
chuva e todos os males de uma saúde frágil”, sábia orientação para a vida
espiritual dos jovens.22

Verão de 1855
Dom Bosco dissuadia seus jovens de passarem as férias em família, pois
acreditava que ficariam expostos a perigos morais e espirituais. Animava-os a
ficar no Oratório e assegurava-se de que eles desfrutassem desse tempo. Do-
mingos queria ficar, mas Dom Bosco afastou essa ideia. Terminada a escola

18
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 159.
19
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 162ss.
20
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 166ss.
21
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 169ss.
22
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 174ss.

123

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Dom Bosco: história e carisma 2

em meados de julho, mandou-o à família para as férias de um mês, pois não


passara bem e precisava de repouso. Domingos esteve parte do mês com a
família, ocupado em entreter e ensinar os meninos do lugar, como também
os “irmãos menores”.23
Ao voltar das férias em meados de agosto, e com bastante boa saúde,
Domingos inteirou-se de que a cólera que se reavivara durante o verão estava
amainando. Instalou-se e organizou as aulas do ano letivo; enfim, foi ver
Dom Bosco, pois trazia um pedido de seu pai em relação à sua irmã Remon-
dina. Numa carta que escreve ao pai, conta-lhe da conversa de uma hora com
Dom Bosco:

[Sem data, mas com carimbo de 5 de setembro de 1855]


Meu querido pai:
Tenho uma notícia muito interessante, mas primeiro deixe-me que lhe fale
de mim. Tenho passado bem desde a minha volta, graças a Deus, e neste
momento estou perfeitamente bem de saúde. Espero que o senhor e toda
a família também estejam bem. Estou fazendo grandes progressos em meus
estudos, e Dom Bosco está sempre mais contente comigo.
Agora, a boa notícia. Estive a sós com Dom Bosco por uma hora inteira,
algo não comum, já que até agora não estivera com ele mais do que dez mi-
nutos seguidos. Falei-lhe de várias coisas, inclusive de uma associação para a
proteção contra a cólera. Disse-me ter havido um novo surto e que, não fosse
o frio intenso que estamos a passar, ainda causaria muito dano. Dom Bosco
tornou-me membro [da associação], que agora é só para rezar.
Falei-lhe também de minha irmã [Remondina] como o senhor me pediu. Ele
sugere que a leve à sua casa [nos Becchi] na festa de Nossa Senhora do Rosá-
rio, para que ele tenha uma ideia da sua educação e de suas habilidades, e o
senhor com ele possam chegar a uma decisão.
Isso é tudo o que tenho no momento. Mando lembranças ao senhor e a toda
a família, ao meu professor padre Cugliero e também para André Robino e
meu amigo Domingos Sávio, de Ranello.
Seu dedicado e amoroso filho, Domingos Sávio.24

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 189ss.


23

A passagem da carta em que fala da cólera e da associação é pouco clara. Creio que Domingos
24

escreve dizendo que falou com Dom Bosco sobre o grupo (associação) que estivera ativo durante o
apogeu da epidemia do ano anterior. Talvez, ele sugira que o grupo voltasse a se reunir e que lhe seria
permitido unir-se ao grupo. Dom Bosco respondeu dizendo que não era necessário, pois apesar do
recente surto, a cólera estava sendo contida pelo frio. Contudo, permitiu que Domingos se unisse ao

124

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Amigos especiais
Ao chegar ao Oratório, no outono de 1854, Domingos fez-se amigo
de um bom menino, João Massaglia, que entrara no ano anterior.25 Fica-
ram grandes amigos e mantiveram uma relação espiritual que se fortaleceu
durante o verão que passaram juntos no Oratório em 1855. O jovem, apa-
rentemente com boa saúde, caiu doente e precisou ir embora. Morreu em
sua casa em 20 de maio de 1856. Em fins de outubro (1855), chegaram os
novos alunos para o ano escolar 1855-1856 e Domingos estava pronto para
conhecê-los e ajudá-los no novo ambiente. Nessas circunstâncias, Domingos
conheceu outro bom menino, Camilo Gávio; novamente, surgiu uma grande
amizade entre os dois. Gávio, que estivera doente, sofreu uma recaída quase
imediatamente, e viu-se obrigado a voltar para sua casa, falecendo em 26 de
dezembro de 1855. Dom Bosco dedica dois capítulos inteiros a essas ami-
zades, incentivadas por ele, tendo em mente um claro objetivo educativo.26
Durante o ano escolar 1855-1856, Dom Bosco iniciou um programa
próprio de estudos secundários, a começar do terceiro ano de gramática. O
professor foi o seminarista salesiano de 17 anos João Batista Francésia (1838-
1930). Domingos estudou com ele nesse ano. Dom Bosco comenta que a
saúde de Domingos estava sempre pior e acrescenta que foi essa a razão pela
qual abriu o terceiro ano de gramática no Oratório. Dessa forma, Domingos
não precisaria ir e vir da escola duas vezes por dia.27

Experiências místicas
Dom Bosco dá espaço na biografia às experiências místicas de Sávio:

Até agora, não contei nada de extraordinário [sobre Domingos], exceto se le-
varmos em conta como extraordinárias a conduta inatacável [...], a vitalidade
na fé, a esperança firme e a caridade ardente. Agora, porém, pretendo falar
de algumas graças especiais e experiências pouco comuns que podem atrair
alguma crítica sobre sua pessoa. Contudo, quero garantir ao leitor que [...]
estas são coisas das quais fui testemunha pessoal e direta.28

grupo (associação) que então se dedicava apenas à oração. Pela frase “tornou-me membro”, parece pou-
co provável que Domingos tivesse pedido a Dom Bosco para fundar uma nova associação. Relacionado
com isso, Lemoyne conta o episódio no qual Sávio descobre uma mulher doente de cólera numa casa
próxima. Cf. MB V, 342s.
25
Cf. M. Molineris, Nuova vita, 167-168, cita documentos de arquivo e corrige Caviglia.
26
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 185ss.
27
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 153.
28
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 193ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco menciona fatos de êxtase diante do Santíssimo Sacramen-


to, colóquios com Deus, conhecimento sobrenatural de pessoas agonizantes
com necessidade de reconciliar-se etc. Menciona também a pureza de vida de
Domingos e o intenso amor e união com Deus, inclusive nos recreios. Enfim,
Dom Bosco relata a visão que Sávio teve sobre Pio IX, que leva a tocha da fé
católica à Inglaterra.29

A Companhia da Imaculada Conceição


Dom Bosco consagra, na biografia, um capítulo considerável à funda-
ção, finalidade e normas da Companhia da Imaculada Conceição.30 Na pri-
meira edição da Vida, fala de Domingos Sávio como único inspirador e fun-
dador dessa associação e autor do seu regulamento. Embora se dê como data
de fundação o dia 8 de junho de 1856, Dom Bosco a relaciona, ao menos
como ideia original, com a definição do dogma da Imaculada Conceição, em
8 de dezembro de 1854, e com a consagração do próprio Domingos a Maria
naquela ocasião. Quanto à finalidade da associação, Dom Bosco escreve:

A finalidade [do fundador] era garantir a proteção da Mãe de Deus [aos mem-
bros] na vida e especialmente no momento da morte. Para obter essa finalida-
de, Sávio propôs dois meios: fazer e promover práticas de piedade em honra
de Maria Imaculada e comungar frequentemente.31

No ato fundacional de consagração a Maria, que é um preâmbulo dos


regulamentos da Companhia, os membros prometiam imitar Luís Comollo
tanto quanto pudessem. Juntos, eles leram:

Por isso, nós nos comprometemos a: 1o observar fielmente as normas da casa;


2o ajudar fielmente nossos companheiros com a correção fraterna, e animá-los
a terem uma boa conduta com nossa palavra e mais ainda com nosso exem-
plo; 3o fazer o melhor uso possível do tempo à nossa disposição.32

Enfermidade e repouso em Mondônio, no verão de 1856


A delicada saúde de Domingos preocupava Dom Bosco a ponto de cha-
mar o doutor Francisco Vallauri, cuja consulta era muito apreciada na cidade.
29
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 169ss. Dom Bosco acrescenta que, durante a au-
diência de 1858, falou desta visão ao papa Pio IX, que ficou muito contente e fez comentários favoráveis.
30
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180ss.
31
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180.
32
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

O médico não encontrou sintomas de qualquer doença em concreto, apenas


uma extrema fraqueza geral que atribuiu ao seu intenso trabalho espiritual.
Ele sugeriu um período de descanso distante da contaminada cidade. Do-
mingos deixou o Oratório para ir para casa em fins de junho, ou seja, antes
de concluir o ano escolar, que continuava até meados de julho. Sua saúde
melhorou ligeiramente e ele retornou a Valdocco para os exames de agosto.
Em 12 de setembro, Domingos pediu licença a Dom Bosco para ir ver sua
mãe, que estava “doente”. A doença em questão era o repouso que a senhora
Sávio devia fazer para dar à luz Catarina, oitava na lista dos filhos. Como rela-
ta Teresa Tosco Sávio, irmã de Domingos, foi um parto difícil e doloroso que,
afinal, acabou bem, graças ao escapulário que Domingos colocou ao pescoço
de sua mãe enquanto ela repousava “doente” em sua cama.
No dia seguinte, 13 de setembro, Domingos foi padrinho de batismo de
Catarina; em seguida, voltou para Valdocco. Mas sua permanência em Turim
foi breve. Dom Bosco mandou-o de volta para casa em Mondônio para o que
restava das férias (setembro-outubro).

Quarto ano de ginásio na escola do padre Picco


Sentindo-se melhor, embora não totalmente, Domingos regressou ao
Oratório em meados de outubro a fim de preparar-se para o novo ano escolar
(1856-1857). Cursaria o quarto ano do ginásio ou humanidades. O progra-
ma escolar da Casa consistia apenas no terceiro ano de Gramática, criado no
ano anterior, do qual Domingos participara, e nos cursos inferiores, primeiro
e segundo de ginásio, recentemente criados e que eram dirigidos pelo profes-
sor Francisco Blanch.
Para o quarto ano, Sávio começou a participar em novembro de 1856 da
escola particular do professor padre Mateus Picco. Apesar de suas frequentes
recaídas na doença, era um estudante que sobressaía, como o padre Picco
declarou na elegia feita depois de sua morte. Alguns lhe atribuem até mesmo
uma inteligência superior. Outros, porém, falam de uma inteligência normal
complementada com o esforço. João Piano, que fora companheiro de escola
de Sávio, testemunhou no processo de beatificação: “Em minha opinião, suas
capacidades intelectuais eram comuns, mas com a dedicação e perseverança
no estudo, ele estava quase sempre entre os primeiros da classe. Isso lhe gran-
jeava o carinho e a estima de seus professores”.33
Os quatro meses em que participou da escola do padre Picco, antes de
voltar para sua casa para não retornar, foram cheios de doenças recorrentes,
33
Summarium, 84; A. Caviglia, Ricordo, 18.

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Dom Bosco: história e carisma 2

tosses e tremendas dores de cabeça. Frequentemente, estava na enfermaria,


onde Mariana Occhiena, a irmã de mamãe Margarida, também enferma,
tinha um quarto. Um companheiro dele, José Reano, testemunhou no pro-
cesso de beatificação:

A dor que sofria em sua doença era extrema, mas durante o tempo todo
em que esteve no Oratório, não foi ouvido queixar-se nem uma única vez.
Em certa ocasião, eu o vi calado e perguntei-lhe por que não queria falar.
Respondeu-me que tinha uma dor de cabeça tão forte que lhe parecia sentir
estiletes cravando-se em sua fronte. Acrescentou, porém, que suportava tudo
com paciência e na esperança de que a sua dor, unida aos merecimentos de
Nosso Senhor Jesus Cristo, haveria de abrir-lhe o paraíso. Jesus sofrera mais
sem se queixar.
Quando recuperou um pouco de suas forças, levantou-se da cama. Certa vez,
encontrei-o no quarto da “Tita”, aquecendo-se ao fogo, enquanto ela se quei-
xava de suas dores e achaques. Domingos, apesar de ser tão jovem, não duvi-
dou em repreendê-la pela sua impaciência.34

Dom Bosco fala das premonições de Domingos sobre a morte. “En-


fraquecia dia após dia por causa da pouca saúde, das doenças frequentes e
da implacável tensão espiritual”. O programa espiritual da Companhia da
Imaculada Conceição, o Exercício da Boa Morte praticado no Oratório e as
reflexões do próprio Domingos reforçavam essas premonições. Quando foi
consultado sobre o problema de saúde de Domingos, o veredicto do doutor
Vallauri foi: “A melhor cura seria deixá-lo ir para o céu”.35
Assistia às aulas de forma intermitente. Enfim, a sua fraqueza foi tão
extrema que precisou ficar acamado. Odiava a ideia de voltar para casa e
interromper os estudos, mas seu pai mandou-o voltar e ele se foi no dia 1o
de março de 1857. Sabia que nunca retornaria. Queria que Dom Bosco lhe
confirmasse que seus pecados tinham sido perdoados, que seria salvo pela
grande misericórdia de Deus e que, desde o paraíso, poderia ver e visitar seus
companheiros e seus pais.36
34
José Reano, Testemunho escrito número 3, Summarium, 458-459; A. Caviglia, Ricordo, 64.
“Tita” (“Magna” em piemontês) era o nome familiar que os meninos davam a Mariana (Maria Joa-
na) Occhiena, irmã mais velha de Mamãe Margarida. Os meninos chamavam-na de Tita, enquanto
chamavam Margarida de “mamãe”. Mariana fora com Margarida para o Oratório depois da morte
do padre Lacqua aos 50 anos a quem servira como governanta. Mariana morreu em 1857, dois anos
depois de sua irmã.
35
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 200.
36
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 203.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Na manhã de sua partida insistiu em receber a sagrada comunhão para


a viagem. Depois, despediu-se dos companheiros da Companhia da Imacu-
lada Conceição. Foi um adeus emotivo. Fora de casa, pediu um presente de
despedida a Dom Bosco: ser incluído na indulgência plenária recentemente
concedida pelo Santo Padre.37

Evolução da doença e santa morte


A excitação da viagem e a mudança de ares renovaram-lhe as forças;
esteve em pé por quatro dias antes acamar-se novamente. Dom Bosco conta
com detalhes a sua fervorosa recepção dos sacramentos e da extrema unção
[sacramento dos enfermos]. Antes de entrar em agonia, pediu ao pai que
lesse para ele a Ladainha da Boa Morte de O jovem instruído. Sua mãe pôs-se
a chorar e saiu do quarto. As últimas palavras de Domingos foram: “Adeus,
querido papai! Ó, que coisas bonitas eu estou vendo!”. Domingos morreu no
dia 9 de março de 1857.38
A notícia da santa morte de Domingos chegou ao Oratório por meio de
uma carta de seu pai, Carlos Sávio, em que diz:

Mondônio, 10 de março de 1857


Reverendíssimo senhor:
Com lágrimas e profunda dor, escrevo-lhe esta nota para comunicar-lhe a no-
tícia mais triste. Meu querido filho, seu aluno, qual cândido lírio sem mancha
e qual outro São Luís Gonzaga, entregou sua alma ao Senhor ontem à tarde,
9 do corrente mês de março, depois de ter recebido do modo mais consolador
os santos sacramentos e a bênção papal.
[O curso de] sua enfermidade foi o seguinte. Precisou ficar acamado na quar-
ta-feira, 4 de março, e foram-lhe feitas dez sangrias sob a supervisão do doutor
Cafassi. Mas, enquanto esperávamos que [o doutor] nos informasse sobre o
grau de enfermidade e assim poder escrever-lhe e torná-lo ciente, ele morreu.
Também começara a tossir.
Não posso pensar em outra coisa, reverendíssimo padre, que lhe oferecer
meus respeitos e desejar-lhe o melhor.
Seu servo obedientíssimo,
Carlos Sávio.39

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 205.


37

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 212.


38

39
Reproduzida por A. Caviglia, Vita Domenico; Id., Opere e scritti IV, 560. Cf. também J. Bosco,
Vida del joven Domingo Savio, o. c., 213.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Retrato de Domingos Sávio, imaginado pelo pintor Mário Caffaro Rore (1960).

Ao receber a notícia da morte de Domingos, seu professor, padre Picco


falou dele à classe enaltecendo suas virtudes. Dom Bosco cita esse elogio, que
o professor pôs por escrito, aparentemente em sua totalidade.40
Em um breve prólogo, a biografia, que também pode fazer as vezes de
exortação final, Dom Bosco escreveu: “Queridos jovens, pedistes-me com
frequência para escrever algumas coisas sobre vosso companheiro Domingos,
e o fiz da melhor maneira que pude para satisfazer vossos desejos”.41 E acres-
centa um pouco mais adiante:

Algum de vós poderá perguntar por que escrevi a vida de Domingos Sávio
e não a de outros jovens que viveram entre nós com fama de ilibada virtude
[...], como Gabriel Fassio, Luís Rua, Camilo Gávio, João Massaglia e outros;

40
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 213ss.
41
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 128.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

seus feitos, porém, não foram tão notáveis como os de Sávio, cujo teor de vida
foi nitidamente admirável [...]. Aproveitai os ensinamentos que encontreis
nesta vida de vosso amigo e repeti em vosso coração o que Santo Agostinho
dizia para si: “Se ele pôde, por que não eu?”.42

2. Os “novíssimos” na proposta de santidade de Dom Bosco


Apresentamos em seguida um resumo dos relatos dos volumes III e IV
das Memórias Biográficas sobre as experiências extraordinárias de Dom Bosco e
seu efeito nas comunidades da casa e do Oratório na década de 1850 e inícios
da década de 1860. Centrando-nos nas histórias de sonhos, servimos a uma
dupla finalidade: descrever a aura “sobrenatural” que envolvia Dom Bosco
como um visionário místico e, também, documentar a ênfase espiritual em
relação às predições de morte naqueles tempos.

Relação dos sonhos “extraordinários” de Dom Bosco e suas


premonições sobre mortes, nos anos de 1850 e 1860

Elenco
– 1847. Sonho relacionado com o trabalho de Dom Bosco – Pre-
monitório.43
O sonho do caramanchão de rosas aconteceu em 1847; repetiu-se com varia-
ções em 1848 e 1856. Dom Bosco contou-o pela primeira vez aos salesianos
em 1864.

– 1849, janeiro. Fato admirável.44


Dom Bosco multiplica as hóstias consagradas para uns 600 meninos do Ora-
tório, pois José Buzzetti se esquecera de colocar uma segunda âmbula sobre
o altar. O próprio Dom Bosco confirmou o fato em 18 de outubro de 1863.
Outras multiplicações confirmadas são de castanhas, em novembro de
1849;45 de hóstias em 1854, confirmada pelo próprio Dom Bosco, segundo

42
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 128-129. Luís Rua era irmão do padre Rua.
43
MB III, 33-35. Para alguns sonhos de Dom Bosco, ambientados em sua situação histórico-so-
cial, cf. A. da Silva Ferreira, Acima e além: os sonhos de Dom Bosco. São Paulo: Editora Salesiana, 2011.
44
MB III, 442-443.
45
MB III, 575.

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Dom Bosco: história e carisma 2

narra Bonetti;46 de pães, em outubro de 1860, testemunhada por Francisco


Dalmazzo.47

– 1849. Sonho.48
Dom Bosco sonhou um encontro com o rei Carlos Alberto depois da sua morte,
em 28 de julho de 1849 no Porto (Portugal); contou-o “muitos anos depois”.

– 1849. Fato extraordinário.49


A ressurreição de um jovem chamado Carlos, datada em 1849.50

– 1850. Predição de mortes.51


Na reunião de um grupo escolhido da Companhia de São Luís, Dom Bosco
prevê a morte de um jovem chamado Burzio, um santo menino do Oratório
festivo, a primeira morte de um oratoriano segundo José Buzzetti. Sobre isso,
escreve padre Rua: “Desde os primeiros dias em que estive no Oratório festi-
vo, de 1847 a 1852, recordo que, sempre que algum menino da Companhia
de São Luís estava para morrer, Dom Bosco anunciava o fato muito antes
[...]. Dizia: ‘Dentro de quinze dias, ou então, dentro de um mês, alguém da
Companhia será chamado à eternidade; pode ser eu, pode ser algum dentre
vós. Fiquemos preparados!’. Um temor saudável mantinha os meninos aten-
tos […], eu mesmo ouvi tais anúncios em várias ocasiões [...] e sempre vi as
predições serem cumpridas”.52

– 1853. Fatos extraordinários.53 Histórias do cão Grigio (cinzento).

– 1854, final do ano. Dois sonhos premonitórios.54


Depois que a Lei Rattazzi fora aprovada, Dom Bosco sonhou com um men-
sageiro que anunciava funerais na Corte. Cinco dias mais tarde, repetiu-se o

MB VI, 777.
46

MB VI, 777.
47

48
MB III, 539.
49
MB III, 495; citam-se dez testemunhas.
50
Ver estudo crítico das “evidências”. Cf. “Appendice: Carlo il risuscitato da Don Bosco, Postille
alle Memorie Biografiche”. In: P. Stella, Vita, 257-293.
51
MB IV, 302.
52
MB IV, 302.
53
MB IV, 710ss, citando algumas testemunhas.
54
MB V, 178ss.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

sonho de forma um tanto diferente, e Dom Bosco escreveu cartas de adver-


tência ao rei Vítor Emanuel II, ameaçando com desgraças se o rei assinasse a
lei. Em janeiro de 1855, várias mortes aconteceram no seio da família real em
breve intervalo: a rainha-mãe Maria Teresa, a rainha consorte Maria Adelaide,
o príncipe Fernando, duque de Gênova e irmão do rei, o filho mais novo do
rei, príncipe Vítor Emanuel Leopoldo.

– 1854, março. Sonho premonitório de morte.55


Dom Bosco conta aos internos o sonho das 22 luas, predizendo a morte de
Segundo Gurgo. São citados como testemunhas: João Cagliero, João Turchi,
João Batista Anfossi, Félix Reviglio, José Buzzetti. Gurgo morreu antes do
Natal de 1855. Esta é a primeira morte de um interno registrada no Oratório.
O biógrafo escreve um prólogo à história com estas palavras: “Os meninos do
Oratório estavam persuadidos de que Dom Bosco recebera de nosso Senhor
dons espirituais extraordinários. Entre outras coisas, predissera a morte de
diversas pessoas e outros acontecimentos ocasionais e humanamente imprevi-
síveis. Mas em 1854 ficaram sempre mais impressionados, quando começou
a contar sonhos que realmente podem ser definidos como visões celestiais,
porque neles Deus fazia com que Dom Bosco visse o que queria dele e de seus
meninos, e, sobretudo, o que convinha para o bem espiritual do Oratório”.56
Lemoyne acrescenta, ao seu, os testemunhos do cônego João Batista Anfossi e
do padre Joaquim Berto em relação às predições feitas por Dom Bosco sobre
quase todas as mortes de meninos que aconteceram no Oratório. O padre
Rua também testemunhou: “Dom Bosco foi dotado em grau elevado do dom
da profecia. Suas predições de coisas futuras e contingentes, plenamente cum-
pridas, são tão variadas e numerosas que fazem supor que o dom profético era
habitual nele. Falava-nos com frequência de sonhos relacionados com o seu
Oratório e a sua Sociedade”.57

– 1856, aproximadamente. Sonho premonitório.58


Como exemplo do que disse acima, padre Rua relata o “Sonho da roda da fortu-
na”, ouvido de Dom Bosco por volta de 1856. As 5 voltas da roda representam
as 5 décadas de expansão da obra: Turim, Piemonte, Itália, Europa e o mundo.

55
MB V, 377ss.
56
MB V, 375ss.
57
MB V, 456.
58
MB V, 456.

133

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Dom Bosco: história e carisma 2

– 1857. Sonho moralista.59


Os meninos divididos em 4 grupos comendo 4 tipos de pão. Sonho dos 4
pães de qualidade diferente, representando cada um deles 4 diversas condi-
ções morais e espirituais.

– 1859, novembro. Sonho moralista.60


Sonho da pequena marmota. Dom Bosco observa o estado de consciência dos
meninos quando retornam para o novo ano e vê um homem que distrai os
meninos da confissão com uma pequena marmota domesticada.

– 1859. Predição de uma morte.61


Contada pelo padre Garino e presenciada por muitos, Dom Bosco, na noite
de 31 de dezembro de 1858, anunciara que uma pessoa morreria no Oratório
antes que o carnaval terminasse, antes da Quaresma; colocou a mão sobre a
cabeça de Miguel Magone. Magone morreu em 21 de janeiro. Um menino
chamado Constâncio Berardi, crendo que seria ele a morrer, deixou escapar
um suspiro de alívio. Mas em 25 de janeiro Dom Bosco anunciou que não
era Magone o menino ao qual se referia. Berardi morreu em 5 de fevereiro de
1859 aos 16 anos de idade.

– 1860. Predição de uma morte.62


Como Ruffino escreve na crônica, em 7 de abril, Dom Bosco vaticinara re-
petidamente que um dos meninos morreria; e o jovem Alexandre Trona, de
14 anos, que acabava de entrar no Oratório, faleceu em 24 de abril de 1860.
O biógrafo conta que Dom Bosco explicou como soube que alguém ia mor-
rer: “Às vezes, respondeu, vejo muitos caminhos; em cada um deles caminha
um jovem, mas o caminho é obstruído por um buraco no meio dele; outras
vezes, a certa altura desses caminhos leio números do ano, do mês, do dia”.63

– 1860. Predição de um acontecimento político e de uma morte.64


Em abril, Dom Bosco previra a conquista do Reino das Duas Sicílias (Nápoles,
por Garibaldi) e a morte do clérigo Luís Castellano,65 que faleceu em novembro.

59
MB V, 722s.
60
MB VI, 301ss.
61
MB VI, 118ss.
62
MB VI, 509.
63
MB VI, 510.
64
MB VI, 797.
65
MB VI, 511.

134

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1860, 23 de maio. Sonho premonitório.66


Dom Bosco sonhou que a polícia faria uma perquisição no Oratório.

– 1860, 5 de agosto, primeira missa do padre Rua. Sonho moralista.67


Sonho das 14 mesas: os meninos estão sentados em 14 mesas colocadas
em vários níveis, em 3 ordens, simbolizando diferentes estados morais e de
consciência.

– 1860, 25 de novembro. Predição de morte.68


Dom Bosco anuncia que um jovem logo morrerá; o jovem João Racca, de 12
anos, morre em 13 de dezembro.

– 1860, 28, 29 e 30 de dezembro. Sonhos moralistas.69


Sonha com padre Cafasso, Sílvio Péllico e conde Cays. Os meninos escrevem
alguns números que simbolizam sua condição moral e espiritual. Alguns estão
numa situação muito ruim. A crônica do padre Bonetti fala de bons efeitos
proporcionados pelo sonho.70
Padre Rua comenta a respeito da fonte do conhecimento de Dom Bosco
sobre a condição espiritual dos meninos: “Talvez alguém, ele escreve, pudesse
supor que Dom Bosco, ao manifestar a conduta dos jovens e outras coisas
ocultas, pudesse servir-se de revelações feitas pelos próprios jovens ou pelos
assistentes. Eu, porém, posso garantir com toda a certeza que jamais [fosse
esse o caso] [...]. Era muito comum entre nós a persuasão de que Dom Bosco
lia nossos pecados na testa e, quando alguém cometia uma falta, procurava
evitar encontrar-se com ele, mesmo depois de se ter confessado [...]. Além do
estado das consciências, Dom Bosco anunciava nos sonhos coisas impossíveis
de serem conhecidas naturalmente só com meios humanos; por exemplo, a
predição de algumas mortes e de outros fatos futuros. De minha parte, à
medida que avançava na idade, ao considerar esses fatos e revelações de Dom
Bosco, tanto mais me convencia de que ele foi dotado pelo Senhor do espírito
de profecia”.71

66
MB VI, 546s.
67
MB VI, 708s.
68
MB VI, 797s.
69
MB VI, 818ss.
70
MB VI, 822ss.
71
MB VI, 823s.

135

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Dom Bosco: história e carisma 2

– 1861, janeiro. Leitura de consciência.72


Dom Bosco adverte um jovem que se calara sobre um pecado na confissão.

– 1861, janeiro. Sonho que prediz uma morte.73


Sonho da morte que ameaça um jovem. Dom Bosco adverte ao menino que
não fizera uma boa confissão desde sua primeira comunhão e conta o sonho
a toda a comunidade.

– 1861, 3, 4 e 5 de abril. Sonho moralista.74 Sonho do passeio ao


paraíso contado em 3 boas-noites.
Vale a pena ler todo o comentário de Lemoyne e as interpretações desse so-
nho.75 Os comentários de Dom Bosco sobre a morte de um dos meninos e
ouvir as confissões dos meninos são reveladores.76

– 1861, 1o de maio. Sonho moralista e simbólico.77


Sonho da roda da eternidade, contado em 3 boas-noites. Numa estrada que
leva a Capriglio, Dom Bosco encontra-se com um intérprete que lhe mostra a
condição presente e futura de seus meninos na roda da eternidade, com várias
interpretações simbólicas.

– 1861, 14 de junho. História moralista ou sonho.78


“Uma pequena história à moda de sonho”, sonho do lenço da pureza. Dom
Bosco se vê na igreja, a ponto de pronunciar uma homilia, e, depois, num
vale diante de um palácio. Uma Senhora dá um lenço a cada menino, com a
advertência de não o abrirem ao vento.

– 1861, 28 de novembro. Sonho moralista.79


Alguns diabinhos distraem os meninos durante a missa.

72
MB VI, 827.
73
MB VI, 828s.
74
MB VI, 864s.
75
MB VI, 879s.
76
MB VI, 885s.
77
MB VI, 897ss. Ver comentários das testemunhas sobre efeitos e imagens do sonho. Ibid., 917ss.
78
MB VI, 792ss.
79
MB VI, 1061s.

136

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1862, 30 de janeiro. Sonho clarividente.80


Dom Bosco sonha com 3 jovens que jogam a dinheiro. No dia seguinte, man-
da Cagliero ir buscá-los, porque “ouvira o tilintar do dinheiro”.

– 1862. Sonho premonitório de uma morte.81


Sonho do espectro e do ataúde, predizendo a morte de Vitório Maestro. Dom
Bosco sonha que o espectro da morte chega ao pátio do Oratório e se dirige
a um jovem apontando para um ataúde colocado no centro do pórtico. Mor-
reria repentinamente antes da Páscoa, 20 de abril, ou de Pentecostes. Em 16
de abril, o jovem de 12 anos Luís Fornasio morreu em sua casa; antes, ele
fizera uma confissão geral. Dom Bosco, porém, diz que um segundo jovem
cujo nome iniciava com a letra M iria morrer. Todos pensavam que seria Luís
Marchisio, que estava gravemente doente. Mas foi Vitório Maestro, jovem de
13 anos, que morreu repentinamente de um ataque do coração.

– 1862, 26 de maio. Parábola ou alegoria (similitudine) das duas


colunas. Também chamado sonho das duas colunas.82

– 1862. Sonho moralista.83


Dom Bosco sonha repetidamente com um jovem cujo coração está corroído
pelos vermes e fala com ele recriminando-o por ter ocultado alguns pecados
em suas confissões.

– 1862, 6 de julho. Sonho heterogêneo.84


Sonho da marquesa Barolo sobre o cuidado das meninas e do grande cavalo
vermelho (alusão ao livro do Apocalipse?).

– 1862, julho. Predição de uma morte.85


Nos inícios de julho, Dom Bosco predisse a morte de um menino, e no dia 18
de julho o jovem Bernardo Casalegno falece santamente aos 18 anos de idade

80
MB VII, 50s.
81
MB VII, 130ss.
82
MB VII, 169ss.
83
MB VII, 193.
84
MB VII, 217s.
85
MB VII, 223ss.

137

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Dom Bosco: história e carisma 2

em sua casa de Chieri. Segundo Bonetti, Dom Bosco, embora estivesse para
o retiro em Santo Inácio, a uns quarenta quilômetros de distância, anunciara
aquela morte na hora em que acontecera.

– 1862. Experiência clarividente ou visionária.86


Nessa mesma ocasião, em Santo Inácio, Dom Bosco soube, por clarividência,
da presença de 4 lobos soltos entre os meninos do Oratório, de alguns meni-
nos que estavam em outro lugar durante as orações da tarde, de 3 meninos
que escapavam durante a missa do domingo para ir nadar etc.

– 1862. Predição de uma morte.87


Segundo padre Garino, Dom Bosco vaticinara que um dos meninos morreria
antes de se passarem 3 luas. O jovem de 19 anos Davi Quarelli, que estava
gravemente doente, pensou que seria ele. Dom Bosco garantiu-lhe que não.
Em 15 de agosto morria João Petiti, aos 14 anos de idade.

– 1862, 20 de agosto. Sonho moralista.88


Sonho da serpente e da corda: na primeira parte, mata-se a serpente com
a corda, que adquire a forma de um rosário; na segunda parte, alguns me-
ninos comem a carne da serpente e caem ao chão, incham e ficam duros
como pedra.

– 1862. Premonição e predição de uma morte.89


Certa tarde em Vignale, durante o passeio outonal, Dom Bosco falava com
alguns meninos, entre outros, José Buzzetti e Modesto Davico. De repente,
pede-lhes que digam uma oração pelo menino que morrerá nessa noite. E,
no momento da oração, pede aos meninos que rezem por um que está grave-
mente doente no Oratório. Pela manhã, pede-lhes novamente que rezem pelo
companheiro que morreu durante a noite. Uma carta do padre Alasonatti traz
a notícia de que certo Rosário Pappalardo morrera repentinamente.

86
MB VII, 225s.
87
MB VII, 237s.
88
MB VII, 238s. 242s.
89
MB VII, 284s.

138

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1862, dezembro. Predição de uma morte.90


Segundo contam padres Cagliero e Albera, Dom Bosco falava sobre um semi-
narista que fora salesiano e retornara à sua diocese, quando se viu bem provi-
do do necessário temporalmente graças à ajuda de benfeitores. Foi “castigado”
com uma doença e morreria pouco depois. A predição foi cumprida quando
faleceu de tuberculose pouco antes da ordenação. História extraordinária que
fala da vocação, da retribuição divina etc.

– 1862, 20 de dezembro. Sonho e premonição de uma morte.91


Dom Bosco anunciou no boa-noite: “No dia do Natal um de nós irá para o
Paraíso”. Nessa tarde, o pequeno José Blangino de 10 anos cai doente; às 2
e meia da madrugada estava morto. Dom Bosco vira tudo isso num sonho.

– 1862. Predição de uma morte relacionada com o Exercício da Boa


Morte.92 Morte de Alberto C.

– 1863, 6 de janeiro. Sonho moralista.93


Sonho do elefante endemoninhado e a proteção de Maria. Dom Bosco escre-
veu os nomes dos meninos que foram feridos pelo animal.

– 1863, julho. Sonho moralista premonitório de morte.94


Sonho das mensagens de Maria: todos os meninos tiram por sorte de uma
bolsa um pequeno papel, menos um, que se mantém afastado. O papelzinho
que estava no fundo da bolsa revela a mensagem “morte”. Dom Bosco revela
as mensagens a cada menino.

– 1863. Predição de mortes relacionadas com o Exercício da Boa


Morte.95
Ao animar os aprendizes e estudantes a fazerem bem o Exercício da Boa Mor-
te, Dom Bosco anunciou que seria a última vez para dois meninos, um de

90
MB VII, 344ss.
91
MB VII, 345.
92
MB VII, 347s.
93
MB VII, 357ss.
94
MB VII, 472.
95
MB VII, 402.

139

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Dom Bosco: história e carisma 2

cada comunidade. O aprendiz de 15 anos João Batista Negro morreu em 23


de março, e o estudante de 13 anos, José Scaglietti, em 3 de abril, vivendo
ambos na casa.

– 1863, 1o de novembro. Sonho premonitório de uma morte rela-


cionada com o Exercício da Boa Morte.96
Antes do Exercício da Boa Morte, Dom Bosco sonha que está acompanhado
de um de seus meninos no próprio funeral.

– 1863, 13 de novembro. Sonho moralista.97 Sonho da serpente


no poço.

– 1863. Predições de morte.98


No dia 3 de novembro, em Turim, Dom Bosco anunciava que um menino
iria morrer. Em 10 de dezembro [?] fazia o mesmo anúncio na nova escola
de Mirabello; e ao retornar a Turim, em 14 de dezembro [?], pediu ora-
ções por aquele que iria morrer. Em 26 de dezembro morria em sua casa
Terésio Robert, aos 19 anos de idade, e no dia 29 de dezembro chegou
a notícia de que Luís Prete tinha morrido, também em sua casa, aos 20
anos. Inicialmente, Dom Bosco deu respostas evasivas, mas numa carta
de 30 de dezembro dirigida aos jovens de Mirabello, afirmava que Prete
era o destinado. Acrescentava, porém, que as partidas de seus jovens eram,
frequentemente, de dois em dois, de modo que faltava outro jovem que
desejava segui-lo à pátria dos bem-aventurados. Francisco Besucco morreu
em 9 de janeiro de 1864.99

– 1864. Predições de morte.100


Depois da solene missa de Réquiem por Besucco no dia 11 de janeiro, Dom
Bosco confiou a alguns poucos que um dos aprendizes morreria dentro de um
mês, e outros dois alunos do Oratório depois de três meses. Em 30 de janei-
ro, Estêvão Cavaglià falecia aos 18 anos no Hospital do Cottolengo. Os ou-
tros dois morreram antes da Páscoa. Dom Bosco havia revelado seus nomes,

96
MB VII, 550.
97
MB VII, 550s.
98
MB VII, 575s.
99
MB VII, 575ss, 589ss.
100
MB VII, 597s.

140

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Vicente Tarditi e Pedro Palo, ao assistente da enfermaria, Inácio Mancardi,


que redigiu um memorando e entregou-o num envelope lacrado ao padre
Alasonatti, para que o abrisse depois da Páscoa.101 Palo, que estivera doente,
morreu aos 16 anos no Hospital de São Luís em 2 de fevereiro, enquanto
Tarditi morreria no Hospital do Cottolengo, também aos 16 anos, no dia 12
de março. A Páscoa caiu em 27 de março.

– 1864, 3 e 13 de abril. Dois sonhos moralistas.102


Sonho dos corvos que ferem os meninos. Sonho do homem com o vasinho
de bálsamo medicinal.

– 1864. Predição de uma morte em relação com o Exercício da Boa


Morte.103
Em 14 de junho, relacionado com o Exercício que iam fazer, Dom Bosco
anunciou que um dos meninos morreria antes de fazê-lo. Em 15 de julho,
Luís Vallino, de 15 anos de idade, morria no Hospital de São Maurício.104

– 1864, 22 de outubro. Sonho moralista.105


Sonho da carruagem dourada e das 10 colinas: poucos meninos chegam à
décima colina na carruagem, só os inocentes; os demais chegam caminhando.

– 1864, 15 de novembro. Predição de uma morte relacionada com


o Exercício da Boa Morte.106
Dom Bosco anuncia que um dos jovens iria para a eternidade antes do
final do ano. Ele mesmo narra a triste história da morte do jovem João
Batista Saracco, de 16 anos. Deixara de se confessar antes de ir para casa
e a morte surpreendeu-o repentinamente na casa dos familiares no dia 26
de novembro.107

101
MB VII, 614s. 543ss. Ver reprodução fotográfica do memorando de Mancardi e da aprovação
do padre Alasonatti. In: G. B. Lemoyne, Vita I, 656.
102
MB VII, 649s.
103
MB VII, 676s.
104
MB VII, 698.
105
MB VII, 795ss.
106
MB VII, 819.
107
Ibid., 820s.

141

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário
Como se pode ver com a exposição deste panorama, de forma abrangen-
te, Dom Bosco contava “sonhos” que tinham a ver com a condição moral e
espiritual dos jovens, como também “sonhos” puramente moralizantes.
Quanto aos “sonhos” premonitórios de mortes, o próprio Dom Bosco
revela como chegava ao conhecimento de que alguém ia morrer. Nem sempre
era uma premonição claramente definida. Algumas vezes, ele mesmo devia
esperar para ver como resultavam os acontecimentos. Contudo, por finalida-
de educativa e para o bem dos meninos, não duvidava em anunciá-lo publi-
camente. Ele certamente acreditava que desafiar os meninos com a morte era
espiritual e educativamente muito eficaz.
É significativo que estas narrações de “sonhos” se concentrem no perío-
do em que Dom Bosco estava pessoalmente mais envolvido na educação.108

Os “novíssimos” na proposta de santidade juvenil de Dom Bosco


Ao repassar as Memórias Biográficas relativas às décadas de 1850 e 1860,
chamam muito a atenção as contínuas referências à morte. Diz-se que Dom
Bosco prenunciou a morte de numerosos meninos, em sonhos ou com sim-
ples premonições. Ele dava grande importância ao Exercício da Boa Morte,
em relação ao qual, com frequência, anunciava a morte de meninos por ra-
zões morais e espirituais. A biografia de Comollo, que ele mesmo redigiu e
reeditou para que fosse uma espécie de manual espiritual dos seus meninos,
dava grande importância aos “novíssimos”. Os membros da Companhia da
Imaculada Conceição prometiam imitar Comollo, e sua biografia era uma
espécie de carta de identidade para os membros desta associação. Por isso, é
preciso fazer um comentário sobre a origem, natureza e prática de uma es-
piritualidade focada na morte, sobretudo no exercício para uma boa morte.
Insistir nos “novíssimos” fazia parte da tradição, e era certamente um compo-
nente da espiritualidade do Oratório.

O Exercício da Boa Morte (dia de retiro mensal) no Oratório


A prática do Exercício da Boa Morte foi estabelecida no Oratório desde
o início. Ele aparece em todas as edições de O jovem instruído desde a pri-
meira, de 1847. Mais, a prática adquiriu um papel capital na vida espiritual

108
A frequência com que as mortes ocorriam no Oratório parece indicar que a taxa de mortali-
dade era bastante elevada. P. Stella, Economia, 220, porém, descobriu que a mortalidade no Oratório
tinha os mesmos níveis de instituições similares no resto do Piemonte.

142

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

e na devoção dos jovens; aparentemente era considerada uma ferramenta


educativa indispensável para construir a vida espiritual e moral da comu-
nidade de estudantes e aprendizes. O biógrafo insiste nisso. Basta ver uma
série de exemplos:

Aqui está uma prática comovedora estabelecida por ele [Dom Bosco]: o Exer-
cício da Boa Morte. “Não esqueçais”, dizia, “que no momento da morte,
recolhe-se o fruto do que semeamos durante a vida. Bem-aventurados sere-
mos se tivermos agido bem; a morte haverá de nos encher de alegria [...]. Se
for o contrário, ai de nós! Remorsos de consciência em ponto de morte e um
inferno aberto a nos esperar” [...]. Quae seminaverit homo haec et metet (O
homem recolherá o que semear). E repetia: “A vida do homem deve ser uma
preparação contínua para a morte”. Em 1847, Dom Bosco começou a fixar
o primeiro domingo de cada mês para este exercício tão salutar, convidando
todos a comungarem e recomendando-lhes que fizessem a confissão como
se fosse a última de sua vida. [...] Atendia uma multidão de penitentes, que
se renovava a cada hora, com caridade e paciência inalteradas. Ao terminar
a missa, Dom Bosco tirava os paramentos sagrados, ia ao pé do altar, onde
tinha um genuflexório preparado, e ali recitava uma afetuosa oração para im-
plorar de Deus a graça de não morrer de morte repentina e uma oração a São
José para obter a sua assistência nos últimos momentos [...]. Em seguida, lia
com grande devoção as ladainhas que recordam as várias fases da agonia de
um cristão, às quais os meninos respondiam: “Jesus misericordioso, tende
piedade de mim!”.109
Outro meio muito eficaz foi o Exercício da Boa Morte. Tão logo teve
meninos internos, fez com que participassem desse exercício com os ex-
ternos; depois, separou-os, destinando-lhes o último domingo do mês, e
o primeiro [domingo] aos do Oratório festivo. Ensinava-lhes o modo de
fazê-lo com proveito. Exortava-os a dispor tudo o que fosse espiritual ou
temporal como se naquele dia devessem apresentar-se perante o tribunal
de Deus e com o pensamento de um chamado imprevisto para a eter-
nidade […]. Pode parecer aos amantes do mundo que a lembrança da
morte enchesse a fantasia juvenil de pensamentos funestos, mas ela era
a razão de sua paz e alegria. O que perturba a alma é estar em desgraça
diante de Deus.110

109
MB III, 18-19.
110
MB III, 354.

143

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os meninos não só faziam com exatidão as práticas estabelecidas, mas tam-


bém consideravam aquele dia como o último de sua vida; e mesmo ao deitar-
-se se punham na posição como se costumava pôr os defuntos. Queriam dor-
mir com um crucifixo nas mãos; alguns havia que até desejaram que Deus os
levasse consigo naquela noite, em que se consideravam bem preparados para
a terrível passagem. Certo dia, Dom Bosco disse ao padre Francisco Giaco-
melli: “Se o Oratório vai bem, devo atribuí-lo especialmente ao Exercício da
Boa Morte”.111

Dom Bosco ouve a confissão do adolescente Paulo Álbera


(fotografia de Francisco Serra, 1861).

111
MB IV, 683.

144

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

As previsões de Dom Bosco sobre as mortes dos meninos, especialmente


em relação com o Exercício da Boa Morte
Acabou-se de citar o biógrafo para quem é coisa boa falar da morte e dos
seus antecedentes a um jovem. Evidentemente, Dom Bosco pensava a mesma
coisa e foi ainda mais longe. Em muitas ocasiões, especialmente em relação
ao Exercício da Boa Morte, predisse a morte de um ou mais meninos, com
a finalidade de aumentar o fervor e obter conversões. “O Exercício da Boa
Morte na primeira quinta-feira de cada mês era quase sempre precedido do
anúncio dado por Dom Bosco de que algum dos meninos ia ser chamado à
eternidade.”112 Os exemplos a seguir foram escolhidos para ilustrar este ponto:

Estudava no Oratório um jovem forte e robusto de 16 anos: Alberto C...,


de..., que alterara seu comportamento anterior e caminhava por um mau
caminho, [...] fugia de Dom Bosco [...]. Finalmente, encontrou-se certo dia
com [Dom Bosco] que o tomou pela mão e disse: “Alberto, por que sempre
foges quando me vê? [...]. Precisas confessar-te, e o quanto antes possível”.
Vendo que não lhe respondia, acrescentou com ar severo: “Não queres? Virá
um tempo em que me procurarás e não me encontrarás. Pensa seriamente
nisso [...]”. Na primeira segunda-feira de dezembro, Dom Bosco subiu ao es-
trado depois das orações da noite e recomendou aos jovens para fazerem bem
o Exercício da Boa Morte, porque um aluno da casa morreria antes de repetir
novamente o piedoso exercício. “O interessado está aqui presente entre vós
[...]. Ele não sabe nem quer saber nada de morrer, mas a sentença é essa e não
será mudada. Este, porém, recorde muito bem que não terá tempo para fazer
o Exercício da Boa Morte do próximo mês.”
No dia seguinte, no Oratório, não se falava senão desta profecia, que muito
impressionara a todos. Dom Bosco, porém, encarregou o estudante e enfer-
meiro Francisco Cuffia para ficar prudentemente por perto de Alberto, a fim
de vigiá-lo e tentar levá-lo a receber os sacramentos; mais ainda, a fazer com
que se confessasse o quanto antes [...]. Passou a festa da Imaculada, passou
o Natal e Alberto não pensou em mudar de vida, nem se confessou. Para
abreviar a história, no dia anterior ao próximo Exercício da Boa Morte [no
primeiro dia do ano!], Dom Bosco estava a pregar fora de casa e Alberto caiu
doente repentinamente. O médico foi chamado, fez-se tudo o que a ciência
sugere, mas o mal avançava a largos passos, de maneira que o próprio médico
afirmou que não havia tempo a perder para administrar-lhe os sacramentos.

112
MB VI, 388s.

145

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Dom Bosco: história e carisma 2

O pobrezinho, sentindo-se morrer, arrependido da conduta levada até então,


pediu para confessar-se com Dom Bosco [...]. Sua consternação foi grande
quando lhe comunicaram que Dom Bosco estava fora de Turim. Lançou um
grito amargo de dor, começou a chorar, lembrando-se do que Dom Bosco pre-
dissera um mês atrás, e exclamou: “Estou perdido; morro sem poder ver Dom
Bosco [...]. Deus me castiga”. Padre Rua e padre Alasonatti estavam ao lado
do leito do jovem. Confessou-se finalmente com padre Rua. Pelas 11 e meia
foi-lhe administrado o santo viático e, de modo edificante, recebeu os santos
óleos e a bênção papal. Faleceu às 3 da madrugada do dia de ano-novo.113

Este é um resumo da história, mas há alguns detalhes horripilantes que,


sendo exatos, revelam quão intensa era a atmosfera religiosa vivida na co-
munidade da casa. Provinha do omnipresente pensamento da morte e dos
“novíssimos”, componente importante daquela espiritualidade.
As palavras pronunciadas por Dom Bosco em outra ocasião indicam
como ele se servia da morte com finalidades educativas e espirituais. Em 14
de junho de 1864, Dom Bosco anunciou o próximo Exercício da Boa Morte
e acrescentou:

Alguém dentre vós não o fará de novo. Quem será? Serei eu ou será alguém de
vós! [...]. Eu vos poderia revelar, mas só vos digo que, no seu devido tempo, o
sabereis, e então direis: “Não acreditava que o tal devesse morrer!” [...]. Antes
de ontem, deixei-vos um pensamento para meditar, que deveria servir-vos
para a vida inteira. Ah! se considerássemos que temos apenas uma alma e
que, sendo ela perdida, fica perdida para sempre [...]. Eu sei que, em geral, os
jovens pouco refletem; às vezes, fazem coisas ruins com rapidez inconcebível
e até dormem com isso durante muito tempo, com um monstro horrível que
poderia destruir-vos de um momento a outro. Mas, qual será o despertador
que nos recordará a todo instante esse grande pensamento da alma? Tenho
aqui outra ideia: esse despertador é a morte! Virá um tempo em que deverei
morrer! [...] Será breve ou longo? Será neste ano, neste mês, hoje, nesta noite?
E, no entanto, o que será desta alma naquela hora fatal? Se a perder, ficará
perdida para sempre.114

Poder-se-iam citar muitas predições em relação ao Exercício da Boa


Morte envolvidas na mesma retórica.
113
MB VII, 347s.
114
MB VII, 675.

146

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Tradição e prática do Exercício da Boa Morte115


Onde Dom Bosco hauriu a espiritualidade dos “novíssimos” e, em par-
ticular, do Exercício da Boa Morte? A espiritualidade centrada nas “últimas
coisas” estava na tradição teológica e cristã que vinha de vários séculos e chegou
ao século XIX. Ela era promovida nos seminários. Luís Comollo, a quem Dom
Bosco muito admirou, proporcionou um modelo. Santo Afonso propunha-a
em seus sermões e obras (Preparação para a morte; Máximas eternas etc.) e era
cultivada no Colégio Eclesiástico de Turim, do qual Dom Bosco participou.
Quanto ao Exercício da Boa Morte em particular, os modelos imediatos
para Dom Bosco devem ter sido o costume do Colégio Eclesiástico, e seu
confessor padre Cafasso, que fez do pensamento da morte e da preparação
para ela parte integrante da sua vida espiritual.
A cada primeiro domingo do mês, padre Cafasso fazia fielmente o Exer-
cício da Boa Morte, seguindo o formato comum, mas acrescentava algumas
particularidades como a jaculatória conclusiva do exercício: “Que eu receba
pela intercessão de Maria um mês de indulgência antes de morrer e passe esse
mês preparando-me para a morte sob o olhar divino”. Mas nem Dom Bosco
nem padre Cafasso foram os criadores do Exercício da Boa Morte nem da
espiritualidade relacionada com ele.116
Aplicado aos jovens, porém, o Exercício da Boa Morte parece ter sido
uma adaptação do retiro mensal e uma continuação ampliada da prática sa-
cramental mensal prescrita para as escolas e associações estudantis no período
da Restauração.
Entre as orações prescritas para o Exercício da Boa Morte, em O jovem
instruído e na tradição do Oratório, a mais característica é a Ladainha da Boa
Morte. Em 1802, Pio VII enriqueceu esta oração com indulgências, mas a
Ladainha estivera em uso desde fins do século XVIII. Era atribuída a uma
“jovem protestante que se convertera ao catolicismo aos 15 anos e morrera

Cf. P. Stella, Spiritualità, 335-341.


115

Da mesma forma como o praticavam os adultos, padres e religiosos de modo especial, o exer-
116

cício mensal deriva em última instância dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. O padre jesuíta João
Croiset promoveu o retiro mensal na França acreditando que muitos dos que não podiam reservar sete
dias por ano para o retiro anual podiam facilmente reservar um dia por mês. Nos inícios do século XVIII
o padre jesuíta Antônio José Bordoni promoveu o retiro mensal em Turim. Fundou a Companhia da
Boa Morte e seus sermões sobre o Exercício converteram-se em referência normal do tema para um pre-
gador. Até sua supressão, os jesuítas promoveram essa Companhia e o retiro mensal. O Capítulo Geral
II (1880) recomendava aos salesianos que meditassem sobre os sermões a respeito da morte e dos “no-
víssimos”, do padre jesuíta Carlos Ambrósio Cattaneo. Da mesma forma, entre outras, as obras de Santo
Afonso eram um recurso habitual para os temas e a muita retórica que acompanhava esses exercícios.

147

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Dom Bosco: história e carisma 2

em ‘odor de santidade’ aos 18”. Embora obviamente pretendesse inspirar um


saudável temor ao pecado, esta oração está impregnada de medo pela proxi-
midade da morte e do juízo. A repetição da invocação “Deus misericordioso,
tende piedade de mim” expressa uma profunda angústia pessoal, em vez de
confiança num Deus amoroso e na esperança da ressurreição com Cristo.

Componentes tradicionais e pessoais numa espiritualidade focada na morte117


O próprio Dom Bosco atesta em suas Memórias algumas experiências de
morte que deixaram nele uma forte impressão. Destas, a morte do amigo Luís
Comollo foi, de longe, a mais significativa. A natureza especial dessa experiên-
cia surge não tanto da perda de um amigo próximo, mas dos motivos espiri-
tuais e teológicos que acompanharam e nutriram essa amizade. A biografia de
Comollo escrita por ele identifica claramente esses motivos dando-nos conta de
que são os mesmos presentes na sua vida e na vida do Oratório. O motivo da
morte com sua possível consequência de condenação eterna domina a biografia
de Comollo e, parece, foi predominante na relação entre os dois amigos. A
incerteza que rodeia a morte de uma pessoa e o seu destino final, e a eternidade
deste destino, situam a vida de uma pessoa sob o medo. “Age de modo que o
teu viver seja uma preparação contínua para a morte e o juízo.”118
Entretanto, com os temas tradicionais e sua retórica também há um
componente pessoal, uma verdadeira ansiedade pela salvação eterna119 que
deve ter sido a responsável pela prolongada depressão ou ansiedade sofrida
por João Bosco em 1839. Até a publicação da Vida do jovem Domingos Sávio
(1859), e mesmo depois, Comollo, tal como se descreve na biografia, conti-
nuou a servir de modelo.
Aparentemente, era crença firme de Dom Bosco que pensar nos “novís-
simos” fosse incentivo à conversão e resolução de levar uma vida moral e es-
piritual. Acredita-se que, em 1844-1845, Dom Bosco assistiu às conferências
do padre Ferrante Aporti sobre métodos educativos; mais tarde, ele compôs
um “Relatório dos fatos” ao arcebispo. O biógrafo acrescenta:

117
P. Stella, Spiritualità, 177-185, analisa o papel da morte e dos “novíssimos” na espiritua-
lidade de Dom Bosco, e, portanto, na do Oratório. Ele discute, em dois capítulos adicionais, alguns
componentes dessa espiritualidade; ibid., 187-225.
118
J. Bosco, “Rasgos biográficos del clérigo Luís Comollo”. In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 101.
119
Entre as canções incluídas em O jovem instruído havia, para o Exercício da Boa Morte, uma
com o título “Ah! ressoa a terrível trombeta!” (“Ahi! che l’orribil tromba”). No momento da morte, e
diante da perspectiva do juízo e do inferno, o pecador ver-se-á a lamentar (letra da canção): “Mon-
tanhas, caí sobre mim; terra, engoli-me”; “Devemos enfrentar a terrível presença do Juiz supremo e
suportar sua condenação. O Senhor, sem piedade, cheio de terrível ira, nos pedirá contas. Senhor, tem
piedade de mim, pobre pecador [...]”.

148

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Dom Bosco, porém, não demorou em advertir que indiretamente ficavam


excluídos daquelas lições os santos mistérios da religião. Aporti não queria
que se falasse do inferno aos meninos. Certa vez, exclamou: “Mas, por que
falar do inferno aos meninos? Estes pensamentos tétricos causam-lhes danos;
são temores que não vão bem para a educação”. Assim, ele impedia o santo
temor de Deus.120

O biógrafo informa, então, as palavras que Dom Bosco disse anos de-
pois ao padre Francisco Cerruti, quando este escrevia as normas para Filhas
de Maria Auxiliadora sobre a acolhida das crianças:
Queres saber, realmente, quem era Aporti? O corifeu dos que reduzem o en-
sino da religião a puro sentimentalismo. Recorda bem que um dos equívocos
da pedagogia moderna é a de não querer que na educação se fale das máximas
eternas e, sobretudo da morte e do inferno.121

3. Comentário final
A questão do valor desta orientação na educação e na vida espiritual
dos jovens foi muito discutida. Talvez, de um ponto de vista não técnico
e prático, deveríamos distinguir entre preparação para a morte a partir
do temor e preparação para a morte a partir da esperança. A esperança
baseia-se no imutável e fiel amor de Deus, que foi conquistado por Cristo
a nosso favor.
O medo jamais pode ser um incentivo para a educação e a vida espiritual.
Claramente, algumas das premissas teológicas e muito da retórica relaciona-
da com a “preparação para a morte”, e em geral, com a pregação sobre seus
antecedentes, eram apropriadas para gerar medo e não esperança. Se a ênfase
dada por Dom Bosco aos “novíssimos”, especialmente pelo Exercício da Boa
Morte, produziu resultados salutares e transmitiu uma atmosfera de alegria e
liberdade, como garante o seu biógrafo, então devia estar funcionando outra
força que não o medo.
Em todo caso, a importância educativa de que, dada a condição especial
de uma criança ou de um adolescente, a ênfase nos “novíssimos” pudesse ser
danosa e contraproducente, deve ser levada a sério. Contudo, parece que pri-
var os jovens, mesmo os menores, de um aspecto tão importante da fé cristã
como o que se apresenta nos “novíssimos”, poderia ser contraproducente.

120
MB II, 212.
121
MB II, 213.

149

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Capítulo V

DOM BOSCO publicista.


O APOSTOLADO DA IMPRENSA

1. Contexto histórico
Dom Bosco já foi apresentado como escritor de obras educativas e
devocionais.1 Sua atividade literária prolongou-se ao longo de toda a vida
e, a partir de 1850, suas obras converteram-se num verdadeiro “apostola-
do da imprensa”. Assim ele o sentia e assim o assumiu como vocação. As
razões a serem encontradas na situação sociorreligiosa em mudança pro-
vocada pela Revolução Liberal e suas reformas, referem-se especialmente
a três áreas:

1. A implantação da educação universal, promovida pelas reformas


escolares, deu como resultado o aumento de atividade na impren-
sa, inclusive a católica, concorrendo para chegar às massas.
2. As reformas liberais provocaram a secularização da sociedade, di-
minuindo ou neutralizando a influência da Igreja. Surgiu, então,
a necessidade de catequizar e, até mesmo, cristianizar o povo de
maneira nova, por meio da atividade editorial em crescimento.
3. As liberdades adquiridas por grupos religiosos não católicos, con-
cretamente os valdenses, como a liberdade de culto, a liberdade
de expressão e a liberdade de imprensa etc., deram lugar a um au-
mento do proselitismo. Contra isso era preciso que o lado católico
contra-atacasse.

1
Cf. volume 1, p. 585-598.

150

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Educação generalizada e aumento do índice de alfabetização


Antes da reforma escolar de Casati (1859),2 as antigas normas Boncom-
pagni (1848) e Lanza (1857) e, em geral, o avanço da liberalização deram um
impulso notável à educação pública. Houve o crescimento do número e da
qualidade de estudantes e professores, a expansão e a melhoria das instalações
escolares e o aumento espetacular do índice de alfabetização.
Junto com a educação pública, viu-se crescer a imprensa diária e periódica.
Também aumentaram a publicação e a circulação de livros. A lei da liberdade
de imprensa, de 1848, foi responsável por esses avanços.
A imprensa católica de todas as tendências experimentou um conside-
rável ressurgimento, embora não tenha penetrado muito na opinião pública.
Permaneceu ou entrincheirou-se em posições ultraconservadoras, distante,
portanto, da maioria, ou enredada em polêmicas locais que interessavam tão
somente a uma audiência restrita.

Resposta católica às reformas liberais e à secularização da sociedade


A velocidade irreversível do movimento liberal e de seu programa de se-
cularização da sociedade pôs a Igreja em alerta diante do fato de que, não só a
educação, mas também as massas estavam escapando ao seu controle. O alar-
me ecoou rapidamente. Os bispos do Piemonte, na assembleia de 29 de julho
de 1848 celebrada em Villanovetta, aprovaram uma resolução para contra-
-atacar “a falta de religião e a imoralidade com bons livros, a fim de que o povo
não precise recorrer às más leituras para satisfazer sua necessidade de ler”.
Padre Leonardo Murialdo conta que uma das decisões tomadas foi criar
um “comitê provincial cuja responsabilidade era de examinar livros e perió-
dicos, proscrever e proibir os que fossem levianos e licenciosos [...]”. Outra
decisão era criar “uma associação para publicar e distribuir livros sadios”. O
bispo Luís Moreno, de Ivrea, e o bispo Tomás Ghilardi, de Mondovi, coorde-
nariam esse trabalho. E também se ocupariam de preparar:

Uma lista de erros e proposições que circulavam na imprensa contra a fé e


a moral, e também contra a Igreja, o Papa e o clero. Destarte, poderiam ser
refutadas nos periódicos [católicos], em livros e folhetos, escritos com estilo
simples e fácil, que seriam distribuídos gratuitamente ao povo.3

2
A Lei Casati, redigida pelo ministro conde Gábrio Casati e promulgada pelo rei Vítor Emanuel
II em 13 de novembro de 1859, reestruturou o sistema educacional já reformado pelos ordenamentos
de Boncompagni e Lanza.
3
P. Stella, Economia, 348.

151

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Dom Bosco: história e carisma 2

O periódico católico conservador L’Armonia representado como uma velha monja, em


caricatura do periódico satírico anticlerical Il Fischietto (1854).

Pio IX, na encíclica Nostis et Nobiscum, de 8 de dezembro de 1849, in-


sistia na necessidade de contra-atacar “a imprensa com a imprensa”, tema que
retornou com maiores detalhes na encíclica, também sua, Inter Multiplices,
de 21 de março de 1853.
O periódico católico L’Armonia foi fundado em Turim em dezembro de
1848. Outro periódico católico, mais conservador, L’Unità Cattolica, começa-
ria a ser publicado em Turim em março de 1863, depois da unificação da Itália.
A revista jesuítica conservadora, La Civiltà Cattolica, foi fundada em abril de
1850, em Nápoles, transferindo posteriormente sua sede para Roma. O perió-
dico do Vaticano, L’Osservatore Romano, seria fundado em junho de 1861.

Escritor e editor
Dom Bosco logo percebeu a importância de mover-se nesse campo,
como autor e editor. Como autor, já experimentara vários gêneros; entraria,
agora, nesse campo de forma mais decisiva. Em 1856, ele podia proclamar-
-se autor de 26 obras.4 Entraria em cena como editor em 1862, ao criar a

4
Últimas vontades e testamento, de 26 de julho de 1856, em MB X, 1331ss. Cf. lista e comentá-
rios no volume 1 desta série, capítulo XXI, p. 585-587. P. Stella, Vita, 229ss; Michel Ribotta, “Don
Bosco’s history of Italy: a morality play of an exercise in history”, JSS 4:2 (1993), 107-129.

152

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

tipografia e a livraria. Na Carta Circular de 1885 “Sobre o apostolado da


imprensa”, ele escrevia:

Este é um dos apostolados mais importantes que a Divina Providência me


confiou; e sabeis que tenho trabalhado incansavelmente, mesmo envolvido
em outras mil ocupações.5

As obras de Dom Bosco podem ser classificadas segundo as preocupa-


ções que o dominavam nas diversas épocas de sua vida. Escreveu livros piedo-
sos e educativos na década de 1840, obras apologéticas na década de 1850, e
obras relacionadas com a Sociedade Salesiana na década de 1860. Sempre em
resposta ao apelo da Igreja, envolveu-se no apostolado da imprensa ao escre-
ver em duas frentes, em defesa da Igreja contra o ataque da Revolução Liberal
e em defesa da fé católica contra o proselitismo dos valdenses ou protestantes.
Deixando a apologética antivaldense para uma apresentação posterior,
analisamos aqui as obras escritas por Dom Bosco na década de 1850, em
defesa da Igreja, e também outras obras importantes.

2. Escritos em defesa da Igreja e do papado

História da Itália. Primeira edição (1855-1856)6


Entre as obras escritas por Dom Bosco na década de 1850, a História da
Itália deve ocupar lugar de honra, mesmo que o seja só pelo seu sucesso. Re-
digida em rascunho em 1853,7 foi concluída em 1855 e publicada em 1856.

Finalidade e estilo
Sua finalidade era religiosa, moral e apologética, ou seja, para ensinar
que a Itália era o que era por causa da religião católica, a mesma que estava
sendo vilipendiada pela imprensa liberal.
Destinava-se às crianças, aos jovens e à gente do povo. Como na História
sagrada e na História eclesiástica, sua linguagem era essencial, simples e direta.
5
Cf. texto completo da carta no Apêndice deste capítulo.
6
Storia d’Italia narrata alla gioventù da’ suoi primi abitatori sino ai nostri giorni corredata di una
carta geografica d’Italia, dal sacerdote Bosco Giovanni [História da Itália narrada à juventude desde os pri-
meiros habitantes até nossos dias, acompanhada de um mapa da Itália, pelo padre João Bosco]. Turim: Tip.
Paravia e Co., 1855, 560 p. Embora datada em 1855, saiu da gráfica somente em agosto de 1856. Cf.
A. Caviglia, Opere e scritti III. Turim: SEI, 1935. Reimpressão anastática: OE VII [Roma: LAS, 1976].
7
Dom Bosco ao editor Marietti, carta de 14 de fevereiro de 1853, Epistolario I Motto, 190.

153

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Dom Bosco: história e carisma 2

A narrativa era extremamente simples na construção e a cronologia, muito


seletiva, embora respeitando o material histórico do qual se servia.

Fontes
Na introdução, Dom Bosco assegura ao leitor que, embora dirigida à
gente simples, a história baseia-se nos melhores estudos. Suas fontes, porém,
são escassas. Ignorou as obras mais eruditas e usou umas poucas que tinham
finalidade didática e eram dirigidas aos jovens. Além de recorrer a obras que
já empregara em sua História eclesiástica, como a adaptação de Bérault-Ber-
castel continuada por Henrion, serviu-se de alguns livros de texto escritos por
professores da época. Entre estes estavam a História da Itália, de León Tettoni
(editada por Paravia, 1852) e uma História da Europa, com foco na Itália,
totalmente confiável, em três pequenos volumes, obra do professor universi-
tário Hércules Ricotti (1816-1883).8
Todavia, os dois livros em que ele mais se baseou, ambos escritos para crian-
ças, foram a série de história universal de Jules-Raymond Lamé-Fleury (1797-
1878) e a série sobre a história italiana intitulada Giannetto: letture elementari
per fanciulli, de Luís Alexandre Parravicini (1799-1880). A linguagem adaptada
para crianças e a apresentação agradável e direta, além do propósito moral explí-
cito dos dois autores, propiciaram a Dom Bosco o modelo que buscava.

Organização e conteúdos
Dom Bosco estruturou sua História da Itália em quatro partes: a Itália
pagã, de suas origens ao início da Era Cristã; a Itália cristã, desde Cristo até
o final do Império Romano do Ocidente (476 d.C.); a Itália medieval, de
476 até o descobrimento da América (1492); e a Itália moderna, de 1492 até
março de 1856.
Cada seção é dividida em capítulos com títulos concisos, centrados nas
pessoas ou nos acontecimentos, preferencialmente de natureza religiosa: “A
era dos mártires”, “As cruzadas”, “A batalha de Lepanto”, “Juliano, o apósta-
ta”, “Gregório VII”, “O imperador Napoleão” etc. Os temas sociais, políticos,
econômicos... são evitados.
Dom Bosco, na composição do texto, selecionou o que era mais atraente
e edificante. Utilizou as fontes sem qualquer tipo de crítica. Algumas vezes,
citava a fonte literalmente, em outras, reelaborava-a ou fazia uma recompilação
de diversas fontes. O texto da História da Itália é, portanto, fruto de numerosas

Breve storia d’Europa e specialmente d’Italia [E. Ricotti, professore di storia moderna nella Reale
8

Università di Torino]. 2ª ed. Turim: Stamperia Reale, 1852-1854.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

fontes; sua confiabilidade é a das obras menores que foram usadas na sua com-
pilação; o mais discutível, porém, é sua ideologia.

Ideologia
A História da Itália era claramente uma longa lição de moral social e pes-
soal, uma lição modelada pelas ideias morais, religiosas e políticas do próprio
Dom Bosco. Por exemplo, ao elogiar Arquimedes de Siracusa, ele escreve:
“Uma pessoa virtuosa é honrada por todos, também pelos inimigos”. A his-
tória dos irmãos Graco, revolucionários, é encerrada com as palavras: “Assim
pereceram os dois irmãos Graco. Poderiam ter sido estimados como homens
bons e honestos se não tivessem tentado tomar pela força e a violência aquilo
a que não tem direito um cidadão honesto”.9 Seu comentário sobre o suicídio
de um dos seus heróis, Sêneca (65 d. C.) é: “A religião cristã, porém, conside-
ra como grande herói a pessoa que sabe suportar o peso da desgraça”.10
Para Dom Bosco, a virtude e o vício determinam o destino das nações,
assim como as ações dos líderes políticos, dos artistas e, sobretudo, dos santos.
Ele explica dessa forma a queda de indivíduos e nações por causa do orgulho,
da inveja, do egoísmo, da infidelidade aos tratados, da traição e do sacrilégio.
Átila e Napoleão tornam-se culpáveis não pela sua política, mas pelo seu orgu-
lho e crueldade. Por outro lado, o imperador Carlos Magno era “admirável em
todas as coisas”, “simples em seu modo de vida”, soldado piedoso e mecenas
das novas “artes, ciências, civilização e virtude”.11 Entre os papas, Gregório VII
(1073-1085) é o mais admirado. “Nós, italianos, não podemos deixar de admi-
rar muitíssimo este papa: primeiro, porque, em alguns aspectos, libertou a Itália
da dominação estrangeira; e, depois, porque, desde aquele momento, os impe-
radores e reis perderam o poder de interferir na eleição do romano pontífice”.12
Insiste-se no papel da Providência e passa-se por alto pelas forças da
história. Assim “a Providência decreta que Roma deve dominar toda a Itália”.
A Providência também se manifesta nas catástrofes que acontecem entre o
povo e as nações. Por exemplo, Savonarola foi castigado por ter enfrentado
o Papa, representante de Deus na terra: “Se Savonarola tivesse se submetido
aos seus superiores, não teria sofrido essas desgraças”. Ele escreve ao comentar
a morte terrível pela fome, na torre, do tirano de Pisa, conde Ugolino della
Gherardesca, e seus filhos:

9
Storia d’Italia, 76 e 80, os dois comentários são de Lamé-Fleury.
10
Storia d’Italia, 95.
11
Storia d’Italia, 219, 221, 222.
12
Storia d’Italia, 244-249.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Meus filhos, os fatos que acabo de contar-vos levam-nos a refletir seriamente


sobre como a divina Providência observa as ações e o destino dos homens [...].
O conde Ugolino fora cruel e causara a morte de muitos cidadãos em suas
prisões. Por isso, ao ser condenado à morte, ele teve de sofrer todo o horror
da fome. Quão terrível é o juízo de Deus!13

Mapa da Itália inserido na Storia d’Italia (História da Itália), 1855.

13
Storia d’Italia, 293.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Francisco José, da Áustria, é outro exemplo; ele “foi abençoado por


Deus” por causa da concordata com a Santa Sé, como Napoleão III, para pro-
teger a religião católica.14 Dom Bosco percebia uma história de estilo “provi-
dencialista”. A virtude e o vício, o respeito à religião ou sua crítica são fatos
decisivos no processo histórico.
Ocasionalmente, faz comentários políticos com referência implícita ou
explícita a situações de sua época. Aproveita, assim, a ocasião para criticar a
democracia: “Meus amigos, Veneza converteu-se na república mais poderosa
da Itália, porque sempre foi governada pelos melhores homens e jamais caiu
nas mãos do povo, como aconteceu com as repúblicas de Gênova e Florença”.
Apoia a legitimidade da monarquia. Ataca os maçons, pois se dedicam à des-
truição da sociedade e à aniquilação da Santa Sé e de todos os outros “tronos”.
Os comentários religiosos e políticos que salpicam a História da Itá-
lia são essencialmente os de um conservador que escreve com o espírito da
Restauração. Dom Bosco apoia claramente o poder temporal de Pio IX, o
Piemonte de Carlos Alberto e a Áustria de Francisco José. Foi por essa mesma
razão, pela sua eclesiologia ultramontana, que o periódico liberal anticlerical,
a Gazzeta del Popolo, organizou um ataque desapiedado contra o livro em sua
segunda edição (1859).

Segunda edição (1859)15

Oito novos capítulos


Na segunda edição, com o mesmo título da primeira, Dom Bosco reviu,
atualizou e ampliou o texto. O objetivo da nova edição era adequá-la para
ser utilizada como texto nas escolas secundárias e nas escolas de magistério.
Com essa finalidade, embora tenha mantido a divisão de 4 partes da pri-
meira edição, ampliou as primeiras seções e acrescentou 8 novos capítulos à
quarta parte, que se ocupava da Itália moderna. O novo período vai da Guer-
ra da Crimeia (1854-1855, tratada na primeira edição) a março de 1859,
pouco antes da Segunda Guerra de Independência Italiana, que envolveu o
Piemonte e a França contra a Áustria.
O capítulo 37 é dedicado ao terremoto de Nápoles, à abertura da China
e à aparição do cometa Donati.
No capítulo 38, Dom Bosco apresenta personagens contemporâneos.
O último mencionado na primeira edição era o escultor Antônio Canova

14
Storia d’Italia, 522-523. Estas avaliações foram escritas em 1855.
15
Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 547-560.

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Dom Bosco: história e carisma 2

(1757-1822). Entre os novos personagens, ele fala do padre Carlos Denina,


historiador erudito (Le rivoluzioni d’Italia, entre outros títulos). Na vida real,
este historiador era um duríssimo crítico social, relegado à pequena cidade
de Vercelli por atribuir a decadência da Itália aos sistemas educacionais ruins,
à corrupção da nobreza, à mendicância endêmica e ao excessivo número de
monjas, frades e padres. Dom Bosco, porém, o enaltece pela sua perseverança
no estudo e pela sua capacidade de trabalho.
No capítulo 39, Dom Bosco faz uma reparação por ter omitido na pri-
meira edição Joseph-Marie de Maistre (1754-1821). Tendo fugido da França
durante a Revolução Francesa, serviu como embaixador e ministro sob o
reinado de Vítor Emanuel I de Saboia. Foi um escritor político consagrado,
antirrevolucionário e ultramontano convicto. Entre suas obras, Dom Bosco
destaca especialmente Du pape (1819) e Le soirées de Saint-Pétersbourg (1821)
pela sua “filosofia sublime”. Enaltece-o também por ter sido, durante toda a
vida, um “inimigo incansável da preguiça”.
O capítulo 41 fala de Antônio Cesari (1760-1828), da Congregação do
Oratório, que escrevera sobre os clássicos religiosos italianos medievais. Mas
também “encontrou tempo para instruir os jovens, visitar prisioneiros e enfer-
mos e ajudar famílias indigentes”. No capítulo 42, Dom Bosco fala do poeta
Vicente Monti (1754-1828) e cita alguns de seus versos antirrevolucionários.
Embora sua vida nem sempre tenha sido exemplar, morreu santamente. O ca-
pítulo 43 apresenta o gênio das línguas, cardeal José Mezzofanti (1774-1840),
“que sabia falar mais de 300 idiomas e dialetos”. Não lhe importava a comida,
a roupa ou o descanso. Passava 14 ou 15 horas por dia em seus estudos, e
não foi afetado pela vaidade. O capítulo 44 é dedicado a Sílvio Pellico, bi-
bliotecário da marquesa Barolo e amigo de Dom Bosco. Depois da terrível
experiência da prisão pela polícia austríaca na fortaleza de Spielberg, foi para
Turim onde “passou seus dias estudando e praticando a religião”. Também
encontrou a felicidade ajudando os jovens e necessitados.
Antes de concluir, Dom Bosco acrescentava um breve e evasivo capítulo,
o 45, ao grande Antônio Rosmini-Serbati (1797-1855). Dom Bosco sabia
que alguns dos livros do grande filósofo estavam na lista dos livros proibidos
pela Igreja e absteve-se de discutir o pensamento de Rosmini. Louva-o pela
sua caridade e por se submeter humildemente ao juízo do Papa. “Em Rosmi-
ni, a profundidade da sua erudição unia-se à fé firme e incondicional de um
bom católico”.
Além da sua aspiração moralizante, a segunda edição da História da Itá-
lia mostra como era o pensamento de Dom Bosco no momento em que
fundou a Sociedade Salesiana.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Recensão do livro na Gazzetta del Popolo


O periódico liberal e anticlerical mais importante de Turim, a Gazzetta
del Popolo, publicou uma dura recensão da História da Itália, em 18 de ou-
tubro de 1859.
Referindo-se ao apoio dado por Dom Bosco às ideias e à gente contrária
a tudo que representasse a Revolução Liberal e o movimento pela unidade
e independência italiana, o crítico chamava Dom Bosco de “Padre Loriquet
redivivo”. O famoso jesuíta francês, Jean-Nicolas Loriquet (1767-1845) pu-
blicara uma História da França A.M.D.G. (1823) para uso nas escolas. O
Grand dictionnaire de Larousse tachara-o como um “amontoado de mentiras
esboçado para encher os alunos de ódio pelas ideias, instituições e princípios
em que se assentara a moderna sociedade desde 1789 [...]”.
A comparação com Loriquet, se Loriquet merecia ou não essa censura,
foi muito prejudicial para Dom Bosco e seu livro, já que os situava entre os
reacionários. Para sublinhar esse aspecto, o crítico citava numerosos exemplos
do livro com a finalidade de ilustrar o seu juízo sobre o mesmo. Por exemplo,
acusava Dom Bosco de ser pró-austríaco, especialmente em sua descrição da
Primeira Guerra de Independência italiana (1848-1849) e da Guerra da Cri-
meia (1854-1855). O crítico chegava a pedir ao ministro do Ensino Público
que proibisse a publicação do livro e seu uso nas escolas.

Crítica moderada de Nicolau Tommaseo


Figura literária e historiador de certo renome, Nicolau Tommaseo
(1802-1874) era um pensador independente, um liberal moderado que fora
obrigado a exilar-se em Paris pelos governos regionais da Itália e pelo papa
Gregório XVI. Embora fosse republicano e federalista, viveu em Turim na
década de 1850 sem ser incomodado, mas não tranquilamente, pois era
muito crítico em relação à monarquia e à política de Cavour. Dom Bos-
co, tentando obter publicidade para sua História da Itália, enviou-lhe uma
cópia do livro com uma nota pedindo que o mencionasse na revista para
professores L’Istitutore. Tommaseo, que conhecia Dom Bosco e sua obra,
e ficara impressionado com suas obras de caridade durante a epidemia de
cólera de 1854, escreveu uma recensão breve e moderada em que louvava
o autor pela sua pretensão de apresentar a complicada história da Itália de
forma clara e moral às crianças.16 Dom Bosco ficou entusiasmado com o
apoio inesperado.

16
L’Istitutore, 26 de novembro de 1859.

159

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Dom Bosco: história e carisma 2

Vidas de papas (1857-1858)17

Propósito da série
Este projeto tinha a finalidade apologética de defender o papado e, de
modo especial, Pio IX, que se tornara muito impopular a partir de 1848. Se-
gundo afirma Dom Bosco na introdução, o conhecimento dos fatos relacio-
nados com o papado proporcionaria um antídoto contra “o ódio e a aversão
dirigidos contra os papas e sua autoridade”. Começou, assim, um projeto,
certamente hagiográfico, cuja dificuldade talvez não tenha previsto.
Ele tinha experiência no tema dos inícios da cristandade. Além da His-
tória eclesiástica, publicara recentemente, nas Leituras Católicas, a vida de São
Martinho de Tours (século IV) e a vida de São Pancrácio, mártir (século I).18
Para estes opúsculos, ele afirma nas introduções, recorrera, direta ou in-
diretamente, a várias fontes antigas, aos bolandistas e a outras obras moder-
nas. Para as vidas dos primeiros papas, precisou recorrer a fontes análogas,
um material que era hagiográfico e, com exceção dos bolandistas, em certa
medida com base em legendas. E o fez sem qualquer tipo de crítica; de aí que,
desde o início, a série sofresse as consequências de suas raízes duvidosas.

Vida de São Pedro


A vida de São Pedro foi a primeira de uma longa série sobre os antigos
papas.19 Neste caso, diz Dom Bosco, serviu-se de uma obra em três volumes
escrita por Luís Cuccagni e outra mais recente de Antônio Cesari. Guiado
por estes autores, utilizou dados do Novo Testamento, como também dos
Atos de Pedro (apócrifos) e de outras legendas, pois todas lhe mereciam a
mesma confiabilidade. O valor deste livrete, então, deve ser encontrado em
seu propósito moralizante e apologético, como também nos comentários re-
lacionados com as histórias. Por exemplo, depois de relatar o episódio de
Pedro que caminha sobre as águas, escreve: “Os Santos Padres veem [neste
episódio] os conflitos perigosos nos quais as cabeças da Igreja se encontraram
algumas vezes. Contudo, Jesus Cristo, a cabeça invisível, vem logo ao resgate.
Permite as perseguições, mas a vitória é sempre da Igreja”.

A. Caviglia, “Le vite dei papi”. In: Opere e scritti. Turim: SEI, 1929-1965, II 1ª e 2ª, XLIII,
17

446 e 592; F. Desramaut, Don Bosco, 478-485. Como para a História da Itália, guiar-me-ei aqui pela
apresentação de Desramaut.
18
Letture Cattoliche, ano III, fascículos 15 e 16 (10 e 25 de outubro) de 1855, e ano IV, fascículo
3 (maio) 1856.
19
“Vita di San Pietro principe degli apostoli, primo papa dopo Gesù Cristo”. Per cura del sac. Bos-
co Giovanni. Turim: G. B. Paravia, gennaio 1857. Letture Cattoliche ano IV, fascículo 11 (janeiro), 1857.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Outras vidas dos primeiros papas


A vida de São Pedro foi seguida, por associação, pela de São Paulo e,
depois, pela vida de outros papas.
Em 1857: vida dos Santos Lino, Cleto e Clemente; vida dos Santos
Anacleto, Evaristo e Alexandre; vida de Sisto, Telésforo, Higino e Pio I, com
um apêndice sobre São Justino, mártir (167 d.C.). Em 1858: vida dos Santos
Aniceto, Sotério, Eleutério, Vítor e Zeferino; e vida de São Calisto I.

Alguns livretes escritos por Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Poucos comentários são suficientes: 1) Dom Bosco manteve a distinção


entre Cleto e Anacleto. 2) Depois de São Pedro, Dom Bosco abandona o for-
mato estritamente biográfico e analisa os pontificados, introduzindo muitas
pessoas e muitos temas. 3) Tratou do tema de Justino, mártir, em apêndice,
mas São Policarpo de Esmirna (166 d.C.) e Santo Irineu de Lyon (202 d.C.)
mereceram um livrete à parte na série, embora não fossem papas. 4) Dom
Bosco não foge ao modelo hagiográfico e ao uso acrítico das fontes. Escreve
na tradição hagiográfica medieval para o povo simples do século XIX. 5) Os
nomes dos autores, novos e antigos, aos quais se refere na introdução, são
com toda a probabilidade citados nos manuais que ele utiliza. 6) As exorta-
ções morais e religiosas são extremamente importantes. 7) Diversamente do
que ocorreu com muitas de suas outras obras, as Vidas dos papas não foram
reeditadas durante a vida de Dom Bosco.

3. Escritos piedosos e educativos

O mês de maio em honra de Maria Santíssima Imaculada (1858)20


É o primeiro de uma série de textos marianos, escritos por Dom Bosco
que, como o título indica, era sua contribuição para uma devoção muito
ampla. Mais, no final da década de 1850, pretendia ser uma homenagem
à Imaculada Conceição. O livro, na verdade, fala pouco de Maria e muito
de vida cristã. É um pequeno catecismo espiritual que leva o leitor do Deus
Criador à salvação no paraíso.
O formato de Dom Bosco é tradicional. Toma-o emprestado de Santo
Afonso, de São Leonardo de Porto Maurício e de Muzzarelli.21 Quanto ao
seu O mês de maio, porém, é único em vários aspectos. Abstém-se das costu-
meiras meditações teológicas, poéticas e místicas sobre Maria e apresenta uma
série de pequenas homilias dogmáticas e moralizantes que revestem os temas
tratados frequentemente nos exercícios espirituais ou nas missões paroquiais.

20
“Il mese di maggio consacrato a Maria SS. Immacolata ad uso del popolo”. Per cura del sac. Bosco
Giovanni. Turim: G. B. Paravia e Co., abril de 1858. Letture Cattoliche ano VI, fascículo 2 (abril), 1858.
Estudos: P. Stella, “I tempi e gli scritti che prepararono il ‘Mese di Maggio’ di Don Bosco”. Salesianum
20 (1958), 648-694; F. Desramaut, Don Bosco, 508-513. Ver mais adiante, capítulo XIX, p. 606-610.
21
Em 1726, o jesuíta Aníbal Dionisi escreveu o Mês de maio em honra de Maria e, em 1758, outro
jesuíta, Francisco Lalomia, fez o mesmo. Em 1785, o também jesuíta, Afonso Muzzarelli, escreveu um
Mês de maio, que se tornou de uso comum. A prática consistia num exercício “de flores” (virtudes) com
orações, meditações e cânticos. A obra de Santo Afonso, Glórias de Maria, apresentava modelos para me-
ditações, mas formulavam-se temas morais, religiosos, também políticos, e sugeriam-se “modos de agir”.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

A importância do seu O mês de maio está, portanto, no fato de ser uma


declaração de como ele concebia a vida cristã na prática. É a apresentação do
programa espiritual e ascético que desenvolverá para si e para suas finalidades
educativas, servindo-se do mês de maio para apresentá-lo em linguagem sim-
ples para a gente humilde.22

Vade-mécum do cristão (1855)23


Este opúsculo é um apêndice do Mês de maio, pois consiste numa série
de conselhos morais, sociais e domésticos para alcançar a salvação nas cir-
cunstâncias pessoais de cada um.
Os conselhos, diz Dom Bosco, são recolhidos da Bíblia, dos Santos Car-
los Borromeo, Vicente de Paulo, Francisco de Sales, Felipe Neri e do Bea-
to Sebastião Valfré. Eram os patronos do Colégio Eclesiástico. Em primeiro
lugar, Dom Bosco estabelece um quadro geral, com conselhos sobre Deus,
a Igreja, o Papa, os mandamentos, a fé, o pecado e o paraíso. Esses temas
expressam suas convicções básicas como diretor espiritual (de Domingos
Sávio!). “Deus quer que todos nós nos salvemos; na verdade, ele quer que
sejamos santos. Para salvar-se, é preciso ter a eternidade sempre presente no
pensamento, Deus no coração e os pés no chão. Cada um deve cumprir os
deveres próprios do seu estado de vida.”
Em segundo lugar, prevê situações nas quais se podem encontrar pes-
soas que vivem caminhos diversos de vida, e as acompanha com conselhos
moralistas, que enfatizam os “deveres”, procedentes das fontes mencionadas.
Por exemplo, conselhos gerais para os pais são obtidos do Beato Sebastião
Valfré, e conselhos particulares, da Sagrada Escritura e dos Santos Padres.
São Felipe Neri é a fonte dos conselhos sobre os deveres e as coisas impor-
tantes para os jovens. Há também recomendações para mães, governantas,
filhas e empregadas.

22
A lista dos temas é esta: Deus criador, a alma, o Redentor, a Igreja de Cristo, a cabeça da Igreja,
os pastores da Igreja, a fé, os sacramentos, a dignidade de ser cristão, o valor do tempo, a presença de
Deus, o fim da vida humana, a salvação da própria alma, a morte, o pecado, o juízo individual, o juízo
universal, as penas do inferno, a eternidade das penas do inferno, a misericórdia de Deus, a confissão,
o confessor, a Santa Missa, a Santa Comunhão, o pecado de impureza, a virtude da pureza, o respeito
humano, o paraíso, maneiras de conseguir entrar no Paraíso, Maria nossa protetora nesta vida e Maria
nossa protetora na hora da morte.
23
“Porta teco, cristiano, ovvero avvisi importanti intorno ai doveri del cristiano, acciocchè cias-
cuno possa conseguire la propria salvezza nello stato in cui si trova” [Leva contigo, cristão, ou, avisos
importantes sobre os deveres do cristão para que cada um possa obter a própria salvação no estado em
que se encontra]. Turim: G. B. Paravia e Co., julho de 1858. Letture Cattoliche, ano VI, fascículo 5
(julho) 1858 (Dom Bosco assinou a introdução). Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 513-515.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ao insistir nos deveres das diversas categorias, estará Dom Bosco dando
simplesmente conselhos básicos ou estará propondo uma “moral do dever”
com a acentuação incômoda do dever de aceitar a própria condição? E, se for
assim, refletiria a sua moral e espiritualidade? Sobre isso, deve-se ir além da
ênfase dada pela obra aos deveres próprios de cada estado de vida e considerar
a vida de Dom Bosco em seu conjunto. É certo que o dever era um compo-
nente importante, mas somente em vista de fazer a vontade de Deus, e por
amor a Deus e ao próximo.

A vida do jovem Domingos Sávio (1859)24


Apenas vinte e um meses depois da morte de Domingos Sávio em 9 de
março de 1857, Dom Bosco publicou em janeiro de 1859 sua biografia nas
Leituras Católicas. Acompanhou pessoal e atentamente o pequeno livro em
cinco edições seguidas, cada uma delas corrigida e aumentada.

Cinco edições publicadas sob a supervisão de Dom Bosco


A primeira edição foi publicada na primeira série das Leituras Católicas.
Tinha por título “Vida do jovem Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales”.25
A segunda edição saiu em abril de 1860. Parece que esta edição, atual-
mente não disponível, foi preparada e publicada por Dom Bosco para corrigir
e completar a primeira versão do “episódio do banho”, após os comentários de
João Zucca, companheiro de Sávio.26 A segunda edição também passou por
várias revisões e recebeu um capítulo adicional e um apêndice. O capítulo adi-
cional tratava da “mortificação que Sávio fez de todos os sentidos externos”; o
apêndice apresentava “graças” recebidas por meio da intercessão de Domingos.

24
A. Caviglia, “La vita di Domenico Savio” e “Savio Domenico e Don Bosco”. Studio di Don
Alberto Caviglia. Turim: SEI, 1943. In: A. Caviglia, Opere e scritti. IV. Turim: SEI, 1965; A. Caviglia,
San Domenico Savio nel ricordo dei contemporanei. Turim: Libreria Dottrina Cristiana, 1957. Docu-
mentação e testemunhos: C. Salotti, Domenico Savio. Turim: Libreria Editrice Internazionale, 1915;
M. Molineris, Nuova vita di Domenico Savio: quello che le biografie di San Domenico Savio non dicono.
Castelnuovo Don Bosco: Istituto Salesiano Bernardi Semeria, 1974; San Giovanni Bosco, Il Beato Do-
menico Savio allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales. E. Ceria (ed.). Turim: SEI, 1950; A. Lenti,
“Don Bosco’ second great hagiography essay ‘The life of young Dominic Savio’”. JSS 12:1 (2001), 1-52.
J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), J. Bosco, Obras fundamentales, 120-221.
25
“Vita del giovanetto Savio Domenico allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales, per cura
del Sacerdote Bosco Giovanni”. Turim: Tip. G. B. Paravia e Comp., 1859. Letture Cattoliche 7:11
(janeiro de 1859).
26
Na primeira edição da Vida, Dom Bosco escreveu que Domingos sempre recusara o convite
para ir nadar. João Zucca revelou (publicamente) que Domingos tinha ido uma vez nadar com ele.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

A terceira edição ampliada foi publicada em agosto de 1861. Além de


incluir algum novo material em relação à segunda, fixou o conteúdo biográfi-
co básico, ao acrescentar um bom número de episódios. Podem-se mencionar
o horror de Sávio diante da blasfêmia, seu gesto ao homem insolente, sua
correspondência com o amigo João Massaglia etc. O apêndice contém nova-
mente mais testemunhos de “graças”.
As três primeiras edições saíram da gráfica de G. B. Paravia no antigo
formato de bolso das Leituras Católicas.
A quarta edição melhorada, de 1866, saiu pela gráfica do Oratório no
novo formato das Leituras Católicas. Foi supervisionada pessoalmente por
Dom Bosco, que melhorou a linguagem e acrescentou novo material na pri-
meira parte, principalmente na forma de notas de pé de página.
A quinta edição viu a luz doze anos depois, em 1878, novamente
com o título de Vida do jovem Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales, com um apêndice sobre as graças. O texto das provas
tipográficas era o da quarta edição, mas Dom Bosco reescreveu algumas
partes e fez acréscimos consideráveis. Uma delas tratava dos escrúpulos de
Sávio; a outra, um esboço biográfico do padre José Bongiovanni, um bom
amigo de Domingos, que falecera em 1868. Reimpressões desta quinta
edição saíram em 1890 e 1893.

Edições posteriores, baseadas no texto definitivo


Em 1908, por ocasião do quinquagésimo aniversário da morte de Do-
mingos e o início do Processo Informativo Diocesano, padre Amadei pu-
blicou uma nova edição baseando-se na terceira, quarta e quinta edições de
Dom Bosco.27 Nela, a primeira parte oferece o texto de Dom Bosco com os
apêndices da quinta edição; a segunda parte (intitulada Memórias adicionais)
oferece, entre outras coisas, o texto do sonho de Lanzo de 1876, chamado
também “Sonho de Sávio” ou “Sonho do jardim salesiano”.
Em 1934, por ocasião da canonização de Dom Bosco, a Società Editrice
Internazionale (SEI) publicou uma nova edição da biografia de Sávio, junta-
mente com as de Comollo, Magone e Besucco, na coleção Letture edificanti.
O texto baseia-se na quinta edição de Dom Bosco.
A edição do padre Caviglia, de 1943, em Opere e scritti IV reproduz o tex-
to de 1934 e o coteja com o manuscrito e o original da quinta edição de Dom

Ven. Giovanni Bosco, Il Servo di Dio Domenico Savio. Con illustrazioni originali di Giovanni
27

Carpanetto. Turim: Tipografia Salesiana, 1908.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Bosco. Caviglia escreve que é uma “verdadeira, autêntica e definitiva edição que
nos é oferecida pelo santo autor, com suas próprias palavras e somente com elas”.28
As edições feitas pelo padre Ceria em 1950 e 1954 apareceram respec-
tivamente por ocasião da beatificação e da canonização de Sávio. O texto é
novamente o da quinta edição. Cada capítulo termina com comentários e
citações dos processos.29
Este resumo da história editorial é suficiente para demonstrar a importância
da biografia de Sávio na mente do seu autor e na história da Sociedade Salesiana.

Fontes
Para esta biografia, Dom Bosco serviu-se dos seus conhecimentos pessoais
e do testemunho de pessoas que conheceram Domingos nas localidades onde
ele vivera. Ao longo da sua curta vida de quase quinze anos, Domingos viveu
em quatro lugares diferentes. 1o No povoado de San Giovanni, município de
Riva, perto de Chieri, onde viveu os primeiros dezoito meses de vida, de 2 de
abril de 1842, dia em que nasceu, até novembro de 1843, quando a família
se transferiu para Murialdo, que pertencia a Castelnuovo, município de Dom
Bosco. 2o Permaneceu em Murialdo por nove anos e uns quatro meses, até fe-
vereiro de 1853. 3o Em Mondônio, para onde a família Sávio se transferiu. Esta
localidade, hoje pertencente a Castelnuovo, era um pequeno município na-
quela época. Após conhecer Dom Bosco em 2 de outubro de 1854, Domingos
deixou Mondônio. 4o Ingressou no Oratório de Turim em 29 de outubro e ali
viveu até 1o de março de 1857, quase dois anos e meio. 5o Voltou, em seguida,
para Mondônio, onde faleceu nove dias depois, em 9 de março de 1857.
Domingos, como se vê, passou dois terços de sua vida em Murialdo. Ali
começou seus estudos primários com o pároco, continuou em Castelnuovo e
completou em Mondônio.
Dom Bosco escreveu pedindo informações aos três padres que foram
professores de Domingos: João Batista Zucca (1818-1878), capelão da igreja
de São Pedro de Murialdo e professor; Alexandre Allora (1819-1880), profes-
sor primário na escola de Castelnuovo; e José Cugliero (1808-1880), profes-
sor primário na escola de Mondônio. Suas respostas foram incluídas nas atas
dos processos de beatificação de Sávio.30
O primeiro a responder, por carta de 19 de abril de 1857, apenas qua-
renta dias depois da morte de Domingos, foi o professor de Mondônio,
28
A. Caviglia, “Vita Domenico Savio” (Introdução). In: Opere e scritti IV, XVII.
29
A. Caviglia, “Vita Domenico Savio” (Introdução). In: Opere e scritti IV, X-XVII.
30
Positio super introductione causae y Summarium (Roma: Typ. Pont. Instituti Pii IX, 1913). Não ten-
do acesso à Positio ou ao Summarium, baseio-me nas obras citadas na nota biográfica citada anteriormente.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

padre José Cugliero. Enviou um relatório considerável sobre as virtudes e o


bom caráter do “melhor aluno que tivera durante seus vinte anos dedicados
ao ensino”.31
Padre João Batista Zucca, capelão e professor de Murialdo, respondeu
por carta de 5 de maio de 1857. Só tinha palavras de elogio para o jovem Do-
mingos, familiarmente conhecido com o carinhoso nome de Minot, a quem
vira pela primeira vez depois da sua nomeação como capelão em 1848. Con-
tudo, não estava de acordo com a indulgente liberalidade de seus pais.32
Padre Alexandre Allora, professor de Domingos em Castelnuovo nos
anos 1852-1853, escreveu um elogio detalhado profusamente oferecendo um
retrato comovedor do menino. Ao visitar o Oratório algum tempo depois,
expressou sua satisfação pelo fato de Domingos ter perseverado “no caminho
da sabedoria” iniciado sob a sua direção.33
Atendendo ao pedido de Dom Bosco, alguns jovens amigos de Sávio,
como também adultos que o tinham conhecido, apresentaram algumas ob-
servações sobre ele, todas favoráveis e até mesmo carinhosas. Entre os adultos,
Dom Bosco obteve alguns testemunhos por meio de cartas. Podemos citar as
seguintes: um par de páginas de José Reano, antigo aluno do Oratório, de
33 anos; uma carta de José Bongiovanni, amigo de Sávio e clérigo salesiano,
de 23 anos; uma memória, obra do diácono Miguel Rua, de 22 anos; um
testemunho sobre as virtudes de Sávio, de Luís Marcellino, clérigo no Ora-
tório, de 22 anos; um breve esboço biográfico, de João Bonetti, 21 anos de
idade; uma carta de Francisco Vaschetti, 19 anos de idade, que mais tarde
seria padre. Alguns jovens companheiros de Sávio também responderam ao
pedido de Dom Bosco. Por exemplo, certo Roetto e outro chamado Antônio
Duina. Esses e outros testemunhos foram incluídos nas atas do processo de
beatificação de Sávio.34
Além dos testemunhos do pessoal do Oratório, Dom Bosco serviu-se da
correspondência entre Domingos e sua família e o elogio do padre Mateus
Picco, que fora seu professor durante o ano 1856-1857, incompleto pela
morte de Sávio.
Mais importante ainda, Dom Bosco baseou-se em suas próprias recor-
dações e em notas que tomara relativas a Sávio durante sua permanência

31
Cenni storici sulla vita del giovane Domenico Savio di Riva di Chieri, frazione borgata di San
Giovanni [Nota histórica sobre a vida do jovem Domingos Sávio, de San Giovanni, povoado de Riva
di Chieri], in Summarium, 212-214.
32
Summarium, 207-208.
33
Summarium, 209-212.
34
Summarium, 219-220, 241-243, 225-227, 236-238, 231-233, 233-235, 239, 240.

167

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Dom Bosco: história e carisma 2

no Oratório. Escreve na biografia sobre sua entrega a Maria por ocasião da


definição do dogma da Imaculada Conceição, em 8 de dezembro de 1854:

Deste modo, tomando Maria como apoio de sua piedade, sua conduta moral
pareceu tão edificante e adornada de tais atos de virtude, que comecei a anotá-
-los para não me esquecer deles.35

Conteúdo
Os primeiros sete capítulos (páginas 11-33) da biografia propriamente
dita descrevem os primeiros anos da edificante vida de Domingos e sua edu-
cação antes de ingressar no Oratório de São Francisco de Sales. Esta seção
cobre seus primeiros doze anos e meio, de 2 de abril de 1842 a 2 de outubro
de 1854.
A parte principal do livro (capítulos 7-22, páginas 34-109) ocupa-se do
encontro de Sávio com Dom Bosco e sua posterior entrada e vida virtuosa
no Oratório. Este período cobre de 2 de outubro de 1854 a 1o de março de
1857, cerca de dois anos e meio.
Os capítulos finais (23-26, páginas 110-136) relatam a partida de Do-
mingos do Oratório, o avanço da doença e sua santa morte (1 a 9 de março
de 1857), com testemunhos adicionais.
O início descreve simplesmente a organização estrutural da biografia,
mas o objetivo de Dom Bosco, patente em toda a obra, é desafiar os jovens
a seguirem o caminho da santidade. Para consegui-lo, apresenta-lhes como
exemplo um de seus companheiros que aceitou o desafio e completou a via-
gem espiritual (o ideal levado a termo).

35
J. Bosco, “Vida del jovem Domingo Savio”. Juan Bosco, Obras fundamentales, 148.

168

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Apêndice

CARTA DE DOM BOScO SOBRE O APOSTOLADO DA


IMPRENSA (19 DE MARÇO DE 1885)36

Turim, 10 de março, festividade de São José, 1885


Meus queridos filhos em Jesus Cristo:
O Senhor é testemunha de quão grande é o meu desejo de vos ver, de
estar convosco, de falar convosco sobre nossos assuntos e consolar-me com
conversas pessoais, de coração a coração. Lamentavelmente, meus queridos
filhos, minhas forças fraquejam, os efeitos persistentes das doenças sofridas e
os assuntos urgentes que requerem minha presença na França neste momento
impedem-me, ao menos por agora, de seguir este impulso do meu amor por
vós. E, como não vos posso visitar pessoalmente, eu o faço mediante esta
carta. Estou certo de que ficareis contentes por saber que estou pensando em
vós, que sois meu orgulho e meu apoio. E, de acordo com meu desejo de vos
ver crescer a cada dia em zelo e merecimentos diante de Deus, não deixarei de
sugerir-vos de vez em quando alguns meios que tornarão esta tarefa sempre
mais proveitosa.

[Base teológica]
Um destes meios, que vos desejo recomendar mais vivamente, é a difu-
são de boas leituras. Não duvido ao chamar tal atividade de divina, porque o
mesmo Deus fez uso dela para a regeneração da humanidade. Os livros que
ele inspirou foram o meio pelo qual a verdadeira doutrina chegou ao mundo.
Ele quis que esses livros estivessem disponíveis em cada povoado e cidade
da Palestina, e quis que fossem lidos aos sábados nas assembleias religiosas.
Inicialmente, estes livros estavam na posse exclusiva dos judeus, mas depois
que as tribos foram para o exílio na Assíria e na Caldeia, foram traduzidos na

36
Epistolario IV Ceria, 318-321.

169

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Dom Bosco: história e carisma 2

língua siro-caldaica para que todo o Oriente Médio pudesse aproximar-se de-
les usando sua própria língua. Quando a potência grega se impôs, os judeus
estabeleceram colônias no mundo todo e os Livros Sagrados foram copiados
e distribuídos. Uma nova tradução das Escrituras encontrou seu lugar nas
bibliotecas dos gentios. Assim, oradores, poetas e filósofos daquela época re-
correram à verdade da Bíblia em não poucas ocasiões. Por meio desses escritos
inspirados, Deus preparava o mundo para a vinda do Salvador.
Cabe-nos, pois, imitar a obra do nosso Pai celestial. A difusão de boas
leituras entre o povo é um dos meios mediante os quais o Reino do Salvador
pode estabelecer-se e manter-se em muitas almas. As ideias, os princípios e
o ensinamento moral de um livro católico provêm dos livros divinos e da
tradição apostólica. Os livros católicos são muito mais necessários hoje em
dia, quando a irreligiosidade e o uso imoral da imprensa são uma arma para
saquear o rebanho de Jesus Cristo e arrastar para a perdição o incauto e o
desobediente. Devemos, então, contra-atacar com armas semelhantes.

[O poder do livro]
Deve-se dizer, não obstante, que os livros, mesmo sem ter a força da pa-
lavra viva, contam com vantagens em certas situações. Um bom livro chega à
casa em que o sacerdote não é bem-vindo. Será conservado como recordação
ou recebido como presente mesmo por uma pessoa ruim. O bom livro entra
numa casa sem se envergonhar. Sendo recusado, não desanima. Sendo pego e
lido, ensina a verdade calmamente. Sendo afastado, não se queixa, mas espera
pacientemente o momento em que a consciência reavive o desejo de conhecer
a verdade. Talvez seja deixado a empoeirar-se numa mesa ou numa estante, e
não se lhe dê atenção durante muito tempo. Mas chegará o momento da so-
lidão, da dor, do desgosto, da necessidade de descansar ou da ansiedade pelo
futuro. Então, este amigo fiel sacudirá a poeira, abrirá suas páginas e, como
aconteceu com Santo Agostinho, com o Beato Columba e com Santo Inácio,
levará à conversão.
Um bom livro é amável com aqueles a quem o respeito humano apre-
senta dificuldades e se dirige a eles sem levantar suspeitas. Ele se dá bem com
as pessoas de bem e está sempre preparado para criar uma boa conversação
e caminhar com elas para qualquer parte e em qualquer momento. Quantas
almas se salvaram, foram afastadas do erro, incentivadas na prática da virtude
mediante bons livros!
Quem dá um bom livro de presente adquire grande merecimento dian-
te de Deus, mesmo se não conseguir provocar qualquer pensamento sobre

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Deus. Em muitas ocasiões, porém, o bem que faz é muito maior. Mesmo
quando a pessoa que recebe o livro não o lê, quando é levado a uma família,
pode ser lido por um filho ou uma filha, por um amigo ou vizinho. Numa ci-
dade pequena pode tocar as vidas de cem pessoas. Só Deus sabe quanto bem
pode fazer um livro numa cidade, numa biblioteca pública, num sindicato ou
num hospital onde o carinhoso presente de um livro é tão apreciado.
O temor de que alguém recuse o presente de um bom livro não nos deve
deter; pelo contrário. Um nosso irmão de Marselha costumava visitar o porto
e levar uma abundante provisão de bons livros para dar a estivadores, técnicos
e marinheiros. Tais presentes eram sempre aceitos, e muitas vezes esses ho-
mens punham-se imediatamente a olhá-los com curiosidade.

[Dom Bosco e o compromisso dos salesianos com o Apostolado da Imprensa]


Bastam estas simples reflexões preliminares. Gostaria, agora, de chamar
a vossa atenção sobre algumas razões pelas quais nós, como cristãos e espe-
cialmente como salesianos, deveríamos fazer todos os esforços e usar todos os
meios possíveis para difundir os bons livros.

1. Trata-se de um dos apostolados mais importantes que me foram


recomendados pela Divina Providência e sabeis o quanto trabalhei
nele incansavelmente, mesmo quando estava empenhado em mil
outras tarefas. O ódio demonstrado pelos inimigos do bem e as
perseguições desatadas contra mim são uma prova clara de que
o erro considerava esses livros como um formidável adversário, e
que esta obra contava com a bênção de Deus.
2. De fato, é somente com a ajuda especial de Deus que somos ca-
pazes de difundir as boas leituras até esse ponto. O número de
cópias de opúsculos e livros que fizemos chegar ao povo durante
um período inferior a trinta anos ultrapassa os 20 milhões. Em-
bora alguns, certamente, ficaram sem serem lidos, outros podem
ter chegado a alcançar a cifra de 100 leitores. Assim, o número
de pessoas às quais chegam os nossos livros ultrapassa de muito o
número de cópias distribuídas.
3. A difusão de boas leituras é um dos principais apostolados da nos-
sa Congregação. Nossas Constituições, no capítulo 1, artigo 7,
estabelecem que os salesianos “devem aplicar-se na difusão de bons
livros entre o povo, empregando todos os meios que a caridade

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Dom Bosco: história e carisma 2

cristã lhes inspire. Enfim, devem tentar levantar, tanto por pala-
vras quanto por escritos, uma barreira à irreligiosidade e à heresia,
que tentam abrir caminho entre os incultos e ignorantes através de
muitos meios. Com esta finalidade, podem-se fazer homilias oca-
sionais, tríduos, novenas, e a difusão de bons livros” [Constituições
Salesianas (1875), “Finalidades”, art. 7].
4. Consequentemente, os livros que se escolhem para serem distri-
buídos são em geral bons, morais e religiosos. Mais ainda, aque-
les produzidos por nossas gráficas devem ser preferidos por duas
razões. Primeiro, os benefícios derivados podem ser canalizados
para ajudar muitos jovens carentes. Segundo, nossas publicações
pretendem cobrir o campo sistematicamente, e em grande escala,
e assim chegar a cada camada da sociedade.

[Livros para os jovens]


Não é preciso delongar-se neste ponto. Mas com grande satisfação gosta-
ria de fazer um comentário sobre o fato de que através dos anos não economi-
zei esforços, por palavra ou por escrito, para ajudar a uma classe da sociedade
em particular: os jovens. Com as Leituras Católicas procurei chegar ao povo
em geral e entrar em suas casas. Mas, ao mesmo tempo, tentei dar a conhecer
o espírito que dominava em nossos colégios e incitar os jovens à virtude por
meio de escritos como as biografias de Sávio, Besucco e outros. Com O jovem
instruído pretendia aproximar os jovens da Igreja, inculcar-lhes o espírito de
piedade e levá-los à recepção frequente dos sacramentos. Com as coleções
expurgadas de clássicos latinos e italianos, com a História da Itália e outros
livros de caráter histórico e literário procurei fazer-me presente entre eles na
aula. Meu objetivo era preveni-los contra muitos erros e contra as paixões
que seguramente lhes seriam fatais neste mundo e no futuro. Procurei sem-
pre continuar como companheiro deles no recreio, como nos velhos tempos.
Para eles estou planejando uma coleção de livros de entretenimento, que,
espera-se, venham logo à luz. Enfim, através do Boletim Salesiano quis, entre
outras coisas, manter vivos o espírito e os ensinamentos de São Francisco de
Sales nos jovens que se graduaram em nossos colégios e regressaram às suas
famílias. Minha esperança era que fossem, por sua vez, apóstolos para outros
jovens. Não digo que tenha conseguido o que me propus. Só quero insistir
em que agora depende de vós a continuação do projeto e a coordenação de
todos os esforços para levá-lo a cabo em todas as suas fases.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

[Recrutamento de jovens para este apostolado]


Peço-vos, pois, encarecidamente: não descuideis deste importantíssimo
setor da nossa missão. Iniciai-a não só entre os mesmos jovens que a Pro-
vidência vos confiou, mas que, com vossas palavras e vosso exemplo, façais
deles outros tantos apóstolos da boa imprensa.
No início de cada ano acadêmico, nossos alunos, especialmente os no-
vos, ficam ansiosos por unir-se aos clubes de leitura existentes em nossos colé-
gios, sobretudo por que as mensalidades são bastante módicas. Garanti-lhes,
porém, que se unam a esses clubes por própria vontade e não à força. Procurai
persuadi-los de que o façam raciocinando com eles e mostrando-lhes quantas
coisas boas podem obter desses livros e quanto bem podem fazer a outros,
expedindo-os, tão logo sejam publicados, a suas casas, a seus pais, mães, ir-
mãos e benfeitores. Os familiares, mesmo sem serem católicos praticantes,
apreciam esse gesto da parte de um filho, irmão etc., e serão, por isso, com-
pelidos a lerem esses livros, mesmo que seja só por curiosidade. Deixai que
os meninos vejam por si mesmos que enviar esses livros não significa nem
remotamente pregar à família. Que essa ação se torne aquilo que realmente
é: um presente ou recordação feita com carinho. Enfim, quando os alunos
vão para casa [nas férias], deixai-os continuar a estender sua boa obra dando
livros a amigos e parentes. O presente de um livro é demonstração de apreço
por um favor recebido. Também deveriam entregar livros ao pároco com o
pedido de que os distribua e recrute novos membros [assinantes].
Garanto-vos, meus queridos filhos, que estes esforços trarão a bênçãos
do Senhor para vós e vossos meninos.

[Exortação final]
São estes os meus assuntos. Depois de ler esta carta, tirai vossas conclu-
sões pessoais. Vede que nossos jovens aprendem moral e princípios cristãos
especialmente através de nossas publicações, mas sem desprezar as dos ou-
tros. Deixai-me mostrar-vos meu descontentamento ao saber que em algu-
mas de nossas casas, livros editados por nós especificamente para os jovens
são ou muito desconhecidos ou bem pouco apreciados. Não ameis nem fa-
çais amar aos outros aquela ciência que, segundo diz o apóstolo, inflat [in-
cha]. Recordai que Santo Agostinho, que era um renomado mestre das letras
e orador eloquente, uma vez nomeado bispo, escolheu um linguajar simples
e a pouca elegância de estilo para evitar o risco de não ser compreendido
pelo seu povo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre convosco. Rezai por mim.
Afeiçoadíssimo em Jesus Cristo,
Sac. Gio. Bosco [Padre João Bosco]

Cópia impressa da carta circular de Dom Bosco sobre o “apostolado da imprensa”


(19 de março de 1885).

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Capítulo VI

ESCRITOS POLÊMICOS E APOLOGÉTICOS


DE DOM BOSCO

1. Dom Bosco e os valdenses


Para melhor compreender os escritos antivaldenses de Dom Bosco e
seu estilo apologético, convém descrever sua posição sobre a nova situa-
ção religiosa.

Antes de 1850
Em outubro de 1847, circulava uma petição de emancipação ou reco-
nhecimento oficial dos direitos dos valdenses e judeus. Dom Bosco, entre
outros, recusou-se a assiná-lo.1 A Constituição (Lo Statuto), outorgada pelo
rei Carlos Alberto em 4 de março de 1848, declarava que “a religião católica,
apostólica e romana é a única religião de Estado. Os credos já estabelecidos
são tolerados de acordo com as leis” (art. 1o). Em 29 de março de 1848, um
Decreto Real interpretava em sentido amplo os artigos 1 e 24, que se referiam
à tolerância de outros credos, outorgando, de fato, aos valdenses e judeus não
só “tolerância” social, mas todos os direitos civis e religiosos.2 O processo ter-
minou quando uma lei foi aprovada em 19 de junho de 1848 que lhes conce-
dia oficialmente a emancipação. Havia, naquele momento, no Piemonte, uns
21 mil valdenses e 7 mil judeus.
O governo liberal do Reino da Sardenha e mais tarde da Itália unificada
favoreceu os valdenses com esta política prática e anticlerical. Como conse-
quência, eles apoiavam o governo liberal contra a Igreja oficial. Os líderes

1
MB III, 272s.
2
MB III, 291s.

175

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Dom Bosco: história e carisma 2

valdenses, de modo especial os pregadores, gozaram da proteção do Estado,


como também da imprensa liberal e dos intelectuais liberais. Em algumas re-
giões, eles conseguiram, inclusive, um forte apoio da maçonaria. Por sua vez,
sempre respaldaram o sistema liberal, primeiramente com Cavour e a direita
liberal; mais tarde, com os governos da esquerda liberal. Mantiveram-se, po-
rém, sempre hostis a Mazzini e ao seu republicanismo.
Favorecidos pelas circunstâncias, os valdenses iniciaram um vigoroso
e caro programa construindo escolas e capelas e lançando uma campanha
agressiva de propaganda entre a população em geral com a distribuição de
Bíblias e doações em dinheiro.3 Dom Bosco, que nesse momento (1848)
preparava a segunda edição de sua História eclesiástica, aproveitou a oportu-
nidade para expor os erros dos valdenses.

Polêmicas na década de 1850


Depois de 1850, os valdenses sob a influência do calvinismo genebrino
intensificaram a atividade missionária e de proselitismo, provocando con-
frontação com os católicos, acompanhada de polêmica exasperada de ambos
os lados. Pregadores valdenses notáveis foram Paulo Geymonat, em Gênova,
João Pedro Meille (1817-1884), Amadeu Bert (1809-1883) e Luís De Sanctis
(1808-1869),4 em Turim.
Em 1850, Dom Bosco escreveu um opúsculo intitulado Lembrança
para os católicos. Em 1851, colocou-o como apêndice à segunda edição de
O jovem instruído. As Leituras Católicas, iniciadas em 1853, foram esque-
matizadas especialmente para responder à propaganda valdense. A coleção
foi apresentada com uma nova edição dos Avisos aos católicos, seguida da
publicação de 6 capítulos, entre março e agosto de 1853, de um cate-
cismo apologético com 452 páginas, intitulado O católico instruído em
sua religião.
Nessa época, estava em construção um templo valdense não muito
distante do Oratório de São Luís. O templo foi consagrado em 15 de
dezembro de 1853.5 Sobre esse projeto, Dom Bosco escreveu ao cardeal
Antonelli:

3
Os valdenses combateram o Oratório de São Luís, localizado em sua região, com todos os meios
disponíveis, bons e maus. Cf. G. Bonetti, Storia, 113-117; MB III, 401ss.
4
Este último fora religioso da Congregação dos Ministros dos Enfermos, de São Camilo de Lellis.
5
MB IV, 695, também narra a forma com que o governo favorecia os valdenses, assim como a
agressão sofrida por Dom Bosco.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Eminência, a besta feroz saiu de seu covil, e já não há qualquer caçador que
seja capaz de abatê-la com sua arma. Há apenas alguns poucos subordinados
que se lamentam com desespero, mas cuja voz é sufocada pelo seu tremendo
e ensurdecedor rugir [da besta]. O fato é que os protestantes [valdenses] co-
meçaram a construir um segundo templo, aqui em Turim.6

Dom Bosco escreveu outros tratados e opúsculos contra as doutrinas


valdenses: Disputa entre um advogado e um pastor protestante (1853); Con-
versão de um valdense (1854). Exemplo posterior é Severino, ou as aventuras
de um montanhês (1868). Uma passagem da Vida de Santa Zita, empregada
doméstica, e de Santo Isidoro, lavrador (1853), demonstra o modo de Dom
Bosco polemizar. Seu argumento é que a santidade é um traço da verdadeira
Igreja, a católica:
Entre as muitas razões que demonstram a santidade da Igreja católica também
há esta: durante longo tempo, muitos de seus membros resplandeceram com
suas virtudes insignes e seus milagres, e todos os seus filhos são chamados
à santidade. As outras religiões, diversamente, trazem impressa a marca do
vício. Em sua própria origem, longe de ser pregada por homens ilustres por
virtude e santidade, o foi por homens viciosos e apóstatas. E quando se des-
cobre alguma virtude em seus seguidores, deve-se atribuí-lo aos sentimentos
de Deus Criador, inseridos no coração do homem ao dotá-lo de razão, ou
melhor, ao que retiveram da santa religião católica. Além disso, podemos de-
safiar calvinistas, luteranos, valdenses, anglicanos, todos os hereges juntos de
todas as seitas a mostrar-nos uma única pessoa entre eles tão eminentemente
virtuosa em grau heroico como exige a Igreja romana de seus filhos para
elevá-los à honra dos altares [...].7

A propaganda valdense dentro do Oratório encontrava a oposição de


Domingos Sávio e da Companhia da Imaculada.8 Os valdenses atuavam em
outras cidades além de Turim, incluindo Castelnuovo. Dom Bosco e padre
Cafasso procuraram neutralizar seus esforços de proselitismo.9
Deve-se dizer que, embora Dom Bosco atacasse os ensinamentos valden-
ses com a retórica tradicional, nunca desceu a ataques pessoais ou injúrias. Ao
contrário, foi objeto de numerosos ataques pessoais feitos pelos valdenses.10

Epistolario I Motto, 197.


6

MB IV, 574. A apologia antivaldense de Dom Bosco será descrita mais adiante.
7

8
MB V, 490s.
9
MB V, 622ss.
10
Atentou-se contra a sua vida, cf. MO, 201ss; MB IV, 696ss. Sobre o cão cinzento (Grigio), cf.
MO, 247ss. e MB IV, 710ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Encontros pessoais
As Memórias Biográficas contêm numerosos exemplos de debates entre
Dom Bosco e valdenses, e também casos de conversões.11
É interessante a correspondência entre Dom Bosco e o engenheiro e
arquiteto valdense João Priana Carpani, um fanático de convicções evan-
gélicas.12 Motivo do intercâmbio foi organizar um debate “para descobrir
a verdade”. O segundo ponto da proposta de Dom Bosco diz: “Se o senhor
pretende servir-se apenas da Bíblia ou mesmo da tradição e, no primeiro
caso, qual Bíblia quer usar: a grega ou a hebraica, a latina, a italiana, ou a
francesa?”.13
Dom Bosco ajudou alguns ministros valdenses, que tinham sido católi-
cos, a regressarem à Igreja.14 A relação e a história das numerosas entrevistas
entre Dom Bosco e Luís De Sanctis, que era ministro evangélico expulso da
igreja valdense, são de grande interesse.15

Os anos seguintes
Em 1861, Dom Bosco escreveu ao arcebispo Joaquim Limberti, de Flo-
rença, para preveni-lo sobre o perigo da atividade protestante na Toscana.
Depois de falar da atividade missionária anglicana naquela cidade, continua
a descrever os “métodos protestantes”:16

Turim, 18 de junho de 1861


Excelência Reverendíssima:
[...] Para conseguir convertidos, os protestantes usam uma série de meios.
Primeiro, distribuem livros anticatólicos de todas as formas que podem. Em
segundo lugar, derramam dinheiro, especialmente quando o convertido em
perspectiva é um sacerdote, e já conquistaram vários deles. Certo Antônio
Agostini, coadjutor de uma paróquia na Toscana [...], é um convertido. Con-
segui colocar-me em contato com ele há alguns dias, e encontrei-o destruído
pelo arrependimento [...]. Em terceiro lugar, os protestantes são muito ativos
na instrução dos jovens, e visitam os jardins de infância e as escolas primárias

11
MB IV, 616ss; V, 449ss; 658ss; VI, 475ss; VII, 64ss.
12
MB V, 403s.
13
MB V, 450s.
14
MB VII, 177.
15
MB V, 138ss.
16
Epistolario I Motto, 448-450.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

para obter seus fins e oferecem presentes e dinheiro como isca. São esses os
meios pelos quais nestes anos tiveram êxito ao conseguir arrebatar-nos alguns
milhares de nossos católicos.
O senhor sabe melhor do que eu o que deve fazer. Em todo caso, esteja alerta
e faça todos os esforços necessários para evitar deserções danosas entre o
clero. Promova a difusão de bons livros entre o povo, especialmente aqueles
que desmascaram o absurdo do protestantismo. Contudo, o principal objeto
da sua preocupação pastoral deve ser a instrução catequética dos jovens, pre-
ferivelmente em grupos pequenos.
É isso que estamos fazendo aqui [em Turim], e creio que seja a única coisa que
podemos fazer se quisermos levantar alguma barreira entre nós e o demônio
que nos invade. [...]

Os protestantes a que Dom Bosco se refere nesta carta são os que


ele melhor conhecia, ou seja, os valdenses. Foi contra eles que se dirigia a
apologética das Leituras Católicas, embora seus argumentos tivessem em
mente todos que os fossem não católicos, valdenses, luteranos, calvinistas,
anglicanos, incluindo judeus, muçulmanos e infiéis, qualquer um que não
fosse católico.
Em outra carta ao arcebispo Limberti, Dom Bosco fala do mais recente
empreendimento valdense em sua ambição de proselitismo ao criarem uma
gráfica em Florença:17

Turim, 25 de março de 1862


Excelência Reverendíssima:
[...] Os protestantes transferiram para Florença uma gráfica que funcionava
aqui em Turim. A transferência foi pensada para dar-lhes uma base mais cen-
tral a fim de distribuírem mais facilmente suas publicações malignas por toda
a Itália. Comunico-o para vosso conhecimento.
Se souber de algum menino pobre que possa estar sofrendo ataques desses
nossos inimigos e correndo perigo de converter-se numa vítima de sua impie-
dade, por favor, faça-me saber. Ficaria feliz, trazendo-o à nossa casa, sempre e
desde que tenha entre 12 e 18 anos de idade [...].

Em dezembro de 1863, Dom Bosco apresentou à Conferência Episcopal


do Piemonte um memorando sobre as atividades de proselitismo valdense, e
o que teriam conseguido em toda a província eclesiástica, especialmente em
17
Epistolario I Motto, 489-490.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Turim.18 Em 1870, ele decidiu construir a igreja de São João Evangelista no


Oratório de São Luís, precisamente para enfrentar a propaganda valdense e a
influência das atividades do templo que tinham naquele bairro.19 O projeto
atrasou, mas a igreja foi consagrada em 1882.
Em 1876, Dom Bosco abriu uma casa em Vallecrosia (Bordighera) e,
mais tarde, construiu ali uma igreja, com a mesma intenção de compensar a
propaganda valdense.20 Em 1877, ele abriu uma casa em La Spezia, também
motivado pela urgência de neutralizar o proselitismo protestante. Neste caso,
eram os batistas ingleses, e não valdenses italianos, que chegaram a La Spezia
em 1862.21 As Memórias Biográficas conservam o testemunho dos esforços
de Dom Bosco para rebater os valdenses durante a Exposição Nacional de
Turim, em 1884.22
Entretanto, na década de 1860, as polêmicas contra os valdenses redu-
ziram-se consideravelmente, embora nunca tenha abandonado sua postura
eclesiológica em relação a todos os protestantes: eram hereges, estavam fora
da Igreja, porque não estavam unidos ao Papa.

2. Os escritos polêmicos antivaldenses (1850-1853)

Um precedente: a História eclesiástica, de Dom Bosco


Já se falou da origem, publicação, estrutura, fontes, conteúdos, conceitos
da História eclesiástica, de Dom Bosco. Embora seu principal propósito fosse di-
dático, é uma demonstração da eclesiologia conservadora de Dom Bosco. Nesse
sentido, pode-se ver uma prévia da apologética antivaldense em que Dom Bosco
entrou na década de 1850. Em 1845, os valdenses ainda não estavam em cena
como adversários religiosos. Isso aconteceu somente quando, com a Constitui-
ção de Carlos Alberto, adquiriram os direitos civis e a liberdade de culto, conver-
tendo-se numa força de proselitismo que era preciso levar em conta.

Os valdenses na História eclesiástica


Nas duas edições da História eclesiástica (1845 e 1848), Dom Bosco só
descreve brevemente os valdenses, sem lhes dar importância:

18
MB VII, 568ss.
19
MB IX, 691ss.
20
MB XI, 411s.
21
MB XIII, 538s.
22
MB XVII, 243ss.

180

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Os valdenses tiveram início com Pedro Valdo, um comerciante de Lyon.


Afetado pela morte súbita de um companheiro durante um banquete, in-
centivou seus outros amigos a abraçarem voluntariamente a pobreza, e ele
mesmo começou a pregar baseando-se na Sagrada Escritura, da qual era
totalmente ignorante.
Ele condenou a veneração das imagens sagradas, a confissão, a extrema
unção, as indulgências e a doutrina do purgatório. Quando foi ameaçado
em seu próprio país, não desistiu. Com alguns amigos errantes, passou à
Saboia e, de ali, ao vale de Lucerna, próximo a Pinerolo, onde o povo os
chamava de barbet [tios]. Seus erros foram continuamente rebatidos, mas
eles se obstinaram com tenacidade. Foram condenados no décimo primeiro
concílio ecumênico, o terceiro de Latrão, realizado em 1179 sob o pontifi-
cado de Alexandre III, com a participação de 300 bispos de todas as partes
do mundo católico. Contudo, estes espíritos inquietos continuaram a criar
discórdia aonde quer que fossem. Foram condenados novamente em vários
concílios e, afinal, severamente castigados pelo imperador e pelos reis da
França e Aragão. Posteriormente, os valdenses uniram-se aos protestantes,
formando uma única seita com eles.23

Para Dom Bosco, os valdenses constituíam uma seita herética, fruto


da intransigente estupidez de outra época. Em matéria de religião, o líder
Pedro Valdo e seus primeiros seguidores eram uns ignorantes pretensiosos,
condenados solenemente pela Igreja, ou seja, pelo arcebispo de Lyon, pelo
Papa e por um concílio ecumênico. Eram rebeldes e foram merecidamente
castigados por fomentarem a discórdia na sociedade. Suas doutrinas eram
semelhantes à dos reformados, com os quais nesciamente se associaram. Em
que sentido a História eclesiástica é um precedente?
Teses explícitas e ocultas
Fundamentalmente, a História eclesiástica tem uma finalidade didáti-
ca; foi escrita para dar lições morais e religiosas. Contudo, a primeira lição
dada na mesma definição de história eclesiástica, na primeira pergunta do
preâmbulo, é uma afirmação ideológica significativa: “História eclesiástica
é simplesmente a narração dos acontecimentos hostis ou favoráveis à Igreja
desde sua fundação até o momento presente”.24 A Igreja aparece envolvida
na luta entre a cidade de Deus e a cidade do demônio. Cada uma das seis

23
História eclesiástica (1845), 227-228. OE I, 364-365. Os valdenses foram excomungados no
Concílio de Verona (1184), que não foi ecumênico.
24
Storia ecclesiastica (1845), 9, Prefazio. OE I, 167.

181

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Dom Bosco: história e carisma 2

épocas contém exemplos de agressões das forças do mal com o resultado final
da vitória da Igreja.
Dom Bosco também trata de outros aspectos da vida da Igreja. Louva a
atividade missionária e a contribuição cultural e civilizatória dos mosteiros e
das congregações religiosas. Faz menção especial da atividade de beneficência
das congregações envolvidas em obras de caridade e não deixa de mencionar
a contribuição dos leigos.
Tema recorrente ao longo do livro é que assim como Deus é autor de
tudo o que é bom, o demônio é autor de tudo o que é ruim encontrado pela
Igreja. Satanás é o instigador de todas as heresias e de todas as perseguições.
Deus, sem dúvida, é “o responsável” final e não os livra do castigo. Dom Bos-
co ressalta as mortes ignominiosas de hereges e perseguidores. Sobre isso, em
resposta à pergunta do livro, “O que devemos aprender então sobre a história
da Igreja?”, Dom Bosco responde:

A história da Igreja ensina-nos primeiramente que muitos dos que se rebe-


laram contra ela fizeram cair sobre si mesmos, também em vida, o castigo
divino, e tiveram um final terrível e desconsolado. Em segundo lugar,
ensina-nos que a religião católica é a [verdadeira Igreja] de Jesus Cristo.
As outras recebem o nome de seus fundadores [...]. Não estão, portanto,
na Igreja de Cristo, mas na sinagoga do anticristo. Ainda mais, a Igre-
ja católica pode ilustrar a sucessão [de seus papas] desde Gregório XVI
[1831-1846] até chegar a São Pedro e a Jesus Cristo. Todos eles sempre
defenderam, com ações e palavras, as mesmas verdades que escutamos [de
Cristo] no Evangelho.
Através dos anos, a Igreja foi atacada com a espada e a pena, mas sempre
saiu triunfante. Reinos, repúblicas e impérios caíram ao seu redor e foram
destruídos. Somente ela permaneceu firme e inabalável [...]. Guiada pela mão
de Deus, a Igreja resistirá e continuará a florescer para aqueles que hão de vir
depois de nós.25

Com esta eclesiologia, com que se envolveu profundamente, Dom Bosco


entrou no debate contra os valdenses.

25
Storia ecclesiastica (1845), 587-588. OE I, 645-646.

182

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

A Igreja católica, apostólica e romana ou Avisos aos católicos


(1850)26

Inícios polêmicos
A comunidade valdense proclamava que era uma igreja evangélica, pura,
longe de tudo que tivesse a ver com Roma. Condenava a tradição católica
religiosa, litúrgica e devota e, como consequência, a maioria das ideias reli-
giosas professadas por Dom Bosco e inculcadas nos seus jovens. A Revolução
Liberal de 1848 marcou o ressurgimento dos valdenses no Reino da Sarde-
nha, sendo um exemplo disso o livro de Amadeu Bert sobre eles.
Foi nesse contexto que Dom Bosco decidiu enfrentar os valdenses, fa-
zendo-o com critérios usuais na apologética do tempo, que eram ditados por
uma teologia discutível e pelo conhecimento imperfeito das origens da Igreja
e da sua evolução histórica. Essa apologia era dirigida não só contra os val-
denses, mas contra todas as outras heresias e, ocasionalmente, também contra
os não crentes.
O combate apologético de Dom Bosco materializou-se em algumas
obras, das quais as duas primeiras são os Avisos aos católicos, editada pela pri-
meira vez em 1850, e O católico instruído em sua religião, publicada em 1853.
Enquanto na História eclesiástica (1845), Dom Bosco descrevia breve-
mente os valdenses sem dar-lhes muita importância, nos Avisos aos católicos
(1850), começou a aludir a eles diretamente, pois já estavam livres para suas
atividades religiosas e para fazer proselitismo. Organizou o tratado em 6 capí-
tulos breves em forma de pergunta e resposta, como um pequeno catecismo.
Neles, procura demonstrar que a verdadeira religião é a que foi revelada por
Deus, e que só pode ser aquela fundada por Cristo, ou seja, a religião católi-
ca, porque somente ela possui as características de uma origem divina: una,
santa, católica e apostólica. Às demais, embora se digam cristãs, falta alguma
dessas características essenciais, ou todas elas.

26
[Giovanni Bosco] La Chiesa cattolica-apostolica-romana è la sola e vera Chiesa di Gesù Cristo: avvisi
ai cattolici (Avisos aos católicos). I nostri Pastori ci uniscono al Papa, il Papa ci unisce con Dio (Nossos pastores nos
unem ao Papa; o Papa nos une a Deus). Turim: Tipografia Speirani e Ferrero, 1850. OE IV, 121-143. Apare-
ceram edições posteriores ligeiramente revistas. Em 1851, uma edição revista e ligeiramente aumentada foi
incluída como apêndice de O jovem instruído com o título Fondamenti della cattolica religione (Fundamentos da
religião católica). Em 1853, a edição de 1851 dos Avisos (praticamente idêntica) serviu como volume introdu-
tório à coleção das Leituras Católicas (veja-se mais adiante). O texto aparece em OE IV, 165-193. Dom Bosco
diria mais tarde que produziu e fez circular em dois anos umas 200 mil cópias deste fascículo. MO, 237.

183

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco conclui o livro pedindo aos leitores que agradeçam a Deus
pelo fato de serem católicos e rezem pela própria perseverança e a conversão
daqueles que vivem separados da Igreja de Deus. E escreve no final: “Ficai
atentos diante dos protestantes e dos maus católicos”.27
A apologética refletida nos Avisos aos católicos vista com os critérios de
hoje, é seriamente defeituosa. Baseia-se em premissas eclesiológicas ultra-
montanas, muito comuns nos tempos de Dom Bosco e mesmo depois. A
visão simplista das origens do cristianismo, a concepção não histórica do
magistério dogmático, a sucessão apostólica restrita praticamente aos papas,
a exclusão total dos não católicos, a condenação em bloco de valdenses, pro-
testantes, judeus, muçulmanos, hereges e descrentes são premissas deficientes
apresentadas também com estilo nada sutil.

O católico instruído na sua religião (1853)


Em 1851, depois de ler um livro em defesa dos valdenses, escrito pelo
seu ministro em Turim, Amadeu Bert,28 Dom Bosco começou a redigir um
extenso tratado apologético, O católico instruído, publicado como uma co-
leção nas Leituras Católicas, a começar no primeiro ano de sua publicação
(1853).29
Antes de comentar O católico instruído convém apresentar sumariamen-
te o livro Os valdenses, de Amadeu Bert.

Os valdenses: uma defesa dos valdenses (1849)


Bert via os valdenses, em sua longa e turbulenta história, como vítimas
da intolerância e da perseguição de papas e governantes, e objeto de precon-
ceitos e ódios da parte do povo.

27
Avisos aos católicos, 21-25. OE IV, 183-187.
28
A apologia valdense de Amadeu Bert intitulava-se: I valdesi, ossieno i cristiani-cattolici secondo
la Chiesa primitiva abitanti le così dette valli di Piemonte. Cenni storici, per Amedeo Bert, “ministro del
culto valdese e cappellano delle delegazioni protestanti a Torino” (Os valdenses, ou seja, os cristãos católicos
[que vivem] de acordo com a Igreja primitiva nos vales chamados do Piemonte, por Amadeu Bert, ministro
do culto valdense e capelão da delegação protestante de Turim). Turim: Gianini e Fiore, 1849, XXXV-498.
29
A obra de Dom Bosco escrita para refutar Bert intitulava-se: Il cattolico istruito nella sua reli-
gione. Trattenimenti di un padre di famiglia co’ suoi figliuoli secondo i bisogni del tempo, epilogati dal sac.
Bosco Giovanni (O católico instruído em sua religião. Conversações de um pai de família com seus filhos
levado pela necessidade destes tempos, compiladas pelo padre João Bosco). Turim: Tipografia dir. pelo P.
De Agostini, 1853, 111 p. + 340 p. OE IV, 195-305 (Conversações I-VII) + 307-646 (Conversações
VIII-XLIII + Nota em interpretação privada). Tratava-se de uma coleção de tratados publicados nas
Leituras Católicas em 6 capítulos, todos em 1853. Apareceram em março, abril, maio, julho e setembro.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

História
Bert argumenta que o movimento valdense teve sua origem no tempo do
imperador Constantino, quando a doutrina, o culto e o governo da Igreja de
Cristo começaram a perder sua pureza original. Nessa época, diz ele, um gru-
po de cristãos iluminados resistiu ao desvio do modo de vida do Evangelho.
Bert não vai além e não proclama, como fazem outros, que os valdenses têm
sua origem nos tempos de São Paulo ou São Tiago.
Durante o primeiro milênio, os valdenses viveram nos vales alpinos seguindo
o modo de vida do Evangelho e recusaram-se a aceitar o domínio papal. Estes
cristãos evangélicos não eram nem loucos nem mentirosos. Mesmo antes de
Valdo, no século XII, os valdenses preservaram a doutrina e o culto cristãos
das origens. Mas os papas da Idade Média e seus inquisidores acusaram-nos
de heresia e bruxaria, embora na simplicidade de sua religião só desejassem
levar uma boa vida moral e litúrgica, mais do que dogmática.
Gostariam de viver em paz no sul da França, na Boêmia e na Apúlia, mas a
história da comunidade durante a Idade Média também é a história da “dege-
neração permanente do papado”.
A Reforma protestante foi um acontecimento que reavivou o entusiasmo e
a alegria entre os valdenses. A ignorância e a corrupção do clero, a venda de
indulgências e outros abusos tolerados pela Santa Sé fizeram com que Lutero
retornasse ao cristianismo do Evangelho. E recordou que “o Papa não é infa-
lível”. Os valdenses que viviam nos vales do Piemonte fizeram causa comum
com a Reforma, e, por isso, foram objeto de perseguição incessante. Centenas
de pessoas foram expulsas de suas terras ancestrais e forçadas a fugir e refugiar-
-se na Suíça ou Alemanha.
A Revolução Francesa, até 1830, não fez muito para melhorar a situação dos
valdenses. Só no Piemonte, com a subida ao trono do rei Carlos Alberto em
1831, ela melhorou gradualmente. O rei fora discípulo do ministro valdense
Vaucher, professor na academia protestante do cantão de Genebra.
Finalmente, sob Pio IX, um papa reformista, e com o início de uma nova
ordem política e social na Itália, o rei Carlos Alberto concedeu liberdade e
direitos civis aos valdenses em 27 de fevereiro de 1848, sem levar em conta os
protestos de alguns membros da hierarquia. Foi de fato um ato de graça, mas
também de justiça, retardado por longo tempo. Bert acrescenta que os gover-
nantes da Casa de Saboia só perseguiram os valdenses quando eram instigados
pelos líderes de um falso catolicismo.
Agora, que teve início uma nova era de liberdade para os valdenses, a Igreja
Católica Romana nada tem a temer. Nosso desejo é que um dia a Itália não
seja nem valdense nem católico-romana, mas simplesmente cristã.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capa de I valdesi (Os valdenses), escrito polêmico


do pastor valdense Amadeu Bert (1849).

Crenças
Enquanto narra a suposta história dos valdenses, Bert também explicita suas
crenças religiosas. Os valdenses professam a fé cristã pura da Igreja primi-
tiva. Jesus pregou uma doutrina simples e pura, e com sua morte deu-nos
um exemplo de sacrifício e amor. Com isso, “restituiu à família humana sua
liberdade original”.
Durante os 3 primeiros séculos, os fiéis não tinham lugares especiais de cul-
to, não possuíam uma hierarquia, viviam em comunidades independentes
unidas tão somente pelos “laços sagrados da fé e da caridade”. Seus bispos e

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

outros ministros não tinham nem riquezas nem poder temporal. Os cristãos
reuniam-se em assembleias só para ler e escutar as Sagradas Escrituras expli-
cadas no próprio idioma, e para cantar os louvores do Senhor. Para os fiéis, o
único dia santo era o domingo, e havia alguns dias de jejum e a comemoração
dos fatos mais importantes da vida de Jesus Cristo.
Os valdenses reverenciavam a Bíblia; acreditavam nas verdades do credo dos
apóstolos e do magistério dos primeiros 4 concílios. Mas recusavam todas as
inovações que causaram e continuaram a causar problemas à Igreja de então.
Recusavam, portanto, o primado de Pedro, a autoridade suprema do Papa,
o poder dos bispos como este evoluíra, a hierarquia eclesiástica e qualquer
domínio clerical.
Os valdenses celebravam o Batismo e a Eucaristia, mas não aceitavam os
outros 5 sacramentos do catolicismo romano porque eram antiapostólicos e
iam contra as escrituras. Os ritos, os símbolos materiais e as fórmulas desses
sacramentos eram não só “estranhos, inúteis e censuráveis”, mas também
“blasfemos”.
Recusavam a doutrina do purgatório e a oração pelos mortos. Consideravam
que o culto aos santos era uma prática de “idolatria”, contrária à doutrina da
mediação única de Jesus. Reverenciavam a Virgem Maria como santa, hu-
milde e cheia de graça, mas de uma graça que não podia ser compartilhada.
Também recusavam a veneração das imagens dos santos e de suas relíquias.
Não aceitavam as peregrinações, a água benta, a sacralidade dos cemitérios, a
cruz, a bênção de ramos, os vasos sagrados ou os adornos nas igrejas.

Tratado antivaldense de Dom Bosco


Com O católico instruído, Dom Bosco assumiu a tarefa ingente de refu-
tar a história dos valdenses e de suas crenças como apresentada por Bert:
Caráter polêmico
Quanto à estrutura e natureza da sua apologia, O católico instruído, mais do
que o anterior Avisos aos católicos, segue o modelo apaixonado e combati-
vo da apologia dos tratados contemporâneos, como os do culto jesuíta João
Perrone, muito admirado por Dom Bosco. Em seu tratado De vera religione
adversus incredulos et heterodoxos (Sobre a verdadeira religião, um tratado contra
incrédulos e hereges), Perrone desenvolve 12 “proposições tradicionais” sobre
a verdadeira religião, que levam a uma conclusão: “Ou nenhuma religião ou
a religião católica. Não há meio termo, exceto o meio termo da incoerência”.
O católico instruído revela por completo o implacável fervor apologético de

187

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco.
Como o título indica, o livro foi escrito segundo a ficção literária de uma
conversação.

Estrutura e conteúdo30
A primeira parte, sem título, de O católico instruído, é uma defesa da verda-
deira religião e compreende as conversações I-XIV: Deus existe. A religião ou
honrar a Deus é uma necessidade dos indivíduos e da sociedade. A revelação,
de Adão a Cristo, é necessária porque a religião natural é insuficiente. A Bíblia
é o veículo da revelação e é verdadeira em sua totalidade. A Bíblia é divina. A
história da salvação é uma história de profecias e milagres, de Adão a Davi, de
Davi a Cristo, o Messias, em quem se realizam todas as profecias. O Evange-
lho, o mais perfeito de todos os livros, é a história de Cristo. Ele é verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu, “ou-
tra prova da sua divindade”. A incredulidade judaica era censurável.
A segunda e última parte, mais longa, intitulada “A Igreja de Jesus Cristo”, é
uma compilação mais completa.
As conversações I-XII são dedicadas a comprovar que a Igreja Católica Roma-
na é a única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Sua expansão prodigiosa de-
monstra que é divina. É uma sociedade estabelecida para preservar a religião
de Cristo. Está edificada sobre Pedro. É a única. É santa. É apostólica, porque
remonta aos apóstolos, enquanto as outras só podem remontar a Calvino, Lu-
tero, Valdo etc. A autoridade na Igreja (hierarquia) foi instaurada por Cristo
e exprime-se em concílios ecumênicos, nacionais, provinciais e diocesanos.
A Igreja de Cristo é visível, com uma cabeça visível, o Papa, Vigário de Cristo.
As 31 conversações restantes, cerca de 300 páginas, são completamente po-
lêmicas; dedicam-se a desacreditar outras religiões, sobretudo os valdenses e
os protestantes.
As conversações XIII-XIX (não há a de número XVI) começam por descartar
o Islã (Maomé, o Corão e sua doutrina) e a ortodoxia grega (um cisma feito
de má-fé). Os valdenses são atacados sem piedade em quatro conversações
que contam a origem da seita, criticam a má-fé de seus ministros e desquali-
ficam-na como verdadeira Igreja de Cristo.
As conversações restantes, XX-XLIII, que ocupam os últimos três opúsculos,
são um ataque contra os protestantes. O primeiro dos 3 (9 conversações) fala
de Lutero, Calvino, Teodoro de Beza, Henrique VIII e o anglicanismo e os

30
Ver tabela detalhada dos conteúdos de O católico instruído, em OE, IV, antes da primeira página.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

“pregadores da Reforma”. O segundo (5 conversações) compara a doutrina


protestante com a católica. Enquanto esta jamais mudou desde os tempos
apostólicos, aquela simplesmente repete as antigas heresias de formas varia-
das. O último (10 conversações) trata das contradições internas do protes-
tantismo, devidas especialmente ao princípio da interpretação individual. No
último capítulo, Dom Bosco abandona a ficção literária da conversação e
apela pessoalmente aos ministros protestantes para que se unam à única arca
segura, a “Igreja de Pedro”.

Comentário
Como no caso de Avisos aos católicos, de 1850, são evidentes as fragi-
lidades deste tipo de apologética, comum nos tempos de Dom Bosco. Não
há uma interpretação crítica da Bíblia e dos primeiros textos cristãos, nem
conhecimento da história da antiguidade. Não se distingue entre causalidade
primária e secundária etc. A ausência de espírito crítico invalida a muitos
dos argumentos apologéticos. Contudo, o que levanta sérias dúvidas sobre a
eclesiologia de Dom Bosco é a recusa de reconhecer valores nas religiões não
católicas e não cristãs.

As Leituras Católicas (a partir de 1853)

Dom Moreno e Dom Bosco: projeto e planejamento da coleção


A partir de 1853, as Leituras Católicas foram o principal veículo da po-
lêmica descrita anteriormente. Como surgiu esta série excepcional? A criação
das Leituras Católicas é mérito do bispo Luís Moreno, de Ivrea.
Na ausência do exilado arcebispo Fransoni, dom Moreno fora a figura
dominante no encontro episcopal celebrado em Villanovetta, de 25 a 29 de
julho de 1849, no qual se fez um apelo para uma nova apologética católica
que se servisse da imprensa. Como resposta, ele fundou o periódico católi-
co L’Armonia, moderadamente liberal nos inícios, que foi o motor de uma
coleção de pequenos tratados intitulados Collezione di buoni libri a favore
della religione cattolica (Coleção de bons livros em defesa da religião católica).
O primeiro desses tratados saiu em 1o de setembro de 1849, em formato de
bolso, com 114 páginas, intitulado Avvertenze di religione ai cattolici d’Italia
(Avisos sobre religião aos católicos italianos). Sucederam-se outros escritos; estes
opúsculos não eram acessíveis aos trabalhadores manuais e camponeses pelo
estilo em que eram escritos e pelos temas tratados. Dom Moreno teve, então,
a ideia de criar uma coleção realmente popular, como resposta à propaganda

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Dom Bosco: história e carisma 2

valdense. Em seu relatório Ad limina à Santa Sé, de janeiro de 1852, ele men-
ciona uma coleção de tratados religiosos populares cuja publicação pretende
iniciar no ano seguinte.
Enquanto isso, nos inícios de 1852, Dom Bosco escrevera um tratado
antivaldense de extensão considerável com o título de O católico instruído,
redigido depois de ler o trabalho de Amadeu Bert sobre os valdenses. O ardor
e o estilo apologético do tratado de Dom Bosco eram basicamente os mesmos
do primeiro opúsculo, de menor dimensão, os Avisos aos católicos. Como ele
mesmo relata nas Memórias,31 pretendia iniciar imediatamente com a publi-
cação da série sobre O católico instruído, mas nenhum bispo o apoiava. Foi
nesse momento que o exilado arcebispo Fransoni pediu a dom Moreno que se
ocupasse do assunto. O bispo percebeu, então, ter encontrado o homem que
realizaria o plano que ele mesmo concebera. O católico instruído seria final-
mente publicado em capítulos durante o primeiro ano das Leituras Católicas.
Ao longo de 1852, dom Moreno pressionou Dom Bosco para que de-
senvolvesse o projeto de uma nova aventura editorial e criasse um programa
para ele. A correspondência relativa ao tema mostra que Dom Bosco foi o
autor do programa e que o bispo fez observações frequentes e deu contri-
buições. Na primeira fase, dom Moreno foi também o responsável de obter
apoio financeiro para a coleção que se chamaria Leituras Católicas. Dom Bos-
co propôs uma nova edição de seus Avisos aos católicos, que serviria, com uma
introdução adequada, como apresentação da série ao público. Dom Moreno
concordou. Em março de 1853, Dom Bosco iniciou a publicação.

Inícios e política editorial


A coleção Leituras Católicas seria periódica, com pequenos livros escri-
tos para o povo simples. Não sabemos com exatidão a sua política editorial,
esboçada por Dom Bosco com dom Moreno. Contudo, a correspondência
entre os dois e o caráter dos opúsculos permite-nos reconstruí-la. Primeira-
mente, os livretes deveriam ser simples, com linguagem e estilo popular e
atraente. Em segundo lugar, teriam conteúdo moral e religioso, e tratariam
de temas religiosos (catequéticos, apologéticos e hagiográficos). Em terceiro
lugar, deveriam ter uma extensão moderada, ao redor de 108 páginas, e ser
publicados mensalmente com a mesma qualidade de papel e dimensão dos
Avisos. Em quarto lugar, não deveriam ser caros, visando ser amplamente
distribuídos. A assinatura custaria 90 centavos por semestre ou uma lira e
oitenta centavos por ano.
31
MO, 235ss.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Durante os três primeiros anos de publicação (março de 1853-fevereiro


de 1856), as Leituras Católicas saíram quinzenalmente; em seguida, uma vez
por mês. Em dezembro era publicado um almanaque para o ano seguinte
chamado Il Galantuomo (O homem de bem).

Sucesso da coleção
De março de 1853, ano da fundação, até dezembro de 1888, ano da
morte de Dom Bosco, foram publicados 432 opúsculos. Deles, cerca de 130
foram reimpressos várias vezes. Havia uma grande demanda do Catecismo
sobre a Igreja Católica para uso do povo, do jesuíta João Perrone, que alcançou
32 reimpressões.32
O próprio Dom Bosco escreveu uns 70 opúsculos para a série; mais
decisivo, porém, foi conseguir reunir um grupo de bons escritores que ga-
rantiram a continuidade da publicação. Entre eles, destaca-se o padre José
Frassinetti, de Santa Sabina de Gênova, que contribuiu com uns 15 números.
Outros foram os padres Francisco Martinengo, da Congregação da Missão,
os jesuítas Lourenço Gerola e Segundo Franco, o capuchinho Felipe de Poi-
rino, o cônego Lourenço Gastaldi e outros. Dom Bosco também incentivou
seus salesianos a escreverem e criou entre seus seguidores o que se pode cha-
mar de “escola de escritores”. Os mais conhecidos são os padres João Batista
Lemoyne, João Bonetti, Júlio Barberis e João Batista Francesia.
Quanto aos conteúdos, além da controvérsia valdense da década de
1850, cerca de metade das publicações das Leituras Católicas referem-se ao
campo da instrução moral e dogmática; um terço trata do campo histórico-
-biográfico, com ênfase especial nas vidas dos santos; os demais são histórias
agradáveis. A publicação permaneceu fiel ao seu programa original para a
educação religiosa e moral das massas.
As Leituras Católicas foram, sem dúvida, um sucesso editorial que dei-
xou sua marca, o que explica a reação violenta dos valdenses. Em fevereiro de
1856, Dom Bosco escrevia: “Pelo que sabemos, cremos que conseguimos o
que prometíamos. Em apenas três anos, com grande sacrifício, pusemos em
circulação cerca de 600 mil cópias das Leituras Católicas. Poderíamos ter feito
melhor se pudéssemos penetrar naquelas cidades e povoados nos quais ainda
são praticamente desconhecidas”.33
Além de ser uma série de opúsculos, as Leituras Católicas também era
uma associação. O povo unia-se para apoiar a produção e a maior difusão
32
Diga-se que a apologética de Perrone era do tipo mais reacionário.
33
Leituras Católicas III: 23 e 24. Turim: Tip. G. B. Paravia, 1856, 5s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

possível de livros que tinham a ver com a fé católica. O primeiro artigo das
regras escritas por Dom Bosco para a associação dizia:

A finalidade desta associação é difundir livros escritos em estilo popular e


simples. Quanto aos seus temas, estes livros hão de tratar da instrução moral,
assim como de histórias agradáveis e edificantes, mas que se refiram exclusi-
vamente à fé católica.34

Até 1856, Dom Bosco conseguira criar uma rede de 100 associações
que lhe garantiam a distribuição em cidades e aldeias de todo o Piemonte e,
depois da carta de recomendação do Papa, de novembro de 1853, um pouco
por toda a Itália.35
A edição em francês das Leituras Católicas teve início em 1854. Mais tarde
houve também edições em espanhol e em português. Inicialmente eram sim-
ples traduções do italiano, mas não demorou muito para que cada país admi-
nistrasse a sua própria produção, sempre em linha com o programa original.

Títulos dos primeiros anos


Os títulos a seguir, dos primeiros anos de publicação, identificam os
colaboradores e refletem a finalidade da série:

[Bosco] O católico instruído em sua religião. Conversas de um pai com seus


filhos sobre temas da atualidade, compilado pelo padre João Bosco. Turim:
De Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Números 1, 2, 5. 8, 9 e 12.
[?] Fatos contemporâneos apresentados em forma de diálogo. Turim: De
Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Números 10 e 11.
[Bosco] Disputa entre um advogado e um pastor protestante. Teatro. Turim:
De Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Número 19.
[S. Sordi, SJ] Catecismo católico sobre as revoluções. Turim: De Agostini. –
Leituras Católicas 1 (1853-1854). Número 22.
[Bosco] Conversão de uma valdense. Um fato contemporâneo contado pelo
padre João Bosco. Turim: De Agostini. – Leituras Católicas 2 (1854-1855).
Números 1 e 2.
[Bosco] Coleção de fatos reais curiosos, contados pelo padre João Bosco. Tu-
rim: De Agostini. –Leituras Católicas 2 (1854-1855). Números 3 e 4.

Piano d’associazione alle Letture Cattoliche (Plano de regras para a Associação de Leituras Católicas).
34

Detalhes sobre a circulação nos anos 1853-1860, cf. MB IV, 523s. As Memórias Biográficas
35

falam em diversos lugares sobre a história das Leituras Católicas.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

[L. Rendu, trad. por Bosco] O comércio das consciências e da agitação pro-
testante na Europa. Turim De Agostini. – Leituras Católicas 2 (1854-1855).
Números 13 e 14.
[Bosco] Conversas entre um advogado e um padre de aldeia sobre o sacra-
mento da confissão, editado pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co.
– Leituras Católicas 3 (1855-1856). Números 7 e 8.
[?] Esboço biográfico de Carlos Luís Dehaller, membro do alto conselho de
Berna, Suíça, com uma carta à sua família explicando seu regresso à Igreja
católica, apostólica e romana. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 3
(1855-1856). Números 13 e 14.
[Bosco] Importância da boa educação. Fato curioso contemporâneo, editado
pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 3 (1855-
1856). Números 17 e 18. (Reimpresso em 1881 com o título Pedro ou a
importância [...].)
[Bosco] Vida de São Pedro, príncipe dos apóstolos, primeiro Papa depois de
Jesus Cristo, editado pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras
Católicas 4 (1856-1857). Número 11. (Esta é a primeira das vidas de [25]
papas desde São Pedro até São Marcelo, publicadas por Dom Bosco entre
1856 e 1864.)
[Bosco] Duas conversas entre dois pastores valdenses e um sacerdote católico
sobre o Purgatório e os sufrágios dos defuntos, com um apêndice sobre a
liturgia, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 4
(1856-1857). Número 12.
[Bosco] Vida do apóstolo São Paulo, doutor das gentes, pelo padre João Bos-
co. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 5 (1857-1858). Número 2.
[Bosco] O mês de maio consagrado a Maria Imaculada, para uso do povo,
pelo padre João Bosco, Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 6 (1858-
1859). Número 2.
[Bosco] Vade-mécum do cristão: avisos importantes sobre os deveres do cris-
tão para que cada um possa alcançar a salvação no estado em que se encontra.
Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 6 (1858-1859). Número 5.
[Bosco] Vida do jovenzinho Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras
Católicas 6 (1858-1859). Número 11.
[G. Frassinetti] Astúcias espirituais segundo as necessidades dos tempos, por
José Frassinetti, prior de Santa Sabina em Gênova. Anexo: O Papa: questões

193

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Dom Bosco: história e carisma 2

do dia por M. Segur. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 7 (1859-1860).
Número 12. (É a primeira de várias contribuições do padre Frassinetti.)
[Bosco] Angelina ou uma boa menina instruída na verdadeira devoção à Vir-
gem. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 8 (1860-1861). Número 3.
[Bosco] Biografia do sacerdote José Cafasso, apresentada em duas orações
fúnebres, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 8
(1860-1861). Números 9 e 10.
[Bosco] Exemplos edificantes propostos à juventude. Florilégio linguístico.
Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 9 (1861-1862). Número 2.
[Bosco] Breves notas biográficas do jovenzinho Miguel Magone, aluno do
Oratório de São Francisco de Sales, pelo padre João Bosco. Turim Paravia &
Co. – Leituras Católicas 9 (1861-1862). Número 7.
[?] Diário Mariano ou estímulo à devoção da Virgem Maria em cada dia do
ano, por um devoto seu. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 10 (1862-
1863). Números 4 e 5.36
[Bosco] A agradável história de um velho soldado de Napoleão I, narrada pelo
padre João Bosco. Turim: Tip. Orat. SFdS. — Leituras Católicas 10 (1862-
1863). Número 10.

Comentário
Os Avisos aos católicos e O católico instruído, comentados anteriormen-
te, marcam o tom apologético de Dom Bosco ao longo da década de 1850.
Na década de 1860, as Leituras Católicas tornam-se menos polêmicas e, em
geral, mais religiosas. Abordam temas de instrução moral, temas edificantes,
hagiográficos etc.
Stella estudou detalhadamente a história da publicação das Leituras Ca-
tólicas, incluindo a transferência da sua publicação dos impressores Paravia à
gráfica do Oratório, depois de 1862, e a subsequente questão com dom Mo-
reno sobre a sua propriedade. Em 1867, os tribunais pronunciaram-se a favor
de Dom Bosco e as Leituras Católicas passaram a ser de propriedade coletiva
a propriedade pessoal de Dom Bosco.37

36
Este é último número impresso por Paravia. A partir dele, a começar pelo número 6, as Leituras
Católicas foram impressas na nova gráfica do Oratório.
37
P. Stella, Economia, 366-368.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Outros escritos apologéticos (a partir de 1853)


Dom Bosco continuou sua cruzada antiprotestante com o mesmo espí-
rito de O católico instruído mediante escritos posteriores, incluindo os seguin-
tes opúsculos ocasionais publicados nas Leituras Católicas.

O quarto centenário do Milagre do Santíssimo Sacramento38


O Milagre, assim conta a história, aconteceu em 1453. Alguns ladrões
roubaram uma custódia, que continha uma hóstia consagrada, em Exilles, no
vale de Susa, e tinham-na escondido num alforje levado por um burro en-
quanto iam a caminho de Turim. Ao chegar à cidade, onde hoje está a igreja
do Corpus Christi, o burro parou e deu marcha a ré, abrindo-se o alforje que
deixou cair a hóstia ao chão. O milagre aconteceu quando a hóstia consagra-
da elevou-se e permaneceu suspensa no ar até a chegada do bispo que a levou
para a igreja. Com este milagre, argumenta Dom Bosco, Deus desejava dar ao
povo uma prova da presença real, contra os valdenses que habitavam os vales
alpinos e negavam a presença real de Cristo na Eucaristia.

Fatos contemporâneos apresentados em forma de diálogo39


Os Fatos contemporâneos tratavam do filho de um carvoeiro, que preferia
levar uma vida pobre a ter um trabalho lucrativo numa “fábrica corrupta”.
Dos 7 diálogos, 2 falavam de evitar os maus livros e as más conversas, en-
quanto 5 deles atacavam os protestantes.
Por exemplo, no primeiro diálogo, o ministro B (Amadeu Bert?) é des-
crito enquanto tenta conseguir que João se una a uma seita, “uma religião
cujos ministros vivem em fazendas cheias de mulheres e crianças, sem líder
nem sacramentos e carece de qualquer característica divina”.
No quinto diálogo, um ministro protestante está junto ao leito de um
apóstata moribundo a suplicar que o deixem morrer como católico. “O mi-
nistro ordena a um assistente que retire a almofada que apoiava a cabeça do
moribundo. Deixam-no, então, ofegante e asfixiando-se, e saem do quarto
fechando-o a chave. Não entram novamente até terem a certeza de que o
homem dera o último suspiro”.

38
“Notizie storiche intorno al miracolo del SS. Sacramento avvenuto in Torino il 6 giugno 1453,
con un cenno sul quarto centenario del 1853” (Leituras Católicas, 10 de junho de 1853).
39
“Fatti contemporanei esposti in forma di dialoghi” (Leituras Católicas, 10 e 25 de agosto de
1853), 33-34.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Disputa entre um advogado e um pastor protestante40


É uma obra em 2 atos que trata de uma situação familiar com extensa argu-
mentação contra o proselitismo protestante. Eles “oferecem dinheiro para induzir
os católicos a se converterem ao protestantismo, mas uma vez acontecida a apos-
tasia, já não se preocupam mais [com o apóstata]”. Formam uma “igreja de bê-
bados”. “O próprio Lutero ao falar dos protestantes sobre o dia deles, disse assim:
Muitos dos meus seguidores vivem como epicureus [...]. Se alguém quiser conhe-
cer uma multidão de mentirosos, usurários, perdulários, rebeldes e gente de má-fé,
basta visitar uma cidade dizendo ser evangélico”. Mais tarde, Dom Bosco remete
o leitor a um número anterior das Leituras Católicas,41 onde “se demonstrou am-
plamente que o protestantismo nada conservou da Igreja primitiva e que, hoje em
dia, os protestantes professam apenas erros já condenados em épocas passadas”.

Continuação da polêmica antivaldense


Em 1853 as Leituras Católicas foram mais duras na polêmica antivalden-
se. E não se acalmaram facilmente.
Nos inícios de 1855, foi publicado nas Leituras Católicas um “Catecis-
mo católico sobre as revoluções”, do padre jesuíta Serafim Sordi.42 Era uma
denúncia insensível e brutal de todas as revoluções. Em nome da Bíblia e da
Igreja, o autor pedia a condenação e execução de todos os revolucionários.
Dom Bosco, que não era partidário de revoluções, fez objeções à violência do
livro, mas dom Moreno quis que fosse publicado.43
Dom Bosco retomou sua atividade apologética em 1854, mas não mais
com a dureza de O católico instruído. Sua nova obra, Conversão de uma valdense,
era a história apresentada como verídica, de Josefa, uma jovem católica extra-
viada que retorna à fé católica graças ao bom exemplo e à vida de paz e alegria
de sua amiga Luísa. Apesar da vigilância de seu ministro, a perseguição de seu
pai e as súplicas de sua mãe, Josefa abjura com a fórmula diocesana e recebe o
Batismo condicionalmente, e também a Penitência, a Confirmação e a Euca-
ristia. Dom Bosco encerra a narração com apelos eloquentes e comovedores a
várias categorias de leitores, incluindo protestantes e ministros protestantes, ex-
pressando sua preocupação pela salvação eterna deles e pela unidade da Igreja.44
40
“Una disputa tra un avvocato e un ministro protestante”. Dramma (Leituras Católicas, 25 de
dezembro de 1835), 19-20.44.
41
Refere-se às Leituras Católicas 1, 9, a última parte de O católico instruído.
42
“Catechismo cattolico sulle rivoluzioni”. 5ª ed. Letture Cattoliche. Turim: De Agostini, 10 de
fevereiro de 1854.
43
MB V, 5s. São oferecidos alguns extratos.
44
“Conversione di una valdese”, fatto contemporaneo esposto dal sac. Bosco Giovanni. Letture
Cattoliche (março de 1854).

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

A polêmica de Dom Bosco contra os protestantes continuou até o final


da década de 1850, embora com menos virulência. Aos poucos, ele optou
pela história moralizante e a biografia edificante como seu primeiro escrito:
Vida de Santa Zita, serva, e Santo Isidoro, lavrador.45
A atitude combativa de Dom Bosco era motivada pela preocupação
premente da salvação das almas, algo incompreensível em nosso contexto
religioso pluralista. Ele acreditava firmemente que a salvação pessoal estava
diretamente ligada à fé entendida como adesão às verdades divinas reveladas,
sem as quais estaríamos eternamente perdidos. Estas verdades são encontra-
das apenas na verdadeira Igreja, ou seja, a Igreja Católica Romana. Depois de
Cristo, é impossível se salvar mesmo na religião judaica, que era sem dúvida
autêntica. A fortiori, ninguém pode se salvar nas religiões que abandonaram
a verdade católica, como as igrejas protestantes.
Dom Bosco sentia-se chamado a combater a “besta” do erro religioso:
os que criaram as leis liberais. Como já se disse, em 31 de maio de 1853, ele
enviou alguns números das Leituras Católicas ao cardeal Antonelli.46
Por outro lado, ele era pessoalmente muito sensível com a penosa
situação dos protestantes enquanto pessoas e estava sempre disposto a dia-
logar com eles. Escreve ao cônego, mais tarde bispo, P. de Gaudenzi: “Fui
muitas vezes insultado pelos protestantes, mas, por vontade de Deus, eles
vêm até mim quase diariamente, e de boa fé, para pedir-me explicação
daquilo que leem nas Leituras Católicas”.47

Il Galantuomo: almanaque das Leituras Católicas


Em 1853, foi editado o primeiro número de uma importante publica-
ção periódica que seria associada ao nome de Dom Bosco e às Leituras Cató-
licas, o almanaque chamado Il Galantuomo (O homem de bem).48

Origem, finalidade e inspiração


Como surgiu a nova ideia? Segundo contam as Memórias Biográficas, o al-
manaque foi idealizado para competir com um almanaque valdense chamado
L’amico di casa (O amigo de casa), distribuído gratuitamente até fins de 1853.

45
Leituras Católicas, 25 de abril de 1853.
46
Epistolario I Motto, 197.
47
Carta de 7 de abril de 1853. Epistolario I, Motto, 194.
48
Il Galantuomo. Almanacco nazionale pel 1854 coll’aggiunta di varie utili curiosità. Strenna
offerta agli associati delle Letture Cattoliche. Turim: De Agostini, dezembro, 1853, 119 p. (Il Galan-
tuomo. Almanaque nacional para 1854, com o acréscimo de várias informações úteis. Um presente de
ano-novo para assinantes das Leituras Católicas).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Discutindo o título com seus amigos, Dom Bosco propôs muitas ideias, até
que: “Nós o chamaremos de Il Galantuomo”.49 O título prevaleceu.
Na verdade, o almanaque foi idealizado por diversas circunstâncias e sua
finalidade era competir contra as atividades liberais anticlericais mais do que
contra as dos valdenses. A ideia surgiu das Conferências de São Vicente de
Paulo em Paris, por meio de Francisco Faà di Bruno, que lá estudara des-
de 1849. A Sociedade de São Vicente de Paulo produziu, por orientação das
Conferências, um almanaque anual que estava pronto para sua distribuição no
mês de agosto. Chegou à massa popular porque era barato e apresentava com
simplicidade temas morais e religiosos, como também com muito humor ou-
tros assuntos relacionados com a administração, a agricultura e a vida diária.
O periódico anticlerical La Gazzetta del Popolo publicava seu próprio
almanaque desde 1850. Faà di Bruno apresentou a ideia de um almanaque
no verão de 1853, e o bispo Moreno com o grupo ligado ao periódico cató-
lico L’Armonia, Dom Bosco entre eles, demonstraram grande entusiasmo e
deixaram nas mãos de Faà di Bruno a tarefa de realizar o projeto. Faà, então,
escreveu ao presidente do Conselho Central das Conferências de São Vicente
de Paulo solicitando exemplares de todos os seus almanaques, mencionando
o dano causado pelo corrupto almanaque da Gazzetta del Popolo.50
Parece que Faà di Bruno escreveu a introdução, “Aos meus leitores”,
e alguns artigos. Seu irmão Alexandre também colaborou, e o restante do
material foi adaptado dos almanaques franceses.51 Em novembro de 1853,
L’Armonia anunciou a iminente aparição do almanaque, seu título (Il Galan-
tuomo) e seu preço (20 centavos).

O almanaque de Faà di Bruno associado às Leituras Católicas


Até aquele momento, é o que parece, Dom Bosco não fora envolvido di-
retamente. Havendo, porém, uma montanha de almanaques na gráfica, deci-
diu oferecê-los aos assinantes das Leituras Católicas. O impressor De Agostini

49
MB IV, 644ss.
50
Ao descrever a origem do almanaque, cf. M. Ribotta, “The gentleman’s almanac: Don Bosco’s
venture into popular education”. JSS 2:2 (1991), 54-77, segue as Memórias Biográficas numa crônica
que, como indica Desramaut, deve ser corrigida. Sem dúvida, Ribotta dá o crédito a Faà di Bruno,
baseando-se no artigo de N. Cerrato, “Il Galantuomo”, Il Tempio di Don Bosco (1991), 29. Também
oferece uma descrição útil do primeiro número do almanaque com citações. Deve-se dizer que a pala-
vra “galantuomo”, em piemontês, significa “homem honesto, digno de confiança e fiel à sua palavra”, e
não “homem gentil”, como Ribotta afirma.
51
P. Stella, Scritti a stampa 29, 032, escreve: “É provável que ao menos a introdução ‘Aos meus
leitores’ fosse escrita por Dom Bosco. Francisco e [seu irmão] Alexandre Faà di Bruno colaboraram [ao
redigir o almanaque]”.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

acrescentou então ao título original: “Strenna offerta agli associati delle Letture
Cattoliche” (Presente de ano-novo oferecido aos assinantes das Leituras Católi-
cas). Dessa forma o almanaque de Faà di Bruno foi associado às Leituras Católicas.
Além do calendário e das festas, o almanaque cobria uma vasta gama de
temas de interesse, especialmente para a gente do campo. Inculcava a religião e a
moralidade por meio de histórias e conselhos; e, em geral, abstinha-se de qualquer
tipo de polêmica. Quanto à participação nas eleições, Il Galantuomo escrevia:

Ninguém tem o direito de abster-se do voto, porque ninguém pode recusar-


-se a ajudar seu país. A abstenção é um ato irresponsável de um mau cidadão.
Votar mal é um crime. Seu voto deve ser expressão livre e bem calculada de
confiança. Reflita sobre seu voto com antecipação. Primeiro e antes de tudo,
assegure-se de que os candidatos são e sempre foram pessoas honradas. Não se
venda por falsas promessas, bons discursos e planos de reforma apresentados
para confundi-lo. Em vez disso, comprove que as pessoas que se apresentam
como deputados ou conselheiros possuem (sobretudo) senso comum, experi-
ência em assuntos públicos e convicções religiosas firmes.52

Nessa época (1853-1854), padre Margotti, editor do periódico L’Armonia e,


depois, do mais combativo L’Unità Cattolica, ainda não fizera o seu apelo à retirada
da atividade política. A posição do almanaque deve representar o pensamento do
escritor, mas não se pode afirmar que Dom Bosco estivesse de acordo com ela.

Il Galantuomo, almanaque das Leituras Católicas.

52
II Galantuomo [...], 1854, 88.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O almanaque de Dom Bosco (1855)53


Era importante continuar a publicação do almanaque de Faà di Bruno.
O editor foi ver, então, com Dom Bosco se ele poderia assumi-lo, escrevendo
ao menos a saudação inicial (“Tenho 40 anos”). A série final de fatos morais
e religiosos (81-120), incluindo um longo diálogo sobre a confissão, pode ser
atribuída a Dom Bosco. O almanaque adotou a linguagem das tiras cômicas,
perfil que conservou em todos os números posteriores. Essa também pode ser
uma marca de Dom Bosco.
O periódico L’Armonia anunciava-o como extremamente útil, como
seus conteúdos demonstrariam. Contudo, apesar da sua utilidade e do seu
preço módico, 20 centavos, parece que não foi um sucesso de venda. Por isso,
surge como número duplo das Leituras Católicas com o título aumentado de:
Letture Cattoliche: rimembranze [Recordações] per l’anno 1855.54 Na intro-
dução, o editor desculpa-se, mas justifica usar o almanaque com as Leituras
Católicas para chamar a atenção sobre os fatos religiosos e morais como fina-
lidade. Expressa ainda a ideia de continuar a publicação dessas recordações
com as Leituras Católicas (como último número do ano), se os assinantes
estivessem de acordo. A apresentação editorial revela indiretamente que Faà
di Bruno teria abandonado o seu almanaque e que, no futuro, ele seria da
responsabilidade das Leituras Católicas e, portanto, de Dom Bosco.
O almanaque converteu-se, então, em número anual oferecido aos assi-
nantes das Leituras Católicas para o ano-novo, não mais como presente, mas
em troca de uma pequena oferta.
Em 1856, o almanaque Il Galantuomo apareceu muito antes do final
do ano. E, totalmente sob o controle de Dom Bosco, adquiriu então sua
forma definitiva.

53
Il Galantuomo. Almanacco nazionale pel 1855, coll’aggiunta di varie utili curiosità. Turim: De
Agostini [meados de novembro] 1854), 128 p.
54
Leituras Católicas, 10 e 25 de janeiro de 1857.

200

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Apêndice

OS VALDENSES E SEU FUNDADOR

Pierre Valdo (Valdés, Valdesius; falecido em torno de 1215) era um rico


comerciante de Lyon, França. Pouco se sabe sobre sua vida. Em parte por
causa da sua leitura dos Evangelhos, que mandara traduzir em provençal,
experimentou uma conversão espiritual em 1176, que o levou a abandonar a
família, dar seus bens aos pobres e fazer voto de pobreza. Como pregador iti-
nerante, promoveu uma intensa campanha contra a importância do aspecto
temporal da Igreja.
Os discípulos que se uniram a Valdo em Lyon em 1175 eram um grupo
de cristãos que renunciaram às próprias riquezas, como Valdo, e viviam em
pobreza evangélica. Diz-se que “foram fundados” por Valdo (os historiadores
divergem sobre se os valdenses remontam aos tempos dos apóstolos). Eram
chamados de “os pobrezinhos de Lyon”, mas em textos antigos também são
denominados “os pobres de Cristo” (pauperes Christi), “os homens de Lyon”
(Leonistae), “os pobres de espírito” (pauperes spiritu) e os “guardiões do Sába-
do” (Insabbatati). Observavam pobreza estrita e pregavam contra a riqueza e a
lassidão do clero. O estilo de vida de Valdo e de seus seguidores foi aprovado
pelo papa Alexandre III em 1179 com a condição de obter a aprovação das au-
toridades eclesiásticas locais antes de iniciar a pregação. Por não cumprirem essa
disposição, foram declarados hereges pelo papa Lúcio III em 1184. Em 1211,
mais de 80 seguidores de Valdo foram queimados como hereges em Estrasbur-
go. Os valdenses foram enfim proscritos em 1215, pelo IV Concílio de Latrão.
Nada mais se soube de Valdo depois da condenação do papa Lúcio, em 1184.
A heresia disseminou-se rapidamente pelas cidades do sudoeste da Fran-
ça e na Alsácia, Lorena, Suíça, Bavária, Áustria e Boêmia. Nos inícios do sé-
culo XIV, os valdenses da França, para escapar às perseguições, instalaram-se
nos vales alpinos do Delfinado e do Piemonte.
Os ensinamentos valdenses eram semelhantes aos de outras correntes
leigas dissidentes da Idade Média. O clero não tem qualquer direito especial

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Dom Bosco: história e carisma 2

para falar em nome de Deus. Todos os cristãos podem pregar, pois o Espírito
Santo habita em cada um deles. Os valdenses conservam os ideais do cristia-
nismo primitivo e a Igreja oficial é a comunidade de Satanás. A eficácia dos
sacramentos depende da santidade do oficiante, e a prática da pobreza dá a
alguém o poder de administrar todos os sacramentos. Refutam o purgatório,
as indulgências, o jejum e o culto dos santos.
Na Quinta-feira Santa, os valdenses celebravam a Ceia do Senhor com
um rito simples, mas não acreditavam na presença real de Cristo na Euca-
ristia. As cerimônias religiosas consistiam em ler as escrituras, ouvir uma ho-
milia e rezar o Pai-nosso. Algumas de suas crenças e práticas foram tomadas
dos cátaros. Como estes, os valdenses dividiam-se entre perfecti [perfeitos] e
os simples crentes. Os primeiros eram celibatários que se abstinham de tra-
balhos manuais e peregrinavam como pregadores mendicantes. Os simples
crentes eram casados e trabalhavam para atender às necessidades materiais
dos perfecti. Os ministros (barbes, tios) pertenciam à classe dos perfecti.55 De
aqui, os valdenses no Delfinado e no Piemonte serem chamados barbets. Seu
estilo de vida recatado granjeou a simpatia do povo simples, mas sua po-
pularidade perdeu a intensidade no século XIII com a fundação das ordens
mendicantes (franciscanos e dominicanos).
Apesar das medidas repressivas tomadas contra eles, os valdenses sobre-
viveram através dos séculos, especialmente em lugares remotos. Em 1532,
aderiram a algumas doutrinas protestantes e, com o passar do tempo, a maior
parte deles adotou a teologia calvinista.
Os valdenses continuaram a ser um grupo compacto e homogêneo nos
vales do Piemonte e de Briançon. Em 1403, Vicente Ferrer pregou com gran-
de efetividade entre eles durante três meses Os valdenses converteram-se em
objetivo da Inquisição e sofreram multas e confiscos de bens. Uma cruzada foi
organizada contra eles em 1487-1488, mas em 1509 foi-lhes permitido viver
em paz. Depois, porém, no século XVI, foram novamente perseguidos com
crueldade pelas autoridades civis. Os valdenses franceses, reduzidos em nú-
mero, somaram-se às fileiras das igrejas reformadas. Os do Piemonte, porém,
resistiram. Períodos de tolerância alternaram-se com períodos de repressão
violenta da parte dos duques de Saboia, normalmente depois de tentativas de
revolta. O episódio mais conhecido é o massacre após a insurreição de 1655.

55
Fora estes dois níveis de pertença, os valdenses não tinham ligação com os cátaros. Os cátaros
(do grego katharioi, os puros) eram um conjunto de seitas neomaniqueístas surgidas na Europa oci-
dental no século XII. O catarismo foi a heresia medieval mais difundida. Como o maniqueísmo, era
dualista, e também anticristão, anticlerical, antissacramental e antissocial.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Posteriormente eles foram tolerados por Napoleão, e em 1848, o rei


Carlos Alberto da Sardenha, em cujos domínios a maioria vivia, deu-lhes,
com a Constituição, plena liberdade política e religiosa. Desde então, desen-
volveram um intenso programa de evangelização na Itália. Uma universidade
valdense, radicada em Florença em 1860, foi transferida a Roma em 1922.
Os valdenses são a única igreja cristã anterior à Reforma que sobrevi-
veu. O censo realizado na Itália em 1980 diz que chegaram a uns 17 mil. A
maioria concentra-se na região do Piemonte, em 18 paróquias, localizadas
principalmente nos vales das montanhas a oeste de Turim. Trata-se da região
dos Alpes onde os seguidores de Valdo encontraram refúgio e onde foram
confinados pelas leis da monarquia dos Saboia, desde a Paz de Cavour de
1561 até 1848, quando a Constituição deu-lhes igualdade de direitos.

DOM LUÍS MORENO (1800-1878), BISPO DE IVREA

Nascido em 1800, em Mállare (província de Savona, diocese de Mondoví),


Luís Moreno foi ordenado em 1823. Depois de servir na Sardenha e na catedral
de Alba com seus irmãos Otávio, Paulo e Hugo, foi nomeado bispo de Ivrea em
1838, cargo que ocupou por quarenta anos, até sua morte em 1878. Procurou
melhorar com sucesso o nível moral e intelectual do clero de sua diocese. Suas
cartas pastorais eram lidas em dioceses de toda a Itália.
Aproveitando a liberdade de imprensa concedida pelo rei Carlos Alber-
to, fundou em julho de 1848 o periódico L’Armonia della Religione e della
Civiltà, com o cônego Audísio, o marquês Gustavo Cavour, irmão mais
velho do futuro primeiro-ministro, e o marquês Birago di Vische. Inicial-
mente, 1848-1850, o periódico apoiava a Constituição liberal, a partir de
uma postura católico-liberal que não via nenhuma oposição entre o pro-
gresso sociopolítico e a religião católica. À medida, porém, que avançava a
Revolução Liberal, com a amarga experiência das Leis Siccardi e Rattazzi, o
periódico tornou-se rigidamente conservador sob a direção do teólogo Tiago
Margotti. Quando Margotti deixou o L’Armonia para fundar outro perió-
dico mais conservador, L’Unità Cattolica, o bispo Moreno, não sem hábeis
colaboradores, manteve tanto a propriedade do L’Armonia como o controle
sobre sua linha conservadora.
Um sínodo dos 10 bispos da província eclesiástica de Turim foi realiza-
do em Villanovetta (Saluzzo), em 1849, sob a presidência de dom Moreno,
enquanto o arcebispo Fransoni estava sendo vigiado, mas ainda não no exílio.
Os bispos Moreno e Ghilardi foram designados para criar uma associação

203

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Dom Bosco: história e carisma 2

com a finalidade de imprimir “livros bons e sadios”. Receberam também o


encargo de compilar uma lista de ensinamentos errôneos que os periódicos
anticatólicos estavam a difundir em oposição às verdades da fé e da moral, à
Igreja, ao Papa e ao clero. Tais ensinamentos deviam ser rebatidos especifica-
mente nos periódicos católicos e nos livros e tratados escritos em linguagem
simples e distribuídos gratuitamente para o público em geral.
Dom Moreno, atuando como representante do episcopado piemontês
no período de exílio do arcebispo Fransoni, converteu-se em líder no campo
do apostolado da imprensa. Fundou, editou e financiou uma coleção intitu-
lada “Biblioteca de Bons Livros a Favor da Religião Católica” (“Collezione
di Buoni Libri a Favore della Religione Cattolica”). O bispo João Domingos
Ceretti, dos oblatos de Maria Virgem, anteriormente vigário apostólico em
Burma [Mianmar], serviu como vice-presidente da publicação, substituindo
nas confirmações e ordenações o arcebispo preso e exilado.
A colaboração do bispo Moreno com Dom Bosco na fundação e pu-
blicação das Leituras Católicas é entendida mais facilmente neste contexto.
Dom Bosco e o bispo entraram em negociações em 1851-1852, resultando
na fundação das Leituras Católicas, em 1853.
A relação entre Dom Bosco e o bispo deteriorou-se quando Dom Bosco,
que criara sua própria gráfica em 1862, transferiu a publicação das Leituras
Católicas da gráfica de Paravia para a do Oratório.
A disputa foi, sobretudo, acerca da propriedade da publicação. Deve-se
considerar que, embora sem a liderança e o patrocínio do bispo Moreno, as
Leituras Católicas provavelmente não tivessem vindo à luz do dia, o trabalho
foi assumido por Dom Bosco, assim como também a maior parte do seu fi-
nanciamento.56 A amarga batalha legal que se seguiu foi dirimida somente em
1867. Dom Bosco manteve a propriedade, mas perdeu para sempre a amizade
do bispo Moreno. Dom Moreno foi um dos poucos bispos que se negaram a dar
cartas de recomendação para a aprovação definitiva da Sociedade Salesiana. Três
pedidos de Dom Bosco para uma carta de recomendação ficaram sem resposta.57
No Concílio Vaticano I, com a maioria dos outros bispos piemonteses,
dom Moreno alinhou-se ao grupo que se opôs à definição da infalibilidade do
Papa como “não oportuna”. O grupo piemontês opôs-se à definição basica-
mente por motivos de índole prática. Contudo, a formação recebida na Uni-
versidade, junto com suas inclinações galicanas e ao apoio às reivindicações
jurisdicionais da Casa Real, foram também fatores importantes.
56
Cf. Epistolario I Motto, 495-496; MB VII, 621ss.
57
Cf. Epistolario II Motto, 527-528, 538, 598, 73-74, 193.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Dom Moreno foi defensor incondicional da Casa de Saboia, apesar de


a Revolução Liberal e o governo parlamentarista, anticlerical em sua maior
parte, terem enfraquecido o seu poder como protetora da Igreja. Ele pensava
que, se os líderes católicos entrassem na arena política seriam eleitos pelo
voto católico. Em longo prazo conseguiriam formar uma maioria parlamen-
tar conservadora que poderia devolver o papel de protetora da Igreja à mo-
narquia constitucional.
Para as eleições políticas de 1857, o bispo Moreno e seu grupo, através
de L’Armonia, criaram uma coligação clerical-conservadora. Contudo, a der-
rota da sua teoria política e dos seus esforços foi total, pois “o voto católico”
não se materializou. A partir daquele momento, L’Armonia apoiou a tendên-
cia predominante da não participação católica, opção que se tornou oficial
e definitiva pelo decreto Non Expedit, de Pio IX, em 1868, que continuou
vigente até 1904, após morte do papa Leão XIII.
Os últimos anos de dom Moreno, depois da designação do arcebispo
Alexandre di Netro em 1867, foram atormentados por doenças, mas conti-
nuou a ser o pastor do seu rebanho diocesano até a morte em 1878.

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Capítulo VII

ORIGEM DA SOCIEDADE SALESIANA. UMA


“CONGREGAÇÃO” DE COLABORADORES
DO ORATÓRIO (1841-1876)1

1. A primitiva “Congregação” e sua evolução


Falar da Congregação Salesiana como ela foi concebida por Dom Bosco
em seus inícios é falar, na verdade, da Família Salesiana ou, melhor dizendo,
dos Salesianos Cooperadores, antes que estes termos existissem. Três docu-
mentos escritos por Dom Bosco entre 1874 e 1887 confirmam a afirmação;
a esses documentos, pode-se acrescentar um quarto.

1. O Resumo histórico, que precedeu às Constituições Salesianas, De


ejusdem Societatis primordiis (A origem desta Sociedade), que seria
eliminado antes da aprovação final em 1874.
2. Cooperadores Salesianos, manuscrito escrito de próprio punho por
Dom Bosco em 1876.
3. História dos Cooperadores Salesianos, manuscrito do padre Joaquim
Berto, corrigido por Dom Bosco e publicado no Bibliofilo Cattoli-
co (Bollettino Salesiano) (1877).
4. Capítulo Apêndice às primeiras Constituições Salesianas (1860-
1873), sobre os membros externos.

F. Desramaut, “La fondazione della Famiglia Salesiana”. In: M. Midali (ed.), Costruire insie-
1

me la Famiglia Salesiana. Atti del Simposio di Roma, 19-22 febbraio 1982. Roma: LAS, 1983, 75-102.
Anteriormente, F. Desramaut, “La storia primitiva della Famiglia Salesiana secondo tre espositi di
Don Bosco”. In: La Famiglia Salesiana: colloqui sulla vita salesiana. Luxemburgo, 26-30, 1973. Turim:
LDC, 1974, 337-343.

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Origem da Sociedade Salesiana

Estes textos descrevem como Dom Bosco projetou e desenvolveu suas


finalidades originais; esboçam, portanto, a ideia de Sociedade Salesiana como
ele a concebeu nos inícios. Obviamente, nem tudo o que se diz nesses textos
é literalmente histórico, mas merecem a mesma autoridade que atribuímos
às suas Memórias, escritas no mesmo período. Embora se possam questionar
alguns detalhes, o esquema em seu conjunto suporta sem problemas uma
análise crítica.

Natureza da “Congregação” primitiva (1841-1859)


Em suas Constituições, Dom Bosco começa a falar assim da Congregação:

Ainda em 1841, o sacerdote João Bosco, trabalhando em associação com ou-


tros presbíteros, começou a acolher jovens pobres e carentes em alguns locais
apropriados da cidade de Turim [...]. Para preservar a unidade de espírito e dis-
ciplina da qual dependia o sucesso dos Oratórios, desde 1844 alguns sacerdo-
tes uniram-se para formar uma espécie de congregação. Isso aconteceu para se
ajudarem mutuamente com o exemplo e o estudo. Não fizeram qualquer voto
propriamente dito, mas só se comprometeram mediante uma simples pro-
messa a dedicar-se exclusivamente àqueles trabalhos que seu Superior julgasse
serem para a maior glória de Deus e o bem da própria alma. Reconheciam
como seu Superior o sacerdote João Bosco. Embora não se tenham feito votos,
na prática observavam-se as normas que aqui se apresentam [para aprovação].

Dom Bosco não pôde encontrar um nome satisfatório para os membros


desta congregação. Em várias ocasiões ele os chama de aliados, associados,
benfeitores, promotores ou cooperadores da Congregação Salesiana.
No segundo documento, Cooperadores Salesianos, pode-se ler:

A história da Congregação Salesiana remonta a 1841, quando começamos


reunir jovens pobres e sem lar na cidade de Turim [...]. A fim de satisfazer sua
ampla gama de necessidades, vários [“muitos” está riscado] senhores uniram-
-se e, mediante o próprio trabalho e contribuição econômica, apoiaram a
obra dos assim chamados oratórios festivos. Fazia-se referência a eles pelo car-
go [que desempenhavam], mas eram chamados normalmente de benfeitores,
promotores ou cooperadores da Congregação [“Oratório” está riscado] de São
Francisco de Sales.

Esta Congregação não era uma entidade independente, mas era consti-
tuída por essas mesmas pessoas, pois Dom Bosco acrescenta:

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os assim chamados salesianos promotores e cooperadores [“associados” está


riscado] uniram-se numa verdadeira congregação sob o patrocínio de São
Francisco de Sales. Receberam alguns favores espirituais especiais da Santa Sé
numa mensagem com data de 18 de abril de 1845. [...] Em 1850, o sacerdote
João Bosco informou à Santa Sé que uma Congregação com o nome e sob o
patrocínio de São Francisco de Sales fora erigida legitimamente em Turim e
solicitava mais favores e benefícios espirituais.

Segundo Dom Bosco, a “Congregação de São Francisco de Sales”, no


momento de sua criação, era chamada de Cooperadores (ou Família Salesia-
na). A palavra “congregação” deve ser entendida no sentido amplo do sécu-
lo XIX, não designando necessariamente uma sociedade religiosa com votos
simples; era usada para indicar um grupo de fiéis que se uniam para obras pias
e de caridade, como, por exemplo, as “congregações” marianas.
Em 1850, a Congregação Salesiana, na mente do Fundador, era uma
associação de cristãos unidos ao padre João Bosco para o bem dos jovens do
Oratório de Turim. Seu patrono, São Francisco de Sales, grande santo da
Saboia, era muito popular no Piemonte nessa época. Dom Bosco escolheu-o
como patrono de suas obras, sobretudo porque a espiritualidade de São Fran-
cisco de Sales coincidia com seu sistema pedagógico de razão e carinho. Mais
adiante, teve um motivo a mais para essa escolha: sua luta contra os erros dos
valdenses assemelhava-se àquela feita por São Francisco de Sales no Chablais
calvinista mediante seus escritos e sua palavra.
Portanto, parece que, segundo estas fontes de primeira mão, dez ou
quinze anos antes da fundação da Sociedade Salesiana como união de reli-
giosos com votos públicos, já teria existido uma “congregação de São Fran-
cisco de Sales”, para cujos membros Dom Bosco solicitou favores espirituais
à Santa Sé.

Uma associação de clérigos e leigos, homens e mulheres


A Congregação de cooperadores que se acaba de descrever não era res-
trita a leigos. Incluíam-se entre seus membros clérigos e leigos, homens e
mulheres. Dom Bosco escreve:

A colheita foi grande e continua a aumentar diante de nossos olhos. O sa-


cerdote João Bosco encontrava-se frequentemente rodeado de 500 ou 600
jovens, tornando-se impossível controlar essa multidão e suprir suas neces-
sidades. Muitos sacerdotes zelosos e também leigos devotos vieram ajudá-lo
neste ministério tão necessário. Com grande orgulho podemos citar os nomes

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Origem da Sociedade Salesiana

dos mais destacados: teólogo Borel, sacerdote José Cafasso e cônego Borsarelli
foram os primeiros cooperadores dentre o clero.

Os citados são apenas três dentre muitos outros nomes. Alguns dos pa-
dres cooperadores chegaram a ser bispos: Emiliano Manacorda (1833-1909),
bispo de Fossano; Eugênio Galletti (1816-1879), bispo de Alba; Lourenço
Gastaldi (1815-1883), bispo de Saluzzo (1867-1870) e arcebispo de Turim
(1871-1882).
A maioria destes padres, porém, era muito ocupada. Dom Bosco preci-
sou recorrer a leigos que, mais livres, tinham dinheiro suficiente para permi-
tir-se dispor do próprio tempo:

Recorremos, então, a pessoas da classe alta e outras da cidade, que se oferece-


ram graciosamente para ensinar catecismo e dar aulas [diurnas e noturnas],
ajudar na igreja e nas atividades ao ar livre. Sua tarefa era dirigir orações e
cantos, preparar os jovens para receberem os sacramentos e instruí-los para a
Confirmação. Mantinham a ordem fora da igreja. Recebiam os jovens à en-
trada do Oratório e uniam-se amigavelmente a eles em seus jogos, mantendo
a ordem enquanto brincavam. Outra tarefa importante dos cooperadores era
a colocação dos jovens no mundo do trabalho. Muitos deles provinham de
aldeias e povoados distantes, precisavam de comida e de um emprego, e de
alguém que se preocupasse com eles. Alguns cooperadores ocupavam-se em
encontrar-lhes trabalho com patrões dignos e honestos. Asseguravam-se de
que os meninos estivessem asseados e convenientemente vestidos para irem
à busca de trabalho. Visitavam-nos durante a semana, e [observavam] se vi-
nham no domingo para não deixar que um só dia destruísse o fruto de várias
semanas de esforços. Mesmo nas piores tardes de inverno, muitos desses co-
operadores caminhavam por ruas perigosas para vir ensinar leitura, escrita,
aritmética e gramática a esses jovens. Outros vinham todas as tardes para
ajudar os que eram mais lentos no catecismo [...].

Aqui Dom Bosco menciona os nomes dos que, entre muitos, mais se
destacavam nesta tarefa, inclusive mulheres, que ajudavam. Entre as mencio-
nadas, a senhora Margarida Gastaldi, encabeçava a lista.

Alguns dos nossos alunos não eram nada mais do que moleques sujos e mal-
vestidos. Ninguém podia suportá-los e nenhum patrão os queria em sua ofici-
na. Algumas mulheres piedosas vieram para o resgate. Lavavam, costuravam,
remendavam e também proviam estes meninos de roupas limpas e lençóis,
conforme a necessidade.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Resumindo, a Congregação tinha um patrono em São Francisco de Sa-


les, que era ao mesmo tempo modelo e guia espiritual; tinha um superior em
Dom Bosco; tinha membros ativos entre o clero e o laicato, homens e mu-
lheres; tinha uma finalidade específica: o cuidado da juventude abandonada;
tinha um regulamento, que era o do Oratório de Valdocco. E desfrutava de
algum reconhecimento comprovado pelo documento de Roma que lhe con-
cedia favores espirituais (1850). Em 21 de março de 1852, o arcebispo Luís
Fransoni, desde seu exílio em Lyon, nomeou Dom Bosco superior dos três
oratórios de Turim.

Uma dupla Congregação (1859)


Dom Bosco provavelmente sabia que a estrutura de uma congregação
“mista” era muito inconsistente. A crise do Oratório em 1851-1852 parece
que lhe serviu de aviso. Em 1852, ou mesmo antes, já preparava alguns me-
ninos com a esperança de que ficassem com ele.
Em 1859, a Congregação, antes uma entidade única, duplicou-se. Com a
divisão, Dom Bosco não pretendia substituir a congregação original mista por
uma congregação religiosa de formato canônico tradicional. Todas as suas ações
e muitas de suas afirmações deixam claro que, para o serviço da sua missão, esta-
va organizando uma nova seção ou ramo da congregação já existente, um ramo
que caminharia de modo independente. Lemos em Cooperadores Salesianos:

De 1852 a 1858 foram-nos concedidos vários favores e benefícios espirituais,


mas nesse ano a Congregação dividiu-se em duas categorias, ou, melhor di-
zendo, em duas famílias. Os que eram livres e sentiam ter vocação uniram-se
para viver em comunidade e viver na Casa que sempre consideraram como
casa mãe e centro de sua associação religiosa. O Santo Padre sugeriu que fos-
se chamada Pia Sociedade de São Francisco de Sales, nome que chegou até
hoje. Os outros, ou seja, os leigos, continuaram a viver no mundo, em suas
casas e com seus familiares, mas mantiveram a ajuda no trabalho do Oratório.
Conservaram o nome de União ou Congregação de São Francisco de Sales,
Promotores ou Cooperadores [...].

Deduz-se desta última expressão que em 1859 somente a segunda ca-


tegoria, ou seja, os externos que viviam “no meio do mundo”, mantinham o
título original de “Congregação de São Francisco de Sales”. A categoria dos
internos chamou-se, por sugestão de Pio IX, “Pia Sociedade de São Francisco
de Sales”. Não se deve negligenciar esta distinção: duas famílias, que traziam
nomes diferentes.

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Origem da Sociedade Salesiana

A Sociedade Salesiana: vida em comunidade


A Sociedade Salesiana de internos foi criada em 18 de dezembro de
1859. Em março de 1858, em Roma, Dom Bosco apresentara a Pio IX um
rascunho da Regra. O Papa era claramente partidário de uma congregação
religiosa propriamente dita, com os três votos tradicionais, mas permitindo
que cada membro fosse “religioso para a Igreja e cidadão livre na sociedade
civil”. Era este o conceito que Dom Bosco acarinhava desde o primeiro ras-
cunho das Constituições, mas não é seguro que sua ideia coincidisse com a
de Pio IX. Em 1880, ele escreveu ao padre Guiol, em Marselha nessa época,
que os salesianos não eram uma congregação religiosa, mas uma organização
religiosa caritativa que ajudava os jovens abandonados e que a palavra latina
voto podia ser traduzida em italiano como promessa. Alegou que diante da
Igreja e do Estado os salesianos eram considerados como uma pia sociedade
caritativa cujos membros desfrutavam e exerciam todos os direitos civis de
cidadãos livres.2
Seja como for, em 9 de dezembro de 1859, Dom Bosco reuniu um
grupo de membros em seu quarto e propôs-lhes criar uma congregação reli-
giosa. Apesar de alguns receios (ser frades!) decidiram ficar com Dom Bosco;
todos, exceto dois, apareceram num encontro posterior, em 18 de dezembro.
Naquela noite, foi redigida a ata fundacional da Sociedade Salesiana, distinta
da primeira Congregação de São Francisco de Sales. A ata registra os nomes
dos 18 membros efetivos da Sociedade, tendo Dom Bosco como centro, e
descreve o espírito e os fins da Sociedade.

Todos com o fim e num mesmo desejo de promover e conservar o espírito


de verdadeira caridade que se requer na obra dos Oratórios para a juventude
abandonada e em perigo [...]. Aprouve aos mesmos reunidos erigir-se em So-
ciedade ou Congregação que, tendo em vista a ajuda recíproca para a própria
santificação, se propusesse a promover a glória de Deus e a salvação das almas
especialmente das mais necessitadas de instrução e de educação.

Foi unânime o pedido para que Dom Bosco aceitasse o ofício de superior,
se reservando o direito de escolher o prefeito, e o padre Vitório Alasonatti
continuou no cargo. O subdiácono Miguel Rua foi eleito por unanimidade

Dom Bosco ao padre Guiol, 6 de outubro de 1880. Desramaut cita esta carta, não publicada,
2

dos arquivos da paróquia de São José, de Marselha. Deve-se recordar que, na França em 1880, sob os
ministros Grévy e Ferry, a educação era secularizada; os jesuítas e as congregações religiosas dedicadas
ao ensino eram perseguidas e depois suprimidas. Para saber como os salesianos se livraram do fecha-
mento, cf. MB XIV, 594ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

como diretor espiritual, e o clérigo Ângelo Sávio, ecônomo. Em 14 de maio


de 1862, o grupo de 22 [jovens] que estavam “vivendo em comunidade”, a
serviço de Dom Bosco, deu mais um passo: “Prometeram a Deus observar a
Regra com os votos de pobreza, castidade e obediência, durante três anos”.
Miguel Rua, ordenado padre dois anos antes, dirigiu a fórmula da profissão,
enquanto os demais repetiam depois dele.3

O grupo externo (1858-1874)


Alguém poderia pensar erroneamente que com a organização, entre 1858
e 1874, de uma sociedade religiosa que professava os três votos tradicionais e
vivia em comunidade, Dom Bosco considerasse suprimida a antiga congrega-
ção de colaboradores externos ou a tivesse transcurado; ou que eles só voltaram
à cena depois da aprovação das Constituições de 1874, concretamente em
1876 com a fundação da “Pia União dos Salesianos Cooperadores”.
Este modo de ver não reflete a ideia daquela que Dom Bosco chamava
de “Congregação Salesiana”. Os historiadores dos cooperadores4 referiram-
-se com grande acerto ao capítulo das Constituições, que fala dos “salesianos
externos” (cooperadores), como revelador da visão e das intenções de Dom
Bosco. A reunião da Sociedade Salesiana em 1859 significou que a primiti-
va Congregação Salesiana estava para ser dividida em duas famílias, não que
estivesse sendo substituída por outra entidade. O capítulo sobre os “externos”
também comprova que, na intenção de Dom Bosco, a família externa continuava
a existir. Demonstra também que os Cooperadores de 1876 constituíam a família
externa reorganizada, não uma nova entidade.
O capítulo sobre os salesianos externos foi redigido pela primeira vez
em 1860 e ampliado nas Constituições enviadas a Roma para aprovação em
1864, com o acréscimo de um quinto artigo aos quatro primeiros. O artigo
dizia: “Qualquer membro da Sociedade que a abandonar por motivo razoável
é considerado membro externo. Participa dos benefícios espirituais de toda
a Sociedade, sempre e quando praticar as normas que são obrigatórias para
os membros externos”. Dom Bosco especificava que os salesianos externos
deviam “escrever e distribuir bons livros, promover tríduos, novenas, retiros
e outras obras de caridade que se prestassem especialmente para obter o bem
espiritual dos jovens e da classe trabalhadora”.

3
Cf. Jesús-Graciliano González, “Acta de fundación de la Sociedad de San Francisco de Sa-
les-18 de dezembro de 1859”, RSS 27 (2008), 287-307.
4
Por exemplo, Eugênio Ceria, Agostinho Auffray, Guido Favini, José Aubry.

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Origem da Sociedade Salesiana

Os assim chamados salesianos externos existiram certamente, mas, como


diz Stella, conservam-se apenas dois nomes: padre João Ciattino, pároco de
Maretto (Asti), e padre Domingos Pestarino, pároco de Mornese.5 Poder-se-
-ia supor que, na prática, os externos não existiram. A verdade é que frequen-
temente Dom Bosco se conformava com o compromisso verbal. De fato,
depois de 1876, muitos cooperadores só assumiram esse compromisso. Pode-
mos encontrar seus nomes nas listas da associação. Havia salesianos externos
que não eram formalmente anotados nas listas de Valdocco, por exemplo, os
mencionados em 1877, como benfeitores da obra salesiana, colaboradores ou
simplesmente amigos do Fundador. Sem levar em conta a natureza geral do
seu compromisso, eram todos considerados associados da Congregação, pro-
motores, benfeitores. Dom Bosco escreve no texto Cooperadores Salesianos:

Em 1864, a Santa Sé faz uma recomendação à Pia Sociedade Salesiana e de-


signa um superior. A aprovação da Sociedade inclui uma seção relativa aos ex-
ternos, que eram sempre chamados promotores ou benfeitores e, finalmente,
Salesianos Cooperadores.

Os promotores e benfeitores dos anos anteriores eram, portanto, expres-


samente mencionados no capítulo sobre os “externos”, aos quais Dom Bosco
se refere explicitamente, enquanto omite cuidadosamente qualquer referên-
cia à observação crítica de Roma, que teria comprometido sua posição. O
fato é que o consultor de Roma que examinou as Constituições deu parecer
negativo. Finalmente, o capítulo sobre os externos, colocado como Apêndice,
precisou ser eliminado antes que fossem aprovadas as Constituições de 1874.

2. Alguns textos importantes

Origem desta Congregação6


Desde 1841, o padre João Bosco unia-se a outros eclesiásticos para aco-
lher em locais apropriados os jovens mais abandonados da cidade de Turim,
com o objetivo de entretê-los com jogos e, ao mesmo tempo, oferecer-lhes o
pão da palavra de Deus. Dom Bosco fazia tudo de acordo com a autoridade
eclesiástica. Deus abençoou esses humildes inícios, e tanto cresceu o número
de jovens que acorriam que, em 1844, S. E. dom Fransoni deu permissão
para dedicar como templo um edifício [um ambiente] dos que eram usados,
5
P. Stella, Economia, 296.
6
Capítulo segundo do primeiro rascunho das Constituições (1858), cf. G. Bosco, Costituzioni, 62-71.

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Dom Bosco: história e carisma 2

com a faculdade de ali celebrar as funções sagradas, necessárias para a santi-


ficação dos dias festivos e a instrução dos jovens que intervinham sempre em
maior número.
O arcebispo esteve ali em várias ocasiões para administrar o sacramento
da Confirmação e, em 1846, permitiu que os jovens frequentadores desta
instituição fossem admitidos à sagrada comunhão e também cumprissem o
preceito pascal, permitindo cantar a Santa Missa e celebrar tríduos e nove-
nas quando fosse oportuno. Era esta a prática no Oratório chamado de São
Francisco de Sales até o ano de 1847. Nesse ano, aumentando o número de
jovens e resultando pequena a igreja de então, com o consentimento da auto-
ridade eclesiástica abriu-se em outra região da cidade um segundo Oratório,
sob a invocação de São Luís Gonzaga, com a mesma finalidade do primeiro.
E como com o tempo essas duas instituições também chegaram a ser insu-
ficientes, abriu-se em 1849 um terceiro Oratório em outra parte da cidade,
Vanchiglia, sob o patrocínio do Santo Anjo da Guarda.
Tratando-se de tempos difíceis e infelizes para a religião, o superior ecle-
siástico, com sua característica grande bondade, aprovou o regulamento des-
ses Oratórios e designou o sacerdote Bosco como diretor-geral, concedendo-
-lhe todas as faculdades que pudessem ser necessárias e oportunas para esse fim.
Muitos bispos adotaram o mesmo plano de regulamento e atuaram para
introduzir os Oratórios em suas dioceses. Muitos jovens, já adultos, não po-
diam receber a instrução adequada só com o catecismo festivo e foi preciso
abrir escolas e catequeses diurnas e noturnas. E como muitos deles viviam em
situação de pobreza extrema e de abandono, foram acolhidos numa casa para
afastá-los dos perigos, serem instruídos na religião e iniciados num trabalho.
Ainda se faz tudo isso em Turim, na Casa Anexa ao Oratório de São
Francisco de Sales, onde os jovens acolhidos aproximam-se dos 200. A mes-
ma coisa se faz também em Gênova, na chamada Obra dos Pequenos Apren-
dizes da qual é diretor o sacerdote Francisco Montebruno; ali, os acolhidos
chegam a 40. Igualmente na cidade de Alessândria, onde, no momento, o
cuidado da obra, que acolhe 50 jovens, está confiado ao clérigo Ângelo Sávio.
Quando se pensa, além dos jovens que acorrem aos Oratórios festivos, tam-
bém nos que participam das aulas noturnas e diurnas e naqueles aos quais se
dá alojamento, percebe-se o quanto aumentou a messe do Senhor.
Tendo em conta as reuniões de jovens que se costumam fazer nos Ora-
tórios festivos, as aulas diurnas e noturnas e o número sempre crescente dos
que são acolhidos, a messe do Senhor se fez muito abundante. Por isso, para
conservar a unidade de espírito e de disciplina, do qual depende o sucesso

214

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Origem da Sociedade Salesiana

dos Oratórios, desde 1844, alguns sacerdotes de uniram para formar uma
espécie de congregação, ajudando-se uns aos outros com o exemplo recíproco
e a instrução.
Não fizeram nenhum voto propriamente dito, mas tudo se limitou a
fazer uma simples promessa de não mais se ocuparem senão das coisas que
seu superior julgasse da maior glória de Deus e o bem da própria alma. Re-
conheciam como seu superior a pessoa do sacerdote João Bosco. E, embora
não se tenham formulado votos, na prática observavam-se as regras que aqui
se apresentam. Os indivíduos que no presente [1858] professam estas regras
são 15, ou seja: 5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos.

Cooperadores Salesianos (1877)7


A história dos salesianos cooperadores remonta a 1841, quando na
cidade de Turim se começou a reunir meninos pobres sem lar. Esses encon-
tros aconteciam em igrejas ou outros locais, nos quais os meninos recebiam
instrução e se preparavam para receber adequadamente os sacramentos da
Confirmação, da Penitência e da Eucaristia. Desfrutavam também de um
tempo de distrações sadias. Alguns [“muitos” está riscado] leigos uniram-se
para realizar muitas e variadas tarefas [em benefício dos jovens] e contribuí-
ram para a manutenção dos chamados Oratórios festivos quer com serviços
pessoais quer com donativos. Eram conhecidos pelo título do cargo que
tinham, mas em geral eram chamados benfeitores, promotores e também
cooperadores da Congregação [“Oratório” está riscado] de São Francisco
de Sales.
O superior destes oratórios era o sacerdote João Bosco, que trabalhava
sob a supervisão direta do arcebispo e com sua autorização. As faculdades
necessárias para o exercício do seu trabalho foram-lhe concedidas oralmente
e por escrito. Quando surgiam dificuldades, o ordinário tratava delas com o
próprio Dom Bosco.
As primeiras faculdades concedidas pelo arcebispo foram para admi-
nistrar os sacramentos da Penitência e da Eucaristia, cumprir o preceito
pascal, admitir os meninos à Primeira Comunhão, pregar, celebrar tríduos,
novenas e retiros espirituais, abençoar com o Santíssimo Sacramento e ce-
lebrar missa solene.

7
Giovanni Bosco, Cooperatori Salesiani ossia un modo pratico per giovare al buon costume e alla ci-
vile società. Turim: Tipografia Salesiana, 1876, ASC A230, 2-3; FDB 1,886 E81-1,887 A2: OE XXVIII,
255-270. SS. N. 246. Cf. MB XI, 82s. Aparentemente o documento foi deixado de lado e substituído
por outro mais “suave”, publicado no Bollettino Salesiano (Bibliofilo Cattolico), 3, setembro de 1877, 6.

215

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capa do opúsculo escrito por Dom Bosco


sobre os Cooperadores Salesianos (1876).

Os chamados promotores e salesianos cooperadores [“sócios” está


riscado], que se associaram numa congregação regular conhecida como
Congregação de São Francisco de Sales, receberam os primeiros favores
espirituais da Santa Sé num documento de 18 de abril de 1845. Era assina-
do por L. Averardi, Substituto de S. Em.cia cardeal A. del Drago. O mesmo
documento também concedia várias faculdades ao superior, entre outras,
a de dar a bênção apostólica e a indulgência plenária a 15 promotores
escolhidos pelo diretor.

216

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Origem da Sociedade Salesiana

Em 11 de abril de 1847, o arcebispo Fransoni aprovou a Companhia de


São Luís, fundada dentro da Congregação Salesiana, e concedeu-lhe alguns
favores, seus e da Santa Sé.
Em 1850, Dom Bosco informou Sua Santidade que fora criada legi-
timamente em Turim uma Congregação com o nome e sob a proteção de
São Francisco de Sales, e implorava mais favores para seus membros, assim
como outros benefícios espirituais para os não membros. Esses favores foram
concedidos mediante uma circular de 18 de setembro de 1850, assinada por
Domingos Fioramonti, Secretário de Cartas Latinas de Sua Santidade.
A congregação dos salesianos cooperadores foi, portanto, estabelecida de
facto diante dos olhos da autoridade eclesiástica local e também da Santa Sé. Em
vista do grande número de jovens que participavam do Oratório, viu-se como
necessário abrir novas salas de aula e oratórios em outros lugares da cidade.
A fim de garantir a unidade de espírito, de disciplina e de administração,
e para fundar os Oratórios em base firme, o superior eclesiástico designou
como diretor o sacerdote João Bosco concedendo-lhe todas as faculdades ne-
cessárias com um decreto de 31 de março de 1852. Após esta declaração,
a congregação de Salesianos Cooperadores ficou instituída canonicamente e
todas as negociações com a Santa Sé foram sempre feitas pelo superior.
A partir de 1852, foram concedidos vários favores e benefícios espiri-
tuais, até 1858, quando a congregação dividiu-se em dois ramos ou, melhor,
[duas] famílias. Os que acreditavam ter vocação e nenhum impedimento
uniram-se para viver em comunidade. Alojaram-se nos mesmos edifícios que
foram a casa mãe e a casa geral da associação conhecida como Pia Sociedade
de São Francisco de Sales, nome sugerido pelo próprio Santo Padre, sendo
assim conhecida até o dia de hoje. Os demais, ou seja, os leigos continuaram
a viver no mundo com suas famílias, mas seguiam trabalhando em benefício
dos Oratórios. Conservaram o nome de União ou Congregação de São Francis-
co de Sales, Promotores ou Cooperadores. Submetiam-se, porém, aos membros
[que viviam em comunidade] e trabalhavam em conjunto com eles para o
bem dos jovens necessitados.
Em 1864, a Santa Sé aprovou a Pia Sociedade Salesiana e designou o seu
superior. No decreto de aprovação [da Sociedade Salesiana] também havia
uma seção relativa aos membros não religiosos, aos quais se fazia referência
sempre como promotores ou benfeitores e, finalmente, como salesianos coo-
peradores. Os membros originais da Congregação Salesiana de São Francisco
de Sales eram considerados sempre como promotores ou cooperadores dos
empreendimentos iniciados pelos membros religiosos. Ajudavam nas aulas,
na igreja, nos pátios e em outros campos de apostolado entre os fiéis.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Por esse motivo, em 30 de julho de 1875, a Sagrada Congregação das


Indulgências permitiu ao superior da Sociedade Salesiana estender as indul-
gências e favores espirituais aos primeiros benfeitores, como se fossem terciá-
rios, exceto os favores que se referem à vida comunitária. Estes benfeitores são
aqueles que sempre foram conhecidos como promotores ou cooperadores.
Nas primeiras Constituições salesianas há um capítulo dedicado a eles sob o
título de “membros externos”.
Como resultado, quando a Santa Sé concedeu novamente maiores e
mais generosos favores aos Salesianos Cooperadores, fez-se referência à Pia
Associação de fiéis canonicamente erigida, cujos membros tinham o objetivo
especial de atender aos meninos pobres e necessitados.
Essa referência deve ser entendida como aplicável:

1. Aos promotores originais que durante dez anos foram aceitos e


considerados de facto como genuínos cooperadores na obra dos
Oratórios, obra reconhecida formalmente no decreto de 1852.
Como leigos, eles continuaram a dar [seu tempo e seu trabalho] a
estes Oratórios, mesmo se em 1858 alguns cooperadores começa-
ram a viver em comunidade e sob as suas regras.
2. Os membros religiosos, ou seja, a Pia Sociedade Salesiana, sem-
pre orientou as atividades desses benfeitores, conforme as regras
que lhes foram dadas. Estes últimos, por sua vez, ofereciam-se
para ajudar moral e materialmente os membros religiosos, com
zelo e caridade.

História dos Salesianos Cooperadores (1877)8


Em 1841, deu-se início à instrução catequética aos jovens mais pobres
e necessitados, principalmente àqueles que a todo o momento estavam em
risco de ir para a prisão. A messe era grande e aumentava a cada dia. Dom
Bosco, às vezes, via-se rodeado de 500 ou 600 meninos, e era-lhe impossível
mantê-los adequadamente ocupados e, também, atender às suas necessida-
des. Nessas circunstâncias, muitos sacerdotes e leigos quiseram associar-se a
Dom Bosco e sua obra.

8
La Storia dei Cooperatori Salesiani era um manuscrito do padre Berto, corrigido por Dom Bosco
e publicado no Bibliofilo Cattolico (Bolletino Salesiano) em 3 de setembro de 1877, 6. Cf. uma trans-
crição e comentários em E. Valentini, “Preistoria dei Cooperatori Salesiani”, Salesianum 39 (1977),
114-150.

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Origem da Sociedade Salesiana

Em primeiro lugar, e como mais importante, recordamos o fervoroso


e muito pranteado teólogo João Borel, o sacerdote José Caffasso e o cônego
[Carlos Antônio] Borsarelli [di Rifreddo]. Foram estes os primeiros coopera-
dores dentre o clero. Contudo, como tinham outras obrigações, só estavam
disponíveis por algumas horas e em determinadas ocasiões.
Como consequência, recorremos a alguns senhores da nobreza e da clas-
se média em busca de ajuda, e obtivemos uma resposta generosa da parte de
grande número deles. Vieram e foram-lhes confiadas as aulas de catecismo,
as aulas de urbanidade, a assistência aos jovens dentro e fora da igreja. Com
dedicação exemplar, dirigiam os jovens na oração e no canto, preparavam-
-nos para a recepção dos santos sacramentos da Penitência, da Comunhão
e da Confirmação. Fora da igreja, estavam atentos para receber os meninos
quando chegavam ao Oratório, indicavam-lhes os lugares para a recreação,
participavam de seus jogos, mantinham a ordem.
Outra tarefa importante dos cooperadores era a busca de emprego. Mui-
tos meninos eram de fora da cidade, às vezes de localidades distantes, e viam-
-se sozinhos, sem lugar onde viver, sem trabalho, sem ninguém no mundo
que se ocupasse deles. Alguns dentre os cooperadores ficavam então com
esses meninos, ajudavam-nos no asseio, colocavam-nos com algum patrão
honrado e garantiam que fossem ao local de trabalho. Visitavam-nos durante
a semana e vigiavam para que voltassem ao Oratório no domingo seguinte,
e assim não perdessem num dia o que tinham obtido com o trabalho de vá-
rias semanas. Muitos desses cooperadores, com grande sacrifício pessoal, iam
fielmente todas as noites durante o inverno e davam aulas de leitura, escrita,
canto, aritmética e de italiano. Outros, porém, vinham diariamente ao meio-
-dia para ensinar o catecismo aos que mais precisavam de instrução.
Entre os muitos leigos que merecem reconhecimento pela caridade e
dedicação, um dos mais destacados era o senhor José Gagliardi, homem de
negócios, que dedicava generosamente todo o seu tempo livre e seu dinheiro
para ajudar os jovens do Oratório. Referia-se sempre a eles com carinho como
os nossos meninos. Faleceu há poucos anos e será recordado enquanto existir a
obra do Oratório. Outros cooperadores dedicados, que Deus chamou ao seu
seio são o banqueiro Campagna, o homem de negócios João Fino, o cavalhei-
ro José Cotta e o conhecido conde Vitório di Camburzano.
Entre os que ainda estão entre nós, devemos recordar agradecidos o
conde Carlos Cays, o comandante José Dupré, o marquês Domingos Fassa-
ti, o marquês João Scarampi, os três irmãos condes Carlos, Eugênio e Fran-
cisco De Maistre, o cavalheiro Marcos Gonella, o conde Francisco [Viancini
di] Viancino, o cavalheiro Clemente de Villanova, o conde Casimiro de

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Dom Bosco: história e carisma 2

Brozzolo, o cavalheiro Lourenço d’Agliano, o senhor Miguel Scanagatti, o


barão Carlos Bianco di Barbania e muitos outros.
Entre os muitos sacerdotes que se associaram à obra, devemos mencio-
nar os irmãos [João] Inácio e João [Batista] Vola, o doutor [Paulo Francisco]
Rossi, que faleceu como diretor do Oratório de São Luís, o doutor advogado
[João Batista] Destefanis (a quem o Senhor já chamou à sua morada celeste).
A estes, devemos acrescentar o doutor Roberto Murialdo, atual diretor da
Família de São Pedro, e o doutor [São] Leonardo Murialdo, atual diretor do
instituto [dos] Pequenos Aprendizes.
Entre os primeiros sacerdotes cooperadores que ainda estão entre nós,
louvado seja Deus, devemos mencionar os seguintes: padre José Trivero, ca-
valheiro doutor Jacinto Carpano, padre Miguel Ângelo Chiatellino, padre
Ascânio Sávio, padre João Giacomelli, doutor professor [?] Chiaves, padre
Antón Bosio, atualmente pároco, padre Sebastião Pacchiotti, professor padre
[João Batista] Musso, cônego [?] Musso, professor, padre Pedro Ponti [Pon-
te], cônego Luís Nasi, cônego professor (?) Marengo, padre Francisco Onesti,
professor, doutor Emiliano Manacorda, atualmente bispo de Fossano, cône-
go Eugênio Galletti, atualmente bispo de Alba. Devemos reconhecer prin-
cipalmente a contribuição do nosso arcebispo, o então cônego [Lourenço]
Gastaldi. Estava sempre disponível para pregar, ouvir confissões e dar aulas.
Considerou sempre os Oratórios festivos como uma obra providencial, uma
obra guiada e sustentada por Deus.9
Todos estes cooperadores vieram trabalhar nos prados de Valdocco. O
distrito está, agora, completamente urbanizado, mas naquela época era bem
desértico. Vieram e deram tempo, dinheiro e trabalho em benefício dos jo-
vens em perigo, reunindo-os para instruí-los nas verdades da fé e devolvê-los
à sociedade como cidadãos válidos e honestos [...].10
Há cooperadores não só entre os homens, mas também entre as mulhe-
res. Alguns de nossos alunos não eram mais do que moleques sujos e malves-
tidos. Ninguém podia suportá-los e nenhum patrão os queria em sua oficina.
Algumas senhoras caridosas vieram para o resgate. Lavavam, costuravam, re-
mendavam e também proviam de roupa nova e roupa de cama a esses meni-
nos, conforme precisassem.

Recorde-se que este documento foi escrito no final de 1877, num momento em que o conflito
9

com o arcebispo Gastaldi, depois de uma série de choques, chegava ao seu ponto mais elevado com a
publicação do primeiro panfleto difamatório anônimo.
10
A esta altura, um breve parágrafo descreve como se mantinha a ordem e se dirigia o Oratório
segundo uma série de normas, sem recorrer a ameaças ou castigos.

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Origem da Sociedade Salesiana

Entre as damas destacava-se a senhora Margarida Gastaldi, que tra-


balhava como cooperadora no Oratório junto com a filha (ambas já foram
receber sua recompensa) e uma sobrinha, Lourencinha Mazzè. Outras tra-
balhadoras fiéis foram a marquesa Maria Fassati, a condessa Gabriela Corsi,
a condessa Bosco-Riccardi e sua filha Julieta, a condessa Casazza Riccardi, a
nobre senhorita Cândida Bosco, a condessa Bosco-Cantono, a senhora Vi-
centina Occhiena, a senhora Bianco Juva, e muitas outras. Alguns institutos
caritativos e educativos também se uniram a este trabalho em benefício dos
meninos pobres.
Todos pareciam inflamados de entusiasmo nesta obra de misericórdia,
que se assemelhava muito ao “vestir os nus”. Também os jovens, agradecidos
pelos benefícios recebidos, ofereciam-se felizes para cantar e ajudar como co-
roinhas em seus institutos. Também expressavam sua gratidão orando pela
manhã e à noite pelos seus benfeitores.

Membros externos da Sociedade Salesiana11


Do (1860), Gb (1862-1864), Ls (1867), Do (1873),
italiano italiano latim latim
1. Qualquer pessoa, 1. Qualquer pessoa, 1. Qualquer pes- 1. Qualquer pes-
embora vivendo no embora vivendo no soa, embora viva no soa, embora viva
mundo, em sua própria mundo, em sua pró- mundo, em sua casa, no mundo, em sua
casa, no seio de sua fa- pria casa, no seio de no seio de sua famí- casa, no seio de
mília, pode pertencer a sua família, pode per- lia, pode pertencer a sua família, pode
nossa sociedade. tencer a nossa socie- esta sociedade. pertencer a esta
dade. sociedade.
2. Não faz nenhum 2. Não faz nenhum 2. Não se liga com 2. Não se liga com
voto, mas deve procu- voto, mas deve procu- voto algum, mas se voto algum, mas se
rar praticar a parte do rar praticar a parte do esforça para pôr em esforça para prati-
presente regulamento regulamento que for prática as regras que car as regras, que
que for compatível com compatível com sua sejam compatíveis sejam compatíveis
sua idade e condição. idade, Estado e condi- com sua idade e com sua idade e
ção, como seria ensinar condição. condição.
ou promover o ensino
do catecismo em favor
dos meninos pobres;
procurar a difusão dos
bons livros; contribuir
para que façam tríduos,
novenas, retiros, exercí-
cios espirituais e obras
semelhantes de carida-
de que sejam dirigidas
para o bem da juven-
tude e do povo simples.

Este é o capítulo acrescentado como apêndice nas Constituições (1860-1873) e suprimido em


11

1873. Cf. G. Bosco, Costituzioni, 210-211. [Paras as siglas, ver o capítulo XI, nota 4].

221

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. A fim de participar 3. A fim de participar 3. A fim de poder 3. A fim de po-


dos bens espirituais da dos bens espirituais da participar dos bens der participar dos
sociedade, é preciso sociedade, é preciso que espirituais da socie- bens espirituais da
que faça, ao Reitor, ao faça ao Reitor ao menos dade é preciso que, sociedade é preci-
menos, uma promessa uma promessa de com- ao menos, prometa so que, ao menos,
de usar seus bens e suas prometer-se naquelas ao Reitor levar uma prometa ao Reitor
capacidades da maneira coisas que ele julgue forma de vida tal levar uma forma de
que julgue que redun- que redundarão na que o mesmo Rei- vida tal que o mes-
darão para a maior gló- maior glória de Deus. tor julgue redundar mo Reitor julgue
ria de Deus. na maior glória de redundar na maior
Deus. glória de Deus.
4. Esta promessa não 4. Esta promessa tam- 4. Se alguém, porém, 4. Se alguém, po-
obriga sob pena de pe- bém não obriga sob não mantiver a pro- rém, não mantiver
cado, nem sequer venial. pena de pecado, nem messa feita, não será a promessa feita,
sequer venial. culpável de pecado não será culpável de
nem sequer venial. pecado, nem sequer
venial.
5. Qualquer membro
da sociedade que a
abandonasse por al-
gum motivo razoável
é considerado como
membro externo, e
ainda pode participar
dos bens espirituais da
sociedade, desde que
observe a parte do re-
gulamento prescrita
aos externos.

3. Comentário dos textos e interpretação

Existência de uma primitiva Congregação de São Francisco de Sales,


anterior às primeiras Constituições (1858) e sua “divisão” (1859)

Interpretação de Desramaut
Em vários de seus trabalhos,12 Desramaut cita documentos do próprio
Dom Bosco, tendentes a comprovar que existia, desde 1841, uma congre-
gação em sentido amplo formada por padres e leigos, mulheres e homens

12
Além dos citados na nota 1 deste capítulo, ver Francis Desramaut, “Da Associati alla Congre-
gazione salesiana del 1873 a Cooperatori salesiani del 1876”. In: Il Cooperatore nella società contempo-
ranea. Friburgo, 26-29 de agosto de 1974. Turim: LDC, 1975, 23-50.

222

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Origem da Sociedade Salesiana

que colaboravam na obra do Oratório e tinham Dom Bosco como superior


religioso. Esta Congregação de São Francisco de Sales de cooperadores re-
cebeu aprovação eclesiástica de dom Fransoni por meio de um decreto de
1859; alguns optaram por viver em comunidade e professaram os três votos
canônicos; outros, não formaram comunidade nem fizeram os votos, mas
continuaram a ajudar a obra do Oratório, de muitas formas e em vários níveis
de compromisso. Os membros externos descritos no capítulo-apêndice das
Constituições “representariam” a segunda família.
Antes de apresentar a crítica feita por Stella, deve-se fazer um breve
comentário sobre o modo como Dom Bosco pediu em 1876 a aprovação
dos Salesianos Cooperadores, tal como se conhecem, e a Obra de Maria
Auxiliadora.

Os Cooperadores Salesianos em 1876 e sua aprovação


Entre 1874 e 1876, Dom Bosco desenvolveu o conceito de coope-
rador fora das Constituições e escreveu uma normativa adequada. A Asso-
ciação de Salesianos Cooperadores e a Obra de Maria Auxiliadora (Filhos
de Maria) foram apresentadas juntas a Pio IX. O Papa estimulou os dois
projetos nos inícios de 1875; alguns meses depois concedeu reconheci-
mento e favores espirituais mediante um decreto de 30 de julho. Enfim,
as duas instituições foram apresentadas no dia 4 de março de 1876, como
já em funcionamento, e, portanto, não para a aprovação, mas para o reco-
nhecimento por meio da concessão de indulgências (decreto de 9 de maio
de 1876).13
Aproximadamente um mês depois, Dom Bosco imprimiu um folheto
em que descrevia as finalidades dos salesianos cooperadores.14 Nele, incluía
a bênção do Santo Padre para a congregação. Dom Bosco esperava incluir a
aprovação e bênção de dom Gastaldi no folheto. Ao apresentar-lhe, escreveu:
“Estes cooperadores são uma espécie de Ordem Terceira por meio da qual o
Santo Padre concede alguns favores espirituais aos nossos benfeitores. Ago-
ra que o Santo Padre concedeu sua bênção, também peço humildemente
[a bênção] de sua Eminência [...]”. Diante do fato consumado, o arcebispo

13
Sobre os Filhos de Maria, ver o pedido e o decreto em MB XI, 531ss. Para os Cooperadores,
ver o pedido em MB XI, 536s.
14
Esta foi a quarta e definitiva redação dos estatutos, intitulada “Cooperatori Salesiani ossia un modo
pratico per giovare al buon costume ed alla civile società” (Os Salesianos Cooperadores, ou seja, uma associação
dedicada a promover a moral cristã e o bem da sociedade). Cf. o capítulo VII do volume 3 desta série.

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Dom Bosco: história e carisma 2

apresentou fortes objeções.15 Dom Bosco, porém, imprimiu o opúsculo na


diocese de Albenga, com a aprovação do bispo Anacleto Pedro Siboni.
Alguns meses depois, desejando publicar o decreto de aprovação, Dom
Bosco apresentou uma cópia à chancelaria. O arcebispo apressou-se em ad-
vertir que a instrução dada pelo Papa simplesmente concedia “indulgências e
favores espirituais” e presumia que havia recebido previamente uma aprova-
ção canônica. Quem dera essa aprovação? Estava claro que a formulação do
decreto papal sobre os Salesianos Cooperadores e a Obra de Maria Auxilia-
dora o indicava. “Fomos informados de que uma Pia Companhia de homens
e mulheres cristãos, com o nome de Companhia ou União de Salesianos
Cooperadores foi erigida canonicamente”.
É certo que Pio IX apoiou firmemente tanto a Obra de Maria Auxilia-
dora como os Salesianos Cooperadores e que antes do decreto (9 de maio de
1876) já expressara a sua aprovação tanto com a palavra quanto mediante
uma circular em que concedia favores espirituais. Persiste, porém, o fato de
que a circular simplesmente concedia indulgências, e o fazia admitindo que
houvesse uma aprovação canônica prévia, não da Santa Sé com certeza. De
quem, então?
Aparentemente, Dom Bosco não pretendera pedir a aprovação da Santa
Sé para uma nova associação. Solicitara simplesmente favores espirituais para
uma associação já existente e que estava, quanto a ele, canonicamente erigida.
Ele discutiu este ponto no famoso e amplamente debatido memorando es-
crito em fins de 1876 ou inícios de 1877, intitulado Salesianos Cooperadores,
destinado provavelmente ao Boletim Salesiano, mas nunca publicado. Dom
Bosco argumenta que os cooperadores existiam desde 1841, estavam identi-
ficados com a obra dos Oratórios e eram conhecidos como “Congregação de
São Francisco de Sales”, da qual ele era o superior. A “congregação” recebera
incentivos, faculdades e favores espirituais em várias ocasiões quer da Santa
Sé quer do arcebispo Luís Fransoni com o decreto de 1852, no qual designava
Dom Bosco diretor espiritual dos três Oratórios.
A congregação, em 1858-1859, dividiu-se em duas famílias, uma vincu-
lada pelos votos e que vivia em comunidade; e outra (ainda conhecida como
“União ou Congregação de São Francisco de Sales, Promotores ou Coopera-
dores”) continuou “a viver no mundo enquanto trabalhava em benefício dos
15
Carta de 11 de julho de 1876, MB XI, 79. Sobre a discussão do conflito entre Dom Bosco e o
arcebispo Gastaldi a propósito dos Cooperadores Salesianos e a Obra de Maria Auxiliadora (Filhos de
Maria), cf. A. Lenti, “The Bosco-Gastaldi conflict”, Part II, JSS 5:1 (1994), 55-59.

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Origem da Sociedade Salesiana

Oratórios”. Portanto, quando os decretos papais falam de uma companhia


canonicamente erigida se referem:

Àqueles primeiros agentes que, de fato, tinham sido aprovados e reconhecidos


durante um período de dez anos como verdadeiros cooperadores da obra dos
Oratórios. A associação estava formalmente constituída mediante o decreto
de 1852. Os cooperadores continuaram como agregados, mesmo depois de
1858, quando alguns deles começaram a viver em comunidade segundo suas
próprias constituições.16

A Obra de Maria Auxiliadora (Filhos de Maria)


O decreto sobre a Obra de Maria Auxiliadora exprime a mesma inter-
pretação, e seguiu o mesmo processo dos cooperadores. Podemos fazer, então,
a mesma pergunta: Qual a origem e o caráter desta associação “preexistente e
canonicamente estabelecida”?
No caso da Obra de Maria Auxiliadora, é importante lembrar que os fa-
vores espirituais concedidos não são para os jovens adultos (de idade compre-
endida entre 16 e 30 anos), que seriam recrutados (“Filhos de Maria”), mas
para uma corporação, ou seja, um grupo de homens e mulheres, conjectu-
rando que já existiam como associação canonicamente aprovada. O trabalho
da associação era recrutar e promover vocações sacerdotais. Então podemos
perguntar: “De qual associação já existente Dom Bosco está falando? Que
autoridade eclesiástica teria dado sua aprovação canônica à Pia obra?”. Dom
Bosco apresentou o caso da existência “canônica” prévia dos cooperadores
referindo-se ao decreto de 1852 do arcebispo Fransoni. Mas podia fazer uma
alegação semelhante no caso da Obra de Maria Auxiliadora?
Parece, então, que ao falar da Obra de Maria Auxiliadora como uma
associação preexistente que se ocupava de recrutar e promover vocações sacer-
dotais (Filhos de Maria), Dom Bosco referia-se aos salesianos cooperadores,
que é a associação preexistente aprovada canonicamente. Os cooperadores
também se comprometiam a trabalhar em favor das vocações.
Os Filhos de Maria foram claramente uma criação de meados da década
de 1870. Contudo, a associação ou companhia em que se baseava a missão
das vocações tardias tinha existência anterior. Esta associação ou companhia
identificava-se com os cooperadores, ou seja, com o grupo de homens e mu-
lheres unidos desde o início para trabalhar em favor do Oratório.

16
Cf. neste capítulo VII, p. 218.

225

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Dom Bosco: história e carisma 2

Obra de Maria Auxiliadora, para a promoção de vocações sacerdotais (1877).

Crítica de Stella17
Stella manifestou muitas vezes a própria convicção de que a ideia de
Dom Bosco sobre o modo de encaminhar a obra do Oratório mudou várias
vezes. Mas sustenta não ter existido qualquer sociedade oficialmente apro-
vada antes da aprovação da Sociedade de São Francisco de Sales em 1869, e
que não foi apresentado nenhum projeto de qualquer outra sociedade antes
das Constituições de 1858 e da fundação em 1859. De forma extraoficial,
porém, Dom Bosco reunia e cultivava alguns jovens ao longo da década de
1850 para se unirem a ele e à obra do Oratório.

17
Cf. comentários de P. Stella, RSS 2 (1983), 451-454.

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Origem da Sociedade Salesiana

Nem a concessão de indulgências nem o decreto do arcebispo Fransoni


de 1852 implicam uma aprovação eclesiástica (canônica) dessa sociedade.
Deduz-se, portanto, que, se não havia uma sociedade, não houve uma divisão
da sociedade em 1858-1859. Portanto, os documentos citados por Desra-
maut devem ser interpretados sob um prisma diverso. Stella tece alguns co-
mentários sobre isso.
Não há evidência da existência dessa congregação. Nas Memórias do Ora-
tório, que contam a história até 1854, Dom Bosco fala de grupos e socie-
dades, mas nunca menciona esta congregação, que data de 1844 ou 1845,
dirigida por ele e composta de sacerdotes e leigos, tanto homens quanto mu-
lheres. Em segundo lugar, documentos da época, como cartas, matrículas,
citações públicas e privadas, circulares de loteria, periódicos etc., nenhum
deles menciona a existência de tal congregação. Em terceiro lugar, além dos
documentos sobre os cooperadores citados por Desramaut, não há menção
dessa congregação nos arquivos da Sociedade Salesiana, da chancelaria de
Turim ou da Sociedade de São José, de Murialdo etc.
Como se explica, então, o que dizem os documentos citados por Desra-
maut, principalmente os documentos sobre os cooperadores?
Em primeiro lugar, um deles é um manuscrito do padre Berto, corrigido
por Dom Bosco, publicado no Bollettino Salesiano [3 (set.-out. 1877), 6], e
traz o título Storia dei cooperatori salesiani. Aqui, Dom Bosco fala de “uma
espécie de congregação”. Stella crê que este documento queria simplesmente
animar os cooperadores recordando-lhes que, homens e mulheres com qual-
quer opção de vida, eles participam da obra desde o início. Os leitores bem
sabiam que Dom Bosco não dizia ter criado nos anos de 1840 ou 1850 uma
congregação que incluía homens e mulheres em qualquer situação de vida e
obtido a sua aprovação.
Em segundo lugar, o outro documento é um manuscrito redigido pelo
próprio Dom Bosco intitulado Cooperatori Salesiani, datado em fins de
1876 ou início de 1877. É algo mais audacioso e explícito, pois ele men-
ciona uma “congregação real”. Stella destaca que a base para falar do grupo
que se encontrava ao redor de Dom Bosco era, assim, a concessão de favores
espirituais (ad personam, mas aplicáveis a outros). Isso, porém, não estabe-
lece uma congregação. É também significativo que o documento nunca foi
usado, ou seja, nunca foi publicado no Boletim Salesiano para descrever os
salesianos cooperadores. Dom Bosco deixou-o de lado e serviu-se do do-
cumento anterior, talvez porque temia que pudesse gerar mal-entendidos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em terceiro lugar, Desramaut refere-se ainda a outros documentos. Um


deles, com data de 1850, também se refere às indulgências. Trata-se de uma
circular papal que responde a um pedido de Dom Bosco para favores em
nome de “uma congregação com o nome e sob a proteção de São Francisco
de Sales”. Stella demonstra que se conserva no Arquivo Central Salesiano um
pedido semelhante em benefício de “uma Congregação do Anjo da Guarda”.
Presumivelmente havia outra para “uma Congregação de São Luís”. Isso de-
monstra que o termo congregação referia-se simplesmente aos grupos envolvi-
dos na obra do Oratório.
Em quarto lugar, com referência à força do documento antes menciona-
do, “Cooperatori Salesiani”, Desramaut argumenta que, em 1859, houve uma
reestruturação na primeira sociedade, mais genérica. Esta reestruturação foi
precedida pelas primeiras Constituições de 1858 e comportava uma divisão
refletida na distinção entre “membros internos”, vivendo em comunidade
com constituições e “membros externos”, tal qual se descreve nas primeiras
Constituições.
Stella afirma que o capítulo sobre “os membros externos” não fazia parte
das primeiras Constituições, mas foi incluído por Dom Bosco posteriormen-
te (segundo Stella, por volta de 1864).18 O conceito, portanto, de “membro
externo” deve ser entendido não como herança da primeira sociedade, mais
genérica, mas apenas como referência a uma congregação religiosa de homens
que Dom Bosco estava criando e que obteve o reconhecimento em Roma
com o decretum laudis (1864). As mulheres ficavam automaticamente excluí-
das. Mais ainda, deve-se realçar que, entre 1864 e 1874, Dom Bosco aceitou
unicamente dois membros externos (dois padres).19
Stella conclui, então, que Dom Bosco usou o título congregação num
sentido mais amplo ou figurado nos dois documentos sobre os cooperado-
res, escritos em 1876-1877 com um objetivo específico em mente. As várias
formas de compromisso de muitas pessoas com Dom Bosco e a obra do Ora-
tório não podem ser reduzidas exclusivamente a uma congregação religio-
sa, embora se trate de um ministério de colaboração. Talvez Desramaut não
tenha levado suficientemente em consideração o caráter do escritor (Dom
Bosco) e a tendência dos documentos em questão.

18
De acordo com Motto (G. Bosco, Costituzioni, 17), os artigos sobre os membros externos são
os primeiros documentados num rascunho manuscrito das Constituições, não anterior a 1860. Isso não
invalida o argumento de Stella, pois estes artigos não aparecem em versões anteriores das Constituições.
19
Desramaut também menciona este fato, mas considera que os dois membros externos oficial-
mente listados representam os muitos não listados que trabalharam para o Oratório com diversos níveis
de compromisso.

228

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Origem da Sociedade Salesiana

À maneira de conclusão
O que pensar disso tudo? Esta é a minha proposta.

1. Os documentos mostram que muita gente, além de Dom Bosco,


estava envolvida em graus diversos de compromisso e em diversas
tarefas com a obra dos Oratórios, como cooperadores ou promotores
etc. Desramaut parece interpretar congregação neste sentido amplo.
2. Contudo, este ministério de colaboração não converte os coope-
radores em “congregação”, nem tampouco os favores espirituais
recebidos do Papa ou o decreto do arcebispo Fransoni de 1852
equivalem a uma aprovação canônica eclesiástica, embora Dom
Bosco possa assim ter pensado. Deve ser esta a razão pela qual
Stella não pôde encontrar nenhuma prova da existência de tal con-
gregação, além das afirmações de Dom Bosco nos documentos
citados anteriormente.
Que Dom Bosco estava convencido de que fora erigida canoni-
camente uma congregação de colaboradores pode ser confirma-
do pela maneira como se dirigiu ao Papa para que aprovasse os
cooperadores e a Obra de Maria Auxiliadora em 1875-1876. Ele
apresentou as duas associações como já existentes e aprovadas pela
Igreja. Deve ter sido esta a sua convicção, a não ser que, como su-
gere Stella, esta representação fosse devida ao “caráter do escritor e
a intenção do escrito”.
3. Entretanto, em qualquer interpretação, o ponto crucial deve dar
uma explicação satisfatória sobre a natureza da divisão de 1859.
Dom Bosco escreve:
[Em 1858] a congregação [de cooperadores, promotores...] dividiu-se em
dois ramos, ou dito melhor, [em duas] famílias. Aqueles que acreditavam ter
uma vocação e nenhum impedimento uniram-se para viver em comunidade,
[...] conhecida como Pia Sociedade de São Francisco de Sales [...]. Os demais,
ou seja, os leigos continuaram a viver no mundo com suas próprias famílias,
mas persistiram a trabalhar em favor dos oratórios. Mantiveram o nome de
União ou Congregação de São Francisco de Sales, Promotores ou Cooperadores.
Nas primeiras Constituições Salesianas é-lhes dedicado um capítulo com o
título de “membros externos”.20

20
Cf. p. 218 deste volume.

229

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Dom Bosco: história e carisma 2

Deve-se notar, primeiramente, que daqueles que em 1859 aceitaram vi-


ver em comunidade com votos, todos eles, exceto Dom Bosco e o padre Ala-
sonatti, foram educados por Dom Bosco e receberam as ordens sagradas ou
aspiravam a ser ordenados na Casa. Portanto, na verdade, apesar da afirmação
de Dom Bosco, a divisão, qualquer que tenha sido, não se referia à ampla
congregação de cooperadores ou promotores da obra dos Oratórios.
Em segundo lugar, o capítulo sobre os salesianos externos que, como
Dom Bosco declara, era “dedicado à União de promotores ou cooperadores”,
família externa resultante da divisão, embora não representasse veridicamente
a realidade, pode ser inclusive a intenção, desafortunada, de Dom Bosco de
unir as forças novas e antigas, envolvidas na obra do Oratório na dependên-
cia da Sociedade Salesiana. Se for este o caso, a afirmação de Dom Bosco vai
além dos fatos históricos.
Em 1864, a Sociedade Salesiana recebeu o Decretum laudis com 13
observações críticas. Uma delas ordenava a supressão do capítulo sobre os
salesianos externos. Dom Bosco, porém, insistiu e manteve o capítulo, in-
troduzido pela primeira vez em 1860, até que se viu forçado a eliminá-lo em
1873, antes da aprovação definitiva das Constituições em 1874. Contudo, a
ideia, de forma diferente, tornou-se enfim realidade com a reorganização dos
Cooperadores Salesianos (1876).

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Apêndice

CRONOLOGIA DE 1858 A 1874

1858
18 de fevereiro: Primeira viagem de Dom Bosco a Roma e audiência com Pio IX,
para apresentar o plano de uma sociedade religiosa e as Constituições.
Meados ou final do ano: Primeiro rascunho das Constituições salesianas (M. Rua).

1859
Janeiro: Dom Bosco publica a biografia de Domingos Sávio.
21 de janeiro: Morte de Miguel Magone.
Outubro: A escola secundária em Valdocco se completa com um plano pa-
drão de estudos de cinco anos.
18 de dezembro: Fundação oficial da Sociedade Salesiana (precedida da pro-
posta de Dom Bosco na conferência de 9 de dezembro) com 18 membros
(nenhum leigo). Elege-se o “Primeiro Conselho Geral”.

1860
O primeiro membro leigo, ou coadjutor, José Rossi, é recebido por Dom Bosco
na Sociedade.
26 de maio: Primeiro dos 11 [?] registros dos que moravam no Oratório.
2 de junho: Primeira ordenação de um sacerdote salesiano, padre Ângelo Sávio.
11 de junho: Envia-se ao arcebispo Fransoni o projeto das Constituições,
assinado pelos 26 membros da Sociedade.
29 de julho: Ordenação sacerdotal do padre Rua.
Agosto: Dom Bosco aceita dirigir e dotar parcialmente de pessoal o seminário
menor em Giaveno.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1861
3 de março: Constitui-se o “comitê histórico” para recolher as palavras e as
ações de Dom Bosco.
Estabelece-se em Valdocco a escola elementar como internato.

1862
Final de 1861 ou início de 1862: Cria-se a oficina gráfica em Valdocco.
26 de março: dom Fransoni morre no exílio: a sede de Turim permanece
vacante (1862-1867).
Cria-se a oficina de serralheria em Valdocco.
14 de maio: Primeiros votos públicos [trienais?] de 22 salesianos.
14 de junho: Cagliero e Francésia são ordenados padres.

1863
Começam as obras da Igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
Outubro: Tem início em Mirabello a escola particular salesiana como inter-
nato, sendo padre Rua seu diretor; a escola serve como seminário menor para
a diocese de Casale.

1864
9 de janeiro: Morte de Francisco Besucco.
Abril: Dom Bosco coloca pessoalmente a primeira pedra nas fundações da
Igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
23 de julho: Dom Bosco, sem ir a Roma, solicita a aprovação da Sociedade e
de suas Constituições, e obtém o Decretum laudis recebendo as 13 observa-
ções de Savini-Svegliati.
Cria-se uma livraria em Valdocco.
15 de outubro: Abre-se em Lanzo o colégio salesiano municipal; o contrato
fora firmado em 30 de junho.
Outubro: Primeiro encontro de Dom Bosco com Maria Mazzarello e as Fi-
lhas de Maria Imaculada em Mornese.
Dezembro: Cria-se em Valdocco a banda de música.

1865
27 de abril: Bênção solene e colocação da pedra angular da igreja. Tem início
a Biblioteca de clássicos latinos.

232

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Origem da Sociedade Salesiana

7 de outubro: Morre padre Alasonatti; padre Rua sucede-o como prefeito.


10 de novembro: Primeira profissão perpétua: padre João Batista Lemoyne.
Seguiram-se, cinco dias depois, as profissões de outros 9 salesianos, entre os
quais os padres Rua e Cagliero.
13 de novembro: Padre João Batista Francesia é o primeiro salesiano a obter
o doutorado.
10 de dezembro: Padres Albera e Francésia obtêm o título de “professores”.

1866
2 de agosto: Primeiros exercícios espirituais dos Salesianos em Trofarello.
23 de setembro: Colocação do último tijolo e conclusão da cúpula da igreja
de Maria Auxiliadora.

1867
Janeiro: O bispo Alexandre Otaviano Riccardi dei Conti di Netro é nomeado
arcebispo de Turim.
7 de janeiro: Segunda viagem a Roma para pedir a aprovação da Sociedade e
suas Constituições. O pedido foi recusado.
27 de março: O cônego Gastaldi é nomeado bispo de Saluzzo.
21 de novembro: Inauguração da estátua de Maria Imaculada na cúpula da
igreja de Maria Auxiliadora.

1868
19 de janeiro: Aprovação diocesana da Sociedade Salesiana por dom Pedro Ferré,
bispo de Casale.
21 de maio: Bênção das cinco campanas da igreja de Maria Auxiliadora
dos Cristãos.
Maio: Dom Bosco publica o livro Maravilhas da Mãe de Deus.
9 de junho: Consagração da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
29 de outubro: Grave enfermidade do padre Rua.

1869
9 de janeiro: Começa a publicação da Biblioteca da Juventude de clássicos italianos.
15 de janeiro: Terceira viagem de Dom Bosco a Roma para solicitar a aprovação
da Sociedade e suas Constituições.

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Dom Bosco: história e carisma 2

19 de fevereiro: Aprovação da Sociedade Salesiana; o decreto é de 1o de março.


A aprovação das Constituições foi adiada até ser corrigida de acordo com as
observações de 1864.
Outubro: Abertura da escola municipal salesiana de Cherasco; o contrato
fora concordado em julho. Em 1871, será transferida para Varazze.
18 de abril: Dom Bosco cria a Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora
(ADMA).

1870
20 de janeiro: Quarta viagem de Dom Bosco a Roma; durante o Concílio Vati-
cano I, Dom Bosco trabalha em apoio da infalibilidade papal.
24 de junho: Primeira celebração do onomástico de Dom Bosco: funda-se a
Associação dos Ex-Alunos do Oratório de Valdocco.
Outubro: Abertura da escola municipal salesiana de Alassio, a primeira fora
do Piemonte.
Outubro: A escola de Mirabello transfere-se para Borgo San Martino, com
melhores instalações e localização mais saudável.

1871
Junho: Quinta viagem de Dom Bosco a Roma. Dom Bosco trabalha em vista
da nomeação de bispos para as sedes vacantes; apresenta-se o nome de Gas-
taldi para Turim.
Setembro: Sexta viagem de Dom Bosco a Roma.
Outubro: Abre-se uma casa salesiana particular para aprendizes em Marassi,
que se transfere no ano seguinte para Sampierdarena (Gênova).
Outubro: Abre-se a escola municipal salesiana de Varazze, com internato.
26 de novembro: O arcebispo Gastaldi entra na sede de Turim.
6 de dezembro: Longa e grave enfermidade de Dom Bosco em Varazze, pros-
trado no leito até 30 de janeiro de 1872.

1872
29 de janeiro: Fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora; suas
Constituições tinham sido redigidas em 1871.
Outubro: A escola diocesana de Valsálice é passada aos salesianos por insistência
de dom Gastaldi; a transferência fora acordada em julho.

234

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Origem da Sociedade Salesiana

1873
Cresce a oposição de dom Gastaldi à Sociedade Salesiana, já detectada em
1872.
18 de fevereiro: Sétima viagem de Dom Bosco a Roma, para solicitar a apro-
vação das Constituições, que são recusadas; recebem-se 28 observações de
Bianchi-Vitelleschi.
Primeira revisão do texto de 1873.
9 de setembro: Morte do teólogo João Borel.
Dom Bosco redige os dois primeiros cadernos das Memórias do Oratório.
30 de dezembro a 14 de abril de 1874: Oitava viagem a Roma para solicitar a
aprovação das Constituições; Dom Bosco trabalha para a nomeação de bispos
e a obtenção dos bens temporais [das dioceses] (Exequatur).

1874
31 de março: Aprovação definitiva das Constituições Salesianas corrigidas. O
decreto é publicado em 3 de abril.
15 de junho: Primeiro Capítulo Geral das Filhas de Maria Auxiliadora. Maria
Mazzarello é eleita superiora-geral.
1874-18...: Dom Bosco redige o terceiro caderno das Memórias do Oratório.

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Capítulo VIII

A FUNDAÇÃO
DA SOCIEDADE SALESIANA (1859)

1. Dom Bosco reúne “seus meninos” e dá origem


à Sociedade Salesiana
Antes de narrar em detalhes a fundação da Sociedade Salesiana, no final
da década de 1850, parece útil fazer um resumo do processo que levou até ela.
Começou em 1849, época em que se aproximava a crise do Oratório. Dom
Bosco começou a cultivar alguns jovens que poderiam servir como catequis-
tas e líderes nos Oratórios encontrando, ao mesmo tempo, um novo objetivo
para os meninos da Casa Anexa. O processo ganhou impulso em 1854, ano
crítico que encerra a era do Oratório e abre o tempo da Sociedade Salesiana.
Segue um resumo do processo, baseado nas Memórias Biográficas.1

Testemunho das Memórias Biográficas

MB III, 546-548, 572-574 (julho de 1849)


Dom Bosco escolhe quatro meninos com a finalidade de lhes dar tra-
tamento especial e ensinar-lhes o latim: Félix Reviglio, Santiago Bellia, José
Buzzetti e Carlos Gastini.2

1
O processo pelo qual Dom Bosco reuniu “seus meninos” é descrito tanto nos Documenti como
nas Memórias Biográficas. Lemoyne, que só se uniu a Dom Bosco em 1864, descreve os fatos tendo por
base os escritos de Dom Bosco e documentos dos participantes e cronistas, além da Storia, de Bonetti, dos
anos 1857-1858. Bonetti é uma fonte importante para 1857 (diálogo com Rattazzi) e 1858 (audiência
com Pio IX), mas não descreve a fundação de 9 e 18 de dezembro de 1859.
2
Estes quatro devem ser distinguidos do segundo grupo de 1854.

236

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

O interesse de Dom Bosco por estes jovens, como grupo, poderia


sugerir que já estava à procura de “ajudantes” entre os meninos mais pro-
metedores numa data muito precoce, como 1849. Somente Buzzetti che-
gou a ser salesiano.

MB IV, 93-94 (28 de setembro de 1850)


Dom Bosco envia um pedido e recebe o primeiro documento papal
dirigido ao “diretor da Congregação de São Francisco de Sales”, concedendo
indulgências para os que trabalhavam no Oratório. Este favor é visto como
uma espécie de aprovação.
Michael Mendl, editor da edição inglesa das Memórias Biográficas, co-
menta: “Este pedido é particularmente importante, porque pela primeira
vez Dom Bosco menciona a Congregação Salesiana”. Documento similar
dirigido ao diretor da Congregação do Anjo da Guarda conservado nos
Arquivos Históricos Salesianos e, presumivelmente, também outro rela-
tivo ao de São Luís, demonstram que se faz referência ao grupo dos que
trabalhavam no Oratório.3

MB IV, 139-141 (outubro de 1850)


Dom Bosco pede a dom Fransoni que permita aos “quatro” menciona-
dos acima, serem examinados para poderem receber a batina em vista, por-
tanto, do sacerdócio. Mais ainda, faz-se menção a Miguel Rua como objeto
de um cuidado especial de Dom Bosco. Mencionam-se também outros me-
ninos, mas não está claro em que qualidade eles são nomeados.

MB IV, 231 (2 de fevereiro de 1851)


Os quatro mencionados acima recebem a batina na capela Pinardi na
festa da Purificação, unida à celebração pública da festa de São Francisco
de Sales.

MB IV, 378 (31 de março de 1852)


Um decreto de dom Fransoni confirma Dom Bosco como diretor es-
piritual dos três Oratórios. Dom Bosco considera a resolução da “crise do
oratório” como “aprovação” oficial e fala dela nesse sentido.

Veja-se também o questionamento feito por Desramaut sobre o termo e a crítica de Stella neste
3

volume 2, no capítulo VII, p. 222-230.

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Dom Bosco: história e carisma 2

MB IV, 428-429 (5 de junho de 1852)


À noite de sábado 5 de junho de 1852, Dom Bosco reuniu um gru-
po escolhido de jovens para uma conferência, quando decidiram rezar to-
dos os domingos as “Sete alegrias de Maria”, até o primeiro sábado de maio
do ano seguinte. “No próximo ano ver-se-ia quem dentre eles perseverara
em seu propósito”. A reunião e os nomes foram anotados pelo padre Rua:
Dom Bosco, diácono [Joaquim] Guanti, [Santiago] Bellia, [José] Buzzetti,
[?] Gianinati, [Ângelo] Sávio, [Estêvão] Sávio, [Segundo] Marchisio, [João]
Turchi, [José] Rocchietti, [João Batista] Francésia, [Francisco] Bosco, [João]
Cagliero, [João] Germano e [Miguel] Rua. Destes 15, incluindo Dom Bosco,
6 estarão entre os fundadores, em 1859: Dom Bosco, Rua, Cagliero, Fran-
césia, Ângelo Sávio, Buzzetti e Rocchietti, que se fez salesiano, mas deixou a
Sociedade por motivo de saúde e foi padre diocesano, permanecendo sempre
muito próximo de Dom Bosco.

MB IV, 487-488 (3 de outubro de 1852)


Miguel Rua e José Rocchietti recebem a batina das mãos do padre teó-
logo Antônio Cinzano na capela do Santo Rosário, situada na casa de José,
nos Becchi.

MB V, 9-10 (26 de janeiro de 1854)


Um novo “grupo de quatro” reúne-se com Dom Bosco. “Em 26 de ja-
neiro de 1854, à noite, nós nos reunimos no quarto de Dom Bosco: o próprio
Dom Bosco, Rocchietti, Artiglia, Cagliero e Rua; foi-nos proposto fazer, com
a ajuda do Senhor e de São Francisco de Sales, uma experiência de exercício
prático de caridade com o próximo, para chegar mais tarde a uma promessa e,
depois, se fosse possível e conveniente, convertê-la em voto ao Senhor. Desde
aquela noite, chamou-se de salesianos os que se propuseram e se propõem
este exercício”.4

De uma nota escrita mais tarde pelo padre Rua, não encontrada nos Documenti, mas conserva-
4

da manuscrita no ACS. O uso da designação salesiano numa data tão precoce (1854) é discutido. Vale
a pena ressaltar que 1854 foi o ano em que se introduziu no Parlamento a Lei Cavour-Ratazzi, quando
se deu a primeira visita de Ratazzi a Dom Bosco e sua conversa sobre o método educativo; foi também
o ano da grande epidemia de cólera (verão) e da entrada de Domingos Sávio no Oratório (outono).

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

“Em 26 de janeiro de 1854, à noite, nós nos reunimos no quarto de Dom Bosco”
(breve crônica de Miguel Rua).

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Dom Bosco: história e carisma 2

MB V, 124-125 (outubro de 1854)


Ângelo Sávio já vestira a batina. João Turchi e outros estão para fazer o
mesmo. Dom Bosco fala do futuro com palavras esperançosas.

MB V, 692-696 (1857) [da Storia, de Bonetti]


Mencionam-se sugestões anteriores feitas a Dom Bosco sobre a funda-
ção de uma sociedade religiosa. Essas sugestões vêm do padre Ascânio Sávio,
do padre José Cafasso e do arcebispo Fransoni etc. Isso leva à famosa conversa
com o ministro Urbano Rattazzi, que sugeriu um tipo de sociedade, sem
qualquer referência a uma congregação religiosa, que poderia ser legalmen-
te viável. Dom Bosco “recebe um esclarecimento” da explicação feita por
Rattazzi do ponto de vista da lei. Depois, consulta vários bispos, como o ar-
cebispo Fransoni, no exílio. Indica-se que Dom Bosco já reunisse há algum
tempo alguns estudantes e seminaristas para falar sobre o assunto.

MB V, 860-861 (9 de março de 1858) [da Storia, de Bonetti]


Dom Bosco tivera uma primeira audiência com Pio IX, por ocasião da
primeira viagem a Roma. O Papa ter-lhe-ia perguntado: “O que acontecerá
se o senhor morrer [...]?”. Dom Bosco apresenta a carta de louvor do arce-
bispo Fransoni e um breve plano para criar uma sociedade religiosa. Pio IX
orienta sobre o tipo de congregação que deveria ser.
O primeiro rascunho das Constituições Salesianas acompanha a viagem
a Roma, e tem data posterior, em 1858. Na Introdução histórica, Dom Bosco
escreve: “Quinze pessoas, neste momento, estão observando estas regras, con-
cretamente 5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos”.5

MB VI, 333-335 (18 de dezembro de 1859)


Em 9 de dezembro de 1859, numa reunião com o seleto grupo de 22
jovens que estava cultivando, Dom Bosco propôs formalmente a criação de
uma sociedade religiosa e convidou os que desejassem fazer parte da mesma a
encontrar-se novamente no dia 18 de dezembro. A reunião de 18 de dezem-
bro de 1859 marca o nascimento da Sociedade Salesiana.
As Memórias Biográficas citam as atas assinadas por Dom Bosco e pelo pa-
dre Alasonatti que atuava como secretário, e apresentam 18 nomes incluindo
o de Dom Bosco. O Arquivo Histórico Salesiano conserva o manuscrito que

5
G. Bosco, Costituzioni, 70.

240

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

traz a assinatura autenticada de Dom Bosco.6 Stella, porém, escreve: “Os no-
mes dos que se uniram à Sociedade de São Francisco de Sales são obtidos nas
Atas do Conselho fundacional, num manuscrito de Júlio Barberis no Arqui-
vo Histórico Salesiano 055”. Apresenta 19 nomes, com o acréscimo de “José
Gaia, coad. [coadjutor]”, de 35 anos de idade. Contudo, a opinião de Stella
foi criticada por J. Graciliano González, que publicou o texto crítico da ata.7
Embora Dom Bosco estivesse cultivando um grupo selecionado de jo-
vens desde 1849, 1854 é o ano em que decidiu ir adiante e criar uma congre-
gação religiosa. Sabemo-lo por ele mesmo, conforme citação do padre Barbe-
ris em sua crônica.

1854, verdadeiro início da Sociedade Salesiana


A importância de 1854 é clara nas Memórias do Oratório, de Dom Bos-
co. Em 1876, narra Barberis, Dom Bosco falou das Memórias, que acabava de
completar, enfatizando a importância do ano 1854 como momento decisivo
na história de sua obra. Barberis escreve:

Ao falar dos inícios do Oratório, Dom Bosco disse: “Na verdade, a história do
início do Oratório é tão memorável e tão poética que eu gostaria de reunir os
nossos salesianos e contá-la pessoalmente com detalhes [...]. Escrevi os prin-
cipais fatos até o ano de 1854. Foi nesse momento que o Oratório adquiriu
estabilidade e assumiu gradualmente sua atual estrutura. Pode-se dizer que
nesse ano terminou o período poético e começou o período normal”.8

Foi o ano em que Dom Bosco redigiu pela primeira vez uma lista com-
pleta de normas para o Oratório festivo. O novo edifício, capaz de acolher
uns 100 meninos, estava pronto para ser ocupado. Nesse mesmo ano, o fa-
moso segundo grupo de quatro uniu-se “para o exercício prático da caridade”.
Durante as Conferências de São Francisco de Sales, Dom Bosco voltou
ao tema.9 Barberis conta que Dom Bosco falou da importância crucial de
6
ASC D8680101, Verbali dei Capitoli - Adunanze Capitolo Superiore, 1-3.
7
P. Stella, Economia, 295, nota 1 e texto relacionado. Cf. J. Graciliano González, Acta de
fundación, 331.
8
Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 1o de janeiro de 1876, caderno III, 46-47, FDB
835 D9-10.
9
As Conferências de São Francisco de Sales, assim chamadas por serem celebradas ao redor da
festa do santo (29 de janeiro, naquele tempo), eram reuniões gerais de diretores e outros superiores
com o propósito de discutir os assuntos da Congregação. Foram precursoras dos capítulos gerais e
aconteceram todos os anos de 1865 a 1877, quando, de acordo com as Constituições, foi celebrado
o Primeiro Capítulo Geral.

241

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Dom Bosco: história e carisma 2

1854 e expressou a certeza de que sua vida ficara inseparavelmente ligada à


da Sociedade.

Dom Bosco disse: “Quanto a mim, escrevi um resumo dos fatos relacionados
com o Oratório desde seus inícios até o momento presente10 e, até 1854 [nas
Memórias do Oratório], a narração entra muitas vezes em detalhes. A partir de
1854, a exposição começa a tratar da Congregação enquanto os problemas
começam a ser mais generalizados e de aspecto diverso [...]. Percebo, agora,
que a vida de Dom Bosco está totalmente unida à da Congregação e, portan-
to, temos de falar de algumas coisas [...].11

É interessante o comentário de Barberis sobre o modo como Dom Bos-


co foi expondo gradualmente diante dos jovens escolhidos a ideia de uma so-
ciedade religiosa. Nos primeiros anos, ele evitava falar de sociedade religiosa
quer por motivos políticos quer por receio de assustar os seus jovens.

Naqueles tempos, Dom Bosco não falava abertamente de congregação reli-


giosa para não nos assustar. Conservava-o em segredo. Quando convidava
alguém para fazer parte da Sociedade, evitava cuidadosamente até mesmo a
menor referência ao que seria uma congregação religiosa. Qualquer coisa mais
explícita ter-nos-ia assustado. Nós quatro [os salesianos que conversavam com
Dom Bosco] estávamos de acordo, como o estariam outros dentre os primei-
ros sacerdotes e coadjutores salesianos, de que, se Dom Bosco nos tivesse pro-
posto abertamente viver numa ordem religiosa, ninguém teria aceitado. Nessa
época, portanto, Dom Bosco usava simplesmente expressões como: “Amas a
Dom Bosco? Gostarias de fazer os estudos de seminarista aqui no Oratório?
Gostarias de ajudar Dom Bosco quando chegar o momento? [...]”. Foi assim
que lançou o anzol e fomos fisgados. E somos afortunados por permitirmos
que Dom Bosco nos seduzisse desse modo [...].
Perguntei-lhe: “Dom Bosco, o senhor procurou enganar-nos e conquistar-nos
contra a nossa vontade, é verdade?”. “Precisava ser cauteloso”, explicou Dom
Bosco. “Eu o fiz para não assustar ninguém. Agora, as coisas mudaram e a

10
O “momento presente” seria os inícios de 1876 e, portanto, não pode referir-se às Memórias do
Oratório. Dom Bosco, porém, redigiu alguns resumos históricos na década de 1870 nos quais descreve
o desenvolvimento da sua obra. Contudo, o resumo histórico ao qual se refere aqui pode ser aquele
que compilou em 1874 para a aprovação das Constituições: Relatório da Sociedade de São Francisco de
Sales em 23 de fevereiro de 1874. Foi transcrito com comentários em P. Braido, Don Bosco per i giovani,
147-155. Também em OE XXV, 377-384.
11
G. Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 2 de fevereiro de 1876, caderno IV, 41, FDB
837 D1.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

vida religiosa é vista sob uma luz diferente. Durante muito tempo, por exem-
plo, evitei usar a palavra ‘noviciado’ para não despertar suspeitas nas pessoas
sobre se nós éramos uma ordem religiosa. Vejo agora que a palavra é usada de
forma natural. Mas há apenas dois anos usar a palavra ‘noviciado’ teria sido,
poderíamos dizer, contraproducente. Percorremos um longo caminho!”.
Dom Bosco continuou: “As coisas mudaram também em relação à disciplina
exterior. Naqueles dias, os clérigos eram formados com grande liberdade. A
cada momento, podia-se ouvi-los a gritar e discutir sobre literatura ou teolo-
gia. Armavam discussões na sala de estudo quando os meninos não estavam
ali. Ficavam na cama a manhã toda e não apareciam na aula sem serem re-
preendidos. Com frequência, faltavam à meditação e à leitura espiritual, e
era-lhes suficiente o retiro espiritual dos meninos. Eu estava ciente de tudo
isso e gostaria de tê-lo impedido, mas preferi deixar as coisas como estavam.
A situação foi melhorando aos poucos e instauraram-se a ordem e a disciplina.
Se tivesse atuado para reforçar imediatamente a disciplina religiosa, meus clé-
rigos teriam ido embora, e seria preciso mandar os meninos para casa e fechar
o Oratório. Pude ver, porém, que muitos desses jovens tinham boas intenções
e bom coração. Soube que, uma vez passados os dias insensatos da juventude,
assentar-se-iam e ser-me-iam de grande ajuda. Alguns sacerdotes de nossa
congregação são dessa geração e são exemplares pela dedicação ao trabalho e
pelo espírito sacerdotal”.12

Fundação da Sociedade Salesiana (1854-1859)13

A ideia de contar com um grupo para continuar a obra dos Oratórios


Nos inícios da década de 1850, Dom Bosco procurava uma maneira de
conseguir que seu trabalho fosse permanente. Alguns padres e leigos tinham-
-se associado a ele na obra dos Oratórios, mas o vínculo que os unia entre si e
com ele não era suficientemente estreito. Cada um tinha seus compromissos
e suas ideias. Dom Bosco desejava certamente uni-los com um vínculo mais
forte, sob o seu comando e com alguma espécie de norma. O regulamento

12
G. Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 7 de dezembro de 1875, caderno III, 43-45,
FDB 835 D6-8.
13
[1] P. Braido, Don Bosco per i giovani: l’“Oratorio”: una “Congregazione degli Oratori”. Docu-
menti. Roma: LAS, 1988. [2] “Apunte histórico del Oratorio de San Francisco de Sales”. In: J. Bosco,
El sistema preventivo en la educación, José Manuel Prellezo (ed.). Madri: Biblioteca Nueva, 2004, 73-
86. [3] “Apuntes históricos sobre el Oratorio de San Francisco de Sales”. In: Ibid., 87-97; [4] Riassunto
della Pia Società di San Francesco di Sales nel 23 febbraio 1874.

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Dom Bosco: história e carisma 2

do Oratório festivo de 1852-1854 foi redigido, como indica a introdução,


para “servir de norma no exercício deste aspecto do sagrado ministério, como
orientação para os numerosos sacerdotes e leigos que dedicam seu trabalho a
este serviço com amor e preocupação”.14
Mais tarde, em 1852-1854, anos em que o regulamento foi elaborado,
Dom Bosco ainda acariciava a ideia de unir o grupo. Pode-se deduzir que
ele não tivera sucesso em unir o grupo de voluntários caridosos e devotos,
formado por pessoas tão diversas. Apesar das afirmações de Dom Bosco em
documentos posteriores, nunca houve de jure ou de facto uma sociedade uni-
da sob as mesmas normas e que reconhecesse Dom Bosco como superior.
O período compreendido entre 1848 e 1852, anos da Revolução Liberal
e da Primeira Guerra de Independência e suas sequelas, foi crítico para Dom
Bosco. Seguindo a liderança de dom Fransoni e o exemplo do padre Cafasso e
outros padres, ele assumira uma posição totalmente conservadora com grande
envolvimento emocional na causa da Igreja, em oposição aos padres mais pa-
triotas, entre eles alguns dos que colaboravam no Oratório. A ruptura explo-
diu então, e envolveu seus colaboradores, padres e leigos, como também os
meninos mais velhos do Oratório.15 Falharam os esforços em reunir as partes.
Dom Bosco manteve sua autonomia, mas perdeu o apoio de alguns dos seus
colaboradores.16 Dom Fransoni favoreceu Dom Bosco, nomeando-o diretor
espiritual geral dos três Oratórios, com decreto de 31 de março de 1852.
Este fato deu a Dom Bosco e aos Oratórios um lugar no interior da estrutura
diocesana, mas à margem da estrutura paroquial tradicional.
Enquanto refletia sobre a maneira de tornar sua obra permanente, ele
considerou num determinado momento associar os Oratórios a algum ins-
tituto religioso já existente, como o Instituto Rosminiano da Caridade, se e
quando lhe permitissem continuar a obra que iniciara.17 Finalmente, anima-
do talvez pelo decreto de dom Fransoni, optou por uma terceira via: buscar
seus ajudantes no círculo interno dos alunos da Casa Anexa. Por isso, no
mesmo ano de 1852, Dom Bosco procurou “reunir um grupo de jovens que

14
“Regulamento do Oratório: resumo histórico”. In: P. Braido, Don Bosco per i giovani, 33.
Como já se discutiu anteriormente, Dom Bosco considerava as pessoas que colaboravam (clérigos e lei-
gos, homens e mulheres) como parte de uma espécie de congregação (a Congregação de São Francisco
de Sales) da qual ele era o superior.
15
Isso está confirmado pelo padre João Anfossi e por José Brósio, o “bersagliere”. Cf. carta de
Anfossi a Lemoyne e a Memória, de Brósio, ambas em ASC A102.
16
P. Stella, Vita, 109s. A maioria dos cooperadores, como já se disse anteriormente, perma-
neceu como estava, embora não devem ter-se constituído em congregação como afirma Dom Bosco.
17
Cf. G. Barberis, Cronaca, caderno III, 46-56, 1o de janeiro de 1876, FDB 835 D9-E7, anexo;
e MB III, 250-251.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

estivessem envolvidos em público ou em privado com muitas atividades ca-


ritativas e desfrutassem do apreço de todas as classes de pessoas”.18 Dois anos
mais tarde, em 26 de janeiro de 1854, conforme testemunho escrito do padre
Rua, Dom Bosco escolheu quatro meninos para fazerem uma prova: José
Rocchietti, Santiago Artiglia, Miguel Rua e João Cagliero.

[Ele convidou-os] para fazerem, com a ajuda do Senhor e de São Francisco de


Sales, uma experiência de exercício prático de caridade para com o próximo,
para chegar mais tarde a uma promessa e, depois, se fosse possível e conve-
niente, convertê-la em voto ao Senhor. Desde aquela noite, chamou-se de
salesianos os que se propuseram e se propõem este exercício.19

Nos inícios da década de 1850, Dom Bosco passou a optar gradualmen-


te pelos seus jovens, formados de acordo com suas exigências, para serem seus
colaboradores. Em 1854, julgara que os quatro eram os candidatos adequa-
dos. Propôs-lhes o ideal do “exercício prático da caridade para com o próxi-
mo”, mas evitou cuidadosamente qualquer referência a uma congregação re-
ligiosa. Dom Bosco procedeu com cautela porque a ideia de converter-se em
frades não atraía nem a ele nem a seus meninos. Parece, também, que nessas
circunstâncias históricas, ainda não se decidira em relação ao compromisso
religioso que lhes proporia.
Deve-se levar em conta que, nesse período de transição, Dom Bosco não
estava sozinho. Além do padre Cafasso, do teólogo Borel e do fiel padre Ala-
sonatti, “segundo no comando” da Casa, tinha colaboradores, padres e leigos,
mas parece que se deu conta de que faltava um novo enfoque. O serviço que
Dom Bosco queria oferecer aos jovens pobres e abandonados continuaria a
ser um ministério conjunto, mas estaria estruturado de outra forma. Haveria
um grupo interno totalmente dedicado a esse ministério segundo um modelo
que, através da experiência continuada, ele via sempre mais claramente.

A ideia de uma sociedade religiosa


Quando e como Dom Bosco teve pela primeira vez a ideia de fundar
uma congregação religiosa?
Não se esqueça de que em meados da década de 1850, Dom Bosco
conseguira que um pequeno grupo de seguidores optasse por uma forma de
vida facilmente reconhecível como forma de vida religiosa. O colaborador

18
Cf. P. Braido, Don Bosco per i giovani, 116s.
19
ASC A 4630102; MB V, 9-10.

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Dom Bosco: história e carisma 2

mais próximo de Dom Bosco nessa época era o padre Alasonatti, que não
fora um dos primeiros colaboradores do Oratório. O teólogo João Borel esta-
va se retirando, por causa dos compromissos com a instituição da marquesa
Barolo. Havia também alguns jovens como Rua, Cagliero e Francésia. Padre
Alasonatti e o clérigo Miguel Rua fizeram um voto ou promessa em 1855, e o
clérigo João Batista Francésia, em 1856. Estes, e talvez alguns outros, forma-
ram o grupo que começou a viver na Casa Anexa sob o regulamento vigente
na época e a direção de Dom Bosco. Tinham-se comprometido a fazer um
exercício prático de caridade para com o próximo; foi esse o primeiro “voto”
ou promessa que fizeram, e não os votos de pobreza, castidade e obediência.
A existência de um grupo ligado a Dom Bosco por meio de votos ou
promessas, significaria que, em meados da década de 1850, Dom Bosco já
teria tomado alguma decisão sobre uma congregação religiosa para garantir o
futuro de sua obra? Poderia ser assim, mas a documentação de que dispomos
permite-nos situar essa decisão só por volta de 1857, quando Dom Bosco se
reúne com Rattazzi e é iluminado com as sugestões do ministro.

Reunião de Dom Bosco com Rattazzi, ministro do Interior (1857)


Nossa única fonte sobre a reunião de Dom Bosco com o ministro Ur-
bano Rattazzi é a História do Oratório, do padre Bonetti. Desramaut resume
assim a conversa:

Ao se levar em conta todos os elementos, parece acertado que: 1o A conversa


aconteceu no Ministério do Interior, entre Dom Bosco e o próprio Rattazzi,
como afirma a História de Bonetti. 2o Dom Bosco deve ter ido ao Ministério
com a intenção de agradecer ao ministro seu apoio à organização de uma rifa
pelo decreto de 30 de abril de 1857. 3o A reunião e a conversa aconteceram
provavelmente nos inícios de maio de 1857. 4o Provavelmente foi o próprio
ministro quem colocou a questão sobre o modo de continuar a obra humani-
tária de Dom Bosco depois de sua morte. 5o Quando Dom Bosco expressou
seu temor de que uma associação religiosa pudesse ver-se envolvida em pro-
blemas com o governo, Rattazzi explicou-lhe que uma associação de cidadãos
livres exercendo seus direitos inalienáveis não incorreria em desaprovação da
parte do governo. O conselho de Rattazzi, como é contado na História, é
coerente com os princípios políticos [e jurídicos] professados pelo ministro.
Explica também a insistência de Dom Bosco em não dar um matiz religioso
à sua congregação.20

20
F. Desramaut, Don Bosco, 521-522, nota 35.

246

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Tendo isso em mente, analisamos os principais pontos da animada con-


versa sobre o futuro da obra dos Oratórios, e oferecemos alguns comentários.
Conta-nos Bonetti:

Rattazzi: [...] o senhor é tão mortal quanto qualquer outro. [...] Quais as me-
didas que pensa adotar para garantir a existência permanente do seu instituto?
Dom Bosco: A dizer a verdade, excelência, não tinha pensado em morrer tão
cedo. Procurei buscar ajuda para o momento presente, não, porém para con-
tinuar a obra dos Oratórios depois da minha morte. Agora, como menciona
o tema, poderia perguntar-lhe, como o senhor acredita ser possível criar tal
instituição com tudo em regra?
Rattazzi: Em minha opinião – respondeu Rattazzi –, deveria escolher alguns
leigos e religiosos, criar uma sociedade com algumas regras, imbuí-los do seu
espírito, ensinar-lhes seu sistema, para que não lhe deem apenas ajuda [ago-
ra], mas possam continuar a sua obra depois de sua partida.
Comentário de Bonetti I: Pareceu estranho a Dom Bosco que o mesmo homem
[que autorizara a lei de supressão das ordens religiosas] o aconselhasse a instituir
uma dessas congregações. Responde, por isso:
Dom Bosco: Sua excelência crê que, nestes tempos, seria possível fundar uma
sociedade como essa? Há dois anos o governo suprimiu algumas comunidades
religiosas e talvez agora mesmo esteja a preparar-se para desfazer-se das que
restaram. Acredita o senhor que [o governo] permitiria a fundação de outras
da mesma natureza? [...].
Rattazzi: Não deveria ser uma sociedade de tipo coletivo, mas uma [socieda-
de] em que cada um de seus membros conserve seus direitos civis, submeta-se
às leis do Estado, pague seus impostos etc. Numa palavra, a nova sociedade,
em relação ao governo, não deveria ser nada mais do que uma associação de
cidadãos livres, unidos [entre si] e que vivam juntos, com o mesmo propósito
caritativo em mente.
Dom Bosco: E sua excelência está certo de que o governo permitirá a fundação
de tal sociedade e sua subsequente existência?
Rattazzi: Nenhum governo constitucional ou regular se oporá à fundação
e desenvolvimento de uma sociedade assim, como também não impede, de
fato, promove companhias industriais, comerciais e outras semelhantes. Toda
associação de cidadãos livres é autorizada sempre e quando seus propósitos e
suas atividades não se oponham às leis e às instituições do Estado.
Dom Bosco: Bem – disse Dom Bosco, concluindo –, refletirei sobre o assunto [...].

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário de Bonetti II: As palavras de Rattazzi [...] foram para Dom Bosco
como um raio de luz e fizeram parecer factíveis coisas que acreditara impossíveis.21

Antes de continuar a apresentação da conversa, é preciso fazer algum


comentário.
Dom Bosco, sem querer que Rattazzi percebesse, já pensara o que fazer
para que a obra dos Oratórios fosse permanente. Mais ainda, já reunira um
grupo e o ligara a si e à sua obra com uma promessa ou voto. Disse certa-
mente o contrário com a finalidade de não mostrar suas cartas, ou, talvez,
quisesse dizer que não sabia como levar a cabo a fundação de um tipo de
sociedade religiosa.
Bonetti parece sugerir que Dom Bosco acreditou inicialmente que
Rattazzi lhe estava sugerindo fundar uma congregação religiosa. Mas suas
palavras seguintes deixam claro que Rattazzi não queria dizer tal coisa. É
provável que o próprio ministro tenha levantado a questão sobre o modo
de continuar o trabalho humanitário de Dom Bosco depois da sua morte.
Quando Dom Bosco expressou o seu temor de que uma associação humani-
tária, mas também claramente religiosa, pudesse ser suprimida pelo governo,
Rattazzi explicou a parte da lei aplicável ao caso. Uma associação de cidadãos
livres exercendo seus inalienáveis direitos individuais não incorreria em desa-
provações do governo.
Portanto, segundo as palavras de Bonetti, Rattazzi não sugeriu a fun-
dação de uma congregação religiosa de nenhum tipo, antigo ou atual. Não
sugeriria certamente uma congregação do estilo que estava suprimindo, nem
tampouco um novo tipo de congregação, que nem sequer os canonistas ro-
manos podiam conceber no momento. Ele tão somente explicou a Dom Bos-
co um aspecto da lei que era uma das bases da jurisprudência liberal, isto
é, que os cidadãos eram livres para se associarem e usarem seu tempo, seu
dinheiro e suas habilidades para qualquer causa legítima que quisessem, e ne-
nhum governo liberal poderia interferir.22 A explicação de Rattazzi foi, então,
um “raio de luz” para Dom Bosco, porque lhe mostrou como poderia reunir
um grupo, mesmo estando unido por uma promessa e com uma finalidade
religiosa. Dom Bosco, então, começou a trabalhar tendo isso em mente.

G. Bonetti, Storia, 344-345.


21

São estes os princípios fundamentais da jurisprudência liberal. O direito individual é inviolável


22

porque emana da natureza. Portanto, as liberdades individuais exercidas dentro das legítimas leis do
Estado não podem ser tolhidas. Por outro lado, o direito coletivo é do Estado, e só dele. Por isso, só
o Estado tem faculdade para autorizar qualquer corporação, inclusive as religiosas (como as congrega-
ções). A Igreja é uma entidade espiritual que não pode gerar uma ordem jurídica própria.

248

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Essa é a base do artigo sobre Direito Civil que Dom Bosco introduziu
nas Constituições, no capítulo sobre a Forma da Sociedade. Antes de aprovar
as Constituições, porém, as autoridades romanas eliminaram o artigo por
várias razões. Dom Bosco, contudo, sempre defendeu que a Sociedade Sale-
siana era uma associação de cidadãos livres e não uma corporação religiosa
que precisasse da aprovação do governo.
Bonetti continua sua narração:

[Dom Bosco] começou a formular e escrever algumas normas de acordo


com os objetivos da nova sociedade; conversou com alguns sacerdotes e
leigos de Turim que, ao ouvir seus propósitos, ofereceram alegremente seus
serviços. Mencionou, então, o assunto aos seus clérigos e a alguns dos me-
lhores meninos do Oratório e, em breve tempo, estava rodeado de uma
dúzia de pessoas nas quais parecia poder confiar. Alguns desses membros
permaneceram em suas casas, limitando-se a ajudar no Oratório [...]. Ou-
tros, porém, viviam no Oratório em comunidade com Dom Bosco, e esta-
vam sempre às suas ordens.23

Olhando mais longe, porém, Dom Bosco começou a perguntar-se se


essa sociedade de cidadãos livres unidos a ele por um voto ou promessa e que
trabalhassem juntos por uma finalidade religiosa, não poderia ser também
uma congregação religiosa aos olhos da Igreja. Para o novo elemento, precisa-
ria ver o Papa. Bonetti conta essa nova especulação de Dom Bosco:

Assentadas assim as bases, Dom Bosco logo percebeu que [...] era necessá-
rio fazer muito mais. A sociedade sugerida por Rattazzi era simplesmente
humana [...]. Começou, então, a refletir e a perguntar-se: “Não poderia essa
sociedade ter ao mesmo tempo um caráter civil para o governo e a natureza de
instituto religioso diante de Deus e da Igreja, sendo seus membros cidadãos
livres e religiosos ao mesmo tempo?”.24

Mais tarde, Dom Bosco daria a Rattazzi o mérito de tornar possível a


Sociedade Salesiana. Entretanto, ele nunca afirmou que Rattazzi sugeriu uma
congregação religiosa. A inspiração que dele recebeu tinha a ver com a viabi-
lidade de uma associação religiosa com a mesma base legal de uma associação
23
G. Bonetti, Storia, 346. As palavras de Bonetti indicariam que, antes de sua visita de 1858 a
Roma, Dom Bosco já mencionara seu projeto de um tipo de sociedade a algumas pessoas, que, embora
aceitassem a ideia, tinham-se comprometido de duas formas diversas. Note-se, porém, que nada se
menciona sobre votos ou promessas.
24
G. Bonetti, Storia, 346.

249

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Dom Bosco: história e carisma 2

secular de cidadãos livres unidos para uma finalidade legítima. Contudo, como
já se disse, Dom Bosco esperava que essa associação religiosa tivesse o direito de
ser uma congregação religiosa aos olhos da Igreja. Um ano depois, a conversa
de Dom Bosco com Pio IX sobre esse plano desencadeou um processo que,
contudo, acabaria enfim com a conformação da Sociedade Salesiana ao modelo
tradicional quase completo de uma congregação religiosa.
A passagem, muitas vezes citada, em que Dom Bosco concede o mérito
a Rattazzi aparece na Crônica autobiográfica de Barberis. Certa noite, Dom
Bosco falou sobre a orientação providencial que permitiu criar a Sociedade
Salesiana e sobreviver em meio “aos tempos difíceis”. Sobre isso, Dom Bosco
fala de figuras políticas como Camilo Cavour, Urbano Rattazzi, Paulo Viglia-
ni etc. Barberis recolhe o comentário de Dom Bosco.

Alguns ministros do Estado, entre os piores na cena política, ajudaram-me e


animaram-me: Cavour, Rattazzi, Vigliani [...]. Rattazzi, por exemplo, este-
ve várias vezes no Oratório e tinha grande respeito pelo pobre Dom Bosco.
Também falava de mim como um grande homem. Poder-se-ia dizer que foi
consequência de uma sugestão dele eu ter podido introduzir em nossas regras
algumas normas que definem a posição da nossa sociedade diante das auto-
ridades civis e do Estado. Por isso, é certo que lhe devemos o fato de nunca
termos problemas com as autoridades civis.25

O tipo de sociedade religiosa imaginado por Dom Bosco


Para ser congregação religiosa, aos olhos da Igreja, qualquer associação
deve ter votos. Pensaria Dom Bosco nos votos públicos tradicionais com o
clássico estatuto jurídico da Igreja, ou apenas em votos privados de obediên-
cia, pobreza e castidade, ou simplesmente no exercício prático da caridade
para com os pobres? No primeiro caso, em que seriam diferentes das con-
gregações tradicionais que estavam sendo suprimidas? No segundo, estaria
pensando em alguma coisa como uma sociedade religiosa com simples pro-
messas, esperando que obtivesse estatuto jurídico para a Igreja!
Das palavras de Bonetti, não se pode deduzir o que Dom Bosco pensa-
va sobre isso. Porém, vemos que quando Dom Bosco apresenta seu plano a
Pio IX, este insiste imediatamente na necessidade dos votos tradicionais pelo
bem da unidade e da disciplina. De aí, parece deduzir-se que a proposta de
Dom Bosco era a de fazer só votos privados ou, simplesmente, de fazer uma
promessa de exercer a caridade da obra do Oratório.
25
G. Barberis, Cronaca, 1o de janeiro de 1876, caderno III, 57, FDB 835 E8.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Ainda assim, na Introdução histórica do primeiro rascunho das Consti-


tuições (versão do padre Rua, de 1858), Dom Bosco afirma que foram 15 os
que “professaram”, ou seja, que “prometeram observar” estas Constituições,
“5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos”.26 Pois bem, as Constituições de 1858
prescrevem os votos simples tradicionais e públicos. É verdade que a afirma-
ção anterior foi escrita depois da audiência de Dom Bosco com Pio IX, em
março de 1858, podendo indicar que, devido à orientação papal, Dom Bosco
tenha mudado sua atitude e organizado o grupo em novas bases. Entretanto,
uma comunidade desse tipo não podia se reunir sem um considerável perío-
do de tempo, nunca rapidamente depois do seu regresso de Roma. Portanto,
a afirmação de Dom Bosco deve dizer que um grupo prometeu observar por
um período de tempo quaisquer que fossem as regras naquele momento.
Mais ainda, os membros do grupo estariam ao menos abertos à ideia de fazer
os votos tradicionais, ou seja, formar uma sociedade religiosa como a que se
descreve nas Constituições de 1858.

Papa Pio IX (1792-1878).

26
G. Bosco, Costituzioni, 70.

251

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Dom Bosco: história e carisma 2

De fato, padre Alasonatti numa carta escrita ao clérigo Ângelo Sávio em


6 de fevereiro de 1858, antes da viagem de Dom Bosco a Roma, embora não
faça qualquer referência aos votos, confirma a existência do “grupo” unido
como “irmãos em espírito sob um patrono, São Francisco de Sales”. Adverte-
-o para não falar disso em público, “até que vejamos se é vontade de Deus que
o grupo prospere ou se dissolva; isso poderá ser dito em breve, quando Dom
Bosco for a Roma nos inícios da Quaresma”.27

Dom Bosco e Pio IX (1858), segundo Bonetti e Lemoyne

• As audiências de Dom Bosco com Pio IX


Dom Bosco partiu para Roma em 18 de fevereiro de 1858, Quarta-feira
de Cinzas. Em março-abril discutiu o assunto da Sociedade numa audiência
com Pio IX. Depois de ler a carta de recomendação de dom Fransoni, Bonetti
conta que o Papa disse:

É preciso que o senhor crie uma sociedade na qual o governo não possa interfe-
rir. Ao mesmo tempo, porém, não deve contentar-se em reunir seus membros
apenas mediante uma simples promessa, pois dessa forma nunca ficará seguro
desses indivíduos, nem poderá contar com eles por um período de tempo.28

Bonetti acrescenta que, depois dessa audiência consoladora, Dom Bosco


pensou em retornar logo para Turim, mas o Papa pediu-lhe que pregasse um
retiro e que, mais tarde, “teve o prazer de conceder-lhe uma audiência privada
em outras duas ocasiões”.29
• Plano da Sociedade concebido por Pio IX
Mais tarde, Dom Bosco afirmou que Pio IX colocara as bases da
Sociedade,30 que o próprio Papa traçara o “seu plano”.31 Quais as bases ou o
plano estabelecidos pelo Papa? Dom Bosco mesmo reconhece: 1o A socieda-
de “deveria ter votos que servissem de elo de união e garantia de unidade de
espírito das obras”. Esses votos, porém, “devem ser simples e fáceis de serem
anulados”, a não ser que haja o caso de má-fé de algum membro que pertur-
be a paz e a unidade dos outros. 2o A Sociedade seria, pois, “uma verdadeira

27
Carta de 6 de fevereiro de 1858, Archivo Storico Salesiano, B505: Alasonatti.
28
G. Bonetti, Storia, 356.
29
G. Bonetti, Storia, 357.
30
Cf. pedido a Pio IX, 12 de fevereiro de 1864, em: G. Bosco, Costituzioni, 228.
31
Breve notizia, 1864, cf. MB VII, 892.

252

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

congregação religiosa no que concerne à Igreja”, mas ao mesmo tempo, de-


veria “garantir a liberdade de seus membros para qualquer coisa que pudesse
causar-lhes problemas em relação às leis civis”.32 As bases colocadas pelo Papa
têm a ver, portanto, com as normas básicas das Constituições da Sociedade,
concretamente, com sua forma jurídica.

Interpretações de Bonetti e Lemoyne


Bonetti parece entender que o Papa, para garantir que as bases apresentadas
fossem claramente expressas, trabalhou sobre um manuscrito das Constituições
apresentado, supõe-se, por Dom Bosco, e conta-nos:

Dom Bosco, durante o tempo que permaneceu em Roma, revisou as regras da


Pia Sociedade de São Francisco de Sales, que escrevera ainda no ano anterior;
omitiu algumas e fez alterações cá e acolá para adequá-las ao desejado por Pio
IX. Sua Santidade leu-as cuidadosamente, acrescentou algumas observações
de próprio punho e letra e enviou-as a Sua Eminência o cardeal Gaude. [...]
Antes de deixar Roma, Dom Bosco manteve várias entrevistas com ele [Gau-
de] sobre o tema, e estiveram de acordo que as Regras deveriam ser postas em
prática durante algum tempo em sua forma emendada e, depois, enviadas a
Sua Eminência [Gaude], que as enviaria posteriormente à Santa Sé em vista
da aprovação. Infelizmente, pouco depois, o cardeal foi chamado para receber
a recompensa eterna.33

Lemoyne praticamente coincide com Bonetti quanto à primeira audiên-


cia em 9 de março, mas amplia o cenário para as duas seguintes, apenas men-
cionadas por Bonetti. Fala de Dom Bosco a entregar o manuscrito ao Papa na
segunda audiência em 21 de março, audiência em que Pio IX urge com Dom
Bosco para colocar por escrito suas experiências extraordinárias. Na terceira
audiência, em 6 de abril, o Papa devolve-lhe o manuscrito.34

Correção de Bonetti-Lemoyne quanto às Constituições


previamente escritas e as três audiências papais
Sabemos, hoje, o que aconteceu em Roma. Dom Bosco não levou con-
sigo um rascunho das Constituições, previamente escrito. Inicialmente, ele

Breve notizia, 1864, cf. MB VII, 892.


32

G. Bonetti, Storia, 358.


33

34
Audiências descritas por Lemoyne: 9 de março (MB V, 855ss.); domingo 21 de março (MB
V, 880ss), 6 de abril (MB V, 906ss.).

253

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Dom Bosco: história e carisma 2

pretendia apenas apresentar oralmente o seu plano de criar uma sociedade


religiosa. Em Roma, porém, ele pediu ao seu amigo cardeal Gaude que o
orientasse no assunto, e o cardeal aconselhou-o a não se dirigir ao Santo
Padre sem um plano por escrito. Dom Bosco, então, baseando-se no que já
fizera em Turim, esboçou um “breve projeto para uma congregação religiosa”.
Antes da audiência com Pio IX, Dom Bosco escreveu ao [superior] geral
dos rosminianos, padre João Batista Pagani, pedindo-lhe que revisasse “um
breve projeto de congregação religiosa”, que acabara de esboçar.35

[Roma], Rua do Quirinal, 49


4 de março de 1858
Reverendíssimo e mui estimado padre geral:
Preciso de um grande favor do senhor. Por favor, leia o breve projeto anexo
para uma congregação religiosa e faça toda observação que achar necessária.
Minha intenção era fazer simplesmente uma exposição oral da minha ideia
[ao Santo Padre], mas o cardeal Gaude me aconselhou a pôr alguma coisa
por escrito. Por isso, nestes dois dias, trabalhando de memória o melhor que
pude, escrevi [este breve projeto] guiado pelo que se faz atualmente na Casa
do Oratório.
Agradeço-lhe pela grande e inestimável ajuda que nos presta nestes momen-
tos, e peço a Deus que derrame abundantes bênçãos sobre o senhor e a con-
gregação que lhe está confiada.
Com gratidão e grande estima,
vosso humilde servidor,
sacerdote João Bosco.

Dom Bosco possivelmente apresentou ao Papa o projeto escrito – não


uma cópia das Constituições! – na audiência de 9 de março. É pouco prová-
vel, porém, que o Papa o lesse, fizesse comentários pessoalmente e o devol-
vesse a Dom Bosco, como diz Lemoyne. Até hoje, não nos chegou às mãos
um documento nesse sentido; Dom Bosco jamais o mostrou a alguém, nem
fez qualquer referência a ele.
A questão das audiências também apresenta seus problemas. Segundo
Lemoyne aconteceram nos dias 9 e 21 de março e em 6 de abril, domin-
go. Sabemos que a fonte principal de Bonetti sobre as atividades de Dom
35
Arquivos rosminianos, Al. Caixa 11: S. Giov. Bosco 87-88; Epistolario I Motto, 339. Dom
Bosco estava hospedado na residência do conde De Maistre (Rua do Quirinal). Depois de dois dias, o
clérigo Rua foi à residência rosminiana.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Bosco em Roma é o diário do padre Rua.36 Ele também teve acesso às


cartas de Dom Bosco, escritas desde Roma que, porém, não esclarecem o
assunto. Também pôde basear-se em informações orais do próprio padre
Rua, cujo conteúdo não é obviamente desconhecido. Infelizmente, o diário
está incompleto. Cobre detalhadamente o período compreendido entre 18
de fevereiro, dia da partida de Turim, e 20 de março. Entretanto, a semana
correspondente a 21-28 de março, apresenta apenas um resumo escrito por
mão incerta. Os outros dias, até 16 de abril, dia do retorno a Turim, não
estão anotados.
Se dermos crédito às últimas anotações, as visitas de 21 de março são
listadas brevemente, mas não se menciona qualquer audiência.

Dia 32. 21 de março, domingo: [visitas:] Santa Maria do Carmo, festa das
sete dores; fórum romano e coluna Trajana; tumba de Públio Bíbulo; Via
Argentaria; campo do gado, arco de Setímio Severo; fórum; Santos Cosme
e Damião.
Dia 33. 22 de março, segunda-feira: Visita ao cardeal [Gaude] […].

É estranho que tenham sido anotadas algumas visitas triviais e uma visita
ao cardeal, enquanto uma audiência importante com o Papa, se é que aconte-
ceu, fosse ignorada. Não parece muito provável que a audiência tenha acon-
tecido; é provável que se trate de uma dedução de Lemoyne, interpretando
Bonetti, em busca de espaço, primeiro, para uma discussão inicial do projeto
da Congregação, em 9 de março; segundo, para rever os textos das Consti-
tuições que, supostamente, Dom Bosco teria levado consigo, de acordo com
as “duas bases” de Pio IX, e apresentá-los ao Papa numa segunda audiência,
que se deduz, em 21 de março; e, terceiro, para recolher as Constituições com
anotações do Papa, numa terceira audiência, em 6 de abril.
Este “castelo de cartas” vem abaixo ao saber que Dom Bosco não levara
consigo para Roma uma cópia das Constituições, nem mesmo um esboço,
como deixa claro ao [superior] geral dos rosminianos. O primeiro rascunho
das Constituições foi redigido depois de sua volta a Turim, em fins de 1858
ou inícios de 1859.

36
Viaggio a Roma, 1858, FDB 1,352 E3 - 1,354 A5. Trata-se de um caderno de 75 páginas
escritas, em sua maior parte, pelo padre Rua, mas aparecem acréscimos de outras pessoas, inclusive de
Dom Bosco (por exemplo, 51-52, 8 de março). O diário é escrito em primeira pessoa (Dom Bosco),
mas não há dúvidas de que o autor foi o padre Rua.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeiro rascunho das Constituições Salesianas e Forma da Sociedade


Tendo retornado a Turim, em 16 de abril, o clérigo Rua, que acompa-
nhara Dom Bosco em sua viagem a Roma, compilou o primeiro rascunho
conhecido das Constituições a partir de textos escritos por Dom Bosco. Este
rascunho serviu como ponto de partida para o subsequente desenvolver-se
do texto das Constituições.37 A forma da Sociedade, neste primeiro rascunho
conhecido, é a de uma congregação tradicional com vida comunitária e votos
simples e públicos. Talvez a primeira ideia de Dom Bosco sobre a Sociedade
fosse a de uma associação de indivíduos que se servissem do direito de reunir-
-se para uma finalidade legítima, unidos por votos privados ou promessas.
Contudo, a orientação de Pio IX para que houvesse votos canônicos, simples
e públicos, fez Dom Bosco descartar essa ideia.
As “duas bases” traçadas pelo Papa são claramente expressas nos artigos
1 e 2 das Constituições de 1858, no capítulo sobre a forma:
o

1. Os associados vivem em comunidade, unidos apenas pela [pelo vínculo da]


caridade fraterna e pelos votos simples, que os unem para formarem um só
coração e uma só alma para amar e servir a Deus.
2. Nenhuma pessoa, ao entrar na Congregação, perderá seus direitos civis,
mesmo depois de fazer os votos e, portanto, mantém suas propriedades
pessoais [...].38

As assim chamadas “duas bases”, votos tradicionais perante a Igreja e


direitos civis perante o Estado, eram inconciliáveis, porque o Estado, embora
admitisse o direito privado dos indivíduos, apropriava-se de todos os direitos
coletivos. Reclamava o direito de criar corporações e decidir se alguma cor-
poração religiosa já existente devia ser aprovada. Não reconhecia os direitos
da Igreja de fundar corporações distintas das do Estado, segundo seu próprio
sistema legal paralelo. Ao prescrever os votos tradicionais simples, Pio IX
estava fazendo precisamente isso. Dom Bosco, porém, sempre sustentou que
a Sociedade Salesiana não era uma corporação de nenhuma espécie, seja civil
ou eclesiástica.
A cláusula sobre os direitos civis colocada pelo Papa como uma das “duas
bases”, como Dom Bosco entendera, enfrentou forte objeção da Congrega-
ção Romana. Recorde-se que, desde a unificação da Itália (1861), a política

37
G. Bosco, Costituzioni, 44-45.
38
G. Bosco, Costituzioni, 82.

256

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

da Santa Sé fora evitar qualquer mudança e recusar qualquer fórmula que


pudesse ser interpretada como capitulação às reivindicações do Estado ou
compromisso com o sistema jurídico secular. Aprovar uma sociedade religio-
sa cujos membros mantinham todos os direitos e aceitavam todas as obriga-
ções de cidadãos livres foi visto em Roma como concessão ao Estado daquilo
que era prerrogativa da Igreja. Era esta a posição inflexível do Vaticano na
década de 1870.
Para obter a aprovação das Constituições, Dom Bosco precisou aceitar
enfim um compromisso, mediante o qual a “segunda base” (os direitos civis)
como forma da Sociedade, fosse diluída no conceito tradicional de “proprie-
dade radical” no voto de pobreza; e os votos (“primeira base”) converteram-se
em votos canônicos comuns, totalmente sob a jurisdição da Santa Sé. Esta
fórmula é totalmente tridentina. Como consequência, a cláusula sobre direi-
tos civis e as referências à mesma foram eliminadas do capítulo sobre a forma
antes da aprovação definitiva de 1874, e a que fazia referência à propriedade
privada foi transferida ao capítulo da pobreza.
Na prática, e através da artimanha de pôr todos os bens como proprie-
dade privada depois da aprovação da Lei Rattazzi contra as corporações reli-
giosas em 1855, Dom Bosco podia alegar que a sua Sociedade não era uma
corporação de nenhum tipo, mas uma associação de cidadãos livres.
Deve-se dizer que disposições semelhantes sobre o Direito Civil, embora
não tão explícitas, já podiam ser encontradas nas Constituições das Escolas
da Caridade (Cavanis) e do Instituto da Caridade (Rosmini). Eles já tinham
recebido a aprovação da Igreja, mas numa época em que não havia enfrenta-
mento com o Estado. Mais ainda, naqueles anos, inícios de 1860, algumas
sociedades religiosas buscavam aprovação como congregações segundo a for-
ma tradicional, e a Santa Sé não iria fazer uma exceção drástica no caso de
Dom Bosco.
Portanto, a Sociedade Salesiana, com a nova concepção imaginada por
Dom Bosco nos anos 1854-1858, foi forçada aos poucos a se encaixar no
molde eclesiástico tradicional. A aceitação de Dom Bosco é testemunho não
só do seu realismo, como também, sobretudo, do seu inflexível espírito de fé
e obediência à Igreja.

Evolução imediata depois das audiências com Pio IX em 1858


A importância de 1858 para a origem da Sociedade Salesiana e sua ime-
diata evolução pode ser calculada pelo passo decisivo que foi dado: a “divisão”
do grupo, salesianos em comunidade e salesianos externos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Referindo-se a isso, Dom Bosco descreveu em 1877 o primeiro passo


dado para criar a sociedade:

A Congregação dividiu-se em duas categorias ou, melhor, em duas fa-


mílias. Os que eram livres e sentiam o chamado uniram-se para viverem
em comunidade […]. Os outros, os externos, continuaram a viver no
mundo no seio de suas famílias, mas não deixaram de promover a obra
dos Oratórios.

O texto, que se refere mais propriamente ao ano 1859, levanta uma série
de questões críticas já tratadas no capítulo anterior, com referência especial
aos modos de ver de Desramaut e de Stella. Baste dizer que o grupo reunido
ao redor de Dom Bosco, antes de sua viagem a Roma, e as resultantes Consti-
tuições existiram como “pia associação religiosa” com uma simples promessa
de dedicar-se ao “exercício prático da caridade” com a opção de viver ou não
em comunidade.

O momento fundacional: 18 de dezembro de 1859


Dom Bosco não demorou em levar a uma primeira organização o
grupo dinâmico que reunira ao seu redor. No encontro histórico de 9 de
dezembro de 1859, ele finalmente anunciou ao grupo de vinte jovens a
intenção de fundar uma congregação religiosa. Seria apenas para aqueles
que “depois de uma madura reflexão tivessem a intenção de fazer, no seu
devido tempo, os votos de pobreza, castidade e obediência”, dando-lhes
uma semana para se decidirem.
A ideia de uma congregação religiosa encheu aqueles jovens de apreen-
são. Contudo, para a maioria deles o conflito de Cagliero e a sua decisão final
foi o simples: “Frade ou não, tanto faz. Estou decidido, como sempre estive,
a jamais me separar de Dom Bosco!”. Dos 20 primeiros, 18 retornaram para a
reunião de 18 de dezembro de 1859. Como “iniciador e promotor”, pediram
para Dom Bosco aceitar o posto de Reitor-Mor, o que ele fez com a condição
de poder designar o seu prefeito, tendo confirmado o padre Alasonatti no
cargo; depois, foram escolhidos outros cargos. O fim expresso da Sociedade
era “promover e conservar o espírito de verdadeira caridade que se requer
na Obra dos Oratórios para a juventude abandonada e em perigo, [...] [e] a
ajuda recíproca para a própria santificação”.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

• Ata da reunião fundacional. Tradução do original39

“No Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.


No ano do Senhor de mil oitocentos e cinquenta e nove, em dezoito de de-
zembro, neste Oratório de São Francisco de Sales, no aposento do sacerdote
João Bosco, às 9 horas da noite, se reuniam, ele, o sacerdote Vitório Alaso-
natti, os clérigos Ângelo Sávio – diácono –, Miguel Rua – subdiácono –,
João Cagliero, João Batista Francésia, Francisco Provera, Carlos Ghivarello,
José Lazzero, João Bonetti, João Anfossi, Luís Marcellino, Francisco Cerruti,
Celestino Durando, Segundo Pettiva, Antônio Rovetto, César José Bongio-
vanni, o jovem Luís Chiapale, todos com o escopo e em um só espírito de
promover e conservar o espírito de verdadeira caridade que se requer na obra
dos Oratórios para a juventude abandonada e periclitante, a qual nestes tem-
pos calamitosos é de mil maneiras seduzida, com prejuízo da sociedade, e
precipitada na impiedade e na irreligião.
Aprouve, portanto, aos mesmos Congregados erigir-se em Sociedade ou Con-
gregação que, tendo em mira a ajuda recíproca para a própria santificação, se
propusesse promover a glória de Deus e a salvação das almas especialmente
das mais necessitadas de instrução e de educação e aprovado de comum acor-
do o projeto proposto, feita breve oração e invocadas as luzes do Espírito
Santo, procediam à eleição dos Membros que deviam constituir a direção da
sociedade para esta e para novas Congregações, se aprouver a Deus favorecer
seu desenvolvimento.
Pediram, portanto, unanimemente que Ele, iniciador e promotor, aceitasse o
cargo de Superior Maior como aquele que em tudo Lhe era conveniente; o
qual tendo aceito com a reserva da faculdade de nomear o Prefeito, como nin-
guém se opôs, pronunciou que lhe parecia não se devesse remover do cargo de
Prefeito quem escreve, o qual exercia tal encargo até agora na casa.
Pensou-se então no modo de eleição dos outros Sócios que concorrem à Di-
reção, e se concordou em adotar a votação com sufrágio secreto como o mais
breve caminho para constituir o Conselho, o qual devia ser composto por um
Diretor Espiritual, pelo Ecônomo e por três Conselheiros, em companhia dos
dois já eleitos, descritos acima.

39
Cf. Jesús Graciliano González, “Don Bosco, fundador de la Sociedad de San Francisco de Sales”,
CFP 15 (2009), 164-165. Cf. a edição crítica da ata de fundação: J. Graciliano González, Acta de funda-
ción, 309-346. Esta tradução da Ata da reunião fundacional, em português, é de Antônio da Silva Ferreira.

259

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Dom Bosco: história e carisma 2

Tendo agora sido feito Secretário para este fim quem escreve, ele protesta que
cumpriu fielmente o encargo que lhe fora confiado pela confiança comum,
atribuindo o sufrágio a cada um dos Sócios à medida que era anunciado na
votação; e assim resultou na eleição do Diretor Espiritual por unanimidade a
escolha do clérigo subdiácono Miguel Rua que não se recusava a aceitar. O que
se repetiu para o Ecônomo: foi eleito e reconhecido o diácono Ângelo Sávio o
qual prometeu também assumir o relativo encargo.
Faltava ainda eleger os três conselheiros; como primeiro dos quais, tendo-se fei-
to como de costume a votação foi eleito o clérigo João Cagliero. Como segundo
conselheiro saiu o clérigo João Bonetti. Para o terceiro e último, tendo saído
iguais os sufrágios a favor dos clérigos Carlos Ghivarello e Francisco Provera,
feita outra votação a maioria resultou para o clérigo Ghivarello, e assim foi
definitivamente constituído o corpo de administração para a nossa Sociedade.
O qual fato, como veio complexivamente exposto até aqui, foi lido em plena
reunião de todos os acima mencionados Sócios e superiores por agora nomea-
dos, os quais, uma vez reconhecida a sua veracidade, concordes fixaram que se
conservasse esse original, para cuja autenticidade assinaram o Superior Maior
e como Secretário, Padre João Bosco, Padre Vitório Alasonatti, Prefeito.”

• Rumo à profissão dos votos canônicos


O Conselho Geral, então chamado Capítulo Superior, fez sua primeira
reunião em 2 de fevereiro de 1860, admitindo à “prática das regras”, ou seja,
ao noviciado, o primeiro salesiano leigo, José Rossi. Em seguida, reunia-se
regularmente para aprovar a admissão dos candidatos à “prática das regras”.
Paulo Albera, que ainda não completara 15 anos, foi admitido em 1o de maio
de 1860 e o clérigo Domingos Ruffino, em 3 de maio de 1861.
A ordenação sacerdotal do ecônomo Ângelo Sávio deu-se em 2 de junho
de 1860 e a do diretor espiritual Miguel Rua em 29 de julho de 1860, os dois
primeiros salesianos do grupo a serem ordenados.
O primeiro salesiano externo, padre João Ciattino, a quem se faz referên-
cia como terciário, foi recebido em 21 de maio de 1861.40 Até esse momento
estes “clérigos e padres de Dom Bosco”, como eram conhecidos popularmen-
te, estavam unidos a Dom Bosco e uns aos outros apenas por um compro-
misso pessoal para o exercício prático da caridade (a obra do Oratório) e não
mediante qualquer ideal ou estrutura de vida religiosa.

Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 339; MB VI, 333. Depois da palavra “terciá-
40

rio”, Lemoyne interpreta “que chamamos atualmente de cooperador”.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

A primeira profissão oficial de votos canônicos de acordo com as Cons-


tituições que estavam em processo de aperfeiçoamento desde 1858 aconteceu
em 14 de maio de 1862. Diz a ata:
Os irmãos da Sociedade de São Francisco de Sales foram convocados pelo
Reitor e, em sua maioria, foram confirmados na nascente Sociedade, emitin-
do formalmente os votos. Isso aconteceu do seguinte modo: o senhor Dom
Bosco, vestido com roquete, convidou cada um a ajoelhar-se e começou a
récita do Veni Creator, que continuou alternadamente até o fim. Dito o Ore-
mus do Espírito Santo, foram recitadas as ladainhas da Virgem Maria e o
Oremus. Depois, rezou-se um Pater, Ave e Gloria a São Francisco de Sales
acrescentando-se a invocação própria e o Oremus. Concluídas estas orações
os irmãos: padre Vitório Alasonatti, padre Miguel Rua, padre Ângelo Sávio,
padre José Rochietti (sic), padre João Cagliero, padre João Batista Francésia
e padre Domingos Ruffino e os clérigos Celestino Durando, João B. Anfos-
si, João Boggero, João Bonetti, Carlos Ghivarello, Francisco Cerruti e Luís
Chiapale pronunciaram, todos juntos, a fórmula dos votos, tendo cada um
assinado no livro próprio para o caso.41 José Bongiovanni, José Lazzero, Fran-
cisco Provera, João Garino, Luís Jarac e Paulo Albera; os leigos, cavalheiro
Frederico Oreglia di Santo Stefano e José Gaia pronunciaram em alta voz e
claramente, todos juntos, a fórmula dos votos. Em seguida, cada um assinou
no registro correspondente.42

Em sua crônica, Bonetti também recolhe o acontecimento: “Vinte e


dois dentre nós, sem contar Dom Bosco, [...] fizemos os votos como são
prescritos pelas regras. Como éramos muitos, juntos repetimos a fórmula,
enquanto padre Rua a lia frase por frase”. Também anota as palavras de Dom
Bosco nessa ocasião. Entre outras coisas cita-o assim:
Alguém, porém, dirá: “Dom Bosco também emitiu esses votos?”. Ouvi
[pois]: enquanto vós fazíeis estes votos diante de mim, eu os fazia diante
deste crucifixo por toda a minha vida; oferecia-me em holocausto ao Senhor,
disposto a tudo para buscar a sua maior glória e o bem das almas, especial-
mente as da juventude.43

41
Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 340-341. Padre Lemoyne acrescenta nas
Memórias Biográficas os nomes de José Bongiovanni, José Lazzero, Francisco Provera, João Garino,
Luís Jarac e Paulo Albera; os leigos, cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano e José Gaia, que não
aparecem nas Atas, mas constam no registro dos professos desse dia, MB VII, 160-161.
42
Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 341; MB VII, 160s.
43
ASC A012: Bonetti, Cronachette; Bonetti, Annali III. FDB 992 E10; MB VII, 163.

261

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Dom Bosco: história e carisma 2

Manuscrito original da ata da reunião de fundação da Sociedade Salesiana.

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Capítulo IX

PANORAMA HISTÓRICO DO PERÍODO


1861-1874

1. A unificação da Itália1
O armistício assinado em 10 de novembro de 1859 entre França e Áus-
tria, do qual o Piemonte não participou, pôs fim à Segunda Guerra de In-
dependência Italiana e terminou na Paz de Zurique. O tratado previa em
termos gerais uma federação de Estados regionais italianos com a restauração
de seus legítimos governantes.
Em decorrência, a Lombardia foi anexada ao Piemonte e, em março de
1860, após referendo, a Toscana, Parma, Módena e as Legações da Romanha
também foram oficialmente anexadas ao Piemonte. Em reconhecimento ao
apoio da França, por um acordo em separado, Nice e a Saboia, que até o
momento, junho de 1860, faziam parte do Reino da Sardenha, eram cedidas
à França.
Depois de um levante contra o governo dos Bourbon em Palermo (Si-
cília), Garibaldi, instado pelos líderes do Partido da Ação, liderou uma ex-
pedição à Sicília em apoio aos revolucionários, apesar da oposição de Vítor
Emanuel II e de Cavour. Em várias batalhas, em sua marcha para Nápoles,
entre maio e outubro de 1860, ele derrotou as forças bourbônicas e derrubou
a monarquia. Nesse momento, o exército de voluntários de Garibaldi chega-
va a ser de quase 50 mil homens.
O Piemonte precisou mobilizar-se preventivamente para tomar a ini-
ciativa de “libertar a Itália” sem Garibaldi. Em 26 de outubro, Garibaldi
reuniu-se com Vítor Emanuel em Teano, ao norte de Nápoles, não lhe

1
Ver uma explicação mais ampla neste mesmo volume 2, no primeiro capítulo, p. 29-38.

265

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Dom Bosco: história e carisma 2

deixando alternativa senão proclamá-lo rei da Itália, renunciar à sua con-


quista e dispersar seu exército de voluntários. Fizeram-se referendos em
Nápoles e nos Estados Pontifícios; as regiões conquistadas foram anexadas
ao Piemonte. Essas ações aplainaram o caminho para a proclamação de
Vítor Emanuel II, como rei da Itália unificada, pelo voto do primeiro Par-
lamento e Senado italiano, com a lei de 17 de março de 1861.

A “questão romana”
Territorialmente, a Itália não estava completamente unida. Se, por um
lado, o Vêneto e outras regiões do extremo noroeste continuavam sob o do-
mínio da Áustria, por outro, o Papa ainda mantinha seu poder em Roma
e nos territórios próximos (o Lácio). Do ponto de vista do Risorgimento
italiano, essa deficiência deu lugar a duas questões críticas: uma, em relação
aos territórios que permaneciam sob o domínio da Áustria no norte; a outra,
em relação aos que ainda estavam sob o domínio papal, conhecida como a
questão romana.
A Terceira Guerra de Independência Italiana (1866) solucionaria, em-
bora de forma incompleta, a primeira questão. A questão romana era, de
longe, a mais sensível, porque implicava, de um lado, despojar o Papa da
capital e dos territórios sob a sua soberania; e, de outro, precisar tratar com
Napoleão III, que mantinha uma guarnição em Roma para protegê-la contra
as possíveis tentativas de conquista. A questão romana prometia ser, portan-
to, o tema mais polêmico na sociedade italiana.
Em 23 de março de 1861, foi formado o primeiro gabinete da nova
nação, tendo o conde Camilo Benso de Cavour como primeiro-ministro.
Como a unificação da Itália fora obtida pela anexação ao Piemonte dos Esta-
dos regionais italianos e não por meio da união federal, Turim funcionou na-
turalmente como primeira capital. Contudo, surgiu imediatamente a questão
de saber se Roma devia ser reclamada ao Papa como a capital histórica da Itá-
lia. Em 26 e 27 de março, com dois discursos pronunciados no Parlamento,
Cavour apresentou a posição e a estratégia do governo. A unificação da Itália
só poderia ser considerada completa quando Roma se convertesse na sua ca-
pital. A libertação de Roma continuaria a ser, portanto, o objetivo do Risor-
gimento, a se obter com a aquiescência da França e realizado sem prejuízo da
liberdade espiritual e da independência do Papa, que a Itália devia garantir
diante do mundo. Além disso, a Itália deveria garantir ao Papa o pagamento
de uma soma anual equivalente às suas entradas anteriores. Esta política seria
um exemplo do princípio liberal: “Uma Igreja livre num Estado livre”.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Cavour, porém, morreu repentinamente em 6 de junho de 1861. Em


setembro, o sucessor de Cavour, barão Bertino Ricasoli, assumindo a ideia
de Cavour, apresentou uma proposta de reconciliação entre a Itália e a Santa
Sé em Paris e Roma. A Santa Sé renunciaria à soberania territorial em troca
do reconhecimento da soberania pessoal do Papa, do direito à representação
diplomática e de uma dotação anual (o que deveria ser subscrito também por
outras nações católicas). O governo italiano comprometia-se a não intervir na
nomeação e designação dos bispos e também aceitaria o controle internacio-
nal sobre os compromissos assumidos.

Barão Bertino Ricasoli (1809-1880), segundo primeiro-ministro do Reino da Itália.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A proposta de Ricasoli podia ser cavouriana, mas seus discursos care-


ciam do tom moderado e tranquilizador de Cavour. Em discurso de 1o de
julho no Parlamento, ele disse entre outras coisas:

Teremos Roma não para destruir, mas para construir, uma vez que se oferece-
rá à Igreja a oportunidade e os meios para sua autorreforma. Garantiremos a
liberdade e a independência da Igreja como meio pelo qual possa renovar-se
na pureza da fé religiosa, na simplicidade do estilo de vida, na austeridade da
disciplina que era a honra e a glória do papado dos primeiros tempos. Tal re-
novação derivará naturalmente da entrega voluntária do poder temporal, que
é diametralmente oposto à natureza espiritual da Igreja.2

Além da discutível noção de Ricasoli sobre a Igreja, não era provável que
essa retórica promovesse o diálogo. A Santa Sé ignorou o discurso. A França
negou-se a entrar em qualquer discussão sobre a questão romana, fossem
quais fossem as condições. Além disso, a política eclesiástica do governo ita-
liano, mais do que suas palavras, agravou a situação já tensa.

Conflitos sociais, conspirações dos mazzinianos e dificuldades


do governo
Durante os quinze anos seguintes, o governo ficou nas mãos dos liberais
moderados no estilo de Cavour (a chamada direita histórica).3 Os governos,
porém, foram fracos e incapazes de enfrentar a situação caótica que se expan-
dia por toda a península.
O governo adotou uma política de repressão e coerção, exercidas por uni-
dades do exército e pela polícia, como método de fazer frente à agitação social.
Essa política foi especialmente adequada para as regiões do sul da Itália e Sicília,
onde a bandidagem, a máfia e o ressentimento contra a “dominação do Piemon-
te” alimentou frequentes levantes e exigiu o acréscimo de até 100 mil soldados.
2
Sussidi I, 67.
3
O governo da direita liberal (ou histórica) revelou-se pouco efetivo depois de Cavour e
caía, a cada crise, como mostra o simples elenco dos primeiros-ministros: Bettino Ricasoli (junho de
1861-março de 1862), Urbano Rattazzi (março-dezembro de 1862), Luís Carlos Farini (dezembro
de 1862-março de 1863), Marcos Minghetti (março de 1863-setembro de 1864), Afonso Ferrero La
Marmora (setembro de 1864-dezembro de 1865), La Marmora II (dezembro de 1865-junho de 1866),
Ricasoli II (junho de 1866-abril de 1867), Rattazzi II (abril-outubro de 1867), Luís Frederico Mena-
brea (outubro-dezembro de 1867), Menabrea II (janeiro de 1868-maio de 1869), Menabrea III (maio-
-novembro de 1869), João Lanza (dezembro de 1869-junho de 1873), Minghetti II (último governo
da direita, julho de 1873-março de 1876). Em 1876 o governo passou às mãos da esquerda liberal
(“esquerda histórica”). Embora mantivessem o governo numa monarquia constitucional, estes políticos
professavam a ideologia do republicanismo de Mazzini e do Partido da Ação, de inclinação socialista.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Não menos preocupante para o governo eram os planos dos republica-


nos radicais tramados por Mazzini e Garibaldi, que achou por bem oferecer
a conquista do Reino dos Bourbon ao rei Vítor Emanuel II. Entretanto as
intenções dos patriotas puros voltavam-se agora contra Roma e Veneza. Em
16 de dezembro de 1861, as comissões formadas para apoiar a expedição
de Garibaldi na Sicília em 1860, foram restabelecidas em Gênova autode-
nominando-se “Comitês para a Libertação de Roma e Veneza”. Devido aos
desentendimentos com a facção de Mazzini, Garibaldi negou-se inicialmente
a aceitar a liderança. Quando, porém, os comitês novamente se reuniram nos
dias 9-10 de março de 1862, para formar uma “Associação para a Libertação
da Itália”, Garibaldi deixou de lado suas queixas pessoais e aceitou a presi-
dência da associação. Algum tempo depois, um grupo de voluntários que
tentava mobilizar-se contra Veneza foi disperso pelo exército regular italiano,
enquanto Mazzini, Garibaldi e outros dirigentes da Associação preparavam
uma expedição contra Roma. Garibaldi reuniu um pequeno grupo de volun-
tários na Sicília com o juramento: “Ou Roma ou morte”, mas foram derrota-
dos pelo exército regular italiano no Aspromonte, em 29 de agosto de 1862.
Outro motivo de preocupação para o governo foi a irritação de Pio IX pela
perda de grande parte de seu poder temporal. A condenação do acordo político
feita pelo Papa e seus esforços para mobilizar os católicos em defesa da Igreja fo-
ram vistos como uma tentativa de minar o Estado a partir de dentro.4 A política
eclesiástica da direita liberal, defendendo medidas jurisdicionalistas, fomentava
o conflito. As leis de supressão das ordens e congregações religiosas e de confisco
de suas propriedades estenderam-se por toda a Itália entre 1864 e 1867. “Em
1866-1867, 2 mil comunidades religiosas perderam estatuto jurídico e 25 mil
entidades eclesiásticas foram suprimidas. Durante os quinze anos seguintes, fo-
ram vendidos mais de 1 milhão de hectares de terras da Igreja”.5 Além disso, o
governo interferia na nomeação dos bispos para as dioceses vacantes.

A Convenção de setembro
O ano 1864 marcou uma virada na história da questão romana, como
também nas relações Igreja-Estado na Itália. A turnê triunfal de Garibaldi
pela Inglaterra, em abril, seu encontro com Mazzini e a menção da unificação
italiana na imprensa britânica, alertaram a França e a Itália sobre o perigo
de uma possível reconciliação dos dois patriotas. Por isso, em junho, houve
conversas sobre a questão romana entre o ministro das Relações Exteriores

Cf. Ch. Dugan, History of Italy, 147-152.


4

5
Cf. Ch. Dugan, History of Italy, 135. Cf. G. Bonfanti, La politica ecclesiastica nella formazio-
ne dello Stato unitario. Brescia: La Scuola, 1977, 89-90.

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Dom Bosco: história e carisma 2

do imperador Napoleão III e a missão extraordinária do governo italiano,


encabeçada pelo primeiro-ministro Marcos Minghetti. Estas negociações le-
varam, em 15 de setembro de 1864, à assinatura de um acordo entre França
e Itália, a assim chamada “Convenção de setembro”, que determinava a re-
tirada por etapas da guarnição francesa de Roma num período de dois anos,
permitindo que a Santa Sé programasse e formasse o próprio exército. Em
troca, o governo italiano comprometeu-se a respeitar a integridade territorial
da cidade de Roma e a região circunstante, ou seja, o que restava dos Estados
Pontifícios, e cobrir uma parte da dívida pública da Santa Sé. Uma cláusula
secreta fixava a passagem da capital italiana de Turim a uma cidade italiana
mais importante, com Florença em primeiro lugar na lista, como símbolo da
renúncia a Roma como capital.
A “Convenção de setembro” deixou a questão sem solução. O governo ita-
liano entendia a disposição de respeitar a integridade territorial no sentido de o
Papa entregar Roma voluntariamente, a fim que a intervenção armada não fosse
necessária. Entendia, também, a passagem da capital de Turim a Florença como
medida provisória. O governo francês, porém, entendia a cláusula de não agres-
são como obrigação do governo italiano de não atacar e de controlar as facções
de Garibaldi e Mazzini, o que podia ser tentado depois da retirada da guarnição
francesa. A transferência da capital para uma cidade mais importante que não
fosse Roma, também era entendida como compromisso válido.
Pio IX, obviamente, desconfiava dessas disposições, temendo que a reti-
rada da guarnição francesa estimulasse um ataque armado. Seus temores não
eram infundados. Sua preocupação, porém, ultrapassava os acontecimentos
políticos. Em 8 de dezembro de 1864, ele publicou a encíclica Quanta Cura
com o anexo do Syllabus ou compêndio de erros contemporâneos, que reite-
rava a oposição da Igreja a tudo que representasse a Revolução Liberal.6
Quando se tornou público que Florença fora escolhida como capital,
as manifestações violentas em Turim derrubaram o governo, pois o fato foi
entendido como uma renúncia a Roma capital. Foi criado um comitê per-
manente para opor-se a todo governo que não se comprometesse em fazer de
Roma a capital da Itália. Contudo, apesar da oposição, em 19 de novembro
de 1864, o Parlamento italiano, em Turim, aprovou a transferência da capital.

6
Com a encíclica Quanta Cura, Pio IX deu o toque final a um intenso programa doutrinal e
disciplinar, cujo objetivo era reafirmar a autoridade da Igreja em todos os âmbitos da sociedade con-
temporânea. O Syllabus era uma condenação intransigente dos “erros mais perniciosos” da Revolução
Liberal. Condenava a liberdade de consciência, a tolerância religiosa, a laicidade da escola, o progresso
científico, a liberdade de pensamento etc. O último artigo condenava “o progresso, o liberalismo e
a civilização moderna”. O Syllabus foi recebido com orgulho e alegria pelos católicos conservadores.
Contudo, também significou o final do liberalismo católico e alimentou a hostilidade anticlerical.

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Panorama histórico do período 1861-1874

O projeto de lei foi promulgado como lei em 11 de dezembro de 1864


e, em 3 de fevereiro de 1865, o rei Vítor Emanuel II transferiu a corte para
Florença. As repartições ministeriais seguiram-na aos poucos.
Em 20 de outubro de 1865, celebraram-se eleições nacionais. Apenas
2% da população tinham direito a voto, e destes apenas 54% votaram. Os
liberais moderados conquistaram 250 cadeiras, a oposição mais radical, 120,
e os conservadores, 20. Cerca de 50 cadeiras foram para numerosos grupos
dissidentes. Um mês mais tarde, o rei inaugurou a legislatura. No final do
ano, foi formado um governo tendo o general Afonso La Mármora como
primeiro-ministro e João Lanza como ministro do Interior.
Foi nesse momento que Dom Bosco se viu envolvido relativamente nas
negociações destinadas a preencher as sedes episcopais vacantes.

Terceira Guerra de Independência (1866)


Nos inícios de 1866, as relações políticas entre Áustria e Prússia tinham-
-se deteriorado a ponto de a guerra parecer iminente. O chanceler prussiano
Otto von Bismarck convenceu a Itália a entrar numa aliança militar, dando-
-lhe a possibilidade de libertar as regiões que continuavam sujeitas à Áustria. A
Prússia declarou guerra à Áustria em 17 de junho e a Itália no dia 20 seguinte,
naquela que é considerada a Terceira Guerra de Independência Italiana.
A Áustria sofreu a derrota decisiva na batalha de Sadowa (Boêmia, 3 de
julho). Ao mesmo tempo, as tropas regulares italianas lutaram com sucesso na
região do Vêneto, enquanto Garibaldi e seus voluntários derrotavam os austríacos
nos Alpes. Entretanto, a frota italiana sofreu uma derrota total diante da frota
austríaca, muito superior, nas águas da Ilha de Lissa, no Mar Adriático. Depois
de Sadowa, a Áustria pediu que Napoleão III intermediasse um armistício. Sem
o conhecimento da Itália, e contrariando os termos da aliança militar, Alemanha,
Áustria e Prússia assinaram o armistício, enquanto a Itália se viu obrigada a seguir
seu exemplo. Foi ordenado a Garibaldi que cessasse as hostilidades. Pelos tratados
de paz de 3 de agosto e 3 de outubro, a Áustria cedeu Veneza e a região do Vêneto
à Itália, mas não os territórios do extremo noroeste, reclamados pela Itália.
Em 7 de julho de 1866, no apogeu da guerra, o governo italiano apro-
vou uma lei que negava o reconhecimento jurídico e, portanto, suprimia o
restante das ordens e congregações religiosas, e determinava o confisco de
seus bens. O projeto de lei fora apresentado no Parlamento por Francisco
Crispi no início de 1865. A lei também proporcionava o pagamento em con-
ta fiduciária do Estado de 5% das entradas derivadas da venda das proprieda-
des confiscadas para o sustento do culto religioso.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os edifícios dos mosteiros e conventos suprimidos foram postos à dis-


posição das organizações locais e provinciais para escolas, creches, hospitais e
instituições de beneficência. Os livros confiscados com as obras de arte foram
destinados a bibliotecas públicas e museus. A lei de confisco de 1866 limitou-
-se a tornar universalmente vinculante o que fora feito no Reino da Sardenha
com a Lei Rattazzi de 1855, já ampliada a todos os Estados regionais. Vale
a pena assinalar ainda que a expansão da lei do Piemonte e dos sistemas ad-
ministrativos aos Estados regionais e, finalmente, a toda a Itália, respondiam
fundamentalmente ao conceito da “unificação por anexação”.
Em conformidade com os termos da Convenção de setembro, a guar-
nição francesa completou sua retirada de Roma, iniciada em novembro de
1865. O último contingente partiu de Roma em outubro de 1866, deixando
a cidade mal-defendida pelo exército papal reorganizado.
A situação refletiu-se na Alocução de Pio IX, de 29 de outubro de 1866.
É compreensível que o Papa denunciasse nos termos mais enérgicos os “atos
injustos e iníquos” perpetrados pelo governo italiano contra a Igreja. Em se-
guida, não mais tão compreensivelmente, passava a afirmar a necessidade ab-
soluta do poder temporal do Papa para garantir sua total liberdade no exercício
de seu serviço pastoral. Acrescentava como ressalva final que, no caso de Roma
ser tomada pela Itália, não duvidaria em ir voluntariamente para o exílio.

O já idoso general José Garibaldi (1807-1882).


Tomada de L’Illustration. Journal Universel, 10 de julho de 1882.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Sem a proteção francesa, Roma convidava a ser atacada. Em março de


1867, Garibaldi fugiu de seu retiro em Caprera, pequena ilha onde se refugia-
ra, e começou a reunir voluntários para uma expedição militar contra Roma.
Em setembro foi detido e aprisionado, e rapidamente devolvido a Caprera,
suscitando numerosos protestos populares. Em outubro, um ultimato do go-
verno francês exigiu que a Itália controlasse Garibaldi e seus voluntários. Os
franceses iniciaram, então, a implantação de uma nova guarnição localizada
perto de Roma, para a proteção da cidade e do Papa.

Ação militar de Garibaldi contra Roma (1867)


A retórica e as atividades dos revolucionários italianos, sobretudo de Gari-
baldi, no ano seguinte à retirada da guarnição francesa, mostraram o perigo da
situação. A exigência da França para que o governo italiano controlasse os re-
volucionários e evitasse um ataque a Roma, apesar das melhores intenções, não
teve qualquer efeito. Em 20 de outubro de 1867, Garibaldi escapou novamente
de Caprera e marchou contra Roma com cerca de 9 mil voluntários, ao mesmo
tempo em que ocorria em Roma um levante sangrento, embora sem sucesso.
As tropas de Pio IX entregaram-se a Garibaldi em Monterotondo, mas
diante do fracasso da sublevação na cidade de Roma, ele absteve-se de atacá-
-la. Contudo, em 3 de novembro enfrentou e derrotou outro contingente de
tropas pontifícias em Mentana. As forças francesas estacionadas em Civita-
vecchia entraram em campo e, pela superioridade, expulsaram os insurgentes
até o território italiano; Garibaldi foi capturado pelos contingentes italianos,
aprisionado e devolvido a Caprera.
Durante a crise romana de 1867, os protestos populares em apoio a Ga-
ribaldi e a divergência quanto à questão romana provocaram repetidas quedas
de governo. Ricasoli foi incapaz de formar um gabinete. Rattazzi e Menabrea,
que o sucederam, não conseguiram suportar a pressão e viram-se obrigados à
demissão. A situação caótica da economia, a dívida de guerra e o aumento do
déficit complicaram a questão, sem que fossem suficientes para aliviá-la nem
o leilão dos bens confiscados à Igreja, nem os impostos adicionais.
Os anos 1868 e 1869 foram especialmente difíceis. Na Itália, o descon-
tentamento popular no país inteiro e as manifestações das massas contra o
imposto sobre os grãos (21 de maio de 1868) exigiram a criação de novas unida-
des do exército e o uso da força com numerosas vítimas.7 Em Roma, muitos
revolucionários foram executados ou encarcerados.

O imposto incidia sobre os grãos de todos os cereais levados para serem moídos nos moinhos
7

públicos. Consistia num percentual a pagar em dinheiro ou em espécie.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em 1868, Garibaldi foi eleito pela segunda vez para o Parlamento pelo
seu distrito, mas renunciou. Em carta de 24 de dezembro de 1868, denunciou
o governo como “a negação de Deus”, por ter traído a causa durante a recente
tentativa falida contra Roma. E acrescentava: “O que esperar de um governo
que não é nada mais do que um encarregado da divisão de rendas, um devora-
dor corrupto da riqueza pública e um agente pago por um tirano estrangeiro?”.8

O Concílio Vaticano (8 de dezembro de 1869-20 de outubro


de 1870)
Em 28 de junho de 1868, Pio IX publicou a bula de convocação de um
concílio ecumênico, o Concílio Vaticano I, inaugurado em 8 de dezembro
de 1869 com a participação de cerca de 600 padres conciliares. O Concílio
tinha por finalidade concluir as várias reformas feitas pelo Papa na Igreja, e
celebrou 89 congregações gerais e 4 sessões públicas. O programa incluía vá-
rias questões importantes, doutrinais e pastorais, entre as quais a tão debatida
definição dogmática da infalibilidade papal.
O Concílio promulgou duas constituições doutrinais; a primeira, Dei
Filius, sobre Deus, a Revelação, a fé e a razão, obteve aprovação unânime em
24 de abril de 1870; a outra, Pastor Aeternus, definia a primazia jurisdicional
e a infalibilidade papal, aprovada em 18 de julho de 1870, depois de um de-
bate intenso e um dissenso importante, sobretudo de alguns bispos franceses,
alemães e piemonteses.
O significado da definição não estava tanto no âmbito da doutrina,
quanto no fortalecimento da autoridade papal em oposição às tendências
de episcopalismo e conciliarismo. Segundo a percepção de alguns, também
parecia reforçar a postura do papado em relação ao estado secular, enquanto
atribuía ao Papa a autoridade suprema no campo moral, o que obviamente se
referia a vários aspectos da sociedade e da política.
Dom Bosco, com carta ao secretário do Concílio, consultara Roma
sobre seu direito de participar do Concílio como superior de uma congre-
gação religiosa. A resposta foi negativa; contudo, ele passou mais de um
mês em Roma, de 20 de janeiro a 25 de fevereiro, durante as primeiras
fases do Concílio. Como era de se esperar, ele era partidário firme e decla-
rado da infalibilidade papal; discutiu o assunto incansavelmente com os
bispos da oposição, enquanto suas tipografias em Turim produziam textos

8
V. Ceppellini, P. Boroli e L. Lamarque (eds.), Storia d’Italia, 161.

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Panorama histórico do período 1861-1874

em apoio da infalibilidade. Pode ter sido o instrumento pelo qual conquis-


tou para a causa o bispo de Saluzzo, dom Lourenço Gastaldi.9
O Concílio Vaticano I celebrou sua última sessão em 1o de setembro de
1870. Em 20 de outubro, depois da ocupação de Roma pelo exército italiano
em 20 de setembro de 1870, foi adiado sine die.

João Lanza, primeiro-ministro do Reino da Itália de 1869 a 1873.

Enquanto isso, no plano político, a eleição de membros da esquerda do


Parlamento para postos de direção obrigou a renúncia do primeiro-ministro
Menabrea e a dissolução de seu gabinete. Em 14 de dezembro de 1869, o
primeiro-ministro Lanza, que também ocupava o Ministério do Interior, for-
mou um novo governo. Pouco depois, em fevereiro de 1870, aproveitando o
descontentamento popular, José Mazzini retornou secretamente à Itália com
a finalidade de organizar uma revolução, depor o governo constitucional,
tomar Roma e estabelecer a república. Nos meses seguintes estalaram levan-
tes em várias cidades italianas, mas as revoltas foram reprimidas; Mazzini foi
detido, em Palermo (Sicília), e encarcerado. Seria libertado mais tarde com a
anistia decretada para celebrar a ocupação de Roma.
9
MB IX, 777s, 794s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Estes fatos tornaram mais urgente a solução da questão romana. A


ocupação italiana de Roma e do território circunstante, tudo o que res-
tava dos Estados Pontifícios, foi propiciada pela guerra franco-prussiana,
que deixou Roma praticamente indefesa depois da retirada da guarnição
francesa.

A guerra franco-alemã e a tomada de Roma


(20 de setembro de 1870)
Em 19 de julho de 1870, um dia depois da definição da infalibilidade
papal, a França declarou guerra à Prússia. A guerra foi muito rápida. Em 1o
de setembro, na batalha de Sedán, os franceses sofreram uma derrota esma-
gadora. Napoleão III rendeu-se ao rei Guilherme I da Prússia e reconheceu-
-se como prisioneiro. Em 4 de setembro de 1870 foi proclamada em Paris a
Terceira República.
No início das hostilidades entre a França e a Prússia, o Parlamento
italiano em sessão extraordinária votara a favor de uma solução rápida
da questão romana “em conformidade com as aspirações nacionais”. Foi
enviado um memorando às potências europeias, destacando a necessidade
urgente de resolver a situação, a fim de evitar uma ocupação revolucioná-
ria republicana.
A França, nos inícios de agosto, retirou a guarnição estacionada para a
proteção de Roma. Em 5 de setembro, depois da derrota de Napoleão III,
o governo italiano tomou a decisão unânime de ocupar Roma, não sem
fazer uma nova tentativa de obter que Pio IX entregasse a cidade voluntá-
ria e pacificamente. O conde Gustavo Ponza di San Marino foi o portador
de uma carta de Vítor Emanuel II a Pio IX, garantindo a independência
completa da Santa Sé no exercício do seu ministério espiritual. Como se
esperava, Pio IX recusou a proposta com desdém. Em 20 de setembro de
1870, a artilharia italiana abriu uma brecha na muralha junto à Porta Pia
tendo morrido 49 italianos e 19 soldados do Papa nas escaramuças que se
seguiram. A rendição foi assinada e a cidade, ocupada, com exceção dos
palácios do Vaticano, onde Pio IX se refugiou. Nos inícios de outubro, por
referendo popular, Roma e o território circunstante do Lácio foram ane-
xados à Itália. Com a encíclica Respicientes, de 1o de novembro de 1870,
Pio IX declarou a ocupação “injusta, violenta, nula e ilegal”. Lamentava a
situação de cativeiro que impedia o Papa de exercer seu ministério pastoral
soberano e excomungou o rei da Itália com todas as pessoas que tivessem
algo a ver com a usurpação.

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Panorama histórico do período 1861-1874

A Lei das Garantias


A fim de tranquilizar a comunidade internacional, mas também aplican-
do uma política que orientara a direita histórica desde Cavour, o primeiro-
-ministro Lanza apresentou um projeto de lei para estabelecer as garantias
do livre exercício do poder papal que o rei prometera em sua carta. Em 22
de janeiro de 1871, começou no Parlamento o debate de um projeto de lei
intitulado “Prerrogativas do Papa e da Santa Sé e Relações entre Igreja e Es-
tado na Itália”. A Lei das Garantias, como o projeto de lei é conhecido, foi
aprovada no Senado em 2 de maio e publicada no dia 15 seguinte.10
Com a encíclica Ubi Nos, de 15 de maio de 1871, Pio IX rechaçava
a lei como um plano “para enganar os católicos e acalmar sua ansiedade”.
Afirmava novamente que o poder temporal era a única verdadeira garantia de
independência do Papa. Apesar da recusa de Pio IX, a lei ficou em vigor até
a Concordata de 1929.
Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro apresentou um projeto de lei
para transferir a capital de Florença a Roma. A transferência oficial deu-se em
1o de julho de 1871 e, em 2 de julho, o rei Vítor Emanuel e seus ministros
entraram oficialmente na Cidade Eterna.11
Nesse contexto de grandes acontecimentos históricos, Dom Bosco este-
ve ativamente envolvido em muitas frentes, com a finalidade de consolidar e
desenvolver sua obra.

2. Dom Bosco e sua obra na década 1862-1874


A década de 1850 e os primeiros anos da década de 1860 podem ser
considerados o período da grande experiência de Dom Bosco como edu-
10
A lei tinha por base o princípio político de Cavour, “uma Igreja livre num Estado livre”. A
Parte I, “Prerrogativas do Sumo Pontífice e da Santa Sé” compreendia os artigos 1-13. Concretamente,
os artigos 1-8 tratavam das prerrogativas do Papa. São estas: 1) a imunidade das residências territoriais
papais (do Vaticano, do Latrão e da Vila de Castelgandolfo); 2) uma dotação de 3,225 milhões liras,
equivalente às últimas entradas papais; 3) a inviolabilidade pessoal; 4) o direito a honras de um governo
soberano e a um corpo de guardas armados; 5) o livre exercício sem empecilhos do poder espiritual; 6)
o direito à livre comunicação, sem censura, dentro e fora da Itália, e a faculdade de receber e nomear
embaixadores. Os artigos 9-13, da Parte I, tratavam do direito da Santa Sé de se comunicar livremente
com os fiéis, com o clero e com os governos do mundo todo. A Parte II, “Relações entre a Igreja e o Es-
tado na Itália”, que compreendia os artigos 14-19, eximia o clero dos controles reais. Em particular, foi
abolido o juramento tradicional de lealdade dos bispos ao rei e todas as restrições ao direito de reunião
do clero. O último artigo, 20, derrogava todas as leis e costumes em contrário.
11
O governo e o Parlamento estabeleceram-se no Palácio de Montecitório em fins de 1871.
Entretanto, passou uma boa parte do ano antes que se completasse a transferência dos escritórios do
governo. Oficialmente, Florença fora capital da Itália de 3 de fevereiro de 1865 a 1o de julho de 1871.

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Dom Bosco: história e carisma 2

cador e mestre espiritual, da sua plena participação no apostolado da im-


prensa, da primeira etapa da fundação, da primeira etapa no desenvolvi-
mento da sua obra. Melhor dizendo, as décadas de 1860 e 1870 poderiam
ser vistas como uma segunda etapa no desenvolvimento e consolidação da
obra. O que inclui especialmente a aprovação da Sociedade Salesiana e de
suas Constituições, a fundação de uma congregação religiosa feminina, a
expansão da obra educativa de Dom Bosco nas escolas, o desenvolvimento
da obra em Turim, o estabelecimento gradual das estruturas centrais em
vista da expansão projetada.
Portanto, enquanto continuavam as numerosas iniciativas da etapa ante-
rior, os anos 1862-1874 são construtivos e especiais em muitos sentidos:

1. Foram definitivamente aprovadas a Sociedade de São Francisco de


Sales e suas Constituições (1864-1874), dando uma base jurídica
à instituição, que seria o principal veículo do apostolado salesiano.
2. O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora em situação de “de-
pendência” jurídica, afiliada à Congregação Salesiana. O Instituto,
fundado por Dom Bosco em colaboração com Maria Mazzarello
e o grupo de Maria Imaculada de Mornese (1864-1872) era, na
verdade, uma congregação paralela para mulheres com os mesmos
objetivos da Congregação Salesiana.
3. A obra salesiana, sobretudo na forma de colégios e internatos,
experimentou um notável desenvolvimento no Piemonte e na Li-
gúria, no contexto das reformas liberais da escola e em resposta ao
apelo da Igreja.
4. Maria Auxiliadora dos Cristãos, a Virgem da década de 1860, e
seu santuário (1863-1868) converteram-se em símbolo de um
novo compromisso dos salesianos a serviço da Igreja, o ponto fo-
cal de uma nova consciência carismática no Fundador e em sua
comunidade, com o aumento simultâneo do “sobrenatural” e de
uma espiritualidade característica.
5. No contexto dos acordos políticos e no clima político posterior
que marcaram os anos da unificação da Itália (1865-1874), vemos
Dom Bosco participando nos assuntos de Igreja-Estado, como
mediador nas negociações para preencher as sedes episcopais va-
cantes e obter o exequatur real e a administração do patrimônio
eclesial que cabia aos bispos uma vez designados.

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Panorama histórico do período 1861-1874

6. A partir da década de 1860, esclarece-se e confirma-se a situação


da vocação salesiana leiga (o salesiano coadjutor), acolhida nas
Constituições. Esta vocação adquiriu sua definição, identidade e
organização a partir de meados da década de 1870, especialmente
através do trabalho dos capítulos gerais.
7. Dom Bosco prevê a expansão global da obra salesiana no contexto
de sua crescente consciência mundial, reforçada pela experiência
do Concílio Vaticano I (1869-1870). A realização deste plano,
incluídas as missões, corresponde à próxima década.

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Apêndice

SILLABUS DOS ERROS (1864)

As 80 proposições condenadas por Pio IX no Syllabus de 1864, anexa-


do à encíclica Quanta Cura, documentam o liberalismo do tempo.12 Devem
ser entendidas no quadro das declarações do Papa (como as encíclicas) das
quais provinham. Alguns termos, como “liberalismo”, por exemplo, devem
ser entendidos nesse mesmo contexto, não no sentido atual. Cada afirmação
descreve um erro, que é condenado. Tanto a Quanta Cura como o Syllabus
foram preparados anteriormente, mas ficaram retidos a conselho do cardeal
Antonelli, e publicados quando a convenção de setembro, entre a Itália e
Napoleão III (1864) suscitou a ira de Pio IX.
O Syllabus suscitou a hostilidade dos governos e, em geral, dos círculos
anticatólicos. Incomodou, também, alguns dentre os mais brilhantes intelec-
tuais católicos da Europa. Para suavizar o impacto, o cardeal Antonelli argu-
mentou que era uma declaração de princípios abstratos que, concretamente,
não punha em questão as instituições liberais. Fora elaborado a pedido dos
bispos reunidos em Roma em 1862 para a canonização dos mártires japone-
ses. O Syllabus era mera exposição aos bispos com um resumo dos pontos já
tratados em declarações anteriores do Papa.
Uma série de proposições condenadas também tratava das crenças re-
ligiosas básicas como o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o indi-
ferentismo. Contudo, a maior parte do Syllabus tratava de assuntos muito
delicados como a ordem política, o ordenamento da sociedade civil, a ética
social e os direitos da Igreja.
Não temos documentos sobre a reação de Dom Bosco à Quanta
Cura e ao Syllabus. Lemoyne traz apenas um comentário nas Memórias
Biográficas.13 Considera a sua publicação um “grande triunfo”. É pouco

12
Ver o texto em H. Denzinger e P. Hünermann, El Magisterio de la Iglesia: enchiridion symbolorum
definitionum et declarationum de rebus fidei et mourm. Herder: Barcelona, 381-999, 2901-2980, 753-761.
13
MB VII, 830s.

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Panorama histórico do período 1861-1874

provável que Dom Bosco estivesse em desacordo com alguma parte do


seu conteúdo. Nas obras História da Igreja (1846), O católico instruído
(1853), História da Itália (1856) e em outros escritos, Dom Bosco mos-
tra-se completamente alinhado com a eclesiologia do Syllabus.
Uma carta do padre Mongini, publicada no periódico anticlerical La
Gazzetta del Popolo, em 5 de agosto de 1879, no contexto da tentativa de fe-
char a escola do Oratório, alude a Dom Bosco como um “Syllabus ambulante”.
Nas escolas que atuam na Itália e em outros lugares, também na América [do
Sul], Dom Bosco tem um peso político que se esconde sob o manto do huma-
nitarismo, o chamado “fazer o bem”. Sua influência tem raízes na educação que
oferece, imbuído dos princípios do Syllabus e sob cuja forma educa as gerações
hostis à Itália e à civilização no mundo todo. Dom Bosco, que parece ter o dom
de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, bem pode ser chamado de “o
Syllabus ambulante”. Temperado com mel, ele distribui o Syllabus aos seus alunos
em pequenas colheradas para torná-lo mais saboroso e fácil de engolir, como uma
mãe que dá remédio aos filhos. É um gênio no inflamar as pessoas no amor ao
papado, e nisso é muito mais eficaz do que um milhar de professores sacerdotes
ou um milhar de periodistas católicos, inclusive os extremistas. Ai da Itália se uma
centena de suas cidades hospedarem Dom Bosco. Seria, ao menos, uma vergonha
absoluta para o governo, e as consequências seriam claramente evidentes. Isso
tudo para dizer que, embora a lei não possa corrigir todos os erros que sobram na
educação secundária, não obstante deve ser rigorosamente aplicada às entidades
desse tipo, com inspeções periódicas e, se necessário, devem ser fechadas.14

PEDIDO DE INFORMAÇÃO, DE DOM BOSCO,


SOBRE SUA ASSISTÊNCIA AO CONCÍLIO VATICANO I

Carta a dom Joseph Fessler, secretário do Concílio Vaticano I,


de 22 de novembro de 1869
Em 28 de junho de 1868, Pio IX publicou a bula de convocação do
Concílio Vaticano I, que se abriria em São Pedro no dia 8 de dezembro de
1869. Como se aproximava a data de abertura, Dom Bosco escreveu ao secre-
tário do Concílio para perguntar sobre sua assistência.15

MB XIV, 188s.
14

Epistolario III Motto, 153-154, hológrafo de Dom Bosco. Joseph Fessler, nascido em 1813 no
15

Tirol (Áustria), doutorou-se em teologia na Universidade de Viena tendo sido ali professor de história
da Igreja. Foi ordenado bispo em 1862 e exerceu o cargo de secretário do Vaticano I (1868-1870).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Turim, 22 de novembro de 1869


Excelência:
Precisando ter alguma informação sobre a assistência ao próximo concílio
ecumênico, tomo a liberdade de dirigir meu humilde pedido a Vossa Excelên-
cia. Esta é, pois, a minha questão.
Cartas e informações particulares recebidas de amigos asseguram-me que os
superiores-gerais das ordens religiosas que foram aprovadas definitivamen-
te e possuem jurisdição poderão assistir ao próximo concílio ecumênico.
Contudo, não fui capaz de comprovar se as congregações religiosas têm o
mesmo direito.
Acontece que sou o superior-geral da Sociedade de São Francisco de Sales,
aprovada definitivamente como congregação de votos simples, perpétuos re-
servados à Santa Sé.
Se em sua grande bondade houvesse alguém que me informasse se, como
superior desta congregação, eu estou habilitado a participar no concílio, eu
consideraria um favor. Não quisera parecer negligente em algo que signifique
uma homenagem à Santa Sé, assim como não quisera imiscuir-me no que não
me compete.
Confiando que sua bondade me perdoe pelo inconveniente que este pedido
poderia causar-lhe, peço que Deus lhe dê boa saúde e longa vida.
Com profunda gratidão, professo-me, o servidor mais fiel de Vossa Excelên-
cia, padre João Bosco.

Comentário
A resposta, negativa, foi imediata. Os superiores-gerais das congregações
com votos simples, inclusive perpétuos e reservados à Santa Sé, não têm di-
reito de participar no Concílio.16 A motivação dada por Dom Bosco para a
pergunta é interessante: ele não quer “parecer negligente em algo que signifi-
que uma homenagem à Santa Sé”.

16
Epistolario III Motto, 153.

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Capítulo X

AS PROFECIAS DE DOM BOSCO


(1870-1873)

1. A guerra franco-alemã
(19 de julho de 1870-10 de maio de 1871)
Grande parte da opinião pública francesa, mantida viva pelos intelec-
tuais e a imprensa diária, pensava que a França deveria retornar à margem
esquerda do Rin, suas fronteiras naturais. Não compreendendo a longa luta da
nação alemã pela sua unidade política, os franceses consideravam a consuma-
ção dessa união como uma expansão forçada da Prússia, e vitória desta sobre
a Áustria (1866), um ataque à honra militar francesa.
A eleição do príncipe Leopoldo de Hohenzollern para o trono da Espa-
nha em julho de 1879 foi apresentada em Paris como um projeto da Prússia
para pôr em perigo a segurança da França. Depois da renúncia voluntária do
príncipe, o governo francês esperava que o rei da Prússia fizesse um pronun-
ciamento claro de que “jamais voltaria a permitir a candidatura do príncipe
à coroa espanhola”. O rei Guilherme negou-se a discutir o assunto, o que a
França considerou como um insulto. Em Paris, surgiu uma grande agitação,
orquestrada artificialmente.
Embora um pequeno grupo no Parlamento se opusesse à declaração de
guerra, por considerar que a França não estava preparada, o governo de Na-
poleão III declarou guerra à Prússia em 15 de julho de 1870. Na Alemanha,
a atitude do governo e do povo era tranquila, mas decidida. Guilherme I re-
cebeu aclamações entusiastas em Berlim e, nessa mesma noite, foi ordenada a
mobilização do exército do norte da Alemanha. O sul da Alemanha entendeu
que um ataque francês, não obstante dirigido aparentemente apenas contra
a Prússia, era na realidade um ataque contra a nação alemã; o objetivo dos

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Dom Bosco: história e carisma 2

franceses seria a conquista do território alemão e o estabelecimento de uma


nova Confederação do Rin.
No dia seguinte, 16 de julho de 1870, Luís II da Baviera ordenou a
mobilização do exército, influenciando decisivamente os demais Estados ale-
mães. O gabinete francês contara com a neutralidade do sul da Alemanha
e com uma aliança com a Áustria e a Itália. Estas previsões falharam e, em
1o de setembro, deu-se a batalha decisiva em Sedán e, no dia seguinte, o
exército francês capitulava.
Napoleão III rendeu-se a Guilherme I. O exército francês por inteiro
foi feito prisioneiro de guerra: 39 generais, 2.300 oficiais, 83 mil soldados.
Em 4 de setembro de 1870, caiu o império e foi proclamada a (Terceira)
República francesa. Formou-se um governo provisório em Paris, onde domi-
nava o caos. Fracassadas as negociações entre o chanceler prussiano Bismarck
e o chanceler francês Fravre, Estrasburgo capitulou em 27 de setembro e, um
mês mais tarde, também Metz. Dias antes, em 19 de setembro, a guarnição
francesa de Roma retirou-se, abrindo caminho ao exército italiano para a
tomada de Roma, que acabou com o poder temporal do Papa.
Enquanto isso, os franceses reuniram dois exércitos para defender Paris,
mas sofreram sucessivas derrotas (Belfort e Saint-Quentin). Paris capitulou
em 28 do mesmo mês. Dias antes, em 18 de janeiro, Guilherme I foi coroado
imperador da Alemanha, em Versalhes. O armistício chegou durante a Con-
venção de Versalhes, que impôs pesadas sanções à França. Em 26 de fevereiro
de 1871, em Versalhes, foram fixados os termos do tratado de paz.
1. A França cedeu ao império alemão a maior parte da Alsácia e da Lore-
na alemã, incluindo Metz (um total de 1,5 milhão de habitantes).
2. A França concordou em pagar uma indenização de 500 bilhões de
francos em três anos.
A paz foi finalmente decidida em 10 de maio de 1871 em Frankfurt.
Estipuladas as condições de paz com os alemães,1 Paris passou por um pe-
ríodo de desordens causadas pelo levante dos trabalhadores, uma multidão
de democratas fanáticos das classes baixas, dispostos a tomar medidas mais
violentas. A tentativa das tropas de recuperar o controle dessa parte da cidade
produziu o grande levante da Comuna de 18 de março de 1871.
Teve início, então, um novo reino do terror, e muitos cidadãos in-
fluentes foram assassinados, entre os quais o arcebispo Darboy, de Paris.
1
Os resultados da guerra foram: 1o. A destruição da potência militar francesa. 2o. A aquisição
pela Alemanha de um limite oeste seguro. 3o. A realização da unificação política da nação alemã. 4o. A
ascensão da Alemanha federalizada como poder dominante sob a égide do chanceler Otto von Bismarck.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

O marechal MacMahon, atuando em nome da Assembleia Nacional, si-


tiou Paris novamente. Na luta feroz pela posse da cidade, os principais
edifícios foram incendiados pela multidão, tendo sido destruídos ou mui-
to danificados, entre outros edifícios, as Tulherias, o Hôtel de Ville, uma
parte do Palácio Real e o Panteão. A insurreição foi enfim sufocada e
foram infligidos castigos severos. Muitos dentre os dirigentes foram fuzi-
lados ou levados para as colônias penais.

2. As profecias de Dom Bosco


Dom Bosco, no contexto da guerra franco-alemã, teve experiências de vi-
sões, que relatou em diversas revelações proféticas,2 e merecem algum comentário.

Retrato de Dom Bosco, pelo fotógrafo Aquiles de Sanglau


(Roma, 26 de fevereiro de 1867).

ASC 223, FDB 1346 Ai-1347 D3. Estes dez textos foram editados por Cecilia Romero,
2

I sogni di Don Bosco. Edizione critica. Turim: LDC, 1978.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Profecia (1870): “Só Deus é todo-poderoso...”


Documentação
Das nove cópias manuscritas desta profecia em ASC, o manuscrito do
padre Berto é fundamental. Trata-se de uma cópia feita por Berto, secretário
de Dom Bosco em 1874, a partir de autógrafos originais. Dom Bosco des-
truiu o original e, por isso, o autógrafo completo não foi conservado. A única
parte existente do autógrafo é a mensagem a Pio IX (“Agora, a voz do céu...”)
que Dom Bosco escreveu em separado, provavelmente em Roma entre ja-
neiro e fevereiro de 1870, e que pode ter apresentado ao Papa. Padre Berto
conseguiu salvar o documento e, em 1874, inseriu esta parte do autógrafo em
sua reprodução da profecia de 1870.3
Mais tarde, como arquivista da Congregação Salesiana, Berto colou o tex-
to autógrafo numa pasta azul, na qual escreveu esta explicação: “Hológrafo
de Dom Bosco: fragmento profético escrito como complemento da profecia,
enviado ao Santo Padre Pio IX, em 12 de fevereiro de 1870 [...]. Desta profecia,
foram feitas cópias do original para satisfazer os pedidos de algumas pessoas
piedosas. O original não está mais em nosso poder, pois foi devolvido a Dom
Bosco e ele o destruiu. Além disso, obrigou-me ao sigilo absoluto; eu, de minha
parte, durante o tempo em que ele viveu, fui fiel à minha promessa”.4
Em 1874, Dom Bosco fez anotações interpretativas à margem, dando
autenticidade ao manuscrito do padre Berto.5 Em 1o de março e 1o de abril
de 1874, Dom Bosco ditou ou escreveu comentários interpretativos (escla-
recimentos) sobre 15 pontos da profecia. Esses comentários aparecem como
apêndice ao texto principal no manuscrito do padre Berto,6 e em nossa trans-
crição a seguir.

Conteúdo
Introdução
Circunstâncias e natureza da experiência profética nas palavras de
Dom Bosco:

3
No texto editado por Amadei, MB X, 60s, a Mensagem a Pio IX está marcada com asteriscos.
4
Padre Berto faz notar que manteve o pedido de sigilo durante o tempo em que Dom Bosco
viveu “apesar das pressões que tive de suportar de algum superior (padre Rua?)”. Esta afirmação de-
monstra que Berto escreveu sua nota de arquivo depois da morte de Dom Bosco (1888). O sigilo deve
referir-se ao autor da profecia mais do que ao seu conteúdo, porque a profecia em si era conhecida.
5
Em MB X, 57s estas anotações estão em cursivo à margem, não no interior do texto. Na trans-
crição apresentada por Lenti, aparecem no interior do texto entre parênteses e em cursivo.
6
MB X, 62s.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Na véspera da Epifania do corrente ano de 1870, desapareceram todas as


coisas materiais do meu quarto, e eu me vi diante da consideração de coisas
sobrenaturais. Foi algo que durou breves instantes, mas foram muitas as coisas
que vi. Embora de formas e aparências sensíveis, não podem ser comunicadas
aos outros, a não ser com muita dificuldade, com sinais exteriores ou sensí-
veis. O que segue poderá dar uma ideia disso. Encontra-se em tudo a Palavra
de Deus adaptada à palavra do homem.

Parte primeira
Predição do castigo de Deus sobre a França-Paris mediante uma tríplice
visita, no contexto da desastrosa guerra franco-alemã.

Parte segunda
Intervalo: Visita do “Guerreiro do Norte”, que se encontra com o “Ve-
nerável Ancião do Lácio”.

Inserção
Mensagem a Pio IX (“Agora a voz dos céus dirige-se, então, ao Pastor dos
Pastores”). Trata-se de uma exortação ao Papa para que continue a “solene
assembleia” (o Concílio Vaticano I fora apenas iniciado) “até que a hidra do
erro tenha sido decapitada”.
Invectiva e oráculo contra a Itália, também severamente castigada por
Deus, e contra Roma, que será visitada quatro vezes com castigos; a terceira
visita culminará com a queda da cidade e um banho de sangue.

Epílogo
Mensagem de esperança: “aproxima-se a grande rainha dos céus” para
restaurar o Papa em sua situação anterior, pôr fim ao reino do pecado e trazer
o arco-íris da paz “antes que brilhem as luas cheias no mês das flores”.

Mensagem a Pio IX (1873):


“24 de maio-24 de junho de 1873. Era uma noite escura...”

Documentação
Uma nota anexa ao texto de Dom Bosco parece dar a esta segunda pro-
fecia o mesmo sentido profético da primeira. A nota diz: “A pessoa que co-
munica estas coisas é a mesma que predisse acertadamente o que aconteceu

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Dom Bosco: história e carisma 2

à França um ano antes que ocorresse. Estas predições foram amplamente


conhecidas e se cumpriram dia a dia [...]”.
Em ASC são conservados: um autógrafo muito corrigido por Dom Bos-
co; uma cópia fiel, manuscrita, do padre Berto; algumas anotações interpre-
tativas, feitas à margem por Dom Bosco no manuscrito do padre Berto;7 um
manuscrito de Lemoyne; e um quarto manuscrito parcial.

Conteúdo
Pio IX e seus seguidores fogem de Roma, mas logo retornam – em três
partes.
1. Pio IX abandona o Vaticano e Roma à frente de uma multidão de
homens, mulheres, crianças, monges, monjas e sacerdotes, muitos dos quais
morrem ou são feridos; detêm-se depois de 200 dias de caminhada.
2. Dois anjos aparecem e oferecem ao Papa um estandarte com a ins-
crição: “Rainha concebida sem pecado” e “Auxiliadora dos Cristãos”. Pede-se
ao Papa que retorne com seus seguidores, e começa um movimento para a
reevangelização do mundo.
3. O Papa e seus seguidores, então em número crescente, retornam a
Roma (outros 200 dias de viagem) e encontram devastadas a cidade e toda
a terra. Fazem uma ação de graças em São Pedro. A escuridão desaparece e o
sol começa a brilhar.8

Mensagem profética a Francisco José I (1873):


“Assim diz o Senhor ao imperador da Áustria...”
Documentação
Da mensagem, que se apresenta como Palavra do Senhor, o ASC con-
serva um autógrafo bastante corrigido por Dom Bosco; uma cópia do padre
Berto que difere considerável, mas não substancialmente, do texto autó-
grafo de Dom Bosco, caso único; uma cópia feita pelo padre Lemoyne
do manuscrito do padre Berto. Uma anotação acrescentada declara que a
mensagem foi entregue mediante um intermediário e que o imperador a
recebeu e agradeceu.

7
Em MB X, 62s, estas anotações estão à margem, não no texto como aqui em Lenti, e em cursivo.
8
A profecia chegou a Pio IX, oralmente ou por escrito, por meio de um cardeal, ver MB X, 59s.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Conteúdo
Nesta breve mensagem, “o Senhor” adverte o imperador para que seja “a
vara do meu poder” e “leve a cabo meus desígnios inescrutáveis e se converta em
benfeitor do mundo”, seguindo as sugestões em relação às alianças e as táticas.

As três profecias, segundo as Memórias Biográficas


Lemoyne transcreve a profecia de 1870 e a de 1873 com seus comen-
tários.9 Segundo ele, Dom Bosco vislumbrou a profecia “num sonho”, em
5 de janeiro de 1870, na noite anterior à segunda sessão do Vaticano I e da
profissão de fé dos padres conciliares (festa da Epifania do Senhor).
Amadei reproduz a profecia de 1870, com anotações de Dom Bosco à
margem, e anexa 15 notas de esclarecimento; e a profecia de 1873, com inter-
pretações marginais de Dom Bosco e a mensagem profética para o imperador
Francisco José I, da Áustria, com seus comentários pessoais.

Quadro cronológico
Cronologia da tradição do Cronologia de fatos
texto da profecia de 1870 contemporâneos pertinentes
8 de dezembro de 1869-20 de outubro
de 1870: Primeiro Concílio Vaticano.
5 de janeiro de 1870: a experiência profética.
6-20 de janeiro de 1870: o autógrafo de Dom
Bosco é escrito e fazem-se cópias da profecia.
(Ele possivelmente destruiu o seu autógrafo.)
Dom Bosco leva uma cópia consigo para Roma
(20 de janeiro-23 de fevereiro de 1870), mas não
a entrega ao Papa. Não se conserva nenhuma
dessas cópias.
20 de janeiro-25 de fevereiro de 1870: Dom Bos-
co em Roma com o secretário padre Berto.
8 de fevereiro, e talvez 15 (a audiência de 12 de
fevereiro é dedução de Lemoyne, baseando-se na
anotação de arquivo do padre Berto de 1874).
12 de fevereiro de 1870: cópia recebida por uma
“pessoa importante” em Roma e apresentada em
La Civiltà Cattolica. Não se conserva.

9
MB IX, 827ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

20 de janeiro-15 de fevereiro de 1870: enquanto


está em Roma, Dom Bosco compõe a “Mensa-
gem a Pio IX”, apresentando-a ao Papa durante a
audiência de 15 de fevereiro [?]. Há um autógra-
fo de Dom Bosco, conservado pelo padre Berto.
19 de julho de 1870-10 de maio de
1871: Guerra franco-prussiana.
1o de setembro de 1870: Batalha de
Sedán: derrota do exército francês.
Napoleão III cai prisioneiro de guerra.
20 de setembro de 1870: ocupação de
Roma pelo exército italiano. Fim do
poder temporal do Papa.
20 de outubro de 1870: o Concílio Va-
ticano I adiado sine die.
29 de outubro de 1870: cópia da profecia de 1870 19 de setembro de 1870-28 de janeiro
é enviada ao cardeal Berardi (cópia não existente) de 1871: cerco e capitulação de Paris.
e, talvez, transmitida ao Papa.
18 de março de 1871: grande levante
popular e reino do terror em Paris.
22 de janeiro-15 de maio de 1871:
“Lei das Garantias”, aprovada pelo
governo italiano para fixar as relações
com o papado.
21-28 de maio de 1871: término da
“Comuna” de Paris.
23 de abril de 1872: a revista La Civiltà Cattolica
publica alguns fragmentos da profecia. Não se
conserva a cópia manuscrita da profecia.
1o de março de 1874: padre Berto faz uma cópia
das profecias de 1870-1873, contendo: 1) profe-
cia de 1870, com a mensagem a Pio IX; 2) profe-
cia de 1873, do autógrafo existente de Dom Bos-
co; 3) mensagem para o imperador da Áustria,
de 1873, do autógrafo existente de Dom Bosco.
1o de março de 1874: Dom Bosco acrescenta ao
texto do padre Berto, da profecia de 1870, algu-
mas anotações marginais e esclarecimentos adi-
cionais sobre 14 frases da profecia.
1o de abril de 1874: a este apêndice, Dom Bosco
acrescentou um novo, o décimo quinto esclare-
cimento. Assim, autenticado por Dom Bosco,
este é o primeiro texto conservado por inteiro da
profecia de 1870.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Primeira profecia (5 de janeiro de 1870)10

Introdução
Só Deus pode tudo, conhece tudo, vê tudo. Deus não tem nem passado
nem futuro; para Deus, nada há de oculto; todas as coisas são-lhe presentes.
Nada lhe passa inadvertidamente. Para Ele, não existe distância de lugar ou
de pessoa. Só Ele, em sua infinita misericórdia e para sua glória, pode mani-
festar aos homens as coisas futuras.

Na véspera do corrente ano de 1870, desapareceram todas as coisas materiais


do meu quarto, e eu me vi diante da consideração de coisas sobrenaturais. Foi
algo que durou breves instantes, mas foram muitas as coisas que vi. Embo-
ra de formas e aparências sensíveis, não podem ser comunicadas aos outros,
a não ser com muita dificuldade, com sinais exteriores ou sensíveis. O que
segue poderá dar uma ideia disso. Encontra-se em tudo a Palavra de Deus
adaptada à palavra do homem:

Profecia
“Do sul vem a guerra, do norte vem a paz.”
[Primeira parte. Contra a França e Paris]
As leis da França já não reconhecem o Criador e o Criador se fará conhe-
cer e a visitará três vezes com a vara do seu furor.
A primeira abaterá sua soberba com as derrotas, o saque e os danos nas
colheitas, nos animais e nos homens.
Na segunda, a grande prostituta da Babilônia, aquela que, suspirando,
os bons chamam de o prostíbulo da Europa, ficará sem chefe e será entregue
à desordem.
Paris! Paris! Em vez de armar-te com o nome do Senhor, rodeias-te de
casas de imoralidade. Elas serão destruídas por ti mesma: teu ídolo, o Pan-
teão, será reduzido a cinzas, para que se cumpra o que está escrito: mentita est
iniquitas sibi (a iniquidade enganou-se a si mesma: Sl 26,12). Teus inimigos
encher-te-ão de angústia, de fome, de espanto e haverão de te converter em
abominação das nações. Mas ai de ti se não reconheces a mão que te fere! Que-
ro castigar a imoralidade, o abandono, o desprezo da minha lei, diz o Senhor.

MB X, 57ss. Os cursivos entre parêntesis são as anotações marginais de Dom Bosco na cópia
10

do padre Berto, 1o de março de 1874.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Na terceira, cairás sob mão estrangeira: de longe, teus inimigos verão


teus palácios incendiados, tuas casas convertidas em montões de ruínas, ba-
nhadas no sangue de teus heróis, que já não existem.
[Segunda parte. Entreato: encontro do “Guerreiro do Norte” com o
“Ancião de Roma”]
Entretanto, eis que um grande Guerreiro do Norte carrega um estandar-
te; sobre a direita que o sustenta está escrito: “A mão do Senhor é irresistível”.
Naquele instante o Venerado Ancião do Lácio foi ao seu encontro agitando
uma tocha de intensíssima luz. Então, abriu-se o estandarte e, de negro que
era, ficou branco como a neve. No centro do estandarte estava escrito com
caracteres de ouro o nome d’Aquele que tudo pode. O Guerreiro e os seus
[acompanhantes] fizeram uma profunda inclinação ao Ancião e apertaram-se
as mãos [dom Carlos e o Papa].
[Mensagem anexa para Pio IX. Autógrafo de Dom Bosco]
E disse em seguida: Agora a voz do Céu dirige-se ao Pastor dos pastores
[Pio IX]. Tu estás, agora, na grande assembleia com teus assessores [Vaticano
I]; mas o inimigo do bem não tem um momento de descanso; estuda e prati-
ca todo tipo de falsidades contra ti. Semeará a discórdia entre teus assessores;
suscitará inimigos entre meus filhos. [As graves frustrações de Pio IX durante o
Concílio Vaticano I.] As potências do século vomitarão fogo e desejariam que as
palavras fossem sufocadas nas gargantas dos guardiões da minha lei. Isso, po-
rém, não acontecerá. [Isso já fora tentado e ainda se estava tentando, especialmente
na Prússia.] Agirão mal, mas em prejuízo de si mesmos. Quanto a ti, apressa-te;
se as dificuldades não se resolverem, sejam eliminadas. Se te sentes angustiado,
não te detenhas; ao contrário, persiste até que a cabeça da hidra do erro seja
cortada [por meio da proclamação do dogma da infalibilidade papal].
Este golpe fará tremer a terra e o inferno, mas o mundo recobrará a se-
gurança e os bons se alegrarão. Conserva, então, junto de ti, ainda que sejam
apenas dois assessores, mas aonde quer que fores, vai adiante e conclui a obra
que te foi confiada [o Concílio Vaticano I].
Os dias correm velozmente e teus anos aproximam-se do número esta-
belecido; mas a grande Rainha será sempre o teu auxílio e, como nos tempos
passados, também no futuro será sempre o teu auxílio e magnum et singulare
in Ecclesia praesidium (grande e singular ajuda da Igreja).
[Terceira parte. Contra a Itália e Roma]
Quanto a ti, Itália, terra de bênçãos, quem te mergulhou na desolação?
Não digas que foram teus inimigos, mas sim teus amigos. Não vês que teus

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

filhos pedem o pão da fé e não encontram quem o distribua para eles? Que
farei? Ferirei os pastores, dispersarei o rebanho, para que os que se sentam
na cátedra de Moisés busquem boas pastagens e a grei ouça docilmente e se
alimente. [Provável alusão ao ensino religioso deficiente.]
Minha mão, porém, cairá sobre o rebanho e sobre os pastores; a carestia,
a peste, a guerra farão com que as mães chorem o sangue dos filhos e dos
esposos mortos em terra inimiga. [Provável alusão ao ano de fome; seguirão a
peste e a guerra.]
E o que será de ti, Roma? Roma ingrata, Roma efeminada, Roma soberba!
Chegaste a tal ponto de insensatez que não buscas nem admiras outra coisa
em teu Soberano a não ser o luxo, esquecendo que tua glória e a dele estão no
Gólgota. Agora, ele é velho, decrépito, inerme, despojado [Situação atual do
papa]; todavia, embora humilhado, faz tremer o mundo todo com sua palavra.
Roma... eu virei quatro vezes sobre ti!
Na primeira, ferirei tuas terras e seus habitantes.
Na segunda, levarei a ruína e o extermínio até tuas muralhas. Nem se-
quer abrirás os olhos?
Virei a terceira vez, abaterei defesas e defensores [A situação atual em Roma]
e, à ordem do Pai, começará o reinado do terror, do assombro e da desolação.
Meus sábios, porém, fogem [Muitos vivem distantes de Roma, muitos são
obrigados a dispersar-se]; minha lei, contudo continua a ser transgredida; por
isso farei uma quarta visita. Ai de ti, se minha lei continuar a ser letra morta
para ti!
Haverá prevaricações entre os sábios e entre os ignorantes. [Aconteceu e
está a acontecer.]
Teu sangue e o de teus filhos lavarão as manchas que deixastes na lei de
teu Deus. [Parece aludir a um desastre futuro.]
A guerra, a peste, a fome são os flagelos com que serão castigadas a so-
berba e a malícia dos homens. [Resume o que diz em outro lugar.] Onde estão,
ó ricos, as vossas magnificências, as vossas vilas, os vossos palácios? [Veremos!]
Converteram-se em lixo em vossas praças e ruas.
Vós, porém, sacerdotes, por que não correis a chorar entre o vestíbulo e
o altar, invocando a suspensão dos flagelos? Por que não tomais o escudo da
fé e não pregais desde os telhados, e nas casas, nas ruas, nas praças, e também
nos lugares inacessíveis? Ignorais que esta é a terrível espada de dois gumes
que abate os meus inimigos e libera a ira de Deus e dos homens?
Estas coisas haverão de acontecer inexoravelmente, uma após a outra.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Conclusão
As coisas caminham muito lentamente. Mas a Augusta Rainha do Céu
está presente. O poder de Deus está em suas mãos. Dissipa os seus inimigos
como a névoa. Reveste o Venerado Ancião de todas as suas antigas insígnias.
Dar-se-á, também, um violento furacão. A iniquidade consumou-se, o
pecado terá fim e, antes que passem dois plenilúnios do mês das flores, apa-
recerá sobre a terra o arco-íris da paz.
O grande Ministro verá a esposa do seu Rei revestida para festa. No
mundo todo aparecerá o sol, tão luminoso como jamais existiu desde as cha-
mas do Cenáculo até hoje, nem se voltará a ver até o fim dos tempos.

Esclarecimentos11
1. “Do Sul vem a guerra (…)”. Da França, que declarou guerra à
Prússia.
2. “(...) do Norte, vem a paz.” Do norte da Espanha, onde começou a
atual guerra (carlista). Além disso, dom Carlos residia em Viena,
que está a norte da Itália.
3. “O Panteão será reduzido a cinzas!” Os jornais contemporâneos di-
ziam que fora danificado com várias bombas. O que se refere à
França, porém, ainda não se realizou totalmente.
4. “Eis que aparece aqui um grande Guerreiro (...).” Dom Carlos [que
chega] do norte da Espanha.12
5. “O venerado Ancião de Roma foi ao seu encontro, levando uma tocha
de intensíssima luz.” A fé em Deus, que orienta e sustenta o grande
Guerreiro em suas empresas.
6. “Então, o estandarte se fez maior ainda e, embora negro, tornou-se
branco como a neve (...).” Cessou o massacre: a “cor negra”, símbo-
lo da morte ou, melhor, a perseguição, como a Kulturkampf.
7. “(...) No centro do estandarte, com caracteres de ouro, está escrito o
nome do Todo-poderoso.” Dizem os jornais que na bandeira de dom
Carlos está pintado o Coração de Jesus de um lado e, do outro, a
Imaculada Conceição.

Em 1o de março de 1874, Dom Bosco escreveu numa folha à parte 15 “esclarecimentos” à


11

profecia de 1870.
12
Mais tarde, padre Berto, parece, acrescentou uma pergunta e estas palavras: “Não! O impera-
dor Guilherme [I] da Prússia” [Amadei]. Isso reflete a ideia (surgida em Dom Bosco?) de que não dom
Carlos, mas Guilherme I pudesse ser o “Guerreiro do Norte”.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

8. “(...) Mas, para onde quer que fores (...).” Parece referir-se ao des-
terro do Pontífice, o imortal Pio IX. Veja-se a segunda profecia;
9. “(...) as mães choram o sangue dos filhos (…) derramado em terra
estrangeira.” Isto ainda deve acontecer.
10. “(...) Farei uma quarta visita.” A quarta visita a Roma ainda há de
acontecer.
11. “(...) Produzir-se-á um violento furacão.” Veja-se a profecia seguin-
te. Faz-se alusão ao temporal, descrito ali por extenso.
12. “(…) Antes que passem dois plenilúnios do mês das flores.” Neste ano
de 1874, o mês de maio tem dois plenilúnios. Um no dia primeiro
e outro no dia 31 do mesmo mês.
13. “(...) O arco-íris da paz (...).” Uma esperança, que parece começar
a se realizar na Espanha hoje, 1o de março de 1874.
14. “No mundo todo aparecerá um sol, tão luminoso...” Triunfo e expan-
são do cristianismo.
[Em 1o de abril, Dom Bosco acrescentou um último esclarecimento.]
15. “(...) Na mão direita (do Guerreiro) está escrito IRRESISTÍVEL é
a mão do Senhor!” Dizem os jornais que dom Carlos iniciou suas
empresas com 14 homens, sem armas nem dinheiro nem víveres
e que, contudo, conta hoje, 1o de abril de 1874, com um exército
de mais de 100 mil soldados. E não se sabe que até agora tenha
perdido alguma batalha.
Segunda profecia (24 de maio-24 de junho de 1873)

[Triste e terrível fuga de Roma - 200 dias de viagem]

Era uma noite escura (o erro) e os homens não podiam distinguir o cami-
nho a seguir para regressar aos seus países. De repente, apareceu no céu uma
luz esplendorosa (a fé em Deus e no seu poder) que iluminava o caminho como
se fosse meio dia. Viu-se naquele momento uma multidão de homens, mu-
lheres, velhos, crianças, frades, monjas e sacerdotes, com o Pontífice à frente
(parece referir-se à dispersão de conventos, colégios e escolas, e depois, ao Pontífice),
que saíam do Vaticano, colocando-se em filas como para uma procissão.
Eis, porém, que se desencadeou um intenso temporal, encobrindo um
pouco aquela luz, e parecia travar-se uma batalha entre a luz e as trevas.13
13
Aqui, um acréscimo marginal a lápis diz Dogali [Amadei]. Em Dogali, pequena localidade a
cerca de 50 quilômetros de Massaua, Eritreia, 500 soldados italianos sofreram uma emboscada e foram
mortos, em 1887 [Aldo Giraudo].

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Dom Bosco: história e carisma 2

(Pode ser que se trate do combate entre o erro e a verdade, ou também de uma
guerra sangrenta.)
Enquanto isso, a longa procissão chegou a uma pequena praça, coberta
de mortos e feridos, alguns dos quais pediam ajuda em voz alta. As filas que
formavam a procissão iluminaram-se bastante.
Depois de caminhar pelo tempo correspondente a 200 saídas do sol, to-
dos perceberam que já não estavam em Roma. O desalento invadiu o espírito
de todos, que se agruparam ao redor do Pontífice, para defendê-lo e assisti-lo
em suas necessidades.
[Entreato: dois anjos entregam um estandarte ao Papa]
Nesse momento, foram vistos dois anjos que traziam um estandarte e o
apresentaram ao Pontífice, dizendo: “Recebe o estandarte d’Aquele que com-
bate e dispersa os mais fortes exércitos da terra. Teus inimigos desapareceram
e teus filhos imploram teu retorno com lágrimas e gemidos”.
Fixando o olhar no estandarte, via-se escrito, de um lado: Regina sine
labe Concepta (Rainha concebida sem pecado), e, de outro: Auxilium Chris-
tianorum (Auxiliadora dos Cristãos).
O Pontífice tomou com alegria o estandarte, mas afligiu-se muito ao ver
os poucos que ficaram a seu lado.
[Ordem ao Papa e a viagem de volta de 200 dias]
Os dois anjos acrescentaram: “Vai dominar imediatamente os teus fi-
lhos. Escreve aos teus irmãos dispersos pelas diversas partes do mundo, que
é necessária uma reforma nos costumes dos homens. Isso já não pode ser
obtido senão repartindo entre os povos o pão da divina palavra. Catequiza
as crianças, prega o desapego das coisas da terra. É chegado o momento,
concluíram os anjos, em que os pobres serão evangelizadores dos povos. Os
levitas serão buscados entre a enxada, a pá e o martelo, a fim de cumprirem as
palavras de Davi: Deus levantou o indigente da terra para colocá-lo no trono
dos príncipes de seu povo”.
Ouvido isso, o Pontífice pôs-se em movimento e as filas da procissão
começaram a engrossar-se. Quando pôs o pé na Cidade Santa começou
a chorar diante da desolação dos cidadãos, muitos dos quais já não exis-
tiam. Ao entrar em São Pedro, entoou o Te Deum, ao qual respondeu um
coro de anjos cantando: “Gloria in excelsis Deo, et in terra pax hominibus
bonae voluntatis” (Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de
boa vontade).

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

[Conclusão: esperança]
Terminado o canto, a escuridão desapareceu totalmente e brilhou um
sol esplendoroso.
As cidades, os povoados, os campos tinham a população diminuída, a
terra estava como que arrasada por um furacão, pela borrasca e pelo granizo,
e as pessoas dirigiam-se umas às outras comovidas e dizendo: “Est Deus in
Israel” (Há um Deus em Israel).
Do início do desterro até o canto do Te Deum o sol saiu 200 vezes. O
tempo transcorrido para o cumprimento dessas coisas durou 400 dias.
[Segunda conclusão: inspiração profética do vidente e uma predição]
A pessoa que comunicou estas notícias é a mesma que predisse os acon-
tecimentos da França um ano antes, que se cumpriram literalmente. Em
muitos lugares liam-se essas predições que se cumpriam dia após dia, como se
fossem escritas num jornal depois dos fatos.
Segundo a mesma pessoa, a França, a Espanha, a Áustria e uma potência
da Alemanha seriam eleitas pela divina Providência para impedir a ruína social
e trariam paz à Igreja, combatida de muitas maneiras há muito tempo. Os fatos
começariam na primavera de 1874 e sua duração seria de um ano e alguns me-
ses, desde que não se oponham novas iniquidades à vontade de Deus.
Terceira profecia (julho de 1873)
Isto diz o Senhor ao imperador da Áustria: “Coragem! Olha para meus
servos fiéis e para ti mesmo. Meu furor se lança sobre todas as nações da terra,
porque se quer fazer esquecer a minha lei, levar em triunfo os que a profa-
nam, oprimir os que a cumprem. Queres ser a vara do meu poder? Queres
realizar meus arcanos desígnios e vir a ser o benfeitor do mundo? Apoia-te
nas potências do Norte, mas não na Prússia. Estabelece relações com a Rússia,
mas nada de alianças. Associa-te à França católica; depois da França, terás a
Espanha. Une-as num só espírito, num só combate!”.14
Máximo segredo com os inimigos do meu santo Nome. Com prudência
e energia, chegareis a ser invencíveis. Não creias nas mentiras de quem te diz o
contrário. Abomina os inimigos do Crucificado. Espera e confia em mim, que
sou o doador das vitórias aos exércitos, o salvador dos povos e dos Soberanos.
Amém. Amém.

Padre Berto acrescentou esta nota: “Esta profecia coincidia com a situação política na Europa
14

nesse ano. Mais tarde, as coisas mudaram muito para a França e para a Prússia” [Amadei].

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Dom Bosco: história e carisma 2

Esta carta foi enviada ao imperador da Áustria no mês de julho, por


meio de uma pessoa de confiança, que a entregou pessoalmente. O soberano
leu-a atentamente e enviou seu especial agradecimento a quem lha remetera,
dizendo que a teria em grande consideração.15

3. Cartas de Dom Bosco no mesmo período (1870-1873)


Chegaram até nós algumas cartas de Dom Bosco desse período, que testemu-
nham suas opiniões e esperanças na esteira dos acontecimentos políticos de 1870.

Carta ao cardeal José Berardi (29 de outubro de 1870)16


A carta faz referência à profecia de 1870 e ao possível papel do rei
(imperador) Guilherme I da Prússia.
29 de outubro de 1870.
Eminência Reverendíssima:
(1) A folha anexa vem de alguém que, em outra ocasião, demonstrou ter ilus-
trações sobrenaturais; eu a levei comigo a Roma neste inverno.
(2) Algumas coisas já foram ditas de passagem ao Santo Padre, mas não me
atrevi a deixar-lhe o escrito. Agora, que sua bondade me pede para falar claro
e explícito, sem deixar nada, eu me encorajo a enviá-lo [ao senhor]. Há outras
coisas que não se podem confiar ao papel e que poderão ser ditas oralmente
com o sigilo que a matéria requer. Se alguma coisa pode parecer obscura, veria
como dar a devida explicação. S. E. sirva-se dela como quiser; peço-lhe apenas
que, por motivos fáceis de supor, não diga o meu nome de modo algum.
(3) Se eu tivesse uma pessoa de confiança e discreta para enviar uma mensa-
gem ao rei da Prússia, teria certamente mais coisas a dar-lhe a conhecer, que
lhe poderiam ser agradáveis.
Dê-nos sua Santa Bênção.17

[Padre João Bosco]

15
Aqui Dom Bosco acrescentou o nome da pessoa de confiança: condessa Lutzow. Ver comen-
tário final de Amadei em MB X, 64.
16
Epistolario III Motto, 267-268, já editada no Epistolario II Ceria, 127, e em MB IX, 828.
Pensou-se que a carta fosse dirigida ao cardeal Bilio.
17
As Memórias Biográficas completam: “Como um tema acrescentado a estas predições”, garante
padre Berto, “Dom Bosco declarou: ‘Estourará uma revolução. Haverá apostasias entre sábios e igno-
rantes, a Prússia se converterá. Depois, seguirá uma grande vitória para a Igreja e um grande triunfo
para o Papa’” (MB IX, 829).

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

O alguém do primeiro parágrafo é, obviamente, Dom Bosco. O “escrito”


entregue ao cardeal Berardi, como parece, é a transcrição da visão profética
de 5 de janeiro de 1870.
Ficamos sabendo pelo segundo parágrafo que, na audiência papal, data-
da agora em 8 de fevereiro, Dom Bosco nada transmitiu ao Papa nem tam-
pouco lhe deixou o manuscrito. Contudo, como Pio IX havia expressado seu
desejo de saber mais, Dom Bosco enviava uma cópia ao cardeal para que a
utilizasse como achasse melhor, obviamente também para que a apresentasse
a Pio IX.18
O rei da Prússia, terceiro parágrafo, era Guilherme I, o Vitorioso, que
derrotou a Áustria, em 1866, e a França, em 1870-1871. Essa vitória abriu
caminho para a federação alemã em que reinou como imperador até 1888.
De acordo com padre Berto, como citado nas Memórias Biográficas, Dom
Bosco prevê a conversão da Prússia, seguida do triunfo da Igreja.
Nesse cenário, ele pode ter considerado, em 1870, a possibilidade de
Guilherme I ser o “Guerreiro do Norte” da profecia, que devolveria ao “vene-
rável Ancião do Lácio” (o Papa) os seus legítimos domínios. Parece que Dom
Bosco não contava com o temível Otto von Bismarck e sua Kulturkampf. Por
outro lado, em 1873, em sua mensagem a Francisco José I da Áustria, Dom
Bosco convidava o imperador a liderar a contrarrevolução, como o “Guerrei-
ro do Norte”. Os dois governantes são do norte geográfico.
Entretanto, em suas anotações, de 1874, à profecia de 1870, Dom Bosco
fala de “dom Carlos” como possível “Guerreiro do Norte”. Referia-se a Carlos
Maria das Dores de Bourbon e Áustria-Este, duque de Madri (1848-1909).

Em relação às audiências papais durante a permanência de Dom Bosco em Roma (20 de


18

janeiro-23 de fevereiro de 1870), Francis Desramaut, “Le récit de l’audience pontifical du 12 février
1870 dans les Memorie Biografiche de Don Bosco”, RSS 6:1 (1987), 82-104, corrigiu as datas de Berto
e de Lemoyne. A data 8 de fevereiro para a primeira audiência é certa. Quando Berto apresentou o
autógrafo de Dom Bosco, “Mensagem a Pio IX”, situou-a em 12 de fevereiro, data do envio da pro-
fecia ao Papa. Lemoyne deduziu que se tratava da data da audiência em que Dom Bosco apresentou
a profecia ao Santo Padre. Contudo, em sua carta de 29 de outubro ao cardeal Berardi, Dom Bosco
especifica que, mesmo tendo uma cópia da profecia com ele em Roma, não a apresentou ao Papa.
A data mais provável em que a cópia da profecia enviada a algumas pessoas muito importantes de
Roma (não ao Papa) chegou às mãos de um diretor da Civiltà Cattolica é, segundo Desramaut, 12 de
fevereiro. Uns dois anos depois, a revista dos jesuítas publicou um artigo sobre mensagens proféticas,
referindo-se (anonimamente) à profecia de Dom Bosco. Assinalava que a profecia fora feita antes dos
acontecimentos da guerra franco-prussiana e a tomada de Roma e (com reservas) tinha-se realizado
nesses acontecimentos [“Os vaticínios e os nossos tempos, segunda parte”, Civiltà Cattolica, Série VIII,
6: 525 [23 de abril de 1872], 303-304]. Desramaut também prescinde da terceira audiência de 23 de
fevereiro, de Lemoyne, e das datas de uma segunda audiência em 15 de fevereiro, quando Dom Bosco
apresentara a “Mensagem a Pio IX”, por escrito e verbalmente.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O quarto pretendente carlista ao trono espanhol, com o título de Carlos VII,


era o filho mais velho do terceiro pretendente carlista, dom João de Bourbon.
Dom Carlos, duque de Madri, provocou uma sangrenta guerra civil (1872-
1876), que obteve sucessos no norte da Espanha. Derrotado, exilou-se depois
que Afonso XII assumira o trono em 1874. Além das considerações políticas,
os carlistas representavam a posição católica mais conservadora contrária à
evolução liberal na Espanha.19

Carta ao cardeal José Berardi (11 de abril de 1871)20


Turim, 11 de abril de 1871
Eminência:
O bispo Manacorda foi portador de boas notícias, e alegramo-nos por sa-
ber que sua Eminência passa bem, porque estávamos muito preocupados.
Podemos, então, dar graças ao Senhor porque, em meio à agitação pública,
encontra-se em bom estado de saúde e capaz de trabalhar pelo bem da Igreja.
Como me agradaria ter notícias reconfortantes para transmiti-las mediante
esta carta, mas lamentavelmente só tenho notícias penosas. Entretanto, uma
pessoa que, às vezes, no passado foi favorecida com luzes extraordinárias é
quem nos dá a certeza de que a atual situação em Roma não perdurará além
do ano em curso.
Em maio, a estrela da manhã vai aparecer e nos mostrará de onde podemos
esperar alcançar a salvação. Na Assunção de Maria, todas as pessoas de boa
vontade haverão de alegrar-se por causa da maravilhosa bênção recebida do
céu. Na festa da Imaculada Conceição, as solenes celebrações serão feitas na
paz. Nesse intervalo, porém, acontecerão coisas terríveis em Roma, como já
lhe indiquei numa carta anterior, que suponho tenha recebido.
Estes terríveis acontecimentos em Roma serão do tipo de saques da proprie-
dade sagrada e secular e da opressão das pessoas, que acabará em derrama-
mento de sangue e em vítimas.
Guiado por inspiração divina, o Santo Padre saberá o que fazer nessa situa-
ção. Contudo, para sua segurança pessoal e do seu povo, pode ser que deva
abandonar o Vaticano, embora regresse pouco tempo depois para ser o anjo
consolador dos aflitos e desesperados.
Quanto à causa desses males ou, mais exatamente, à razão pela qual Deus
permite essas terríveis calamidades, eu, no passado, já expressei minha crença
ao Santo Padre e a Sua Eminência. A razão deve ser buscada especialmente

19
Sobre o carlismo e dom Carlos, ver no Apêndice deste capítulo X, p. 305-307.
20
Epistolario III Motto, 320-322.

300

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

na grave carência de sacerdotes para repartir o pão da palavra divina tanto às


crianças quanto aos adultos. Em quatro quintas partes das cidades e povoados
da Itália não se oferece o ensino catequético a crianças ou adultos. Para que
serve, então, o Catechismus ad parochos? Todavia, em algumas dessas cidades
há uma multidão de sacerdotes que não fazem outra coisa que matar o tempo.
A este, acrescenta-se outro mal: a busca de uma boa vida [por parte dos pa-
dres], comer e beber, ganhar dinheiro cuja consequência é a impureza (do
sexto [mandamento]).
Há, sem dúvida, muitos sacerdotes que trabalham arduamente, como também
há muitos leigos fiéis e fervorosos. Porém, sua influência benéfica é praticamen-
te anulada pela maldade dos demais. Além disso, pregamos sobre as grandes
verdades do Evangelho, por exemplo, sobre o texto Quod superest date pauperi-
bus? [Dá aos pobres aquilo que sobra.] Quantos sacerdotes levam isso a sério?
Sinto-me obrigado, aqui, a correr uma cortina de silêncio sobre um assunto
delicado, porque não me atrevo a confiá-lo ao papel: o avanço da Maçonaria
em Roma.
Para o senhor pessoalmente, não tenho nenhuma mensagem, salvo que deve
ter cuidado com sua saúde e continuar a ser, como tem sido até agora, uma
ajuda sempre disponível ao Santo Padre. A pessoa que predisse sua promoção
acredita ter reconhecido um purpurado que, talvez, seja o mesmo [persona-
gem], nesta postura: o Santo Padre sentava-se numa colina e o cardeal em ou-
tra. Este estava separado daquele por uma espessa névoa que se fazia sempre
mais espessa. Enquanto isso, soprava um vento que agitava e espalhava a areia
na qual se sentava.
Estou, agora, completamente envergonhado por ter sido um charlatão! Peço-
-lhe dois favores: que me perdoe a liberdade tomada e faça esta folha em
pedaços depois de tê-la lido, e não fazer qualquer caso dela.
Além disso, quero garantir-lhe novamente que vamos rezar todos os dias pelo
senhor, pela família de seu irmão, especialmente pelo jovem maestro Caetano,
a quem apresentamos nossos melhores votos.
As coisas para nós caminham bem, tanto em relação ao número, quanto em
relação à observância religiosa. Contudo, entre outros problemas, estamos
sendo sobrecarregados além das forças. Recorde-nos amavelmente em suas
orações e continue a manter-nos sob sua segura proteção.
Com profundo respeito e gratidão, tenho a honra de ser o Servo mais fiel de
Sua Eminência,
Padre João Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A pessoa dotada de iluminação sobrenatural é a mesma pessoa da car-


ta anterior e da profecia de 1870, comentada anteriormente, ou seja, Dom
Bosco. Mais adiante, refere ao cardeal o que ele conhecia muito bem, isto é,
a situação ruim depois da tomada de Roma.
Esta carta foi escrita enquanto se debatia e estava para ser aprovada no
Parlamento italiano a Lei das Garantias. Apesar da afirmada liberdade para
o Papa, o governo italiano exigiu o direito de aprovar a nomeação de bispos
e pastores, e de expedir autorizações antes que pudessem tomar posse. Ao
mesmo tempo, foram impostas restrições opressivas. Interferia-se nos servi-
ços religiosos; negava-se aos católicos o direito de opinião, de reunião e da
celebração de procissões e outras manifestações públicas. Por outro lado, o
governo permitia livremente assembleias e manifestações anticlericais.
Ainda mais, em consonância com o programa de unificação jurídica, as leis
punitivas de Rattazzi, contra as congregações religiosas já formalmente aplicadas
ao Reino Unido da Itália em 1866 e 1867, estenderam-se também a Roma. Tema
sempre candente, na imprensa e nas ruas, essas leis entraram em vigor em 19 de
junho de 1873. Dado que muitas congregações religiosas tinham fundado casas
gerais em Roma, a aplicação dessa política pareceu ainda mais monstruosa.
Dom Bosco antecipa-se aos terríveis acontecimentos do período agosto-
-setembro de 1871: o saque e o derramamento de sangue como afirmara ao
cardeal em carta anterior. O saque pode referir-se à supressão prevista das
corporações religiosas e o confisco de seus bens. A observação sobre o derra-
mamento de sangue é mais misteriosa.
Dom Bosco temia que o Papa precisasse fugir de Roma. Nesse sentido,
sua profecia de 1873, dirigida a Pio IX, declara tal premonição com mais
ênfase ainda. Nela, Dom Bosco predissera a perseguição, o derramamento de
sangue e o afastamento do Papa de Roma à frente de uma multidão de ho-
mens, mulheres, crianças, monges, monjas e padres. Afortunadamente, essa
premonição não se cumpriu.
Dom Bosco encerra a carta com “uma visão” em que o cardeal e o Papa
aparecem contrapostos. A redação não é clara; tampouco seu significado. Tal-
vez Dom Bosco previsse a eleição do cardeal ao papado.

Carta a Pio IX (14 de abril de 1871)21


Em contexto político e religioso idêntico, estando para ser encerrado
o debate sobre a Lei das Garantias, Dom Bosco escreveu uma carta ao Papa
oferecendo apoio e consolo.
21
Epistolario III Motto, 322-323.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Turim, 14 de abril de 1871


Santo Padre:
O fato de o bispo Manacorda retornar a Roma oferece-me a grata oportuni-
dade de ajoelhar-me aos seus pés e expressar minha devoção filial à pessoa de
Sua Santidade, também em nome da Congregação Salesiana em seu conjunto
e de todos os jovens aos nossos cuidados.
Queremos garantir-lhe que com frequência ao longo de todo o dia, o nosso
pensamento voa ao Vaticano. Lamentamos a dolorosa condição imposta ao
nosso bom pai, embora não possamos oferecer-lhe outro consolo além das
nossas orações pessoais e em comum. Todos nós sacerdotes, clérigos, estu-
dantes e aprendizes, em conjunto com outros sacerdotes e leigos, oferecemos
pela manhã e à tarde orações especiais pela paz da Igreja e pela liberdade e
independência de sua cabeça.
Enquanto rezamos para que os tempos de prova se reduzam e que o Senhor
mostre rapidamente sua misericórdia, fazemos o possível para lutar contra a
impiedade. E o fazemos mediante a pregação, a imprensa e a difusão de bons
livros. Nossos livros são bem recebidos, não só tolerados. As Leituras Católicas
têm agora uma tiragem de 15 mil exemplares mensais, a Biblioteca de Jovens
Italianos, 5 mil.22
Cerca de 5 mil jovens estão matriculados em nossas escolas e se comportam
como bons cristãos e bons católicos.
Oxalá soubéssemos o que fazer para dar algum consolo a Sua Santidade. Es-
peramos que Deus satisfaça nossos desejos e escute nossas orações, e, antes
que termine este ano tenhamos a alegria de ver a Igreja em paz e render ho-
menagem ao seu supremo hierarca no Vaticano, senhor de si e da sua Igreja.
Contudo, há um tempo intermediário que, acredita-se, [será] muito difícil
para Roma e seus filhos. Deus, porém, dará a conhecer a seu Vigário o que
deve fazer e, em todo caso, tem-se como certo que V[ossa] B[eatitude] deverá
suportar dentro de pouco uma terrível tormenta, da qual verá o fim com um
triunfo que, talvez, não haja igual nos tempos passados.
Enquanto isso, nós continuamos a rezar. Dê-nos sua santa bênção, para que
possamos suportar as intensas provações que nos atormentam a cada dia.

22
La Biblioteca della Gioventù Italiana (Biblioteca da Juventude Italiana) era uma publicação
em série dos clássicos italianos, editada para ser usada nas escolas. Foi lançada em 18 de novembro
de 1868. Como parte de sua política editorial, Dom Bosco pensava que “os clássicos que tratam de
matéria ofensiva à religião ou aos bons costumes devem ser apresentados expurgados ou totalmente su-
primidos, sem importar o quanto sejam suas credenciais” [MB IX, 427]. Depois de conseguir iniciar a
série, Dom Bosco nomeou o padre Celestino Durando como seu editor-chefe. A publicação continuou
até 1885 e chegou ao seu fim com a publicação do volume 204. Os trabalhos escolhidos representam
cerca de 100 autores que vão do século XIII ao século XIX.

303

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em sua bondade, permita-me estas expressões de devoção filial. Todos nós


estamos prontos e dispostos a sacrificar [nossos] bens e nossas vidas pela Re-
ligião Católica da qual Sua Santidade é Vigário de Cristo na terra e Chefe
Supremo nomeado por Jesus Cristo. Amém.
De Sua Santidade mais afetuoso, agradecido e devoto filho,
Padre João Bosco.
Superior da Congregação de São Francisco de Sales.

A “dolorosa condição”, imposta ao Papa, mencionada por Dom Bosco,


refere-se à sua prisão no Vaticano. O governo italiano deixara-lhe apenas o con-
trole do Vaticano, do Latrão e da vila de Castelgandolfo; era o que restava dos
Estados Pontifícios. Aparentemente, há, mais adiante, a crença de que uma gran-
de prova esperava pelo Papa, que, no entanto, não se prolongaria além de 1871.
Estas cartas, não menos do que as manifestações “proféticas” tratadas an-
teriormente, deixam-nos perplexos. Mostram-nos um Dom Bosco que reza e
sofre pela situação política e religiosa criada pela Revolução Liberal na Itália
e a unificação da Itália com a tomada de Roma. Parece que se esperava, ou
desejava, uma espécie de contrarrevolução que restaurasse o Papa (a Igreja),
depois de um período de perseguição e de grande sofrimento.
Até o dia de sua morte, Dom Bosco continuou a esperar a restauração
dos direitos do Papa. Carlos Maria Viglietti, que assistiu Dom Bosco du-
rante a última enfermidade, assinala em sua crônica, algo parecido a uma
contrarrevolução: “Dom Bosco disse repetidamente: eu espero com grande
apreensão os importantes acontecimentos de 1888 a 1891”.23 Expressou-se
com maior clareza algum tempo depois:

Nesta manhã, depois de ter lido os jornais, Dom Bosco disse: “Espera e verás
que será formada uma grande cruzada contra os revolucionários, se não no mo-
mento do jubileu do Papa, sem dúvida em algum momento do futuro próximo.
Não pode ter nenhum derramamento de sangue, mas eles estão entre a espada
e o muro e se verão obrigados a devolver ao Papa o que é dele por direito”.24

Não é fácil perceber a inspiração e o processo que estavam na origem e


eram a raiz da total recusa de Dom Bosco ao movimento que se iniciava no
mundo moderno e na Europa. Sua agonia pelo desaparecimento da velha or-
dem obrigou-o à condenação dos acontecimentos, a uma compreensão apoca-
líptica e a estranhos oráculos.

23
C. M. Viglietti, Cronaca, 215 [2 de setembro de 1887].
24
C. M. Viglietti, Cronaca, 220 [27 de setembro de 1887].

304

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Apêndice

DOM CARLOS DE BOURBON (1848-1909)

Ao procurar identificar o “Guerreiro do Norte” da profecia de 1870,


Dom Bosco pensou primeiramente em Guilherme I da Prússia (1870), de-
pois, no imperador austríaco Francisco José II (1873) para, enfim, em suas
anotações de 1874, pensar em dom Carlos, duque de Madri.

Quem foi dom Carlos?


A oposição política espanhola ao liberalismo espanhol cristalizou-se na
década de 1830 num movimento político conservador de caráter intensa-
mente tradicionalista denominado carlismo, por se ter concentrado ao redor
da pessoa de Carlos Maria Isidoro de Bourbon, conde de Molina (1778-1855),
irmão mais novo do rei Fernando VII.
À morte de Fernando VII, levantou-se a questão da sucessão ao trono. Os
dois pretendentes eram Isabel, filha de Fernando VII, e dom Carlos, irmão do
rei. Para afirmar o direito de suceder ao irmão, dom Carlos invocava a Lei Sáli-
ca, introduzida na Espanha por Felipe V em 1713, que excluía as mulheres da
sucessão real. Essa lei, porém, fora modificada pela pragmática sanção, de 1789,
utilizada por Fernando VII para garantir a sucessão de sua jovem filha, nascida
em 10 de outubro de 1861. Os carlistas negavam a validade dessa lei. A disputa
pela sucessão e suas conotações ideológicas provocaram uma série de guerras
entre os partidários de Carlos (carlistas) e os de Isabel (isabelinos).
Na linha sucessória dos carlistas, em 1868, o direito de sucessão passou a
dom João Carlos Maria das Dores de Bourbon e Áustria-Este, duque de Ma-
dri (1848-1909).25 Em 1874, foi neste dom Carlos que Dom Bosco acreditou
ver o “Guerreiro do Norte”.
25
Durante o século XIX, os carlistas recorreram frequentemente à rebelião armada. Entraram
na Segunda Guerra Carlista, sem sucesso, na década de 1840; em 1860, tentaram um golpe de Estado
que foi abortado; iniciaram uma nova guerra em grande escala nos anos 1872-1876 durante as revoltas
políticas que se seguiram à destituição de Isabel II, em 1868.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O dom Carlos de Dom Bosco


Dom Carlos, o pretendente Carlos VII, nasceu em 30 de março de
1848, em Leibach (Liubliana, Eslovênia, então parte do Império Austríaco).
Talvez este fato tenha feito Dom Bosco pensar nele como o “Guerreiro do
Norte”. Bisneto de Carlos IV (1788-1808), ele sucedeu ao pai como preten-
dente ao trono, depois de sua abdicação durante a revolução que, em 1868,
depôs Isabel II. Aproveitando a instabilidade política resultante, dom Carlos
reuniu suas forças e provocou uma sangrenta guerra civil, a terceira guerra
carlista (1872-1876). Embora tenha obtido alguns sucessos notáveis no norte
da Espanha, sua causa terminou com a subida ao trono de Afonso XII, filho
de Isabel II, em 1874.
Após a derrota de 1876, dom Carlos fugiu e converteu-se em exilado
permanente. Pôde retornar à morte de Afonso XII (1885) e, de novo, em
1898, num momento de insatisfação nacional após a derrota da Espanha na
guerra hispano-americana. Mas não foi capaz de agir. Depois de sua morte no
exílio (1909), em Varese (Itália), o partido carlista começou a declinar com a
chegada do catolicismo liberal à Espanha.

Dom Bosco e dom Carlos na Crônica de Barberis (1875)


Quando, em 1874, Dom Bosco identificou o “Guerreiro do Norte” com
dom Carlos, eram tempos de guerra civil (1872-1876) e seu exército tinha
obtido alguns sucessos no norte da Espanha. Barberis, escrevendo em 1875,
informa sobre uma conversa de Dom Bosco a respeito do tema:

[No refeitório, depois de uma ceia tardia] surgiu na conversa o tema de dom
Carlos. Alguém mencionou que o arcebispo Simeoni fora acreditado como
núncio papal em Madri na corte de Afonso [XII] (rival de dom Carlos), e
que esta nomeação seria muito prejudicial à causa carlista. Dom Bosco não
acreditava nisso, porque dom Carlos não considerava este ato da Santa Sé
contrário aos seus interesses e explicara o significado dele aos seus seguidores.
Em outras palavras, [dom Carlos] sabia que a Santa Sé era favorável à sua
causa, mas precisou nomear um núncio porque estavam para ser negociadas
questões de importância para a Igreja, tais como a garantia dos benefícios
aos bispos. “Esta é a verdadeira razão da nomeação”, disse Dom Bosco; e
continuou: “Quando estive em Roma no inverno passado, falei desse mesmo
assunto com o arcebispo Simeoni. Perguntei-lhe como iria tratar dos assuntos
em Madri [como núncio]. Disse-me que tinha dois tipos de credenciais do
Santo Padre, uma nominatim para dom Afonso, e outra em branco que seria

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

completada com o nome de quem estivesse no poder. Quanto a mim, desde


o princípio, sempre falei abertamente em apoio à causa de dom Carlos. Mas
quando percebi que em Roma se mantinham opiniões diferentes, tornei-me
muito mais prudente”.26

Em outra entrada de sua crônica de 1875, Barberis menciona as especu-


lações dos salesianos sobre a identidade de uma ilustre pessoa misteriosa espe-
rada para visitar o Oratório. Aos meninos foi dito que se lavassem e vestissem
as roupas melhores. A banda devia estar preparada para a recepção. Alguns
pensavam que poderia ser o príncipe Amadeu de Saboia, ou talvez o herdeiro
príncipe Humberto. Outros, porém, insistiam que poderia ser dom Carlos:
“Dom Carlos pode passar em sua viagem a Roma para ver o Santo Padre e, se
quiser, pode deter-se no Oratório [para ver Dom Bosco] [...]. O que não seria
nada estranho, dado que o próprio dom Carlos veio ao Oratório há quatro
anos”.27 Deu-se, enfim, que o ilustre visitante era o cardeal José Berardi.28

FORMAÇÃO DE UM MOVIMENTO CATÓLICO


CONSERVADOR NA ITÁLIA

Uma minoria bastante considerável de católicos italianos de certo nível,


depois de um período de sofrimento e espera, começou a pensar em alguma
forma de participar da vida política italiana. Com essa finalidade, ofereciam-
-se dois tipos de ação: 1o) aceitar a nova situação política com a ação e a luta
no seu interior (como faziam os católicos franceses e belgas) ou 2o) rechaçar a
nova situação política e criar um movimento de oposição em defesa da Igreja.
Optaram por este segundo modo de ação. Seu objetivo imediato era “trans-
formar a sociedade”, isto é, trabalhar para criar uma “maioria católica”, com
o objetivo último de recuperar o poder político.
Na década de 1860, com a inspiração e o estímulo de conservadores
como Luís Veuillot, Henry Manning e Gaspar Mermillod,29 e da Santa Sé,
eles se uniram num grupo de leigos católicos (Grupo de Bolonha). Puseram

26
Barberis, Cronaca, 2 de junho de 1875, caderno I, 43-44, FDB 833 E5-6.
27
Barberis, Cronaca, 5 de julho de 1875, caderno II, 31-32, FDB 834 C8-9.
28
O cardeal José Berardi era grande amigo de Dom Bosco e dos salesianos. Chegou incógnito, em
traje civil com dois jovens companheiros, em missão secreta. Hospedou-se num hotel e celebrou a missa na
catedral. Dom Bosco foi seu acompanhante constante nas visitas ao Oratório e a outros locais da cidade.
29
Louis François Veuillot (1813-1883) foi um influente escritor e periodista francês. Henry
Edward Manning (1808-1897) foi cardeal, arcebispo de Westminster. Gaspard Mermillod (1824-
1892) foi bispo de Genebra.

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Dom Bosco: história e carisma 2

as bases do que finalmente se converteria numa organização nacional em opo-


sição à criação do Estado liberal secular. O espírito ultraconservador, reacioná-
rio desses homens dominou em todas as associações católicas de meados dos
anos sessenta até o final do pontificado de Pio IX (1878). Durante os anos
de 1870 essa tendência ganhou impulso. Fazia parte de seu projeto retirar-se
da vida política italiana. Em 1868, Pio IX publicou o decreto Non Expedit,
que confirmou a política de não participação política dos católicos iniciada
em Turim pelo diário católico conservador L’Unità Cattolica, do padre Tiago
Margotti. Nas eleições políticas de 1874, o Papa declarou que a participação
dos católicos italianos seria “inoportuna e ilícita”.
Em 1871, os dirigentes da Associação da Juventude Católica pediam
a união dos “católicos italianos”. O primeiro Congresso foi celebrado em
Veneza em 1874; o segundo, em Florença em 1875, com um programa de
não participação e de oposição à vida política italiana. Nasceu, assim, a Obra
dos Congressos e dos Comitês católicos. Os Congressos iriam ser os responsáveis
pela maior parte da atividade católica organizada na Itália até 1904, quando
foram suprimidos por Pio X, tendo-se invertido a política de não participa-
ção política.
Quando todas as tentativas de reconciliação com o governo liberal de
esquerda fracassaram, Leão XIII (1878-1903) continuou a política de Pio IX.
Durante seu pontificado, o movimento católico italiano avançou constante-
mente em força e número; os católicos puderam passar de uma posição de-
fensiva, adotada em grande medida durante a segunda parte do pontificado
de Pio IX, a posições sempre mais agressivas. Embora ainda estivessem fora
do processo político e se abstivessem da participação nas eleições políticas, os
católicos do movimento participaram das eleições administrativas. Numerosos
líderes católicos conseguiram colocar-se em influentes postos administrativos.
Dom Bosco jamais se desviou de suas posições conservadoras. Mas, por
um instinto peculiar, jamais participou do movimento católico organizado
(Opera dei Congressi). Barberis revela a estratégia de Dom Bosco nesse tema.

Há algum tempo, o nosso padre [Celestino] Durando foi convidado pelas


associações católicas locais para ser seu delegado num congresso geral que
trataria de questões católicas. Dado que se dá muita publicidade aos nomes
dos delegados e ao congresso propriamente dito, Dom Bosco orientou padre
Durando a encontrar uma desculpa e declinar do convite que a maioria das
pessoas consideraria uma grande honra. Dom Bosco explicou: “Nós preferi-
mos trabalhar em silêncio e mais agir do que falar”.30

30
Barberis, Cronaca, 16 de março de 1876, caderno V, FDB 839 C11. ASC A0000105.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Os salesianos cooperadores, que Dom Bosco descreverá como “uma


forma concreta de contribuir para o progresso moral e civil da sociedade”,
puseram-se em ação neste momento como uma força católica para a renova-
ção da sociedade, mas sem um programa político.

DOM BOSCO E O PAPADO

A devoção de Dom Bosco ao Papa era para ele uma segunda natureza
desde a infância, por causa da cultura campesina piemontesa em que foi
criado, bem como da educação recebida de sua mãe Margarida Occhiena.
Quando se fala da devoção de Dom Bosco ao Papa, devoção que chegou
aos seus salesianos, não referimo-nos à sua infância, mas a uma espécie de
segunda conversão à qual chegou na maturidade. Motivos históricos, teoló-
gicos e eclesiológicos tiveram muito a ver com essa conversão, que precisa
uma explicação.
A educação de João Bosco no seminário não fez progredir significati-
vamente sua compreensão sobre a função do papado. Quando, mais tarde,
pôde refletir sobre sua experiência de seminário, percebeu que a ênfase no
ensino do seminário era colocada em questões teológicas especulativas, como
a predestinação e os novíssimos, mais do que na história da Igreja e na ecle-
siologia, que devia enfrentar o nacionalismo de igrejas locais (galicanismo e
josefinismo). Do mesmo modo, o ensino de teologia moral no seminário, a
prática pastoral e a vida espiritual foram marcados pelo rigorismo derivado,
em última análise, do jansenismo.31 As duas tendências foram enfrentadas
pelos jesuítas.
Nos tempos de Dom Bosco, quem se opunha ao rigorismo jansenis-
ta e ao galicanismo e se mantinha na tradição jesuítica e numa eclesiologia
centrada no papado, era denominado, pejorativamente, “ultramontano”. Era
esse o ambiente que prevalecia no Colégio Eclesiástico quando Dom Bosco
nele entrou em 1841. Dom Bosco, ali vivendo e estudando durante três anos
sob a direção do padre José Cafasso, professor residente de teologia moral e
pastoral e seguidor de Santo Afonso, foi capaz de afastar-se de todo vestígio
de rigorismo e “aprendeu a ser padre”, como ele declara. Mais decisiva para
compreender a devoção de Dom Bosco ao Papa foi, portanto, a nova compre-
ensão sobre a Igreja, a natureza e a função do papado que ali obteve. Como
padre Cafasso, seu mestre e diretor espiritual, Dom Bosco foi um conserva-
dor ultramontano.32

31
Ver volume 1, p. 318-324.
32
Ver volume 1, p. 360-363.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A Revolução Liberal e o movimento de libertação e unificação da Itália


(Risorgimento) teve o efeito de reforçar o compromisso de Dom Bosco com a
Igreja e o Papa. A Revolução Liberal supôs a secularização gradual da socieda-
de ao privar a Igreja dos privilégios tradicionais, com a supressão das ordens
religiosas e outras corporações eclesiásticas, o confisco de suas propriedades,
a apropriação da educação pública pelo Estado, a liberdade de imprensa e de
culto etc.
O movimento para a unificação da Itália como nação, além do objetivo
de expulsar as potências estrangeiras, levou à eventual usurpação pela força
dos Estados da Igreja que o papa Pio IX governava nesse momento como
soberano. A entrega voluntária do poder temporal do Papa estava fora de co-
gitação; o Papa, e todos os católicos ultramontanos, conservadores como ele,
acreditavam que o poder temporal (os Estados Pontifícios) era necessário para
o livre exercício do ofício espiritual do Papa como bispo da Igreja universal.
A unificação da Itália culminou quando Roma caiu, em 1870. Dom Bos-
co permaneceu sempre do lado do Papa, sem questionar. Esses acontecimentos
sociopolíticos não eram mais do que um aspecto da maior revolução intelec-
tual que se apoderara da Europa ocidental que, para aceitá-la, ou mesmo para
entendê-la, os católicos conservadores estavam mal-preparados. A fé cristã, a
teologia cristã e a filosofia cristã eram atacadas em todas as partes, especialmen-
te nas universidades.
O Concílio Vaticano I fora convocado com a finalidade de fortalecer a
Igreja diante da investida liberal. O fortalecimento da posição do papado seria
uma forma de alcançar essa finalidade. A infalibilidade papal, na opinião de
muitos, especialmente na cúria romana, também parecia dar apoio à autori-
dade do Papa, ou ao menos dotá-la de uma compensação pelas suas perdas e
pela diminuição do seu prestígio. Obviamente, os partidários da infalibilidade
do Papa invocavam tanto razões teológicas quanto sociopolíticas. O concí-
lio, como acontecimento eclesial, e a declaração da infalibilidade papal, em
particular, significaram um grande impulso para a moral e as esperanças dos
católicos conservadores, embora também polarizassem as facções existentes no
interior da Igreja, especialmente nos círculos teológicos franceses e alemães.
Dom Bosco declarou seu apoio tanto à infalibilidade papal como à sua
definição. Esteve em Roma durante o debate; atribui-se a ele ter persuadido
o arcebispo de Turim, dom Gastaldi, para que votasse a favor da definição.
Outros bispos do Piemonte, assim como da Alemanha e França, abandona-
ram o concílio antes da votação. Afirmavam não ser contrários à noção da
infalibilidade, mas pensavam que sua definição nessa forma era “inoportuna”.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Foram esses os acontecimentos que deram forma à eclesiologia e à visão


de Dom Bosco sobre o papado.
As forças históricas e as circunstâncias que modelaram o ponto de vista
de Dom Bosco sobre o papado, e que determinaram sua adesão ao Papa, fo-
ram superadas há muito tempo. O Concílio Vaticano II deu-nos uma nova
visão sobre a Igreja e o papado. Dom Bosco, porém, deixou-nos algo que não
foi superado e é de valor permanente. Ele não era filósofo ou teólogo, mas
historiador popular, autor de obras populares, como a História da Igreja, a
História da Itália e a Vida dos primeiros papas. Estava familiarizado com o pa-
pel histórico do papado e esforçou-se para destacá-lo em seus escritos. “Estar
com o Papa”, converteu-se para ele, concretamente, numa postura baseada na
fé, um requisito da tradição católica.
Apoiou a definição da infalibilidade pessoal do Papa pela mesma razão,
não tanto por uma razão política ou em força de uma reflexão teológica crí-
tica, mas por um instinto de fé pelo qual considerava o Papa como a rocha.
As táticas dos inimigos da Igreja tornaram seu compromisso ainda mais
firme. Dado que o povo, em geral, tem muito pouco conhecimento ou escas-
so interesse pelo dogma, os ataques dos inimigos não eram dirigidos à dou-
trina cristã (a religião católica), mas ao Papa; e não ao seu poder temporal,
mas ao papado como tal. Para os revolucionários radicais, como José Mazzini,
José Garibaldi e seus seguidores, Pio IX seria o último papa e, em seguida, a
própria Igreja se desmoronaria.
Como sucessor de Pedro, porém, o Papa era a rocha. E enquanto rocha,
ele garantia a fé do povo cristão, já que o povo buscava segurança em meio
à agitação intelectual, um ponto de apoio nos momentos de crise, por causa
precisamente da conduta histórica do papado. Era essa a convicção que fez de
Dom Bosco “báculo do Papa”.

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Capítulo XI

AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS.
PRIMEIRA ETAPA (1858-1867)

Já se comentou a respeito dos planos e das ações de Dom Bosco em vista


da fundação da Sociedade Salesiana (1854-1859) e sobre a elaboração dos
primeiros textos constitucionais (1858).1 Neste capítulo e nos seguintes,
centraremos nossa atenção no itinerário percorrido até a aprovação da Con-
gregação (1858-1874) e de suas Constituições.

1. A aprovação das Constituições na prática da Igreja


O Concílio de Latrão IV (1215) decretou que a vida religiosa só pode
ser professada numa das três antigas regras aprovadas: de São Basílio, de San-
to Agostinho e de São Bento. Contudo, os papas sucessivos interpretaram o
decreto de maneira não restritiva e aprovaram novas ordens e novas regras.
Dessa forma, a regra de São Francisco de Assis foi aprovada em 1223, chegan-
do logo à condição de quarta regra antiga.
Os fundadores de ordens religiosas, nos anos seguintes, tomaram por base,
normalmente, uma dessas antigas regras, adaptando-a ao seu modo peculiar de
vida e às exigências do tempo e lugar; e o fizeram por meio de um conjunto de
estatutos ou regulamentos especiais. De aí a distinção entre “Regra”, ou código
de vida segundo os modelos anteriores, e “Constituições”, estatutos, regula-
mentos, diretórios etc., em conformidade com requisitos próprios.
Com o tempo, foi concedida a algumas ordens religiosas a permissão de
serem governadas exclusivamente pela legislação própria, ou seja, pelas suas
constituições. Em tempos mais recentes, a experiência dos clérigos regulares de
São Jerônimo Emiliani e dos jesuítas abriu a época das constituições modernas

1
Ver volume 2, capítulo VII (3. Comentário dos textos e interpretação), p. 222-230.

312

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

e, com ela, o tempo das congregações modernas, diversas das antigas ordens.
Este período caracteriza-se pela ampla transformação e proliferação de congre-
gações religiosas e, portanto, de Constituições.

Reforma das Constituições


Por isso, a Santa Sé precisou estabelecer um modelo canônico único
para que, aos poucos, as novas Constituições assumissem uma conformação
jurídica comum.
A nova fase de regulamentação teve início com a reativação e multiplica-
ção da vida religiosa no século XIX, depois do fracasso da Revolução Francesa e
da época napoleônica. Tendo surgido a mesma questão de forma nova, Pio VII
e Gregório XVI tomaram medidas para a regulamentação da vida religiosa e de
suas Constituições, mas foi com Pio IX que se criaram normas mais amplas.
Até 1860, a Santa Sé ainda permitia uma considerável liberdade às con-
gregações religiosas para estabelecerem suas constituições. Em 1863, a Sagrada
Congregação dos Bispos e Regulares emitiu uma nova normativa, o Methodus;2
embora ainda não tivesse força de lei, foram estabelecidos procedimentos claros
para a aprovação de novas congregações religiosas de votos simples.3
Depois do Methodus surgiu uma série de diretrizes da Congregação dos
Bispos e Regulares, destinadas a esclarecer os procedimentos e responder às
dúvidas. A constituição do papa Leão XIII, Conditae a Christo (1900), se-
guida do decreto Normae secundum quas (1901), concluiu o período de re-
gulamentação iniciado com o Methodus. Mediante esta normativa, os novos
institutos religiosos ingressaram canonicamente no estado religioso; contudo,
para chegar à normalidade jurídica, foi preciso esperar a publicação do Códi-
go de Direito Canônico em 1917.

Etapas do processo de aprovação


Segundo o Methodus e as normas posteriores, o processo para aprovar
um novo instituto religioso constava de três etapas:
A primeira etapa consistia no exame da vida e da caminhada do Instituto
e de suas constituições, encerrando-se com o Decretum laudis (Decreto de
louvor). Era concedido: 1o, se houvesse transcorrido um período adequado

Ver o texto no Apêndice deste capítulo XI, p. 334-335.


2

É o período (1864-1874) em que Dom Bosco tentou a aprovação da sua Congregação e


3

das Constituições. Talvez não tenha percebido inteiramente a importância da reforma levada a efeito
por Roma nessa época. As dificuldades surgiram porque ele desejava uma congregação diferente dos
modelos canônicos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

de tempo desde a fundação do Instituto; 2o, se o Instituto crescera suficien-


temente com novas presenças em diversos lugares; 3o, se houvesse provas de
que o Instituto produzira bons frutos no povo cristão; e 4o, se o Instituto fora
recomendado pelos bispos das dioceses em que estabelecera sua obra.
O Decretum laudis não era uma aprovação, mas um ato de enaltecimen-
to e incentivo. A ele eram acrescentadas algumas Animadversiones, ou seja,
observações e orientações destinadas a melhorar o texto constitucional apre-
sentado, alinhando-o com a legislação e a prática da Igreja.
A segunda etapa levava ao Decretum approbationis Instituti (Decreto de
aprovação do Instituto), obtido depois de um tempo suficiente desde o Decre-
tum laudis. Para obtê-lo era preciso a apresentação prévia: 1o, de uma nova do-
cumentação sobre o trabalho e o êxito do Instituto; 2o, de um relatório sobre o
estado do Instituto; 3o, do texto constitucional revisto segundo as observações
apresentadas com o Decretum laudis e, 4o, de uma nova série de cartas testemu-
nhais dos bispos em cujas dioceses o Instituto atuava. Se necessário, faziam-se
outras observações para uma nova revisão do texto constitucional.
A terceira etapa levava ao Decretum approbationis Constitutionum (De-
creto de aprovação das Constituições). Este era concedido: 1o, depois de
cumpridas todas as observações feitas no decreto anterior e, 2o, se fosse com-
provada a estabilidade e o valor das Constituições (efetividade para a vida
religiosa e o apostolado). Isso requeria a apresentação de um novo conjunto
de documentos.
A aprovação podia ser ad experimentum, por um período de prova, em
geral com novas observações, ou definitiva. A carta testemunhal mais impor-
tante requerida pela Sagrada Congregação era, logicamente, a do ordinário
(bispo) em cuja diocese surgira e se desenvolvera o Instituto e onde se locali-
zava a casa mãe.
Note-se que não se mencionam “privilégios de isenção” como parte
do processo de aprovação. De fato, uma das principais razões para aplicar a
nova disciplina às congregações religiosas e suas constituições era a facilidade,
quase de forma rotineira, com que se obtinham as isenções em relação aos
ordinários. Um controle maior na obtenção de privilégios tornou-se mais
urgente quando a autoridade dos bispos se viu enfraquecida pelas políticas
dos Estados liberais. Após 1860, com Pio IX, e mais ainda durante o papado
de Leão XIII, a partir de 1870, os privilégios de isenção, incluindo parti-
cularmente a faculdade de expedir cartas dimissórias para a ordenação dos
candidatos, não foram mais concedidas de forma rotineira às congregações
clericais aprovadas. E, principalmente, não se podia incluir a disposição de
isenção nas constituições.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

Rascunho manuscrito das Constituições Salesianas enviado ao arcebispo


Luís Fransoni, no exílio (1860).

Etapas do processo de redação do texto constitucional de


Dom Bosco
Apesar da simplificação na apresentação, pode-se perceber o complexo
processo de redação, que teve 8 etapas.4

4
Motto estudou e classificou todos os textos de arquivo disponíveis das Constituições. Organi-
zou os textos em ordem cronológica e deu a cada um deles uma letra maiúscula romana (ou grega), por
ordem alfabética. Além disso, identificou o redator por uma letra minúscula acrescentada, por exem-
plo, r = Rua, b = Bosco, o = Boggero, s (de stampa, em italiano) = indica uma edição impressa. Em seu
estudo crítico dos documentos e da relação com as autoridades citadas (Giovanni Bosco, Costituzioni
della Società di San Francesco di Sales [1858] - 1875. Edizione critica di Francesco Motto. Roma:
LAS, 1982), Motto foi capaz de indicar 8 rascunhos que representam 8 pontos de chegada ou 8 etapas
sucessivas no desenvolvimento do texto das primeiras Constituições, de 1858 a 1875.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Etapa I: 1858. [Ar] Manuscrito Rua, italiano5


Primeiro texto existente conhecido, resultado do período de incuba-
ção e das reuniões de Dom Bosco com Rattazzi e com Pio IX.
11 capítulos: preâmbulo, introdução histórica, finalidade, forma,
obediência, pobreza, castidade, governo interno, o Reitor-Mor, ou-
tros superiores, admissão.

Etapa II: 1860. [Do] Manuscrito Boggero, italiano6


Texto enviado ao arcebispo Fransoni no exílio, assinado por Dom
Bosco e 25 “salesianos”.
4 novos capítulos: práticas de piedade, hábito, os membros exter-
nos, fórmula da profissão.

Etapa III: 1864. [Gb] Manuscrito Bosco, italiano7


Texto reelaborado trabalhosamente por Dom Bosco (1860-1864),
apresentado pela primeira vez em Roma para o Decretum laudis
(1864); recebe 13 observações (Savini-Svegliati).
Novos artigos sobre política e o papa. Dois novos capítulos: governo
religioso, cada casa em particular.

Etapa IV: 1867 e 1869. [Ls] Impresso, latim8


Texto modificado de acordo com algumas das 13 observações de
1864, apresentado em 1867 para a aprovação. Foi recusado.
Depois que Dom Bosco apresentou novamente o mesmo texto em
1869, a Congregação foi aprovada, mas as Constituições deviam
estar em conformidade com as 13 observações de 1864.

Etapa V: 1873. [Ns] Impresso, latim9


O texto, apenas ligeiramente modificado, foi recusado sendo feitas 38 (con-
centradas depois em 28) observações (Bianchi-Vitelleschi, respectivamente).

5
ASC D4720101, FDB 1893 E5ss.
6
ASC D4720108, FDB 1895 B10ss.
7
ASC D4720205, FDB 1902 E1ss.
8
ASC D4720308, FDB 1904 C11ss.
9
ASC D4720402, FDB 1907 C9ss.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

Reimpresso em 1873-1874 em Roma, acolhia apenas algumas das


observações.
Dois novos capítulos: noviciado e estudos; o capítulo sobre a pobreza foi
reescrito, outras modificações. Reimpresso em 1874 em Roma: elimina-
do o capítulo-apêndice sobre membros externos.
Revisto e emendado pela Congregação especial (4 cardeais). Eliminados o
preâmbulo e a introdução histórica. Aprovado em sua versão emendada.

Etapa VI: 1874. Aprovação. [Q] Manuscrito Berto, latim10


Aprovado em sua versão revista e emendada pela Congregação especial
por Decreto de 11 de abril de 1874. Transcrição caligráfica de Berto em
dois exemplares, um para o Vaticano e outro para os salesianos.
Dezesseis capítulos: finalidade, forma, obediência, pobreza, castidade,
governo religioso, governo interno, o Reitor-Mor, outros superiores, cada
casa em particular, admissão, estudos, práticas de piedade, noviciado,
hábito e fórmula da profissão.
Depois da aprovação, Dom Bosco imprimiu edições em latim e em ita-
liano para os salesianos da seguinte maneira:

Etapa VII: 1874. [T] Impresso, latim11


Texto “oficial” latino impresso por Dom Bosco em Turim para os
salesianos.
Diferenciava-se do texto manuscrito aprovado no estilo e, em alguns
lugares, também no conteúdo. Dom Bosco apelou a uma autorização
dada oralmente (“vivae vocis oraculo”) por Pio IX.

Etapa VIII: 1875. [V] Impresso, italiano12


Texto “oficial” em língua italiana, impresso por Dom Bosco em Turim
para os salesianos. Não é uma tradução do anterior; difere tanto do
anterior quanto do texto do manuscrito aprovado, invocando a mesma
autorização oral.

10
ASC D4730106, FDB 1912 E2ss. À letra Q não se acrescenta uma letra minúscula, porque
era um manuscrito caligráfico como pedia o protocolo.
11
ASC D4730202, FDB 1916 C5ss.
12
ASC D4730302, FDB 1920 B2ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

2. Durante o exílio de dom Fransoni (1860-1862)

Texto constitucional de 1860 (Do), enviado ao arcebispo Fransoni


É o mais antigo texto existente das Constituições Salesianas, manus-
crito do padre Rua (Ar, em italiano), datado em fins de 1858. Resultou de
um período de gestação, durante o qual Dom Bosco consultou as constitui-
ções de outras congregações religiosas e as reuniões com o ministro Urbano
Rattazzi (1857) e com o papa Pio IX em 1858. Deste texto e de outras afir-
mações deduz-se que um grupo de 15 pessoas, “comprometidas a observar
estas Constituições”, já se tinha unido ao redor de Dom Bosco, antes de ele
viajar a Roma para a audiência com o Papa.
A Sociedade Salesiana foi fundada oficialmente em 18 de dezembro de
1859, quando Dom Bosco e outros 18 sócios se reuniram numa sociedade
com um compromisso religioso específico e elegeram os responsáveis pelos
cargos.13 Enquanto isso, Dom Bosco revisara e ampliara as Constituições. Em
junho de 1860, enviou o rascunho modificado, assinado por ele e 25 salesia-
nos, alguns ainda nos estudos secundários, a dom Luís Fransoni, que estava
no exílio, para seus comentários e aprovação.
Este texto (Do) inclui 4 novos capítulos com um total de 15: preâmbu-
lo, introdução histórica, finalidade, forma, obediência, pobreza, castidade,
governo interno, Reitor-Mor, outros superiores, admissão, e práticas de pie-
dade, hábito, membros externos, fórmula da profissão.
O arcebispo teve palavras de incentivo, limitando-se a sugerir algumas
modificações menores, por exemplo, quanto ao capítulo sobre o voto de cas-
tidade, como se pode ver numa carta de 19 de julho de 1860 dirigida ao
cônego [Celestino] Fissore, vigário-geral da arquidiocese de Turim:

Entre os diversos documentos, também encontrará um projeto de regras da


obra de Dom Bosco. Tenho apenas uma observação a fazer em relação ao
art. 2 do [capítulo sobre o] voto de castidade. As palavras “Todo aquele que
não estiver seguro...” parecem demasiado estritas e absolutas. Minha suges-
tão é que a expressão seja suavizada com o seguinte texto: “Toda pessoa que,
pela sua experiência pessoal, não tenha uma fundada esperança de poder,
com a ajuda de Deus, manter esta virtude em sua vida... etc.”, ou alguma
frase semelhante. Para maior clareza, a virtude em questão também deve ser

13
Ver volume 2, capítulo VIII, p. 258-260.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

nomeada expressamente; do modo que está, a única citação do termo está


no título do capítulo.14

Não obstante, enviou o texto ao padre Marco Antônio Durando, visita-


dor (provincial) dos vicentinos em Turim, para sua avaliação e comentários.

Rascunho das Constituições Salesianas, manuscrito de João Boggero,


enviado a dom Fransoni em 1860.

“O arcebispo Fransoni ao vigário-geral Fissore”, 19 de julho de 1860. In: G. Bosco, Costituzioni,


14

17, nota 12.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Observações do padre Durando (1860)15


As observações críticas do padre Durando não chegaram até nós;
acredita-se que foram semelhantes, se não idênticas, às observações tam-
bém críticas que ele mesmo fez mais tarde, em 1867, quando examinou
um texto revisto por solicitação do recém-nomeado arcebispo Alexandre
Riccardi di Netro.
Inicialmente, em 1860, o arcebispo expressou sua satisfação pelo fato de
Dom Bosco ter seguido suas sugestões, como escreve ao seu vigário em 11 de
novembro de 1860:

Estou muito contente por saber que Dom Bosco aceitou as sugestões feitas
em relação às suas regras e que está ocupado em sua reelaboração.16

Em 23 de outubro de 1861, escrevendo diretamente a Dom Bosco,


depois da revisão do padre Durando, o arcebispo expressava uma opinião
diferente:

Quanto à Sociedade de São Francisco de Sales, foi-me dito que foram feitas
diversas observações, algumas delas importantes, como por exemplo, sobre
de quem a Sociedade deve depender, e que as Regras fossem devolvidas ao
senhor para que as emendasse e completasse. Creio recordar-me que me foi
dito que o senhor fizera alguma concessão, mas que ainda continuavam defi-
ciências notáveis que precisam de correção. A prudência pede que o examine
o quanto antes possível.17

15
O beato Marco Antônio Durando (1801-1880) provinha de uma rica família turinesa. Seus
irmãos distinguiram-se, um (João) como general do exército, o outro (Tiago), como general, escritor e
estadista. Depois de se unir aos Padres da Missão (de São Vicente de Paulo), Marco Antônio foi orde-
nado padre por dom Fransoni, em 1824. De 1837 até sua morte, desempenhou o cargo de visitador
(provincial) da província dos Padres da Missão em Turim. Foi fundador e diretor de várias congregações
e comunidades religiosas além de conselheiro de confiança de dom Fransoni antes do seu exílio (1850).
Posteriormente, até a morte do arcebispo, foi membro da comissão arquidiocesana encarregada de aju-
dar o vigário-geral no governo da arquidiocese. (Para as relações entre Dom Bosco e padre Durando, cf.
Luigi Chierotti, Il P. Marcantonio Durando. Sarzana, 1971, p. 387-398. In: G. Bosco, Costituzioni,
17, nota 13; Sussidi 2, p. 262-263.
16
“O arcebispo Fransoni ao vigário-geral Fissore”, 11 de novembro de 1860. In: G. Bosco,
Costituzioni, 17, nota 12.
17
“O arcebispo Fransoni a Dom Bosco”, 23 de outubro de 1861. Carta publicada em MB VI, 1041.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

3. Durante o tempo de sede vacante da Diocese de Turim18


Primeira solicitação de Dom Bosco à Congregação dos Bispos
e Religiosos para a aprovação (1864).
Texto de 1854 e o Decretum laudis

O texto constitucional como foi apresentado em 1864 (Gb)


Quando o arcebispo Fransoni morreu em 1862, Dom Bosco já traba-
lhava numa revisão profunda das Constituições, cujo resultado foi o texto de
1864, manuscrito de Dom Bosco (Gb). Ele representa o auge da tradição do
texto em italiano.
Continha 3 novos capítulos num total de 17, embora ainda faltassem
capítulos-chave sobre a formação, ou seja, o noviciado e os estudos. Dom
Bosco escreveu para esse rascunho alguns novos artigos importantes. O artigo
7o do capítulo sobre a finalidade proibia a atividade política dos membros.
O artigo 4o do capítulo sobre o governo religioso concedia ao Reitor-Mor a
faculdade de emitir cartas dimissórias para a ordenação dos candidatos sale-
sianos ao sacerdócio. Mais adiante, seria ordenado que os dois artigos fossem
retirados. O artigo 1o do capítulo sobre o governo religioso estabelecia o Papa
como superior supremo da Sociedade. Outros artigos foram submetidos à
reelaboração. A nova redação do artigo 1o do capítulo sobre a finalidade tem
importância particular a esse respeito.
A redação desse rascunho custou muito a Dom Bosco, porque ele deci-
dira apresentar as Constituições para aprovação à Congregação Romana dos
Bispos e Religiosos. Por isso, escolhera testemunhos de cartas de apoio de
vários bispos, como era exigido. A mais importante, a carta de recomendação
da arquidiocese de Turim, que por estar vacante ia assinada pelo vigário-geral,
era bastante fria.19
Dom Bosco não deixou nenhum passo por dar. Fez um intenso apelo
para sua aprovação na carta dirigida ao Papa e, num documento anexo (Cose
da notarsi), explicou e defendeu a sua posição.

18
A arquidiocese de Turim ficara vacante desde a morte do arcebispo Fransoni em 1862. O
arcebispo Alexandre Riccardi só foi nomeado em 1867.
19
O cônego José Zappata, vigário-geral capitular, emitiu a carta comendatícia em 11 de feve-
reiro de 1864. Após descrever brevemente a obra do Oratório, escreve: “Por esse motivo, creio que seja
digno deste piedoso sacerdote ser recomendado à Santa Sé para que alcance as graças e favores que
possam dar desenvolvimento ao Oratório e família religiosa, e conseguir maior bem espiritual à cidade
e diocese de Turim” (MB VII, 618).

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Dom Bosco: história e carisma 2

As Constituições foram examinadas para a Congregação dos Bispos e


Regulares pelo carmelita padre Ângelo Savini. Suas observações críticas em
13 pontos foram entregues a Dom Bosco pelo secretário da Congregação
dom Estanislau Svegliati. Como consequência, foi negada a aprovação das
Constituições, mas concedido o Decretum laudis (Decreto de louvor) do Ins-
tituto; uma pequena vitória.
Dom Bosco respondeu detalhadamente às observações. Aceitava algu-
mas, mas resistia a outras. Por exemplo, tirou o artigo que proibia as ativi-
dades políticas, embora nunca tivesse mudado de parecer, mas manteve o
capítulo sobre “os externos” e apresentou um elaborado argumento em oito
pontos em defesa do privilégio das dimissórias.20

Carta de Dom Bosco a Pio IX solicitando a aprovação da Sociedade


Salesiana e das Constituições

Turim, 12 de fevereiro de 1864


Santíssimo Padre:
Com a única finalidade e [o único] desejo de promover a glória de Deus e o
bem das almas, prostro-me aos pés de Sua Santidade, suplicando a aprovação
da Sociedade de São Francisco de Sales. Trata-se de um projeto sobre o qual
muito meditei e que há tempo anseio completar. Quando em 1858 tive a
fortuna de poder apresentar-me diante de Sua Santidade, ao compreender os
esforços feitos pela heresia e a incredulidade para se insinuarem nas aldeias, so-
bretudo entre a juventude pobre e inexperiente, recebia com evidente gratidão
a ideia de uma Sociedade que se preocupasse particularmente dessa porção do
rebanho de Jesus Cristo. Vossa mesma Santidade dignou-se traçar-me as bases,
que procurei desenvolver o quanto pude neste plano de regulamento.21
Mas, apesar da minha firme vontade e de ter dedicado minhas fracas forças
para levar à prática os conselhos de Sua Santidade, temo ter-me afastado muito
do que me havia proposto ao executar o trabalho, também em coisas essenciais.
Por esse motivo, peço mais a correção destas projetadas Constituições do que
a sua aprovação.

20
Para o texto da solicitação ou carta de apresentação, o memorando (Cose da notarsi), o De-
creto e as 13 observações Savini-Svegliati com a resposta de Dom Bosco, cf. G. Bosco, Costituzioni,
228-234, também em MB VII, 710s. Apresenta-se, na sequência, uma tradução desses documentos.
21
Para as duas premissas básicas sugeridas pelo papa Pio IX a Dom Bosco em 1858, cidadão
livre em relação ao Estado e religioso regular em relação à Igreja, ver comentário no capítulo VIII deste
volume 2, nas p. 252-253.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

Por isso, rogo a Sua Santidade ou a quem se dignar encarregar que corrija,
acrescente, suprima o que acreditar ser para a maior glória de Deus. Eu não
farei a menor objeção; antes me ofereço para dar as explicações que se creiam
oportunas e necessárias.
Professo-me, desde já, devedor de quem me ajudar a aperfeiçoar os estatutos
desta Sociedade e conseguir que eles sejam permanentes o mais possível e de
acordo com os princípios da nossa santa religião católica.
As Constituições compõem-se de 16 capítulos, divididos em artigos breves,
cuja cópia anexo. Em folha à parte apresenta-se a razão de algumas coisas mais
importantes.
Os bispos de Acqui, Cúneo, Mondoví, Susa, Casale e o vigário capitular desta
nossa arquidiocese tiveram a bondade de escrever cartas comendatícias em
favor desta Sociedade. Ela tem atualmente mais de 75 sócios, todos dispostos
a entregar vida e bens para a glória de Deus e a salvação das almas.
Enquanto todos nós esperamos as decisões do supremo Hierarca da Igreja,
de Sua Santidade, prostramo-nos suplicando queira acelerar o insigne favor
dando a cada um a sua santa bênção apostólica.
Em nome de todos, tem a máxima honra de poder declarar-se aos pés de Sua
Santidade.
Humilde servidor, afeiçoadíssimo filho da Santa Igreja e de Sua Santidade.
João Bosco, sacerdote.22

Memorando de Dom Bosco. Observações sobre alguns pontos das


Constituições apresentadas em 186423

[Sobre o fim da sociedade]


O fim desta Sociedade, no que se refere aos seus membros, é dar-lhes a opor-
tunidade de se unirem mais em espírito para trabalharem para a maior glória
de Deus e a salvação das almas. Inspiramo-nos nas palavras de Santo Agosti-
nho: Divinorum divinissimum est in lucrum animarum operari [A mais divina
das coisas divinas é trabalhar em favor das almas].
Vista em sua realização histórica, [esta Sociedade] tem por fim a continuação
do que se realiza no Oratório de São Francisco de Sales durante os últimos
vinte anos. Pode-se dizer, na verdade, que estas Constituições nada mais
fazem do que formular ordenadamente a disciplina praticada até agora nos

22
MB VII, 621s.
23
G. Bosco , Costituzioni, 229; encontra-se editada com pequenas alterações em MB VII, 622s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

oratórios para meninos estabelecidos na cidade sendo seu centro o Oratório


de São Francisco de Sales. Tudo se fez seguindo o conselho do Chefe supre-
mo da Igreja.

[Sobre a não menção do Papa]


Neste regulamento não se fala explicitamente do Sumo Pontífice, nem de as-
suntos a ele relacionados. Contudo, um dos objetivos principais desta Socie-
dade é apoiar e defender sua autoridade com todos os meios que os tempos,
lugares e pessoas permitam prudentemente empregar. O motivo pelo qual ele
é mencionado menos explicitamente é que [esta Sociedade] foi visitada várias
vezes pela autoridade civil, com o fim de encontrar, segundo diziam, alguma
prova comprometedora de vinculação com Roma. Se este regulamento tivesse
caído em suas mãos e se fossem encontradas expressões pouco felizes, a Socie-
dade correria um grave risco.

[Sobre a consulta a outras constituições]


Quanto à formulação das regras, consultei e, sempre que oportuno, segui tam-
bém os estatutos da Obra Cavanis, de Veneza, as constituições dos rosminia-
nos, as regras dos oblatos de Maria Virgem, todas elas corporações ou socieda-
des religiosas aprovadas pela Santa Sé. Os capítulos 5o, 6o e 7o, que se referem
à matéria dos votos, foram tirados quase integralmente das constituições dos
redentoristas.24 A fórmula dos votos é uma adaptação da dos jesuítas.

[Em defesa da norma de que os clérigos salesianos deveriam estar sob a juris-
dição do superior religioso, não do ordinário da diocese]
Pede-se no artigo 2o do capítulo 8o que os clérigos se coloquem sob a jurisdi-
ção do superior-geral da Sociedade. Aqui estão algumas razões:
1o Esta Sociedade, sendo formada por casas em diversas dioceses,25 não po-
deria dispor de seus membros segundo as necessidades, pois poderiam ser
enviados a outros lugares de acordo com a vontade do ordinário [o bispo].
2o Em nossos Estados, as ordens religiosas foram suprimidas por lei e, como
consequência, as poucas que foram excetuadas já não podem gozar de qualquer
privilégio relativo ao recrutamento militar e devem recorrer aos bispos que,

24
Na realidade, estes capítulos, especialmente o 5o, sobre a obediência, devem-se mais às cons-
tituições das Escolas de Caridade dos irmãos Cavanis. Cf. Francesco Motto, “La figura del superiore
salesiano nelle Costituzioni della Società di San Francesco di Sales”, RSS 2 (1983) 13ss.
25
A Sociedade já não se restringia à Diocese de Turim.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

conforme as leis vigentes até agora, podem reivindicar [a dispensa de] alguns,
ou seja, um clérigo anualmente para cada 20 mil habitantes. Por isso, é preciso
que os membros aspirantes ao estado eclesiástico possam ser mandados de uma
casa a outra desde que o bispo ordinário da mesma possa ou não reivindicar a
sua [dispensa] do serviço militar.
3o Há, ainda, uma terceira razão que se refere ao sagrado ministério. Os mem-
bros desta Sociedade têm por fim exercê-lo em favor da juventude, que é um
trabalho delicado e difícil, que geralmente não se aprende senão com a expe-
riência e a longa dedicação, especialmente vivendo e tratando com aqueles dos
quais se quer cuidar. Dificilmente se poderia conseguir e manter essa experiência,
essa unidade de espírito, se o superior-geral não tivesse plena jurisdição sobre os
membros da Sociedade.

Decreto da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares recomendando


a Congregação Salesiana. Decretum laudis (23 de julho de 1864)26

Compadecido pela condição dos meninos mais pobres, o sacerdote João Bos-
co, da diocese de Turim, a partir de 1841, com a ajuda de outros sacerdotes,
começou a recolhê-los e ensinar-lhes os primeiros elementos da fé católica e
socorrê-los com ajudas materiais. De aqui surgiu a Pia Sociedade, que, as-
sumindo o nome de São Francisco de Sales, consta de sacerdotes, clérigos e
leigos. Os sócios fazem profissão dos três tradicionais votos simples de po-
breza, obediência e castidade, estão sob a direção do superior-geral, que é
chamado de Reitor-Mor, e, além da própria santificação, se propõem como
fim principal atender às necessidades tanto materiais quanto espirituais dos
jovenzinhos, especialmente, os mais pobres.
Desde o início da Pia Congregação, [os sócios] preocuparam-se com grande
atenção e diligência no que julgaram poder ajudar a sua finalidade, que todos
reconheceram a grande utilidade que proporcionaram à religião cristã com suas
fadigas; e muitíssimos bispos chamaram-nos a suas respectivas dioceses asso-
ciando-os como solícitos e laboriosos operários para cultivar a vinha do Senhor.
Contudo, o já nomeado sacerdote João Bosco, que é o fundador e também
superior-geral da Pia Sociedade, acreditou que lhe faltaria muito, a ele e a seus
sócios, se não se acrescentasse a aprovação apostólica à mesma Pia Sociedade.
Recomendado, portanto, por muitos bispos, pediu há pouco com humilíssima
súplica a referida aprovação à Santidade de nosso Senhor Pio IX e apresentou

26
G. Bosco, Costituzioni, 231; MB VII, 705.

325

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Dom Bosco: história e carisma 2

as Constituições para sua aprovação. Sua Santidade, na audiência tida com


aquele que subscreve, monsenhor pró-secretário da Sagrada Congregação dos
Bispos e Regulares, em 1o de julho de 1864, louvou e recomendou amplamen-
te a mencionada Sociedade, atendidas as cartas comendatícias dos referidos
bispos, como com o presente Decreto que louva e recomenda como congre-
gação de votos simples, sob a direção do superior-geral, salva a jurisdição dos
ordinários, segundo o prescrito pelos cânones e Constituições Apostólicas, dei-
xando para tempo mais oportuno a aprovação das Constituições. Além disso,
Sua Santidade, consideradas as circunstâncias especiais, concedeu da mesma
forma deste Decreto que o atual superior-geral ou Reitor-Mor permaneça por
toda a vida em seu cargo, embora esteja estabelecido que o superior-geral da
Pia Sociedade permaneça no cargo somente durante doze anos.
Dado em Roma pela Secretaria da Sagrada Congregação dos Bispos e Regula-
res, no dia 23 de junho de 1864.
A. Card. Quaglia
Estanislau Svegliati, Subsecretário

Observações Savini-Svegliati sobre alguns pontos das


Constituições Salesianas e resposta de Dom Bosco (1864)
Nota introdutória
Em 1o de julho de 1864, Dom Bosco de Turim, sem ir pessoalmente a
Roma, apresentou o texto das Constituições em que trabalhara desde 1858.
O rascunho em italiano (Gb, manuscrito Bosco) era uma profunda reela-
boração do texto anterior. Dom Bosco pedia à Congregação dos Bispos e
Regulares a aprovação tanto da Congregação quanto de suas Constituições.
Ambas foram negadas. À Sociedade Salesiana só foi concedido o Decretum
laudis. Quanto às Constituições, o secretário da Congregação dos Bispos e
Regulares, dom Svegliati, apresentou a Dom Bosco 13 observações críticas,
com o conselho para que as aceitasse e incorporasse ao texto.
As observações, na verdade, baseavam-se nas que já tinham sido fei-
tas pelo consultor carmelita, padre Ângelo Savini, que examinara o tex-
to constitucional. De aí que sejam conhecidas como as 13 observações
Savini-Svegliati.
Dom Bosco respondeu com um memorando que acompanhava o novo
texto latino apresentado em Roma em 1867. No memorando, ele responde a
cada observação citando-a primeiro e, em seguida, manifestando sua aceita-
ção ou não, com os comentários pertinentes.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

O que segue é uma tradução desse memorando em latim, ou seja, as


observações críticas e a resposta de Dom Bosco.27

Memorando
Sobre as observações às Constituições da Sociedade de São Francisco de
Sales na Diocese de Turim.
Em 1o de julho do ano do Senhor de 1864, a Santidade de Nosso Senhor o
papa Pio IX, dando benignamente sua aprovação, dignava-se louvar e recomen-
dar a Sociedade de São Francisco de Sales, de acordo com as prescrições dos sa-
grados cânones, deixando, porém, para tempo mais oportuno a aprovação das
Constituições. Sua Santidade, atendidas as circunstâncias peculiares, também
concedeu que, enquanto vivesse, o sacerdote João Bosco permanecesse em seu
cargo de superior-geral determinando, ao mesmo tempo, que posteriormente
o superior-geral desta Sociedade exercesse o seu cargo somente por doze anos.
Acrescentavam-se 13 observações ao acima citado decreto sobre as
Constituições desta Sociedade. O solicitante recebeu de bom grado as obser-
vações apresentadas neste decreto e preocupou-se imediatamente em colocar
em prática essas observações para que, se surgisse alguma dificuldade, esta
fosse conhecida e, uma vez conhecida, fosse explicada.
Considerado tudo o que lhe pareceu relacionado com a maior glória de
Deus e o bem das almas, acreditou que assim se devem dispor as observações
anteriormente recordadas.
Observação 1: O Reitor-Mor, ou superior-geral, permanecerá no cargo
por um período não superior a doze anos e não poderá ser novamente confir-
mado nesse cargo sem a licença da Santa Sé.
Resposta: Esta observação é aceita sem qualquer reserva.
Observação 2: Recomenda-se que sejam eliminadas as palavras das
Constituições [artigo 7 do capítulo: “Fim desta Sociedade”] com que se proíbe
aos membros a participação na política.
Resposta: Essas palavras já foram eliminadas. O artigo foi colocado sim-
plesmente como salvaguarda contra possíveis contrariedades, caso as Consti-
tuições caíssem nas mãos de certos leigos. Portanto, em conformidade com a
observação sobre todo o artigo, [este] foi eliminado.
27
O memorando com as 13 observações e a resposta de Dom Bosco são comentados em MB
VII, 709. Quando, em 1867, Dom Bosco buscou a aprovação da Sociedade com uma nova redação dos
textos constitucionais em latim, incorporara apenas em parte as observações de 1864. Nesse momento,
não conseguiu obter a aprovação. Foi aprovada depois de nova tentativa em 1869, mas com a ordem
de cumprir todas as observações críticas recebidas.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Observação 3: Os votos que se fazem num Instituto deste tipo são re-
servados à Santa Sé. Portanto, deve ser eliminada das Constituições a cláusula
que faculta ao superior-geral dispensar desses votos.
Resposta: Nós aceitamos sem reservas tudo o que seja melhor e mais
adequado para nos unirmos mais estreitamente ao Chefe supremo da Igreja.
A cláusula em questão só se refere aqui a votos trienais. Pedimos que, por
razões práticas e para uma maior flexibilidade no interior da Congregação,
se conceda ao superior-geral o poder de dispensar dos votos trienais. Este
favor não parece especialmente importante, já que a Santa Sé, facilmente e
com regularidade confere aos simples confessores o poder de dispensar dos
votos temporais.
Observação 4: O superior-geral não tem poder para emitir cartas di-
missórias para a recepção das ordens sacras para os membros do pio Instituto.
Assim sendo, esta cláusula também deve ser eliminada das Constituições.
Resposta: Se esta demanda for cumprida, sem dúvida, surgiriam na prática
dificuldades muito graves. Elas seriam tais que perturbariam a vida organizada
da Sociedade e a tornaria praticamente impossível pelas seguintes razões:
(1) [Unidade de governo e administração] Se o bispo tiver o poder de mu-
dar os membros da Sociedade e suas destinações e os obrigar a outras tarefas
na Igreja [em sua diocese], então, não se poderá preservar a unidade de go-
verno e a administração. O bispo poderá remover um administrador da casa
salesiana, embora este esteja obrigado pelo voto de obediência ao seu supe-
rior. (Os votos, é claro, são reservados à Santa Sé.) Tampouco o superior-geral
poderia desfrutar por mais tempo do direito de determinar a seus súditos a
direção de algumas casas, especialmente quando estão em outra diocese que
não a da casa mãe. O bispo que desejar exercer sua jurisdição, como prova-
velmente o faria, pode ordenar e determinar a um ou vários membros, ou ao
próprio superior-geral, alguns cargos no ministério sagrado ou nas paróquias.
Então, como ficaria?
(2) [Unidade de espírito] Tampouco [se o bispo mantiver o controle dos
membros] seria possível preservar a unidade do espírito, pois uma pessoa que
participe do difícil ministério sagrado em favor dos jovens pobres e abando-
nados deve aplicar-se em especiais atividades, estudos e estilo de vida. E não
se pode ser competente nessas matérias, a não ser pela experiência prática
prolongada, por meio da qual se aprende o que se deve fazer, evitar ou mudar,
e os modos e meios para fazê-lo. Tudo isso não pode ser efetivado, se o bispo
puder mudar os sócios para outras tarefas e se continuar incerta a duração do
tempo no qual o membro está à disposição da Congregação.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

(3) [Unidade da doutrina e disciplina] Tampouco [se o bispo tiver o con-


trole dos sócios] seria possível preservar a unidade da doutrina e a disciplina. De
fato, o bispo teria de conhecer a vida e a conduta de alguém que, no momento
adequado, terá de promover às ordens sacras. Os sócios, enquanto estão estu-
dando, também teriam de participar das aulas, das cerimônias e das conferên-
cias programadas no seminário. Mas as horas, o tempo e o lugar do seminário
são compatíveis com os deveres e os assuntos que se devem atender diariamente
na Sociedade? Além disso, cada professor ou conferencista apresenta seus tra-
tados como lhe apraz, e os muda ou substitui à vontade, e, quando se muda
um professor, se introduzem novos e diferentes livros de texto. Problema seme-
lhante surge com as cerimônias, conferências e sermões do seminário, já que
estão organizados para instruir os seminaristas para uma vida no mundo, não
os religiosos para sua vida religiosa. Essas complicações tornariam a unidade na
doutrina e na disciplina [na Sociedade] muito difícil senão impossível.
(4) [Conflito na obediência] Em geral, como se poderá conciliar a obe-
diência devida ao bispo [que controla o sócio] com a obediência devida ao
superior religioso em virtude dos votos que são reservados à Santa Sé?
(5) [Situação nas dioceses particulares] Outra dificuldade surge de situa-
ções concretas em que se pode encontrar uma diocese. Em nosso caso, por
exemplo, a sede [de Turim] esteve vacante durante mais de um ano e o vi-
gário capitular não tem a faculdade de conceder cartas dimissórias [para a
ordenação dos candidatos], pois isso é proibido pela lei civil. Portanto, um
candidato à ordenação deverá recorrer à Santa Sé em cada caso. Isso é muito
incômodo e caro, como aprendemos por experiência.
(6) [O serviço militar e as cotas de exceção] A lei deste país possibilita a um
bispo obter dispensa do serviço militar para seus seminaristas, na proporção
do número de habitantes de sua diocese. Na maioria das vezes, enquanto
numa diocese o número de seminaristas que pede dispensa supera a cota
permitida, em outra diocese, a cota é suficiente para acolher abundantemente
todos os solicitantes. A dificuldade em relação aos sócios poderia ser superada
mediante a concessão [ao superior religioso] da faculdade de expedir cartas
dimissórias. Com isso, o superior religioso poderia encaminhar os seus can-
didatos para as ordens a outros bispos em cujas dioceses existam casas ou elas
sejam administradas pela Congregação.
(7) [Caráter internacional da Sociedade Salesiana] Uma dificuldade par-
ticular surge no caso da Sociedade Salesiana, que tem membros em todas as
partes do mundo. O que, com frequência, tornaria necessário solicitar cartas
dimissórias em lugares remotos, cujos ordinários são desconhecidos ou não
podem ser facilmente localizados.

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Dom Bosco: história e carisma 2

(8) [As práticas consuetudinárias] As ordens e congregações religiosas des-


frutaram, em geral, desse privilégio [de conceder cartas dimissórias]. Entre
elas estão os Oblatos da Santíssima Virgem Maria [Lanteri], que obtiveram o
privilégio com o rescrito, Etsi Dei Filius, do papa Leão XII, de feliz memória.
O mesmo pode ser dito do Instituto da Caridade [Rosmini], aprovado por
Gregório XVI, também de feliz memória; e da Congregação dos Padres da
Missão [de São Vicente de Paulo], que foi aprovada em 12 de janeiro de 1623
pelo papa Urbano VIII com a Bula Salvatoris Nostri. Por último, o mesmo
papa Pio IX (que Deus o guarde são e salvo para sempre) com o rescrito Re-
ligiosas Familias, de 3 de maio de 1859, que concedia a faculdade [aos Padres
da Missão] para emitir cartas dimissórias, acrescentou novo privilégio. Diz
assim: “Os seminaristas da Congregação da Missão que sejam dotados das
qualidades necessárias e tenham obtido cartas dimissórias de seus superio-
res podem lícita e livremente receber as ordens sagradas de qualquer bispo
que esteja em graça e comunhão com a Sé Apostólica. O que se pode fazer
também fora dos tempos estabelecidos pelo direito canônico, sempre que se
respeitem devidamente os procedimentos”.
Portanto, pelas razões anteriores, sempre que se apliquem a esta So-
ciedade e a seu caráter particular, pedimos humildemente que, em matéria
de cartas dimissórias, se conceda a esta Sociedade o mesmo privilégio des-
frutado pelas casas religiosas, congregações e ordens que têm comunidade
de casas.28
Observação 5: Deve-se obter permissão da Santa Sé para a venda de bens e
para contrair dívidas, em conformidade com as prescrições do direito canônico.
Resposta: Esta disposição não é compatível com nossas Constituições,
segundo as quais são os membros individualmente, e não a própria Socieda-
de, que detêm a propriedade. Por conseguinte, não se pode apresentar qual-
quer situação em que seja indicado o recurso à Santa Sé. Além disso, entre
nós, o Exequatur real é requerido pela lei em todas as transações externas. Por-
tanto, os rescritos papais [facultando as operações desta índole] teriam de ser
apresentados às autoridades civis. Nossa Sociedade apareceria, então, como
uma corporação [religiosa] e ficaria automaticamente sujeita à lei, ou seja, ao
poder do Estado [e suscetível de ser suprimida como corporação religiosa].
Portanto, peço humildemente que não se imponha esta obrigação. No caso
em que o superior ou um membro entre na posse de bens que a consciência
ou as normas da Igreja considerem bens eclesiásticos que correspondem à
Sociedade, então, pedimos humildemente que se conceda ao superior-geral

28
A expressão “comunidade de casas” significa ter casas em diversas dioceses sob o mesmo superior.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

e seu conselho o poder de intermediar e executar toda transação necessária.


Faculdade como a que foi concedida à Congregação das Escolas da Caridade,
por Gregório XVI, de feliz memória, com o Breve Cum Christiane, etc., de
21 de junho de 1836.29
Observação 6: O Reitor-Mor, ou superior-geral, não pode ser deposto
validamente pela vontade dos membros. É necessário estabelecer uma dis-
posição pela qual seja preciso a aprovação desta Sagrada Congregação [dos
Bispos e Regulares] para que a deposição entre em vigor.
Resposta: Este requisito é aceito e cumprido.
Observação 7: Para estabelecer novas casas e para aceitar a direção de
seminários, o recurso ordinário deve ser apresentado à Santa Sé em cada caso.
Resposta: Este requisito criaria grandes obstáculos aos convênios. Além
disso, dado que os rescritos do Papa que se referem ao foro externo não po-
dem ser levados à prática sem o Exequatur real, ver-se-ia ameaçada a adminis-
tração da Sociedade e a própria liberdade.
Parece que para o estabelecimento ou a aceitação da administração de
uma casa é suficiente o recurso ao ordinário do lugar, como se estabelece nas
Constituições. Esta é a prática que se seguiu até o presente, e parece que é
a maneira mais eficaz de fazê-lo em situações que surgem relativas a lugares,
tempos e pessoas.
As disposições (das Constituições) relativas à administração de bens
imóveis foram quase literalmente tomadas das constituições do Instituto das
Escolas da Caridade (ou seja, o Instituto da Caridade, de Rosmini).
Observação 8: É conveniente que os membros dediquem mais de uma
hora diária à oração vocal e mental [em comum], e que façam dez dias de
retiro espiritual por ano.
Resposta: Como esta proposta tende ao maior bem da Sociedade, foi
aceita de bom grado e se insere nas Constituições.
Observação 9: As pessoas externas não podem ser membros de um pio
instituto por meio da assim chamada afiliação.
Resposta: A maioria das congregações e ordens religiosas possui terciários.
Em nosso caso, estes são amigos e benfeitores que, ao promoverem o bem da
Sociedade de maneira especial, desejam levar uma vida mais santa e observar
as Constituições religiosas no mundo, na medida em que seja possível fazê-
-lo. Portanto, solicitamos humildemente que se aprove este capítulo, se não

No lugar de “Congregação das Escolas de Caridade” deve-se ler “Instituto de Caridade”. As


29

“Escolas de Caridade” eram uma antiga fundação veneziana dos irmãos Cavanis, aprovada por Leão XII.

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Dom Bosco: história e carisma 2

como parte do texto das Constituições, ao menos como apêndice no final das
Constituições.30
Observação 10: Deve-se acrescentar na fórmula da profissão o nome do
Reitor [-Mor], diante do qual se faz a profissão dos votos. Além disso, as pa-
lavras “mandar sem reservas”, deveriam ser substituídas por outras: “mandar
de acordo com nossas Constituições”.
Resposta: As duas sugestões são aceitas e cumpridas.

Decreto de louvor (Decretum laudis) da Sociedade Salesiana, 23 de julho de 1864.

Observação 11: A cada três anos, o Reitor-Mor, ou superior-geral, en-


viará um relatório sobre o estado do Instituto a esta Sagrada Congregação.

30
Esta observação e sua resposta referem-se ao capítulo, ou melhor, apêndice, sobre os membros
externos, já comentado no capítulo VII deste volume 2, p. 206ss. Dom Bosco escreveu os artigos sobre
os membros externos em 1860; precisou retirá-los em 1873. Nesta resposta, Dom Bosco identifica os
membros externos como cooperadores.

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

O relatório fará referência ao estado material e pessoal do Instituto. Isso


inclui o número de casas e de membros, a disciplina, ou seja, a observância
das Constituições e todas as questões relativas à administração financeira
do Instituto.
Resposta: Dado que o objeto desta disposição é aproximar todo o con-
junto da Sociedade de forma mais estreita à autoridade suprema da Igreja, ela
é aceita e cumprida com muito agrado.
Observação 12: Como é habitual com as Pias Congregações de sacerdo-
tes, as Constituições devem ser traduzidas da língua vernácula ao latim [para
a aprovação oficial].
Resposta: Já foi mandado que este requisito fosse cumprido, como se
pode ver no exemplar anexo.31
Observação 13: Para evitar escrúpulos e ansiedade, devem ser elimina-
das das Constituições as palavras com que se diz que as ordens dos superiores
obrigam sob pena de pecado.32
Resposta: Isso já foi feito. Contudo, como não se especificam as pala-
vras eliminadas, o amável examinador pode mudar ou eliminar como julgar
melhor no Senhor.

31
Dom Bosco escrevera rascunhos em latim, pois parece que sabia ser “exigência habitual”. O
primeiro texto latino impresso das Constituições data de 1867. Foi esse o texto apresentado em Roma
em 1867 [G. Bosco, Costituzioni, 31ss]. Recorde-se que Dom Bosco apresentou sua resposta acompa-
nhando o novo texto das Constituições de 1867, que não conseguiu ver aprovado precisamente porque
lhe faltava concordância.
32
Esta observação refere-se à normativa do art. 14 (última cláusula) do capítulo sobre a “Forma
da Sociedade” [rascunho Ar de 1858, G. Bosco, Costituzioni, 90]. Comparar com a “conclusio” do
capítulo sobre “Profissão” [texto aprovado Q de 1874, G. Bosco, Costituzioni, 209].

333

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Apêndice

O METHODUS33

Sempre que se apresenta o pedido para a aprovação de um Instituto


[religioso], devem-se juntar cartas testemunhais dos bispos das dioceses nas
quais se encontram as casas [do Instituto]. É dirigido ao bispo da diocese em
que se encontra a primeira fundação, ou casa mãe. Seja pedido que se infor-
me sobre o fim ou propósito [do Instituto], [as circunstâncias de] fundação,
número de casas, [número de membros] irmãos ou irmãs, meios de subsis-
tência e, enfim, sua utilidade, seu progresso e similares.34
Se o Instituto for de fundação recente, se tiver apenas uma ou duas
casas e também se carecer de textos constitucionais adequados, em vista das
circunstâncias, emite-se uma [simples] apresentação do fundador ou do fim
do Instituto ou da finalidade.
Depois de um lapso adequado de tempo, se o Instituto se desenvolveu
de maneira suficiente, se deu frutos abundantes e se tiver a recomendação
dos ordinários diocesanos concede-se, então, o Decreto de louvor. Excepcio-
nalmente, pode-se conceder um Decreto de aprovação, sobretudo se suas cons-
tituições foram concluídas e não apresentem graves deficiências em aspectos
essenciais; embora o normal seja diferir o decreto de aprovação para uma
data posterior. Em qualquer caso, fazem-se observações sobre [pontos] das
constituições [neste momento].

33
“Methodus quae a Sacra Congregatione Episcoporum et Regularium servatur in approbandis novis
institutis votorum simplicium ab A. Bizzarri Archiepiscopo philippen., secretario exposita” [Método pelo
qual a Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares se orienta para aprovar novos Institutos de votos
simples, apresentado por [José] A[ndré] Bizzarri, arcebispo de Filipos, secretário. In: Collectanea [...].
Roma, 1863, p. 829-830; 2ª edição, 1883). Cf. G. Bosco, Costituzioni, 228.
34
Às vezes, pode ser necessário perguntar sobre as doutrinas sustentadas pelos membros do
Instituto. Igualmente, devem-se apresentar as diretrizes e documentos similares [do Instituto], mesmo
que seja apenas na forma de manuscritos, para permitir à Sagrada Congregação conhecer o espírito pelo
qual se guiam os superiores e os membros [do Instituto]. [Nota do Methodus]

334

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As Constituições Salesianas. Primeira etapa (1858-1867)

As constituições, por outro lado, não podem ser aprovadas antes de te-
rem sido testadas por um período adequado de prova, e só depois de terem
sido emendadas de acordo com as observações feitas. Em termos gerais, a
autorização é concedida por um período de prova, por exemplo, de três ou
cinco anos. Depois disso, a menos que ainda restem obstáculos, emite-se o
Decreto definitivo de aprovação das constituições.
Na redação das cartas comendatícias ou de aprovação empregam-se as
fórmulas apresentadas a seguir. Começam com uma descrição de sua funda-
ção e finalidade, de [seus] votos, e da autoridade dos superiores ou das supe-
rioras. E conclui-se com o pedido de recomendação ou aprovação.
Em cada etapa do processo, esses dados devem ser levados ao conheci-
mento do Sumo Pontífice. Em audiência concedida no dia 22 de setembro de
1854, Sua Santidade o papa Pio IX ordenou que todo pedido futuro de lou-
vor e aprovação de qualquer Instituto ou de suas constituições seja dirigido ao
Sumo Pontífice antes de a Sagrada Congregação iniciar qualquer ação. (Veja-
-se Burdigalen, super instituto Sororum Doctrinae Christianae.) Para ilustrar
o modo como as observações são ordinariamente apresentadas, oferecem-se
alguns exemplos em anexo.
[Assinado]
A. Bizzarri, arcebispo de Filipos, Secretário.

335

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Capítulo XII

AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS.
SEGUNDA ETAPA (1867-1871)

1. Avaliação de dom Riccardi sobre a situação


no Oratório
Antes de dom Riccardi ser nomeado bispo, a arquidiocese de Turim
ficara vacante desde a morte de dom Fransoni em 1862. Entretanto,
desde 1850, fora governada de longe, pois dom Fransoni vivia no exílio.
O seminário de Turim foi fechado nos tempos da Revolução Liberal e
assim permaneceu até 1863. Nesse tempo, o Oratório de Dom Bosco
funcionou, na prática, como seminário; enquanto ajudava a diocese de
modo significativo, Dom Bosco desfrutava de uma considerável liber-
dade de ação. Muitos seminaristas diocesanos viviam em Valdocco com
os estudantes clérigos de Dom Bosco; não havia distinção clara entre as
duas categorias.
Quando o seminário diocesano foi restabelecido em 1863, esses jo-
vens candidatos ao sacerdócio só frequentavam, pouco ou nada, as aulas
do seminário. Quando o vigário capitular e o Reitor do seminário in-
sistiram na frequência deles, Dom Bosco respondeu apresentando um
plano para a criação de um curso regular de seminário em Valdocco, que,
porém, foi recusado.
A grande prioridade do novo arcebispo desde sua nomeação foi o for-
talecimento do programa de estudos do seminário e a formação do clero; é
óbvio que não gostava do que acontecia em Valdocco. Dom Riccardi exigiu
que os estudantes de Teologia frequentassem o seminário diocesano. Dom
Bosco não obedeceu, mesmo quando em setembro de 1867 o arcebispo

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

notificou-lhe que “não permitiria que os seminaristas diocesanos ensinassem


ou cuidassem dos meninos em nenhum colégio” e que, de agora em diante,
“só conferiria as ordens sacras aos candidatos que residissem no seminário”.
E acrescentou suavemente: “Esta diretriz pode ser um tanto dura para ti,
mas beneficiará a Igreja e sua comunidade”.1 Dom Bosco sugeriu que o
assunto fosse submetido à arbitragem de Roma, onde tinha o patrocínio de
Pio IX e do secretário de Estado, cardeal João Antonelli; a sugestão foi logo
recusada pelo arcebispo.
Dom Bosco, como algum de seus biógrafos, considerou as ordens do
arcebispo uma clara perseguição sem justificativa. Mais tarde, expôs seus sen-
timentos numa carta ao cardeal Felipe De Angelis:

Se eu permitir que meus estudantes clérigos residam no seminário, o que


acontecerá com o espírito e a disciplina da nossa Congregação? Onde po-
derei encontrar os 100 ou mais mestres que os substituam nas muitas aulas
de catecismo? Em seguida, depois de passar cinco anos no seminário, de-
sejará algum deles voltar e fechar-se no Oratório? [...] Posso eu, então, em
sã consciência, enviar meus estudantes clérigos ao seminário diocesano?
Creio que não.

E acrescentava um comentário revelador: “Afortunadamente, eu já pre-


vira esse impasse. Além disso, todos os meus estudantes clérigos que desejam
entrar na Congregação, salvo alguns poucos, são de outras dioceses”.2

2. Quadro cronológico do processo de aprovação nos


anos 1867-1869
A cronologia a seguir facilita a compreensão do processo para a aprova-
ção da Congregação Salesiana, mas não de suas Constituições (1867-1869).3

1
Dom Riccardi di Netro a Dom Bosco, 11 de setembro de 1867, em MB VIII, 944s.
2
Dom Bosco ao cardeal De Angelis, 9 de janeiro de 1868, em Epistolario II Motto, 479.
3
Francis Desramaut, “Chronologie detaillee”, Cahiers Salesiens, Etudes IX, 13-129 (50-57).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Data Acontecimento
1867
6 de janeiro Dom Bosco em Roma com o padre Francésia, provavelmente com
o texto das Constituições (Ls).
12 de janeiro Audiência papal.

19 de janeiro Audiência papal: Dom Bosco solicita a Pio IX a aprovação da Socie-


dade e das Constituições.
Apresenta um documento (Positio) à Congregação dos Bispos e
Regulares para a aprovação da Sociedade, das Constituições e do
privilégio das dimissórias.

5 de fevereiro Segunda audiência papal.


16 de fevereiro Dom Riccardi di Netro, bispo de Savona, é nomeado arcebispo de
Turim.

22 de fevereiro Em Roma, Dom Bosco dá os passos necessários para a aprovação


da Sociedade.
1o de março O cônego Gastaldi é nomeado bispo de Saluzzo.
27 de março Dom Bosco retorna a Turim e é recebido triunfalmente no Oratório.

26 de maio O arcebispo Riccardi di Netro toma posse na sede de Turim.


11 de julho Carta de louvor da Sociedade, de dom Gastaldi (outras cartas de
recomendação são recebidas em Roma, entre 1868-1869).
Julho-agosto? Avaliação crítica do padre Durando às Constituições.
11 de setembro Carta de dom Riccardi a Dom Bosco afirmando que, de agora em dian-
te, só ordenará os candidatos que frequentarem o seminário diocesano.

1868
7 de março Carta de dom Riccardi elogiando a Sociedade Salesiana.
14 de março Carta confidencial de dom Riccardi ao cardeal Quaglia (prefeito da
Congregação dos Bispos e Regulares), com críticas relacionadas à
Congregação Salesiana e às suas Constituições.

25 de maio Segunda carta de recomendação de dom Gastaldi.


29 de junho Com a bula Aeternis Patris, Pio IX convoca o Concílio Vaticano I
para o dia 8 de dezembro de 1869.
28 de julho O secretário da Congregação dos Bispos e Regulares, arcebispo Svegliati,
faz com que monsenhor Tortone, representante da Santa Sé em Turim,
investigue os Salesianos.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

6 de agosto Relatório desfavorável de monsenhor Tortone à Congregação dos


Bispos e Regulares sobre o Oratório.
9 de setembro Carta de Dom Bosco ao cardeal De Angelis sobre a ordem de dom
Riccardi para que os estudantes clérigos de Dom Bosco frequentas-
sem o seminário diocesano.
22 de setembro A Congregação dos Bispos e Regulares nega o pedido de aprovação
feito por Dom Bosco.

2 de outubro O secretário arcebispo Svegliati comunica oficialmente a Dom Bos-


co que o seu pedido foi recusado.

Novembro Dom Bosco pede uma carta conjunta de recomendação dos bispos
da província eclesiástica de Turim; a carta foi-lhe negada.

1869
8 de janeiro Terceira carta de dom Gastaldi ao cardeal Quaglia, em apoio à Con-
gregação Salesiana e às suas Constituições.

15 de janeiro Dom Bosco vai novamente a Roma para suplicar a aprovação das
Constituições.
23 de janeiro Audiência papal.
7 de fevereiro Audiência papal.

19 de fevereiro A Congregação dos Bispos e Regulares decide aprovar a Congrega-


ção Salesiana (mas não as suas Constituições).
Pio IX concede a Dom Bosco o privilégio das dimissórias para os
candidatos que tivessem entrado no Oratório com 14 anos de idade
ou menos.
1o de março A Congregação dos Bispos e Regulares emite o Decreto oficial de
aprovação da Congregação. A aprovação das Constituições é adiada
porque, antes, devem assumir as observações de 1864.
6 de março Retornando a Turim (5 de março), Dom Bosco apresenta a dom
Riccardi o Decreto de aprovação.

3. O texto latino (1867) apresentado em Roma para


aprovação
Em 1864, depois de receber o Decreto de louvor com as 13 observações
de Savini-Svegliati, Dom Bosco, com a ajuda de latinistas, redigiu um texto
latino (Ls), como era solicitado em uma das observações.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Neste texto, os capítulos são mantidos sem alteração em seu número,


embora fossem muitos os pedidos de revisão e reelaboração. Das observa-
ções de Savini-Svegliati, porém, só fora assumida aproximadamente a meta-
de, como consta da resposta de Dom Bosco, preparada em vista da renova-
ção do pedido de aprovação em 1867; talvez ele pensasse que as observações
eram negociáveis. Não obstante, ele continuou o processo para a aprovação
da Sociedade e das Constituições e, em 7 de janeiro de 1867, foi a Roma. O
processo envolvia, entre outras coisas, recolher mais cartas testemunhais de
apoio dos bispos, empresa à qual se dedicou muito ativamente, embora nem
sempre com sucesso.
Tenha-se em conta que a aprovação não era o único assunto que levou
Dom Bosco a Roma. Ele já começara a envolver-se na nomeação de bis-
pos para sedes vacantes; contudo, o grau de sua participação nesse momento
(1867) é objeto de discussão. Todavia, graças a essa atuação, ele pôde propor
a candidatura de seu amigo, o cônego Lourenço Gastaldi.

4. Cartas de recomendação
De volta a Turim, em 1o de março de 1867, depois de quase dois meses
de permanência em Roma, quando renovou o pedido de aprovação, Dom
Bosco continuou a solicitar cartas de recomendação dos bispos, cartas que
seriam incluídas no recurso (Positio) apresentado à Congregação dos Bispos
e Regulares.
A resposta de dom Gastaldi foi totalmente favorável.4 Acabara de ser
nomeado bispo de Saluzzo, e Dom Bosco desempenhara um papel importan-
te na sua nomeação. Entre Dom Bosco e Lourenço Gastaldi existiu durante
longo tempo, praticamente desde os inícios do Oratório, uma recíproca esti-
ma, amizade e colaboração ativa.
Nos anos 1867 e 1868 foram recebidas em Roma muitas cartas de re-
comendação de bispos e arcebispos, de dentro e de fora do Piemonte.5 Tais
demonstrações de apoio foram especialmente bem-vindas, num momento
em que influentes bispos piemonteses se opunham à aprovação, aduzindo,
entre outros motivos, falta de formação intelectual adequada, de disciplina
religiosa e de espírito eclesiástico.

O bispo Gastaldi ao cardeal Quaglia, 11 de julho de 1867, em MB VIII, 876s.


4

Por exemplo, do Piemonte, os bispos de Alessândria, Casale, Mondoví e outros, escreveram


5

cartas de louvor. De fora do Piemonte, receberam-se cartas, por exemplo, do arcebispo cardeal Anto-
nucci, de Ancona, do bispo Macchi, de Reggio Emilia, e de outros.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

Dom Lourenço Renaldi, de Pinerolo, negou-se a dar seu apoio, e em


6 de junho de 1868 expôs suas razões numa carta ao cardeal Quaglia, pre-
feito da Congregação dos Bispos e Regulares.
Dom Luís Moreno, de Ivrea, também retirou o seu apoio. A oposição
de dom Moreno a Dom Bosco, e depois aos Salesianos, derivava também da
disputa (1862-1867) relativa à propriedade das Leituras Católicas. Os dois se
distanciaram de forma permanente. Apesar disso, Dom Bosco pediu várias
vezes ao bispo uma carta de apoio, sem receber resposta.6
Em novembro de 1868, a Conferência Episcopal da província eclesiásti-
ca de Turim, reunida sob a presidência de dom Riccardi, recusou o pedido de
Dom Bosco, que solicitava uma carta conjunta de apoio.7

5. Relatório do padre Durando e observações críticas (1867)


Pouco depois de sua entrada na diocese, em maio de 1867, o arcebispo
recebeu uma cópia das novas Constituições Salesianas. Não deixou de notar
algumas deficiências evidentes, particularmente a ausência de disposições
para o curso regular de estudos dos candidatos salesianos ao sacerdócio e
o noviciado regular. Além disso, uma disposição dava ao superior-geral a
faculdade de emitir cartas dimissórias para a ordenação. O arcebispo, como
fez dom Fransoni em 1860, pediu então ao padre Marco Antônio Durando
que examinasse as novas Constituições. Este escreveu em seu relatório:8

Um estudo detalhado de cada capítulo destas normas acabaria num amontoado


de observações, pois alguns artigos nem sequer são coerentes com o fim [da
Congregação]. Contudo, podem-se fazer as seguintes observações gerais:

1. A Congregação de São Francisco de Sales poderá receber, e pode ser que


algum dia receba a aprovação da Igreja. Porém, dado que as leis do Estado e
o espírito laico imperante estão contra tudo que possa parecer congregação

P. Stella, Economia, 347-368.


6

MB IX, 91; MB IX, 417s.; Epistolario I Ceria, 561s.; 590-593. Em seu pedido à conferência,
7

Dom Bosco declarava contra o que alguém informara à congregação romana, que os estudantes clérigos
pertencentes à Congregação Salesiana tiveram sucesso nos estudos e que estava decidido a corrigir
qualquer deficiência.
8
Para as observações do padre Durando, cf. G. Bosco, Costituzioni, 235 (Documento 9),
e MB VI, 723s. Lemoyne acredita que essas observações são as de 1860. Mas, no Arquivo secreto
da Congregação dos Bispos e Regulares (ASCVVRR, T 9.1), estão anexadas ao documento (Positio)
apresentado por Dom Bosco em 1867; o manuscrito, sem data, é assinado por C. André Astengo, em
nome de dom Riccardi.

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Dom Bosco: história e carisma 2

religiosa, é pouco provável que a Congregação seja reconhecida como tal e lhe
seja concedido o status jurídico.
Por outro lado, de acordo com estas normas ou Constituições, a Congregação
de São Francisco de Sales possui edifícios próprios, ativos e bens. Contudo,
como pode a Congregação possuir alguma coisa, se o Estado não reconhece
sua existência como associação? Como e com que meios poderá manter suas
posses? Tudo está em nome do reverendo Dom Bosco; o que acontecerá com
esses bens depois da morte de qualquer herdeiro que possa ser nomeado por
Dom Bosco, especialmente enquanto o Reitor-Mor deve ser mudado a cada
doze anos? Este ponto muito importante deve ser bem compreendido e expli-
cado nestes mesmos regulamentos ou numa nova Constituição.

2. O fim principal – ao menos um dos objetivos – da Congregação é a


formação intelectual e moral dos jovens aspirantes ao sacerdócio. Entre-
tanto, a extensão da autoridade do ordinário sobre isso não é explicitada
suficientemente, pois não se diz nada das relações que devem existir ne-
cessariamente entre o reitor e os ordinários em matéria de admissão ou
expulsão de alunos, e dos relatórios que se devem fazer sobre os progressos
tidos, a conduta etc. Tampouco se diz alguma coisa dos planos de estudos
da escola ou do método e do plano de formação religiosa. Os artigos são
vagos, deixam muito a desejar, e não dão qualquer garantia para o presente,
muito menos para o futuro.

3. As Constituições mencionam internatos para jovens pobres e para candi-


datos ao sacerdócio. Tem-se a impressão, a julgar pela redação desses artigos,
que os dois grupos recebem o mesmo tipo de educação e vivem em comum.
Contudo, é muito importante que os candidatos ao sacerdócio tenham seus
próprios diretores espirituais e vivam segundo as normas coerentes com
sua vocação e o decoro do estado sacerdotal. O que podemos esperar de
candidatos ao sacerdócio que não têm uma direção [espiritual] ou normas
próprias e vivem misturados a uma multidão de pobres, meninos sem edu-
cação, cuja única ambição é aprender um ofício ou arte? Isso não é apenas
uma impressão que se deduz das normas, mas é uma realidade e um fato
da vida.

4. Dado que os membros desta Congregação estão vinculados apenas por


votos trienais, e fazê-los em perpétuo é deixado à escolha, não podem ser
ordenados a não ser que possuam o dote eclesiástico necessário, pois a or-
denação titulo paupertatis ou mensae communis é reservada às congregações

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

de votos perpétuos. Pode acontecer, então, que muitos jovens entrarão na


Congregação apenas para receberem educação gratuita, serem ordenados e,
em seguida, deixando-a, se converterem em problema para os bispos e, talvez,
em escândalo para o povo.

5. O sucesso ou, mais exatamente, o futuro de uma congregação, sem im-


portar seu tipo, depende de seus inícios. Se agora, de fato, não há separação
entre os jovens candidatos ao sacerdócio e os demais, se não existem normas
fixas para cada grupo, se a Congregação não tem noviciado em separado e
um programa independente de estudos, e as normas e regras específicas para
formar seus aspirantes no espírito do Instituto, não podemos esperar nem
que dure nem que tenha sucesso.

6. Os artigos sobre os votos são insuficientes, sobretudo em relação à pobreza,


em que não deixarão de surgir dúvidas.

Quanto ao regime de governo da Congregação, não são totalmente claros


os direitos e deveres do Reitor-Mor, dos superiores locais, dos conselheiros,
prefeitos etc. É difícil entender a harmonia, a unidade, a interdependência [de
funções], a forma de administração etc., dado que não fica suficientemente
claro o modo como o Reitor-Mor e os outros devem dirigir e governar as
casas, ou seja, os colégios.

[Assinado]
Padre Marco Antônio Durando, visitador da Missão.

Depois de transcrever as observações do padre Durando, Lemoyne,


acreditando serem as mesmas de 1860, acrescenta este comentário:

Obviamente, o relatório do padre Durando não era muito favorável. Recu-


sava as regras em seu conjunto, enquanto o arcebispo [Fransoni] recusara
apenas um ponto. Mas isso acontecia porque o santo e letrado vicentino
não captou o espírito, a mente e a obra de Dom Bosco. Não se tratava de
uma ordem religiosa, mas de uma Congregação que devia ter uma estrutu-
ra especial para satisfazer às necessidades dos tempos. Isso fora reconhecido
por Pio IX.9

MB VI, 724. Para a atitude do arcebispo Fransoni em relação às Constituições de 1860, ver o
9

capítulo anterior.

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Dom Bosco: história e carisma 2

6. Intervenção de dom Riccardi na Congregação dos


Bispos e Regulares
Em resposta ao pedido de Dom Bosco, o arcebispo Riccardi apresentou
uma breve carta de recomendação.10 Contudo, em anexo, ele expunha suas obje-
ções num relatório detalhado dirigido ao cardeal Ângelo Quaglia, da Congrega-
ção dos Bispos e Regulares.11 Deixava claro que sua carta testemunhal fora escrita
em apoio à obra original de Dom Bosco, não à Congregação, como se descreve
nestas Constituições, que, estava seguro, Roma corrigiria drasticamente.
Em seguida, fazia uma série de comentários. A Sociedade não deveria
participar na formação dos seminaristas; as Constituições não mencionam
um programa de estudos nem para os candidatos sacerdotes nem para os
leigos; os seminaristas que não pertencem à Sociedade deveriam estar sob a
autoridade do próprio bispo; as Constituições não contêm qualquer dispo-
sição sobre o noviciado etc., e concluía com uma avaliação muito negativa:

O que pode obter uma Congregação composta de elementos tão díspares aos
quais falta a unidade de finalidade? O colégio de Turim [o Oratório] já é uma
mistura caótica de aprendizes, estudantes, leigos, seminaristas e sacerdotes. E,
ao ampliar o seu campo de ação, este caos será sempre maior.12

A esta altura, enquanto as Constituições eram examinadas e Dom Bosco


esperava o veredicto, dom Gastaldi escreveu uma segunda carta laudatória e
de apoio.13 Contudo, a extensa crítica do arcebispo Riccardi já havia impres-
sionado em Roma.

7. Relatório negativo do representante do Vaticano,


monsenhor Tortone
Impressionada e preocupada, a Congregação dos Bispos e Regulares, por
meio de seu secretário, arcebispo Svegliati, pediu em 28 de julho ao represen-
tante da Santa Sé em Turim, monsenhor Caetano Tortone, que fizesse uma
investigação independente. Seu relatório foi bastante negativo. Entre outras
coisas, escreveu:

O arcebispo Riccardi a Dom Bosco, 7 de março de 1848, em MB IX, 95s.


10

Ver Apêndice deste capítulo.


11

12
O arcebispo Riccardi ao Prefeito da Congregação dos Bispos e Regulares (cardeal Quaglia), 14
de março de 1868, em G. Bosco, Costituzioni, 236-237; MB IX, 95s.
13
O bispo Gastaldi ao cardeal Quaglia, 25 de maio de 1868, em MB IX, 235s.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

O principal objetivo da instituição de Dom Bosco [a educação dos jovens]


obteve sucesso admirável e alentador. Parece, porém, que não se pode dizer
o mesmo da formação intelectual e eclesial dos jovens estudantes clérigos,
que pertencem ao seu Instituto [...]. O medíocre resultado intelectual não
surpreende quando se considera que Dom Bosco dá aos próprios estudantes
responsabilidade de ensino e o cuidado dos meninos. Essas obrigações ocu-
pam o tempo que deveriam dedicar aos estudos.

Quanto à formação sacerdotal, via tão somente obstáculos no caminho


para a aquisição do espírito eclesiástico e a boa educação, que são requisitos
muito importantes para a vida sacerdotal. E assim o manifesta:

Tive a oportunidade de visitar várias vezes aquele instituto nas horas de re-
creio, e confesso que sempre tive uma impressão muito penosa ao ver aqueles
clérigos misturados com os outros jovens que aprendiam a profissão de al-
faiate, carpinteiro, sapateiro etc., correr, jogar, saltar e também dar-se algum
tapa com pouco decoro da parte de uns e pouco ou nenhum respeito da
parte de outros. O bondoso Dom Bosco, satisfeito com o fato de os clérigos
se manterem recolhidos na igreja, bem pouco se preocupa em formar os seus
corações no verdadeiro espírito eclesiástico e infundir-lhes no tempo devido
os sentimentos de dignidade do estado que desejam abraçar.14

8. Negativa ao pedido de Dom Bosco


A Congregação dos Bispos e Regulares reuniu-se em sessão oficial para
examinar o pedido de Dom Bosco: 1o “de aprovação do Instituto e de suas
Constituições”; 2o “da faculdade de emitir dimissórias para a ordenação dos
candidatos, também em razão da vida comunitária [titulo mensae communis]
no caso dos candidatos às ordens maiores”; e, enfim, 3o “da faculdade de dis-
pensar dos votos trienais [...].” O consultor Savini, que examinara as Cons-
tituições, achava-as incompletas, num relatório de 7 pontos, com data de 22
de setembro de 1868. Recomendava um período mais longo de espera.15 O
pedido de Dom Bosco foi recusado.
Em carta pessoal de 2 de outubro de 1868, dom Svegliati comunica-
va a Dom Bosco sobre a decisão, e assinalava “dois artigos principais” que
precisavam de atenção. O artigo que facultava ao Reitor-Mor a emissão de
14
G. Tortone a S. Svegliati, 6 de agosto de 1868, em MB IX, 366s.
15
O relatório de Savini encontra-se em G. Bosco, Costituzioni, 237-238; cf. MB IX, 376s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

dimissórias devia ser eliminado; deviam-se acrescentar os artigos que propor-


cionariam um programa regular de estudos no seminário, como exigido pelo
ordinário [dom Riccardi].16

9. Aprovação da Sociedade, mas não de suas Constituições


Depois de curto período de incerteza, Dom Bosco decidiu tentar nova-
mente, e foi a Roma em janeiro de 1869, ali permanecendo vários meses, de 15
de janeiro a 2 de março. Enquanto isso, receberam-se em Roma algumas car-
tas de recomendação que valeram muito para deter as más informações. Dom
Gastaldi, bispo de Saluzzo, entre outros, expressou o seu apoio à Congregação
Salesiana, sem qualquer reserva. Ao cardeal Quaglia, ele escrevia que:

[...] Desde os inícios, Dom Bosco começou a educar seus próprios estudan-
tes clérigos e sacerdotes, impregnando-os do seu espírito. Com a ajuda deles
desenvolveu suas instituições com sucesso. Agora, estes mesmos estudantes
e sacerdotes estão dando forma a uma Sociedade que perpetue uma obra
já tão bem estabelecida. O abaixo assinado [Gastaldi] foi testemunha do
nascimento e desenvolvimento desta Sociedade, conheceu e conhece cada
um de seus membros e só pode elogiá-la e expressar seu desejo de que se
estabeleça de forma permanente. Para isso, é preciso urgentemente a apro-
vação oficial da Santa Sé, sem a qual não poderia chegar à estabilidade.
Dom Bosco já apresentou à Santa Sé as regras de sua nascente Sociedade,
juntamente com um pedido de favores e isenções, necessários para todas as
sociedades religiosas [...]. Como no passado, esta Sociedade, sem dúvida,
continuará a promover a educação cristã da juventude, que é a necessidade
mais premente em nosso tempo.17

Em Roma, Dom Bosco teve duas audiências papais, nos dias 23 de ja-
neiro e 7 de fevereiro, nas quais, segundo se depreende do Decreto, precisou
lutar com paixão pela aprovação.
Talvez também para surpresa de Dom Bosco, a Congregação dos Bispos
e Regulares, em 19 de fevereiro, decidiu aprovar a Sociedade e, em 1o de mar-
ço de 1869, emitiu o relativo Decreto. Dom Bosco, deixando Roma quase
imediatamente, estava de volta a Turim em 5 de março. No dia seguinte, sem
perder tempo, apresentava o Decreto ao arcebispo Riccardi.

16
S. Svegliati a Dom Bosco, 2 de outubro de 1868, em G. Bosco, Costituzioni, 237-238, 239.
17
O bispo Gastaldi ao cardeal Quaglia, 8 de janeiro de 1869, em MB IX, 479s.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

10. Conteúdo do Decreto


O Decreto, todavia, estabelecia alguns limites, tendo sido elaborado cui-
dadosamente. Depois de se referir “aos insistentes pedidos” do Fundador, afir-
mava que o Santo Padre aprovara a Congregação, mas não suas Constituições.
“Estas [Constituições], primeiramente, devem ser corrigidas de modo a aco-
lher as [13 Savini-Svegliati] observações críticas feitas anteriormente [em
1864 e reiteradas em 1867], com exceção da quarta”. Esta se referia à facul-
dade de emitir cartas dimissórias. Em relação a este tema, “Sua Santidade res-
ponde gentilmente às solicitações do padre João Bosco e concede-lhe, como
superior-geral desta Congregação Salesiana, a faculdade de emitir as cartas
dimissórias para a tonsura e a ordenação dos candidatos [salesianos]”. Neste
sentido, porém, o Decreto indicava claramente: “Esta faculdade só é válida
por dez anos, e refere-se unicamente a candidatos admitidos antes dos 14 anos
de idade, ou que foram admitidos em qualquer casa da mencionada Congre-
gação e que, em seu devido tempo, entraram ou entrarão na mesma...”.18

A linguagem e o estilo do Decreto levam a suspeitar que a Congregação


dos Bispos e Regulares quisesse distanciar-se dessa concessão, contrária à prá-
tica romana, e que devia ser atribuída somente a Pio IX, que desejava atender
aos reiterados pedidos de Dom Bosco. Com essa concessão, Dom Bosco, em
relação aos seus próprios clérigos, esquivava-se da disciplina estabelecida pelo
arcebispo, e que levaria mais tarde a ofuscar as relações com dom Gastaldi,
tratando-se de uma questão à qual os dois davam grande prioridade, ou seja,
a formação e a ordenação de padres. Eles tiveram de aguentar firme diante
de uma situação desagradável, mas nenhum deles jamais aceitou a ideia de
privilégios especiais. Dom Gastaldi, de modo particular, faria o possível para
criar obstáculos à aplicação do decreto ou limitar sua aplicação. Dom Bosco
contra-atacava, buscando mais favores em Roma. Estava tão convencido da
bondade e da retidão de seus objetivos que, quando se defrontava com a
oposição de seu bispo diocesano, procurava esquivar-se dela apelando direta-
mente a Roma, sobretudo ao papa Pio IX, ou a outro bispo.19
Nos inícios de agosto de 1869, cinco meses depois do Decreto, Dom
Bosco buscou e obteve diretamente de Pio IX, o privilégio adicional da
emissão de dimissórias para 11 salesianos que entraram depois de comple-
tar 14 anos.20

18
G. Bosco, Costituzioni, 239s; MB IX, 505 (texto do decreto).
19
Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 261-262.
20
Dom Bosco a Pio IX [antes de 13 de agosto de 1869], em Epistolario III Motto, 122-124.

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Dom Bosco: história e carisma 2

11. Incidentes desagradáveis


Não consta a reação do arcebispo Riccardi. Ao relatar, porém, o “epi-
sódio Albera” deste período, Lemoyne transmite algumas palavras amargas
do arcebispo: “Dom Bosco é um homem orgulhoso. Nega obediência ao
seu bispo”.21
Mais grave, e potencialmente mais desastroso, foi o incidente da orde-
nação “ilícita” de José Cagliero. Agravou-se muito uma relação certamente já
tensa. Nos inícios de novembro de 1869, o diácono José Cagliero solicitou
ao arcebispo a ordenação, que lhe foi negada quando, segundo as Memórias

21
As Memórias Biográficas narram assim o episódio: “Em fins de abril aconteceu um fato desa-
gradável que, parece-nos, não deve passar em silêncio. Não se poderia ter uma ideia adequada da luta
sustentada pela nascente Pia Sociedade, caso se calasse sobre alguns episódios.
O arcebispo dom Riccardi fora administrar a confirmação em None, cidade natal do padre Paulo
Albera. O pároco, teólogo Abrate, reunira os padres de sua paróquia e muitos outros párocos vizinhos; e,
com eles, o teólogo Borel e o padre Paulo Albera, salesiano, a quem ele ajudara. Padre Paulo Albera, para
agradar ao pároco, que muito agradeceu pela ideia, leu uma poesia ao arcebispo, que nem sequer lhe diri-
giu o olhar, de modo que um familiar de sua Excelência resmungava lamentando-se daquela desatenção.
Ao final da refeição, padre Paulo Albera foi apresentado ao arcebispo. Este o tomou pela mão,
colocou-lhe um braço ao redor do pescoço e, apertando-lhe a cabeça contra o peito, começou a dizer:
– Vocês não conhecem o seu arcebispo, nem o amam; só amam Dom Bosco: Dom Bosco é tudo
para vocês e não pensam senão nele.
Padre Paulo Albera respondeu:
– Eu amo o meu arcebispo, mas se sou padre, eu o devo...
O arcebispo interrompeu-o, dizendo:
– Cale-se, cale-se. Não posso explicar-me o quanto amam Dom Bosco. Que santidade é a dele?
Um padre que se atreve a escrever ao seu bispo, dizendo estranhar que lhe tenha mandado enviar seus
clérigos a estudar o quarto ano de teologia no Seminário. É um soberbo, que não quer se submeter.
Quer fundar uma Congregação para subtrair-se à autoridade do arcebispo. Se for santo, demonstre-o
sendo obsequioso com o seu Superior.
Padre Paulo Albera caiu em prantos; queria falar, queria defender Dom Bosco e começou a dizer:
– Monsenhor...
Mas o arcebispo, interrompendo-o, continuou a dizer:
– Cale-se, cale-se. Eu soube por Roma que aprovaram a sua, assim chamada, Congregação; mas,
o que é essa sua Congregação? É uma miséria, e estou convencido de que dentro de dez anos não se
falará mais dela; não pode ser de outra maneira. Veremos, veremos!
E continuou a gritar contra Dom Bosco. Quase todos os presentes aprovavam o que o arcebispo dizia.
Padre Paulo Albera, triste e magoado, via-se perante uma nova aflição. Tentou afastar-se, mas
não pôde; o braço do arcebispo manteve-o apertado durante os dez minutos que durou o colóquio.
Depois, o arcebispo subiu ao coche, acompanhado pelo clero, mas não disse uma palavra ao
padre Paulo Albera, que o acompanhava respeitosamente.
Ao ser informado do acontecido, o pároco, que estivera ausente durante o colóquio, exclamou:
– Sinto não ter estado presente, porque eu lhe teria contestado e lhe teria dito que Dom Bosco,
depois de minha recomendação, continua a manter, instruir e educar em seu Oratório uma dezena de
alunos da minha paróquia, dando esperanças de chegarem a ser piedosos e zelosos sacerdotes” (MB IX,
627s). Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 739.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

Biográficas, recusou “a promessa de abandonar o Oratório”. O problema era


que ainda não emitira os votos, embora pareça que tinha intenção de fazê-lo.
Ao ser-lhe negada a ordenação, fez a profissão religiosa e foi indicado para
a casa de Mirabello, diocese de Casale. Em 14 de novembro, foi ordenado
sacerdote por dom Pedro Maria Ferré.
Em carta de 26 de novembro, o arcebispo comunicou seu desagrado a
Dom Bosco, assim como as penas canônicas em que incorreram todos os que
participaram dessa ordenação “totalmente ilegal”. A resposta de Dom Bosco
pode ser descrita como uma frágil intenção de aparentar uma justificativa,
mas foi uma carta humilde e de desculpa, que, de alguma forma, deve ter
apaziguado o arcebispo.22
Numa segunda carta, de 8 de dezembro de 1869, de Roma, o arcebispo
recusava todas as explicações de Dom Bosco, mas “tudo” perdoava e não
tomava qualquer atitude contra ele. Nesse tempo, começara o Concílio Vati-
cano I, e ele se via envolvido em outras preocupações.23

Dom Bosco ao arcebispo Riccardi, 28 de novembro de 1869, Epistolario III Motto, 159-161.
22

O fato, com alguma alteração, é narrado por Lemoyne em MB IX 82s. e 751s. (no capítulo
23

intitulado “Vexações sem conta”). Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 739-740.

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Apêndice

ALEXANDRE RICCARDI (1808-1870), ARCEBISPO DE


TURIM (1867-1870)

Alexandre Otaviano Riccardi dei Conti di Netro nasceu de nobre famí-


lia, em 23 de maio de 1808, em Biella (Piemonte). Frequentou a Faculdade
de Teologia da Universidade de Turim em que se doutorou; foi ordenado
padre em 1832. Após a ordenação, assumiu o cargo de Esmoler na corte real
até 1842.
Em 24 de janeiro de 1842, foi nomeado bispo de Savona (Ligúria), onde
trabalhou por vinte e cinco anos, até sua transferência a Turim. Em 22 de
fevereiro de 1867, foi nomeado arcebispo de Turim. A sede de Turim estive-
ra vacante desde a morte do arcebispo Fransoni em 1862, exilado em Lyon
desde 1850 e que governara a arquidiocese através de seus vigários. Dom
Riccardi fez sua entrada segundo a solene forma tradicional, pois era aceitável
para a casa de Saboia e para os liberais.
Dom Bosco não conhecia o novo arcebispo, pois viera a Turim e ao Co-
légio Eclesiástico como padre recém-ordenado em 1841, quando Riccardi,
embora ainda servisse na Corte, precisou sair logo de Turim ao ser nomeado
bispo de Savona (1842).
Em 1867, foi nomeado arcebispo de Turim. Dom Bosco apressou-se em
visitá-lo. O primeiro encontro entre ambos terminou, porém, com uma gran-
de desilusão por parte do arcebispo. Dom Riccardi, que apreciava o grande
valor de Dom Bosco, pensara nele para a necessária reestruturação da diocese
e queria que a Congregação fosse integrada na pastoral diocesana, sob seu
controle pessoal, portanto; Dom Bosco contou-lhe que fundara uma Congre-
gação e que fora nomeado superior-geral vitalício pela Santa Sé e que, conse-
quentemente, devia devotar-se inteiramente a ela. O arcebispo, então, não po-
dia contar nem com ele nem com a Congregação para seus planos diocesanos.
Desde então, e durante os três anos em que dom Riccardi ficou no cargo, a
frieza foi dominante nas relações entre os dois. Começaram aí as dificuldades.

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

Quando Dom Bosco precisou do apoio do arcebispo e lhe pediu uma


carta testemunhal para que Roma aprovasse a Sociedade e suas Constituições,
dom Riccardi escreveu, mas também expressou grandes reservas numa carta
dirigida à Congregação dos Bispos e Regulares. O arcebispo também exigiu
que todos os seminaristas, inclusive os salesianos, frequentassem o seminário
diocesano. Como parte do seu programa de reforma, precisava pôr ordem no
seminário e nos seminaristas. O seminário da arquidiocese estivera fechado
desde 1849 e o Oratório tinha funcionado como um seminário em nível
diocesano; nele, os seminaristas salesianos e diocesanos viviam, trabalhavam
e estudavam. Quando o seminário da diocese foi reaberto, em 1863, sob a
direção do vigário capitular José Zapata, depois da morte no exílio de dom
Fransoni, a situação dos seminaristas no Oratório continuava pouco clara.
Em 1866, Dom Bosco escreveu ao reitor do seminário:

Há [uns 50 seminaristas] que vivem aqui [no Oratório] ou em Lanzo [na


escola salesiana]. Empregam sua vida na assistência, no ensino do catecismo e
nas aulas aos meninos pobres, especialmente os que participam dos oratórios
dos meninos nesta cidade.24

Não é de se estranhar, pois, que, primeiramente, o vigário capitular e,


em seguida, o arcebispo exigissem que todos os seminaristas fizessem seus
estudos de Teologia no seminário diocesano.
Dom Riccardi queria que a Sociedade Salesiana estivesse sob o controle
da diocese, embora não se limitasse necessariamente a ela. Mas as pressões do
próximo Concílio Vaticano e sua morte prematura impediram-no de fazer
cumprir essas exigências.
Em 29 de junho de 1867, durante as celebrações do décimo oitavo cen-
tenário do martírio de São Pedro, Pio IX anunciou o Concílio Vaticano. Este
foi inaugurado em 8 de dezembro de 1869, celebrou sua última reunião em
1o de setembro e foi adiado sine die em 20 de outubro de 1870, depois da
ocupação de Roma pelo exército italiano. Por isso, os três anos e sete me-
ses em que dom Riccardi foi arcebispo de Turim foram empregados em sua
maior parte nos preparativos para o Concílio e no próprio Concílio; acres-
cente-se, também, a sua saúde frágil. Como resultado, apesar de seus esforços,
a arquidiocese precisou esperar a nomeação de dom Gastaldi (1871) para se
recuperar dos longos anos de abandono.

Dom Bosco ao reitor do seminário, cônego Alexandre Vogliotti, Turim, 26 de junho de 1866,
24

em Epistolario II Motto, 264.

351

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em abril de 1869, os bispos piemonteses celebraram reuniões de prepa-


ração para o Concílio. A controvérsia sobre a infalibilidade já fazia estragos
desde a publicação de um artigo polêmico sobre o tema na revista dos jesuí-
tas, Civiltà Cattolica. Os bispos piemonteses estavam divididos sobre a ques-
tão e o arcebispo não facilitou qualquer orientação, porque ele mesmo estava
indeciso entre sua “ideia pró-galicana” da necessidade de uma autoridade
episcopal forte em nível local, e a considerada lealdade à Santa Sé. Nas assem-
bleias, porém, expressava-se em oposição à definição da infalibilidade papal.
O arcebispo Riccardi viu-se obrigado, por causa da doença, a abando-
nar o Concílio e Roma para regressar a Turim. Em sua carta pastoral de 20
de junho de 1870, escrita antes da definição, expressava-se prudentemente
ambivalente:

Se fosse apenas uma questão do coração, irmãos e queridos filhos, gostaríamos


de ver o Papa adornado com a definição da infalibilidade. Contudo, como o
coração deve render-se à verdade que o Espírito Santo revelará aos padres do
Concílio, abstemo-nos de expressar a esperança de que o resultado será de
acordo com nossos sentimentos de devoção.25

O bispo de Saluzzo, dom Gastaldi, e os editores do diário católico


L’Unità Cattolica interpretaram essas palavras como uma declaração de apoio
à infalibilidade. Mas, apesar de o arcebispo estar disposto a aceitar uma defi-
nição conciliar, não ficou pessoalmente convencido. Sua declaração, por isso,
parece ser simplesmente “uma profissão de fé no leito de morte”, feita perante
a sua diocese.
Dom Riccardi morreu em Turim no dia 16 de outubro de 1870. Foi
sepultado no jazigo familiar no cemitério público de Turim, pois o governo,
pela primeira vez na história da arquidiocese, negou a permissão para sepultá-
-lo na catedral.

CARTAS DE DOM ALEXANDRE RICCARDI DI NETRO26

A Dom Bosco
O arcebispo de Turim, Alexandre Otaviano Riccardi dei Conti di Netro,
por graça de Deus e da Sé Apostólica, arcebispo de Turim:

25
Sussidi 2, 310.
26
MB IX, 95s.

352

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

Desejando vivamente promover a glória de Deus e a salvação do pró-


ximo, com todas as nossas forças, foi-nos de muito agrado receber intensos
pedidos do sacerdote padre João Bosco, para que, perante a Santa Sé, reco-
mendássemos a Pia Sociedade de São Francisco de Sales, da qual ele é o Rei-
tor-Mor, em vista da definitiva ereção da mesma em Congregação Religiosa.
Considerando, portanto, a finalidade que a Pia Sociedade se propõe, e vendo
o bem que ela faz, principalmente recolhendo e doutrinando na Santa Lei de
Deus tantos pobres jovenzinhos, que de outro modo ficariam abandonados
e em perigo de correr pelo caminho da perdição; vistos os decretos de apro-
vação da mesma, emanados pelo nosso predecessor dom Fransoni, de grata
memória, os quais também se referindo à Sociedade quando não se propunha
mais do que catequizar os meninos nos dias festivos e reuni-los para iniciá-
-los numa arte ou num ofício, resultam sem dúvida de grande louvor para a
mesma; considerando que o Santo Padre, por meio da Sagrada Congregação
dos Bispos e Regulares, se dignava dedicar lisonjeiras palavras à Pia Sociedade
e lhe dava quase um início de aprovação, nomeando superior-geral por toda
a vida o sacerdote padre João Bosco e reconhecendo-a como Congregação
com votos simples, sob a jurisdição dos ordinários diocesanos, diferindo para
tempo mais oportuno a aprovação das Constituições então apresentadas;
considerando que muitos bispos já se dignavam a aprovar perante a Santa Sé
o pedido a ela enviado pelo sacerdote Dom Bosco em vista da aprovação da
Sociedade, por causa do bem que faz e do maior que poderia fazer se fosse
aprovada pela Santa Sé Apostólica; desejando dar uma prova de nossa bene-
volência ao sacerdote Bosco e à Sociedade da qual ele é a cabeça, aprovamos
também nós quanto por nosso antecessor de feliz memória se fez em atenção
à mesma, e instamos vivamente à Santa Sé para que, examinadas e corrigidas
as Constituições apresentadas pelo sacerdote Dom Bosco, superior-geral, e
que são hoje a base da Sociedade, se digne aprová-las e dar assim estável e de-
finitiva existência, por parte da Igreja, a esta Congregação, no modo e forma
que a Santa Sé estimar oportuno, parecendo-nos que isso não pode resultar
mais do que vantagem para a Igreja e o bem do próximo. Dado em Turim,
em nosso Palácio Arquiepiscopal, em 7 de março de 1868.
ALEXANDRE, arcebispo. ANDRÉ ASTENGO, Secr.

Carta confidencial ao cardeal Quaglia, prefeito da Congregação dos


Bispos e Regulares27
Eminência Reverendíssima: O sacerdote padre João Bosco, fundador e
reitor da Pia Sociedade de São Francisco de Sales, insiste vivamente que eu lhe

27
MB IX, 96s.

353

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Dom Bosco: história e carisma 2

envie uma carta comendatícia a fim de obter da Santa Sé que essa Sociedade
seja aprovada como congregação religiosa, de acordo com as Constituições
apresentadas por ele. Querendo porquanto de mim dependa favorecer-lhe
nesse seu desejo, só na parte em que eu creio que sua instituição seja benéfica
para a Igreja, entreguei-lhe a carta de recomendação, cuja cópia anexo. Por
ela, pode Vossa Eminência Reverendíssima perceber que minha aprovação se
refere à Sociedade quando esta não se propunha outra finalidade senão reco-
lher e catequizar os meninos e adestrá-los em alguma arte ou ofício e que, se
suplico a sua ereção em Congregação religiosa, subordino esse pedido a que a
Santa Sé faça uma sábia revisão e correção das Constituições. E, se verdadei-
ramente eu não estivesse convencido de que esta Sagrada Congregação mo-
dificará essencialmente as Constituições apresentadas, jamais estaria decidido
a este passo, mesmo que a minha oposição pudesse acarretar-me graves des-
gostos, pois acreditaria atraiçoar a minha obrigação de bispo se eu me fizesse
protetor de uma Congregação que, se fosse aprovada como se propõe, não
poderia acarretar senão um gravíssimo dano à Igreja, à diocese e ao clero. Em
benefício, portanto, da própria Congregação, e mais ainda para utilidade da
Igreja, acreditei acertado fazer à parte as observações apresentadas, anotando
também, à margem, alguns artigos que, parece-me, devem ser reformados.
Temendo, depois, que a minha razão pudesse enganar-me, quis submeter
as Constituições em questão ao exame do padre Antônio Maria Durando,
Visitador da Missão, homem experimentado e douto, estimado e apreciado
por todos, o qual também constatou que mereciam reforma. Submeto, pois,
todas essas observações à sábia consideração de Vossa Eminência Reverendís-
sima, para que se digne tê-las presentes quando essa Sagrada Congregação for
chamada a examinar as Constituições de que se trata.
Bem quisera que a Pia Sociedade encontrasse a maneira de perpetuar-
-se e difundir-se, mas quisera também que se limitasse ao fim pelo qual foi
instituída e que procurasse eliminar todo inconveniente que possa derivar de
sua ereção como Congregação Religiosa. Mais ainda, quisera fazer um pedido
a esta Sagrada Congregação para que, antes de conceder qualquer aprovação,
se dignasse encarregar uma pessoa alheia, piedosa, douta, experimentada e
prática na educação da juventude para que, localmente, examinasse as coisas
e prestasse conta das mesmas. Essa inspeção, feita sem que ninguém seja pre-
viamente informado de sua finalidade, talvez pudesse revelar muitos incon-
venientes que escapam a minhas observações e iluminar a Sagrada Congrega-
ção, que assim poderia, com maior conhecimento de causa, emendar e refazer
as Constituições, adaptando-as às necessidades das mesmas e aos tempos em
que vivemos. E na confiança de que tanto Vossa Eminência Reverendíssima

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

quanto esta Sagrada Congregação levarão em conta o que tive a honra de


apresentar para os interesses da Igreja e da Pia Sociedade, aproveito com pra-
zer a favorável ocasião de ter a honra de subscrever-me, com profundo respei-
to e igual consideração. De Vossa Eminência Reverendíssima, humilíssimo,
devotíssimo e inegável servidor:
ALEXANDRE, arcebispo de Turim.
Turim, 14 de março de 1868.

Observações feitas por dom Riccardi sobre as Constituições 28


Observações às Constituições apresentadas pelo sacerdote padre João
Bosco para a Congregação de São Francisco de Sales.
I. A aprovação dada pelo arcebispo de Turim e por quem mantinha a
administração da diocese (Const. p. 3 e 4) já não tinha relação com os dois
primeiros fins propostos pela Pia Sociedade: a instrução religiosa dos meni-
nos do Oratório nos dias festivos e a acolhida dos meninos abandonados para
adestrá-los numa arte ou ofício. E oxalá tivesse continuado sempre da mesma
maneira! Querendo agora a Sociedade transformar-se em Congregação e am-
pliar seu campo de ação, é preciso levar em conta tanto seu modo intrínseco
de ser, quanto o fim que se quer propor, examinando atentamente as Consti-
tuições para ver se correspondem a esse fim, sem levar em conta as aprovações
anteriores. Parece-me que seria muito melhor que a Congregação eliminasse
a finalidade, pela qual parece ter preferência, de educar para o jovem clero,
substituindo, por assim dizer os bispos, e se restringisse: 1. aos oratórios do-
minicais; 2. a recolher os meninos abandonados etc., para adestrá-los numa
arte ou ofício; 3. a ministrar aos que apresentem maior aptidão os meios
necessários para poderem instruir-se; 4. a colocar os sócios à disposição dos
respectivos bispos, para catequizar as populações do campo e ajudar os páro-
cos; 5. a divulgar bons livros a preços bem baixos.
II. A Congregação, segundo o artigo 1o do número 3, consta de sa-
cerdotes, clérigos e leigos. Não se diz que estes leigos sejam oblatos, isto é,
conversos, ou então uma classe de sócios perfeitamente iguais aos demais,
possuidores dos mesmos direitos e que poderiam, por conseguinte, chegar à
direção da Sociedade, por não estar excluída das Constituições. Não se diz
se podem continuar no estado laical, mesmo quando forem definitivamente
professos ou eleitos para qualquer cargo. Numa palavra, um leigo pode chegar
a superior-geral e pode eleger outros leigos para o governo da Congregação.

28
MB IX, 97s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

III. Os leigos devem, segundo as Constituições, scientiarum studio se


ipsos perficere (aperfeiçoar-se a si mesmos com o estudo das ciências) antes de
atender ao cuidado dos demais. Mas não se dá a entender, nem sequer por
alto, quais estudos deverão fazer os leigos e quais [estudos devem fazer] os
clérigos. Tudo, portanto, ficará submetido ao arbítrio do Superior, a quem
as Constituições atribuem uma autoridade demasiado extensa e arbitrária, o
qual, em caso de necessidade, poderia apresentar para as Sagradas Ordens os
clérigos que não tivessem feito os estudos necessários da carreira eclesiástica
e sem a devida vocação e educação. Também dependerá apenas dele prescre-
ver os anos de dedicação aos estudos eclesiásticos, como deverão ser feitos,
se nos seminários episcopais ou com professores especiais, se cada aluno
em particular ou todos juntos. Não se prevê nas Constituições se os alunos
da Sociedade devem ficar livres de atender à instrução de outros, durante
os anos de estudo, ou se estão obrigados a prestar serviço como sócios não
estudantes e não clérigos. O costume atual é que muitos clérigos trabalham
como prefeitos ou mestres dos meninos internos, não podendo dedicar-se,
portanto, aos estudos eclesiásticos, e fazem esses estudos privadamente e
sem professores especiais. Parte deles assiste às aulas do seminário porque o
ordinário de Turim os obriga, mas deve-se admitir que, livres de sua depen-
dência, farão como os demais e como parece ser o espírito do Instituto. Este
sistema será de grande dano para a Igreja e para o clero. Dado que, de fato,
os sócios clérigos estão obrigados [pelos votos] por um triênio, podem aban-
donar livremente a Congregação e se terá assim um clero sem a instrução e
educação convenientes.
IV. No artigo 4, do número 4, diz-se que os clérigos e os padres que
possuem patrimônio ou benefícios simples, poderão conservá-los mesmo de-
pois dos votos. Enquanto se provê com estas disposições o bem material da
Congregação e dos sócios, prejudica-se em muito à diocese, porque o clero
provê-se deles com o único fim de ter ministros que possam servir à diocese e,
ao dar o seu nome à Congregação, já não estão a serviço dela, mas continuam
a gozar dos benefícios, impedindo aos bispos a possibilidade de se proverem
de outros [ministros] em seu lugar.
V. Não parece conveniente que a Congregação assuma o encargo de
manter jovens que aspiram ao ministério eclesiástico, como parece ser a in-
tenção do artigo 5, do número 3, quando não sejam alunos da mesma. Os
clérigos não pertencentes à Congregação deveriam depender exclusivamen-
te dos ordinários. Estabelecer seminários para esse fim só pode prejudicar a
autoridade episcopal, fomentar a divisão entre o clero, rebaixar a disciplina
e arruinar os estudos. Dever-se-ia enviar, portanto, os jovens que aspiram

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As Constituições Salesianas. Segunda etapa (1867-1871)

ao ministério eclesiástico, aos respectivos bispos, quando vestem o hábito


clerical, para que sejam educados por eles de acordo com o espírito das
respectivas dioceses. A Congregação deveria contentar-se em prepará-los
para o seminário, salvo se o bispo acreditar como conveniente confiar-lhe
o seminário episcopal.
VI. Não está previsto que os clérigos da Congregação tenham patri-
mônio eclesiástico para a sagrada Ordenação, pois, segundo o artigo 4, do
número 8, desejar-se-ia ordená-los de acordo com os privilégios das Ordens
Regulares. No entanto, é necessário que o possuam, pois podem sair quando
quiserem ou podem ser despedidos. Enquanto, enfim, se concede aos supe-
riores a faculdade de expulsá-los e aos sócios de saírem, nada se dispõe sobre
os ordinários que devem aceitá-los, os quais poderiam assim encontrar-se no
caso de ter que aceitar em seu clero pessoas que, talvez, jamais fossem fazer
parte do mesmo etc., e que, por acréscimo, estarão sem patrimônio.
VII. No artigo 3, número 13, diz-se que para ser admitido na Congre-
gação será preciso fazer um ano de noviciado, mas não se diz nem onde nem
como. Portanto, o noviciado será comum para os alunos clérigos e leigos,
com a mesma formação dada a todos, e os alunos clérigos estarão misturados,
não só com os sócios leigos, mas também com os meninos, com os quais
convivem hoje os sócios.
VIII. Deduz-se do artigo 7, do mesmo número, que também farão parte
da Congregação os que quiserem nela entrar apenas por motivo de estudos.
Ao terem apenas a intenção de fazer seus estudos, não poderiam ter, certa-
mente, o espírito requerido aos clérigos e, sem dúvida, formarão um corpo
único com eles.
IX. Não se pode compreender aonde possa chegar uma Congrega-
ção composta de elementos tão díspares e que não podem ter uma mesma
finalidade. O colégio de Turim já é um caos, agora mesmo, pois vivem
misturados aprendizes, estudantes, leigos, clérigos e padres. E este caos se
tornará sempre maior, ao estender o seu campo de ação. Para as demais
observações, vejam-se as anotações postas à margem dos respectivos artigos
na cópia das Constituições anexadas. Turim, arcebispado, 1o de março de
1868. ALEXANDRE, arcebispo.

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Capítulo XIII

AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS.
TERCEIRA ETAPA (1872-1874)

1. 1872. Dom Gastaldi e Dom Bosco


O tema das relações entre dom Gastaldi e Dom Bosco trata dos episódios
mais tristes e dolorosos da vida do santo Fundador. O confronto abrangeu a
década 1872-1882 e foi muito grave pelas consequências, pela duração e in-
tensidade.1 A primeira fase do conflito abrangeu os anos 1872-1874 e teve por
motivo o processo para a aprovação definitiva das Constituições Salesianas.

Lourenço Gastaldi, arcebispo de Turim. Inícios difíceis


O último ano do arcebispo Riccardi e o primeiro do novo arcebispo
Gastaldi, nomeado em setembro de 1871, foram marcados por fatos trans-
cendentais. O Concílio Vaticano I e os debates sobre seus polêmicos esque-
mas culminaram com a definição da infalibilidade papal. A tomada de Roma
pelo exército italiano em setembro de 1870 e o início da guerra franco-alemã
(1870-1871) levaram à suspensão indefinida do Concílio. A transferência da
capital italiana de Florença a Roma e a entrada do rei Vítor Emanuel II em
Roma, no dia 2 de julho de 1871, deixaram Pio IX diante da angustiante
decisão de partir para o exílio ou permanecer prisioneiro no Vaticano.2
Em abril, dom Riccardi vira-se obrigado a abandonar Roma e o Concí-
lio, devido à sua enfermidade; morreu pouco depois, em 16 de outubro de
1870. Outra vez, como em 1867, a pedido de Pio IX, Dom Bosco elaborou
1
Superou em muito a que dom Gastaldi manteve com irmã Clarac e com Faá di Bruno. Ver
capítulo XIV, p. 420ss.
2
Na história salesiana, 1872 é o ano em que Dom Bosco, com Maria Mazzarello e o padre Do-
mingos Pestarino, fundou o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (fevereiro de 1872). Aconteceu
enquanto Dom Bosco estava doente, em Varazze. Cf. capítulo XXI.

358

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

uma lista de candidatos para as sedes episcopais vacantes. Viu-se, assim, na


ocasião de propor a candidatura de um velho amigo, benfeitor e defensor, o
bispo de Saluzzo, dom Lourenço Gastaldi, para a sede de Turim, que, obvia-
mente, mais lhe interessava.3 A nomeação aconteceu em setembro de 1871,
depois de a sede ter ficado vacante durante quase um ano. Em 26 de novem-
bro, o arcebispo fez sua controvertida e difícil entrada oficial na diocese, e
Dom Bosco partilhou da ansiedade e da emoção do momento.4
Parece que Dom Bosco via a entrada de dom Gastaldi como uma garan-
tia certa de patrocínio no momento em que mais precisava. Tinha a esperança
de que a política eclesiástica de Turim mudaria de modo permanente a seu
favor. Haveria de ter uma amarga decepção; viveria para lamentar a “não
muito pensada” proposta que fizera a Pio IX.
Depois de voltar para Turim, em fevereiro de 1872, de Varazze, onde
fora obrigado a ficar acamado por uma grave e prolongada enfermidade,
Dom Bosco notou uma mudança de atitude no arcebispo. Inicialmente, não
foi uma mudança de amigo a inimigo, mas um distanciamento que se fez
progressivamente mais pronunciado.
As motivações da situação são complexas. Para começar, os golpes in-
cessantes e os ataques violentos da imprensa anticlerical tiveram algo a ver
com elas. Os jornais frequentemente apresentavam os dois juntos e falavam
do arcebispo como uma criatura de Dom Bosco. Pouco depois da tomada de
posse de dom Gastaldi, o diário anticlerical mais sério de Turim, La Gazzetta
del Popolo [A Gazeta do Povo], chegou a dizer:
Pouco importa se o nome do arcebispo de Turim é Dom Bosco ou padre Margot-
ti, e que o nome do seu lacaio seja Gastaldi. Que nos importa? [...] Gastaldi, na
verdade, baseia-se em Dom Bosco como fornecedor da madeira com que se fabri-
cam títeres sacerdotais. Os seminaristas e os meninos tonsurados de Dom Bosco
podem patrulhar as ruas de Turim de cima para baixo, semeando fantasmas qua-
resmais, com o olor de trufas podres, mas que divertem as pessoas educadas [...].5

3
MB X, 442s. Para detalhes e documentação, ver F. Motto, L’azione, 307-315.
4
MB X, 220s. O arcebispo Riccardi foi poupado largamente pela imprensa anticlerical por causa
da sua posição no Concílio Vaticano e da sua política de reconciliação; mas, tendo agora em vista as
novas nomeações, montou-se uma feroz campanha contra todos os possíveis candidatos, sobretudo,
contra os candidatos que eram sussurrados para a sede de Turim. Quando se soube da nomeação de
Gastaldi, este se converteu em alvo dos ataques mais pessoais e vis, e subornou-se o populacho para que
atuasse em sua entrada. Cf. F. Motto, L’azione, 313, n. 173.
5
La Gazzetta del Popolo, 2 de novembro de 1872, n. 306, 2, citado por G. Tuninetti, L’immagine,
219. Padre Tiago Margotti era o poderoso editor do periódico católico integrista, L’Unità Cattolica.
“Baseia-se em Dom Bosco como fornecedor de madeira” é um jogo de palavras (Bosco-bosque), refere-se
ao fato que, no tempo em que o seminário diocesano esteve fechado (1848-1863), o Oratório funcionou
como um seminário que “fabricava títeres sacerdotais”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

E o semanário satírico Il Fischietto [O assobio], sob o título “Biografia


do bispo Gastaldi”, escreveu:

Dom Bosco, o famoso santo beato, sabia que Gastaldi era mercadoria à venda,
que poderia ser utilizado para favorecer seus planos pessoais. Ele apresentou
seu nome ao Vigário de Deus, o ainda não infalível Pio IX, para a nomeação
como bispo de Saluzzo, e assim se fez [...]. Contudo, na recente remodelação
dos bispos, Dom Bosco transferiu-o da Igreja de Saluzzo, onde se derramaram
lágrimas ao ir embora, à Igreja de Turim.6

Retrato do arcebispo Lourenço Gastaldi, publicado com o discurso


comemorativo feito em seu funeral (1883).

6
Il Fischietto, 14 de setembro de 1872, n. 111, em G. Tuninetti, L’immagine, 225.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Primeiro distanciamento
É fácil entender a necessidade que dom Gastaldi tinha de distanciar-se
de Dom Bosco. Aconselhava-o a estreita familiaridade que mantivera ante-
riormente com Dom Bosco. Dom Gastaldi estava muito ciente de seus méri-
tos pessoais, pois tinha “servido muito bem à Igreja”, não só com a defesa da
infalibilidade papal no Concílio Vaticano I como também pela sua história
de bispo eminente. Em seu discurso inaugural, insistiu no fato de que agora
não era arcebispo de Turim por vontade dos homens, mas pela ação do Es-
pírito Santo.7 Ele, certamente, reconhecia sua dívida para com Dom Bosco,
mas é provável que se aborrecesse ao recordá-la.
Dom Bosco, porém, fez-se logo adiante. Com permissão do Papa, foi o
primeiro a comunicar a promoção por telegrama ao arcebispo eleito.8 Não he-
sitou em oferecer sua assessoria e, numa nota informal, também sugeriu que
o padre João Batista Bertagna fosse nomeado pró-vigário da arquidiocese,9
“pessoa muito piedosa, douta, prática e de boa posição”. Talvez, a nova situa-
ção de dom Gastaldi e de seu novo ministério exigisse que a relação tomasse
outra orientação. Além disso, vindo de uma cidade de província relativa-
mente pouco importante para a arquidiocese de São Máximo, dom Gastaldi
assumia responsabilidades muito sérias, fazendo com que tudo, inclusive a
amizade, parecesse secundário. É verdade que, mesmo nessas circunstâncias,
a expressão da amizade seja sempre possível, mas só na medida em que for
compatível com as novas relações criadas.
Parece que houve, enfim, uma razão mais convincente. Em seu novo
serviço, dom Gastaldi reencontrou-se com a identidade de bispo pastor e
reformador que sempre se sentira chamado a ser. Mais importante ainda,
herdava uma política eclesiástica relacionada com a educação e a formação
do clero secular e regular que, embora não fosse estabelecida por ele mesmo,
correspondia à sua mais profunda convicção e estava em consonância com a
tradição canônica.
Antes de ser bispo e já o sendo em Saluzzo, dom Gastaldi fora um dos
melhores amigos e partidários de Dom Bosco. Além disso, ele, sem dúvida,
reconheceu a dívida que tinha para com Dom Bosco pelas suas nomeações.

7
MB X, 221s.
8
MB X, 442s.
9
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi [início de novembro de 1871], em Epistolario III Motto,
383-384; MB X, 220. A sugestão de que o padre Bertagna fosse promovido devia parecer-lhe um ab-
surdo. Gastaldi não só não o nomearia pró-vigário, como também em 1876 haveria de dispensá-lo de
sua cátedra de teologia moral no Colégio Eclesiástico.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Mas com a nomeação para Turim, sua atitude começou a mudar; os sinais
foram inconfundíveis.
Em 17 de fevereiro, o arcebispo assistiu no Oratório à celebração de ação
de graças pela recuperação de Dom Bosco da enfermidade em Varazze; mas
ignorou o convite para permanecer na recepção que se seguiu.
Em março ou abril de 1872, surgiu novamente a incômoda questão das
ordenações, que se prolongou durante os meses seguintes.10 O fato arrancou
de Dom Bosco um comentário que expressava não só decepção, mas também
percepção da mudança: “O que podemos fazer? O arcebispo quer ser a cabeça
da nossa Congregação. Isso é demais. Mas vamos ver”.11
Contudo, justamente nessa época, dom Gastaldi pressionava Dom Bos-
co para que recebesse e dotasse de pessoal a escola diocesana de Valsálice,
que corria o risco de ser fechada. Na verdade, a proposta fora feita em 1869.
Dom Bosco comentara-o com seus conselheiros, que votaram contra, por-
que era uma escola para ricos. Depois de muito hesitar, aceitou o projeto do
arcebispo em junho de 1872. A oferta queria demonstrar que não mudara
a consideração de dom Gastaldi por Dom Bosco e sua obra, apesar de, ao
aceitá-la, Dom Bosco estar fazendo um favor ao arcebispo. Chama ainda a
atenção o fato de a correspondência entre ambos não demonstrar qualquer
animosidade de um pelo outro, mas revelar a vontade do arcebispo de aceitar
os termos de Dom Bosco.12

Reinício do processo de aprovação das Constituições Salesianas


Dom Bosco esteve doente, confinado ao leito no colégio salesiano de Va-
razze (Ligúria), durante um mês e meio e, embora não totalmente recuperado,
depois de meados de fevereiro de 1872, tinha vontade de retomar as atividades
normais. Duas coisas, sobretudo, exigiam a sua atenção: as negociações com

10
Cf. MB XVI, 88ss. Esta Informação está entre os comentários sobre o conflito feitos por
Ceria depois de informar sobre a morte de Gastaldi.
11
MB X, 310s. Neste episódio, o biógrafo cita o relato de uma “testemunha visual” do cônego
João Batista Anfossi. Leve-se em conta que Anfossi, padre diocesano e aluno do Oratório, interviria
poucos anos depois no conflito contra o arcebispo.
12
MB X, 344s. Carta do arcebispo Gastaldi a Dom Bosco, 23 de abril de 1872, e de Dom
Bosco ao arcebispo Gastaldi, 22 de março de 1872, em Epistolario III Motto, 410-411. Em junho de
1872, Dom Bosco aceitou oficialmente a atividade da escola. Arrendou os locais dos Irmãos das Escolas
Cristãs por cinco anos, até 1877. Em 1879, comprou a propriedade. Em 1887 decidiu-se a converter
Valsálice em Seminário para as Missões Estrangeiras, na verdade, seminário menor para a Sociedade
Salesiana. Detalhes em E. Pederzani e R. Roccia, Don Bosco a Valsalice: un contributo per il centenario.
Turim: Scuola Grafica Salesiana, 1987.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

o governo sobre as sedes vacantes, nas quais participou a título privado, e o


processo de aprovação das Constituições, que estava parado.
Em agosto de 1872, o cardeal José Berardi, subsecretário de Estado, fa-
lando em nome do Santo Padre, aconselhou Dom Bosco a ocupar-se da apro-
vação definitiva da Sociedade e de suas Constituições.13 Por isso, Dom Bosco
voltou a solicitar cartas de recomendação dos bispos e novamente se ocupou
com o texto das Constituições. Deste último esforço saiu o texto latino revi-
sado, que apresentaria para a aprovação em 1873 (Ns), e a preparação dos do-
cumentos para a nova Positio ou expediente que seria apresentado em Roma.

“Declaração de intenções” de dom Gastaldi (24 de outubro de 1872)


Justamente quando o processo de aprovação das Constituições Salesianas
se pôs novamente em marcha, a atitude do arcebispo Gastaldi foi-se endure-
cendo. A carta a Dom Bosco, de 24 de outubro de 1872, foi uma “declara-
ção de intenções”. Começava com uma elaborada referência às suas obras de
beneficência no passado e seu apoio a Dom Bosco e à Sociedade Salesiana.
Em seguida, 1o) aludindo ao privilégio que autorizava Dom Bosco a “emitir
cartas dimissórias para os candidatos que entraram no Oratório antes dos 14
anos”, exigia que fosse apresentada a prova documental para todos os casos; 2o)
ordenava que os salesianos que quisessem ser ordenados deveriam apresentar-
-se diante dele, ao menos quarenta dias antes da ordenação, com declarações
juramentadas sobre os dados pessoais, a formação, os estudos e o estado de
profissão religiosa; 3o) dispunha, ainda, que os candidatos salesianos que qui-
sessem ordenar-se deveriam ser examinados na cúria, vez por vez, sobre os cor-
respondentes tratados de teologia; 4o) acrescentava que também poderia exigir
dos estudantes clérigos salesianos a assistência às aulas no seminário diocesano,
como prescrevia uma instrução da Congregação dos Bispos e Regulares, de
3 de março de 1869; ele, contudo, esperava que o resultado desses exames
tornasse esta nova medida desnecessária. Para essas exigências, apelava tanto
ao Concílio de Trento como ao Pontificale Romanum, que estabelecia que “os
religiosos não devem ser ordenados sem o diligente escrutínio dos bispos”.14

13
O cardeal Berardi a Dom Bosco, 27 de agosto de 1872, em MB X, 673.
14
O arcebispo Gastaldi a Dom Bosco, 24 de outubro de 1872, em MB X, 683. Anteriormente,
iniciando pela questão de 24 de junho (1872), uma folha escandalosa do Il Ficcanaso (O Intrometido),
começara a apresentar trechos de uma novela difamatória, intitulada Don Broschi. Descrevia um semi-
nário no qual a desordem e a grosseria reinavam maximamente, e onde alunos e professores, todos, e
seu chefe (Don Broschi), em particular, eram uns hipócritas com a mente distorcida [MB X, 459]. A
carta do arcebispo não fora motivada por tão malvada publicação, mas as acusações, manifestamente
falsas, aumentaram sua preocupação.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O efeito imediato da carta do arcebispo, de 24 de outubro de 1872, foi


agravar a situação de conflito que já se havia criado com o assunto das cartas
dimissórias para a ordenação. Dom Gastaldi não foi o primeiro a opor-se a
esse privilégio, mas aos salesianos pareciam agora vexatórias suas exigências
sobre o assunto, e sua política, uma evidente perseguição; tanto era assim,
que anos mais tarde, no momento de maior conflito, Dom Bosco citará a
carta como a primeira de uma longa série de atitudes de abuso de poder do
arcebispo contra a Sociedade Salesiana.15
Para piorar as coisas, em 8 de novembro, dom Gastaldi recusou uma
lista de salesianos candidatos às Ordens Sacras, que o padre João Cagliero lhe
entregou pessoalmente em nome de Dom Bosco; a negativa ia acompanhada
da ameaça de recorrer a Roma.16
A resposta de Dom Bosco foi uma carta que brotou de um profundo
desgosto, escrita em 9 de novembro. “Tão triste, que era incapaz de encontrar
descanso ou alívio”, suplicava uma explicação ao arcebispo.17 Dom Gastaldi
respondeu no mesmo dia; depois de exortar a Dom Bosco que procurasse
fazer a vontade de Deus e não se alterasse, reafirmava, embora com tom mais
suave, a sua posição, insistindo no que considerava seu direito e dever:

Enquanto reconheço a conveniência de que se conceda às ordens religiosas a


isenção da autoridade episcopal, necessária para sua existência e prosperida-
de, sou, porém, inimigo das isenções não necessárias, especialmente se forem
prejudiciais, como o é, ao meu juízo, a que se quer manter de que o bispo não
examine diligentemente os ordenandos, sendo assim que o Concílio de Tren-
to e o Pontifical dos Bispos o mandam. Infelizmente, neste ponto deixaram-se
introduzir não poucos abusos, que agora se quiseram elevar a privilégio, [...]
que já é hora de se cumprir ponto por ponto o que foi prescrito pela sabedoria
dos Padres de Trento.

E, endurecendo suas exigências, passava a indicar o que ele considerava


outro erro, ou seja, a defeituosa formação religiosa dos salesianos, por causa
da falta de um adequado noviciado ascético. Fazia desta exigência um requi-
sito prévio para o seu apoio.
15
Dom Bosco acusou o arcebispo de tal abuso num memorando dirigido aos cardeais da Con-
gregação do Concílio, intitulado Esposizione del sacerdote Giovanni Bosco agli eminentissimi cardinali
della Sacra Congregazione del Concilio (Sampierdarena, 1881) 8, em OE XXXII, 56.
16
Esta informação é dada por Ceria ao comentar o conflito depois da morte de Gastaldi, em
1883. Cf. MB XVI, 79.
17
Dom Bosco ao arcebispo de Turim Lourenço Gastaldi, 9 de novembro de 1872, em Episto-
lario III Motto, 488-490.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Se este noviciado não existe ou, se existir, sem se parecer muito com o da Com-
panhia de Jesus, vossa Sociedade não terá estabilidade [...]. Com demasiada
frequência, ouve-se repetir a queixa de que muitos destes membros não são
modelos de virtude e, entre elas, de humildade [...]. Isso se poderia remediar
com um bom noviciado que, parece-me, ainda não existe na Congregação
de São Francisco, e, por isso, não poderei promover a aprovação pontifícia desta
Congregação, senão com a condição expressa de que se estabeleça tal noviciado.18

Comentário
Apesar de seu aspecto autoritário, as exigências do arcebispo devem ser
entendidas como expressão de uma preocupação legítima em vista da prepa-
ração adequada dos candidatos à ordenação, assim como da responsabilidade
na matéria, que sentia intensamente. Deve-se notar que de sua declaração
sobre a isenção dos religiosos, segue-se que não era contrário à necessária
isenção dos religiosos, mas sim aos privilégios desnecessários e prejudiciais,
entre eles, em sua opinião, o privilégio de emitir cartas dimissórias.19
Dom Bosco, porém, acreditava que os privilégios tradicionais de isenção
eram necessários para o bom funcionamento das congregações religiosas. Por
conseguinte, assumira essa disposição nas Constituições e a defendera contra
as objeções da Congregação dos Bispos e Regulares em 1864 e 1867.
Quanto à formação religiosa e ao noviciado, ele acreditava na validade
da sua opinião e expôs suas razões ao arcebispo em carta de 23 de novembro
de 1872. Escreveu que, antes da aprovação da Sociedade em 1869, explicara
a praxe da formação salesiana com plena satisfação de Pio IX. É certo que os
documentos oficiais da Sociedade Salesiana – por causa das leis de supressão!
– não previam um noviciado formal, mas na prática sempre existira um novi-
ciado. Ele também questionava a afirmação do arcebispo de que os salesianos
não possuíam as virtudes religiosas necessárias. Se fosse o caso, como explicar
o fato de o arcebispo falar do Oratório até pouco tempo atrás como uma casa
de piedade e virtude?20

18
O arcebispo Gastaldi a Dom Bosco, 9 de novembro de 1872, em MB X, 683s (os cursivos
são do autor).
19
G. Tuninetti, Gastaldi II, 261-262, faz notar que o arcebispo Gastaldi parece opor-se não
só à concessão de determinados privilégios especiais aos religiosos, como também à própria prática de
conceder privilégios. Por outro lado, estava intensamente a favor da vida religiosa como tal, e era muito
agradecido pelo trabalho das congregações religiosas.
20
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, 23 de novembro de 1872, em Epistolario III Motto, 493-
495; MB X, 686s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Depreende-se destes intercâmbios que no enfrentamento para a apro-


vação definitiva da Sociedade, o arcebispo considerava a formação religiosa
e o noviciado e a formação sacerdotal e as ordenações como as duas ques-
tões fundamentais.
Quanto ao primeiro ponto, o desacordo baseava-se no conceito diferen-
te que tinham quanto à Congregação Salesiana e, portanto, ao seu novicia-
do. Na década de 1870, Gastaldi considerava a Sociedade apenas como uma
congregação religiosa tradicional tridentina, o que enfim chegou a ser de fato.
Portanto, o noviciado, em sua opinião, deveria ser um noviciado ascético
fechado, modelado segundo o dos jesuítas. Dom Bosco, ao contrário, só aos
poucos chegou a aceitar esse modelo; e ainda lutou nos anos setenta para sal-
var algumas ideias do modelo diferente que tinha em mente. Num primeiro
momento, ao que parece, teria desejado não uma congregação tradicional,
mas uma congregação mais flexível e adequada ao apostolado com os jovens.
Seu noviciado, naturalmente, deveria ser compatível com esse modelo. Como
observa Stella:

A Sociedade Salesiana fora concebida inicialmente como associação genérica,


que participava tanto da natureza de uma congregação religiosa com votos
simples como da natureza de uma Pia União. Foi concebida como personali-
dade moral com seus direitos civis. Em seu lugar, por pressão das autoridades
da diocese de Turim e do sistema canônico então vigente em Roma, foi força-
da a ser congregação clássica tridentina, com os três votos simples de pobreza,
castidade e obediência, com a obrigação de ter vida comum. Posteriormente,
aos poucos encontrou seu lugar dentro da organização eclesiástica, como uma
congregação clerical isenta.21

Buscando a aprovação definitiva das Constituições de uma congregação


basicamente tridentina, Dom Bosco continuou a lutar para salvar as primei-
ras formulações, como os direitos civis, um sistema menos formal da forma-
ção, o poder decisório sobre os votos religiosos e a possibilidade de conceder
cartas dimissórias para a ordenação dos candidatos. Recorrer a Roma e a Pio
IX pessoalmente pelos privilégios e concessões, parecia a Dom Bosco não só
necessário, mas também normal. Refletia assim certo pensamento eclesio-
lógico ultramontano, no qual a centralidade do Papa se alargava tanto que,
comparando, a função do ordinário local se apagava.
Em 1872, próximo ao Natal, surgiu novamente outro motivo de con-
flito por uma concessão papal. Em sua carta pastoral de Natal, o arcebispo

21
P. Stella, Vita, 159.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

proibira a celebração de três missas consecutivas na noite de Natal, prática


usual em muitas comunidades religiosas.22 Dom Bosco obtivera de Pio IX
o privilégio, em perpétuo, de três missas de meia-noite para suas casas e o
notificara ao arcebispo. Este respondeu “cortês, mas imperioso” que tinha a
intenção de corrigir um abuso e realizar as celebrações litúrgicas estabeleci-
das, à meia-noite, ao amanhecer e durante o dia. Obviamente, dom Gastaldi
não via com bons olhos essas concessões; contudo, depois de um intercâmbio
de cartas, permitiu a Dom Bosco a celebração privada (januis clausis) de três
missas de meia-noite. Dom Bosco, sem perder tempo, notificou aos irmãos,
benfeitores e amigos que as portas principais permaneceriam fechadas, mas
que poderiam entrar por uma porta lateral.23 Mais tarde, ao relatar o com-
portamento hostil do arcebispo durante anos, Dom Bosco apresentaria este
incidente como vexatório; seu comentário é revelador: “O arcebispo acredita
que conhece o espírito da Igreja melhor do que o próprio Papa”.24

2. 1873. Conflito para a aprovação das Constituições25


No final de 1872, Dom Bosco estava reunindo os documentos que apre-
sentaria em Roma com o pedido para a aprovação das Constituições. Por isso,
moveu-se para obter a necessária carta de louvor de dom Gastaldi.

Condições de dom Gastaldi para seu apoio


Em 23 de dezembro de 1872, Dom Bosco apresentava ao arcebispo as
provas tipográficas de um folheto intitulado Breve resumo histórico sobre a
Sociedade Salesiana com alguns decretos relativos ao caso,26 um esboço his-

22
Carta em ASC A110504: Gastaldi, Lettere pastorali, 30-11-72, FDB 616 A7-B3.
23
Inicialmente, o arcebispo permitiu que se celebrasse uma missa na Noite de Natal januis
clausis [o arcebispo Gastaldi a Dom Bosco, 19 de dezembro de 1872]. Mais tarde, mudou e permitiu a
celebração de três missas consecutivas também januis clausis [carta de 21 de dezembro de 1872]. Estes
fatos são narrados com a relativa correspondência em MB X, 690s.
24
“Parece ao arcebispo conhecer melhor o espírito da Igreja do que o Papa”, em G. Bosco,
Esposizione 1881, 9, em OE XXXII, 37.
25
Para um estudo desta complicada história, ver MB X, 661 (Capítulo VII), com abundante
documentação. Recordemos que o tomo X das Memórias foi escrito por Amadei. A documentação de
MB X é confiável, transcrita dos Documenti de Lemoyne e de outras fontes de arquivo. Obviamente, a
tradição biográfica salesiana está invariavelmente do lado de Dom Bosco e não tem nenhuma intenção
de compreender o ponto de vista do arcebispo Gastaldi.
26
De Societate San Francisci Salesii Brevis notitia et nonnulla decreta ad eandem spectantia, em
OE XXV, 103-121, e parcialmente em MB X, 890s. Trata-se da penúltima parte de uma longa lista de
resumos históricos das origens e do desenvolvimento de sua obra, que Dom Bosco elaborou nos últimos

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Dom Bosco: história e carisma 2

tórico destinado a ser apresentado e distribuído em Roma. Na carta que o


acompanhava, Dom Bosco referia-se à nova redação das Constituições, que
se supunha fora vista pelo arcebispo, e voltava a perguntar com vivacidade
se não seria também oportuno apresentar impressa, como parte do Resumo
histórico, a carta de recomendação do arcebispo, de modo que os membros da
Congregação romana tivessem acesso a ela.27 O Resumo histórico era o habitual
estudo histórico que apresentava a Sociedade como existente ainda antes de
sua aprovação em 1869 e agraciada com vários decretos eclesiais ao longo do
seu itinerário histórico. O parágrafo final deve ter surpreendido o arcebispo,
pois, depois de mencionar os elogios e o apoio de 24 bispos e 3 cardeais, Dom
Bosco acrescentava:

Finalmente, nosso benigno arcebispo de Turim, com o desejo de acrescentar


uma prova a mais de benevolência às muitas e grandes concedidas anterior-
mente, enalteceu generosamente a Sociedade Salesiana [...]. E, agora, nosso
arcebispo, todos os bispos da província eclesiástica de Turim, juntamente com
muitíssimos outros, pedem a aprovação definitiva da Sociedade Salesiana.28

Estaria Dom Bosco, embora consciente da opinião do arcebispo, procu-


rando colocá-lo diante de um fato consumado, obrigando, por assim dizer,
que dom Gastaldi e seus bispos sufragâneos fossem assim envolvidos? Com
dom Gastaldi, porém, não se podia brincar. Ele já tomara sua decisão, decisão
que manteria de forma consistente até o fim. De fato, poderia escrever com
prazer a carta de elogio solicitada, mas só com determinadas condições.
Em seguida, o arcebispo procurou obter o apoio de outros bispos com
uma carta datada em 11 de janeiro de 1873, em que especificava claramente

anos, principalmente com a finalidade de obter opiniões ou aprovação das autoridades da Igreja. Esta é
a lista: Apresentação ao cônego Zappata, de 1863; Breve nota, de 1864; A Sociedade de São Francisco de
Sales, para o arcebispo Riccardi, 1867; Resumo histórico, para o bispo Ferré, de Casale, 1868; Breve comu-
nicação e Decretos, de 1868; Meu propósito, aos bispos da província eclesiástica de Turim, 1869; Estado da
sociedade, de 1870; A Pia Sociedade de São Francisco de Sales, de 1873; o presente Breve Resumo Histórico,
de 1874; Resumo, de 1874: os três últimos preparados especificamente para a aprovação definitiva. Para
mais detalhes e referências, ver P. Braido, L’idea, 255-256. Nestes documentos, Dom Bosco apresenta
diversas descrições dos inícios de sua obra e de seu desenvolvimento (o ponto habitual de referência
para o início é 1841) e, em seguida, apresenta o estado atual da Sociedade com uma “eficaz” mescla de
verdade e ficção.
27
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, 23 de dezembro de 1872, em Epistolario III Motto, 499.
Se Gastaldi já tinha “visto as provas tipográficas das Constituições”, pode não ser esse o texto de 1873,
que ia ser apresentado em Roma para aprovação.
28
Brevis notitia, em OE XXV, 121, citado em MB X, 692s. Na carta, Dom Bosco escreve: “Se
Sua Excelência desejar que eu imprima sua carta comendatícia na Brevis Notitia para sua melhor leitu-
ra, por favor, que ela me seja enviada”.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

suas condições. Dom Bosco recebeu uma cópia de dom Pedro José de Gau-
denzi, de Vigévano, um bom amigo; inteirou-se assim das exigências do ar-
cebispo. Posteriormente, quando em 17 de fevereiro visitou o arcebispo antes
de partir para Roma, deu-lhe a conhecer pessoalmente que sabia do seu elo-
gio juntamente com as condições. O arcebispo de Gênova, Salvador Magnas-
co, que o apoiava, tinha reservas semelhantes.29 Por outro lado, Dom Bosco
contava com a recomendação e o apoio dos bispos piemonteses, Pedro Maria
Ferré, de Casale, João Batista Cerruti, de Savona, Pedro José De Gaudenzi,
de Vigévano, Anacleto Pedro Siboni, de Albenga e, mais favorável, Emiliano
Manacorda, de Fossano. A recomendação deste último rebatia, ponto por
ponto, as acusações de dom Gastaldi.30

Carta de dom Gastaldi: objeções e exigências


Seguiu-se uma primeira verdadeira inundação de cartas e memorandos
por meio dos quais o arcebispo fazia objeções às Constituições Salesianas
conhecidas em Roma. Os documentos escritos em vários momentos durante
o processo são citados a seguir para maior compreensão da posição de dom
Gastaldi.
1) Memorando “Quum Admodum”, dirigido à Congregação dos Bispos
e Regulares (10 de fevereiro de 1873).
Depois de elogios generosos à Sociedade, Gastaldi fazia as seguintes exi-
gências: 1o que as Constituições Salesianas sejam apresentadas ao ordinário;
2o que a Congregação Salesiana estabeleça um noviciado segundo o modelo
dos jesuítas; 3o que a profissão perpétua seja requisito para a ordenação dos
candidatos salesianos; 4o que os candidatos salesianos se submetam a um
exame feito pelo bispo antes da ordenação; 5o que o ordinário tenha o direito
de inspecionar as igrejas e os oratórios da Congregação Salesiana, e 6o que se
mantenha minimamente a isenção da jurisdição do ordinário.31
2) Carta ao cardeal Próspero Caterini, prefeito da Congregação do Con-
cílio (19 de fevereiro de 1873).
Gastaldi destacava, entre outros, os seguintes pontos: 1o necessidade de
um noviciado adequado; 2o necessidade de um programa regular de estudos;
3o necessidade dos votos perpétuos antes da ordenação.32

29
MB X, 692.
30
Todas as cartas estão na Positio, transcrita em MB X, 875s.
31
MB X, 927s.
32
MB X, 928s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

3) Primeira carta ao cardeal André José Bizzarri, prefeito da Congrega-


ção dos Bispos e Regulares (20 de abril de 1873).
As críticas de dom Gastaldi eram extensas, mais explícitas e, sem dúvida,
mais prejudiciais.
Sustentava que: 1o a falta de um noviciado afetara negativamente a for-
mação dos clérigos salesianos; 2o o fato de não ter os votos perpétuos antes
da ordenação tornava mais fácil o abandono da Sociedade aos que entras-
sem por motivos econômicos; 3o Dom Bosco aceitara seminaristas expulsos
do seminário diocesano e os mandara dar aulas nas escolas localizadas em
outras dioceses; 4o os estudantes clérigos salesianos careciam de formação
filosófica, porque se dedicavam em tempo integral ao ensino e à assistência;
5o Dom Bosco obtivera a dispensa da assistência dos clérigos estudantes
que iam às aulas no seminário diocesano, obrigação que a própria Santa Sé
impusera etc.
Por isso, a fim de garantir a continuidade da Congregação Salesiana,
mesmo depois da morte de Dom Bosco, o arcebispo dava as seguintes suges-
tões: 1o que as Constituições fossem submetidas à aprovação do arcebispo
de Turim e dos bispos em cujos territórios fossem estabelecidas casas sale-
sianas; 2o que não se permitisse a Dom Bosco apresentar para a ordenação
os candidatos que tivessem entrado depois dos 16 anos de idade; 3o que se
exigisse dos candidatos salesianos a profissão perpétua antes da ordenação
do subdiaconato; 4o que os estudantes salesianos clérigos fossem obrigados a
assistir às aulas no seminário de sua diocese, ao menos durante quatro anos;
5o que os candidatos salesianos, antes da ordenação, se submetessem a um
minucioso exame do bispo, depois de apresentar provas do cumprimento
dos requisitos anteriores.33
Dom Bosco teve conhecimento desta carta, a mais demolidora de dom
Gastaldi, quando estava em Roma para o último pedido, em março de 1874.
Foi quando num memorando dirigido aos quatro cardeais da Congregação
Especial, de 19 e 30 de março, procurou refutar as alegações e objeções do
arcebispo. Por exemplo, para contrastar a exigência de um noviciado formal,
ele deu três razões:

33
MB X, 711ss. Algumas exigências de Gastaldi eram nitidamente razoáveis, apesar de Dom
Bosco ter provavelmente pensado que nenhuma delas o era. Outras, porém, não. Eram uma tentativa
do arcebispo de colocar a Sociedade Salesiana sob o seu controle; embora não se possa deduzir disso
que quisesse criar uma congregação diocesana. Afinal, a Sociedade Salesiana fora aprovada por Roma
em 1869. Entretanto a Sociedade nesse momento, por um lado, não alcançara o status de congregação
clerical nem de congregação isenta; e, por outro, Gastaldi falava e atuava a partir de um conceito muito
particular de autoridade e responsabilidade do Ordinário.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Isso se podia fazer em outros tempos, mas não no presente, em nossos países;
além disso, a Congregação Salesiana seria destruída, pois, a autoridade, perce-
bendo a existência de um noviciado, o eliminaria em seguida e dispersaria os
noviços. Além disso, este noviciado não poderia adequar-se às Constituições
Salesianas, que têm como base a vida ativa dos sócios, conservando como
ascética somente as práticas necessárias para formar e conservar o espírito
de um bom eclesiástico; tal noviciado tampouco serviria para nós, pois os
noviços não poderiam pôr em prática as Constituições, segundo a finalidade
da Congregação.34

4) Segunda carta ao cardeal Bizzarri (27 de julho de 1873).

Gastaldi queria saber se a Sociedade Salesiana era isenta da jurisdição epis-


copal. Repetiu a questão com mais ênfase: “É assim ou não?”. Em seguida,
passava a explicar suas objeções aos privilégios ou concessões especiais.35

A resposta da Congregação dos Bispos e Regulares chegou em 8 de


agosto de 1873, depois da recusa ao primeiro pedido de Dom Bosco para
a aprovação definitiva. “Uma congregação de votos simples não é isenta da
jurisdição ordinária, salvo quando for determinado nas constituições aprova-
das e nos privilégios concedidos especificamente. As Constituições Salesianas
ainda são objeto de exame.” E o cardeal acrescentava: “Contudo, não se pode
ocultar o fato de Dom Bosco ter obtido de Sua Santidade mais de um privi-
légio pessoal em relação às cartas dimissórias [...]”.36
Os privilégios especiais obtidos pessoalmente por Dom Bosco de Pio IX
eram justamente aqueles que o arcebispo Gastaldi não aceitava. E é provável
que a Congregação dos Bispos e Regulares, autoridade competente na ma-
téria, estivesse de acordo com ele e o considerasse uma situação embaraçosa.
5) Terceira carta ao cardeal Bizzarri (9 de janeiro de 1874).
Sabendo que as Constituições Salesianas eram examinadas em Roma,
dom Gastaldi, “por um sentimento de responsabilidade”, desejava expres-
sar novamente sua preocupação pela má qualidade da formação religiosa e
intelectual dos salesianos. Queixava-se de uma série de casos deploráveis de

34
MB X, 794; Epistolario IV Motto, 268-270. Para a “segunda prova” [ele, em geral, evitava o
termo “noviciado”], Dom Bosco pensava num ano passado numa casa salesiana, comprometido nos
trabalhos da Sociedade como adequado e suficiente para a formação do salesiano (G. Bosco, Costitu-
zioni, 196, 192-193).
35
MB X, 728.
36
MB X, 728.

371

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Dom Bosco: história e carisma 2

clérigos malformados e citava a falta de um noviciado adequado como a causa


básica. Escrevia:
Creio que é meu gravíssimo dever manifestar à Sagrada Congregação, tão
dignamente presidida por V. E., a necessidade de se tomar as oportunas deci-
sões para que na Congregação de São Francisco de Sales se torne obrigatório
o noviciado de dois anos, durante os quais os jovens clérigos se exercitem, não
em mandar como acontece agora com demasiada frequência, pois se lhes dá
a fazer o papel de mestres nas várias classes, mas em obedecer como sempre se
fez e se faz nos noviciados tradicionais de outras congregações religiosas, espe-
cialmente nos da Companhia de Jesus. Dom Bosco tem um talento especial
para educar os jovens seculares, mas não parece possuir o mesmo talento para
educar os jovens eclesiásticos.37

O arcebispo Salvador Nobili Vitelleschi, secretário da Congregação dos


Bispos e Regulares, mostrou a carta a Dom Bosco, em Roma, em fevereiro
de 1874, depois do segundo pedido. Para refutar as acusações, Dom Bosco
recorreu a um estratagema. Escreveu uma carta e fez com que fosse envia-
da anonimamente a Roma (a letra parece ser do padre João Anfossi); Dom
Bosco mostrou essa carta ao seu amigo e mecenas, o cardeal Berardi, que,
contente, serviu-se dela.38

Provas e tribulações: primeira apresentação sem sucesso


Em duas ocasiões Dom Bosco foi a Roma para apresentar os pedidos de
aprovação definitiva das Constituições: em 1873 e nos inícios de 1874; na
primeira vez não obteve sucesso.
Acompanhado do novo secretário, pessoa escrupulosa e sem senso de
humor, padre Joaquim Berto, de 24 anos de idade, Dom Bosco chegou a
Roma no dia 19 de fevereiro de 1873. Dentre as cartas de bispos recebidas
em Roma para serem incluídas no processo, algumas expressavam reservas;
as de dom Gastaldi constituíam o principal obstáculo, e o arcebispo aparecia
como seu principal adversário. Parece que as reservas de dom Magnasco e de

MB X, 735s.
37

MB X, 759s. Amadei descreve o ardil desta carta anônima, cujo original está em ASC. O autor
38

anônimo acusava Gastaldi de procurar destruir o bom nome da Sociedade, cobrindo-a de uma negra
infâmia, e de tratar os membros da Congregação dos Bispos e Regulares como crianças e de não saber
nem sequer um pouco de latim. Acrescentava: “Foi Dom Bosco quem o tirou [Gastaldi] da poeira, deu-
-lhe um trabalho e um nome, imprimiu seus livros e trabalhou duramente para conseguir que lhe dessem
o posto que agora ocupa [...]. Teme que os sacerdotes de Dom Bosco possam superar os de sua diocese,
tanto mais quanto seus próprios seminaristas querem ir embora e unir-se a Dom Bosco [no Oratório],
onde se vive melhor”. De fato, alguns seminaristas diocesanos passaram ao Oratório.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

outros bispos, embora reais, representassem ameaça menor. Em todo caso,


Dom Bosco logo descobriu que as queixas do seu arcebispo foram levadas em
conta em Roma e deixaram sequela.
Apesar disso, sem se perturbar, foi adiante e organizou o processo ou Po-
sitio. Além do Breve Resumo histórico e das cartas de recomendação, continha
dois documentos importantes: o novo texto das Constituições e a Declaratio.
Nela, Dom Bosco procura explicar sua aceitação, ou não, das observações
críticas de Savini-Svegliati, de 1864, mantidas ainda em 1869, e outras carac-
terísticas específicas das Constituições Salesianas.39 O novo texto, de 1873,
impresso em latim (Ns), era o resultado final de uma minuciosa revisão do
texto anterior, de 1867 (Ls); mas, atendendo apenas em parte a advertência
que acompanhava a aprovação da Sociedade em 1869, não o tinha conforma-
do plenamente às observações críticas de 1864.40
Não obstante, em 1o de março, solicitou ao Santo Padre a sua aprovação
e apresentou a Positio. Na carta de apresentação, Dom Bosco escreveu: “Duas
coisas, sobretudo, são agora necessárias para completar a obra [de estabiliza-
ção de nossa Sociedade]: a aprovação definitiva das Constituições e a plena
autorização para emitir cartas dimissórias”.41
Dom Bosco permaneceu mais de um mês em Roma, com uma atividade
febril relacionada não só com a aprovação, mas também com a questão urgente
dos Exequatur, ou seja, a autorização governamental para que os bispos pudes-
sem tomar posse dos bens diocesanos. Em vista dessas complicadas e delicadas
negociações, Dom Bosco manteve vários encontros com o arcebispo Gastaldi
que ainda estava privado dos benefícios, como muitos outros bispos, agindo
enquanto isso de forma privada. Dom Bosco pôde, enfim, deixar a cidade em
22 de março. Em 30 de março, já estava em Turim, à espera de um veredicto.

Novos incidentes
Embora as Constituições Salesianas estivessem em exame em Roma, o
arcebispo esperava que Dom Bosco cumprisse suas exigências em tudo que
se referisse à faculdade do ordinário sobre os candidatos e as ordenações
sacerdotais. A menor falha de Dom Bosco em satisfazer as exigências do
arcebispo provocaria atrito entre eles. Alguns incidentes contribuíram para
aguçar ainda mais os temas já em discórdia.

39
De Regulis Societatis Salesiane aliqua declaratio [Uma declaração sobre as constituições da
Sociedade Salesiana], em MB X, 893, editada criticamente em G. Bosco, Costituzioni, 248.
40
Para o texto crítico destas Constituições, cf. G. Bosco, Costituzioni, 18-19 e 59ss. O trabalho
de revisão é descrito em MB X, 673ss.
41
MB X, 956s.

373

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Dom Bosco: história e carisma 2

Um deles centrou-se na ordenação dos candidatos salesianos. Certa oca-


sião, quando o padre João Cagliero, que representava os candidatos salesianos,
apresentou a lista, o arcebispo lançou-a raivosamente ao chão.42 Isso aconte-
ceu em março. As Memórias Biográficas não apresentam qualquer razão para a
insolência; pode-se imaginar, porém, que eram as mesmas razões que levaram
dom Gastaldi a pressionar um pouco mais tarde.
Os diáconos Luís Lasagna e João Baccino, futuros missionários, iam
ordenar-se com urgência fora da diocese. O arcebispo, como já deixara su-
ficientemente claro, exigiu relatórios sobre o momento de sua entrada na
Sociedade e a profissão religiosa e se tinham feito os exames na cúria. Os
dois salesianos fizeram seus exames de ordens na chancelaria e o secretário
do arcebispo notificou a Dom Bosco a sua promoção.43 Incidente semelhante
aconteceu em 22 de agosto de 1873, quando o arcebispo pediu provas da
profissão perpétua ao subdiácono Domingos Milanésio, outro futuro missio-
nário, antes de ordená-lo titulo mensae communis.44
Outra situação de conflito foi criada por Dom Bosco ter acolhido em
casas salesianas alguns seminaristas diocesanos “expulsos”. Em março, o ar-
cebispo suspendera a divinis um cônego da catedral de Chieri. Dom Bosco
defendeu-o e, em seguida, recebeu-o na casa salesiana de Alassio.45
Muito mais grave foi a questão Borelli-Rocca, nos inícios de maio. Dom
Bosco recebera os dois seminaristas, Paulo Maria Borelli, ou Borel, e Ângelo
Rocca, nas casas de Varazze e Lanzo, respectivamente, depois de terem abando-
nado ou serem expulsos do seminário. O arcebispo, por meio do seu secretário,
cônego Tomás Chiuso, pediu uma explicação. Não considerando satisfatória a
resposta de Dom Bosco, comunicou-lhe imediatamente que não ordenaria os
candidatos salesianos enquanto os dois permanecessem numa casa salesiana.46
A resposta de Dom Bosco, em 14 de maio, escrita em Borgo San Mar-
tino, depois de “três dias de retiro espiritual”, criou ainda mais tensões nas
relações. Dom Bosco talvez se tenha esquecido de que estava tratando com
um prelado que governava pelo Sínodo e por decreto; um bispo reformista
que não duvidava em utilizar a suspensão a divinis como medida disciplinar e
que, sobretudo, considerava não negociáveis as questões relativas à formação

MB X, 708.
42

MB X, 709s. Como se sabe, o arcebispo fixara anteriormente essas condições para a ordenação.
43

44
MB X, 735s. A profissão perpétua voltaria a ser também uma exigência de Roma para a orde-
nação titulo mensae communis (sobre a base da vida comum) quando as Constituições Salesianas foram
apresentadas para a aprovação definitiva.
45
MB X, 708s.
46
MB X, 718.

374

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

do clero e às ordenações. Acreditando estar com a razão, Dom Bosco defendeu


a admissão dos ex-seminaristas por razões humanitárias, e acrescentou que em
várias ocasiões lhe fora negada a permissão solicitada em casos semelhantes.
Punha também em discussão o direito do arcebispo de recusar a ordenação dos
candidatos salesianos se estes não eram indignos. Insistia no serviço meritório
que a Sociedade Salesiana prestava à arquidiocese, à qual, “desde 1848, forne-
cera não menos de dois terços do seu clero”. Por último, recordava o louvável
serviço prestado pessoalmente ao arcebispo há pouco tempo, ao impedir a
publicação de artigos desrespeitosos contra ele e, mais ainda, defendendo-o
contra não poucas objeções à sua nomeação como bispo e, depois, arcebispo.
A forma de introduzir este último e sensível ponto é digna de nota:

Existem alguns documentos roubados dos arquivos governamentais, por obra


de desconhecidos, que estão circulando em Turim. Consta neles que, se o cô-
nego Gastaldi chegou a ser bispo de Saluzzo, foi por proposta de Dom Bosco.
Se o bispo chegou a arcebispo de Turim, também foi pela mediação de Dom
Bosco. Recordem-se também as dificuldades que precisou superar para levar
isso a cabo. Mencionam as dificuldades que encontrou para resolver o assunto e
também apresentam razões que me levaram a promover a sua nomeação [...].47

A carta, aparentemente não isenta de ressentimento, é bastante descon-


certante. O arcebispo considerou uma insolência indesculpável a explicação de
um de “seus padres” como ele mesmo teve ocasião de comunicar ao Papa dois
anos mais tarde. Escrevendo a Pio IX, em 12 de abril de 1875, queixava-se:

Recentemente [...], o próprio Dom Bosco, ao voltar de Roma, escreveu-me


uma longa carta em que afirma que se arrependera de ter apresentado meu
nome para a nomeação como bispo de Saluzzo e, depois, como arcebispo de
Turim, e que eu sigo um caminho equivocado. Acrescentava que escrevia essa
carta por ordem de uma autoridade superior. Eu não posso considerar tal carta
de um dos meus próprios padres mais do que uma afronta insolente. Por isso,
mandei um de meus professores do seminário para conversar com ele [...].
Sua resposta foi outra carta em que expressava os mesmos sentimentos.48

47
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, 14 de maio de 1873, em Epistolario IV Motto, 96-98;
MB X, 718s.
48
Arquivos Vaticanos, citados em G. Tuninetti, Gastaldi II, 267, nota 37. Entretanto, mais
tarde, numa carta ao arcebispo, de 28 de outubro de 1875, Dom Bosco escreveu: “Com todo o respeito
[…], posso garantir-lhe, e o senhor o sabe perfeitamente, que se foi nomeado bispo de Saluzzo e depois
arcebispo de Turim [...], foi tudo devido às propostas e aos esforços do pobre Dom Bosco” (Epistolario
IV Motto, 536). Dessa forma, parece que a carta de 14 de maio de 1873 não foi a única vez em que
Dom Bosco alardeou seus bons serviços em favor do arcebispo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em 1873, porém, dom Gastaldi cedeu, sob a condição de que os se-


minaristas diocesanos não fossem aceitos, no futuro, em casas salesianas,
salvo consentimento por escrito da cúria. Dom Bosco escreveu uma de-
claração prometendo fazer o que se exigia, mas acrescentava uma condição
que a faria inaceitável: “[...] Esta declaração é feita com reservas e limitações
prescritas pelos sagrados cânones estabelecidos para tutelar a liberdade das
vocações religiosas”.49
Fez-se no início de agosto uma tentativa de intermediar a reconciliação,
em nome de Dom Bosco, pelo bispo De Gaudenzi, de Vigévano. Este era no-
toriamente parcial em relação aos salesianos e nutria sentimentos ambíguos
em relação ao arcebispo. A dura resposta do arcebispo à carta de dom De
Gaudenzi desanimou tristemente o carinhoso bispo; denunciava asperamen-
te as ações de Dom Bosco; punha também em dúvida sua fama de santidade:
“Os santos nunca desqualificaram seus superiores e não promoveram escân-
dalos que pudessem comprometê-los”.
Quando a carta foi mostrada a Dom Bosco, este assumiu a imprudente
decisão de responder. O comentário inicial demonstrava sua incapacidade
de ter-lhe muito apreço, pois mudara sua atitude de arcebispo desde a época
em Saluzzo: “Se não fosse escrita por um bispo, diria que foi escrita em tom
de brincadeira”. E, depois de examinar as queixas do arcebispo nos últimos
meses e declarar que sempre fizera o possível para realizar os desejos do
arcebispo, acrescentava: “Pergunto-me, há dezesseis meses, o que V. E. tem
contra o pobre Dom Bosco e até o momento não pude saber mais do que
coisas vagas”.50
Escusado dizer que, nessa época, a relação convertera-se em diálogo de
surdos, totalmente convencidos, com razão ou sem ela, da retidão da própria
causa. A longa série de enfrentamentos para as ordenações e as faculdades
para confessar que se seguiriam seriam o resultado inevitável do embate entre
duas pessoas que se consideravam defensoras de uma causa justa.51
As indelicadezas de Gastaldi encontraram eco também nas constitui-
ções do Sínodo Diocesano de 1873. As veladas alusões críticas do arcebispo
a Dom Bosco e à Sociedade Salesiana devem ter tido repercussão entre o

49
MB X, 719.
50
Sobre a troca de correspondência, ver MB X, 729s.
51
Cf. G. Bosco, Esposizione 1881, em OE XXXII, 49-124, em que, mais tarde, Dom Bosco
enumerava com detalhes as situações dos empecilhos de Gastaldi ao longo de muitos anos em todas as
áreas da atividade salesiana.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

clero.52 É compreensível, também, que o descontentamento de Dom Bosco


se estendesse aos salesianos do seu entorno, pois o ouviram queixar-se da
forma de atuação do arcebispo e culpar-se a si mesmo pela sua nomeação,
tendo só recebido ingratidão.

Manuscrito das Constituições Salesianas aprovadas em 11 de abril de 1874.


Transcrição caligráfica do padre Berto.

Depois de receber as cartas de dom Gastaldi, de 24 de outubro e de 9 de


novembro de 1872, comentou com seu secretário, padre Berto: “Pensa nisto!
Fui eu quem o nomeou bispo de Saluzzo e, depois, arcebispo de Turim. Fiz
tudo que pude com a Santa Sé, e também com o governo italiano, que de

52
Sínodo de 25-27 de junho de 1873, nos Títulos XIV (sagradas ordens) e XXIV (os religiosos). O
Sínodo de 1873 e suas deliberações, as facções criadas entre o clero e os ataques da imprensa liberal hostil são
estudadas em G. Tuninetti, Gastaldi II, 85-107, 268. Ver também F. Desramaut, Don Bosco, 855-857.

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Dom Bosco: história e carisma 2

modo algum queria aceitá-lo. Vê, agora, como me trata!”. Dom Bosco cita
depois o Salmo 55,12-13. Em 9 de junho de 1873, padre Berto registrou pala-
vras semelhantes de Dom Bosco que, talvez em relação à controvérsia Borelli-
-Rocca, se queixava da atuação do arcebispo Gastaldi, e citou a lamentação de
Deus em Isaías 1,2-3.53

As 38 observações de Bianchi sobre o texto constitucional


de 1873 (Ns)
Dom Bosco e o arcebispo iam se distanciando sempre mais; enquanto
isso, em Roma, o novo texto das Constituições era submetido ao minucioso
exame do padre dominicano Raimundo Bianchi, designado pela Congregação
dos Bispos e Regulares. Em 9 de maio, ele apresentou sua avaliação ao arce-
bispo Vitelleschi, Secretário da Congregação. Tratava-se de uma revisão dura
e pormenorizada, em 38 pontos, que superavam as 13 observações de 1864.54
O preâmbulo faz referência às objeções e propostas recebidas em Roma:
as já enviadas, “por exemplo, pelo arcebispo de Gênova e, sobretudo, pelo
arcebispo de Turim, ordinário da casa mãe”. Em seguida, expressava “sua [...]
surpresa porque a maior parte das 13 observações críticas entregues oficial-
mente pela Santa Sé [em 1864 e 1869] não tinham sido cumpridas ou foram
esquivadas com pretextos mais ou menos enganosos, como se pode com-
provar pela Declaração sobre as Regras apresentada pelo superior-geral [Dom
Bosco] com o pedido de aprovação”.
O examinador enumerava inicialmente 8 observações (de 1864) que
não foram cumpridas; as mais importantes são, talvez, a 3ª, que negava o
poder de dispensar dos votos; a 4ª, que negava a faculdade de expedir dimis-
sórias; e a 9ª, que exigia a eliminação do capítulo dos salesianos externos.55
Depois, continuava a acrescentar outras 30 observações críticas. Na trigésima
oitava e última, sugeria:

Que, antes de serem apresentadas para a aprovação pela Santa Sé, estas Consti-
tuições sejam diligentemente corrigidas em conformidade com as observações
críticas anteriores, e em conformidade com todas as que Sua Santidade julgar
necessário apresentar. Seria também conveniente que, antes da aprovação, as

53
MB X, 688 e 711ss. Padre Berto, secretário de Dom Bosco desde 1872, escreveu uma espé-
cie de diário, especialmente quando acompanhou Dom Bosco em sua viagem, no qual anotava estas
e outras manifestações. ASC A004: Berto, Cronichette, 1873 e 1873-1874, FDB 907 D8 - 911 A8.
54
As 38 observações do padre Bianchi estão em MB X, 932ss; foram publicadas criticamente
em G. Bosco, Costituzioni, 241-244.
55
Ver as observações Savini-Svegliati de 1864 e a resposta de Dom Bosco no capítulo XI, p. 326-333.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Constituições fossem submetidas a um período de prova, especialmente no


que se refere ao noviciado e ao programa de estudos.

Era o dia 9 de maio de 1873. Pouco depois, em 19 de maio, numa amá-


vel carta, dom Vitelleschi comunicava a Dom Bosco que as Constituições
não tinham passado no exame. Aconselhava-o que não fosse a Roma nesse
momento, mas esperasse pacientemente para receber instruções.56

As observações de dom Vitelleschi


Em 26 de julho chegaram as instruções de dom Vitelleschi, em nome
do Santo Padre, que resumiam em 28 pontos o relatório do padre Bianchi.
Acompanhava as 28 observações críticas uma cuidadosa carta de apresenta-
ção e dava um conselho amigável a Dom Bosco sobre o modo de proceder.
O arcebispo Vitelleschi tinha grande estima por Dom Bosco; estava ciente,
também, do desejo do Santo Padre de ver aprovadas as Constituições Salesia-
nas. Contudo, insistia na necessidade de seguir as orientações.57 Por isso, em
sua carta, o secretário instava a Dom Bosco a aceitar as observações críticas e
rever as Constituições de acordo com elas. E acrescentava:

Em sua maior parte, estas observações são a aplicação das fórmulas estabeleci-
das por Roma para os novos institutos. Dou-me conta de que o exigido para
os novos noviciados e para os estudos e as ordenações é o mesmo que o senhor
desejaria modificar ou eliminar; contudo, por outro lado, tudo isso é precisa-
mente aquilo que os ordinários sempre insistiram e a Santa Sé considerou fir-
me e inquestionável [...]. Os homens passam [...], mas a Santa Sé deve tomar
as providências que garantam a existência e a continuidade de seu instituto.

As novas observações eram precedidas de uma afirmação clara: “É nossa


absoluta vontade que [as observações críticas de 1864] sejam levadas em con-
sideração. O temor das represálias das autoridades [civis] [...] não pode ser
considerado como justificativa suficiente”.
Dentre as 28, estas observações são especialmente dignas de menção:
1o Uma vez que é contrária à prática da Santa Sé a aprovação de um
preâmbulo e um resumo histórico louvando o Instituto, estes dois
capítulos devem ser retirados das Constituições.

56
O arcebispo Vitelleschi a Dom Bosco, 19 de maio de 1873, em MB X, 725s. Os fatos são
relatados em seu contexto em MB X, 726s.
57
O arcebispo Vitelleschi a Dom Bosco, 26 de julho de 1873, em MB X, 728s.

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3o Deve ser suprimida a menção repetida nas Constituições dos di-


reitos civis dos leigos e da obrigação de acatar as leis civis.
7 A manifestação obrigatória da consciência tal como se estabelece
o

nas Constituições não é admissível. A manifestação voluntária po-


deria ser aceitável, mas de algum modo deve ser limitada à obser-
vância externa das Constituições e aos progressos na virtude.
16o Não há nas Constituições disposições relativas ao noviciado.
O noviciado deve ser estabelecido em conformidade com a
Constituição Regularis disciplinae, de Clemente VIII, e com as
prescrições do Direito Canônico. São de particular importância
as normas para que os noviços que vivem em comum numa
casa de noviciado estejam totalmente separados dos professos
e dediquem-se exclusivamente aos exercícios espirituais e não a
qualquer obra do Instituto.
17 Não há disposições nas Constituições sobre os estudos. Os can-
o

didatos ao sacerdócio devem dedicar quatro anos ao estudo da


Teologia, seja numa casa específica de estudos do Instituto ou
num seminário; não devem envolver-se nesse período nas obras
do Instituto.
18o O que se diz nas Constituições quanto às ordenações, “ou seja, em
conformidade com os privilégios concedidos às congregações que
são consideradas como ordens religiosas”, implicaria que o supe-
rior-geral tivesse a faculdade de conceder dimissórias, o que já foi
negado. Uma concessão desse tipo seria objetada pelos ordinários
e, em todo caso, seria uma exceção à lei geral. Algumas exceções
concedidas pela Santa Sé não podem ser invocadas como prece-
dente, principalmente se foram objetadas pelos ordinários. Além
disso, a falta de um noviciado regular e de um programa regular de
estudos contribuiria para dissuadir a concessão dessas concessões.

Os três últimos pontos demonstram que fora ouvida a observação do


arcebispo Gastaldi.

Resposta de Dom Bosco


Com as observações críticas de dom Vitelleschi nas mãos, Dom Bosco re-
viu as Constituições e redigiu uma resposta que acompanhasse a apresentação
final do novo texto. A Congregação dos Bispos e Regulares exigia “aceitação

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absoluta”. Dom Bosco, como indica na resposta, “aceitara a maior parte” das
28 observações críticas que lhe foram apresentadas. Contudo, “no caso de
várias delas”, “fizera alguns ajustes”; em “alguns artigos” mantivera-se firme
“unicamente para salvar seu Instituto de um naufrágio na feroz tormenta das
leis civis”; fizera-o apoiado na “assessoria recebida recentemente”.
Em sua resposta, Dom Bosco aceitava só em parte as seis observações
importantes mencionadas anteriormente:
A primeira observação queria suprimir os dois primeiros capítulos das
Constituições: o Preâmbulo e o Resumo histórico.

Dom Bosco tirou-os do texto, mas manteve-os em letra cursiva, como uma
dupla introdução. Considerava os dois textos importantes, pois eram a base
para se entender o breve primeiro artigo do capítulo sobre a finalidade.

A terceira observação pedia a eliminação das cláusulas que falavam dos


direitos civis dos membros como cidadãos e sua submissão às leis civis.

Dom Bosco aceitou só em parte esta observação. Suavizou-a, mas não elimi-
nou as cláusulas sobre direitos civis e lei civil. Por exemplo, no artigo 2 do capí-
tulo, Forma da Sociedade, ideou uma fórmula mais simples: “Todo aquele que
entra na Sociedade não perde, nem mesmo depois de fazer os votos, os direitos
civis, pelos quais pode válida e licitamente adquirir, vender, fazer testamento
e herdar”. Por outro lado, considerava que a fórmula satisfazia a exigência da
Igreja sobre o voto canônico de pobreza, embora expressasse a essência da po-
breza religiosa em termos de renúncia à administração dos bens, em lugar do
mero “domínio radical” da fórmula canônica. E também a menção dos direitos
civis e seu exercício era uma garantia suficiente diante da lei civil.

A observação quarta pedia disposições constitucionais mais claras relativas


à observância do voto de pobreza, conforme as diretrizes da Collectanea S. C.
Episcoporum et regularium, n. 859.58

Em vez de transcrever o artigo mencionado, Dom Bosco mantém o que escre-


vera nos capítulos sobre a Forma da sociedade e o Voto de pobreza, no sentido
de os membros conservarem a propriedade privada enquanto a Sociedade

O artigo 859 da coleção da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares dizia: “Os religiosos
58

professos com votos simples poderão manter o domínio radical (como se diz) de seus bens, mas não
podem administrar ou utilizar ou dispor das entradas derivadas deles. Por isso, antes da profissão, de-
vem ceder tanto a administração de bens quanto a entrada e o uso dos mesmos, durante todo o período
de seus votos, a quem desejar, inclusive à sua Congregação, se assim o quiserem fazer” (MB X, 747s).

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nada possuía, com a convicção de que esta solução oferecia maior garantia
contra as represálias do governo. Limitou-se a acrescentar uma nota indican-
do que os dois capítulos em questão foram tomados quase literalmente das
Constituições da Congregação das Escolas da Caridade (Cavanis, de Veneza),
aprovadas pelo papa Gregório XVI.

A observação décima sexta anotava a ausência total de uma norma relati-


va ao noviciado e pedia uma diretriz em conformidade com a Constituição
Regularis disciplinae, do papa Clemente VIII, e as demais normas canônicas;
segundo essas normas, os noviços deviam residir numa casa especial de novi-
ciado, em separado dos professos, totalmente dedicados aos exercícios espiri-
tuais e não deviam dedicar-se ao trabalho da Sociedade.
Dom Bosco ampliou consideravelmente o capítulo sobre O Mestre de
noviços e sua direção, a 12 artigos. Não obstante, os artigos revelavam uma
ideia de noviciado salesiano que não correspondia à observação. São estes os
pontos mais enfatizados:
1o Todo sócio, antes de ser definitivamente admitido na Sociedade, deve fazer
três provas. A primeira deve preceder o noviciado e se chama aspirantado
ou postulantado; a segunda é o noviciado propriamente dito; e a terceira é
o tempo dos votos trienais.
3 Em geral, a primeira prova será considerada suficiente se o postulante pas-
o

sou alguns anos numa casa da Sociedade, ou se frequentou as escolas da


Congregação e, nesse tempo, distinguiu-se pela virtude e talento.
6o Cumprida com êxito a primeira prova e recebido o sócio na Congregação
(no noviciado), o mestre de noviços dedique a ele os seus cuidados e nada
omita do que possa ajudar a observância das regras e das constituições.
7 O mestre de noviços deve buscar, pois, com o máximo cuidado:
o

a) mostrar-se amável, manso e com o coração cheio de bondade, para que os


sócios se abram a ele em tudo que os possa ajudar a caminhar na perfeição;
b) dirigi-los e instruí-los nas normas das regras em geral, e especialmente
nas que se referem ao voto de castidade, pobreza e obediência; c) que todos
cumpram e pratiquem de maneira plenamente exemplar o que se refira
aos exercícios de piedade de nosso Instituto; d) fazer também regularmente
uma conferência espiritual, ao menos uma vez por mês.
8 O fim de nossa Congregação é educar os jovens, especialmente os mais po-
o

bres, na ciência e na religião [...]. Por isso, durante a segunda prova, todos
os noviços se exercitarão seriamente no estudo, assim como em dar aulas
diurnas e noturnas, catequizar as crianças e assisti-las também nos casos

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mais graves. E se o sócio tivesse dado provas em todas essas coisas de que
pode trabalhar para a maior glória de Deus e proveito da Congregação e foi
exemplar no cumprimento das práticas de piedade, e também no exercício
das obras de caridade, será considerado cumprido o ano da segunda prova;
caso contrário, ela se prolongará por alguns meses, até um ano.
11 Durante o tempo destas provas, o mestre de noviços procurará recomendar
o

e infundir pacientemente a mortificação dos sentidos exteriores, sobretudo


a sobriedade. Contudo, em relação à mortificação, proceda-se com prudên-
cia para que não debilitem excessivamente as forças físicas e não se tornem
os sócios inaptos para os ofícios do nosso Instituto.59
A observação décima sétima advertia sobre a ausência de uma norma rela-
tiva ao programa regular de estudos e a exigia. Devia incluir a disposição explí-
cita de que os candidatos ao sacerdócio deviam passar quatro anos no estudo
da Teologia numa casa da Sociedade destinada a este fim, ou num seminário
diocesano, e que não se dedicassem nesse período aos trabalhos do Instituto.

Dom Bosco anotou que, no momento, não podia estabelecer uma casa se-
parada especial para este fim e que, em todo caso, teria que ser submetida à
aprovação do Ministério da Educação Pública, conforme as leis do Estado.
Anotava, ainda, que o ensino do catecismo e a assistência dos alunos não
tinham por que ser incompatíveis com um curso adequado de estudos; e que
ao fazê-lo, os clérigos demonstrariam sua capacidade e disposição de assumir
o trabalho do Instituto. Dom Bosco, porém, declarava-se de acordo com um
programa de quatro anos de estudos teológicos, e redigiu e inseriu um breve
capítulo sobre os estudos da seguinte forma:

1. Os sacerdotes e os candidatos ao sacerdócio na Sociedade aplicar-se-ão se-


riamente aos estudos eclesiásticos.
2. Os membros aplicar-se-ão com muita diligência, primeira e principalmente
ao estudo da Bíblia, da história da Igreja, da teologia sistemática, dogmática
e moral. Além disso, aplicar-se-ão ao estudo dos autores e tratados que se
ocupam especificamente da educação dos jovens na fé.
3. Nossos mestres serão São Tomás e os autores que obtiveram reconhecimen-
to pelo seu trabalho na catequese e na educação religiosa católica.

59
Como se pode ver, o noviciado descrito nestes artigos não está de acordo com as exigências
da observação 16. O noviciado de Dom Bosco carece de uma casa de noviciado, não é um noviciado
ascético, os noviços não estão separados dos professos, os noviços participam do trabalho do Instituto.
Além disso, parece que o mestre de noviços é responsável pelas (três) etapas de formação.

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4. Todo membro, além de assistir às aulas diárias, preparará um curso de me-


ditações e instruções adequadas, primeiramente, aos jovens e adaptáveis,
depois, também aos fiéis em geral.

A observação vigésima oitava era a mais séria de todas. Referia-se à facul-


dade de expedir as solicitadas cartas dimissórias para a ordenação e prescrevia
eliminar o artigo.

O artigo quarto do capítulo Governo Religioso da Sociedade, ao falar da orde-


nação dos candidatos salesianos ao sacerdócio pelo ordinário do lugar, deter-
minava que se devesse atuar “em conformidade com o costume aprovado para
as Congregações que possuem uma comunhão de casas, e em conformidade
com os privilégios concedidos às Congregações que são consideradas como
ordens regulares”. Numa nota acrescentada ao artigo, Dom Bosco dizia que
ele fora tomado quase literalmente das Constituições dos Oblatos da Virgem
Maria [Lanteri], parte 2, artigo 1.60
A observação recusava esta alegação como inútil; citava o fato de que o supe-
rior-geral [Dom Bosco] já pedira e lhe fora negada a faculdade de conceder
cartas dimissórias.
Dom Bosco respondeu, mais tarde, afirmando que a negativa se deveu ao fato
de que em 1869, só se estudava a aprovação da Sociedade, não suas Consti-
tuições. Acrescentava que, contudo, obtivera essa faculdade durante dez anos,
aplicável aos candidatos que entraram numa casa salesiana com 14 ou menos
anos de idade. Também obtivera essa faculdade, por privilégio especial, para
os que tinham entrado depois dos 14 anos. Em todo caso, não estava pedin-
do um privilégio geral; solicitava apenas que a faculdade de conceder cartas
dimissórias não se limitasse ao bispo da diocese local, uma vez que o artigo
falava da ordenação pelo bispo da diocese, em conformidade com o Decreto
de Clemente VIII, de 3 de março de 1596. A alegação de Dom Bosco não
foi aceita; o artigo foi finalmente eliminado pelos cardeais da Congregação
Especial antes da votação para sua aprovação.

Não se fazia uma nova observação sobre o capítulo “salesianos externos”.


Dom Bosco manteve-o como apêndice, depois da fórmula para a profissão.
60
“Comunhão de casas” significava casas em várias dioceses, mas unidas ao centro sob uma
regra e sob um superior, como seria o caso de uma congregação religiosa que se estendesse além da
diocese de origem. “Os privilégios concedidos às congregações consideradas como ordens regulares”
poderia significar “privilégios concedidos às congregações clericais isentas, em conformidade com o
costume estabelecido”. O que Dom Bosco pedia em relação às ordenações era a autorização para emitir
cartas dimissórias, que é um dos privilégios da isenção.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Com esta resposta, Dom Bosco mostrava claramente o tipo de Socie-


dade que tinha em mente. O que fica ainda mais evidente numa carta ao
arcebispo Vitelleschi, de 5 de agosto de 1873, escrita, como parece, depois de
ter esboçado a resposta e o Resumo histórico de 1873-1874.

Excelência:
À primeira vista, as observações críticas em relação às nossas Regras não pare-
cem ser impossíveis de cumprir. Contudo, quando me pus ao trabalho, expe-
rimentei todo tipo de dificuldades. Caso se aceitassem essas observações críticas,
eu teria de suprimir uma série de disposições que, em geral, foram aprovadas
no caso de outras ordens ou congregações religiosas. Porque, em questão de
princípios, guiei-me com fidelidade pelas Constituições já aprovadas no caso
de outras congregações, como as dos jesuítas, redentoristas, oblatos e rosmi-
nianos. Além disso, precisaria afastar-me dos princípios que o Santo Padre me
indicou, aos quais se adéquam todas as Regras salesianas [...].61
Tendo isso em consideração, cumpri as exigências na medida em que era
possível, sem reduzir a nossa Sociedade a uma congregação diocesana; caso
contrário, a nossa Sociedade deixaria de existir segundo o previsto. Ao ter
casas em várias dioceses, nossa Sociedade deveria sujeitar-se aos ordinários só
em assuntos relativos à prática externa da religião.
Por outro lado, minha preocupação foi não mudar ou destruir o que já se
tinha estabelecido nos decretos de 1864 e 1869. E para que esses assuntos
sejam entendidos em seu contexto apropriado, escrevi um Resumo histórico.
Peço a Vossa Excelência que leia o Resumo histórico e minha resposta às
observações críticas e, em seguida, por favor, seja muito amável em dizer-me
se, depois das modificações que fiz, poderia voltar a apresentar as Consti-
tuições à Congregação dos Bispos e Regulares com alguma possibilidade de
sucesso. Caso seja preciso cumprir todas as observações críticas, então, prefiro
desistir de apresentar outro pedido, pois uma aprovação conseguida nessas
condições poria a Sociedade Salesiana numa situação muito pior da que
está agora. Escrevo também ao cardeal Berardi [...]. Como explicar que,
enquanto os examinadores de 1869 não puseram nenhuma objeção, agora
há de se fazer tudo de novo?62

61
Os dois fundamentos apresentados por Dom Bosco com tanta frequência são que a Socie-
dade deveria ser, de um lado, uma união de cidadãos perante o Estado e, de outro, uma congregação
religiosa com votos, plenamente reconhecida perante a Igreja. Cf. MB V, 856ss: primeira audiência de
Dom Bosco com o papa Pio IX, 1858.
62
Dom Bosco ao arcebispo Vitelleschi, 5 de agosto de 1873, em Epistolario IV Motto, 151-152,

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. 1874. Segundo pedido de Dom Bosco, novas revisões


no texto definitivo
O aborrecimento e o desânimo de Dom Bosco tornam-se intensos no
último parágrafo da carta. Pareceria estar disposto a “jogar a toalha”. Contu-
do, embora muito tentado a fazê-lo, talvez aconselhado pelo cardeal Berardi,
não se deu por vencido e continuou a lutar. Com os dois documentos men-
cionados concluídos, ou quase, o texto revisto das Constituições e a resposta,
além de um rascunho do Resumo histórico, Dom Bosco, com o padre Berto,
seu secretário, pôs-se a caminho de Roma no dia 29 de dezembro de 1873.
Haveria de ali permanecer até a obtenção do decreto de aprovação em 13 de
março de 1874. Ao longo de dois meses e meio precisou trabalhar incessan-
temente em consultas e entrevistas além de entregar-se a uma atividade febril
relativa à aprovação das Constituições, como também à questão dos Exequa-
tur, no que, afinal, não teve êxito.

Primeiros textos impressos em latim das Constituições de 1874


Nos dias seguintes – 3, 4 e 5 de janeiro – Dom Bosco conversou sobre
as Constituições com dom Vitelleschi e com o cardeal Berardi; e foi-lhe con-
cedida uma longa audiência com Pio IX.63
Em seguida, a Resposta e o novo texto foram completados e impressos
na Gráfica da Propaganda Fide.64 Este texto, o primeiro constitucional de
1874 (Ns-1), tinha um novo capítulo intitulado O mestre de noviços e sua di-
reção, concessão clara a dom Gastaldi. O novo texto constitucional, porém,
refletia basicamente as posições de sua Resposta e estava longe de cumprir to-
talmente o que lhe pedia a Congregação dos Bispos e Regulares. Mantinha,
por exemplo, o preâmbulo e o resumo histórico como prólogos; limitava-se
a reformular os conceitos dos direitos civis, especialmente no capítulo so-
bre a Forma da Sociedade, onde pareciam mais questionáveis; retocavam-se
simplesmente a normativa sobre a pobreza; introduziam-se os capítulos so-
bre o noviciado e os estudos, mas não como era exigido; mantinha firme a

em parte também em G. Bosco, Costituzioni, 19, nota 41, e em sua totalidade em P. Braido, L’idea,
252-253. Motto especula que, apesar do tratamento (“Sua Excelência”), a carta pode ter sido dirigida
ao cardeal prefeito Bizzarri, não ao secretário Vitelleschi. Cabe assinalar, também, que os “examina-
dores” de 1869 tinham indicado claramente que as observações de 1864 deviam ser “absolutamente”
cumpridas. Não se fizeram novas observações nesse momento (1869), porque as Constituições só
foram apresentadas para aprovação em 1873.
63
MB X, 699s.
64
A resposta de Dom Bosco é descrita em MB X, 819ss.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

faculdade de conceder as cartas dimissórias; e colocava o capítulo sobre os


salesianos externos como apêndice.
Durante o mês de janeiro, Dom Bosco continuou a fazer numerosas
visitas, buscando apoio para a aprovação: além das já mencionadas a dom
Vitelleschi, ao cardeal Berardi e a Pio IX, que eram os principais apoiado-
res da sua causa, visitou o cardeal Constantino Patrizi, futuro membro da
Congregação Especial, o dominicano padre Sallua, membro do Santo Ofício
e irmão de congregação do padre Bianchi, e o cardeal Bizzarri, prefeito da
Congregação dos Bispos e Regulares.
Em 2 de fevereiro, dom Vitelleschi comunicou a Dom Bosco que fora
designada a Congregação Especial, formada pelos cardeais Constantino Pa-
trizi, Antonino De Luca, André José Bizzarri e Tomás Martinelli.
Em 17 de fevereiro, Dom Bosco foi apresentado por dom Vitelleschi
ao padre Carlos Menghini, advogado da Sagrada Congregação, que repre-
sentaria os salesianos no processo de aprovação. Dom Bosco mostrou-lhe as
provas tipográficas do seu revisado Resumo histórico com os comentários sobre
o noviciado, os estudos e as cartas dimissórias à parte. Menghini ficou im-
pressionado com o Resumo, mas pensava que era muito extenso. Dom Bosco
pôs-se ao trabalho e redigiu uma versão mais curta, um resumo (Riassunto).65
Juntos, começaram a organizar a documentação ou Positio.66
Foi então, em 21 de fevereiro, que dom Vitelleschi mostrou a Dom
Bosco as cartas de Gastaldi de 26 de julho de 1873 e de 9 de janeiro de 1874,
que seriam incluídas na Positio. Dom Bosco imediatamente fez com que en-
viassem a já citada carta anônima. O cardeal Berardi, em 27 de fevereiro,
prometeu colocá-la à disposição dos cardeais da Congregação Especial.67

Segundo e terceiro textos impressos das Constituições de 1874


Em 4 de março, Dom Bosco tinha um novo texto das Constitui-
ções, modificado, mas não de maneira significativa, levando-se em con-
ta as observações feitas; foi publicado na gráfica da Propaganda Fide.
Este segundo texto constitucional de 1874 (Ns-2) era, basicamente, uma
versão suavizada do primeiro texto de 1874. Em 7 de março, a Positio,
que continha todos os documentos pertinentes ao caso, foi reorganizada

65
Riassunto della Pia Società di San Francesco di Sales nel Febbraio 1874, em OE XXV, 377-384;
MB X, 943ss.
66
MB X, 757s.
67
Cf. MB X, 757s para a carta de Gastaldi, de 9 de janeiro, e para a carta “anônima”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

e impressa.68 O texto das Constituições, porém, era apresentado como


um documento à parte, porque Dom Bosco ainda as estava retocando;
pouco depois, em março, imprimiu-o novamente. É o terceiro texto de
1874 (NS-3). Eliminava o apêndice sobre os salesianos externos, como
fora recomendado por Bianchi, mas Dom Bosco manteve-se firme em
outros pontos fundamentais.
Esse é o texto apresentado, juntamente com a Positio, aos quatro cardeais
da Congregação Especial.
Quando a Positio e as Constituições já tinham sido apresentadas, Dom
Bosco foi recebido por Pio IX, em audiência especial. Em seguida, para de-
fender tenaz e também inoportunamente a sua postura, fez visitas aos carde-
ais da Congregação Especial e a outras pessoas relacionadas com o processo.
Atuando com a assessoria recebida, Dom Bosco redigiu em 18 de março
um memorando de 9 pontos, intitulado Considerações que inspiram o pedido
do padre João Bosco,69apresentando-o aos quatro cardeais da Congregação Es-
pecial, e também ao cardeal Berardi, ao arcebispo Vitelleschi e ao Santo Padre.

Duas sessões da Congregação Especial e aprovação definitiva


Os quatro cardeais, membros da Congregação Especial, celebraram duas
sessões; nelas, o debate versou em grande parte sobre as objeções e propos-
tas de dom Gastaldi, sobre a falta de cumprimento da parte de Dom Bosco
quanto às exigências feitas e, como consequência, sobre as disposições parti-
culares incorporadas no texto constitucional que tinham diante de si.
68
O documento (Positio) está transcrito em MB X, 916ss, e o Summarium para a Congregação Espe-
cial em OE XXV, 335-385. A Positio continha: [1] o pedido de Dom Bosco, [2] o Decretum laudis, de 1864,
[3] as 13 observações Savini-Svegliati de 1864, [4] o decreto de aprovação da Congregação, de 1869, [5] o
memorando Quum admodum, de Gastaldi, de 10 de fevereiro de 1873, [6] a carta de Gastaldi, de 20 de abril
de 1873, [7-12] as cartas de recomendação dos bispos de Casale, Savona, Vigévano, Albenga, Fossano e do
arcebispo de Gênova, [13] as 38 observações críticas do examinador Bianchi, de 1873, [14] as 28 observa-
ções críticas do secretário Vitelleschi apresentadas a Dom Bosco, [15] o relatório de Dom Bosco sobre o esta-
do moral e material da Sociedade, que é a versão mais curta (Resumo, Riassunto) do Resumo histórico (Cenno
istorico) feito por sugestão do procurador de Menghini. Algumas das declarações de Dom Bosco no relatório
são dignas de menção: “Esta Pia Sociedade funciona há trinta e três anos”, em referência ao ano 1841; “Seus
membros, sacerdotes, clérigos e leigos chegam a 330”; “A 44 bispos foram pedidas, e eles escreveram cartas
de recomendações nas quais expressam sua mais elevada aprovação, com a única exceção do atual arcebispo
de Turim [...]”; “Umas três quartas partes dos sacerdotes atualmente ativos em Turim e dos professores dos
seminários da arquidiocese foram nossos alunos, e o mesmo se pode dizer de outras dioceses” etc.
69
Alcuni pensieri che muovono il Sac. Giov. Bosco a supplicare umilmente per la Definitiva Approvazione
delle Costituzioni della Società Salesiana, em Epistolario IV Motto, 263-264; MB X, 786s. Nessa apresentação
de 9 pontos, Dom Bosco repetiu algumas das declarações de notas anteriores, por exemplo, que as Constitui-
ções foram experimentadas durante os últimos trinta e três anos (referindo-se a 1841) e que a obra salesiana
estava a ponto de se estabelecer na América, África e China etc.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Primeira sessão
A primeira sessão foi celebrada no dia 24 de março de 1874. Apesar de
os cardeais se inclinarem pela aprovação, “o debate prolongou-se por causa
das cartas do arcebispo Gastaldi, em especial a de 20 de abril de 1873”.70 A
discussão ficou pendente e a reunião foi adiada para 31 de março.
Enquanto isso, os cardeais continuaram trabalhando e corrigiram o tex-
to das Constituições. Se as iam aprovar, estavam decididos a corrigir as (mui-
to lamentadas) deficiências colocando-as em todos os seus termos de acordo
com o modelo canônico tridentino preestabelecido.
Foram eliminados os capítulos do Preâmbulo e o Resumo histórico, que
eram uma espécie de prólogo, ficando assim os 16 capítulos: Finalidade, For-
ma, Obediência, Pobreza, Castidade, Governo religioso, Governo interno,
O Reitor-Mor, Os demais Superiores, Cada Casa particular, Admissão, Es-
tudos, Práticas de piedade, Noviciado, Hábito, Fórmula da Profissão.
O texto sofreu profundas modificações, especialmente nestes temas: as
cláusulas sobre direitos civis foram quase totalmente eliminadas ou redigi-
das no âmbito da prática do voto de pobreza; os capítulos dos estudos e do
noviciado foram praticamente reelaborados; o capítulo sobre as práticas de
piedade foi consideravelmente ampliado. A faculdade de conceder cartas di-
missórias foi negada e o artigo, suprimido. Sugeria-se em contrapartida que,
se o Santo Padre quisesse conceder a faculdade de apresentar cartas dimissó-
rias, pudesse fazê-lo como privilégio por um período de dez anos.71
Enquanto isso, Dom Bosco não ficou ocioso. Os cardeais pediram a
Dom Bosco que apresentasse um regulamento para o noviciado; Dom Bosco
respondeu imediatamente. Depois de tomar as constituições de outras con-
gregações religiosas, trabalhou a noite toda de 27 a 28 de março e apresentou
o capítulo aos cardeais.72 Como o cardeal Bizzarri já tinha mostrado a carta de
Gastaldi, de 20 de abril de 1873, Dom Bosco, em 29 de março de 1874, pôs-
-se a escrever a resposta na forma de memorando com 12 pontos, enviando-a
aos cardeais e a dom Vitelleschi.73

Segunda sessão. Aprovação definitiva


A segunda sessão da Congregação Especial foi celebrada em 31 de março
de 1874. O texto revisto drasticamente, em sintonia com as exigências de
70
MB X, 711s.
71
As alterações e correções introduzidas estão em MB X, 808ss.
72
O novo capítulo sobre o noviciado, como foi enfim aprovado encontra-se em MB X, 810ss.
73
Epistolario F. Motto, 267-270; MB X, 821ss (corrigir “cardeal Caterini” por “cardeal Bizzarri”).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Gastaldi sobre a formação, foi finalmente aprovado, embora não sem luta.
O debate girou ao redor de uma proposta formulada por um dos cardeais
de que as Constituições fossem aprovadas por um período de prova de dez
anos. Os bons serviços do cardeal Berardi e do próprio Santo Padre ajuda-
ram a ganhar a votação por 3 a 1 para sua aprovação definitiva.
Em 3 de abril, numa longa audiência, dom Vitelleschi deu conheci-
mento disso a Pio IX, que emitiu seu voto pessoal para que o resultado fosse
unânime. Na mesma data, Vitelleschi redigiu o relatório anunciando o voto
afirmativo, com uma explicação de 5 pontos que deixava entrever sua inter-
pretação da votação. Eis o texto:74

Nos dias 24 e 31 de março de 1874, os eminentíssimos cardeais da Santa


Igreja Romana, Patrizi, De Luca, Bizzarri e Martinelli celebraram reuniões
especiais. Eram da opinião de que, apresentada com uma pergunta para sua
aprovação, a resposta devia ser Affirmative et ad mentem [afirmativa, como se
explica em seguida].

Explicação:

1. Devem-se inserir nas Constituições as observações feitas pelo consultor pa-


dre Bianchi em seu relatório de 9 de maio de 1873 [...].
2. Devem ser mencionados nestas Constituições os dois conhecidos decretos
da Sagrada Congregação relacionados com os religiosos, Romani Pontifices e
Regularis disciplinae, de 25 de janeiro de 1848.
3. Além disso, devem-se incorporar nestas Constituições todas as modifica-
ções e emendas indicadas pelo secretário [da Sagrada Congregação] à mar-
gem da cópia anexada e os artigos adicionais, principalmente os relativos ao
capítulo 14, De Novitiorum magistro eorumque regimine, e ao capítulo 4, De
Voto paupertatis, que estão em folha à parte.
4. Quanto à segunda observação feita pelo consultor padre Bianchi, relativa
à faculdade de conceder cartas dimissórias para as ordenações, solicite-se
este privilégio ao Santo Padre por um decênio, segundo o Decreto do papa
Clemente VIII, de 15 de março de 1596, Impositis Nobis, com as mencio-
nadas cláusulas de suspensão enquanto não estiverem na posse do Sagrado
Patrimônio, para os sacerdotes que deixassem a Congregação Salesiana. Este
privilégio, caso seja conferido por Sua Santidade, não conste nas Constitui-
ções, mas figure num Rescrito à parte.

74
MB X, 795.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

5. Pode-se suplicar ao Santo Padre a aprovação das Constituições propostas,


assim modificadas e ampliadas; três eminentíssimos padres opinaram que
esta aprovação seja concedida como definitiva e perpétua, enquanto um
[dos cardeais], como experiência temporária.
[†Salvador Vitelleschi.
Arcebispo de Selêucia]

Diligentemente, padre Berto fez uma cópia caligráfica do texto revis-


to e aprovado (Q). Dom Bosco apresentou o manuscrito a Pio IX para sua
aprovação e apresentação à Congregação dos Bispos e Regulares. Em seguida,
padre Berto faria uma segunda cópia caligráfica para os arquivos salesianos.75

Resultados obtidos
Dom Bosco, porém, não conseguiu impor seu critério, apesar de seus
esforços diplomáticos pelo Exequatur e o prestígio adquirido em círculos ro-
manos por esse serviço, apesar da constante apresentação de memorandos
em sua própria defesa e de sua frenética atividade para levar a causa adiante,
apesar da sua amizade com Pio IX, com o cardeal Antonelli, com o cardeal
Berardi e o arcebispo Vitelleschi. Os cardeais da Congregação Especial tra-
balharam dentro dos princípios jurídicos tradicionais, que eram princípios
relativos à aprovação de uma congregação religiosa, ou seja: a centralização
eclesiástica, a força totalmente vinculante dos votos, mesmo simples, re-
servados ao Papa, a independência em relação à ordem jurídica do Estado,
o gradualismo experimental, a liberdade de consciência dos membros etc.
O trabalho dos cardeais orientou-se mais ou menos pelas Observações críti-
cas de 1864, pelas mais minuciosas de 1873 e, também sem dúvida, pelas
insistentes exigências do arcebispo Gastaldi.
Portanto, os conceitos inovadores de Dom Bosco, que tornavam a So-
ciedade nova e especial, ou seja, flexibilidade nas estruturas, liberdade de ação
em relação às novas realidades políticas etc., foram eliminados ou notavel-
mente reduzidos em sua força. Igualmente, as referências aos tempos e luga-
res, que explicitavam as experiências que Dom Bosco considerava carismáti-
cas e normativas, foram suprimidas ao eliminar os dois primeiros capítulos
e suas referências no restante do texto. As orientações sobre os salesianos
externos, uma ideia totalmente nova, já tinham sido previamente suprimidas.
75
O texto aprovado está em G. Bosco, Costituzioni, 73ss. Não se trata de um texto impresso,
pois o protocolo requeria que o texto aprovado fosse apresentado e arquivado na forma de manuscrito.
Tampouco atribui ao amanuense da edição crítica a letra minúscula por ser uma cópia caligráfica. Para
o decreto, ver G. Bosco, Costituzioni, 253, e MB X, 802.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco obteve de Pio IX a faculdade de conceder as cartas dimissó-


rias para a ordenação dos candidatos salesianos, mas fora das Constituições
e por um Rescrito à parte, como privilégio limitado a dez anos e aplicável
somente aos membros com votos perpétuos.76
Contudo, mesmo derrotado, Dom Bosco julgou-se vitorioso. A breve
carta com que o comunicava ao arcebispo Gastaldi, no mesmo dia do De-
creto, 13 de abril de 1874, tinha um ar de triunfo e um toque de maliciosa
alegria: “Entregam-me neste momento, precisamente com a data de hoje, o
decreto de aprovação definitiva das nossas Regras. Posto que V. E. apoiou-nos
em todos os momentos, quero que seja o primeiro a inteirar-se”.77

4. Conclusão
Ao longo de todo o processo de aprovação, a questão estava entre o que,
na opinião de Dom Bosco, era requerido pelos tempos, um tipo diferente de
congregação para uma nova situação histórica, e a tradição canônica estabe-
lecida, que orientava as ações das autoridades romanas. Enquanto a tradição
estabelecida exigia o controle e a centralização eclesiástica, Dom Bosco queria
caminho livre, ou seja, independência em relação aos ordinários locais e, de
certo modo, também de Roma. Da mesma forma, a tradição estabelecida con-
siderava os votos, mesmo os votos simples, como totalmente vinculantes e sob
o controle exclusivo do Papa; Dom Bosco tinha uma ideia mais flexível e queria
poder dispensar deles quando fosse necessário.78 Na normativa tradicional, as
congregações religiosas estavam sujeitas à ordem jurídica da Igreja e eram inde-
pendentes do Estado. Dom Bosco, porém, queria que a sua congregação fosse
reconhecida como tal pela Igreja e, ao mesmo tempo, estivesse em consonância
com os princípios jurídicos do Estado liberal; pensava uma associação de cida-
dãos livres, que mantivessem seus direitos civis, e não uma congregação religio-
sa ou de outro tipo. A tradição estabelecida concedia o reconhecimento e os
privilégios apenas gradualmente; Dom Bosco queria tudo logo. Se a normativa
tradicional salvaguardava a liberdade de consciência dos sócios, Dom Bosco
pretendia de seus membros a prestação de contas da consciência, não só em vis-
ta da direção espiritual, mas também da sua disponibilidade para o apostolado.

76
Cf. rescrito à parte em MB X, 801.
77
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, 13 de abril de 1874, em Epistolario IV Motto, 277. Nota
do comentário de Amadei em relação a esta comunicação da aprovação, em MB X, 808-809.
78
Esta é a interpretação que Dom Bosco faz da afirmação de Pio IX, que cita: “Esta Sociedade
deve ter votos [...], mas estes votos devem ser simples e como tais possam ser facilmente dispensados”
[Breve notizia, 1864, em MB VII, 892].

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Os cardeais da Comissão Especial não aceitaram nenhuma dessas pro-


postas. Dom Bosco, apesar disso, ficou substancialmente satisfeito com o
resultado que, em alguns aspectos, superava suas expectativas. A Sociedade
e suas Constituições perderam, de fato, grande parte da flexibilidade e ver-
satilidade de que as tinha dotado, mas continuavam a ser, em sua opinião,
uma ferramenta suficientemente adequada e viável para a pastoral salesiana.
Em 4 de março, dia seguinte à aprovação, escrevia exultante ao padre Rua:

Nossas Constituições foram definitivamente aprovadas, com a faculdade de


conceder cartas dimissórias sem restrições. Quando souberes de tudo, verás
que foi realmente fruto das orações. A concessão foi feita ontem pelo Santo
Padre às sete da noite. Por hora, porém, conserva-o “em segredo”.79

É evidente que a concessão mencionada refere-se ao privilégio de dar


cartas dimissórias para a ordenação dos candidatos salesianos. Não era sem res-
trições, embora já não estabelecesse o requisito do ingresso para os candidatos
com 14 anos ou menos de idade. Dom Bosco, numa audiência particular com
Pio IX em 8 de abril, obteve o que talvez tenha sido uma concessão ainda mais
significativa. Em sua forma definitiva, as Constituições recolhiam substancial-
mente as exigências de dom Gastaldi quanto ao noviciado e aos estudos, mas
Pio IX fez concessões à maneira de privilégio nos assuntos que os cardeais re-
cusaram no próprio texto constitucional. Nessa audiência, Dom Bosco obteve
de Pio IX, vivae vocis oraculo (oralmente), a concessão de aplicar um tipo de
noviciado diferente do que Gastaldi pedia e do aprovado nas Constituições.80
São estas as Constituições “modificadas” que Dom Bosco entregou aos
seus salesianos nas edições oficiais de 1874 e 1875, em latim e italiano, ou
seja, não o texto aprovado pela Congregação Romana e arquivado no Arqui-
vo Vaticano e salesiano, mas um texto completamente corrigido e modificado
em pontos estratégicos, em conformidade com as concessões que obtivera
diretamente de Pio IX vivae vocis oraculo.81
Na prática, portanto, as concessões equivaliam a uma derrota do arcebis-
po. Refletiam também uma diferença entre a postura adotada pela Congrega-
ção dos Bispos e Regulares, que aceitou as objeções de dom Gastaldi, e a ado-
tada por Pio IX, que favorecia a Dom Bosco. O arcebispo estava plenamente
79
Don Bosco ao padre Miguel Rua, 4 de abril de 1874, em Epistolario IV Motto, 275-276.
80
MB X, 798s; 816s.
81
Os textos modificados, em latim e italiano (1874 e 1875), estão em G. Bosco, Costituzioni,
73ss, com a designação T e V. O texto latino aprovado (Q) e o texto latino corrigido de 1874 estão
juntos em MB X, 871-994. Ver o estudo de Germano Proverbio, “La prima edizione latina ufficiale
delle costituzioni salesiane dopo l’approvazione pontificia”, RSS 3 (1984), 93-109.

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Dom Bosco: história e carisma 2

consciente da proteção do Papa e entendeu como humilhação a ambiguidade


da solução. Dessa forma, com a aprovação das Constituições, persistiu a ten-
são entre os dois. O modo de proceder do arcebispo e de sua cúria para com
os salesianos tornou-se significativamente mais hostil.82

Texto oficial latino das Constituições impressas em Turim


por Dom Bosco para os Salesianos (1874).

Talvez, por não ter recebido uma comunicação oficial de Roma nem
uma cópia autêntica das Constituições e do Decreto, dom Gastaldi tenha
insistido em exigir da Congregação Romana uma declaração explícita sobre
a aprovação da Sociedade Salesiana.83 Seu pensamento expressa-se mais clara-
mente nos meses seguintes, numa carta a Pio IX, de 4 de outubro de 1874,84
como também no citado Relatório ad limina. Nos dois documentos, ele reu-
nia suas queixas habituais sobre Dom Bosco e os salesianos. E no Relatório
atreveu-se a expressar a esperança de que, quando o Concílio Vaticano vol-
tasse a reunir-se e fosse abordada a questão do noviciado e da formação dos

82
Ver MB X, 821ss, sobre a crescente animosidade da correspondência.
83
O arcebispo Gastaldi ao arcebispo Vitelleschi, 2 de setembro de 1874, em MB X, 842s. Em
seu relatório ad limina, de 31 de dezembro de 1874, Gastaldi lamentava-se: “[A Congregação Salesia-
na] agora reivindica ter a aprovação definitiva da Santa Sé. Mas o Decreto Pontifício que concede esse
tipo de aprovação ainda não me foi mostrado”. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 270, nota 49, citando
um documento dos arquivos diocesanos.
84
O arcebispo Gastaldi ao papa Pio IX, 4 de outubro de 1874, em MB X, 847ss.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

religiosos, seria reconhecida a competência do bispo diocesano para julgar a


idoneidade dos candidatos à vida religiosa e também seria mantido o direito
do bispo de examinar diligentemente os religiosos antes de serem admitidos
às ordens sacras.85
Tem-se a impressão de que ele tinha a intenção de continuar combaten-
do. O modo como anotou a carta de Dom Bosco com a notícia da aprovação
era um presságio de conflitos futuros. Escreveu sublinhando as palavras: “13
de abril de 1874 – Dom Bosco – Notificação da aprovação definitiva do seu
Instituto, que, sem dúvida, não é definitiva”.86

85
Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 270, nota 49, citando documento dos arquivos diocesanos.
86
MB X, 808; a fonte não é citada.

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Apêndice

COMENTÁRIOS DE DOM BOSCO SOBRE QUESTÕES


IMPORTANTES RELACIONADAS COM A
SOCIEDADE SALESIANA

O Noviciado
As Constituições Salesianas eram criticadas por não oferecerem estrutu-
ras adequadas para a formação religiosa e sacerdotal; deficiência que refletia,
talvez, uma carência real no grupo. Como se disse anteriormente, essa era a
opinião de dom Gastaldi e uma das razões pelas quais se opôs à aprovação das
Constituições nos anos setenta e à concessão de privilégios nos anos oitenta.
A falta de uma norma sobre o noviciado era especialmente notável.
Diz-se, às vezes, que Dom Bosco era partidário de um noviciado aberto,
diferente de um noviciado fechado. Contudo, ele não pensava nesses ter-
mos. O noviciado significava apenas uma coisa: o internamento espiritual
e ascético preparatório no qual se iniciava no trabalho da missão de uma
congregação. Se a Sociedade que tinha em mente era uma associação mais
flexível, unida pela vontade pessoal e pela promessa de trabalhar pelos jovens,
é provável que seja mais justo dizer que Dom Bosco não estava pensando
absolutamente num noviciado. Ele evitou usar o termo “noviciado” enquanto
Roma não o obrigou a fazê-lo, e isso não foi apenas por razões políticas. Dom
Bosco falava de “uma primeira e segunda prova” e de “admissão à prática da
regra”. Por isso, os primeiros rascunhos das Constituições continham um
capítulo sobre a admissão de candidatos, mas nenhum sobre o noviciado.
Parece, portanto, que, embora cedendo à vontade superior, aceitando o mo-
delo tradicional para sua congregação, ele insistia em continuar com as ideias
do modelo anterior, que para ele eram importantes. Uma delas era que seus
jovens candidatos deviam iniciar-se no interior de um grupo que praticava
algumas regras para obras de caridade, mediante a prática dessas normas para
as obras de caridade. Essa iniciação não estaria vinculada a uma determinada

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

casa, nem se limitaria a um período específico de tempo. Isso parece espe-


cialmente importante porque o grupo em seu conjunto orientou-se para os
jovens e para os pobres. A ideia vai mais além; vai além do “noviciado aberto”,
que é uma adaptação cultural moderna do conceito tradicional, que seria um
anacronismo na época de Dom Bosco.
Mesmo depois de ter modificado a forma da Sociedade, Dom Bosco
continuou a defender esse tipo de iniciação e a ser a favor de que os candi-
datos se formassem numa situação de trabalho real; caminho que, em última
análise, mostrara-se válido por seus resultados excelentes (assim ele o reivin-
dica). Parece que Pio IX estava de acordo nesse ponto.
O noviciado enfim aprovado nas Constituições Salesianas pela Congre-
gação dos Bispos e Regulares foi o noviciado ascético tradicional das con-
gregações tridentinas. Contudo, servindo-se do privilégio obtido de Pio IX
vivae vocis oraculo, Dom Bosco continuou a formar seus salesianos por algum
tempo “admitindo-os à prática da Regra” e não segundo o noviciado tradicio-
nal. Todavia, não passou muito tempo antes de ele estabelecer um noviciado
basicamente segundo o modelo aprovado nas Constituições.

Privilégios e dimissórias
Há que se levar em conta que nos anos 1860 a 1870, a Igreja fazia um
grande esforço para acabar com os abusos do clero, tanto secular quanto
regular, a fim de fazer cumprir a disciplina eclesiástica e reforçar a autori-
dade episcopal. Dentro desse programa reformador, a tendência de Roma
era reduzir os privilégios concedidos quase rotineiramente às congregações
religiosas clericais.
Os privilégios consistiam na isenção parcial da autoridade episcopal e
que se referiam ao governo e à disciplina de uma congregação religiosa. Um
aspecto importante da isenção tinha a ver com o programa de capacitação e
formação dos candidatos às ordens sacras e com a faculdade do Superior de
julgar os méritos dos candidatos concedendo cartas dimissórias ao bispo local
ou a qualquer outro bispo para sua ordenação. As congregações que gozavam
desses e de outros privilégios menores eram chamadas congregações isentas
(ou seja, não sujeitas à jurisdição episcopal em determinadas áreas).
Além do fato de, nessas circunstâncias históricas, a Santa Sé procurar
reforçar a autoridade episcopal e reduzir as isenções fáceis, também havia a
questão jurídica de quando uma congregação podia obter a isenção e quais
credenciais podiam ser necessárias. Por exemplo, segundo o Direito Canô-
nico então vigente não era suficiente para a isenção que a congregação fosse
aprovada como congregação clerical.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco começou a solicitar a isenção especialmente em relação à


faculdade de conceder cartas dimissórias quando pediu a sua aprovação pela
primeira vez em 1864, ocasião em que obteve o Decretum laudis. O louvor
do instituto foi um primeiro passo no processo de aprovação, mas não uma
aprovação. Obviamente, seu pedido do privilégio de dimissórias foi negado.
Foram-lhe concedidas, porém, por razões práticas, algumas faculdades
nesse sentido. Entretanto, ele procurou obtê-las diretamente de Pio IX como
concessão especial. E, em cada pedido de aprovação, continuou a pedir com
insistência o privilégio de dimissórias como parte das Constituições. As exi-
gências de Dom Bosco e a mentalidade que as inspiravam tiveram a oposição
enérgica do arcebispo Gastaldi e não seduziram as autoridades romanas.
Os privilégios foram concedidos à Sociedade Salesiana em 1884, dez
anos depois da aprovação definitiva das Constituições. Foram concedidas por
comunicação dos privilégios dos Redentoristas, incluindo a isenção da juris-
dição episcopal e a faculdade de conceder dimissórias, isto é, de apresentar os
candidatos da Sociedade Salesiana às ordens sacras. O que conferia à Socieda-
de Salesiana o estado de isenta, que é a mais elevada categoria jurídica obtida
por uma congregação.

RESUMO HISTÓRICO (Cenno istorico) DE 1873 - 187487

Início desta Congregação


Nos anos 1841 a 1848 já se praticavam algumas regras, segundo o espí-
rito desta Congregação, mas não se tinha vida comum.
Nesse ano (1848), surgiu um furioso ataque contra as ordens religiosas
e Congregações Eclesiásticas e depois, em geral, contra o clero e todas as
autoridades da Igreja. Era o furor e a maledicência inspirada no ódio contra
a religião, cujo efeito foi o distanciamento da juventude em relação à vida
cristã. O que, por sua vez, influiu gravemente nas vocações à vida religiosa e

MB X, 849ss. O texto está em OE XXV, 231-250: Cenno istorico sulla Congregazione di San
87

Francesco di Sales e relativi schiarimenti. Roma: Tipografia Poliglota da S.C. de Propaganda, 1874, con
approvazione dell’Autorità ecclesiastica. Foi editado, a partir de manuscritos de arquivo, por P. Braido,
Don Bosco per i giovani, 112-146, com aparato crítico, apresentando as variantes dos rascunhos que
precederam a edição final. Estes primeiros rascunhos apareceram na forma de manuscritos: um com-
pletamente da mão de Dom Bosco e dois transcritos pelo padre Berto, ambos com correções de Dom
Bosco. Os manuscritos estão em ASC A230 Pubblicazioni, FDB 302 A4-E11. A edição crítica de
Braido é precedida por um importante estudo introdutório, intitulado L’Idea della Società Salesiana nel
“Cenno Istorico” di Don Bosco del 1873/1874, ibid., 81-111.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

ao sacerdócio; seu número reduziu-se drasticamente. Enquanto os institutos


religiosos iam se dispersando, vilipendiavam-se os sacerdotes, encarceravam-
-se alguns, confinavam-se outros em prisão domiciliar. Como era possível,
humanamente falando, cultivar o espírito da vocação?
Naquele tempo, Deus dignou-se tomar a iniciativa e mostrar claramente
de onde queria escolher o novo tipo de milícia da Igreja: dentre a gente sim-
ples e não das famílias ricas, porque elas ordinariamente enviavam seus filhos
à escola pública ou aos grandes colégios. Nesse ambiente, ficava logo sufocada
qualquer tendência a esse estado.
Aqueles que manuseavam a enxada ou o martelo deviam ser os esco-
lhidos para assumirem seu lugar glorioso entre os destinados ao ministério
da Igreja. Contudo, onde encontrar meios para pagar os locais necessários,
os estudos, a alimentação, a roupa, o título eclesiástico e, mais tarde, a cota
de resgate para livrá-los do serviço militar?88 A divina Providência, embora
fôssemos fracos, serviu-se de nós como instrumento, e nas mãos de Deus e
com a sua santa ajuda fizemos o que ele queria.
Comecei, então, a buscar meninos do campo, acrescentando-lhes alguns
aprendizes do Oratório de São Francisco de Sales que se distinguiam pela
moralidade e aptidão para o estudo. Iam regularmente à escola; mas para re-
cordar constantemente aos novos alunos sua condição humilde e, ao mesmo
tempo, diminuir os gastos, nós nos servíamos deles para assistir os compa-
nheiros, dar-lhes aulas noturnas e o catecismo nos vários Oratórios festivos já
abertos na cidade de Turim.
Aos primeiros, acrescentaram-se muitos outros. É difícil imaginar as
provas, os sofrimentos e as dificuldades que então precisei suportar das au-
toridades civis e escolares.89 Deus, porém, abençoava a sua obra e em 1852
já se conseguira formar um grupo de alguns jovenzinhos que prestavam em
público e em privado muitas obras de caridade pelo que eram estimados por
todo tipo de pessoas. O arcebispo de Turim desejava que se conservasse o
espírito dessa nova instituição. Por isso, nesse mesmo ano (1852) aprovou-a
e nomeou seu diretor único o sacerdote João Bosco, conferindo-lhe todas as
faculdades necessárias e oportunas àquele fim.

88
Em 30 de maio de 1869 foi abolida a isenção limitada do clero quanto ao serviço militar,
concedida a cada diocese na proporção da população. Entretanto, podia-se obter a isenção por resgate,
ou seja, podia-se comprar a isenção do serviço militar pagando taxas um tanto elevadas. Essa prática
tornou-se descontínua pela lei de 7 de junho de 1875.
89
“Provas, sofrimentos e dificuldades” podem referir-se ao tempo dos primeiros problemas do
“oratório itinerante” ou à perseguição do oratório por parte do vigário Miguel de Cavour (antes, por-
tanto, de 1852, como se deduz do texto), MO, 152ss.

399

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Dom Bosco: história e carisma 2

Mesmo sem chamar a atenção do povo, criaram-se Oratórios festivos


em diversos bairros da cidade; abriram-se escolas e residências para meninos
pobres. Enviavam-se todos os anos alguns clérigos aos seminários de diversas
dioceses; enquanto isso, alguns que tinham vocação permaneciam aumen-
tando o número da Congregação nascente. Em 1858 já contávamos com uns
tantos sacerdotes, clérigos e alguns seculares. Todos os membros viviam em
comum e, falando em geral, observavam as regras da Sociedade Salesiana.

Pensamento do Santo Padre sobre esta Pia Sociedade


Então, em 1858, o arcebispo Fransoni, de feliz memória, aconselhou-
-me a buscar uma solução estável para o futuro de tantos meninos já hospeda-
dos por mim ou que participavam dos oratórios festivos. Deu-me uma carta
autógrafa e enviou-me ao Supremo Hierarca da Igreja, o grande Pio IX. Este
incomparável Pontífice recebeu-me muito amavelmente; quis que lhe expu-
sesse minuciosamente os princípios desta Instituição e o que me tinha levado
a iniciá-la, o que se fazia e como se fazia. Depois acrescentou:

– Meu querido (filho), estais realizando muitas coisas; mas sois um homem e,
se Deus vos chamasse para onde todo homem deve ir, o que seria de todos os
vossos empreendimentos?
– Beatíssimo Padre – respondi –, esta é a finalidade da minha vinda e o moti-
vo pelo qual estou aos Vossos Pés. [Estou aqui] para suplicar a Vossa Santida-
de ter por bem dar-me as bases de uma Instituição compatível com os tempos
e lugares em que vivemos.
– A empresa não é tão difícil. Trata-se de viver no mundo sem atrair a atenção
do mundo. Contudo [não tenhais medo]; se Deus quer esta obra, Ele nos
iluminará. Ide e orai; voltai dentro de alguns dias e vos direi meu pensamento.

Uma semana depois, retornei ao Santo Padre. Ao ver-me, começou logo


a falar-me assim:

– Vosso projeto pode fazer muito bem à juventude pobre. Uma Associação,
uma Sociedade ou Congregação religiosa parece necessária nestes tempos lu-
tuosos. Deve-se fundamentar nestas bases: uma Sociedade de votos simples,
porque sem eles não existiriam os vínculos oportunos entre os sócios e entre
superiores e inferiores.
O modo de vestir, as práticas de piedade sejam tais que não chamem a aten-
ção do mundo. As regras sejam suaves e de fácil observância. Estude-se a
maneira de todo membro ser um religioso diante da Igreja e um cidadão livre

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

na sociedade civil. Talvez seja melhor chamá-la de Sociedade e não de Con-


gregação, porque com este nome chamará menos a atenção. Procurai adequar
as vossas regras a esses princípios e, uma vez concluído o trabalho, entregai-o
ao cardeal Gaudi (Gaude); a seu tempo, ele me falará sobre isso.

Apoiado nas bases sugeridas pelo Santo Padre, depois de receber sua
bênção, comecei logo a adequar as Constituições, escritas e praticadas há
alguns anos em Turim, com o que me fora proposto.
O cardeal Gaude leu tudo com muita bondade e eu, conservando como
ouro os seus sábios conselhos e reflexões, depois de receber outra vez a bên-
ção e o incentivo do Santo Padre, voltei a Turim e ao seio da nossa família de
Valdocco.90

O decreto das cartas comendatícias de 1864


As Constituições assim modificadas foram praticadas como prova du-
rante seis anos, nos quais foram introduzidas algumas modificações, confor-
me a maior glória de Deus parecia exigir.91
Em 1864, depois de receber cartas comendatícias de alguns bispos,
apresentei as regras ao Santo Padre, que as recebeu com sua costumeira
bondade e (também) manifestou especial interesse por elas. Por decreto da
Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares, datado em julho de 1864,
expressava sua satisfação por aquilo que os sócios salesianos estavam reali-
zando. Depois de recomendar e louvar a Congregação em geral, deixou a
aprovação das Constituições para tempo mais oportuno. Contudo, aten-
didas as circunstâncias especiais de tempos e lugares, nomeou a quem isto
escreve como superior-geral por toda a vida, fixando a duração no cargo
para o seu sucessor em doze anos.
Ao mencionado decreto acrescentaram-se 13 observações; foi-me pedi-
do para fazer minhas considerações sobre a possibilidade de introduzi-las em
seu lugar oportuno (dentro do texto das Constituições) e sobre como fazê-lo.
Em carta assinada por dom Svegliati, explicava-se que alguma delas, es-
pecialmente a quarta, relativa às dimissórias, fora feita porque a Congregação
Salesiana ainda não estava definitivamente aprovada.

Francisco Gaude, OP (1809-1860), primeiramente professo e, depois, procurador-geral da


90

Ordem [dominicana], foi nomeado cardeal em 1855 e vigário de Roma. Era do Piemonte e amigo de
Dom Bosco a vida toda. Supõe-se que Dom Bosco lhe apresentou uma cópia das Constituições de
1860, como fez com o exilado arcebispo Fransoni. Entretanto, o cardeal morreu em 1860 e não se sabe
se conseguiu informar ao Papa.
91
O primeiro rascunho das Constituições é de 1858.

401

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dificuldades para as sagradas ordenações


Até então (1864), cada bispo ordenava nossos sócios, segundo as normas
gerais dos sagrados cânones. Cada bispo devolvia com prazer a nossas casas o
sacerdote recém-ordenado. Em outras palavras, o bispo presenteava com um
sacerdote a mesma casa que enviava, ano após ano, vários seminaristas à dio-
cese. Contudo, depois do Decreto das [cartas] comendatícias as coisas muda-
ram. Com a nomeação de um superior e com as normas para sua sucessão, os
bispos consideravam a Sociedade como um corpo moral. Perguntavam, en-
tão, se deviam ordenar em nome da Congregação ou do ordinário. Não podia
ser em nome da Congregação, porque esta não podia conceder as dimissórias;
e tampouco em nome do ordinário, porque, diziam, o ordenando pertencia a
uma família religiosa. Nesses casos, o que eu fazia era enviar uma declaração
do ordinário da diocese onde meus clérigos residiam, enquanto o bispo, na
maioria das vezes, a aceitava e conferia as ordens sacras aos candidatos.
Os bispos, então, como se tivessem colocado de acordo, aconselha-
ram-me a levar à Santa Sé uma súplica pedindo a aprovação definitiva da
Sociedade. E, ainda mais, um elevado e benemérito personagem me acon-
selhou formalmente.92

A aprovação da Sociedade em 1o de março de 1869


Os seis anos seguintes desde o Decreto das cartas dimissórias foram cheios
de incertezas e dificuldades. Até que, enfim, apoiado nas comendatícias de 24
bispos fui [vim?] a Roma. Todos eles apoiavam a aprovação da Congregação
assim como também das regras tal como estavam quando as apresentei. Pedia-
-se, portanto, implicitamente também a faculdade das dimissórias (como uma
das constituições propostas). Procurei adequar-me às (13) observações (de
1864); e numa declaração escrita fazia a exposição do que se tinha introduzido
nas Constituições e quais de suas partes tinham sido modificadas. Contudo,
também suplicava que fossem suspensas algumas observações, pois me parecia
que deviam ser seguidas somente enquanto a Congregação não fosse aprovada
definitivamente. Como esta Sociedade apresenta em sua constituição algumas
bases um tanto diferentes das de outras congregações já existentes, precisei
apresentar muitos esclarecimentos a dom Svegliatti, ao cardeal Quaglia, ao
próprio Santo Padre e ao benemérito cardeal Berardi.93

92
Com quase toda a segurança, a referência aqui é ao cardeal José Berardi que, desde 1867,
aparece como defensor tenaz e conselheiro de Dom Bosco. José Berardi (1810-1878), substituto do
secretário de Estado, cardeal João Antonelli, foi nomeado cardeal em 1868.
93
Ângelo Quaglia (1802-1872), criado cardeal em 1861, foi prefeito da Congregação dos Bis-

402

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Como os esclarecimentos e as observações foram quase iguais para cada


um, exponho-os aqui na forma de diálogo para maior clareza do leitor.94
[1] P. - Esta Sociedade existe para o bem do próximo ou dos sócios?
R. - A finalidade desta Sociedade é o bem espiritual dos sócios, median-
te o exercício da caridade para com o próximo, especialmente para com os
meninos pobres.
[2] P. - O que mais mirais ao aceitar os sócios?
R. - Para a aceitação dos sócios, mira-se de modo especial à virtude dos
mesmos; e isso, porque nossa Congregação não se destina a admitir conver-
tidos que desejem dedicar-se à oração, à penitência, ao retiro, mas a reunir
indivíduos de vida honesta que, baseados na virtude e na religião, desejem
dedicar-se ao bem da juventude, sobretudo dos meninos mais pobres e em
perigo. Por essa razão, até agora, só aceitamos jovens conhecidos de há muitos
anos e que viveram em nossas casas com uma conduta exemplar em todos os
aspectos.
[3] P. - Tendes noviciado?
R. - Temos noviciado, mas as leis públicas, os lugares nos quais vivemos,
não permitem ter uma casa separada, destinada exclusivamente a essa finali-
dade. O noviciado, que nós chamamos de tempo de prova, é feito num setor
da casa principal localizada em Turim.
[4] P. - Em que consiste essa prova?
R. - A prova divide-se em três períodos. O primeiro é o dos aspirantes,
que deve preceder o noviciado. O segundo é o noviciado propriamente dito,
que dura ao menos um ano. O terceiro é o dos votos trienais. Até agora só
aceitamos os que estiveram em nossas casas durante quatro, cinco e até sete
anos e tiveram vida exemplar, tanto nos estudos como nos exercícios de pie-
dade cristã. Quando isso é comprovado, o aspirante é admitido à segunda
prova, ou seja, à prática exata das Regras da Sociedade, ao menos por um ano,
às vezes dois e até mais.
[5] P. - Que práticas religiosas são realizadas pelos noviços?
R. - Os noviços dedicam-se normalmente ao estudo e à prática das Re-
gras da Congregação. Todas as manhãs, fazem oração vocal e meditação, re-
zam a terceira parte do rosário e comungam várias vezes por semana. Durante
o dia, eles fazem leitura espiritual, visita ao Santíssimo Sacramento, com a
leitura de um tema ascético, exame de consciência e comunhão espiritual.
Todas as tardes do ano reúnem-se numa determinada hora na igreja, cantam

pos e Regulares a partir de 1863.


94
MB IX, 507s.

403

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Dom Bosco: história e carisma 2

uma loa religiosa, leem a vida do santo do dia, cantam as ladainhas da Virgem
e assistem à bênção com o Santíssimo Sacramento. Além destas coisas espe-
ciais, os noviços assistem também a todas as práticas comunitárias de piedade
dos outros jovens da casa, como as orações da manhã e da noite, com uma
pequena prática adequada, as funções sagradas dos dias festivos, ou seja: duas
missas, matinas e laudes da Virgem (do Ofício breve), explicação do Evan-
gelho pela manhã; assistem à tarde ao catecismo ou o ensinam aos meninos;
intervêm na instrução comunitária com pregação, vésperas, bênção etc.
[6] P. - Com que frequência (os noviços) se confessam?
R. - Segundo nossas Regras, confessam-se todas as semanas com confes-
sores designados pelo Superior.
[7] P. - Que instruções ascéticas especiais ofereceis aos que fazem essa prova?
R. - Além do que foi exposto, o mestre de noviços faz semanalmente
uma conferência moral sobre as virtudes que se devem praticar e os defeitos
que se devem evitar, tomando como tema um artigo das Constituições.
[8] P. - Em que mais se ocupam?
R. - Durante o tempo de prova, os noviços ensinam o catecismo sempre
que isso seja necessário, assistem os meninos da casa e, às vezes, também dão
alguma aula diurna ou noturna, preparam os mais atrasados para a confirma-
ção, a comunhão e ajudam a Santa Missa e coisas deste tipo. Nisso consiste
a parte mais importante da prova. Quem não tiver aptidão para esse tipo de
ocupações, não é aceito na Congregação.
[9] P. - Quais são os resultados morais (das pessoas em questão)?
R. - Até agora, os resultados têm sido muito satisfatórios. Os que saem
bem destas provas são bons sócios, apegam-se ao trabalho, fogem do ócio. O
trabalho torna-se uma necessidade para eles; por isso, prestam-se com prazer
para qualquer ocasião que possa redundar na maior glória de Deus. Os que
não têm aptidões para esse gênero de vida ficam livres para seguir sua vocação
em outros lugares.

Programa de estudos
[10] P. - Que plano seguis para os estudos?
R. - Não se aceita ninguém como clérigo da Congregação se este não
foi aprovado com sucesso no curso de estudos secundários. Depois, são ad-
mitidos aos cursos de Filosofia; reúnem-se todos em nossa casa (mãe) de
Turim e dedicam-se a esses estudos por ao menos dois anos. Os que devem
preparar-se para exames oficiais fazem um curso de três anos. Digo exames

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

oficiais porque as leis exigem que os professores, tanto das escolas públicas
quanto particulares, tenham um título oficial, e é preciso que nossos profes-
sores possuam um título ou diploma, porque os que não o têm são excluídos
do ensino.
[11] P. - Tendes professores aptos para ensinar os membros da vossa
Congregação?
R. - Entre os muitos que se submetem aos exames oficiais, temos um
número suficiente. Quando é preciso, ajudam-nos alguns de nossos ex-alu-
nos, hoje professores oficiais, que de muito bom grado vêm ajudar sempre
que são chamados.
[12] P. - Como organizastes o estudo da Teologia?
R. - Estabelecemos os cursos normais de Teologia no Oratório de São
Francisco de Sales.
[13] P. - Que partes da Teologia são especificamente ensinadas?
R. - Estudamos normalmente Hermenêutica bíblica, História eclesiásti-
ca, Teologia moral e Teologia dogmática especulativa.
[14] P. - De onde obtendes professores para o ensino da Teologia?
R. - Temos vários membros da Sociedade que conseguiram o doutorado
e ensinam como professores. Até agora sempre tivemos um dos mais célebres
professores do seminário arquiepiscopal, que pontualmente ainda dá aula
durante o ano todo e preside os exames ao final do curso. Pertence à Congre-
gação como membro externo.95
[15] P. – De que autores vos servis? E quantos anos duram os cursos
que fazeis?
R. - Em geral, o nosso mestre é São Tomás de Aquino. (Especialmente)
para a Teologia moral nos atemos às obras de Santo Afonso, segundo os tra-
tados de monsenhor (Pedro) Scavini e (usamos os tratados) do padre (João)
Perrone para a Teologia dogmática especulativa. Nosso curso teológico (nor-
malmente) tem a duração de cinco anos. Contudo, por causa da (avançada)
idade e de alguma outra grave razão, um candidato pode apresentar-se às or-
dens no quarto ano. Não obstante, obriga-se a fazer o quinto ano de Teologia
depois do sacerdócio.

Dom Bosco pode estar se referindo ao cônego doutor Francisco Marengo que, com padre
95

Roberto Murialdo, é louvado no Bollettino Salesiano [6 (1882) n. 5, 92] como professor responsável e
confessor dos meninos mais velhos no Oratório. Cf. P. Braido, Don Bosco per i giovani, 132.
Por “membros externos, Dom Bosco pode querer indicar os que se afiliam à Sociedade Salesia-
na, embora sem votos e que não vivem comunidade. Ou, talvez, quer simplesmente dizer “um grande
amigo e um seguidor”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

[16] P. - Como fazeis para o estudo da Teologia moral?


R. - Para o estudo da moral, temos o curso normal na (casa mãe da)
Congregação.
Mas antes de apresentar-se ao exame final de confissão, depois de
completarem o quinquênio, nossos membros assistem por mais dois anos
às conferências (sobre Teologia moral-pastoral) que, sob a imediata su-
pervisão do arcebispo, são oferecidas no Colégio Eclesiástico na igreja da
Consolata.
[17] P. – Diz-se que o senhor ocupa os seus clérigos em outras ativida-
des. É verdade?
R. - Nossos clérigos, por regra geral, não se ocupam em outras ativi-
dades. Quando se deve fazer alguma prova ou há uma necessidade especial,
dedicam-se também à assistência no salão de estudo (onde eles podem estu-
dar); são assistentes nos dormitórios, nos recreios, nos passeios, na igreja e em
situações semelhantes. Só fazem isso, porém, durante o tempo livre, sem que
os impeça de ir às aulas e estudar. Em caso de necessidade, pede-se a alguns
clérigos que, temporariamente, deem aulas nas classes diurnas e noturnas.
Contudo, deve-se ter em conta que estas várias ocupações são adequadas à
sua vocação e à finalidade fundamental da nossa Sociedade. Estas ocupações
preparam os sócios para trabalharem pelo bem das almas. Além disso, seu
trabalho é bem organizado, restando-lhes tempo mais do que suficiente para
atender aos estudos e à piedade.
Mais ainda, a experiência de trinta e três anos ensina-nos que essas ocu-
pações feitas com assiduidade são um baluarte inexpugnável para a morali-
dade.96 Eu observei que os mais ocupados e os mais trabalhadores recordam
com muita satisfação seu período de formação; desfrutam de boa saúde de
alma e corpo e, quando chegam ao sacerdócio, trabalham com abundantes
frutos no sagrado ministério.
[18] P. - Não seria melhor que vossos clérigos fossem para as aulas no
seminário?
R. - Enquanto não se pôde fazer de outro modo, nossos clérigos iam à
aula no seminário. Entretanto, tão logo foi possível, embora com grandes
sacrifícios, precisei fazer de outro modo. Os programas são diferentes dos de
nossa Congregação e são alterados com frequência, pois cada professor expli-
ca e segue o próprio programa.

Se este memorando foi escrito em 1874, “trinta e três anos” deve se referir a 1841, ano em
96

que, depois da ordenação, Dom Bosco entrou no Colégio Eclesiástico.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Além disso, os dias e as horas indicados para as aulas no seminário não


coincidem com o horário da nossa Casa. Deveriam percorrer quase 4 milhas
de ida e volta diárias ao seminário, o que supõe um tempo bastante notável.
Acrescente-se a isso que, para ir ao seminário, é preciso cruzar os lugares mais
povoados e frequentados da cidade. Ali, as modas estranhas de vestir e falar,
os charlatães, os jornais, os livros, as fotografias obscenas e frequentemente
as piadas e as provocações comprometeriam, como de fato aconteceu muitas
vezes, a moralidade e a mesma vocação dos alunos.

As cartas dimissórias
Assim expostas literalmente as coisas que se referiam aos estudos, ao
noviciado e à observância prática das regras, todos os personagens menciona-
dos deram-se por satisfeitos. Continuava, porém, a dificuldade da concessão
das dimissórias, parte fundamental das Congregações Eclesiásticas.97 Salvo as
congregações diocesanas, as demais que têm comunhão de casas em diversas
dioceses, todas gozam entre nós dessa faculdade. Os bispos desejavam coope-
rar na consolidação da Sociedade Salesiana e favorecê-la no que julgavam ser
útil e conveniente. Pois bem, a faculdade de conceder as cartas dimissórias
seria incluída nas Constituições com sua aprovação. Esta faculdade estava
incluída (nos textos de 1864 e 1869) quando se tratou da aprovação da So-
ciedade em geral, e não das constituições. (Por essa razão) chegou-se a um
compromisso: conceder, não em força das constituições, mas como concessão
pessoal ao superior da Congregação, a faculdade de conceder as dimissórias
durante dez anos a todos os que, tendo ingressado em nossos colégios ou
residências antes dos 14 anos, tivessem a seu tempo abraçado a Congregação.
Para os de maior idade, o pedido seria feito vez por vez (à Santa Sé), para um
determinado número (de candidatos), sempre que fosse preciso.
O Santo Padre era favorável à concessão (temporária), e despediu-me
com estas palavras consoladoras:
– Caminhemos passo a passo; a pressa não é coisa boa. Quando vossos
assuntos caminham bem, a Santa Sé costuma aperfeiçoar e não proibir.
E, de fato, quando se pediu à Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares
a faculdade de dar as dimissórias, esta foi concedida uma vez a 7 (candidatos),
outra a 10, ultimamente a 6, à escolha do Superior da Congregação à medida
que via sua necessidade. Esquivou-se, assim, da dificuldade das ordenações e
desde então não houve problema de qualquer gênero em relação a isso.
97
Por “congregações eclesiásticas”, Dom Bosco pode simplesmente indicar “congregações reli-
giosas” (de homens) aprovadas pela Igreja ou, talvez, “congregações clericais”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Valendo-me sempre do conselho daquele alto personagem, sem aguar-


dar que terminasse o decênio, apresentei as mesmas Constituições (com uma
disposição que garantia as cartas dimissórias) para a aprovação definitiva.
[À esta altura, Dom Bosco acrescentou no primeiro rascunho deste
Resumo histórico:]
São duas as razões para continuar a apresentar este pedido. Primeiramente, o
Papa que, por assim dizer, fundou e guiou esta Sociedade, deve ser a mesma
pessoa que lhe dê sua aprovação definitiva. Em segundo lugar, antes de minha
morte, que vejo chegar em bom ritmo, quero legar aos meus irmãos uma
Sociedade solidamente estabelecida e definitivamente aprovada.
Quando vi o Santo Padre pela última vez e entreguei-lhe um relatório so-
bre como estavam as coisas, perguntou-me com grande amabilidade: “O que
mais precisa para levar o seu projeto à conclusão desejada?”.
Respondi-lhe: “A aprovação definitiva das Constituições com a faculdade de
expedir cartas dimissórias. Uma das razões desse pedido é que nossas casas
estão sendo criadas, sempre em maior número, em várias dioceses de diversos
países. Temos jovens de todas as partes do mundo: americanos, africanos,
ingleses, franceses e alemães que são membros desta sociedade. Como vamos
acompanhar o itinerário de cada um deles?”.98
“Entretanto, já obtiveste algumas concessões” – disse o Papa.
“Sim, Santo Padre” – respondi-lhe –, “obtive a faculdade de conceder as di-
missórias aos que entraram em uma de nossas casas antes dos 14 anos. No
caso de outros candidatos, temos obtido alguns rescritos que permitem a
emissão de dimissórias para um número limitado. Eu agora venho perante
Sua Santidade para implorar a aprovação definitiva das Constituições com a
faculdade absoluta de expedir dimissórias sem restrições”.
“Eu quero que o senhor consiga o que está pedindo” – disse o Papa –, “já
comentou o assunto com o cardeal Bizzarri?”.99
“Ainda não, Santo Padre” – respondi-lhe – “em primeiro lugar, queria solici-
tar de Sua Santidade o conselho para proceder em consequência”.
“Pois bem” – disse-me –, “comece por apresentar um relatório completo ao
cardeal Prefeito (da Congregação dos Bispos e Regulares). Depois, peça ao
arcebispo Vitelleschi que me entregue o relatório. Eu me ocuparei de tudo”.100

98
Dom Bosco dera a mesma razão, pois se manteve firme em sua solicitação dessa faculdade
quando respondeu às 13 observações de Savini-Svegliati, de 1864.
99
José André Bizzarri (1802-1877), criado cardeal em 1863, foi prefeito da Congregação dos
Bispos e Regulares e de Disciplina Religiosa desde 1872.
100
Salvador Nobili Vitelleschi (1818-1875) era secretário da Congregação dos Bispos e Regula-
res desde 1871. Foi criado cardeal em 1875, mas morreu repentinamente.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Com essa finalidade, apresentei uma cópia das Constituições com os


documentos apropriados e um memorando com o pedido à Sagrada Congre-
gação dos Bispos e Regulares para que reiniciasse o processo.
Eu acreditava que nada mais se acrescentaria às 13 observações feitas
anteriormente (1864); entretanto, agora (1873) vejo-me com outras 28.
Não contraponho qualquer dificuldade; pelo contrário, agradeço ao be-
névolo consultor que se dignou fazê-las. A maior parte foi introduzida nas
Constituições. Acrescentei às regras o capítulo sobre os estudos, outro sobre
o noviciado, indicando o modo com que foi inserido em nosso diretório,
embora ainda não introduzido nas Constituições.101 Rogo, apenas, que não se
mudem substancialmente as partes que se referem a conservar os direitos civis
e a propriedade, mesmo depois de emitir os votos, e que se deixe o tempo de
prova (noviciado) e de estudos como se faz atualmente.
[À esta altura Dom Bosco acrescentou no primeiro rascunho do resumo
histórico:]

Estas disposições são essenciais. Porque, se forem alteradas, a base em que este
instituto repousa ficará irreconhecível.
Quanto à faculdade de expedir cartas dimissórias, espero que não seja limi-
tada, mas ampliada. De fato, confio plenamente que será concedida [com as
Constituições], sem qualquer restrição.
Em todo caso, sei que o Santo Padre, o cardeal Bizzarri, o cardeal Berardi e o ar-
cebispo Vitelleschi só querem o que redundar na maior glória de Deus e no bem
de nossa congregação. Portanto, coloco meus assuntos em suas mãos, confiando
plenamente em seu juízo sobre qualquer adição ou correção que desejem fazer.

Quanto às dimissórias, suplico que me seja concedida a faculdade abso-


luta, não para qualquer bispo, mas para o bispo da diocese em que a casa (do
candidato) estiver situada. Isso está de acordo com o decreto de Clemente
VIII, de 15 de março de 1596, em virtude do qual todo religioso pode obter
de seu superior as dimissórias para as ordens sacras. Este é o privilégio des-
frutado pelos Oblatos de Maria (fundados pelo padre Pio Bruno Lanteri),
aprovados em 1826, e também pelo Instituto da Caridade (fundado pelo
padre Antônio Rosmini Serbati), aprovado em 1839.
Diz-se ali (Decreto de Clemente VIII): “A Congregação do Concílio
julgou que os superiores religiosos podiam conceder as dimissórias a qualquer
súdito seu, também a um religioso, que, dotado das qualidades requeridas,

O sentido da frase de Dom Bosco é um tanto confuso: “Siccome è stabilito, usato nel direttorio,
101

ma non ancora inserito nelle Costituzioni”.

409

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Dom Bosco: história e carisma 2

quisesse receber as ordens. Contudo, estas cartas devem ser apresentadas so-
mente ao bispo em cuja diocese estivesse aquele mosteiro, a cuja comunidade
o religioso em questão tivesse sido destinado por quem tem autoridade para
isso; e se o ordinário estivesse ausente, ou não conferisse as ordens (podem-se
apresentar as dimissórias) a qualquer outro bispo etc.”. Ver a Constituição
sobre a Ordenação de Religiosos, de Bento XIV.102
Os alunos aos cuidados dos sócios salesianos passam de 7 mil. Os mem-
bros desta Congregação são quase 330.103 Alguns deles exercem o ministério
da confissão e pregação com tríduos, novenas, exercícios espirituais, nas casas
de educação, hospitais, cárceres e nos povoados, segundo a necessidade das
dioceses que o solicitam.
Estuda-se agora junto à Sagrada Congregação de Propaganda Fide a
abertura de casas e escolas cristãs para os meninos da ilha de Hong Kong na
China e se chegará à conclusão favorável tão logo a clemência do benemérito
Sumo Pontífice tenha concedido o suspirado favor da aprovação definitiva
desta Pia Sociedade Salesiana.

CARTAS DE DOM LOURENÇO GASTALDI

A Dom Bosco, 24 de outubro de 1872104

Seminário. Turim, 24 de outubro de 1872


Mui Revdo. Senhor e caríssimo amigo:
V. S. tem uma longa experiência do muito que eu aprecio a Congrega-
ção fundada pelo senhor; eu a vi brotar do grão de mostarda, não deixei de
ajudá-la na medida em que as circunstâncias me permitiam, pois eu a julgava,
e continuo a julgá-la, obra inspirada por Deus; e o senhor também conhece
a proteção que como, bispo de Saluzzo, dispensei a esta Congregação a fim
de obter-lhe a assistência e a aprovação da Santa Sé Apostólica. Agora que a

102
Clemente VIII (papa, 1592-1605) fez da reforma das ordens religiosas uma das principais
finalidades do seu pontificado. Bento XIV (papa, 1740-1758) refere-se ao decreto de Clemente VIII
em sua Constituição Impositi Nobis, de 7 de fevereiro de 1747, e não em De Regularium Ordinatione
(Sobre a ordenação de religiosos).
103
As estatísticas recolhidas nas duas últimas frases são um tanto exageradas. Em 1874, os sale-
sianos professos chegavam a 148, os noviços a 103 e as casas (escolas etc.) a 8. O número de meninos
nas escolas salesianas pode ser de cerca de 2 mil, sem contar o grande número, mas incerto, dos jovens
que participavam dos oratórios aos domingos e dias festivos.
104
MB X, 683s.

410

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Providência me colocou na cátedra arquiepiscopal de Turim, estou feliz por


continuar assistindo-a para que chegue a obter a plena aprovação do Vigário
de Cristo. Entretanto, não posso faltar de modo algum ao meu dever, mesmo
quando se trata de promover o bem; antes, ao contrário, tendo em conside-
ração que o bem deve ser bem-feito e que bonum ex integra causa, malum ex
quocunque defectu, devo ater-me às regras prescritas, mesmo à custa de agir
contra os afetos do coração. Pois bem, o decreto da Congregação dos Bispos
e Regulares de 9 de março de 1869 concede a V. S. a faculdade das cartas di-
missórias, mas somente para os jovens que ingressaram no Oratório antes dos
14 anos; e, por isso, é absolutamente necessário que sejam entregues à minha
cúria os dados que esclareçam tal fato. Além disso, o Concílio de Trento, em
sua sessão 23, capítulo XII, o mesmo que o Pontifical Romano De ord. Conf.,
prescreve que Regulares non sine diligenti Episcopi examine ordinentur. Sendo
assim as coisas, rogo que V. S. dê as ordens oportunas para que todos os alu-
nos, inscritos em sua Congregação, que desejem receber a tonsura e as ordens
menores ou maiores, apresentem-se pessoalmente a mim, ao menos quarenta
dias antes da ordenação, trazendo um certificado assinado por V. S. ou pelo
seu representante, no qual se indique: nome e sobrenome do aluno, nome do
pai, lugar e diocese em que nasceu e à qual pertence por algum motivo, sua
idade exata, em que ano entrou no Oratório de São Francisco de Sales, funda-
do por V. S., e durante quantos anos cursou Latim e Filosofia, quantos (anos)
dedicou ao estudo da Teologia e em que lugar, em que ano e dia emitiu os
votos trienais, ou os renovou. Cada um desses alunos apresentar-se-á depois
para ser examinado sobre, ao menos, dois tratados completos de Teologia,
diferentes para cada nova ordenação e sobre os que se referem à ordem que
vai receber; ou seja, para a tonsura e as quatro menores, sobretudo o que a
Teologia ensina sobre eles, para o subdiaconato, quanto se refere a esta ordem
e ao celibato eclesiástico, as horas canônicas e o título eclesiástico. Para o dia-
conato, quanto pertence a esta ordem e também o sacrifício da santa missa.
Poderia exigir que seus alunos assistissem as aulas no meu seminário
como consta na carta da Congregação dos Bispos e Regulares de 3 de março
de 1869; mas quero confiar que no exame darão as provas de estudo e apro-
veitamento nas disciplinas teológicas para não ser necessário que os obrigue-
mos à observância dessa prescrição.
Desejando-lhe toda prosperidade e bênção de Deus em sua santa obra,
professo-me com o maior apreço e consideração,
De V. S. mui Revda., muito atento e afeiçoadíssimo em J. C.
Lourenço, arcebispo

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Dom Bosco: história e carisma 2

A Dom Bosco. 9 de novembro de 1872105


[A resposta de Dom Bosco transbordava de angústia; mas o arcebispo,
persuadido de que cumpria o próprio dever, voltava a escrever-lhe cortesmen-
te, e de forma incisiva, no mesmo dia.]
Tudo por Jesus
Arcebispado de Turim
Objeto
Resposta a uma carta de 9 de novembro de 1872 relativa à Congregação
religiosa de São Francisco de Sales de Turim. Seminário - Turim, 9 de novem-
bro de 1872.
Mui Revdo. Senhor e caríssimo amigo:
Dói-me na alma que V. S. se sinta tão amargurado como para não encon-
trar repouso nem alívio. V. S. certamente não deseja mais do que o cumpri-
mento da vontade de Deus; e quem não busca senão isso jamais se perturba,
caminhem como caminhem os assuntos que traz nas mãos e, diante de qual-
quer contrariedade, permanece tranquilo contemplando os fatos; preocupa-o
unicamente evitar qualquer ofensa a Deus, da qual pudesse ser culpável.
V. S. deseja a consolidação de sua Congregação e seu desejo se cumprirá,
pois o Senhor dá claros indícios de querer consolidá-la; mas, precisamente
para conseguir esse ótimo intento, é preciso empregar os meios convenientes
e não atender a outros, que obteriam o fim oposto. A consideração e a con-
servação e o florescimento da Congregação de São Francisco de Sales, criada
por V. S. depende in primis et ante omnia de um bom noviciado, no qual se
formem os membros na virtude, como as joias são formadas a golpes de cinzel
e sob a ação do martelo e da lima do artista. Se faltar este noviciado, se este
não se aproximar ao menos em grande parte do da Companhia de Jesus, a
Congregação de V. S. não terá estabilidade. Este é o sentido no qual, quando
for o caso, eu exporei o meu pensamento à Santa Sé.
Pois bem, este noviciado não existe no presente nesta Congregação; e,
portanto, seus membros, salvo pouquíssimas exceções, não são nem o fun-
dador da mesma, nem são formados por ele ou o são numa mínima parte.
Ouve-se repetir com frequência a queixa de que muitos destes membros não
manifestam as virtudes, e entre elas, a humildade, que todos os fiéis esperam
ver nos religiosos dignos desse nome; e me dói dizer que tal queixa não me
parece carecer de fundamento. O bom religioso é um ser que não se pode ob-
ter senão mediante uma longa e diligentíssima formação; e, por conseguinte,

105
MB X, 684ss.

412

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

requer-se um bom noviciado, que me parece ainda não existir na Congregação


de São Francisco de Sales, e, portanto, não poderei promover a aprovação Pon-
tifícia desta Congregação, senão com a condição expressa de que estabeleça
tal noviciado. Além disso, enquanto reconheço a conveniência de ser conce-
dida às ordens religiosas a isenção da autoridade episcopal necessária para sua
existência e prosperidade, sou, porém, inimigo das isenções não necessárias,
especialmente se forem prejudiciais, como o é, ao meu juízo, a que se quiser
manter de que o bispo não examine diligentemente os ordenandos, sendo
assim que o Concílio de Trento e o Pontifical Romano o ordenam.
Infelizmente, neste ponto, aos poucos, deixaram-se introduzir abusos
que, agora, se quiseram elevar a privilégios, mas a funesta experiência dos
muitos religiosos, atualmente dispersos, aos quais falta a doutrina e virtude
necessárias para serem bons ministros da Igreja, demonstra claramente que se
procedeu nisso um tanto livremente e que já é hora de se cumprir ponto por
ponto o que foi prescrito pela sabedoria dos Padres de Trento. Convença-se,
pois, V. S. de que minha intenção é edificar e não destruir, cooperar para o
bem, não impedi-lo. Ponha-se de bom humor e continue a fazer alegremente
aquilo a que se sente chamado pelo Senhor. Não se alarme se lhe apresentam
queixas, mas examine se há nelas algo de verdade e procure corrigi-las; caso
encontre alguma contrariedade ou humilhação, não se ressinta, ao menos
exteriormente, nem permita que algum dos seus demonstre ressentimento,
mas se convençam todos de que, para eles, a maneira eficaz de vencer e de
triunfar é ter paciência, rezar e humilhar-se coram Deo et hominibus. Assim
o fizeram os santos fundadores de ordens religiosas e assim é preciso que o
façam os que querem continuar com fundações similares. Isso é o que penso
que devo escrever como resposta à sua última carta, enquanto peço a Deus
que abençoe V. S. e sua Congregação e todas as suas obras, e me professo com
toda a devida estima,
De V. S. mui reverenda, Afeiçoadíssimo em Jesus Cristo. LOUREN-
ÇO, arcebispo.

Resposta de Dom Bosco a dom Gastaldi106


Turim, 23 de novembro de 1872
Excelência Revma.
Agradeço de todo o coração a V. E. Revma. a carta que, com sua gran-
de bondade dignou-se escrever-me. E, embora ela não suavize minhas pe-
nas, faz-me descobrir, sem dúvida, alguma razão do comportamento que,
106
MB X, 686s.

413

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Dom Bosco: história e carisma 2

de algum tempo para cá, guarda V. E. em relação à minha pobre pessoa e a


todos os sócios da Sociedade de São Francisco de Sales.
V. E. reduz as coisas a dois pontos. À falta de um bom noviciado e de
espírito religioso ou eclesiástico em seus membros. Ambas pedem esclareci-
mentos para mim e para V. E. Tenha, pois, a bondade de ler. Antes de a Santa
Sé chegar à aprovação desta Congregação, mantive uma longa entrevista, pri-
meiro com dom Svegliati e o cardeal Quaglia e, depois, com o Santo Padre.
Este, certa tarde, fez-me expor amplamente as razões pelas quais, segundo
meu modo de ver, julgava ser vontade de Deus esta nova instituição e dei a
ele as respostas desejadas. Depois, perguntou-me se era possível uma Con-
gregação nestes tempos e lugares, e entre pessoas que querem a sua supressão.
– Como ter uma casa de estudos e de noviciado? – acrescentou.
Respondi-lhe o mesmo que, alguns meses atrás, respondera a V. E., ou
seja, que eu não pretendo fundar uma Ordem religiosa, na qual se possam
aceitar penitentes ou convertidos, que precisem ser educados nos bons costu-
mes ou na piedade, mas que minha intenção é reunir jovens e também adul-
tos de moralidade segura, de moralidade comprovada durante vários anos,
antes de serem admitidos em nossa Congregação.
– Como consegui-lo? – interrompeu o Santo Padre.
– Até agora eu consegui – acrescentei –, e espero continuar a consegui-
-lo, pelo tipo de sócios que se recebem para fazer parte da Sociedade. Nós
nos limitamos a meninos educados, instruídos em nossas casas; meninos or-
dinariamente selecionados pelos párocos que, ao vê-los resplandecer pelas
virtudes, em meio à pá e à enxada, os enviam a nossas casas. Dois terços deles
retornam a suas casas. Os que ficam exercitam-se durante quatro, cinco e
até sete anos no estudo e na piedade e somente poucos deles são admitidos à
prova, mesmo após este longo tirocínio. Por exemplo, neste ano terminaram
retórica em nossas casas 120; 110 ingressaram na categoria de clérigos, mas
somente 20 ficaram na Congregação; os outros foram enviados aos respecti-
vos ordinários diocesanos. Assim admitidos à prova, devem passar dois anos
aqui em Turim, onde têm todos os dias leitura espiritual, meditação, visita
ao Santíssimo Sacramento, exame de consciência e, à tarde, uma conferência
feita por mim, raramente por outro, e isso a todos os aspirantes em comum.
Duas vezes por semana, uma conferência expressamente para os aspirantes e
uma vez, para todos os da Sociedade.
Quando o Santo Padre ouviu tudo isso, deu-se por muito satisfeito e
continuou a dizer:

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

– Deus vos abençoe, meu filho; fazei as coisas do modo como me dizeis,
e vossa Congregação alcançará a sua finalidade e, se tiverdes dificuldades,
comunicai-as a mim e estudaremos a maneira de superá-las.
Depois disso chegou-se ao Decreto de aprovação já visto por V. E. E nós
temos feito o que se disse.
Pelo que acabo de expor pode V. E. compreender facilmente que, se o
noviciado não existe de nome, parece-me que exista de fato.
Acrescenta V. E. que, salvo pouquíssimas exceções, nenhum membro
da Congregação Salesiana manifesta as virtudes necessárias e que os encontra
carentes especialmente de humildade. Rogo humilde e respeitosamente a V.
E. que me indique quem, não assim em geral, mas pelo seu nome, e garanto-
-lhe que esses indivíduos serão severamente corrigidos, e uma única vez. Isso
seria um segredo a descobrir, segredo desconhecido por mim até o presente e
segredo desconhecido por V. E. até o mês de abril do corrente ano. Até essa
data sempre proclamou com seus escritos e sua palavra, pública ou privada,
que esta casa era como a arca da salvação da juventude, onde se aprende a
verdadeira piedade e coisas desse tipo. Teria mais coisas a dizer, que não que-
ro confiar ao papel, e que espero expor-lhe de viva voz, quando V. E. puder
ouvir-me.
Agradeço as benévolas expressões de sua carta, e este é o único consolo
que posso ter ao mesmo tempo em que, com a mais profunda gratidão, tenho
a honra de professar-me
De V. E. Revma.,
Afeiçoadíssimo em Jesus Cristo JOÃO BOSCO, Presbítero.

Carta de dom Gastaldi a Roma107


Turim-Seminário, 20 de abril de 1873
Eminência Revma.
Creio ser meu dever gravíssimo expor a Vossa Eminência Revma. e, por
seu intermédio à Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares, a situação da
Congregação de São Francisco de Sales, instituída pelo mui Revdo. padre
João Bosco, meu diocesano. Sobre ela, seria muito urgente eu saber de Vossa
Eminência se deve ser considerada como já aprovada pela Santa Sé e, portan-
to, admitida a gozar dos direitos e privilégios dos Regulares, ou melhor, se
deve ser considerada como uma Congregação que só goza da benevolência da

107
MB X, 711s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Santa Sé e se os privilégios, que lhe foram concedidos, devem ser tidos em


conceito de algo provisório ad experimentum e nunca se estender em geral aos
privilégios dos Regulares. Esta Congregação foi formada com o consentimen-
to do arcebispo de Turim, dom Luís Fransoni; continuou com o consenti-
mento de seu sucessor, dom Alexandre Riccardi, e tem o meu; mais ainda,
desejo de todo o coração que prospere e dure para a instrução e educação
cristã da juventude; contudo, suas Regras até agora não foram aprovadas por
mim, a quem não foi pedida tal aprovação, nem por qualquer um dos meus
predecessores. Antes, ao contrário, eu não me atreveria a aprovar essas regras
tal como se encontram no momento e tal como foram impressas neste mes-
mo ano pela tipografia dessa Congregação. Posto que faltem as Regras neces-
sárias para um bom noviciado, sem o qual nunca haverá, ordinariamente,
bons religiosos, e, por conseguinte, a Congregação nunca oferecerá motivos
para se esperar dela solidez e prosperidade para o futuro. Quanto à questão
do noviciado, segundo o meu juízo, Dom Bosco está equivocado. Parece-me
que os sujeitos com intenção de emitir depois os votos na Congregação de-
vem exercitar-se expressamente durante dois anos na humildade e abnegação
e alcançar a total indiferença em relação a si mesmos, que é substancial num
religioso, e devem dedicar-se a exercícios de ascética especial, como se faz nas
ordens religiosas e especialmente na Companhia de Jesus. Ao contrário, pare-
ce que Dom Bosco, admitindo aos votos somente os jovens que entraram em
suas escolas de meninos e, durante sete ou oito anos e, mais ainda, foram
diariamente observados com atenção e foram sempre e são agora jovens mo-
destos, piedosos, castos, dóceis, mortificados, que isso baste para julgá-los
aptos para os votos. Isso, porém, a meu juízo, é um erro porque a experiência
desse longo lapso de tempo demonstrará plenamente que esses jovens são
ótimos cristãos, mas que, de modo algum, estejam formados para o espírito
de sacrifício e para a constância de abnegação e indiferença sem as quais os
sujeitos jamais poderão perseverar na religião.108 Por isso, por falta de novicia-
do, alguns que fizeram votos perpétuos e pareciam muito firmes em sua vo-
cação já saíram. E tendo-lhes eu perguntado por que tinham saído, responde-
ram precisamente que, como não tinham feito um bom noviciado, não
puderam ter um espírito suficientemente religioso. Enquanto isso, esta Con-
gregação, sem qualquer má intenção, causa um notável transtorno à discipli-
na eclesiástica desta diocese e temo cause também nas dioceses em que se es-
tabeleça. E isso porque o seu superior tem a faculdade de apresentar para a
108
Nota do arcebispo: “Por isso, na Companhia de Jesus, embora muitos de seus membros sejam
educados desde jovenzinhos em seus colégios, onde estiveram sete, oito e nove anos, não são dispensa-
dos nem de um dia de noviciado”.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

ordenação os jovens que ingressaram em suas escolas antes dos 14 anos, em-
bora careçam de patrimônio desde que tenham feito os votos trienais. Se,
terminados esses votos, os ordenados o renovassem e continuassem depois a
serviço da Congregação, tudo poderia caminhar bem. Mas, infelizmente,
acontece com frequência que alguns jovens, que carecem de meios com que
pagar sua pensão no seminário, ingressam nesta Congregação na qual cursam
gratuitamente seus estudos e são ordenados titulo Mensae communis; depois,
terminados os votos trienais, saem da Congregação e apresentam-se ao bispo
para que os incorpore em sua Diocese. Contudo, falta o patrimônio, e que
educação, que instrução receberam? Está de acordo com a que se dá na Dio-
cese? Se ao menos fosse Dom Bosco quem examinasse e formasse esses sujei-
tos; mas não é assim; foram outros nos quais não se encontra a mente nem a
visão nem o espírito de Dom Bosco. Estando eu em Saluzzo, um dos meus
diocesanos ordenou-se nesta Congregação e, pouco tempo depois, foi man-
dado embora por ter sido descoberta sua intemperança na bebida; e ainda
continua com ela. Penso, pois, que a faculdade de apresentar à ordenação
sujeitos ligados apenas com os votos trienais oferece um caminho demasiado
fácil aos jovens que não têm qualquer intenção de serem religiosos e que não
buscam no santuário mais do que pão, e assim, sem gastar um centavo, in-
gressando na Congregação de Dom Bosco, encontram o meio de serem orde-
nados e, depois, terminado o triênio dos votos, apresentam-se ao bispo para
que lhes busque uma pensão eclesiástica e um emprego. E o bispo, por con-
sideração ao caráter sacerdotal, vê-se na necessidade de proporcionar-lhes o
essencial, mesmo depois de tê-los recusado no início quando se apresentaram
para pedir-lhe o hábito eclesiástico. O assunto é mais grave, e seria consequên-
cia de outra faculdade, que Dom Bosco afirma ter, de apresentar à ordenação
jovens que ingressaram em sua Congregação depois dos 14 anos e até mesmo
depois dos 20 anos. Algum clérigo, expulso do seminário, apresenta-se a Dom
Bosco e este o recebe, mesmo sem o consentimento explícito do bispo, envia-
-o como professor a um de seus colégios localizado numa diocese distante;
por exemplo, de Turim, envia-o a Varazze, diocese de Savona, ou a Alassio,
diocese de Albenga; este jovem, enquanto exerce a profissão do magistério,
estuda Teologia; e depois, ao chegar o tempo, Dom Bosco apresenta-o ao
bispo que, sem maiores informações o ordena; e o jovem ordenado, tão logo
cumpra os três anos dos votos, volta para casa, já sacerdote, sem qualquer
intervenção do seu bispo diocesano; antes, ao contrário, depois de tê-lo jul-
gado não apto (para o sacerdócio). Por fim, nesta Congregação não se po-
dem formar eclesiásticos bem instruídos na filosofia racional nem em outras
ciências sagradas, porque a maioria faz esses estudos enquanto dá aulas de

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Dom Bosco: história e carisma 2

latim ou de outras artes e ciências; e, enquanto a Santa Sé prescrevera que


todos os estudantes de Teologia que vivem em Turim e pertencem a esta Con-
gregação assistissem as aulas no seminário arquiepiscopal, encontrou-se a ma-
neira de obter uma dispensa dessa prescrição. Vindo a uma conclusão prática,
eu proporia que: 1. As Regras desta Congregação sejam examinadas agora
pelo arcebispo de Turim e obtenham sua aprovação. Se o arcebispo se negar a
aprová-las, exponha suas razões aos bispos de Casale, Savona, Albenga e ao
arcebispo de Gênova, onde atualmente Dom Bosco tem casas, e chegue-se a
uma aprovação entre todos. 2. Dom Bosco não possa apresentar nenhum
jovem à ordenação, se este não entrou em suas escolas antes dos 16 anos e
tenha permanecido sempre nelas desde o seu ingresso e não saiu das mesmas.
3. Que não possa apresentar para a ordenação do subdiaconato senão aqueles
que, estando na condição do número dois, tenham emitido os votos perpétu-
os de permanecer na Congregação, mas dispensáveis pelo Sumo Pontífice. 4.
Todos os estudantes de Teologia deverão assistir, ao menos durante quatro
anos, às aulas no seminário da cidade onde se encontra sua casa; e, por con-
seguinte, nas casas da Congregação nos lugares onde não houver seminários,
não se tenham pessoas que cursam os estudos teológicos. 5. Os ordenandos
apresentados por Dom Bosco deverão apresentar-se, antes de cada ordenação,
ao bispo do lugar, com os necessários certificados, fazendo constar que entra-
ram nas escolas da Congregação antes dos 16 anos, permaneceram sempre
nelas, emitiram os votos perpétuos (tratando-se de ordens maiores), assisti-
ram às aulas no seminário e, depois, serem submetidos pelo bispo ao diligen-
te exame prescrito pelo Concílio de Trento, sessão 23, C. 12. Submetendo
tudo isso à sabedoria da Sagrada Congregação e, em primeiro, à de Vossa
Eminência Revma., concluo dizendo que abrigo um temor de que, se não se
tomarem rápidas providências, esta Congregação, por falta da esperada disci-
plina e sólida cultura teológica e, portanto, por falta de sujeitos bem forma-
dos, não poderá sustentar-se, mas se manterá no máximo enquanto seu fun-
dador estiver vivo; mas, uma vez que este falte, cairá e ficarão defraudadas as
esperanças de muitos benfeitores que fizeram grandes sacrifícios para coope-
rar na sua formação. Eu acredito ser do número destes, pois, tendo-a visto
nascer e crescer diante de meus olhos, cooperei nela com meu ministério
como sacerdote, como professor, como bispo, e com meu dinheiro. Sempre
animei o fundador, apoiando-o com louvores e aprovações e jamais falando
dos defeitos que via para não desanimá-lo, e porque, então, eu não tinha ju-
risdição sobre esta obra; e, atendida a triste condição dos tempos, parecia-me
poder fazer vista grossa sobre as deficiências em atenção ao bem imediato que
dela provinha, esperando que a Providência trouxesse os remédios necessários.

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As Constituições Salesianas. Terceira etapa (1872-1874)

Agora, porém, que esta Congregação faz parte da minha diocese e sinto o
dever que me incumbe de examinar as coisas tal como são, e percebo que a
obra, por muito desenvolvida que pareça, está longe de ter a solidez que seria
de se esperar, julgo que é meu estrito dever expor as coisas à Sagrada Congre-
gação, como o instrumento de que Deus se servirá certamente para ordenar
nesta obra o que fosse preciso ordenar para torná-la sólida e duradoura. Incli-
nando-me ao beijo da sagrada Púrpura, com o máximo respeito, sinto-me
honrado por ser,
De V. Eminência Revma.
Lourenço, arcebispo de Turim.

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Capítulo XIV

LOURENÇO GASTALDI (1815-1883).


NOTAS BIOGRÁFICAS

Em sua tentativa de aprovar as Constituições, Dom Bosco encontrou


um duro adversário no arcebispo de Turim, dom Lourenço Gastaldi. Mais
tarde, alguns episódios lastimáveis e não poucos mal-entendidos causaram
outro doloroso e lamentável enfrentamento entre os dois.1 Eram duas per-
sonalidades relevantes que, embora coincidissem em muitos aspectos e no
fundo se estimassem, tinham, em outros aspectos, visões diversas e partiam
de pressupostos muito diferentes. Por isso, a fim de compreender melhor os
fatos e suas possíveis motivações, parece conveniente uma breve descrição
da personalidade de dom Lourenço Gastaldi que, embora fosse uma figura
polêmica em alguns sentidos, destacou-se como uma das personalidades ecle-
siásticas mais distintas da Itália do século XIX, cuja influência foi além da
arquidiocese de Turim.
Dotado de grandes qualidades naturais e adquiridas, era um homem de
interesses variados. Erudito, patriota, teólogo, homem dado à oração e ao
ascetismo, padre de zelo ardente, impulsionado por um profundo compro-
metimento com a Igreja. Dotado de inteligência arguta e vontade forte, era
dinâmico, agressivo e zeloso no ministério, a ponto do sacrifício pessoal.
Como arcebispo de Turim, viu-se diante de uma situação comprometida
que exigia dele uma absoluta e intensa dedicação de pastor e reformador. Os
erros que cometeu durante seu governo, causa de muito sofrimento para ele e
para outros, não podem tornar esquecidos seus destacados sucessos. O pro-
longado contencioso com Dom Bosco sobre as Constituições e várias outras
questões não é, certamente, a única coisa pela qual deva ser recordado.

1
O conflito entre Dom Bosco e dom Gastaldi não terminou com a aprovação das Constituições
Salesianas em 1874. Como se comentará mais adiante, tornou-se mais amargo e destrutivo nos anos
1875-1882.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

1. Período anterior à ordenação episcopal (1815-1867)

Família, educação e sacerdócio


Lourenço Gastaldi nasceu em Turim no dia 18 de março de 1815, ape-
nas cinco meses antes de Dom Bosco; viveu, portanto, as mesmas vicissitudes
históricas e sociais que ele. Era o mais velho de 13 filhos nascidos de Bartolo-
meu Gastaldi e Margarida Volpato. Seus pais, originários da região de Chieri,
eram pessoas de boa família e considerável fortuna.2 Sua primeira educação
e sua primeira orientação moral e religiosa, fora da família, recebeu-as dos
jesuítas no Colégio do Carmo, também chamado Colégio dos Nobres, que
frequentou como estudante externo.
Embora o pai, advogado de sucesso, preferisse que o primogênito da fa-
mília seguisse sua profissão, Lourenço escolheu o sacerdócio e, em 1829, aos
14 anos, recebeu o hábito clerical e começou seus estudos na Universidade
de Turim como seminarista não residente.3 Obteve o diploma de Filosofia
e Artes liberais em 1831 e o doutorado em Teologia em 1836. Foi ordenado
padre por dom Luís Fransoni em 1837; no ano seguinte, foi admitido à Fa-
culdade Teológica da universidade.4
O ensino da Teologia dogmática na universidade, nessa época, era to-
mista; a Teologia moral rigorista-probabiliorista, baseava-se principalmente
nas obras de Antônio Alasia; o Direito Canônico e a Eclesiologia tinham
orientação jurisdicionalista; de fato, em sua tese doutoral, ele defendera a
infalibilidade da Igreja sem se referir à infalibilidade papal. A aceitação dessas
opiniões explica a oposição contínua de Gastaldi ao probabilismo de Afonso
de Ligório, aos jesuítas, às Amicizie e ao Colégio Eclesiástico.5

2
As propriedades da família Gastaldi estavam avaliadas em meio milhão de liras anteriores
à revolução. À morte do pai, em 1843, a administração da propriedade caiu sobre padre Gastaldi, o
primogênito, até sua divisão em 1864. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi I, 12-16.
3
Como já foi comentado no primeiro volume, p. 257-259, a instituição de seminaristas que
não residiam num seminário era comum na primeira metade do século XIX. Muitos candidatos ao
sacerdócio fizeram uso dela, especialmente em Turim. Os seminaristas não residentes viviam com a
família ou em residências e assistiam às aulas no seminário ou na universidade. Pertenciam a “comuni-
dades de clérigos”, criadas nas paróquias designadas em Turim, onde se reuniam em determinados dias
para a oração e para receber formação e orientação. Acredita-se que esta prática foi responsável pela
escassa educação e formação espiritual do clero na Itália durante os séculos XVIII e XIX. A maioria
dos bispos piemonteses dessa época tinha estudado na universidade como seminaristas não residentes.
4
G. Tuninetti, Gastaldi I, 16-23.
5
G. Tuninetti, Gastaldi I, 23-36. Cf. Arthur J. Lenti, “The Convitto Ecclesiastico: where
one learnt to be a priest”, JJS 3:1 (1992), 39-77, ver especialmente 40-54 e notas 6, 7 e 10.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Pouco depois, padre Gastaldi foi influenciado pelo filósofo e teólogo


Antônio Rosmini Serbati, cujas doutrinas também eram seguidas por profes-
sores da universidade. No conflito entre o probabilismo de Santo Afonso de
Ligório e o probabiliorismo dominante, Rosmini propunha uma terceira via
conciliatória: fazendo uma distinção entre direito natural e direito positivo,
permitia uma solução probabiliorista em caso de dúvida no âmbito do direito
positivo, mas não no âmbito do direito natural.
Em 1841, padre Gastaldi, então cônego da igreja da Santíssima Trinda-
de, participou ativamente na controvérsia rosminiana, em defesa do filósofo.
A filosofia de Rosmini estava exercendo influência crescente sobre ele; ele
tinha a esperança de que a obra do mestre possibilitasse uma renovação da
Filosofia e da Teologia católicas; o efeito seria um ensino mais profundo e
profissional dos clérigos. Essa preocupação será primordial durante o resto
de sua vida. Nesses anos, padre Gastaldi começou a considerar sua possível
entrada no Instituto da Caridade, fundado por Rosmini.6 Imbuído do espí-
rito patriótico imperante, defendeu a doutrina neoguelfa da qual Rosmini e
Gioberti eram defensores ardorosos.
Entre julho de 1848 e setembro de 1849, com a ajuda de colaboradores,
sobretudo de orientação rosminiana, publicou um periódico, Il Conciliato-
re Torinese, inicialmente bissemanal e, depois, trissemanal. Nele, defendia o
sistema filosófico teológico de Rosmini e de sua obra, Das cinco chagas da
Igreja.7 Advogava um novo enfoque para a educação e formação do clero.
Numa linha estritamente política, defendia o poder temporal do Papa, era
partidário da monarquia, das novas instituições políticas e da independência
da Itália. Expressava pontos de vista críticos, mas equilibrados, sobre as leis
que estavam estabelecendo uma educação aconfessional num Estado liberal.
Contudo, o estabelecimento da República romana de Mazzini, que
obrigara Pio IX a deixar a cidade, esfriou as simpatias dos católicos pela causa
liberal. Jornais conservadores católicos, como L’Armonia, começaram a do-
minar a opinião pública católica, deixando fora do jogo a publicação do Il
Conciliatore Torinese.8 A incursão pelo periodismo e seu posterior fracasso
marcaram o início de um tempo de reflexão e estudo para Gastaldi; nesse
tempo, ele continuou a trabalhar numa nova edição do Compêndio de moral,
de Antônio Alasia, mitigando suas posições probabilioristas com “correções
rosminianas”. Foi também um período de discernimento vocacional.

6
G. Tuninetti, Gastaldi I, 37-52.
7
Sobre esta influente obra de Rosmini, ver a nota 33 deste capítulo.
8
G. Tuninetti, Gastaldi I, 53-88.

422

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Em 1850, renunciou ao canonicato e, depois de ter pensado em entrar na


Companhia de Jesus,9 decidiu em 1851 integrar-se no Instituto da Caridade,
de Rosmini, mesmo sabendo que este não “gozava da total simpatia nem do
Papa nem dos bispos”.

Carta de Dom Bosco (Turim, 23 de fevereiro de 1855)


ao padre Lourenço Gastaldi, STD, que, nesse tempo, estava em Liverpool.

9
G. Tuninetti, Gastaldi I, 89-96. Gastaldi continuou a ser admirador dos jesuítas durante
toda a vida pela sua sabedoria e disciplina religiosa; mas era crítico em relação à sua defesa do probabi-
lismo afonsiano e sua oposição a Rosmini.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Rosminiano e missionário na Inglaterra


Depois do noviciado no Instituto da Caridade feito em Stresa, em con-
tato estreito com o fundador, padre Antônio Rosmini Serbati, padre Gastaldi
foi destinado em 1853 à Inglaterra, participando ativamente no ministério
paroquial e na pregação. A sociedade inglesa vivia nesse momento profundas
transformações com o início de uma nova fase da Revolução Industrial e do
movimento operário depois da publicação do Manifesto comunista, de Karl
Marx (1848). Os católicos viviam um momento de excelente recuperação,
graças ao decreto de “Emancipação”, de 1829. A hierarquia católica diocesana
foi restaurada em 1850 e produzia-se uma segunda onda de conversões ao
catolicismo. Do ponto de vista social e religioso, foi muito significativo o mo-
vimento migratório da Irlanda às grandes cidades inglesas, como consequência
da Grande Carestia (1845-1852).
Nesse contexto, padre Gastaldi começou seu trabalho de professor, pre-
gador e pároco. Enquanto estudava intensivamente a língua inglesa, ensi-
nou Teologia moral e outras disciplinas no seminário rosminiano, St. Mary’s,
Rubgy. A fluidez no idioma permitiu-lhe participar no ministério da prega-
ção, nele se destacando, levando-o à Irlanda e Escócia. Em 1858, foi nomea-
do reitor da missão de St. David’s, em Cardiff, para uma grande comunidade
de imigrantes irlandeses. Ali, ele construiu aquela que continua a ser a maior
igreja católica da região, a de São Pedro. Durante esse tempo, Gastaldi man-
teve-se em contato com os acontecimentos políticos da Itália.10
Entretanto, não lhe faltaram problemas pessoais. Educado numa vida de
liberdade, de autossuficiência e com temperamento autoritário, não se acos-
tumou à vida comunitária. Em 1855, depois da morte do padre Rosmini,
pediu para ser liberado dos votos, não obstante tenha mudado de parecer e
decidido a continuar no Instituto.
Em 1862, depois de uma discussão com seu superior sobre a organização
da missão de Cardiff e de várias tentativas falidas de reconciliação, voltou a Tu-
rim de modo permanente, entre outros motivos, pela saúde deficiente. Foi dis-
pensado dos votos, cortando seus vínculos com o Instituto, mas não com o pen-
samento rosminiano, tendo-se incardinado na arquidiocese.11 Escreve Tuninetti:

10
G. Tuninetti, Gastaldi I, 97-110.
11
Segundo G. Tuninetti, Gastaldi I, 110-122, o conflito entre o padre Gastaldi e seu superior,
motivado pela administração da missão de Cardiff e de sua estratégia foi apenas o último episódio de
uma profunda crise pessoal em curso. A causa fundamental da “solução final” estava principalmente
na incapacidade de Gastaldi de abraçar plenamente, talvez também de entender, o tipo de consagração
religiosa exigida por Rosmini.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Podem-se resumir assim as causas convergentes: a duvidosa qualidade de seu


compromisso religioso em relação à obediência e à pobreza e à incapacidade
básica de aceitar a vida comunitária, devido ao caráter individualista e autori-
tário. Somadas a essas razões, estavam o orgulho e as contradições subjacentes
além das ambiguidades da personalidade de Gastaldi. Por último, a aspereza
do conflito de Cardiff e a falta de tato da parte do superior levaram as coisas
ao seu final.12

Período pré-episcopal na arquidiocese de Turim


Em Turim, Gastaldi recuperou seu cargo de cônego da Igreja Colegiada
de São Lourenço e durante os cinco anos seguintes dedicou a maior parte do
tempo à família e à pregação. Era muito solicitado para este ministério. Sua
pregação caracterizava-se, então, mais do que antes, pela simplicidade e pelo
esforço de ser, ao mesmo tempo, profundo e preciso.13
Também dedicou tempo a escrever. Durante e depois de sua permanên-
cia na Inglaterra, padre Gastaldi colaborou significativamente nas Leituras
Católicas, de Dom Bosco. Escrevia com estilo popular, como requerido pela
política editorial, sempre com notável moderação e juízo crítico. São dignos
de menção estes seus escritos: Instrução catequética sobre o matrimônio (1855),
A vida de São João Maria Vianney (1863); Sobre a autoridade do Romano
Pontífice (1864); A vida do padre João Inácio Vola (1865); História dos Santos
Mártires de Turim (1866).
Nas biografias do Cura d’Ars e do padre Vola, Gastaldi descreve o sacer-
dote como homem de Deus que, sobretudo, busca a santidade por meio da
ascese e da vida espiritual. Já se percebe nesse momento uma ausência quase
total de problemas sociais e políticos, pelos quais anteriormente demonstrara
tanto interesse, e uma crescente preocupação com os problemas do clero.14
Sob o influxo rosminiano, a eclesiologia de Gastaldi evoluiu para posi-
ções ultramontanas. A partir de 1850, em cartas e outros escritos, por exem-
plo, Sobre a autoridade do Romano Pontífice, ratificava expressamente a im-
portância do magistério papal e a infalibilidade pontifícia.15

12
G. Tuninetti, Gastaldi I, 122.
13
G. Tuninetti, Gastaldi I, 123-124, 135-138.
14
G. Tuninetti, Gastaldi, Gastaldi I, 124-129.
15
G. Tuninetti, Gastaldi, Gastaldi I, 129-132.

425

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Gastaldi e Dom Bosco16


Além de colaborar com as Leituras Católicas, padre Gastaldi, situado
novamente em Turim, demonstrou grande interesse em restabelecer suas boas
relações com Dom Bosco; anteriormente, ele fora um dos padres que o ajuda-
ram no Oratório de Valdocco. Pôs-se à disposição para as confissões, o ensino
do catecismo e a pregação, sobretudo nas tardes de domingo.17 Em 1848,
o cônego Gastaldi encabeçou uma comissão que procurou reunir, regula-
mentar e garantir a permanência do movimento dos Oratórios. Dom Bosco,
porém, insistiu em sua própria independência, embora a intenção do cônego
demonstrasse sua preocupação.18 Apesar desse fracasso, padre Gastaldi conti-
nuou ajudando Dom Bosco, também economicamente.
Quando o cônego entrou no Instituto da Caridade em 1853, pediu à
sua mãe que cuidasse dos meninos de Dom Bosco como seus próprios filhos.
Margarida Gastaldi, mais uma entre as “mães” do Oratório, ajudara a mãe de
Dom Bosco em Valdocco desde 1848. Quando Mamãe Margarida morreu
em 1856, a senhora Gastaldi assumiu a liderança das mães e continuou seu
trabalho de caridade até 1867, quando acompanhou o filho depois da no-
meação como bispo de Saluzzo. Uma filha e uma sobrinha substituíram-na e
continuaram a ajudar até 1877.19
Padre Gastaldi fora generoso na ajuda econômica em várias ocasiões.
Quando foi para a Inglaterra em 1853, fez um testamento secreto, deixando
ao superior do Oratório, em caso de morte, a soma não insignificante de 70
mil liras. Durante todo o tempo rosminiano, Dom Bosco manteve-se próxi-
mo da família Gastaldi.
Durante o tempo em que esteve fora do Instituto da Caridade, em 1856 e
1857 (precisamente no período em que Domingos Sávio teve visões sobre a con-
versão da Inglaterra), e depois do seu regresso definitivo em 1862, padre Gastaldi
intensificou ainda mais sua atividade em favor do Oratório, especialmente com a
pregação. Em 1864, em Trofarello, pregou o primeiro retiro espiritual aos salesia-
nos. Contribuiu economicamente para a construção da igreja de Maria Auxiliado-
ra. Falou na colocação da primeira pedra em 1863 e, em 1868, já bispo de Saluzzo,
foi o principal orador convidado durante o solene oitavário de inauguração.20
16
Parece que padre Gastaldi e Dom Bosco já se tinham encontrado em Chieri, em 17 de feve-
reiro de 1841, durante um exame. Nessa ocasião, o subdiácono João Bosco procurou esquivar-se de
uma pergunta do padre Gastaldi, citando um cânon inexistente do Concílio de Trento; estratagema
que não deu certo (MB I, 514).
17
MB III, 128s.
18
MB III, 454s.
19
MO, 191; cf. MB II, 534; III, 255s; IV, 143.
20
MB VII, 379; VIII, 98s; IX, 241s. Para todo o exposto, ver G. Tuninetti, Gastaldi I, 132-135.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

2. Bispo de Saluzzo (1867-1871)


O confronto entre o governo italiano e a Santa Sé fez com que em mui-
tas dioceses as sedes ficassem vacantes. Turim estivera vacante desde a morte,
no exílio, de dom Luís Fransoni em 1862; Saluzzo, desde a morte de dom
João A. Gianotti em 1863. As sedes vacantes começaram a ser ocupadas em
1867. Deve-se assinalar a contribuição de Dom Bosco que, por solicitação de
Pio IX, apresentou uma lista de nomes de padres piemonteses para a nomea-
ção de bispos; Gastaldi encabeçava a lista.21

O homem e o sacerdote
O cônego Gastaldi apresentava-se como candidato qualificado para
o ministério episcopal. Ele viveu em plenitude sua vida em meio às expe-
riências mais variadas. O pensamento rosminiano ajudou-o a corrigir o
seu probabiliorismo e levou-o ao ultramontanismo e a configurar sua per-
sonalidade espiritual: homem de fé, espiritualidade e piedade profundas;
austero em seus hábitos pessoais e no comportamento. O livro Das cinco
chagas da Santa Igreja, de Rosmini, ajudou-o a formular a doutrina das
necessidades atuais da Igreja e uma concepção do papel do bispo na Igreja
moderna. Parece que seu caráter e personalidade assentaram-se durante
os anos de reflexão, depois de sua saída do Instituto da Caridade, e que
chegara à maturidade.
Entretanto, autoconfiante, não estava livre de dúvidas, incertezas e in-
quietudes; havia nele a tendência de buscar compensação na atividade fe-
bril. Estava consciente de seus próprios dons e méritos até a soberba; com
frequência, quando ofendido, reagia com dureza. Uma pessoa, em síntese,
de qualidades proeminentes e deficiências trágicas, mas definitivamente um
digno candidato ao episcopado, embora não haja dúvida de que também
pesaram razões de amizade pessoal na decisão de Dom Bosco de colocar
o nome de Gastaldi em sua lista de candidatos. Em 27 de março de 1867,
o cônego Gastaldi foi nomeado bispo de Saluzzo. Foi consagrado em 2 de
junho na igreja de São Lourenço pelo recém-nomeado arcebispo de Turim,
Alexandre Otaviano Riccardi, dos Condes di Netro. Em 9 de junho, ele
entrou em sua sede.22

21
MB VIII, 531s; G. Tuninetti, Gastaldi I, 145, nota 2. Mais recente, e crítico, F. Motto,
L’azione, 283-299, especialmente 291-294.
22
G. Tuninetti, Gastaldi I, 145-146.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ministério episcopal em Saluzzo


Saluzzo, a 21 quilômetros de Turim, na província de Cúneo, era, na
época, uma cidade com uns 16 mil habitantes. O território diocesano com-
preendia uma população de cerca de 140 mil pessoas. Ocupavam-se em
grande parte na agricultura e pecuária e muito pouco na indústria. A região
era pobre; a economia, em geral, restrita. Os padres que participavam dire-
tamente do trabalho pastoral nas 91 paróquias chegavam a 138; a prática
religiosa do povo era satisfatória, embora se percebesse grande necessidade
de instrução religiosa.23
A maior preocupação de dom Gastaldi era a educação e a formação do
clero. Queria que os padres se sobressaíssem em santidade e sabedoria, em
sintonia com os desafios dos tempos.
Como o governo lhe negara o uso do palácio episcopal, por causa de
dificuldades com a concessão do Exequatur, optou por residir no seminário,
o que lhe permitiu supervisionar os estudos e acompanhar pessoalmente os
45 seminaristas.24

Visita pastoral
Dom Gastaldi, sem dúvida, pretendia exemplificar em seu ministério
episcopal o ideal do bispo pastor reformador. Os dois atos mais importantes
de seu ministério episcopal durante a breve permanência em Saluzzo foram a
visita pastoral a todas as paróquias da diocese, feitas nos anos 1868 e 1869, e
sua participação no Concílio Vaticano I, em 1869-1870.
O conteúdo e a forma da visita pastoral deixaram bem claro que as prio-
ridades imediatas do bispo eram a verdadeira reforma e renovação. Serão estes
os objetivos que caracterizarão toda a sua futura administração. Contudo, a
visita também expôs suas limitações no estilo pastoral. Mesmo inspirado por
um espírito de serviço sacerdotal, seus esforços para obter a unidade plena
e reforçar a disciplina eclesiástica traziam a marca de uma tendência à cen-
tralização, agravada pelo caráter inflexível. Também seu ascetismo austero
contribuía para afastá-lo da simpatia do clero.25

23
G. Tuninetti, Gastaldi I, 147-172.
24
G. Tuninetti, Gastaldi I, 178-182. O Exequatur era a permissão oficial do governo que permi-
tia ao bispo recuperar as entradas diocesanas e os lucros. O Placet, em contrapartida, era um documento
semelhante, relativo ao pároco, que lhe permitia servir-se dos bens da paróquia para a qual era nomeado.
25
G. Tuninetti, Gastaldi I, 185-188.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Concílio Vaticano I
O Concílio foi proclamado publicamente em 29 de junho de 1868 e
dominou todo o período de dom Gastaldi em Saluzzo. Ele foi para Roma em
16 de novembro e, desde seu primeiro período de sessões em 8 de dezembro
de 1869, participou ativamente dos trabalhos conciliares.
Os bispos piemonteses estavam profundamente divididos, especialmen-
te na questão da infalibilidade. Suas posições refletiam, em geral, as duas con-
cepções básicas da essência da Igreja e do Direito Canônico, a ultramontana
e a galicana em seus diversos matizes e graus.
Gastaldi, num primeiro momento, parece ter passado por um período
de incerteza; depois, durante algum tempo, manteve uma posição indepen-
dente na matéria. Porém, em 23 de janeiro de 1870, em carta ao cardeal
Filipe de Angelis, declarava seu apoio à infalibilidade papal e à sua definição.
Mas também expressava suas reservas quanto à forma que fora apresentada
no documento conciliar. Explicou que lhe resultava difícil conceber um ma-
gistério papal infalível isolado, separado dos bispos.
Lemoyne refere que foi pelos esforços de Dom Bosco, graças aos quais
deixou de lado essas reservas. Quando a questão foi debatida na Congregação
geral, foi o primeiro dentre os bispos piemonteses a falar a favor da infalibili-
dade, em 30 de maio de 1870.26

Objetivos pastorais e enfermidade


Na primavera de 1870, dom Gastaldi não se sentira bem. Depois de
um retiro espiritual com os jesuítas em Roma e uma audiência com Pio IX,
quando recebeu garantias de que seus serviços à Igreja não ficariam sem re-
compensa, deixou Roma em fins de julho. Muitos bispos fizeram o mesmo,
pois nesse momento os trabalhos do Concílio estavam amainados. E, um mês
depois, com a ocupação italiana de Roma em 20 de setembro, o Concílio foi
adiado sine die.

26
G. Tuninetti, Gastaldi I, 189-211; MB IX, 794s. Como já mencionado, Gastaldi fora
partidário da infalibilidade papal desde 1858. Era também defensor de sua definição. A incerteza (se
efetivamente passou por um período de incerteza) vinha do fato não de o Papa ser ou não infalível, nem
tampouco se a definição era ou não oportuna, mas da maneira como era expressa (sem uma referência
significativa ao magistério dos bispos). Tuninetti [ibid., 198] considera que as declarações de Lemoy-
ne devem ser interpretadas nesse sentido.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Lourenço Gastaldi (1815-1883), bispo de Saluzzo (1867-1870)


e arcebispo de Turim (1871-1883).

Apesar das controvérsias e desacordos entre os bispos piemonteses, agra-


vados pela questão da participação nas eleições políticas e de seus problemas
de saúde durante a primeira metade de 1871, Gastaldi voltou com vigor re-
novado ao cuidado pastoral de sua diocese e à reforma e renovação do projeto
iniciado com sua visita pastoral. Para tanto, anunciou um sínodo diocesano,
que seria celebrado nos inícios de julho. O Sínodo, porém, nunca aconte-
ceu, pois o bispo caiu gravemente enfermo. Depois de convalescer durante o
verão, em setembro voltou à sua diocese, apenas para inteirar-se de que fora
nomeado arcebispo de Turim, nomeação que foi confirmada oficialmente em
27 de outubro de 1871.27
27
G. Tuninetti, Gastaldi I, 212-215.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

3. Arcebispo de Turim (1871-1883)

Nomeação
Dom Riccardi di Netro morreu em 16 de outubro de 1870. Em se-
guida, Turim continuou com sede vacante quase por um ano por causa do
“estado de guerra” entre a Santa Sé e o governo italiano depois da tomada de
Roma e da expropriação definitiva do Papa. Muitas outras dioceses estavam
vacantes no momento, porque a situação de conflito impedia a liberdade
de nomeação de bispos. Mas, no final do verão de 1871, Pio IX começou a
dar andamento ao processo de apresentação de candidaturas e nomeações.
Em setembro, foi pedido a Dom Bosco que atuasse como intermediário a
título privado. Ele apresentou ao Papa uma lista de 18 nomes para as sedes
vacantes no Piemonte e na Ligúria, recomendando especificamente a trans-
ferência de dom Gastaldi, bispo de Saluzzo, para Turim. Sugerira também
a nomeação de Salvador Magnasco para Gênova e José M. Sciandra para
Acqui. Dom Bosco obteve o seu intento e notificou-o imediatamente a dom
Gastaldi. A bula de nomeação oficial foi entregue em 23 de setembro.28
O arcebispo Gastaldi entrou na sede de Turim em 26 de novembro de
1871. Por motivos políticos, sua entrada foi menos solene e pública do que
previsto inicialmente, dificultada pelas manifestações hostis por parte do po-
pulacho. O novo arcebispo foi objeto de ataques hostis da imprensa secular e
recebido com ambivalência, embora educadamente, pelas autoridades locais.
A imprensa católica, o clero e o laicato católico, em geral, não limitaram seus
louvores, mas ouviram-se vozes discordantes, também nestes setores.29 Afinal,
era muito bem conhecido e, em muitos aspectos, também uma figura polê-
mica. Não fora espectador passivo dos acontecimentos religiosos e políticos
do último quarto de século.

Diante de uma situação difícil


Outros fatores também se uniram para tornar difícil a posição do novo
arcebispo. Em primeiro lugar, a situação econômica não era muito prome-
tedora. A Igreja na diocese de Turim enfrentava uma situação crítica. As

28
Cf. MB X, 219, 443s, e criticamente, F. Motto, L’azione, 308-315. A esta altura, a mediação
de Dom Bosco reduzia-se à nomeação dos bispos. Mais tarde, entre 1872 e 1874, estará ocupado no
assunto do Exequatur.
29
G. Tuninetti, Gastaldi II, 15-25. Sobre a participação de Dom Bosco neste acontecimento
e sua subsequente enfermidade em Varazze, ver MB X, 219s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

estruturas da arquidiocese ficaram sem recursos depois das leis de seculari-


zação. O funcionamento das paróquias estava garantido em grande parte,
mas só os párocos e os professores contavam com entradas garantidas; a
maior parte do que restava do clero vivia com dificuldade, inclusive os
coadjutores paroquiais.30
Em relação à situação religiosa, Turim padecia de uma regressão ge-
ral, causada pelo movimento revolucionário, embora a prática religiosa cir-
cunstancial e as devoções particulares também continuassem a ser normais.
Quanto à pastoral, a vida religiosa da Igreja em toda a diocese estava em es-
tado de abandono. Recorde-se que Gastaldi assumira uma arquidiocese que
ficara sem seu pastor durante vinte anos. Ao período de exílio (1850-1862)
do arcebispo Fransoni seguiram-se cinco anos de diocese vacante (1862-
1867). O curto período do arcebispo Riccardi di Netro (1867-1870) ocor-
reu em parte ocupado com o Concílio Vaticano e impedido, mais ainda,
pela sua saúde deficiente.31

A luta pelo Exequatur e a mediação de Dom Bosco


Os inícios do episcopado de dom Gastaldi em Turim foram ainda mais
difíceis por um problema adicional. A Lei de Garantias aprovada pelo Par-
lamento italiano em 13 de maio de 1871, depois da tomada de Roma e da
expropriação dos territórios papais, reconhecia ao Papa o direito de nomear os
bispos, mas reservava ao Estado a concessão do Exequatur e do Placet. Essas
concessões, o Exequatur em particular, eram emitidas somente se o bispo apre-
sentasse a bula de nomeação. Tal disposição foi logo recusada pela Santa Sé.
Por disposição do cardeal João Antonelli, secretário de Estado do Vaticano, os
bispos foram proibidos de solicitar o Exequatur ou fazer qualquer ato de sub-
missão à autoridade do Estado. Deviam desafiar o Estado com um ato oficial
logo após a tomada de posse. Esse modus operandi, que deu lugar a situações de
conflito, deixava o bispo, além do mais, sem a devida base financeira.
Foi por ocasião das primeiras nomeações do Papa, depois da Lei das
Garantias (1871), que o ministro João Lanza solicitou a mediação oficiosa de
Dom Bosco.32 Dom Gastaldi só obteria o Exequatur em maio de 1874.

30
G. Tuninetti, Gastaldi II, 34-41.
31
G. Tuninetti, Gastaldi II, 41-49.
32
Cf. MB X, 528, 534, 548s, 567s. G. Tuninetti, Gastaldi II, 51-58; cap. XX, 627-674. Para
uma descrição detalhada da atividade de mediação de Dom Bosco, ver MB X, 534s; também uma relei-
tura crítica, em F. Motto, “La mediazione di Don Bosco fra la Santa Sede e governo per la concessione
degli Exequatur ai vescovi d’Italia (1872-1874)”, RSS 6:1 (1987), 3-79.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Pastor reformador
Dom Gastaldi começou imediatamente a pôr em prática seu projeto
pastoral. Ele era partidário convicto da necessidade de reformas estruturais
e espirituais na Igreja, especialmente em relação à formação do clero. Para
tanto, de acordo com o pensamento de Rosmini era preciso uma nova con-
cepção da centralidade do papel e da função do bispo local.33 Seu elevado
conceito da dignidade episcopal foi um ponto decisivo na concepção e no
exercício de sua autoridade. Apesar da influência rosminiana, jamais assu-
miu as ideias de Rosmini sobre a consagração religiosa e a espiritualidade,
nem abandonou a rígida institucionalização hierárquico-clerical em seu
modelo de Igreja. Durante o Concílio Vaticano, ele expressou suas reservas
à formulação doutrinal da infalibilidade, porque não a relacionava com o
magistério dos bispos; e, em seus comentários posteriores aos documentos
do Concílio, falou dos bispos reunidos em concílio ecumênico como co-
laboradores do Papa em questões de fé, não só como assessores, mas como
juízes de jure divino nos decretos e nas definições, e autoridade docente
em suas dioceses.
Em sua primeira carta pastoral como bispo de Saluzzo, descrevera o bis-
po como “um novo Moisés”, como “aquele que tem a perfeição do sacerdó-
cio” e foi chamado a uma espécie de “santidade mais perfeita do que a dos
religiosos com votos”. Os bispos eram “os sucessores dos Apóstolos, aos quais

33
Foi decisiva a obra de Rosmini, As cinco chagas da Santa Igreja, publicada primeiramente como
anônima em 1832, e depois com o nome do autor em 1846. Estas chagas – sustentava Rosmini – são
uma herança do feudalismo medieval; a Igreja precisa de uma reforma para poder recuperar sua antiga
pureza. A primeira chaga, “na mão esquerda”, representa a falta de unidade entre clero e povo no culto
público, que se originara não só pelo uso de uma língua morta nos serviços litúrgicos da Igreja, como
também pela pregação e catequese inadequadas feita pelo clero. O fracasso desta última é uma conse-
quência da segunda chaga, “na mão direita”, que é a insuficiente educação e formação do clero. Esta
situação deplorável perpetua-se na terceira chaga, a grande “chaga no peito”; é a chaga da divisão entre os
bispos e sua separação entre si e de seus sacerdotes e o povo. A principal causa que contribuiu para a divi-
são foi a nomeação dos bispos pelo poder civil. É a quarta chaga, “no pé direito”, porque tal interferência,
com demasiada frequência, fez os bispos serem nada mais do que intrigantes e políticos, imiscuídos nos
assuntos seculares e, em geral, dedicados mais a buscar seus interesses pessoais do que cuidar do seu
rebanho. Historicamente, a exigência do poder civil de designar os bispos remonta à época feudal. Foi o
momento em que as concessões de terra em poder da Igreja eram feudos de um senhor. Nesse sistema, os
bispos aos quais se concediam os feudos eram considerados vassalos. E esta é a quinta chaga, a “chaga no
pé esquerdo”. Rosmini terminava suas reflexões num capítulo adicional com o significativo título: Sobre
a eleição de bispos pelo clero e o povo. Crítica tão severa da situação social, política e religiosa incorreu na
censura da Igreja. O livro foi condenado junto com outro de Rosmini, A Constituição de acordo com a
justiça social, publicado em 1848. Cf. A. Rosmini, Las cinco llagas de la Iglesia. Barcelona, Península,
1968 [o texto completo em italiano encontra-se em http://www.rosmini.it/objects/pagina.asp?ID=256].

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Dom Bosco: história e carisma 2

Cristo disse: ‘Quem vos ouve, a mim ouve’” [Lc 10,16]. Como arcebispo de
Turim, começou pedindo orações para que fosse digno de sua “tarefa de pai,
mestre, juiz e guia”.
Seus traços de caráter e formação não podiam deixar de refletir-se em
seu estilo pastoral, cuja qualidade principal foi uma busca implacável e infle-
xível dos objetivos de reforma propostos. Para consegui-los precisaria enfren-
tar graves problemas, relacionados com a Igreja e o clero.

Colaboradores
Dom Gastaldi reuniu uma equipe de colaboradores capazes, dotados de
experiência e competentes.34 De Saluzzo, trouxe como secretário pessoal, o
dinâmico, mas controvertido cônego Tomás Chiuso, que acabou excomun-
gado pelo sucessor de dom Gastaldi e ocupou um lugar destacado e negativo
no conflito Bosco-Gastaldi.35 Como vigário-geral, foi nomeado o cônego
José Zappata, homem experiente que, como vigário, à morte de dom Fran-
soni, escreveu uma carta comendatícia a favor da aprovação da Congregação
Salesiana.36 Uma vez concedido o Exequatur e estabelecido em sua residência
em 1874, o arcebispo designou o padre José Soldati como reitor do seminá-
rio; era um jovem sacerdote que começara a apreciar quando compartilha-
ram a residência.37 Mais tarde, o arcebispo instalou como figura-chave em
sua administração um brilhante e jovem cônego, advogado e teólogo, Ema-
nuel Colomiatti, para que fosse o promotor público diocesano. Colomiatti

34
G. Tuninetti, Gastaldi II, 59-77.
35
G. Tuninetti, Gastaldi II, 59-62. Enquanto secretário pessoal, padre Tomás Chiuso
(1846-1904) esteve muito próximo do arcebispo, que o nomeou sucessivamente para o cabido me-
tropolitano dos cônegos e, depois, chanceler da arquidiocese. Nessas funções, esteve profundamen-
te envolvido na controvérsia Bosco-Gastaldi, e foi acusado de ter sido seu gênio maligno. Gastaldi
fê-lo seu herdeiro universal. Mais tarde, para compensar as dívidas contraídas pela especulação no
mercado de valores, o cônego viu-se envolvido na má gestão da propriedade da Igreja que lhe fora
confiada e em malversação de fundos. Seria levado a julgamento, suspenso e excomungado por dom
Davi Riccardi di Netro.
36
G. Tuninetti, Gastaldi II, 62-63. José Zappata (1796-1883) já servira como vigário na
administração anterior e, praticamente, governara a diocese desde a morte de dom Fransoni em 1862.
Leal e independente, ele foi um dos assessores de maior confiança de dom Gastaldi.
37
G. Tuninetti, Gastaldi II, 64-68. José Maria Soldati (ou Soldà, 1839-1886), doutor em
Teologia e, como seu arcebispo, pedagogo austero e exigente, foi o principal agente das reformas de
Gastaldi relativas ao seminário. Ocupara o cargo de vice-reitor do seminário, designado pelo cônego
Zappata em 1863. Em seguida, desempenhou o cargo de reitor, até 1884, quando foi retirado pelo
sucessor de Gastaldi, o cardeal Caetano Alimonda. Padre Soldati, como seu arcebispo, pensava que a
qualidade da formação que os padres salesianos recebiam era fraca, fazendo-o participar com hostilida-
de no combate pela aprovação das Constituições Salesianas.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

iria envolver-se profundamente no conflito Bosco-Gastaldi em suas etapas


mais críticas e, mais tarde, seria o mais duro opositor no processo de beati-
ficação de Dom Bosco.38 O arcebispo Gastaldi recorreu, com frequência, a
assessores externos. Um deles, o padre Marco Antônio Durando, visitador
provincial dos padres da Missão, de São Vicente de Paulo, foi seu conselhei-
ro de maior confiança, o mesmo que já fornecera relatórios negativos sobre
as Constituições apresentadas por Dom Bosco a dom Fransoni em 1860 e a
dom Riccardi di Netro em 1867.39

Reforma do clero e a vida da Igreja


Num relatório apresentado à Santa Sé em 1874, o arcebispo descrevia
a situação da diocese e expressava suas preocupações. Ao falar dos párocos,
dizia que, embora fossem em sua maioria bons e zelosos sacerdotes, muitos
careciam de qualquer preocupação pastoral. Havia quem levasse vida mun-
dana e “parecia ter perdido até mesmo a fé”. Suspendera alguns deles, mas
lamentava que os bispos carecessem de ferramentas canônicas para transferir
os párocos como era exigido pela necessidade.
Quanto ao clero diocesano em geral, mandara calar alguns padres
que propagavam doutrinas contrárias aos ensinamentos do Papa; orde-
nara a outros que usassem o traje eclesiástico sob pena de suspensão e
admoestara outros por não celebrar a Santa Missa corretamente; tentara
corrigir de várias maneiras os padres afeitos ao álcool ou culpáveis de má
conduta sexual. Alguns resultaram incorrigíveis, confirmando que nunca
tiveram vocação. Gastaldi percebia que sua ação provocara acusações de
excessiva severidade por parte do clero e ataques pessoais na imprensa.
Contudo, estava decidido a continuar, seguindo o exemplo de São Car-
los Borromeu.

38
G. Tuninetti, Gastaldi II, 64. Emanuel Colomiatti (1846-1928), doutor em Teologia por
Turim e em Direito Canônico por Roma, professor de Direito Canônico e Internacional em Turim,
uniu-se à chancelaria de dom Gastaldi em 1875; foi formalmente nomeado promotor público em
1882 à morte do titular. O promotor ou fiscal era conselheiro do bispo e procurador nas questões
jurídicas que surgissem dentro do território. Em 1881-1882, padre Colomiatti executou a ação legal
do arcebispo contra Dom Bosco e o padre Bonetti perante a Congregação do Concílio.
39
Marco Antônio Durando (1801-1880), visitador (provincial) dos padres da Missão, de São
Vicente de Paulo, foi durante quase quarenta anos uma das personalidades mais influentes na Igreja
de Turim. Ao pedido, primeiramente, de dom Fransoni em 1860, e, mais tarde, de dom Riccardi
di Netro em 1867, padre Durando examinou e avaliou criticamente as Constituições Salesianas.
Outro foi o padre Félix Carpignano (1810-1888), do Oratório de São Felipe Neri, que foi o con-
fessor do arcebispo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os religiosos, sobretudo os padres expulsos de suas casas religiosas pe-


las leis de supressão, eram um sério problema social e religioso. A principal
causa do mal-estar estava na má qualidade da formação inicial, sobretudo
no noviciado. Expressava a esperança de que a Santa Sé exigisse que todos os
candidatos ao sacerdócio, também os religiosos isentos, fossem examinados
pelo bispo antes da ordenação, como prescrevia o Concílio de Trento.40
Ele distinguia seis classes de pessoas na vida dos cristãos: acreditava
que a nobreza e os camponeses continuavam a ser, de vários modos, os que
mais aderiam à religião; os mercadores e comerciantes tornaram-se anti-
clericais, embora a maioria fosse à igreja; os intelectuais e a classe média
endinheirada, dedicada aos negócios e às finanças, eram relapsos em sua
quase totalidade. O povo que recebera educação antes da Revolução Libe-
ral de 1848, geralmente ainda praticava a própria fé. Os educados entre
1848 e 1861, ano da unificação da Itália, em grande parte, abandonaram a
prática. Por sua vez, os educados das décadas de 1860 e 1870 tinham, em
geral, perdido a fé. Isso era certo, especialmente, em relação aos estudantes
universitários.
Dom Gastaldi chegou à conclusão de que a reforma do clero e a res-
tauração da disciplina eclesiástica deviam ser prioritárias. Só então a vida
cristã poderia florescer entre o povo e levar a cabo programas de educação
e renovação. Além disso, sua estratégia pastoral incluía o aperfeiçoamento
de um novo tipo de pároco. A arquidiocese produzira certamente sacerdo-
tes santos no passado recente, como José Bento Cottolengo, José Cafasso,
João Bosco, Leonardo Murialdo, Francisco Faà di Bruno, Frederico Albert
e outros, mas eram pessoas carismáticas que transcendiam ao modelo atual
de seminário. Agora, por uma espécie de tratamento de choque, tinha a
intenção de dar andamento a projetos de reforma, que produziriam padres
santos, doutos, totalmente comprometidos. Foi esse o objetivo que mar-
cou a sua ação.41

Os sínodos
O arcebispo considerava que os sínodos diocesanos seriam os instru-
mentos mais eficazes da reforma e do governo.

40
Neste ponto, dom Gastaldi fez uma referência crítica ao noviciado salesiano e ao modo como
Dom Bosco formava seus salesianos.
41
G. Tuninetti, Gastaldi II, 79-85.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Capa das Constituições que surgiram do primeiro sínodo


diocesano convocado por dom Gastaldi, em Turim (1873).

Dentre os cinco sínodos que convocou (1873, 1874, 1875, 1878 e


1881), os de 1874 e de 1878 foram importantes, mas o primeiro, de 1873,
foi o mais fundamental, pois serviu de base para os demais. O arcebispo
elaborou estatutos novos e detalhados para o ordenamento e a reforma de
todos os âmbitos da vida e da disciplina da Igreja. Submeteu-os a uma co-
missão teológica e ao cabido dos cônegos da catedral para seus comentários
e propostas. Estes dois órgãos, em geral, procuraram reduzir a severidade das

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formulações do arcebispo.42 Ele, porém, só aceitou fazer modificações em


alguns casos. Demonstrou-se inflexível no que se referia ao estilo de vida, à
disciplina e às responsabilidades do clero.
Inevitavelmente, o texto dos estatutos transpirou e seguiu-se uma série
de protestos de vários setores do clero, assim como ataques muito violentos
contra o arcebispo feitos pelos jornais anticlericais em defesa do clero.
Durante o próprio Sínodo, a leitura dos estatutos suscitou protestos cla-
morosos. Depois do sínodo, membros do clero recorreram à Santa Sé; em 11
de julho de 1873 chegou um texto anônimo à Congregação do Concílio. Seu
autor não só criticava a severidade das normas e pedia maior humanidade e
caridade tanto com o clero diocesano como com o religioso, mas também
atacava em diversos pontos a política pastoral básica do arcebispo.
Uma investigação secreta do secretário de Estado por meio do represen-
tante apostólico em Turim confirmou a veracidade das acusações e emitiu
um decreto desqualificando alguns dos juízes e examinadores. O arcebispo,
em sua resposta, expressou profunda decepção e recusou o decreto, porque
anulava sua autoridade.
Esse foi o primeiro choque de dom Gastaldi com a Santa Sé, que lhe per-
mitiu a publicação dos estatutos do Sínodo, mas não cedeu na questão dos juí-
zes e examinadores. A intervenção de Roma implicava, sem dúvida, a desapro-
vação de algumas das políticas pastorais do arcebispo. Por outro lado, o Sínodo
e a polêmica que o precedeu e acompanhou revelavam que se foram formando
facções entre o clero, a favor ou contra sua maneira de conduzir a pastoral.43

Sínodo de 1874
A oposição entre o clero foi renovada quando o arcebispo convocou um
segundo Sínodo para o dia 4 de maio de 1874. A finalidade era determinar se
os estatutos de 1873 estavam sendo cumpridos. Imediatamente, o cabido dos
cônegos da catedral protestou porque os estatutos objeto de revisão não lhes
foram entregues antes de serem publicados. Depois passou a examinar cada
artigo, fazendo modificações substanciais, assinalando que o primeiro Sínodo
não fora bem recebido e que as muitas exigências acrescentadas e as ameaças
tinham desagradado demasiadamente.
42
Por exemplo, nos títulos como: aquiescência interior do magistério papal, com especial re-
ferência às encíclicas de Pio IX e ao Syllabus; a censura eclesiástica de publicações de sacerdotes da
diocese; necessidade do Batismo e responsabilidade pelas crianças que morrem sem ele; a absolvição
dos pecados reservada ao bispo; a obrigação dos fiéis de apoiarem o seminário e o clero; a promessa de
obediência ao bispo feita na ordenação.
43
G. Tuninetti, Gastaldi II, 85-107.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

O arcebispo, surpreendido e decepcionado, respondeu reafirmando as


deliberações do Sínodo e publicando uma lista revista dos juízes e examina-
dores, que incluía alguns nomes vetados por Roma.

Sínodo de 1878
Convocado para 5 de novembro de 1878, o quarto Sínodo foi notável
pelas declarações do arcebispo e as importantes preocupações pastorais nelas
expressas: o primado da pregação, a necessidade dos Oratórios festivos, a
importância da unidade entre clero e bispo. Referindo-se a facções que sur-
giam entre o clero, acusou Dom Bosco de insubordinação. O sínodo também
acrescentava artigos dos estatutos que se referiam principalmente às aulas de
teologia e à pregação.44 Dom Gastaldi também apresentou uma lista revista
de juízes e examinadores. Novamente, entre os primeiros nomeou quatro
que foram proscritos anteriormente por Roma. Para surpresa, o arcebispo
nomeou Dom Bosco entre os examinadores.45

Calendários litúrgicos
Dom Gastaldi publicou todos os anos, de 1872 a 1883, um calendário
litúrgico que incluía uma “Carta aos Clérigos” com outras diretrizes e decre-
tos. Era o veículo pelo qual ensinava aos seus padres, dava-lhes instruções para
sua atividade pastoral,46 procurando controlar os abusos e a falta de disciplina
e especificando como se deviam cumprir os estatutos sinodais. Contudo, não
demonstrava qualquer intenção de enfrentar as transformações que ocorriam
na sociedade e a necessidade de desenvolver estratégias pastorais adequadas.47
Dessa forma, através dos sínodos e dos calendários litúrgicos, o arcebis-
po reafirmava o seu conceito sobre a função do bispo e seu direito de atuar
em consequência disso.

44
Todos os padres, exceto os párocos, deviam apresentar ao bispo um exemplo de sermão.
45
Em sua comunicação, Gastaldi refere-se às facções entre o clero e, em particular, à insubor-
dinação de Dom Bosco. O conflito aumentara progressivamente em hostilidade desde 1874. Em 1878
parecia inevitável uma ruptura definitiva entre os dois. Então, como se pode explicar a honra conferida
a Dom Bosco pelo arcebispo? Foi uma concessão, uma tentativa de aproximação? Ou era simplesmente
o reconhecimento do mérito, superando com nobreza os desacordos pessoais?
46
Expressava sua ideia sobre como o padre devia ser e demonstrava sua preocupação imperiosa
pela santidade e o ascetismo sacerdotal e por uma entrega pastoral que expressasse o caráter essencial-
mente religioso da vocação sacerdotal. G. Tuninetti, Gastaldi, 79-114.
47
G. Tuninetti, Gastaldi II, 79-114.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capa do Regulamento para o seminário diocesano de Turim,


publicado por dom Gastaldi (1875).

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Reforma das estruturas da educação e a formação do clero

A Escola e a Faculdade de Teologia


A situação da cultura e dos estudos religiosos e eclesiásticos estava em
estado lamentável.48 Por decreto, em 26 de janeiro de 1873, o governo fechou
a escola de Teologia. Os seminários, por outro lado, não ofereciam títulos de
pós-graduação em todos os ramos de estudos eclesiásticos.
Dom Gastaldi considerava essa falha uma das principais causas da edu-
cação insuficiente do clero, uma vez que a maioria dos padres acorria a um
dos seminários diocesanos. Apressou-se, então, a tomar algumas medidas; pe-
diu e obteve da Santa Sé a permissão para transferir a Faculdade de Teologia
para o seminário, podendo conceder o grau de doutorado.
Em 1872, para fomentar o estudo da história da Igreja, Gastaldi proje-
tara criar uma Academia, que se tornou realidade em 18 de janeiro de 1874,
com o título de Academia Subalpina de História da Igreja. Na lista dos mem-
bros fundadores também está o nome de Dom Bosco.49

Reforma dos Seminários diocesanos


Dom Gastaldi nunca vivera num seminário, mas estudara como semina-
rista não residente, vivendo em sua casa e frequentando a universidade, mas
nos três primeiros anos de seu arcebispado residiu no seminário e encarregou-
-se pessoalmente de sua direção. A experiência dos primeiros sínodos deu
sentido de urgência aos seus planos de reforma do seminário.50
48
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a cultura católica, particularmente a formação teológica do
clero, estivera em constante declínio na Itália, também no Piemonte. A situação foi-se agravando com
as leis aprovadas depois da Revolução Liberal (1848) e a unificação da Itália (1861). As reformas esco-
lares, a começar da lei Boncompagni, de 1848, tiraram do controle dos bispos a faculdade de Teologia
na Universidade de Turim. Esse fato marcou “o princípio do fim”. Ficava sempre mais difícil manter
a matrícula e os níveis da escola de Teologia e sua faculdade, tanto na qualidade acadêmica quanto na
ortodoxia católica.
49
G. Tuninetti, Gastaldi II, 115-143. Gastaldi pediu a Dom Bosco que fosse membro da
Academia em dezembro de 1872. No documento de fundação, de 18 de janeiro de 1874, Dom Bosco
aparece em terceiro lugar entre os 10 membros fundadores. O título de nomeação foi assinado na
mesma data, mas “por alguma razão” só lhe foi entregue depois da morte do arcebispo em 1883 (MB
X, 689s; G. Tuninetti, Gastaldi II, 143). Recorde-se que de 1872 a 1874, Dom Bosco e o arcebispo
estavam em desacordo sobre a aprovação das Constituições Salesianas e outras questões relacionadas.
Por isso, pode-se estranhar o significado da ação do arcebispo. Mais uma vez, trata-se de um gesto de
conciliação ou o reconhecimento de méritos? A História da Igreja era um tema predileto de Dom Bos-
co; ele escrevera obras históricas, mas não pode ser considerado um erudito nesse campo.
50
Quando foi nomeado, a arquidiocese contava com quatro seminários. O de Turim só ofe-
recia os cinco anos dos cursos de Teologia, assim como o programa de doutorado a partir de 1874.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Com a experiência pessoal e a colaboração do padre Soldati, elaborou os


novos estatutos, publicados em setembro de 1875. Foram rapidamente adap-
tados aos outros seminários e se mantiveram como Carta Magna da formação
do clero da arquidiocese de Turim até o Concílio Vaticano II.
Por esses estatutos, o seminário concebido como casa religiosa (“ad instar
domus religiosae”) adquiriu caráter monástico. Era um lugar de retiro no qual,
longe do mundo, o seminarista poderia continuar sua formação intelectual e
espiritual em profundidade. Insistia-se na santidade sacerdotal e na formação
sacerdotal, assim como nas virtudes da fé, esperança, caridade, humildade,
obediência, castidade, como também na modéstia, devoção, temperança e
mortificação. O programa de estudos, ampliado, tornou-se mais exigente.
A fim de fomentar as boas vocações sacerdotais deram-se bolsas e sub-
venções de ajuda a muitos estudantes pobres. Proporcionaram-se a cada se-
minário residências de verão com refúgios na montanha.51

Reforma do Colégio Eclesiástico e do ensino da Teologia moral52


O Colégio Eclesiástico também entrou em conflito com dom Gastaldi.
Em 1873, o Colégio e o padre Bertagna, que desde a morte do padre Cafasso
em 1860 tornara-se o principal professor do Colégio, mas não seu reitor, fo-
ram objetos de supervisão especial de Gastaldi. Ele não estava de acordo não
só com o tipo de Teologia moral que se ensinava, mas também, e principal-
mente, com o padre Bertagna. Este era acusado de ter reduzido o seu curso de
moral a pura casuística. As acusações de frouxidão que circulavam sobre ele
foram investigadas. O processo prolongou-se por mais de dois anos. Em suas
declarações, Gastaldi destacava o magistério do bispo, seu direito de exercê-
-lo nos campos da Teologia moral e da prática pastoral e a escolher, dentre
as opiniões que estivessem livres de censura, aquela que ele considerasse mais
propícia para o bem espiritual de seu rebanho.
Em setembro de 1876, padre Bertagna foi destituído de todas as suas
funções. Obedeceu sem protestar e retirou-se em silêncio a Castelnuovo, sua

O seminário de Chieri oferecia apenas os dois anos do curso de Filosofia junto com um programa
de Teologia de cinco anos, não de pós-graduação. Bra e Giaveno eram seminários menores. Dos
quatro, o primeiro e o último eram os que mais careciam de reforma, tanto nos estudos como na
disciplina. Obviamente, o seminário teológico de Turim era prioritário.
51
G. Tuninetti, Gastaldi II, 145-163. A severidade do seminário na época de Gastaldi-Soldati
explica por que algum seminarista desejasse passar a Dom Bosco e fazer seus estudos no Oratório; a
situação incomodava e assustou o arcebispo (G. Tuninetti, Gastaldi II, 270, nota 50).
52
Para a história, a orientação, o caráter e os “homens” do Colégio Eclesiástico, ver volume 1,
capítulo XIII, p. 333-373.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

cidade natal. O fato ecoou apenas na imprensa, mas teve como resultado
ampliar a fratura que já dividia o clero. Seguiu-se um período de crise que
deu lugar ao fechamento do Colégio Eclesiástico durante os anos 1878-1882,
entre protestos e recriminações.

Atividade pastoral entre o povo


A ênfase na reforma do clero dando prioridade aos sínodos e o fato de o
arcebispo não fazer logo a visita pastoral pode dar a impressão de que o povo
não estivesse no centro de suas preocupações. Não era o caso. Enquanto se
preocupava em impulsionar a reforma do clero, que considerava básica e es-
sencial, dom Gastaldi envolveu-se com energia na ação pastoral.
Quanto à vida e à prática religiosa católica, a situação na diocese era am-
bivalente. Os problemas reais, porém, surgiam do anticlericalismo evidente
na imprensa e na literatura. O perigo estava no penetrante e clandestino mo-
vimento antirreligioso, que se percebia claramente, mas contra o que parecia
não haver qualquer defesa.53 O arcebispo, entretanto, reagiu atuando em
várias frentes.
• Novas paróquias
O crescimento urbano ao norte e ao sul da cidade de Turim tornavam
necessárias novas paróquias. Durante seu mandato, Gastaldi conseguiu cons-
truir três novas igrejas paroquiais e iniciou uma quarta. O arcebispo contri-
buiu consideravelmente nesses projetos com seus próprios meios, com sua
parte da herança de família.54
• Pregação e ensino religioso
Dom Gastaldi participou pessoal e incansavelmente do ministério da
pregação no seminário, nas várias igrejas, nos retiros espirituais e nas missões.
Assentou a pregação em normas estritas de disciplina; organizou a pregação
litúrgica e a ocasional nas igrejas da cidade.
A instrução catequética foi outro tema importante tratado e legislado
nos sínodos e aplicado nas paróquias com estilos novos e mais adequados.
Para tanto, o arcebispo publicou uma edição ampliada e atualizada do cate-
cismo em uso na época. Nessa edição, observa-se a atualização teológica em
algumas áreas como a natureza e a ordem da Igreja e a comunhão frequente.

53
A sensação de impotência explica o pessimismo e o tom apocalíptico dos documentos ro-
manos e das cartas pastorais, também as de dom Gastaldi. Ver G. Tuninetti, Gastaldi II, 185-192.
54
G. Tuninetti, Gastaldi II, 192-194.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Outras iniciativas de caráter catequético eram a promoção dos oratórios fes-


tivos nas paróquias e a catequese nas escolas como era permitida pela lei.55
• Ensinamento doutrinal
Durante seus onze anos e meio de episcopado em Turim, dom Gastaldi
dirigiu 47 cartas pastorais ao povo.
Os temas mais frequentemente abordados são a Igreja e o papado (para
compensar a ofensiva anticlerical em marcha), o clero e o seminário, a edu-
cação cristã, a oração e os sacramentos, especialmente a Sagrada Comunhão,
e a devoção à Virgem.56
• Visita pastoral
A tradição católica e o próprio direito canônico depois de Trento con-
sideravam a visita pastoral como um momento privilegiado da atividade
pastoral nas dioceses. O arcebispo, porém, seguiu um caminho diferente.
Começou, dirigindo-se ao clero, em vez de ao povo cristão. Em suas visitas ad
limina defendeu o seu modus operandi. Contudo, finalmente, decidiu realizar
uma visita pastoral em 1880. Apesar de ter sido minuciosa e escrupulosa,
perdera o sentido de urgência. Ele morreu antes de poder completá-la.

55
G. Tuninetti, Gastaldi II, 194-203. A lei emitida em 1870, pelo ministro César Correnti,
tornou possível a instrução religiosa nas escolas estatais, desde que os pais a pedissem para seus filhos.
Dom Bosco, em suas memórias, toma nota da não frequente recepção da comunhão nessa época, e
louva o arcebispo: “Já foi remediada essa falha na vida de piedade, uma vez que, por disposição do
arcebispo Gastaldi, dispuseram-se as coisas de maneira a poderem aproximar-se todas as manhãs da
Comunhão quantos quisessem fazê-lo” (MO 95).
56
G. Tuninetti, Gastaldi II, 207-209. São de grande interesse suas controvertidas cartas sobre
a morte do rei Vítor Emanuel II (1878) e a tentativa, falida, de assassinato do rei Humberto I (1878).
As duas cartas desse ano evidenciam maior simpatia pela Casa Real de Saboia e pela ordem política que
representava mais do que as autoridades do Vaticano podiam tolerar. A fim de lutar contra o liberalis-
mo e o secularismo, a Encíclica de Leão XIII, Aeterni Patris, exigia uma renovação do pensamento filo-
sófico segundo o tomismo e o ensinamento tradicional doutrinal nos seminários. À encíclica seguiu-se
uma série de ações na mesma direção, que incluía a condenação (em 1887) das propostas tiradas das
obras de Rosmini [New Catholic Encyclopedia, vol. VIII, 1967, 648-649]. Em seus comentários sobre a
encíclica, como antes em seu Monitum (publicado no calendário litúrgico de 1876), o arcebispo defen-
dia a ortodoxia de Rosmini. Dessa forma, inseriu-se na feroz polêmica que envolveu Rosmini, estalada
outra vez no contexto da renovação da filosofia tomista. Em várias ocasiões, as autoridades romanas
expressaram a desaprovação de sua doutrina rosminiana, mas o arcebispo “manteve-se firme”. Ver um
tratado mais amplo em G. Tuninetti, Gastaldi II, 307-329. O conflito Bosco-Gastaldi chegou ao seu
ponto culminante no momento da condenação de Rosmini e do debate posterior (1879-1881), com a
publicação, nos anos oitenta, de panfletos anônimos contra o arcebispo, nos quais ele era atacado por
suas inclinações rosminianas. O arcebispo e sua chancelaria, erroneamente, consideraram Dom Bosco
como responsável por eles.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

A questão social e o movimento de leigos católicos


No momento da nomeação de Gastaldi como arcebispo de Turim, os
católicos estavam se tornando sempre mais conscientes da questão operária.
O arcebispo também demonstrou conhecimento e sensibilidade pelos pro-
blemas do trabalho. Sua carta pastoral de 1873 parece ter sido a primeira
instância oficial de um bispo italiano a abordar o problema. Era de se espe-
rar, pois na Itália os católicos turinenses caminhavam à frente da maioria a
esse respeito. Contudo, sua percepção do problema e as soluções previstas
eram bastante limitadas. Sua atitude não era apenas negativa e defensiva,
como também subestimava a natureza, a novidade e a magnitude do pro-
blema. Por isso, as soluções que propunha foram totalmente insuficientes,
ou seja, a reativação das corporações medievais e do bem-estar social através
de obras de caridade.
Essas deficiências, que eram, no momento, também a dos sindicatos
católicos de trabalhadores, parecem realmente graves, tendo-se em con-
ta o que diziam e faziam nesse momento os bispos e leigos católicos na
França, Bélgica, Inglaterra, Áustria, Suíça e, especialmente, na Alemanha.
Apesar de ter demonstrado pouca simpatia pelo incipiente movimento
operário católico, tipificado na Obra dos Congressos,57 seu interesse ani-
mou outras iniciativas em favor dos trabalhadores, como o Sindicato Ca-
tólico de Trabalhadores, fundado pelo padre Leonardo Murialdo e alguns
leigos católicos.58

Relacionamento com os religiosos


O direito napoleônico de 1802, a lei Rattazzi de 1855 e as leis gerais de
1866 e 1867, praticamente acabaram com as ordens e congregações religiosas
no Piemonte. Nos anos setenta houve um retorno gradual. Dom Gastaldi foi
decisivo no restabelecimento dos religiosos em suas antigas casas e igrejas. Por
outro lado, surpreendentemente, apesar das leis de supressão, foram fundadas

57
Com a tomada de Roma, os elementos católicos intransigentes (defensores declarados do
direito do Papa contra o usurpador Estado italiano) e os partidários da abstenção política, prevalece-
ram sobre os católicos moderados, que favoreciam certa acomodação com o Estado. Os intransigentes
conseguiram um instrumento de organização efetiva na Obra dos Congressos (União de Sindicatos
de Trabalhadores) fundada em 1875. Estabeleceu-se como opção ao crescente movimento operário e
oposição ao incipiente socialismo organizado na Itália. Sobretudo depois de 1885, promoveu uma série
de atividades de bem-estar econômico e social, principalmente no norte e no centro das zonas rurais.
58
G. Tuninetti, Gastaldi II, 215-243.

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Dom Bosco: história e carisma 2

numerosas congregações.59 Das novas congregações, a que teve maior expan-


são e vitalidade foi a Sociedade Salesiana de Dom Bosco.
Os religiosos não estavam muito envolvidos na cura de almas, nas paró-
quias etc. Estavam envolvidos mais profundamente na educação dos jovens;
isso era particularmente certo na Sociedade Salesiana e na Sociedade de São
José.60 O arcebispo exaltou o caminho dos conselhos evangélicos, especial-
mente a virgindade consagrada, mas não queria que os religiosos interferis-
sem na vida paroquial. Pode-se dizer que, por um lado, tinha um apreço
teológico mais profundo da vida religiosa do que a maioria dos bispos de
seu tempo e, por outro, era mais rigoroso em suas exigências e mais duro na
aplicação de sanções disciplinares.
Sua atitude em relação aos religiosos explica-se menos por seu caráter
pessoal autoritário do que pelo seu conceito da função e da autoridade epis-
copal. O parágrafo sobre os religiosos incluído em seu relatório ad limina
de 1874 proporciona uma referência prática. Nesse documento, ele fazia
pela primeira vez uma avaliação crítica do programa de formação salesiana.
Depois, expressava a esperança de que, quando o Concílio Vaticano voltas-
se a se reunir, este reformasse a prática em voga da formação nas congre-
gações religiosas, como o noviciado; e, quanto aos estudos humanísticos,
filosóficos e teológicos, estes deveriam ser concluídos antes da ordenação.
Igualmente, considerava o papel do bispo como participante no processo
de discernimento sobre a vocação e dignidade dos candidatos aos votos
perpétuos; e, de novo, como avaliador e examinador dos candidatos antes
de conferir a ordenação.
Tal doutrina da função do bispo em relação aos religiosos, obviamente,
devia refletir-se em seu conceito de isenção dos religiosos. Mais uma vez, a
fim de compreender sua posição quanto aos “privilégios de isenção”, deve-se
ter presente seu conceito de eclesiologia.61

59
No Piemonte, fundaram-se 7 congregações de homens e 40 de mulheres; em Turim, respec-
tivamente 5 e 19. Nos anos de Gastaldi, foram fundadas as seguintes congregações: a Sociedade de São
José (1873, do padre Leonardo Murialdo); as Filhas de Nossa Senhora das Dores (1875, do padre Ro-
berto Murialdo), as Pequenas Servas do Sagrado Coração de Jesus (1875, de Ana Michelotti); as Filhas
de São José (1875, do padre Clemente Marchisio); as Irmãs Mínimas de Nossa Senhora do Sufrágio
(1881, do padre Francisco Faà di Bruno). Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 247.
60
Em seu relatório ad limina, de 1879, Gastaldi fala de 2 mil jovens educados pelos Irmãos das
Escolas Cristãs, e 800 e 200 respectivamente aos cuidados dos salesianos e josefinos [ASC A1080506:
Franchetti, FDB 697 A4].
61
G. Tuninetti, Gastaldi II, 245-249, 254-257.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Os enfrentamentos do arcebispo com os jesuítas foram principalmente


de caráter doutrinal, motivados pelo fato de os jesuítas italianos, especial-
mente os romanos, serem os principais adversários de Rosmini. Todavia, não
deixava de admirar sua espiritualidade e disciplina.
Os vários conflitos entre o arcebispo e os últimos fundadores religiosos
e seus institutos na arquidiocese devem ser considerados à luz da eclesiologia
do arcebispo. Mencionamos apenas alguns casos que parecem particularmen-
te significativos: seus enfrentamentos com a irmã Maria Luísa Angélica Cla-
rac, com o padre Francisco Faà di Bruno e, o mais grave, com Dom Bosco no
processo de aprovação das Constituições Salesianas.

Maria Luísa Angélica Clarac


Maria Luísa Angélica Clarac nasceu em 6 de abril de 1817 em Auch
(Bers-Gasconha, França). Em 12 de maio de 1842, ela vestiu o hábito das
Filhas de Caridade. Depois de ser mestra, em 1848 ofereceu-se como volun-
tária para a missão em Argel, onde trabalhou e ensinou num orfanato. Em
1851, gravemente enferma do fígado, viu-se obrigada a regressar a Paris e ali
permanecer por dois anos.
Em 21 de maio de 1853, irmã Clarac foi destinada a Turim, comunida-
de de Borgo San Salvario. Viveu e trabalhou em Turim praticamente ao longo
de toda a sua vida. Sendo Servente (superiora) da nova Casa de Misericórdia
na paróquia de São Máximo, com outras 5 irmãs, logo fundou obras de cari-
dade para os pobres e um orfanato na Sardenha.
Em 1862, por sugestão de Dom Bosco, Clarac comprou um edifício
que, mais tarde, se converteria em casa mãe de sua congregação. Situava-se
no Viale del Re, perto do Oratório de São Luís. Em 1865, as obras de Clarac
foram para ali transferidas. Desde esse momento, aos poucos a instituição de
Clarac foi-se diferenciando das Filhas da Caridade. Dom Alexandre Riccardi
di Netro, quando foi destinado a Turim em 1867, apoiou e protegeu Clarac
e seu instituto. Pouco depois, nomearia os salesianos como capelães adjuntos
da instituição. Capelão principal era o famoso pregador padre Maximiliano
Bardesono di Rigras (1838-1879).
À morte de dom Riccardi di Netro, em outubro de 1870, irmã Clarac
foi objeto de denúncia feita por suas irmãs; em abril de 1871, foi-lhe ordena-
do que retornasse à França. Depois de pedir dois meses de prazo, consultou
Dom Bosco se devia deixar a congregação das Filhas da Caridade, uma deci-
são com que, parece, Dom Bosco estava de acordo. Seguindo sua sugestão,
recorreu a dom Moreno, bispo de Ivrea, então decano dos bispos do Piemon-
te. A sede de Turim ainda estava vacante nesse momento.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Moreno aconselhou-a a abandonar a comunidade das Filhas da


Caridade de San Salvario, em Turim, e se unisse, temporariamente, às Irmãs
da Caridade de Maria Imaculada, sob o patrocínio do bispo. Em maio de
1871, apresentou sua demissão e deixou a comunidade das Filhas da Carida-
de com quatro irmãs. O padre Marco Antônio Durando, superior tanto dos
padres da Missão de São Vicente de Paulo como das Filhas da Caridade, de
Turim, absteve-se de tomar partido ou exercer pressões.
Em outubro de 1871, dom Lourenço Gastaldi foi nomeado arcebispo
de Turim. Em linha com seu programa de reforma do clero e das instituições
diocesanas, inaugurou uma política destinada a controlar as comunidades re-
ligiosas. Começaram então os problemas de Clarac com o arcebispo, história
parecida com a de Dom Bosco. Pressionado pelas Filhas da Caridade de San
Salvario, o arcebispo ordenou que Clarac e suas irmãs deixassem de usar o
hábito das Filhas da Caridade ou sua capela seria interditada. Em 20 de de-
zembro de 1871, Clarac fechou a capela sem abandonar o hábito.
Em abril de 1872, o arcebispo notificou Clarac de que já não era religio-
sa de nenhum tipo. Pouco mais tarde, excomungou-a e fez-lhe uma repreen-
são pública na igreja dos Santos Pedro e Paulo.
Não sendo autorizada a falar pessoalmente com o arcebispo, Clarac es-
creveu a primeira de muitas cartas, advogando pelo seu caso e pedindo que lhe
fosse permitido receber a Sagrada Comunhão e reabrir a capela. Sabe-se que,
secretamente, recebia os sacramentos das mãos de padres simpatizantes; alguns
talvez fossem salesianos. Em 1873, depois da apresentação à Congregação dos
Bispos e Regulares do Breve de dom Gastaldi contra ela, Clarac recorreu com
seu caso à Congregação e aos cardeais membros e, finalmente, ao próprio Pio
IX. A Congregação romana aceitou o argumento de Clarac de que o hábito
das Filhas da Caridade não era um hábito religioso, mas também reconhecia
o direito de o arcebispo proibir que não o usasse quem não fosse Filha da Ca-
ridade. Quanto ao direito de o arcebispo impor penas canônicas à irmã por
sua desobediência, a Congregação em seu período de sessões pôs-se ao lado do
arcebispo, mas em sua resposta oficial, só lhe aconselhou prudência.
Em 1879, com o apoio de pessoas influentes e depois de modificar o
hábito e mudar temporariamente o nome do seu Instituto para “Filhas de São
Pedro”, foi permitido continuar a sua obra, mas não em Turim. Conseguiu
fundar casas na Itália central e meridional. O caso prolongou-se. Nunca se
encerrou satisfatoriamente. Dom Gastaldi não cedeu e a irmã Clarac não
voltou à Comunhão durante a vida do arcebispo.62 Escreve Tuninetti:

G. Tuninetti, Gastaldi II, 250, afirma que, apesar da proibição, padres favoráveis (salesianos?)
62

administraram-lhe os sacramentos.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Certamente, o arcebispo foi excessivamente severo ao infligir sem mais o in-


terdito, mas também não se pode desculpar a obstinação com que a irmã se
negou a abandonar a touca [do hábito], que considerava um sinal de fidelida-
de ao espírito vicentino.63

Seus problemas com o arcebispo, como no caso de Dom Bosco, só acabaram


com a morte de Gastaldi em 1883 e a nomeação do cardeal Caetano Alimonda
como arcebispo de Turim. Em 1885, o cardeal Alimonda restabeleceu oficial-
mente irmã Clarac e seu Instituto, que será conhecido desde então como Filhas
da Caridade de Santa Maria. A capela pública no Viale del Re foi novamente
aberta com um retiro espiritual dirigido pelo padre Ângelo Sávio, ecônomo da
Sociedade Salesiana, que estava para partir como missionário no Equador. Dom
Bosco concedeu a irmã Clarac o diploma de cooperadora salesiana.
Irmã Clarac morreu tranquilamente em 21 de junho de 1887, depois de
receber os sacramentos e entregar um testamento espiritual a suas irmãs. Em
1948, o arcebispo de Turim, cardeal Maurílio Fossati, abriu o processo ordinário
de beatificação, que foi concluído em 1953. Em 1981, João Paulo II assinou o
decreto de introdução da causa de beatificação em Roma. Irmã Clarac foi apon-
tada como legítima continuadora da obra de São Vicente de Paulo em favor dos
pobres. Estava profundamente imbuída do espírito de caridade e devoção que
provinham de São Francisco de Sales. Entre ela e Dom Bosco havia uma íntima
afinidade espiritual e educativa, que os associou estreitamente, muito mais do
que o fato inegável de que ambos caíram em desgraça com o arcebispo Gastaldi.64

Francisco Faà di Bruno65


Quando Gastaldi foi eleito arcebispo, Faà di Bruno, leigo católico de
elevado nível cultural e professor universitário, já iniciara uma série de obras
de caridade em favor das mulheres operárias em Turim. Colaborador habitual

63
G. Tuninetti, Gastaldi II, 251.
64
Padre Luís Fiora, salesiano, postulador da causa, reconhecia a irmã Clarac como filha espiri-
tual tanto de São Vicente de Paulo quanto de Dom Bosco, “o São Vicente de Paulo do século XIX”; e
acrescentava que, para irmã Clarac, Dom Bosco fora “o autêntico fundador de sua congregação” (ou
de seu oratório?). Cf. Maria Luigia Clarac:il coraggio dell’amore, nel centenario della morte [Moncalieri,
1887; Turim, 1987]. Opúsculo comemorativo do centenário.
65
[Beato] Francisco Faà di Bruno (1825-1888) era um homem de nobre linhagem. Graduado
na academia militar, desempenhou o cargo de capitão na Segunda Guerra de Independência da Itália
(1859-1860). Com licenciatura em matemática pela Universidade da Sorbonne, de Paris, foi professor
de cálculo na Universidade de Turim. Em 1876, decidiu ser padre e organizou sua ordenação de modo
que acontecesse sem o consentimento do arcebispo Gastaldi. Posteriormente foi indultado pelo arce-
bispo e incardinado na arquidiocese. Depois da morte de Gastaldi, fundou as Irmãs Mínimas de Nossa
Senhora do Sufrágio na igreja do mesmo nome. Cf. G. Tuninetti, Gastaldi II, 206, 239-241, 243, 251.

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Dom Bosco: história e carisma 2

da imprensa católica e líder nas conferências de São Vicente de Paulo e em


outras associações, ele era considerado um dos leigos católicos mais respei-
tados da cidade. Nos inícios de 1876, com o incentivo de Dom Bosco e de
dom Moreno, decidiu ser padre. Desejava que sua ordenação coincidisse com
a inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Sufrágio, prevista para 1o de
novembro, porque queria celebrar ali sua primeira missa. Por causa do pouco
tempo, apresentou um pedido diretamente ao Papa; foi logo aconselhado que
o apresentasse ao seu arcebispo.
Tuninetti relata o episódio afirmando que o arcebispo estava de acordo,
desde que Faà vestisse logo o hábito clerical e entrasse no seminário, o que
permitiria ao candidato dispor de dez meses de intensa preparação no am-
biente do seminário; exigência razoável segundo o critério de Gastaldi. Devi-
do ao trabalho na Universidade, Faà di Bruno não podia entrar no seminário
imediatamente; por isso, depois de passados cinco meses, o arcebispo fixou
uma data posterior para a ordenação, em algum momento da primavera de
1877. Nesse momento, também pensando na primeira data, Faà di Bruno foi
convidado a ir a Roma para sua preparação. O arcebispo não opôs objeções,
mas reservou-se o direito de publicar as cartas dimissórias, segundo o exigiam
as circunstâncias. Como Faà estava domiciliado legalmente em Alessândria, a
pedido dos “amigos”, solicitou as dimissórias a dom Pedro Salvaj Giocondo,
bispo local; as dimissórias foram-lhe concedidas. Ao mesmo tempo, foram
recebidos em Roma testemunhos de todo tipo em apoio à primeira data para
sua ordenação e primeira missa, coincidindo com a inauguração da igreja de
Nossa Senhora do Sufrágio. Com o apoio de Pio IX, ele fez o possível para
defender sua causa em Roma. O arcebispo, contudo, manteve-se firme na
data posterior da primavera. Faà di Bruno estava disposto a voltar a Turim e
acatar a decisão do arcebispo. Seus partidários, porém, frustraram o plano de
Gastaldi e organizaram a ordenação de Faà di Bruno na data desejada, 1o de
novembro de 1876, na diocese de Alessândria.

Tuninetti comenta:
As exigências razoáveis do arcebispo foram recusadas como injustificadas por
uma coalizão que incluía os bispos piemonteses Moreno e Salvaj, que agiram
sem levar nada em consideração, Dom Bosco, cujo costume era pedir ao Papa
o que não podia obter de seu arcebispo, os prelados das chancelarias romana
e vaticana, que consideravam as exigências de Gastaldi excessivamente duras,
e o próprio Pio IX, que nas coisas que se referiam à diocese de Turim, estava
mais disposto a escutar Dom Bosco do que o seu arcebispo.66

66
G. Tuninetti, Gastaldi II, 251-254.

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Lourenço Gastaldi (1815-1883). Notas biográficas

Dom Gastaldi sofreu sem dúvida uma derrota humilhante. Ciente, tal-
vez, da armadilha de Faà di Bruno, atuou moderadamente em consideração
a ele. Em fins de 1877, permitiu que o bom padre fosse incardinado na dio-
cese de Turim e continuasse sua obra de caridade a partir da igreja de Nossa
Senhora do Sufrágio.67
É nesse contexto de relações agitadas entre Gastaldi e os fundadores
religiosos que se deve situar os problemas surgidos com Dom Bosco. Devido
à complexidade e importância do tema, o conflito, sobretudo sobre a aprova-
ção das Constituições Salesianas, será abordado no capítulo seguinte.

Morte do arcebispo
Lourenço Gastaldi nunca se poupou em tudo que realizou. Sua vida
foi de estudo constante e de atividade febril. Foi também uma vida de luta
e trabalho. Contrariamente ao que se possa crer, nunca foi um homem forte
do ponto de vista físico. Era pequeno de estatura e propenso a frequentes
enfermidades. Caíra doente antes do encerramento do Concílio Vaticano I,
depois do qual se viu obrigado a pedir licença para uma longa ausência da
diocese de Saluzzo. Jamais fora um homem sadio desde que chegou a Turim
em 1871. Por outro lado, as frequentes situações de conflito em que esteve
envolvido na arquidiocese de Turim e com Roma não só o prejudicou moral
e psicologicamente, como também o debilitou fisicamente.
Foram-lhe especialmente prejudiciais os dez anos do longo conflito com
Dom Bosco: foi exposto a incessantes injúrias da imprensa, dividiu os seus
padres e ficou comprometido em Roma. O último e mais amargo episódio do
conflito, o enfrentamento pelos panfletos anônimos difamatórios de 1878-
1879, deu-lhe o golpe final. Sua saúde deteriorou-se rapidamente no verão
de 1882, depois da solução imposta por Leão XIII,68 ano em que sofreu fre-
quentes hemorragias.
Na Semana Santa de 1883, insistiu em presidir todos os serviços da
solene liturgia. Às 7h30 da manhã do domingo de Páscoa, 25 de março de
1883, seu secretário, cônego Chiuso, encontrou-o inconsciente em seu apar-
tamento. Sofrera uma hemorragia cerebral e um ataque de apoplexia. Morreu
pouco depois, às 9h55, aos 68 anos de idade. Fora arcebispo de Turim duran-
te onze anos e cinco meses.69

67
G. Tuninetti, Gastaldi II, 251-254.
68
A solução imposta por Leão XIII será narrada no volume 3, capítulo IX, quando se tratar do
conflito com o arcebispo Gastaldi e a ação de Leão XIII para a reconciliação entre o arcebispo e Dom
Bosco (nota do tradutor).
69
G. Tuninetti, Gastaldi II, 341-342.

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Capítulo XV

ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS DAS


PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES.
PRIMEIRA PARTE

Uma vez descrito o longo e acidentado processo de aprovação das


Constituições Salesianas, desde seu primeiro rascunho em 1858 até a apro-
vação definitiva em 1874, parece oportuno analisar detalhadamente alguns
artigos do texto constitucional e determinar sua importância na mente de
Dom Bosco.

Decreto de aprovação definitiva das Constituições Salesianas, 13 de abril de 1874.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

1. Fontes literárias das primeiras Constituições Salesianas1

Introdução
O texto das Constituições Salesianas, em última análise, afunda suas
raízes na vida e na experiência de Dom Bosco, na história inicial e no de-
senvolvimento de sua obra, em situações históricas concretas da Igreja e da
sociedade do século XIX. O primeiro texto conhecido, não anterior a 1858,
resultou de um período de gestação, no qual Dom Bosco consultou diversas
autoridades e elaborou o seu projeto.2 Este texto recolhe a experiência do
Oratório de Valdocco e os princípios e as estruturas já estabelecidos nos pri-
meiros regulamentos; reflete situações históricas particulares; e deve muito,
ainda, às constituições de outros institutos religiosos. Os rascunhos poste-
riores também foram marcados por circunstâncias históricas concretas, pelo
discernimento cuidadoso de Dom Bosco, pelas contribuições dos primeiros
salesianos, de membros representativos de institutos religiosos e de autorida-
des diocesanas e romanas.
Os textos constitucionais surgiram quando a Sociedade já existia. Para
entendê-los corretamente, será preciso levar em conta todos esses fatores,
com atenção especial ao processo genético que determinou sua forma e suas
características.
É importante analisar cuidadosamente as fontes literárias do texto, pois
Dom Bosco, como ele mesmo garante, serviu-se delas. É o que escreveu ao
vigário-geral da arquidiocese de Turim em 1863:
Na redação de cada capítulo e artigo, guiei-me por [Constituições das] socie-
dades que já foram aprovadas pela Igreja e cuja finalidade é parecida com a
nossa; por exemplo, o Instituto Cavanis, de Veneza, o Instituto da Caridade
[de Rosmini], o Instituto Somasco [de São Jerônimo Emiliani], os Oblatos da
Virgem Maria [de Lanteri].3

E, em 1864, num memorando dirigido à Congregação dos Bispos e


Regulares, escreve com maior detalhe:
1
Adaptação livre do estudo de F. Motto, “Constitutiones Societatis San Francisci Salesii: fonti
letterarie dei capitoli scopo, forma, voto di obbedienza, povertà e castità”, RSS 2 (1983), 341-384.
2
Dom Bosco comentou o assunto com o padre Cafasso, o padre Rosmini, o teólogo Borel, o
rosminiano João Batista Pagani, o bispo Losana, de Biella, o ministro Urbano Rattazzi e, enfim, Pio
IX, em 1858. Cf. MB V, 856s, 906s; MB VII, 616s, 903s. Padre Ascânio Sávio diz estar convencido de
que Dom Bosco trabalhara neste projeto desde 1850 (MB V, 856s).
3
Epistolario I Motto, 562.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Quanto ao conteúdo normativo, consultei e, onde era oportuno, tomei em-


prestado dos estatutos do Instituto Cavanis, de Veneza, dos rosminianos e dos
oblatos da Virgem Maria; todas, congregações ou sociedades religiosas apro-
vadas pela Santa Sé. Os capítulos 5o, 6o e 7o sobre os votos procedem quase
todos das constituições dos redentoristas. A fórmula da profissão, por outro
lado, é uma adaptação da dos jesuítas.4

Mais tarde, em suas respostas às observações recebidas, Dom Bosco teria


ocasião de referir-se às fontes que utilizara.5 Os revisores romanos também
lhe sugeriram modelos dos quais poderia se servir.6 O próprio Dom Bosco
revela suas fontes incluindo algumas notas no texto constitucional.7
É evidente, portanto, que Dom Bosco se apoiou em textos preexistentes.
Será preciso determinar com exatidão o alcance e a forma dessa utilização.
Contudo, não é fácil identificar com precisão o modelo entre vários possí-
veis. Menos fácil ainda será demonstrar a dependência direta em cada caso
particular, onde as semelhanças poderiam ser meras coincidências ou simples
estereótipos de uso comum. As fontes poderiam ter sido estas: A verdadeira
esposa de Jesus Cristo, de Santo Afonso, e o Tratado sobre a vida religiosa, as
constituições da Companhia de Jesus, o Exercício de perfeição das virtudes
cristãs, do padre Afonso Rodriguez; estes autores eram muito estimados por
Dom Bosco.8 O mesmo se poderia dizer da Sagrada Escritura, dos Padres da
Igreja e de alguns escritores espirituais.
Francisco Motto demonstra que é enorme o número de empréstimos,
literais ou não. O que é lógico, pois Dom Bosco carecia de experiência em
matéria de vida religiosa e de constituições, especialmente em relação aos
aspectos jurídicos; desejava acolher, também, a tradição de vida religiosa
já incorporada nas constituições existentes. Contudo, jamais se sentiu es-
cravo dessa tradição; sua experiência e sua visão pessoal permitiram-lhe
ultrapassá-las mantendo seu critério, mesmo quando o texto foi submeti-
do à correção oficial.

4
G. Bosco, Costituzioni, 229.
5
G. Bosco, Costituzioni, 232-233, 245-246, 248-249.
6
G. Bosco, Costituzioni, 241-244 (Voto Bianchi).
7
G. Bosco, Costituzioni, 98, 116, 118-119.
8
A espiritualidade de Dom Bosco e suas ideias sobre a vida religiosa, a vocação, a perseverança
etc. são devidas em grande parte a Santo Afonso e ao padre Rodríguez, como se pode comprovar pela
introdução às Constituições de 1875, “Aos sócios salesianos”.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Os cinco modelos precedentes


Dom Bosco, na redação das Constituições Salesianas, serviu-se de modo
especial das constituições de cinco institutos religiosos: os padres da missão
de São Vicente de Paulo, os redentoristas, os oblatos da Virgem Maria, os
sacerdotes seculares das Escolas da Caridade e os maristas. Apresentamos um
breve resumo sobre esses institutos e suas constituições.

Constituições da Congregação dos Padres da Missão9


A Congregação dos Padres da Missão (vicentinos ou lazaristas), fundada
por São Vicente de Paulo, foi aprovada pelo arcebispo de Paris em 1626 e
pelo papa Urbano VII em 1633. Suas regras com a estrutura e a finalidade da
congregação foram escritas experimentalmente em 1642, impressas e entre-
gues aos congregados em 1658 e completadas definitivamente somente em
1670. As principais obras desta congregação são a evangelização e o ministé-
rio religioso em zonas rurais, a formação do clero (direção de seminários) e
os exercícios espirituais.
Sobretudo três características dos padres da missão influíram em ou-
tros institutos, inclusive na Sociedade Salesiana: 1ª O vínculo pelo qual São
Vicente tornou permanente o trabalho missionário do grupo sem criar uma
ordem religiosa; de fato, os lazaristas constituíram o primeiro modelo de con-
gregação sem votos ou, melhor dizendo, com votos simples e privados, mas
perpétuos e dispensáveis somente pela Igreja e pelo superior-geral. 2ª A con-
cepção do voto de pobreza, reconhecido oficialmente em 1659, que permitia
aos congregados possuírem e adquirirem bens, mas submetia sua administra-
ção e seu uso à autorização do superior local. 3ª A supressão da obrigação da
récita em comum do breviário e a imposição das práticas religiosas e ascéticas
comuns entre o clero secular da época.10
Copiando livremente, às vezes de modo literal, a regra dos jesuítas, as
constituições dos lazaristas tinham 12 capítulos e 142 artigos.

I. Finalidade e estrutura da congregação (3 artigos)


II. Máximas evangélicas (18 artigos)
III. A pobreza (10 artigos)

9
A Biblioteca de Valdocco tinha uma cópia impressa do texto italiano das Constituições dos
Padres da Missão, de São Vicente de Paulo, Regole ovvero Costituzioni comuni della Congregazione della
missione, 1658. Segundo MB IX, 506s, Dom Bosco obteve uma cópia dessas Constituições do procu-
rador-geral desse Instituto em Roma.
10
Dom Bosco fez seus Exercícios de preparação à ordenação na Casa da Missão, de Turim.

455

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Dom Bosco: história e carisma 2

IV. A castidade (5 artigos)


V. A obediência (16 artigos)
VI. Sobre os doentes (4 artigos)
VII. A modéstia (7 artigos)
VIII. Sobre a maneira de nos tratarmos entre nós (16 artigos)
IX. Sobre a maneira de tratar com a gente de fora (16 artigos)
X. As práticas espirituais em uso na congregação (23 artigos)
XI. As missões e outros ministérios para com o próximo (12 artigos)
XII. Os meios e ajudas para a boa e proveitosa administração dos
ministérios mencionados anteriormente (12 artigos)
Constituições da Congregação do Santíssimo Redentor11
A Congregação do Santíssimo Redentor (redentoristas) foi fundada em
1732, por Santo Afonso Maria de Ligório, em Scala (Amalfi, Itália). Dezesse-
te anos mais tarde, em 1749, Bento XIV aprovava suas constituições.
A finalidade do instituto é “ajudar as pessoas mais pobres e espiritual-
mente mais carentes nas zonas rurais e nos povoados camponeses mediante as
missões, o ensino religioso e os exercícios espirituais”. Os redentoristas estão
comprometidos no mistério da pregação em geral e, especificamente, nas mis-
sões paroquiais e nos retiros para pessoas de diversas categorias e nos retiros
espirituais, celebrados em casas criadas para esse fim. Também estão compro-
metidos, segundo o exemplo do fundador, no apostolado da palavra escrita.
A espiritualidade da congregação é a de Santo Afonso; seu fundamento
está na imitação de Cristo, norma adotada por todos os institutos religiosos,
mas de maneira especial pelos redentoristas.
Ainda durante a vida de Santo Afonso surgiram dificuldades em relação
à prática do voto de pobreza. Este permitia o domínio radical, mas proibia a
administração e o uso dos bens sem autorização. Como fora o caso dos pa-
dres da missão, a necessidade prática de administrar chocou-se com o ideal
do voto.
As Constituições redentoristas são organizadas em 3 partes, 8 capítulos
e 64 artigos:
Parte I: Missão e outros exercícios
Cap. 1: Missões (6 artigos)
Cap. 2: Outros exercícios (1 artigo)
11
Facilmente acessíveis para Dom Bosco: “Costituzioni e Regole della Congregazione de’ Sa-
cerdoti sotto il titolo del SS. Redentore”. In: Opere ascetiche di S. Alfonso Maria de’ Liguori. Turim:
Marietti, 1847.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Parte II: Obrigações especiais dos membros


Cap. 1: Voto de pobreza (9 artigos); voto de castidade (1 artigo);
voto de obediência (4 artigos); voto de perseverança (1 artigo)
Cap. 2: A recepção dos sacramentos (3 artigos); a oração e o
exercício da humildade (4 artigos)
Cap. 3: O silêncio e o recolhimento (1 artigo), a mortificação e
a penitência corporal (4 artigos)
Cap. 4: Reuniões da comunidade (2 artigos)
Parte III: Governo da Congregação
Cap. 1: O reitor-mor e seu conselho (13 artigos); O monitor do
reitor-mor (1 artigo); O procurador-geral (1 artigo); O visitador
(2 artigos); O reitor local e outros cargos (6 artigos)
Cap. 2: Qualidades exigidas dos candidatos (5 artigos)
Constituições da Congregação dos Oblatos da Virgem Maria12
Os oblatos foram fundados em 1814, em Carignano, perto de Turim,
pelos padres João Batista Reynaudi e Pio Bruno Lanteri, com a aprovação
diocesana de um projeto de Constituições. A congregação foi dissolvida em
1820, restabelecida em 1825, em Pinerolo, perto de Turim, e aprovada de-
finitivamente com suas Constituições em 1826 por Leão XII com o decreto
Etsi Dei Filius. Uma ação do Papa impediu que os oblatos se unissem aos
redentoristas, como sugeria a Congregação dos Bispos e Regulares devido à
estreita afinidade entre as duas congregações. Em 1833, os oblatos estabele-
ceram-se em Turim na popular igreja da Consolata e ali ficaram até 1858,
quando foram expulsos. Nesse tempo, fundaram obras no Piemonte e em
outros lugares, além de missões na Birmânia.
Os oblatos dedicam-se ao apostolado da imprensa e à produção de bons
livros na luta contra os erros, “especialmente dos não crentes e dos reforma-
dores do dogma e da moral”, às missões para o povo e aos exercícios espiri-
tuais segundo o método de Santo Inácio, ao cuidado e à formação do clero,
com o objetivo de formar bons párocos e apóstolos.
As constituições dos oblatos, semelhantes em vários pontos às dos re-
dentoristas, são organizadas em 2 partes, 5 capítulos e 80 parágrafos:

Facilmente disponível em Turim: Costituzioni e Regole della Congregazione degli Oblati di Maria
12

V. Turim: Botta, 1851. Dom Bosco esteve em contato com os oblatos e familiarizou-se com eles. Em 1843
escreveu um perfil do seminarista oblato, José Burzio († 1842), que fora seu companheiro de estudos
no seminário de Chieri (Epistolario I Motto, 48-53). Estudou no Colégio Eclesiástico criado pelo padre
Lanteri e o teólogo Guala. E, de acordo com Lemoyne, em 1844, considerou entrar entre os oblatos
tendo como perspectiva as missões. Relacionava-se familiarmente com os oblatos na igreja da Consolata.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Parte I: Finalidade e regras da Congregação


Cap. 1: Finalidade da Congregação (parágrafos 1-16)
Cap. 2: Regras dos oblatos
Art. 1: A santificação pessoal (parágrafos 1-11)
Art. 2: O zelo pela salvação das almas (parágrafos 12-14)
Cap. 3: Regras para o voto de pobreza (parágrafos 1-18), para o
voto de castidade (anexo 1), para o voto de obediência (anexo
1.3), para a perseverança na congregação (anexo 1).
Parte II: Governo da Congregação
Cap. 1: O reitor-mor e seu conselho (parágrafo 1.13), O reitor-mor
(anexo 1); O procurador-geral (anexo 1); Os visitadores (anexo 1.2);
O reitor local e outros cargos (parágrafo 1-5)
Cap. 2: Qualidades requeridas nos candidatos (anexo 1-5)
Constituições da Congregação das Escolas da Caridade13
A Congregação das Escolas da Caridade, também conhecidas como Ins-
tituto Cavanis, foi fundada em Veneza pelos irmãos Antônio Ângelo e Marco
Antônio Cavanis. Como padres, dedicavam-se especialmente à instrução reli-
giosa das crianças em sua paróquia. Em 1802 deram início a um oratório; em
1804, a um colégio de ensino gratuito. Com novas e maiores instalações am-
pliaram o apostolado da escola e dedicaram-se também a retiros espirituais.
O Instituto Cavanis foi aprovado pelo imperador da Áustria em 1816 e
pelo patriarca de Veneza em 1819. Obteve o Decretum laudis do papa Gregó-
rio XVI em 1831 e a aprovação em 1836. As Constituições foram aprovadas
em 1839. A finalidade do instituto é a educação cristã dos jovens pobres
mediante as escolas de ensino gratuito, as escolas de caridade e a obra dos
retiros espirituais.
Os paralelismos entre o Instituto Cavanis e a Sociedade Salesiana são
surpreendentes. O Instituto tem por finalidade “salvaguardar os jovens da
influência corruptora das atuais más doutrinas e da vida licenciosa e possi-
bilitar a educação gratuita dos mesmos, promovendo dessa forma o maior
bem da sociedade civil e da religião”.14 O trabalho pelos meninos pobres e
marginalizados começou num galpão, ao qual foi anexado um pátio; neste,

13
Constitutiones Congregationis Sacerdotum Soecularium Scholarum Charitatis. Venetiis, F. An-
dreola, 1837.
14
Notizie intorno alla fondazione della Congregazione dei Chierici Secolari delle Scuole di Carità.
Milão: G. Pirola, 1838, 5.

458

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

os irmãos Cavanis começaram a pôr em prática seu método educativo. Era


convicção deles que a prática religiosa devia ser oferecida juntamente com a
educação e a aprendizagem de um ofício ou profissão. A produção e publica-
ção de livros de textos educativos e o cuidado das vocações são outros pontos
de semelhança.
As Constituições Cavanis são estruturadas em 10 capítulos com 128
artigos, precedidos de um preâmbulo:
Preâmbulo: Finalidade da Congregação
Cap. 1: Estrutura e forma da Congregação (11 artigos)
Cap. 2: Voto de pobreza (5 artigos)
Cap. 3: Voto de castidade (7 artigos)
Cap. 4: Voto de obediência (12 artigos)
Cap. 5: A modéstia e a caridade (10 artigos)
Cap. 6: O recolhimento em relação aos seculares [do mundo] (9
artigos)
Cap. 7: O exercício das escolas de caridade (19 artigos)
Cap. 8: Outros piedosos exercícios que se devem praticar na con-
gregação (35 artigos)
Cap. 9: Os doentes (13 artigos)
Cap. 10: Sacrifícios e orações pelos defuntos (7 artigos)
Constituições dos Padres da Sociedade de Maria15
Os padres maristas foram fundados por João Cláudio Maria Colin em
Belley (França), em 1825, depois que Pio VII aprovara um projeto em 1822.
A congregação foi aprovada em 29 de abril de 1836 por Gregório XVI com
o decreto Omnium Gentium.
Desde os inícios, a Sociedade dedicou-se à educação cristã de jovens nas
escolas, à pregação, especialmente entre a população das zonas rurais, e às
missões estrangeiras na Oceania. Na medida em que foi crescendo, aceitou a
direção de seminários. Outras obras são os centros de estudo, as paróquias e
as colônias de leprosos.
As Constituições maristas, muito estruturadas, foram esboçadas pri-
meiramente pelo fundador em 1836; reelaboradas trabalhosamente nas
décadas seguintes; e aprovadas definitivamente em 1873, um ano antes das

Constitutiones Presbyterorum Societatis Mariae a SS. Pio Papa IX approbatae et confirmatae die
15

28 februarii 1873. Lugduni (Lyon): J. B. Pelagaud, 1873.

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Dom Bosco: história e carisma 2

dos salesianos. O paralelismo cronológico pode explicar por que alguns ar-
tigos dos maristas foram introduzidos nas Constituições Salesianas; e por
que, em 1874, os cardeais substituíram alguns artigos, que Dom Bosco
não quis redigir novamente, por artigos correspondentes das constituições
maristas.
São estruturadas em duas seções, intituladas Dez artigos e Doze capítulos,
respectivamente, com um total de 450 números ou artigos:
Dez artigos sobre a finalidade e os fundamentos da Sociedade:

1. Nome e finalidade da Sociedade (número 1)


2. Meios para a consecução dos fins da Sociedade (números 2-10)
3. Estabelecimento de relações com as pessoas eclesiásticas e civis
(números 11-15)
4. Das pessoas que vivem sob a obediência na Sociedade (números
16-22)
5. Da união entre os membros da Sociedade (números 23-25)
6. O estilo de vida na Sociedade (números 26-32)
7. A mortificação e as penitências (números 33-36)
8. As práticas espirituais (números 37-41)
9. A instrução [= estudos, educação] (números 42-48)
10. O espírito da Sociedade (números 49-50)

Doze capítulos:

I. O exame dos postulantes e a admissão à prova (3 artigos,


números 51-73)
II. A formação dos noviços (4 artigos, números 74-117)
III. A observância dos votos (5 artigos, números 118-156)
IV. As demissões (3 artigos, números 157-179)
V. Normas a serem observadas por todos os membros (7 artigos,
números 180-243)
VI. As missões (3 artigos, números 244-275)
VII. Os assuntos temporais da Sociedade (2 artigos, números
276-295)
VIII. O governo de toda a Sociedade (4 artigos, números 296-344)
IX. A eleição do superior-geral e o término de seu mandato
(3 artigos, números 345-369)
X. Os principais cargos da Sociedade (5 artigos, números 370-405)

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

XI. Assembleias [reuniões, capítulos etc.] (2 artigos, números


406-422)
XII. Meios para o aumento e a preservação da Sociedade (5 artigos, nú-
meros 423-450, sendo que os números 446-450 são a conclusão)
Dom Bosco também se serviu das Constituições do Instituto da Carida-
de, de Rosmini, e da Companhia de Jesus.

2. Estudo comparativo de dois textos importantes

Preâmbulo
O Preâmbulo e o Resumo histórico (capítulos 1o e 2o após a Introdução
1ª e 2ª) foram finalmente eliminados antes da aprovação em 1874. Com-
param-se aqui as primeiras 5 etapas, advertindo que a quarta e a quinta
são idênticas.
Dom Bosco, apesar da observação crítica contrária, fez todo o possí-
vel para manter estes capítulos. Foram eliminados porque “não era habitual
que as Constituições tivessem louvores introdutórios”. Dom Bosco, porém,
considerava as experiências do Oratório carismáticas e normativas. De fato,
o Preâmbulo e o Resumo histórico funcionam, respectivamente, como a razão
histórica e as motivações sobre as quais a obra salesiana se baseia. Sua supres-
são, antes da aprovação definitiva em 1874, deixou o capítulo sobre a Finali-
dade sem sua chave de interpretação.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Texto16
I (1858) Ar II (1860) Do III (1864) Gb IV (1867) Ls Latino
Rua. Italiano Boggero. Italiano Bosco. Italiano V (1873) Ns Latino
A cada momento foi A cada momento foi A cada momento Sempre foi convicção
preocupação especial preocupação espe- foi preocupação es- dos ministros da re-
dos ministros da Igreja cial dos ministros da pecial dos ministros ligião católica que se
promover, com todas Igreja promover, com da Igreja promover, deve ter a maior so-
as suas forças, o bem- todas as suas forças, o com todas as suas licitude pelos jovens,
-estar espiritual dos bem-estar espiritual forças, o bem-estar proporcionando-lhes
jovens. A boa ou má dos jovens. A boa ou espiritual dos jovens. uma boa educação.
condição moral da má condição moral A boa ou má condi- Pois a boa ou má con-
sociedade dependerá da sociedade depen- ção moral da socie- dição moral da socie-
de se os jovens rece- derá de se os jovens dade dependerá de dade humana depen-
bem uma boa ou má- recebem uma boa se os jovens recebem derá de se os jovens
-educação. O próprio ou má-educação. O uma boa ou má- recebem uma boa ou
nosso Divino Salvador próprio nosso Divino -educação. O pró- má-educação. Cris-
mostrou-nos a verdade Salvador mostrou-nos prio nosso Divino to mesmo, o Senhor,
disso com suas ações. a verdade disso com Salvador mostrou- mostrou-nos a verda-
Para o cumprimento suas ações. -nos a verdade disso de disso com seu mag-
de sua missão divina Para o cumprimento com suas ações. nífico exemplo, convi-
na terra, com amor de de sua missão divina Pois, cumprindo sua dando especialmente
predileção, convidou na terra, com amor de missão divina na as crianças (a virem)
as crianças a aproxi- predileção, convidou terra, com amor de a ele e abençoando-
mar-se dele: Sinite as crianças a aproxi- predileção, convidou -as com suas divinas
parvulos venire ad me mar-se dele: Sinite as crianças a aproxi- mãos, dizendo: Sinite
[Deixai que as crianças parvulos venire ad me mar-se dele: Sinite parvulos venire ad me
venham a mim]. [Deixai que as crian- parvulos venire ad me [Deixai que as crian-
ças venham a mim]. [Deixai que as crian- ças venham a mim].
ças venham a mim].

16
Os cursivos, do autor, são acrescentados para ressaltar o significado.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Os bispos e, sobretudo, Os bispos e, sobre- Os bispos e, sobre- Os bispos, a quem


os Sumos Pontífices, tudo, os Sumos Pon- tudo, os Sumos Pon- o Espírito Santo en-
seguindo os passos do tífices, seguindo os tífices, seguindo os tregou o governo da
Pontífice Eterno, nos- passos do Pontífice passos do Pontífice Igreja de Deus, e, so-
so Divino Salvador, Eterno, nosso Divi- Eterno, nosso Divi- bretudo, os Sumos
cujos vigários vivem no Salvador, cujos no Salvador, cujos Pontífices, seguindo
na terra, sempre pro- vigários vivem na vigários vivem na os passos de nosso Di-
moveram, pela palavra terra, sempre pro- terra, sempre promo- vino Salvador, cujos
falada e escrita, a boa moveram, pela pala- veram, pela palavra vigários vivem na ter-
educação dos jovens e, vra falada e escrita, falada e escrita, a boa ra, incentivaram com
como consequência, a boa educação dos educação dos jovens. animado entusiasmo
favoreceram e apoia- jovens e, como con- Ele [atualmente] de palavra e ação, e
ram os institutos que se sequência, favorece- reinante [o papa] apoiaram com especial
dedicam a esta área do ram e apoiaram os Pio IX (que Deus o solicitude, os institutos
ministério sagrado. institutos que se de- conserve por muitos que se dedicam à edu-
dicam a esta área do anos para a glória cação cristã dos jovens.
ministério sagrado. da Igreja!), além de Também nisso, nosso
trabalhar incansa- Sumo Pontífice, Pio
velmente pelo bem- IX (que Deus o con-
-estar dos jovens em serve por muitos anos
perigo, também fa- seguro e a salvo para a
voreceu e apoiou de glória da Igreja!), além
modo especial, mate- de trabalhar incansa-
rial e moralmente os velmente pelo bem-es-
institutos que se de- tar dos jovens em peri-
dicam a esta área do go, favoreceu e apoiou
ministério sagrado. também com todos os
meios os institutos que
se dedicam a esta área
do ministério sagrado.

Atualmente, porém, Atualmente, porém, Atualmente, porém, Atualmente, porém,


esta necessidade é esta necessidade é esta necessidade é esta necessidade é
sentida com urgência sentida com urgência sentida com urgên- sentida com urgência
muito maior. A ne- muito maior. A ne- cia muito maior. A muito maior. A ne-
gligência dos pais, o gligência dos pais, o negligência dos pais, gligência dos pais, o
poder abusivo da im- poder abusivo da im- o poder abusivo da poder abusivo da im-
prensa e os esforços de prensa e os esforços de imprensa e os esfor- prensa e os esforços de
proselitismo dos he- proselitismo dos he- ços de proselitismo proselitismo dos he-
reges exigem que nos reges exigem que nos dos hereges e das sei- reges e cismáticos exi-
unamos na luta pela unamos na luta pela tas exigem que nos gem que nos unamos
causa do Senhor, sob a causa do Senhor, sob a unamos na luta pela na luta pela causa do
bandeira do Vigário de bandeira do Vigário de causa do Senhor, sob Senhor, sob a bandeira
Jesus Cristo. Jesus Cristo. a bandeira do Vigário do Vigário de Nosso
de Jesus Cristo. Senhor Jesus Cristo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Nossos esforços devem Nossos esforços de- Nossos esforços de- Nosso Senhor Jesus
ter como objetivo sal- vem ter como ob- vem ter como obje- Cristo. Nossos esfor-
vaguardar a fé e a vida jetivo salvaguardar tivo salvaguardar a fé ços devem ter como
moral desta categoria a fé e a vida moral e a vida moral desta objetivo salvaguardar
de jovens, especialmen- desta categoria de jo- categoria de jovens, a fé e defender a vida
te aqueles cuja salvação vens, especialmente especialmente aque- moral dos jovens, em
eterna está em maior aqueles cuja salvação les cuja salvação particular dos que não
perigo, precisamente eterna está em maior eterna está em maior têm a ajuda necessária
pela sua pobreza. perigo, precisamente perigo, precisamente para sua educação cris-
pela sua pobreza. pela sua pobreza. tã, precisamente pela
sua pobreza.
Esta é a finalidade es- Esta é a finalidade es- Esta é a finalidade Esta é a finalidade es-
pecífica da Sociedade pecífica da Sociedade específica da Socie- pecífica da Sociedade
ou Congregação de São ou Congregação de dade ou Congrega- ou Congregação de
Francisco de Sales. São Francisco de Sales. ção de São Francisco São Francisco de Sales.
de Sales.

Comentário
A comparação das cinco etapas sucessivas do preâmbulo manifesta clara-
mente o juízo de valor que Dom Bosco tinha sobre a problemática social dos
jovens em perigo. Depois da declaração geral sobre a necessidade da educação
dos jovens e de uma descrição dos esforços da Igreja (bispos, papas, Pio IX)
para responder a essa necessidade, seguindo o exemplo de Jesus (“Deixai que
as crianças venham a mim”), Dom Bosco identifica as causas do perigo: “a ne-
gligência dos pais, o poder abusivo da imprensa e os esforços de proselitismo
dos hereges”. Por isso, conclui: “Nossos esforços devem ter como objetivo
salvaguardar a fé e a vida moral desta categoria de jovens cuja salvação eterna
está em maior perigo, precisamente pela sua pobreza”.

Resumo histórico

As cinco etapas

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

1858: Ar, italiano 1860: Do, italiano 1864: Gb, italiano 1867: latim
Origem desta Origem desta A origem desta 1873: latim
Congregação Sociedade Sociedade Origem desta
Sociedade- N. 2
[1867]
II. Sobre os inícios
desta Sociedade
[1873]
[1] Ainda no ano de Ainda no ano de Ainda no ano de Ainda no ano de 1841,
1841, padre João Bos- 1841, padre João Bos- 1841, padre João Bos- padre João Bosco,
co, trabalhando em co, trabalhando em co, trabalhando em trabalhando em as-
associação com outros associação com outros associação com outros sociação com outros
sacerdotes, começou sacerdotes, começou sacerdotes, começou sacerdotes, dedicou-se
a reunir, em locais a reunir, em locais a reunir, em locais a reunir, em locais ade-
adequados, os jovens adequados, os jovens adequados, os jovens quados, os jovens aban-
mais abandonados da mais abandonados da mais abandonados da donados e pobres da
cidade de Turim, com cidade de Turim, com cidade de Turim, com cidade de Turim, com
o fim de entretê-los o fim de entretê-los o fim de entretê-los o fim de entretê-los
com jogos e, ao mes- com jogos e, ao mes- com jogos e, ao mes- com jogos e, ao mesmo
mo tempo, dar-lhes o mo tempo, dar-lhes o mo tempo, dar-lhes o tempo, dar-lhes o pão
pão da divina palavra. pão da palavra divina. pão da divina palavra. da divina palavra.
Tudo o que fiz, eu o fiz Tudo foi feito com o Tudo o que fiz, eu o fiz Tudo o que fiz, eu o fiz
com o consentimento consentimento da au- com o consentimento com o consentimento
da autoridade eclesi- toridade eclesiástica. da autoridade eclesi- da autoridade ecle-
ástica. Deus abençoou Deus abençoou estes ástica. Deus abençoou siástica. Deus aben-
estes inícios humildes, inícios humildes, e o estes inícios humildes, çoou estes inícios hu-
e o número de jovens número de jovens que e o número de jo- mildes, e foi incrível
que se reuniam tornou- se reuniam tornou-se vens que se reuniam [ver] quão grande era
-se tão grande que no tão grande que no ano tornou-se tão grande o números de jovens
ano de 1844 Sua Ex- de 1844 Sua Excelên- que no ano de 1844 que livremente se reu-
celência dom [Luís] cia dom [Luís] Franso- Sua Excelência dom niam. Por isso, depois
Fransoni deu permis- ni deu permissão para [Luís] Fransoni, nosso da devida deliberação,
são para dedicar um dedicar um edifício anterior e recordado no ano de 1844, Luís
edifício para uso de para uso de uma espé- arcebispo, deu permis- Fransoni, arcebispo
uma espécie de igreja, cie de igreja, [Nota 1] são para dedicar um de Turim, deu per-
[Nota 1] concedendo, concedendo, ao mes- edifício para uso de missão para dedicar
ao mesmo tempo, as mo tempo, as facul- uma espécie de igreja, um edifício para uso
faculdades de celebrar dades de celebrar ali [Nota 1] concedendo, de uma espécie de
ali as funções religiosas as funções religiosas ao mesmo tempo, as igreja, [Nota 1] e para
que fossem necessárias que fossem necessárias faculdades de celebrar celebrar ali todas as
para cumprir com os para cumprir com os ali as funções religiosas funções sagradas que
domingos e dias festi- domingos e dias festi- que fossem necessárias são necessárias para o
vos e para a instrução vos e para a instrução para cumprir com os cumprimento de do-
dos jovens que se reu- dos jovens que se reu- domingos e dias festi- mingos e dias festivos
niam em número cada niam em número cada vos e para a instrução e para a instrução dos
vez maior. vez maior. dos jovens que se reu- jovens que se reuniam
niam em número cada em número cada vez
vez maior. maior.

465

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Dom Bosco: história e carisma 2

[2] O arcebispo esteve O arcebispo esteve ali O arcebispo esteve ali O arcebispo esteve ali
ali em várias ocasiões em várias ocasiões para em várias ocasiões para pessoalmente em vá-
para administrar o sacra- administrar o sacra- administrar o sacra- rias ocasiões para ad-
mento da Confirmação. mento da Confirmação. mento da Confirmação. ministrar o sacramen-
Também, no ano de Também, no ano de Também, no ano de to da Confirmação.
1846, permitiu que 1846, permitiu que 1846, permitiu que os No ano de 1846, ele
os jovens que se reu- os jovens que se reu- jovens que se reuniam decretou que os jovens
niam nessa instituição niam nessa instituição nessa instituição fos- que se reuniam nesta
fossem admitidos à fossem admitidos à sem admitidos à [pri- instituição podiam ser
[primeira] Sagrada Co- [primeira] Sagrada Co- meira] Sagrada Comu- admitidos à Sagrada
munhão e cumprissem munhão e cumprissem nhão e cumprissem ali Comunhão e cumprir
ali seu dever de Páscoa. ali seu dever de Páscoa. seu dever de Páscoa. ali seu dever de Páscoa.
Também permitiu [aos Também permitiu [aos Também permitiu [aos Também decretou que
sacerdotes] cantar a sacerdotes] cantar a sacerdotes] cantar a os sacerdotes podiam
Santa Missa [celebrar Santa Missa [celebrar Santa Missa [celebrar celebrar a missa solene,
a missa solene, como a missa solene, como a missa solene, como e celebrar tríduos e no-
nas paróquias] e cele- nas paróquias] e cele- nas paróquias] e cele- venas conforme o exi-
brar tríduos e novenas, brar tríduos e novenas, brar tríduos e novenas, gissem as circunstâncias.
conforme o exigissem conforme o exigissem conforme o exigissem
as circunstâncias. as circunstâncias. as circunstâncias.
[3] Esta foi a prática Esta foi a prática no Esta foi a prática no Esta foi a prática no
no Oratório com o Oratório com o nome Oratório com o nome Oratório com o nome
nome de São Francis- de São Francisco de de São Francisco de de São Francisco de
co de Sales até o ano Sales até o ano 1847. Sales até o ano 1847. Sales até o ano 1847.
1847. Enquanto isso, Enquanto isso, o nú- Enquanto isso, o nú- Enquanto isso, o nú-
o número de jovens mero de jovens crescia mero de jovens crescia mero de jovens crescia
crescia constantemen- constantemente e a constantemente e a constantemente e a igre-
te e a igreja então em igreja então em uso já igreja então em uso já ja então em uso já não
uso já não era adequa- não era adequada para não era adequada para era adequada para eles.
da para eles. Esse foi eles. Esse foi o motivo eles. Esse foi o motivo Esse foi o motivo pelo
o motivo pelo qual, pelo qual, nesse ano, pelo qual, nesse ano, qual, nesse ano, nova-
nesse ano, novamente novamente com a per- novamente com a per- mente com a permissão
com a permissão da missão da autoridade missão da autoridade da autoridade eclesiás-
autoridade eclesiásti- eclesiástica, foi criado eclesiástica, foi criado tica, foi criado um se-
ca, foi criado um se- um segundo Oratório, um segundo Oratório, gundo Oratório, sob o
gundo Oratório, sob o sob o patrocínio de São sob o patrocínio de São patrocínio de São Luís
patrocínio de São Luís Luís Gonzaga, com a Luís Gonzaga, com a Gonzaga, com a mesma
Gonzaga, em outra mesma finalidade do mesma finalidade do finalidade do primeiro,
parte da cidade, com primeiro, em outra par- primeiro, em outra par- em outra parte da cida-
a mesma finalidade te da cidade, na Avenida te da cidade, na Avenida de, em Porta Nova. E
do primeiro. E como, dos Plátanos em Porta dos Plátanos em Porta como, com o tempo, os
com o tempo, os lo- Nova. E como, com o Nova. E como, com o locais nestas duas insti-
cais destas duas ins- tempo, os locais nestas tempo, os locais nestas tuições resultassem insu-
tituições resultassem duas instituições resul- duas instituições resul- ficientes, no ano 1849,
insuficientes, no ano tassem insuficientes, no tassem insuficientes, no criou-se um terceiro
1849, criou-se um ano 1850 [sic], criou-se ano 1849, criou-se um Oratório, sob o patro-
terceiro Oratório, sob um terceiro Oratório, terceiro Oratório, sob cínio do Santo Anjo da
o patrocínio do Santo sob o patrocínio do o patrocínio do Santo Guarda, no distrito de
Anjo da Guarda, em Santo Anjo da Guarda, Anjo da Guarda, no Vanchiglia, um bairro
outra parte da cidade. no bairro de Vanchiglia. distrito de Vanchiglia. também da cidade.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

[4] Nessa época, o Nessa época, o clima Nessa época, o clima Nessa época, o clima
clima político tinha- político tinha-se dete- político tinha-se dete- político tinha-se de-
-se deteriorado até o riorado até o ponto de riorado até o ponto de teriorado até o ponto
ponto de apresentar apresentar à religião apresentar à religião de apresentar à reli-
à religião [católica] as [católica] as mais gra- [católica] as mais gra- gião [católica] as mais
mais graves dificulda- ves dificuldades e pe- ves dificuldades e pe- graves dificuldades e
des e perigos. Nessa rigos. Nessa situação, rigos. Nessa situação, perigos. Nessa situ-
situação, o superior o superior eclesiástico o superior eclesiástico ação, a pessoa mais
eclesiástico aprovou aprovou graciosamen- aprovou graciosamen- generosa a quem foi
graciosamente o regu- te, e de sua própria te, e de sua própria confiado o cuidado da
lamento destes orató- iniciativa, os regula- iniciativa, o Regula- diocese, aprovou de
rios, e nomeou o pa- mentos destes orató- mento dos oratórios, e sua própria iniciativa
dre Bosco, seu único rios, e nomeou o pa- nomeou o padre Bos- o Regulamento dos
diretor, concedendo- dre Bosco, seu único co, seu único diretor, oratórios, e nomeou
-lhe todas as faculda- diretor, concedendo- concedendo-lhe todas o padre Bosco, seu di-
des que fossem neces- -lhe todas as faculda- as faculdades que fos- retor, concedendo-lhe
sárias ou pudessem ser des que fossem neces- sem necessárias ou pu- todas as faculdades
úteis para a tarefa. sárias ou pudessem ser dessem ser úteis para a que fossem necessárias
úteis para a tarefa. tarefa. ou pudessem ser úteis
para a tarefa.
[5] Os bispos de mui- Os bispos de muitas Os bispos de muitas Os bispos de muitas
tas partes adotaram os partes adotaram os partes adotaram os partes adotaram os
mesmos regulamentos mesmos regulamentos mesmos regulamen- mesmos regulamen-
e fizeram o esforço de e fizeram o esforço de tos e estão fazendo o tos e estão fazendo o
introduzir esses orató- introduzir esses orató- esforço de introduzir esforço para que esses
rios festivos em suas rios festivos em suas esses oratórios festivos oratórios floresçam
dioceses. dioceses. em suas dioceses. também em suas dio-
ceses.
[6] Surgiu, porém, Surgiu, porém, uma Surgiu, porém, uma Surgiu, porém, de for-
uma urgente neces- urgente necessidade urgente necessidade ma inesperada, uma
sidade em relação ao em relação ao cuida- em relação ao cuida- urgente necessidade.
cuidado dos [jovens do dos [jovens nesses] do dos [jovens nesses] Muitos jovens um
nesses] oratórios. oratórios. oratórios. pouco mais avançados
Inúmeros jovens, um Inúmeros jovens, um Inúmeros jovens, um na idade, não podiam
pouco mais avançados pouco mais avançados pouco mais avançados receber instrução [re-
na idade, não podiam na idade, não podiam na idade, não podiam ligiosa] adequada sim-
receber instrução receber instrução receber instrução plesmente assistindo à
[religiosa] adequada [religiosa] adequada [religiosa] adequada catequese do domin-
simplesmente assistin- simplesmente assistin- simplesmente assis- go. O que tornou ne-
do à catequese do do- do à catequese do do- tindo à catequese do cessário abrir escolas
mingo. O que tornou mingo. O que tornou domingo. O que tor- diurnas e noturnas
necessário abrir salas necessário abrir salas nou necessário abrir que lhes proporcio-
diurnas e noturnas diurnas e noturnas escolas diurnas e no- nassem instrução cate-
com instrução cate- com instrução cate- turnas com instrução quética durante toda a
quética [especialmen- quética [especialmen- catequética que fun- semana.
te para eles]. te para eles]. cionasse durante toda
a semana.

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Dom Bosco: história e carisma 2

[7] Além disso, muitos Além disso, muitos Além disso, muitos Além disso, muitos
desses jovens viram-se desses jovens viram-se desses jovens viram-se desses jovens viram-
numa situação de extre- numa situação de ex- numa situação de ex- -se numa situação de
ma pobreza e abando- trema pobreza e aban- trema pobreza e aban- extrema pobreza. Por
no. De aí, que fossem dono. Por isso, foram dono tais que, a fim de isso, para que pudes-
recebidos numa casa recebidos numa casa afastá-los dos perigos, sem ser afastados de
[criada para eles]. Por [criada para eles]. Por dar-lhes instrução reli- perigos, recebessem
esse meio, foram afasta- esse meio, foram afas- giosa e iniciá-los num instrução religiosa e
dos dos perigos, recebe- tados dos perigos, re- ofício, não encontra- fossem iniciados num
ram instrução religiosa ceberam instrução reli- mos outra solução ofício, eles foram
adequada e foram ini- giosa adequada e foram que alojá-los em locais acolhidos numa casa
ciados num ofício. iniciados num ofício. adequados e propor- [criada para eles].
cionar-lhes tudo do
que necessitassem.
[8] Esta continua a Esta continua a ser Esta tem sido a prática Esta ainda é a prática,
ser a prática neste mo- a prática neste mo- dos últimos dezessete sobretudo em Turim,
mento, sobretudo em mento, sobretudo em anos, em Turim, na na casa anexa ao Ora-
Turim, na casa anexa Turim, na casa anexa casa anexa ao Oratório tório de São Francisco
ao Oratório de São ao Oratório de São de São Francisco de de Sales, onde [os jo-
Francisco de Sales, na Francisco de Sales, na Sales, onde os jovens vens acolhidos] che-
qual o número de jo- qual o número de jo- acolhidos chegam a gam a mais de 700.
vens que recebem alo- vens acolhidos chega a uns 700. Em 1863, Em 1863, inaugurou-
jamento chega a uns uns 200. abriu-se em Mirabello -se outra casa [escola]
200. Esta é também a Monferrato, outra casa na cidade de Mirabello
prática em Gênova, na [escola], [oficialmen- Monferrato, conhecida
Obra assim chamada te] conhecida como [oficialmente] como
dos Pequenos Apren- Seminário Menor de Seminário Menor de
dizes, onde o Diretor São Carlos, onde cer- São Carlos, onde cerca
é o padre Francisco ca de uma centena de de 150 jovens recebem
Montebruno, e onde jovens recebem a edu- a educação de acordo
os jovens acolhidos cação de acordo com com os regulamentos
chegam a 40. Esta é os regulamentos desta vigentes no Oratório
também a prática na Sociedade. desta cidade. Depois,
cidade de Alessândria no ano 1864, criou-se
onde a obra está con- outra casa de internato
fiada no momento aos em Lanzo, na provín-
cuidados do [nosso] cia de Turim, na qual
clérigo Ângelo Sávio, e duzentos jovens rece-
onde os jovens acolhi- bem educação e ensi-
dos chegam a 50. no religioso. Estamos
atualmente para abrir
outra casa em um lugar
chamado Troffarello,
povoado localizado a 7
quilômetros da cidade
[de Turim].

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

[9] Quando, além dos Quando, além dos jo- Quando, além dos jo- Quando, além dos jo-
jovens que se reúnem vens que se reúnem nos vens que se reúnem nos vens que se reúnem nos
nos oratórios festivos, oratórios festivos, se oratórios festivos, se oratórios festivos, se
tem-se em conta os que consideram os que as- consideram os que as- consideram os que as-
assistem à escola diurna sistem à escola diurna e sistem à escola diurna e sistem à escola diurna e
e noturna, e os que rece- noturna, e os que rece- noturna, e os que rece- noturna, e os que rece-
bem alojamento, perce- bem alojamento, perce- bem alojamento, perce- bem alojamento, perce-
be-se o quanto cresceu a be-se o quanto cresceu be-se o quanto cresceu be-se o quanto cresceu
messe do Senhor. a messe do Senhor. a messe do Senhor. a messe do Senhor.
Por isso, a fim de man- Por isso, a fim de man- Por isso, a fim de man- Por isso, a fim de man-
ter a unidade de es- ter a unidade de espí- ter a unidade de espíri- ter a unidade numa
pírito e disciplina, do rito e disciplina, do to e disciplina, do que comprovada disciplina
que depende o êxito que depende o êxito depende o êxito da do que se obtiveram os
da obra do Oratório, da obra do Oratório, obra do Oratório, já melhores frutos, já em
já em 1844, vários já em 1844, vários em 1844, vários sacer- 1844, vários sacerdotes
sacerdotes uniram-se sacerdotes uniram-se dotes uniram-se para uniram-se para formar
para formar uma espé- para formar uma espé- formar uma espécie uma espécie de socie-
cie de congregação, ao cie de congregação, ao de congregação com dade ou congregação,
mesmo tempo em que mesmo tempo em que o fim de se ajudarem ao mesmo tempo
se ajudavam uns aos se ajudavam uns aos uns aos outros com o em que se ajudavam
outros com o exem- outros com o exem- exemplo e a aprendi- uns aos outros com o
plo e a aprendizagem plo e a aprendizagem zagem recíproca. exemplo e a aprendiza-
recíproca. Eles não se recíproca. Eles não Eles não se compro- gem recíproca.
comprometeram com se comprometeram meteram com um voto Eles não se compro-
um voto formal; limi- com um voto formal; formal; limitaram-se a meteram com um voto
taram-se a fazer uma limitaram-se a fazer fazer uma simples pro- [oficial]; limitaram-se a
simples promessa de uma simples promessa messa de dedicar-se à fazer uma simples pro-
dedicar-se exclusiva- de dedicar-se exclusi- educação dos jovens e messa de dedicar-se,
mente ao trabalho que, vamente ao trabalho às atividades ministe- sem reservas, a esse tra-
a juízo de seu superior, que, a seu juízo, re- riais que redundassem, balho, pois redundaria,
redundasse na glória de dundasse na glória de a seu juízo, na maior a seu juízo, na maior
Deus e em benefício de Deus e em benefício glória de Deus e em be- glória de Deus e em be-
suas almas. de suas almas. nefício de suas almas. nefício de suas almas.
Consideravam padre Consideravam padre Consideravam padre Escolheram livremen-
João Bosco seu supe- João Bosco seu supe- João Bosco seu supe- te padre João Bosco
rior. E, embora não se rior. E, embora não rior. E, embora não se como seu superior. E,
fizessem votos, as re- se fizessem votos, no fizessem votos, porém, embora não se fizes-
gras que aqui se apre- principal, as regras no principal, as regras sem votos, no princi-
sentam, na prática que aqui se apresen- que aqui se apresen- pal, as regras que aqui
[já] eram observadas. tam, [já] se observa- tam, [já] se observa- se apresentam, [já] se
Atualmente, 15 pes- vam na prática. vam na prática. observavam na prática.
soas professam estas
regras: 5 sacerdotes, 8
clérigos e 2 leigos.

Nota 1, de Dom Bosco, do parágrafo primeiro: “Esta constava de dois quartos na parte em que
viviam os sacerdotes, diretores [espirituais] do internato de Nossa Senhora do Refúgio para meninas em
perigo, conhecido como Refúgio. Mais tarde, em 1845, o Oratório transferiu-se para Valdocco, onde
ainda está situado neste momento”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário
Deve-se levar em conta que, em 1844, Dom Bosco transferiu-se do
Colégio Eclesiástico, centro da cidade, para o Refúgio da marquesa Barolo,
situado no bairro periférico de Valdocco, quando foi nomeado capelão do
Pequeno Hospital, ainda em construção. O pequeno oratório teve início em
1841 e se mudou, com Dom Bosco, para o Refúgio, em outubro de 1844.
Em 8 de dezembro, a marquesa permitiu o uso de alguns quartos no Pequeno
Hospital, nos quais se organizou uma capela e se reuniu o Oratório até julho
de 1845. Deve-se situar neste quadro histórico o que diz o primeiro parágrafo
e a nota acrescentada de Dom Bosco.
No segundo anexo, a cena muda. Em 1846, encontramos o Oratório
de São Francisco de Sales, assentado na propriedade do senhor Pinardi,
também situado em Valdocco, como o Refúgio da Barolo e o Pequeno
Hospital. O telheiro Pinardi foi dedicado como capela; ali dom Fransoni
foi administrar a Confirmação e concedeu a Dom Bosco algumas faculda-
des que converteram o Oratório numa espécie de paróquia “para os jovens
sem paróquia”.
Em seguida, Dom Bosco descreve rapidamente o desenvolvimento pos-
terior: a criação de dois outros oratórios em 1847 e 1849 em outros locais
da cidade, a Revolução Liberal, a aprovação dos regulamentos pelo arcebispo
Fransoni em 1852 e seu decreto designando Dom Bosco como único diretor
dos três oratórios com todas as faculdades necessárias.
Como resposta à “necessidade urgente”, Dom Bosco criou aulas diurnas
e noturnas para os jovens mais velhos e uma casa para os mais pobres entre os
pobres (1847), onde os jovens eram afastados do perigo, recebiam instrução
religiosa e iniciavam-se num ofício.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Capa da edição impressa em italiano das


Constituições Salesianas, publicadas em 1877.

Continuando, Dom Bosco descreve os progressos em cada etapa até o


momento da redação. A etapa primeira (Ar, 1858) é de particular interesse.
Menciona uma população de 200 internos na Casa Anexa, em Valdocco. Esse
aumento foi possível graças a um novo edifício que construiu em etapas,
1853 e 1856. Depois, ele menciona a obra para aprendizes iniciada em Gê-
nova pelo padre Francisco Montebruno. Dom Bosco encontrou-se com este
zeloso padre em 1855, ou mesmo antes, e parece que falaram em unir forças,
o que não aconteceu, pois o padre Montebruno não será mais mencionado.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O último ponto do artigo nove (etapa I, 1858) é de particular interesse


por aludir ao seminarista Ângelo Sávio que trabalhava em Alessândria. Que
Ângelo Sávio fosse destinado a essa obra em 1858-1859 permite fixar a data
do primeiro rascunho das Constituições (Ar) em 1858-1859.
O último parágrafo considera o momento em que se faz um pedido para
sua aprovação. Dom Bosco afirma que já em 1844, vivendo e trabalhando
ainda no Refúgio da marquesa Barolo, com o teólogo Borel, padre Pacchiotti
e outros, tinham formado “uma espécie de congregação” com a finalidade
de preservar a unidade, o espírito e a disciplina. Seus membros não fizeram
nenhum voto formal, apenas uma simples promessa, mas observavam “estas
regras” e reconheciam Dom Bosco como seu superior.17
Ele também afirma que um grupo ou comunidade de 15 membros já
praticava “estas regras”: 5 padres, 8 clérigos e 2 leigos. Deve ter sido, portan-
to, antes da fundação da Sociedade, em 1859, e, certamente, antes do texto
constitucional de 1858 (Ar).

3. Fim da Sociedade
Texto
Só se comparam aqui as etapas mais decisivas do texto: etapa II, toda ela
sob o controle de Dom Bosco; etapa III, com o primeiro texto apresentado
em Roma, já com algumas influências externas; etapa VI, com o texto apro-
vado depois das modificações introduzidas pelos cardeais da Congregação
Geral; etapa VIII, com o texto oficial em língua italiana editado e impresso
para os salesianos, que difere do texto aprovado, no estilo e em certa medida
também no conteúdo.

17
Em descrições históricas posteriores, Dom Bosco não fala exatamente de “uma espécie de
congregação”, mas de uma congregação que fora erigida canonicamente, afirmação problemática já
discutida anteriormente, cf. início do capítulo VII.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

IIa: Do (1860) IIIa: Gb (1864) VIa: Q (1874) VIIIa: V (1875)


Boggero. Italiano Bosco. Italiano Texto latino aprovado Texto italiano,
impresso para os
salesianos
1. O fim desta socieda- 1. O fim desta socieda- 1. O fim da Con- 1. O fim da Sociedade
de é reunir os membros de é a perfeição cristã de gregação Salesiana é Salesiana é a perfeição
sacerdotes, clérigos e seus membros; todo tipo que seus membros, cristã de seus membros;
também leigos, com a de obra de caridade tanto ao mesmo tempo em todo tipo de obra de
finalidade de aspirar à espiritual como corporal, que se esforçam pela caridade, espiritual e
perfeição pela imitação pelos jovens, especialmente perfeição cristã, reali- corporal, pelos jovens,
das virtudes de nosso se forem pobres; e também zem todo tipo de obra especialmente pobres; e
Divino Salvador, em a educação do clero jovem. de caridade, tanto também a educação do
especial no exercício da Compõe-se de eclesiásti- espiritual como cor- clero jovem.
caridade pelos jovens cos e leigos. poral, pelos jovens, Compõe-se de sacerdo-
pobres. especialmente os mais tes, clérigos e leigos.
pobres; e se envolvam
na educação dos jo-
vens clérigos.
Esta sociedade é com-
posta de sacerdotes, clé-
rigos e também leigos.
2. Jesus Cristo come- 2. Jesus Cristo começou a 2. Jesus Cristo come- 2. Jesus Cristo começou
çou a fazer e ensinar; fazer e ensinar; do mesmo çou a fazer e ensinar; a fazer e ensinar; do mes-
do mesmo modo, os modo, os membros come- do mesmo modo, os mo modo, os membros
membros começarão çarão a se aperfeiçoar a si membros começarão a salesianos começarão a se
a se aperfeiçoar a si mesmos mediante a práti- se aperfeiçoar a si mes- aperfeiçoar a si mesmos
mesmos mediante a ca das virtudes interiores mos mediante a prática mediante a prática tanto
prática das virtudes in- e exteriores e a aquisição tanto das virtudes inte- de todas as virtudes inte-
teriores e exteriores e a da ciência; e depois, tra- riores como exteriores e riores e exteriores e com
aquisição da ciência; e balharão em benefício do a aquisição da ciência; a aquisição da ciência; e
depois, trabalharão em próximo. e depois, entregar-se- depois, trabalharão em
benefício do próximo. -ão com sumo esforço benefício do próximo.
a ajudar os outros.
3. O primeiro exer- 3. O primeiro exercício 3. O primeiro exer- 3. O primeiro exer-
cício de caridade será de caridade será acolher cício de caridade cício de caridade será
acolher jovens pobres os jovens mais abando- será este: que os mais recolher jovenzinhos
e abandonados para nados para instruí-los na pobres em primeiro pobres e abandona-
instruí-los na santa re- Santa religião católica, lugar e os adoles- dos, para instruí-los
ligião católica, especial- especialmente nos do- centes abandonados na santa religião cató-
mente nos domingos e mingos e dias festivos, recebam e sejam lica especialmente nos
dias festivos, como se como se faz nesta cidade instruídos na santa dias festivos.
faz atualmente nesta de Turim, nos três orató- religião católica es-
cidade de Turim nos rios de São Francisco de pecialmente nos dias
três oratórios de São Sales, de São Luís Gon- festivos.
Francisco de Sales, de zaga e do Santo Anjo da
São Luís Gonzaga e do Guarda.
Santo Anjo da Guarda.

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Dom Bosco: história e carisma 2

4. Além disso, alguns 4. Além disso, alguns deles 4. Dado que com fre- 4. Acontecendo com
deles encontram-se tão encontram-se tão abando- quência acontece que frequência que se en-
abandonados que para nados que para eles é inútil alguns adolescentes se contrem jovens para
eles é inútil qualquer qualquer cuidado se não fo- encontrem tão aban- os quais qualquer cui-
cuidado se não forem rem abrigados; por isso, en- donados que, a menos dado resulta inútil, se
abrigados; por isso, en- quanto possível, abrir-se-ão que sejam recebidos não lhes proporciona
quanto possível, abrir- casas de acolhida, nas quais, num internato, seria alojamento, por essa
-se-ão casas de acolhida, com os meios que a Divina totalmente em vão razão, na medida do
nas quais, com os meios Providência porá nas mãos, qualquer cuidado que possível, abrir-se-ão
que a Divina Provi- seja-lhes proporcionado se lhes oferecesse; por casas nas quais, com
dência porá nas mãos, alojamento, alimentação e essa razão, com o maior os meios que a Divina
seja-lhes proporcionado vestuário. Enquanto forem empenho possível, Providência porá em
alojamento, alimentação instruídos nas verdades da abrir-se-ão casas nas nossas mãos, se lhes
e vestuário. Enquanto fé, sejam iniciados também quais com a ajuda da proporcionará alimen-
forem instruídos nas em algum ofício ou traba- Divina Providência, se to, moradia, roupa e
verdades da fé, sejam lho, como se faz atualmente lhes proporcionará alo- alimento. E, enquanto
iniciados também em al- na casa anexa ao Oratório jamento, alimentação e são instruídos nas ver-
gum ofício ou trabalho, de São Francisco de Sales vestuário. E, ao mesmo dades da Fé católica,
como se faz atualmente nesta cidade. tempo em que forem serão também inicia-
na casa anexa ao Orató- instruídos nas verdades dos em algum ofício
rio de São Francisco de da fé, apliquem-se em ou trabalho.
Sales nesta cidade. algum ofício.
5. Além disso, em vis- 5. Além disso, em vista dos 5. Além disso, posto 5. Sendo, também,
ta dos graves perigos graves perigos que devem que os jovens desejo- muitos e graves os peri-
que devem enfrentar enfrentar os jovens dese- sos de dar seu nome gos que corre a juventu-
os jovens desejosos de josos de abraçar o estado à milícia eclesiásti- de que aspira ao estado
abraçar o estado ecle- eclesiástico, esta sociedade ca estão expostos a eclesiástico, esta socie-
siástico, esta sociedade procurará cultivar na pie- gravíssimos perigos, dade porá o máximo
procurará cultivar na dade e na vocação aqueles esta sociedade porá cuidado em cultivar na
piedade e na vocação que demonstram uma ap- o maior cuidado em piedade aqueles que de-
aqueles que demons- tidão especial para o estudo cultivar na piedade monstram uma especial
tram uma aptidão es- e uma excelente disposição aqueles que demons- disposição para o estu-
pecial para o estudo e para a piedade. Ao dar alo- tram ser especialmen- do e sejam recomendá-
uma excelente disposi- jamento aos jovens para que te recomendáveis para veis pelos seus bons cos-
ção para a piedade. Ao sigam os estudos, serão acei- o estudo e a piedade. tumes. Quando se trata
dar alojamento aos jo- tos de preferência os mais Entre os adolescentes de receber jovens para
vens para que sigam os pobres, por carecerem de que são aceitos por estudar, escolham-se de
estudos, serão aceitos meios para continuar seus causa dos estudos, preferência os mais po-
de preferência os mais estudos em outros lugares, prefiram-se aqueles bres, precisamente por-
pobres, por carecerem desde que deem fundada que são mais pobres, e que não podem fazer os
de meios para conti- esperança de êxito no esta- que, por isso, não po- estudos em outro lugar,
nuar seus estudos em do eclesiástico. Na casa de dem completar seus desde que deem alguma
outros lugares. Valdocco, são aproximada- estudos em outro lu- esperança de vocação
mente 555 e em Mirabello gar, sempre que deem ao estado eclesiástico.
mais de uma centena os jo- alguma esperança de
vens que seguem os cursos vocação ao estado
clássicos com esse fim. eclesiástico.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

6. A necessidade de 6. A necessidade de susten- 6. Dado que também 6. A necessidade de


sustentar a religião ca- tar a religião católica deixa- é urgente a grave ne- sustentar a Religião
tólica deixa-se sentir -se sentir agora gravemente, cessidade de tutelar Católica faz-se sentir
agora gravemente, in- inclusive entre os adultos do a religião católica gravemente entre os
clusive entre os adultos povo simples e especialmen- entre o povo cristão, povos cristãos, especial-
do povo simples e espe- te nas povoações agrícolas; especialmente nos mente nas aldeias; por
cialmente nas povoa- por isso, os sócios esforçar- povoados, os sócios isso, os sócios salesianos
ções agrícolas; por isso, -se-ão por oferecer exercícios esforçar-se-ão inten- trabalharão com zelo
os sócios esforçar-se-ão espirituais, difundir bons samente para forta- para oferecer exercícios
por oferecer exercícios livros, utilizando todos os lecer e dirigir na pie- que reforcem e dirijam
espirituais, difundir meios que a caridade lhes dade os homens que, na piedade os que, mo-
bons livros, utilizando sugerir; de modo que, tanto por amor a uma vida vidos pelo desejo de
todos os meios que a por meio da palavra falada e melhor, se retiram mudar de vida, vêm
caridade lhes sugerir; dos escritos, possa-se levan- durante alguns dias. ouvi-los.
de modo que, tanto tar um muro de contenção
por meio da palavra fa- à impiedade e à heresia que,
lada como dos escritos, de tantas maneiras, tenta
possa-se levantar um introduzir-se entre a gente
muro de contenção à simples e ignorante. Atu-
impiedade e à heresia almente, isso se faz ofere-
que, de tantas manei- cendo, de vez em quando,
ras, tenta introduzir-se exercícios espirituais e com
entre a gente simples e a publicação das Leituras
ignorante. Atualmen- Católicas e com a tipografia
te, isso se faz oferecen- que, desde há dois anos, se
do, de vez em quando, instalou em Valdocco ex-
exercícios espirituais e pressamente para a impres-
com a publicação das são dos bons livros.
Leituras Católicas.
7. Entretanto, é um princí- 7. Que os membros 7. Do mesmo modo,
pio adotado que será inal- também se preocupem esforçar-se-ão em di-
teradamente aplicado que em propagar bons li- fundir os bons livros
todos os membros desta vros entre o povo, e que entre o povo, utilizando
sociedade manter-se-ão ri- façam uso de todos os todos os meios inspira-
gorosamente à margem de meios que a caridade la- dos pela caridade cristã.
tudo que tenha a ver com boriosa sugerir; enfim, Enfim, com as palavras,
a política. Por isso, nem de que se oponham, por com os escritos, trata-
palavra, nem por escrito, meio da palavra falada rão de pôr um muro
seja por meio de livros, seja e escrita, à irreligião e de contenção à irreli-
pela imprensa, jamais par- a heresia, que tentam gião e a heresia, que de
ticiparão de questões que com todos os meios in- tantas maneiras tentam
ainda apenas indiretamente troduzir-se entre a gente introduzir-se entre os
possam envolvê-los em as- simples e ignorante. simples e ignorantes.
suntos políticos.18 Que os sermões pre- Para este fim devem diri-
gados ocasionalmente, gir-se os sermões que se
assim como os tríduos e pregam de vez em quan-
novenas e, enfim, a pu- do ao povo, assim como
blicação de bons livros os tríduos, as novenas e
se dirija para esse fim. a difusão de bons livros.

O art. 7o sobre política foi posteriormente eliminado de acordo com a segunda observação de
18

Savini-Svegliati. Dom Bosco, porém, na prática, ateve-se a esse princípio.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário19

• Fim da Sociedade Salesiana


Para Dom Bosco, a Sociedade Salesiana era uma congregação religiosa
que surgiu de um compromisso singular com os jovens por meio da obra
dos Oratórios. Ambos, a obra dos Oratórios e a Sociedade Salesiana, têm a
mesma origem; como consequência, a Sociedade Salesiana devia ser e conti-
nuar a ser um instrumento eficaz e funcional para essa obra. Por isso, devia
ser nova, e relativamente livre das restrições das formas tradicionais. Apoiado
na continuidade, que na prática era identidade, entre a Sociedade Salesiana e
o Oratório, Dom Bosco elaborou os resumos históricos e memorandos que
apresentou em defesa de suas Constituições.
Esta premissa não foi talvez claramente compreendida, ou valorizada,
pelos que estudavam a documentação apresentada. Por sua vez, ele jamais
teve outra ideia de Sociedade: ela existia em germe na obra dos oratórios e
o seu objetivo era servir os jovens. Essa ideia pode explicar as repetidas afir-
mações de Dom Bosco de que a Sociedade e suas Constituições remontam
a 1841 ou a alguma outra data próxima do desenvolvimento do Oratório
(1844, 1852 etc.).
• A Sociedade Salesiana, uma congregação “oratoriana”
Braido enumera não menos de 11 memorandos escritos por Dom Bosco
na década 1864-1874, apresentados por ele às autoridades da Igreja.20 Docu-
mentos mais tardios testemunham a mesma convicção; era inevitável, nesse
sentido, que as primeiras Constituições fossem precedidas por um Resumo
histórico. Eis aqui alguns poucos exemplos.
No memorando dirigido em 1867 ao arcebispo Riccardi di Netro, Socie-
tà di San Francesco di Sales, Dom Bosco narra a história da Sociedade desde
1841, sublinhando as datas 1846 (primeira organização), 1852 (decreto de
dom Fransoni), 1858 (projeto apresentado a Pio IX) e 1864 (primeira apro-
vação). O título desse memorando “Origem desta Sociedade” começa com
a frase: “Esta Sociedade, que em sua origem era formada por apenas alguns
padres, teve início em 1841 com o fim de reunir os jovens pobres aos domin-
gos e dias festivos”.21

19
Ver A. Lenti, “Community and mission: spiritual insights and salesian religious life in Don
Bosco’s Constitutionis”, JSS 9:1 (1998), 1-57.
20
P. Braido, L’idea, 91-92.
21
Società di San Francesco di Sales [1867]: Ms. de Dom Bosco, em ASC A2230202, FDB 1,925
Al2-B3; MB VII, 808s.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

No Resumo histórico (Cenno istorico), de 1868, dirigido a dom Pedro Fer-


ré, bispo de Casale, que aprovou a sociedade como congregação diocesana,
Dom Bosco começa a história das origens com estas palavras:

Esta Sociedade teve sua origem com o simples ministério de uma aula de ca-
tecismo, que o padre João Bosco iniciou com o consentimento e a aprovação
do padre Luís Guala e do padre José Cafasso [...]. Seu fim era reunir os jovens
mais pobres e abandonados aos domingos e dias festivos, para entretê-los com
serviços religiosos e cânticos, como também com recreios agradáveis.22

O Breve comunicado histórico (Brevi notizie), de Dom Bosco, uma espé-


cie de prefácio ao relatório à Santa Sé (Esposizione alla Santa Sede), de 1879,
talvez seja a mais sucinta e sistemática exposição da tese: Obra do Oratório-
-Sociedade Salesiana:

Em 1841, esta Congregação era apenas uma aula de catecismo aos domingos
e um pátio para recreio [dos jovens] aos domingos e dias festivos. A esta obra
acrescentou-se em 1846 uma casa para aprendizes pobres [...]. Vários sacerdo-
tes e senhores leigos colaboraram nesta obra de caridade, como cooperadores
externos. Em 1852, o arcebispo de Turim aprovou o Instituto, dando ao padre
João Bosco, por iniciativa pessoal, todas as faculdades necessárias e apropria-
das, e nomeando-o superior e diretor da obra dos oratórios. Nos anos 1852 a
1858 teve início a vida de comunidade, ao mesmo tempo da [residência da]
escola e de um programa de formação dos seminaristas [...]. Em 1858, Pio IX,
de santa memória, urgiu para que o padre João Bosco estabelecesse uma Pia
Sociedade com o objetivo de preservar o espírito da obra dos oratórios.23

As primeiras Constituições de Dom Bosco eram precedidas de um Re-


sumo histórico, que deliberadamente se intitulava: “Origem desta Congregação
(ou Sociedade)”. Enfaticamente, ele transmitia a mesma mensagem, ou seja,
que a Sociedade Salesiana e suas Constituições tiveram a origem na obra do
Oratório. Dom Bosco chega a afirmar que havia desde o início “uma espécie
de congregação” para a obra dos Oratórios, que ele presidia como “superior”.
Assim escreve Dom Bosco no primeiro projeto das Constituições (Ar, 1858):
22
Cenno storico intorno alla Società di San Francesco di Sales [1868]: Ms. em parte de Dom
Bosco, em ASC A2230203, FDB 1,924 D11-E2; MB IX, 61s. Refere-se a 1841, quando Dom Bosco
entrou no Colégio Eclesiástico e se dedicou logo à instrução catequética dos jovens em perigo.
23
Brevi notizie sulla Congregazione di San Francesco di Sales dall’anno 1841 al 1879, Introdução
à Esposizione alla S. Sede dello Stato morale e materiale della Pia Società di San Francesco di Sales. S. Pier
d’Arena: Tip. Salesiana, 1879, em OE XXXI, 240 [-254], editado em MB XIV, 216s (Prólogo, Breve
resumo histórico e Estado moral), MB XIV, 755s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Por isso, a fim de manter a unidade de espírito e disciplina, do que depende o


êxito da obra do Oratório, já em 1844 vários sacerdotes uniram-se para formar
uma espécie de congregação, ao mesmo tempo em que se ajudavam uns aos ou-
tros com o exemplo e a instrução recíproca. Não se comprometeram com um
voto formal; limitaram-se a fazer uma simples promessa de dedicar-se exclusiva-
mente ao trabalho, pois, a seu juízo, redundaria para glória de Deus e em benefício
de suas almas. Consideravam padre João Bosco como seu superior. E, embora não se
fizessem votos, as regras, que aqui se apresentam [já] eram observadas na prática.24

Fim da Sociedade Salesiana, na edição das


Constituições Salesianas de 1877 impressa em italiano.

Manuscrito Rua (Ar, 1858), em G. Bosco, Costituzioni, 62-70 (o cursivo é do autor). Aqui,
24

como em outros lugares, 1844 é dado como ponto de referência, porque foi em outubro desse ano que
Dom Bosco, tranquilizado pela ocorrência do sonho da vocação, deixou o Colégio Eclesiástico, assu-
miu uma capelania na instituição da marquesa de Barolo e refundou o Oratório como de São Francis-
co de Sales. Foi nessas circunstâncias que o trabalho se converteu num ministério de colaboração entre
os padres da instituição da marquesa de Barolo e outros.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Do ponto de vista meramente histórico, as afirmações de Dom Bosco


poderiam ser contestadas tanto em relação à tese geral como nos detalhes.
O vínculo que une a Sociedade Salesiana com a obra dos Oratórios como
se fossem algo idêntico é retrospectivo, uma projeção ideal, mais do que
realidade histórica. Contudo, deve-se levar em conta que em todas essas
apresentações Dom Bosco não se preocupa com o rigor dos fatos, mas com
o seu sentido. Ele deseja realçar, branco no preto, o vínculo entre a obra do
Oratório e a Sociedade que surgiu dele e para ele. A Sociedade Salesiana,
como concebida por Dom Bosco, é uma congregação oratoriana.25
• O fim específico da Sociedade Salesiana, como congregação religiosa
Os textos citados demonstram que, segundo Dom Bosco, a obra do
Oratório é a finalidade essencial específica da Sociedade Salesiana. Mas não
se contentou em apresentar suas Constituições – particularmente o capítulo
sobre o fim da Sociedade – com algumas afirmações históricas de referência.
Ele quis iniciar as Constituições com um preâmbulo destinado a estabelecer
uma justificativa teológica para a obra dos Oratórios e da Sociedade Salesia-
na. Neste Preâmbulo, citando novamente o primeiro rascunho, escreve:

Sempre foi uma preocupação especial dos ministros da Igreja promover, com
todas as suas forças, o bem-estar espiritual dos jovens [...].
Atualmente, porém, esta necessidade é sentida com muito maior urgência.
A negligência dos pais, o poder abusivo da imprensa e os esforços de proseli-
tismo dos hereges exigem que nos unamos na luta pela causa do Senhor, sob
a bandeira da fé. Nossos esforços devem ter como objetivo salvaguardar a fé
e a vida moral dessa categoria de jovens cuja salvação eterna está em maior
perigo, precisamente pela sua pobreza. Essa é a finalidade específica da Con-
gregação de São Francisco, que foi fundada primeiramente em Turim em 1841.26

À luz dessas afirmações, é compreensível que Dom Bosco resistisse às


exigências das autoridades romanas para que fossem eliminados estes dois
primeiros capítulos das Constituições, o Preâmbulo e o Resumo histórico.
Dom Bosco considerava a experiência oratoriana carismática e normativa; ou
seja, para ele, era a encarnação do espírito que iria potenciar em todas as obras
salesianas de caridade. Depois de receber as observações críticas em 1864,
pensou que podia satisfazer metade das exigências, conservando os dois capí-
tulos, em cursivo, simplesmente como introdução geral. Finalmente, viu-se

25
Cf. P. Braido, L’idea, 90-92.
26
Manuscrito Rua (Ar, 1858), em G. Bosco, Costituzioni, 58 e 60 (o cursivo é do autor).

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Dom Bosco: história e carisma 2

obrigado a eliminá-los em 1874, previamente à aprovação. O corte produziu


o efeito de deixar o capítulo sobre o Fim da Congregação, em particular seu
artigo primeiro, básico, mas limitado, sem o apoio de um fundamento teo-
lógico e histórico.
Ao descrever a finalidade da Sociedade Salesiana nas observações (Cose da
notarsi) que apresentou com as Constituições de 1864, Dom Bosco escreve:

O fim desta Sociedade, na medida em que afeta [pessoalmente] os seus mem-


bros, é oferecer-lhes uma oportunidade para unir-se em espírito com a finali-
dade de trabalhar para a maior glória de Deus e a salvação das almas. Encon-
tramos inspiração nas palavras de Santo Agostinho: Divinorum divinissimum
est in lucrum animarum operari [de todas as obras divinas, a mais divina é
trabalhar pela salvação das almas].
Considerada em si mesma [em sua existência histórica], [esta Sociedade] tem
por finalidade continuar o que se vem fazendo no Oratório de São Francisco
de Sales durante os últimos vinte anos.27

Encontramos aqui uma declaração nítida da finalidade específica da So-


ciedade Salesiana como congregação religiosa. É uma vida ativa totalmente
dedicada às obras de caridade, realizadas de acordo com o espírito e a experi-
ência normativa do Oratório.
Entretanto, como Dom Bosco concebia o fim genérico ou comum da
Sociedade como congregação religiosa e como ele considerava sua relação
com o fim específico?
• A finalidade, genérica e específica, da Sociedade Salesiana como congre-
gação religiosa
O debate sobre o fim ou os fins da vida religiosa teve uma história longa
e disputada, pois implica o exame das diversas formas de vida religiosa que
surgiram desde os primeiros tempos cristãos.28

Considera-se, em geral, que o objetivo genérico de toda vida religiosa con-


siste na busca da perfeição pessoal, da santidade, ou seja, na perfeição da ca-
ridade. São estas suas características: (1) é comum a todas as formas de vida
religiosa; (2) é um requisito essencial da vida religiosa como tal; (3) realiza-se

27
Ms. de Dom Bosco, Cose da notarsi intorno alle Costituzioni della Società di San Francesco di
Sales, em ASC A2230201, FDB 1,889 C2-5; G. Bosco, Costituzioni, 229; MB VII, 622s. “Durante
os últimos vinte anos”, refere-se a 1844.
28
Ver A. Carminati, “Fini della Religione”. In: Dizionario degli Istituti di Perfezione. IV. Roma:
Edizioni Paoline, 1977, 40-51.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

mediante o seguimento mais perfeito de Cristo e a união mais íntima com


Deus, tanto pessoal quanto comunitariamente; (4) exprime-se no modo de
vida evangélica, que inclui a virgindade, a pobreza, a obediência.
Entretanto, além da finalidade comum geral, a finalidade peculiar da vida re-
ligiosa consiste em alguma atividade específica relativa ao culto, ao apostolado,
ou nas obras de caridade realizadas, mas que possuem formalmente o caráter de
um verdadeiro fim.
Cabe assinalar que este fim não é comum a toda vida religiosa, pois historica-
mente existiram formas reconhecidas de vida religiosa que careciam desse fim.
Pela mesma razão, tampouco foi considerado essencial em si mesmo; contudo,
como as ordens religiosas e principalmente os clérigos regulares e as Congrega-
ções religiosas foram fundados e aprovados historicamente pela Igreja precisa-
mente para tal fim, a finalidade específica foi considerada essencial para elas.
Isso se viu confirmado no decreto do Concílio Vaticano II sobre a vida religiosa.
Nesses institutos, dedicados a várias formas de apostolado, a ação apostólica e
benéfica pertence à natureza mesma da vida religiosa, posto que a Igreja lhes
confiou o exercício da caridade em seu nome.29
À medida que a vida religiosa se desenvolveu, a finalidade específica adotou
diversas formas: o ministério sacerdotal, a evangelização, a atividade pastoral,
as obras de caridade etc. Tal atividade realiza-se não simplesmente como uma
“profissão”, mas como uma maneira específica de contribuir diretamente para
o ministério da Igreja. É por isso que os institutos religiosos sempre buscaram
a aprovação da Igreja.
As Constituições dos jesuítas foram as primeiras a adotar uma fórmula que
exprimia os fins da vida religiosa.30 Mais tarde, as outras congregações se-
guiram seu exemplo, usando expressões como “dupla finalidade” ou “dois
fins” ou outras formulações destinadas a especificar os vários aspectos das
duas finalidades.

Em todo caso, os fins são sempre expressados em coordenação. Dom Bos-


co, porém, nos primeiros rascunhos das Constituições expressou os fins em su-
bordinação, indicando que para os salesianos, o fim genérico – a perfeição cristã
ou santidade –, é obtido mediante os fins específicos – as obras de caridade.

29
Concílio Ecumênico Vaticano II, Perfectae Caritatis. Decreto sobre a renovação da vida
religiosa (1965), 8.
30
“A finalidade desta sociedade não é só se esforçar, com a graça de Deus, na salvação e perfeição
da própria alma, mas dedicar-se ao mesmo tempo zelosamente também para a salvação e perfeição do
próximo” (Santo Inácio, Summarium Const., n. 2). Cf. A. Carminati, o. c., 45.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A santificação pessoal mediante as obras de caridade, seguindo o exem-


plo da mesma caridade pastoral de Cristo, é uma das intuições mais decisivas
nas primeiras Constituições de Dom Bosco; por elas põe-se o exercício da
caridade pastoral em relação com a vida religiosa e espiritual dos salesianos.
Expressam-no os dois primeiros artigos do capítulo sobre o Fim da Sociedade.
O artigo primeiro no primeiro rascunho (Ar, 1858) diz simplesmente:
“O fim desta sociedade é reunir seus membros, sacerdotes, clérigos e também lei-
gos, com o fim de aperfeiçoarem-se a si mesmos imitando, enquanto possível, as
virtudes de nosso Divino Salvador”.
Surpreendentemente, deve-se assinalar que neste primeiro artigo sobre
o fim da Sociedade não se faça menção explícita da caridade pastoral pelos
jovens pobres, por mais incluído que esteja na imitação das virtudes de Cris-
to. Há que se recordar que este primeiro capítulo era precedido por outros
dois, o Preâmbulo e o Resumo histórico, que tinham por objetivo apresentar a
chave para uma compreensão correta do artigo e de todo o primeiro capítu-
lo, assim como da totalidade do projeto estabelecido nas Constituições. Os
dois capítulos, enfim eliminados em Roma, tratavam inteiramente da opção
pelos jovens na imitação da caridade pastoral de Cristo. Diz-se expressamen-
te no preâmbulo:
Nosso divino Salvador, com suas ações, deu-nos uma clara demonstração des-
ta verdade [a importância de educar os jovens]. Pois, cumprindo sua missão
divina na terra com amor de predileção, convidou as crianças a se aproxi-
marem dele: Sinite parvulos venire ad me [Deixai que as crianças venham a
mim]. [...] Decorre disso que nossos esforços devem tender a salvaguardar a
fé e a vida moral desta categoria de jovens, cuja salvação eterna está em maior
perigo, precisamente por sua pobreza.31
Isso deveria ser suficiente. Mas, como para garanti-lo duplamente, no
rascunho seguinte, de 1860, Dom Bosco revisou a última frase do artigo pri-
meiro para dizer: “A fim de aperfeiçoarem-se a si mesmos, imitando, enquanto
possível, as virtudes de nosso Divino Salvador, especialmente na caridade para
com os jovens pobres”.32
O artigo segundo no rascunho mais antigo (Ar, 1858) amplia o concei-
to da imitação de Cristo já enunciado no artigo primeiro, embora o faça
seguindo uma linha do pensamento tradicional não isenta de dificuldade.
Este artigo, que permaneceu fundamentalmente sem qualquer alteração,

31
G. Bosco, Costituzioni, 58.
32
G. Bosco, Costituzioni, 72.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

diz: “2. Jesus Cristo começou a fazer e ensinar; assim também os membros
começarão por aperfeiçoarem-se a si mesmos mediante a prática das virtudes
interiores e exteriores e a aquisição da ciência; e em seguida trabalharão em
benefício do próximo”.33
A frase “Jesus Cristo começou a fazer e ensinar” é uma citação dos Atos
dos Apóstolos (At 1,1). Nessa introdução, Lucas diz que no primeiro livro
(seu evangelho) falou principalmente “tudo o que Jesus fez e ensinou”, re-
ferindo-se ao ministério de Jesus; agora (nos Atos) vai continuar a história.
A frase “fez e ensinou” descreve a dupla atividade do ministério de Jesus
(curar e ensinar). A interpretação ascética tradicional da frase, porém, é
totalmente diversa. Aqui “fazer e ensinar” representam duas fases sucessivas
na vida de Jesus, aplicáveis à vida de um religioso. A etapa do fazer é o pe-
ríodo de formação na oração, no estudo e na luta ascética, em relação com
os trinta anos de vida oculta de Jesus. A etapa do ensinar é o período de
ministério ou apostolado que vem depois, em relação com o ministério de
Jesus ao longo de três anos.
A redação de Dom Bosco era influenciada aqui pela tradição ascética,
mas ele mesmo ao longo de todo o processo de aprovação das Constituições
lutou contra a mesma ideia de etapas sucessivas. Ele queria que a formação
de seus salesianos fosse feita no contexto do apostolado. De aí sempre recusar
a ideia de um noviciado fechado, ascético.

• Comentário
Os artigos primeiro e segundo do capítulo Fim da Sociedade, como
constam dos rascunhos de 1858 e 1860, solidamente baseados como estão
no Preâmbulo e no Resumo histórico, fixam os dois princípios básicos da vida
espiritual dos salesianos.
Primeiramente, Dom Bosco estabelece para o salesiano, embora com
a linguagem ascética do século XIX, uma espiritualidade cristocêntrica. Ao
salesiano, unido em comunidade para as obras de caridade, é dado um meio
para chegar à perfeição (santidade): a imitação de Cristo em seu ministério
pelos jovens e os pobres. Esta é a espiritualidade centrada em Cristo. Os
mestres espirituais franceses dos séculos XVII e XVIII consideraram Jesus
em seu mistério, em sua vida e em seu ministério, como modelo da vida

G. Bosco, Costituzioni, 72. “Externas” e “internas” eram distinções secundárias, baseadas na


33

questão se uma virtude tem ou não efeitos ou projeção externa.

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Dom Bosco: história e carisma 2

cristã.34 Dom Bosco propõe simplesmente a imitação de Cristo em suas


virtudes, o que revela a mentalidade moralizante e prática do século XIX.
Contudo, quando pede a imitação das virtudes de Cristo como realizador e
mestre, principalmente em seu amor de predileção pelos jovens, propõe uma
espiritualidade totalmente cristocêntrica.
Em segundo lugar, a perfeição pessoal dos salesianos (ou seja, sua san-
tidade) deve ser alcançada mediante o exercício da caridade. Esta formula-
ção – deve-se ressaltar – vai além até mesmo da ideia da “dupla finalidade
essencial” desenvolvida historicamente nas congregações religiosas. O Con-
cílio Vaticano II, na passagem da Perfectae Caritatis, citada anteriormente,
confirmou a ideia de que o fim apostólico específico ou o fim de caridade
das congregações religiosas é uma parte essencial da vida religiosa, porque
essa atividade lhe foi confiada pela Igreja e é exercida em nome da Igreja.
Este pronunciamento levou à reformulação da tradição ascética e canônica
que tendia a considerar o fim específico de um instituto como algo acres-
centado e secundário. A formulação de Dom Bosco e a intuição que supõe
(a finalidade genérica deve ser alcançada mediante o fim específico) eram
tão inovadoras na década de 1860 que devem ter parecido completamente
revolucionárias.
Como explicar, então, a drástica reelaboração do artigo no rascunho de 1864?
Uma simples comparação revela a natureza e o alcance da alteração.

Do (1860) Gb (1864)
1. O fim desta sociedade é reunir os mem- 1. O fim desta sociedade é a perfeição cris-
bros, sacerdotes, clérigos e também leigos, tã de seus membros; todo tipo de obra de
para aspirar à perfeição pela imitação das caridade tanto espiritual quanto corporal
virtudes de nosso Divino Salvador, em es- pelos jovens, especialmente se forem pobres;
pecial no exercício da caridade para com os e também a educação do clero jovem. Com-
jovens pobres. põe-se de eclesiásticos, clérigos e leigos.

Deram-se aqui alterações realmente significativas. A comunidade, o reu-


nir-se, já não é evidenciada. A subordinação estrita dos fins foi substituída pela
mera coordenação dos vários elementos justapostos. O conceito de “perfeição
mediante as obras de caridade para com os jovens pela imitação da caridade

34
Para Jean Jacques Olier, fundador dos sulpicianos, “o cristianismo consiste nestes três pon-
tos: [...] contemplar a Jesus, unir-se a Jesus, agir em Jesus. O primeiro leva-nos ao amor e à religião; o
segundo, à união e à identificação com Ele; e o terceiro, a uma atividade não mais solitária, mas unida
à virtude de Cristo Jesus” (E. A. Walsh, “Espiritualidad, la Escuela Francesa”. In: Nueva Enciclopedia
Católica. Vol. XIII, 605).

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

pastoral de Cristo” foi substituído pelo de uma perfeição cristã não especifica-
da. Por último, a espiritualidade cristocêntrica para os salesianos já não pode
ser deduzida da redação do artigo de 1864.
Antes de tentar oferecer uma explicação dessa alteração, podemos aceitar
como certo que Dom Bosco nunca se desviou da convicção de que, para os
salesianos, a santidade é obtida mediante as obras de caridade realizadas através
da imitação da caridade pastoral de Cristo. Com efeito, essa é a doutrina que ele
propôs por meio das diversas edições da biografia de Domingos Sávio (1859):
A primeira coisa que lhe aconselhara para chegar a ser santo foi que trabalhas-
se para conquistar almas para Deus, pois não há coisa mais santa nesta vida
do que cooperar com Deus para a salvação das almas, pelas quais Jesus Cristo
derramou até a última gota de seu sangue precioso.35

Essa é também a doutrina espiritual, ensinada no documento Coopera-


dores Salesianos (1876).
Esta associação deve ser considerada como uma Ordem Terceira tradicional, com
a diferença, porém, de que enquanto naquelas, a perfeição se faz consistir em exer-
cícios de piedade [devoções], nesta, o objetivo principal é a vida ativa e o exercício
da caridade para com o próximo, especialmente para com os jovens em perigo.36

Pode-se afirmar então com certeza que Dom Bosco não tinha intenção
de propor uma forma de santidade aos salesianos que fosse diversa da que
propunha aos seus jovens e aos seus cooperadores. Assim, no Resumo históri-
co, de 1874, escrito dez anos depois da reelaboração do artigo em discussão,
explica sua ideia de Sociedade em forma de perguntas e respostas, e escreve:
P: Nesta Sociedade, sua finalidade é o bem do próximo ou o de seus membros?
R: A finalidade desta Sociedade é o progresso espiritual de seus membros
mediante o exercício da caridade para com o próximo, especialmente para
com os jovens pobres.37

Como explicar, então, a nova redação do primeiro artigo sobre o Fim da


Sociedade, de 1864? Eis aqui as possíveis explicações:38
35
Juan Bosco, “Vida de Santo Domingo Savio”. In: J. Canals e A. Martínez Azcona, Obras
fundamentales. Madri: BAC, 1979, 157.
36
Giovanni Bosco, Cooperatori salesiani, ossia un modo pratico per giovare al costume ed alla
civile società. San Pier d’Arena: Tip. Salesiana, 1876, em OE XXVIII, 260.
37
“Cenno istorico”, em P. Braido, Don Bosco per i giovani, 125.
38
Para uma análise mais exaustiva, ver F. Motto, Fonti letterarie, 341-384, esp. 356-360; F.
Desramaut, Scopo, 65-85.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1. Uma motivação pode ter sido a crítica de que os salesianos se


dedicavam a atividades exteriores sem bom senso e descuidavam
da própria formação espiritual, como mais tarde afirmariam o
padre Durando e dom Gastaldi. Talvez, o próprio Dom Bosco
temesse que o fim genérico da vida religiosa, a santidade pessoal,
pudesse ser descuidado pelo ardor com que seus discípulos perse-
guiam a finalidade específica da vida salesiana, a caridade pastoral
para com os jovens. De aí sua decisão de propor separadamente
as finalidades.
2. A declaração em separado dos fins e, como consequência, a passa-
gem da subordinação à coordenação, pode ter sido sugerido a Dom
Bosco pelos modelos que lhe eram anteriores, mesmo quando a al-
teração diluía sua visão original e sua convicção profunda. Como
já foi dito, seguindo o modelo básico dos jesuítas, as constituições
em que Dom Bosco se inspirou propunham dois fins separada-
mente, em coordenação.
3. Mais contundentes e decisivas, porém, foram as novas diretrizes da
Congregação dos Bispos e Regulares, emitidas para esclarecer o as-
sunto. Com a promulgação do Methodus em 1863, a Congregação
dos Bispos e Regulares iniciou uma série de ações com o objetivo
de regulamentar a aprovação das muitas congregações religiosas
fundadas no século XIX. As observações exigiam que “a finalidade
do instituto talvez devesse ser expressa com mais humildade e fa-
zer menção à parte da santificação pessoal dos membros”.39 “Estas
diretrizes foram codificadas mais tarde nas Normae de 1901.40
Depois de definir a finalidade genérica e específica das congre-
gações religiosas, as Normae dispunham que se fizesse uma clara
declaração em separado dos dois fins: “Os dois objetivos devem
ser distinguidos com precisão e afirmados com clareza, em termos
simples, sem exageros”.41

39
F. Motto, Fonti letterarie, 359.
40
Normae secundum quas Sacra Congregation Episcoporum et Regularium procedere solet in appro-
bandis novis Institutis votorum simplicium. June 28, 1901 [Normas pelas quais a Sagrada Congregação
dos Bispos e Regulares se orienta no processo de aprovação de novos institutos de votos simples]. Esta
normativa refletia também o debate em curso sobre os fins da vida religiosa. Alguns teólogos sustentavam
que as atividades ministeriais, apostólicas ou de caridade não eram por si só meios de perfeição; ou que
simplesmente os dois eram fins distintos da vida religiosa, mas que um não podia subordinar-se ao outro.
41
Normae, 44. Cf. A. Carminati, o. c., 49.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

Neste contexto, é compreensível a reelaboração, em 1864, do artigo pri-


meiro sobre a finalidade. Aparentemente Dom Bosco, seguindo as fontes em
que se inspirou e cumprindo diretrizes oficiais, esperava tornar suas Consti-
tuições mais aceitáveis.
Depois do Decretum laudis, de 1864, talvez sob a influência rosminiana,
Dom Bosco tentou restabelecer algum tipo de subordinação sintática entre
o fim geral e o fim específico mediante uma cláusula de particípio temporal
(em latim): “É finalidade desta Congregação que seus membros, enquanto se
esforçam juntos na perfeição cristã, realizam todo tipo de obras de caridade,
tanto espirituais quanto corporais para com os jovens”.42 Esta formulação,
contudo, aparece apenas nos textos latinos e não no texto final italiano, im-
presso para os irmãos em 1875, que retorna à versão italiana de 1864.
A percepção de Dom Bosco sobre a finalidade e a missão da Sociedade
Salesiana como congregação religiosa corresponde ao seu conceito de comu-
nidade salesiana, expresso no capítulo sobre a Forma da Sociedade.
Compromisso social de Dom Bosco e sua postura apolítica: artigo 7
do capítulo das Constituições de 1864 sobre o Fim. Dom Bosco incluiu na
edição das Constituições de 1864 um artigo que proibia a atividade política
dos membros. Depois de envolver a sociedade no apostolado da palavra fala-
da e escrita, ou seja, na pregação e na imprensa para o povo, no artigo 6 do
capítulo sobre a finalidade, Dom Bosco acrescenta o artigo sétimo, que diz:

7. Entretanto, é um princípio adotado que será inalteravelmente praticado,


que todos os membros desta sociedade se manterão rigorosamente à margem
de tudo que tenha a ver com a política. Por isso, nem de palavra, nem por
escrito, seja mediante livros, seja pela imprensa, jamais tomarão parte em
questões que, embora apenas indiretamente, possam envolvê-los em assun-
tos políticos.43

Quando Dom Bosco solicitou a aprovação e obteve o Decretum lau-


dis em 1864, foi-lhe ordenado que retirasse o artigo 7o em vista da segunda
observação de Savini-Svegliati. Ele obedeceu, e embora o artigo ainda possa
42
G. Bosco, Costituzioni, 72-73 (Ls, 1867). Já mencionamos uma possível influência rosminia-
na. Dom Bosco conhecia pessoalmente Antônio Rosmini. Também conhecia e utilizou as constituições
do Instituto da Caridade. Rosmini propunha mais sutilmente fins distintos, mas de alguma forma su-
bordinados, da vida religiosa: a santificação pessoal dos membros e, por meio da santificação pessoal, a
dedicação a qualquer possível obra de caridade. A ligação, segundo Rosmini, estava no fato de a própria
perfeição (perfeição da caridade), incluir também o exercício da caridade pelo próximo. Cf. Sussidi 2,
312-316; F. Motto, Fonti letterarie, 358, com nota 53.
43
G. Bosco, Costituzioni, 80.

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Dom Bosco: história e carisma 2

ser lido nos manuscritos de arquivo intermédios, não aparece no rascunho


revisto de 1867 (Ls) apresentado em Roma.
Entretanto, no I Capítulo Geral (1877), Dom Bosco disse que o artigo
foi colocado de novo e finalmente retirado em 1874, antes da aprovação
definitiva das Constituições. As palavras de Dom Bosco são dignas de men-
ção, embora o seja só porque demonstram sua determinação de manter essa
postura apolítica:

Em geral, a associação dos cooperadores é bem vista por todos, porque de


modo algum ela se envolve em política; e (entre nós) sou do parecer que, se nos
deixam trabalhar, é precisamente porque nossa congregação vive totalmente
alheia à política. Mais ainda, eu também quisera que em nossas constituições
houvesse um artigo que proibisse imiscuir-se, de qualquer modo que seja, em
assuntos de política, e esse artigo estava nos dois exemplares manuscritos; con-
tudo, quando nossas Constituições foram apresentadas em Roma e a Congre-
gação foi aprovada pela primeira vez (Decretum laudis de 1864), este artigo foi
suprimido pela Congregação encarregada expressamente de examinar nossas
regras. E em 1870 [ler 1869] quando se tratou de aprovar definitivamente a
congregação e precisei enviar novamente as regras para seu exame, eu, como
se nada tivesse acontecido anteriormente, inseri de novo esse artigo, no qual se
dizia que era vedado aos sócios entrar em questões de política; e novamente me
impediram. Eu, estando convencido da importância desse artigo, quando se
tratava, em 1874, de aprovar cada artigo das constituições, ou seja, quando se
tratava da última aprovação definitiva, ao apresentar as regras à Sagrada Con-
gregação dos Bispos e Regulares, voltei novamente a introduzi-lo e novamente
fui impedido; desta vez o motivo da supressão foi declarado e foi-me escrito:
“É a terceira vez que este artigo é suprimido. Embora pareça em geral que
pudesse ser admitido acontece, às vezes, neste tempo, que em consciência
deve-se entrar na política, porque com frequência as coisas políticas são inse-
paráveis da religião. Por conseguinte, não se deve aprovar a exclusão entre os
bons católicos”.
Dessa forma, o artigo ficou definitivamente suprimido e nós, em caso de
utilidade e de verdadeira conveniência, podemos tratar de coisas políticas;
mas, fora desses casos, atenhamo-nos sempre ao princípio geral de não nos
imiscuirmos em assuntos políticos, e isso nos será de imenso proveito.44

44
ASC D578: Capitoli Generali, GC I, Sessão 4, 7 de setembro de 1877. Anotações originais
de Barberis, 53-55, FDB 1,843 C12-D2 (também em Anotações transcritas, FDB 1,849 C5); editados
em MB XIII, 265.

488

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

As provas documentais dos arquivos em nosso poder não contêm as decla-


rações de Dom Bosco. Cabe perguntar-se, então, sobre a exatidão da reminis-
cência de Dom Bosco.45 Por outro lado, ele cita a explicação que lhe foi dada ex-
pressamente por escrito para que o artigo fosse eliminado. Em todo caso, Dom
Bosco nunca se afastou desse princípio. É bem conhecido que ele mesmo recu-
sava não só a política de todos os partidos, como também qualquer atividade
política. Em suas Memórias do Oratório, escritas entre 1873 e 1875, ele fala das
celebrações patrióticas organizadas para a concessão da constituição liberal no
Reino da Sardenha (1848). Quando o marquês Roberto D’Azeglio pressionou-o
para participar dos festejos com seus meninos, Dom Bosco manifestou sua pos-
tura sem rodeios: “É meu firme propósito conservar-me afastado de tudo quan-
to se refere à política. Nem a favor, nem contra [...]. Convide-me para qualquer
coisa em que o padre possa exercer a caridade, e me verá pronto a sacrificar vida
e haveres; quero, porém, manter-me agora e sempre à margem da política”.46
Dom Bosco abraçou a ideia da retirada da vida política pedida pelos jor-
nais conservadores católicos e aprovada pelo Decreto de 1868, Non Expedit,
de Pio IX. O decreto proibia aos católicos italianos votar e participar do pro-
cesso político. Esta política foi mantida em vigor durante todo o pontificado
de Leão XIII, até 1904.
Dom Bosco continuou exigindo dos salesianos o compromisso de se
manterem exclusivamente no plano da atividade apostólica e caritativa. A pos-
tura apolítica que ordenou aos salesianos também fez dela uma regra para os
cooperadores salesianos. Enquanto as circunstâncias sociais o permitissem, eles
deviam participar de todo tipo de obras de caridade em favor dos jovens; ao
mesmo tempo, porém, não deviam participar de qualquer atividade política.
Isso se vê confirmado na passagem citada anteriormente das atas do I
Capítulo Geral. O mesmo título da “Carta fundacional”, concluída por Dom
Bosco em 1876, “Cooperadores Salesianos, uma associação dedicada à pro-
moção da moral cristã e do bem da sociedade civil na prática”, põe às claras a
intenção de Dom Bosco.47 Em outra declaração geral formulada no Capítulo
Geral I, como se informa na ata, Dom Bosco disse:

45
G. Bosco, Costituzioni, 18, n. 16. Em 1877, Dom Bosco recordava com exatidão a série de
acontecimentos (1864-1874) que levaram à aprovação? Podia Dom Bosco estar pensando em algum
outro artigo, por exemplo, no artigo sobre os direitos civis (art. 2 do capítulo sobre a Forma), subme-
tido a prova semelhante àquela descrita acima por ele?
46
MO, 215s.
47
“Cooperatori Salesiani ossia un modo pratico per giovare al buon costume ed alla civile società”
(1876). Os títulos anteriores desta “Carta fundacional” são: “Associação para obras de caridade” (1875)
e “União Cristã” (1874). Para um estudo dos 4 documentos e o pensamento de Dom Bosco sobre os
cooperadores salesianos, ver F. Desramaut, “Da Associati alla Congregacione Salesiana del 1873 a Coo-
peratori Salesiani del 1876”. In: Il cooperatore nella società contemporanea (Colloqui sulla vita salesiana, 6).
Leumann-Turim: LDC, 1975, 23-55, 356-373. Para os documentos de 1875 e 1876, cf. MB XI, 535s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Enquanto nos mantivermos à margem da política, nós [os salesianos e os


cooperadores salesianos] sempre evitaremos qualquer coisa que nos possa
comprometer perante as autoridades constituídas, sejam civis ou eclesiásticas.
Tudo o que pedimos é que nos seja permitido atender os jovens pobres e
abandonados e ajudá-los em tudo o que pudermos. Cremos que esta é a única
maneira de podermos favorecer a moral cristã e o bem da sociedade.48
A razão da eliminação do artigo sobre a política por parte de Roma
é clara; com facilidade, poder-se-ia deduzir a situação política e a postura
da Santa Sé diante do estado liberal, que era de recusa total. É a inclusão
dessa disposição por Dom Bosco e sua total e inquebrantável adesão a ela,
que pede uma explicação. Afinal, a missão salesiana, por sua natureza,
deve voltar-se para as necessidades da sociedade, como também das pes-
soas individualmente.
• As obras de caridade de Dom Bosco e a renovação da sociedade
A questão foi levantada em relação ao tipo de sociedade cristã que
Dom Bosco imaginava e pela qual quisera que seus salesianos trabalhassem.
Não defendemos que o modelo social de Dom Bosco fosse moderno. Na
verdade, era um modelo que, apesar de sua profunda inspiração moral e
religiosa, já ficara irremediavelmente para trás. Diante de uma ordem social
e política que parecia negar a cada momento os valores morais e religiosos
mais tradicionais, ele tinha em mente, ao menos sentimentalmente, não a
chegada de uma nova ordem cristã, mas o restabelecimento do antigo esta-
do confessional, uma sociedade estratificada e ordenada na qual prevalece-
ria o respeito à autoridade, à propriedade privada e ao esforço no trabalho,
e na qual a ordem social e a paz fossem alimentadas pela doutrina moral da
Igreja e pelo temor de Deus.49
Podem-se aduzir exemplos do anseio permanente de Dom Bosco pela
antiga ordem. No verão de 1887, poucos meses antes de sua morte, ele pare-
cia esperar que se dessem acontecimentos políticos importantes num futuro
próximo e expressou seu temor. Padre Viglietti escreve em sua crônica:
Esta manhã, depois de ler os jornais, Dom Bosco disse: “Espera e verás; se não
no momento do jubileu do Papa, sem dúvida em algum momento do futuro
próximo, levantar-se-á uma cruzada contra os revolucionários. Pode ser que

48
ASC D578 Capitoli Generali, GC I, Sessão 4, 7 de setembro de 1877; Anotações transcritas,
116-118, FDB 1,849 C12-D2; editado em MB XIII, 259.
49
P. Braido, “Il progetto operativo di Don Bosco e l’Utopia della società cristiana” (Quaderni
di Salesianum, 6). Roma: LAS, 1982, 10.

490

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte
não haja derramamento de sangue, mas eles serão colocados entre a espada e
o muro e ver-se-ão obrigados a devolver ao Papa o que é dele por direito”.50

Acertou Dom Bosco nesta avaliação? Não. O processo de liberalização e


secularização não iria deter-se. A separação prática entre Igreja e Estado era um
fato. Pois bem, essas realidades pediam uma nova avaliação da responsabilidade
da Igreja, e em particular da missão de uma congregação religiosa. Apesar do
seu apego sentimental ao antigo, Dom Bosco devia preocupar-se em trabalhar
por uma sociedade cristã nas novas circunstâncias políticas e sociais.
Pode ser que lhe fosse doloroso e se mostrasse relutante, mas apesar do
seu inquebrantável empenho católico de tipo mais conservador, Dom Bosco
em seu ministério foi capaz de responder com abertura e visão de futuro. Tam-
bém entrava aqui um fator pessoal que tinha a ver com sua experiência e co-
nhecimento sempre mais profundo dos problemas dos pobres, especialmente
dos jovens pobres. Vivendo como vivia em contato e solidário com as pessoas
em situações concretas de sofrimento, de pobreza e de carências, ele sentiu um
apelo premente para satisfazer suas penúrias mediante projetos de longo prazo
e também imediatos. Por isso, ele envolveu seus salesianos para que, seguindo
seu exemplo, participassem o mais amplamente possível nas obras de caridade
e na atividade apostólica. Também apresentou esse trabalho como meio pelo
qual se deveria conseguir o fim genérico da vida religiosa, a santificação pes-
soal. Era uma obra complexa de caridade que, procedendo da experiência do
Oratório, ramificava-se para enfrentar situações sempre mais novas.
Isso era, certamente, caridade. E embora no século XIX o termo cari-
dade ainda não tivesse sido esvaziado de sua riqueza teológica e do antigo
conteúdo da tradição cristã, era, não obstante, caridade. Na verdade, não
abordava diretamente os problemas estruturais de injustiça, de opressão etc.
Mas trata-se de uma acusação genérica dos historiadores socialistas, em espe-
cial de tradição marxista, contra qualquer iniciativa caritativa no século XIX.
Ainda assim, em termos sociais práticos, mas num sentido real, essa cari-
dade tendia a renovar a sociedade. Mas como poderia conseguir esse objetivo
se os salesianos, os cooperadores em particular, deviam manter-se à margem
de toda atividade política? Então, pode-se perguntar novamente, em vista
desses compromissos e diante dos acontecimentos históricos, como poderia
caminhar a causa da missão e conseguir seus objetivos sem um compromisso
político, ao menos em determinadas questões? Por que, então, Dom Bosco
recomenda aos salesianos a postura apolítica?

50
C. M. Viglietti, Cronaca, 215, 220 (2 de setembro e 27 de novembro de 1887). “Jubileu
do Papa” seriam as bodas de ouro da ordenação sacerdotal de Leão XIII (1888) ou, talvez, o décimo
aniversário de sua ascensão ao trono papal (1878-1888). Parece que Dom Bosco talvez pensasse na
restauração do poder temporal do Papa.
491

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Dom Bosco: história e carisma 2

• Possível razão da proibição de participação política


Uma razão pode ser o conhecido pragmatismo de Dom Bosco. No con-
texto da Revolução Liberal e das turbulências políticas, sociais e religiosas que a
acompanharam, Dom Bosco pode ter pensado que a restrição serviria para evi-
tar represálias ou, simplesmente, para garantir a sobrevivência da obra. Essa é a
razão que o próprio Dom Bosco dá mais frequentemente. Dom Bosco cita com
frequência a abstenção da atividade política e, ao mesmo tempo, o compromis-
so dos salesianos com as obras de caridade para com os pobres como a razão
pela qual a Sociedade poderia evitar dificuldades e conquistar a boa vontade de
todos. Pode-se aduzir também como uma razão acrescentada, não só pragmáti-
ca, a postura oficial da Igreja e as diretrizes mencionadas anteriormente. Dom
Bosco pode ter considerado essas diretrizes como normativas.
Além dessas considerações, porém, puderam ser decisivos a compreen-
são teológica mais profunda ou o seu próprio instinto. Pode ter acreditado
que a sociedade cristã do futuro não seria reconstruída através do ativismo
político ou social e que a missão da Igreja e, portanto, da Congregação Sa-
lesiana, era essencialmente testemunhar as realidades escatológicas, embora
não do outro mundo. Como consequência, Dom Bosco pode ter conside-
rado seus padres salesianos, irmãos e irmãs e, em especial, seus cooperadores
como construtores de paz que ajudam o povo a superar o confronto político
e a luta de classes; como força combinada para a caridade e a reconciliação
numa sociedade dividida por profundas rachaduras. Ou, talvez, teria pensado
na Família Salesiana como uma invasão pacífica, como Tertuliano imaginara
a penetração dos primeiros cristãos na sociedade pagã de sua época?
Qualquer que seja a razão, os questionamentos persistem. A atitude de
Dom Bosco era aceitável, realista e, sobretudo, eficaz em seu tempo? Será
aceitável, realista e eficaz no nosso tempo? Em vez disso, não reduzia a capa-
cidade de os salesianos enfrentarem significativamente a missão da evangeli-
zação e ajudarem efetivamente os pobres? Mais especificamente, Dom Bosco
escreveria hoje esse artigo ou o escreveria de outra maneira?
Talvez, o comentário de Dom Bosco, citado anteriormente, possa ofere-
cer uma pista. Nele, depois de alegar a razão que lhe foi dada para eliminar o
artigo, ou seja, que “as circunstâncias podem obrigar alguém em consciência
a entrar na arena política, uma vez que a política com frequência é inseparável
da religião”, ele mesmo teve de admitir: “Por isso podemos ver-nos envolvi-
dos na política quando seja vantajoso e realmente recomendável”.51
51
Ver um estudo sobre o envolvimento de Dom Bosco nas negociações Igreja-Estado, de claro
cunho político e religioso, A. Lenti, “Politics of the ‘Our Father’ and the Holy Father: Don Bosco’s
Mediations in Church-State Affairs”, JSS 10:2 (1999), 181-245.

492

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Apêndice

DESENVOLVIMENTO DAS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES


POR CAPÍTULOS NAS 8 ETAPAS

I. Ar (1858). II. Do III. Gb IV. Ls V. Ns VI. Q (1874).


Italiano (1869). (1864). (1867). (1873). Latim
Italiano Italiano Latim Latim VII. T (1874)
Latim
VIII. V (1875).
Italiano
[1. Preâmbulo] [1. Preâmbulo] [1. Preâmbulo] [1. Preâmbulo] [1] Sociedade [1] I. Finalidade
Congresso de Sociedade de Sociedade de Sociedade de de SFdS. I. da Sociedade Sa-
SFdS SFdS SFdS SFdS I Preâmbulo lesiana
[2. Hist. Int.] [2. Hist. Int.] [2. Hist. Int.] [2. Hist. Int.] 2. [2. Hist. Int.] [2] II. Forma des-
Origem desta Origem desta Origem desta Origem desta II. ta Sociedade
Congregação Sociedade Sociedade Sociedade Origem desta
Sociedade
[3] Finalidade [3] Finalidade [3] 3. Fina- [3] 3. Fina- [3] III. Fina- [3] III. Voto de
desta Congre- desta Socie- lidade desta lidade desta lidade desta obediência
gação dade Sociedade Sociedade Sociedade
[4] Forma [4] Forma [4] 4. Forma [4] 4. Forma [4] IV. Forma [4] IV. Voto de
desta Congre- desta Socie- desta Socie- desta Socie- desta Socie- pobreza
gação dade dade dade dade
[5] Voto de [5] Voto de [5] 5. Voto de [5] 5. Voto de [5] V. Voto de [5] V. Voto de
obediência obediência obediência obediência obediência castidade
[6] Voto de [6] Voto de [6] 6. Voto de [6] 6. Voto de [6] VI. Voto [6] VI. Governo
pobreza pobreza pobreza pobreza de pobreza religioso da So-
ciedade
[7] Voto de [7] Voto de [7] 7. Voto de [7] 7. Voto de [7] VII. Voto [7] VII. Governo
castidade castidade castidade castidade de castidade interno da Socie-
dade
[8] Governo [8] Governo
[8] 8. Gover- [8] 8. Gover- [8] VIII. Go- [8] VIII. Eleição
interno da interno da So-
no religioso da no religioso da verno religioso do RM
Congregação ciedade Sociedade Sociedade da Sociedade
[9] Os demais [9] Os demais
[9] 9. Gover- [9] 9. Gover- [9] IX. Gover- [9] IX. Outros
superiores superioresno interno da no interno da no interno da superiores
Sociedade Sociedade Sociedade
[10] Admissão [10] Admissão [10] 10. Elei- [10] 10. Elei- [10] X. Elei- [10] X. Casas em
ção do RM ção do RM ção do RM particular

493

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Dom Bosco: história e carisma 2

----------
----------
[ Nov i c i a d o : [11] As práti- [11] 11. Ou- [11] 11. Ou- [11] XI. Ou- [11] XI. Admis-
art. 13f da cas de piedade tros superiores tros superiores tros superiores são
Forma 4] - - - (Noviciado:
Art. 13f da
Forma 4)

[12] Vestuário [12] 12. Casas [12] 12. Casas [12] XII. Ca- [12] XII. Estudos
em particular em particular sas em parti-
cular
[13] Fórmula [13] 13. [13] 13. [13] XIII. [13] XIII. As prá-
da Profissão Admissão Admissão Admissão ticas de piedade
dos votos --- --- ---
[14] Externos [14] 14. As [14] 14. As [14] XIV. As [14] XIV. Mestre
práticas de práticas de práticas de de Noviços e For-
piedade piedade piedade mação
[15] 15. Ves- [15] 15. Vestu- [15] XV. Ves- [15] XV. Hábito
tuário ário tuário
[16] Profissão [16] Profissão [16] XVI Pro- [16] XVI. Fór-
e Fórmula e Fórmula fissão e Fór- mula dos votos
dos votos dos votos mula dos votos
[17. Apêndi- [17. Apêndi- [17. Apêndi- Conclusão
ce] ce] ce]
16. Externos 16. Externos XVII. Exter-
nos

“POBRE, MAIS POBRE, O MAIS POBRE”, NO CAPÍTULO


SOBRE O FIM DA SOCIEDADE NAS PRIMEIRAS
CONSTITUIÇÕES

Pobre e demais sinônimos52 são utilizados nas primeiras Constituições


para descrever os jovens aos quais se dirige a missão salesiana. Este uso de
Dom Bosco demonstra que ele queria assinalar as prioridades em relação à
finalidade de sua missão?

Uso do termo e significado de “pobre”


Ao longo dos sucessivos rascunhos constitucionais, o termo é usado de
várias formas gramaticais:

Italiano: povero/poveri; più povero/più poveri; poverissimo/poverissimi; il più povero/i più poveri.
52

Latim: pauper/pauperes; pauperior/pauperiores; pauperrimus/pauperrimi.

494

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

I. Ar (1858). II. Do (1869). III. Gb (1864). IV. Ls (1867).


Italiano Italiano Italiano Latim
1. - - - - - - - - - - - - 1. Jovens pobres (gio- 1. Jovens, especialmen- 1. Jovens, especialmente
vani poveri) te, se forem pobres (gio- se forem pobres (adoles-
vani specialmente se son centes praesertim si pau-
poveri) peres sint)
2. - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - - - -
3. Pobres e aban- 3. Pobres e abando- 3. Pobres e abandonados 3. Pobres e abandonados
donados (poveri ed nados (poveri ed ab- (poveri ed abbandonati) (pauperes ac derelicti)
abbandonati) bandonati)
[perdido] 4. Tão abandonados 4. Tão abandonados 4. Tão abandonados
(talmente abbandonati) (talmente abbandonati) (adeo derelicti)
5. De preferência os 5. De preferência os 5. Sejam preferidos os
mais pobres (de prefe- mais pobres (di preferen- que sejam os mais po-
renza i più poveri) za i più poveri) bres (ii praeferentur qui
pauperiores sint)
6. - - - - - - - - - - - - - 6. - - - - - - - - - - - - - - - 6. - - - - - - - - - - - - - - -

V. Ns (1873). VI. Q (1874). VII. T[s] (1874). VIII. V[s] (1875).


Latim Latim Latim Italiano
1. Jovens, especialmen- 1. Jovens, especialmen- 1. Jovens, especialmen- 1. Jovens, especi-
te, se forem os mais te se forem os mais po- te se forem os mais po- lamente os pobres
pobres (ad. praesertim si bres (ad. praesertim si bres (ad. praesertim si (giovani specialmente
pauperiores sint) pauperiores sint) pauperiores sint) poveri)
2. - - - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - - - - 2. - - - - - - - - - - - -
3. Os mais pobres e 3. Os mais pobres e 3. Os mais pobres em 3. Os pobres e aban-
abandonados (pauperio- abandonados (paupe- primeiro lugar e os donados (poveri ed
res ac drelicti) riores ac derelicti) abandonados (pauperri- abbandonati)
mi in primis ac derelicti)
4. Tão abandonados 4. Tão abandonados 4. Tão abandonados 4. Tão abandona-
(adeo derelicti) (adeo derelicti) (adeo derelicti) dos (talmente ab-
bandonati)
5. Sejam preferidos os 5. Sejam preferidos os 5. Sejam preferidos 5. De preferência os
que são os mais pobres que são os mais po- os que são os mais mais pobres (di pre-
(ii praeferentur qui pau- bres (ii praeferentur qui pobres (ii praeferentur ferenza i più poveri)
periores sint) pauperiores sint) qui pauperiores sint)
6. - - - - - - - - - - - - - - 6. - - - - - - - - - - - - - - 6. - - - - - - - - - - - - - - 6. - - - - - - - - - - - - -

Os adjetivos latinos pauperes, pauperiores, pauperrimi (pobres, mais po-


bres, os mais pobres, paupérrimos) constituem um sistema com duplo valor
semântico. Podem ser utilizados de modo absoluto, quantificando, ou de
modo relativo, classificando.
Se quantificam, expressam a quantidade ou a intensidade da pobreza de
uma pessoa de modo absoluto, ou seja, sem comparação com a pobreza de

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Dom Bosco: história e carisma 2

outras pessoas. Se classificam, aludem à pobreza de uma pessoa relativamen-


te, na comparação com a pobreza de outras.
No primeiro caso, as três formas expressam graus de pobreza relativos à
prática social, que pode variar nas várias sociedades ou segundo várias esti-
mativas subjetivas, mas sempre denotam o que se considera pobreza real. No
segundo caso, as três formas expressam graus de pobreza em relação a outra
pessoa ou grupo. Embora expressem normalmente o que se considera pobre-
za real, podem não denotá-la. A expressão “mais pobres” pode significar, às
vezes, “menos favorecidos”.

Os “mais pobres”: uma prioridade dentro de uma prioridade?


Voltemos à questão se Dom Bosco tinha a intenção de classificar os
diversos graus de pobreza e priorizar o mais alto grau para excluir os graus in-
feriores. O uso que Dom Bosco faz do termo no texto constitucional apoiaria
essa ideia? É preciso assinalar que:

1. A opção pelos pobres é evidente em todas as partes.


2. No artigo primeiro, nas etapas latinas V, VI e VII, “mais pobres”
substitui os “pobres” das etapas anteriores. Contudo, a etapa VIII
italiana, ou seja, o texto que Dom Bosco imprimiu para os salesia-
nos, volta a usar “pobres” como nas etapas anteriores. Isso parece
indicar que Dom Bosco não tinha a intenção de classificar ou es-
colher. A opção é pelos jovens que são quantitativamente pobres/
mais pobres na sociedade.
3. No artigo terceiro, que fala do Oratório como a primeira obra de
caridade, nas etapas I-IV (italiano e latim) diz-se “pobres e aban-
donados”. As etapas V e VI (latim) usam “mais pobres e abando-
nados”. A etapa VII, edição latina revista e impressa, coloca “os
mais pobres, em primeiro lugar, e abandonados”. Este também
é o único exemplo da utilização do superlativo latino pauperrimi
em todo o capítulo. A não ser que a mudança seja nada mais do
que uma revisão estilística do latinista Lanfranchi, que colaborou
com Dom Bosco na revisão, pode-se interpretar que Dom Bosco
queria destacar a necessidade de atender os verdadeiros indigentes
da sociedade, embora não excluísse os demais. Contudo, a etapa
VIII, edição italiana revista e impressa, volta ao simples “pobres e
abandonados”.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições. Primeira parte

4. No artigo quinto, que fala do seminário “menor”, os rascunhos em


italiano (etapas II, III e VIII) dão preferência aos jovens que são
“os mais pobres”, enquanto os rascunhos em latim dizem “mais
pobres”. Parece não existir diferença no significado. Em todo caso,
não se excluem os outros jovens pobres.
A conclusão que se pode tirar é que “os pobres, mais pobres, os mais po-
bres” no capítulo sobre o Fim da Sociedade, e também nas Constituições, são
utilizados como quantificadores, não como classificadores. Não foi intenção
de Dom Bosco distinguir os jovens pelo critério da pobreza e escolher os mais
pobres de todos com exclusão dos demais.
A mentalidade de Dom Bosco a respeito pode ser derivada do que ele
mesmo fez. Dentro da opção geral dos jovens pobres, Dom Bosco considera-
va os jovens individualmente em sua situação concreta de pobreza, abandono,
exploração etc. e atuou em consequência. Obviamente, em cada situação par-
ticular, ele abordará preferentemente a necessidade que mais chame a aten-
ção. Neste sentido, pode-se dizer que ele estabeleceu “uma prioridade dentro
de uma prioridade”. Entretanto, no exercício da caridade, Dom Bosco evita
a classificação dos pobres de maneira que pusesse em risco a disponibilidade
total dos salesianos para com os pobres como tais, tal como se encontram em
cada situação concreta.

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Capítulo XVI

ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS DAS


PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS.
SEGUNDA PARTE

1. Forma da Sociedade Salesiana


O capítulo das Constituições sobre a Forma da Sociedade passou por
um desenvolvimento considerável durante as diversas etapas, especialmente
com a supressão do artigo segundo sobre os “direitos civis” e a transferência
de outros artigos para diversos capítulos.
Apresentam-se aqui apenas quatro etapas significativas: I. Ar (1858),
III. Gb (1864), V. Ns (1873) e VI. Q (1874). Vamos nos deter nos artigos
primeiro e segundo e em alguma outra questão relevante.
O artigo primeiro é fundamental, pois determina a consagração religiosa
dos salesianos em comunidade. Sofreu alguma ampliação na última parte, entre
1858 e 1864, depois do que se manteve praticamente inalterado. O artigo se-
gundo também era essencial para Dom Bosco, definindo a plena integração do
salesiano na vida da sociedade civil, concebida como inteiramente compatível
com sua consagração religiosa. Dom Bosco apegou-se a essa disposição, apesar
das reiteradas objeções, até ser retirada antes da aprovação em 1874. Os dois
artigos representavam os dois pilares sobre os quais Dom Bosco fala com frequ-
ência e cuja origem ele atribuía a Pio IX.1

1
Dom Bosco, por exemplo, no pedido dirigido a Pio IX em 1864, referindo-se novamente a
1858, quando apresentara a ideia de uma sociedade religiosa, escrevia: “Santidade, o senhor mesmo
considerou conveniente estabelecer seus inícios” (G. Bosco, Costituzioni, 228. Documento 2). Em
uma nota dirigida a dom Riccardi di Netro, em 1867, escrevia com maior clareza: “O Santo Padre
traçou a base de uma sociedade religiosa em que os membros seriam religiosos perante a Igreja e, ao
mesmo tempo, continuariam a ser cidadãos livres perante a autoridade civil”, em Società di San Fran-
cesco di Sales [1867], manuscrito de Dom Bosco em ASC D472; MB VIII, 809s.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Ia: Ar (1858) IIIa: Gb (1864) Va: Ns (1873) VIa: Q (1874)


Rua, italiano Bosco, italiano Latim impresso Texto aprovado
1. Todos os sócios vivem 1. Todos os sócios vi- 1. Todos os sócios vi- 1. Todos os sócios
em comum, unidos vem em comum, uni- vem em comum, unidos vivem em comum,
unicamente pela carida- dos pelo vínculo da unicamente pelo laço unidos unicamente
de fraterna e pelos votos caridade fraterna e dos da caridade fraterna e pelo laço da caridade
simples, que os unem de votos simples, que os dos votos simples, que fraterna e dos votos
tal maneira que formam unem de maneira a for- os unem de tal manei- simples, unindo-os de
um só coração e uma só marem um só coração e ra que formam um só tal modo que formam
alma, para amar e servir uma só alma, para amar coração e uma só alma um só coração e uma
a Deus. e servir a Deus pela vir- para servir a Deus com só alma para servir a
tude da obediência, da a virtude da obediência, Deus com a virtude
pobreza, da castidade e da pobreza, da castidade da obediência, da po-
pelo cumprimento exa- e com o cumprimento breza, da castidade e
to dos deveres de um exato dos deveres de um com o cumprimento
bom cristão. bom cristão. exato dos deveres de
um bom cristão;

2. Ninguém, ao entrar 2. Ninguém, ao entrar 2. Ninguém, ao entrar [Reelaborado e transfe-


na congregação, nem na congregação, nem na Congregação, perde rido para a “Pobreza”]
mesmo depois de fa- mesmo depois de fazer os direitos civis, nem
zer os votos, perde seus os votos, perde seus mesmo depois de fazer
direitos civis; por isso, direitos civis; por isso, os votos; por conse-
conserva a propriedade conserva a propriedade guinte, conserva a pro-
de seus bens, a faculda- de seus bens, a faculda- priedade de seus bens,
de de herdar e de rece- de de herdar e de rece- a faculdade de herdar
ber heranças, legados e ber heranças, legados e e de receber heranças,
doações. doações. Contudo, du- legados e donativos.
rante o tempo em que Contudo, durante o
viver na congregação, tempo em que perma-
ele não pode adminis- necer na Congregação
trar seus bens, exceto não poderá adminis-
na forma e dentro dos trar seus bens, a não ser
limites estabelecidos dentro do modo e dos
pelo superior maior. limites marcados pelo
superior maior.

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. Durante o tempo 3. Durante o tempo 3. Durante o tempo [Reelaborado e transfe-


em que permanecer na em que permanecer na em que permanecer rido para a “Pobreza”]
congregação, porém, o congregação, os fru- na Congregação, os
fruto desses bens será tos dos bens móveis e frutos dos bens está-
passado à congregação imóveis que se produ- veis e móveis trazidos
ou aos familiares ou a zam serão entregues à à Congregação devem
alguma outra pessoa. mesma. Contudo, en- ser cedidos em favor da
quanto permanecer na mesma. Contudo, nela,
congregação pode-se pode dispor livremen-
dispor livremente das te do que possui fora
posses que se mantêm da Congregação, mas
fora dela, com o con- sempre com o consen-
sentimento do Superior timento do Superior.
em cada caso.
4. Os clérigos e sacer- 4. Os clérigos e sacer- 4. Os clérigos e os sa- 2. Os clérigos e os
dotes, mesmo depois dotes, mesmo depois de cerdotes, mesmo de- sacerdotes, mesmo
de fazer os votos, con- fazer os votos, conser- pois dos votos, poderão depois dos votos, po-
servam a posse de seu vam a posse de seu pa- conservar seus bens pa- derão conservar seus
patrimônio ou benefí- trimônio ou benefícios trimoniais eclesiásticos bens patrimoniais
cios simples; mas não eclesiásticos simples; e os benefícios simples; eclesiásticos e os be-
os podem administrar mas não os adminis- mas não poderão admi- nefícios simples; mas
nem, especificamente, trarão nem gozarão dos nistrá-los, nem usufruir não poderão adminis-
usufruir dos frutos dos frutos dos mesmos. deles sem a vontade do trá-los, nem usufruir
mesmos. Reitor. deles sem a vontade
do Reitor.
5. A administração de 5. A administração de 5. A administração 3. A administração
patrimônios, de benefí- patrimônios, de benefí- dos bens patrimoniais, dos bens patrimoniais,
cios e de qualquer coisa cios e de qualquer coisa dos benefícios e de dos benefícios e de
que se traz à Congre- que se traz à Congrega- tudo quanto se traz tudo quanto se traz
gação, ou que esteja na ção cabe ao superior- à Congregação cabe à Congregação cabe
posse de um membro -geral. Ele os admi- ao superior-geral que, ao superior-geral que,
individual cabe ao su- nistrará pessoalmente pessoalmente ou por pessoalmente ou por
perior da casa. ou por intermédio de intermédio de outros, intermédio de outros,
outros, e receberá seus os administrará e dis- os administrará e dis-
frutos anuais durante porá dos rendimentos porá dos rendimentos
o tempo que o sócio ou frutos enquanto o ou frutos, enquanto o
permanecer na Con- sócio permanecer na sócio permanecer na
gregação. Congregação. Congregação.
6. Cada sacerdote en- 6. Cada sacerdote en- 6. Cada sacerdote en- 4. Cada sacerdote en-
tregará ao mesmo su- tregará ao mesmo su- tregará ao mesmo su- tregará ao mesmo su-
perior a espórtula da perior a espórtula da perior a espórtula da perior a espórtula da
missa... missa... missa... missa...

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

7. A sociedade deverá [Suprimido] [- - - - - - - - - - - - - - -]


facilitar a cada um o ne-
cessário para a alimen-
tação e o vestuário, e
tudo de que precise nas
diversas vicissitudes da
vida, tanto em tempo de
boa saúde como no caso
de enfermidade. Além
disso, se existir moti-
vo razoável, o Superior
poderá pôr à disposição
do sócio o dinheiro ou
os objetos que julgue
bem empregados para
a maior glória de Deus.
[Transferido para a
“Pobreza”]
[7. Última Vontade e [Transferido para a [- - - - - - - - - - - - - - ] [- - - - - - - - - - - - - - -]
Testamento] “Pobreza”]

8. Se alguém morrer 8. Se alguém morrer [Transferido para a [- - - - - - - - - - - - - - - ]


sem testamento, seu sem testamento, o seu “Pobreza”]
sucessor será quem ti- sucessor será quem ti-
ver direito. ver direito.
9. Os votos obrigam o [9] Os votos obrigam o 7. Todos estão obriga- 5. Todos estão obriga-
sócio enquanto perma- sócio enquanto perma- dos a seus votos enquan- dos a seus votos e não
necer na Congregação. necer na Congregação. to permanecerem na podem ser dispensado
Aqueles que, por pró- Aqueles que abando- Sociedade. Se alguém, deles, sejam tempo-
pria vontade forem des- nam a Congregação por por uma justa causa ou rários ou perpétuos,
pedidos da Congregação justa causa ou como pelo juízo prudente dos senão por dispensa do
ou em consequência de consequência de uma superiores saísse da So- Sumo Pontífice ou por
uma decisão prudente prudente decisão dos ciedade, poderá ser dis- demissão da Sociedade.
dos superiores são consi- Superiores podem ser pensado dos votos pelo
derados por esse mesmo liberados de seus votos superior-geral.
fato livres de seus votos. pelo superior-geral da
casa mãe.
10. Cada um procure 10. Cada um procure 8. Permaneça cada um 6. Permaneça cada um
perseverar em sua vo- perseverar em sua voca- na vocação a que foi na vocação a que foi
cação até a morte. ção até a morte. Tenha chamado, até o fim da chamado, até o fim da
em consideração cada vida. Recorde todos os vida. Recorde todos os
uma das graves pala- dias as gravíssimas pala- dias as gravíssimas pa-
vras de nosso divino vras do Divino Salvador: lavras do Divino Sal-
Salvador: Nemo mittens Nemo mittens manum ad vador: Nemo mittens
manum ad aratrum et aratrum et respiciens retro, manum ad aratrum et
respiciens retro, aptus est aptus est regno Dei. respiciens retro, aptus
regno Dei. est regno Dei.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Se, contudo, alguém [11] Apesar disso, se al- 9. Contudo, se alguém 7. Contudo, se alguém
saísse da Congregação, guém saísse da Congre- saísse da Congregação, saísse da Congregação,
não terá direito de re- gação, não terá direito de não poderá exigir qual- não poderá exigir qual-
clamar qualquer inde- reclamar qualquer inde- quer compensação pelo quer compensação pelo
nização pelo tempo em nização pelo tempo em tempo em que viveu tempo em que tenha
que permaneceu nela, que permaneceu na mes- nela e não poderá levar vivido nela. Recobrará,
nem levar consigo ou- ma, seja qual for o cargo consigo mais do que porém, o pleno direito
tras coisas, salvo as que que tenha exercido, nem o superior-geral julgar sobre seus bens imóveis e
o superior da casa con- pelos lucros que pudesse oportuno. Recobrará, também sobre os objetos
sidere adequadas. ter produzido à Socieda- porém, o pleno direito móveis cuja proprieda-
de. Terá o direito, porém, sobre seus bens imóveis e de se tivesse reservado
de levar consigo os bens também sobre os objetos quando entrou na Con-
imóveis cuja propriedade móveis cuja propriedade gregação. Mas não pode-
se tivesse reservado ao se tivesse reservado ao rá exigir qualquer fruto
entrar na Congregação. entrar na Congregação. nem pedir contas ao Su-
Mas não terá direito de Mas não poderá exigir perior da sua administra-
exigir do superior qual- qualquer fruto nem pe- ção, pelo tempo em que
quer conta dos frutos dir contas ao superior da passou na Sociedade.
e da administração dos sua administração, pelo
mesmos pelo tempo em tempo em que passou na
que viveu na sociedade, Sociedade, salvo se houve
salvo quando se tivessem acordos particulares com
feito acordos especiais o Reitor-Mor.
com o Reitor-Mor.

11. Se houvesse de se [Transferido para o ca- [- - - - -- - - - - - - - - - -] [- - - - - - - - - - - - - - -]


abrir uma casa em ou- pítulo "Cada casa em
tro lugar, deve-se obter particular"]
um acordo sobre os as-
suntos espirituais e tem-
porais com o bispo da
diocese em que a casa
projetada vai ser aberta.
12. Os sócios que vão [Transferido para o ca- [- -- - - - - - - - - - - - - -] [- -- - - - - - - - - - - - - -]
abrir uma nova casa pítulo "Cada casa em
não deverão ser menos particular"]
de dois em número; e,
destes, ao menos um
deverá ser sacerdote.
Cada casa será inde-
pendentemente res-
ponsável pela adminis-
tração de seus próprios
bens, mas sempre den-
tro dos limites estabele-
cidos pelo superior.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

13. É prerrogativa do [Etapas III a V: Gb, Ls, [- - - - - - -- - - - - - - - -] [Etapas VI a VIII: Q,


superior admitir os can- Ns: omitido] T, V: transferidas ao
didatos ao noviciado, final das Constituições]
aceitar os noviços para
a profissão ou demissão
conforme julgar melhor
no Senhor. Mas ele não
poderá demitir nin-
guém da casa sem con-
sultar primeiro os supe-
riores à qual pertence.
14. As obrigações que [Etapas II a V: Do, Gb, [- - - - - - - - - - - - - - - -] [Etapas VI a VIII: Q, T,
se impõem a cada Ls, Ns: transferido para V: transferidas para o final
membro pela profissão a "Obediência" das Constituições]
dos votos não são vin-
culantes, sob pena de
pecado, exceto quando
se viole a lei natural,
divina ou eclesiástica,
ou quando seja expres-
samente ordenado pelo
Superior em força da
santa obediência.

“Forma da Sociedade Salesiana”, na edição impressa


italiana das Constituições Salesianas, publicada em 1877.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Artigo primeiro: consagração religiosa para o exercício da caridade


As três primeiras versões do artigo primeiro formulam a intuição origi-
nal de Dom Bosco, antes de ser apresentado para a aprovação em Roma.
Ia: Ar (1858) IIa: Do (1860) IIIa: Gb (1864)
1. [I] Todos os membros 1. [I] Todos os membros reu- 1. [Todos os membros reuni-
reunidos levam vida co- nidos levam vida comum, [II] dos levam vida comum, [II]
mum, [II] unidos somen- unidos somente pelo vínculo unidos somente pelo víncu-
te pela caridade fraterna e da caridade fraterna e dos vo- lo da caridade fraterna e dos
pelos votos simples, que tos simples, que os unem para votos simples, que os unem
os unem para formar um formar um só coração e uma para formar um só coração e
só coração e uma só alma, só alma, [III] com o fim de uma só alma, [III] com o fim
[III] com o fim de amar e amar e servir a Deus [IV] com de amar e servir a Deus [IV]
servir a Deus. a virtude da obediência, a po- com a virtude da obediência,
breza e a santidade de vida. a pobreza, a castidade e com
o perfeito cumprimento dos
deveres de um bom cristão].

Como se pode ver, em suas elaborações sucessivas, Dom Bosco reforçou


a seção [II] para enfatizar a unidade: “Unidos somente pelo vínculo da cari-
dade fraterna e dos votos simples, que os unem para formar um só coração e
uma só alma (1864)”. Nos rascunhos de 1860 e de 1864, o artigo foi amplia-
do com a adição da seção [IV] que especifica “as virtudes da consagração”,
que permitem aos membros amar e servir a Deus. Esta seção sofreu modifi-
cações menores e uma ampliação em 1864 (“com o cumprimento exato dos
deveres do bom cristão”), reformulada nos textos posteriores latinos por “com
uma vida autenticamente cristã”.

Análise
A seção [I] desenvolve a ideia de comunidade já abordada no primeiro
artigo do capítulo Fim da Sociedade. Assinale-se a expressão não usual: “os
membros reunidos”. A palavra remonta à frase também não usual no artigo
anterior: “O fim desta Congregação é reunir seus membros [...]”. Em vários
memorandos, Dom Bosco afirma que, em 1858, o grupo de colaboradores
do Oratório dividia-se em dois ramos: os que “se reuniam” para viver em co-
munidade e os que não o faziam. Assim, no Resumo histórico, de 1874, lemos:
Alguns dos que tinham vocação permaneceram [residindo no Oratório] para
engrossar as fileiras da Congregação nascente. No ano 1858, vários sacerdo-
tes, clérigos e também leigos, formavam o grupo dos que viviam em comuni-
dade e observavam o que basicamente eram as regras da Sociedade Salesiana.2

2
P. Braido, “L’idea”. In: Id., Don Bosco per i giovani, 117-118.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

O documento de 1877, intitulado Cooperadores Salesianos, é ainda mais


explícito:

[Em 1858] a Congregação dividia-se em dois ramos, ou melhor, famílias. Os


que acreditavam ter vocação e estavam unidos livremente para viver em co-
munidade [...]. O restante, ou seja, os leigos continuavam a viver no mundo
com suas próprias famílias, ao mesmo tempo em que trabalhavam em favor
dos Oratórios.3

Era essa a situação antes de Dom Bosco ir a Roma em 1858, para pedir
o conselho de Pio IX. Ao voltar de Roma, pôde afirmar no Resumo histórico
que serve como introdução às primeiras Constituições, que um grupo já esta-
va vivendo em comunidade: “Atualmente, 15 pessoas professam estas regras:
5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos”.4 E os membros reunidos tinham seu
equivalente nos membros externos, para cuja filiação Dom Bosco incluiu um
conjunto de regras especiais nas Constituições de 1860, ou no grupo mais
amplo dos que trabalhavam no Oratório (mais tarde, cooperadores).
A seção [II] descreve a natureza dessa comunidade. É uma comunhão cria-
da pela caridade fraterna e pelos votos. As duas forças atuam juntas para formar
um vínculo que une os membros reunidos num só coração e numa só alma.
Aqui, a referência é a comunidade apostólica de Jerusalém como descrita
nos Atos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma.
Ninguém considerava suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era pos-
to em comum. Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e tinham tudo em
comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre
todos, conforme a necessidade de cada um” (At 4,32; 2,44-45).5
No caso de Dom Bosco, reflete uma convicção profundamente arrai-
gada, assim como a teologia da comunidade religiosa. A primeira referência
comprovada está em sua História da Igreja (1845), em que fala do estilo de
vida dos primeiros cristãos.6 Ele escreve sobre os eremitas do deserto: “Eram
obedientes a seus superiores como as crianças pequenas e viviam unidos como

3
Ms. em ASC A2300406: Cooperatori 3(1), 2-3, FDB 1,886 E8 - 1,887 A2; editados em
MB XI, 72s.
4
G. Bosco, Costituzioni, 70.
5
A descrição da comunidade cristã dos Atos, mesmo sendo considerada, a partir do ponto de
vista social, uma experiência de curta duração, serviu tradicionalmente como modelo de vida religiosa;
de fato, a citação está presente em muitas constituições.
6
Storia Ecclesiastica per uso delle scuole, compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim: Tipogra-
fia Speirani e Ferrero, 1845, 34, em OE I, 75.

505

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Dom Bosco: história e carisma 2

um só coração e uma só alma”.7 Antes de 1858, Dom Bosco recorreu umas


vinte vezes a este texto dos Atos, sempre em relação à comunidade religiosa.
A imagem é reforçada pela maneira contundente com que Dom Bosco
descreveu o artigo primeiro do capítulo sobre a pobreza nos primeiros rascu-
nhos, só mitigada em edições posteriores.
Ar (1858) = Do (1860) Gb (1864)
1. A essência do voto de pobreza em 1. A observância do voto de pobreza em nossa
nossa Congregação consiste em levar Congregação consiste essencialmente em viver
uma vida comum quanto à alimentação desapegado de todos os bens terrenos, o que
e ao vestuário e em não conservar nada nós conseguiremos levando uma vida comum
debaixo de chave sem a permissão espe- quanto à alimentação e ao vestuário e não reser-
cial do superior. vando nada para nosso uso pessoal sem permis-
são especial do superior.

A comunidade salesiana imaginada por Dom Bosco devia ser uma répli-
ca real da comunidade apostólica.
A frase que apresenta a seção [III], “com o fim de amar e servir a Deus”,
provém de um pequeno catecismo no qual, em resposta à pergunta: “quem
os criou?”, responde-se afirmando o fim da existência humana. Aqui, expres-
sa a dupla finalidade da vida religiosa: amor e serviço. Aparentemente Dom
Bosco garante a seus salesianos que, vivendo em comunhão e consagrados à
missão, cumprem também a finalidade da sua existência humana.
Com isso, poderia considerar-se completa a descrição da comunidade re-
ligiosa salesiana. Dom Bosco já mencionou os votos como um fator do víncu-
lo e isso parecia suficiente em 1858. Contudo, nos rascunhos de 1860 e 1864,
com a seção [IV], ele desejou insistir no papel das virtudes da obediência, da
pobreza e da castidade. É como se Dom Bosco temesse que o termo votos
pudesse ser tomado em sentido meramente jurídico. Por isso, ele acentua as
virtudes, para transmitir a ideia de compromisso generoso e de disponibilida-
de. Os votos, precisamente pela sua força vinculante, com a caridade fraterna,
são os meios da comunhão; igualmente, as virtudes da obediência, da pobreza
e da castidade são os meios da consagração para obter os fins da vida religiosa,
ou seja: o amor e o serviço a Deus. Além disso, no rascunho de 1864, Dom
Bosco deseja propor mais um meio da consagração, “o perfeito cumprimento
dos deveres de bons cristãos”. Nos textos latinos que se seguiram, ele interpre-
tou este conceito no sentido de uma “maneira autenticamente cristã de vida”
(accurata christiana vivendi ratione). Na verdade, a fórmula “os deveres de um

7
Ibid., 129 e 287.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

bom cristão” significava isto: o programa de vida cristã que inclui a adoração,
a oração, a conduta moral etc., inculcados tradicionalmente pela Igreja.

Virtudes da consagração religiosa e proeminência da obediência


Note-se o papel dado à obediência. Dom Bosco sempre nomeia os três
votos-virtudes da consagração religiosa na mesma ordem: obediência, po-
breza e castidade. Em muitas ocasiões, por palavras e por escrito, ele exaltou
a castidade como de suma importância para a vida espiritual do indivíduo
e, no ambiente educativo em particular, de absoluta necessidade tanto para
educadores como para alunos. Entretanto, quando se referia à estrutura da
vida religiosa e da comunidade salesiana em especial, ele considerava que a
obediência é a virtude fundamental na consagração religiosa.
Analisando o “sonho dos diamantes”, de San Benigno na noite de 10-11
de setembro de 1881, Stella assinala que Dom Bosco, embora exalte frequen-
temente a castidade como a virtude mais formosa, “escreveu que a obediência
é a primeira e a base de todas as outras virtudes, inclusive na vida religiosa”.8
Neste sonho, o personagem, que representa a Sociedade Salesiana, aparece
com um manto incrustado de diamantes; cada um deles traz o nome de uma
virtude importante. A obediência precede a pobreza e a castidade, e, na revi-
são final da narração do sonho, Dom Bosco a recoloca no lugar de honra do
manto, no centro das costas.
Para ele, a obediência, sobretudo como virtude que vai além do âmbito
canônico dos votos, é vista não só como meio de consagração, com a pobreza
e a castidade, mas também como a principal base religiosa, pela qual a pes-
soa consagrada se torna disponível para a missão ou a obra de caridade. Se
a pobreza realiza a consagração exterior e a castidade a consagração interior,
a obediência torna perfeita a consagração mediante a disponibilidade para a
obra de caridade.
A caridade, embora “ultimum in executiones” é “primum in intentione”.
No pensamento de Dom Bosco, a caridade é, por sua vez, o fim específico
da vida religiosa e, pelo seu diligente cumprimento, o meio pelo qual se
pode conseguir o fim genérico, a perfeição cristã. A obediência, que favorece
a disponibilidade da pessoa consagrada, tem uma posição-chave, pois por
seu intermédio, o superior, a comunidade, encaminha a pessoa consagrada
a atuar a caridade. E assim chega a ser, enfim, o meio de santidade pessoal.

8
P. Stella, Don Bosco’s dreams. New Rochelle, NY, Salesiana Publishers, 1996, 29-30, com
notas 40 e 41. Para essa afirmação, Stella faz referência a Il giovane provveduto (O jovem instruído),
1847, de Dom Bosco, e às Memórias Biográficas (MB IV, 749; VI, 932s; VII, 602; IX, 573s etc.).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Valor espiritual da comunidade


A comunidade religiosa como comunhão é um aspecto verdadeiramente
importante no pensamento de Dom Bosco sobre a vida religiosa, que estava
muito arraigado na tradição e é, ao mesmo tempo, novo. Dom Bosco afirmara
que o fim genérico da vida religiosa dos salesianos, a perfeição cristã ou santi-
dade, seria obtido por meio do exercício da caridade. Tomada a afirmação de
modo superficial, a comunidade pareceria servir apenas como “base de opera-
ções” ou “área de descanso” sem valor “santificador” em si mesmo. Ao definir
a comunidade como comunhão criada com o vínculo da caridade fraterna e
dos votos, Dom Bosco a considera como um valor em si mesma; esse valor
expressava claramente a tradição cenobítica, conhecida por Dom Bosco. Em
sua concepção, a comunidade como comunhão converte-se numa verdadeira
fonte de energia espiritual para obter a finalidade genérica, e também a espe-
cífica, da vida religiosa. A caridade fraterna com sua inspiração espiritual e os
votos com seu valor vinculante, produzem uma unidade de alma e coração
que fomenta a vida espiritual e dá apoio ao compromisso individual.9

Artigo segundo: direitos civis

Conceito de “direitos civis”


Quando, na audiência de 9 de março de 1858, Dom Bosco esboçou pela
primeira vez a Pio IX a ideia de formar uma sociedade que continuasse a obra
dos Oratórios, ele afirma que o Papa lhe teria dito:

É preciso que estabeleça uma sociedade na qual o governo não possa interfe-
rir; mas, ao mesmo tempo, o senhor não deve contentar-se com meras pro-
messas, caso contrário não estaria seguro das pessoas, nem tampouco poderia
contar com elas por muito tempo.10

As palavras de Pio IX levam a crer que Dom Bosco lhe falara de uma
sociedade que seria uma união de cidadãos livres, unidos a ele por simples
promessas e reunidos para uma obra caritativa. Essa é, em essência, a ideia de-
senvolvida por Dom Bosco a partir da conversa com o ministro Rattazzi em
(maio?) de 1857. Rattazzi, ao falar de como a obra dos Oratórios pudesse ter

9
P. Braido (ed.), Don Bosco fondatore: “Ai Soci Salesiani” (1875-1885): introduzione e testi
critici. Roma: LAS, 1995. Braido dedica as páginas 36-46 da introdução ao estudo do pensamento de
Dom Bosco sobre a comunidade religiosa salesiana.
10
G. Bonetti, Storia, 356; editado em MB V, 859.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

continuidade, teria aconselhado Dom Bosco a reunir um grupo impregnado


do seu espírito e dedicado à sua obra.
Pareceu-lhe estranho que Rattazzi, autor da lei de supressão de congre-
gações religiosas, o aconselhasse a criar precisamente algo semelhante. Con-
tudo, o ministro explicou:

Não deve ser uma sociedade com o estilo de inalienável,11 mas na qual cada
membro mantém seus direitos civis, submete-se às leis do Estado, paga os
impostos e assim por diante. Numa palavra, uma sociedade nova em relação
ao governo não seria mais do que uma associação de cidadãos livres, unidos e
que vivem em comum em vista dos mesmos fins caritativos. [...]
Nenhum governo constitucional opor-se-á à criação e ao desenvolvimento de
uma sociedade desse tipo, como não impede, mas promove as companhias
comerciais, industriais e outras similares. Qualquer associação de cidadãos
livres é permitida, sempre que sua finalidade e seus atos não se oponham às
leis e às instituições do Estado.12

Em 1864, Dom Bosco escrevia que Pio IX havia posto as bases da


sociedade;13 de fato, o mesmo Papa, em 1858, havia traçado o “seu projeto”:

Esta Congregação [...] deve ter votos que sirvam de vínculo de unidade no
espírito e nas obras. Estes votos, porém, devem ser simples e fáceis de dispen-
sar [...]. Esta Sociedade, além disso, deve ser uma verdadeira congregação re-
ligiosa aos olhos da Igreja e ao mesmo tempo tal que garanta a seus membros
a liberdade e a proteção contra o perigo das leis civis. Isso significa que aos
olhos da autoridade civil, cada membro deve gozar da proteção da lei como
qualquer outro cidadão.14

Comparemos esta declaração de 1864 com a declaração de 1858, citada


anteriormente. Pio IX, pelo que sabemos, não se referiu diretamente aos “di-
reitos civis”. Dom Bosco interpretou claramente as declarações do Papa como
descrição da forma da Sociedade, pois lhe atribuiu ter estabelecido os dois pi-
lares da “forma da Sociedade”, ou seja, “os votos simples” e os “direitos civis”.

11
O termo “inalienável” refere-se à posse não transferível da propriedade de uma corporação
eclesiástica ou de outro tipo; uma ordem religiosa que tem grandes posses inalienáveis e não paga im-
postos resulta, por isso, inútil para a sociedade.
12
G. Bonetti, Storia, 345.
13
Carta do pedido de Dom Bosco a Pio IX, 12 de fevereiro de 1864. G. Bosco, Costituzioni,
228-229; MB VII, 621s.
14
Breve notizia, 1864, em MB VII, 757.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Como consequência, determinava-se no artigo segundo que os mem-


bros deveriam conservar seus direitos civis, mesmo depois de emitirem os votos.
O artigo aparece, apesar das objeções, em todos os rascunhos das Constitui-
ções (Ar [1858], Do [1860], Gb [1864], Ls [1867], Ns [1873]).
O artigo foi ampliado em versões sucessivas para especificar algumas das
consequências de manter os direitos civis, embora com a disposição acrescen-
tada de que o sócio não poderia dispor de seus bens, salvo na forma prevista
pelo Reitor-Mor. Contudo, a essência do artigo, relativa à conservação dos
direitos civis, foi mantida sem alterações até 1874, quando se forçou sua eli-
minação antes da aprovação definitiva. Reelaborado em termos de domínio
radical e uso, foi transferido ao capítulo do voto de pobreza.

Ar (1858), Do (1860) Gb (1864), Ls (1867) Ns (1873)


2. Ninguém ao entrar na con- 2. Ninguém ao entrar na 2. Ninguém, ao entrar na
gregação, nem mesmo depois congregação, nem mesmo de- Congregação, perde seus
de fazer seus votos, perderá pois de fazer seus votos, per- direitos civis, nem mesmo
seus direitos civis; por isso,derá seus direitos civis; por depois de fazer os votos; por
conserva a propriedade de isso, conserva a propriedade conseguinte, conserva a pro-
seus bens, a faculdade de de seus bens, a faculdade de priedade de seus bens, a fa-
herdar e de receber heranças, herdar e de receber heranças, culdade de herdar e receber
legados e doações. legados e doações. Mas, du- heranças, legados e donativos.
rante o tempo em que viver Mas durante o tempo em que
[Do acrescenta:] Mas enquan- na congregação, não poderá permanecer na Congregação,
to viver na congregação [...] administrar seus bens, exceto não poderá administrar seus
na forma e dentro dos limites bens, se não for dentro do
estabelecidos pelo Superior modo e dos limites marcados
Maior. pelo Superior Maior.

Manter os direitos civis como elemento constituinte da Forma da Socie-


dade era inaceitável para a Santa Sé, pois no nível mais elevado se tinha to-
mado a decisão de não fazer qualquer concessão ao Estado liberal usurpador,
especialmente depois das leis do ministro Rattazzi de supressão de congrega-
ções e da supressão forçada do poder temporal do Papa. Essa decisão incluía
também a rejeição dos princípios jurídicos do Estado liberal.
Os princípios da jurisprudência liberal pelos quais o Estado se regia
eram claros: os direitos civis dos cidadãos individualmente tomados proce-
diam da natureza e ela os garantia; o Estado não podia reprimi-los. O direito
corporativo, porém, era originado pelo Estado e só o Estado detinha o poder
e o direito de aprovar uma sociedade e permitir sua existência; as associações
religiosas (as congregações religiosas) não eram uma exceção.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

A Igreja, contudo, afirmava possuir uma ordem jurídica própria – o


Direito Canônico – independente do Estado, e, por isso, por exemplo,
podia criar associações religiosas. Dom Bosco, esclarecido sobre esses prin-
cípios pelo próprio ministro Rattazzi, decidiu que a Sociedade Salesiana
não seria uma associação de qualquer natureza: não seria uma sociedade
criada pelo Estado, porque a aprovação seria duvidosa, nem uma congre-
gação estabelecida pela Igreja, pois se veria exposta à supressão. Por isso,
a sociedade seria uma associação de cidadãos livres que vivem juntos e
comprometidos com ele num trabalho humanitário e de caridade. Apesar
disso, Dom Bosco esperava obter o reconhecimento da Igreja como uma
sociedade religiosa.
Os cardeais da Congregação Especial aprovaram, enfim, a Sociedade,
mas não sem imporem que as Constituições deviam entrar no molde tra-
dicional do Direito Canônico da Igreja, mediante a eliminação da cláusula
sobre os direitos civis e a reelaboração das disposições relativas à propriedade
no formato tradicional do voto de pobreza.
Considerados em conjunto, os dois artigos fundamentais são uma ex-
pressão eficaz da Forma da Sociedade como Dom Bosco a concebia. Surge
aqui a ideia de um grupo compacto de pessoas que vivem em comunhão,
unidas como um só coração e uma só alma pelo vínculo da caridade fraterna e
dos votos simples, que vivem a consagração mediante a pobreza e a castidade,
e que e estão disponíveis e dispostas para a missão por meio da obediência.
Não se congregam como organização jurídica nem como corporação leiga ou
religiosa, mas como associação de cidadãos livres que optam por dedicar-se a
obras de caridade com seus recursos.

Os votos: a segunda contribuição básica do Papa


Quando em 1858, Pio IX ressaltou a necessidade dos votos, e não uma
simples promessa, como segundo pilar da Sociedade, ele entendia segura-
mente os votos canônicos simples que fariam da Sociedade uma verdadeira
Congregação religiosa aos olhos da Igreja, ou seja, uma associação eclesiástica
segundo o sistema jurídico da Igreja. Os votos, portanto, deviam permanecer
totalmente debaixo do controle do Papa.
Entretanto, no capítulo sobre a Forma da Sociedade, um artigo facultava
ao Reitor-Mor a dispensa dos votos, disposição retirada antes da sua aprova-
ção. Pode-se comprová-lo nos textos a seguir.15

15
G. Bosco, Costituzioni, 86-87.

511

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Dom Bosco: história e carisma 2

VIa: Q (1874).
IIa: Do (1860) - IIIª: Gb (1864) Va: Ns (1873)
Texto aprovado
10. Os votos obrigam o sócio enquan- 7. Todos estão obrigados 5. Todos estão obri-
to permanecer na Congregação. Os a [observar] os votos en- gados aos votos e não
que abandonam a Congregação tanto quanto permanecerem na podem ser dispensa-
por motivo justo [pessoal] ou como Sociedade. Se alguém, por dos deles, temporais
consequência de uma decisão pruden- justa causa ou pelo juízo ou perpétuos, sem que
te dos superiores, podem ser dispensa- prudente dos superiores, seja por dispensa do
dos de seus votos pelo superior geral saísse da Sociedade, pode- Sumo Pontífice ou pela
da casa mãe. rá ser dispensado dos votos demissão da Sociedade.
pelo superior geral.

Como Dom Bosco interpreta as palavras de Pio IX: “Esses votos devem
ser, porém, simples e de fácil dispensa?”. O Papa, sem dúvida, referia-se aos
votos simples públicos tradicionais (em contraposição aos votos solenes).
Dom Bosco, porém, pode ter entendido “simples” e “de fácil dispensa”
sem maior esclarecimento. Como se diferenciavam, então, esses votos de
simples promessas?
Cabe assinalar, além disso, que o novo conceito de Dom Bosco sobre o
compromisso religioso parece ser semelhante à doutrina exposta por Antônio
Rosmini na década de 1820. Os contatos de Dom Bosco com Rosmini e os
rosminianos poderiam ter influído na própria formulação de Dom Bosco,
embora com uma alteração que reflete o contexto sociopolítico da Revolução
Liberal nos anos cinquenta do século XIX. Dom Bosco utilizava o termo
“direitos civis” para descrever a situação em que os religiosos exercem seus
direitos, como a propriedade privada, e seus deveres, como o pagamento de
impostos, enquanto “cidadãos livres”. A Sociedade Salesiana, como união de
“cidadãos livres”, não era nem uma associação religiosa e nem proprietária de
qualquer bem.
Rosmini usava o termo “propriedade legal” para descrever uma situação
semelhante, em que cada membro conservava a titularidade jurídica no uso
de seus bens, mas a congregação nada possuía. Perante a lei, o membro do
Instituto da Caridade parecia possuir bens como qualquer cidadão particu-
lar; o voto de pobreza, pelo qual o sócio se obrigava a renunciar ao direito
de dispor de seus bens em favor do superior, podia ser simples e privado, ou
seja, um assunto entre ele e o superior. Dessa forma, o voto, como qualquer
acordo privado, podia permanecer facilmente em sigilo; e se fosse conhecido
publicamente, o seria de modo casual, não pela sua natureza.16

P. Stella, Le costituzioni, 25. Stella cita uma carta em que Rosmini explica seu ponto de vista;
16

ver A. Rosmini, Epistolario completo. II. Casale Monferrato, 1887, 219.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Dessa forma, a ideia de Rosmini de que o voto podia ser simples, do tipo
de um acordo privado, pode ter afetado a interpretação de Dom Bosco sobre
a expressão do Papa segundo a qual “os votos devem ser simples e de fácil dis-
pensa”. Isso explicaria o posicionamento de Dom Bosco em relação aos votos
temporais e perpétuos, sobre os quais exigia ter o controle.
Será preciso levar em conta, ainda, que o conceito de Rosmini sobre po-
breza religiosa encaixava-se num sistema filosófico, teológico e jurídico com-
plexo, elaborado por uma intensa experiência espiritual pessoal. O Instituto
da Caridade seria pobre com a forma mais perfeita de pobreza, na qual nada
era próprio; não seria uma associação secular ou religiosa, criada conforme
o sistema jurídico, estatal ou eclesiástico que fosse. Esse tipo de pobreza no
pensamento de Rosmini era o polo no qual se encaixava a caridade. Refletia
um amor perfeito, entendido como abertura total a Deus, plena confiança e
entrega a Ele e à sua Providência amorosa numa completa indiferença e total
disponibilidade. A pobreza religiosa coletiva, como sinal da caridade e da
entrega a Deus era considerada, no sistema de Rosmini, como resposta cristã
às teorias filosóficas e jurídicas do momento, fundamentadas pela sociedade
civil no utilitarismo e no materialismo, ou seja, no somatório dos egoísmos
individuais e coletivos e na avidez, que levava inevitavelmente ao ódio, à dis-
córdia e à confusão, como nos casos de Caim e de Babel.17
Dom Bosco, em momento algum, alude à doutrina da vida religiosa
de Rosmini, nem tampouco teoriza sobre a pobreza. Ele apenas indica, em
termos mais simples, o papel do voto e da virtude como construtores da
comunidade e da caridade fraterna. A inspiração rosminiana, porém, é ine-
quívoca: considera a cláusula do “direito civil” não como mera estratégia de
sobrevivência, mas como componente de uma profunda visão espiritual da
vida religiosa.

Solicitação contínua de Dom Bosco da capacidade de dispensar


os votos
Dom Bosco expressou sua oposição aos votos trienais em várias ocasiões.
Seus pontos de vista sobre o tema não só questionavam a prática tradicional,
como também se afastavam dos textos constitucionais que ele mesmo redi-
gira.18 As primeiras Constituições preveem em todas as etapas (I-VIII) ao
menos dois períodos trienais de votos, como se pode ver no artigo correspon-
dente do capítulo sobre a admissão.
17
P. Stella, Le costituzioni, 25.
18
G. Bosco, Costituzioni, 172-173: capítulo sobre admissões, artigo 4 [5 ou 7].

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Dom Bosco: história e carisma 2

Va: Ns (1873) latim


Ia: Ar (1858) italiano
VIa: Q 1874 latim
IIa: Do (1860) italiano IIIa: Gb (1864) italiano
VIIa: T (1874/75) latim
IVa: Ls (1867) latim
VIIIa: V (1875) italiano
4. Os votos são feitos por três 4. Os votos são feitos por três 5. [7] Estes votos são feitos por
anos e renovados por outros anos e renovados por outros um período de três anos. Depois
três. Depois dos seis anos, três. Depois dos seis anos, de três anos, com o consenti-
fica-se livre para continuar fica-se livre para continuar mento prévio do Capítulo, po-
a renová-los de três em três a renová-los de três em três dem-se renovar por outros três
anos ou fazê-los perpétuos, anos ou fazê-los perpétuos, anos ou fazer os votos perpétuos,
ou seja, obrigar-se a cumpri- ou seja, obrigar-se a cumpri- ou seja, obrigar-se por voto du-
-los por toda a vida. -los por toda a vida. rante toda a vida. Contudo, nin-
Contudo, ninguém seja admi- guém será admitido às ordens
tido aos votos perpétuos antes sagradas como membro da Con-
de ter completado 24 anos. gregação (titulo congregationis)
sem ter feito os votos perpétuos.

Diversamente do texto constitucional, Dom Bosco manifestava suas dú-


vidas sobre a utilidade dos votos trienais e, ao mesmo tempo, pedia a faculda-
de de dispensar de todos os votos. Na conferência geral, celebrada em 1875,
durante o segundo turno de exercícios espirituais em Lanzo, a sessão de 23
de setembro foi dedicada ao tema das admissões. Ceria explica o conhecido
posicionamento de Dom Bosco:

Quanto a mim, não vejo nenhuma diferença entre os votos perpétuos e trie-
nais, dado que eu posso dispensar também dos votos perpétuos, quando o
indivíduo já não serve para continuar na Congregação.19

Àqueles que pensavam que esta faculdade do superior não deveria ser
publicada, pois tal conhecimento poderia levar a abusos, Dom Bosco disse:

Parece-me que, neste momento, não possam derivar abusos desta divulgação;
mas creio também conveniente que se dê conhecimento desta notícia [à nossa
gente], para que ninguém se deixe acovardar diante do pensamento da per-
petuidade dos votos, por medo de que sobrevenham dificuldades invencíveis
e se acabe por perder a paz. Por outro lado, para dispensar alguém dos votos,
requer-se uma causa grave; se fosse apenas um capricho, não chegaria jamais
a este extremo. Mas se há um motivo, parece-me que não deve fazer qualquer
mal a alguém saber que se pode conceder a dispensa.20

19
MB XI, 344s, com comentários de Ceria.
20
Ibid.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Na conferência de Alassio, de fevereiro de 1879, fez uma afirmação ain-


da mais clara sobre o tema. Barberis informa:

Quando chegou ao estudo da admissão de alguns que pediam [para fazer]


votos trienais, Dom Bosco aproveitou a oportunidade para reiterar seu ponto
de vista: “Os votos trienais são uma perspectiva demasiadamente tentadora
para os jovens, e muitos enfim caem nela. Se, ao contrário, fazem os votos
perpétuos, suas mentes encontram a paz, e já não continuam a pensar [em
abandonar]. Aceitei os votos trienais, porque tinha uma ideia diferente de
congregação, porque minha intenção era estabelecer algo muito diverso do
que finalmente foi aprovado. Fomos obrigados a fazer assim e assim seja.
Contudo, do modo como estão as coisas, os votos trienais deixam alguém
muito livre para a tentação. Se um candidato tem as qualidades necessárias e
a disposição, deve fazer os votos perpétuos, não os trienais”.21

Ceria cita uma declaração anterior, feita por Dom Bosco aos padres Bar-
beris e Guidazio, em 18 de outubro de 1878, para explicar por que se opunha
aos votos trienais:

Continuei com os votos trienais porque meu plano original era fundar uma
congregação que ajudasse os bispos. Dado que isso não foi possível e vi-me
obrigado a fazer algo diferente, um compromisso de três anos agora é mais
obstáculo do que ajuda.22

Ceria também cita o que parece ser a disposição final de Dom Bosco
sobre a questão no boa-noite de 5 de setembro de 1879:

Devo informar-lhes de que esta é a última vez que se farão os votos por três
anos. A partir de agora, os que fazem votos os farão perpétuos. A experiência
demonstrou que os votos trienais são, para alguns, uma tentação demasiado
grave a enfrentar. Depois de viver um ano na congregação [como noviço] o
indivíduo deve saber se Deus o chama e se tem força suficiente para perseverar.23

21
Alassio, Assembleia Geral, Sessão 2, 7 de fevereiro de 1879, Relatório de Barberis, com ano-
tações do Capítulo Superior, caderno II, 76-77, FDB 1878 B5-6.
22
MB XIV, 48-49, com amplo comentário de Ceria.
23
MB XIV, 361s. Ceria faz notar, porém, que Dom Bosco não impôs seu ponto de vista, e os
votos trienais continuaram a ser feitos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capítulo “Voto de pobreza” na edição oficial, latina,


das Constituições Salesianas, publicado em 1874.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

No Capítulo Geral II, Dom Bosco comentou a respeito de uma situação


criada pelos votos trienais. Um clérigo salesiano chamado Galvagno acabara
de falecer. Dom Bosco, com uma teologia um tanto duvidosa, insistiu com
os diretores para que comunicassem aos irmãos as circunstâncias dessa morte,
para que pudessem extrair uma lição. Falou assim:

Era uma boa pessoa, mas estava extraordinariamente apegado à mãe, que
era muito pobre. Ela esperava que o filho a ajudasse economicamente; e, por
isso, opunha-se a que ele continuasse na Congregação. O filho, que era fraco
e queria ajudar a mãe, não se atreveu a fazer os votos perpétuos, e ao final
dos votos trienais não pediu sua renovação. O Senhor, porém [...], com sua
morte, quis dar uma lição a todos nós: aquele que propicia alimento às aves
do céu e aos animais do campo não abandona os que, para segui-lo, deixam
tudo, até mesmo a família; ao contrário, Ele frustra as esperanças daqueles
que confiam nas pessoas e nas coisas, em vez de [confiar] n’Ele. Neste caso, o
filho foi castigado a morrer sem votos e a mãe foi castigada com a privação do
filho em que depositara suas esperanças.24

2. O voto de pobreza
Ao examinar o artigo 2 do capítulo sobre a Forma da Sociedade, já se
indicou que a normativa sobre os direitos civis e as referências correspon-
dentes foram eliminadas ou transferidas a outros capítulos. O que se referia
à propriedade e à administração dos bens foi reelaborado na forma jurídica
tradicional e transferido ao capítulo sobre a pobreza. Transcrevemos os pri-
meiros textos selecionados deste capítulo (1858-1864) junto com o texto de
1874, reelaborado e aprovado.

Capítulo Geral II, Sessão 7, 7 de setembro de 1880. Anotações de Barberis, Caderno I, 60-61,
24

FDB 1858 B8-9.

517

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ia: Ar (1858) italiano


IIa: Do (1860) italiano VIa: Q (1874) latim
IIIa: Gb (1864) italiano
1. A essência da pobreza em nossa con-
gregação consiste em levar vida comum
quanto à alimentação e ao vestuário, e
em nada conservar debaixo de chave, sem
permissão especial do superior.
Texto de 1864, Gb: A essência do voto de
pobreza em nossa congregação consiste
essencialmente em viver desapegado dos
bens terrenos. Nós o praticaremos com a
vida comum quanto à alimentação e ao
vestuário, não reservando nada para uso
pessoal sem permissão do superior.
[Nenhum] 1. O Voto de pobreza, do qual se fala, refere-se
somente à administração dos bens, quaisquer
que sejam, e não à sua posse. Por isso, os que
fizeram votos nesta sociedade podem conservar
a chamada propriedade radical [dominium ra-
dicale] de seus bens; mas lhes é absolutamente
proibido administrar, dispor e servir-se de suas
entradas. Além disso, antes de fazer os votos,
devem ceder, embora apenas de forma privada,
tanto a administração como o usufruto e seu
uso a qualquer pessoa que desejem; por isso,
também à sua própria Congregação, se assim
lhes parecer fazê-lo. Deve-se incluir também
nessa cessão a condição de poder revogá-la em
qualquer momento; mas, apesar disso, o pro-
fesso não pode em consciência usar o direito
de revogação sem o consentimento da Santa Sé.
Tudo que disse antes também deve ser observa-
do a respeito dos bens que possam adquirir por
herança, depois de terem feito a profissão.

[Nenhum] 2. Os sócios, porém, podem dispor livremen-


te da propriedade, seja por sua vontade e tes-
tamento ou (com a permissão do Reitor-Mor)
por um ato público entre vivos. Neste último
caso, deixará de existir a cessão que fizeram da
administração, do usufruto e do uso a não ser se
desejarem que a concessão seja ratificada duran-
te o período de tempo que eles especifiquem,
apesar da cessão do domínio.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

[Nenhum] 3. Aos professos também não está proibido rea-


lizar, com a permissão do Reitor-Mor, todos os
atos sobre os bens prescritos pelas leis.
[Nenhum] 4. Não se permite aos professos apropriar-se ou
reservar para si nada do que tenham adquirido,
seja por sua própria indústria seja pelos meios que
a Sociedade colocar à sua disposição; mas deve-se
contribuir com tudo para os bens da comunidade
em vista do benefício comum da Sociedade.
2. Faz parte deste voto conservar os quartos 5. Faz parte deste voto conservar os quartos com
com a maior simplicidade possível, procu- a maior simplicidade possível, tentando com to-
rando adornar o coração com a virtude e das as forças adornar o coração com a virtude e
não a pessoa ou as paredes de (seus) quartos. não ornamentar as paredes de seus quartos.
3. Ninguém conserve dinheiro em casa ou 6. Ninguém conserve dinheiro em casa ou fora
fora dela, em seu poder ou em depósito dela, em seu poder ou em depósito com outros,
com outros, por qualquer motivo que seja. por qualquer motivo que seja.

[Nenhum aqui, mas ver o art. 1, texto de 7. Por último, cada um mantenha seu coração
1864, Gb, anterior] desprendido de tudo que for terreno. Cada um
procure viver a vida comum em todos os as-
pectos, quanto à alimentação e ao vestuário; e
não tenha em seu poder nada em absoluto, sem
especial autorização do superior.
4. No caso de um sócio precisar viajar ou [Eliminado]
sair para uma missão ou um ministério,
o superior proverá o necessário [sentido
resumido].
5. É proibido tomar emprestado dinheiro [Eliminado]
ou coisas tanto dos da casa como dos ex-
ternos [sentido resumido].
6. Os presentes dados aos sócios devem [Eliminado]
ser entregues ao Superior da Congregação
[sentido resumido].

Os artigos do capítulo sobre a pobreza foram mantidos praticamente


inalterados através de todas as etapas de revisão até chegar ao texto apresen-
tado para aprovação definitiva em 1873. Os cardeais da Congregação Es-
pecial reelaboraram o capítulo antes da aprovação em 1874; inseriram os
artigos 1-4, que basicamente voltavam a definir o voto de pobreza nos ter-
mos jurídicos tradicionais, e eliminaram a descrição realista e concreta do
voto-virtude dada por Dom Bosco em sua redação do artigo primeiro. Este
artigo refletia um estilo de vida austero, o de Dom Bosco e de seu primeiro

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Dom Bosco: história e carisma 2

grupo, que se caracterizava pela extrema frugalidade e a existência até mesmo


sem as comodidades mais básicas. Apesar do enorme fervor que o inspirou,
certamente não poderia continuar assim por muito tempo nem se converter
em norma geral; e, finalmente, teve de ser suavizado. Dom Bosco, porém,
embora lamentando o declínio do primeiro fervor, deixou-o como legado aos
seus seguidores completando-o com o ascetismo do “trabalho e temperança”,
programa destinado a, de um lado, promover a comunidade e, de outro, a
solidariedade para com os trabalhadores e os pobres.

3. O voto de obediência
Selecionamos apenas as etapas mais significativas do texto constitucio-
nal, concretamente a etapa segunda (Do), sob o controle total de Dom Bosco;
a etapa terceira (Gb), primeiro texto apresentado em Roma sob o controle
de Dom Bosco em sua maior parte; e a etapa sexta (Q), texto aprovado que
contém as correções feitas pelos cardeais antes da aprovação.

IIa: Do (1860) italiano IIIa: Gb (1860) italiano VIa: Q (1874) latim


1. O profeta Davi pedia ao Se- 1. O profeta Davi pedia ao 1. O profeta Davi pedia ao
nhor que o iluminasse para poder Senhor que o iluminasse para Senhor que o iluminasse
cumprir sua santa vontade. Nosso poder cumprir sua santa von- para poder cumprir sua san-
Divino Salvador também nos ga- tade. Nosso Divino Salvador ta vontade. Nosso Divino
rantiu que ele viera não para fazer também nos garantiu que ele Salvador também nos ga-
sua vontade, mas a do Pai Celeste. viera não para fazer sua von- rantiu que ele viera à terra
E, precisamente para garantir-nos tade, mas a do Pai Celeste. E, não para fazer sua vontade,
que fazemos a vontade de Deus, precisamente para garantir- mas a do Pai Celeste. Esta é
emitimos o voto de obediência. -nos que fazemos a vontade a finalidade do voto de obe-
de Deus, emitimos o voto de diência, precisamente, para
obediência. ficarmos mais seguros de fa-
zer a santa vontade de Deus.
2. Este voto nos obriga a não nos 2. Este voto nos obriga a não [Eliminado]
ocuparmos de outras coisas que nos ocuparmos de outras coi-
não as que o próprio superior jul- sas que não as que o próprio
ga ser da maior glória de Deus e superior julgasse ser da maior
proveito da própria alma. glória de Deus e proveito da
própria alma e a do próximo,
de acordo com as regras desta
Sociedade.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

3. A observância deste voto não 3. A observância deste voto [Reelaborado e transferido


obriga sob pena de pecado, a não não obriga sob pena de peca- para o final das Constituições]
ser naquilo que seja contrário do, a não ser naquilo que seja
aos mandamentos de Deus e da contrário aos mandamentos
santa mãe Igreja, ou às disposi- de Deus e da santa mãe Igreja,
ções que os superiores derem es- ou às disposições que os supe-
pecificamente por obrigação de riores derem com esta fórmu-
obediência. la: “Eu te ordeno em força do
voto de obediência”.
4. A virtude da obediência ga- 4. A virtude da obediência 2. A virtude da obediência
rante-nos que estamos fazendo garante-nos que estamos fa- garante-nos que estamos
a vontade de Deus. Como diz o zendo a vontade de Deus. fazendo a vontade de Deus.
Salvador: “Quem vos ouve, a mim
ouve, e quem vos despreza, a mim
despreza”.
5. Cada um, portanto, tenha o Cada um seja submisso ao Cada um, portanto, obedeça
superior como pai, obedeça-o sem seu superior e considere-o ao seu superior e considere-
reservas, com prontidão, espírito em tudo como um bom pai; -o em tudo como um bom
alegre e humildade. obedeça-o sem reservas, com pai; obedeça-o sem reservas,
prontidão, espírito alegre e com prontidão, espírito ale-
humildade, como a quem ex- gre e humildade, persuadido
pressa nesse mandato a mes- intimamente de que nesse
ma vontade de Deus. mandato ele expressa a mes-
ma vontade de Deus.
6. Ninguém se apresse em pedir 5. Ninguém se apresse em pe- 3. Ninguém se apresse em
ou recusar qualquer coisa. Se al- dir ou recusar qualquer coisa. pedir ou recusar qualquer
guém souber que algo lhe é da- Se alguém souber que algo lhe coisa. Se alguém souber que
noso ou necessário, manifeste-o é danoso ou necessário, mani- algo lhe é danoso ou ne-
com reverência ao superior e re- feste-o com reverência ao su- cessário, manifeste-o com
signe-se no Senhor qualquer que perior, que procurará atender reverência ao superior, que
seja a sua decisão. à necessidade. procurará atender a suas ne-
cessidades.
7. Todos tenham grande confiança 6. Todos tenham grande con- 4. Todos tenham grande
em seu superior e não guardem ne- fiança em seu superior e não confiança em seu superior;
nhum segredo para ele. Abram-lhe guardem nenhum segredo de aí que é bom que os só-
a consciência sempre que seja pe- para com ele. Abram-lhe a cios prestem contas com fre-
dido ou que ele o creia necessário. consciência quando crerem quência de sua vida externa
que isso redundará na maior especialmente aos superio-
glória de Deus e em benefício res maiores. Cada um, com
de sua própria alma. simplicidade, manifeste aos
superiores as faltas externas
contra as Constituições, as-
sim como seu progresso na
virtude; de modo que pos-
sa receber seus conselhos e
ajudas e, se for necessário, as
advertências adequadas.

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Dom Bosco: história e carisma 2

8. Todos obedeçam sem qual- 8. Todos obedeçam sem 5. Todos obedeçam sem
quer resistência de palavra, de qualquer resistência de pala- qualquer resistência de pa-
ação, ou de coração. Quanto vra, de ação, ou de coração. lavra, de ação, ou de cora-
mais repugne a ordem a quem a Quanto mais repugne a or- ção, de modo que não per-
executa, tanto maior mérito terá dem a quem a executa, tanto ca o mérito da virtude da
diante do Senhor, se a obedecer. maior mérito terá diante do obediência. Quanto mais
Senhor, se a obedecer. repugne a ordem a quem
a executa, tanto maior mé-
rito terá diante do Senhor,
se a obedecer.
9. Ninguém mande cartas para [Transferido para “Governo [ - - - - - - - - - - - - - - - - - ]
fora de casa sem permissão do interno da Sociedade”]
superior ou de seu delegado.
Igualmente, quando se recebam,
serão entregues ao superior, que
poderá lê-las se o crer oportuno.

O voto de obediência no pensamento de Dom Bosco


Analisaremos alguns artigos das primeiras Constituições no capítulo so-
bre o voto de obediência. Nele, Dom Bosco manifesta seu ponto de vista
sobre a obediência religiosa e a autoridade do diretor na comunidade local.
Tomamos como ponto de partida o texto constitucional de 1860, me-
lhor do que o texto aprovado em 1874. O texto era assinado por Dom Bosco
e outras 25 pessoas, e apresentado ao arcebispo Fransoni para sua aprovação.
É a primeira apresentação completa sobre o tema. Além do mais, Dom Bosco
manteve este texto, com pequenas modificações, até 1873 (Ns, quinta etapa).
Antes da aprovação em 1874, a revisão da Congregação romana consistiu
principalmente na supressão do artigo 2o (por ser redundante?) e, mais deci-
sivo, da norma sobre a conta de consciência (artigo 7o). Foram também intro-
duzidas outras modificações menores.
É bastante fácil determinar o significado literal dos artigos sobre a obe-
diência. Podem-se estabelecer, também, sem dificuldade, as fontes literárias
de alguns desses artigos, tendo Dom Bosco se servido de constituições de
outras ordens religiosas. Contudo, embora semelhantes ou idênticos a esses
modelos na redação, estes artigos esclarecem que se dá um enfoque religio-
so diverso da obediência na primeira comunidade salesiana. É o espírito da
obediência salesiana; e este “espírito” não pode ser descrito por inteiro num
texto constitucional. Por isso, embora tratemos de um texto constitucional, o
da “obediência”, teremos de nos referir a outras fontes salesianas, anteriores,

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

contemporâneas ou posteriores, para compreender o espírito dos textos cons-


titucionais. Porque estes só definem a estrutura básica das formas religiosas,
que devem ser complementadas e interpretadas à luz da vida da comunidade
e da sua tradição viva.

O texto de 1860 e suas fontes


Oferecemos, em primeiro lugar, uma descrição do texto de 1860 para
contextualizar os artigos sobre a obediência e a autoridade. Em seguida, exa-
minamos os artigos sobre a obediência a partir de uma interpretação literal-
-histórica, analisando suas fontes literárias.
• Os manuscritos
Como já se disse, em seu primeiro projeto de regulamento25 para a
sociedade que estava formando, Dom Bosco serviu-se de modelos existentes
em outras congregações e incorporou também o que acreditou oportuno dos
regulamentos anteriores do Oratório e da Casa Anexa.26 Mas, acima de tudo,
procurou expressar sua experiência pessoal de padre e educador em Valdocco.
Os primeiros rascunhos das Constituições são impregnados de um pro-
fundo espírito de caridade. Sua força ascética, não tão jurídica, reflete o espí-
rito das antigas regras monásticas, mais do que o das constituições das con-
gregações modernas. As superposições jurídicas posteriores, introduzidas para
adequá-las à legislação canônica, tiveram o efeito de suavizar a força original.
Os manuscritos da década de 1860 são pouco desenvolvidos juridicamente
porque, sendo tão poucos os salesianos, Dom Bosco presidia o grupo como
um pai de família. Nessa etapa, o projeto não inclui o capítulo “Sobre cada
casa” e continuam sem definição os cargos individuais na congregação, como
o do diretor local. Entretanto, o espírito derivado da experiência carismática
normativa de Valdocco supria essa deficiência.
Sem contar o Preâmbulo e o Resumo histórico (capítulos 1o e 2o) e a fór-
mula para a profissão (capítulo 14o), as Constituições de 1860 contavam
com 87 artigos, agrupados em 11 breves capítulos: Fim, Forma da Sociedade,
os Votos de obediência, pobreza e castidade, o Governo interno, os outros

25
Até a aprovação das Constituições, Dom Bosco usa sem distinção os termos normas, cons-
tituições, regulamentos, estatutos e estruturas de regulamento. Atualmente, no uso comum, regras e
constituições são sinônimos.
26
Para os Regulamentos dos meninos do Oratório, cf. P. Braido, Scritti, 363-399; 400-457;
MB III, 86ss; MB IV, 735ss. Este segundo conjunto de regulamentos sofreu muitas alterações, desde
os primeiros rascunhos em 1852-1854 até sua publicação em 1877.

523

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Dom Bosco: história e carisma 2

superiores, a Admissão, as Práticas de piedade, o Hábito religioso e os Externos.


Apesar de carências evidentes, o texto revela o conceito de Dom Bosco sobre
a vida religiosa: seu ponto de vista sobre o apostolado, sua doutrina espiritual,
a ideia de comunidade e o conceito da finalidade da vida religiosa salesiana,
da formação salesiana, da consagração dos religiosos salesianos mediante a
castidade e a pobreza, o papel e a prática da obediência, e muito mais.
• Os artigos sobre a obediência e a autoridade, e suas fontes
O capítulo sobre o “Voto de obediência” contém 9 artigos, dos quais só
se consideram aqui os 8 primeiros. O artigo 9 (sobre o envio e recebimento
de cartas) é uma simples norma exterior. Os 8 primeiros artigos, nos quais
Dom Bosco trata conjuntamente da virtude e do voto de obediência, podem
ser assim divididos:

1. Os artigos 1o e 4o são dedicados a considerações bíblicas, morais,


religiosas e a motivar a obediência religiosa.
Art. 1o. O exemplo de Davi (Sl 119) e de Jesus (Jo 4,34; 5,30; 6,38)
esclarece o sentido profundo e a motivação do voto de obediência e,
portanto, da autoridade religiosa. O conceito e o conteúdo do voto
de obediência são expressos claramente: obedecer é fazer a vontade
do superior que se percebe pela fé como expressão concreta e imediata
da vontade de Deus. Por isso, a obediência é o meio mais seguro de
fazer a vontade de Deus e alcançar a santidade e a salvação.
O artigo baseia-se num similar das constituições das Escolas da
Caridade, de Cavanis, mas apenas em parte. No modelo, fala-se
unicamente de Jesus Cristo; Dom Bosco inclui Davi, acrescen-
tando ao Novo o Antigo Testamento. Por outro lado, Dom Bos-
co, inspirando-se no Evangelho de João, insiste que a obediência
é garantia de se fazer a vontade de Deus. Esta última ideia é repe-
tida no artigo 4.
Art. 4o. Reflete o mesmo posicionamento teológico em relação à
virtude da obediência. Dom Bosco não faz qualquer distinção entre
os fundamentos do voto e da virtude. Parece não levar em conta o
puramente canônico (exterior) no cumprimento das ordens legíti-
mas. Por outro lado, citando as palavras de Cristo: “Quem vos ouve,
a mim ouve; e quem vos despreza, a mim despreza” (Lc 10,16, cf.
Mt 10,40; Jo 13,20), equipara o superior religioso aos apóstolos em
relação a Cristo.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Este último elemento tem seu paralelo nas constituições das Escolas
da Caridade, de Cavanis. Na verdade, já figurava em constituições
anteriores, como nas dos Clérigos Regulares (São Caetano de Thie-
ne, 1480-1547). Contudo, em rascunhos posteriores, por motivos
desconhecidos – talvez, a comparação lhe parecera presunçosa –,
Dom Bosco omite estas palavras.

2. Os artigos 2o e 3o tratam de seus aspectos canônicos.


Art. 2o. O artigo 1o define os fundamentos do voto; o artigo 2o de-
termina o objeto do voto e, portanto, os meios legais da autoridade
do superior.
O rascunho de 1860 diz simplesmente: “Este voto obriga-nos a de-
dicar-nos unicamente às coisas que o superior legítimo julgar que são
para a maior glória de Deus e o bem de nossa própria alma”. Em outras
palavras, os salesianos obrigam-se a obedecer a seu superior religioso
em tudo. Mas, ao mandar, o superior deve orientar-se por este crité-
rio: a seu juízo, o mandato promove a maior glória de Deus e o bem
espiritual de cada irmão.
Em versões anteriores, Dom Bosco acrescentara: “Em particular, o
voto exige a observância das disposições contidas no regulamento da
casa, que durante vários [anos] estiveram em vigor na Casa Anexa ao
Oratório de São Francisco de Sales”. Estas palavras limitam-se a de-
signar uma área específica de obediência do irmão ou devem ser
entendidas também como critério adicional que restringe a área de
mando do superior? Queriam dizer que o superior, para julgar o
que é para a maior glória de Deus e o bem da própria alma, devia
orientar-se pelas normas da casa (e, portanto, com maior razão, pe-
las Constituições)?
Deve-se anotar que, ao adaptar a fórmula da profissão da Compa-
nhia de Jesus (texto de 1860), Dom Bosco eliminou as palavras de
sua fonte, “segundo as Constituições desta Companhia”. Escreveu
simplesmente: “Faço os votos [...], e lhe peço [a meu superior], que
se sinta livre de mandar-me sem qualquer objeção tudo que julgar
ser para a maior glória de Deus e para o bem das almas”.
Quase imediatamente, na reelaboração do texto do artigo, Dom
Bosco incluiu o critério de que as Constituições devem estabelecer
os parâmetros da ordem e da obediência religiosa. Assim, o texto de

525

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Dom Bosco: história e carisma 2

1864 diz: “Este voto obriga-nos a dedicar-nos unicamente às coisas


que o legítimo superior julgar serem para a maior glória de Deus e
para o bem de nossa alma e a do próximo, em conformidade com as
regras desta Sociedade”. Mais tarde, ele reformulará assim: “[...] em
conformidade com o que prescrevem estas Constituições”. Foi essa a
leitura até 1873, que será incluída no rascunho desse ano; depois, a
Congregação Romana eliminará o artigo inteiro.27
Em 1864, Dom Bosco corrigiu a fórmula da profissão da mesma
maneira (mandato e obediência, em conformidade com as Consti-
tuições) para cumprir a observação 10 de Savini-Svegliati.
Em todo caso, é bastante amplo o alcance institucional da ordem
do superior na década de 1860 nas Constituições Salesianas. Por
exemplo, o artigo 1o do capítulo sobre “Os outros superiores” es-
tabelece que “as obrigações dos outros superiores serão indicadas
pelo Reitor [-Mor] conforme a necessidade o exigir”. O que se diz
do Reitor-Mor é aplicável também ao diretor em cada casa par-
ticular. A necessidade, ou seja, as exigências da obra de caridade
numa casa particular determinam o exercício da autoridade e da
obediência. Como ele mesmo afirma no Resumo histórico (capítu-
lo 2 das primeiras Constituições), sua primeiríssima experiência
pessoal como diretor do Oratório aconselhara-o nessa direção,
diversamente de formulações posteriores mais democráticas. Lê-
-se no Resumo histórico:

1858 (Ar) 1860 (Do) 1864 (Gb)


Eles não se comprometeram Eles não se comprometeram Eles não se comprometeram
com um voto formal; limi- com um voto formal; limi- com um voto formal; limitaram-
taram-se a fazer uma sim- taram-se a fazer uma sim- -se a fazer uma simples promessa
ples promessa de dedicar-se ples promessa de dedicar-se de dedicar-se à educação dos jo-
exclusivamente às atividades exclusivamente às atividades vens e às atividades ministeriais
que, a juízo do seu superior, que, a seu juízo, redundas- que redundassem, a seu juízo,
redundassem para a glória sem para a glória de Deus e para a maior glória de Deus e em
de Deus e em benefício de em benefício de suas próprias benefício de suas próprias almas.
sua própria alma. Reconhe- almas. Reconheciam seu su- Reconheciam seu superior no
ciam seu superior na pessoa perior no padre João Bosco. padre João Bosco.
do padre João Bosco.

27
O artigo 2o não tem paralelo em outras Constituições. Parece ser criação pessoal de Dom Bosco.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

O texto de 1864 é mais democrático (“ao seu juízo”) embora tam-


bém diga que “reconheciam seu superior no padre João Bosco”.
Art. 3 o. Expressa a norma canônica que, de per si, não se comete
pecado por não obedecer. Só existe culpa de pecado quando se
tenha incorrido em desobediência a uma lei natural, divina,
da Igreja, ou quando a ordem é dada em virtude do voto de
obediência. 28
O modelo provável de Dom Bosco é, novamente, o artigo paralelo
das Constituições das Escolas da Caridade, de Cavanis. Mas em
lugar de “sob pena de pecado” (sub obligatione peccati), Dom Bosco
prefere dizer “sob pena de culpa” (sotto pena di colpa, sub culpa). Ele
omite, principalmente, como alheio ao seu espírito, a prescrição de
Cavanis de que o sujeito desobediente será castigado de acordo com
a determinação do superior.
Após o rascunho de 1873, este artigo foi transferido para o final
das Constituições como aplicável em geral a todas as disposições
nelas contidas.
3. Os artigos 5o, 6o, 7o e 8o centram-se na forma e no estilo da prática
da obediência religiosa salesiana, ou seja, na configuração concreta
da relação superior-salesiano.
Art. 5o. Estabelece que a obediência deve ser: (1) filial, porque o
superior é “um pai” (em rascunhos posteriores, “um [muito] amado
pai”); (2) total, porque um religioso verdadeiramente comprometi-
do não é caprichoso com preferências, não discrimina entre o que é
mandado e o que é só recomendado, e não se deixa influir pelas cir-
cunstâncias de tempo, lugar etc.; (3) pronta, porque retardar a ação
diminui a obediência; (4) alegre, porque é impelido pela generosi-
dade do coração e o desejo de agradar a Deus; (5) humilde, porque
implica deixar de lado a própria vontade e escolher a vontade de
Deus, discernida pela fé no mandato do superior.
O estilo de obediência descrito ecoa as frases tradicionais nas
constituições religiosas. Dom Bosco inspirou-se diretamente
num artigo paralelo das Constituições das Escolas da Caridade,
de Cavanis; radicalmente, faz eco da fraseologia das constitui-
ções dos jesuítas.

A observação 13ª de Savini-Svegliati (1864) pedia a eliminação desta última cláusula do artigo
28

3 . Dom Bosco eliminou-a.


o

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Dom Bosco: história e carisma 2

SDB 1860 Escolas da Caridade Companhia de Jesus


Cada um, portanto, conside- Portanto, [os irmãos] vene- [...Os irmãos] tenham [pelo
re seu superior como um pai, rem o superior, seja quem superior] reverência interior
e obedeça-o completamente, for, como a um pai; obe- e amor. Não devem obede-
sem demora, com espírito ale- deçam-no completamente, cer apenas com a execução
gre e com humildade. com prontidão, com alegria material de suas ordens, mas
e com a devida humildade. completamente, sem demo-
ra, com bom espírito e com
a devida humildade.
Apesar do caráter tradicional da formulação, essas qualidades ti-
nham profunda consonância com o coração e a mente de Dom
Bosco, como se pode ver no artigo 6o.
Art. 6o. Refere-se a uma situação em que o irmão deva enfrentar
uma ordem inoportuna ou danosa. Em primeiro lugar, afirma-se
com força o princípio geral: “Nada pedir, nada recusar”. Inculca a
paz da mente e a confiança na obediência, pelo que nada se exige
e nada se recusa. Contudo, a exceção, ou a “concessão”, que segue
imediatamente, fomenta o diálogo construtivo com os superiores,
quando for necessário, mas com espírito de submissão final, sub-
missão “no Senhor”, que exige espírito de fé.
O princípio, “Nada pedir, nada recusar”, reflete o espírito, se não
a letra de São Francisco de Sales. Os modelos imediatos de Dom
Bosco, porém, parece que foram os artigos das Constituições de
Cavanis e dos Padres da Missão, de São Vicente de Paulo.
SDB 1860 Escolas da Caridade Congregação da Missão
6. Ninguém se apresse em Mantém-se, como princípio, o [Para fortalecer a obediência]
pedir ou recusar coisa algu- costume religioso de nada pe- mantemos o costume religioso
ma. Se alguém sabe que algo dir e nada recusar. Contudo, se de nada pedir e nada recusar,
lhe é danoso ou necessário, alguém pensar que algo é da- exceto quando alguém per-
manifeste-o com reverência noso ou necessário faça um dis- ceber que algo é danoso ou
ao superior e se resigne no cernimento (cada um) diante necessário. Então, discernirá
Senhor qualquer que seja do Senhor se deve ou não falar diante de Deus se deve ou não
sua decisão. disso com o seu superior. Tam- comunicar a questão ao supe-
bém deverá ter a disposição de rior. E deve manter a disposi-
[santa] indiferença em relação ção de [santa] indiferença em
à decisão do superior, seja qual relação à decisão do superior.
for. Em seguida, assim dispos-
Assim disposto, pode apresen-
to, apresente o assunto a seu
tar a questão a seu superior, na
superior e fique convencido de
certeza de que a vontade de
que a vontade de Deus se ex-
pressa na do superior. Uma vez Deus está na decisão do supe-
que isso seja expresso, aceite-a rior. Tão logo lhe seja comuni-
sem demora. cado, aceite-a com confiança.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Dom Bosco guia-se pelos seus modelos, mas não cegamente. É sig-
nificativo que omita o requisito de o irmão fazer um período de dis-
cernimento ou de exame de consciência antes de dialogar com seu
superior. Pensava, evidentemente, que a paternidade, de um lado,
e a confiança, de outro, favoreceriam o encontro imediato “no Se-
nhor”, num contexto de fé.
Art. 7o. Aumenta a motivação do artigo anterior. Pede-se que o irmão
ponha “grande (num projeto posterior, “a maior”) confiança” em seu
superior e também lhe manifeste sua consciência de forma espontânea
em alguma situação de necessidade ou como exige a regra: “Que todos
tenham grande confiança em seu superior e não lhe ocultem nenhum
segredo do coração; manifestem-lhe sinceramente sua consciência sempre
que lhe for pedido ou sinta necessidade de fazê-lo”.
Disposição semelhante, exigindo confiança no superior, a ponto tam-
bém de não lhe ocultar nada, nem sequer os segredos de consciência,
é encontrada nas Constituições de congregações anteriores, como das
Escolas da Caridade, de Cavanis, dos Padres da Missão e dos jesuítas.
Escolas da Caridade Congregação da Missão Companhia de Jesus
Todo irmão, livremente e com Todo irmão, com toda sinceri- Todo irmão pôr-se-á livre-
coração disposto e alegre, põe dade e devoção, prestará con- mente a si mesmo e todas
à disposição de seu superior a tas de sua consciência ao seu as suas coisas à disposição
si mesmo e todas as coisas que superior ou a alguém delegado do superior, com espírito
recebeu para seu uso. Tampou- por ele, na forma que se usa de verdadeira obediência.
co nada deveria ocultar ao seu em nossa Congregação. Não deveria ocultar nada
superior, nem sequer sua cons- Esta manifestação deve ser fei- a seu superior, nem se-
ciência; mas deve prestar-lhe ta, ao menos, a cada três meses, quer sua consciência.
contas frequentes dela. aproveitando o tempo dos reti-
ros espirituais e sempre que o
superior o considerar necessário.

A manifestação da consciência ao superior era uma prática comum


nas primeiras comunidades religiosas. Entretanto, em 1860, a Con-
gregação dos Bispos e Regulares começou a falar claramente contra
essa prática.29 1o A medida procurava evitar a invasão do superior
na área sacramental reservada ao confessor. 2o Outro motivo era
prevenir a possibilidade de uma direção espiritual equivocada. 3o
Outro era evitar as graves e dolorosas situações que se produziam
especialmente nas comunidades femininas ou quando o superior
era um leigo.

29
Ver as Observações recolhidas nos anos 1858-1861, em Collectanea, 830-858.

529

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Dom Bosco: história e carisma 2

Nos primeiros projetos das Constituições em italiano, Dom Bosco


parecia disposto a seguir as diretrizes romanas; de fato, suprimiu a
obrigação da prestação de contas da consciência. Por exemplo, o
rascunho de 1864 (Gb), em vez de ordenar ao irmão a prestação de
contas da consciência “sempre que lhe seja pedido ou sinta necessi-
dade de fazê-lo”, prescreveu “sempre que acredite que redundará na
maior glória de Deus e no bem de sua alma”.30
Nos rascunhos posteriores, entretanto, retornou obstinadamente
à sua posição, que manteve até as Constituições serem apresenta-
das para a aprovação definitiva (1873-1874). Nesse momento, a
observação 7ª de Bianchi-Vitelleschi recusava a manifestação de
consciência: “A manifestação obrigatória da consciência, tal como
se estabelece (nestas Constituições) não é admissível. A manifes-
tação voluntária poderia ser aceitável, mas, em todo caso, deve ser
limitada à observância exterior das Constituições e aos progressos
na virtude”.31
O texto final aprovado [1874] diz: “Todos tenham grande confian-
ça em seu superior; por isso, é bom que, com frequência, os sócios
prestem contas de sua vida exterior, especialmente aos superiores
maiores. Cada um, com simplicidade, manifeste espontaneamente
aos superiores as faltas externas contra as Constituições assim como
seu progresso na virtude, de modo que possa receber deles conselhos
e ajuda e, se precisar, as advertências adequadas”.

Comentário adicional
Sem deixar de respeitar a disposição da Igreja sobre a consciência, Dom
Bosco continuou a convidar à “plena confiança” na relação dos irmãos com
seu diretor. Na sessão 9ª do Capítulo Geral II (1880), Dom Bosco tinha
“coisas a dizer” sobre a unidade de direção na Sociedade, em todos os níveis,
e mais especificamente sobre a relação entre os irmãos e seu diretor na comu-
nidade local. E destacou a importância da prestação de contas de consciência
nos seguintes termos:

Todos os irmãos devem considerar seu diretor como pai amoroso, como ir-
mão mais velho, designado para seu cargo com o único propósito de ajudá-
-los a fazer bem o seu trabalho. Nada lhe ocultem, seja bom ou ruim, mas,
sobretudo, mostrem-se a ele tal como são. Todos devem estar convencidos

30
G. Bosco, Costituzioni, 96.
31
G. Bosco, Costituzioni, 244.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

disto: uma escola ou uma casa só será governada sem problemas quando os
irmãos com suas diversas qualidades vivam e trabalhem como um só coração
e uma só alma. Obviamente isso, na prática, não será possível, se os irmãos
não fizerem do seu diretor o centro de toda a obra, e não lhe abrirem comple-
tamente o coração.32

Dom Bosco pedia a manifestação da consciência não principalmente em


relação à direção espiritual e certamente não pelo desejo de invadir a privaci-
dade da pessoa ou o âmbito sacramental.33 A exortação à plena confiança era
coerente com seu conceito de obediência religiosa. Que Dom Bosco incluísse
esta disposição no voto de obediência indicaria que ele a concebia como parte
da estrutura da obediência. Considerava o voto de obediência como a for-
ma pela qual uma pessoa religiosa, consagrada na pobreza e na castidade, se
fazia a si mesma totalmente disponível aos superiores para a obra de carida-
de. Em consequência, seria lógico que os superiores conhecessem, em estrita
confidencialidade, como essa pessoa era na realidade, de modo que pudesse
dedicar-se adequadamente à obra de caridade.
Obviamente, isso pode ser coerente com um nível ideal, mas nem sem-
pre viável na prática. Por isso, a Igreja, preocupada com a pessoa, achou por
bem abrandar tal prática.
Art. 8o. Solicita uma obediência confiante, como descrita nos artigos
anteriores, sem qualquer resistência nas ações, nas palavras ou no coração,
inclusive em assuntos que repugnassem.
Novamente, o artigo pode ter seguido o modelo das Constituições das
Escolas da Caridade, de Cavanis.

Dom Bosco, 1860 Escolas da Caridade


Obedeçam todos sem resistência alguma [O irmão] não considere repugnante [obedecer e
de palavra, de atitude, ou de coração. nem resista] nem com atitude nem com a mente
Quanto mais repugnar a ordem a quem nem com o coração. Avançará, assim, com rapi-
a executa, tanto maior merecimento terá dez na abnegação pessoal, aprofundará em sua
diante do Senhor, se a obedecer. pureza de intenção e será mais fervoroso em sua
dedicação ao serviço divino.

As ideias de “repugnância” e de “não resistência em atitudes, palavra


(mente) ou coração” aparecem nos dois textos. A reflexão teológica, porém,

32
CG II, Sessão 9ª, 9 de setembro de 1880, J. Barberis, Anotações transcritas, caderno I, 70,
FDB 1858 C6.
33
Recorde-se que, nas comunidades salesianas, o diretor era o confessor ordinário dos irmãos e
dos meninos até que o Santo Ofício aboliu a prática com o decreto Quod Suprema, de 1901.

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Dom Bosco: história e carisma 2

é diferente. Para Cavanis, essa obediência tem uma finalidade ascética; para
Dom Bosco, torna-nos mais agradáveis a Deus, aumenta o merecimento.
As Constituições dos jesuítas pediam que se obedecesse “como um cadáver”
(perinde ac cadaver), imagem usada por Francisco de Assis muito antes para
descrever a obediência franciscana.34 Dom Bosco não utiliza a imagem (de-
masiado crua?), mas diz essencialmente o mesmo.

Conclusão
As afirmações básicas dos artigos 1o a 8o podem ser resumidas como se-
gue. O superior é o representante de Deus para os irmãos que estão sob a sua
jurisdição. Este é o único fundamento de sua autoridade e de sua obediência.
Os irmãos, portanto, devem obedecer sempre, imediatamente, de boa vontade
e sem qualquer reserva, mesmo no caso em que houvesse uma razão em contrá-
rio, por exemplo, as deficiências pessoais do superior.
A ideia da corresponsabilidade nas decisões é totalmente alheia a esses
artigos. As decisões são responsabilidade apenas do superior, embora sem-
pre dentro dos limites das Constituições. Apesar da abertura ao diálogo per-
mitido pelo artigo 6o, o superior é fundamentalmente autônomo diante da
comunidade de irmãos. Os membros da comunidade estão sujeitos à sua
autoridade. Por lei, são inferiores perante o superior. Por isso, são obrigados
a obedecer ao superior, ao qual, porém, se pede que seja paterno no exercício
da autoridade, dentro dos limites das Constituições. Seria anacrônico esperar
corresponsabilidade, democracia etc.

O exercício da autoridade do superior salesiano


Tendo apresentado o conteúdo dos artigos que descrevem a concepção
de autoridade e de obediência nas Constituições Salesianas e esclarecido ao
mesmo tempo a figura do superior salesiano, tentaremos uma interpretação
da função do diretor na comunidade salesiana, como se depreende das Cons-
tituições de 1860.
E o faremos respondendo a quatro perguntas: 1ª A base epistemológica:
Qual é o contexto social dos textos para interpretar a figura do superior salesia-
no? 2ª O fundamento teológico: Em que se baseia a capacidade de o superior
salesiano mandar? 3ª O binômio “comunidade-missão”: Qual o âmbito no
qual o superior pode mandar? 4ª O estilo: Como o superior salesiano manda?

34
Estudos sobre a origem e o sentido desta locução (“como um cadáver”) nas constituições dos
jesuítas e franciscanos são recolhidos por F. Motto, La figura, 23, nota 67.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Critérios epistemológicos para uma interpretação dos textos


Nos textos constitucionais, a relação superior-irmão ou autoridade-
-obediência é essencialmente vertical. Autoridade e obediência no interior da
comunidade é um âmbito unificado, uma realidade, um conjunto de meios
para a consecução de um único fim, o exercício da caridade. Os textos, porém,
insistem principalmente no dever do irmão de obedecer ao superior. Este tem
o monopólio da análise e da decisão. Aos irmãos cabe o papel de realizadores
fiéis, como instrumentos conduzidos pela vontade do superior. Tarefa do su-
perior é animar os irmãos a fim de que a observância das regras para a obra
de caridade, ou como Dom Bosco preferia dizer, o cumprimento do dever,
converta-se em disciplina interior e em diligência cumprida livremente.
Por outro lado, a proximidade física de superiores e irmãos numa co-
munidade salesiana parece reforçar a subordinação dos irmãos aos superiores,
por meio de uma pressão que se estende também à vida pessoal de cada ir-
mão. As Constituições de 1860 não projetam a imagem de democracia, nem
sequer talvez de monarquia constitucional, para usar termos políticos impró-
prios. A imagem projetada é de uma autoridade que funciona de cima para
baixo a fim de obter o cumprimento interior e exterior, autoridade que assu-
me a responsabilidade, o controle e o direito de intervir na ação e também na
consciência dos membros. A única responsabilidade dos irmãos é obedecer.
Entretanto, esta explicação genérica da situação deve ser um pouco mais
especificada e ajustada com outras considerações.
• Critério pessoal
Deve-se assinalar, primeiramente, que, se no projeto de Dom Bosco,
todo o poder está nas mãos do superior, isso se deve em parte a um modo de
pensar inerente à vida social, política e religiosa do século XIX. A “submissão”
era um elemento constitutivo da cultura de seu tempo, um axioma religioso,
um dos princípios herdados da era do absolutismo.35
Em segundo lugar, deve-se levar em consideração que esta forma de
governo reflete também a situação da primeira comunidade salesiana. Tem a
ver com o tipo de pessoas que Dom Bosco tinha à sua disposição. Ele carecia
de verdadeiros colaboradores. A maior parte dos homens de Dom Bosco eram
meninos, seus próprios jovens, não preparados na realidade para o difícil
trabalho educativo que ele projetava. Durante muitos anos, ele carregou o

35
O paternalismo no governo, nascido em momentos históricos especiais, prevaleceu nos sé-
culos XVI e XVII. Pio IX estimulou-o na Igreja. Cf. J. Courtney Murray, citado em F. Motto, La
figura, 25, nota 70.

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Dom Bosco: história e carisma 2

peso sozinho. Como escreve Barberis: “Todas as outras congregações foram


fundadas com a colaboração de pessoas educadas e formadas, que se uniram
ao fundador como ajudantes, e participaram, de fato, na fundação. Esse não
foi o caso entre nós; todos nós éramos alunos de Dom Bosco”.36 Os poucos
ajudantes adultos que se uniram a Dom Bosco trabalhavam sob a sua total
dependência e dentro da esfera de ação definida por ele.
Acrescente-se que quando, com o passar do tempo, aumentou o nú-
mero de salesianos capazes e qualificados, também melhorou a colegialida-
de no governo, tanto em nível geral como local. Essa evolução aconteceu
também em resposta à insistência da Congregação romana. Tanto que, nos
novos rascunhos das Constituições, o poder do superior se vê equilibrado por
um conselho e suavizado pelo direito de voto dos conselheiros nas decisões
importantes.37
Nessa época, contudo, toda a responsabilidade da comunidade, da obra
e de cada irmão recaía sobre o superior. Ele é responsável diante de Deus pe-
los irmãos e pelo trabalho deles, supondo que fossem obedientes. E quanto a
ele mesmo, como demonstram os documentos, Dom Bosco procurou man-
ter o controle centralizado muito depois da época de fundação. Nas atas do
Capítulo Geral I (1877), por exemplo, Barberis informa:

Dom Bosco sempre pressiona por maiores poderes para o Reitor-Mor.


Isso lhe permitirá guiar a congregação solitariamente e com controle total.
Não lhe agrada ter que enfrentar a cada passo reivindicações de autorida-
de e privilégios de outras pessoas e caminhar com muita cautela antes de
tomar uma decisão.38

Dom Bosco falou em termos semelhantes no Capítulo Geral II (1880):

O Rev. Dom Bosco insistiu com força neste ponto: os diretores e os inspetores
também deveriam sustentar cuidadosamente o princípio de que o comando,
como também a jurisdição, corresponde a uma única pessoa. Por isso, cada um
deve esforçar-se por sustentar essa autoridade e manter tudo bem ligado ao
Superior Maior.39

36
ASC A0000107 J. Barberis, Cronachetta, 2, caderno 7, 57, editado em MB XIII, 220s.
37
Cf. artigos nas Constituições de 1867 em diante, em G. Bosco, Costituzioni, 153, 165 e 167.
38
ASC D578, Capítulo Geral I, G. Barberis, Anotações transcritas, caderno II, 204-205.
39
Capítulo Geral II, Sessão 1ª, 3 de setembro de 1880, G. Barberis, Anotações transcritas, cader-
no I, 8, FDB 1857 C3. Seja o que for a que Dom Bosco aluda ao falar de “jurisdição”, o certo é que,
canonicamente, a jurisdição corresponde também aos superiores locais.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Dom Bosco queria o controle centralizado também em relação às casas.


Em outra sessão do Capítulo Geral II, ele disse:

Para o bom funcionamento da congregação, é importante que [em cada casa]


tudo e todos sejam centralizados no diretor; que todos os diretores estejam
unidos ao seu inspetor em tudo; e também todos os inspetores com o Reitor-
-Mor. Se conseguirmos trabalhar com este princípio, poderemos ficar certos
de que pusemos o funcionamento de nossa congregação em base sólida.40

Estando assim as coisas, o conceito de superior salesiano e a relação obe-


diência-ordem de Dom Bosco, tanto geral como local, devem ser entendidas
no contexto da sua experiência pessoal concreta, a experiência oratoriana do
fundador e da primeira comunidade salesiana. Os estatutos oficiais isolados
correm o risco de projetar uma imagem puramente autoritária e paternalista
dos superiores salesianos. Em outras palavras, o intérprete de um texto cons-
titucional não pode descuidar da busca de suas origens históricas e sociais, ou
seja, de como se formaram e como se desenvolveram através da experiência
do seu fundador e no contexto de uma determinada comunidade.
Isso é muito mais necessário levando-se em conta que as Constituições
Salesianas refletem, a cada passo, situações concretas da vida real. Não há uma
continuidade literária real entre as normas nos regulamentos do Oratório e
da Casa e as primeiras Constituições. Para desenhar a imagem do superior sa-
lesiano, em 1859-1860, Dom Bosco, apesar de ter utilizado algumas fontes,
buscou inspiração e conteúdos em sua experiência pessoal. Na realidade, foi-se
descrevendo a si mesmo com sua forte personalidade, educador dedicado e pai
entre os jovens que, talvez, jamais tenham conhecido a preocupação de um pai.
O estilo com que ele mesmo se convertera numa realidade familiar onipresente
no Oratório seria agora recriado em todos os futuros superiores da congregação.
O modelo de sua vida iria ser mais normativo do que a sua teologia.41
• Critério institucional
Este critério emerge da instituição do Oratório de Valdocco. Mencio-
namos que a imagem do superior salesiano nas Constituições deve ser con-
siderada no contexto da primeira comunidade salesiana. É preciso ampliar
esta referência até incluir toda a instituição do Oratório. Os breves artigos de
caráter jurídico-moral podem expressar este critério apenas de forma implícita

40
Capítulo Geral II, Sessão 9ª, 9 de setembro de 1880, G. Barberis, Anotações transcritas, ca-
derno I, 74, FDB 1858 C5.
41
Cf. P. Brocardo, Direzione spirituale e rendiconto. Roma: LAS, 1965, 150.

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Dom Bosco: história e carisma 2

em sua maior parte, mas Dom Bosco também lhe fez referências expressas,
tanto nas Constituições42 como em outros documentos.43 O Oratório, como
fato histórico único, impossível de ser repetido, sob a direção pessoal única
do fundador, é apresentado por Dom Bosco como um ponto carismático de
referência e norma para todas as futuras fundações salesianas. Este fato dá base
e sentido ao limitado texto das Constituições.

Fundamento teológico da autoridade do superior salesiano


Embora as Constituições descrevam a relação autoridade-obediência se-
gundo um modelo hierárquico vertical, não se deve esquecer o caráter espiritual
decisivo da relação e seu contexto de fé. Falamos, sobretudo, de obediência
religiosa. O elemento jurídico insere-se num contexto de fé, no qual a referência
consciente e livre à vontade de Deus tira a obediência não só do âmbito secular,
como também da esfera da mera eficácia social. Considera-se esta última como
necessária no exercício da autoridade para a gestão da comunidade religiosa e,
na obediência, submissão às normas, como o preço que se deve pagar para uma
boa vida de comunidade. Sem dúvida, a simples fidelidade ao espírito não pode
prescindir da fidelidade à regra; isso, porém, implica que a norma deve ser in-
terpretada à luz do espírito ou ver-se reduzida a mero jogo de fazer e não fazer.
A visão de fé, componente em si mesma da teologia da vida religiosa,
só pode ser sugerida nas frases de escassa inspiração teológica incrustadas em
grande parte num texto jurídico-ascético. Por isso, devemos ir além dessas
escassas referências para a avaliação correta do pensamento de Dom Bosco
sobre os fundamentos teológicos do binômio “autoridade-obediência”.44
• Dimensão teocêntrica e orientação cristológica
A glória de Deus e a salvação das almas constituem todo o programa
que abarca a vida e a obra de Dom Bosco. Este tema recorrente e suas va-
riações não precisam de documentação. Esta e outras expressões de fé, que
impregnam as Constituições não são um estereótipo, mas servem de suporte
também para a relação autoridade-obediência. O artigo primeiro e funda-
mental do capítulo sobre a “Forma da Sociedade” diz com clareza que a vida
religiosa não teria qualquer significado sem sua inspiração teológica. Lê-se no
rascunho de 1860:

42
G. Bosco, Costituzioni, 62-70.
43
“Considerado em si mesmo, o fim [desta sociedade] é continuar o que se fez no Oratório de
São Francisco de Sales nos últimos vinte anos ou mais” (Memorando de 1864, “Cose da notarsi”, em
G. Bosco, Costituzioni, 229).
44
Para os detalhes, cf. P. Stella, Spiritualità, 402-407; F. Desramaut, Don Bosco et la vie spirituel.
Paris: 1967, 192-194.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Todos os sócios vivem em comum, unidos unicamente pelo vínculo da cari-


dade fraterna e dos votos simples, que os une de tal maneira que formam um
só coração e uma só alma, para amar e servir a Deus pelas [pela prática das]
virtudes da obediência, da pobreza e por uma vida moral, santa.45

“Amar e servir a Deus” é um acréscimo feito por Dom Bosco de própria


mão às Constituições de Cavanis, modelo do qual se servia. No catecismo, a
expressão definia a finalidade da vida humana; Dom Bosco serve-se dela para
descrever a finalidade da vida religiosa.
A orientação teocêntrica das Constituições é afirmada diretamente no
início, nos dois primeiros artigos do capítulo relativo aos Fins da Sociedade.
O salesiano obriga-se a ser perfeito, ou seja, a levar uma vida religiosa total-
mente agradável a Deus, que consiste na imitação da caridade pastoral de
Cristo. Para Dom Bosco, o caminho da “perfeição religiosa” leva à aceitação
da vontade de Deus, à imitação das “virtudes” de Cristo, à prática perfeita
de todas as virtudes e ao serviço ao próximo mediante a obra de caridade.46
Os dois artigos afirmam:

1. O fim desta sociedade é reunir os membros sacerdotes, clérigos e


também leigos, com o fim de alcançar a perfeição pela imitação
das virtudes de nosso Divino Salvador, em especial na [no exer-
cício da] caridade pelos jovens pobres.
2. Jesus Cristo começou a fazer e ensinar; do mesmo modo, os mem-
bros começam aperfeiçoando-se a si mesmos mediante a prática
das virtudes interiores e exteriores e a aquisição da ciência; em
seguida, esforçar-se-ão por trabalhar em benefício do próximo.47

Dom Bosco, homem de ação mais do que teórico, pensava que o amor a
Deus e o amor ao próximo eram as duas faces de uma mesma moeda voltadas,
sobretudo, a criar em suas instituições um verdadeiro espírito de caridade pastoral
a serviço dos jovens e dos pobres. O coração da vida comunitária é o ideal evangé-
lico da caridade fraterna pela qual os irmãos, inclusive o diretor, vivem juntos em
espírito de simplicidade, de apoio recíproco, de compaixão, de bondade, compar-
tilhando as alegrias e as penas em comunhão: “Uma só alma e um só coração”.

G. Bosco, Costituzioni, 82 (Do, rascunho de 1860).


45

Cf. P. Stella, Spiritualità, 205-225; F. Desramaut, Don Bosco et la vie spirituel, passim. Dom
46

Bosco, como outros fundadores do século XIX, não faz distinção entre perfeição e santidade (podería-
mos dizer: vida genuinamente espiritual). Cf. P. Stella, Spiritualità, 437.
47
G. Bosco, Costituzioni, 72 (Do, rascunho de 1860).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Cristo é o modelo de imitação proposto ao salesiano: modelo de vir-


tude, de fazer e ensinar, de caridade pelos jovens, de perfeita obediência à
vontade de Deus.48 A ênfase é mais ascético-moral do que teológica; por isso,
Dom Bosco não se refere aos mistérios de Cristo e à sua implicação dou-
trinal. Nesse sentido, o único mistério proposto é a vinda de Cristo à terra
para obedecer em tudo à vontade de Deus. Exorta à imitação das virtudes de
Cristo. Contudo estas não devem ser entendidas como referidas às virtudes
como apresentadas nos tratados teológicos: teologais, cardeais, sobrenaturais,
naturais, pessoais, sociais etc. O que o artigo propõe à imitação de Cristo é a
forma de viver, falar e agir de Cristo, ou seja, a imitação total, ascética, moral,
dando ênfase à caridade pastoral de Cristo.

• Dimensão eclesial
Deixa-se o amar e servir a Deus, buscando e fazendo a vontade de Deus,
à responsabilidade de discernimento de cada indivíduo. Mas, uma vez que a
prudência humana está sujeita ao erro, requer-se uma orientação confiável,
como a proporcionada pela Igreja.
Na teologia de Dom Bosco e na do século XIX, Cristo oferece à huma-
nidade a Igreja católica em sua constituição hierárquica, precisamente como
mestra e guia. Por isso, a vida religiosa salesiana tem dimensão eclesial, espe-
cialmente quanto à finalidade, a forma e a missão.
Esta seção dos fundamentos teológicos da autoridade-obediência de-
monstra que buscar e fazer a vontade de Deus é o núcleo da vida religiosa e da
santidade. A ordem do superior que, como tal, deve buscar e fazer a vontade
de Deus, manifesta a vontade de Deus aos irmãos comprometidos na obra de
caridade. A prática das Constituições aprovadas pela Igreja garante ao irmão
que ele está realizando a vontade de Deus. Esta é a imitação das virtudes de
Cristo, que veio fazer a vontade de Deus e servir aos jovens e aos pobres.

Missão e comunidade, conteúdo da autoridade do superior


O superior como centro de unidade da santidade pessoal do sócio e da
missão apostólica da comunidade.
As Constituições situam o superior salesiano nitidamente à frente da co-
munidade. Dom Bosco estava preocupado com a unidade de objetivo, espírito
e método, convencido de que a eficácia no trabalho de caridade e a fideli-
dade à inspiração do alto, só podiam ser mantidas mediante essa unidade.

48
Estas referências aparecem nas primeiras Constituições, ver G. Bosco, Costituzioni, 72, 58, 92.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

Por isso, nas Constituições, o superior está no alto da estrutura da comuni-


dade, como centro e catalisador da unidade.49 O que acontece em razão da
amplidão do mandato recebido, da obrigação que lhe cabe de ser perfeito
observante das regras e por ter sido eleito guardião e intérprete das Cons-
tituições e da tradição salesiana. Seu trabalho, portanto, é unir todos os ir-
mãos com ele e entre si e animá-los a conseguirem o duplo objetivo comum,
a salvação da alma e o êxito da missão.
À base dessa concepção encontram-se, então, fatores de ordem pessoal,
social, psicológica e espiritual. A unidade foi uma das prioridades mais
importantes de Dom Bosco nos primeiros tempos (1848-1849): “Devo ter
duas coisas: liberdade de ação e pessoas que estejam totalmente à minha
disposição”.50 Em um sermão depois da aprovação da Sociedade (1869),
ele disse:

Optamos por viver juntos in unum. O que isso significa? Em poucas palavras,
isso significa primeiramente que devemos ser um [uma coisa só], como um
corpo; em segundo lugar, que devemos viver como um [uma coisa só] no
espírito; e em terceiro lugar, que devemos estar unidos na obediência [...].51

Em anos posteriores, Dom Bosco repetirá com frequência o mesmo


dos anos anteriores. Ao expressar sua insatisfação com a situação no Ora-
tório, disse:

A tarefa do diretor é mandar. Por isso, deve estar familiarizado com as regras
que se referem a seu cargo e, não menos, com as que se referem aos demais
em suas diversas ocupações de trabalho. Deve existir apenas um único centro
de comando. Tem havido uma ruptura progressiva desta unidade de direção
[...]. Que esta unidade seja restabelecida como antes, um homem no timão
[...]. Nesse cargo, uma pessoa, o diretor.52

49
Cf. J. Aubry, II direttore salesiano secondo la nostra tradizione nel Capitolo Generale XXI. Con-
tributo di studio allo schema III del CG XXI. Roma: Litografado, 1977, 59-126. Ver uma versão do
mesmo, em J. Aubry, Rinnovare la nostra vita salesiana oggi. Vol 2. Turim: LDC, 1981, 32-51.
50
Annali I, 9: palavras atribuídas a Dom Bosco em 1849 contra a proposta de confederar os
Oratórios de Turim.
51
ASC A025: Prediche, 12 de março de 1869. Ver a conferência editada em MB IX, 571ss;
ali, as palavras são: “Nós optamos por viver in unum, juntos. O que significa viver juntos? Em poucas
palavras, isso significa in unum locum, in unum spiritum, in unum finem agendi, unidade de lugar, de
espírito e de finalidade”.
52
Reunião do Capítulo Superior, 3 de junho de 1884, Lemoyne, Anotações, 14b-15a, FDB
1880 D6-7; também MB XVII, 189ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Esta concepção coloca a questão do modo como Dom Bosco via a obe-
diência: como fim em si mesma ou como meio de autodisciplina e de progres-
so na perfeição. Os artigos constitucionais demonstram com certeza que ele
tinha em consideração o valor espiritual dos atos realizados pela obediência.
Mas parece que em sua mente o superior salesiano exerce a autoridade não
para travar o humano e fomentar o espiritual em seus irmãos, mas em vista da
missão, em prol da obra de caridade. A proverbial amabilidade e afabilidade
de Dom Bosco, como também seu senso prático, eliminam uma interpreta-
ção demasiado literal de certas expressões nos artigos sobre a obediência. Em
suas Lembranças confidenciais aos diretores, ele escreve:
Procura não mandar nada além das forças de teus subordinados ou [que seja]
contrário às suas inclinações. Mas, esforça-te em favorecê-los, confiando-lhes
preferivelmente as tarefas que sabes serem mais do agrado deles [...]. Ao man-
dar, sê sempre amável e atencioso. Que não haja ameaças, ira e, muito menos,
violência através do que digas ou faças [...].53

Aparentemente, o valor estritamente ascético da obediência, a morte a si


mesmo, como também outras práticas ascéticas (o capítulo das faltas em uso
em comunidades religiosas mais antigas) estavam ausentes no seu pensamen-
to e no seu senso moral.
• O superior, o primeiro a obedecer a Deus e à regra
As Constituições em seu conjunto e, em particular os artigos sobre a
obediência, falam da obediência do irmão ao superior. A ideia geral é convi-
dar o irmão a considerar a obediência na fé como vontade de Deus.
Entretanto, uma leitura cuidadosa revela algo mais. 1o O superior não é
livre de mandar ou não mandar. Deve ordenar o que as Constituições pres-
crevem para a realização da missão. 2o Embora as Constituições lhe concedam
grandes poderes, o superior só tem as faculdades que nelas lhe são conferidas.
3o As faculdades do superior, antes de serem definidas pelas Constituições,
são-no por uma tradição viva que se identifica com Dom Bosco e o Oratório.
Só quando a Santa Sé aprovou a regra, Dom Bosco submeteu-lhe nitidamen-
te o superior. 4o Após a aprovação das Constituições (1874), a tradição viva
deve ser preservada para a sua correta interpretação.
Depois da aprovação da Sociedade (1869) e das Constituições (1874),
Dom Bosco empenhou-se numa catequese continuada mediante conferências
nas quais a obediência era o tema principal. Em suas intervenções, Dom Bosco
apresenta o Reitor-Mor como encarnação da regra. E continua, em seguida:

53
MB X, 1046.

540

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

O que dissemos sobre o Reitor-Mor, em relação a toda a Congregação,


aplica-se também a cada diretor em sua própria casa. Ele deve estar unido
ao Reitor-Mor, e todos os membros de sua casa devem viver unidos a ele.
Deve, além disso, personificar a regra. A regra, não ele, será o símbolo da
autoridade [...]. Falai sempre aos vossos irmãos desta maneira: “Estas coisas
devem ser feitas. É obrigatório que todos façam a própria parte porque a
regra o exige [...]”.54

Quando Dom Bosco anunciou aos irmãos numa circular de 1885 que o
padre Rua seria seu vigário, escreveu:

O vigário tem o encargo especial de fazer com que, quando eu me for, os


que continuarem sejam fiéis às tradições que nos guiaram até agora. As tra-
dições de que falo são as normas práticas que nos ajudam a compreender,
explicar e cumprir fielmente a regra. Elas conformam o espírito e a vida da
Pia Sociedade.55

Com a Lei de Deus, norma absoluta, com as leis da Igreja, guias no


caminho, com as Constituições e a tradição salesiana viva, a distinção entre
superior-inferior perde sua polaridade, pois ambos se convertem em súditos
de uma autoridade superior.
• Estilo salesiano do exercício da autoridade
Como homem de seu tempo e em consonância com os modelos e as
fórmulas jurídicas oficiais, Dom Bosco escreveu artigos bastante formais e
funcionais sobre a obediência; mas seu estilo pessoal de exercer a autoridade
confere-lhes uma luz completamente nova.
1. Dom Bosco queria que a comunidade dos salesianos e jovens do
Oratório fosse uma família impregnada da sua marca, o “espírito
de família”. Sua base era o método de educação, o Sistema Preven-
tivo. O Oratório era uma casa onde reinavam a espontaneidade e
a liberdade. Bastaria recordar, entre outros testemunhos, a famosa
Carta de Roma, de 1884.
2. Dom Bosco e depois dele todos os superiores salesianos exercem
sua autoridade como pais, irmãos e amigos. Este estilo une as mo-
tivações humanas e cristãs numa expressão de amor e de entrega.

54
Conferência anual de São Francisco de Sales de 1876, em MB XII, 80s.
55
MB XVII, 281s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

As “práticas de piedade” na edição latina oficial das Constituições Salesianas de 1874.

4. O capítulo sobre as práticas de piedade


Este capítulo não consta na primeira etapa (Ar, 1858). Foi introduzido
pela primeira vez na segunda etapa (Do, 1860). A fim de compará-los e ana-
lisá-los, selecionamos os textos das etapas segunda (Do, 1860), terceira (Gb,
1864) e sexta (Q, 1874).

542

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

II: Do (1860) italiano III: Gb (1864) italiano VI: Q (1874) latim


1. A vida ativa com a qual a 1. A vida ativa com a qual a 1. A vida ativa com a qual a nos-
nossa sociedade está compro- nossa sociedade está principal- sa sociedade está comprome-
metida priva seus membros da mente comprometida priva tida principalmente priva seus
oportunidade de participar de seus membros da oportunidade membros da oportunidade de
muitas práticas em comum. de participar de muitas práticas participar de muitas práticas em
Eles [por isso] se esforcem em comum. Eles [por isso] se comum. Eles [por isso] se esfor-
para suprir [esta deficiência] esforcem para suprir [esta de- cem para suprir [esta deficiên-
com o exemplo recíproco e o ficiência] com o exemplo recí- cia] com o exemplo recíproco
perfeito cumprimento dos de- proco e o perfeito cumprimen- e o perfeito cumprimento dos
veres gerais do cristão. to dos deveres gerais do cristão. deveres gerais do cristão.
2. Todo sócio receberá a 2. Todo sócio receberá a cada 2. Os sócios receberão o sa-
cada semana o sacramento semana o sacramento da Peni- cramento da Penitência a cada
da Penitência por um con- tência por um confessor desig- semana por confessores apro-
fessor designado pelo reitor. nado pelo reitor. vados pelo ordinário e que
[Nenhum] Os sacerdotes deverão cele- exercem esse ministério com
brar a Santa Missa todos os os sócios com a autorização do
dias e quando não o possam Reitor. Os sacerdotes deverão
fazer, esforçar-se-ão em aju- celebrar a Santa Missa todos
dar a missa. Os clérigos e ir- os dias. Os clérigos e os sócios
mãos coadjutores assistirão coadjutores procurarão assistir
à Santa Missa todos os dias à missa diária, receber o santo
e procurarão receber a Santa sacramento da Eucaristia, ao
Comunhão ao menos uma menos todos os dias festivos, e
vez por semana. todas as quintas-feiras.
O decoro pessoal, a pronún- 3. O decoro pessoal, a pro- O decoro pessoal, a pronúncia
cia clara, devota, distinta das núncia clara, devota, distinta clara, devota, distinta das pala-
palavras dos ofícios divinos, das palavras dos ofícios divi- vras dos ofícios divinos, a mo-
a modéstia no falar, olhar e a nos, a modéstia no falar, olhar déstia no falar, olhar e a maneira
maneira tanto dentro como e a maneira tanto dentro como tanto dentro como fora de casa,
fora de casa, devem ser as fora de casa, devem ser as ca- devem ser tão proeminentes em
características distintivas de racterísticas distintivas de nos- nossos associados que se distin-
nossos sócios. sos sócios. gam dos demais em particular
por estes [aspectos].
3. Haverá todos os dias não 4. Haverá todos os dias não 3. Haverá todos os dias não
menos de meia hora de ora- menos de meia hora de oração menos de meia hora de oração
ção mental e vocal, exceto mental e vocal, exceto quando mental e vocal, exceto quando
quando se estiver impedido. se estiver impedido. se estiver impedido pelo exer-
cício do ministério sagrado.
[Nenhum] Neste caso, suprirão com jacu- Neste caso, suprirão com ora-
latórias mais frequentes e ofe- ções jaculatórias, tão frequentes
recendo a Deus com maior in- quanto for possível, e oferecendo
tensidade de afeto os trabalhos a Deus com maior fervor e amor
que lhe impedem os exercícios os trabalhos que lhes impedem os
ordinários de piedade. exercícios de piedade prescritos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

7. O Reitor terá o poder de 9. O Reitor terá o poder de [8. Provisão de dispensa eliminado]
dispensar destas práticas nas dispensar destas práticas nas
ocasiões e às pessoas que jul- ocasiões e às pessoas que julgar
gar melhor no Senhor. melhor no Senhor.
8. [Sufrágios (Missa e Sa- 10. [Sufrágios (Missa e Sagrada [8. Sufrágios por um salesiano
grada Comunhão) por um Comunhão) por um salesiano falecido; oferecem-se 10 missas]
salesiano defunto em toda a defunto em toda a congregação]
congregação]
9. [Sufrágio pelo pai fale- [11. Sufrágios pelo pai faleci- 9. [Sufrágios (Missa e Sagrada
cido de um salesiano nessa do de um salesiano nessa casa Comunhão) por um pai faleci-
casa particular] particular] do de um salesiano nessa casa
em particular]
[Nenhum] 12. À morte do Reitor [-Mor] 10. À morte do Reitor [-Mor]
todos os membros da Congre- todos os membros da Congre-
gação oferecerão duplos sufrá- gação oferecerão sufrágios [por
gios [por duas razões:] 1) em duas razões:] 1) em agradeci-
agradecimento pelas penas e mento pelas penas e trabalhos
trabalhos suportados no go- suportados no governo da So-
verno da Sociedade; 2) para ciedade; 2) para que se livre
que se livre das penas do Pur- das penas do Purgatório das
gatório das quais podemos ter quais podemos ter sido a cau-
sido a causa. sa. [Omite-se “duplos”]
[Nenhum] [Nenhum] 11. [Sufrágio por todos os sale-
sianos defuntos na festa de São
Francisco de Sales]

Nas etapas sétima (T, 1874-1875, latim) e oitava (V, 1875, italiano),
editadas oficialmente por Dom Bosco para os salesianos, ele acrescentou
estes artigos:

12. Cada um terá em muita consideração especialmente as duas


coisas seguintes: (1) cada um evite cuidadosamente contrair hábitos
de qualquer tipo, mesmo de coisas indiferentes; e (2) cada um man-
tenha sua roupa, cama e quarto limpos e dignos. Que todos afastem
com todas as suas forças a afetação estúpida e a ambição. Nada ador-
na mais um religioso do que a santidade de vida, pela qual em tudo
se converte em exemplo para os demais.
13. Cada um esteja disposto a sofrer, se for necessário, o calor, o frio,
a sede, a fome, o cansaço e o desprezo quando isso contribuir para
a maior glória de Deus, o bem espiritual dos outros e a salvação da
própria alma.

544

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

As exortações contidas nos dois artigos remontam aos artigos básicos dos
capítulos sobre o Fim, a Forma e as Práticas de piedade nos quais se faz um
apelo à verdadeira consagração religiosa interior, à perseverança e ao esforço
sem restrições e à dedicação à missão.

As práticas de piedade: a primazia da vida ativa

O exercício da caridade pastoral e a vida de oração dos salesianos


Para explicar a espiritualidade dos cooperadores salesianos, Dom Bosco
escreveria mais tarde:

Esta associação deve ser considerada como uma ordem terceira tradicio-
nal, mas com a diferença de que, enquanto naquelas a perfeição se faz
consistir em exercícios de piedade, nesta o objetivo principal é a vida ativa
e o exercício da caridade para com o próximo, especialmente para com os
jovens em perigo.56

Este mesmo princípio está subjacente ao capítulo sobre as práticas de


piedade das Constituições Salesianas. As Constituições de 1858 não mencio-
navam as práticas de piedade. Aparentemente, Dom Bosco não considerava
necessário especificar o que já se fazia. O capítulo foi acrescentado em 1860,
e desenvolvido em 1864 e posteriormente.
A estrutura do capítulo é digna de nota. O rascunho de 1860 iniciava
com dois artigos fundamentais, mas continha três no de 1864. Seguiam-se
a esses artigos algumas disposições específicas sobre a oração vocal e mental
cotidiana, o terço diário e a leitura espiritual, o jejum da sexta-feira, o retiro
mensal ou exercício da boa morte, a faculdade de o Reitor conceder dis-
pensa das práticas à sua discrição e os sufrágios pelos salesianos defuntos e
pelos pais falecidos. Em 1864, acrescentou-se um artigo sobre os exercícios
espirituais anuais.57

56
G. Bosco, Cooperatori salesiani, ossia un modo pratico per giovare al costume ed alla civile società.
San Pier d’Arena: Tip. Salesiana, 1876, em OE XXVIII, 260.
57
Até 1866 os salesianos faziam os retiros com os meninos; a partir desse ano, farão separada-
mente na nova casa adquirida em Trofarello. Cf. MB VIII, 445ss.

545

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Dom Bosco: história e carisma 2

Artigos básicos
Do (1860) Gb (1864)
1. (I) A vida ativa em que a nossa sociedade 1. (I) A vida ativa em que a nossa sociedade
está comprometida priva seus membros da está principalmente comprometida priva seus
oportunidade de participar de muitas prá- membros da oportunidade de participar de
ticas em comum. Eles [por isso] esforcem- muitas práticas em comum. Eles [por isso]
-se em suprir [esta deficiência] com o bom esforcem-se em suprir [esta deficiência] com o
exemplo recíproco e o perfeito cumprimen- bom exemplo recíproco e o perfeito cumpri-
to dos deveres gerais do cristão. mento dos deveres gerais do cristão.
2. (II) Cada sócio receberá todas as sema- 2. (II) Cada sócio receberá todas as semanas o
nas o sacramento da Penitência por um sacramento da Penitência [administrado] por
confessor designado pelo Reitor. um confessor designado pelo Reitor. Os sacer-
dotes deverão celebrar a Santa Missa todos os
dias e quando não o puderem fazer, esforçar-
-se-ão por assistir a missa. Os clérigos e irmãos
coadjutores assistirão à Santa Missa todos os
dias e procurarão receber a Santa Comunhão,
ao menos uma vez por semana.

3. (III) A compostura pessoal, a pronún- 3. (III) A compostura pessoal, a pronúncia


cia clara, devota, distinta das palavras dos clara, devota, distinta das palavras dos ofícios
ofícios divinos, a modéstia no falar, olhar divinos, a modéstia no falar, olhar e o porte
e o porte tanto dentro como fora de casa, tanto dentro como fora de casa, devem ser as
devem ser as características distintivas de características distintivas de nossos sócios.
nossos sócios.

À primeira vista, estes artigos parecem, em seu conjunto, não usuais como
introdução a um capítulo sobre as práticas de piedade. Contudo, estão total-
mente em consonância com a compreensão de Dom Bosco sobre a vida religio-
sa. Funcionam, de fato, como uma espécie de apoio à vida de oração da comu-
nidade salesiana. Um breve comentário sobre cada seção haverá de confirmá-lo.
A seção [I] expressa a máxima prioridade que Dom Bosco quer dar à vida
ativa, como uma vida dedicada ao exercício da caridade pastoral como a de
Cristo. Stella comenta:
Tem-se aqui certa inovação na doutrina tradicional da vida religiosa. Dado
que a vida religiosa é um estado de perfeição, deverá manifestar-se em termos
de um maior compromisso individual e coletivo. Contudo, o valor ao qual
Dom Bosco dá um valor fundamental é a vida ativa, que se inspira na caridade
e em suas exigências. Parece que ele atribui apenas um valor subordinado à
celebração litúrgica e a outras formas de oração, que poderiam ser substituídas
para permitir o exercício corajoso e fecundo da caridade pelo próximo.58

58
P. Stella, Spiritualità, 34.

546

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

A vida ativa à qual Dom Bosco dá prioridade não é simplesmente uma


vida muito atarefada, mas uma vida dedicada ao apostolado. A diferença deve
ser enfatizada. Em recentes escritos espirituais, a ação social é, às vezes, men-
cionada como uma forma de oração contemporânea. A ação social, como for-
ma de oração, não deve ser equiparada à síndrome do “trabalho é oração”, re-
pelida em várias ocasiões na história da espiritualidade cristã como ativismo.
A oração em forma de ação social é, em primeiro lugar, evangélica no
sentido pleno do termo. É a colocação em prática da exortação de Jesus e do
apóstolo Paulo à oração constante (cf. Lc 18,1; 1Ts 5,17). Ela é destinada
a ser outra forma de orar pela vinda do Reino de Deus, pela realização da
vontade de Deus, pelo necessário pão de cada dia, pela libertação do mal que
escraviza a humanidade. Dessa forma, a ação social implica a proclamação
do Evangelho em sua integridade, inclusive no alívio da miséria humana.59
A perspectiva de Dom Bosco, que prioriza a vida ativa, é ainda mais ex-
plícita ao exigir a imitação da caridade pastoral de Cristo. Uma das resoluções
tomadas na sua ordenação expressava o seu compromisso no início do sacer-
dócio: “Não evitarei o sofrimento, o esforço, nem sequer as humilhações,
quando se tratar de salvar almas”.60 No primeiro artigo do capítulo sobre o
Fim da Sociedade, ele escreve que a santidade salesiana é obtida “mediante a
imitação das virtudes do nosso Divino Salvador, especialmente n[o exercício
d]a caridade para com os jovens pobres”.61
Se as formas de oração da comunidade são secundárias, embora impor-
tantes, poderiam ser reduzidas em número e duração para permitir a entrega
total ao primeiro e essencial exercício, o da caridade.
O primeiro artigo do capítulo sobre a Forma sublinha a importância da
comunidade e dos meios pelos quais Deus é amado e servido. Aqui, Dom
Bosco enaltece dois fatores que contribuem conjuntamente, ou seja, o bom
exemplo recíproco e o cumprimento dos deveres de um bom cristão, expres-
são já utilizada no texto de 1864. Os dois estão estreitamente relacionados e
funcionam quase como uma hendíadis.62 O bom exemplo recíproco surge
do estilo de vida e da maneira de agir e falar que proporcionam apoio moral
e espiritual por meio da solidariedade. Isso constrói e fortalece a comunidade

59
Cf. Lc 7,22: ministério de Jesus a favor dos enfermos e dos pobres.
60
Cf. F. Motto, Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel Sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli salesiani
(Testamento spirituale) (Piccola Biblioteca dell’ISS, 4). Roma: LAS, 1985.
61
Texto de 1860 (Do), em G. Bosco, Costituzioni, 72.
62
“Figura que consiste em exprimir por dois substantivos, ligados por conjunção aditiva, uma
ideia que usualmente se designa por um substantivo e um adjetivo ou complemento nominal”, em
Dicionário Eletrônico Houaiss (Nota do Tradutor).

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Dom Bosco: história e carisma 2

como Dom Bosco a concebia, unindo os irmãos num propósito único, infla-
mando o fervor e criando uma atmosfera de oração. O exercício “dos deveres
de um bom cristão”, ou seja, viver um projeto de vida cristã baseada no en-
sinamento e na experiência da fé da Igreja católica tem o mesmo efeito, pois
expressa um compromisso pessoal com o amor e o serviço a Deus.
Na seção [II], a prioridade é dada ao sacramento da Reconciliação, esta-
belecido aqui como fundamento e não só como “prática de piedade”. Ele é o
meio de conversão contínua e sinal da vida da graça.
Dom Bosco, no rascunho de 1860, não menciona a celebração litúrgica
da Eucaristia. Dá como certa sua celebração cotidiana. Em 1864 ele faz men-
ção à celebração diária da Eucaristia ou à sua assistência, com a comunhão,
ao menos uma vez por semana para os clérigos e coadjutores. Colocada de-
liberadamente no artigo segundo, a Eucaristia é equiparada ao sacramento
da Reconciliação como fundamento, não só como “prática”. Juntos, formam
um binômio que expressa a reconciliação e a graça para o indivíduo e para a
comunidade salesiana.
Por último, na seção [III] dá-se prioridade a uma série de qualidades ou
características que identificam alguém como salesiano. Dom Bosco parece
querer dizer que, antes do cumprimento das práticas de piedade ou orações, o
salesiano deve ser um cristão respeitável, como também uma pessoa de oração
e devota, que age como tal. Deve dar provas disso com a conduta habitual
exemplar, o modo de rezar, falar, comportar-se.

Práticas individuais de piedade


Após os artigos fundamentais, quatro artigos especificam algumas pou-
cas e simples práticas de piedade.
1. A primeira é a oração diária mental e vocal. As Constituições de
1860 previam apenas meia hora de oração mental e vocal conjuntamente.
Quer por algum conselho quer por maior reflexão, Dom Bosco ampliou o
tempo para uma hora conjuntamente. Assim, no rascunho de 1864, Dom
Bosco escrevia:

4. Haverá todos os dias não menos de uma hora de oração mental e vocal
[conjuntamente], a não ser que alguém se veja impedido pelo exercício do
sagrado ministério. Nesse caso, serão supridas com orações jaculatórias, tão
frequentes quanto possível, e oferecendo a Deus com maior intensidade de
afeto os trabalhos que lhe impedem os exercícios de piedade prescritos.

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

A menção do “sagrado ministério” tem precedente.63 Também não se


exige do salesiano que faça pessoalmente mais tarde essa prática. O “suprir”
consiste em sua união de oração com Deus e no maior fervor enquanto exerce
o ministério ou apostolado.
A oitava observação de Savini-Svegliati, de 1864, sugeria que sempre se
deveria dedicar mais de uma hora à oração comum, mas nada ficou resolvido.
O texto aprovado em 1874 estabelece meia hora para a oração mental e meia
hora para a oração vocal; tudo o mais continua da mesma forma.
2. Outras práticas de piedade são a récita do terço, a leitura espiritual
diária, o jejum da sexta-feira em honra da Paixão e os retiros espirituais mensais
no qual se faz o exercício da boa morte.
A disposição sobre os exercícios espirituais anuais aparece pela primeira
vez no rascunho de 1864. A observação vinte e um de Bianchi-Vitelleschi e,
mais tarde, a dos cardeais da Comissão Especial, exigia os exercícios espirituais.

Gb (1864) Q (1874)
8. A cada ano, cada um deverá fazer exercí- 7. Todos os anos, cada um [fará um] retiro
cios espirituais que terminarão com a confis- de uns dez ou, ao menos, seis dias para que
são anual. Todos, antes de serem recebidos na possa dedicar-se exclusivamente à oração
Sociedade dedicarão alguns dias a um retiro [pietati] e, ao concluí-los, deverá purificar-
espiritual e farão uma confissão geral. -se devidamente com a confissão anual dos
pecados. Antes de serem recebidos na Socie-
dade, e antes de fazerem os votos, todos de-
dicarão dez dias aos exercícios espirituais e se
purificarão com uma confissão geral.

A faculdade de o superior dispensar


O último artigo, importante, concedia ao Reitor [Diretor] o poder de
dispensar das práticas de piedade conforme lhe parecesse melhor. Dizia sim-
plesmente: “O Reitor terá o poder de dispensar destas práticas nas ocasiões e
às pessoas que julgar melhor no Senhor”.
O artigo concede uma dispensa pura e simples. Nada se diz sobre suprir
a prática de piedade de que se trata. Mais uma vez, e esta é evidentemente a
intenção do artigo, dá-se prioridade ao exercício da caridade, à missão.

63
“Ministério sagrado”, tomado literalmente, refere-se apenas aos sacerdotes. De fato, os leigos
pertencentes à Sociedade não recebem muita atenção nas Constituições. Mas é evidente que a intenção
de Dom Bosco é falar das exigências da missão salesiana em todas as suas formas (exercício ministerial,
apostolado, obra de caridade).

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Dom Bosco: história e carisma 2

A observação vinte e sete de Bianchi-Vitelleschi, de 1873, repelia esta


disposição não usual, embora as autoridades pensassem que se referia somen-
te aos exercícios espirituais anuais. Dom Bosco apressou-se em garantir-lhes
que se referia a todas as práticas de piedade. A disposição foi imediatamente
eliminada antes da aprovação em 1874.

Comentário final
Estas normas sobre a oração da comunidade, com todas as suas deficiên-
cias, insistem que o religioso salesiano deve chegar a uma espiritualidade pessoal
básica, se é que os exercícios de piedade da comunidade hão de significar alguma
coisa. A vida ativa do ministério ou apostolado também tem prioridade sobre
todos os exercícios. Por último, o acréscimo do poder de o superior dispensar,
completa totalmente o quadro. A imagem que emerge é a de um religioso
liberado verdadeiramente para o apostolado. O religioso salesiano vincula-se
de fato à comunidade pela caridade e pelos votos, mas está totalmente dispo-
nível para o apostolado a qualquer momento, sem que se veja impedido nem
mesmo pelos exercícios de piedade. O exercício vigoroso e fecundo da caridade
para com o próximo goza de prioridade absoluta.

5. Conclusão geral
Nossa análise de alguns textos das Constituições de Dom Bosco realçou
algumas características que vão além da mera tradição jurídica e das simples
normas e revelam a profunda concepção de Dom Bosco sobre a natureza da
vida religiosa. Essas características eram uma novidade no seu tempo e conti-
nuam a ser novas em nosso tempo, mesmo depois do Vaticano II.
O aspecto predominante ao qual se dá prioridade absoluta é a caridade
pastoral exercida à imitação do amor de Cristo, o Bom Pastor. Esta caridade
ardente e ativa, como extensão da obra salvífica de Cristo e da Igreja, sobres-
sai como a característica mais distintiva da Sociedade Salesiana, a “congrega-
ção oratoriana”, criada em favor dos jovens, especialmente dos mais pobres e
mais desprezados.
Dom Bosco não expressou o fim da Sociedade Salesiana em termos de
“ministério”, “apostolado” ou “missão” ou de qualquer outro conceito teoló-
gico, mas em termos de “exercício prático do amor ao próximo”. É a virtude
teológica da caridade que se manifesta numa vida de serviço aos necessitados.
Quanto à vida comunitária dos membros, ele a concebia como uma famí-
lia unida pelo amor prático, não só unidos pelos laços sociojurídicos, mas

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Análise de alguns textos das primeiras Constituições Salesianas. Segunda parte

por viverem em “comunhão”. Ele citava o exemplo da primeira comunidade


cristã, como descrita nos Atos dos Apóstolos, 2 e 4. Dom Bosco certamente
concebia a vida de comunhão dos membros como valor teológico e espiritual
em si mesmo, mas sempre em função do exercício da “prática da caridade
para com o próximo”.
Uma ideia comum entre o povo, propalada pela imprensa anticlerical,
era que os religiosos e monges, o clero em geral, eram pessoas ociosas e esté-
reis, viviam de propriedades e benefícios improdutivos (“mãos mortas”) para
a sociedade em seu conjunto. Em contraposição, Dom Bosco pretendia apre-
sentar ao povo um novo, “moderno”, modelo de religioso, que era também
um cidadão livre no exercício do seu direito de associação em obras de cari-
dade. Os exercícios religiosos, as práticas de piedade, eram os mais simples e
eram subordinados às exigências do apostolado. A oração e a retidão de inten-
ção acompanhariam e sustentariam o exercício da caridade, “pois o salesiano
seria um ‘contemplativo na ação’”.
Dom Bosco não foi um teórico da vida religiosa, embora seja justo dizer
que sua visão era mais profunda do que qualquer teoria. Em linha com seu
enfoque prático, falava da vida religiosa segundo a orientação de seus auto-
res favoritos, como Santo Afonso e o padre Rodríguez. Com essa orientação
prática, mas com um enforque profundamente inteligente, Dom Bosco foi
capaz de criar um tipo de religioso “moderno”, tal como brota das simples e
modernas Constituições, por mais que, no final, ficassem fixadas num mo-
delo tridentino.

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Capítulo XVII

A LEGISLAÇÃO LIBERAL SOBRE A ESCOLA


E A ESCOLA DO ORATÓRIO

Antes de enumerar e descrever as diversas fundações salesianas fora de


Turim é oportuno comentar brevemente as reformas liberais da escola, pois
deram forma ao contexto social da primeira expansão da obra salesiana.

1. A legislação educacional nos tempos da Revolução


Liberal e da unificação da Itália

Situação da escola com a reforma de Carlos Félix (1792-1849)


Em 23 de julho de 1822, o rei Carlos Félix promulgou uma reforma
escolar para o Reino da Sardenha.1 O principal objetivo da regulamentação
da escola era colocar um pouco de ordem na sua situação caótica; além disso,
introduziu algumas reformas adequadas, baseadas no sistema napoleônico,
como a educação obrigatória no nível primário. Contudo, mais uma vez, a
educação devia ser dada num ambiente estritamente confessional católico,
sob o pleno controle da Igreja. Foi neste sistema que Dom Bosco recebeu a
educação primária e secundária.
Apesar de algumas melhorias, a reforma da escola de 1822 não difere
muito do sistema anterior; continuava a ser um sistema paternalista no qual a
religião se convertia em ferramenta de controle político e em norma absoluta.
Além do seu caráter confessional um tanto opressivo, o sistema era imper-
feito, pois obrigava as administrações locais a responsabilizar-se pelo custo
financeiro da criação e funcionamento das escolas primárias municipais, sem

Carlos Félix, Regie Patenti colle quali Sua Maestà approva l’annesso Regolamento per le Scuole
1

[…] in data del 23 di luglio 1822. Turim: Imprensa Real, 1822, 4.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

lhes proporcionar os correspondentes recursos de dinheiro e de pessoal. Isso


explica, de um lado, a má qualidade da educação primária e, de outro, a ma-
trícula reduzida em todo o sistema. Em 1825, em Turim, cidade de uns 130
mil habitantes, havia tão somente 850 meninos, e não meninas, matriculados
nas escolas primárias. Havia apenas 6 escolas desse tipo com um total de 17
professores, além de os estudantes terem de pagar a matrícula. As pessoas
de boa posição contratavam professores particulares, em geral padres, para
educar seus filhos.2

O progresso na educação pública sob o rei Carlos Alberto


(1831-1848)
O despertar cultural promovido sob o reinado de Carlos Alberto na
década de 1840 provocou uma nova consciência da necessidade da educa-
ção pública. Esse movimento foi impulsionado e reforçado pela presença no
Piemonte, em Turim de modo especial, de refugiados políticos provenientes
de todas as partes da Itália, especialmente da Lombardia, depois de 1848.3
A primeira preocupação foi formar professores adequados. Em 1844,
os codiretores da Autoridade da Reforma (o bispo Dionísio André Passio, de
Alessândria, e o cavalheiro Luís de Provana Collegno) chamaram o educador
Ferrante Aporti (1792-1857) para dar aulas de agosto a outubro na Escola de
Método, criada recentemente, uma espécie de escola normal para a formação
de professores; o curso foi um sucesso total. Mas, por causa das ideias liberais
de Aporti na educação, dom Fransoni proibiu a participação dos seus padres.
As Memórias Biográficas fazem saber que o arcebispo pediu a Dom Bosco para
assistir às aulas e informá-lo.4

2
Em 1842, 328 das 1.752 localidades municipais do Reino ainda não possuíam a escola
primária. Confiava-se a educação pública às associações religiosas, pias sociedades e congregações re-
ligiosas, pois muitas delas mantinham escolas primárias diurnas e noturnas, especialmente para os
pobres. Em 1850, depois da reforma liberal Boncompagni, de 1848, as escolas mantidas por grupos de
beneficência chegavam a 620, das quais apenas 93 recebiam subsídios do Estado.
3
Para conhecer o relacionamento de Dom Bosco com alguns desses refugiados, ver MB IV, 414.
4
Lemoyne, que critica Aporti, conta o fato em MB II, 211ss. Há quem duvide que Dom
Bosco tenha assistido às aulas de Aporti. Ferrante Aporti (1791-1858), padre e educador, estudara
com João Henrique Pestalozzi e com o jesuíta milanês João Domingos Romagnosi. Em 1829, Aporti
fundou em Cremona o primeiro jardim de infância da Itália; seu objetivo era garantir um lugar seguro
e educação inicial às crianças. Entendia a educação como estímulo de hábitos de amor, ordem e disci-
plina na criança. Sob sua inspiração, em muitos lugares do norte da Itália, surgiram jardins da infância
de iniciativa privada. Embora oferecessem educação religiosa e moral e insistissem no respeito à auto-
ridade e às leis, um setor conservador da Igreja os via como perigosos. Por longo tempo, os jardins da
infância foram proibidos nos Estados Pontifícios.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Depois de 1844, as aulas de método foram criadas em muitas cidades


do reino, e os professores, padres e também religiosos, deviam passar por um
exame para terem um título.5 Enquanto isso, a Constituição entrou em vigor
em 4 de março de 1848, no reinado de Carlos Alberto. De acordo com a Lei
de Emancipação, valdenses e judeus foram admitidos nas escolas públicas.
Em 25 de agosto de 1848, os jesuítas, socialmente identificados como con-
trários ao movimento liberal, foram expulsos do Reino da Sardenha e suas
escolas com internato converteram-se em escolas estatais. Eles controlavam
grande parte da educação secundária no reino.

A reforma Boncompagni (1848)


Foi nesse estágio da Revolução Liberal que se finalizou a revisão comple-
ta do sistema escolar e de sua administração central. A antiga Autoridade da
Reforma foi abolida e substituída pelo recém-criado Ministério da Educação.
A educação e a administração das escolas estavam diretamente sob sua juris-
dição. A lei traz o nome do primeiro ministro da educação, o conde Carlos
Boncompagni.6 Essa lei marcou o fim do velho sistema de educação que,
abandonado durante a época napoleônica, fora reimplantado na Restauração.

Pontos mais significativos da lei

1. O princípio filosófico fundamental que sustentava o novo sistema


era que a educação pública como tal era uma tarefa secular e não
eclesiástica. Por isso, a educação era responsabilidade e prerrogativa
do Estado; os privilégios de que a Igreja (clero diocesano e religioso)
gozara nesse campo foram abolidos. O Estado, não os bispos, seria
na sequência o responsável da educação pública.
2. A reforma Boncompagni afetava todas as escolas, desde a pré-
-escola até a universidade. Incluíam-se também todas as escolas
de formação profissional (artes e ofícios) e casas para educação
especial (como a dos surdos-mudos).
5
“Método” significa aqui “metodologia educacional”, “aprendizagem do educador”. A deno-
minação permanece na lei Boncompagni de 1848 e foi substituída por “escola normal” ou “colégio para
professores”, na lei Casati de 1859.
6
Carlos Boncompagni di Mombello, conde de Lamporo (1804-1880), foi ministro da Justiça
(1848-1853) e da Educação (1848-1852), presidente da Câmara Baixa do Parlamento (1853-1856) e
embaixador plenipotenciário do rei Vítor Emanuel II. Participou ativamente na unificação da Itália.
Era professor de Direito Constitucional na universidade de Turim e autor de livros de temática legal.
Interessou-se a vida toda pelos temas educacionais.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

3. O projeto de lei tornava obrigatório o ensino nos dois anos do pri-


meiro ciclo de nível primário, em geral dos 7 aos 9 anos de idade.
4. A legislação permitia que as escolas particulares fossem admi-
nistradas por instituições ou por particulares. Contudo, além de
obter a aprovação e cumprir as normas gerais, estavam sujeitas a
controles rigorosos.
5. A instrução religiosa continuava a ser dada nas escolas públi-
cas, em conformidade com o artigo primeiro da Constituição,
que contemplava a religião católica como religião de Estado.
Mantinha-se também a figura do diretor espiritual ou cape-
lão. Contudo, a instrução religiosa era objeto de controle (por
exemplo, quanto aos livros de texto); o diretor espiritual, em-
bora escolhido pelo bispo, devia ser aprovado e nomeado pela
autoridade escolar.
6. A organização do ensino girava ao redor de dois ciclos. O elemen-
tar, escola primária, constava de quatro anos: um primeiro perío-
do de dois anos com assistência obrigatória e um segundo, de dois
anos adicionais. O ciclo dos estudos secundários compreendia um
primeiro período de cinco anos (gimnasio) e outro, posterior de
dois anos (filosofia).

Professores-Padres
Não obstante os esforços para formar professores, os padres continua-
vam a ser necessários como membros das escolas estatais. Estatísticas de 1854
mostram que no Reino da Sardenha, de 5.765 professores de escola primária,
3.021 eram eclesiásticos, e o restante, leigos. Com o avanço da Revolução
Liberal e seu programa de secularização depois de 1848, sobretudo depois
da unificação da Itália (1861), o clero em geral começou a ser considerado
elemento hostil e, em consequência, foi eliminado onde e quando possível.
Por sua vez, os bispos começaram a mostrar-se sempre menos de acordo com
os padres que cooperavam como professores com o Estado leigo, considerado
inimigo declarado do Papa e da Igreja. Como resultado, em duas décadas, o
número de padres professores reduziu-se drasticamente nas escolas primárias;
eles continuaram apenas nas escolas secundárias até 1873 quando foram ex-
cluídos da universidade e a Escola de Teologia foi fechada.

555

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Dom Bosco: história e carisma 2

Reação à lei
A reação após a promulgação da lei Boncompagni dividiu-se em duas
frentes: uma, mais genérica, de avaliação crítica, especialmente da parte cató-
lica, e outra, mais específica, a cargo de professores e funcionários que consi-
deravam a lei como restritiva à “liberdade de ensino”.7
1. A reação católica partia da percepção de que a lei criava obstácu-
los à missão da Igreja de educar os jovens na fé e violava os direitos
imemoráveis da Igreja, não só pela conquista das escolas públicas
por parte do Estado, como também pelo controle estatal das escolas
privadas, especialmente as administradas por instituições religiosas
vinculadas à Igreja. O diário católico L’Armonia [della Religione colla
Civiltà] dedicou 9 artigos ao tema, que podem ser vistos como um
posicionamento que representava a reação católica. Denunciava-
-se que o ministro da Educação e seus departamentos ministeriais
abriam caminho para instaurar um controle centralizado sem deba-
te parlamentar e nascido da tirania partidária contra as tradições e
os sentimentos de todo o povo. Denunciava que a lei infringia os
direitos das famílias e das pessoas, professores e alunos, e violava o
direito de a religião ser parte da educação de uma pessoa.
O periódico insistia que o ensino da moral católica e a supervisão da
conduta moral do pessoal e dos alunos das escolas não eram um abu-
so, mas parte das competências delegadas à Igreja pelos pais, preocu-
pados com a educação de seus filhos. Era o Ministério da Educação
que, agora, usurpara o poder contribuindo assim para a descristiani-
zação dos indivíduos e da sociedade. L’Armonia acrescentava:
Por isso, as massas, que agora carregam sua pobreza com paciência porque são
sustentadas pelas virtudes e pelas esperanças cristãs, ver-se-ão movidas por um
conjunto diferente de virtudes que, entretanto, adquiriram. Baixarão à cidade
armados com paus e foices e, movidos por invejosa cobiça e uma sensação de
humilhação, descarregarão sua ira contra os ricos e instruídos.

L’Armonia admitia que o projeto de lei pretendia garantir a educação


para todos e pôr as coisas em ordem na educação pública por meio
de normas comuns, método e conteúdos. Mas acusava-a de que, ao

Cf. V. Sinistrero, “La legge Boncompagni del 4 ottobre 1848 e la libertà della scuola”, Sale-
7

sianum 10 (1948), 369-391.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

fazê-lo de maneira inflexível, obrigava a todos a entrarem no mesmo


molde de mediocridade. Admitia também que os autores do projeto
de lei atuaram com boas intenções, mas tratava-se de um projeto ruim
que poderia converter-se em ferramenta mortal nas mãos dos futuros
executivos que poderiam não ter o mesmo respeito pela religião que
tinham os autores do projeto de lei. O indiferentismo religioso mostra-
ra seu lado obscuro no Parlamento quando crianças valdenses e judias
foram admitidas à escola pública, processo que levaria a igualar todas as
religiões no mesmo nível.

2. Segundo a denúncia feita por bom número de educadores em


revistas de educação, a lei restringia “a liberdade na educação”.
Assinale-se que a controvérsia não levava em conta os direitos da
Igreja ou das escolas particulares. O clamor de alguns educadores
e funcionários de todo o reino era contra o que consideravam um
controle centralizado e opressor e as cargas financeiras impossíveis
que pesavam sobre as administrações locais. Em geral, coincidiam
em que era bom ter terminado o controle tradicional da Igreja sobre
a educação. Aceitavam que, embora a educação fosse responsabili-
dade dos pais e da sociedade em geral e, por isso, tarefa de todos,
era responsabilidade específica do Estado velar para que fosse cor-
retamente organizada e posta à disposição de todos. Mas viam um
perigo no monopólio do Estado na educação.
O debate identificava cenários nos quais poderiam produzir-se
grandes transgressões dos direitos pelos administradores. Como se
apresentava, a lei seria boa se seus intérpretes fossem bons, sobretu-
do seus intérpretes políticos.

A controvérsia sobre os direitos da Igreja na educação


Duas coisas, sobretudo, alarmavam os bispos em relação à lei Boncom-
pagni. Em primeiro lugar, tornava difícil ministrar adequadamente o ensino
religioso nas escolas públicas, dificuldade que aumentaria com o passar dos
anos. Em segundo lugar, a lei ampliava o controle do Estado sobre todas as
instituições educacionais, inclusive os seminários no que se referisse à educação.
Isso contrariava as normas específicas do direito canônico relativas à
doutrina católica, à prática da religião católica e à direção espiritual-moral.
Os bispos, individual e coletivamente, reafirmaram que o ensino da doutrina

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Dom Bosco: história e carisma 2

católica era confiado por mandato divino aos ministros oficiais da Igreja, em
virtude da faculdade do sacramento da Ordem, do qual derivava o poder
de jurisdição. As duas competências não podiam ser separadas. A jurisdição
sobre tudo que se referisse à doutrina católica não podia ser exercida por qual-
quer pessoa, mas pelos ministros ordenados, autorizados pela Igreja.

Posicionamento de Dom Bosco


Dom Bosco estava certamente de acordo com o argumento dos bispos
sobre os direitos da Igreja. A doutrina geral na eclesiologia ultramontana da
época era que a ordem e a jurisdição eram os dois fundamentos inseparáveis
que definiam o poder hierárquico da Igreja, tanto para a doutrina como para
a disciplina. Dom Bosco também compartilhava a reação à lei, típica dos
conservadores católicos, representada por L’Armonia. A falha desse tipo de
pensamento estava em não distinguir entre a doutrina transcendente da Igre-
ja e suas encarnações nos sistemas e estruturas históricas.8
Os inícios da escola no Oratório coincidiram com o movimento na
educação e quase exatamente com o período da reforma Boncompagni.
O primeiro estudante interno na casa Pinardi, Alexandre Pescarmona, de
Castelnuovo, entrou em outubro de 1847. O número de estudantes in-
ternos no Oratório aumentou rapidamente e, em 1853, quando a casa foi
transferida da casa Pinardi para a “casa Dom Bosco”, ampliação da primeira
construção, seu número igualava ou superava o dos aprendizes. Em outu-
bro de 1855, Dom Bosco começara um curso de estudos secundários no
Oratório e, em outubro de 1859, pouco depois da aprovação da lei Casati,
já tinha em funcionamento uma escola secundária de cinco anos.

A instrução Cibrario (1853)


Em 21 de agosto de 1853, o conde Luís Cibrario, ministro da Educação,
apresentou programas e livros de texto oficiais para a instrução religiosa nas
escolas públicas.9 Em 1856, a administração de Turim dispensou os Irmãos
das Escolas Cristãs das escolas primárias que, desde 1830, dirigiram a pedido
da própria administração da cidade.

Cf. MB III, 446ss.


8

9
Cf. MB IV, 604ss. Dom Bosco levou essas disposições em consideração quando precisou
escolher os livros de texto.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

A lei Lanza (1857)


O argumento da Igreja contra algumas das disposições da lei Boncompag-
ni recebeu o apoio dos educadores e das associações de docentes que protesta-
vam contra o monopólio do Estado na educação e pediam maior liberdade.
A lei Boncompagni (1848), a lei que reduzia os privilégios da Igreja
(1850) e a lei de supressão das ordens religiosas e o confisco de bens da
Igreja (1855) produziram uma situação de amargo conflito e deixaram feri-
das profundas que não puderam ser curadas, mas que, talvez, pudessem ser
superadas. Sem entrar em considerações de política eclesiástica, o primeiro-
-ministro Camilo Cavour reconheceu a existência de um consenso entre
os educadores em favor de maior liberdade na educação. Os governos de
Cavour procuraram responder a isso por meio dos projetos de lei de Lanza
e, mais tarde, de Casati.
O projeto de lei Lanza foi debatido na Câmara em janeiro de 1857 e
converteu-se em lei em 22 de junho de 1857.10 Essencialmente, esta lei intro-
duzia certa liberdade na educação, permitindo maior controle local, liberda-
de concedida também às escolas particulares e às da Igreja. Também limitava
o controle do governo central a determinados âmbitos, que se referiam à mo-
ral, à higiene, às estruturas educacionais do Estado e à ordem pública [art. 1].
Previa a elaboração de regulamentos especiais para uma regulamentação mais
detalhada [art. 7]. Essas leis especiais, porém, nunca foram elaboradas, pois
se previa uma revisão nova e completa do sistema. Na prática, o sistema de
controle do Estado, introduzido pela lei Boncompagni, manteve-se em vigor,
mas a aceitação do princípio de liberdade na educação, embora limitada, foi
um passo à frente.
Todas as escolas, inclusive os seminários e as escolas secundárias dioce-
sanas, permaneceram sob o controle do Ministério da Educação nos limites
especificados na lei. O princípio de liberdade, porém, foi aplicado frequen-
temente segundo o critério dos funcionários.11 Lanza forçou o cumprimento
da norma que exigia o diploma de professor, sem exceção.12 Essa foi uma di-
ficuldade especial para as escolas religiosas; como consequência disso, muitas
delas foram proibidas de ensinar. Esta normativa motivou a decisão de Dom

10
João Lanza (1810-1882) foi eleito para o Parlamento em 1848. Líder do centro-esquerda,
ele serviu como ministro da Educação no gabinete Cavour de novembro de 1855 a julho de 1859.
Ocupou outros ministérios, incluindo o do Interior na Itália reunificada (1864-1865). Foi primeiro-
-ministro nos anos 1869-1873.
11
Ver os comentários de Lemoyne e a atuação de Dom Bosco em MB V, 362s.
12
MB V, 170s.

559

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Dom Bosco: história e carisma 2

Bosco de enviar seus professores à universidade para a titulação e obtenção


de diplomas. O primeiro que foi à universidade para receber o diploma foi o
seminarista João Batista Francésia.13 Numa visita ao seminário de Bérgamo,
Dom Bosco alertou o bispo sobre os requisitos de titulação dos professores e
previu que em dez anos “gente perversa” se apossaria por completo da educa-
ção, a não ser que os bispos agissem.

A lei Casati (1859)


O ministro da Educação, conde Gábrio Casati, foi autor da reforma
escolar integral que traz o seu nome.14 Após quatro meses de debate na co-
missão especial, o projeto de lei Casati foi aprovado como lei em 25 de abril
de 1859 e, também como o projeto de lei Boncompagni, sem intervenção
parlamentar, devido aos poderes de guerra dados ao governo na época da
Segunda Guerra da Independência da Itália contra a Áustria. A lei Casati
é um reordenamento orgânico de todo o sistema escolar, uma reelaboração
completa da lei Boncompagni, depois de uma década de experimentação, e
compreendia a experiência educacional de piemonteses e lombardos. As es-
truturas básicas estabelecidas pela lei seriam mantidas em vigor até a reforma
de Gentile, em 1923, durante o fascismo.

Disposições da lei
A lei Casati compreendia todos os âmbitos do ensino:

1. A escola primária dividia-se em duas seções de três e dois anos


respectivamente. A primeira seção, em geral para as crianças de
7-9 anos de idade, era obrigatória e gratuita. Todos os municípios
com mais de 4 mil habitantes e todas as localidades com ao menos
50 crianças eram obrigados a criar uma escola primária (duas se-
ções) financiada pela administração local. As localidades menores

MB V, 752ss.
13

Gábrio Casati (1798-1873) nasceu em Milão e esteve intensamente envolvido na vida políti-
14

ca da Lombardia, do Piemonte e da Itália reunificada. Prefeito de Milão em 1837, ele tentou negociar
a liberdade com a Áustria, mas em 1847 retornou ao Piemonte. Em 1848, liderou a rebelião dos
milaneses contra a Áustria, atuou como presidente do governo provisório e, depois, conseguiu mitigar
a repressão austríaca. Exilado em Turim durante a Primeira Guerra contra a Áustria, desempenhou o
cargo de primeiro-ministro por um breve período de tempo. Em 1853, foi nomeado senador e desde
então se converteu em seguidor fiel das políticas de Cavour. Em 1859, no início da Segunda Guerra
contra a Áustria, foi nomeado ministro da Educação. Ao deixar o ministério, foi eleito vice-presidente
do Senado e, depois, presidente (1865-1872).

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

deviam criar ao menos a seção inferior e providenciar os docen-


tes, cujas únicas qualificações requeridas seriam os diplomas de
aptidão como professores e a boa conduta moral. O número dos
alunos na sala não podia passar de 70.
2. A escola “técnica” também se dividia em duas seções, de três anos
cada. Podia-se entrar na seção inferior (scuola tecnica) depois de
completar as duas seções da escola primária. Ao término da etapa
inferior, era possível inscrever-se na seção superior de três anos (is-
tituto tecnico), organizada por áreas específicas ou mais adiantadas
(por exemplo, contadores, agrimensores, técnicos industriais etc.).15
3. O curso de estudos secundários clássicos baseava-se num plano de
estudos humanístico-literários e filosóficos. Era composto de duas
seções: uma etapa inferior de cinco anos (gimnasio) e uma superior
de três anos (liceo). As etapas inferiores, tanto da técnica (scuola
tecnica) como do curso clássico (gimnasio) seriam criadas em todas
as capitais e nas grandes cidades da província. As seções superiores,
tanto de uma como de outra (istituto tecnico e liceo), deviam ser
criadas, ao menos, nas capitais de província.
Os exames seriam feitos no final de cada etapa da secundária clás-
sica. Só tinham acesso à universidade os estudantes aprovados nos
exames da etapa superior da secundária (liceo), com o que obte-
riam o título ou diploma de secundária (licenza liceale).
4. A universidade tinha cinco faculdades ou escolas: Teologia, Direi-
to, Medicina, Ciências Físico-Matemáticas, Literatura e Filosofia.

Valores e defeitos
A lei Casati significou um grande avanço na educação italiana por ser
minuciosa e ter enfoque sistemático. Apesar dos defeitos que continha, fo-
mentou uma notável expansão da educação. Em Turim, em 1850, por exem-
plo, as escolas públicas eram apenas 32, sendo mais numerosas as escolas
particulares e religiosas. Em 1862, com Casati, seu número aumentara para
163. Garantiam-se mais a liberdade na educação e outros direitos. As escolas
particulares, dirigidas por pessoas ou instituições, tinham uma situação está-
vel sob a lei. Dizia o artigo 246:
15
O que se apresenta aqui é uma descrição simplificada de como era uma escola técnica e um
instituto. Na realidade, a scuola tecnica, às vezes, não era mais do que uma scuola popolare melhorada;
outras vezes, não era mais do que um grau inferior do istituto tecnico, que seguia um programa misto,
científico e clássico, e dava acesso a algumas faculdades universitárias.

561

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Dom Bosco: história e carisma 2

Todo cidadão com 25 anos ou mais, que possua os requisitos morais necessá-
rios, pode criar uma escola secundária de assistência geral, com ou sem mora-
dia ou alojamento. Devem-se observar as seguintes condições: 1o. O pessoal
docente deve ter o título e o diploma exigidos pela presente lei ou deve estar
na posse de títulos similares. 2o. A instrução deve ser dada de acordo com os
programas especificados nesta lei; esses programas, e qualquer modificação
dos mesmos, devem ser dados ao conhecimento público antes do início do
ano escolar. Não se deve confiar mais de duas disciplinas a um docente. 3o. A
escola deve estar aberta a qualquer momento às autoridades que possuam ju-
risdição ordinária para fazer inspeções e, também, a qualquer pessoa nomeada
pelo ministro para esse fim em circunstâncias extraordinárias.

Estas disposições regulavam e protegiam a escola particular, mas os fun-


cionários hostis poderiam possivelmente criar obstáculos ao progresso de
uma escola particular. Por causa das situações de conflito, com o passar dos
anos, a liberdade concedida pela lei poderia ser gravemente violada. Na lei
Casati, o ensino religioso era previsto em todos os níveis da educação, mas a
assistência a esse ensino só era obrigatória no nível primário, e não além, pois
era considerada como prática religiosa. Além disso, em todos os níveis, os
pais podiam obter a dispensa de seus filhos da assistência às aulas de religião e
aos relativos serviços religiosos. A lei também continha disposições atinentes
aos seminários diocesanos, incluídos os seminários de teologia, e dava ao Mi-
nistério da Educação a competência de supervisionar a instrução e formação
dos seminaristas “como cidadãos”. Obviamente, essa disposição prestava-se a
abusos de funcionários hostis.16
Após a unificação da Itália (1861), o sistema Casati foi estendido a toda
a Itália (1864). Teve início, então, um processo de involução na legislação da
escola através de uma série de decretos, regulamentos e circulares, que mo-
dificavam a lei Casati. A intenção era estabelecer o monopólio de Estado na
educação que abrangesse toda a nação.
No outono de 1862, Dom Bosco começou o ano escolar, como de cos-
tume, apesar de ser criticado por não ter professores com títulos. Solicitou,
então, a titulação de seus professores, pedindo que lhes fosse permitido sub-
meter-se a exames. Entretanto, também começou a inscrever seus seminaristas

16
Dom Bosco estava bem informado sobre a lei Casati (MB VI, 613). Quando foi ordenado
o fechamento da escola do Oratório em 1879, apelou para ela (MB XIV, 88ss; 149ss). Pôde valer-
-se do folheto, que ele mesmo inspirara (MB XIV, 187), do professor G. Allievo, La legge Casati e
l’insegnamento privato secondario. Turim: Tipografia Salesiana, 1879. Cf. M. Ribotta, “The day they
shut down the Oratory School”, JSS 2:1 (1991), 19-24.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

nos cursos da universidade; em 1863-1864, levantou um novo edifício escolar,


mas sofreu pressões e tentativas das autoridades escolares para encerrar a escola
do Oratório.17
Embora não haja dúvidas de que a lei Casati foi um grande avanço na
qualidade da educação na Itália, aproximando-a da que existia em muitos
países europeus, ela foi, certamente, um movimento político, pois supunha
outro passo importante do Estado liberal para estabelecer sua autonomia em
relação à Igreja no ordenamento da sociedade e no governo do país. Repre-
sentou, também, uma manobra da coalizão liberal exercida pelo governo para
neutralizar a oposição conservadora ou reacionária na Câmara e no Senado.
O projeto era uma medida apropriada para neutralizar a popularidade cres-
cente das escolas dirigidas pela Igreja. De fato, as escolas públicas depois
da lei Boncompagni viram aumentar as suas dificuldades, enquanto o povo
continuava a preferir as escolas administradas pela Igreja para a educação
de seus filhos. Por fim, e mais em geral, o objetivo final da lei era eliminar,
através da educação, qualquer visão político-social que não coincidisse com
os princípios do liberalismo.

A circular Correnti (1870)


Em novembro de 1870, apenas nove dias depois da ocupação de Roma,
o ministro da Educação César Correnti aprovou uma portaria que inverteu
totalmente a situação do ensino religioso nas escolas públicas.18 A legislação
anterior mantivera basicamente a instrução religiosa obrigatória, e os pais
que quisessem seus filhos isentos deviam apresentar um pedido formal. De
agora em diante, a instrução religiosa estava apenas disponível, e os pais que
a desejassem para seus filhos deviam solicitar formalmente.19

Dom Bosco e as leis liberais


Na década de 1860, depois do projeto de lei Casati (1859) e da uni-
ficação da Itália (1861), Dom Bosco entrou no campo da educação atra-
vés da escola, que se converteu numa das principais obras de apostolado
17
MB VI, 344ss; VII, 481ss; 443ss.
18
César Correnti (1815-1888), estudioso político liberal de Milão, serviu como ministro da
Educação nos gabinetes de Ricasoli (1867) e Lanza (1869-1872), quando regulamentou a instrução
religiosa. Depois, em 1871, com o ministro da Educação Antônio Scialoja (1817-1877), promoveu
uma lei que, entre outras disposições, eliminaria a instrução religiosa das escolas públicas. A lei foi
derrotada no Parlamento.
19
Lemoyne fala de uma Circular Correnti e dos esforços de Dom Bosco para neutralizar suas
consequências perniciosas, em MB IX, 932s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

salesiano. A necessidade e oportunidade desta responsabilidade brotaram


da situação criada pelas leis liberais da escola. As autoridades da Igreja
exortavam a uma ampliação do sistema da escola particular e católica para
deter o processo de laicização. As escolas particulares podiam ser criadas
e dirigidas segundo a lei. Dom Bosco foi um dos primeiros a responder
à exortação.
O esforço por um sistema separado relativo à escola católica fazia
parte da postura da Igreja de total oposição ao movimento liberal. Uma
política de compromisso, ou de compromisso moderado da Igreja, como
se optou na Bélgica, exigiria, sem dúvida, concessões consideráveis, mas
provavelmente teria possibilitado às forças católicas influir no processo po-
lítico e social em seu conjunto, com bons resultados. Esta oposição exacer-
bou o sentimento anticlerical e criou uma situação de conflito que se viu
agravada pelas políticas do governo depois da unificação da Itália (1861) e
a ocupação de Roma (1870). Embora a legislação permitisse ampla liber-
dade às escolas particulares católicas, a hostilidade dos funcionários do go-
verno mantinham com freqüência essas escolas pressionadas e em situação
de inferioridade. Dom Bosco e a escola do Oratório foram, de fato, objeto
de perseguição em várias ocasiões.20
É difícil dizer com exatidão qual era na realidade a percepção de Dom
Bosco sobre a questão. Contudo, aceitando obviamente o compromisso com
o posicionamento da Igreja, tomou uma direção que era, ao mesmo tempo,
ideológica e pragmática. Com um decidido compromisso apolítico e uma
inspiração profundamente religiosa, tirou o maior proveito possível da lei
e conseguiu construir um impressionante sistema de ensino, baseado na re-
cusa inequívoca da laicidade e na autêntica valorização da religião. Parece
que a atitude de Dom Bosco foi ditada pela sua convicção de que isso era
exigido para a “salvação das almas”. Estava convencido de que o laicismo e o
movimento leigo derivados da Revolução Liberal eram contrários à tradição
cultural e à alma do povo, especialmente dos jovens para os quais vivia e
trabalhava. Acreditava que a eliminação da religião e da orientação da Igreja
na educação significava a eliminação de uma força de formação de grande al-
cance na alma dos jovens, assim como da sociedade em geral. Além de causar
“dano espiritual”, essa eliminação poderia enfraquecer a mesma base da sua
identidade cultural, podendo criar obstáculo à personalidade, ao caráter e à
cidadania. Para Dom Bosco, ser bom cidadão e bom cristão era o objetivo
indivisível da educação.

20
Ver MB VII, 315ss.

564

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

2. O desenvolvimento e a organização da escola do


Oratório com as leis Boncompagni (1848) e Casati (1859)

A escola do Oratório com a lei Boncompagni (1849-1859)


Durante a década após a Revolução Liberal de 1848, a escola do Ora-
tório, iniciada no ano anterior com a criação da Casa, atuava segundo a lei
Boncompagni. Dom Bosco aumentou a seção de estudos no Oratório, mais
do que a seção profissional (aprendizes). Com isso, atendia às famílias da
classe média com poucos recursos e suas intenções de educar os filhos profis-
sionalmente. Quanto ao pessoal docente, na medida em que o permitiam o
crescimento das instalações escolares e a formação de seus jovens salesianos,
Dom Bosco deixou de utilizar os serviços de mestres externos de confiança e
de suas escolas particulares para criar salas de escola secundária na Casa com
professores salesianos.
Até 1854-1855, os jovens estudantes de Dom Bosco dos três primeiros
anos do gimnasio (etapa superior) iam a uma escola particular na cidade.
Como se sabe, estes jovens estudantes saíam do Oratório logo cedo, em gru-
pos, caminhavam na poeira ou na lama pela rua da Giardiniera, até a rota-
tória ou Rondò de Valdocco e, evitando a grande praça do Mercado (Porta
Palazzo), chegavam por ruas laterais à escola particular do professor Carlos
Bonzanino.21 Outro grupo de meninos, do quarto e quinto anos do ciclo de
estudos secundários, também chamado de humanidades e retórica, faziam
um caminho mais curto até a escola particular do professor padre Mateus
Pico, perto da igreja da Consolata.22 Em 19 de julho de 1856, o ministro
da Instrução Pública João Lanza decretou que os professores da escola se-
cundária só poderiam dar aulas se fossem aprovados pelo superintendente
das escolas. Foi um passo a mais até o controle central, mas também tinha
a intenção de prevenir os abusos nas escolas municipais e particulares. Dom

21
João Batista Francésia (1838-1930) narra o itinerário e o comportamento do grupo de
jovens em Don Francesco Provera, sac. salesiano. Cenni biografici. San Benigno Canavese: Tipografia e
Libreria Salesiana, 1895, 41, e em Don Giovanni Bonetti, sac. salesiano. Cenni biografici. San Benigno
Canavese: Tipografia e Libreria Salesiana, 1894, 24-25.
22
Domingos Sávio, por exemplo, chegou ao Oratório aos 12 anos de idade, com os rudimentos
de latim, e assistiu às aulas do professor Bonzanino no ano escolar 1854-1855. No ano seguinte, 1855-
1856, quando Dom Bosco iniciou a escola do Oratório com apenas o terceiro ano, ano de “gramáti-
ca”, Domingos assistiu a essa aula no Oratório, tendo como professor o clérigo salesiano João Batista
Francésia, que ainda não chegara aos 18 anos de idade. Em 1856-1857, porém, fez o quarto ano, de
humanidades, novamente na cidade, na escola do padre Pico, durante alguns meses, pois morreu nesse
mesmo ano em 9 de março de 1857.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Bosco, como Rosmini e outros, estava convencido de que deviam conservar


seus direitos civis e mover-se dentro das estruturas legais. Por isso, fez com
que o clérigo Francésia, que então ensinava no primeiro ano da escola se-
cundária, se matriculasse na universidade para obter o título e o diploma.
Depois, outros clérigos matricularam-se na universidade: Miguel Rua, João
Anfossi, Celestino Durando, Francisco Cerruti etc.
Em 1856-1857, Dom Bosco criou o segundo ano da escola secundária
no Oratório com o professor padre José Ramello (1820-1861). Ele fora sus-
penso do ministério sacerdotal, aparentemente pelas suas opiniões liberais.
Um de seus alunos, Francisco Cerruti, recorda-o como um professor capaz
e inteligente. Conserva-se o livro de registro da classe do professor Ramello
em 1857, segundo ano de ensino secundário ou bacharelado. Nele manteve
a lista de seus alunos com comentários sobre os resultados. A lista mostra
como era uma classe (típica?) de 33 alunos da escola secundária no Oratório.
Chama a atenção o número de ausências por doença.
Alberti, Pedro (16 anos de idade). Perdeu 41 horas de aula por doença e ainda
não se recuperou.
Bellino, Carlos (14 anos de idade). De capacidade média, mas muito diligente.
Berardi, Constâncio (14 anos de idade). Idem.
Bertino, Pedro [idade não determinada]. Perdeu 27 aulas por doença.
Bongiovanni, Domingos (16 anos de idade). Perdeu 22 aulas por doença.
Inteligência menor do que a média.
Bono, Claudio (14 anos de idade). Seus estudos anteriores foram irregulares.
Não possui dotes.
Bosco, Francisco (12 anos de idade, de Dronero; seu pai é falecido). Era um
aluno muito bom, mas recentemente se tornou negligente e indolente.
Candelo, Segundo (14 anos de idade). Como o anterior. Perdeu algumas aulas.
Castellano, Vicente [idade não determinada]. Fez o primeiro de gramática no
ano passado com o professor Boyer.
Cerruti, Francisco (13 anos de idade). Tem uma memória excelente e é de
muito talento e equilibrado.
Chiuso, Luís [idade não determinada]. Menino muito animado.
Cibrario, Antônio [idade não determinada]. Menino muito frágil. Fez gran-
des progressos.
Conti, Evaristo (16 anos de idade). Estudante muito lento.
Cravero, Pedro [idade não determinada]. Perdeu ao redor de 40 horas de aula
por doença.

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

Dassano, Bartolomeu (12 anos de idade). Fez grandes progressos.


Fornara, Antônio [idade não determinada]. Fez bons progressos.
Geuna, Jorge (14 anos de idade). Perdeu cerca de 50 horas de aula por doença.
Ghivarello, Carlos (22 anos de idade). Jovem exemplar de excelente caráter.
Lacchia, José [idade não determinada]. Inteligência menor do que a média.
Perdeu algumas aulas.
Magoia, José (17 anos de idade). Estudante ruim. Perdeu mais de 30 horas
de aula por doença.
Martano, José (16 anos de idade). Caráter teimoso (de Cúneo!).
Martina, Antônio [idade não determinada]. Esteve nesta sala durante dois
meses, mas não tem nem ideia.
Mazzucco, Jacinto (16 anos de idade). Jovem de inteligência limitada e ati-
tudes ásperas.
Mellica, José (15 anos de idade). De lenta aprendizagem.
Minelli, João [idade não determinada]. Suficientemente inteligente, porém
perdeu mais de 50 horas por doença.
Pagliotti, Miguel [idade não determinada]. Fez grandes progressos, apesar de
ter perdido algumas aulas.
Pasquale, Mateus [idade não determinada]. Possui inteligência mediana, mas
é muito diligente. Fez grandes progressos.
Patria, José [idade não determinada]. Esteve doente em casa durante três meses.
Perino, Inácio [idade não determinada]. Perdeu 50 horas de aula por doença.
Roppolo, Alfredo (13 anos de idade). Fez progressos muito grandes.
Torchio, Fernando [idade não determinada]. Idem, apesar de ter perdido
umas 15 horas de aula por doença.
Vittone, Carlos [idade não determinada]. Muito diligente; fez grandes progressos.
Zolla, João [idade não determinada]. Fez grandes progressos.

A escola do Oratório com a lei Casati (a partir de 1860)


A lei Casati entrou em vigor no dia 1o de janeiro de 1860 e serviu de
estímulo a Dom Bosco para uma maior organização da escola do Oratório.
A Igreja opôs-se a várias disposições, por exemplo, à norma de que os progra-
mas de seminário quanto à cidadania fossem sujeitos a inspeção. A principal
objeção, porém, era que tendia a eliminar a influência da Igreja na escola
pública e a secularizar em algum tempo a educação pública. É certo que a lei
permitia a criação de escolas por indivíduos ou grupos de todas as tendências.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Essas escolas, apesar disso, eram aprovadas com algumas condições e estavam
sempre sujeitas à inspeção da autoridade competente.
Em 4 de dezembro de 1862, Dom Bosco apresentou ao superintendente
Francisco Selmi (1817-1881) o pedido de aprovação da escola secundária do
Oratório. Dom Bosco sublinhava que estava procurando promover a educa-
ção secundária dos jovens das classes mais pobres para deixá-los em condições
de ganhar honestamente a vida. Após a inspeção e o relatório favorável do
secretário José Camilo Vigna, Selmi deu sua aprovação provisória, mas pediu
que Dom Bosco apresentasse dados sobre os professores, os alunos e o cur-
rículo. No relatório de Dom Bosco, só o padre Mateus Picco (1812-1880)
figurava como diretor e o padre salesiano, Ângelo Sávio (1835-1893) tinha
título legal; o padre Vitório Alasonatti (1812-1865) possuía um antigo di-
ploma que lhe facultava ensinar gramática latina. Os demais professores eram
clérigos salesianos, entre 22 e 25 anos de idade, sem qualquer título; alguns
deles nem sequer estavam inscritos na universidade: Francisco Cerruti (1844-
1917), João Batista Francésia (1838-1930), Celestino Durando (1840-1907)
e João Batista Anfossi (1840-1913).
Dom Bosco apresentou o número de 318 estudantes (internos), todos
isentos de pagamento pela moradia, alimentação e aulas. Os livros de texto
utilizados eram “somente os prescritos nos programas do governo”. Selmi
viu-se numa situação embaraçosa: de um lado, não podia passar por cima do
apoio que Dom Bosco poderia receber de muitos setores da sociedade, da
corte real, da universidade, de alguns círculos políticos e bancários; de ou-
tro, devia precaver-se diante do Ministério e de algumas pessoas poderosas
hostis à obra educativa de Dom Bosco. O próprio Selmi, em conversa com
Dom Bosco em seu escritório, expressou sua crítica pelas aparentes ideias
antipatrióticas e reacionárias de Dom Bosco, contidas na História da Itália e
nas Leituras Católicas. Numa carta a Selmi, Dom Bosco rogava-lhe que per-
mitisse a continuação da escola; mas o superintendente não tomou qualquer
medida; e Dom Bosco passou por grande ansiedade durante algum tempo.
Era julho de 1863.
Em junho, o Oratório foi submetido a um controle especialmente ri-
goroso e sectário, tanto que Dom Bosco se viu obrigado a recorrer ao pró-
prio ministro Félix Matteucci. Fundamentalmente, resultava que as escolas
secundárias do Estado tinham os mesmos problemas da escola do Oratório
quanto aos títulos dos professores. O ministro considerou oportuno dar uma
oportunidade extraordinária aos professores que tivessem a intenção de obter
o título de docente de ensino secundário. O resultado do processo de discer-
nimento das autoridades educacionais foi que em 2 de novembro de 1863 a

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A legislação liberal sobre a escola e a escola do Oratório

escola do Oratório recebeu novo decreto de aprovação. Dom Bosco tomou


medidas para que seus professores obtivessem o título de docentes de ensino
secundário, mas jamais chegou à sua plena realização. Entre 1863 e 1876, a
escola do Oratório experimentou um período de relativa paz e prosperida-
de. Durante esse tempo, os inspetores do Ministério ficaram impressionados
com as habilidades educativas dos jovens professores salesianos, pela disci-
plina que prevalecia nas salas superdimensionadas e pelo recreio no pequeno
pátio, animado, mas amistoso.
As coisas mudaram com a chegada da Esquerda ao poder (1876). As ins-
peções e exigências tornaram-se mais severas. Em 1879, a escola do Oratório
foi fechada temporariamente.

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Capítulo XVIII

EXPANSÃO DA OBRA SALESIANA EM TURIM,


NO PIEMONTE E NA LIGÚRIA (1863-1875)

Na década de 1860 e durante toda a vida posterior de Dom Bosco, deu-


-se uma enorme expansão da obra salesiana fora de Turim, primeiramente no
Piemonte e na Ligúria e, mais tarde, no resto da Itália, na França, Espanha,
Inglaterra e em alguns países da América do Sul.
A expansão da obra salesiana, ao menos na Itália, e nesse tempo, tomou
forma principalmente na escola-internato com programa humanístico, com
preferência da secundária inferior (gimnasio). A primeira a ser criada foi a
escola do Oratório de São Francisco de Sales. E é digno de notar que algumas
dessas escolas salesianas – o ideal é que fossem todas – funcionavam como
seminários menores.
A obra do Oratório e outras formas da ação salesiana caminharam geral-
mente ligadas ao trabalho na escola. A decisão de Dom Bosco fora entrar no
campo da educação expressamente através da escola.1 A escola salesiana com
internato e residência representou um novo e grande esforço de Dom Bosco
em relação à educação, no quadro histórico das reformas liberais da escola.
Em poucos anos, este novo apostolado converteu-se quantitativamente no
principal trabalho da Sociedade. Quais foram as circunstâncias que produzi-
ram esse desenvolvimento?

1. Dom Bosco na encruzilhada dos anos sessenta


Por que Dom Bosco não concentrou toda a sua atividade em Turim,
multiplicando oratórios ou ampliando os já existentes? Por que, por exemplo,

1
“Dom Bosco continuou a animar seus clérigos a apresentarem-se aos exames [para o título de
professor] e a não se demonstrarem relutantes em dedicar-se a essa missão necessária e nobre [do ensino
numa residência salesiana]” (MB VII, 732).

570

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

não desenvolveu o trabalho de Valdocco como cidadela de atividades sale-


sianas para os jovens, rivalizando assim, embora com tarefas diferentes, com
a vizinha “cidade dos enfermos e incapacitados”, a pequena Casa da Divina
Providência de Cottolengo?
Uma das razões foi que, além da grande diminuição da caridade pública
e privada por causa de fatores políticos, econômicos e sociais, a situação em
Turim mudara consideravelmente em relação à que determinara a resposta de
Dom Bosco nos anos quarenta e cinquenta. Na década de sessenta, o fluxo
de trabalhadores imigrantes e de temporada não apresentava o problema dos
anos anteriores. A indústria e o novo sistema econômico estavam sendo or-
ganizados sistematicamente, garantindo maior estabilidade e empregos fixos.
Ao mesmo tempo, os jovens em Turim, por razões não facilmente entendi-
das, tinham mudado; eram mais refinados e demonstravam menor interesse
pelas atividades dos dias festivos, como as oferecidas pelos Oratórios. Assim,
todos os Oratórios de Turim sentiram uma decadência geral na participação.
De fato, a participação sofreu uma redução ainda maior com a diminuição da
imigração na cidade nos anos de crise econômica, ou seja, desde aproximada-
mente 1863 até 1868-1869.
Dom Bosco pôde calcular a possibilidade de abrir escolas particulares,
permitidas pela nova legislação educacional, na mesma cidade de Turim.
Era, sem dúvida, um chamado à educação dos filhos dos trabalhadores.
Contudo, de um lado, foi aumentando o número de escolas primárias e se-
cundárias estabelecidas sob os auspícios do governo, o que daria lugar a uma
situação de competitividade; de outro, as escolas do setor privado, especial-
mente quando dirigidas por pessoas individuais, embora aumentassem em
número nos anos sessenta e setenta, teriam sempre pouca participação. Essa
solução não agradava a Dom Bosco, cujo objetivo era incidir sobre o maior
número possível de jovens.
Enquanto isso, levando-se em conta o espaço disponível, as ampliações
no Oratório de Valdocco chegaram quase ao seu limite e os locais estavam
abarrotados; em 1868, o número de internos teria chegado a 800 pessoas,
incluindo jovens e adultos. A expansão fora da cidade poderia aliviar as con-
dições de aglomeração, facilitar a carga financeira e proporcionar trabalho
para o número crescente de membros da Sociedade Salesiana.
Qualificado como estava para avaliar as novas situações, Dom Bosco,
quanto ao Oratório e à escola de Valdocco, pensou que seria melhor não ir
mais além do que já fizera. Estabelecer algumas obras fora de Turim deve ter-
-lhe parecido uma solução lógica. Mas, onde poderiam ser localizadas e que
tipo de obras poderia ser?

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Dom Bosco: história e carisma 2

A situação fora de Turim


As oportunidades para a obra salesiana haviam de ser buscadas nas pro-
víncias.2 Mesmo nas grandes capitais de província, como Vercelli, Novara,
Alessândria, oratórios como os necessários em Turim na década de quarenta
e cinquenta, já não eram uma urgência. O desenvolvimento industrial e a
imigração de trabalhadores jovens significavam muito pouco nessas cidades.
Nas grandes capitais de província, e também em cidades menores, as escolas
eram sempre mais necessárias. O movimento de educação popular, promovi-
do pela Revolução Liberal e pela nova legislação escolar imposta pelo Estado
leigo, serviu de estímulo para estender a educação secundária a um número
crescente de jovens. As reformas de Boncompagni (1848) e de Casati (1859),
ao mesmo tempo em que reorganizavam e promoviam a educação sob o con-
trole do Estado, responsabilizavam as autoridades locais pela educação pri-
mária e secundária. Era difícil aos municípios, por falta de dinheiro e de pro-
fessores, garantir a escolarização primária e secundária em conformidade com
a lei, especialmente num momento de depressão econômica, como foram
os anos sessenta. A incapacidade de cumprir a lei impedia a criação de uma
escola secundária nas cidades que não contavam com nenhuma e também
dificultava a atividade das escolas já estabelecidas. Dom Bosco viu, por isso,
a oportunidade de criar uma presença salesiana, e religiosa, nessas cidades em
benefício tanto da administração municipal como da Sociedade Salesiana.

Decisão de Dom Bosco


Após a lei Casati (1859), Dom Bosco precisou tomar uma decisão im-
portante sobre para onde orientar a sua obra. Olhando para o desenvolvi-
mento obtido, podemos identificar duas opções. Ele, primeiramente, ofere-
ceu seus serviços aos bispos para dirigir seminários menores. Depois, pôs-se à
disposição de cidades provincianas para assumir a direção de escolas secundá-
rias (internatos) já existentes ou para implantá-las com direção salesiana, uma
decisão que depois tomaria a dianteira.

2. Seminário menor e internato


O controle estatal dos seminários menores interferia, na prática, nos
programas do seminário, por mais que, na teoria, só se tratasse de uma nor-
2
A Itália estava dividida em regiões e estas em províncias. A região do Piemonte, cuja capital era
Turim, teria uns 3,5 milhões de habitantes; compreendia 6 províncias que, na ordem da população,
eram Turim, Alessândria, Cúneo, Novara, Vercelli e Ivrea-Aosta. A região da Ligúria, cuja capital era
Gênova, chegara a 1,3 milhão de habitantes; suas províncias: Gênova, Savona, Spezia e Impéria.

572

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

ma civil. Dom Bosco percebeu que podia ajudar oferecendo seus serviços aos
bispos. Além disso, muitos seminários menores foram suprimidos pelas leis
Rattazzi. Percebendo a urgência, Dom Bosco fez com que as escolas particu-
lares salesianas funcionassem como seminários menores.
A decisão de Dom Bosco de trabalhar pela educação dos jovens se-
minaristas levou-o a ampliar a norma constitucional relativa à finalidade
da Sociedade, acrescentando um artigo “sobre o seminário menor”. O
primeiro texto constitucional, rascunho Rua (1858), não contém esse ar-
tigo. Contudo, o artigo que aparece numa folha à parte, escrita com letra
de Dom Bosco, com correções pessoais, foi incluído no projeto de 1860.
Nele se lê:

5. Além disso, em vista do grave perigo que os jovens desejosos de abraçar


o estado eclesiástico devem enfrentar, esta Congregação aplicar-se-á com o
mesmo cuidado ao cultivo da piedade e à vocação dos que tenham aptidão
especial para o estudo e excelente disposição para a piedade.3

Embora a motivação principal de Dom Bosco fosse aqui a lealdade à


Igreja, a Sociedade Salesiana haveria de se beneficiar do trabalho vocacional,
como também do apreço que essa obra geraria entre o clero diocesano.
Deve-se assinalar que a norma sobre o seminário menor também serve
para a escola como tal, que de outro modo não tem nenhuma articulação ex-
pressa. É evidente que a pretensão de Dom Bosco era de a Sociedade Salesiana
dedicar-se expressamente à escola secundária.4
Sua decisão de entrar no campo da educação secundária através da es-
cola era motivada por uma preocupação religiosa importante. No Reino da
Sardenha, desde a reforma da escola, com Boncompagni (1848) e, depois,
com Casati (1859) na Itália unida, a Igreja viu-se com o problema e o de-
safio de uma escola pública, basicamente leiga. As leis da nova escola, já o
sabemos, permitiam a instrução religiosa e um capelão como parte do pro-
grama escolar. Entretanto, devido às restrições relativas aos livros de texto e
aos serviços religiosos, ao caráter multiconfessional da população estudantil
(valdenses ou protestantes, judeus e outros) e à objeção de alguns pais, a
escola praticamente já não podia oferecer a educação católica aos alunos.

3
G. Bosco, Costituzioni, 76-77.
4
Como se deduz de uma leitura comparativa das diversas etapas, o artigo foi ampliado para
incluir o tema da educação secundária para jovens pobres, mas tendo sempre em mira o seminário
menor. Dom Bosco não escreveu nenhum artigo constitucional sobre a escola secundária.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Por isso, os bispos, expressando a preocupação do Papa, começaram a pedir


a criação de escolas particulares, permitidas pela lei, a fim de proporcionar
a educação religiosa.5
Um setor importante da população continuou a demonstrar sua prefe-
rência pelas escolas dirigidas pela Igreja, crendo que proporcionavam uma
educação melhor. Por isso, muitos jovens, que não tinham intenção de estu-
dar para o sacerdócio, matriculavam-se nos seminários menores.
Assim, portanto, no quadro da lei Casati e de suas disposições, mas
também como resposta ao apelo dos bispos, Dom Bosco viu a necessidade e
aproveitou a oportunidade de criar escolas em cidades fora de Turim.

Tipos de escolas
Configuraram-se três tipos de escolas: 1o O seminário menor, de proprie-
dade da diocese ou dirigido como escola salesiana privada em locais doados a
Dom Bosco ou adquiridos por ele. 2o A escola “municipal” salesiana, assumida
a pedido de uma administração municipal para servir como escola pública
e funcionando segundo um convênio legal que definia os direitos e deveres
recíprocos. 3o A escola salesiana privada, de total propriedade dos salesianos a
serviço dos jovens.
Quanto à população atendida, podem-se mencionar dois tipos de es-
colas: 1o Escolas criadas nas pequenas cidades, com matrícula relativamente
modesta, sobretudo nos anos sessenta. 2o Escolas estabelecidas nas grandes
cidades, em geral nos bairros de operários de nível mais baixo, com matrícula
mais elevada, sobretudo nos anos setenta e posteriores. Em geral, era esse o
tipo do colégio salesiano privado, estabelecido a pedido de um bispo, em
resposta a necessidades especiais, como a presença de “protestantes” ou de
atividades anticlericais, com ajuda substancial da caridade (benfeitores locais,
conferências de São Vicente de Paulo etc.). Quanto à residência, todas essas
escolas eram internatos. Em todas elas, porém, também se matriculavam es-
tudantes externos.
Em relação ao programa educacional e escolar, todas as escolas eram
principalmente secundárias de nível I (gimnasio, segundo a terminologia da
lei Casati). Algumas escolas ofereciam também o curso secundário de nível II

5
Comentando a situação criada pela lei Boncompagni, Lemoyne fala do protesto dos bispos. E acres-
centa: “Dom Bosco viu imediatamente a necessidade de construir escolas católicas particulares, sem pensar em
valores [...] Por longo tempo, nutriu projetos ambiciosos para a educação cristã da juventude” (MB III, 447s).
Não se pode garantir por quanto tempo ele alimentou esses projetos; o certo é que a reforma liberal da escola
teve muito a ver com sua decisão de dedicar-se à educação secundária na década de1860.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

(liceo); a maioria, também os níveis da escola primária. Todas as escolas par-


ticulares salesianas funcionavam como seminários menores, com ou sem esse
nome. Outros tipos de escolas ofereciam a mesma oportunidade. A seleção
e a formação vocacional em todas as situações eram conduzidas mediante o
contato pessoal e a formação de grupos com os “meninos melhores”, associa-
ções de jovens que serviam muito bem para essa finalidade.
Enfim, todas as escolas, na medida do possível, serviam de base para todo
tipo de trabalho salesiano, principalmente o Oratório, a imprensa e a igreja,
que costumava servir como templo público e, também, como paróquia.6

Seminário menor de Giaveno (1860-1862)


Parece que as cidades de Cavour e de Giaveno foram as primeiras a per-
ceberem a disponibilidade de Dom Bosco e seus homens para as escolas. Em-
bora as duas administrações apresentassem seu pedido, Dom Bosco escolheu
Giaveno, cidade com mais de 10 mil habitantes, situada a uns 20 quilômetros
a oeste de Turim, e onde tinha vários conhecidos e amigos.7
Em Giaveno havia desde 1840 um florescente seminário menor, cujo
programa de estudos compreendia seis anos de estudos secundários e dois de
filosofia, conforme a reforma educacional do rei Carlos Félix (1822). O edi-
fício, nessa época, podia acolher comodamente uns 60 estudantes. Em 1860,
só um pequeno grupo de pensionistas permanecia nele; os locais, ampliados
aos poucos, pareciam desertos.8 A manutenção do seminário convertera-se
num peso para a arquidiocese, e as autoridades da cidade de Giaveno, que
buscavam uma maneira de cumprir os requisitos da lei Casati, esperavam que
a diocese eliminasse gradualmente o seminário menor. Mas dom Fransoni,
que do exílio estivera em contato com Dom Bosco, por causa das Constitui-
ções, ao receber a proposta da administração da cidade, pensou em confiar
a Dom Bosco a tarefa de reiniciar o seminário menor. Dom Bosco aceitou e
começou imediatamente a fazer planos. A administração de Giaveno estava
satisfeita, pois os seminários menores também funcionavam como escolas
regulares para quem não fosse seminarista.

6
Os parágrafos seguintes descreverão sumariamente todas as novas fundações feitas até a dé-
cada de 1870, dando maior espaço às duas escolas fundadas expressamente como seminários menores.
Inclui-se, também, um comentário sobre os problemas gerais comuns a todas as escolas.
7
A informação é de P. Stella, Economia, 127-130.
8
A Revolução Liberal de 1848 e a reação clerical que a acompanhou provocaram o fechamento
do seminário de Turim e o desterro do arcebispo Fransoni. A crise também afetou os seminários fora
de Turim, ou seja, Bra e Giaveno. As leis Siccardi e Rattazzi de 1850 e 1855 levaram à diminuição das
vocações sacerdotais, em geral, e do seminário menor de Giaveno, em particular.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco tratou individualmente com jovens que solicitaram entrar


na escola do Oratório e conseguiu enviar várias dezenas para Giaveno onde,
em todo caso, os locais eram mais cômodos do que os de Valdocco. A chan-
celaria de Turim nomeou certo padre João Grassino (1821-1902) reitor do
seminário menor, além de outros vários membros do antigo pessoal. Dom
Bosco colocou padre José Rocchietti (1836-1876) como diretor espiritual, o
clérigo Francisco Vaschetti (1839-1916) como prefeito de disciplina e admi-
nistrador, e, como professores e assistentes mandou os clérigos João Baravalle
(n. 1838), José Boggero (1840-1866) e Felipe Turletti (1842-1906). Vários
outros foram enviados no ano seguinte, entre eles o clérigo Domingos Bon-
giovanni (1842-1903).
Os inícios foram bons. Em novembro de 1860, a matrícula chegou a
110; antes do final do ano escolar, aumentara até 150; em outubro de 1861,
os estudantes somavam 240. Entretanto, certo sectarismo influiu negativa-
mente. Dom Bosco foi criticado por pessoas influenciadas pela imprensa an-
ticlerical, que se opunham à presença salesiana na escola. O jornal anticlerical
La Gazzetta del Popolo, denegrira Dom Bosco pelo seu conservadorismo e
qualificara sua História da Itália (1855 e 1859) como obra de um reacionário.
Tinha-se satirizado a educação dada no Oratório como jesuítica e intolerante.
O reitor do seminário começou a distanciar-se de Dom Bosco e do seu méto-
do; intensificaram-se as diferenças. Dom Bosco contava, na chancelaria, com
o apoio do vigário-geral, cônego Celestino Fissore (1814-1889); mas o pode-
roso pró-vigário, cônego Alexandre Vogliotti (1809-1887), que seria nomea-
do reitor do seminário de Turim, reaberto em 1863, estava descontente com
a maneira de Dom Bosco falar de Valdocco e de Giaveno como se formassem
uma única comunidade. E pressionava Dom Bosco para que devolvesse os
seminaristas que estudavam no Oratório às suas próprias dioceses.
Dom Fransoni estava desgostoso com a hostilidade contra Dom Bosco,
mas também mantinha reservas sobre as Constituições Salesianas. Contudo,
não interveio. O conflito piorou por causa da desestabilização levada a cabo
por alguns membros do pessoal diocesano e à pressão exercida sobre os cléri-
gos salesianos, que ali trabalhavam como professores, para que abandonassem
o Oratório. Para piorar a situação, quando em 1862 o arcebispo morreu em
Lyon, o escolhido como vigário capitular da diocese não foi o vigário Fissore
ou outro da linha de Fransoni, mas o cônego José Zappata (1796-1883), do
cabido da catedral. Teólogo e homem universitário sólido, ele mantinha uma
linha política mais moderada em relação ao governo liberal.
Quanto a Giaveno, prevaleceu a linha do cônego Zappata. De um lado,
o reitor Grassino foi dispensado; de outro, Dom Bosco chegara à decisão

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

de retirar-se. Em meio à confusão, Dom Bosco perdeu dois bons homens.


Padre Rocchietti, que não era salesiano, ficou na diocese. O excelente clérigo
Francisco Vaschetti, responsável em grande parte do sucesso da escola, foi
convidado a deixar a Sociedade na qual ingressara em 1859. Em 1862, Dom
Bosco fez com que os outros salesianos voltassem para Valdocco.
Apesar de tudo, aos salesianos cabe a honra de terem restabelecido o
seminário menor, que continuou com altos e baixos na matrícula, mas com
certo sucesso. Do tema Giaveno, Dom Bosco aprendeu valiosas lições. Em
primeiro lugar, que não podia confiar na chancelaria de Turim para um apoio
real à Congregação Salesiana e às suas Constituições. Em segundo lugar, que
para trabalhar com sucesso num seminário menor diocesano precisava da
propriedade dos locais e do controle da administração.

Seminário menor de Mirabello (1863-1869)


Mesmo antes de retirar-se de Giaveno, Dom Bosco iniciara negociações
com a municipalidade de Dogliani e com dom Luís Nazari di Calabiana, bis-
po de Casale, para a criação de um seminário menor a serviço da diocese.9
Antes das negociações com o bispo, Dom Bosco recebera, por volta de
1860, um pedido do pároco de Mirabello, município com pouco mais de
3 mil habitantes, situado a uns 40 quilômetros a leste de Turim, não distante
de Casale. O pedido era para abrir uma escola secundária, para a qual um
rico proprietário local, Vicente Provera, pai do clérigo salesiano Francisco
Provera, oferecia uma grande porção de terras com uma pequena casa e al-
gum dinheiro. Levando em consideração a necessidade de dom Calabiana,
em 1861, Dom Bosco organizou o itinerário do passeio de outono com uns
100 meninos para chegar ao santuário mariano de Crea e a Casale. De ali, o
grupo foi a Mirabello, onde acamparam durante a noite.
Em suas negociações com o bispo, Dom Bosco pôde oferecer-lhe a
atraente oferta de um pedaço de terras, embora situado numa aldeia. Em
outubro do ano seguinte (1862), Dom Bosco e, novamente, uns 100 jo-
vens, incluindo cantores, atores etc. caminharam por etapas até Mirabello.

9
Em meados do século XIX, a Diocese de Casale perdera o seu seminário menor na Revolução
Liberal. Ele existira aproximadamente desde 1700, mas fora fechado depois de 1848; os edifícios e bens
foram confiscados pelas leis Rattazzi de 1855 e nunca foram devolvidos. O edifício foi utilizado como
hospital militar e, posteriormente, como centro de comando militar para o Corpo de Engenheiros
do Exército. Escrevendo ao ministro da Justiça e Culto, José Pisanelli, em 1864, o bispo Calabiana
queixou-se da escassez de vocações sacerdotais para substituir o seu envelhecido clero e lamentava-se
do fato de que a sua diocese era a única das antigas províncias do Piemonte à qual não se permitia ter
um seminário menor.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O terreno fora limpo e o material reunido. O senhor Provera já prepa-


rara o projeto de construção; Dom Bosco contratou o empresário Josué
Buzzetti, irmão do construtor Carlos Buzzetti, que nesse momento estava
construindo um edifício no Oratório. Os dois irmãos foram oratorianos
dos primeiros tempos. A construção do edifício de Mirabello foi iniciada
imediatamente, depois foi retomada na primavera de 1863 e concluída no
outono daquele ano.
Em 30 de agosto de 1863, o bispo Calabiana redigiu o documento, ex
professo, de criação [do seminário].

Aproveitando a oferta feita por uma pessoa piedosa de construir um grande


edifício para essa finalidade no município de Mirabello, decidimos estabe-
lecer nele um seminário menor. Servirá principalmente para a formação de
jovens aspirantes ao sacerdócio.
A fim de obter uma boa direção desta escola, buscamos um sacerdote dotado
de todas as qualidades que se requerem para a educação cristã e cívica dos
jovens. Encontramos tal sacerdote no padre [Miguel] Rua. Pela presente, eu o
nomeio diretor do nosso seminário menor diocesano de São Carlos na cidade
de Mirabello; com prazer, concedemos-lhe todas as faculdades necessárias.
É desejo nosso que em todas as questões relativas aos estudos, ele siga os
programas previstos pelo governo de Sua Majestade para as escolas primárias
e secundárias.10

O custo da construção foi elevado, mais de 100 mil liras, mas possível
graças a benfeitores como a condessa Carlota Callori di Vignale e seu esposo
Frederico, dono de muito mais terras de vinhedos na região do que o senhor
Provera. O conde Frederico era prefeito de Casale. Em agosto de 1863, Dom
Bosco peregrinou até o santuário mariano de Oropa, nos Alpes, onde con-
cluiu o regulamento da escola, que era basicamente o de Valdocco.11
De volta a Turim, consultou seu Conselho, e em seguida nomeou a
equipe. Padre Rua, aos 25 anos de idade, era o diretor e único padre; os clé-
rigos Francisco Provera, prefeito, João Bonetti, catequista, Francisco Cerruti,
prefeito dos estudos; os três, com não mais de 20 anos. Além deles, Paulo Al-
bera com 19 anos de idade e ainda não professo. Dom Bosco também enviou
quatro aspirantes estudantes que, para isso, receberam o hábito clerical e de-
viam ser professores e assistentes: Francisco Dalmazzo, Domingos Belmonte,
Ângelo Nasi e Félix Alessio.
10
Ver P. Stella, Economia, 131, que cita um documento do arquivo diocesano de Casale.
11
Esse regulamento, não publicado, ficou descrito e resumido em MB VII, 519ss.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

A partida do grupo foi uma ocasião tão transcendental como o seria


mais tarde a dos primeiros missionários para Buenos Aires. Dom Bosco deu
conselhos e orientações detalhadas sobre o cuidado das vocações, a adesão
e o serviço ao bispo, respeito pelo pastor e manutenção de um “diário de
experiências”. Ele ainda prometeu ao padre Rua que seguiriam mais tarde,
por escrito, algumas orientações específicas. Essas linhas de ação, que pos-
teriormente serão reformuladas como Lembranças confidenciais aos diretores,
constituem um importante documento.12
Os salesianos chegaram a Mirabello no dia 13 de outubro de 1863.
As aulas começaram no início de novembro com os programas de primária
e secundária. Em novembro de 1863, Dom Bosco reuniu os salesianos de
Mirabello no Oratório e foi designado o capítulo da casa. Formou-se assim a
primeira comunidade salesiana independente, que incluía os melhores sale-
sianos que Dom Bosco pôde encontrar.
Nas Constituições de 1864, Dom Bosco assinala que os internos em Mi-
rabello eram cerca de 100.13 Em 1865, residentes e externos juntos somavam
ao redor de 170; em 1867, ao redor de 180.14
A escola de Mirabello era de propriedade totalmente salesiana. Era uma
escola salesiana que oferecia educação primária e secundária à população local
e servia, ao mesmo tempo, de seminário menor diocesano. Os residentes pa-
gavam pelo alojamento e a alimentação; os estudantes pagavam a matrícula,
mas também havia um bom número gratuito. Ainda assim, em Mirabello,
como mais tarde em Lanzo, as entradas para alojamento, manutenção e taxas
acadêmicas eram insuficientes para uma gestão sem perdas. Pode-se dizer o
mesmo de escolas similares mantidas por outras congregações religiosas.
Havia outros problemas de caráter institucional e político. Só um pe-
queno percentual dos estudantes pensava na vocação sacerdotal. As admi-
nistrações locais não dispunham de recursos para dar andamento à lei Casa-
ti. Em Mirabello, como em muitos lugares, o seminário menor, por acordo
tácito, funcionava também como escola pública. Em vista da educação que
recebiam, alguns pais, mesmo hostis, preferiam matricular seus filhos no se-
minário menor, e também no maior.
As normas estabelecidas por lei deviam ser sempre respeitadas; e, deste
ponto de vista, o colégio salesiano de Mirabello foi atacado. De um lado,

12
MB VII, 524s. Para um estudo crítico do texto, ver F. Motto, “I ‘Ricordi confidenziali ai
direttori di Don Bosco’”, RSS 3 (1984), 125-166.
13
Ver “Origem desta Sociedade”, em G. Bosco, Costituzioni, 68.
14
P. Stella, Economia, 132, onde cita uma carta de Dom Bosco ao ministro Ratazzi.

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Dom Bosco: história e carisma 2

a repartição de fiscalização do distrito exigia que pagasse as taxas, pois era


uma escola particular, sujeita a impostos; de outro, a autoridade educacional
da província (Alessândria) constatou que a escola não cumpria a lei sobre a
titulação dos professores. Para resolver essas exigências, Dom Bosco obtivera
do bispo Calabiana, de Casale, o reconhecimento da escola como seminário
menor, o Piccolo Seminario di San Carlo, sob a jurisdição da diocese, tendo
o bispo assinado o documento a pedido de Dom Bosco. A lei Casati podia
ser interpretada no sentido de que cabia a autonomia dos seminários, exceto
em determinadas áreas. Foi essa a forma com que Dom Bosco o apresentava
às autoridades educacionais, e assim foi na prática. Por sugestão sua, padre
Rua conversou pessoalmente com o superintendente provincial dos estudos,
para explicar-lhe que a escola era oficialmente considerada sucessora do se-
minário menor de Casale, que fora fechado. O juiz deixou passar. Mas Dom
Bosco tomou medidas para que os professores obtivessem o título requerido
tão logo possível. Ele também teve o cuidado de não publicar os regulamen-
tos escritos para a escola com o título “Normas para o Colégio residência
de São Carlos”. Em seu lugar, publicou um folheto intitulado “Seminário
menor diocesano”.

Lanzo Torinese (1864)


O colégio de Lanzo foi o primeiro internato salesiano municipal funda-
do por Dom Bosco. Os dois anteriores não eram municipais, embora tam-
bém atendessem à população local. Giaveno era um seminário menor dioce-
sano, e Mirabello, uma escola salesiana particular que atuava também como
seminário menor da diocese de Casale. Lanzo, de certo modo, constituía as
primícias.
Nessa época, Dom Bosco recebera várias ofertas de cidades desejosas de
encontrar uma solução para seu problema escolar. Ele escolheu Lanzo Tori-
nese, uma bela cidade situada nas colinas alpinas, cerca de 30 quilômetros a
noroeste de Turim. Dom Bosco conhecia pessoalmente a região e a cidade,
por ter feito retiros anuais na Casa de Santo Inácio e no santuário local com
o padre Cafasso, de 1844 a 1859.
Em Lanzo, funcionara uma escola para internos, sob o patrocínio do
município e dirigido por várias administrações durante uns cinquenta anos.
Situava-se nas instalações de um antigo convento capuchinho dissolvido por
Napoleão em 1802. Como outras escolas da região, tivera uma história aci-
dentada, até que a municipalidade decidiu fechar o internato para funcionar
apenas como escola. As matrículas reduziram-se quase completamente e a

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

escola continuou a funcionar de modo precário.15 O pároco de Lanzo, (beato)


padre Frederico Albert, convenceu a administração local a pedir ajuda a Dom
Bosco sendo, assim, instrumento para levar os salesianos a Lanzo. Ele era ami-
go de Dom Bosco há muito tempo; pregara um retiro na capela Pinardi nos
primeiros tempos.16 O local contava apenas com dois edifícios disponíveis,
mas em estado de completo abandono.
Dom Bosco, novamente, reuniu o melhor pessoal disponível para dirigir
a escola: padre Domingos Rufino (1840-1865: 24 anos de idade) como dire-
tor; os clérigos Francisco Provera (1836-1874), Pedro Guidazio (1841-1902),
Francisco Bodrato (1823-1880), José Fagnano (1844-1916), Nicolau Antônio
Cibrario (1839-1917), Tiago Costamagna (1846-1921), Antônio Sala (1836-
1895) e outros como “professores e assistentes”; no total, 12 salesianos.
Chegaram a Lanzo em outubro de 1864 e encontraram os edifícios ainda
em mau estado. Deram-se eles mesmos à tarefa de torná-los habitáveis. Em
novembro desse ano, teve início a escola, apenas primária, com a matrícula
de 88 internos e muitos estudantes externos. Para a secundária, Dom Bosco
precisava de um professor com diploma; o clérigo Fagnano apresentou-se aos
exames na universidade. Não conseguiu a aprovação, mas seu título foi recon-
siderado mais tarde, pois Dom Bosco intercedeu em seu favor. Em outubro
de 1865 foi aberta a secundária de nível I (gimnasio).
Sobreveio a tragédia quando, em março de 1865, o clérigo Francisco
Provera foi acometido de uma doença nos ossos e o padre Rufino morreu em
julho do mesmo ano de uma pneumonia contraída durante a Semana Santa.
Padre Lemoyne, que chegara ao Oratório apenas no ano anterior, foi nomea-
do diretor (1865-1877). Sob a sua direção, depois de um desencontro com o
prefeito sobre o projeto de ampliação, a escola floresceu.
Antes de aceitar a incumbência, Dom Bosco chegara a um acordo com
a administração de Lanzo para dirigir a escola durante dez anos, com opção
de renovação. O acordo, no qual se expunham os direitos e deveres das partes
contratantes, serviria de modelo para a criação de escolas salesianas muni-
cipais semelhantes em outros lugares. O documento foi assinado em 30 de
junho de 1864. São estes seus termos:17

15
Ver um panorama histórico das escolas da região e, em especial, da escola de Lanzo, em
P. Stella, Economia, 133-138.
16
Frederico João Luís Albert (Turim, 16 de outubro de 1820-Lanzo Torinese, 30 de setembro
de 1876) era padre da diocese de Turim, que servira como capelão real antes de ser nomeado pároco de
Lanzo. Renunciou a ser bispo. Fundou as Irmãs Vicentinas de Maria Imaculada, dedicadas à educação
da juventude e ao cuidado dos enfermos e idosos. Amigo íntimo de Dom Bosco, foi providencial na
fundação de Lanzo. Morreu depois de cair de um andaime no qual, como bom pintor, estava traba-
lhando na decoração de sua igreja.
17
Ver resumo em MB VII, 691ss, e em E. Ceria, Annali I, 71-77.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1. A cidade de Lanzo assume o compromisso de pagar a Dom Bosco


uma soma anual de 3 mil liras pelo ensino em nível de [escola]
primária e secundária e 100 liras para a concessão dos prêmios
habituais de cada ano.
2. A cidade de Lanzo permite a Dom Bosco utilizar para uso escolar
os locais do antigo colégio que compreendem os edifícios, a capela,
os pátios e os jardins.
3. A cidade de Lanzo assume a obrigação de preparar os edifícios
para serem usados e cuidar e de todos os locais.
4. A cidade de Lanzo só poderá dispensar Dom Bosco depois de uma
notificação prévia de cinco anos.
5. Dom Bosco assume todos os custos inerentes à criação do progra-
ma escolar.
6. A cidade de Lanzo concederá a Dom Bosco um empréstimo de 12
mil liras; para tanto, Dom Bosco apresentará uma fiança.
7. Dom Bosco providenciará professores titulados para os três graus
da [escola] primária e para os cinco anos de estudos secundários.
8. Todos os estudantes da escola secundária deverão pagar a matrícu-
la, excetuados os que a municipalidade comprovar que são pobres.
Os estudantes da escola primária que não pertencerem ao municí-
pio também deverão pagar a matrícula.
9. O internato abrirá suas portas no ano escolar 1864-1865.

Lanzo continuou a ser a escola favorita de Dom Bosco. Visitava-a com


frequência e serviu-se dela como campo de treinamento do seu pessoal
mais qualificado, como também para retiros e outras atividades de for-
mação. Ele mesmo, em seus últimos anos, passou os meses de verão no
agradável retiro das colinas de Lanzo.

Trofarello (1865-1870)
A casa foi doada por uma benfeitora. Embora tivesse podido desenvol-
ver-se como escola, nunca foi usada para isso. Em 1866, converteu-se em casa
de retiro para os salesianos, que até então faziam seus exercícios espirituais
com os meninos. Por volta de 1870, já não podia acolher o número sempre
maior de retirantes; a propriedade foi vendida e os exercícios espirituais re-
tornaram a Lanzo.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

Cherasco, província de Cúneo (1869-1871)


Dom Bosco aceitou este colégio municipal salesiano por um convênio
assinado com a cidade, similar ao de Lanzo. Não foi como ele esperava.
A pequena cidade, situada a cerca de 50 quilômetros ao sul de Turim, era
muito isolada e estava numa região pouco desenvolvida. Decidiu deixá-la e
transferir a escola à recém-inaugurada de Alássio, no litoral italiano. Dom
Bosco foi levado aos tribunais por quebra de contrato e outros encargos, e
perdeu. Recorreu, reduziram-lhe a pena e, finalmente, chegou a uma solução,
embora tivesse de pagar os danos e prejuízos.

Alassio, província de Savona, Ligúria (1870)


Esta fundação era um colégio municipal salesiano semelhante ao de
Lanzo. Um mês depois do acordo de Cherasco, Dom Bosco recebia o pedido
da municipalidade de Alassio, litoral oeste de Gênova. Já houvera uma ten-
tativa falida da parte das autoridades locais para criar algum tipo de escola
secundária. O clero local pensou em pedir aos dominicanos, que ali tiveram
um convento; eles retornaram, mas os frades não tinham pessoal suficiente.
Então, o pároco, com o apoio do bispo de Albenga Biale, recorreu a Dom
Bosco. Inicialmente, pensou-se numa residência com oficinas para os me-
ninos pobres e abandonados, à qual se poderia acrescentar algum nível de
escola secundária; as autoridades aceitaram. Em seguida, Dom Bosco con-
siderou que o internato teria mais sucesso se estivesse perto de uma grande
cidade, como Gênova; por isso, ofereceu-se para mandar pessoal e criar uma
escola secundária. As autoridades da cidade ficaram encantadas. Redigiu-se e
assinou-se um convênio por escrito.
Dom Bosco solicitou ao superintendente provincial de estudos a per-
missão para abrir uma escola primária de níveis I e II, e secundária de nível
I, e apresentou a lista dos professores. A permissão foi concedida. A Santa Sé
também concedeu a transferência da propriedade do antigo convento para
essa finalidade.
O pessoal era formado pelo padre Francisco Cerruti, 26 anos de idade,
já então doutor em Filosofia, como diretor; os outros eram 6 padres, 3 cléri-
gos e 7 noviços, que fariam o noviciado com o diretor, enquanto trabalhavam
como “professores e assistentes”.
Depois do primeiro ano de sucessos (1870-1871) foi criado o primeiro
nível completo de [escola] secundária e o primeiro ano do segundo nível da
secundária. As famílias católicas de Alássio e cidades vizinhas continuavam a

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Dom Bosco: história e carisma 2

pressionar os salesianos para criarem o programa completo da [escola] secun-


dária, porque não queriam que seus filhos fossem a uma escola leiga. Dom
Bosco reconheceu a necessidade e resolveu a questão econômica pedindo às
famílias que contribuíssem com o que gastariam para manter o filho num
liceu público. Dessa forma, deu-se início ao programa do liceu e o padre
Cerruti obteve grande sucesso.

Borgo San Martino (1870)


A escola de Mirabello estava situada em local inapropriado, distante da
estação de trem e, além disso, num lugar insalubre. Quando os locais se tor-
naram insuficientes para as matrículas, em vez de construir em Mirabello,
Dom Bosco, amigavelmente, convenceu o marquês Fernando Scarampi di
Pruney a vender-lhe sua vila e a grande propriedade que possuía perto de
Borgo San Martino. O contrato foi assinado em julho de 1870. A escola de
Mirabello continuou na nova localização sob a direção do padre João Bonetti,
que sucedera o padre Rua como diretor de Mirabello, quando este foi cha-
mado a Turim para substituir o padre Vitório Alasonatti, prefeito, falecido
em 1865. O bispo de Casale aprovou a nova escola como seminário menor
da diocese.

Varazze, província de Savona, Ligúria (1871)


Esta obra também era uma escola salesiana municipal. Em dezembro de
1870, Dom Bosco iniciou negociações com as autoridades municipais da pe-
quena cidade do litoral com a mediação do pároco local. A proposta era dotar
de pessoal a escola secundária da cidade, já estabelecida como escola de artes
liberais e de secundária técnica (no sentido da lei Casati). Recorreu-se a Dom
Bosco depois que duas congregações dedicadas à educação recusaram a ofer-
ta. O novo edifício, capaz de acolher uns 60 internos, estava sendo preparado
no que fora uma propriedade dos capuchinos; o convênio, pensado segundo
o modelo de Lanzo, foi assinado em julho de 1871. Estabelecia-se claramente
a responsabilidade econômica das partes, assim como o detalhamento dos
pagamentos das matrículas e de outros gastos.
O pessoal era formado pelo diretor, padre João Batista Francésia, 33
anos de idade, também doutor, 3 sacerdotes, 1 diácono, 7 clérigos, 2 coadju-
tores, 4 noviços e 2 aspirantes adultos.
O primeiro ano (1871-1872), com cerca de 100 residentes e muitos
estudantes externos, foi um sucesso. A escola continuou a crescer e nunca
retrocedeu.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

Marassi (1871) e, em seguida, Gênova-Sampierdarena (1872)


Este foi um internato salesiano todo particular. Dom Bosco não se es-
quecera da casa ou internato para meninos pobres que sempre quisera fundar
na Ligúria. O projeto teve início graças à generosidade das conferências de
São Vicente de Paulo e do banqueiro e senador marquês José Cataldi (1809-
1876), que arrendou a Dom Bosco por 500 liras ao ano a sua vila de Marassi,
que estava sem uso.
O pessoal era composto pelo diretor, padre Paulo Albera, com 27 anos
de idade, e também doutor, por 2 clérigos e 3 noviços leigos para dirigirem
as oficinas. Ao chegar, não encontraram nada preparado, mas a escola teve
início em novembro de 1871. Meninos não faltavam; as conferências de São
Vicente de Paulo mandavam alguns. Como em Valdocco e Mirabello, Dom
Bosco desejara que a escola também fosse seminário menor. O número dos
meninos logo superou a capacidade da casa que também estava localizada nos
Apeninos, bastante distante da cidade de Gênova e era de difícil acesso. Por
isso, no ano seguinte (1872), Dom Bosco procurou outro local. Graças ao
interesse do arcebispo de Gênova, dom Salvador Magnasco, com a ajuda das
conferências de São Vicente de Paulo e a autorização da Santa Sé, ele adquiriu
um convento e uma igreja de grandes dimensões em ruínas, que pertencera
aos teatinos. Localizava-se em Sampierdarena, subúrbio populoso e desenvol-
vido de Gênova, bastante semelhante aos bairros do norte de Turim, como
Borgo Dora e Valdocco.
Dom Bosco adquiriu as instalações por 37 mil liras. Para a restauração
da igreja e dos edifícios, ele precisava de quantia igual, que conseguiu com
uma coleta de caridade. A resposta do clero, da nobreza e da classe média rica
permitiu-lhe abrir a casa (Orfanato de São Vicente de Paulo), as oficinas e o
Oratório. Com numeroso pessoal sob a direção do padre Albera, a obra de
Sampierdarena caminhava para ser o “Valdocco da Ligúria”. Quando a Ins-
petoria da Ligúria foi criada em 1881, nela foi estabelecida a casa inspetorial,
sendo preferida a outras cidades do litoral (Alássio ou Varazze).

3. Importância da escola salesiana


A entrada decisiva de Dom Bosco no âmbito da educação através da
escola fora de Turim, nos anos de 1860 e inícios de 1870, embora sendo sig-
nificativa historicamente, foi apenas um começo que abriu horizontes mais
vastos para a Sociedade Salesiana. Quanto ao sucesso do novo apostolado
surgem várias questões que comentamos brevemente.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Nova orientação do trabalho salesiano nas escolas


Após o convênio com a administração de Varazze (1871) sobre a esco-
la municipal a serviço da cidade, Dom Bosco recebeu muitos pedidos se-
melhantes. Contudo, salvo duas exceções, não se comprometeu com escolas
municipais salesianas ou escolas particulares salesianas, que atendessem pe-
quenos povoados. A experiência de quase uma década de trabalho na escola,
sobretudo depois do encerramento e transferência da obra de Mirabello e a
lição de Cherasco, obrigou Dom Bosco a avaliar seu apostolado na escola e
a direção que desejava que ela tomasse. Estas duas cidades eram pequenas e
isoladas, e não permitiam muita atividade. É certo que, tanto Lanzo como
Alássio eram pequenas, mas tinham boas conexões ferroviárias e acesso fácil.
Seja como for, parece que Dom Bosco pensava numa nova direção, que lhe
permitisse o melhor emprego possível do pessoal e sua distribuição e uso dos
seus limitados recursos.
Estaria inclinado a prescindir das escolas nas pequenas cidades e optaria
pelas escolas localizadas em bairros populares das capitais de província e de
outras cidades provincianas maiores, acessíveis através de boas estradas e de
trem. A mesma dinâmica das cidades (a imigração, o desenvolvimento indus-
trial etc.) oferecia à obra salesiana boas possibilidades de crescimento.
Deve-se considerar que a experiência original do Oratório de Turim,
situado na crescente periferia dos bairros da cidade, experiência que con-
tinuou na fundação de Gênova-Sampierdarena, colocou Dom Bosco num
quadro social bem definido. Ele era a favor das massas dos bairros periféricos
populosos das cidades, e a expansão do trabalho nas escolas fora de Turim
devia seguir essa pauta. Ele percebeu que o futuro da escola salesiana ia nessa
direção, e esse discernimento levou-o a libertar-se da política da escola “mu-
nicipal”, nascida da lei Casati. Contudo, por isso mesmo, num momento em
que, depois da tomada de Roma em 1870, começava a diminuir a oposição
católica ao Estado liberal, Dom Bosco, com muitos outros, optou por dirigir
seus recursos pessoais a serviço da “escola católica”.
Tratava-se de uma escola promovida por católicos conservadores, finan-
ciada em grande parte por eles e frequentada por seus filhos e os filhos de
pessoas que, de alguma maneira, continuavam ligadas ao catolicismo. Fre-
quentemente aparecem no início da lista de fundadores os nomes do bispo e
de alguma rica família católica.
Sampierdarena é um exemplo. Começou em Marassi na casa de campo
do senador José Cataldi com o patrocínio das Conferências de São Vicente de
Paulo; pouco depois, transferiu-se a Sampierdarena com a ajuda do arcebispo

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

Magnasco. O pedido de ajuda de Dom Bosco era dirigido aos bons católicos
da região. No pedido, fala-se de jovens em situação de risco, que vagabun-
deavam pelas ruas, e da necessidade de uma casa e uma escola para eles; ele
nomeia os que tornaram a compra possível; encabeçam a lista dom Magnasco
e a baronesa Luísa Cataldi.
Por isso, Sampierdarena parece significar uma nova orientação que já
não correspondia aos pedidos das administrações das cidades, mas ao apelo
da Igreja por escolas católicas, com a finalidade de neutralizar a educação
laica ou a invasão dos protestantes.
Depois de 1870, e ainda mais depois de 1874, coincidindo com o final
da mediação de Dom Bosco entre a Itália e a Santa Sé, nota-se a diminuição
de sua relação com os administradores do Estado e um crescimento no re-
lacionamento com os bispos, o clero e o laicato católico. A escola salesiana
era financiada apenas em pequena parte com as mensalidades escolares ou as
pequenas subvenções anuais de instituições financeiras. O dinheiro provinha
principalmente de doações importantes e de legados de leigos católicos ricos,
como o conde Callori, o barão Cataldi, o conde Belletrutti, o barão Bianco
di Barbania, o conde Cays etc.
O Estado liberal defendia-se contra a escola católica, e salesiana, negando
o reconhecimento ou a paridade e, em geral, tornando difícil a sua vida. Os
jovens das escolas católicas, para obterem o diploma, deviam confrontar-se com
os estudantes de outras escolas particulares nos exames de Estado. Alguns deles
recebiam um tratamento duro. Contudo, o exame de professores examinado-
res, entre eles católicos ou anticlericais, podia ser justo e até indulgente.

A escola salesiana e a opção de Dom Bosco pelos jovens pobres


Escolas, em geral, para jovens de classe média
Alguém poderia perguntar se o compromisso de Dom Bosco pela edu-
cação através das escolas substituiu sua opção original pelos pobres, uma vez
que, em grande parte, só os jovens de classe média frequentavam as escolas de
nível secundário. Dom Bosco nunca abandonou, nem na teoria nem na práti-
ca, sua opção pelos “pobres e abandonados”. Mas também se sentiu obrigado
a responder às necessidades reais geradas pelos novos contextos políticos e so-
ciais. Além disso, o apostolado da escola não foi adiante como substituição da
opção original. Deve-se vê-lo, sobretudo, como ampliação da opção original.
Numa cidade provinciana, os “pobres e abandonados” seriam relativa-
mente poucos; estes eram uma minoria em relação aos jovens de famílias

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Dom Bosco: história e carisma 2

de renda baixa ou moderada ou, mesmo, de famílias burguesas. Nos anos


sessenta e setenta, a maioria dos filhos de agricultores e da classe operária não
estudava. Os filhos do “proletariado” raramente superavam os níveis da esco-
la primária. De aí que as escolas de nível secundário das províncias deviam
matricular predominantemente os jovens de classe média. Eram filhos de
trabalhadores proprietários, pequenos empresários e mercadores, comercian-
tes e funcionários da administração civil local, gente que tinha economizado
algum dinheiro e queria levar seus filhos à escola que lhes permitisse melhorar
a própria situação econômica e social.
A educação secundária superior ficava reservada, é óbvio, aos jovens
de famílias mais ricas. Isso aconteceu também no caso de poucos liceus,
bacharelados superiores, aceitos por Dom Bosco. Quanto à escola, por essas
razões, Dom Bosco não podia alegar que sua obra era para os pobres e aban-
donados e que dependia totalmente da caridade pública e privada. A maio-
ria dos estudantes pagava ao menos parte da matrícula, do alojamento e da
alimentação. Em geral, parece que as escolas, uma vez criadas, caminhavam
por conta própria. A fórmula “pobres e abandonados”, porém, podia ser
entendida no sentido de “moral e espiritualmente pobres e abandonados”,
uma categoria que crescia em bom ritmo com a secularização progressiva
da sociedade.
É evidente que Dom Bosco não se preocupou com o dilema: ou ora-
tórios para os jovens pobres e abandonados ou escolas [internatos] para os
jovens da classe média. Viu a necessidade e a oportunidade, e não duvidou.
As escolas salesianas seriam a plataforma de educação para os “cidadãos ho-
nestos e bons cristãos”, e o viveiro de vocações para o clero diocesano e para
a Sociedade Salesiana.

Compromisso permanente com os pobres


Ao mesmo tempo em que respondia ao apelo da Igreja e aproveitava as
novas oportunidades, Dom Bosco, concatenado estreitamente com a reali-
dade, jamais abandonou seu compromisso, teórico e prático, com os pobres.
Todos os apostolados salesianos são pelos jovens e os pobres, sendo parte in-
tegrante do carisma salesiano. Assim, em qualquer escola salesiana, reduzia-se
ou perdoava-se muitas vezes o pagamento da residência, alojamento e matrí-
cula, para acomodar os jovens de famílias mais pobres, especialmente se fos-
sem possíveis candidatos ao “estado eclesiástico”. Este princípio foi incluído
no “artigo do seminário” das Constituições de 1860, e Dom Bosco expressa
frequentemente essa mesma ideia nos pedidos aos benfeitores.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

Além disso, como é conhecido, Dom Bosco só aceitou a escola em Val-


sálice (Turim), depois de muito discernimento e diante dos pedidos insis-
tentes do arcebispo. Suas dificuldades surgiam precisamente porque era uma
escola da nobreza. Numa carta a dom Gastaldi, Dom Bosco dizia:

O que não anima meus irmãos [a aceitarem a escola de Valsálice] é o seguinte:


1. Nossa finalidade é trabalhar pela classe média e não pela nobreza. 2. Se as
pessoas de capacidade excepcional, como são os atuais administradores, não
podem ir adiante, como nós, pobres pigmeus que somos, poderemos esperar
obter êxito?18

Por classe média Dom Bosco podia ter entendido os pobres, em contraste
com a nobreza. Mas não é menos certo que nos anos sessenta e setenta as es-
colas secundárias, e as salesianas em particular, não eram uma exceção, eram,
em grande parte, para jovens da classe média.

O internato como experiência formativo-educativa


Dom Bosco fundou o primeiro colégio salesiano fora de Turim em
1863. Mas deve-se levar em conta que na década de 1850 ele já tinha criado
um colégio internato em Valdocco com um plano completo de estudos de
artes liberais de nível secundário.
Nos anos sessenta e também depois, ele envolveu-se totalmente na es-
cola. As outras formas de apostolado salesiano continuaram, mas o colégio
[internato] ocupou uma posição proeminente.
Por que um internato? Por que não uma escola? O internato era uma an-
tiga instituição, como demonstrava a prática jesuítica. É certo que no século
XVIII e no período romântico, por causa das ideias naturalistas da liberdade
na educação, o internato perdeu prestígio e popularidade. Mas experimentou
um ressurgimento no século XIX, ao menos na Itália. Os pais, na verdade,
preferiam colocar seus filhos num internato, pois acreditavam que ali recebe-
riam uma educação melhor.
O internato de Valdocco proporcionou a melhor experiência formativa
para Dom Bosco, ainda que fosse apenas porque ali ele mantinha jovens den-
tre os quais podia tirar colaboradores e que podia encaminhar para o sacer-
dócio. Do ponto de vista da relação educativa, o colégio internato significava
para Dom Bosco manter uma comunidade estudantil estável e controlável.
18
Carta de Dom Bosco a dom Gastaldi, de 22 de março de 1872. Cf. Epistolario III Motto,
411. Nas MBe, a tradução diz “Nossa finalidade é atender à classe pobre e não a nobreza”, enquanto no
original diz classe média. (Nota dos Editores)

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Dom Bosco: história e carisma 2

Isso lhe dava a possibilidade de um contato continuado e a sua influência,


assim como a experiência e a avaliação por parte do educador. O resultado
foi um enfoque inovador que demonstrou sua validade, comprovando sua
eficácia na formação de gerações de “honrados cidadãos e bons cristãos”, o
método educativo de Dom Bosco.
Essa experiência inicial, afortunada e enriquecedora de Valdocco foi sem
dúvida uma das razões pelas quais Dom Bosco se entregou de maneira deci-
siva ao campo da escola-internato. Em seguida, todas as escolas salesianas se
converteram em campo de prova do método de Dom Bosco, que se tornou
agora método salesiano. Pelo esforço em grande escala de recursos e de pes-
soas neste apostolado, num momento de grande necessidade, a Sociedade
Salesiana conquistou um lugar entre os institutos educacionais mais impor-
tantes e, sobretudo, o que é mais decisivo, contribuiu consideravelmente para
a vida católica.
A casa-residência do Oratório e as escolas-internato salesianas que se
seguiram converteram-se em locais nos quais se podia ver realizada a ação
da comunidade educativa salesiana. Importantes escritos educativos de Dom
Bosco têm a escola-internato como seu contexto natural. Por exemplo, as
biografias de Sávio (1859), Magone (1861) e Besucco (1864), a curta novela
com base histórica de Valentim ou uma vocação frustrada (1866), as Lembran-
ças para as férias (1872), o Regulamento para a Casa Anexa (1854, concluído
em 1876) e o pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo (1877).
Os Capítulos Gerais, ainda durante a vida de Dom Bosco, e mesmo de-
pois, durante um tempo notável, deram muita atenção ao internato, às suas
estruturas e às atividades dos estudantes e educadores.

O “artigo sobre o seminário menor” e a escola salesiana


Como se disse, as primeiras Constituições não mencionavam a escola
como tal. Não aparece como um apostolado especial da Sociedade, mas ape-
nas em relação com a promoção das vocações sacerdotais. No mesmo projeto
de Dom Bosco de 1864, o texto (pela primeira vez em 1860) diz o seguinte:

Além do mais, em vista dos graves perigos que os jovens desejosos de abraçar
o estado eclesiástico devem enfrentar, a Congregação aplicar-se-á com cuida-
do ao cultivo da piedade e da vocação de quem tenha aptidão especial para o
estudo e uma excelente disposição para a piedade.
Ao acolher os jovens que se encaminham aos estudos, deverão ser aceitos prefe-
rencialmente os que são mais pobres, pois carecem de meios para continuarem

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

seus estudos em outros lugares, sempre que derem uma bem fundada esperança
de êxito [em sua vocação] ao estado eclesiástico. Na casa de Valdocco, os jovens
que frequentam o curso clássico de estudos com esse fim somam ao redor de
555; e mais de uma centena em Mirabello.19

O último parágrafo continua a fazer parte do artigo sobre o seminário,


mas não como uma norma sobre a escola como tal. Pense-se o que se quiser
sobre a afirmação de que só em Valdocco 555 jovens faziam seus estudos com
esse fim, de serem sacerdotes.
O certo é que a opção de Dom Bosco de entrar no âmbito da escola e
de nela desenvolver o apostolado como ele a criou, tinha como motivo um
interesse mais amplo do que simplesmente vocacional e deu-lhe um cam-
po de aplicação além do seminário menor. Com frequência, ele expressou a
ideia de que o objetivo da escola salesiana era educar os jovens não só para
a vocação ao estado eclesiástico, mas para que fossem cidadãos honrados e
bons cristãos. Entretanto, quando as Constituições ainda estavam em fase de
desenvolvimento e se iam reconhecendo outros apostolados especiais, o da
escola não recebeu tratamento à parte no texto constitucional.

Importância atual
A presença de Dom Bosco no campo da escola-internato e seu eventual
total compromisso com esse apostolado devem ser entendidos como resposta,
no momento oportuno, a uma necessidade imperiosa, derivada de um espe-
cífico contexto histórico. Caso houvesse outra necessidade, num contexto
diferente, sua resposta teria sido, sem dúvida, diferente, por mais que a escola
fosse uma plataforma admirável para suas ideias educativas.
Consequentemente, o que Dom Bosco ou os Capítulos Gerais expõem
ou ordenam sobre a escola-internato deve ser entendido em seu contexto
histórico. Essas diretrizes também poderiam ter sido provocadas não por ge-
néricas considerações cristãs e pedagógicas, mas por uma visão cultural espe-
cífica, inclusive pela situação local e, portanto, não seria transferível a outros
contextos educativos.

Conclusão
Em meados de 1870, as escolas da Sociedade Salesiana eram bastante nu-
merosas e, parece, funcionavam com sucesso em muitos sentidos. Parece que,
no conjunto, funcionavam sem dívidas e também ganhavam algum dinheiro.

19
G. Bosco, Costituzioni, 76-77.

591

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Dom Bosco: história e carisma 2

Mas as finanças tinham-se esgotado, sobretudo por causa do elevado custo das
missões e expedições missionárias, da formação das vocações e das construções
em ato. Ceria conta que alguém fez uma sugestão:
Outra sugestão para fortalecer a economia seria abrir mais escolas-internato e
assim gerar entradas para a Sociedade. A resposta de Dom Bosco foi categórica:
“Nós devemos dedicar-nos aos jovens pobres. Precisamos de escolas-residência,
mas nossos oratórios festivos, internatos e casas para meninos pobres são fonte
de muitas vocações e meios extraordinariamente bons. O melhor que podemos
fazer é abrir casas como este Oratório de Turim, o internato de Sampierda-
rena e o pensionato de Nice [França], onde possam viver os estudantes e
os aprendizes, pobres ou à beira da pobreza [...]. Seremos aceitos pelos
bons e pelos maus, se organizarmos nossas casas de maneira modesta para
meninos indigentes”.20

E, em relação à opção pelos pobres, incluídas as escolas, Dom Bosco


informou numa conferência o conselho recebido de Pio IX em 1869, depois
da aprovação da Sociedade:
Esforce-se sempre no trabalho pelos filhos dos pobres. Não abandone sua
finalidade original. Faça com que sua Sociedade mantenha sempre esta orien-
tação; não aspire a coisas muito grandes [...]. Eduque os meninos pobres, não
abra escolas de internato para os ricos e a nobreza. Sua Sociedade prosperará
na medida em que dedicar seus esforços aos meninos pobres e órfãos, sempre
com o propósito de promover as vocações sacerdotais. Sua Sociedade, porém,
decairá ao se ocupar de escolas-internato para os ricos. Mantenha suas tarifas
baixas [...]. Ao educar os pobres, se os senhores mesmos forem pobres, se não
chamarem a atenção sobre si mesmos, ninguém os invejará, ninguém os ex-
pulsará. Deixá-los-ão tranquilos e poderão fazer muito bem.21

4. Evolução da obra salesiana de Turim e a atividade


edilícia de Dom Bosco (1860-1870)
Do ponto de vista socioeconômico, 1859 poderia ser considerado o iní-
cio de uma nova etapa na expansão da obra salesiana em Turim. No Oratório
de Valdocco, os residentes em 1862-1863, estudantes e aprendizes juntos,
somavam ao redor de 750. Depois de uma ligeira diminuição em 1864-1865,

20
MB XII, 373s.
21
MB IX, 565s. As razões, um tanto pragmáticas, surgiam de um contexto anticlerical hostil.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

a matrícula chegou a 800 em 1869-1870. Não havia espaço para novos pedi-
dos; tampouco parecia oportuno matricular novos alunos para, em seguida,
redistribuí-los por outras escolas salesianas, como fora o costume. Melhorar
e ampliar o edifício e os recursos educativos em Valdocco poderia remediar
a situação. Mas pareceu oportuno buscar novos espaços na cidade de Turim,
onde a obra salesiana pudesse desenvolver-se.
Uma série de acontecimentos na economia do país tornou-o possível.
O aumento dos impostos, a circulação obrigatória de papel moeda e a im-
posição de tetos salariais (1872-1873) provocaram uma nova recessão, com
graves consequências sociais: greves no norte, recrudescimento do banditis-
mo no sul e um novo impulso para o socialismo e o anarquismo. Por outro
lado, o crescimento de alguns setores da produção agrícola, em conjunto
com as austeras políticas econômicas aplicadas pelo ministro das Finanças,
Quintino Sella (1827-1884), produziram algumas melhorias nos anos ses-
senta. O fato é que, por volta de 1868, aumentaram as entradas de Dom
Bosco, vindas da caridade pública e privada. Depois da consagração da igreja
de Maria Auxiliadora (1868), ele pôde pensar numa nova ampliação.

Cronologia das obras de ampliação

No Oratório de Valdocco 22

Inícios de 1860: O edifício principal da Casa Anexa ficou pronto. Foram


adaptadas as casas Filippi e Audisio para serem habitadas.
Foi criada a tipografia.
1863-1868: Recomprou-se dos rosminianos (1863) o terreno ao sul
(“o prado dos sonhos”). Nesse terreno foi construída a
igreja de Maria Auxiliadora (1863-1868).
1869-1870: Ampliou-se a igreja de Maria Auxiliadora: o coro da igreja
foi aumentado e construiu-se uma nova sacristia.
1870: Dom Bosco comprou um terreno murado bastante grande ao
norte do pátio principal, conhecido como “o jardim” (l’orto).

1873: Dom Bosco adquiriu a casa Coriasco a leste, junto à igreja


de Maria Auxiliadora.22

22
Sobre a história e o desenvolvimento de Valdocco, ver F. Giraudi, L’Oratorio di Don Bosco.
Inizio e progressivo sviluppo edilizio della casa madre dei salesiani in Torino. Turim: SEI, 1935.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em outros locais de Turim


1863-1864: Os salesianos encarregaram-se do Oratório de São José, diri-
gido pelo senhor Occelletti no bairro de San Salvario, ao sul.
1866: Encerrou-se o Oratório do Anjo da Guarda, quanto à presença
salesiana, embora tenha continuado como Oratório de Santa
Júlia, igreja paroquial, construída pela generosidade testamen-
tária da marquesa Barolo (1865).
1870-1875: Dom Bosco, aos poucos, foi comprando os terrenos e as casas
no Oratório de São Luís. Mais tarde (1878-1882) seria cons-
truída a igreja de São João Evangelista.
1872: Foi pedido a Dom Bosco que construísse na cidade a igreja pa-
roquial de São Segundo. Dom Bosco modificou os planos para
fundar um oratório. A administração da cidade vetou os planos
e Dom Bosco renunciou ao projeto. A igreja seria construída
por iniciativa da diocese no governo de dom Gastaldi.
1872: Diante da insistência do arcebispo Gastaldi, Dom Bosco assu-
miu a escola de Valsálice, nas colinas próximas à cidade, a leste.

Aquisição de terrenos e a atividade edilícia em Valdocco (1869-1872)


Em 1869 e 1870, Carlos Buzzetti, um dos primeiros meninos do Orató-
rio de Dom Bosco, convertido em empreiteiro de construções, foi escolhido
para realizar a ampliação do coro da igreja de Maria Auxiliadora e construir
uma nova sacristia. Em seguida, construiu um edifício ao longo da redese-
nhada Via Cottolengo; o imóvel compreendia a nova portaria com uma nova
entrada para o Oratório e uma oficina.
Em novembro de 1861, Dom Bosco vendera um terreno localizado
além e a norte da periferia do Oratório, por cerca de 4.500 liras. Em 1870,
porém, a empresa que ali se localizou perdeu força, fazendo despencar o pre-
ço do solo na região. Dom Bosco, então, atuou rapidamente para recomprar
o terreno mais uma faixa adicional por 5.600 liras. Ao pedir a permissão ao
prefeito para cercá-lo, Dom Bosco disse que previra utilizá-lo como escola de
agricultura, “um campo de instrução pouco considerado”. Assim seria possí-
vel encaminhar os jovens nessa direção “em vez de formá-los como trabalha-
dores nos diversos ofícios, onde a competição já era muito intensa”.23 Buzzetti
23
Ver a carta de Dom Bosco ao prefeito Félix Rignon, de 18 de janeiro de 1871, em Epistolario
III Motto, 292. Pela primeira vez consta por escrito que Dom Bosco pensava numa escola de agricultu-
ra como alternativa desejável à aprendizagem de um ofício. Até então, talvez por experiência pessoal de

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

construiu o novo muro e, em julho de 1873, apresentou a Dom Bosco uma


fatura de 84 mil liras pelo trabalho realizado de 1869 a 1872.
Em 1873, a casa Coriasco foi posta à venda. Ela já existia antes da cons-
trução da igreja de Maria Auxiliadora, porém muito perto, além do permitido
pela lei. Como estava entre a igreja e outros edifícios do Oratório, precisou ser
comprada para a possível demolição. Dom Bosco escreveu à sua grande ben-
feitora, condessa Callori di Vignale, dizendo que um comerciante de vinho
pretendia comprá-la, “o que seria desastroso. Por isso, foi assinada uma escri-
tura de compra e venda por 15 mil liras [...]. Por favor, ajude-me, seja agora
ou em algum momento do futuro próximo ou mesmo dentro de um ano”.24
A escritura foi assinada em outubro de 1873 e a casa, demolida em 1874.

Oratório de São José no Borgo San Salvario


O Oratório de São José foi iniciado em 1859 por Carlos Occelletti Che-
valier (1812-1881) numa casa que possuía na rua Federico Campana, no
Borgo San Salvario, fora da cidade. Na época, a região estava se convertendo
num bairro médio da cidade, com edifícios ocupados por cidadãos de classe
média, alguns dos quais imigrantes recentes. Os locais do Oratório com-
preendiam uma parte da casa do senhor Occelletti, um grande pátio para o
recreio e uma capela grande e bonita.25 Antes de Dom Bosco encarregar-se do
Oratório em 1863, os padres locais atuavam como capelães.
A igreja paroquial da região, dedicada a São Pedro e São Paulo, foi inau-
gurada em novembro de 1865. O pároco, padre Maurício Arpino (1824-
1877), usou uma prática pastoral iluminada. Para atender às novas neces-
sidades sociais, criou um centro diurno, um local de acolhida, um oratório
paroquial para os meninos de menos idade, uma Conferência de São Vicente
de Paulo, associações de mulheres com finalidade beneficente e ensino reli-
gioso e sociedades de mútuo socorro.
O Oratório do senhor Occelletti fora organizado segundo o modelo do
Oratório de São Luís Gonzaga, localizado a menos de uma milha ao norte,
próximo à Porta Nuova, no mesmo bairro; mas atuava dentro da estrutura
paroquial. As mães acompanhavam seus filhos ao Oratório para a recreação
e instrução religiosa. O Oratório também era lugar de reuniões para adultos

agricultor, não considerou esse tipo de instrução como um modo de preparar o jovem para uma vida
melhor. Padre João Cocchi, diversamente, com quem Dom Bosco se tinha envolvido nos Oratórios
desde 1840, fundara uma instituição agrícola em Moncucco.
24
Dom Bosco à condessa Callori, em 15 de janeiro de 1873, em Epistolario IV Motto, 40-41.
25
Cf. MB VI, 160s; VIII; 491s; X, 1190; XII, 74s. P. Stella, Economia 173-174; E. Valentini,
L’Oratorio Festivo San Giuseppe 1863-1963. Turim: Scuola Grafica Salesiana, 1963.

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Dom Bosco: história e carisma 2

em ocasiões cívicas. Parece que essa gente preferia o ambiente religioso do


Oratório às manifestações puramente patrióticas na cidade.
Enquanto isso, em 1863, o Oratório do Anjo da Guarda no bairro de
Vanchiglia vira-se gravemente comprometido pelo projeto de renovação ur-
bana da Via Torino, onde se localizava; quando a igreja paroquial de Santa
Júlia foi inaugurada em 1866, este Oratório fundiu-se com o Oratório da
nova paróquia.
Em 1863, o senhor Occelletti, sempre próximo dos salesianos, pediu a
Dom Bosco que se encarregasse do Oratório de São José. O encerramento do
Oratório do Anjo da Guarda permitiu a Dom Bosco transferir mais pessoal
salesiano e recursos ao Oratório do Borgo San Salvario. O padre João Batista
Francésia foi nomeado seu diretor em 1864. Segundo Stella, em 1868, os
meninos que participavam do Oratório de São José chegavam a 400.
O senhor Occelletti, que considerava Dom Bosco “fundador, proprietário,
mantenedor e catequista desse Oratório, e o assistente atento de seus jovens mais
difíceis e irresponsáveis”,26 foi ordenado padre em 1878 e morreu em 1881.
No Oratório de São José, a participação e responsabilidade dos leigos
tiveram um papel mais importante do que em qualquer outro oratório de
Turim, não só em relação à importante atuação catequética, como também
em relação à presença de grupos locais de adultos que fizeram do Oratório
sua base social e também o objeto de seu interesse.
Este fenômeno, devido a um tipo de mentalidade partidária, podia ser ob-
servado na maioria das paróquias mais recentes de Turim. Suas origens tinham
raízes no costume da família patriarcal, tanto na cidade quanto no campo, de
formar associações ao redor da família ou dos que viviam no entorno. Essa
tendência social encontrou seu ambiente natural na paróquia e no Oratório.
Os salesianos, com sua ótica especial centrada no carisma de Dom Bosco, in-
terpretaram este fenômeno associativo como fruto do espírito de família criado
por Dom Bosco como fundamento da educação e da espiritualidade salesiana.
De fato, a tradição salesiana fomentou e reforçou essa tendência. Contudo, suas
verdadeiras origens eram, às vezes, autônomas e mais remotas.
Tanto os grupos de jovens como os de adultos do Oratório de São José
participaram ativamente na vida católica da cidade. Em 1913, esses grupos
se uniram ao movimento de leigos católicos em Turim para o qual também
contribuíram as pessoas em postos de liderança. Nessa época, o Oratório
transferira-se para ambientes melhores e maiores na Via Saluzzo, não distante
de sua localização original.
26
MB XII, 75s.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

O compromisso dos salesianos com este Oratório continuou até 1926.


Inicialmente, o pessoal vinha de Valdocco; depois, do Oratório de São Luís;
mais tarde, das comunidades de São João Evangelista e de Valsálice.

A igreja de São Segundo


A igreja de São Segundo, planejada como igreja paroquial, foi promovi-
da por um comitê de cidadãos sob a liderança do conde Sanmartino d’Agliè.
Foi erguida no bairro sul de San Salvario, a cerca de 100 metros a oeste da
estação de trem de Porta Nuova. O Oratório de São Luís situava-se pouco
distante ao lado oposto da mesma estação de trem. A administração da cidade
deu sua aprovação em janeiro de 1868, mas a obra não avançava, apesar de
a municipalidade ter-se comprometido em contribuir com 30 mil liras para
o projeto.
A proposta de encarregar Dom Bosco prevaleceu no comitê; em 7 de
julho de 1871 a municipalidade ofereceu-lhe, se aceitasse, as 30 mil liras pro-
metidas. Dom Bosco já estava planejando uma expansão do Oratório de São
Luís, que incluiria uma grande igreja e uma escola, e já comprara os terrenos
necessários para isso. Todavia, diante da nova oferta, pôs o Oratório de São
Luís em segundo plano e aceitou.
Para a construção do edifício, Dom Bosco chamou seus construtores de
confiança, Carlos e Josué Buzzetti. Enquanto isso conseguira do arquiteto a
modificação dos projetos a fim de obter o espaço necessário para um orató-
rio anexo à igreja. As obras preparatórias começaram em maio de 1872; em
seguida, depois de pagar 27 mil liras, o terreno estava pronto para iniciar a
construção.
Dom Bosco imprimiu e distribuiu uma circular dirigida principal-
mente “à boa vontade e à caridade da comunidade empresarial da cidade e
aos paroquianos da futura paróquia”. Calculava um custo total de 300 mil
liras. Entretanto, os inspetores municipais perceberam que a obra não seria
executada de acordo com o que foi projetado e aprovado em 1868. Em
agosto de 1871, o escritório de urbanização da cidade negou-se a aceitar
qualquer modificação dos projetos originais. Dom Bosco respondeu que
sua decisão seguia seu projeto original, que era “construir um oratório e
um centro de recreação para jovens, junto à igreja paroquial que se oferecia
aos adultos”.27 Dom Bosco renunciou ao projeto e a igreja foi construída
pela diocese.

Dom Bosco entrou em conflito com dom Gastaldi devido à dedicação da igreja de São Se-
27

gundo e, depois, por fazer da igreja de São João Evangelista um memorial de Pio IX.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ampliação no Oratório de São Luís


Depois de 1869, Dom Bosco voltara sua atenção ao Oratório de São
Luís, no distrito de San Salvario ao sul da cidade. A área leste da estação de
trem de Porta Nuova, onde se encontrava o Oratório, já fora construída e
estava em funcionamento. A criação de uma nova rua reduzira o território do
Oratório, diminuindo a participação dos meninos. Para reforçar o Oratório
e ampliar a presença salesiana na região, entre 1870 e 1875, Dom Bosco pre-
cisou comprar vários terrenos com as construções que estavam nelas ao custo
total de 70 mil liras.
Em 12 de outubro de 1870, Dom Bosco escreveu e distribuiu um pe-
dido de ajuda e, mais tarde, apresentou ao administrador da Casa Real a
solicitação de uma subvenção, fazendo constar que o complexo que estava
planejando incluiria “uma igreja, uma escola e uma casa para acolher uns
400 jovens pobres”. “Esta ampliação aliviaria a aglomeração no Oratório de
Valdocco, cuja capacidade já está completa com internos, e que recebe todos
os dias numerosos pedidos de admissão”.28
Dom Bosco já era dono de uma propriedade considerável, mas ainda
precisava de dois terrenos. Em janeiro de 1873, comprou por 5.700 liras a
propriedade de uma senhora chamada Felicidade Valenti Binelli. Ainda faltava
uma propriedade que pertencia a um comerciante chamado Henrique Mor-
glia, valdense fanático que não a venderia por preço algum. Depois de várias
tentativas falidas de negociar a aquisição, com a mediação de amigos, Dom
Bosco conseguiu que o Conselho de Estado declarasse o previsto projeto de
construção como obra de interesse público. Isso abriu caminho para a sua ex-
propriação. Dom Bosco depositou 15 mil liras num banco, fixando-se o valor
final da propriedade em 5.300 liras. O projeto, que incluía um grande edifício
escolar e a bela igreja de São João Evangelista, foi encomendado ao construtor
Carlos Buzzetti e concluído em 1878 ao custo final de 425 mil liras.

A escola de Valsálice
Em 1872, o recém-nomeado arcebispo dom Gastaldi pediu que Dom
Bosco se encarregasse da problemática escola diocesana situada em Valsálice,
nas colinas a leste da cidade. O edifício fora propriedade dos Irmãos das Es-
colas Cristãs, dispensados em 1863 pelo governo liberal da direção das escolas
primárias da cidade. Fora construído em 1857 e reconstruído em 1862, como
residência de verão da escola da nobreza (Colégio dos Nobres São Primitivo).

28
Carta circular de Dom Bosco, 12 de outubro de 1870, Epistolario III Motto, 261-272.

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Expansão da obra salesiana em Turim, no Piemonte e na Ligúria (1863-1875)

Quando foi fechado pelo governo em 1863, a Sociedade de Sacerdotes de


Turim encarregou-se dos edifícios. Esta sociedade, presidida pelo abade Ber-
nardo Michelotti (1798-1882) e pelo teólogo padre Francisco Barone (1813-
1882), fundou ali uma escola, mas com pouco sucesso.
Dom Gastaldi decidiu confiá-la a Dom Bosco, que se viu num dilema:
de um lado, não queria desgostar ao seu arcebispo, que já começa a distan-
ciar-se dele; de outro, mostrava-se receoso de aceitar uma escola para jovens
ricos. Quando o arcebispo insistiu, Dom Bosco ignorou os pareceres e o voto
do seu Conselho e aceitou-a.
Dom Bosco arrendou os locais aos Irmãos das Escolas Cristãs por cinco
anos (1872-1877) e colocou o pessoal adequado, com o padre Francisco Dal-
mazzo, com menos de 27 anos (1845-1895) como diretor. Padre Dalmazzo
era um salesiano diplomado e de família burguesa. Apesar de seu talento e
esforço teve pouco sucesso. Conseguiu, porém, a matrícula de até 100 es-
tudantes dos níveis primário e secundário I e II. Os problemas econômicos
foram um peso para a escola desde o início. Em 1879, Dom Bosco comprou
a propriedade dos Irmãos das Escolas Cristãs; a escola continuou a funcionar
com sucesso constante até 1887. Em 1887, Dom Bosco decidiu converter
a escola em “Seminário para as Missões Estrangeiras”, na verdade, um estu-
dantado filosófico para a Sociedade Salesiana, que funcionou durante muitos
anos como importante centro de formação salesiana.

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Capítulo XIX

DOM BOSCO E MARIA IMACULADA,


AUXILIADORA DOS CRISTÃOS

A devoção pessoal de Dom Bosco por Maria transcendia qualquer tí-


tulo, tradicional ou vinculado a santuários populares locais; era solidamen-
te fundamentada na mariologia tradicional da Igreja (Mãe de Deus/Cristo,
Theotokos) e na devoção popular tradicional (a Virgem ou, simplesmente, a
Madonna = Nossa Senhora). Dom Bosco, certamente, como a maioria dos
que o rodeavam, sentia-se confortável com os diversos títulos marianos lo-
cais. Não obstante, em alguns momentos decisivos de sua vida, respondendo
a circunstâncias históricas, ele defendeu a devoção a Maria sob determinado
título orientado eclesiologicamente, a saber: Imaculada Conceição e Auxílio
dos Cristãos. Sua devoção a Maria com título determinado aparece, pois,
como um aspecto particular da percepção que ele tinha da presença funda-
mental de Maria na Igreja.
A defesa de alguns títulos marianos feita por Dom Bosco deve ser colo-
cada, portanto, em relação com contextos sociais e históricos concretos e com
sua compreensão do significado de Maria nesses contextos. Assim, por exem-
plo, refletindo-se sobre a decisão de Dom Bosco de pôr a grande igreja que
construiu em Turim nos anos sessenta sob o título de Auxiliadora dos Cristãos,
devem-se considerar os fatos históricos que desempenharam um papel-chave
nessa escolha.
Em seu estudo sobre Domingos Sávio, padre Caviglia escreve:

Sob qual título Dom Bosco inculcou a devoção a Maria e qual foi o objeto
da devoção de Sávio? A resposta é: “Todos e nenhum em especial”. No sonho
dos 9 anos, a Virgem que apareceu a Dom Bosco não era uma Virgem com
um título específico, mas simplesmente a Virgem Maria, a Mãe de Jesus. No
momento do qual estamos falando [anos 1840 e 1850], o santo mestre era
devoto da Virgem sob o título de Nossa Senhora da Consolação (Consolata,

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

a Virgem da cidade de Turim). A primeira estátua de Maria na capela Pinardi


foi da Consolata.
Mais tarde, quando o movimento religioso que levou à definição pela Igreja
do dogma da Imaculada Conceição de Maria [1854] adquiriu força, a de-
voção de Dom Bosco seguiu na mesma direção; durante algum tempo, sua
devoção concentrou-se nesse título. Com seu genuíno espírito católico e um
profundo conhecimento de suas implicações, assumiu esse artigo de fé [da
Imaculada Conceição] como programa de devoção e espiritualidade. Durante
muito tempo, a Imaculada Conceição continuou a ser, em certos aspectos, a
Virgem de Dom Bosco. Foi essa a devoção que Sávio aprendeu de Dom Bos-
co no início [...]. Entretanto, o santo mestre estimulou todas as devoções ma-
rianas. Dessa forma, a prática do rosário implica uma devoção a Maria com
esse título. (A pequena capela nos Becchi e o altar de Maria na igreja de São
Francisco de Sales, diante do qual se viu frequentemente Sávio de joelhos em
oração, eram dedicados à Virgem do Rosário.) Da mesma forma, Dom Bosco
e, seguindo o seu exemplo, seus meninos cultivaram a devoção à Virgem das
Dores. (O pequeno altar de Maria no dormitório de Sávio era dedicado a ela
com esse título.) [...] Desde 1860, Maria Auxiliadora converteu-se numa pre-
sença crescente na vida de Dom Bosco; com a consagração da grande igreja
em sua honra [1868], Maria Auxiliadora tornou-se a Virgem de Dom Bosco.1

A mariologia de Dom Bosco era simples e eminentemente pastoral; em


geral, ele absteve-se de especulações. Com risco de parecer anacrônicos, pode-
ríamos dizer que sua doutrina sobre Maria acompanhou as linhas do futuro
Concílio Vaticano II, derivadas da reflexão sobre a Escritura, os Padres, os
primeiros Concílios, a tradição e a história da Igreja através dos séculos. Seus
aspectos soteriológicos são simples: Deus escolheu Maria, uma mulher, para
cooperar na encarnação do Filho. Com essa finalidade, Deus preservou-a de
todo pecado, abençoou-a de maneira particular. E, como estava perfeitamen-
te redimida, Deus elevou-a à glória, também em seu corpo físico. Maria, Mãe
do Verbo Encarnado e, portanto, Mãe de Deus, aceitou sua escolha com
perfeita obediência, em santidade de vida, no serviço humilde e na associação
com a paixão redentora de seu Filho. Entregue por Cristo na cruz como nossa
Mãe, ela continua a ser a mãe e o auxílio da Igreja e de cada cristão, em todas
as circunstâncias. Por isso, em razão dos dons de Deus e da sua correspondên-
cia, Maria merece especial reverência, gratidão e culto.

A. Caviglia, “Savio Domenico e Don Bosco”. In: Id., Opere e scritti. IV.II. Turim: SEI, 1942,
1

314-315.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Nesse quadro doutrinal, Dom Bosco experimentou na devoção a Maria


sua presença viva e orientadora durante toda a vida. Manteve uma relação terna
e pessoal com ela e expressou sua devoção com a oração e a dedicação pessoal à
missão. Era a favor das manifestações de culto devocional a Maria na celebração
das festas litúrgicas tradicionais em seu louvor, fazendo delas instrumento de
crescimento na vida cristã para ele e para seus meninos. Acolheu e fomentou as
devoções tradicionais e populares, desde que fossem teologicamente seguras e
espiritualmente proveitosas. Ele desencorajava a piedade exagerada, as práticas
supersticiosas e o sentimentalismo. Sua oração a Maria tem raízes na liturgia e
na tradição da Igreja e tinha como elementos básicos a Ave Maria, o Sub tuum
praesidium, o Angelus e o Regina Coeli, os hinos do tempo litúrgico (Salve Re-
gina, Ave Regina Caelorum, Salve Redemptoris Mater), o rosário, as ladainhas
e, obviamente, as jaculatórias de todos os tipos. Enfim, não podia conceber a
devoção a Maria, qualquer que fosse a sua forma, sem o esforço de imitar suas
virtudes, sobretudo a fé, o amor e a pureza, e de viver o ensinamento de Cristo
e da Igreja. A meta da devoção a Maria deve ser uma vida cristã melhor. Esse
aspecto ético-pastoral era uma prioridade na devoção mariana de Dom Bosco.
Quais circunstâncias históricas levaram-no, depois, a preferir a devoção
mariana sob o título de Imaculada Conceição e de Auxiliadora dos Cristãos?

1. A devoção de Dom Bosco a Maria sob o título de


“Imaculada Conceição”

Precedentes
A devoção a Maria como Imaculada Conceição chegou a ser muito re-
levante na vida de Dom Bosco, tanto para seu uso pessoal como por motivos
eclesiais. Por isso, merece atenção especial, não só pela importância adquirida
num contexto histórico específico nos anos cinquenta, como também pela
forma com que ficou associado à obra de Dom Bosco, na qual jamais deixou
de ocupar um lugar privilegiado.
A devoção à Imaculada Conceição com seus símbolos floresceu na
Espanha e na França depois da Reforma. Da França estendeu-se ao Pie-
monte, por obra e graça dos jesuítas, e se manteve mesmo depois de serem
suprimidos. Maria era honrada com esse título no seminário de Chieri,
cuja capela era dedicada à Imaculada Conceição. Sua imagem estava sobre
o altar; sua estátua era venerada numa capela lateral. A igreja anexa ao
palácio do arcebispo de Turim, onde Dom Bosco recebeu as ordens sacras,
era dedicada à Imaculada Conceição.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

A obra do Oratório, como Dom Bosco destaca em suas Memórias, ini-


ciou em 1841 e reiniciou em 1844 na festa da Imaculada Conceição. Dom
Bosco quis iniciar seu segundo Oratório, de São Luís, também na festa da
Imaculada Conceição. Nos inícios de dezembro de 1850, Dom Bosco foi a
Milão para pregar o jubileu proclamado por Pio IX a fim de obter a ajuda
de Deus para a Igreja naqueles tempos difíceis, após o estalo da Revolução
Liberal de 1848. Em seguida, apressou-se em retornar ao Oratório para a tra-
dicional conferência de 8 de dezembro, conforme seu costume desde 1842,
quando recordava a proteção de Maria Imaculada à obra do Oratório.2
Parece, então, que antes de a Imaculada Conceição converter-se em sím-
bolo eclesial e, posteriormente, em símbolo permanente da educação sale-
siana, esta devoção envolvia Dom Bosco numa experiência muito pessoal
relacionada com sua vida e obra.

Definição do Dogma da Imaculada Conceição

Expectativa e devoção no Oratório


Em 1847, os bispos piemonteses pediram orações para se chegar à defini-
ção do dogma da Imaculada Conceição em resposta à encíclica Ubi Primum,
de Pio IX. Desde então, ofereceram-se regularmente orações no Oratório
com essa finalidade. Pouco antes da definição, em 1854, enquanto a cólera
prosseguia em Turim e outras partes da Itália, o Papa proclamou um jubileu
especial com a encíclica Apostolicae Nostrae Caritatis, para obter a proteção da
Virgem Imaculada contra “todos esses males”. Enquanto atendia as vítimas
da cólera, o pessoal do Oratório intensificava suas orações a Maria Imaculada.
Pela bula Ineffabilis Deus, no final de 1854, Pio IX definiu o dogma da
Imaculada Conceição, enquanto amainava a cólera que assolara a população.
Domingos Sávio, que entrara no Oratório umas cinco semanas antes como
estudante, viveu uma verdadeira exaltação pela definição. O cardeal Cagliero
declararia posteriormente:
Recordo sua alegria incontida no dia da definição do dogma da Imaculada
Conceição, em 1854, ano em que [Domingos] entrou no Oratório. Sua emo-
ção e entusiasmo não conheceram limites durante a celebração dessa festa sole-
ne. O Oratório e toda a cidade de Turim foram iluminados com lâmpadas para
a ocasião. Dom Bosco tinha-nos dado permissão para sair [para ver as festas], e
Domingos não podia conter sua emoção ao presenciar o júbilo popular.3

2
MB IV, 181.
3
Veja-se o testemunho do cardeal Cagliero no processo apostólico de Domingos Sávio, Positio
super virtutibus. Roma, 1926, 135.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os meninos do Oratório viveram um período de incrível fervor.


A igreja da Consolata foi o centro das celebrações em honra de Maria
Imaculada; as celebrações duraram até 1855 avançado; reservou-se um
dia específico na igreja da Consolata para a comunidade do Oratório.
Fixou-se a festa da Anunciação, 25 de março, para as celebrações na cida-
de toda em honra da Imaculada Conceição, que chegou a significar um
verdadeiro renascimento religioso.4
Parece justo dizer que a Companhia da Imaculada Conceição fundada
pouco tempo depois (junho de 1856?) deve sua existência a este surto de
devoção a Maria Imaculada. Como narra Dom Bosco na Vida de Domingos
Sávio, foi fundada por iniciativa de Domingos, embora existam testemu-
nhos contrários.5

Símbolo eclesial da mulher pisando a cabeça da serpente


Padre Francésia fala das intenções anticlericais de interromper as cele-
brações.6 O oblato padre Vicente Berchialla, que pregou na celebração sale-
siana, realizada na igreja da Consolata, falou sobre o texto “Porei inimizade
entre ti e a mulher” (Gn 3,15) e predisse que o socialismo, o liberalismo e
suas sociedades secretas seriam vencidos, como o fora o pecado original por
Maria, que pisou a cabeça da serpente.
Estas afirmações retóricas expressavam a esperança, se não a expec-
tativa, entre os devotos católicos conservadores. Manifestavam também o
viés político do dogma e da devoção à Imaculada Conceição no contexto
histórico especial, em meados do século XIX. A bula Ineffabilis Deus, de
Pio IX, fala de Maria Imaculada como aquela que, sendo totalmente pura,
humilhou a cabeça da serpente, aquela que destruiu todas as heresias, aque-
la que é defesa segura da Igreja, aquela que salva o povo cristão dos males
mais letais e é seu refúgio seguro e auxílio fiel. Em outras palavras, Maria
Imaculada apresenta-se como símbolo da vitória do bem sobre o mal.
Para perceber o peso político do título e a retórica relacionada com ele,
é preciso levar em consideração a situação histórica peculiar atravessada pela

4
Cf. MB V, 213.
5
O clérigo José Bongiovanni em carta sem data a Dom Bosco põe o nome de Domingos em quar-
to lugar entre os membros fundadores: “Foi um dos fundadores da Companhia da Imaculada Conceição,
o quarto, e assumiu a proposta com grande alegria” (carta no arquivo da Positio super virtutibus, 480).
6
“A celebração popular externa foi alterada em parte devido à gente hostil. As lâmpadas leva-
das pelo povo fiel em honra de Maria foram apedrejadas, de modo que os fiéis tiveram de deixá-las e
manifestar sua devoção a Maria de forma privada. No Oratório, sob a orientação de Dom Bosco, nós
nos superamos a nós mesmos. A festa foi precedida de uma novena...”. (J. B. Francésia, La Vergine
Immacolata, Don Bosco e i Salesiani. San Benigno: Scuola Tip. Salesiana, 1904, 17-18).

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Itália, em particular o Reino da Sardenha, na década de 1850.7 A ideia da


participação de Maria na luta contra os poderes do mal e a ideia de que Ela
conduz os fiéis à vitória não é nova.8 Entretanto, no contexto histórico es-
pecífico da década de 1850, os poderes do mal com que devia defrontar-se
eram o secularismo e a heresia. Esse significado específico está nos livros de
devoção como o Mês de Maio, de Dom Bosco, de 1858. Escusado dizer que
esse mesmo alcance é dado, com maior clareza ainda, ao título de Auxiliadora
dos Cristãos, nos anos sessenta. Há, portanto, continuidade, e também fusão,
entre os dois títulos: “Imaculada Auxiliadora dos Cristãos”.

Maria Imaculada e a obra de Dom Bosco. Um símbolo educativo


A Imaculada Conceição também proporcionou a Dom Bosco outro tipo
de símbolo. Ele iniciara sua obra em favor dos jovens pobres e abandonados
numa festa da Imaculada. Esta circunstância interpretada à luz de seu pri-
meiro sonho, e dos posteriores, e do crescimento na devoção à Imaculada
Conceição nos anos quarenta e cinquenta, proporciona o quadro devocional
e teológico a partir do qual ele contemplou seu apostolado. Primeiramente
à catequese e à educação da juventude, com que se cristianizava a sociedade,
uniu-se a Igreja que estava combatendo contra “os poderes do mal”, embora
de maneira menos política e militante.
Em seguida, a Imaculada Conceição proporcionou-lhe um símbolo
mais adequado ao seu sistema educativo, que também era modelado por uma
espiritualidade segundo o modelo da “Mãe Puríssima”. “A Virgem Imacula-
da, a Mãe Puríssima, recusa tudo que seja contrário à santa pureza”.9 Dessa
forma, o símbolo que fora apresentado em São Luís ganhou importância
teológica através da Imaculada Conceição. As biografias de Sávio, Magone
e Besucco são a prova dessa evolução. Isso explica o papel importante que a

7
A Revolução Liberal de 1848, que convertera o Reino da Sardenha em monarquia constitu-
cional parlamentar, também assentou suas bases para a criação da República romana de Mazzini, que
obrigou Pio IX a exilar-se durante o ano de 1849. No Reino da Sardenha tomaram-se várias decisões
destinadas a secularizar a sociedade e frear o poder da Igreja. Em 1848, instaurou-se na escola um
sistema leigo com a reforma educacional de Boncompagni. Em 1850, os antigos privilégios da Igreja
foram abolidos pela lei Siccardi. Em 1854-1855, foi debatido e aprovado no Parlamento o projeto de lei
Cavour-Rattazzi, que decretava a dissolução das congregações religiosas e o confisco dos bens da Igreja.
Esta era a cabeça da serpente (todos esses males) que Maria Imaculada era chamada a destruir.
8
Era uma interpretação tradicional de Gn 3,15. O Tratado da verdadeira devoção, de São Luís
Maria Grignon de Montfort (1673-1716) apresenta Maria como a figura escatológica que enfrenta o
Anticristo (com referência a Ap 12), e seus verdadeiros devotos como a vanguarda da Igreja na luta final
contra os poderes do inferno.
9
G. Bosco, Il mese di maggio consacrato a Maria SS.ma Immacolata ad uso del popolo. Turim: G.
B. Paravia e Co., 1858, 154.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Companhia da Imaculada Conceição desempenhou no Oratório. A festa da


Imaculada tinha um papel-chave no Oratório, pois era o momento em que
Nossa Senhora varria a casa, ou seja, tornava possível ao educador livrar-se
dos jovens mais indóceis e menos idôneos.10

Capa do livro devocional de Dom Bosco O mês de maio


consagrado a Maria Santíssima Imaculada para uso do povo (1858).

2. O mês de maio (1858)


O mês de maio em honra de Maria Imaculada (1858) é o primeiro texto
mariano importante de Dom Bosco, um marco na trajetória da sua devoção
mariana.11 Em 1845, enquanto ainda trabalhava nas instituições da marquesa

MB VI, 787.
10

“Il mese di maggio consacrato a Maria SS.ma Immacolata ad uso del popolo, per cura del sac. Bosco
11

Giovanni (Letture Cattoliche 6:2). Turim: G. B. Paravia e Co., abril 1858, 192p.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Barolo, ele escrevera um piedoso exercício em honra das Sete Dores de Nossa
Senhora, embora não nos tenha chegado nenhuma cópia da obra. O mês de
maio, folheto de 192 páginas, foi publicado nas Leituras Católicas e reimpres-
so muitas vezes. Foi escrito para servir de apoio no exercício de devoção mais
popular em honra de Maria, e pretendia, ao mesmo tempo, render homena-
gem à Imaculada Conceição.

História da prática da devoção do Mês de maio


A prática do mês de maio em honra de Maria lançou raízes na Itália nos
inícios do século XVIII. Em 1726, o jesuíta Aníbal Dionisi escreveu um Mês
de Maria [...] com a prática das flores de virtudes propostas a seus verdadeiros de-
votos. O autor inculca a prática de diversas virtudes no mês das flores (maio),
juntamente com orações, cantos e meditações.12 Internatos e casas religiosas
assumiram essa prática, que, estimulada pelos jesuítas, estendeu-se rapida-
mente por toda a Itália.
Algo similar aconteceu na França, quando Pedro Doré traduziu o Mês
de maio consagrado às glórias de Maria, do jesuíta Francisco Lalomia.13 Como
Santo Afonso, este autor enaltecia “as glórias de Maria”, fórmula que fez grande
sucesso na França, mas não tanto na Itália. Pouco mais tarde, o jesuíta Afonso
Muzzarelli retomou e adaptou a fórmula de Dionisi e escreveu o Mês de Maria,
que teve muitos imitadores.14 Na fórmula moral-ascética de Muzzarelli, a fina-
lidade dos exercícios do mês de maio não era celebrar diretamente as glórias de
Maria, mas santificar a vida cristã por meio da prática da virtude e da medita-
ção das verdades cristãs. Esse enfoque foi criticado por alguns, pois o mês de
maio adquiria um caráter de segunda quaresma, o que produziu controvérsia
entre os defensores das duas fórmulas. Havia também aqueles que adotaram
uma fórmula híbrida, que mesclava temas moral-ascéticos com a reflexão e
exemplos de caráter mariano.

A fórmula de vida cristã no exercício do Mês de maio, de Dom Bosco


Ao enfrentar o dilema, Dom Bosco, apesar do seu grande amor pelas
“glórias” de Maria, não duvidou em escolher a fórmula de Muzzarelli como

12
Il mese di Maria o sia il mese di maggio consacrato a Maria coll’esercizio di vari fiori di virtù
proposti ai veri divoti di Lei, dal padre Annibale Dionisi della Compagnia di Gesù, da praticarsi nelle case
de’ padri di famiglia, ne’ monasteri, nelle botteghe etc. Parma: Eredi di Paolo Monti, 1726.
13
Francesco Lalomia, Il mese di maggio consacrato alle glorie della gran Madre di Dio coll’esercizio
di vari fiori di virtù. Palermo, 1758.
14
Alfonso Muzzarelli, Il Mese di Maria, o sia di Maggio. Ferrara, 1785. Teve cerca de 150
edições e foi traduzido para o inglês, árabe, espanhol, francês e português.

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Dom Bosco: história e carisma 2

mais adequada para melhorar a vida moral e religiosa do povo cristão. Seu
Mês de maio em honra de Maria Imaculada trata menos de Maria do que da
vida cristã. Consiste num tratado espiritual que acompanha o leitor num iti-
nerário de Deus Criador à salvação prometida no céu. Para as práticas do mês
de maio, então, Dom Bosco preferiu convidar os fiéis a concentrarem-se na
vida e na prática cristã em vez de nas glórias de Maria. Ele concebia qualquer
devoção, além da de Cristo, a Maria ou aos santos, como a aplicação na vida
cristã real das palavras de Jesus: “Se me amais, guardareis meus mandamen-
tos” (Jo 14,15), sem qualquer sentimentalismo.
Não obstante, dedicou especificamente a Maria o exercício de introdu-
ção, previsto para 30 de abril, os dois últimos dias de maio e o exercício final
(para 1o de junho). Para o restante do mês, Dom Bosco propunha aos leitores
a oração e a meditação dos mesmos temas tratados nos exercícios espirituais
e nas missões paroquiais.

O formato é simples. Depois da invocação inicial, “Ó Deus, vinde em meu


auxílio [...]”, segue-se uma breve meditação (leitura espiritual) sobre o tema
do dia. Continua com um exemplo tomado da Bíblia, da vida dos santos,
de gente famosa, de simples cristãos, alguns da experiência pessoal de Dom
Bosco, por exemplo, o de Domingos Sávio ou de uma prostituta no leito de
morte. Conclui o exercício do dia uma breve invocação e o Lembrai-vos, ora-
ção atribuída a São Bernardo, paráfrase do Sub tuum praesidium.

Um curso de vida cristã


O ensinamento de O mês de maio é tipicamente dombosquiano. Dom
Bosco oferece a síntese do seu programa espiritual-devocional pessoal, seu
modo de ver como a vida cristã deve ser vivida, e aproveita o mês de maio
para oferecer esse programa em linguagem simples para o povo simples e seus
filhos.
A proposta básica de Dom Bosco refere-se à salvação. Esta é a vitória to-
tal sobre o pecado e a morte, é aquilo de que trata a vida cristã: “Deus, alma,
eternidade”. Na meditação para o segundo dia, dirige-se assim aos cristãos:
“Ó cristão, tens uma alma imortal! Se a salvas, tudo está salvo; se a perdes,
perdes tudo. Pensa nisto. Só tu tens uma alma; e um só pecado pode pô-la
em perigo. O que nos aconteceria se fôssemos chamados perante o tribunal
de Deus neste mesmo instante?”.
O conteúdo é dividido em duas seções separadas por reflexões sobre a
morte, o juízo e o inferno; no centro estão a morte e as verdades que a acom-

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

panham (dias 15-19). Na primeira seção (dias 1-14) explica-se como é possível
converter-se depois de ter pecado e, assim, ganhar o céu. O mês de maio apresen-
ta um itinerário espiritual, o caminho da salvação. Em sua estrutura, sequência,
conteúdos e linguagem, a obra também revela a ideia religiosa do autor.

Maria no Mês de maio, de Dom Bosco


A obra tem seu centro, portanto, em temas de vida cristã. Quando o
objeto é Maria, Ela é apresentada em geral como Mãe de Deus, Mãe de
Cristo, nossa Mãe, Patrona celestial etc., e não com um título determinado.
No exercício de introdução para 30 de abril, ao falar do motivo pelo qual se
deve ser devoto de Maria, Dom Bosco escreve: “Vou iniciar apresentando os
três motivos principais: Maria é a criatura mais sagrada em toda a criação de
Deus, Maria é Mãe de Deus, Maria é nossa mãe”.15
Ao longo da obra, porém, oferece-se ocasionalmente algum título es-
pecial; Maria Imaculada, como era de esperar, é um deles. Por exemplo, o
titulo do livro Mês de maio em honra de Maria Imaculada. Além de tudo,
foi escrito após a definição do dogma da Imaculada Conceição (1854) e na
sequência das aparições de Lourdes (1858). Ao falar da santidade de Maria,
Dom Bosco menciona sua Imaculada Conceição, sem fazer qualquer refe-
rência a Lourdes. Dom Bosco escreve: “A Igreja católica expressa a santidade
de Maria definindo que ela esteve sempre isenta de qualquer pecado. A Igre-
ja convida-nos a invocá-la com esta preciosa oração: “Rainha concebida sem
pecado original, rogai por nós”.16 Mais tarde, ao falar do pecado de impure-
za, exorta os leitores a rezarem a Maria Imaculada e a beijarem sua medalha,
para evitar esse pecado”.17
Na meditação para 24 de maio, Dom Bosco fala da Sagrada Comunhão,
em que recebemos “o mesmo Jesus Cristo, que nasceu de Maria Virgem Ima-
culada”. Não faz referência a Maria Auxiliadora dos Cristãos, apesar de ser
24 de maio.18
Outro título mariano que ele propõe é o de Auxiliadora dos Cristãos.
A meditação sobre a dignidade do cristão termina com as palavras:

Maria Santíssima, mãe do nosso Salvador, és o mais belo ornamento da religião


cristã. Por isso, dirijo-me a ti, ó Virgem Maria, a mais misericordiosa, com a certeza

15
G. Bosco, Mese di maggio, 12. Meditação de introdução, 30 de abril.
16
G. Bosco, Mese di maggio, 13.
17
G. Bosco, Mese di maggio, 148. Meditação de 25 de maio: o pecado de impureza.
18
A festa de Maria Auxiliadora foi instituída em 1815, mas não era celebrada.

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Dom Bosco: história e carisma 2

de que obtereis a graça de Deus e a recompensa do céu. Se intercederes por mim,


recobrarei minha dignidade cristã, Auxilium christianorum ora pro nobis.19

O exemplo acrescentado a esta meditação fala das ladainhas da Santíssi-


ma Virgem, centralizando-se no título, Auxiliadora dos Cristãos.

Nas ladainhas, encontramo-nos com o título de Maria Auxiliadora dos Cris-


tãos, Auxilium Christianorum. Após a vitória dos cristãos sobre os turcos, por
intercessão da Maria em 1771 [sic, leia-se 1571], São Pio V [† 1572] acres-
centa este título às ladainhas. Em 1815, Pio VII instituiu a festa de Maria
Auxiliadora dos Cristãos. E o fez para expressar sua gratidão a Maria, a grande
rainha dos céus, pelo seu regresso à Sé de Roma e pelo restabelecimento da
paz na Igreja, que atribuía à intercessão de Maria. Esta festa é celebrada em
24 de maio. Por isso, invoquemos o auxílio de Maria.20

As duas últimas meditações de maio são dedicadas à proteção de Maria na


vida e na morte. Dom Bosco pede com insistência aos leitores que confiem em
Maria, Mãe de Deus, Mãe de Cristo e Mãe nossa. Nesse contexto, encontramos
a menção, ou ao menos alusão, a alguns títulos de Maria. Ele remete o leitor ao
Santuário de Nossa Senhora da Consolação, a Consolata de Turim, para que
comprovem os sinais da proteção de Maria.21 A meditação termina com as pa-
lavras: “Sois, ó grande Virgem, a única que abateu todas as heresias que nos
ameaçavam: Cuncta haereses sola interemisti in universo mundo”.22 Este texto, na
tradição e na liturgia mariana, associa-se frequentemente aos títulos de Imacu-
lada Conceição e Auxiliadora dos Cristãos. Pode-se dizer o mesmo de outras
palavras que expressam o poder de Maria para defender-nos contra o inimigo:
“Terrível como um exército em ordem de batalha [Terribilis ut castrorum acies
ordinata]!”.23 E, um pouco mais adiante, refere-se expressamente ao título Au-
xiliadora dos Cristãos: “Maria está disposta a ajudar os seus devotos na hora da
morte [...]. É no que acredita a Igreja quando chama Maria de Auxilium Chris-
tianorum. Seu auxílio haverá de ser mais necessário na hora da nossa morte”.24
O Mês de maio, de Dom Bosco, fala de Maria Imaculada e Auxiliadora
dos Cristãos apenas de passagem, mas serve-se da invocação Auxilium Chris-
tianorum, ora pro nobis e dos textos relacionados com esses títulos.
19
G. Bosco, Mese di maggio, 63-64. Meditação de 19 de maio: a dignidade do cristão.
20
G. Bosco, Mese di maggio, 64-65. Exemplo de 19 de maio: a dignidade do cristão.
21
G. Bosco, Mese di maggio, 169-170. Meditação de 30 de maio: a proteção de Maria na vida.
22
G. Bosco, Mese di maggio, 171.
23
G. Bosco, Mese di maggio, 175. Meditação de 31 de maio: a proteção de Maria na hora da morte.
24
G. Bosco, Mese di maggio, 177.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Já descrito o contexto histórico em que Dom Bosco adotou o título e a


mensagem de Maria Imaculada, podemos perguntar-nos em quais circuns-
tâncias ele chegou a propor o título e o conceito de Maria Auxiliadora dos
Cristãos. Como este título potenciou de maneira significativa a sua doutrina
e a sua devoção marianas?

3. Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos


Em um livro sobre a Auxiliadora dos Cristãos, Barberis expressa sua con-
vicção de que Dom Bosco, desde a infância, foi devoto de Maria com este título.

Apesar da nossa falta de comprovação positiva, chegamos a crer, por força


de uma evidente convergência de circunstâncias, que Dom Bosco, desde sua
infância e mais concretamente desde seus dias de seminário, era devoto de
Maria com o título de Auxiliadora dos Cristãos. Ele esforçou-se inteiramente
para mantê-la, com a certeza de que sempre o ajudaria.25

Não resta dúvida sobre a devoção de Dom Bosco e sua entrega confiante
a Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa, desde a mais tenra infância. Mas seus es-
critos não apoiam em absoluto a hipótese de que o título de Auxiliadora dos
Cristãos figurasse de maneira significativa em sua devoção antes da década
de 1860.26
Entretanto, há alguns poucos indícios anteriores a 1860 do progresso
gradual do título Auxiliadora dos Cristãos na devoção de Dom Bosco.

Indícios anteriores a 1862


Dom Bosco sabia que o povo de Turim era devoto de Maria Auxilia-
dora dos Cristãos. De fato, ele escreve que os turinenses estiveram entre os
primeiros a honrar Maria com esse título, como o demonstra a capela, o altar
e a estátua dedicados a Maria Auxiliadora dos Cristãos na igreja de São Fran-
25
G. Barberis, Il culto di Maria Ausiliatrice. Turim: SEI, 1920, 56.
Por exemplo, nem na História da Igreja (1ª edição, 1845), nem na História da Itália (1ª edição,
26

1855-1856) se faz qualquer menção a Maria Auxiliadora dos Cristãos. O título não aparece antes da
edição de 1867. A inscrição no friso interior da grande igreja que Dom Bosco viu no sonho de 1844
não traz: Auxilium Christianorum, mas simplesmente Hic Domus mea, inde gloria mea. O título de Au-
xiliadora dos Cristãos não é mencionado nas primeiras edições de O jovem instruído (1ª edição, 1847;
2ª edição, 1851; 3ª edição, 1854; 4ª edição, 1860). No Oratório, só em 1867 foi mudada a curta invo-
cação prescrita, “Sedes Sapientiae, ora pro nobis”, por “Auxilium Christianorum, ora pro nobis. A estátua
colocada na parte superior da casa depois da queda de um raio em 1861 era de Maria Imaculada, como
a que se colocou mais tarde na parte superior da lanterna da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

cisco de Paula.27 Essa foi a igreja à qual padre Cafasso destinou Dom Bosco
nos anos de permanência no Colégio Eclesiástico.28 A venerada estátua, mais
tarde, serviu possivelmente de modelo para a figura de Maria Auxiliadora
como Dom Bosco queria que ela fosse apresentada, embora já houvesse uma
iconografia tradicional a respeito.
Em 1848 ou 1849, como conta o padre João Giacomelli, seu colega de
seminário, Dom Bosco afixou no quarto algumas estampas com invocações a
Maria Auxiliadora dos Cristãos. Numa delas, a oração diz: “Ó Virgem Ima-
culada! Só Tu venceste todas as heresias; vem agora em nosso auxílio, pois a Ti
recorremos: Auxilium christianorum, ora pro nobis”. Dom Bosco acrescentou
de próprio punho: Inde consolationem expectamus [De ti esperamos o nos-
so consolo].29 Combinam-se assim os títulos de Imaculada, Auxiliadora dos
Cristãos e Consolação.
O mês de maio, de 1858, marca uma guinada nesse sentido. Além dos tex-
tos litúrgicos que se referem ao auxílio de Maria (Terribilis ut castrorum acies...;
Cunctas haereses sola interemisti) e o uso contínuo do Sub tuum praesidium,
encontramos uma referência à vitória sobre os turcos muçulmanos e a intro-
dução do título na ladainha. Mas só em 1868 ele põe por escrito, pela primeira
vez, os outros acontecimentos históricos, como a batalha de Lepanto (1571),
o fim do cerco de Viena por parte dos turcos muçulmanos (1683) e a insti-
tuição da festa de Maria Auxiliadora dos Cristãos pelo papa Pio VII (1815).
Dom Bosco, porém, certamente estava familiarizado muito antes com esses
acontecimentos; e depois da Revolução Liberal, pôde estabelecer um parale-
lismo entre Pio VII e Pio IX. Ele, com certeza, também viu a importância do
papel de Maria como auxiliadora da Igreja e do Papa, apesar de indicar esse
papel, antes da década de 1860, apenas a Maria, ou a Maria com o título de
Imaculada Conceição.
No almanaque das Leituras Católicas, de 1860, Dom Bosco indicou pela
primeira vez no dia 24 de maio, “[a festa] da Santíssima Virgem Auxiliado-
ra dos Cristãos”. E ampliou a referência na edição de 1861: “A Santíssima
Virgem com o bem merecido título de Auxiliadora dos Cristãos, Auxilium
christianorum”.
Parece, porém, que Dom Bosco não se converteu em paladino da Auxi-
liadora dos Cristãos antes de 1862.

27
Meraviglie della Madre di Dio invocata sotto il titolo di Maria Ausiliatrice, raccolte dal sac. Gio-
vanni Bosco. Turim: Tipografia dell’Oratorio di San Francesco di Sales, 1868. Cf. OE XX, 192-376.
28
MO, 129.
29
MB III, 589s.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Os acontecimentos de Spoleto (1862)


Identificar 1862 como o ano em que o título de Auxiliadora dos Cris-
tãos começou a ser relevante na vida e no apostolado de Dom Bosco, faz com
que nos fixemos num acontecimento religioso específico em seu particular
contexto político.
Baste uma breve referência ao contexto político. A Segunda Guerra de In-
dependência da Itália (1859) foi seguida pela anexação da Lombardia, da maior
parte dos Estados Pontifícios e dos ducados de Parma, Módena e Toscana. Em
1860, Garibaldi invadiu a Sicília e, depois, Nápoles para depor a monarquia
bourbônica, enquanto o rei Vítor Emanuel II invadia as Marcas e a Úmbria,
nos Estados Pontifícios. A Itália foi assim unificada e proclamou-se o Reino da
Itália em 1861, tendo Vítor Emanuel II como seu primeiro rei. O movimento
de unificação não parou, e a própria Roma precisou render-se. Em 1860, Pio
IX condenara os que assaltaram o poder temporal da Igreja e, em 1864, conde-
nou o liberalismo na encíclica Quanta Cura com o Syllabus dos erros.
As revoluções liberais de 1848 foram o contexto que transformou Maria,
com o título de Imaculada Conceição, em objeto de devoção especial na dé-
cada de 1850. O título adquiriu, então, uma especial carga político-religiosa.
De forma paralela, o avanço implacável da revolução, que culminou com a
tomada dos Estados Pontifícios e a unificação da Itália (1861), proporcionou
o contexto no qual tomou força o título de Auxiliadora dos Cristãos na dé-
cada de 1860 e ainda lhe deu maior carga política. A aparição e o milagre de
Spoleto em 1862 acelerariam essa evolução.30

Aparições em Spoleto
Spoleto é uma cidade antiga e histórica, situada no centro geográfico
da região da Úmbria e da própria Itália. Pio IX fora seu bispo (1827-1832).
Devido à localização, fora mencionada como possível capital da Itália unifi-
cada. Nos inícios de 1860, o calamitoso ano anterior à anexação, o arcebispo
de Spoleto, dom João Batista Arnaldi, dirigiu uma carta pastoral aos fiéis, em
nome dos bispos da região. Nela, expressava a esperança de que “a Mãe da
Misericórdia”, “a guerreira invicta e invencível”, “a Virgem responsável por
todas as vitórias da Igreja”, viesse novamente em auxílio. Pedia aos fiéis que
impetrassem a ajuda de Deus “através da intercessão do Coração Imaculado
de Maria, Mãe de Deus, Auxiliadora dos Cristãos, a Poderosa que humilhou

30
Sobre os acontecimentos de Spoleto e sua ligação com Dom Bosco, ver P. Brocardo,
“L’Ausiliatrice di Spoleto e Don Bosco”. In: L’Immacolata Ausiliatrice. Accademia Mariana Salesiana
III. Turim: SEI, 1955, 239-272; P. Stella, Economia, 155-169, notas.

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Dom Bosco: história e carisma 2

sob seus pés a cabeça rebelde da antiga serpente”.31 Em seguida, houve a ane-
xação e a desordem que se seguiu.
Nos inícios de 1862, a Virgem pintada num quadro na parede de uma
igreja em ruínas em La Fratta, perto de Spoleto, falou a um menino de 5 anos
de idade, chamado Henrique Cionchi. O arcebispo narrou a história num
primeiro comunicado, em 17 de maio, publicado no jornal católico de Turim
L’Armonia, de 27 de maio.

Imagem de Maria, Auxiliadora dos Cristãos de Spoleto,


impressa em Turim, 1863, pelo editor Pedro Marietti.

Carta pastoral, citada por P. Brocardo, L’Ausiliatrice, 252. João Batista Arnaldi (1806-1867),
31

ordenado padre em 1852, foi arcebispo de Spoleto, de 1853 até a morte.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Sobre uma colina situada em lugar afastado [fora da cidade de Spoleto] uma
antiga imagem da Virgem Maria foi conservada no nicho de uma parede em
ruínas, tudo o que resta de uma antiga igreja ali existente. O afresco, que apesar
de ficar exposto à intempérie, ainda se encontra em bom estado, representa a
Virgem Maria que segura o Menino Jesus nos braços. O lugar ficou abandonado
e esquecido por longo tempo. Mas, nas últimas semanas, o povo tem rezado nesse
antigo santuário, porque a Santíssima Virgem apareceu várias vezes a um menino
chamado Henrique, que ainda não tem 5 anos idade. Depois de 19 de março
de 1862 e de uma cura milagrosa, muitas pessoas vão esse lugar. Um camponês
de 30 anos recorreu à Virgem nessa imagem e foi curado instantaneamente das
enfermidades crônicas que o atormentaram durante muito tempo.32

O fato difundiu-se amplamente; falava-se de muitas curas e, em seguida,


começaram as peregrinações. O povo começou a referir-se à imagem sem
nome da Virgem com uma variedade de títulos: a Virgem sem teto (Madonna
scoperta), Nossa Senhora da Estrela (Madonna della Stella) ou simplesmente
Virgem de Spoleto.
Dom Arnaldi deu a esta Virgem o título oficial de Auxilium Christiano-
rum. Enviou relatórios periódicos difundidos pela imprensa católica e pôs em
circulação o acontecimento de Spoleto.

Spoleto e Don Bosco


Em Valdocco lia-se o L’Armonia; suas informações sobre Spoleto devem
ter inflamado os corações e as mentes da população do Oratório. Lemoyne
conta que, no boa-noite de 24 de maio de 1862, Dom Bosco se referiu aos
acontecimentos de Spoleto e narrou com grande alegria a história da aparição
e do milagre; concluiu com a boa notícia de que, como a imagem de Spole-
to não possuía um título, o arcebispo desejava que fosse honrada com o de
Auxiliadora dos Cristãos.33 O boa-noite, contudo, não conta com suficiente
credibilidade histórica.34
32
O relato de dom Arnaldi foi citado por Dom Bosco, Meraviglie, 95-97.
33
Cf. MB VII, 166ss.
34
Tanto P. Stella, Economia, 159, como F. Desramaut, Don Bosco, 699-700, nota 56, consi-
deram-no apócrifo. E acrescentam que o dia 24 de maio de 1862 não foi significativo para Dom Bosco.
Lemoyne cita a crônica de Bonetti como fonte. Mas, sem levar em conta que o primeiro relato do
L’Armonia traz a data de 27 de maio, nem a crônica de Bonetti nem os documentos de Lemoyne men-
cionam os fatos de Spoleto. Dom Bosco, porém, precisou falar deles em algum momento; em seguida,
depois da consagração da igreja de Maria Auxiliadora em 1868, publicou uma descrição detalhada dos
acontecimentos de Spoleto em seu livro Meraviglie della Madre di Dio invocata sotto il titolo de Maria
Ausiliatrice (1868).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Entretanto, parece certa a ligação com Spoleto no caso da alegoria ou


apólogo de Dom Bosco, chamado de o “Sonho das duas colunas”. Dom Bos-
co narrou-o no boa-noite de 30 de maio (1862) e temos dele relatos da épo-
ca, de João Cagliero, César Chiala e Domingos Ruffino.35 Dom Bosco falou
das duas colunas que estavam no meio do mar e tinham em cima de uma, a
Hóstia consagrada, e, da outra, a estátua de Maria Imaculada, sob a qual um
cartaz trazia a inscrição: “Auxiliadora dos Cristãos”. Em seguida, descreve que
uma flotilha de barcos inimigos ataca a nave do Papa e procura afundá-la.
O Papa é ferido e cai, mas se levanta e dirige o barco entre as duas colunas
ancorando com segurança.
Há outro documento que, devido à situação política, foi publicado ano-
nimamente, e em geral não é conhecido. Trata-se do Calendário Mariano das
Leituras Católicas de junho e julho de 1862.36 Nele nada se anota sobre 24 de
maio. Mas, em 26 de abril traz uma nota importante sobre a festa de Maria
Auxiliadora e o seu significado, relacionando-a com a antiga oração Sub tuum
praesidium. A passagem diz em parte:

Festa de Maria Auxiliadora. Rodeados e atacados sem trégua pelos inimi-


gos, [...] precisamos muito de ajuda extraordinária contra suas embosca-
das e investidas perigosas [...]. Contudo, de onde nos virá esse auxílio, a
não de Maria, a Mãe de Deus? A Igreja chama-a de Auxiliadora dos Cris-
tãos. Recorramos, portanto, a ela e peçamos a esta mãe misericordiosa que
venha em auxílio da esposa de Cristo, a santa Igreja em perigo, e do muito
augusto Vigário de Cristo, cabeça visível da Igreja. Com essa finalidade,
vamos recitar 5 vezes o Sub tuum praesidium pelas necessidades da Santa
Mãe Igreja.37

Auxiliadora dos Cristãos, segundo Spoleto


Esse é, precisamente, o significado que o arcebispo Arnaldi dá aos fa-
tos de Spoleto. Em seus relatórios, expressava a ideia de que a Virgem logo

35
João Boggero ao cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano, ASC B22; César Chiala
ao cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano, ASC A005: Croniche, Chiala, FDB 929 C10-DI;
Ruffino, Cronichette, 1862-1863, 74-76, em ASC A008: Ruffino, Cronichette, FDB 1216 B11-Cl. Cf.
MB VII, 169ss.
36
“Diario mariano, ovvero eccitamenti alla devozione della Vergine Maria Ssma. proposti in
ciascun giorno dell’anno, per cura d’un suo divoto”, Letture Cattoliche 10, 6 (junho), 7 (julho). Turim:
Tipografia G. B. Paravia, 1862, 280 p. A introdução e, talvez, a obra toda foi escrita por Dom Bosco,
cf. F. Desramaut, Don Bosco, 666-667.699, nota 52.
37
Diario mariano, 96.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

atuaria para livrar o Papa de seus inimigos e esperava que Pio IX coroasse a
Auxiliadora de Spoleto como Pio VII fizera com a Virgem de Savona ao seu
regresso do exílio. Distribuíram-se estampas da Auxiliadora dos Cristãos de
Spoleto. Uma delas trazia a seguinte oração:

Ó Maria, poderoso auxílio dos cristãos, nós nos recomendamos ao teu patro-
cínio. Comprometemo-nos a permanecermos firmes na verdadeira fé até o dia
da nossa morte, como filhos obedientes da Santa Igreja Católica Romana e do
Sumo Pontífice, Vigário de Cristo na terra, mesmo à custa de tudo perder [...].

Uma estampa publicada pela gráfica Marietti, de Turim, trazia uma oração
composta pelo próprio Pio IX, em que se pedia a Deus, por intercessão de Maria
Auxiliadora dos Cristãos, a graça da fortaleza “em meio a todas estas agressões”.
Uma espécie de euforia e a crença de que chegara “a hora de Maria” in-
vadiram o clero e os leigos católicos. Maria aparecia no centro da Itália para
resgatá-la das forças anticlericais e revolucionárias. Assim escrevia em novem-
bro La Buona Settimana, de Turim:

A Virgem Maria manifestou sua presença através desta bela imagem mi-
lagrosa num lugar que é o centro, não só da arquidiocese de Spoleto, não
só da Úmbria, mas o que é mais importante, da própria Itália. Deve ser
esta, portanto, a vontade manifesta de Deus e da Santíssima Virgem. Ao
aparecer de maneira milagrosa no próprio coração da nação nestes tempos
calamitosos, a Virgem manifesta a todos que se assentou ali para defendê-
-la, protegê-la e oferecer seu auxílio em todas as suas necessidades tempo-
rais e espirituais.38

Dom Arnaldi acreditava que Maria Auxiliadora dos Cristãos, em Spole-


to, era uma prova do futuro triunfo da Igreja e do Papa. Por seu intermédio,
os católicos teriam a força de morrer, se fosse necessário, pela própria fé, pela
Santa Mãe Igreja e pelo seu Pastor Supremo, o Vigário de Cristo na terra.
“Essa é a nossa decisão e é isso que prometemos. Isso será uma realidade com
tua ajuda, ó Virgem Imaculada, mui amada Virgem Maria, o mais fiel e mais
poderoso auxílio de toda a cristandade.”39

38
Relatório de dom Arnaldi, de 26 de junho de 1862, citado em La Buona Settimana 7 (23-29
de novembro de 1862), 383. In: P. Stella, Spiritualità, 164-165; Id., Economia, 157. Quase idêntico a
L’Osservatore Romano (31 de maio de 1862). Cf. P. Brocardo, Maria Ausiliatrice: la Madonna di Don
Bosco, in La Madonna dei tempi difficili. Accademia Mariana Salesiana XII. Roma: LAS, 1980, 105.
39
L. Maini, Manifestazione [...] di Maria Santissima nelle vicinanze di Spoleto [...] (Turim:
Marietti, 1862, 55-57), citado em P. Stella, Economia, 158-159, nota 84.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O arcebispo de Spoleto lançou, então, a ideia de construir um san-


tuário dedicado a Maria Auxiliadora dos Cristãos no lugar do milagre,
como uma cidadela de onde Maria defenderia a Igreja. O santuário foi
construído entre 1864-1865. Dom Arnaldi escreveu na ocasião: “Esta é
a resposta de Maria aos revolucionários: A partir deste santuário, a partir
deste lugar santificado pela minha presença, vossos ataques haverão de
desmoronar, como se rompem as ondas contra as rochas, hinc infringes
tumentes fluctus tuos”.40

Reação de Dom Bosco a Spoleto


O prefácio de Dom Bosco ao opúsculo Maravilhas da Mãe de Deus,
publicado em 1868, depois da consagração da igreja de Maria Auxiliadora
dos Cristãos, declarava que havia “um motivo muito especial pelo qual
a Igreja nos últimos tempos deseja invocar Maria como Auxiliadora dos
Cristãos”. E explica-se citando esta passagem de um folheto do momen-
to: “Inevitavelmente, quando se apresentaram momentos de grave crise,
a raça humana encontrou auxílio reconhecendo algumas novas prerro-
gativas da Santíssima Virgem Maria, o excelso ser humano que é, neste
mundo, o mais admirável reflexo da perfeição do seu Criador”. Como
comentário, continua:

A necessidade de recorrer a Maria é universalmente sentida em nossos dias.


Não é apenas uma necessidade individual, mas uma necessidade geral da
sociedade. Não é mera questão de que os tíbios retornem à fé fervorosa e
os pecadores a Deus [...]. Em nossos dias, trata-se da mesma Igreja que está
sendo atacada em seus ministros, em suas instituições sagradas, em sua ca-
beça, em sua doutrina e em sua disciplina. E é atacada precisamente como
Igreja Católica, como centro da verdade, como mestra de todos os fiéis. Por
isso, para merecer a proteção especial de Deus, precisamos recorrer a Maria,
que é nossa Mãe e auxílio especial de reis e de povos católicos e dos católicos
individualmente no mundo todo.41

40
Sétimo relatório de dom Arnaldi, em Unità Cattolica (6 de agosto de 1864), citado por
P. Brocardo, Madonna di Don Bosco, 105.
41
G. Bosco, Meraviglie, 5-6.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Dom Bosco abençoa um menino, um salesiano e um salesiano coadjutor,


numa foto de 1867, feita por Aquiles Sanglau, Roma.

A afirmação de Dom Bosco, que se referia originariamente à Imaculada


Conceição, mas que aplicou, pelo mesmo motivo, a Maria Auxiliadora dos
Cristãos, é de grande interesse. A motivação é histórica, mais do que teoló-
gica. Ela é chamada de Maria Auxiliadora dos reis, assim como dos cristãos.
Trata-se de uma situação histórica que leva à invocação de Maria como Au-
xiliadora dos Cristãos. Percebe-se um sentido de urgência nessas linhas, a
expectativa de que está para soar a hora de Maria.
Os acontecimentos de Spoleto em 1862 marcaram o processo do reco-
nhecimento de Maria com o título de Auxiliadora dos Cristãos na consciên-
cia eclesial de Dom Bosco. É certo que ele estava familiarizado com o título
e era pessoalmente devoto de Maria Auxiliadora dos Cristãos, título que
recebia culto em Turim e em outros lugares. Mas, sem os fatos de Spoleto,
ele poderia não chegar a ser o apóstolo de Maria Auxiliadora. Poderia ter

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Dom Bosco: história e carisma 2

conservado o título de Maria Imaculada para o grupo de Mornese que en-


controu em 1864 e se converteu em Filhas de Maria Auxiliadora (salesianas)
em 1872. Poderia não dedicar sua nova grande igreja a Maria com o título
de Auxiliadora dos Cristãos.

4. Uma igreja dedicada a Maria (Imaculada)


Auxiliadora dos Cristãos. Sua importância
Decisão de construir uma grande igreja
Maria havia agido em Spoleto e preparavam-se projetos para construir
uma Igreja dedicada à Auxiliadora dos Cristãos. Dom Bosco não esperou
passivamente que Maria agisse em Turim. Em dezembro de 1862, começou a
falar do seu próprio projeto de construir uma grande igreja dedicada a Maria,
Auxiliadora dos Cristãos.42 Ele, provavelmente, decidiu construir uma igreja
nova e maior em dezembro de 1862, durante o infindável tempo de confes-
sionário às vésperas da festa da Imaculada Conceição. Tinham-se passado
apenas dez anos desde a construção da igreja de São Francisco de Sales, em
1852. Como motivação às autoridades civis para construir uma segunda e
maior Igreja, poderia apresentar o aumento da população do Oratório. As
autoridades, contudo, não estariam dispostas a aprovar a construção da nova
igreja, se soubessem do título tão politicamente incorreto.
Dom Bosco confiou seu plano primeiramente ao clérigo Paulo Albera e
ao padre João Cagliero, a quem dissera: “A Virgem deseja ser honrada com o
título de Auxiliadora dos Cristãos. Os tempos andam tão mal que precisamos
com urgência da sua ajuda para preservar e defender a fé cristã”.43 E imedia-
tamente começou a solicitar ajuda para o projeto.
Quando Dom Bosco começou a solicitar ajudas para a nova igreja,
manteve-se bastante reticente quanto ao título, por causa do contexto po-
lítico. Deu como motivação às autoridades a limitada capacidade da igreja
de São Francisco de Sales. Na circular de 1o de fevereiro de 1863, dirigida ao
grão-mestre da Ordem dos Santos Maurício e Lázaro, falava apenas de uma
grande igreja projetada para acolher o maior número possível de residentes
e servir à população local. Mas, na mesma circular dirigida aos benfeitores,
declarava que seria dedicada a “Maria Imaculada com o título de Auxiliadora

Sobre o processo do projeto e construção da igreja, ver MB VII, 465ss; VIII, 171ss; IX, 104s; 136s.
42

43
MB VII, 334s. Nesse período, o Oratório era objeto de uma investigação oficial e a casa
sofrera várias advertências.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

dos Cristãos”. Assinalava, também, que, embora grande, seria simples e sem
pretensões, tendo mudado de ideia ao dar instruções ao arquiteto.44
Barberis, em sua crônica, narra como Dom Bosco comunicou a ob-
tenção da permissão de construção e a aprovação do título “Auxiliadora
dos Cristãos”:

Quando apresentei os projetos da Igreja para aprovação da Autoridade da


cidade, o superintendente recusou-os devido ao título “Auxiliadora dos Cris-
tãos”. Queixava-se que “era demasiado jesuítico”. “Mas, senhor”, expliquei,
“talvez em seu trabalho, não teve ocasião de conhecer a origem histórica deste
título. Comemora as vitórias conquistadas por uma coalizão de forças italia-
nas, espanholas e outras contra os turcos. Também comemora a libertação de
Viena etc.”. Ele não queria ouvir falar disso e os projetos foram recusados por
causa do título. Pouco mais tarde, voltei a apresentar os projetos e solicitar
sua aprovação, mas no pedido abstive-me de fazer referência ao título. Sim-
plesmente, apresentei a igreja como um edifício que seria dedicado ao culto
divino. A aprovação foi dada sem dificuldades. Quando todos os documentos
foram assinados e apresentados, fui ao departamento municipal de obras para
agradecer ao superintendente por ter dado sua aprovação. Respondeu-me:
“Não esperava que Dom Bosco fosse tão obstinado em insistir num título
que reacenderia a reação jesuítica”. “Senhor”, respondi-lhe, “em vista de suas
objeções, deixei de especificar o título. Mas, agora que a aprovação foi dada,
sou livre de escolher qualquer título que deseje, ou não o sou?”. “Isso, porém,
é um artifício consumado”, exclamou. “Não se trata de artifício”, respondi-
-lhe. “O senhor opôs-se ao título e aprovou uma igreja sem título. Mas como
agora devo dar um título à igreja, escolherei o título que me agrade. Nós dois
devemos ficar satisfeitos por ter prevalecido o critério de cada um”. Ele sorriu,
mas seu sorriso significava apenas que estava entrando num mau negócio.45

Apesar da astúcia e inteligência de Dom Bosco, a permissão poderia ser


revogada. Contudo, foi-lhe mantida a permissão e, implicitamente, também
se aprovava o título. Naqueles tempos de confrontação, e em vista da retórica
intransigente derivada dos acontecimentos de Spoleto, o fato pode ser consi-
derado como gesto conciliador das autoridades, não tanto em relação a Dom
Bosco quanto à Igreja Católica.

44
Ver a carta circular de Dom Bosco de 1o de fevereiro de 1863 em Epistolario I Motto, 550-551.
45
G. Barberis, Cronaca autografa, 26 de junho de 1875. Anotações II, 23-24. FDB C1-2.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O local da igreja: o “Prado dos Sonhos”


Quando se perguntava o local da construção da igreja, ele indicava
um terreno ao sul, ao longo da rua Giardiniera, que se estende obliqua-
mente à frente da propriedade do Oratório.46 Em 20 de junho de 1850
Dom Bosco comprara o terreno do seminário da arquidiocese. Mas num
momento de grave necessidade, em 10 de abril de 1854, ele o revendera ao
padre Antônio Rosmini, que pretendia construir ali uma casa e estabelecer
sua congregação, o Instituto da Caridade, em Turim. Também queria ter
padres para ajudar Dom Bosco. Tendo morrido em 1855, o projeto foi
anulado e o terreno colocado à venda. Nos inícios de 1863, Dom Bos-
co pediu que seu administrador, padre Ângelo Sávio, perguntasse sobre a
compra do terreno. Os rosminianos decidiram que não o venderiam no-
vamente a Dom Bosco. Padre Sávio propôs então um local alternativo na
propriedade dos irmãos Filippi, a leste do pátio do Oratório. O negócio,
porém, não foi feito. Dom Bosco conseguiu que um terceiro atuasse em
seu nome junto aos rosminianos e, para surpresa dos antigos proprietários,
ele recuperou o terreno.47
1. Igreja de São Francisco de Sales
2. Casa Dom Bosco (1863)
3. Aposentos de Dom Bosco
de 1853 a 1861
4. Casa Pinardi

Projeto do Oratório, de 1853 a 1856.

O terreno, conhecido mais tarde como o “Prado dos Sonhos”, era iden-
tificado por Dom Bosco com o campo visto no sonho de 1844. Neste so-
nho, a Virgem mostrara-lhe o local da morte dos santos mártires no qual se

A rua, na verdade, estava no meio do caminho, pois o projeto era de uma edificação maior do
46

que o terreno podia acolher. Em janeiro de 1865, depois de Dom Bosco fazer um complicado acordo
com a viúva senhora Bellezza (Maria Teresa Novo) para que sua casa tivesse um novo acesso, a rua
Giardiniera foi fechada e passou a ser propriedade do Oratório. A administração da cidade também re-
desenhou a rua Cottolengo em fevereiro de 1866, conseguindo-se espaço para a parte frontal da igreja.
47
MB VII, 372ss.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

erguia uma grande igreja,48 mais tarde identificada com a igreja de Maria
Auxiliadora dos Cristãos. Dessa forma, a igreja de Maria Auxiliadora
adquiriu um caráter sagrado como local do martírio e pôde invocar uma
“pré-história sobrenatural”.
Nas Memórias do Oratório, Dom Bosco relata o sonho que teve no se-
gundo domingo de outubro de 1844, quando estava para deixar o Colégio
Eclesiástico. Sonhou que a Pastora o conduzia através de diversas fases de
uma peregrinação, enquanto animais selvagens iam se transformando em
cordeiros, até chegar a um campo cultivado. Ali, ele viu uma grande igreja à
sua frente.49 Barberis relata o mesmo sonho baseando-se na narração ouvida
de Dom Bosco quando os dois voltavam de uma visita a alguns benfeitores.
Na versão de Barberis, a Senhora mostrava a Dom Bosco diversas igrejas; e,
num campo cultivado, indicou-lhe o lugar do martírio dos Santos [Solutor],
Aventor e Otávio, indicando-o com o pé. Nesse lugar, ele viu a igreja diante
dele. Dom Bosco acrescentou diversos comentários sobre a construção da
igreja, incluindo a recompra do terreno dos rosminianos.50
Entretanto, a igreja que, finalmente, foi construída em terra santa não
seria dedicada aos santos mártires, mas a Maria Auxiliadora dos Cristãos. Só
retrospectivamente a igreja do sonho foi identificada como “a de Maria Au-
xiliadora dos Cristãos”. Contudo, manteve seu caráter simbólico e religioso,
apoiado não tanto no fato de ser erguida, supostamente, num local de martírio,
quanto no fato de a Senhora do sonho, invocada agora como Auxiliadora dos
Cristãos, ter fama de milagrosa e dispensadora de graças em sua igreja. Esta se
converteu em lugar de peregrinação. A igreja de Maria Auxiliadora teve, então,
origem sobrenatural, assim se crê, e um caráter sagrado permanente.

48
Os mártires Solutor, Aventor e Otávio foram, segundo a legenda, soldados da Legião Tebana.
A biblioteca de Dom Bosco, reunida posteriormente, conservava vários volumes sobre eles. Na época
do sonho, seus conhecimentos sobre a história/legenda desses mártires eram pouco precisos. Em sua
História da Igreja (1845), fala deles com imprecisão. Mais tarde, no “Pontificado de São Marcelino e
São Marcelo” (Leituras Católicas 13:2, abril de 1864) apresenta um relato mais elaborado. Posterior-
mente, o cônego Gastaldi pesquisou a pedido de Dom Bosco e publicou uma extensa história dos
mártires (Leituras Católicas 14:1, janeiro de 1866). Padre Gastaldi acreditava que esses soldados cristãos
sofreram o martírio nos arredores, quando não mesmo dentro da propriedade do Oratório. Não há
evidência histórica que corrobore nem mesmo a existência dos mártires, muito menos que identifique
o lugar do martírio. Dom Bosco, entretanto, acreditou na sacralidade do lugar. O certo é que, tentando
encontrar uma base para seu apostolado em 1844, sonhou uma igreja que devia ser construída nesse
lugar como parte da sua missão.
49
MO, 133ss, sonho de 1844.
50
Padre Barberis é a fonte de todo o tema da negociação de Dom Bosco com os rosminianos
sobre o terreno; ali também ele conta o sonho de 1844. Cf. MB II, 296ss, onde Lemoyne dá um novo
contexto que se diferencia da sua fonte, Barberis, e da sua própria transcrição nos Documenti.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A. Telheiro Pinardi, com a capela.


B. O primeiro pátio do Oratório.
C. Lugar onde Dom Bosco viu, em sonho, os três santos mártires.
D. Lugar onde Dom Bosco viu, em sonho, a Virgem e onde se
colocou, mais tarde, o altar-mor da Basílica de Maria Auxiliadora
(a futura Basílica está assinalada com linhas pontilhadas).

Telheiro Pinardi. Primeira sede do Oratório (12 de abril de 1846).

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

A. O telheiro-capela. D. Pátio do recreio.


B. A casa Pinardi. E. Horta de Mamãe Margarida.
C. Pátio de jogos. F. O prado.

Casa Pinardi. O Oratório (de 1847 a 1851).

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Dom Bosco: história e carisma 2

A. Igreja de São Francisco de Sales (1852).


B. Primeiro edifício do internato (1853).
C. Segundo edifício no lugar da casa e capela Pinardi (1856).
D. Aulas diurnas para os externos.
E. Aposentos de Dom Bosco no segundo piso (1853).

O Oratório depois das primeiras obras (de 1852 a 1859).

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Projeto e construção da igreja


Dom Bosco pediu para vários arquitetos apresentarem projetos, só espe-
cificando que a igreja, diversamente do seu primeiro anúncio, devia ser grande
e magnífica. Foi escolhido o projeto do arquiteto Antônio Spezia: uma cruz
latina de 48 x 35 metros com uma nave central de 11,5 metros de largura. Con-
tava com uma bela fachada de estilo variado, sobretudo renascentista, e uma
cúpula. As dimensões são bastante modestas, mas naquele momento pareceram
extravagantes para alguns. Dom Bosco gostaria de uma igreja muito maior, mas
o terreno não o permitiria. O terreno era estreito: limitava-se a norte pela rua
Giardiniera, que seria logo eliminada. Ao sul, entraria na propriedade pública,
ou seja, na Via Cottolengo que, em seguida, foi retificada por concessão das
autoridades; a oeste, o braço esquerdo da cruz chocaria com a propriedade do
seminário; a faixa necessária seria adquirida mais tarde por Dom Bosco, em
agosto de 1864; enfim, o muro a oeste estaria mais próximo da casa Coriasco
do que era permitido pela lei; a casa seria adquirida e demolida em 1874.
Depois de obter a licença de construção, Dom Bosco encarregou o cons-
trutor Carlos Buzzetti da construção. O arquiteto Spezia supervisionou toda
a obra sem compensação econômica. As fundações começaram no outono de
1863; terminaram em março de 1864, mas foram insuficientes, pois o solo
era pantanoso e instável. Foi preciso tirar mais terra e afundar colunas em
todo o perímetro. Em abril de 1864, Dom Bosco caiu no poço que fora es-
cavado para colocar a primeira pedra e iniciar a construção. Foi nessa ocasião
que esvaziou o conteúdo do seu bolso, 40 centavos, nas mãos de Buzzetti.
Quando se concluíram as fundações da igreja, em 27 de abril de 1865,
o bispo José Antônio Odone, de Susa, por estar vacante a diocese de Turim,
benzeu e colocou a primeira pedra. Acompanhavam o bispo o jovem príncipe
Amadeu de Saboia, duque de Aosta, filho do rei Vítor Emanuel II, o chefe
de polícia, o prefeito e outras autoridades da cidade, de âmbito liberal. Mais
uma vez, pode-se considerar a participação dessas autoridades, sobretudo o
príncipe, como um gesto de conciliação com a Igreja.
A obra caminhava em bom ritmo. Em fins de 1865, tinha-se concluído e
coberto todo o edifício principal, mas não a cúpula. À medida que a construção
prosseguia, Dom Bosco deu demonstrações de uma confiança na Providência
Divina que parecia temeridade. Mas também intensificou seus esforços para
solicitar a caridade privada e pública. Em seus pedidos para construir a Igreja,
só falava de razões de utilidade pública e de devoção, silenciando sobre o título,
Auxiliadora dos Cristãos; e em nenhum momento referiu-se à missão da Socie-
dade ou à sua motivação pessoal.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Faltando muito ainda por construir, além da cúpula, acabaram-se os


fundos. Depois de ter explorado todas as fontes possíveis, Dom Bosco co-
meçou a pedir material em lugar de dinheiro. Viu-se em situação financeira
tão difícil, que decidiu substituir a cúpula projetada por uma abóboda de
cúpula simples. O administrador, padre Ângelo Sávio e o construtor Buzzetti,
sem mais discussão, paralisaram a obra durante um mês, à espera de alguma
ajuda de última hora que permitisse continuar a obra segundo o planejado.
A reviravolta se deu quando Antônio Cotta, banqueiro e benfeitor local, foi
curado de uma grave enfermidade pela mediação da oração de Dom Bosco.
Ele, de imediato, ofereceu o necessário para que os trabalhos continuassem
e prometeu mais para concluir a obra, inclusive com a cúpula. Entretanto,
mesmo o dinheiro deste senhor foi insuficiente para financiar a construção
como fora detalhada no projeto. Isso explica por que se construiu uma cúpula
“simples” e não a reforçada, ou dupla, sem uma lanterna adequada na parte
superior. Por isso, os afrescos no interior do teto da cúpula se deterioram com
o passar do tempo.51
O trabalho na cúpula foi completado no verão de 1866. Em 23 de se-
tembro, o jovem marquês Fassati subiu o andaime com Dom Bosco para
colocar o último tijolo na coroa. A cúpula elevava-se 40 metros acima do
solo. Em maio de 1867, a estátua de bronze de Nossa Senhora, com a aparên-
cia da Imaculada, foi colocada no pináculo, numa estrutura de madeira que
arrematava a cúpula em vez da lanterna prevista inicialmente. A estátua foi
fundida e dourada graças à generosidade de benfeitores. O recém-nomeado
arcebispo de Turim, dom Alexandre Riccardi di Netro, benzeu-a em 17 de
novembro de 1867.
Em 21 de maio de 1868, benzeram-se os 5 sinos colocados no campa-
nário à direita, olhando-se a fachada da igreja. Outros 3 sinos foram acres-
centados em 1870.
As estátuas dos arcanjos Miguel e Gabriel, de bronze fundido e dou-
rado, foram colocadas nas torres gêmeas em 1869. Miguel, o anjo da torre
esquerda, sustenta um estandarte de cobre com a palavra Lepanto vazada em
grandes letras. Gabriel, o da torre direita, oferece uma coroa de louros a Nos-
sa Senhora, em pé, no alto da cúpula. As duas estátuas foram habilmente
fundidas pelos irmãos Broggi, de Milão.
51
Foi preciso uma restauração em 1890-1891, sob o reitorado do padre Rua. Nesse tempo,
o pintor Rollini foi comissionado para pintar um grande afresco no céu da cúpula e o arquiteto Luís
Caselli desenhou um projeto para reforçar a cúpula e a lanterna. Novamente, a falta de dinheiro não
permitiu a execução. Mais tarde, o Reitor-Mor padre Pedro Ricaldone ampliou a igreja, construindo
uma nova cúpula e levando o altar-mor mais para trás. Nos tempos do Reitor-Mor padre Pascual Chá-
vez Villanueva, a igreja foi restaurada e limpa com a retirada de algumas aderências que a prejudicavam.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Uma data “profética” para o estandarte de Gabriel?


Lemoyne crê que se pensara para Gabriel, o anjo da torre direita, levan-
tar uma bandeira, em vez de uma coroa, com uma significativa data profética.
Escreve:

Em um desenho anterior que nós vimos, o segundo anjo também levantava


um estandarte no qual estava escrito em metal o número “19”, seguido de dois
pontos. Queria indicar outra data, “mil novecentos...”, sem os últimos dígi-
tos que indicariam o ano específico. Não obstante, em última análise, como
dissemos, pôs-se na mão do anjo uma coroa de louros; nunca esquecemos a
data misteriosa que, em nossa opinião, se referia a um novo triunfo da Virgem.
O triunfo poderia chegar logo e colocaria todas as nações sob o manto de Maria.52

Vista da fachada da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos,


em litografia utilizada por Dom Bosco no opúsculo
Lembrança de uma solenidade em honra de Maria,
Auxiliadora dos Cristãos (1868).

52
MB IX, 583s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O desenho, que Lemoyne afirma ter visto, não chegou até nós e, em
todo caso, não chegou a ser executado. É o que se pode falar sobre a tão
comentada “data misteriosa”. Será preciso ter em conta que o aumento da
devoção a Maria Auxiliadora dos Cristãos na década de 1860 acompanhava
a expectativa de que Maria fosse intervir para derrotar os inimigos da Igreja e
derrubar o Estado liberal e laico. Circulavam em almanaques algumas profe-
cias de videntes nesse sentido.
Características do edifício
Em maio de 1868, o interior da igreja estava concluído53 com simples
estuque e pintura; contudo, algumas características de interesse artístico e
decorativo merecem ser assinaladas.
O retábulo sobre o altar-mor, que domina totalmente o interior, é um
grande quadro de Maria Auxiliadora dos Cristãos, obra do pintor Tomás
Lorenzone, segundo um detalhado esquema apresentado por Dom Bosco.
A imagem da Virgem segura o Menino Jesus e surge rodeada pelos apósto-
los e santos sobre a cidade de Turim e o Oratório.54
Além do altar-mor, ricamente elaborado e decorado, há outros 4 alta-
res de mármore nas capelas laterais, com balaustradas de mármore e pisos
de mosaico. São dedicados a São José, São Pedro, aos Sagrados Corações de
Jesus e de Maria, mais tarde dedicado a São Francisco de Sales, e a Santa
Ana, apesar de esta capela ser localizada sobre o terreno assinalado como
lugar do martírio.
A porta entalhada, a entrada e o púlpito são obras do arquiteto An-
tônio Spezia.
O coro, sobre a entrada, com dois pisos capazes de acolher um coral de
300 cantores e sustentado por colunas esculpidas, foi obra, e doação, de um

53
Detalhes em MB IX, 198ss.
54
Diz-se que, em vista da elaboração da imagem de Maria para o grande retábulo, Dom Bosco
tomou como modelo a estátua de Maria Auxiliadora venerada na igreja de São Francisco de Paula, em
Turim, que lhe era familiar. É possível; mas Dom Bosco também estava familiarizado com a tradição ico-
nográfica da Hodegetria (Auxiliadora dos cristãos) da igreja Oriental. Hodegetria (Auxiliadora), derivado de
hodos, hodegéo (caminho, caminhar), significa “aquela que guia, acompanha, ajuda no caminho”. O ícone
é um entre outros: Eleousa (Virgem Misericordiosa) ou Glykofilousa (Mãe do sublime amor). Nesse ícone,
a Virgem e o Menino são vistos de frente (olhando para o espectador). A Virgem segura o Menino, em
geral, com a mão esquerda, e o indica com a direita. O Menino tem o rolo do Evangelho na mão esquerda
e, com a direita, simboliza a Trindade. Neste ícone, a posição e a atitude, as palavras abreviadas, a cor da
roupa e outros símbolos, mostram a Virgem como Mãe de Deus, que oferece e indica Jesus Cristo, nossa
salvação. A imagem de Dom Bosco repete, essencialmente, o modelo da Hodegetria, embora não se tenham
conservados os símbolos teológicos bizantinos e tenham sido acrescentados outros elementos de devoção.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

mestre-carpinteiro local. O órgão monumental do coro é obra da prestigiosa


firma Lingiardi, de Pavia.

A consagração
O arcebispo de Turim, dom Riccardi di Netro, consagrou a igreja em
9 de junho de 1868. Para a ocasião, vieram os alunos das escolas salesianas
de Mirabello e Lanzo. Vários concertos musicais foram apresentados, diri-
gidos pelo padre João Cagliero e outros compositores. Os coroinhas deram
esplendor às funções religiosas, dirigidas pelo padre José Bongiovanni. Dom
Bosco publicou um relato das celebrações em Lembrança de uma solene cele-
bração em honra de Maria Auxiliadora.55
Pio IX, em carta pessoal a Dom Bosco, escreveu ser disposição divina
que “enquanto os ímpios renovaram uma guerra cruel contra a Igreja católica,
enaltecia-se com novas honras a celestial Senhora com o título de Auxiliadora
dos Cristãos”.56

Significado salesiano da igreja de Maria Auxiliadora


A concepção de Spoleto, que a igreja de Dom Bosco parecia encar-
nar com seu esplêndido título, foi rapidamente superada. Dom Bosco e
os salesianos acreditavam que a igreja como também a devoção e a espi-
ritualidade relacionadas com ela tinham, por si mesmas, origem sobre-
natural. Afinal, a igreja não fora construída num lugar sagrado a pedido
da própria Virgem?
Mais decisivo ainda, a igreja de Maria Auxiliadora tinha um significa-
do especial para a Sociedade Salesiana como tal, pois ficou ligada aos seus
inícios históricos. Ela surgiu em meados da década decisiva 1863-1874; sua
consagração foi em 9 de junho de 1868. Nessa época, a Sociedade ainda não
obtivera reconhecimento canônico e carecia de coesão interna, quer entre seus
membros quer em sua organização. Externamente, lutava pela sobrevivência
contra forças poderosas, políticas e eclesiásticas. A igreja de Maria Auxiliadora
dos Cristãos apresentava-se como um ato de fé e coragem de Dom Bosco. Real
e simbolicamente, era como o centro de uma obra e de um movimento que já
não podia ser detido. A partir desta igreja, o apostolado de Dom Bosco haveria
de se irradiar a todas as partes do mundo.

55
“Rimembranza di una solennità in onore di Maria Ausiliatrice”, Letture Cattoliche 16:11
(novembro de 1868), 12 (dezembro de 1868).
56
Ver MB IX, 357s.

631

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Dom Bosco: história e carisma 2

5. Dom Bosco, o apóstolo de Maria Imaculada, Auxiliadora


dos Cristãos: a expressão de sua devoção

Como Fundador
Além de entronizar Maria Auxiliadora dos Cristãos como centro da
Sociedade Salesiana para acompanhá-la em seu itinerário histórico, Dom
Bosco, em resposta às necessidades, converteu-se no apóstolo de Maria
Auxiliadora mediante a fundação de instituições criadas especificamente
com esse título.
O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (salesianas) é seu principal
exemplo; foi fundado em 1872 por Dom Bosco em colaboração com Maria
Domingas Mazzarello. Essa congregação religiosa desenvolveu-se a partir do
grupo de algumas jovens, as Filhas de Maria Imaculada, que já viviam como
religiosas no mundo e participavam de obras de caridade. Domingos Pesta-
rino, padre que atuava na pequena cidade de Mornese, reunira o grupo em
1854, sob a guia da professora da escola local, Ângela Maccagno, e a direção
do padre José Frassinetti, reitor da igreja de Santa Sabina, em Gênova. Dom
Bosco teve o primeiro contato com o grupo de Mornese em 1864, dois anos
depois dos acontecimentos de Spoleto, quando a “década de Maria Auxilia-
dora dos Cristãos” já estava em marcha e a igreja de Maria Auxiliadora, em
construção. A fundação foi levada a cabo entre 1870 e 1872, depois da con-
sagração da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
Outros exemplos são a Obra de Maria Auxiliadora, uma associação de
salesianos cooperadores que cuidavam de vocações adultas (Filhos de Maria),
criada em 1875, e a Arquiconfraria dos Devotos de Maria Auxiliadora, com
sede na mesma igreja, fundada em 1869.

Como homem de oração


O que mais confirma a devoção e sua modalidade é a linguagem da
oração. Em seus esforços para difundir e explicar sua devoção pessoal a Maria
(Imaculada), Auxiliadora dos Cristãos, em seus aspectos eclesiais e pessoais,
Dom Bosco recorreu a várias fórmulas de oração; algumas delas de sua pró-
pria invenção, e todas muito queridas por ele. Mencionamos algumas delas.

Sub tuum praesidium (e Lembrai-vos)


Dom Bosco adotou o Sub tuum praesidium, antiga oração cristã, usan-
do-a com frequência e exortando os demais a fazerem o mesmo. Incluiu-a

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

como oração básica nos exercícios de devoção em honra de Maria.57 Maria


Auxiliadora dos Cristãos era, para ele, a Theotokos (Mãe de Deus), a quem se
pode recorrer em busca de refúgio nos momentos de necessidade.
Maria Auxiliadora dos Cristãos, rogai por nós
Esta breve invocação tornou-se comum no Oratório em 1867, quando
substituiu a outra, “Sede da Sabedoria, rogai por nós”, como breve jaculatória co-
munitária. Desde então, conservou seu lugar privilegiado como invocação inicial
dos trabalhos cotidianos de cada salesiano e das comunidades salesianas. Para esta
breve oração, tomada das ladainhas da Santíssima Virgem Maria, em 1869, Dom
Bosco obteve indulgências relacionadas com a aprovação da Sociedade Salesiana.58

Desenhos da planta da igreja de Maria Auxiliadora:


1. A igreja como foi consagrada em 1868.
2. Expansão em 1870 por adição de um coro e duas sacristias.
3. Restauração e ampliação de 1935-1938.

Bênção de Maria Auxiliadora


A bênção foi composta por Dom Bosco e aprovada, com indulgências,
em 1878.59 Nessa época, a igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos alcançara

57
O Sub tuum praesidium faz parte dos exercícios do Mês de maio, de 1858. Para a festa de
Maria Auxiliadora dos Cristãos, no Calendário Mariano de 1862, recomenda-se dizer a oração 5 vezes.
Com ela, começa a Bênção de Maria Auxiliadora.
58
MB IX, 477s.
59
OE XXXVIII, 240-242. Para o texto latino, ver MB XIII, 956ss e, mais adiante, no Apêndice
deste capítulo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

a condição de lugar de peregrinação. Nossa Senhora dispensava graças às pes-


soas que a invocavam e recebiam a bênção. Dom Bosco publicou em latim
o texto da bênção de Maria Auxiliadora dos Cristãos no periódico L’Unità
Cattolica, de 31 de dezembro de 1878, com estas palavras de introdução:

Cresce sempre mais em todo o mundo católico a devoção a Maria Auxilia-


dora dos Cristãos. É oportuno, portanto, que esta grande Auxiliadora da
humanidade seja honrada com um rito especial. Ela é invocada todos os
dias pelos fiéis como Auxílio dos Cristãos na Ladainha de Loreto. No dia
24 de maio, a Igreja celebra uma festa especial em sua honra. Altares, igre-
jas, associações religiosas em todas as partes do mundo honram-na como
Auxiliadora dos Cristãos. Um número sempre maior de pessoas recorre a
ela todos os dias na igreja construída em sua honra em Turim, encontrando
ajuda e consolo nos momentos de angústia e dor. Nesta igreja, durante al-
gum tempo, esteve em uso um rito de bênção. Agora, porém, Dom Bosco
solicitou sua aprovação pela Santa Sé, de modo que tudo possa ser realizado
de acordo com a tradição litúrgica. Em nome de Sua Santidade Leão XIII, a
Sagrada Congregação dos Ritos examinou cuidadosamente o texto da bên-
ção, e deu a sua aprovação.

Ó Maria, Virgem poderosa


Em 1885, Dom Bosco já em seus últimos anos, compôs uma bela oração
em latim, compilação de textos litúrgicos.60 É a oração do santo envelhecido,
cheio de fé e esperança inquebrantáveis.

O Maria, virgo potens, tu magnum et praeclarum in Ecclesia praesidium; tu


singulare Auxilium Christianorum; tu terribilis ut castrorum acies ordinata; tu
cunctas haereses sola interemisti in universo mundo; tu in angustiis, tu in bello,
tu in necessitatibus nos ab hoste protege, atque in aeterna gaudia in mortis hora
suscipe. [Ó Maria, Virgem poderosa, tu és a forte e gloriosa defesa estabelecida
na Igreja; tu és a grande auxiliadora dos cristãos; tu és tão poderosa quanto
um exército em ordem de batalha; tu és a única que venceu todas as heresias
no mundo todo. Nas dificuldades, nos combates, nas necessidades, defende-
-nos dos inimigos, e na hora da nossa morte recebe-nos na alegria eterna.]

60
MB XVII, 310, nota 3. Dom Bosco enviou esta oração a dom Cagliero, que estava na Argentina,
sugerindo-lhe que a musicasse, coisa que não pôde fazer pessoalmente. Em 1918, no 50o aniversário da
consagração da igreja de Maria Auxiliadora, o já então cardeal Cagliero fez com que o texto fosse musica-
do pelo padre João Pagella, grande compositor salesiano.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Autor de folhetos marianos


Dom Bosco é autor de vários opúsculos com que procurou divulgar a
devoção a Maria, especialmente sob o título de Maria (Imaculada), Auxilia-
dora dos Cristãos. A lista a seguir recolhe os títulos e, em alguns casos, tam-
bém o conteúdo de seus escritos mariológicos.
1. O mês de maio dedicado a Maria Santíssima para uso do povo
(1858).61 Já se falou desta importante obra.62
2. Maravilhas da Mãe de Deus invocada com o título de Maria Auxi-
liadora dos Cristãos (1868).63 A obra, fiel ao título, leva o leitor por
um percurso histórico no qual se relatam as maravilhas realizadas
por Maria Auxiliadora dos Cristãos em favor da Igreja. Considera-
do um dos mais importantes textos mariológicos de Dom Bosco,
foi composto por ocasião da consagração da igreja de Maria Au-
xiliadora. Seus 19 capítulos descrevem as imagens tradicionais, a
doutrina de Maria na Bíblia e seus feitos gloriosos na história da
Igreja até a construção da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
3. Lembrança de uma solenidade em honra de Maria Auxiliadora dos Cris-
tãos (1868).64 Escrito imediatamente depois das cerimônias e festivi-
dades da dedicação da igreja de Maria Auxiliadora, o folheto apresen-
ta em detalhes os acontecimentos daquela ocasião memorável.
4. Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora dos Cristãos (1869).65
O folheto descreve a natureza da Associação e conta a origem e o
significado do título Auxiliadora dos Cristãos.
5. Novena em honra da gloriosa Mãe de Nosso Salvador, sob o título de
Maria Auxiliadora dos Cristãos (1870).66 O formato de cada exercício
61
“Il mese di maggio consacrato a Maria Ssma. Immacolata ad uso del popolo, per cura del sac.
Bosco Giovanni”, Letture Cattoliche 6:2. Turim: G. B. Paravia e Co., abril de 1858, 192 p., em OE X,
295-486. O opúsculo foi reeditado em 1864, 1869, 1873, 1874, 1879 e 1885.
62
Ver no início deste capítulo.
63
Maraviglie della Madre di Dio invocata sotto il titolo di Maria Ausiliatrice, raccolte dal sacerdote
Giovanni Bosco. Turim, 1868, 184 p., em OE XX, 192-376.
64
Rimembranza di una solennità in onore di Maria Ausiliatrice, pel sacerdote Bosco Giovanni.
Turim, 1868, em OE XXI, 1-174.
65
Associazione de’ Divoti di Maria Ausiliatrice canonicamente eretta nella Chiesa a Lei dedicata
in Torino con ragguaglio storico su questo titolo, pel sacerdote Giovanni Bosco. Turim, 1869, em OE XXI,
339-434. Reedições em 1878, 1881 e 1887.
66
Associazione de’ Divoti di Maria Ausiliatrice canonicamente eretta nella Chiesa a Lei dedicata
in Torino con ragguaglio storico su questo titolo, pel sacerdote Giovanni Bosco. Turim, 1869, em OE XXI,
339-434. Reedições em 1878, 1881 e 1887.

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Dom Bosco: história e carisma 2

desta novena é semelhante ao do Mês de maio; Dom Bosco propõe


temas de vida cristã em lugar das glórias de Maria.
6. A aparição da Virgem na montanha de La Salette, com a relação
de outros fatos extraordinários, tomados de documentos públicos
(1871).67 Dom Bosco relata a história da aparição de Maria em
1846 a dois jovens pastores, de 15 e 11 anos de idade, na monta-
nha que domina La Salette, aldeia da diocese de Grenoble, sudeste
da França. A senhora pediu arrependimento pela apatia religiosa
e confiou a cada um dos videntes um segredo que revelaram mais
tarde a Pio IX. No local foi construída uma igreja em 1852-1864.
7. Maria Auxiliadora dos Cristãos com a narração de algumas graças
obtidas durante sete anos desde a consagração da igreja a ela dedicada
em Turim (1875).68
8. A pequena nuvem do monte Carmelo ou a devoção a Maria Auxilia-
dora dos Cristãos com a narração de novas graças (1877).
Os dois últimos folhetos eram coleções de relatos de graças, so-
bretudo curas, obtidas pelos devotos de Maria Auxiliadora. En-
frentaram a desaprovação de dom Gastaldi, que apelou para sua
autoridade sobre publicações que descrevessem fatos milagrosos
em sua diocese.
9. As sete dores de Maria: uma série de meditações (1845?). Dom Bosco
redigiu este exercício de devoção quando era capelão nas institui-
ções da marquesa Barolo (1844-1846). Ele o cita em seu testa-
mento de 1856 como um dos folhetos de sua autoria, mas não se
tem conhecimento da conservação de alguma cópia.

6. Conclusão
O entusiasmo despertado pelos acontecimentos de Spoleto só sobrevi-
veu na década dos anos sessenta e não foi além da tomada de Roma em 1870.
Passou-se, também, pouco tempo para que Dom Bosco abandonasse a esca-
tologia mariana vinculada à situação político-religiosa da época.

67
Apparizioni della Beata Vergine sulla montagna di La Salette con altri fatti prodigiosi raccolti dai
pubblici documenti, pel sacerdote Giovanni Bosco. Turim, 1871, em OE XXII, 401-492. Reeditado em 1877.
68
Maria Ausiliatrice col racconto di alcune grazie ottenute nel primo settennio dalla consacra-
zione della Chiesa a Lei dedicata in Torino, per cura del sacerdote Giovanni Bosco. Turim: Tipografia
dell’Oratorio di San Francesco di Sales, 1875, em OE XXVI, 304-624. Reeditado em 1877.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Após 1870, Dom Bosco fala da Auxiliadora dos Cristãos em termos


históricos mais amplos. Em relação ao passado, considera a Auxiliadora como
o poder que fez a Igreja triunfar ao longo da sua história. Quanto ao futuro,
vê em Maria a promessa de auxílio e garantia para o êxito final da missão da
Igreja e da Sociedade Salesiana em particular.
Mais importante ainda, Dom Bosco conservou e incorporou ao seu
estilo de espiritualidade salesiana o que a mensagem da Imaculada Auxilia-
dora dos Cristãos tinha de valor duradouro. Em sua concepção e na prática
devocional, a Imaculada Conceição e a Auxiliadora dos Cristãos unem-se
para formar uma dupla estrela que brilha no firmamento da espiritualida-
de salesiana. Os dois títulos surgem inseparáveis embora simbolicamente
distintos. Permanecem sempre ligados a sua pessoa e à Sociedade Salesiana
e sua obra. Maria Imaculada converteu-se em presença que potencializa a
educação salesiana e a espiritualidade a ela relacionada. Maria Auxiliadora
converteu-se em presença que potencializa o apostolado e a espiritualidade
salesiana relacionada com ele. Maria Imaculada é símbolo da vitória sobre o
mal pessoal, símbolo da santidade e da consagração, tanto para o educador
como para o educando. Maria Auxiliadora é símbolo da vitória sobre o mal
na sociedade, mediante o apostolado salesiano. O mesmo ocorre com as
salesianas, que foram Filhas de Maria Imaculada antes de serem Filhas de
Maria Auxiliadora.
A transcendência assim conquistada deu a esses títulos um alcance de
nível mundial. Através deles, Dom Bosco tornou-se apóstolo da Imaculada
Auxiliadora dos Cristãos enquanto a grande igreja construída por ele tornou-
-se um centro de irradiação desse significado em todo o mundo.

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Apêndice

O SONHO DE 1844

Texto
Narração de Dom Bosco Relato de Barberis
nas Memórias do Oratório 69 segundo outra narração de Dom Bosco70
[Introdução do padre Barberis]
Em 2 de fevereiro de 1875 eu caminhava com Dom
Bosco de volta ao Oratório de Borgo San Salvario.
Estávamos sozinhos. Entre outras muitas coisas,
contou-me o seguinte sonho. Disse que era o pri-
meiro que se referia à Congregação, e era o mais
longo, pois durou a noite toda. Acrescentou que
nunca relatara o assunto a ninguém. Eu era o pri-
meiro a sabê-lo.
[Narração de Dom Bosco] [Narração de Dom Bosco]
[Introdução] [Introdução]
No segundo domingo de outubro daquele ano Corria o ano de 1844. Eu devia deixar o Colégio
(1844) devia anunciar aos meninos que o Ora- Eclesiástico de São Francisco de Sales [Convitto
tório ia mudar-se para Valdocco. Mas a incer- Ecclesiastico] e ir ao Refúgio obra da marquesa
teza do lugar, dos meios, das pessoas deixava- Barolo] para viver com o teólogo Borel. Estava
-me muito preocupado. Na tarde anterior fui realmente preocupado pelos [o que devia fazer
dormir com o coração inquieto. Tive naquela com] meus jovens, que iam à instrução religiosa
noite outro sonho, que parece um apêndice do [ao Oratório] aos domingos e dias festivos. Não
que tive nos Becchi aos 9 anos. Julgo oportuno sabia se devia abandoná-los ou continuar a cuidar
contá-lo em pormenores. deles. Meu desejo era continuar com [a obra d]
os Oratórios, mas não via como poderia fazê-lo.
No último domingo que ia permanecer no Colé-
gio Eclesiástico devia comunicar aos meus jovens
que já não poderiam reunir-se ali, como o faziam
habitualmente. De fato, eu estava duvidando se
devia dizer-lhes que não fossem a nenhum lugar,
pois o oratório terminava, ou se devia indicar-lhes
um novo lugar aonde podiam reunir-se.

69
Cf. MO, 133ss.
70
J. Barberis, Cronichette: ASC A0020102.

638

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

[Narração de Dom Bosco do sonho] [Narração de Dom Bosco do sonho]


Sonhei que estava no meio de uma multidão Na noite de sábado para domingo, sonhei que es-
de lobos, cabras e cabritos, cordeiros, ovelhas, tava numa vasta planície cheia de uma multidão de
bodes, cães e pássaros. Faziam todos juntos jovens. Alguns brigavam ou blasfemavam, enquan-
um barulho, uma desordem, ou melhor, uma to outros roubavam ou tinham um comportamen-
inferneira de espantar os mais corajosos. Ia fu- to desagradável. O ar encheu-se de pedras devido à
gir, quando uma senhora, muito bem trajada guerrilha travada pelos jovens, todos eles abando-
à moda de pastorinha, fez um gesto para que nados e transtornados. Eu estava a ponto de aban-
seguisse e acompanhasse o estranho rebanho; donar a cena, quando vi uma Senhora ao meu lado.
enquanto isso se punha à frente. Estivemos va- “Põe-te no meio dos jovens” [disse-me]. “E que
gando por vários lugares; fizemos três estações posso fazer com esses moleques de rua?” [respondi-
ou paradas. A cada parada muitos desses ani- -lhe]. “Observa e trabalha” [ela replicou].
mais convertiam-se em cordeiros, cujo número Coloquei-me no meio deles, mas o que podia fazer?
ia sempre aumentando. Depois de muito andar, Não havia nenhum lugar onde recolher nem mesmo
encontrei-me num prado onde os animais salti- um deles. Eu queria fazer algo de bom por eles; mas
tavam e comiam juntos, sem que nenhum deles ninguém [dos que estavam ao redor] me dava aten-
tentasse prejudicar os outros. ção nem me dava uma mão. Eu, então, dirigi-me à
Esgotado de cansaço, queria sentar-me à beira Senhora, e ela disse: “Este é o lugar” – indicando-
de um caminho aí perto, mas a pastorinha con- -me um prado. “Aqui não há nada a não ser um
vidou-me a continuar andando. Após andar um campo” – eu objetei.
pouco, encontrei-me em vasto pátio rodeado Ela respondeu: “Meu filho e seus apóstolos não ti-
de pórticos, em cuja extremidade se erguia uma nham um lugar onde reclinar a cabeça”. Comecei
igreja. Percebi então que quatro quintos dos a trabalhar nesse campo, mas vi que meus esforços
animais haviam-se transformado em cordeiros. eram em grande medida ineficazes. Precisava encon-
O número deles tornou-se depois muito maior. trar algum lugar onde pudesse abrigar alguns [dos
jovens] que estavam totalmente abandonados. En-
tão, a Senhora me levou mais adiante, e disse: “Olha
bem”. Olhei e vi uma pequena igreja, um pequeno
pátio, com jovens etc.

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Dom Bosco: história e carisma 2

[Ajudantes e a grande igreja] [A grande igreja e os ajudantes]


Naquele momento chegaram alguns pastorzi- Mas, como vi que a [pequena] igreja tornou-
nhos para vigiá-los. Mas ficavam pouco tempo e -se logo insuficiente, novamente fui até ela, e
iam-se embora. Aconteceu então uma coisa ma- ela indicou-me outra igreja e um edifício muito
ravilhosa. Muitos cordeiros convertiam-se em maior. Então, a Senhora levou-me um pouco mais
pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar adiante, e disse: “Este é o lugar onde os gloriosos
conta dos outros. Com o grande aumento do mártires de Turim, Aventor e Otávio, sofreram o
número dos pastorzinhos, eles se separavam e se martírio. É meu desejo que aqui se honre a Deus
dirigiam a outros lugares, onde reuniam alguns de uma maneira muito especial”. E, ao dizer isso,
animais estranhos e os levavam a outros redis. estendeu o pé e colocou-o sobre o lugar em que
Eu queria ir embora, porque parecia estar na se dera o martírio, indicando assim o ponto exa-
hora de rezar missa, mas a pastora me convidou to. Eu queria deixar ali algum tipo de sinal a fim
a olhar para o sul. Olhei e vi um campo semea- de recordá-lo, mas não pude encontrar nada para
do de milho, batatas, couves, beterrabas, alface esse fim. Contudo, fiquei com o lugar claramente
e muitas outras verduras. na mente. Enquanto isso, vi-me rodeado de uma
– Olha outra vez – disse-me. multidão de jovens; mas, olhando para a Virgem,
Olhei de novo. Vi então uma igreja estupenda dei-me conta de que os meios e as acomodações
e alta. Um conjunto de música instrumental e também cresciam num bom ritmo. Vi, então, uma
vocal convidava-me a cantar missa. No interior igreja muito grande, que surgia no mesmo lugar
da igreja havia uma faixa branca, na qual estava que me havia indicado como o ponto onde se dera
escrito em caracteres garrafais: “Hic domus mea, o martírio. Havia edifícios, tudo ao redor de [a
inde gloria mea” [Esta é minha casa, de aqui sai- igreja], e uma bela praça em frente com um mo-
rá a minha glória] numento no seu centro. Enquanto isso tudo acon-
Sempre em sonho, quis perguntar à pastora onde tecia, consegui a ajuda de sacerdotes e estudantes
é que eu estava, que significava aquele andar e clérigos; mas me ajudavam somente durante um
parar, a casa, a igreja e depois outra igreja mais. curto tempo e logo iam embora. Fiz os maiores
– Tudo haverás de compreender quando com esforços para conservá-los comigo; mas, depois de
teus olhos materiais vires realizado o que agora certo tempo iam embora, e eu ficava sozinho. Por
vês com os olhos da mente. isso, dirigi-me novamente à Senhora. “Queres sa-
Parecendo-me, porém, estar acordado, disse: ber como evitar que vão embora?” – perguntou.
– Eu vejo claro e vejo com os olhos materiais. “Toma este cordão ou pequena fita e amarra-a à
Sei aonde vou e o que faço. frente”. Tomo a pequena fita branca e percebo que
Naquele instante soou o sino de Ave-Marias na tem escrita a palavra Obediência. Tratei de fazer
igreja de São Francisco, e acordei. o que a Virgem me sugeriu e comecei a cobrir a
cabeça de alguns [dos meus ajudantes] com a fita,
com grandes resultados. E os resultados melhora-
ram com o passar do tempo. Aqueles indivíduos
abandonaram a ideia de ir embora e ficaram para
ajudar-me. Foi assim que nasceu a Congregação.
[Fim da narração do sonho] [Fim da narração do sonho]
[Conclusão de Dom Bosco] [Conclusão de Dom Bosco e comentários]
O sonho durou quase a noite inteira, com mui- Aconteceram muitas outras coisas [no sonho],
tos detalhes. Por então pouco compreendi o mas não considero que seja agora o momento de
significado, porque não lhe dava muito crédito. relatá-las. (É possível que se referisse a grandes
coisas por vir).

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

[Compreensão gradual e outro sonho] [Certezas obtidas a partir do sonho]


Fui entendendo as coisas à proporção que se Baste dizer que desde aquele momento caminhei
iam realizando. Posteriormente, junto com por terreno seguro, tanto nos assuntos relativos
outro sonho, serviu-me de programa em mi- à Congregação e ao Oratório, como em questões
nhas decisões. relativas à política. O motivo pelo qual comecei
a mencionar o assunto aos demais e a falar disso
como uma realidade foi que contemplei a igreja,
a casa, pátios de recreio, jovens, estudantes, cléri-
gos e sacerdotes que me ajudavam, e vi como devia
conduzir a obra inteira. É por isso que muitas pes-
soas consideravam a história como uma estupidez
irracional. Eles pensavam que eu tinha perdido o
juízo e queriam desembaraçar-se [de mim].
[A pesquisa de Gastaldi sobre os Santos Mártires]
Quanto ao lugar indicado pela Virgem Maria a
Dom Bosco como o lugar do martírio dos santos
Aventor e Otávio, Dom Bosco fez mais alguns co-
mentários. Ele continuou: Decidi não dizer a nin-
guém onde se dera. Eu simplesmente encarreguei
o cônego Gastaldi (agora nosso arcebispo) que pes-
quisasse a questão. A finalidade era determinar, na
medida do possível, em bases históricas, onde se
deu o martírio. (De fato, sugeri-lhe que publicasse
um livro sobre a vida desses santos.) Ele investigou
a fundo a questão e concluiu que o lugar mais pro-
vável era Valdocco e, de fato, perto da região do
nosso Oratório.

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Dom Bosco: história e carisma 2

[A compra do “Prado dos Sonhos” para a constru-


ção da igreja]
Enquanto isso foi tomada a decisão de construir a igre-
ja no mesmo local do martírio, que fora de minha pro-
priedade. Mas, como houve propostas para construir
a igreja em outro lugar, ou seja, onde se situava a casa
Defilippi, esse terreno fora vendido aos rosminianos,
que pretendiam estabelecer ali uma casa. As negocia-
ções para a compra da casa Defilippi já estavam muito
avançadas. A igreja seria construída no pátio à frente
da casa, de modo que fosse visível mesmo da rua Dora
Grossa. Mas justamente quando estava para se fechar
o acordo, este se interrompeu. Os donos não estavam
mais dispostos a deixar a casa. Então, voltamos a pen-
sar na localização original; mas, como dito, o terreno
fora vendido aos rosminianos. Nessa situação, recebe-
mos a notícia de que falecera o abade Rosmini. Nessas
circunstâncias, os rosminianos já não estavam interes-
sados em estabelecer uma casa em Turim. Puseram
logo o terreno à venda, mas com a condição de que [os
agentes] não deveriam tratar com Dom Bosco. Eles ne-
gavam-se a vendê-lo, porque compraram o terreno por
um preço elevado, e agora se depreciara em 8/10 por
cento [do seu valor anterior]. Ao ver que se negavam a
vendê-lo para mim, entrei em contato com o irmão de
monsenhor [bispo?] Negroni para que agisse em meu
nome. (Negroni ou Negrotti ou Neirotti ou Neironi
ou algum nome semelhante.) Sem demora, ocupou-se
da questão em meu nome, e eu só apareci para a assina-
tura do contrato. O procurador dos rosminianos ficou
muito surpreso ao ver-me. Ele não queria saber nada
disso, pois recebera instrução clara do contrário. Mas o
assunto era urgente. Já se tinha dito ao notário público.
Vários conselheiros da cidade também estavam presen-
tes. Não havia tempo para redigir [outras instruções].
Todos os pressionavam para que mantivesse os termos
das negociações e que me vendesse. Esse é o local onde
se construiu a nova igreja. Sem qualquer referência mi-
nha a qualquer lugar específico, aconteceu que uma
das capelas estava situada no mesmo lugar que a Vir-
gem me indicara. É a capela que conhecemos como
de Santana. Contudo, o altar que ali está é consagrado
especificamente aos santos mártires de Turim. Não
vou entrar nos maravilhosos fatos que acompanharam
a construção da igreja. Poderia contar-te histórias que
te surpreenderiam, por [serem] extraordinárias.
[A praça e o monumento]
Diante da igreja que a Virgem me mostrou, também
se estendia uma bela praça com um monumento no
centro da mesma. Agora, vou esperar e ver se isso se
realiza. Todas as dificuldades que possa encontrar no
futuro estão previstas, e eu caminho em plena luz do
dia. Tenho uma visão clara das coisas que nos vão
acontecer, das dificuldades e da maneira de tratá-las.

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Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos

Comentário
Há, portanto, duas narrações distintas do mesmo sonho de 9 de outu-
bro de 1844. Ele se deu quando Dom Bosco estava para deixar o Colégio
Eclesiástico para trabalhar como capelão nas instituições da marquesa Barolo.
Sua perplexidade surgiu porque não conseguia compreender como, nessas
circunstâncias, poderia continuar seu trabalho com os jovens (o Oratório).
Os dois textos são muito diferentes, embora as descrições do sonho con-
cordem no essencial. A narração de Barberis, mais ampla, descreve a cena adi-
cional da Virgem que indica o lugar da morte dos santos mártires e da grande
igreja que se ergueria nesse lugar. Cita outros comentários de Dom Bosco sobre
a aquisição do terreno e o edifício da igreja e menciona um monumento. Evi-
dentemente não podia ser um monumento em honra de Dom Bosco. De fato,
diz-se que ele falou: “Vou esperar e ver se isso se realiza”. Todavia, os Ex-Alunos,
que em 1920 dedicaram o magnífico monumento a Dom Bosco no centro da
praça, bem poderiam ter querido realizar o profético sonho de Dom Bosco.

BÊNÇÃO DE MARIA AUXILIADORA DOS CRISTÃOS


Formula benedictionis Ritual da bênção em honra
in honorem et cum invocation da Bem-Aventurada Virgem Maria,
Beatae Mariae Virginis sub titulo invocada sob o título
Auxilium Christianorum de Auxiliadora dos Cristãos
[Sacerdos, superpelliceo et stola indutus, dicit.] [O sacerdote, com sobrepeliz e estola, diz:]
V) Adiutorium nostrum in nomine Domini. V. O Nosso auxílio está no nome do Senhor.
R) Qui fecit caelum et terram. R. Que fez o céu e a terra.
Ave Maria. Ave-Maria.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei V. Debaixo de vossa proteção nos refugiamos, ó
Genetrix, nostras deprecationes ne despicias in Santa Mãe de Deus, não desprezeis as nossas sú-
necessitatibus nostris; sed a periculis cunctis li- plicas em nossas necessidades; mas livra-nos de
bera nos semper, Virgo gloriosa et benedicta. todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita.
V) Maria, auxilium christianorum, V. Maria, Auxiliadora dos Cristãos.
R) Ora pro nobis. R. Rogai por nós.
V) Domine, exaudi orationem meam. V. Senhor, escutai a nossa oração.
R) Et clamor meus ad te veniat. R. E chegue a vós o nosso clamor.
V) Dominus vobiscum, V. O Senhor esteja convosco.
R) Et cum spiritu tuo. R. E com o teu espírito
Oremus: Oremos:
Omnipotens, sempiterne Deus, qui gloriosae Deus todo-poderoso e eterno, com a ajuda do
Virginis Matris Mariae corpus et animam, ut dig- Espírito Santo preparastes o corpo e a alma de
num Filii tui habitaculum effici mereretur, Spiritu Maria, a Virgem Mãe, para ser digna morada
Sancto cooperante, praeparasti; da, ut cuius com- do vosso Filho; ao recordá-la com alegria, livrai-
memoratione laetamur, eius pia intercessione ab -nos por sua intercessão dos males presentes e
instanti-bus malis et a morte perpetua liberemur. da morte eterna. Por Jesus Cristo, nosso Senhor.
Per eumdem Christum Dominum nostrum. R. Amém.
R) Amen.

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Dom Bosco: história e carisma 2

[Et personam benedicendam aspergit aqua bene- [O sacerdote asperge a pessoa que recebe a bênção
dicta] com água benta]
Taurin. [Para a diocese de] Turim.
Sacra Rituum Congregatio, utendo faculta- Esta Sagrada Congregação dos Ritos, pelas
tibus sibi specialiter a Sanctissimo Domino faculdades especiais recebidas de Sua San-
Nostro Leone Papa XIII tributis, ad enixas tidade o papa Leão XIII, aceita o pedido do
preces rev. Domini loannis Bosco, rectoris reverendo padre João Bosco, reitor da igreja
ecclesiae ac sodalitatis Beatae Mariae Virginis e da confraria da Santíssima Virgem Maria,
sub titulo Auxilium Christianorum in civitate Auxiliadora dos Cristãos. Em seguida, depois
Taurinensi, suprascriptam benedictionis for- de um cuidadoso exame, aprova-se o texto da
mulam, antea a se rite revisam, approbavit at- bênção ritual como acima, para uso na igreja
que in usum praefatae Ecclesiae et Sodalitatis anteriormente mencionada e para a confraria
benigne concessit. Die 18 Maii 1878. antes mencionada. 18 de maio de 1878.
Th. Ma Card. Martinelli, S. R. C. Praef. T. M. Card. Martinelli, Prefeito da S. C. R.
Plac. Ralli, S. R. C. Secr Placidus Ralli, Secretário da S. C. R.

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Capítulo XX

A MEDIAÇÃO OFICIOSA DE DOM BOSCO


ENTRE A SANTA SÉ E O GOVERNO ITALIANO
PARA A NOMEAÇÃO DE BISPOS (1865-1874)

1. Questões introdutórias
As biografias populares de Dom Bosco dão poucas informações sobre a
sua atuação como mediador entre a Igreja e o Estado na Itália, na época de
seu afastamento recíproco por causa da Revolução Liberal, a unificação da
Itália e a conquista de Roma. Contudo, existem testemunhos dessa atividade
mediadora durante uns vinte anos (1858-1878), que apresentam uma carac-
terística extraordinária na vida do humilde e “politicamente não envolvido”
padre de Valdocco.

Motivo e natureza da participação de Dom Bosco nas negociações


O Arquivo Central Salesiano conserva testemunhos da participação de
Dom Bosco, derivados principalmente do padre Joaquim Berto, seu fiel se-
cretário. As Memórias Biográficas deram atenção a essa atividade, sobretudo
em suas últimas fases. Motto, numa série de artigos, e Desramaut, na biogra-
fia do santo, revisaram o tema criticamente.
A ação de Dom Bosco como negociador dirigia-se basicamente a cobrir as
dioceses vacantes, cujos bispos foram expulsos, encarcerados ou morreram.1
A nomeação dos bispos, por isso, foi objeto importante dessas intervenções.

1
Já se mencionou a atuação de Dom Bosco, em 1858-1859, como mensageiro numa troca de
cartas entre a Santa Sé e o governo de Cavour no caso Fransoni. Estas negociações que acabaram fracas-
sando eram destinadas a resolver o problema da diocese de Turim, cujo arcebispo, dom Luís Fransoni,
vivia exilado em Lyon, desde 1850.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Posteriormente, o objeto principal da mediação foi obter o Exequatur após a


nomeação de um bispo. O Exequatur era a autorização dada pelo Estado para
os bispos poderem ocupar suas sedes e tomarem posse dos recursos e entradas
financeiras, sequestrados pelo governo, e que eram necessários para o governo
das dioceses.2
Como, por que e em quais circunstâncias se deu essa notável partici-
pação? Dom Bosco não era, certamente, um personagem importante. De
origem camponesa, sem formação específica, não ocupava cargo elevado na
Igreja. Como costumava repetir, nunca esteve envolvido na política ou na
vida pública. Embora sua obra de beneficência fosse importante e eficaz, não
lhe conferia uma distinção e poder especiais. Como explicar, então, seu gran-
de envolvimento em delicadas negociações entre a Igreja e o Estado durante
muitos anos? Poder-se-á julgar melhor o tema depois de conhecer a longa e
complicada história dessa participação. Baste dizer que Dom Bosco não era
estranho nem aos homens do governo nem às autoridades do Vaticano. Des-
de fins dos anos sessenta, ele aparece sendo ouvido por Pio IX e seu secretário
de Estado, cardeal Antonelli. É também importante levar em conta que Dom
Bosco se viu envolvido nessas negociações a título exclusivamente privado.
O caráter não oficial de sua mediação explica por que é tão pouco mencio-
nado nos documentos oficiais ou nos livros históricos da época. Padre Berto
oferece uma explicação num comentário introduzido em suas lembranças:

Neste momento, dispomos de pouquíssimos documentos escritos que po-


deriam servir para demonstrar o papel de Dom Bosco, entre os anos 1867 e
1874, na nomeação de bispos para as sedes vacantes e na obtenção para eles
dos assim chamados benefícios [Exequatur]. O motivo que explica a falta de
documentação é que ele não atuava a título oficial. Obviamente, a Santa Sé
não podia comprometer a dignidade do Papa negociando diretamente com
seus inimigos. Dom Bosco atuava como intermediário de boa fé, mas sem ter
credenciais oficiais. Tratava com o governo a título privado e oralmente; mas
sempre de acordo com as instruções recebidas do Vaticano. Depois, informa-
va fielmente sobre as respostas do governo e as exigências do Vaticano.3

2
O Exequatur era a autorização assinada pelo rei e entregue ao novo bispo depois da apresenta-
ção da Bula pontifícia de sua nomeação. Reconhecia-lhe a capacidade de exercer jurisdição na diocese,
dispor de seus recursos e receber subsídios. A bula de nomeação era um documento emitido pela Da-
taria apostólica, órgão da Santa Sé, que confirmava a nomeação episcopal. Havia diversas bulas: uma
dirigida ao clero, outra, ao capítulo da catedral e outra, ao próprio bispo eleito.
3
Coleção Berto, em ASC A026: Vescovi, FDB 788 C2. Nas páginas seguintes, padre Berto
indica alguns testemunhos de salesianos que estiveram próximos de Dom Bosco nessa época.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Estamos, hoje, numa situação diferente, muito mais favorável. Motto


e Desramaut citam livros de história da época nos quais se mencionam as
atividades de Dom Bosco. Alguns historiadores da Igreja Católica também
mencionam a mediação de Dom Bosco, embora sem muitos detalhes. A pes-
quisa em vários arquivos também descobriu correspondências e outros docu-
mentos que lançam muita luz sobre o papel desempenhado por Dom Bosco.4
Este conjunto mais amplo de dados históricos fornece uma base importante
à tradição salesiana, recolhida nas Memórias Biográficas, e permite descrever
mais detalhadamente a atividade de Dom Bosco como mediador.
Deve-se dizer, com toda clareza, que as negociações feitas entre a Santa
Sé e o governo italiano nunca foram destinadas à reconciliação política entre
as partes em luta. Desde a unificação da Itália em 1861 e, mais ainda, desde
a tomada de Roma em 1870, a posição da Santa Sé manteve-se clara e firme:
a Itália era agressora e não era possível qualquer reconciliação, salvo se fosse
alcançada mediante a restituição dos territórios invadidos e dos bens con-
fiscados. Nessas circunstâncias, do ponto de vista da Santa Sé, até mesmo a
ideia de reconciliação política pareceria absurda.
A nomeação de bispos para as sedes vacantes e a obtenção do Exequatur
e dos meios materiais necessários para o governo de suas dioceses eram ques-
tões puramente religiosas, que tinham a ver com o bem das almas. Essa era a
ideia de Dom Bosco e o motivo da sua participação.

Contexto político
Depois das várias guerras pela independência da Itália e dos sucessivos
levantes nacionalistas em várias regiões dos Estados italianos, a Itália ficou
parcialmente unificada em 17 de março de 1861, quando o Parlamento e o
Senado votaram e proclamaram Vítor Emanuel II como primeiro rei da Itá-
lia. Em 23 de março de 1861 foi formado o primeiro gabinete da nova nação
tendo o conde Camilo Benso de Cavour como primeiro-ministro. Imedia-
tamente veio à luz a “questão romana”: a unificação da Itália só poderia ser
considerada completa quando Roma fosse sua capital. O objetivo, portanto,
devia continuar a “libertação” de Roma, que seria realizada com a concor-
dância da França. Devia ser realizada sem detrimento da liberdade espiritual
e da independência do papado, e a Itália deveria garanti-lo perante o mundo.
Esta política deveria ser um exemplo do princípio liberal: “Uma Igreja livre
num Estado livre”.
4
F. Motto, L’azione 252, notas 2 e 3. Motto diz ter consultado várias seções do Arquivo
Secreto Vaticano e o Arquivo Histórico do Ministério [italiano] dos Assuntos Exteriores; menciona,
também, um bom número de historiadores: P. Pirri, R. Aubert, G. Martina, entre outros.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Entretanto, Cavour morreu repentinamente em 6 de junho de 1861.


Em setembro, seu sucessor, o barão Ricasoli, fiel ao pensamento de Cavour,
apresentou uma proposta de “reconciliação” entre a Itália e a Santa Sé em
Paris e Roma. A Santa Sé renunciaria à soberania territorial em troca do re-
conhecimento da soberania pessoal do Papa, o direito à representação diplo-
mática e uma grande dotação anual, que seria subscrita também por outras
nações católicas. A Santa Sé ignorou a proposta. A política eclesiástica do
governo italiano agravou a situação já tensa. Nos quinze anos seguintes, o go-
verno ficou nas mãos dos liberais moderados na linha promovida por Cavour.
Foram governos ineficazes e sucumbiram em todas as crises.5
Eram muito preocupantes para os governos os planos dos republicanos
radicais, fomentados por Mazzini e Garibaldi, para “libertar” o Vêneto da
Áustria e Roma do Papa. A criação da “Associação para a Libertação da Itália”
(1862) demonstrou que seu objetivo final era derrubar o governo monárqui-
co constitucional e a Igreja, e unificar a Itália como república popular. Outro
motivo de preocupação para o governo era o mal-estar de Pio IX pela perda
de grande parte do seu poder temporal e pela política eclesiástica da direita
radical, sintetizada nas leis Siccardi e Rattazzi de 1850 e 1855. Essas leis, es-
tendidas a toda a Itália nos anos 1864 a 1866, levaram à supressão de 2 mil
comunidades religiosas e 25 mil entidades eclesiásticas. Durante os quinze
anos seguintes, foram vendidos mais de 1 milhão de hectares de terras da
Igreja.6 A “Convenção de Setembro”, assinada pela França e Itália em 1864,
abriu caminho para a eventual ocupação de Roma pela Itália durante a guerra
franco-prussiana (1870).7
Pio IX desconfiava, obviamente, e temia os acordos da Convenção de
setembro. Sua preocupação, expressa em 8 de dezembro de 1864 na Encíclica

5
É útil conhecer a caótica sucessão de primeiros ministros: Bettino Ricasoli, junho de
1861-março de 1862. Urbano Rattazzi: março-dezembro de 1862. Luís Carlos Farini: dezembro de
1862-março de 1863. Marcos Minghetti: março de 1863-setembro de 1864. Afonso La Marmora:
setembro de 1864-dezembro de 1865. La Marmora II: dezembro de 1865-junho de 1866. Ricasoli II:
junho de 1866-abril de 1867. Rattazzi II: abril-outubro de 1867. Luís Frederico Menabrea: outubro-
-dezembro de 1867. Menabrea II: janeiro de 1868-maio de 1869. Menabrea III: maio-novembro de
1869. João Lanza: dezembro de 1869-junho de 1873. Minghetti II: último governo de “direita”, julho
de 1873-18 de março de 1876. Em 1876, o governo passou às mãos da esquerda liberal radical. Estes
políticos seguiam o pensamento republicano de Mazzini e do Partido da Ação, de Garibaldi; com o
tempo, adquiriram tendências socialistas.
6
Ch. Duggan, History of Italy 135; Sussidi 1, 89-90.
7
A “Convenção de Setembro” (15 de setembro de 1864) tentava resolver a questão romana. A
França retiraria sua guarnição de Roma em dois anos, permitindo assim a reorganização do exército pa-
pal, enquanto a Itália respeitaria a integridade dos territórios papais. A Itália levaria a capital de Turim
para Florença e renunciaria a Roma.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Quanta Cura, à qual acrescentou o Syllabus ou compêndio dos erros contem-


porâneos, transcendeu os acontecimentos políticos, atacando o liberalismo
como tal. A dimensão da questão das sedes episcopais vacantes exigia, igual-
mente, alguma ação de sua parte.

A questão das sedes vacantes


O resultado grave e prejudicial do confronto entre Igreja e Estado, du-
rante e após a unificação, foi que muitos bispos foram expulsos de suas dio-
ceses e o governo italiano opôs-se à nomeação de novos bispos para cobrir
as sedes vacantes. A razão dessa política de castigo deve ser buscada no fato
de os bispos protestarem contra o que consideravam uma política injusta e
injustificável do governo; este, por sua vez, não estava disposto a permitir dis-
sidências ou resistências. A recuperação dos territórios papais não era a única
razão do protesto. As políticas contra a Igreja, em vigor desde 1848, agora es-
tendidas ao reino inteiro, eram, em medida maior, a causa do endurecimento
das relações e do protesto.
A situação era crítica, se não desesperada. No processo de anexação e
unificação, os bispos e outros clérigos, nas grandes cidades do norte da Itá-
lia, como Milão, Bérgamo e Bréscia, foram investigados, perseguidos e, em
alguns casos, expulsos. No centro da Itália, mais de uma dezena de importan-
tes cardeais, arcebispos e bispos foram aprisionados, expulsos, deportados ou
colocados em prisão domiciliar. No sul da Itália, mais de 60 bispos tiveram o
mesmo destino.8 Após a unificação da Itália, 13 bispos foram levados a julga-
mento, embora finalmente absolvidos, e 5 foram expulsos de suas dioceses e
encarcerados em Turim. Em 1865, 43 bispos exilaram-se e 16 morreram, sem
que lhes fosse nomeado um sucessor.
Em resumo, 24 de 44 arquidioceses e 84 de 183 dioceses ficaram sem
seus pastores.9 Em alguns casos, impedia-se a tomada de posse da diocese
aos novos bispos nomeados pelo Papa. No consistório de 21 de dezembro de
1863, o Papa nomeou um novo bispo para Bolonha e outros 6 para os antigos
Estados Pontifícios. O governo, porém, negou-se a reconhecê-los, alegando
que essas indicações equivaliam a um ato de soberania em territórios que já
não estavam sujeitos ao Papa.
Dom Bosco preocupava-se especialmente com a situação no Piemon-
te, onde 8 das 11 dioceses, inclusive Turim, estavam vacantes. Na Sardenha,

8
Cf. Sussidi 1,86; MB VI, 855s; 532ss.
9
L’Unità Cattolica, 4 de abril de 1865, em F. Motto, L’azione, 264.

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Dom Bosco: história e carisma 2

o arcebispo João Manoel Marongiu Nurra, de Cagliari, vivia exilado há


quatorze anos.10

2. A “missão Vegezzi”
No verão de 1864, Pio IX convidou o rei Vítor Emanuel II a iniciar nego-
ciações para atenuar a crise religiosa.11 Contudo, a Convenção de Setembro, re-
jeitada pelo Papa, as condenações subsequentes na encíclica Quanta Cura e no
Syllabus, e o conservadorismo rígido dos círculos da cúria e da imprensa clerical
impediram qualquer progresso. Apesar de não aceitar a “reconciliação”, Pio IX
sentiu-se pessoalmente inclinado a buscar algum tipo de aproximação pelo bem
da vida religiosa do povo. Acreditava que era o momento favorável para resolver
a questão das dioceses vacantes, mesmo porque o governo Minghetti (1863-
1864), apesar de alguns retrocessos, parecia basicamente moderado.

Cardeal Tiago Antonelli, secretário de Estado de Pio IX (1806-1876).

F. Motto, L’azione, 264; Desramaut, Don Bosco, 518. As 8 dioceses vacantes no Piemonte eram
10

Alba, desde 1853; Alessândria, desde 1854; Aosta e Asti, desde 1859; Fossano, desde 1852; Vigevano,
desde 1859; Turim, desde 1862, embora dom Fransoni estivesse exilado desde 1850; Saluzzo, desde 1864.
Cúneo, desde 1865. Cf. F. Motto, L’azione, 268, e nota 27, que cita La Civiltà Cattolica XVI (1864), 373.
11
F. Motto, L’azione, 265.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

A participação de Dom Bosco


Dom Bosco estava em contato com seu bom amigo padre Emiliano Ma-
nacorda que, como prelado doméstico no Vaticano, podia ter acesso a alguma
“informação privilegiada”. Lemoyne diz que, nesse momento, Dom Bosco
enviou cartas ao Papa por meio do padre Manacorda.12 Pôde saber do desejo
de Pio IX de buscar uma solução para a crise das dioceses vacantes. Dom Bos-
co conhecia pessoalmente pessoas do governo. Mantivera correspondência
com o primeiro-ministro Afonso La Marmora e com o ministro do Interior,
João Lanza.13 A Dom Bosco não teria sido difícil detectar a disponibilidade
do governo, ainda em Turim, a entrar em negociações e estar preparado para
oferecer seus serviços. Isso, porém, é só conjectura.
Foi Pio IX quem, numa segunda carta a Vítor Emanuel II, em 6 de
março de 1865, expressava sua vontade de resolver a questão. Depois de se
referir à recusa do governo aos candidatos anteriormente propostos, a carta
do Papa também dizia:

A dificuldade mais séria, em minha opinião, é chegar a um acordo sobre a


eleição dos candidatos. As políticas do governo de Sua Majestade são tão
hostis à Igreja que, quando estou disposto a negociar, seu governo apresenta
candidatos que não posso aceitar. Consequentemente, como disse ao embai-
xador [francês], sugiro que Sua Majestade envie [a Roma] uma pessoa que
goze de sua confiança. Quanto a mim, eu preferiria um leigo bom e honesto
a um sacerdote de caráter duvidoso [...]. Por favor, rogo-lhe, faça tudo que
estiver ao seu alcance para enxugar algumas lágrimas da Igreja na Itália, tão
atormentada e objeto de tanta hostilidade imerecida.14

O rei enviou a carta do Papa ao governo, produzindo um debate acalora-


do, pois havia ministros que, por qualquer motivo, resistiam a toda concessão
ou aproximação com a Santa Sé. O resultado foi que o ministério do Interior

MB VIII, 62s. Isso é confirmado pelas cartas do padre Manacorda a Dom Bosco, sete delas
12

conservadas no Arquivo Central Salesiano (ASC A143: Lettere a Don Bosco, Manacorda, FDB 1534
A9-C3), concretamente a de 8 de outubro de 1864 (FDB 1534 A12). Motto, L’azione 266-268, trata
detalhadamente do papel de Manacorda. Antes de ser nomeado bispo de Fossano, por sugestão de
Dom Bosco, era para ele seu “homem em Roma”.
13
Ver as cartas de Dom Bosco a La Marmora, em 1852, 1856 e 1858, em Epistolario I Motto,
144, 303, 363. Em carta de 9 de agosto de 1865 ao ministro Lanza, do Interior (Epistolario II Motto,
155), Dom Bosco oferece-se para receber 100 órfãos do cólera. Com outra carta anterior, de 12 de
junho de 1860, ao ministro da Educação, Dom Bosco incluiu uma carta do ministro Lanza, escrita
apoiando a escola do Oratório (Epistolario I Motto, 409).
14
F. Motto, L’azione, 269-270, citando o original do Arquivo Secreto Vaticano.

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Dom Bosco: história e carisma 2

de Lanza começou a estudar o assunto. Em 17 de março de 1865, Dom


Bosco recebeu um bilhete de um funcionário do governo, chamado Veglio,
convidando-o para uma reunião.15 O trabalho do senhor Veglio no governo
– provavelmente pertencia ao escritório do ministro Lanza – não pode ser
determinado. Dom Bosco apresentou-se para a reunião. Sobre o conteúdo
da conversa com Veglio e/ou com o ministro Lanza só se pode conjecturar.
Deve-se ter em conta que o único assunto a tratar era a nomeação de bispos
para as sedes vacantes. Para tanto, Dom Bosco pode ter aceitado o princípio
de Cavour: “Uma Igreja livre num Estado livre”; os termos da Convenção de
Setembro não iriam ficar letra morta; por motivos puramente religiosos, a
Santa Sé devia ter liberdade para nomear bispos.

Xavier Vegezzi, negociador do governo


O cavalheiro Xavier Vegezzi, “senhor do mais nobre caráter”, foi nome-
ado negociador.16 Foi a Roma em 6 de abril de 1865, com uma carta do rei
ao Papa, com instruções de encontrar caminhos para um acordo na questão
da nomeação de bispos para as sedes vacantes.17 A primeira rodada de con-
versações entre Vegezzi e o secretário de Estado, cardeal Antonelli, dava a
entender que seria um sucesso. Uma carta de Dom Bosco a Pio IX refere-se
às negociações num tom bastante otimista. Nela se diz:

Santo Padre, nossa comunidade tem oferecido as orações da manhã e da noite


para pedir a Deus que o assista enquanto tenta reparar o grave dano feito à Igreja,
que vê aumentada sua gravidade por causa do atraso na solução da questão. Refi-
ro-me ao restabelecimento e nomeação de bispos. O mundo espera com ansieda-
de o resultado dos esforços do Santo Padre. Dá esperança e consolo pensar que,
quando o Papa se envolve, o resultado será melhor e mais benéfico para os fiéis.18

15
F. Motto, L’azione, 270, fala de um convite enviado por telegrama. Contudo, o original em
ASC A145: Cartas a Dom Bosco, Veglio, FDB 1,587 B3, não conserva o formato de telegrama. Nem
traz o preâmbulo “Ministro do Interior”, como Lemoyne alega em seus Documenti (Documenti IX) e
nas Memórias Biográficas (MB VIII, 66). O convite diz: “Turim, 17 de março de 1865. Por ordem do
ministro, aquele que assina abaixo, pede uma entrevista com o senhor, reverendo e mui estimado padre.
Se o senhor aceitar, venha ver-me, por favor, durante as horas de escritório, caso lhe convenha. Seu
fielmente, Veglio”. Embora a capital já tivesse sido transferida a Florença (3 de fevereiro de 1865), os
escritórios governamentais ainda funcionavam em Turim.
16
Cf. F. Motto, L’azione, 262-275.
17
Vítor Emanuel II a Pio IX, Turim, 4 de abril de 1865, em F. Desramaut, Don Bosco, 693.
Xavier Vegezzi (1805-1888), advogado turinense, fora senador desde os anos quarenta e ministro das
Finanças no terceiro governo Cavour (1860).
18
Dom Bosco a Pio IX, 30 de abril de 1863, em Epistolario II Motto, 129.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

As orações de Dom Bosco não seriam ouvidas nesse momento. Havia


no governo quem se opusesse radicalmente às negociações com a Santa Sé.
Da parte do povo, a imprensa radical de um lado e a imprensa católica con-
servadora de outro, consideravam as tratativas como capitulação diante do
inimigo. Além disso, a Casa Real de Saboia e, portanto, seu governo, ainda
se agarrava a posições jurisdicionais em sua política eclesiástica; insistiam
também que os bispos fizessem juramento de fidelidade ao rei e requeres-
sem o Exequatur. Por isso, as negociações, conduzidas em total segredo,
terminaram em fracasso. Uma carta do ministro Lanza a Paulo Honorato
Vigliani, mais tarde ministro da Justiça, que mantinha correspondência
com Dom Bosco na questão do Exequatur, revela claramente o estado de
espírito do governo:

Muitos no governo são da opinião de que a anexação de Roma só se fará por


meio das negociações de paz com o Papa, em conformidade com o princípio
de uma Igreja livre e com a concordância da França. Ao mesmo tempo, essas
mesmas pessoas atacam o governo por ter aceitado negociar em assuntos que,
depois de tudo, são de natureza puramente religiosa [...]. Temo que esta atitu-
de de hostilidade e desconfiança no Conselho de Ministros prevalecerá; como
consequência, as negociações fracassarão [...]. Estes ministros continuam a
insistir no juramento de fidelidade do bispo ao rei, uma herança fora de lugar
e inútil, a meu juízo. Não posso imaginar que o Papa aceite negociar nestes
termos. Por isso, nestas condições, o governo demonstra automaticamente
sua falta de vontade de chegar a acordos razoáveis e possíveis.19

Vegezzi voltou a Roma em junho para outra rodada de conversações;


parece que com novas instruções ditadas pela oposição e contrárias aos senti-
mentos do ministro Lanza. Como já havia predito:

As negociações que tiveram inícios promissores com o cardeal Antonelli, fali-


ram no final, quando Pio IX se negou a aceitar as condições estabelecidas pelo
governo piemontês, ou seja, que os bispos nomeados pelo Papa tivessem que
fazer juramento de fidelidade ao rei.20

O juramento de lealdade era visto como o reconhecimento implícito


da legitimidade do Reino da Itália. A intransigência, portanto, era recíproca.

19
C. M. De Vecchi Di Val Cismon, Le Carte di Giovanni Lanza. Vol. VIII: 1872-julho de
1873, Turim, 1939, citado por F. Motto, L’azione, 273.
20
Ver “Vegezzi, Saverio”. In: Enciclopedia italiana. Treccani, Vol. XXXV, 7-8.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A participação de Dom Bosco nas conversações da assim chamada


“Missão Vegezzi” parece ter sido mínima. Embora sempre preocupado com a
questão, e talvez estando ao corrente dos acontecimentos, parece que ele não
teve participação direta depois do encontro no escritório do ministro Lanza
em Turim.
Novos esforços foram feitos para restaurar as conversações. Contudo,
nem as expressões de boa vontade do primeiro-ministro La Marmora, nem
o apelo do cardeal Antonelli a Napoleão III, nem o estímulo da França e da
imprensa moderada serviram para alguma coisa. Seriam precisos mais dois
anos para que reiniciassem e obtivessem alguns resultados.

3. As negociações Tonello
(dezembro de 1866-junho de 1867)
Embora entre movimentos hostis e contra-ataques, continuavam as ini-
ciativas para retomar as negociações e preencher as sedes episcopais vacantes.
Todos sentiam a urgência de resolver esse assunto pelo bem do povo.
Com a declaração de guerra da Itália contra a Áustria, em 20 de junho
de 1866, o general La Marmora, primeiro-ministro italiano, demitiu-se
para assumir o comando das forças armadas na linha de frente; foi imedia-
tamente substituído pelo conde Bettino Ricasoli. La Marmora já procurara
aliviar a situação, permitindo, por recomendação de Vegezzi, o regresso do
envelhecido arcebispo Marongiu à sua diocese de Cagliari, na Sardenha.
Ricasoli começou a buscar soluções para o espinhoso tema da nomeação
de bispos.
Suas cartas demonstram o desejo sincero de “permitir o regresso pacífi-
co de muitos bispos às suas dioceses e de muitos párocos às suas paróquias” e
são prova da sua decisão de trabalhar para consegui-lo. Era preciso um gesto
da parte da Santa Sé, que chegou quando Pio IX fez saber que “com satisfa-
ção receberia qualquer pessoa enviada [pelo governo italiano] para discutir
as importantes questões religiosas”.21

21
F. Motto, L’azione, 277-278, cita cartas e outros documentos de Ricasoli. Ricasoli não acre-
ditava que solucionar a questão das sedes vacantes resolveria a “questão romana”, mas pensava que seria
um bom caminho para consegui-lo. Equivocava-se. A Santa Sé sempre manteve que nomear bispos era
um assunto puramente religioso que devia ser enfrentado pelo bem do povo. Os governantes, mesmo
os mais bem-dispostos, tendiam a politizar a questão. Pio IX várias vezes procurara resolver os proble-
mas religiosos mediante negociação. Mas, como fica claro na alocução, não estava disposto a aceitar um
acordo político para Roma ou para o que restava dos Estados Pontifícios.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

A “missão Tonello”
Em 1o de dezembro de 1866, o governo italiano enviou a Roma como
seu representante o professor Michelangelo Tonello, acompanhado de um
auxiliar e com uma carta de apresentação do rei Vítor Emanuel II a Pio IX.
A missão não teve, em absoluto, um início fácil. A lei de supressão das
corporações religiosas estava sendo posta em prática em toda a Itália, por mais
que o primeiro-ministro Ricasoli procurasse suavizar a aplicação de suas dis-
posições mais duras. A ocupação da maior parte dos Estados Pontifícios, con-
siderada como “usurpação”, e o temor de uma solução “pela força”, da questão
romana, estando para partir o último contingente da guarnição francesa, não
eram as condições mais adequadas para inspirar confiança em Roma. A esta
incerteza deve-se acrescentar o fato de as conversações terem começado com
recriminações recíprocas pelo fracasso da missão anterior de Vegezzi. Além
disso, Tonello não fora devidamente acreditado perante a Santa Sé e não podia
ser considerado enviado oficial. Mas, apesar dos obstáculos iniciais, impôs-se
na agenda a gravidade e urgência do assunto; e, visto o encaminhamento das
negociações, podia-se perceber uma nova atmosfera nas conversações.
Bastem alguns exemplos do novo “espírito de colaboração”. O governo
percebera a necessidade de permitir que “os bispos retornassem às suas dioce-
ses, e os padres, às suas paróquias”. À medida que as conversações progrediam,
o governo mostrava-se disposto a modificar consideravelmente a própria po-
sição. Assim, embora “como representante da laicidade” continuasse a reivin-
dicar o direito de apresentar candidatos para a nomeação episcopal, já não
o fazia formalmente, ao menos em relação às dioceses dos antigos Estados
Pontifícios; e estava disposto a renunciar ao juramento político de lealdade dos
bispos. O Exequatur seria necessário apenas para os bens materiais e não mais,
por exemplo, para a jurisdição eclesiástica do bispo. Não continuaria a pedir a
redução do número de dioceses, apesar de ainda acreditar que fosse necessária.
Enfim, sem ceder na questão da supressão de corporações religiosas e do con-
fisco de seus bens, considerada uma exigência da nova ordem social, Tonello
pôde garantir ao cardeal Antonelli que o governo a usaria com “moderação”.

A participação de Dom Bosco em Florença


Como Dom Bosco entrou nas negociações? Sabemos pelas cartas dos
condes Uguccioni-Gherardi, de Florença, que ele se mantinha ao corrente
dos acontecimentos. Fala de boas notícias em relação à restauração prevista
“dos bispos e párocos em suas dioceses e paróquias” com as mesmas palavras
da proposta de Ricasoli. Parece que, mesmo antes da missão de Tonello, Dom

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Bosco tinha informações sobre as conversações que viriam. Poucos dias de-
pois da nomeação de Tonello, Dom Bosco foi a Florença, então capital do
reino; chegou no dia 11 ou 12 de dezembro e hospedou-se no arcebispado.22
Padre Berto, secretário de Dom Bosco, afirma que foi a Florença a pedido do
primeiro-ministro Ricasoli.
Em 1867, o [primeiro] ministro Ricasoli chamou Dom Bosco a Florença,
com o objetivo de obter que fosse ao Papa, a título privado, para o assunto da
nomeação de bispos. Na Itália, nesse momento, mais de cinquenta sedes dio-
cesanas estavam vacantes. O próprio Dom Bosco escrevera ao [primeiro] mi-
nistro pedindo-lhe que tomasse medidas para eliminar a causa de tanta dor.23

O testemunho pode ser pura dedução do padre Berto, que só posterior-


mente recolheu provas da participação de Dom Bosco. As Memórias Biográ-
ficas, por sua vez, conservam simplesmente a agenda programada por Dom
Bosco para sua viagem a Florença. Além de visitas obrigatórias a amigos e
benfeitores ilustres e de vários outros compromissos, incluía contatos com
não menos de quatro ministérios: Interior, Fazenda, Obras Públicas e Justiça,
todos eles sobre assuntos da Congregação Salesiana.24
A permanência de Dom Bosco em Florença durou uma semana, muito
intensa, de terça-feira 11 de dezembro a terça-feira 18 de dezembro de 1866.
De Florença, foi a Bolonha e, depois, a Turim.25 Conforme o principal tex-
to impresso de Lemoyne, os Documenti, de Bolonha, Dom Bosco regressou
brevemente a Florença, aceitando um convite do primeiro-ministro Ricasoli.
Parece que de aqui [Bolonha], convidado por Ricasoli, foi a Florença para uma
visita muito breve. [O primeiro-ministro] desejava que se comprometesse a
apoiar o com. Tonelli [sic], uma vez que estava negociando diversos assuntos
com a Santa Sé.26

Uma nota à margem, sem data, nos Documenti, da mão de Lemoyne,


explica:
22
Dom Bosco à condessa Jerônima Uguccioni, Turim, 29 de julho de 1866; ao cavalheiro Tomás
Uguccioni-Gherardi, Turim, 28 de setembro de 1866, em Epistolario II Motto, 275.299. Como outras
famílias florentinas, os Uguccioni-Gherardi eram bons amigos e benfeitores de Dom Bosco.
23
Documenti Berto, em ASC A026, FDB 788 C2.
24
Hológrafo de Dom Bosco, sem data, em ASC A2210634: Promemoria, FDB 744 C5-6. Cf.
MB VIII, 539.
25
A carta de Dom Bosco à oblata Maria Madalena Galeffi é datada de Florença, em 18 de de-
zembro de 1866 (Epistolario II Motto, 317). As cartas ao padre Bonetti e ao padre Rua são datadas de
Bolonha; escreve: “Cheguei a Bolonha; nesta tarde estarei em Guastalla e amanhã em Turim”.
26
Documenti X, 89-90 (texto impresso), em ASC A006.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Foi isto o que aconteceu. Ao saber que Dom Bosco estava em Florença e
desejando conversar com ele, Ricasoli, que então era ministro, chamou-o ao
palácio do governo. Queria pedir sua ajuda nas negociações para a nomeação
de bispos, pois sabia que Dom Bosco mantinha boas relações com Pio IX.
Dom Bosco foi [ao palácio]; ao entrar no escritório, disse ao ministro: “Creio
que Vossa Excelência sabe quem é Dom Bosco; eu sou, primeiro e antes de
tudo, católico”. “Sim, sim”, respondeu o ministro, “sabemos que Dom Bosco
é mais católico do que o próprio Papa”. O ministro explicou qual era a sua
intenção e pediu-lhe que se pusesse em contato com o com. Tonelli [sic], que
era o negociador [do governo] em Roma.27

Nas Memórias Biográficas, Lemoyne amplia bastante a nota marginal dos


Documenti baseando-se num “relatório confidencial”, redigido mais tarde por
Dom Bosco para um cônego da catedral, com a presença de Lemoyne, diz
ele.28 Segundo esta narração ampliada:

1. Dom Bosco, em seguida, advertiu ao primeiro-ministro que hon-


raria seus compromissos de padre católico em todas as circuns-
tâncias. Diz-se que respondeu: “Excelência, quero que saiba que
Dom Bosco é padre no altar, padre no confessionário e padre entre
seus meninos. É padre em Turim e em Florença; padre na casa dos
pobres e padre no palácio do rei”.
2. Solicitado pelo primeiro-ministro, Dom Bosco aceitou facilitar, a
título privado, as negociações de Tonello em Roma.
3. Acrescentou que o governo não devia se opor à eleição dos bispos
pelo Papa; Ricasoli aceitou.
4. Nesse momento, chamaram Ricasoli à sala de reuniões, onde se
reunia o gabinete sob a presidência do próprio rei.
5. Depois de muito tempo, voltou para transmitir o acordo do governo.
6. Acrescentou que seria do agrado do governo ver a redução do nú-
mero das dioceses menores. Ao que Dom Bosco respondeu que
não tinha nem autoridade nem vontade de sugerir tal coisa ao
Papa e que, com essa condição, teria que se retirar completamente.
7. Houve alguns momentos de pausa na conversação, durante os quais
o primeiro-ministro voltou a entrar para consultar o gabinete sobre
o tema e regressou rapidamente para tranquilizar Dom Bosco.
27
Documenti X, 90 (nota escrita à mão), FDB 1,004 C12.
28
Cf. MB VIII, 533s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

8. A conversação terminou com o pedido do primeiro-ministro para


que Dom Bosco se reunisse com o negociador Tonello em Roma
e lhe desse seu apoio.
Tendo-se em consideração o gênero literário peculiar deste tipo de
relatórios históricos, podem-se questionar os detalhes, particularmente o
diálogo,29 sobretudo ao se comparar o que foi narrado com a nota marginal
dos Documenti. Contudo, apesar da incerteza quanto ao itinerário e a sequência
lógica, não parece haver qualquer razão para duvidar de que, enquanto esteve
em Florença, Dom Bosco se reuniu com o primeiro-ministro Ricasoli a convite
deste. Quanto ao conteúdo ou o resultado da conversação, embora no terreno
da conjectura, pode-se deduzir que o primeiro-ministro pediu a Dom Bosco
para ajudar nas negociações e que Dom Bosco o aceitara.30

Relação de Dom Bosco com Tonello em Roma


Enquanto isso, as negociações em Roma seguiam seu rumo. O professor
Tonello e o cardeal secretário de Estado Antonelli apresentaram suas respec-
tivas posições e estudaram as questões mais difíceis que se apresentavam para
o acordo. A Santa Sé aceitaria facilmente um acordo negociado para as no-
meações no antigo Reino da Sardenha. Mas não negociaria em outras regiões
anexadas. Neste sentido, os territórios dos antigos Estados Pontifícios ofere-
ciam a maior dificuldade, porque a Santa Sé não reconhecia a autoridade do
governo italiano sobre eles. Portanto, na apresentação das candidaturas para
as dioceses episcopais dos antigos Estados Pontifícios, a Santa Sé recusava
qualquer exigência do governo, especialmente na apresentação de candidatos
e no juramento político dos bispos.31 No início de janeiro, o diálogo chegara
quase à suspensão nestas questões.
Foi nessa ocasião, assim parece, segundo as Memórias Biográficas, que
Dom Bosco entrou em cena. Em 7 de janeiro, ele partiu de Turim para
Roma, com padre Francésia que atuava como secretário. Sua permanência na
Cidade Eterna prolongou-se até 2 de março de 1867. Objetivo principal da
viagem eram os assuntos da Congregação. Dom Bosco buscava, sem sucesso,
a aprovação da Sociedade Salesiana.

F. Motto, L’azione, 281, nota 64.


29

F. Desramaut, Don Bosco, 713-714, mostra-se mais cético. Considera o encontro, ao menos,
30

como provável, mas “desconhecemos o conteúdo da conversação, particularmente até que ponto se
tocou no tema da missão de Tonello”. Além disso, a famosa afirmação “sendo padre”, embora autêntica
em si mesma, é considerada espúria e atribuída nas Memórias Biográficas a outras circunstâncias.
31
F. Motto, L’azione, 281-282.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Ao mesmo tempo, viu-se envolvido também nas negociações. Discu-


te-se até que ponto Lemoyne descreve com detalhes as atividades de Dom
Bosco em Roma,32 baseado nos relatórios do padre Francésia, em cartas di-
rigidas a vários salesianos e num livro de memória que escreveu em data
muito posterior. A confiabilidade dos relatórios do padre Francésia é objeto
de controvérsia.33
Em que medida Dom Bosco envolveu-se com Tonello em Roma? Uma
carta do padre Francésia escrita dez dias depois da sua chegada a Roma, suge-
re que o envolvimento foi imediato.

Dom Bosco manteve longas conversações com o cardeal Antonelli em duas


audiências distintas. Conseguiu aplainar uma série de difíceis questões de
caráter político e chegar a um entendimento sobre questões de muito peso.
Reuniu-se com Tonello, que o recebeu muito amavelmente e lhe disse que
seria bem-vindo em qualquer momento que julgasse útil.34

Dom Bosco reunira-se primeiro com Pio IX. Na interpretação dramati-


zada das Memórias Biográficas, diz-se que aconselhou o Papa a não fazer qual-
quer distinção entre as diversas regiões da Itália no assunto das nomeações
episcopais; que tanto o governo quanto a Santa Sé apresentariam sua lista de
candidatos; e, depois, o Papa escolheria os candidatos que fossem aceitáveis
para as duas partes, a começar pelas dioceses nas quais a necessidade fosse
mais urgente. Lemoyne comenta:

Pio IX aceitou o conselho de Dom Bosco e autorizou-o a negociar com To-


nello, mas se reservava todas as decisões. Como primeiro passo, Dom Bosco
contatou o cardeal Antonelli e, com certa dificuldade, convenceu-o sobre seu
ponto de vista, um ponto de vista mais religioso do que político. Em seguida,
chamou Tonello, que recebera um telegrama de Ricasoli no qual dizia: “Pro-
cure obter um acordo com Dom Bosco”. O comendador, que não era inimigo

32
MB VIII, 590ss.
33
As cartas do padre Francésia chegaram-nos apenas em cópia e não íntegras. Suas memórias
(Giovanni Battista Francesia, Due mesi con Don Bosco a Roma. Turim: Libreria Salesiana, 1904) foram
escritas uns trinta e sete anos depois. Padre Francésia não foi parte integrante das negociações; durante
a permanência em Roma, foi deixado praticamente sozinho. As negociações eram feitas na mais estrita
confidencialidade; nem uma palavra foi filtrada à imprensa; é improvável, portanto, que Dom Bosco
pusesse em risco as negociações revelando o que sabia ao padre Francésia. Este era um poeta dotado
de imaginação ingênua e fértil. Todos estes elementos enfraquecem a força de seu testemunho. Ver F.
Desramaut, Don Bosco, 724, nota 20.
34
MB VIII, 595.

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Dom Bosco: história e carisma 2

da Igreja, convenceu-se facilmente e prometeu que não poria nenhum obstá-


culo para a solução da nomeação dos bispos, apesar das exigentes instruções
de Ricasoli.35

Dom Bosco precisou ir e vir dos negociadores ao Papa, até que se chegou
a um acordo. Segundo as Memórias Biográficas, sua participação foi uma das
principais, aparecendo claramente como mediador e árbitro. Contudo, a re-
flexão de Lemoyne foi questionada. O testemunho do padre Francésia, sobre
o qual Lemoyne baseia seu relato, é questionado por diversas considerações
críticas. Além disso, é duvidoso o citado telegrama de Ricasoli a Tonello,
dando-lhe instruções para entrar em contato com Dom Bosco. De fato, pa-
rece ter sido uma dedução tardia de Lemoyne. Não se conservam nem o
original nem uma cópia, e nem Francésia nem os Documenti fazem qualquer
referência a ele.36
Motto admite não ser possível determinar o alcance ou a contribuição
exata da mediação de Dom Bosco. Mas dá crédito aos relatórios de Francésia
e Lemoyne sobre o fato básico, ou seja, que Dom Bosco esteve bastante en-
volvido. Contra os que duvidam ou negam essa mediação, escreve:

[O historiador] De Cesare, embora admita a possibilidade dos contatos de


Dom Bosco com o representante do governo, recusa as declarações de Fran-
césia com firmeza: “Não há uma única prova documental da participação de
Dom Bosco”. Pelo contrário, os fatos, tais como os conhecemos hoje, revelam
a temeridade de tal conclusão. A documentação muito confiável e uma série
de exames verificáveis apoiam a tese da atividade mediadora direta, explícita
e contínua de Dom Bosco.37

Está fora de dúvida, portanto, que Dom Bosco se viu envolvido de al-
gum modo, falou do assunto com Pio IX e com o cardeal Antonelli e apre-
sentou uma lista de candidatos para as sedes do Piemonte. O próprio Tonello
afirma o mesmo em seu relatório ao governo, em 1o de fevereiro de 1867:

[O cardeal Antonelli] entregou-me uma nota, que acrescento à presente e


da qual conservo cópia. É uma lista de pessoas que, a juízo da Santa Sé, po-
dem ser designadas para as sedes episcopais. Sugeriria que o governo fizesse

35
MB VIII, 594s.
36
F. Desramaut, Don Bosco, 714.742, nota 23. Desramaut critica Motto e G. Martina por
aceitar o testemunho literalmente.
37
F. Motto, L’azione, 283; a obra citada de De Cesare é de 1905. Mais adiante, F. Motto,
L’azione, 284, nota 78, apresenta as razões a favor da credibilidade do padre Francésia.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

as verificações pertinentes. Tenho motivos para crer que os nomes propostos


para o Piemonte foram sugeridos pelo sacerdote turinense, Dom Bosco.
Creio que veio a Roma com essa finalidade.38

A última frase demonstra que Tonello sabia da presença de Dom Bosco


em Roma e de algumas de suas atividades. Contudo, embora os dois pudes-
sem ter-se reunido, é duvidoso que ambos tenham participado de repetidas
conversações.

Nomeações episcopais e sugestões de Dom Bosco


Tanto o governo quanto a Santa Sé apresentaram listas de candidatos
para as dioceses do Piemonte, às quais Dom Bosco deu suas sugestões. En-
tretanto, em 17 de janeiro de 1867, foi apresentado no Parlamento italiano
um projeto de lei que especificava a disposição final sobre os bens confisca-
dos à Igreja (a lei Borgatti-Scaloja). O mal-estar desencadeado teve o efeito
de atrasar o acordo sobre as candidaturas. Além disso, as averiguações e
contrapropostas das duas partes em relação aos candidatos dilataram muito
os prazos. Todavia, nos inícios de fevereiro, alguma coisa progredira. As
duas partes concordaram em não conciliar posições opostas sobre os prin-
cípios gerais, mas tratar cada caso individualmente como fosse necessário.
Contribuiu, de um lado, a renúncia do governo italiano quanto às exigên-
cias jurisdicionais, como o juramento político e a apresentação das bulas de
nomeação; e, de outro, a vontade de Santa Sé de aceitar os candidatos do
governo enquanto possível.
A lista de candidatos apresentada pelo santo tinha 13 nomes. Em 1891,
no processo de beatificação de Dom Bosco, padre Berto testemunhou que
vira a lista, na qual aparecia como “um dos primeiros”,39 o nome do cônego
Gastaldi. Na lista autógrafa de 13 nomes, que o cardeal Antonelli entregou
a Tonello e que este transmitiu a Florença no dia 1o de fevereiro, o nome de
Gastaldi estava em segundo lugar.40 Dom Bosco, evidentemente, atuou com
38
Citado por F. Motto, L’azione, 291, que teve acesso ao arquivo histórico do Ministério dos
Assuntos Exteriores.
39
FBD (seção Rua) 2,333 A12.
40
Os nomes e títulos dos candidatos da lista de Dom Bosco são mencionados em F. Motto,
L’azione, 291-292. A lista contém apenas os nomes dos candidatos a serem nomeados bispos, não o dos
já na função de bispos, como por exemplo, Alexandre Riccardi di Netro, bispo de Savona. Segundo
padre Francésia, [Dom Bosco] “teve uma conversa com o futuro arcebispo de Turim, com quem se
encontrara na casa do [conde] Vimercati. Não resta dúvida que nos será favorável, pela sua gratidão a
Dom Bosco” (G. B. Francésia a F. Oreglia di Santo Stefano, 17 de janeiro de 1867, em MB VIII, 595s).
Em todo caso, Dom Bosco não havia dado o nome de dom Riccardi, que foi nomeado arcebispo de
Turim no consistório de 22 de fevereiro de 1867.

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muito ardor a favor da designação de Gastaldi que, além de ser um candi-


dato digno, foi nos primeiros anos um firme partidário de Dom Bosco e da
sua obra. Em carta ao padre Durando, de 4 de fevereiro, de Roma, o padre
Francésia escreve:

Nos últimos dias, Dom Bosco esteve tramando um complô, e continua


assim, contra o cônego Gastaldi, nosso estimado professor de Teologia mo-
ral. Na próxima vez que o vires na aula, diga-lhe isso. Mas se te perguntar
de que se trata, dize que não é possível dizê-lo. É um mistério, e nem uma
palavra mais.41

Em 9 de fevereiro de 1867, o cardeal Antonelli entregou ao professor


Tonello uma segunda lista de 23 possíveis candidatos, à qual Tonello acres-
centou outros 3. Pode ser que Dom Bosco também colaborasse dando alguns
nomes.
Nessa época, o país estava em estado de total confusão, por causa da
campanha de violência desencadeada contra a Lei Borgatti-Scaloja, dura-
mente recusada, embora por razões diversas, por anticlericais e por católicos.
O governo Ricasoli caiu. A campanha eleitoral que se seguiu não livrou das
propostas a favor ou contra a política eclesiástica conciliadora de Ricasoli.
Enquanto isso, no consistório secreto celebrado em 22 de fevereiro de
1867 Pio IX anunciou 17 nomeações ou transferências episcopais para dio-
ceses de diversas regiões da Itália. E, mesmo no fragor da batalha eleitoral,
Ricasoli precisou prometer que o governo desistia de assinar acordos com a
Santa Sé, e em 27 de março, o Papa nomeou outros 17 bispos, que o governo
aprovara em 9 de março.42
O bispo Alexandre Riccardi, de Savona, foi transferido para Turim,
como arcebispo, enquanto o cônego Lourenço Gastaldi foi nomeado bispo
de Saluzzo. O restante das sedes das dioceses do Piemonte estava cheio de
amigos de Dom Bosco. Somente 3 dioceses, cujos bispos tinham morrido
havia pouco, ficaram vacantes por algum tempo.
De volta a Turim, em 2 de março, Dom Bosco continuou pressionando
com cartas e memorandos para obter nomeações de bispos. Numa carta diri-
gida ao cardeal Antonelli, depois de expressar o sentimento geral de satisfação
pelas nomeações já feitas, fez outras sugestões:

41
G. B. Francésia a C. Durando, 4 de fevereiro de 1867, em MB VIII, 759.
42
F. Motto, L’azione, 292-295.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

A situação em que se encontra o bispo [João Antônio] Balma merece uma aten-
ta consideração. Este digno prelado é considerado merecidamente um santo.
Testemunha-o sua vida pessoal e pública. Durante os últimos vinte anos, ele
trabalhou incansavelmente pelas dioceses vacantes, sem evitar nem o cansaço
das viagens, nem as penosas visitas aos departamentos governamentais. Apesar
disso, seu nome não aparece em nenhuma lista de candidatos. Isso deixou uma
impressão ruim e começaram a correr mil vozes. Por outro lado, encontra-se
em dificuldades econômicas, e sobrevive graças a contribuições livres de pessoas
boas e caridosas. Por favor, examine este assunto e faça o possível por uma pes-
soa que é considerada por todos piedosa, douta, sábia e zelosa.
Temos aqui muitas pessoas respeitadas pela virtude e que seriam sem dúvi-
da bem-aceitas por todas as autoridades. Entre elas estão [Pedro G.] Salvaj,
vigário-geral de Alba, [Pedro] Garga, vigário-geral de Novara, [João Batista]
Bottino, cônego da catedral de Turim, o cônego [Francisco] Nasi, da mesma.
Mais digno ainda de consideração é o doutor padre [Francisco] Marengo,
professor de Teologia no seminário de Turim [...]. Todas essas pessoas são
totalmente fiéis à Santa Sé.43

Em sua resposta, o cardeal Antonelli lamenta-se da falta de vontade do


governo para continuar as negociações e garante a Dom Bosco que suas su-
gestões serão levadas em consideração. Escreve com palavras mais alusivas do
que explícitas:
Não preciso falar muito da vontade da Santa Sé de chegar a um acordo geral
sobre as dioceses que continuam vacantes. Não podemos senão lamentar o fato
de não haver qualquer progresso, por causa da falta de resposta das partes que
se comprometeram em negociar. E, sem dúvida, os avanços iniciais dão espe-
rança de êxito. Seria muito conveniente encontrar, com prudência, alguma
maneira de pressionar, quando a pressão for adequada, a fim de superar a atual
imobilização. Enquanto isso, não deixei de considerar devidamente as novas
sugestões que o senhor fez. Tomo com atenção especial sua recomendação do
digno prelado que trabalhou duro e por tanto tempo pelas dioceses órfãs.44

De Florença o professor Tonello continuava a trabalhar na busca do


mesmo objetivo, sem sucesso. Em 1o de maio de 1867, o governo fechou as
portas a novas negociações.45
43
Dom Bosco ao cardeal Antonelli, Turim, 5 de abril de 1867, em Epistolario II Motto, 349-350.
44
Cardeal Antonelli a Dom Bosco, Roma, 4 de junho de 1867, em ASC A130: Lettere a Don
Bosco, FDB 1,441 E9-12. O bispo mencionado, dom Balma, titular de Ptolemaida, seria nomeado
depois arcebispo de Cagliari, na Sardenha.
45
F. Motto, L’azione, 295-299.

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Dom Bosco: história e carisma 2

4. Missão encomendada a Dom Bosco pelo


primeiro-ministro Menabrea
Para melhor situar este novo, mal-documentado e pouco verossímil, epi-
sódio sobre a intervenção de Dom Bosco nos assuntos Igreja-Estado, convém
fazer uma breve apresentação dos acontecimentos políticos.

Atividade revolucionária e agitação social


Durante toda a crise de Roma, em 1867, os protestos populares de apoio
a Garibaldi e as dissensões sobre a questão romana provocaram a consequente
queda do governo. Ricasoli não foi capaz de formar novo gabinete. Rattazzi
e Menabrea, que o sucederam, não puderam suportar a pressão e viram-se
obrigados a renunciar. A situação caótica da economia, a dívida de guerra e o
aumento do déficit, que o leilão dos bens confiscados à Igreja e dos impostos
adicionais não conseguiram compensar, complicaram a situação.
Os anos 1868 e 1869 foram especialmente difíceis. Na Itália, o descon-
tentamento popular em todo o país e as manifestações de massas contra o
imposto do trigo, em 21 de maio de 1868, exigiu a criação de unidades do
exército e o uso da força, resultando em numerosas vítimas. Em Roma, mui-
tos revolucionários foram executados ou encarcerados.

Dom Bosco convidado a Florença pelo primeiro-ministro Menabrea


Luís Frederico Menabrea presidiu dois gabinetes sucessivos. Foi durante
o segundo (5 de janeiro de 1868-7 de maio de 1869) que Dom Bosco pode
ter estado envolvido novamente nos assuntos Igreja-Estado.46 Numa carta
ao cavalheiro Carlos Canton, chefe de departamento do segundo escalão do
Ministério de Assuntos Exteriores, Dom Bosco escreve:

Por favor, consiga que sua Excelência Menabrea receba a carta anexa. É para
agradecer-lhe pela sua amabilidade. Também há nela uma mensagem confiden-
cial, à qual pode [ele] pedir que o senhor responda, se o considerar necessário.47

É possível que a mensagem confidencial aludida na carta tivesse a ver


com algum assunto de Igreja-Estado do qual Dom Bosco tenha participado.
Em confirmação, podem ser citadas as notas escritas pelo padre Rua numa

F. Motto, L’azione, 299-302.


46

Dom Bosco a Carlos Canton, 2 de novembro de 1868, em Epistolario II Motto, 519-592.


47

Dom Bosco foi ajudado por alguns departamentos governamentais.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

breve crônica. Ele fala dos convites feitos a Dom Bosco pelo governo e de
uma permanência de Dom Bosco em Florença:

[1868]
Novembro: Dom Bosco recebeu um convite do [primeiro] ministro Mena-
brea. Pede-lhe que vá a Florença para discutir assuntos importantes [...].
[1869]
1o de janeiro: Dom Bosco recebeu dois convites, um presente de Sua Majesta-
de. Há algum tempo recebeu novo convite do Rei para que fosse a Florença.
[...]
7 de janeiro: Dom Bosco reuniu novamente todos os alunos da casa no salão
de estudos para despedir-se. Está de saída para Roma. Comunicou-nos que
deve atender a assuntos muito importantes que seriam de grande benefício
para o Oratório. Pediu-nos que o ajudássemos com nossas orações [...]. Foi a
Florença, onde passou oito dias; de ali viajou para Roma. Sua permanência
em Florença fora para responder ao convite mencionado. Ainda não sabemos
o que fez ali, mas parece que manteve conversações com altos cargos [pessoas
do governo]. Em Roma, evitou aparições públicas, para atender a seus as-
suntos com maior liberdade [...]. Durante a permanência de Dom Bosco na
Cidade Eterna, filtrou-se a notícia de que estava preparando uma nova lista
de bispos para preencher as sedes vacantes.48

Em Florença, Dom Bosco hospedou-se na casa de seus bons amigos, os


marqueses Uguccioni-Gherardi. As cartas da marquesa Oreglia di Santo Stefa-
no e de Dom Bosco ao padre Rua confirmam a permanência de uma semana
de Dom Bosco em Florença. Estas cartas, porém, não fazem menção às conver-
sações mantidas com funcionários do governo. Por outro lado, uma carta do
dominicano Domingos Verda a Oreglia, confirma, à primeira vista, a reunião
de Dom Bosco com um chefe de departamento do Ministério das Relações Ex-
teriores e com o primeiro-ministro Manabrea no palácio Pitti.49 Verda escreve:

O marquês Uguccioni e o senhor Carlos Canton, chefe de departamento


no Ministério dos Assuntos Exteriores, reuniram-se com ele na estação [...].

48
Rua, Cronaca, em ASC A008: Rua, Cronachette, FDB 1,205 E12-1,206 Al. O uso dos tempos
no passado, 7 de janeiro, poderia indicar que a anotação foi redigida depois dos acontecimentos, de
acordo, provavelmente, com uma narração oral de Dom Bosco. O motivo principal da viagem a Roma
era, para Dom Bosco, tentar novamente que as Constituições Salesianas fossem aprovadas, o que obteve
no dia 1o de março de 1869.
49
O primeiro-ministro Menabrea também era ministro dos Assuntos Exteriores.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apressei-me, sábado pela manhã, a ir ao escritório do senhor Canton. Ao não


encontrar ali Dom Bosco, voltei ao pátio [do palácio Pitti] e o vi à procura de
uma saída [...]. Tomei-o pela mão e guiei-o até o senhor Canton, com quem
chegou a um acordo sobre várias questões. [Ao terminar a reunião] acom-
panhei-o para ver o padre Júlio [Metti], e depois o acompanhei de volta ao
palácio do governo para seu encontro com o [primeiro-ministro] Menabrea.50

Na crônica e nas cartas do padre Rua, Lemoyne fala de uma reunião


com Menabrea e conjectura que o primeiro-ministro teria confiado a Dom
Bosco uma missão oficiosa em relação à Santa Sé.51
É praticamente certo que houve uma reunião em Florença. Não é certo
que se confiasse uma missão a Dom Bosco, embora não se possa descartá-
-lo. Os motivos que se podem aduzir são: a execução dos revolucionários
em Roma causara um escândalo público provocando protestos oficiais do
governo italiano; o primeiro-ministro Menabrea esperava obter algum tipo
de entendimento com o governo papal para uma possível solução da questão
romana; era iminente a abertura do Concílio Vaticano e o governo italiano
desejava garantir sua liberdade; um bom número de dioceses vacantes, três
só no Piemonte, ainda esperavam nomeações episcopais. Era preciso resolver
estes e outros assuntos.
Motto não encontrou outra documentação sobre uma possível media-
ção de Dom Bosco nessa ocasião.

5. Dom Bosco e as nomeações de bispos em 1871

Acontecimentos políticos
O Concílio Vaticano I foi inaugurado em 8 de dezembro de 1869, na
Basílica de São Pedro em Roma. Continuou com suas deliberações até setem-
bro de 1870 e foi diferido sine die depois da ocupação de Roma pelo exército
italiano. Seus principais documentos foram a Constituição Dei Filius e a Pas-
tor Aeternus; esta última definiu a infalibilidade papal em 18 de julho.
Na frente política, a eleição de membros da esquerda do Parlamento
para postos de direção obrigou o primeiro-ministro Menabrea a renunciar,
supondo a queda de seu gabinete. Em 14 de dezembro de 1869, o primeiro-
-ministro Lanza, que também ocupou o Ministério do Interior, formou um

50
Domenico Verda a Frederico Oreglia di Santo Stefano, 10 de janeiro de 1869, em MB IX, 482.
51
MB IX, 483.

666

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

novo governo. Enquanto isso, em 19 de julho de 1870, a França declarou


guerra à Prússia. No início das hostilidades, em 5 de agosto, as forças expedi-
cionárias francesas, destacadas para proteger Roma, retiraram-se.
Em 5 de setembro, depois da derrota de Napoleão, o governo italiano,
por unanimidade, tomou a decisão de ocupar Roma, não antes, porém, de
fazer uma nova tentativa de conseguir que Pio IX entregasse a cidade, volun-
tária e pacificamente. O conde Gustavo Ponza di San Martino foi o portador
de uma carta do rei Vítor Emanuel II a Pio IX, garantindo a independên-
cia total da Santa Sé no exercício do seu ministério espiritual. Como era de
se esperar, Pio IX recusou a proposta com desdém. Em 20 de setembro de
1870, a artilharia italiana abriu uma brecha na muralha junto à Porta Pia; as
escaramuças que se seguiram mataram 49 italianos e 19 soldados do Papa.
A rendição foi assinada e a cidade toda, ocupada, com exceção dos palácios
do Vaticano onde Pio IX se refugiara. Nos inícios de outubro, por referendo
popular, Roma e o território circundante do Lácio foram anexados à Itália.
Com a encíclica Respicientes, de 1o de novembro de 1870, Pio IX deplo-
rava as condições de cativeiro que impediam ao Papa de exercer seu ministé-
rio pastoral soberano e excomungava o rei da Itália e os que tivessem algo a
ver com a “usurpação”.
Para tranquilizar a comunidade internacional, mas também aplicando
uma política que guiara a direita histórica desde Cavour, o primeiro-ministro
Lanza apresentou um projeto de lei que garantia o livre exercício do poder
papal, como o rei prometera em sua carta. O projeto trazia o título de “Prer-
rogativas do Papa e da Santa Sé e relações entre a Igreja e o Estado na Itália”.
Com uma nova encíclica, Ubi nos, de 15 de maio de 1871, Pio IX recusou a
lei e afirmou mais uma vez que o poder temporal era a única garantia verda-
deira da independência do Papa.
Contemporaneamente, Lanza apresentou um projeto de lei para trans-
ferir a capital de Florença para Roma. A transferência oficial aconteceu em
1o de julho de 1871; em 2 de julho, o rei Vítor Emanuel II e seu governo
entraram na Cidade Eterna.52
Foram estes os acontecimentos que marcaram o clima político dos anos
1871-1874. Foi a época da maior participação de Dom Bosco nos assuntos
da relação Igreja-Estado. Trabalhou dura e longamente para a designação e
nomeação de bispos para muitas dioceses ainda vacantes. Depois, enquanto
52
Mais tarde, em 1871, o governo e o Parlamento estabeleceram-se no palácio de Montecitorio.
A transferência dos escritórios governamentais durou quase meio ano. Florença serviu oficialmente
como capital da Itália de 1o de fevereiro de 1865 a 1o de julho de 1871.

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Dom Bosco: história e carisma 2

se ocupava numa verdadeira batalha para obter a aprovação definitiva das


Constituições Salesianas, manteve-se profundamente envolvido na negocia-
ção de uma fórmula que permitisse aos bispos, uma vez designados, obterem
o Exequatur real e o uso legítimo dos bens.

Mediação de Dom Bosco


A tensão na sequência da ocupação de Roma e da recusa total da Lei de
Garantias pelo Papa criou uma situação de temor e incerteza. Em cartas ao
cardeal Berardi e a Pio IX, Dom Bosco expressava pressentimentos doloro-
sos. Mas, apesar da real situação de conflito, sentia-se obrigado por motivos
puramente religiosos a continuar com a nomeação de bispos para as muitas
sedes ainda vacantes.

Encontro com o primeiro-ministro Lanza em Florença?


Amadei conta que em junho de 1871, por ocasião do jubileu de Pio IX,
no seu vigésimo quinto aniversário da eleição à Cátedra de Pedro, Dom Bosco
decidiu agir. Assim se narra, resumidamente, nas Memórias Biográficas,53 versão
que hoje se crê infundada:

1. Diz-se que Dom Bosco obteve permissão do Papa para entrar em


contato com o governo italiano a título privado sobre o tema das
novas nomeações de bispos para as dioceses vacantes.
2. Como estivesse planejando uma nova viagem a Roma por ocasião
do jubileu do Papa, passando por Florença, foi-lhe pedido por
carta um encontro com o primeiro-ministro Lanza.
3. Escreveu imediatamente ao conde Tomás Uguccioni-Gherardi
dizendo-lhe que estaria em Florença à noite de 22 de junho, pelas
7h35, e que, duas horas depois, tomaria um trem para ir a Roma.
Que veria o conde e sua família ao regressar.54
4. Dom Bosco chegou pontualmente de trem e correu para o encontro.
5. Depois dos primeiros comentários, Lanza teria ficado de acordo em
princípio com a designação de bispos; Dom Bosco teria sugerido que
o governo se abstivesse de exigir a supressão das dioceses pequenas.

53
MB X, 184ss.
54
Dom Bosco a Tomás Uguccioni-Gherardi, Turim, 21 de junho de 1871: “Viajarei para Roma
pela manhã. Em Florença farei uma parada de duas horas, esperando [o trem], ou seja, das 7h35 às 10
pm. Ao meu regresso, Deus queira, ficarei um par de dias e farei uma visita ao senhor e à sua família”
(Epistolario III Motto, 341-342).

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

6. Nesse momento, chamaram Lanza para uma reunião de gabinete


presidida pelo próprio rei.
7. Lanza retornou depois de mais de uma hora e informou que os
ministros não punham qualquer objeção à designação de bispos,
mas queriam que o número de dioceses fosse reduzido. Amadei
comenta que essa exigência era motivada pelo desejo de confiscar
mais propriedades da Igreja. Dom Bosco não estava em condições
de tratar dessa questão; se fosse apresentada como condição, teria
que se retirar.
8. Lanza retornou aos ministros e, em seguida, regressou para infor-
mar que o governo concordava em deixar de lado, no momento, a
questão da supressão das dioceses pequenas.
9. Depois de outros debates, que, na opinião de Amadei, eram enca-
minhados para conseguir que Dom Bosco se envolvesse pessoal-
mente, de repente, o primeiro-ministro Lanza terminou a reunião
com as palavras: “Dom Bosco, vamos, então, para Roma?”. “Va-
mos”, respondeu Dom Bosco.
10. Lanza foi levado à estação num coche e subiu num vagão de pri-
meira classe. Dom Bosco correu a pé e tomou um assento de se-
gunda classe.
11. Numa audiência com o Papa, em 28 de junho, Dom Bosco in-
formou-lhe, insistindo ter atuado a título pessoal a fim de não
comprometer a Igreja de nenhum modo.
12. Pio IX autorizara Dom Bosco a continuar as conversações oficio-
samente. Dom Bosco reuniu-se com o primeiro-ministro antes e
depois da audiência papal.
Desramaut e Motto mostram-se céticos em relação a esta versão dos
fatos. Motto assinala que o prazo previsto na carta de Dom Bosco ao conde
Uguccinoi deixa pouco espaço para uma reunião – duas sessões com pausa
intermédia! – com o primeiro-ministro, e à noite de 22 de junho, entre 8 e
10 horas. As reuniões de gabinete e os mesmos movimentos de Lanza estão
registrados, e não coincidem com os descritos nas Memórias Biográficas. Por
exemplo, o único dia da presença simultânea de Lanza e de Dom Bosco em
Roma foi 1o de julho, quando Dom Bosco se preparava para retornar a Flo-
rença e Turim e o primeiro-ministro estava muito ocupado com os preparati-
vos da entrada oficial do rei. Motto, porém, não nega que os dois se tenham

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Dom Bosco: história e carisma 2

reunido. Limita-se a supor que foi preciso um espaço de tempo mais flexí-
vel.55 Desramaut, entretanto, nega que a entrevista com Lanza tenha ocorrido
alguma vez. Seria uma variação literária da reunião acontecida em setembro
seguinte.56 Amadei tomou a história da suposta reunião em Florença, já ima-
ginada, dos Documenti de Lemoyne.57

Dom Bosco na vila da condessa Corsi


Dom Bosco permaneceu em Roma de 22 de junho a 1o de julho de
1871 e assistiu às celebrações do jubileu do Papa. Numa audiência particular,
em 28 de junho, Pio IX, que decidira continuar a nomeação dos bispos das
dioceses ainda vacantes, pediu a Dom Bosco que apresentasse nomes e infor-
mações de candidatos dignos.
De volta a Turim, em 4 de julho, depois de uma parada de dois dias em
Florença, absorveram-no de imediato alguns assuntos da Congregação: aber-
tura de um colégio em Varazze, encerramento da escola de Cherasco, visitas
às casas salesianas. De 6 a 20 de agosto, assistiu aos exercícios espirituais para
leigos na Casa de Retiros de Santo Inácio, nas proximidades de Lanzo.
Dom Bosco vinha sofrendo desde há algum tempo uma dolorosa enfer-
midade que afetava gravemente os seus pés e que foi piorando com os anos.
Por isso, aproveitou um convite feito anteriormente pela condessa Gabriela
Corsi, de Nizza Monferrato, e passou alguns dias em sua casa, em tranquilo
isolamento, de 21 a 30 de agosto. As Memórias Biográficas,58 seguindo a his-
tória de Lemoyne em Documenti, falam de uma reunião de vigários-gerais
convocados por Dom Bosco, enquanto estava na vila da condessa Corsi,
para que o ajudassem a compilar uma lista de candidatos episcopais. Lê-se
em Documenti:

De Lanzo, Dom Bosco, assistido pelo padre Francésia, viajou para Nizza
Monferrato onde foi hóspede da condessa Corsi em sua retirada casa de cam-
po. A condessa costumava passar ali o tempo de verão e outono com a família
de seu cunhado, conde César Balbo. Dom Bosco começou a trabalhar numa

F. Motto, L’azione, 305-306, em especial notas 142 e 143.


55

F. Desramaut, “L’audience imaginaire du ministre Lanza (Florence, 22 juin 1871)”, RSS


56

11:1 (1992), 9-34, com documentação e uma reconstrução do fato.


57
Lemoyne narra os fatos situando-os em junho, em Documenti XII, 146-149, FDB 1,017
A12-B3. Conforme Desramaut, a versão poderia ser criação do padre Francésia (cf. G. B. Francesia,
Vita breve e popolare di don Giovanni Bosco. Turim: Libreria Salesiana, 1902, 302-305). O relato do
encontro com Lanza é muito semelhante à crônica do encontro com Ricasoli, em ocasião anterior.
58
MB X, 439.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

lista de nomes de sacerdotes que ele considerava dignos de serem nomeados


bispos. Escrevera numerosas cartas para obter informação e convidara alguns
notáveis sacerdotes a virem a Nizza para uma reunião. Monsenhor Tortone foi
a Nizza, a pedido de Dom Bosco, para falar sobre alguns candidatos. Numa
ocasião, sentou-se à mesa com não menos de 18 vigários-gerais e capitulares
diocesanos. Essas reuniões, porém, foram feitas em segredo, pois a vila ficava
retirada entre as colinas e os hóspedes chegavam separadamente, sem serem
vistos. Dom Bosco pôde assim compor sua lista de candidatos e remeteu-a ao
Santo Padre.59

Dessa forma, segundo Lemoyne e Amadei, Dom Bosco voltou de Roma


tendo em mente uma estratégia clara: convocar uma reunião. Todavia, as
duas cartas à condessa nas quais planejou a viagem não fornecem nenhum
indício de que a intenção fosse essa; certamente, a condessa teria de sabê-lo.
Em suas cartas Dom Bosco fala de visitantes, que poderiam ser ocasionais e
da região. Escreve numa carta:

Creio que vou ter tempo para receber todo mundo. Mas vamos manter esta
norma. Os que vierem com uma oferta ou para falar de coisas relativas ao
bem das almas serão bem-vindos a qualquer momento, qualquer dia. Ficarei
muito feliz de vê-los. Aos que só vierem para apresentar seus respeitos, sejam
agradecidos e despedidos.60

As conversas de Dom Bosco com os visitantes na vila Corsi, ao que pa-


rece, foram informais e puderam, ou não, ter influenciado nas indicações de
bispos; não se fez qualquer reunião. O certo é que Dom Bosco estava traba-
lhando em sua lista de candidatos e incentivou também os vigários-gerais das
dioceses vacantes a pedirem ao Santo Padre para que agisse.61

Carta de Pio IX a Vítor Emanuel II


Enquanto Dom Bosco ia a Nizza e à residência da condessa Corsi, Pio IX,
em 21 de agosto de 1871, dirigiu uma carta ao rei Vítor Emanuel II declarando

59
Documenti XII, 156, FDB 1,017 B10. Motto assinala que a presença em Nizza de monsenhor
Caetano Tortone, encarregado de negócios do Vaticano em Turim, não se harmoniza com suas ativida-
des nesse tempo. O testemunho de Lemoyne no processo de beatificação de Dom Bosco (FDB 2478
A3: seção Rua) não deve ser levado em conta.
60
Dom Bosco à condessa Gabriela Corsi, Santo Inácio, 18 de agosto de 1871, em Epistolario
III Motto, 360.
61
Dom Bosco a dom Pedro José de Gaudenzi, Turim, 4 de setembro de 1871, em Epistolario
III Motto, 366-367. Cf. F. Motto, L’azione, 307.

671

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Dom Bosco: história e carisma 2

sua intenção de nomear bispos para as dioceses vacantes na Itália. Nesse momen-
to, o rei estava de férias nos Alpes e, por isso, o portador de confiança entregou
a carta ao monsenhor Tortone, encarregado dos negócios da Santa Sé em Turim.
Uma nota anexa do cardeal Antonelli sugere que Tortone consultou Dom Bosco
sobre a forma mais segura de a carta chegar às mãos do rei. Monsenhor Tortone
convidou Dom Bosco duas vezes por telegrama, em Nizza, para que viesse a
Turim “a fim de tratar de um assunto urgente”. Dom Bosco respondeu-lhe que
a “saúde precária e outros negócios” impediam-no de sair de Nizza. Monsenhor
Tortone alegrou-se por prescindir dos serviços de Dom Bosco e confiou a carta a
um capelão da corte e ao ajudante de campo do rei.62 Vítor Emanuel II refletiu
sobre a carta e em 31 de agosto entregou-a ao primeiro-ministro Lanza, que esta-
va em Turim nesse momento. Enquanto isso, a Santa Sé entrara em contato com
os arcebispos e bispos para apresentar-lhes listas de candidatos. Ao saber que
havia vazado a notícia de iminentes nomeações, Lanza convocou de imediato
uma reunião do gabinete em Florença. Antes, porém, de enviar um relatório ao
rei, quis conversar com Dom Bosco. Este, que já regressara de Nizza, estava em
Lanzo para os exercícios espirituais dos salesianos. O primeiro-ministro Lanza
enviou um telegrama ao magistrado de Turim, que convocou Dom Bosco ao seu
escritório transmitindo-lhe a mensagem do primeiro-ministro. Conforme o pa-
dre Berto, que esteve com ele no escritório do magistrado, Dom Bosco disse-lhe
que a convocação não foi uma surpresa, pois estivera envolvido nesse assunto
por ordem do Papa, durante bastante tempo. E acrescentou:

Lamento ter de ir nesta mesma noite e estar ausente por vários dias, durante
os exercícios espirituais, em Lanzo. Além disso, sinto-me muito cansado. Mas
o bem da Igreja deve ser o primeiro; tem prioridade, até mesmo sobre o bem
da nossa Congregação. Tomarei o trem das 7 desta noite, viajarei a noite toda
e estarei amanhã cedo em Florença para a minha reunião no ministério.63

Dom Bosco em Florença


Não possuímos nenhum relatório sobre os temas das conversas no mi-
nistério. Contudo, 1o. É provável que Lanza destacasse a necessidade de no-
mear candidatos moderados como bispos. Como se pode ler na carta escrita
pelo rei ao Papa imediatamente depois, ele e seu governo veriam com agrado

62
Monsenhor Tortone e as pessoas que rodeavam o rei duvidavam da discrição de Dom Bosco.
Cf. F. Motto, L’azione, 380, nota 155.
63
Testemunho do padre Berto no processo de beatificação de Dom Bosco, em ASC A2660102:
Testi, FDB 2, 108 C9.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

a nomeação de “pessoas que realizassem suas tarefas pastorais com grande


respeito às leis do Estado”. 2o. Chegou-se a um acordo, que reconhecia a li-
berdade do Papa de escolher os candidatos se considerasse apropriados e con-
templava que o governo concederia o uso dos bens. Mais tarde, ao se tratar
da questão do Exequatur, Dom Bosco referiu-se a esses acordos numa carta a
Lanza, em que escreve decepcionado:

Quando tive a honra de dialogar com Sua Excelência [...], pareceu-me que
estava de acordo que o governo permitiria ao Papa liberdade de escolha e não
se poria qualquer obstáculo à questão dos benefícios.64

Dom Bosco em Roma


Com essas garantias, Dom Bosco foi de Florença a Roma e submeteu
seu relatório a Pio IX e ao cardeal Antonelli. Ele compilara uma lista de
candidatos anotando suas credenciais. Pode ter discutido sobre uma lista
de candidatos em sua reunião com Lanza e, também, ter considerado os
méritos de alguns dos que não tinham reputação de moderados. A lista
entregue em Roma é comprovada em quatro folhas holográficas do Ar-
quivo Secreto Vaticano.65 Dom Bosco apresentou 10 nomes, todos dignos
de recomendação, alguns sem qualquer reserva; outros, apenas em alguns
aspectos. Escreve:

Depois de ter ponderado diante de [nosso] Senhor todos os aspectos da ques-


tão e oferecido orações especiais, creio que é possível apresentar os seguintes
como modelos no ministério pastoral.

1. João Batista Bottino. É doutor em Teologia, cônego da catedral [em Turim]


e pregador de renome.
2. Celestino Fissore. É cônego da mesma [catedral], doutor em Teologia e Direito
Canônico, e jurista de renome. Por anos foi vigário-geral da diocese de Turim.
3. Jorge Oreglia. É cônego, preboste, vigário-geral e capitular da Diocese de
Fossano.
Estes três candidatos da lista também estão bem economicamente.
O cônego Luís Nasi é digno em todos os aspectos. Mas está muito mal
de saúde.

64
Dom Bosco ao primeiro-ministro Lanza, Varazze, 1o de fevereiro de 1872, em Epistolario III
Motto, 398.
65
F. Motto, L’azione, 311-312.

673

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Dom Bosco: história e carisma 2

Podem-se recomendar tanto o cônego [Estanislau] Gazzelli [di Rossana]


como o cônego [Carlos] Morozzo [della Rocca] que, além do mais, serão fa-
cilmente aceitos pelo rei. Mas, nas atuais circunstâncias, não são tão aceitáveis
como os três primeiros.
Recomendável, embora menos apropriado, seria a nomeação do reitor Gaeti,
vigário forâneo de Castel Ceriolo. É totalmente aceitável pelo rei, de quem é
muito próximo; mas sua educação teológica é insuficiente.
Monsenhor André Scotton, cônego de Bassano Vêneto. Pregou na catedral
[de Turim] e deu provas de santidade e sabedoria. É apreciado por numerosas
obras e por relatórios que o apoiam. Está bem economicamente, tem boa
saúde e é corajoso até o exagero.
O cônego [Anacleto Pedro] Siboni, vigário-geral e capitular de Albenga, é
altamente recomendado por muitos setores.
O bispo [Lourenço] Gastaldi, de Saluzzo, conta com o apoio da maior parte
do clero pela sua sabedoria e piedade. Apreciariam que fosse transferido a
Turim. Como doutor em Teologia na faculdade da Universidade de Turim,
estaria em situação ideal para manter no caminho correto os estudos de Teo-
logia da Universidade.66

Dom Bosco também sugeriu outros nomes. Amadei, citando o prelado


papal monsenhor Emiliano Manacorda como fonte, assinala que Dom Bosco
apresentou 18 nomes; entre eles, os de José Sciandra, para a diocese de Acqui,
e de Salvador Magnasco, para a arquidiocese de Gênova.67 A lista de Dom
Bosco, que se referia apenas ao Piemonte e à Ligúria, foi uma das muitas
enviadas a pedido da Santa Sé.

66
Este documento comprova irrefutavelmente que Dom Bosco recomendou dom Gastaldi
para a Diocese de Turim, como a tradição salesiana sempre defendeu. Depois, após o desafortuna-
do e amargo conflito com o arcebispo, Dom Bosco não estava muito certo de tê-lo recomendado.
Escreve: “Eu gostaria de saber de alguém que fez circular em Turim alguns escritos tomados dos
arquivos do governo. Neles se afirma que a nomeação do cônego Gastaldi como bispo de Saluzzo
chegou por recomendação de Dom Bosco e que, se chegou a ser nomeado arcebispo de Turim, foi,
também, por recomendação de Dom Bosco. Há também uma lista de obstáculos que precisaram
ser superados para chegar a essas nomeações e dos motivos pelos quais fui partidário de sua can-
didatura” (carta de 14 de maio de 1873, em Epistolario IV Motto, 96-98). Dom Gastaldi, em carta
a Pio IX, queixa-se da “insolência” de Dom Bosco e de sua falta de respeito, por ter afirmado que
foi repreendido em Roma por ter apoiado Gastaldi (carta no Arquivo Secreto Vaticano, citada por
F. Motto, L’azione, nota 167). Um dos motivos pelos quais Dom Bosco recomendou Gastaldi foi
que, sempre tendo ajudado anteriormente Dom Bosco e sua obra, esperava que continuasse a fazê-lo
como arcebispo de Turim. Não foi assim.
67
MB X, 442.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Seguiu-se um intercâmbio diplomático de mensageiros de Roma a vá-


rias dioceses e vice-versa, que não pôde evitar a atenção da imprensa. Sur-
giram especulações, posicionamentos a favor e contra, e debates acalorados
na imprensa durante todo o mês de setembro e a maior parte de outubro,
à medida que iam conhecendo as nomeações ou conjecturando sobre elas.
Jornais anticlericais levaram a cabo a campanha difamatória habitual, que
contribuiu significativamente para intoxicar a atmosfera contra cada um dos
candidatos.68 Pio IX completou a lista de candidatos e, depois de algumas
objeções, o governo também os aceitou. Enfim, no dia 27 de outubro de
1871, o Papa celebrou o consistório no qual foram oficialmente nomeados
e designados, para várias dioceses de toda a Itália, 41 bispos. Entre eles, para
as regiões do antigo Reino da Sardenha, foram: João Balma, arquidiocese
Cagliari, Sardenha; Lourenço Gastaldi, arquidiocese de Turim; Celestino
Fissore, arquidiocese de Vercelli; Pedro José De Gaudenzi, diocese de Vige-
vano e Pedro Anacleto Siboni, diocese de Albenga; os cinco, propostos por
Dom Bosco.69

Continua a participação de Dom Bosco na nomeação de bispos


Enquanto se examinavam as candidaturas e se tomavam as decisões em
Roma, Dom Bosco voltou a Turim em 16 de setembro de 1871. Os assun-
tos urgentes da Congregação e outros compromissos importantes não foram
obstáculo à ativa preocupação de Dom Bosco pelas sedes vacantes. Todavia,
depois da apresentação das candidaturas em 27 de outubro, a diocese de
Fossano permanecia vacante, apesar dos pedidos anteriores do cabido da ca-
tedral, do Conselho municipal e de Dom Bosco. As autoridades de Fossano
renovaram então o pedido, solicitando especificamente monsenhor Emiliano
Manacorda, prelado papal, amigo de Dom Bosco e dos salesianos. Pediram
também a Dom Bosco que atuasse como intermediário perante o cardeal
Antonelli e acrescentasse sua recomendação pessoal. Dom Bosco aceitou com
gosto.70 Em 6 de novembro, o cardeal comunicou a Dom Bosco a decisão
favorável do Papa. Monsenhor Manacorda foi nomeado bispo de Fossano
no consistório de 27 de novembro de 1871. O envolvimento ativo de Dom
68
O jornal anticlerical de Turim, Il Fischietto iniciou uma campanha raivosa de calúnias contra
os possíveis candidatos para a sede de Turim. Os insultos foram mais perversos logo que se anunciou a
nomeação de dom Gastaldi, bispo de Saluzzo, para Turim. A sátira malévola chegou a ridicularizá-lo pela
sua aparência física. Ver Il Fischietto, 4 e 15 de outubro de 1871, em G. Tuninetti, Gastaldi II, 22-23.
69
Anteriormente, João Balma foi “apadrinhado” por Dom Bosco numa carta ao cardeal Anto-
nelli. A nomeação de dom Gastaldi para Turim chegou um ano depois da morte do arcebispo Riccardi
di Netro, que fora designado em 1867 e faleceu em 10 de outubro de 1870.
70
Dom Bosco ao cardeal Antonelli, Turim, 31 de outubro de 1871, em Epistolario III Motto, 382-383.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Bosco na nomeação de bispos continuou durante o pontificado de Pio IX até


sua morte em 1878; e mesmo depois, de uma forma diferente.71

6. Mediação de Dom Bosco para obter o Exequatur


(1872-1874)
O envolvimento de Dom Bosco na obtenção do Exequatur real e a ad-
ministração dos bens eclesiásticos para os bispos recém-nomeados deram iní-
cio a outro capítulo na atividade mediadora. Por causa da situação de conflito
provocada pela ocupação de Roma e a lei de Garantias, conseguir essa per-
missão real era agora mais difícil e custosa.

A entronização conflitante do arcebispo Gastaldi e a enfermidade


de Dom Bosco (dezembro de 1871-fevereiro de 1872)
O arcebispo Gastaldi chegou à sede de Turim em 26 de novembro de
1871. Seu ingresso foi realizado da forma menos solene e pública de quanto se
previra inicialmente. A propaganda raivosa da imprensa anticlerical e o temor
de que o arcebispo fosse objeto de agressões físicas obrigou a administração da
cidade a cancelar a procissão e o desfile de acompanhamento. As autoridades
civis locais receberam-no de forma ambivalente, embora com dignidade; é
provavelmente certo o rumor de que entrava como persona non grata. Além
do mais, era uma figura conhecida e, em muitos aspectos, polêmica; e não
fora tampouco espectador passivo dos acontecimentos religiosos e políticos do
último quarto de século. A fim de evitar o enfrentamento, em vez de chegar à
catedral saindo da igreja de São Felipe, onde o clero se reuniu, preferiu ir pri-
vadamente partindo da igreja da Consolata, onde estivera “clandestinamente”.
Enquanto isso, os diversos grupos laicais católicos e as organizações do
clero, entre os quais estava Dom Bosco, que esperavam o arcebispo na igreja
de São Felipe, foram sem ele à Catedral que já estava cheia de gente.72 No dia
seguinte, o arcebispo instalou-se no seminário diocesano. Passaram-se quase
três anos antes de o arcebispo poder obter o Exequatur e o usufruto dos bens.
Caminhando de São Felipe à catedral no dia 26 de novembro, Dom
Bosco começou a sentir-se mal, com forte dor nos ombros e palpitações inten-
sas do coração. De volta ao Oratório, pareceu que se recuperava. Alguns dias
depois, apesar do mal-estar, Dom Bosco iniciou uma viagem a Gênova para

71
F. Motto, L’azione, 315-322.
72
G. Tuninetti, Gastaldi II, 15-25.

676

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

visitar as casas salesianas da Ligúria. Visitou Marassi e foi a Varazze, tendo che-
gado ali no dia 4 de dezembro. No dia 6, ele desmoronou quando regressava
de trem a Varazze, depois de visitar uma benfeitora. Levaram-no à escola sa-
lesiana e colocaram-no de cama na enfermaria. Este foi o início de uma grave
enfermidade que o manteve prostrado de cama durante quase dois meses.73

Exequatur e bens eclesiásticos: a participação de Dom Bosco


em 1872
Durante o longo retiro, Dom Bosco manteve-se informado sobre como
as coisas estavam caminhando nas dioceses cujos bispos tinham sido nomea-
dos recentemente. Não caminhavam bem. Não lhes era reconhecido o direito
de usar os bens de suas dioceses. Quando começou a recuperar-se, antes de
retornar a Turim, Dom Bosco escreveu ao primeiro-ministro Lanza, exigindo
alguma resposta para a situação.

Quisera escrever-lhe antes e pedir um esclarecimento sobre a questão dos


bens aos quais os bispos de recente nomeação têm direito. A enfermidade
impediu-me de fazê-lo até hoje [...]. Quando tive a honra de dialogar com
Sua Excelência em 9 [11] de setembro passado, entendi que o governo havia
concordado não só em permitir ao Papa a liberdade plena na eleição dos
candidatos como também não colocar obstáculos para a obtenção dos bens
[...]. Foi-me perguntado sobre esse assunto; quisera saber se entendi bem ou
se o governo teve motivos para alterar a posição [...]. Quando o povo viu que
seu bispo se viu obrigado a estabelecer a moradia no seminário diocesano ou
numa casa particular ou numa pousada ou num apartamento alugado, come-
çou a duvidar da credibilidade do governo.74

Atitude do governo e da Santa Sé


O que ocorrera? Não há motivos para atribuir má intenção ao primeiro-
-ministro. Quando ele percebeu que os bens diocesanos não podiam ser ne-
gados aos bispos recém-nomeados, isso significaria que os bens lhes seriam

73
O relato da participação de Dom Bosco no ingresso do arcebispo e da enfermidade posterior
em Varazze é contado detalhadamente em MB X, 219ss. O que sabemos sobre a natureza e o desen-
rolar-se da enfermidade se deve às cartas de salesianos de Varazze aos salesianos de Turim. As cartas de
Pedro Enria, que foi seu enfermeiro o tempo todo, é a fonte principal: ASC A024: Malattie di Don
Bosco, FDB 430 D12-435 E4. Ver comentário em F. Desramaut, Don Bosco, 821-824.
74
Dom Bosco ao primeiro-ministro Lanza, Varazze, 11 de fevereiro de 1872, em Epistolario III
Motto, 398.

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Dom Bosco: história e carisma 2

entregues de acordo com a lei. Pois bem, embora em conformidade com a lei
de Garantias, o governo italiano renunciava ao direito de nomear bispos, mas
exigia o direito de emitir o Exequatur real, pelo qual era permitido ao bispo
recém-nomeado tomar posse do palácio episcopal e de outros locais diocesa-
nos e receber o benefício, as entradas provindas da diocese, possibilitando-lhe
residência e administração.
Um Decreto Real de 25 de junho de 1871 confirmou essa política, esta-
belecendo que o bispo, para obter o Exequatur, devia apresentar às autorida-
des governamentais o original da bula papal de nomeação. Não parece normal
que o governo permitisse, de um lado, a livre escolha dos bispos, como fez em
1871, e depois exigisse dos bispos a apresentação de suas “credenciais oficiais”
para obter a permissão de entrar na posse dos bens de sua diocese. Historica-
mente, tratava-se de uma velha prerrogativa exigida pelos reis da Sardenha,
que sempre buscaram uma política eclesiástica de tipo jurisdicionalista.
Essa política, estabelecida às vezes por concordata, permitia ao soberano
exercer certo controle não só sobre as atividades dos bispos, mas também sobre
a própria nomeação. Não obter o Exequatur paralisava o funcionamento da dio-
cese, do ponto de vista administrativo e jurídico. Agora, pela lei de Garantias
e por Decreto Real, o Papa podia nomear livremente os bispos, mas uma vez
nomeados, eles deviam obter permissão real para entrar na posse dos bens. Para
aliviar a tensão, o governo esclareceu mais tarde a questão jurídica, introduzindo
uma distinção oportuna: a apresentação da bula não tinha por finalidade obter
o Exequatur com suas implicações jurídicas, mas era destinada a registrar oficial-
mente que o portador da bula era a pessoa a quem cabia a gestão dos bens.
A Santa Sé, porém, em especial o cardeal-secretário de Estado Antonelli,
não o aceitou, porque não reconhecia a jurisdição do governo na matéria.
O governo era usurpador do poder temporal do Papa, das propriedades da
Igreja e das ordens religiosas. Os bispos, por isso, comprometiam-se a não
realizar qualquer ato, como a apresentação de credenciais, que pudesse ser
interpretado como reconhecimento de uma situação ilegal e injusta. Dessa
forma, em 31 de outubro de 1871, uma circular da Santa Sé, assinada pelo
cardeal Antonelli, ordenava aos bispos que entrassem em sua diocese e, tão
logo fosse possível, fizessem um ato de jurisdição e enviassem a notificação
de sua eleição ao governo. Se o governo exigisse o pedido para o Exequatur e
a apresentação da bula de nomeação em conformidade com a lei, deviam ig-
norar o pedido e assumir as consequências. Não deviam solicitar o Exequatur,
nem direta nem indiretamente.75

75
G. Tuninetti, Gastaldi II, 52, que cita documentos do arquivo da Arquidiocese de Turim.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Em 29 de novembro de 1871, o arcebispo Gastaldi informou ao car-


deal Antonelli que, à sua notificação, o governo respondera negativamente
e perguntava se podia solicitar o Exequatur de forma indireta. Sugeria que a
Santa Sé fornecesse “um certificado de eleição”, que o bispo poderia mostrar
às autoridades e, dessa forma, obter o uso dos bens. O cardeal Antonelli
manteve-se inflexível. E quando Gastaldi fez uma segunda tentativa, em 9
de janeiro de 1872, o cardeal respondeu que se o arcebispo não dispunha de
nada [para viver], o Papa lhe destinaria, como fez com outros bispos, uma
doação de 700 liras.76
Os bispos ficaram desconcertados diante das restrições do governo e da
intransigência da Santa Sé. Em algumas dioceses, tentou-se evitar o obstácu-
lo. É o caso dos cônegos do cabido da catedral de Saluzzo, que solicitaram o
Exequatur ao ministro da Justiça, apresentando, em vez da bula de nomeação,
uma transcrição das atas da reunião em que o bispo lhes leu a bula de nome-
ação. O governo concedeu o Exequatur, assinado pelo rei em 25 de fevereiro
de 1872. Mas o bispo Afonso Buglione, de Monale, e seu capítulo receberam
uma severa reprimenda do cardeal Antonelli.77
Neste caso, a ação do governo pode ter sido motivada pelo efeito pro-
pagandístico do fato. E em 3 de março de 1872 abrandou as condições para
a obtenção do Exequatur ao aprovar três alternativas à apresentação direta da
bula original de nomeação. Mas, em 10 de março de 1872, uma circular da
Santa Sé proibiu qualquer compromisso. Os bispos não deviam nem sequer
tentar solicitar o Exequatur.
Dom Bosco estava ciente de que o governo, por temor da reação política
violenta diante da situação de imobilidade ou, simplesmente, pelo desejo de
ver o assunto resolvido, buscava um compromisso. Ele também sabia que
tanto o cardeal Antonelli como Pio IX tinha decidido não fazer qualquer
concessão diante do que entendiam como agressão e má fé. Mas Dom Bosco
não se deu por vencido. Ao escrever a Pio IX em 8 de abril de 1872, falou da
questão dos bens:

Quando o governo começou a fazer objeções, escrevi imediatamente ao pri-


meiro-ministro Lanza. Recordei-lhe a promessa oficial feita pelo governo e
pelo próprio rei de não paralisar o assunto dos bens dos bispos. Respondeu-
-me que não havia motivos de preocupação porque as dificuldades que foram
apresentadas eram eventuais e seriam resolvidas, e que a posição do governo
sobre o tema não mudara em absoluto.

76
Dom Gastaldi aceitou a oferta, segundo G. Tuninetti, ibidem, que cita as fontes.
77
G. Tuninetti, Gastaldi II, 53.

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Dom Bosco: história e carisma 2

À medida que o tempo passava, percebendo que nada se resolvia, fiz mais
indagações, mas não obtive resposta. Sei que o governo gostaria de resolver
esta situação embaraçosa, mas não sabe como fazê-lo.78

Pio IX respondeu em latim, no dia 1o de maio de 1872:

Aquilo que [o senhor] escreve sobre seus esforços para obter os bens de-
vidos aos bispos é valorizado, e Nós louvamos seu zelo e preocupação.
Contudo, já sabe como estão as coisas; por isso, entendemos que é melhor
voltar a pedir a Deus, o único que pode mudar os corações das pessoas.
Como Deus prometeu proteção permanente à Igreja, Deus não nos po-
derá defraudar.79

Aparentemente, Pio IX já não acreditava na diplomacia. Teria pergunta-


do a Dom Bosco se, apesar de seu “zelo e preocupação”, seus esforços diplo-
máticos tinham sido úteis.

Esforços renovados de Dom Bosco em busca de uma solução


Dom Bosco, contudo, estava disposto a fazer novas tentativas. Em 21 de
maio de 1872, escreveu ao primeiro-ministro Lanza pedindo que resolvesse a
questão. Para ajudar, propôs uma fórmula de compromisso para a notificação
formal da nomeação ao governo.

Em recente carta a Vossa Excelência, expressei minha convicção de que não


seria demasiado difícil chegar a um acordo aceitável, sem ser necessário que
o governo ou a Santa Sé renunciassem aos seus princípios gerais. Não atuo
na política, não estou envolvido em assuntos públicos, nem recebi qualquer
mandato para negociar. Mas creio que uma nota confirmada pela Santa Sé
cumpriria os requisitos do governo. Nessa nota seria estabelecido que, no
consistório celebrado nesta ou naquela data, fulano e beltrano foram oficial-
mente nomeados bispos para esta ou aquela diocese vacante. Talvez esta ou
alguma fórmula similar que Vossa Excelência pudesse sugerir, servirá para
isso. Neste caso, se Vossa Excelência desejasse encarregar-me de fazê-lo saber
aos partidos da direita, gostaria muito de prestar um serviço ao meu governo
e ser útil à Igreja.80

Epistolario III Motto, 422-423.


78

MB X, 570.
79

80
Dom Bosco ao primeiro-ministro Lanza, Turim, 21 de maio de 1872, em Epistolario III,
Motto, 434.

680

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Se houve uma resposta de Lanza, não há registro. Porém, um novo mo-


vimento da Santa Sé confirma o que Dom Bosco já conjecturara pela carta do
Papa de 1o de maio. Em carta aberta de 16 de junho de 1872 ao seu secretário
de Estado, Pio IX fecha a porta às negociações com um governo que, a seu
juízo, limitava intencionalmente a liberdade da Igreja.81 Dom Bosco viu que
não havia nada a fazer, salvo esperar o descongelamento das relações glaciais
criadas entre as partes adversárias.

Participação de Dom Bosco na questão dos Exequatur nos inícios


de 1873
Em 18 de fevereiro de 1873, Dom Bosco e o secretário padre Berto par-
tiram para Roma, tendo chegado em 24 de fevereiro, depois de escalas em Par-
ma, Bolonha e Florença. O motivo principal no programa de Dom Bosco era
a aprovação definitiva das Constituições Salesianas. Mas rapidamente ele se viu
envolvido de novo, a título totalmente privado, na questão dos Exequatur. No dia
anterior à sua saída de Turim, reuniu-se com dom Gastaldi sobre o mesmo tema.
O arcebispo, como outros bispos, estava impaciente com o retrocesso; estivera
em Roma pouco antes para conversar com o Papa. Em janeiro, em Alessândria,
contrariamente à proibição expressa da Santa Sé, o cônego José Bernardo Corno,
por iniciativa pessoal, apresentara uma transcrição da bula de nomeação de dom
Salvaj e obtivera o Exequatur. O desagrado do cardeal Antonelli não se fez esperar;
o bispo só se salvou pedindo desculpas e apresentando provas da sua inocência.82

Dom Bosco e os quatro modus vivendi


Padre Berto deixou-nos diários de viagens a Roma nas quais acompa-
nhou Dom Bosco, também a de 1873. Depois de descrever a viagem, embo-
ra sem detalhes, ele narra as atividades de Dom Bosco como intermediário
na questão dos Exequatur.83 Não muito depois de chegar à cidade, recebeu
um convite do primeiro-ministro Lanza para discutir a questão.84 Parece que

81
Pio IX ao cardeal Antonelli, 16 de junho de 1872. Ver F. Desramaut, Don Bosco, 840, que
cita o periódico Civiltà Cattolica.
82
G. Tuninetti, Gastaldi II, 54.
83
“Compendio dell’andata di Don Bosco a Roma nel 1873”, em ASC A004, Cronachette Berto,
FDB 906 C8ss, especialmente D7-12; “Appunti sul viaggio di Don Bosco a Roma, 1873”, em ASC
A004, Cronachette Berto, FDB 907 D12ss, especialmente, E1-4.
84
O primeiro-ministro e Dom Bosco também conversaram sobre a política governamental de
supressão das congregações religiosas e do confisco de suas propriedades na província de Roma. Dom
Bosco pedira anteriormente a Lanza que permitisse a existência de alguns conventos estimados por
ele, como os de Tor de’ Specchi, Bocca della Verità e de Trinità dei Monti, o que foi prometido pelo
primeiro-ministro (Compendio Berto, FDB 906 D11).

681

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Dom Bosco: história e carisma 2

nessa reunião, Lanza teria apresentado a Dom Bosco 4 procedimentos alter-


nativos, ou modus vivendi, que não requeriam a apresentação da bula original
de nomeação para solicitar o Exequatur. Chegou até nós um memorando ho-
lográfico de Dom Bosco, redigido em vista, não resta dúvida, de um encontro
com o cardeal Antonelli.
Os assim chamados modus vivendi propostos pelo primeiro-ministro e
aprovados pelo Conselho de Ministros são:

1o Os bispos notificarão sua nomeação e apresentarão a bula oficial, em con-


formidade com a lei.
2 O capítulo da catedral, ou a chancelaria diocesana ou outra autoridade dio-
o

cesana competente, deverá apresentar o resumo da Bula, com uma declara-


ção de que nada foi acrescentado [no original] à formulação habitual nesses
textos.
3 [A autoridade diocesana competente] deverá apresentar o texto de uma
o

Bula típica, com uma declaração de que a Bula original expedida por NN
concorda com este texto.
4o O secretário da Congregação Consistorial apresentará, para cada caso de
nomeação, o nome, a data e a diocese, com uma declaração de que nada se
mudou na Bula oficial.

Em termos gerais, parece que o governo receia que se possam acrescentar ou


introduzir códigos secretos na Bula. O receio foi dissipado para satisfação de
todos [...]. O segundo procedimento alternativo parece mais de acordo com
os princípios mantidos pela Santa Sé, especialmente se forem modificados da
seguinte maneira: “O cabido [da catedral], a chancelaria ou outra autoridade
[diocesana] remeterá à procuradoria real ou a outra autoridade governamen-
tal a declaração da nomeação. Esta consistirá numa declaração de que no
consistório [do Papa] celebrado em [data], o sacerdote [nome] foi nomeado
oficialmente bispo de [diocese] e que foi envida a costumeira Bula [redigida
nos termos habituais]”.
Parece que o governo aceitou este procedimento. Contudo, o ministro dese-
jaria que se esperasse para pô-lo em prática após as férias [parlamentares] da
Semana Santa ou, preferivelmente após o recesso de junho. Nesse momento,
o governo não precisaria tratá-lo em debate parlamentar e se procederia como
o desejado [...].
[O primeiro-ministro] Lanza também se comprometeu a proteger os genera-
latos [das ordens religiosas contra confiscos] ou [se o governo tomasse medi-

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

das contrárias] a apresentar sua demissão. Também procuraria compensar os


bispos pelas perdas sofridas devido à necessária demora.
[Assinado] Padre João Bosco.85

Berto informa que, em algum momento durante a reunião com Lanza,


Dom Bosco foi “atacado” pelos ministros do gabinete que discutiram com ele
e procuravam enganá-lo com contradições ou declarações comprometedoras.
Ele saiu da reunião cansado, molhado de suor, e irritado, mas sorridente, e
explicou a Berto o que “aqueles velhacos” tentaram fazer com ele e com o
“pobre Lanza”.86
Após a reunião, Dom Bosco enviou o memorando com as propostas de
Lanza ao cardeal Antonelli, e em 15 e 16 de março de 1873 reuniu-se nova-
mente com o primeiro-ministro e com o cardeal.87 Todavia, apesar de terem
avançado muito as conversas de Dom Bosco com Lanza e parecesse que o
cardeal quisesse ficar com a nova proposta, não se fez qualquer avanço real
na nova direção. De um lado, Lanza devia esperar que o Parlamento entrasse
em recesso em junho; de outro, o cardeal Antonelli, ainda cético, optou por
esperar para ver.
O tema relativo à Congregação, aprovação das Constituições, tampouco
caminhava bem. O texto revisto levado por Dom Bosco a Roma e apresenta-
do à Congregação dos Bispos e Regulares (Ns, 1873) foi recusado, depois de
o especialista fazer mais de 38 observações críticas sérias, reduzidas a 28 pelo
secretário Vitelleschi. Depois de se despedir de Pio IX em 18 de março, Dom
Bosco partiu de Roma no dia 22 com seu secretário e foi para Turim. Passou-
-se uma semana antes de os viajantes estarem em casa no dia 29 de março de
1873, depois de se deterem em Florença, Módena e Bolonha.
Em Turim, dom Gastaldi também buscava uma maneira de comunicar sua
nomeação às autoridades e obter o Exequatur sem apresentar diretamente a Bula
original. Propôs ao cardeal Antonelli apresentar a Bula ao povo ou uma cópia da
mesma na catedral, num canto da sacristia. A resposta foi que o arcebispo não
devia tomar essa atitude até que a Santa Sé examinasse seus alcances.88
Enquanto isso, nos inícios de maio de 1873, o Parlamento começou
a debater o projeto de lei de supressão das ordens religiosas e o confisco de
85
Documenti Berto, FDB 789 C8-10 (manuscrito de Dom Bosco), B4-6 (transcrição do padre Berto).
86
Compendio Berto, FDB 906 D9-10.
87
F. Motto, La mediazione, 25, nota 66, cita uma carta não publicada de Dom Bosco ao car-
deal Antonelli, com data de 15 de março de 1873, publicada agora em Epistolario IV Motto, 66-67,
linhas 9-10.
88
G. Tuninetti, Gastaldi II, 55.

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Dom Bosco: história e carisma 2

suas propriedades na província de Roma. Pio IX apresentou seu protesto e


lançou excomunhões, mas o projeto foi aprovado como lei e publicado em
26 de junho. Entraria em vigor em outubro de 1873. Com ele, suprimiam-se
472 conventos e mosteiros e expulsavam-se cerca de 8 mil religiosos, homens
e mulheres. O valor das propriedades foi estimado em 8 milhões de liras.89
O primeiro-ministro Lanza, como prometera, lutou duramente para salvar
as casas-gerais das congregações religiosas em Roma; conseguiu-o até certo
ponto. Mas a oposição parlamentar e uma onda de sentimento anticlerical
popular obrigaram-no a renunciar em 25 de junho de 1873. Seu governo
caiu em 5 de julho, deixando sem resolução a questão dos Exequatur.

A batalha de Dom Bosco pelo Exequatur durante a segunda


metade de 1873
Em 10 de julho de 1873, Marcos Minghetti, designado primeiro-minis-
tro, formou um novo governo, no qual Honorato Vigliani assumiu o cargo
de ministro da Justiça. Poucos dias depois, em 14 de julho de 1873, Dom
Bosco escreveu ao primeiro-ministro Minghetti, recordando os progressos
feitos nas reuniões com o primeiro-ministro Lanza e solicitando que se reini-
ciassem as conversações em base à segunda opção modificada.90

[O primeiro-ministro Lanza] apresentou quatro opções elaboradas pelos minis-


tros do gabinete. Anexa-se o texto da segunda, ligeiramente modificada. Infor-
mei ao cardeal Antonelli e ao próprio Santo Padre sobre as propostas. As partes
entenderam que, quando se concluísse o debate sobre o projeto de lei contra as
congregações religiosas e o Parlamento suspendesse as sessões durante as férias de
verão, a proposta seria posta em vigor segundo as modificações aprovadas. Espe-
ro que o novo governo ainda tenha a intenção de trabalhar para a solução de uma
controvérsia que prejudica a muitos e não beneficia a ninguém. Ficaria muito
feliz em servir novamente de algum modo para o bem do meu país e da Igreja.91

Em 16 de julho de 1873, Minghetti garantiu a Dom Bosco que levaria o


assunto em consideração e voltaria a falar com ele. Chegou o mês de agosto e
ainda não havia uma resposta. Dom Bosco pensou que o atraso fosse causado
pelo fato de o ministro da Justiça Vigliani ainda não ter assumido. Finalmen-
te, encarregaram Vigliani das negociações.

V. Ceppelini; P. Boroli e L. Lamarque (eds.), Storia di’Italia, 172.


89

Memorando de Dom Bosco ao cardeal Antonelli, ver nota 85.


90

91
Dom Bosco a Marcos Minghetti, Turim, 14 de julho de 1873, em F. Motto, La mediazione,
64; Epistolario IV Motto, 128-129.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

Nova e mais restritiva posição do cardeal Antonelli


Durante a primeira semana de agosto, Dom Bosco e o cardeal Antonelli
mantiveram correspondência frequente. Dom Bosco apresentou-lhe um rela-
tório atualizado e perguntou se alguém mais fora designado para negociar, se
devia deixar a colaboração e desistir ou se contava com sua permissão “para
tratar do assunto”. Em 6 de agosto, o cardeal Antonelli deu-lhe permissão,
mas fez novas e mais rigorosas exigências, tornando mais problemática a ob-
tenção do Exequatur e o uso dos bens. Em 25 de agosto, Dom Bosco fez
notar ao cardeal a discrepância entre a nova fórmula e o procedimento con-
cordado no passado mês de março. Em 13 de setembro, o cardeal reiterou
sua posição e pediu a Dom Bosco que se ativesse estritamente a ela.92 Apesar
da declaração do cardeal, de que só queria estabelecer parâmetros do que fora
concordado em Roma, a nova fórmula proibia qualquer ação do bispo, da
chancelaria ou de outra autoridade diocesana, deixando a “investigação” nas
mãos do governo.93

Dom Bosco e o ministro Vigliani


Dom Bosco não se deu por vencido, mas não tinha outra opção senão
trabalhar de acordo com o novo posicionamento, intransigente, do cardeal
secretário de Estado. Não obtendo uma resposta do primeiro-ministro Min-
ghetti, em 12 de outubro de 1873, pôs-se em contato com Honorato Viglia-
ni, pois a questão dependia do ministério da Justiça. Pôs o ministro a par do
acordo de março com o primeiro-ministro Lanza e da sua carta ao ministro
Minghetti, mas não recebeu resposta. Em seguida, num esforço para explicar
a nova posição, escreve:

92
Dom Bosco ao cardeal Antonelli, Turim, 3 de agosto de 1873, em Epistolario IV Motto, 137-
138. Cardeal Antonelli a Dom Bosco, Roma, 6 de agosto de 1873. Dom Bosco ao cardeal Antonelli,
Turim, 25 de agosto de 1873, em Epistolario IV Motto, 150-151. Cardeal Antonelli a Don Bosco,
Roma, 13 de setembro de 1873, em F. Motto, La mediazione, 64-67.
93
A fórmula do cardeal Antonelli dizia: “[O governo] pode fazer uma consulta ao secretário
da Sagrada Congregação do Consistório sobre a data [da nomeação], os nomes dos bispos e as dio-
ceses para as quais foram designados nos vários consistórios. [O secretário da Congregação] dará
com prazer nomes, datas e a diocese à qual cada bispo foi designado” (carta de 6 de agosto, ver nota
anterior). O procedimento alternativo, que Dom Bosco registra em seu memorando, é considera-
velmente diferente: “O segundo modo alternativo de proceder está em maior conformidade com
os princípios seguidos pela Santa Sé, especialmente se for modificado como segue: O capítulo [da
catedral] ou a chancelaria ou outra autoridade [diocesana] competente enviará a declaração de que
no consistório [papal] celebrado em [data] o sacerdote [nome] foi oficialmente designado bispo de
[diocese] e que a habitual bula [de nomeação] foi devidamente entregue” (Memorando de Dom
Bosco, ver nota anterior).

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Dom Bosco: história e carisma 2

As conversações de março referem-se unicamente ao procedimento [que se deve


seguir para obter o uso dos bens] para os bispos que serão nomeados no futuro.
Mas já se concordou num segundo modo de proceder, aplicável aos bispos
nomeados e que, neste momento, estão em sua sede (indicado como modus
vivendi B na presente folha anexa). O debate [sobre a aplicação] desta segunda
fórmula, porém, foi diferido para um momento mais oportuno.94 [...]
Parece-me que este modus vivendi B está em total consonância com a opinião
do governo sobre a questão, e é vantajoso. 1o O governo ficaria em contato
com a Santa Sé e se estabeleceria uma relação direta. 2o A Santa Sé poderia
responder diretamente e de forma oficial. 3o Ao receber a lista oficial dos bis-
pos nomeados, o governo pode julgar os méritos do caso em cada situação. 4o
O governo, então, concede um Exequatur efetivo, pois pode decidir pela não
concessão dos bens eclesiásticos ou, se fosse necessário, estabelecer também as
condições adequadas.
Na aplicação prática deste plano seria possível modificar alguns detalhes de
procedimento; creio que a Santa Sé não colocaria objeções. Por exemplo,
quando se diz: “O governo pode iniciar uma investigação etc.”, pode-se con-
siderar que se trate de uma investigação oral, por meio de um delegado. [...]
Sou totalmente alheio à política ou aos assuntos públicos. Por isso, se Vossa
Excelência fizesse uso dos meus humildes serviços neste assunto, não faria
publicidade indesejada.95

O ministro Vigliani respondeu imediatamente. Depois de lamentar a


triste situação das dioceses nas quais os bispos continuavam sem o Exequatur,
continua a dizer que o primeiro-ministro Minghetti, desejoso de resolver o
conflito, pediu-lhe para estudar a questão. Não tendo encontrado os arqui-
vos das negociações anteriores, precisaria de tempo para consultar-se com o
primeiro-ministro Lanza. Vigliani, porém, demonstra conhecer a situação
geral quando escreve:
É preciso que ambas as partes deem testemunho da boa vontade e tolerân-
cia cristã. Deste modo, pode-se alcançar uma solução que satisfaça todos

94
Este primeiro modus vivendi mencionado por Dom Bosco é a segunda fórmula alternativa
proposta por Lanza em março de 1873. Modificado no memorando de Dom Bosco, era sua fórmula
preferida, em harmonia com o pensamento da Santa Sé. Dom Bosco menciona aqui um segundo,
misterioso, modus vivendi. É a fórmula apresentada pelo cardeal Antonelli. Embora o cardeal afirme
que foi um acordo obtido em março (carta de 6 de agosto, ver nota acima), não aparece no memorando
de Dom Bosco, que cita a proposta alternativa de Lanza. Estaria Dom Bosco tentando vender a nova
posição da Santa Sé a Vigliani?
95
Dom Bosco ao ministro Vigliani, Turim, 12 de outubro de 1873, em F. Motto, La media-
zione, 67; Epistolario IV Motto, 166-168.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

os requisitos. O senhor é um santo sacerdote e um cidadão comprometido.


Peço-lhe, pois, que adote as medidas mais eficazes para persuadir a Santa Sé
de reunir-se com o governo no meio do caminho. Porque o governo precisa
encontrar a maneira de conciliar os requisitos da lei, que está acima da von-
tade pessoal de qualquer ministro, com as concessões que tornarão possível
conceder o Exequatur. O senhor sabe que foi concedido generosamente aos
bispos de Alessândria, Saluzzo e Aosta. Por que outros bispos não seguem o
bom exemplo de seus colegas? Por que não podem encontrar-se, através de
seus capítulos, com os prefeitos locais ou pessoa de confiança, uma maneira
de transmitir a transcrição da Bula de nomeação à autoridade governamen-
tal, sem que pareça que fazem um ato de submissão? Não vejo neste modo
de agir nada que pudesse ofender a nossa santa religião.96

O procedimento aludido por Vigliani e aprovado na diocese de Saluzzo,


Alessândria e Aosta desagradou muito ao cardeal Antonelli. Seria, de qualquer
modo, descartado pela nova postura da Santa Sé. Dom Bosco escreveu rapida-
mente ao cardeal Antonelli em 20 de outubro para comunicar-lhe seu inter-
câmbio com o ministro Vigliani. Comunicara claramente a nova posição da
Santa Sé, mas Vigliani negara-se a comentá-la e citara exemplos que desviavam a
questão. Dom Bosco estava disposto a partir para Roma se o cardeal achasse útil.
Antonelli respondeu em 1o de novembro, reafirmando sua posição intransigente
que proibia aos bispos diocesanos, ou outra autoridade, qualquer ação para so-
licitar o Exequatur. Não podia garantir se uma viagem de Dom Bosco a Roma
ajudaria, “pois o governo não parecia disposto a fazer nada certo”.97
Terminava o ano de 1873. Vários meses depois do primeiro contato com
o primeiro-ministro Minghetti, Dom Bosco precisou aceitar que as divergên-
cias continuavam sem serem resolvidas. Em 17 de dezembro de 1873, dom
Gastaldi expôs uma cópia autenticada da Bula da sua nomeação na sacristia
da catedral, como fazia com as cartas pastorais do bispo; a ação podia ser in-
terpretada como pedido do Exequatur. Para piorar as coisas ainda mais, leigos
influentes de Turim começaram um processo para esclarecer de que maneira a
transcrição autenticada chegara às autoridades. Mas não deu em nada. O mi-
nistro Vigliani negou-se a adotar medidas, pois a decisão não fora tomada pelo
arcebispo e o documento apresentado não era a Bula original. Dom Gastaldi
não percebeu que essas medidas eram tomadas “a seu favor”.98
96
Ministro Vigliani a Dom Bosco, Roma, 15 de outubro de 1873, em F. Motto, La media-
zione, 68-69.
97
Dom Bosco ao cardeal Antonelli, Turim, 20 de outubro de 1873, em Epistolario IV Motto, 171-
172. Cardeal Antonelli a Dom Bosco, Roma, 1o de novembro de 1873, em F. Motto, La mediazione, 69.
98
F. Motto, La mediazione, 36-37.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco, nesse momento, preparava sua viagem a Roma para a apro-
vação das Constituições. Ele revisara o texto, embora de modo não significa-
tivo (Ns, 1873). Em 29 de dezembro de 1873, foi a Roma com o secretário
padre Berto. Chegaram no dia 30, depois de uma breve pausa em Florença,
convidados pelo conde e condessa Uguccioni-Gherardi. O tema da aprova-
ção definitiva das Constituições haveria de retê-lo em Roma até que o decreto
foi aprovado em 13 de abril.

Negociações de Dom Bosco em Roma, em 1874,


com o ministro Vigliani
Antes de partir para Roma, Dom Bosco reunira-se com dom Gastaldi,
a quem prometeu manter informado dos acontecimentos. As cartas de Dom
Bosco desde Roma ao arcebispo comprovam que o arcebispo esperava com
impaciência um avanço substancial. Durante sua prolongada permanência
em Roma, Dom Bosco decidiu continuar sua atividade diplomática de me-
diação e esperava que as partes se pusessem de acordo sobre uma fórmula de
entendimento recíproco.99 Precisava reunir-se imediatamente com as partes,
para conhecer suas respectivas posições.

Uma fórmula para o acordo global


Em 31 de dezembro, um dia após sua chegada a Roma, Dom Bosco reu-
niu-se com o ministro Vigliani e com o cardeal Antonelli. Confirmaram-se ime-
diatamente duas suspeitas: as posições das partes em conflito eram inconciliá-
veis. Em carta a dom Gastaldi, escrita na mesma noite, Dom Bosco comentou
as palavras de Vigliani, reveladoras de posições não conciliáveis. “Não exigimos”,
dissera o ministro, “que os bispos apresentem uma solicitação para o Exequatur,
mas apenas para os bens eclesiásticos”. E Dom Bosco acrescentava: “Mesmo
esta segunda solicitação é descartada por ordem de uma autoridade superior”
[o cardeal Antonelli].100 Após nova reunião com o ministro para examinar uma

99
A crônica da viagem redigida pelo padre Berto e as cartas de Dom Bosco são as principais
fontes do final desta história. Para a crônica do padre Berto (G. Berto, “Brevi appunti pel viaggio
di Don Bosco a Roma, 1873”, em ASC A004: Berto, Cronachette, FDB 908 B5-910 C3 e 910 A8).
F. Motto, La mediazione, 38, questiona a confiabilidade dessa crônica. Além da evidente tendência
de Berto a engrandecer a figura do mestre, não vê razões para duvidar do relato. As Memórias Biográ-
ficas no-lo transmitem embelezado com diálogos e outros detalhes (MB X, 495ss). Os extratos mais
importantes da correspondência de Dom Bosco relativas ao tema do Exequatur podem ser lidos em
F. Motto, La mediazione, 56-79.
100
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, 31 de dezembro de 1873, em F. Motto, La mediazione,
70; Epistolario IV Motto, 188.

688

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

fórmula básica,101 à noite de 2 de janeiro de 1874, Dom Bosco escreveu ao car-


deal Antonelli. Informava-lhe que Vigliani desejava modificar algumas expres-
sões da fórmula para evitar as objeções que pudessem ser apresentadas. Aceitava
a fórmula em sua totalidade e não previa oposição, nem do gabinete nem do
Conselho de Estado. Durante a semana seguinte aconteceram mais reuniões,
incluindo uma audiência com Pio IX, e trocaram-se cartas. O ministro Vigliani
e Dom Bosco estavam convencidos de que se faziam progressos.
A proposta do governo, porém, só modificava algumas expressões da fór-
mula básica e mantinha a necessidade de o bispo comunicar ao ministério sua
nomeação e entrada na diocese. A posição da Santa Sé descartava categorica-
mente qualquer ação da parte do bispo que pudesse ser interpretada como
solicitação do Exequatur ou dos bens. Opunha-se, também, a mostrar a Bula ao
clero e ao Capítulo na sacristia da catedral. Por outro lado, o governo exigia que
se mostrassem todas as Bulas ou, ao menos, se apresentasse a Bula ao povo com
uma descrição exata do conteúdo das demais. Fazendo uma distinção jurídica,
exigia que o bispo solicitasse apenas os bens eclesiásticos e não o Exequatur.
Alguém mais fraco teria desesperado, mas não Dom Bosco. Suas inúmeras con-
versações e intercâmbios com as partes interessadas devem tê-lo convencido de
que, caso adotasse um novo enfoque, o entendimento seria possível. O princí-
pio a preservar era que, com qualquer fórmula, não se devia exigir que o bispo
fizesse a solicitação de modo claro. Por isso, Dom Bosco, pessoalmente ou em
colaboração com outros, apresentou-se com esta nova proposta:

Evitando qualquer envolvimento pessoal, o bispo expõe a Bula ad capitulum e,


talvez, também ad episcopum, na sacristia da catedral ou em algum outro lugar
apropriado. Qualquer pessoa, inclusive um notário público, pode fazer cópias
autênticas. Em seguida, pedir-se-á ao prefeito ou ao fiscal real que transmita
a cópia autêntica ao Ministério da Justiça. O ministro, por escrito, entra em
contato com o bispo para perguntar se, com esse ato, ele tem a intenção de
solicitar os bens temporais. O bispo responde afirmativamente e [diz] que o
faz para eliminar qualquer obstáculo ao livre exercício de seu ministério pas-
toral. Pede ao ministro que garanta a remoção de qualquer obstáculo e que
os bens lhe sejam concedidos. Por último, o ministro põe em andamento o
processo pelo qual se concedem os bens e se reconhecem legalmente o bispo
e sua assinatura.102

101
É a segunda fórmula, modificada, recolhida por Dom Bosco no memorando de março de
1872, como a mais aceitável para a Santa Sé. Ver acima, notas 83 e 92.
102
Documenti Berto, em FDB 789 B7 (transcrição assinada pelo padre Berto com uma nota
aparentemente holográfica de Dom Bosco).

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Dom Bosco: história e carisma 2

A nova fórmula parecia satisfazer todas as exigências; de modo que, em


11 de janeiro, Dom Bosco pôde escrever tranquilizando dom Gastaldi, que
estava impaciente por ver o problema resolvido.

Apresso-me a comunicar a Vossa Excelência que se deram importantes pro-


gressos no assunto em questão. A fórmula aceita pela Santa Sé também foi
aprovada por Vigliani e o gabinete. Será apresentada ao Conselho de Estado
na próxima semana; esperemos que também com resultado favorável. Depois
disso, se o diabo não meter o dedo no pastel, será aplicada de imediato. Vi-
gliani disse-me repetidamente que a apresentação da Bula ao povo seria sufi-
ciente, desde que acompanhada de uma declaração de que se apresentava para
a obtenção dos bens temporais [...]. Peço-lhe, por isso, que espere esta semana
e a seguinte; depois eu explicarei. Se o plano atual não funcionar, perguntarei
ao cardeal Antonelli se é possível mostrar a Bula ad clerum na sacristia. Até
hoje, porém, não permitiu aos bispos solicitar o Exequatur.103

Em 15 de janeiro, depois de nova rodada de conversações com o minis-


tro Vigliani e com o cardeal Antonelli, Dom Bosco tinha reais motivos para
o otimismo. Demonstra-o sua carta de 16 de janeiro ao arcebispo Gastaldi:

Alcançou-se o acordo sobre o assunto em questão. As duas partes aceitaram


a fórmula. Nesta segunda-feira será enviada a sua Excelência uma cópia au-
têntica, juntamente com uma carta-modelo com que cada bispo se dirigirá ao
ministro da Justiça.104

Em 19 de janeiro, a Congregação do Consistório enviou os protocolos


ao arcebispo, testemunhando sua nomeação oficial. Uma nota de apresen-
tação do cardeal Antonelli esclarecia que os dois documentos, com a carta
do bispo, deviam ser dirigidos ao ministro Vigliani. Entendia-se que não se
devia dar publicidade a esse acordo e que o bispo não devia fazer nada antes
de o assunto ser encerrado em Roma. Lamentavelmente, o arcebispo Gastaldi
começou a falar como se o assunto já fosse resolvido; em 22 de janeiro, sem
levar em consideração o pedido de Dom Bosco para ter paciência, tomou o
assunto nas próprias mãos e enviou os documentos ao Ministério Público
Real e não ao ministro da Justiça, segundo as instruções. Dom Bosco intei-
rou-se dos fatos pelo próprio ministro, que se exasperou com o arcebispo,
103
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, Roma, 11 de janeiro de 1874, em F. Motto, La mediazione,
71-72; Epistolario IV Motto, 200-201.
104
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, Roma, 16 de janeiro de 1874, em F. Motto, La mediazione,
72; Epistolario IV Motto, 203-204.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

como também o cardeal Antonelli. A decepção de Dom Bosco é manifestada


na carta de 24 de janeiro a dom Gastaldi:

Tudo parecia que ia se encaixando, e agora isto [...]. A gente daqui desejava
explicações, especialmente quando se soube que um jornal [de Turim] publi-
cou todo o acordo ponto por ponto. O Conselho de Estado, reunido hoje,
ficou perplexo; foram feitas algumas moções que serão apresentadas amanhã.
Em todo caso, disseram-me que peça a Vossa Excelência que mantenha todo
o assunto em rigoroso sigilo [...]. Alguns membros do Parlamento fizeram
consultas ao ministério sobre a veracidade das notícias que apareceram em
alguns jornais. É evidente que o diabo pôs sua mão nisso.105

Interrupção das negociações


Em 26 de janeiro, Dom Bosco comentou a situação com o cardeal An-
tonelli, que condenou energicamente a atuação de dom Gastaldi. A ruptura
das negociações, em última instância, não pode ser atribuída unicamente à
indiscrição de Gastaldi ou à ação de alguns outros que atuaram por inicia-
tiva própria.106 As atividades de Dom Bosco em Roma não podiam deixar
de atrair a atenção da imprensa anticlerical. Durante os meses de janeiro e
fevereiro, os jornais anticlericais passaram ao ataque. Lançavam-se contra o
governo liberal, que estava para render-se às exigências da Santa Sé e fazen-
do concessões “ilegais” orientadas à “reconciliação”! Tampouco foram menos
hostis os jornais clericais conservadores, como La Voce della Verità (A Voz da
Verdade), de Roma. Também Dom Bosco ganhou uma boa reprimenda.107
O clamor da imprensa anticlerical diante das imaginadas intenções do
governo pela “reconciliação”, ou simplesmente por mais “concessões” à Santa
Sé, teve repercussão internacional. Em 2 de fevereiro, Dom Bosco teve uma

105
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, Roma, 24 de janeiro de 1874, em F. Motto, La media-
zione, 72-73; Epistolario IV Motto, 211-212.
106
Em 8 de janeiro, o arcebispo Balma, de Cagliari, um dos apresentados por Dom Bosco, ob-
teve o Exequatur, o que provocou questionamentos ao governo no Parlamento. Não agradou muito ao
cardeal Antonelli quando se inteirou que a Bula ad populum não só fora exposta na sacristia da catedral
como também fora enviada ao ministro. Cf. F. Motto, La mediazione, 51.
107
Ver detalhes em F. Motto, La mediazione, 41-46. O ataque a Dom Bosco da parte de mon-
senhor Xavier Nardi, que o chamava de “partidário do compromisso”, foi publicado em 1o de fevereiro
de 1874. A Voz da Verdade era o órgão de uma sociedade ultramontana e intransigente de Roma, que
defendia a Santa Sé. O artigo foi uma surpresa para Dom Bosco e encontrou a indignação convicta de
outros periódicos católicos mais moderados. Dom Bosco fez o padre Berto redigir uma enérgica nota
de protesto e conseguir publicá-la. Ver o texto em G. Berto, Brevi appunti, 55, nota de 16 de fevereiro
de 1874, em ASC A004: Berto, Cronachette, FDB 909 B12.

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Dom Bosco: história e carisma 2

longa entrevista com o cardeal Antonelli inteirando-se de que a questão dos


Exequatur dos bispos enredara-se na diplomacia internacional. Alarmara, até
mesmo, o chanceler Otto von Bismarck, da Alemanha. Padre Berto informa
em sua crônica:

Quando descíamos as escadas e saíamos do Vaticano, Dom Bosco disse-me:


“Queres saber por que nosso governo não quer mais ir adiante com a questão
dos Exequatur dos bispos? O motivo é que recebeu uma nota diplomática de
Bismarck, que proíbe qualquer tipo de compromisso”.108

Durante o mês de fevereiro, numa carta a dom Gastaldi, enviada por meio
de um mensageiro de confiança, Dom Bosco expressava a mesma convicção.

Com o acordo definitivo assinado pelo ministro da Justiça e aprovado pela


Santa Sé [...], nada, assim acreditávamos, poderia interpor-se no caminho.
É o que pensamos! Em seguida [o ministro] mandou chamar-me; deu-me a
informação de ter ouvido os disparates do arcebispo de Turim, que ele havia
filtrado, e que os jornais fizeram seus [...] etc.; tais recriminações eram apenas
um anteparo para ocultar o fato de que, no dia anterior, o governo recebera
uma carta irritada do [chanceler] Bismarck em que exigia pôr fim às intenções
de reconciliação, em especial, quanto aos bispos etc. As negociações não se
romperam, mas estacionaram.109

A intervenção de Bismarck, neste caso, não é confirmada, embora não


seja de todo improvável. O fato é que o governo se retirou dos compromissos
já contraídos. Dom Bosco teve outras conversas com o ministro Vigliani em
11 de fevereiro e em 3 de março; com o cardeal Antonelli, em 1o de março;
com Pio IX, em 4 de março. Mas em março de 1874 terminaram as negocia-
ções sobre os bens dos bispos.

Os expedientes práticos converteram-se em norma


A maioria dos bispos continuava a esperar o Exequatur e os bens eclesiásticos,
sem os quais não podiam exercer o ministério pastoral. Fracassaram as tentativas

108
G. Berto, Brevi appunti, 45, em ASC A004: Berto, Cronachette, FDB 909 A12. Otto von
Bismarck, chanceler alemão, foi figura predominante na Europa do último terço do século XIX. Seu
programa político, Kulturkampf, provocou uma repressão feroz dos católicos alemães. Sua influência
na Itália foi perceptível a partir de 1876, quando as forças anticlericais dos governos de esquerda segui-
ram políticas semelhantes em relação à Igreja. Podem-se ver exemplos de sua intervenção em assuntos
italianos em F. Motto, La mediazione, 47-48.
109
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, Roma, 9 de março de 1874, em F. Motto, La mediazione,
74; Epistolario IV, 223-224.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

de negociar uma fórmula geral para os bispos já nomeados, para os que espe-
ravam ser e os que seriam nomeados no futuro. Cada bispo, por isso, deveria
proceder como lhe parecesse melhor em cada caso individual. Quando o arce-
bispo de Vercelli, dom Fissore, lhe pediu orientações, Dom Bosco respondeu
que poderia apresentar a Bula ao povo e, talvez, também ao Capítulo.

Com a presente, acrescento um procedimento por meio do qual alguns bis-


pos, como os de Susa e Aosta, conforme me disseram, obtiveram seus bens.
A Santa Sé não se opõe a esse procedimento. Em primeiro lugar, permitiu-se
mostrar a Bula ao Capítulo. Isso foi logo revogado, de modo que só se pode
mostrar a Bula ao povo.110

Alguns dias depois, em circunstâncias semelhantes, Dom Bosco deu a


mesma sugestão ao arcebispo Gastaldi.111 O procedimento sugerido nestes
casos era o que Dom Bosco pensara desde o início e com o qual as partes
haviam concordado, embora nesse momento não houvesse acordo sobre qual
Bula deveria ou podia ser mostrada.
Durante a permanência em Roma, Dom Bosco não esqueceu o assun-
to decisivo para a Sociedade Salesiana, a aprovação de suas Constituições.
Era uma conclusão urgente. Por isso, entregou-se a uma prolongada batalha,
centrada especialmente nas estruturas da formação sacerdotal e religiosa, con-
sideradas insuficientes, como estavam nas Constituições. Contra os esforços
de Dom Bosco de conservar algumas características muito queridas por ele,
introduziram-se modificações importantes antes de se recomendar sua apro-
vação. O Decreto de aprovação foi assinado em 13 de abril de 1874. Dom
Bosco perdera a batalha dos Exequatur, mas ganhou a da Sociedade Salesiana.
No dia seguinte, 14 de abril, Dom Bosco e padre Berto deixaram Roma;
no dia 16 estavam de volta a Turim, passando por Florença. Dom Bosco
reuniu-se com o arcebispo Gastaldi, segundo a crônica de Berto, na tarde de
18 de abril. Padre Berto nada conta sobre a conversa, salvo que “não foram
tratados assuntos da Congregação Salesiana”.112 Sem demora, o arcebispo
preparou o pedido do Exequatur, que a Corte real enviou ao ministro Viglia-
ni, junto com a Bula ao Capítulo e ao clero. Foi-lhe concedido o Exequatur e
os bens por um decreto assinado pelo rei em 15 de maio de 1874.

110
Dom Bosco ao arcebispo Fissore, Roma, 9 de março de 1874, em F. Motto, La mediazione,
74; Epistolario IV, 250-251.
111
Dom Bosco ao arcebispo Gastaldi, Roma, 14 de março de 1874, em F. Motto, La media-
zione, 75; Epistolario IV, 253.
112
G. Berto, Brevi appunti, 111, em ASC A004: Berto, Cronachette, FDB 910 B9.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Aos poucos, a Santa Sé foi cedendo. Não só se podia mostrar a Bula ao


povo na sacristia da catedral ou apresentá-la diretamente, como também as
outras Bulas. Os bispos, um depois do outro, serviram-se da concessão. E,
embora o governo ainda reclamasse o direito de julgar o mérito de cada caso,
em fins de 1874, a maioria dos bispos obtivera o Exequatur e os bens. Em
1876, a Santa Sé permitia esta prática, que se converteu em norma “em vista
das circunstâncias”.113

7. Comentário final
Demonstrou-se sem dúvidas, nestas páginas, a participação notável de
Dom Bosco no assunto da nomeação dos bispos e dos Exequatur e a conces-
são dos bens, enquanto, ao mesmo tempo, pesavam sobre ele um sem-fim de
preocupações como Fundador. Quem contempla esta “atividade paralela”,
conduzida durante muitos anos, pode muito bem se perguntar como Dom
Bosco se envolveu e por que, precisamente, Dom Bosco.
Consegue parte da resposta, quem atentar aos anos históricos de mu-
dança nos quais Dom Bosco viveu. Ele era conhecido pela classe dominante
do Piemonte, por gente como os irmãos Cavour, por Rattazzi, Lanza e outros
que foram os arquitetos da Revolução Liberal e da unificação da Itália, que o
admiravam pela sua ação humanitária. A partir de 1849, foi também conhe-
cido pessoalmente por Pio IX e seu secretário de Estado, o cardeal Antonelli.
Era, pois, aceitável pelas duas partes. Os que o conheciam apreciavam-no
e confiavam nele, pois sua personalidade e seu caráter davam-lhe crédito.
Aproximava-se das pessoas de forma simples, direta, sincera, sem pretensões,
inteiramente livre de ameaças. Por sua vez, sua inteligência intuitiva adivi-
nhava rapidamente quais eram as possibilidades. Depois, sua confiança em
Deus e na bondade básica das pessoas, independente de sua tendência po-
lítica, faziam-no homem de confiança e intrépido. Em alguns casos, Dom
Bosco não esperou ser solicitado. Tomou a iniciativa ou, poder-se-ia dizer,
ofereceu-se como voluntário.
Talvez seja mais importante dizer que era um homem de fé e um homem
de Igreja. Pensava que era seu estrito dever oferecer seus serviços em qualquer
assunto que considerasse vital para a Igreja e para o bem das almas. “Da mihi
animas” foi a bandeira adotada no início de seu ministério e que o guiou pela
vida toda. Não foi uma decisão meramente simbólica; foi para ele uma ver-
dadeira consagração que motivava cada um de seus gestos. Seu compromisso
113
F. Motto, La mediazione, 55-57; F. Desramaut, Don Bosco, 867 e 881 nota 112.

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A mediação oficiosa de Dom Bosco entre a Santa Sé e o governo italiano para a nomeação...

cristão, católico, tornava-o totalmente disponível para tudo que levasse à “gló-
ria de Deus, o bem da Igreja e a salvação das almas”. Por isso, estava disposto
a deixar de lado também o que estava no centro do seu coração, a questão da
Sociedade Salesiana.
Em relação à nomeação de bispos, Dom Bosco aparece envolvido na
confrontação histórica da Igreja com o Estado liberal na Itália; mas sua par-
ticipação era totalmente dirigida por objetivos religiosos. Por isso, pôde es-
crever ao primeiro-ministro Lanza: “Não me envolvo em política; não estou
envolvido nos assuntos públicos”.
É verdade que negociar a nomeação de bispos para as sedes vacantes e
obter-lhes os bens necessários para o exercício do ministério pastoral tinha
consequências políticas; mas o objetivo de Dom Bosco era puramente reli-
gioso, o bem do povo: Da mihi animas.
Perseguindo esse objetivo, demonstrou uma perseverança extraordiná-
ria, uma capacidade de resistência pouco comum, a paciência de um santo,
o sofrimento e a humilhação pela causa. O terceiro dos 9 propósitos de sua
ordenação já o evidenciava: “Não recusarei o sofrimento, o trabalho, nem
sequer as humilhações, quando se tratar de salvar almas”.114

114
F. Motto, Testamento, 21-23.

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Capítulo XXI

A FUNDAÇÃO DO INSTITUTO DAS FILHAS


DE MARIA AUXILIADORA (1862-1876)

Antes de narrar a história da fundação do Instituto das Filhas de Maria


Auxiliadora, vejamos brevemente o contexto religioso e social em que a fun-
dação surgiu.1
Por volta de 1870, tornou-se manifesta na Itália uma surpreendente anti-
nomia: crises persistentes nos Institutos religiosos e, ao mesmo tempo, flores-
cimento de novas iniciativas e novas fundações. Ou seja, a situação eclesiástica
passava, paradoxalmente, por um período de capitulação e crescimento, de
crise e vitalidade religiosa. O surgimento de novos institutos religiosos levou à
criação de uma outra legislação, ou porque não existia ou porque a que existia
era inadequada ou lenta em seu desenvolvimento. Esta evolução jurídica favo-
receu ainda mais a expansão das congregações religiosas femininas.
A situação social da mulher também estava em evolução. “De um lado,
as mulheres iam conquistando aos poucos uma liberdade maior de ação, es-
pecialmente no trabalho social e na educação primária. De outro, o direito da
Igreja no século XIX foi evoluindo e começou a reconhecer que os institutos
femininos, até então não considerados oficialmente como religiosos, possuíam
os aspectos essenciais da vida religiosa em seu sentido estrito.”2
É provável que Dom Bosco tivesse sido influenciado por essa situação
quando considerou a fundação de um instituto feminino. Sentia-se incenti-
vado pelo reconhecimento gradual dado às mulheres no âmbito da educação
e na atividade social; ao mesmo tempo, estava ciente dos requisitos jurídicos
que regulavam a criação de novos institutos. De fato, mostrou-se inicialmente
um tanto arredio à fundação do Instituto e, uma vez fundado, à obtenção da
aprovação da Santa Sé. Stella observa:
1
M. E. Posada, El Instituto, 219-222.
2
G. Martina, “La situazione degli Istituti religiosi in Italia intorno al 1870”. In: Chiesa e reli-
giosità in Italia dopo l’unità (1861-1878). Vol. III.1. Milão: Vita e Pensiero, 1973, 194.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Uma aparente anomalia na vida de Dom Bosco é o fato de nunca ter pedido,
e nem mesmo ter-se decidido a pedir, a aprovação de Roma para as Filhas de
Maria Auxiliadora. Isso se torna ainda mais desconcertante, levando-se em
conta o contexto em que se coloca no quadro de uma mentalidade que tendia
a dar grande relevo à pessoa do Papa e às prerrogativas que a religiosidade
católica do tempo afirma e exalta [...]. Enquanto de um lado livra-se de todos
os modos das pressões episcopais em Turim para garantir a fisionomia da
Sociedade Salesiana que ele sonhara, de outro, quase ao mesmo tempo e por
um movimento afetivo análogo, evita submeter-se a Roma no que se refere às
Filhas de Maria Auxiliadora. Enquanto solicita de Roma privilégios e isenções
em relação à autoridade episcopal para os salesianos, pede à mesma Santa Sé
que confie aos bispos o que se refere às religiosas por ele fundadas.3

É preciso levar em conta também a diversidade do primeiro grupo de


Filhas de Maria Auxiliadora, comparado com o dos primeiros salesianos.
Destes, quase todos cresceram no ambiente de Valdocco, eram meninos edu-
cados pelo próprio Dom Bosco.4 As primeiras Filhas de Maria Auxiliadora,
todavia, vinham de um grupo já existente, com sua própria espiritualidade e
organização, ou seja, as Filhas de Maria Imaculada, de Mornese.
Os textos salesianos sobre a fundação do Instituto, tanto as Memórias
Biográficas como a Cronistória [crônica histórica das Filhas de Maria Auxi-
liadora], embora tentem uma descrição exata, são mais edificantes do que
científicos. O estudo crítico das fontes ainda está a ser feito, embora existam
à disposição numerosos trabalhos publicados.5
3
P. Stella, Vita, 203-204.
4
MB IV, 429s.
5
Apenas alguns títulos: M. E. Posada; A. Costa y P. Cavaglià (eds.), La sapienza della vita: lettere di
Maria Domenica Mazzarello. Turim: SEI, 1994; C. Colli, Contributo di Don Bosco e di Madre Mazzarello
al carisma di fondazione dell’Istituto delle FMA. Roma: Istituto FMA, 1978; A. Deleidi, “Don Bosco y Ma-
ría Domenica Mazzarello: relación histórico espiritual”. In: J. M. Prelezzo (ed.), Don Bosco en la historia.
Madri: Editorial CCS, 1990, 207-218; Id., “Il rapporto tra Don Bosco e Madre Mazzarello nella fondazio-
ne dell’Istituto FMA (1862-1876)”. In: Don Bosco fondatore della Famiglia Salesiana. Roma: Dicastero per
la Famiglia Salesiana, 1989; F. Desramaut, “Mazzarello, Maria Dominica. Filies de Maria Ausiliatrice”.
In: Id., Les cents mots-clefs de la spiritualitè salésienne. Paris: Éditions Don Bosco, 2000, 342-347. 267-270;
M. Midali, Madre Mazzarello: il significato del titolo di Confondatrice. Roma: LAS, 1982; M. E. Posada,
Attuale perché vera: contributi su S. Maria Domenica Mazzarello. Roma: LAS, 1987; Id., “Alle origini di una
scelta: Don Bosco fondatore di un Istituto religioso femminile”. In: R. Giannatelli (ed.), Pensiero e prassi
di Don Bosco. Roma: LAS, 1988, 158-169; Id., “El Instituto de las Hijas de María Auxiliadora con relación
a Don Bosco”. In: J. M. Prellezo (ed.), Don Bosco en la Historia. Madri: Editorial CCS, 1990, 219-230;
Id., “Don Bosco fondatore dell’Istituto delle Figlie di Maria Ausiliatrice”. In: Don Bosco fondatore della Fa-
miglia Salesiana. Roma: Dicastero per la Famiglia Salesiana, 1989, 281-303; C. Romero, Costituzioni per
l’Istituto delle Figlie di Maria Ausiliatrice (1872-1885): testi critici. Roma: LAS, 1983; Id., “Alle origini delle

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Dom Bosco: história e carisma 2

1. Projeto de Dom Bosco de fundar uma Congregação


feminina e sua evolução
É improvável que a ideia de fundar uma congregação de mulheres tenha
surgido em Dom Bosco apenas pouco antes de abril de 1871; foi nessa época, de
fato, que ele se encontrou com madre Maria Henriqueta Dominici, superiora-
-geral das Irmãs de Santana da Divina Providência, para que o ajudasse na reda-
ção das constituições da congregação que tinha em mente. Essas constituições
eram destinadas às Filhas de Maria Imaculada, de Mornese, um grupo de jovens,
bem estabelecido e organizado, que Dom Bosco conhecia desde 1864 e que logo
viriam a ser as Filhas de Maria Auxiliadora. Como chegou a essa decisão?

Uma sociedade religiosa com as “mães” que tinha no Oratório?


Segundo padre Rua, já em 1858, depois da morte de sua mãe, em 25 de
novembro de 1856, Dom Bosco expressara a ideia de contar com um grupo de
mulheres residentes para cuidarem de sua numerosa família, motivo esse um
tanto prosaico.6 A necessidade foi sentida com maior intensidade em 1870, com
a criação de várias escolas para internos. Nessa época, Dom Bosco ampliara seu
projeto até chegar a conceber uma congregação paralela que educasse as jovens.

Dom Bosco e a senhorita Benedita Sávio, de Castelnuovo


Benedita Sávio (1825-1896) foi diretora da escola maternal em Castel-
nuovo, de 1857 até praticamente a sua morte. Dotada de grande vitalidade e
amor afetuoso, vivia a vida cristã com simplicidade e dedicação total aos outros.
Aconselhada pelo padre Cafasso, seu diretor espiritual, vivia como “consagrada
em sua própria casa”. Era, também, professora competente e hábil educadora
da juventude. Todas essas qualidades só podiam despertar o interesse de Dom
Bosco7 que, com frequência, visitava sua cidade natal.

Costituzioni dell’Istituto delle Figlie di Maria Ausiliatrice”. In: G. Bosco, Scritti editi ed inediti. Roma: LAS,
1983; P. Cavaglià e A. Costa (eds.), Orme di vita tracce di futuro: fonti e testimonianze sulla prima comunità
delle Figlie di Maria Ausiliatrice (1870-1881). Roma: LAS, 1996; P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel
secolo delle libertà II. 3ª ed. Roma: LAS, 2009, cap. XIX, XXIX; G. Loparco, Le Figlie di Maria Ausiliatrice
nella società italiana (1900-1922). Roma: LAS, 2002; Id., “Verso l’autonomia giuridica delle Figlie di Ma-
ria Ausiliatrice dai Salesiani. «Relatio et votum» di G. M. van Rossum per il S. Uffizio (1902)”, RSS 28:1
(2009), 179-210; Id., Don Rua e l’Istituto delle Figlie di Maria Ausiliatrice, tra continuità e innovazioni”.
In: G. Loparco e S. Zimniak (ed.), Don Michele Rua primo successore di Don Bosco. Atti del 5o convegno
dell’Opera Salesiana. Turim, 28 de outubro-1° de novembro de 2009. Roma: LAS, 2010, 185-217.
6
Ver testemunho do padre Rua no processo de beatificação de Dom Bosco, POS, 323.
7
Segundo o biógrafo do beato José Allamano, Dom Bosco fixara-se nela, em sua vida de caridade
e em sua possível valia como ajuda potencial na fundação de uma congregação feminina. Cf. I. Tubaldo,
Giuseppe Allamano: il suo tempo, la sua opera. Vol. I. Turim: Edizioni Missioni Consolata, 1982, 10-18.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Uma das sobrinhas de Benedita recorda que Dom Bosco, entre 1862
e 1871, nos tempos do padre Pestarino, enviou dois padres salesianos a
Castelnuovo para conversar com a senhorita Sávio.8 O objetivo era apre-
sentar-lhe a proposta de Dom Bosco de ser “fundadora” e “superiora-geral”
da congregação religiosa que tinha a intenção de fundar. Fracassaram por
causa de uma birra da sobrinha e a consequente intervenção da mãe da so-
brinha.9 Obviamente, embora os títulos de “fundadora” e “superiora-geral”
fossem excessivos, é possível que Dom Bosco tivesse pensado na senhorita
Sávio como sua colaboradora na fundação.

Maria Luísa Angélica Clarac, Filha da Caridade de São Vicente


Paulo, fundadora das Irmãs da Caridade de Santa Maria
É também possível que, em algum momento, Dom Bosco considerasse
como colaboradora na fundação a irmã Maria Luísa Angélica Clarac (1871-
1887).10 Este caso merece um comentário mais extenso.

Dom Bosco e irmã Clarac, colaboradores na fundação de uma congre-


gação feminina?
Dom Bosco manteve um relacionamento muito próximo com irmã Cla-
rac e apoiou sua obra. É possível, embora não provável, que em 1870, ou no
início de 1871, pensasse nela para que cooperasse na fundação das Filhas de
Maria Auxiliadora; é uma hipótese formulada por Pietro Stella.11 A questão está
em se ele considerou seriamente sua colaboração e a esperou de fato. A hipótese
de Stella baseia-se em dois tipos de evidência. De um lado, há palavras enigmá-
ticas atribuídas a Dom Bosco em conversa com padre Lemoyne em 1866.12 De
outro, o fato de Dom Bosco ter ajudado irmã Clarac em seu discernimento vo-
cacional e tê-la encaminhado a buscar a assessoria do bispo dom Moreno. Isso
a levou, posteriormente, a separar-se da comunidade das Filhas da Caridade.

8
M. E. Posada, Alle origini, 160-162.
9
Memorie di Benedetta Savio, datilografadas pela sobrinha, 5. A menina lançara-se aos joelhos
de Benedita e despertara a mãe com seus gritos.
10
Ver uma breve nota biográfica no capítulo XIV, p. 425-427.
11
P. Stella, Vita, 187-192.
12
MB VIII, 633. Em 24 de junho de 1866, padre Lemoyne perguntou a Dom Bosco se ele
pensava em fundar uma congregação feminina “afiliada à nossa Sociedade”. Dom Bosco respondeu:
“Sim. Também faremos isso. Teremos irmãs, mas ainda não”. Os biógrafos de Dom Bosco entendem
que ele já tinha planos sobre o grupo de Mornese. Mas P. Stella, Vita, 189-190, não está tão seguro
disso, dado o relacionamento próximo de Dom Bosco, e dos salesianos, com irmã Clarac e o fato de
que sua obra fosse muito semelhante à de Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Desramaut, como também Posada, acreditam que Dom Bosco pode ter
tido a ideia e, talvez, até gostaria de tê-la como colaboradora, mas não acredi-
tou que estivesse disponível. Em 1870, ainda era Filha da Caridade e diretora
de uma importante instituição de beneficência em Turim, muito semelhante
à de Dom Bosco. Além disso, mesmo depois de separar-se da comunidade
religiosa para fundar a sua, não duvidou de sua profissão, nem por um ins-
tante, nem deixou o hábito de Filha da Caridade de São Vicente de Paulo.
Posada escreve:

Era decidida, tenaz e intransigente em suas opiniões; sua personalidade estava


plenamente cheia do espírito de São Vicente de Paulo, compromisso que ela
jamais atraiçoaria. Ademais, estava à frente de um conjunto de obras para os
pobres, algumas das quais alheias ao apostolado específico de Dom Bosco.
Estes e outros fatores levam a duvidar seriamente de que Dom Bosco tivesse
pensado ou esperado a sua colaboração.13

Vista panorâmica de Mornese, desde Valponasca.

Talvez, mais do que colaboradoras na fundação, Dom Bosco tenha vis-


to em mulheres como a senhorita Sávio, irmã Maria Luísa Angélica Clarac,
madre Maria Henriqueta Dominici, das Irmãs de Santana da Divina Pro-
vidência, fundação da marquesa Barolo, e outras, alguns exemplos do novo
espírito de iniciativa feminina, que desejava para a congregação feminina
que ele projetava. A capacidade de iniciativa implicava empenho e carisma
para abraçar a vida religiosa e o apostolado, assim como um sólido espírito

M. E. Posada, Alle origini, 157. Ver discussão em M. C. Treacy, “Mother Marie Louise
13

Angélique and Don Bosco: an idea matures”, JSS 5 (1994), 133-159.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

de independência em relação ao predomínio religioso masculino imperante.


Irmã Clarac era certamente uma dessas mulheres, como o eram também as
que viviam a vida consagrada em seus próprios lares, quais “novas ursulinas”,
como a senhorita Sávio e as jovens de Mornese, Filhas de Maria Imaculada.
A reflexão anterior sobre se Dom Bosco pensava fundar uma congre-
gação de mulheres leva-nos a Mornese e ao relacionamento desenvolvido
gradualmente entre Dom Bosco e as Filhas de Maria Imaculada e o padre
Pestarino, diretor espiritual delas. Este relacionamento implica uma trans-
formação recíproca. Primeiramente, o grupo das Filhas de Maria Imaculada,
que se converteu em núcleo fundador do Instituto das Filhas de Maria Au-
xiliadora, evoluiu realmente como resultado da intervenção de Dom Bosco
e do contato que mantiveram com ele. Em segundo lugar, Dom Bosco, que
estava em processo de busca e tomada de decisões sobre a fundação de uma
congregação feminina, entrou também num processo de mudança, enquanto
procurava preservar a continuidade do grupo e ao mesmo tempo o orientava
para uma nova forma de vida e obra religiosa salesiana.
Segundo Posada,14 pode-se dizer que esta transformação se deu em três
etapas sucessivas que diferem em duração e caráter:

1. A nova orientação espiritual no interior do grupo das Filhas de Ma-


ria Imaculada derivada do contato com Dom Bosco (1860-1870).
2. A decisão, realmente histórica, que determinou a fundação do Ins-
tituto (1871-1872).
3. O sentido crescente de pertença amadurecido no grupo como re-
sultado de seu relacionamento com Dom Bosco (1872-1876). Este
esquema, cômodo, haverá de nos guiar na apresentação a seguir.

2. Dom Bosco, padre Pestarino e as Filhas de Maria


Imaculada, de Mornese (1860-1870)

As Filhas de Maria Imaculada, de Mornese


A Pia União das Filhas de Maria Imaculada teve início na paróquia de
Mornese por volta de 1851, por iniciativa de Ângela Maccagno (1832-1891).
Padre Domingos Pestarino, na época residente em Mornese, incentivou o gru-
po e tornou-se seu guia espiritual. A seu pedido, o teólogo genovês padre José
Frassinetti redigiu umas Regras, baseando-se num esboço de Ângela Maccagno.
14
M. E. Posada, El Instituto, 222.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Esta associação piedosa chamou-se “(novas ursulinas) Filhas de Maria Imaculada”,


que se puseram sob o patronato de Santa Úrsula e Santa Ângela Mérici.15
Os membros do grupo viviam como cristãs profundamente compro-
metidas. Dedicavam-se a várias obras na paróquia. Padre Pestarino propor-
cionava-lhes a direção espiritual regular em clima espiritual muito influen-
ciado pelo padre Frassinetti. O objetivo das Filhas de Maria Imaculada era
garantir “a santificação de seus membros e ajudar a salvação dos demais por
meio de obras corporais de misericórdia [...], especialmente ajudando as
mulheres pobres enfermas da localidade”.16
O grupo encontrou-se pela primeira vez com Dom Bosco por iniciativa
do padre Pestarino. As fontes não deixam claro como Dom Bosco se envol-
veu. Enquanto alguns garantem que o padre Pestarino “ofereceu” o grupo a
Dom Bosco sem perguntar a opinião delas, outros dizem que foi Dom Bosco
quem “tomou a iniciativa” depois de ouvir o padre Pestarino falar do grupo.

Maria Domingas Mazzarello e as Filhas de Maria Imaculada


Segundo os dados biográficos em nosso poder, quando a Pia União das
Filhas de Maria Imaculada foi fundada em Mornese, contava com 5 jovens,
entre as quais Maria Mazzarello; aos 17 anos, era a mais jovem e uma das mais
dedicadas. A data de fundação, portanto, é 1854. Além do apoio espiritual
recíproco e a santificação pessoal, a Pia União tinha também por finalidade
as obras de caridade, especialmente em favor dos pobres e mais necessitados.
Em 15 de agosto de 1860, Maria Mazzarello contagiou-se gravemente,
enquanto assistia pessoas afetadas pelo tifo na localidade Mazzarelli di Qua.
Embora recuperada, continuou sempre muito frágil. A enfermidade foi para
ela um momento de dura prova e crise; mas, pela sua aceitação e entrega a
Deus, acabou sendo um tempo de conversão e de vocação.
Em 1861, não podendo mais trabalhar no campo, Maria aprendeu a
costurar e, em 1862, com sua grande amiga Petronila Mazzarello, abriu em
Mornese uma oficina de costura para as meninas. Durante a década de 1860,
Maria Mazzarello, Petronila Mazzarello e outras jovens do grupo participavam
de obras de caridade, como cuidar de pequeno oratório ou visitar enfermos,
ao mesmo tempo em que trabalhavam na oficina de costura para as meninas.

15
Cf. G. Frassinetti, Opere edite ed inedite. Opere Ascetiche II. Roma: Postulazione Generale
dei Figli di Santa Maria Immacolata, 1909, 108ss. M. E. Posada, Giuseppe Frassinetti e Maria Dome-
nica Mazzarello: rapporto storico-spirituale. Roma: LAS, 1986. M. E. Posada, El Instituto, 221, nota 8,
identifica 1851 como o ano da fundação da Pia União, o que não parece correto.
16
“Regola della Pia Unione delle Figlie di S. Maria Immacolata (1885)” I, 1; III, 37. In: M. E.
Posada, El Instituto, 222, nota 12.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Casa em que nasceu Maria Domingas Mazzarello, em 9 de maio de 1837.

O encontro de Dom Bosco com padre Pestarino, primeiramente, e uma


visita posterior deste ao Oratório e sua profissão religiosa salesiana, prova-
velmente em 1864, alertaram Dom Bosco sobre a existência da Pia União
das Filhas de Maria Imaculada, em Mornese. Pela primeira vez, em 1864, e
em repetidas ocasiões no final da década de 1860, Dom Bosco pôde visitar
Mornese e o grupo de Maria Imaculada. Depois de ter visto Dom Bosco em
1864 e depois do muito que ouviu falar dele pelo padre Pestarino, Maria
Mazzarello ficou inteiramente cativada.
Em outubro de 1867, Maria Mazzarello deixou sua família para sempre
e, com algumas companheiras, transferiu-se para a Casa de Maria Imaculada,
propriedade do padre Pestarino, situada perto da igreja paroquial. O pequeno
grupo, aos poucos, foi se separando das “novas ursulinas” que, sob a liderança
de Ângela Maccagno, continuaram a viver com suas famílias. A separação
tornou-se definitiva em 1869. O grupo que morava na Casa de Maria Ima-
culada, sob a direção de Maria Mazzarello, conservou o nome de Filhas de
Maria Imaculada, embora fossem conhecidas apenas como as Filhas (filhas ou
jovens). Tinham vida comum, de pobreza e de privações, mas fervorosa e ale-
gre, incentivadas pela bravura e entusiasmo de Maria.17 O grupo dedicava-se
a obras de caridade em favor das meninas do lugar e ao cuidado de algumas
17
Ver o testemunho de Felicina Mazzarello, irmã mais nova de Maria Domingas, em MB X, 593ss.

703

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Dom Bosco: história e carisma 2

órfãs ou internas.18 Foi para este grupo que Dom Bosco enviou em 1869
uma simples “regra de vida” (horário-programa), que não era uma regra em
sentido estrito, nem um texto constitucional.

Encontro de Dom Bosco com o padre Pestarino


O primeiro encontro de Dom Bosco com Pestarino não ficou bem do-
cumentado. As fontes não estão de acordo sobre a data, nem sobre o lugar,
nem sequer sobre o conteúdo do encontro. Concordam, porém, em dois
pontos importantes: o entusiasmo do padre Pestarino em relação à persona-
lidade e à obra de Dom Bosco, e o interesse de Dom Bosco pelo grupo das
Filhas de Maria Imaculada, dirigido por Pestarino.
Em relação à data, uma Memória do cardeal Cagliero no Arquivo Cen-
tral das Filhas de Maria Auxiliadora afirma que esta reunião e os contatos
posteriores, aconteceram em 1860, 1861, 1862 e 1864; e que o padre Pes-
tarino “cheio de respeito pelas virtudes [de Dom Bosco], pensou em ir a
Turim”.19 A Cronistória e a biografia de Santa Maria Mazzarello, de Fernan-
do Maccono, confiam no testemunho do padre José Campi, padre salesiano
de Mornese, segundo o qual o encontro aconteceu “por volta de 1862”.20
Madre Clélia Genghini, autora da Cronistória e secretária-geral do Instituto
das Filhas de Maria Auxiliadora, baseando-se em sua pesquisa pessoal, de-
talha que as possíveis datas do encontro poderiam ser agosto, setembro ou
outubro de 1862.21
Quanto ao local, o cardeal Cagliero, em sua citada Memória, escreve:
“Recordo-me de o padre Pestarino ter-me dito que conheceu Dom Bosco
em Gênova, quando se encontraram na casa do padre Frassinetti, pároco de
Santa Sabina”. Padre Campi, todavia, afirma que os dois se conheceram num
trem, quando viajavam de Acqui a Alessândria. Esta é a versão aceita pela
Cronistória e por Maccono na biografia de Maria Mazzarello.
Dizem alguns que Dom Bosco era inicialmente bastante refratário à
ideia de fundar uma congregação feminina ou, ao menos, mostrava-se in-
deciso diante dessa possibilidade. Outros assinalam que este encontro “pro-
videncial” despertou nele a ideia de uma nova fundação. Posada considera
que nesse encontro, datado provavelmente no verão de 1862, Dom Bosco

M. E. Posada, Alle origini, 164.


18

Memoria del cardeal Giovanni Cagliero, 15 de fevereiro de 1922, em AGFMA.


19

20
Testimonianza di don Giuseppe Campi, em AGFMA; Cronistória I, 111; F. Maccono, Santa
Maria Domenica Mazzarello, I. Turim: Istituto FMA, 1960, 100.
21
Cronistória I, 111-114.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

encontrou o caminho definitivo para a realização de um projeto que estava a


amadurecer durante muito tempo. A partir do encontro de 1862, as fontes
esclarecem os acontecimentos de maneira mais precisa e confiável.

Dom Bosco e Mornese


Por meio do padre Pestarino, o grupo das Filhas de Maria Imaculada
foi-se comprometendo sempre mais com Dom Bosco.22 A influência de Dom
Bosco torna-se manifesta de três maneiras:

1. Por sua personalidade, que despertava admiração, respeito e vene-


ração por causa da fama de santidade.
2. Por meio de sua obra como educador, que impressionou profun-
damente não só as Filhas, como também a população de Mornese,
sobretudo quando em 1864 o santo visitou a pequena cidade pela
primeira vez, acompanhado de mais de 60 meninos, com a banda,
e ali permaneceu por quatro dias.23 As Filhas de Maria Imaculada
envolveram-se particularmente na preparação desta festa e, mais
tarde, na proposta feita por Dom Bosco a todos os cidadãos de que
em Mornese seria criada uma escola para meninos. As jovens do
grupo também ajudaram na construção do edifício.24
3. Através de um projeto especial que foi crescendo gradualmente
nos anos seguintes durante suas visitas a Mornese. Em 1867, por
exemplo, Dom Bosco visitou Mornese em várias ocasiões.25
O relacionamento entre Dom Bosco, padre Pestarino, as Filhas e Mor-
nese avançou e aprofundou-se em meados e fins de 1860. Testemunham-no
uma série de cartas de Dom Bosco ao padre Pestarino, que são documentos
importantes a demonstrar seu crescente interesse e grau de envolvimento.26
Nessa época, possivelmente em abril de 1869, Dom Bosco propôs às Filhas
de Maria Imaculada um programa de vida espiritual. Segundo a Cronistória, era

M. E. Posada, Alle origini, 161-169.


22

Racconto-memoria della fabbrica di Borgoalto, atribuído ao padre Pestarino, em ASC C609, 1,5,f,4.
23

24
Ibidem, 2ss; Cronistória I, 147-154.
25
Cronistória I, 204-205.
26
Cartas de fevereiro de 1865, 4 de outubro de 1867, 3 de dezembro de 1867, 25 de dezembro
de 1867, 8 de março (?), 28 de janeiro de 1868, 23 de fevereiro de 1868, 26 de outubro de 1868, 2 de
maio de 1870, 10 de julho 1870, em ASC A173: Lettere autografe, em Epistolario II Motto, 104. 413.
440. 453-454. 464-465.478. 491-492. 605-606; Epistolario III Motto, 205. 224.

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Dom Bosco: história e carisma 2

um “programa diário”, uma espécie de regra de vida. Tratava-se de um pequeno


caderno com o calendário e um conjunto de diretrizes que regulavam a vida
diária das Filhas. O caderno perdeu-se, mas seu conteúdo foi resumido mais
tarde pela irmã Petronila Mazzarello: 1o Esforçar-se por viver habitualmente na
presença de Deus; 2o Recorrer frequentemente a pequenas orações. 3o Ser de-
licada, paciente, amável em todas as ações. 4o Vigiar as meninas com atenção;
mantê-las sempre ocupadas; ajudá-las a desenvolver uma piedade simples, sin-
cera e espontânea.27
Que fosse uma simples “regra de vida” fica fora de dúvida. Romero es-
creve: “Sem querer entrar na questão da existência e da data desta Regra,
parece que se pode afirmar que não se trata de um texto de regras que regem
a vida religiosa de uma comunidade”.28
As Filhas de Maria Imaculada viram-se efetivamente levadas, embora de
forma indireta, para a órbita de Dom Bosco durante esses dez anos de mu-
dança gradual e de transformação, por meio de um processo verdadeiramente
espiritual. Foi a expressão de uma atitude interior comum, que se manifestava
na admiração das Filhas por Dom Bosco e sua obra e em sua determinação de
deixar-se guiar por ele. Dom Bosco, por sua vez, demonstrou interesse pelo
grupo; ao mesmo tempo, avaliou as possibilidades de futuro enquanto seus
contatos com as Filhas lhe permitiam conhecer melhor sua espiritualidade e
trabalho apostólico.
A Memória autógrafa do padre Pestarino, que inicia o relato da fundação
em 1871, confirma a decisão de Dom Bosco de fundar uma congregação para
a educação cristã de meninas pobres e que para isso contava com Mornese.
Escreveu em terceira pessoa:

Em 1871, o reverendo sacerdote Dom Bosco expressou ao padre Domingos


Pestarino [...] seu desejo de fazer algo para a educação cristã das meninas pobres,
e disse que Mornese seria o lugar mais adequado [...], pois já existia há vários
anos a União de jovens sob o título de Maria Imaculada e de Novas Ursulinas.29

Em janeiro de 1871, padre Pestarino, que participava das Conferências


anuais de São Francisco de Sales no Oratório, informou sobre os progressos
feitos em Mornese e sobre a escola que estava construindo. Dom Bosco falou
com ele de seus “grandes planos”. De volta a Mornese, em 31 de março, pa-
dre Pestarino comprou a casa Carante, no bairro alto ocidental da cidade, a

27
Cronistória I, 222-224.
28
C. Romero, Alle origini, 32.
29
D. Pestarino, Memoria autografa, manuscrito A, em AGFMA.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

fim de ter mais terreno para a escola internato.30 Seria a residência temporária
das irmãs, antes de se transferirem para a escola. Dom Bosco, nessa época,
inícios de 1871, escolhera definitivamente Mornese como o lugar para con-
cretizar seus planos.

Dom Bosco consulta seu Conselho


Amadei, nas Memórias Biográficas, informa sem indicar a fonte, que em
24 de abril de 1871, Dom Bosco consultou seu Conselho sobre a fundação,
dando-lhe um tempo de discernimento. Passado um mês, em 24 de maio, o
Conselho deu seu apoio. Stella aceita a informação.31
Desramaut, seguindo Posada, mostra-se mais duvidoso. A informação
não provém das atas das reuniões do Conselho, pois em 1871 não as houve,
mas provavelmente da biografia de Maria Mazzarello, de Maccono. Este, por
sua vez, indica que sua fonte foi um “livro inédito de memórias conservado
no arquivo central das FMA”. Posada afirma que esse material escrito sobre
as origens do Instituto é de data posterior. O mais antigo existente traz a data
por volta de 1887 e baseia-se em narrações orais.
É muito provável que Dom Bosco falasse do tema com seu Conselho.
Padre Albera declarou mais tarde que houve uma consulta, embora a situe
em 1870 [!]. Levando tudo em consideração, parece que a existência de uma
reunião do Conselho, em 24 de abril de 1871, como está nas Memórias Bio-
gráficas, é uma dedução que teve acolhida na tradição das Filhas de Maria
Auxiliadora. Seja como for, pode-se dar por certo que em abril de 1871, Dom
Bosco tomara uma decisão.

3. Dom Bosco procede à fundação e programa


as Constituições
Colaboração de madre Henriqueta Dominici
Em 24 de abril de 1871, início do mês de Maria Auxiliadora, Dom Bos-
co enviou uma cópia, com anotações, das Constituições Salesianas a madre
Henriqueta Dominici, superiora-geral das Irmãs de Santana da Divina Provi-
dência. Na carta de apresentação, pedia-lhe que esboçasse um projeto de cons-
tituição para sua nova congregação feminina tendo por base as Constituições
Salesianas. Encerrava-se, assim, o período de discernimento, um processo que,

30
MB X, 592ss.
31
MB X, 594ss. P. Stella, Vita, 188.

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Dom Bosco: história e carisma 2

com a mediação do padre Pestarino, desembocou na decisão de Dom Bosco


em favor das Filhas de Maria Imaculada, de Mornese, e de Maria Mazzarello,
que nesse ínterim chegara a ser diretora espiritual do grupo e, em breve, seria
a líder espiritual da nova congregação. Buscando a colaboração de madre Do-
minici, Dom Bosco escrevia:

4/24/71
Estimada Reverenda Madre,
Coloco em suas mãos a Regra (regulamento) de nossa Congregação [Salesia-
na]. Por favor, tenha a bondade de ler e ver se é possível adaptá-la a um insti-
tuto de religiosas, como já tive a honra de explicar-lhe pessoalmente.
A senhora deveria começar pelo [capítulo] 3, o fim desta instituição, as Filhas
de Maria Imaculada. Por isso, [sinta-se livre] de eliminar ou acrescentar o que,
segundo o seu entendimento, proceda para a fundação de um Instituto, cujas
filhas seriam verdadeiras religiosas aos olhos da Igreja, mas também cidadãs
livres aos olhos da sociedade civil.
Sentir-me-ia muito feliz se utilizasse capítulos ou artigos do Regulamento [da
Congregação] de Santana, caso pudessem ser adaptados.
Quando a senhora crer conveniente que nos reunamos para conversar, faça-
-me sabê-lo por meio de um dos nossos clérigos ou dos mensageiros que
com frequência têm a ocasião de passar por sua casa. Se conseguirmos ganhar
algumas almas, será tudo mérito seu.
Deus abençoe a senhora e sua família religiosa. Recomendo estes meus alunos
e a mim mesmo à caridade de suas santas orações. Seu servo agradecido e
devoto,
Padre João Bosco.32

Pontos-chave e comentários adicionais


Deduz-se da carta que, em 4 de abril de 1871, Dom Bosco tomara
algumas decisões: 1a iria fundar uma congregação religiosa de mulheres; 2a
teria as mesmas características da Sociedade Salesiana: verdadeiras religiosas
perante a Igreja e cidadãs completamente livres perante a sociedade civil; 3a
32
Dom Bosco a madre Henriqueta Dominici, 24 de abril de 1871, em Epistolario III Motto, 325;
transcrição do manuscrito, em P. Stella, Vita, 188, nota 3. Madre Henriqueta Dominici (1829-1894)
nasceu em Carmagnola Borgo Salasio, perto de Turim. Entrou no Instituto fundado pela marquesa Barolo,
as Irmãs de Santana da Divina Providência, que se dedicava também à educação das jovens operárias.
Foi superiora-geral durante trinta e dois anos. Dom Bosco acertava confiando em sua sabedoria espiri-
tual e em sua capacidade administrativa. Foi beatificada em 1978.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

as Filhas de Maria Imaculada, de Mornese, constituiriam a nova sociedade;


4a a nova congregação seguiria o modelo da Sociedade Salesiana. Além de
indicar a situação jurídica do novo Instituto segundo esse modelo, a carta
também oferece uma visão sobre a origem da primeira regra de vida das Fi-
lhas de Maria Auxiliadora. É interessante que Dom Bosco recorresse a uma
mulher para a elaboração do rascunho da regra e que, para isso, escolhesse
a superiora de um Instituto religioso dedicado à educação das meninas da
classe trabalhadora.
Madre Dominici, diretamente ou por meio de sua secretária, irmã Fran-
cisca Garelli, adaptou as Constituições dos salesianos para uma congregação
de mulheres, e elaborou um rascunho que Dom Bosco enviou ao padre Pesta-
rino para que o revisasse e comparasse com a regra do grupo de Maria Imacu-
lada. A cópia original deste primeiro rascunho de irmã Garelli, denominado
Rascunho A, perdeu-se. Mas uma das Filhas copiou o texto, ditado pelo padre
Pestarino, com a data de 24 de abril de 1871.33 Quanto à data deste rascunho,
escreve Desramaut:

Parece que o manuscrito Rascunho A das Constituições do Instituto, datado


em 29 de janeiro de 1872, foi o texto enviado por Dom Bosco ao padre
Pestarino e, com toda probabilidade, o primeiro texto utilizado [...]. Resta
certo, então, que a decisão de Dom Bosco tornou-se definitiva em janeiro de
1872, opção com que provavelmente se comprometera em abril de 1871.34

Seja como for, a comparação deste texto com as Constituições Salesianas


e as Constituições da Congregação de Santana evidencia claramente sua de-
pendência em relação ao texto de Dom Bosco. É provável, por exemplo, que
Dom Bosco já tivesse especificado o fim da nova sociedade, porque enviou a
madre Dominici um texto manuscrito em língua italiana, provavelmente o
de 1863-1864, pedindo-lhe que começasse pelo capítulo 3o: Finalidade deste
Instituto, as Filhas de Maria Imaculada.35 Neste primeiro rascunho, o artigo
1o é claramente paralelo com as modificações pertinentes ao artigo 1o Fim da
Sociedade Salesiana:

O fim do Instituto das Filhas de Maria Imaculada, ou de Maria Auxilia-


dora, é não só atender à própria perfeição, mas também contribuir para a

33
É a data em que, segundo as Memórias Biográficas, Dom Bosco comprometeu-se, diante do
Conselho, a fundar uma congregação feminina.
34
F. Desramaut, Don Bosco, 810.
35
Como o capítulo 3o, sobre o fim do Instituto, estava em italiano, o manuscrito tem de ser o
texto de 1864 (Gb) ou outro anterior. Os textos posteriores a 1864 foram redigidos em latim e impressos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

salvação do próximo, proporcionando educação moral e religiosa às meni-


nas da classe operária.36

Há algumas adaptações da regra da Congregação de Santana, que não


são realmente salesianas. Por exemplo: os artigos 1o e 2o do capítulo sobre o
Fim especificavam que a finalidade do Instituto seria a educação das meninas
da classe operária (fanciulle del popolo) e de meninas das aldeias e vilas pobres
(giovanette dei villaggi e dei paesi poveri), respectivamente, já o artigo 3o falava
de um nível social superior de jovens. Dizia:

3. Poderão, porém, admitir em suas casas meninas da classe média (di medio-
cre condizione), mas jamais se proporcionará instrução nas ciências e artes que
sejam próprias da educação das filhas de famílias nobres e ricas. Colocarão
toda a sua preocupação em instruí-las na piedade e em tudo que tenda a fazer
delas boas cristãs e boas mães de família.37

Este artigo foi tomado das Constituições das Irmãs de Santana e reflete
a mentalidade classista e sexista que prevalecia no século XIX. Esse é seu
aspecto negativo. Mas se essa mentalidade particular pudesse ser superada,
como finalmente aconteceu, o âmbito da atividade educativa do Instituto
seria ampliado.
Não sabemos se Dom Bosco leu e aceitou o artigo tal como estava no
primeiro rascunho. Ele não estava interessado em tomar posição sobre o fe-
minismo incipiente e se as meninas deviam ter igualdade de oportunidades
educativas. Sua preocupação era que o aluno, menino ou menina, chegasse
a ser bom cristão e bom cidadão, capaz de ganhar a vida e situar-se na so-
ciedade. Não obstante, o artigo foi modificado ligeiramente em rascunhos
posteriores e reescrito no rascunho de 1885.
Durante os anos 1871-1878, foram feitos sete rascunhos das Constitui-
ções. Estes cadernos contêm notas marginais e comentários à mão de Dom
Bosco e do padre Pestarino. O rascunho de 1875 é notável pelas revisões
introduzidas por Dom Bosco enquanto assistia às celebrações em honra de
São Paulo da Cruz na cidade de Ovada; ele queria apresentar o manuscrito

36
C. Romero, Costituzioni, 59; F. Desramaut, Don Bosco, 810. Auxiliadora dos Cristãos, que
adquiriu grande ressonância religiosa e política na década da unificação da Itália (década de 1860 e
inícios de 1870), aparece aqui, pela primeira vez, como nome do Instituto. Depois da construção da
igreja, nos anos sessenta, o Instituto das Filhas de Maria Imaculada foi o monumento vivo, o segundo,
dedicado a Maria Auxiliadora dos Cristãos.
37
C. Romero, Costituzioni, 43, onde Romero apresenta os artigos das Filhas de Santana e o das
Filhas de Maria Auxiliadora um ao lado do outro.

710

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

ao bispo de Acqui para sua aprovação. As Constituições do Instituto foram


impressas pela primeira vez em 1878.38

Dom Bosco, enfermo em Varazze, continua a ocupar-se com a


fundação (1871-1872)
Em fins de junho de 1871, Dom Bosco foi a Roma para participar da
celebração do jubileu de prata de Pio IX como papa (1846-1871). Em agosto
de 1871, esteve ocupado com a mediação da nomeação de bispos para as
sedes vacantes. Em fins de 1871, participou da recepção do recém-nomeado
arcebispo de Turim, dom Lourenço Gastaldi, adoecendo nessa ocasião. Sen-
tindo-se melhor, mas não sem incômodos, Dom Bosco partiu de Turim para
visitar os salesianos da Ligúria. Ali se sentiu seriamente enfermo e precisou
ficar acamado na casa recentemente fundada em Varazze. A “enfermidade de
Varazze” foi longa (dezembro de 1871-fevereiro de 1872) e séria, embora,
aparentemente, não tenha ameaçado sua vida.39
Em 7 de janeiro de 1872, quando Dom Bosco, embora melhor, ainda
estava acamado, um grupo de pessoas vindas de Mornese visitaram-no para
cumprimentá-lo, apresentar-lhe seus respeitos e presenteá-lo com alguns pro-
dutos. Padre Pestarino precedera-os em 3 de janeiro40 e, durante a visita, falou
com Dom Bosco sobre a fundação. Sempre em terceira pessoa, Pestarino
relata o diálogo em suas Memórias:
Certa ocasião, quando padre Pestarino estava sozinho com o enfermo aca-
mado, Dom Bosco perguntou-lhe como caminhavam as coisas em Mornese
e se havia alguém [entre as jovens] adequada para a finalidade [a fundação].
Também queria saber se as que pertenciam ao grupo eram numerosas e se es-
tavam bem dispostas espiritualmente. Padre Pestarino garantiu-lhe que podia
testemunhar a disposição delas de obedecer e fazer qualquer sacrifício que
lhes fosse pedido pelo bem de suas almas e o serviço do próximo. “Se é assim”,
respondeu Dom Bosco, “pode ir adiante com o que conversamos no verão
passado (junho-agosto de 1871) em Turim. Quando voltar para Mornese, se
crer que é o momento de fazê-lo, reúna-as e faça com que, por votação, no-
meiem um conselho para eleger a superiora, as assistentes etc., de acordo com
as regras que prepararam para elas. Peça-lhes também que reúnam as demais
jovens do povoado que pertencem à associação de Maria Imaculada”.41

38
Para um estudo comparativo detalhado do texto constitucional e seu desenvolvimento, ver
C. Romero, Costituzioni per l’Istituto delle Figlie di Maria Ausiliatrice (1872-1885): testi critici. Roma:
LAS, 1983; e análise de Amadei, em MB X, 599ss.
39
MB X, 233ss. F. Desramaut, Don Bosco, 821-824.
40
MB X, 273s.
41
Memoria di don Domenico Pestarino, editada por C. Romero, Costituzioni, 50.
711

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Dom Bosco: história e carisma 2

O tom do texto parece indicar que as Filhas de Maria Imaculada tinham


alguma dificuldade para escolher seus membros. Agora que estavam em co-
municação frequente com Dom Bosco, deviam decidir se optavam por seguir
o tipo de compromisso de vida exigido pela sua proposta de “vida religiosa”.
Uma parte das novas ursulinas, Filhas de Maria Imaculada, sob a direção de
Ângela Maccagno, recusava claramente ser “religiosa”, percebendo a mudança
radical em seu estilo de vida que isso implicava. Outro grupo aceitava sem
mais a mudança, parecendo àquelas jovens que se tratava simplesmente de
concluir uma decisão que já tinham meditado em seu íntimo. O pequeno
grupo que vivia em comunidade com Maria Mazzarello na Casa de Maria
Imaculada estava disposto e o desejava. Entretanto, outras se uniram mais
tarde, demonstrando que também elas intuíam a mudança que isso supunha.42
O texto também demonstra que teria agradado a Dom Bosco incluir no
novo Instituto as jovens que, dirigidas por Ângela Maccagno, tinham optado
por viver em suas casas.43 Também indica que o texto das Constituições já
alcançara um avanço muito importante, como sugere a menção a membros
do conselho.
Antes de o padre Pestarino despedir-se de Dom Bosco, ainda acamado,
eles trataram do tema do hábito, da sua cor e estilo. O primeiro rascunho das
Constituições, ao tratar do hábito, não especificava a cor e o estilo; deixava-o
para mais tarde. A preferência de Dom Bosco era por algo semelhante ao que
usavam as mulheres da classe média da época: vestido marrom, uma pequena
capa, mangas compridas com uma estreita faixa de veludo preto nos punhos e
uma touca azul para usar na igreja e na rua. Padre Pestarino levara um vestido
assim, confeccionado por Maria Mazzarello; Dom Bosco fez com que Enria,
seu enfermeiro, o ajustasse. Passou-se um bom tempo sem nada se decidir.
Durante muitos anos, devido à própria pobreza, as Filhas de Maria Auxiliado-
ra usaram uma roupa comum. Somente em 1875, preocuparam-se com um
hábito religioso; o desenho e o estilo sofreram diversas mudanças até a con-
fecção final, feita para a cerimônia da tomada de hábito em agosto de 1876.44

As eleições de 29 de janeiro de 1872


Em conformidade com a conversa tida com Dom Bosco, enfermo em
Varazze, e seguindo seu conselho, padre Pestarino, de volta a Mornese, pro-
42
Cronistória I, 272-274.
43
É significativo que em 1872, Ângela Maccagno tentasse unir, sob a direção de Dom Bosco,
as novas ursulinas, que viviam em suas casas, com o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora e que
escrevesse uma regulamentação para isso. Cf. C. Romero, Costituzioni, 26.
44
MB X, 608s; XI, 360ss; XII, 286.

712

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

moveu as eleições no dia da festa de São Francisco de Sales de acordo com


o capítulo 3o do Rascunho A das Constituições. Ele anotou o acontecimento
em sua Memória: diante do crucifixo, colocado numa mesa entre velas acesas,
as 27 jovens presentes, depois de recitarem o Veni Creator, votaram. Padre
Pestarino e Ângela Maccagno leram as cédulas: Maria (Mazzarello) obteve a
maioria absoluta de 21 votos na primeira votação; Petronila (Mazzarello) 3;
Felicidade (Mazzarello), 2; e Joaninha (Ferrettino), 1.
Padre Pestarino acrescenta:

Ao observar a votação, Maria Mazzarello pôs-se em pé e pediu que a dispen-


sassem. Disse que agradecia a todas, mas acreditava que não podia levar a cabo
tal missão. Algumas das presentes disseram-lhe que a tinham votado e, por
conseguinte, devia aceitar; caso contrário, as outras também não aceitariam.
Ela, porém, persistia; não se sentia capaz e recusava, a não ser que a forçassem
a aceitar por obediência. Depois de algumas outras observações (padre Pes-
tarino) acrescentou que não decidiria o assunto, mas aguardaria a opinião de
Dom Bosco. Maria Mazzarello sugeriu que Dom Bosco escolhesse a primeira
superiora, o que satisfez a todas. Aprovaram a sugestão, mas disseram-lhe que,
enquanto isso, ela devia ser a primeira assistente com o título de vigária, de
acordo com as regras.
O grupo deu continuidade à eleição da segunda assistente, Petronila (Mazza-
rello), que foi eleita com 19 votos. As duas [Maria e Petronila] retiraram-se
e o grupo nomeou Felicidade [Mazzarello] como mestra das noviças, e Joana
[Ferrettino], administradora, a professora de escola (Ângela) Maccagno, vigá-
ria ou primeira assistente para as que viviam em suas casas, na cidade.45

É óbvio o papel preponderante de Dom Bosco na fundação, por mais


que alguma vez tenha sido atribuído erroneamente ao padre Pestarino, não
só na redação das Constituições como também na formação do primeiro
conselho geral do Instituto.

A cerimônia da profissão de 5 de agosto de 1872, data oficial


da fundação
As eleições foram feitas enquanto Dom Bosco convalescia em Varazze.
Ele retornou a Turim em 16 de fevereiro de 1872, e o padre Pestarino estava
disponível para dar informações a ele e aos diretores reunidos por ocasião das
Conferências de São Francisco de Sales.

45
Memoria di don Domenico Pestarino, editada por C. Romero, Costituzioni, 50.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Entre fevereiro e agosto de 1872, provavelmente em maio, a nova comu-


nidade de Mornese mudou-se aos poucos para a escola que padre Pestarino
construíra na região chamada Borgoalto, para que servisse como internato de
meninos.46 O collegio, converteu-se, assim, na casa mãe das Filhas de Maria
Auxiliadora e, ao mesmo tempo, em escola para meninas, não sem o protesto
dos cidadãos.
Ao falar do dia da profissão, 5 de agosto de 1872, Posada afirma que o Ins-
tituto recebeu a marca eclesial do bispo José Maria Sciandra, sucessor de dom
Contratto, bispo de Acqui, enquanto Dom Bosco punha a marca salesiana.47
A atitude de Dom Bosco, contudo, foi um tanto desconcertante na ocasião.
Dom Sciandra estivera doente e, nesses dias, estava convalescendo em
Mornese, hospedado pelo padre Pestarino na casa de sua mãe. Pestarino, in-
centivado por padres amigos, aproveitou a presença do bispo para fazer um
retiro espiritual que culminaria, com presença e honras episcopais, na tomada
de hábito e na profissão das novas irmãs.48 Dom Bosco, certamente, deu seu
consentimento, mas todos ficaram surpreendidos quando disse que não par-
ticiparia. Ao inteirar-se disso, o bispo pediu que Dom Bosco estivesse presen-
te e que padre Pestarino lhe escrevesse nesse sentido. Dom Bosco respondeu
que não se tinha recuperado plenamente de sua doença, que estava ocupado
nos exercícios espirituais, que para a cerimônia bastava a assistência do bispo
e que padre Pestarino tinha todas as competências necessárias. Como não
podia obrigar a Dom Bosco com cartas, dom Sciandra mandou seu secretário
a Turim com a ordem de trazer Dom Bosco a Mornese no dia seguinte. Dom
Bosco cedeu, e chegou a Mornese na tarde de 4 de agosto.49
Dom Bosco participou da solene cerimônia da “tomada de hábito” e da
profissão, em 5 de agosto, festa de Nossa Senhora das Neves, e dirigiu algu-
mas palavras às novas religiosas. Imediatamente depois, foi embora com certa
pressa, deixando até mesmo de assinar a ata da cerimônia.50
Como explicar esse desconcertante modus agendi de Dom Bosco? Talvez
sentisse que devia dar a preferência ao bispo num assunto que, com razão, lhe
pertencia como superior-geral do Instituto, de acordo com as Constituições
(art. 1o do capítulo sobre a organização geral do Instituto).51 Ele considerava

Para a data e as circunstâncias, ver MB X, 611ss.


46

M. E. Posada, El Instituto, 226.


47

48
Os biógrafos falam de “tomada de hábito”, mas terá de ser entendido à luz do que se disse
sobre o hábito.
49
Cronistória I, 297 e nota nas p. 354-365. Os fatos são apresentados como aqui; a tradição das
FMA só menciona a hora da chegada de Dom Bosco, às 7, 9 ou talvez 11 da noite.
50
Cronistória I, 296-306; M. E. Posada, El Instituto, 227.
51
Cf. C. Romero, Costituzioni, 212.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

o Instituto como parte da Sociedade Salesiana ou ao menos como um apên-


dice dela. Assim indicava claramente em 1874, em seu relatório à Sagrada
Congregação dos Bispos e Regulares, ao solicitar a aprovação definitiva das
Constituições Salesianas: “Como apêndice e dependente da Congregação Sa-
lesiana, a Casa de Maria Auxiliadora dos Cristãos, fundada com a aprovação
da autoridade eclesiástica na diocese de Acqui [...]”. Fez a mesma afirmação
em seu relatório trienal à Santa Sé em 1879. Esta também é a razão pela
qual nunca solicitou a aprovação em separado da Santa Sé para o Instituto e
mostrou-se satisfeito com a aprovação diocesana de 1876. Por isso, do mes-
mo modo que havia recebido os votos de seus salesianos em 1862, acreditava
que devia receber os da comunidade que ele presidia como superior-geral.
Dom Sciandra sempre manteve boas relações tanto com Dom Bosco
como com os dois grupos de Mornese. E resolveu a situação das jovens dirigi-
das por Ângela Maccagno, que Dom Bosco tentara “trazer para o redil”, mas
que queriam, muito mais, conservar seu caráter leigo. O bispo declarou-as
oficialmente novas ursulinas.52

4. Nota sobre o desenvolvimento inicial histórico e jurídico


do Instituto (1872-1876)
Parece que a primeira comunidade das Filhas viveu e trabalhou em Mor-
nese numa espécie de isolamento, embora a escola tenha prosperado. As ir-
mãs, também aparentemente, não estavam de todo cientes do seu novo status
como Instituto e do que isso implicava. Mas, como assinala Posada:

Alguns fatos quase imediatamente posteriores à fundação demonstram um


progressivo amadurecimento na consciência e na estruturação jurídica do Ins-
tituto, consciência que incide na relação que se estabelecera entre a comuni-
dade primitiva e seu fundador.53

O desenvolvimento institucional pode ser assim resumido brevemente: 1o


Pelo decreto de 19 de agosto de 1873, dom Sciandra, bispo de Acqui, concedia
ao padre Pestarino, diretor salesiano local, e aos seus sucessores “privilégios paro-
quiais” em relação às irmãs.54 Padre Pestarino morreria menos de um ano depois,
em 15 de maio de 1874. 2o Em 1874, vivendo ainda o padre Pestarino, Dom
Bosco nomeou o padre Cagliero, diretor geral do Instituto; uma importante
52
Cf. C. Romero, Costituzioni, 83-84.
53
M. E. Posada, El Instituto, 227.
54
C. Romero, Costituzioni, 77.

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Dom Bosco: história e carisma 2

decisão jurídica que se justificava pela impossibilidade de Dom Bosco cuidar


pessoalmente do Instituto, do qual previa uma rápida expansão.55 Após a mor-
te do padre Pestarino, vários salesianos foram nomeados diretores locais, que
ajudaram a fortalecer o sentido de pertença salesiana na comunidade.56 3o No
momento da nomeação do padre Cagliero diretor geral, Dom Bosco designou
Maria Mazzarello como superiora-geral do Instituto, como era exigido pela lei
da Igreja. Até então, ela presidira a comunidade como vigária, como se concor-
dou nas eleições de 29 de janeiro de 1872, quando foi deixada a Dom Bosco
a decisão sobre o lugar que ela devia assumir na comunidade. Dom Bosco, em
1874, decidiu que Maria Mazzarello era a superiora da comunidade, não só sua
vigária: “superiora-geral do Instituto”, foi sua clara disposição final.57 4o Dom
Bosco reviu as Constituições de 1875 (Manuscrito F) com a finalidade de obter
a aprovação eclesiástica diocesana de dom Sciandra, bispo de Acqui. O manus-
crito é assinado por Dom Bosco, pelo padre Tiago Costamagna, diretor local, e
pela irmã Maria Mazzarello, a cuja assinatura Dom Bosco acrescentou, de pró-
prio punho, “Sup.”58 [superiora]. Posada assinala que o pedido de aprovação do
Instituto e de suas Constituições é um documento de grande importância, pois
revela “os inícios, a fundação, a finalidade e o desenvolvimento do Instituto”. A
aprovação foi concedida em 26 de janeiro (?) de 1876.
As cartas escritas por Maria Mazzarello a Dom Bosco nestes anos de-
monstram que estava plenamente ciente da sua situação jurídica como su-
periora-geral. Deixam ver, também, sua dependência pessoal e a do Instituto
em relação a Dom Bosco como seu superior maior. Por exemplo, ela escreve:
55
Embora Mornese ainda fosse a única casa do Instituto, quando Dom Bosco visitou as irmãs por
ocasião da missa de réquiem pelo padre Pestariano, em 15 de junho de 1874, impôs o hábito a 13 postu-
lantes e recebeu a primeira profissão de 9 noviças, entre as quais estavam Emília Mosca e Henriqueta Sor-
bone; as 2 desempenharão funções importantes no Instituto. No ano anterior, em 15 de agosto de 1873,
impusera o hábito a 9 postulantes e presidira a primeira profissão de 3 noviças. Cf. MB X, 634s. 621s.
56
Na revisão de 1875, Manuscrito F, que Dom Bosco terminou para obter a aprovação dioce-
sana, especificava que “o diretor geral será um membro do Capítulo Superior da Sociedade Salesiana”
e que “o diretor local será alguém a quem seja confiada a direção de qualquer casa do Instituto”. Em
esboços anteriores, previa-se que o Instituto “dependia diretamente do superior-geral da Sociedade de
São Francisco de Sales” (M. E. Posada, El Instituto, 227, nota 40, que cita G. Bosco, Scritti, 209-252).
Após a morte do padre Pestarino, em 15 de maio de 1874, Dom Bosco nomeou padre José Cagliero
como diretor local; este morreu em 5 de setembro de 1874. Sucedeu-o padre Costagmagna, e, quando
este partiu para a Argentina, em 1877, liderando o terceiro grupo missionário de salesianos e salesianas,
padre Lemoyne ficou nesse cargo até 1883.
57
O título “madre-geral” já se encontra codificado no rascunho da Regra de 1874-1875 (Ma-
nuscrito D). Cf. M. E. Posada, El Instituto, 228, nota 42, que cita G. Bosco, Scritti, 85-89.
58
Lemoyne, citado por Amadei, afirma que Maria Mazzarello “não possuía uma boa instrução,
porque Mornese não tinha escola para meninas. Podia ler, mas não escrever”. Amadei apressa-se a
acrescentar em nota que “aprendeu com rapidez a escrever com Emília Mosca”, uma jovem educada e
de boa família que professara em 1874 (MB X, 644, nota).

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Permita-me, Rev. Superior Maior, me recomendar às suas eficazes orações,


para que possa cumprir fielmente todas as obrigações às quais meu cargo me
obriga e para que corresponda às grandes graças que o Senhor me concedeu,
assim como às próprias expectativas de sua Reverência. Peça com oração per-
suasiva a Maria Santíssima que me ajude a praticar o que tenho que ensinar a
outras, que recebam de mim o exemplo que meu cargo me obriga a dar-lhes.59

O vínculo espiritual que se criara entre Maria Mazzarello e Dom Bosco,


espontâneo no início, fortalecido depois pela decisão histórica da fundação,
foi selado quando o Fundador obteve a aprovação eclesial oficial do Instituto
e de suas Constituições e “assumiu in proprio a paternidade real do Instituto
aos olhos da Igreja”.60 Pela mesma razão, esta ação também confirmou Maria
Mazzarello em seu papel de mãe e mestra.
Segundo a citação de Amadei nas Memórias Biográficas, Pio IX fez o se-
guinte comentário no Decreto sobre as virtudes heroicas de Maria Mazzarello:

Esta jovem frágil, simples, camponesa pobre, que recebera apenas uma edu-
cação elementar, manifestou logo um talento singular, distinguido pela lide-
rança. Foi um rico talento, verdadeiramente! E o tinha a ponto de São João
Bosco [...], um experimentado conhecedor dos homens e um mestre na arte
de governar, tê-lo logo descoberto e posto para funcionar. A sabedoria e efi-
cácia dessa escolha foram demonstradas, tanto na firme e sólida fundação do
novo Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora como em seu rápido e surpre-
endente crescimento e desenvolvimento.61

Ao reconhecer a extraordinária liderança de Maria Mazzarello no go-


verno do Instituto, além de seu papel de mãe e mestra, o Papa reconhecia
implicitamente seu papel de cofundadora. A missão que Maria Mazzarello
foi chamada a cumprir na Igreja e, portanto, sua vocação específica foi ser
mãe e cofundadora do Instituto. Há que se sublinhar que foi a cofundadora,
histórica e juridicamente, não um mero instrumento para a fundação do Ins-
tituto. Isso se deve ao seu papel de mãe e, portanto, de educadora de uma
nova família religiosa.
Quanto a isso, devem-se assinalar três aspectos importantes do seu caris-
ma. O primeiro refere-se à sua posição central no grupo, antes da fundação e
durante esta. O segundo refere-se à sua capacidade posterior de dirigir e guiar
59
Maria Mazzarello a Dom Bosco, Mornese, 22 de junho de 1874, em M. E. Posada, El
Instituto, 229.
60
M. E. Posada, El Instituto, 229.
61
MB X, 645s, citando o decreto papal Postquam Deus, 3 de maio de 1936.

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Dom Bosco: história e carisma 2

o Instituto em seus inícios e na primeira expansão. O terceiro refere-se à sua


capacidade de educar as irmãs na vida espiritual de maneira especificamente
salesiana, uma síntese pessoal do espírito salesiano de Dom Bosco, possível
graças à abundância de dons do Espírito Santo, que coroou uma vida de as-
cetismo, dedicação e amor.62
Amadei acrescenta, como comentário:

De fato, foi esse o segredo do admirável desenvolvimento do Instituto: fide-


lidade às diretrizes e conselhos de sua santa fundadora em todas as coisas!
O ano de 1874 assinala a abertura da primeira casa em Borgo San Martino
[...]. À morte de Maria Mazzarello (1881), o Instituto contava com 26
casas, 139 irmãs e 50 noviças. À morte de Dom Bosco (1888), possuía 50
casas, 390 irmãs e 99 noviças, e à morte do padre Rua (1910), 294 casas,
2.666 irmãs e 255 noviças.63

62
Cf. M. Midali, Madre Mazzarello: il significato del titolo di Confondatrice. Roma: LAS, 1982.
63
MB X, 646s.

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Apêndice

Dois padres santos desempenharam um papel importante na história


das origens do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora: José Frassinetti e
Domingos Pestarino. Eles foram os responsáveis de reunir e guiar o grupo
de jovens, as Filhas de Maria Imaculada, com as quais Dom Bosco e Maria
Mazzarello fundaram o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora.

PADRE JOSÉ FRASSINETTI (1804-1868)

José Frassinetti, pároco, escritor e fundador nasceu em Gênova no dia


15 de dezembro de 1804. Ordenado padre em 1827, exerceu o ministério
paroquial, primeiramente em Quinto al Mare (Gênova); depois, a partir de
1839 até sua morte, em Gênova, como pároco da igreja de Santa Sabina. Em
1847, às vésperas da Revolução Liberal, padre Frassinetti e outros, entre eles
padre Pestarino, foram alvos de suspeitas das autoridades por motivos polí-
ticos. Viu-se obrigado a deixar a cidade por ter escrito um panfleto crítico
sobre o padre liberal e patriota, Vicente Gioberti. Exilou-se num pequeno
povoado nas montanhas, não distante de Gênova. Foi o momento em que
começou a trabalhar em Apontamentos de Teologia moral de Santo Afonso e em
Jesus Cristo, regra do sacerdote.
Após o exílio, retornou a Santa Sabina, onde a vida cristã floresceu sob
sua direção. Da mesma forma que a Igreja de São Francisco de Assis em
Turim, com padres Guala e Cafasso, também Santa Sabina com padre Fras-
sinetti converteu-se num centro de vida cristã e de atividade católica. Jovens
padres ordenados no seminário de Gênova, Pestarino entre outros, conver-
teram-se em discípulos de Frassinetti. Eventualmente, com a colaboração do
padre Luís Sturla, Frassinetti reuniu um grupo de jovens padres para a cura
das almas e fundou a Congregação dos Filhos de Maria Imaculada (1861).
Além de ser diretor de almas muito solicitado, seu intensíssimo ministé-
rio pastoral conquistou-lhe a reputação de “o Cura d’Ars italiano”. O minis-
tério paroquial, realizado com zelo e dedicação desinteressada, converteu-se
em preocupação que o absorvia totalmente. Todos os tipos de pessoas foram

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Dom Bosco: história e carisma 2

beneficiados pelo seu ministério, mas teve uma preocupação especial pelos
jovens, mantendo-os no ideal da autêntica vida cristã. Para as jovens, fundou
a Pia União de Maria Imaculada, com uma regra de vida que lhes oferecia a
vocação de viver como religiosas no mundo.
É autor de cerca de 100 obras de ascética, pastoral e moral, que tiveram
muitas edições, e evidenciam sua preocupação pela renovação da vida cristã e
da vida sacerdotal. Jesus Cristo, regra do sacerdote e a Teologia moral converteram-
-se no vade-mécum dos padres, mesmo fora da Itália. Padre Frassinetti também
colaborou em ao menos 8 livretos nas Leituras Católicas, de Dom Bosco.
Em janeiro de 1857, Dom Bosco foi a Gênova e visitou-o em Santa
Sabina. Tornaram-se amigos. Foi, então, que Dom Bosco lhe pediu para
colaborar nas Leituras Católicas. Começou em maio de 1859 e continuou
até 1866. Seus dois títulos de maior sucesso foram: A vida de Rosa Cardone e
O uso correto do dinheiro.
Em 1864, na excursão de outono, Dom Bosco levou seus meninos até
Gênova. Frassinetti, que só saía de casa para o ministério, acompanhou Dom
Bosco e seus meninos pessoalmente numa visita ao porto; e, depois, arru-
mou-lhes um guia para o resto do passeio.
Padre Frassinetti morreu em Gênova no dia 2 de janeiro de 1868, e sua
causa de beatificação foi introduzida em Roma em 1939.
São estes os aspectos mais característicos de sua vida e doutrina: 1o Sua
intensa dedicação pessoal ao ministério pastoral, seguindo o exemplo do Cura
d’Ars. 2o Sua campanha constante pela Comunhão frequente, também diá-
ria. 3o Sua afirmação de que todos os cristãos, vivendo “no mundo”, podem e
devem seguir o estilo evangélico de vida. 4o A adoção do pensamento – equi-
probabilismo – de Santo Afonso de Ligório em Teologia moral e pastoral.

PADRE DOMINGOS PESTARINO (1817-1874)

Domingos Pestarino nasceu em Mornese no dia 5 de janeiro de 1817,


numa família de posição bastante boa. Entrou muito cedo no seminário de
Gênova; foi ordenado em 21 de setembro de 1839.
Após a ordenação sacerdotal, padre Pestarino exerceu durante muitos
anos o cargo de prefeito da seção juvenil do seminário diocesano. Em 1847
ou 1848, como padre Frassinetti, viu-se obrigado a deixar Gênova por moti-
vos políticos. Como “exilado”, buscou o isolamento e a segurança na Morne-
se natal, pertencente à diocese de Acqui, província de Alessândria.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Situada geograficamente na parte mais ao sul do Piemonte e isolada nas


colinas dos Apeninos lígures, Mornese, então uma pequena cidade com mais
de 1.100 habitantes, vivia sob a influência cultural e política de Gênova.
O mesmo se pode dizer em relação à teologia e a espiritualidade, pois em
geral, Gênova estivera livre do rigorismo. De fato, o seminário e o ministério
paroquial seguiam em grande medida o pensamento de Santo Afonso.
Mornese tinha tradição republicana, no sentido mazziniano do termo.
Estivera sob a república de Gênova e mantinha o espírito de independên-
cia, mesmo depois de a Ligúria (Gênova) ser anexada ao Reino da Sardenha
(Piemonte) pelo Congresso de Viena (1814-1815). Ao longo da restauração,
Mornese continuou a ser foco de atividades “revolucionárias”.

Estampa memorial impressa no quinto aniversário


de morte do padre Pestarino.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Durante seus dias de seminário, e mais ainda como jovem sacerdote,


Pestarino tornara-se discípulo do padre Frassinetti. Em Mornese, embora
apenas um entre vários padres residentes oficialmente, relacionava-se com
a paróquia, tendo oportunidade de exercer seu ministério sacerdotal no es-
tilo de Frassinetti. Converteu-se logo na força mais influente de renovação
espiritual da paróquia. Procurou estimular a prática sacramental, especial-
mente a comunhão frequente, reunir os jovens para atividades recreativas e
religiosas em sua casa e na igreja, e dedicar longas horas a ouvir confissões e
à direção espiritual.
Em poucos anos, toda a paróquia, incluindo a população masculina
adulta, experimentou uma transformação religiosa que fez dom Contratto,
bispo de Acqui, chamar Mornese de “o jardim da minha diocese”.
Por causa dos notáveis sucessos, e não só pelos laços familiares, padre
Pestarino foi nomeado administrador da paróquia e também eleito várias
vezes para o conselho da cidade. Desde sua chegada a Mornese, cuidara
especialmente do grupo de jovens mulheres que se destacavam pelo espírito
religioso. Entre elas estava Maria Domingas Mazzarello, que aos poucos
ficou sob sua influência, depois de ter recebido a Confirmação em 30 de
setembro de 1849 e a primeira Comunhão em 27 de março de 1850. Em
1850 ou 1851, Ângela Maccagno, professora da escola local, com apenas
18 ou 19 anos, decidiu viver como religiosa no mundo, sob a direção es-
piritual do padre Pestarino. Em 1854, com sua ajuda, reuniu um grupo
de moças e criou a Pia União das Filhas de Maria Imaculada, para as quais
padre Frassinetti escrevera as regras. Maria Mazzarello, a mais jovem do
grupo, com 17 anos, iniciou um sério caminho de vida espiritual sob a
direção de Pestarino.
Em 1854, como já anteriormente em 1836, a cólera flagelou Mornese.
Padre Pestarino e os membros do grupo de Maria Imaculada entre outros
se distinguiram no atendimento às pessoas afetadas pela doença. Em 1860,
estalou uma epidemia de tifo. Maria Mazzarello, que se dedicou a cuidar dos
enfermos em sua vila dos Mazzarelli di Qua, foi colhida pela enfermidade e
só sobreviveu depois de correr grave perigo de morte, mas ficou fragilizada fi-
sicamente para sempre. Foi para ela tempo de crise, seguida de discernimento
e de opção vocacional.
Padre Pestarino e Dom Bosco encontraram-se pela primeira vez em
1857 ou 1858 na casa do padre Frassinetti. Mas o encontro de 1862, enquan-
to viajavam de trem de Acqui para Alessândria foi provavelmente decisivo.
Conversaram sobre suas respectivas obras; Dom Bosco convidou Pestarino
a visitar o Oratório. Assim o fez e ficou admirado. Sua decisão de ficar com

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Dom Bosco e sua profissão como salesiano em 1863 ou 1864 selaram sua
“vocação”. Solicitado por Dom Bosco, Pestarino continuou seu trabalho em
Mornese. Em 1865, assistiu às conferências gerais de São Francisco de Sales
e informou sobre seu trabalho em Mornese. Esta série de acontecimentos
produziu importantes mudanças.
1. Dom Bosco visitara Mornese pela primeira vez em outubro de
1864 e reunira-se com as Filhas de Maria Imaculada. Maria Mazzarello e
sua amiga Petronila Mazzarello já mantinham um “oratório” para meninas
e um “orfanato”. Impressionado com o grupo, especialmente com Ma-
ria e Petronila, Dom Bosco talvez tenha começado a pensar nessas jovens
como um possível primeiro grupo da congregação feminina que planejava
fundar. Durante esta visita, Dom Bosco lançou a ideia de uma escola para
meninos em Mornese.
2. Em 1865, de acordo com a cidade, padre Pestarino deu início à cons-
trução da escola internato para meninos. A colocação da primeira pedra reu-
niu a população local que colaborou com mão de obra e materiais, embo-
ra Pestarino financiasse a construção. A fim de providenciar o pessoal e os
professores da escola, ele reagrupou as jovens: algumas, dirigidas por Maria
Mazzarello, tinham-se separado das “novas ursulinas” de Ângela Maccagno.
Em 1871, depois de assistir às Conferências de São Francisco de Sales e ouvir
Dom Bosco falar dos “grandes planos”, adquiriu a propriedade da casa Car-
rante, quando o edifício da escola já estava sendo concluído.
Enquanto isso, em 1871-1872, Dom Bosco decidia fundar sua con-
gregação com as Filhas de Maria Imaculada, dirigida por Maria Mazzarello.
Como cumprimento dos “grandes planos” de Dom Bosco, e para desgosto
da população local, em 1872, o collegio converteu-se numa escola de me-
ninas e na casa mãe do recém-fundado Instituto das Filhas de Maria Au-
xiliadora. Quando o Instituto se estabeleceu oficialmente com a “primeira
profissão” das irmãs, em 5 de agosto de 1872, padre Pestarino, nomeado
por Dom Bosco, tornou-se oficialmente diretor do Instituto. Desse modo,
continuou a ser, com Dom Bosco, o guia espiritual das irmãs. Apenas dois
anos depois veio a falecer improvisamente de um derrame cerebral, em 15
de maio de 1874.
Padre Pestarino, no limitado alcance imposto pelas circunstâncias histó-
ricas ao seu ministério pastoral, deve ser considerado apóstolo proeminente,
imbuído de verdadeira espiritualidade e de zelo. Também deve ser reconheci-
do, na realidade, embora não juridicamente, como sócio fundador do Insti-
tuto das Filhas de Maria Auxiliadora.

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Dom Bosco: história e carisma 2

DADOS FUNDAMENTAIS DA VIDA DE MARIA


MAZZARELLO. HISTÓRIA INICIAL DO INSTITUTO
DAS FILHAS DE MARIA AUXILIADORA DOS CRISTÃOS

1837
9 de maio: Maria Mazzarello nasce nos Mazzarelli di Qua, aldeia
de Mornese, situada uma milha a sudeste da povoação.
1839
21 de setembro: Padre Pestarino é ordenado depois de concluir seus estu-
dos no seminário de Gênova.
1849-1848
Padre Pestarino, após exercer o cargo de prefeito no se-
minário de Gênova, volta à cidade natal. É um sacerdote
apenas residente e, depois, administrador da paróquia.
Converte-se em propulsor da renovação espiritual, espe-
cialmente dos jovens, pelo seu zelo e direção espiritual.
1849
30 de setembro: Maria Mazzarello recebe a Confirmação em Mornese.
1848-1849
Maria Mazzarello e sua família transferem-se como ar-
rendatários para a isolada Cascina Valponasca, proprieda-
de do marquês Dória, de Mornese. Ali, ela vive dos 11
aos 21 anos de idade.
1850
27 de março: Maria Mazzarello recebe a primeira Comunhão na ter-
ça-feira santa. Lê-se no registro: “Domenica della Valpo-
nasca”. Às vezes, dá-se erroneamente a data como 19 de
abril de 1848, que foi, na verdade, o dia da primeira
Comunhão de um primo com o mesmo sobrenome.
1854
É fundada em Mornese a Pia União das Filhas de Maria
Imaculada. Atribui-se ao padre Pestarino o incentivo, a
orientação e o desenvolvimento do grupo. Maria Mazza-
rello tem 17 anos.
1855
9 de dezembro: Maria Mazzarello consagra-se a Nossa Senhora para o
“exercício da caridade”.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

1858/1859
Depois de um roubo na Cascina Valponasca, Maria Ma-
zzarello e sua família transferem-se para Mornese, em casa
própria na Via Val Gelata, nos arredores do povoado. Seus
irmãos continuam a trabalhar nos vinhedos de Valponasca.
1860
15 de agosto: Maria Mazzarello cai gravemente enferma de tifo, con-
traído enquanto dava assistência às vítimas de uma rigo-
rosa epidemia em Mazzarelli di Qua. Recupera-se, mas
ficará frágil para sempre.
1861
2 de abril: Já não podendo trabalho no campo, Maria Mazzarello
começa a aprender o ofício de costureira.
1862
Dom Bosco e o padre Pestarino encontram-se no trem
no qual viajavam de Acqui a Alessândria. Mais tarde, a
convite de Dom Bosco, padre Pestarino visita o Orató-
rio de Turim.64
Por meio dele, Dom Bosco envia um bilhete a Maria e
Petronila, antes de encontrá-las pessoalmente.
Sonho de Dom Bosco “da Praça Vittorio”, que lhe suge-
re cuidar também das meninas, abrindo um oratório.65
Maio: Maria Mazzarello e Petronila Mazzarello, sua amiga,
abrem em Mornese uma oficina de costura para meninas.
5-6 de julho: Num sonho (“do Cavalo Vermelho”) Dom Bosco diz à
marquesa Barolo que ele deve ocupar-se também com as
meninas.66
1863
Maio: Maria Mazzarello e Petronila começam um oratório fes-
tivo para as meninas em Mornese.
Deixam a família e iniciam em Mornese um internato
para duas meninas órfãs.
1863-1864
Padre Pestarino professa [?] na Sociedade Salesiana, mas
continua seu trabalho em Mornese.
MB X, 585.
64

O sonho não é mencionado nas Memórias Biográficas; fala dele o padre Francésia, em sua vida
65

de Maria Mazzarello.
66
MB VII, 217s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1864
Devido às dificuldades no grupo por causa do apostola-
do, Maria Mazzarello, com assessoria do padre Pestari-
no, retira-se por um tempo na Cascina Valponasca, onde
seus irmãos trabalham nos vinhedos.
Outubro: Maria Mazzarello e o grupo encontram-se pela primeira
vez com Dom Bosco, que passava pela região numa excur-
são de outono com seus meninos. Impressionado com o
grupo, começou aos poucos a imaginá-lo como núcleo
da congregação de mulheres que pensava fundar.
1865
13 de junho: Padre Pestarino coloca a primeira pedra do collegio em
Mornese, que, inicialmente destinado a meninos, con-
verter-se-á em 1872 na casa mãe das Filhas de Maria
Auxiliadora e escola para meninas da cidade.
1866
24 de junho: Dom Bosco fala ao padre Lemoyne dos seus planos de
fundar uma congregação religiosa de mulheres.67
1867
Outubro: Maria Mazzarello deixa definitivamente sua família e
transfere-se à Casa da Imaculada, propriedade do padre
Pestarino, próxima à igreja paroquial. O pequeno gru-
po, que vive em comunidade, é conhecido como Filhas
de Maria Imaculada.
9-21 de setembro: Dom Bosco visita Mornese para a bênção da capela do
colégio.
1869
Março: Dom Bosco envia a Maria Mazzarello e ao seu grupo
um pequeno caderno com um calendário e uma série de
regras que fixam sua vida cotidiana.
19-21 de abril: Dom Bosco visita Mornese para falar dos planos relati-
vos ao grupo de Maria Imaculada
1870
9 de maio: Dom Bosco visita Mornese para a primeira missa do padre
José Pestarino, sobrinho do padre Pestarino.

67
MB VIII, 416.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

1871
Janeiro Padre Pestarino, assistindo às Conferências anuais de
São Francisco de Sales no Oratório, conversa com Dom
Bosco e ouve-o falar de “grandes planos”.
31 de março: Padre Pestarino compra a casa Carante, em Mornese,
que servirá como residência temporária para as irmãs an-
tes de passarem ao collegio.
24 de abril: Dom Bosco escreve a madre Maria Henriqueta Domini-
ci, das Irmãs de Santana da Divina Providência para que
o ajude na redação das Constituições para uma Congre-
gação feminina. E apresenta ao seu Conselho o plano
de fundar o Instituto das Filhas de Maria Imaculada (o
Conselho aprovará o plano em 24 de maio).
Fins de abril: Dom Bosco visita Mornese para falar de seus planos
de fundação.
Fins de junho: Em sua visita a Roma, Dom Bosco apresenta o plano a
Pio IX, que o aprova.
Julho-agosto: Com a decisão definitiva de proceder à fundação do Ins-
tituto, Dom Bosco completa o primeiro manuscrito das
Constituições. Passa o manuscrito ao padre Pestarino, que
pede a uma jovem para fazer uma cópia original (24 de
abril de 1871). Durante os anos 1871-1878 são redigidos
7 rascunhos. Estes cadernos contêm notas marginais e co-
mentários da mão de Dom Bosco e do padre Pestarino. Isso
propiciou a primeira redação das Constituições (1878).
1872
29 de janeiro: Festa de São Francisco de Sales: 27 Filhas de Maria Imacula-
da reúnem-se com padre Pestarino, seguindo instruções de
Dom Bosco, e elegem Maria Mazzarello como “superiora”.
23-24 de maio: Maria Mazzarello e as irmãs, com as meninas, entram no
colégio (casa Carante), com o protesto do povo.
5 de agosto: Fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora dos
Cristãos com a tomada de hábito e a profissão durante o re-
tiro espiritual (31 de julho-8 de agosto). Maria Mazzarello
é a primeira a professar as Constituições com votos tem-
porários. Dom Bosco confirma-a como superiora, mas per-
mite que seja chamada apenas de vigária [vice-superiora].

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Dom Bosco: história e carisma 2

1873
Dom Bosco visita Mornese várias vezes. [?]
1874
15 de maio: Padre Pestarino morre aos 57 anos de idade. Serão seus
sucessores como diretor espiritual: padre José Cagliero,
que morreria no mesmo ano; padre Tiago Costamagna
(1875-1877); padre João Batista Lemoyne (1877-1883).
Padre (dom) João Cagliero é o “diretor espiritual geral”.
15 de julho: Dom Bosco participa da missa de aniversário mensal
do padre Pestarino em Mornese e preside as eleições do
Conselho Superior das Filhas de Maria Auxiliadora. Ma-
ria Mazzarello é reeleita por unanimidade e confirmada
por Dom Bosco; será chamada de madre.

8 de outubro: A primeira comunidade das Filhas de Maria Auxiliadora


estabelece-se fora de Mornese, em Borgo San Martino,
para onde Dom Bosco transferira a escola de Mirabello
em 1870. As irmãs dirigem a cozinha e cuidam de um
oratório para as jovens.
1875
29 de agosto: Dom Bosco visita Mornese para a profissão perpétua de
Maria Mazzarello e outras 7 irmãs.
29-31 de agosto: Dom Bosco, em visita a dom Sciandra, faz os retoques
finais nas Constituições das Filhas de Maria Auxiliadora.
1876
23 de janeiro: O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora é aprovado
canonicamente pelo bispo de Acqui.
29 de março: Uma comunidade de 7 irmãs estabelece-se numa casa
em Valdocco. Esta seria convertida em Casa Geral em
1929. Dom Gastaldi dera permissão para uma fundação
em Turim no dia 31 de outubro de 1875.
1877
14 de novembro: Seis irmãs partem para as missões (Uruguai e Argenti-
na), com o terceiro grupo missionário, liderado por dom
Costamagna. Maria Mazzarello preside a cerimônia de
despedida e acompanha as irmãs até Roma, para depois
irem tomar o navio em Marselha.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

1878
8 de dezembro: É publicada a primeira edição das Constituições, para as
quais Dom Bosco escreve um prólogo, no qual apresenta
as características do Instituto.
1879
4 de fevereiro: Maria Mazzarello e as irmãs, e o padre Lemoyne como
diretor local, passam à nova casa mãe de Nizza Monferra-
to. Em 14 de outubro de 1877, Dom Bosco obtivera da
Santa Sé a permissão de comprar um convento em desu-
so. Benzeu a bela igreja restaurada no dia 24 de outubro
de 1878.
1880
29 de agosto: Maria Mazzarello é reeleita Madre Geral por unanimidade.
1881
7 de fevereiro: Maria Mazzarello cai gravemente enferma em Saint
Cyr, França.
As irmãs já tinham 3 comunidades no sul da França.
28 de março: Maria Mazzarello pode voltar a Nizza Monferrato.
5 de abril: Fica de novo gravemente enferma.
14 de maio: Morre em Nizza Monferrato, aos 44 anos de idade. Sua
sucessora é madre Catarina Daghero.
1885
Publica-se a segunda edição impressa das Constituições,
a partir da primeira edição e com as deliberações do Ca-
pítulo Geral de 1884. Será a última edição preparada
com a direção de Dom Bosco.
17 de julho: Sonho de Dom Bosco da Via Pó, no qual se sugere um
oratório de meninas.68
1906
O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora torna-se au-
tônomo. A Santa Sé aprova as Constituições revistas e o
Instituto passa a ser de direito pontifício.
1929
8 de dezembro: A casa mãe transfere-se para Valdocco

68
MB XVII, 488s; C. M. Viglietti, Cronaca, 66-67.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1936
3 de maio Reconhecimento das virtudes heroicas de Maria Mazza-
rello no processo de beatificação.
1938
20 de novembro Beatificação de Maria Mazzarello.
1951
24 de junho Canonização de Maria Mazzarello.

EVOLUÇÃO ESPIRITUAL DE MARIA DOMINGAS


MAZZARELLO
A grave enfermidade (tifo) contraída por Maria Mazzarello em 1860
aos 23 anos de idade produziu nela uma crise acompanhada de experiências
físicas e espirituais que provocaram a “conversão” e a reorientação de sua vida.
O acontecimento divide claramente seu processo espiritual em dois períodos.
Cada um deles também pode, por sua vez, dividir-se em duas etapas perfei-
tamente diversas.

1. Primeiro período (1837-1860)


• Primeira etapa: da infância aos 13 anos de idade e primeira Comunhão
(1837-1850)
Maria Mazzarello viveu de 1837 a 1849 em Mazzarelli di Qua, aldeia
de Mornese, no seio de uma grande família de tipo patriarcal. Na família, as
relações eram variadas e amplas. De 1849 a 1850, Maria morou na isolada
Cascina Valponasca, propriedade do marquês Dória, localizada num vale, a
cerca de 3 quilômetros a nordeste de Mornese, num ambiente familiar mais
restrito, formado por 10 pessoas: os pais, os 7 irmãos e uma prima. Em um
núcleo familiar assim, as relações são mais intensas.
O pai, e não a mãe, teve influência familiar dominante na infância de
Maria. Ele proporcionou um modelo de espiritualidade baseada na proxi-
midade da natureza e também das pessoas biologicamente ligadas, num am-
biente camponês de trabalho e fé genuína. De sua mãe Maria aprendeu o
espírito de trabalho, em qualquer situação, principalmente no campo. Mais
tarde, apreciaria plenamente o trabalho pelo seu valor humano, ascético, edu-
cativo e apostólico, e passaria a ser constitutivo da sua espiritualidade. Maria
também aprendeu de seu pai o sentido de Deus, fundamentado na natureza,
mas transcendente. Este sentido é expresso na oração, nas práticas devotas da
vida cristã, nas relações honestas e na verdadeira santidade.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Parágrafo final da carta de Madre Maria Domingas Mazzarello a


irmã Laura Rodriguez, Nizza Monferrato, 8 de julho de 1880:
Recomendo-te que sejas sempre humilde, [tenhas] grande confiança
nas superioras e jamais percas a alegria, como quer o Senhor. Traba-
lha para chegar a ser amiga de Jesus. Reza por mim. Embora não te
conheça, te amo muito, muito; envio-te uma imagem; conserva-a
como lembrança minha. Ânimo, pois, vive alegre e torna-te santa
depois. Deus te abençoe, te faça toda santa. Crê-me sempre tua.
Afeiçoadíssima no Senhor, Madre Irmã Maria Mazzarello.

A influência do padre Pestarino sobre Maria começou tão logo este vol-
tou de Gênova a Mornese, em 1847-1848. Mesmo sendo apenas um dos
vários padres da cidade, e não tivesse qualquer nomeação diocesana, exercia
algo como assistente do pároco, e converteu-se no agente de uma grande
renovação espiritual em Mornese, em que Maria chegaria a estar profun-
damente envolvida. Embora fosse apenas uma menina “normal”, não par-
ticularmente “devota”, possuía um sentido sutil do verdadeiro e do real. O
primeiro contato com padre Pestarino permitiu-lhe “refletir” sobre sua fé e,
de certo modo, “interiorizá-la”.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Com sua primeira Comunhão, em 1850, começou a dar provas de um


“itinerário pessoal” até Deus, que acompanhava a oração, o ascetismo e a vida
sacramental. Durante vinte e seis anos (1848-1874) desfrutaria da direção
segura e contínua do padre Pestarino.

• Segunda etapa: adolescência e juventude até os 23 anos e a doença crítica


(1850-1860)
De 1850 a 1858-1859, Maria Mazzarello continuou a viver na Casci-
na Valponasca. De 1858-1859 a 1860, começa a viver com sua família na
casa comprada pelo pai em Via Valgelata, situada na periferia ocidental de
Mornese. Estabelecida na cidade, a família não retornou à aldeia natal dos
Mazzarelli di Qua. Maria, jovem de 21 anos, vive numa comunidade maior.
Após a primeira Comunhão, a evolução espiritual de Maria foi rápida
e extraordinária. Começou a desenvolver uma verdadeira vida interior. Sua
oração começava na madrugada com a caminhada de uma hora até a paróquia
para a missa e a comunhão. Dava-lhe continuidade durante o dia, enquanto
trabalhava no campo, em contato com a natureza e em união com Deus. A
união de trabalho e oração converteu-se em algo habitual para ela. À noite,
continuava, de pé ou sentada olhando pela famosa janela de onde podia ver
a igreja paroquial e a cidade inteira. A contemplação, sem dúvida estimulada
pelo padre Pestarino, provocou o desejo de uma vida de virgindade.
Em algum momento de 1855, aos 17 anos de idade, uniu-se a outras jo-
vens para formar a Pia União das Filhas de Maria Imaculada, sob a direção de
Pestarino. Nela, Maria relacionou-se com espíritos afins, descobriu o sentido
do serviço cristão e consagrou-se ao “exercício da caridade”.
2. Segundo período (1860-1872)
• Primeira etapa: Maturidade, aos 35 anos; da grave doença e da “conversão”
à fundação (1860-1872)
De 1860 a 1872, Maria Mazzarello continuou a viver com a família na
casa de Via Valgelata, em Mornese. Em 1860, “exercer a caridade” até quase
à custa da vida. A doença que contraiu e a crise que a seguiu marcaram uma
reviravolta em sua vida. Pela primeira vez, a indomável jovem camponesa ex-
perimentou a fragilidade física, psicológica e espiritual. Em seu “colapso” pre-
cisou encontrar forças no novo conhecimento experiencial de Deus e numa
nova entrega a Ele, que a levou à “conversão” radical. “Deus meu, se for da
tua divina vontade conceder-me alguns dias a mais de vida, permite-me vivê-
-los para ti, ignorada e esquecida por todos, exceto por ti”.69
69
Cronistória I, 93.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Ao tentar adaptar-se e aceitar sua nova situação, os primeiros quatro


anos depois da doença foram difíceis e críticos. Como sua força física estava
muito reduzida, começou a buscar uma forma de viver que lhe permitisse
dedicar-se a Deus. Veio-lhe assim a inspiração de dedicar-se à educação e aju-
da às jovens.70
Em 1867, aos 30 anos de idade, Maria Mazzarello deixa sua família e
vai com duas companheiras à Casa da Imaculada. Ali viverá com o grupo, em
comunidade, até a fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, em
1872. Depois, elas passarão à Casa Carante e ao “collegio”.
Oito anos antes da fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxilia-
dora, ela iniciara e desenvolvera um novo apostolado e uma forma de vida
comunitária. Nesses anos, a partir de 1864, foi entrando sempre mais sob
a influência de Dom Bosco. Os contatos e a interação entre os dois santos
foram poucos; não obstante deu-se uma imediata intuição recíproca que, aos
poucos, foi se convertendo na associação que levou à fundação do Instituto
das Filhas de Maria Auxiliadora.
Esta etapa foi, portanto, o período de formação da espiritualidade e da
dedicação ao apostolado de Maria Mazzarello, sob a influência e a orientação
sempre maior de Dom Bosco, com a mediação do padre Pestarino, já salesia-
no nessa época.

• Segunda etapa: Realização, aos 44 anos de idade. Cofundadora e Mãe


(1872-1881)
Maria Mazzarello dirigiu o Instituto na casa mãe, primeiramente no
Colégio de Mornese e, depois, em Nizza Monferrato.
Este é o período no qual se realizou a vocação específica de Maria como
Cofundadora e Mãe do Instituto. A fim de ressaltar o seu papel de mãe e, por-
tanto, de “educadora” de uma nova família religiosa, insiste-se que, histórica e
juridicamente, foi cofundadora e não simples “instrumento” para a fundação.
70
Como aconteceu com Dom Bosco e com outros santos fundadores, também parece que a Pro-
vidência zelava por Maria Mazzarello e quis fazê-la ver de modo velado, sua verdadeira vocação. Com
ela mesma, em sua simplicidade, referiu mais tarde a algumas de suas filhas espirituais, ao passar um dia
pela colina de Borgo Alto, onde então não havia mais do que um tugúrio e se levantou depois a primei-
ra casa do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, viu um edifício, precisamente como aquele que foi
construído alguns anos mais tarde, com jovens em seu interior. Ficou admirada e pareceu-lhe sonhar.
Era visão? Era alucinação? Maria procurou distrair-se e cuidar de suas obrigações, mas o pensamento
de ocupar-se das meninas estava fixo em sua mente, e a imagem daquele edifício parecia apresentar-se
a ela sempre viva em sua fantasia cada vez que passava por aquele caminho. Cf. F. Maccono, Santa
María Domingas Mazzarello. Vol. I. Madri: Indústrias Gráficas España, 1980, 84-85. [Nota de M.
Isabel Fernández B. FMA]

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Dom Bosco: história e carisma 2

AUTONOMIA JURÍDICA DO INSTITUTO DAS FILHAS


DE MARIA AUXILIADORA (17 DE JULHO DE 1906)71

O decreto “Normae secundum quas”


Dada a proliferação de novos institutos religiosos com votos simples,
especialmente no século XIX, a Santa Sé, na década de 1860, precisou tomar
medidas e estabelecer normas e diretrizes para eles. Com esse fim, em 28 de
junho de 1901, emitiu o Decreto Normae secundum quas Sacra Congregatio
Episcoporum et Regularium procedere solet in approbandis novis Institutis voto-
rum simplicium.
O artigo 202 das Normae estabelecia que uma congregação feminina de
votos simples não podia vincular-se pelas suas constituições a uma congrega-
ção masculina do mesmo tipo. O artigo 1o do Título II das Constituições das
Filhas de Maria Auxiliadora (FMA), redigidas por Dom Bosco e aprovadas
pelo bispo diocesano, contrariava esta disposição; estipulava, de fato, que “o
Instituto está sob a alta e imediata direção do superior-geral da Sociedade
Salesiana, chamado Reitor-Mor”. Na verdade, o Reitor-Mor regia o Insti-
tuto “como um pai”, sempre representado por um diretor-geral (padre João
Cagliero, nomeado por ele) e, em âmbito regional, pelo provincial salesiano.
Os bispos em cujas dioceses as salesianas trabalhavam estavam satisfeitos com
esse acordo, o mesmo acontecendo com as irmãs. Isso as ajudava a preservar o
espírito do fundador e tornava-lhes mais fácil tratar com as autoridades civis,
especialmente nas questões relativas à educação. Por outro lado, de acordo
com as Constituições, a Madre Geral e seu Conselho governavam o Instituto
em todos os seus assuntos internos.
Alguns outros artigos das Constituições relacionavam-se com este artigo
básico. Isso impunha a revisão das Constituições para eliminar a dependên-
cia. Nesse momento (1906), o Reitor-Mor era o padre Rua, e a Madre Geral
era a irmã Catarina Daghero. Advertido do problema, padre Rua não tomou
medidas imediatas. Madre Daghero, porém, escreveu a Roma explicando que
a situação atual era satisfatória, pois lhes permitia uma completa autonomia
na gestão de seus assuntos. Roma, porém, começara a acompanhar a questão
mais de perto, que terminaria em clara “separação”.

Cf. Annali III, 645-671; A. Amadei, Il servo di Dio Michele Rua. Vol. II. Turim: SEI, 1933, 260-
71

263; F. Desramaut, Vita di don Michele Rua: primo successore di Don Bosco. Roma: LAS, 2009, 355-375.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

A ação de Roma e a atuação do padre Marenco,


procurador-geral salesiano
Em 1902, o cardeal Gotti, Prefeito da Congregação dos Bispos e Regu-
lares, pediu ao padre Rua várias informações sobre as Filhas de Maria Auxi-
liadora: uma cópia das Constituições e dos Regulamentos, os documentos de
aprovação dos bispos e os resumos relativos à origem, finalidade, composição,
disciplina e aos bens materiais e à situação financeira do Instituto. Padre Rua
respondeu imediatamente; as irmãs também enviaram à Congregação roma-
na um resumo estatístico de cada uma de suas fundações.
Em outubro de 1904, o cardeal Ferrata, sucessor do cardeal Gotti como
Prefeito da Congregação, pediu os mesmos documentos. Em 10 de maio de
1905, em nome de Pio X, ordenou que iniciassem, sem demora, a revisão das
Constituições, em conformidade com as Normae. Em 24 de maio, o auditor
da Congregação convocou o procurador-geral salesiano, padre João Marenco.
Depois de elogiar o trabalho de salesianos e salesianas, insistiu na necessidade
de uma reforma iniciada pelo próprio Papa através do Santo Ofício. E expli-
cou, em seguida, como a revisão devia ser feita.
Padre Marenco recebeu uma cópia das observações feitas por um consul-
tor da Congregação ao texto das Constituições e o encargo oficial de revisá-
-las de acordo com as observações. Quando a revisão fosse concluída, tam-
bém deviam ser revistas todas as deliberações dos Capítulos Gerais das Filhas
de Maria Auxiliadora (Capítulos Gerais I-IV).

Notificação às irmãs e a reação inicial


Padre Clemente Bretto, diretor-geral das Filhas de Maria Auxiliadora, sem
demora, levou os fatos ao conhecimento de madre Daghero e seu conselho. Em
4 de setembro de 1905, deu-os a conhecer a todos os membros do Capítulo
Geral V das irmãs, que seria iniciado em Nizza Monferrato. Foi uma grande
surpresa para todas. Parecia que se estivesse dando um golpe fatal no Institu-
to. É possível que não possamos considerar e nem mesmo entender a reação
diante da mudança; mas, na época, além de justificada, era lógica, levando-se
em conta a história passada do Instituto, a situação atual e as perspectivas de
futuro. Recorde-se que o Instituto estivera durante dezesseis anos sob a direção
de Dom Bosco e, depois de sua morte em 1888, conforme suas Constituições,
por outros dezessete anos, sob a direção de seu sucessor, padre Rua.
Em seus assuntos importantes, as Madres Gerais e seus Conselhos re-
corriam a Dom Bosco e, depois, ao padre Rua; desejavam principalmente
uma assessoria para as novas fundações e as missões. Além do mais, com sua

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Dom Bosco: história e carisma 2

assessoria e ajuda as irmãs fecharam numerosos acordos com a Igreja local,


com as autoridades civis e com os conselhos escolares. A orientação paterna
do Reitor-Mor, solicitada pelas próprias irmãs, convertera-se em parte inte-
grante da existência e da atuação do Instituto.
A animação paterna nunca interferira no governo interno do Instituto.
Ao contrário, essa cooperação fora muito eficaz em todos os campos. Além
de tudo, a relação estreita fora de grande ajuda na preservação do carisma do
Instituto, especialmente em situações e obras nas quais as irmãs estavam sob
a jurisdição do ordinário local.
Os ordinários, e mesmo as autoridades da Igreja em Roma, tratavam as
irmãs com confiança, porque a direção do Reitor-Mor a inspirava. Por isso,
as experiências antigas eram consideradas uma garantia de que o futuro do
Instituto estava garantido. Agora, sem essa orientação e apoio, o Instituto en-
frentava o futuro com apreensão. Deveriam começar a negociar as fundações
e outras questões diretamente com as autoridades; e sentiam-se em desvan-
tagem. Mas o que lhes causava consternação era, principalmente, a ideia de
“ficarem sozinhas” para dirigir um empreendimento tão vasto.
Parecia conveniente que as irmãs dessem algum passo nesse momento.
Autoridades independentes também aconselharam as irmãs a buscarem um in-
dulto. Monsenhor Bettandier, autor de um comentário das Normae, opinava que
seria útil que as irmãs apresentassem em Roma os “dados relativos à situação”.

Tentativas do padre Rua com seu Conselho


O Reitor-Mor com seu Conselho compartilhavam a apreensão das ir-
mãs, mas sua recente experiência com o Santo Ofício em relação ao de-
creto de 1901 Quod a Suprema sugeriram cautela no trato com Roma.72
Lamentavelmente deram a impressão durante algum tempo de terem ficado
paralisados. Depois, na reunião de 21 de agosto de 1905, o assunto foi co-
locado em discussão. O Conselho reconheceu que era responsabilidade sua
zelar para que a reforma não afetasse negativamente o Instituto quanto à sua
natureza, finalidade e carisma. As atas demonstram que assim o entendiam
e decidiam. Um dos membros assinalou que o Reitor-Mor deveria tomar
a iniciativa. Padre Rua, porém, preferia que o Conselho em seu conjunto
decidisse sobre a ação mais adequada.

72
O decreto Quod a Suprema proibia aos diretores de escolas de internos e semelhantes confes-
sarem seus alunos. Parecia dirigido às escolas salesianas e, em particular, às comunidades, nas quais por
tradição o diretor era confessor regular. Quando padre Rua desviou-se do cumprimento do decreto,
Roma atuou severamente em relação a ele.

736

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

Em seguida, o Conselho encarregou o secretário-substituto, padre Ca-


lógero Gusmano, de obter uma cópia das Constituições revistas, para que
pudessem ser estudadas. Tomou-se esta decisão, que era provisória, apenas
duas semanas antes de iniciar o Capítulo Geral V das Filhas de Maria Auxi-
liadora. Alguns dias antes da sessão de abertura, o padre Rua e seu Conselho
comunicaram às irmãs seu ponto de vista. Elas deveriam estabelecer as nor-
mas, mas deviam fazê-lo depois de debater livremente a questão e decidir em
consequência.

O Capítulo Geral V das Filhas de Maria Auxiliadora


Padre Marenco apresentou para discussão geral neste Capítulo as Cons-
tituições revistas por ele. Em sessão que o padre Rua, presidente do Capítulo,
resolveu não assistir, as irmãs decidiram que o Instituto poderia continuar a
viver com o texto constitucional revisto, mas pensavam que não poderiam
sobreviver se lhes fosse impedida a direção paterna do Reitor-Mor. Por isso,
determinaram que a Madre Geral solicitasse ao Santo Padre a permissão para
que o Reitor-Mor continuasse a ser seu superior pro tempore. O Capítulo
incorporou essa ideia numa resolução assim redigida:

Com a finalidade de preservar a unidade, a observância regular e o espírito do


fundador, o Reitor-Mor da Sociedade Salesiana continuará a exercer sua dire-
ção paterna e a orientação do Instituto. De modo algum isso atentará contra
a competência exercida pelos ordinários sobre as congregações religiosas, em
conformidade com o Direito Canônico. A Madre Geral solicitará a opinião
do Reitor-Mor nos assuntos de importância. [O Reitor-Mor] Presidirá o Ca-
pítulo Geral das irmãs [...], e também deverá, pessoalmente ou por meio de
seu delegado, garantir que as casas sejam bem dirigidas e que reine nelas a
unidade, o respeito e o bom espírito [...].

Pouco depois, a Madre Geral notificou formalmente ao padre Rua, me-


diante carta, a vontade das irmãs de permanecerem como “Dom Bosco quis
que fossem” e pedia-lhe que “não as abandonasse”.

Apresentação feita em Roma e o diálogo posterior


Padre Marenco apresentou um relatório à Congregação dos Bispos e Re-
gulares; a decisão causou particularmente tal impressão que foi autorizada sua
inserção no texto refundido das Constituições, ao mesmo tempo em que lhe
era pedido para fazer uma exposição detalhada dos motivos que tinha para
essa decisão. Foi o que o Conselho Superior das Irmãs fez, e era o apropriado.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A decisão, como foi concebida, não tinha por objeto tornar as irmãs depen-
dentes de uma congregação masculina que fosse claramente oposta às Normae;
mantinha a dependência do sucessor de Dom Bosco, permitindo a separação em
tudo o mais. Por isso padre Rua e seu Conselho aconselharam as irmãs a irem a
Roma, contratar um bom advogado e apresentar seu caso à Congregação.
Padre Marenco era consultor da Congregação dos Bispos e Regulares e
revisor das Constituições; por isso, não estava apto para a missão; padre Rua,
então, indicou padre José Bertello como assistente especial. A equipe fez três
coisas: 1a Com a assessoria do padre Marenco e outros especialistas, fez uma
revisão minuciosa das Constituições que deveriam ser apresentadas à Congre-
gação para a aprovação. 2a Imprimiu e apresentou as Constituições revistas
a cada cardeal membro da Congregação, juntamente com um memorando
detalhado que explicava seu ponto de vista. 3a Conversou pessoalmente com
os cardeais e prelados, para dar as explicações necessárias.
As salesianas continuaram a insistir que seu pedido para manter a orien-
tação do Reitor-Mor era motivada não por um desejo de opor-se à Congre-
gação dos Bispos e Regulares, mas por estarem conscientes da própria insufi-
ciência e pelo temor de um dano irreparável ao Instituto.
As autoridades consideraram excessivos a humildade e os temores.
O cardeal Vives y Tutó, membro importante da Congregação e amigo dos
salesianos, procurou dissipar os temores. Disse que as novas regulamentações,
que afetavam todas as congregações femininas, eram necessárias e, de longe,
benéficas; que Dom Bosco, do céu, velaria para que essas mudanças não che-
gassem a causar danos ao Instituto. O próprio Santo Padre na audiência de 7 de
janeiro de 1906 disse às madres que não se preocupassem, garantindo-lhes que
tudo sairia bem. Elas pensaram, porém, que seu pedido seria atendido!
Em 12 de janeiro de 1906, apresentaram as Constituições revistas à
Congregação dos Bispos e Regulares para exame e aprovação. A Congregação
não tomou medidas imediatas e o trabalho de revisão exigiu vários meses.
Em 1o de abril de 1906, numa audiência especial, padre Cerruti apre-
sentou o tema ao Santo Padre. Contou que, pelo seu cargo de Conselheiro
para Assuntos Acadêmicos, pudera ajudar as irmãs em assuntos relativos às
escolas e ao trabalho educativo. Insistiu que, com a projetada separação, isso
não lhe seria mais possível e que a Madre Geral estava muito preocupada.
O Papa respondeu que podia e devia continuar a ajudá-las, e dizer à Madre
que não se preocupasse. O estímulo de Pio X, contudo, não significava que
padre Cerrutti pudesse continuar a ajudar as irmãs como delegado do Reitor-
-Mor nem que lhes fosse concedido o que pediam.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

A intervenção da Congregação
Entre janeiro e junho, a Congregação estudou as Constituições das sa-
lesianas. A revisão foi concluída numa sessão celebrada em 26 de junho de
1906. Como era de se esperar, a decisão do Capítulo Geral V, apresentada
como artigo constitucional, foi eliminada. As irmãs, porém, não receberam
qualquer repreensão. Em 17 de julho de 1906, foi notificado oficialmente ao
padre Rua que as novas Constituições entravam em vigor e que eram abolidas
as Constituições anteriores e as deliberações dos Capítulos Gerais, sempre
que se afastassem das Constituições atuais. O texto das Constituições revistas
foi enviado ao arcebispo de Turim, cardeal Agostinho Richelmy, que o fez
chegar à Madre Geral em 22 de setembro de 1906.
Dessa forma, o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora e suas Cons-
tituições receberam a aprovação definitiva, sem passar pelas etapas normais
de procedimento. Por carta circular de 29 de setembro de 1906, padre Rua
notificou às irmãs sobre o ocorrido e pediu-lhes que aceitassem e praticassem
as Constituições que a Madre Geral lhes entregaria. Acrescentava que ele e
os demais superiores salesianos estariam sempre à disposição para ajudar e
aconselhar quando fosse necessário. Madre Daghero informou às salesianas
por carta circular de 15 de outubro de 1906.

Separação do Instituto da Sociedade Salesiana e divisão dos bens


Em 3 de outubro de 1906, padre Rua e seu Conselho examinaram as
questões práticas da nova relação. Por carta circular de 21 de novembro de
1906, notificou a todos os salesianos a nova situação e enviou uma orientação
em 8 pontos aos provinciais e diretores. Dizia:

Dado que as Filhas de Maria Auxiliadora e os salesianos possuem o mesmo


fundador e o mesmo espírito nossa relação será baseada na caridade recíproca,
no reconhecimento e no respeito. Não temos, porém, nenhum direito sobre
elas, nem tampouco elas têm qualquer direito em relação a nós.
Quanto à orientação espiritual, as irmãs estão sujeitas aos seus respectivos
ordinários, a quem compete nomear os confessores, diretores espirituais etc.
Os sacerdotes salesianos podem envolver-se nessas funções somente quando forem
nomeados e autorizados pelo ordinário da diocese em que as irmãs residem.73

Em outras palavras, padre Rua abandonou imediatamente qualquer ativi-


dade direta em relação às irmãs e mandou que os salesianos fizessem o mesmo.

73
A. Amadei, Rua II, 262.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os dois Conselhos Gerais começaram imediatamente a trabalhar na


divisão dos bens materiais e na consequente adequação financeira; as duas
partes assinaram uma escritura de divisão e separação no dia 4 de fevereiro
de 1907.
Detalhar as operações levou algum tempo e tornou-se mais difícil em vista
das questões jurídicas existentes nos diversos países. Falando apenas da Europa,
em 1906 as propriedades onde as irmãs trabalhavam estavam assim divididas:
1o) 97 eram propriedades e de administração unicamente das irmãs, sem parti-
cipação dos salesianos. 2o) 36 estavam em nome dos salesianos, apesar de terem
sido adquiridas com o dinheiro das irmãs; os documentos de posse deviam,
portanto, ser transferidos legalmente. 3o) 21 eram utilizadas pelas irmãs, mas a
propriedade era dos salesianos, e, em sua maioria, estavam ligadas a obras sale-
sianas. 4o) 14 eram de propriedade não definida; a separação foi levada adiante
por uma comissão mista com a supervisão do padre Felipe Rinaldi.
Sobre a situação na América Latina, padre Rua, numa circular especial, deu
normas aos provinciais para que procedessem em conformidade com as leis locais.
Em carta ao padre Rua, a Madre Geral e seu Conselho reconheceram a
imparcialidade com que se fizera a divisão, na qual a principal preocupação
fora o verdadeiro bem e o progresso do Instituto.
Como a Congregação dos Bispos e Regulares dispunha, um ano depois
da aprovação das Constituições as irmãs celebraram o Capítulo Geral VI, sob
a presidência do bispo de Acqui. Antes de concluir, as participantes assinaram
uma carta de agradecimento ao padre Rua e aos salesianos, na qual pediam
que continuassem a prestar assistência ao Instituto.
Padre Rua, aparentemente por uma espécie de (equivocada?) heroica
obediência, de humildade e respeitosa deferência para com a Santa Sé nada
fez para dar continuidade a qualquer tipo de relação com as irmãs. Pode pa-
recer surpreendente, mas foi assim que entendeu o Decreto: os salesianos não
podiam manter qualquer contato significativo com as irmãs. As salesianas,
obviamente, sentiram-se abandonadas e quase à deriva.
Madre Daghero foi a primeira a intervir. Com o consentimento de seu
Conselho e de acordo com padre Rua, por meio do procurador salesiano,
padre Marenco, solicitou à Santa Sé que se designasse um padre salesiano
em cada província como assessor. Em 6 de agosto de 1909, o cardeal Vives y
Tutó, prefeito da Congregação dos Bispos e Regulares, que fora recentemente
reorganizada por Pio X, respondeu que a nomeação de um assessor perma-
nente parecia impróprio; mas que as irmãs podiam solicitar a assessoria dos
padres salesianos como melhor lhes parecesse.

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A fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora (1862-1876)

No dia 10 de janeiro de 1910, o cardeal prefeito perguntou ao recém-


-nomeado procurador salesiano, padre Dante Munerati, por que as salesianas
não se serviam dos serviços do procurador dos salesianos em suas relações
com Roma. A sensação de isolamento das irmãs intensificou-se com a morte
do padre Rua em 6 de abril de 1910. O Conselho Geral das salesianas, de
acordo com o dos salesianos, apresentou um pedido à Santa Sé para que o
procurador dos salesianos fosse também seu procurador. No dia 25 de junho
de 1910, a Congregação o aceitou.

Retrato idealizado de Maria Domingas Mazzarello,


obra de Mario Càffaro-Rore.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Foi um avanço importante, simbólico e prático, para os salesianos e sa-


lesianas, pois se apresentavam perante a Santa Sé como congregações irmãs.
O que, contudo, não melhorou a relação em nível local. Em algumas dioce-
ses, por causa de certa interpretação errônea tortuosa, foi proibido aos padres
salesianos exercerem o seu ministério com as salesianas, que, em muitos ca-
sos, foram consideradas como de congregação de direito diocesano.
Em 8 de dezembro de 1911, sendo Reitor-Mor o padre Paulo Albera,
a Congregação dos Bispos e Regulares emitiu um decreto que favorecia os
salesianos e as salesianas. Deixava claro que as salesianas deviam ser consi-
deradas Congregação de direito pontifício, aprovada pela Santa Sé, e não
simplesmente congregação diocesana. E que os salesianos podiam exercer o
ministério sacerdotal com as irmãs, se lhes fosse solicitado.

O Capítulo Geral VII. Mudança importante


Em 28 de abril de 1913, a Santa Sé facultava que padre Albera pudesse
estar presente, assessorar e ajudar pessoalmente ou mediante um delegado às
salesianas em seu próximo Capítulo Geral.
Para cumprir uma resolução aprovada no capítulo, ou seja, que as irmãs
consideravam a orientação de um sacerdote salesiano como algo desejável e
necessário para o seu Instituto, foi apresentada em Roma uma solicitação
nesse sentido. O cardeal Cagliero, salesiano, apresentou a causa e a resposta
foi favorável.
A recuperação plena era só questão de tempo. Em 19 de junho de 1917,
o Reitor-Mor foi nomeado Delegado Apostólico para as salesianas por cinco
anos. Sua obrigação principal era visitar o Instituto a cada dois anos para ga-
rantir que fosse mantido o espírito salesiano. O Decreto foi renovado em 18
de julho de 1922 na pessoa do padre Rinaldi, por seis anos de validade; e em
26 de junho de 1928, por outros seis anos, novamente ao padre Rinaldi. Em
19 de junho de 1934 foi concedido ao padre Pedro Ricaldone por dez anos.
Antes de vencer esse período, foram concedidos à Sociedade Salesiana novos
“privilégios”. Um deles determinava que o Reitor-Mor tinha todas as faculda-
des necessárias para assistir espiritualmente as Filhas de Maria Auxiliadora.74

74
Para uma informação atualizada sobre o tema, cf. Gracia Loparco, Don Rua e l’Istituto delle
Figlie di Maria Ausiliatrice tra continuità e innovazione, in G. Loparco e S. Zimniak, Don Michele Rua
primo successore di Don Bosco. Roma: LAS, 2010, 185-217.

742

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Capítulo XXII

O SALESIANO LEIGO, “COADJUTOR”,


E A REFLEXÃO PROGRESSIVA DE
DOM BOSCO SOBRE ESTA VOCAÇÃO

Torna-se oportuno apresentar inicialmente um resumo dos aconteci-


mentos da década da maturidade de Dom Bosco, a fim de situar melhor a
reflexão de Dom Bosco sobre a vocação salesiana leiga e seu progresso até a
definição de sua identidade.

1. A década 1875-1885
Dom Bosco completou nesses anos a criação da obra salesiana e pôs em
marcha sua grande expansão; deu passos para estabelecer as estruturas inter-
nas da Sociedade Salesiana e refletiu e escreveu sobre a obra salesiana.
1. A reflexão permanente de Dom Bosco sobre o componente lei-
go da Sociedade Salesiana propiciou declarações importantes, que
definiam e impulsionavam a vocação salesiana leiga. Poder-se-ia
dizer que, com elas, Dom Bosco concluiu a fundação da Socieda-
de Salesiana.
2. Dom Bosco completou seu programa de Fundador com a organi-
zação dos Salesianos Cooperadores.
3. A experiência pessoal de Dom Bosco sobre a Igreja no mundo
todo durante o Vaticano I fortaleceu sua convicção de que a vo-
cação salesiana tinha alcance mundial. Esta convicção levou à rá-
pida expansão da obra salesiana em toda a Itália, incluindo final-
mente Roma, e, depois, na França, na Espanha e em vários países
da América do Sul: Argentina, Uruguai, Brasil, Chile e Equador.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ao mesmo tempo, Dom Bosco envolveu sua Congregação nas mis-


sões entre as populações originárias da América do Sul, proporcio-
nando o reconhecimento oficial do seu apostolado. Previu, inclu-
sive, a difusão da obra salesiana pelo mundo todo e das missões na
Ásia, Oceania e África.
4. Após a aprovação das Constituições, Dom Bosco avançou aos
poucos até a consolidação sistemática da vida e da obra da Con-
gregação e pôs em ação suas estruturas de estudo e formação.
5. A criação das províncias, chamadas de Inspetorias, significou o
primeiro esforço de organização para ter um governo mais com-
pleto da Sociedade.
6. Quatro Capítulos Gerais estabeleceram normas para a consolida-
ção posterior e o desenvolvimento da vida e da obra salesiana.
7. Dom Bosco deu novo impulso e nova orientação ao apostolado
da imprensa.
8. Sua reflexão sistemática permitiu-lhe produzir textos importantes
sobre a vida salesiana e a sua obra.
9. Tudo isso acontecia enquanto Dom Bosco e dom Gastaldi se envol-
viam num doloroso conflito sobre diversos temas, que teve a ver um
pouco com a questão da aprovação das Constituições Salesianas.
10. A concessão dos privilégios de isenção e a nomeação de um vigá-
rio com decreto de sucessão por Leão XIII (1884) foram aconteci-
mentos importantes em apoio do já envelhecido Fundador.

2. A vocação salesiana leiga na reflexão progressiva de


Dom Bosco
Depois de afirmar nas Constituições a unicidade da vocação salesiana,
Dom Bosco, nos últimos anos, da década de 1860 até a de 1880, dedicou-se
à reflexão sobre a identidade do salesiano leigo. Padre Caviglia, ao descrever a
originalidade da vocação salesiana leiga como foi concebida por Dom Bosco
e como ele finalmente a expressou, escreveu:

A criação de um laicato religioso que participasse ativamente da atividade


apostólico-educativa, ou seja, a equiparação de leigos de calça e paletó com
o sacerdote na vida religiosa e no apostolado, com o Sistema Preventivo, é a
ideia mais original de Dom Bosco.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Deixo ao leitor a estimativa do impacto educativo da plena identidade de


condição existente entre o educador [salesiano leigo] e o aluno a partir do
ponto de vista educativo. O jovem aprende a viver como trabalhador cristão
leigo de um mestre que também é um trabalhador leigo.

E quão genuinamente cristã, moderna e democrática é esta igualdade de con-


dição pela qual um leigo e um sacerdote compartilham as preocupações da
vida religiosa e do apostolado em igualdade de condições! Trabalhemos jun-
tos, portanto, pela transformação cristã da sociedade!

De outro ponto de vista, e estou certo de que muitos estarão de acordo, o


salesiano leigo representa simbolicamente uma consagração ainda mais pro-
funda do que a do salesiano sacerdote. Este último está, de certo modo, obri-
gado oficialmente [a levar uma vida de consagração] por causa do hábito que
veste. Ao contrário, o salesiano irmão que, sem qualquer sinal exterior, vive
os conselhos evangélicos é, com sua vida, um exemplo de modelo de pessoa
cristã, segundo o qual, o Autor da cristandade deseja que a sociedade seja
construída. Além do mais, a sociedade humana, por sua própria natureza e
em seu conjunto, é leiga; embora, na compreensão cristã, se construa com a
colaboração tanto dos leigos como do componente sacerdotal.1

À moda de comentário, deve-se assinalar que, não obstante a descrição


anterior da vocação salesiana leiga reflita historicamente as ideias do Funda-
dor, a figura do salesiano coadjutor viu-se envolvida numa busca contínua e
árdua, quase difícil de alcançar, em busca de sua identidade, no que também
ele está comprometido.
Dom Bosco esforçou-se para encarnar o ideal em circunstâncias históricas
concretas. Porque, embora a ideia original contivesse praticamente o que assi-
nala o padre Caviglia e, ainda mais, Dom Bosco trabalhou dura e longamente
para conceituar a identidade profissional dos salesianos leigos, definir o seu
papel e produzir “uma descrição do seu trabalho” na atual conjuntura histórica.
Advirta-se, ainda, que o padre Caviglia, partindo da realidade observada,
considera a vocação salesiana leiga essencialmente vinculada ao “mundo do
trabalho”. Este vínculo pode muito bem ser devido a circunstâncias históricas.
Seguiremos agora a pista da reflexão contínua de Dom Bosco sobre a vo-
cação salesiana leiga no contexto histórico, através do exame de documentos-
-chave sobre o tema.

1
A. Caviglia, Don Bosco: profilo, 131-132.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Rascunho dos Regulamentos da Casa, de 1867. Nota-se a correção de Dom Bosco:


“coadjutores” em lugar de “empregados” e “pessoal de serviço”.

3. O salesiano leigo nas primeiras Constituições2


Os artigos fundacionais sobre o Fim e a Forma da Sociedade
No primeiro rascunho das Constituições Salesianas (1858) e em todas
as revisões posteriores, o artigo 1o do capítulo Fim desta Congregação situa os
salesianos leigos lado a lado, e num plano de igualdade jurídica, com o seu
homólogo clérigo.
1. O fim desta congregação é reunir os seus membros, sacerdotes, estudantes
clérigos e também leigos, para que possam aperfeiçoar-se a si mesmos imitan-
do as virtudes de nosso Divino Salvador (especialmente em sua caridade para
com os jovens).

Ao reescrever o artigo com outra formulação (1864), Dom Bosco des-


creverá a composição da Sociedade em termos idênticos de igualdade: “[Ela]
é formada por sacerdotes, clérigos e leigos”.3
2
As citações e referências foram tomadas de G. Bosco, Costituzioni, 72ss.
3
A tríplice divisão dos membros (eclesiásticos, clérigos e leigos) é, na verdade, dúplice: clérigos
e leigos. A segunda categoria, estudantes clérigos ou seminaristas, foi introduzida possivelmente para
especificar, diferentemente de outras congregações que aceitavam como membros apenas sacerdotes or-
denados, que a Sociedade Salesiana também tinha estudantes ainda não ordenados, o mesmo que leigos.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

O artigo 1o do capítulo sobre a Forma da Congregação, desde os pri-


meiros rascunhos até o texto aprovado, ao descrever o tipo de consagração
religiosa, professada pelos membros reunidos, também não faz qualquer dis-
tinção entre o elemento clerical e o elemento leigo:

Todos os membros reunidos levam vida comum, unidos unicamente pela


caridade fraterna e pela profissão dos votos simples, que os vinculam para
formar um só coração e uma só alma para amar e servir a Deus [...].

Os membros leigos
Um dos defeitos das primeiras Constituições é não ter especificado o
papel dos leigos na Sociedade. Os pontos a seguir indicam onde e em que
termos se faz distinção entre os membros clérigos e os membros leigos e onde,
a maior parte das vezes, não se faz qualquer distinção, embora fosse possível
esperá-la. Advirtam-se, ainda, os vários termos utilizados para designar os
membros leigos.
1o Resumo histórico. Frase final, somente em 1858: “As pessoas que
professam estas regras são no momento: 5 sacerdotes, 8 estudantes
clérigos, 2 leigos”.
2 Finalidade. Art. 1o: 1858-1860: “Reunir seus membros, sacerdo-
o

tes, estudantes clérigos e também leigos”. 1864-1875: “Esta Socie-


dade é composta por sacerdotes, estudantes clérigos e leigos”.
3 Forma. Vários artigos falam de “todos os sócios”, “todos os mem-
o

bros”, “ninguém”, “cada um” etc., sem fazer qualquer distinção.


O mesmo ocorre nos capítulos sobre obediência, pobreza, castida-
de, governo religioso da Sociedade, práticas de piedade, e outros.
4 Capítulos sobre o governo religioso, governo interno, eleição do Rei-
o

tor-Mor, outros superiores, cada casa em particular: quando se fala


dos superiores, também do Reitor-Mor, e das qualidades para o
cargo e assuntos similares, nunca se diz que o superior deve ser
sacerdote, ou seja, os irmãos leigos não estão expressamente ex-
cluídos. Entretanto, é correto dizer que Dom Bosco desse por cer-
to que o superior fosse sempre um sacerdote, pois estava criando
uma congregação clerical segundo a forma basicamente tridentina
imposta por Roma; numa congregação dessas, a jurisdição recai
sobre alguém ordenado.

747

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Dom Bosco: história e carisma 2

5o Capítulo sobre a admissão. Art. 1o: 1874-1875: Para serem admi-


tidos, entre outras coisas, os leigos devem ter recebido instrução
rudimentar na fé católica. Art. 8o ou 9o: 1860-1873: Os irmãos
coadjutores, os sócios auxiliares, ao ingressar devem trazer consigo
a própria roupa e, somente 300 francos; esta espécie de “dote” era
maior para os estudantes clérigos.
6 Capítulo sobre os estudos. Este capítulo, introduzido pela primeira
o

vez em 1873, ocupa-se dos estudos para o sacerdócio; nada diz


sobre os leigos.
7 Capítulo sobre as práticas de piedade. Art. 2o: 1864-1875: “Os es-
o

tudantes clérigos e os irmãos coadjutores assistirão à missa diária e


receberão a Sagrada Comunhão ao menos uma vez por semana”.
Quando se prescrevem os sufrágios por salesianos defuntos, sejam
clérigos ou leigos, faz-se uma distinção entre os “sacerdotes” e “os
que não o são”: os primeiros devem oferecer a missa, enquanto os
outros devem receber a Comunhão.
8 Capítulo sobre o noviciado. 1874-1875: Não há qualquer distin-
o

ção entre noviços clérigos e noviços leigos.


9o Capítulo sobre o hábito/roupa. Art. 3o: 1860-1875: Os coadjuto-
res, se possível, hão de se vestir de preto.

Comentário
Os termos leigos, sócios leigos, irmãos coadjutores etc., como utilizados nas
primeiras Constituições, referem-se certamente à mesma realidade. A varie-
dade de termos não reflete uma mudança de concepção.
Com estes termos, Dom Bosco procurava designar unicamente o salesia-
no coadjutor, ou seja, a vocação leiga que expressava um tipo de consagração
no interior da Sociedade Salesiana. Consequentemente, ele não pretendia
identificar nem os “membros externos”, introduzidos depois de 1860 e que
podiam ser padres4 nem, como diz expressamente, os conversi, ou irmãos
segundo o estilo das ordens religiosas mais antigas.
De onde, então, Dom Bosco tomou a ideia? Muito antes de Dom Bos-
co fundar a sua Sociedade os leigos participaram das comunidades religiosas,
criando novas e modernas formas de associação com os clérigos. Por exem-
plo, nas Constituições Cavanis (1839), que Dom Bosco teve como modelo
4
Os três membros externos que constam são padres, entre eles, padre Pestarino.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

quando redigia as suas, tinha uma fórmula similar, mas não a mesma ideia:
“Esta Congregação das Escolas da Caridade é uma sociedade de sacerdotes
seculares e clérigos, que aceita irmãos leigos como serventes” (cap. 1o, art.
1o). As Constituições vicentinas (1642-1670) também poderiam ter pro-
porcionado a fórmula e, até certo ponto, o conceito: “Esta congregação é
composta por sacerdotes [eclesiásticos] e leigos” (cap. 1o, art. 2o).
Nos dois casos, embora a fórmula possa ser idêntica, a realidade é dife-
rente. No primeiro, esses religiosos eram serventes; no segundo, funcionavam
a título secundário dentro de uma sociedade de padres com votos privados ou
promessas. Dom Bosco, ao contrário, previra a viabilidade de uma vocação,
religiosos leigos e religiosos clérigos, em que ambos compartilhassem a mesma
consagração e apostolado. Dito com mais precisão, Dom Bosco pensava numa
vocação religiosa salesiana aberta a membros que podiam optar pelo sacerdó-
cio ou pelo estado leigo.5 Aí está a originalidade mencionada por Caviglia.
Todavia, não obstante a óbvia declaração inicial sobre o salesiano leigo,
ao longo da história do texto constitucional, de 1858 a 1875, a vocação reli-
giosa leiga não chega a ser definida. Dom Bosco parece ter precisado de tem-
po e experiência para conceituar e expressar na prática a natureza e a missão
apostólica dos salesianos leigos.

4. Primeiros documentos não constitucionais. O termo


“coadjutor”
Dom Bosco utiliza, nas primeiras Constituições, uma série de termos
para descrever a mesma realidade. Um deles é coadjutor, que aparece pela
primeira vez no rascunho de 1860 e várias vezes depois. O mesmo termo é
também utilizado em outros documentos anteriores, nos quais ou se referem
à vocação leiga ou é usado de maneira ambígua. Convém, portanto, analisar
o termo em seu contexto.

5
Não se pode documentar em qual momento anterior a 1858 – quando fica atestado pela pri-
meira vez nas Constituições – Dom Bosco começou a desenvolver essa concepção. Que tivesse pensado
nisso antes de 1858 pode ser deduzido da última frase do Resumo histórico, que era o segundo capítulo
do primeiro rascunho constitucional. Ali diz: “As pessoas que se comprometeram com a observância
destas Constituições eram 15: 5 sacerdotes, 8 estudantes clérigos e 2 leigos” (G. Bosco, Costituzioni,
50). Não sabemos quem eram esses leigos, pois na fundação, em 1859, Luís Chiapale é considerado
leigo somente porque ainda não recebera a batina. José Rossi, considerado o primeiro salesiano coadju-
tor, foi admitido ao noviciado em 1861, mas só professou em 1864. Contudo, nas primeiras profissões
temporárias oficiais, em 1862, já havia dois salesianos leigos, José Gaia e Frederico Oreglia di Santo
Stefano.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Regulamento para a Casa Anexa do Oratório de São Francisco de Sales


O Arquivo Central Salesiano conserva vários rascunhos desse Regula-
mento, datados em 1852, 1855 e 1867, alguns corrigidos por Dom Bosco.
No capítulo 8o, refere-se aos empregados ou pessoal de serviço. Em 1855, nos
manuscritos do padre Rua com correções de Dom Bosco, o capítulo 8o traz
o título de Serventes, empregados domésticos (“servitù”). Aqui são pertinentes
apenas os artigos 1o e 5o do capítulo 8o.6

Capítulo 8o: Pessoal de serviço


1. Os empregados são [utilizados em] três [áreas, como]: cozinheiro, cama-
reiro e porteiro. Ajudam-se mutuamente em todas as coisas, conforme seja
compatível com seus direitos individuais.
5. Não devem ter familiaridade com os meninos. [Deverão demonstrar, cer-
tamente] respeito e caridade para com todos [os meninos com os quais
devem tratar] no cumprimento de suas funções; mas nunca devem entrar
em relações estreitas ou [manter] amizades particulares.

Dom Bosco introduziu algumas mudanças no rascunho de 1867 do


mesmo Regulamento. Numa cópia, com correções à margem, entre linhas,
de sua própria mão, Dom Bosco modificou o título do capítulo, “domésti-
cos” por “coadjutores”, e corrigiu o texto do capítulo como segue, deixando
inalterado o restante:

Capítulo 8o. Empregados (Servitù) Coadjutores

1. Os empregados (as pessoas de serviço) coadjutores [ocupam-se] em três [áreas,


como]: cozinheiro, camareiro e porteiro. Ajudam-se mutuamente em todas
as coisas, conforme seja compatível com seus direitos individuais.
5. Não devem ter familiaridade com os meninos. [Deverão demonstrar, certa-
mente] respeito e caridade para com todos [os meninos com os quais devem
tratar] no cumprimento de suas funções; mas nunca devem entrar em rela-
ções estreitas de caráter mundano ou [manter] amizades particulares.7

6
ASC D482: Piano di Regolamento (1855), Manuscrito de Rua, e outros, com correções de
Dom Bosco: FSB 1,959 B3 (A4-D3). Outros manuscritos desse Plano com texto idêntico no capítulo
8o encontram-se no mesmo lugar em ASC D482 e em FDB. Dois trazem a data de 1852; um terceiro,
corrigido por Dom Bosco, não tem data, mas parece ser do mesmo ano. O texto de MB IV, 741s.
provém de um destes.
7
ASC D482: Regolamento della Casa Annessa (1868), FSD 1, 963 A6-8 (1,962 C9-1,963,D2).

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Desde então, o capítulo 8o utilizará o termo coadjutores.8 A mudança de-


veu-se, parece, ao fato de os salesianos leigos dessa época, aos quais também se
chamava de “coadjutores” nas primeiras Constituições, prestarem serviços desse
tipo. Contudo, o texto do capítulo 8o manteve-se integralmente para o serviço
doméstico. É possível que, no início, o termo se aplicasse indistintamente a
todos os leigos que ajudavam no Oratório em qualquer cargo. Eventualmente,
contudo, se fez uma distinção entre o pessoal de serviço e os salesianos aju-
dantes ou coadjutores. Assim aparece no regulamento definitivo impresso em
1877. O capítulo 8o continuou redigido para os domésticos, mas foi intitulado
“coadjutores e empregados”, fazendo-se a distinção num novo artigo:
Capítulo 8o. Coadjutores e empregados
7. Os coadjutores que pertencem à Congregação Salesiana devem observar as
práticas de piedade como se estabelece no regulamento.

A questão terminológica foi apresentada no Capítulo Geral III (1883).


Dom Bosco pensava que, para o salesiano leigo, se devia manter a palavra
coadjutor, porque era utilizada pela Congregação dos Bispos e Regulares; mas
não devia ser utilizada para o serviço doméstico.
Lembranças confidenciais aos diretores
Iguais ambiguidade e evolução são documentadas nas Lembranças confi-
denciais aos diretores. Este conjunto de instruções era, em sua origem, uma
carta de Dom Bosco ao padre Rua, quando foi nomeado diretor da escola
de Mirabello (1863). Foram, depois, reeditadas e ampliadas para uso geral e
publicadas em sua forma definitiva em 1886.9
O capítulo 4o das Lembranças confidenciais, de 1863, intitulado “Com o
pessoal de serviço” consta de quatro artigos:
Com os empregados (Com o pessoal de serviço)

1o Não tenham familiaridade com os meninos. Procura que tenham todas as


manhãs a oportunidade de ouvir a santa missa e aproximar-se dos santos
sacramentos a cada quinze dias ou uma vez ao mês.
2o Sê sempre amável ao dar ordens, deixando claro que estás interessado no
bem de suas almas. Às mulheres, não se deve permitir entrar nos dormitórios

Ver a cópia caligráfica, datada em 1867, em FDB 1, 961 C8 & 10 (1,960 D10-1,962 C8).
8

9
Para um estudo crítico dos documentos do arquivo e da edição crítica dos textos de 1883 e
1886, ver F. Motto, I “Ricordi confidenziali ai Direttori” di Don Bosco (Piccola Biblioteca dell’Istituto
Storico Salesiano, 1). Roma: LAS, 1984. A versão de 1863 está em MB VII, 525s; a mais extensa, de
1871, em MB X, 1043s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

dos meninos ou na cozinha; nem devem tratar com qualquer pessoa da casa,
exceto por razões de caridade ou necessidade.
3 No caso de surgir algum desentendimento entre os trabalhadores domésti-
o

cos e os meninos ou outras pessoas no seminário,10 ouve atentamente a to-


dos os interessados; mas, em geral, dá a tua opinião isoladamente, de modo
que aquilo que digas a um não possa ser ouvido pelos outros.
4 Nomeie-se alguém de integridade comprovada como encarregado dos do-
o

mésticos. [Ele] deverá velar especialmente sobre o trabalho e a conduta mo-


ral dos que dependem dele. Deverá esforçar-se ciosamente para evitar o
roubo e as más conversas.11

Esta normativa de 1863 refere-se exclusivamente ao pessoal doméstico.


Contudo, em data incerta, antes de 1871, provavelmente nos anos sessen-
ta, Dom Bosco reescreveu o capítulo incluindo coadjutores. Foi uma decisão
pessoal com que corrigia e ampliava o rascunho do texto anterior, do padre
Berto; os acréscimos de Dom Bosco estão em cursivo:

Com os empregados (Com o pessoal de serviço)

1o Não tenham familiaridade com os meninos. Procura que tenham todas as


manhãs a oportunidade de ouvir a santa missa e aproximar-se dos santos
sacramentos a cada quinze dias ou uma vez ao mês, de acordo com as Regras
e Constituições da Congregação. Ao pessoal de serviço, deve-se animar a re-
ceber a confissão a cada quinze dias ou uma vez ao mês.
2o Sê sempre muito amável ao dar ordens e deixa [-lhes] claro que estás inte-
ressado no bem de suas almas. Às mulheres [que fazem as tarefas domésticas
como empregadas] não seja permitido entrar nos dormitórios dos meninos
ou na cozinha; nem devem tratar com qualquer pessoa da casa, exceto por
razões de caridade ou necessidade. Este artigo é de muitíssima importância.
3 No caso de surgir desentendimento ou contendas entre os trabalhadores do-
o

mésticos, ou entre os assistentes ou entre os meninos ou outras pessoas,12 escu-


ta amavelmente a todos os interessados; mas, em geral, dá tua opinião isolada-
mente, de modo que aquilo que digas a um não possa ser ouvido pelos outros.

10
A escola de Mirabello foi chamada, e era na verdade, Seminário menor de Mirabello. Como tal
funcionou a época de dom Ferré, bispo de Casale, a cuja diocese pertencia.
11
ASC A0951 002: Lettere originali di Don Bosco: Rua, FDB 47 A4 (A2-5); F. Motto, I Ricordi
26; MB VII, 525-526.
12
Provavelmente, Dom Bosco quis dizer: “... entre empregados ou entre assistentes (coadjuto-
res) e os jovens ou outras pessoas”.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

4o Nomeie-se uma pessoa um coadjutor de integridade comprovada como chefe


dos domésticos. [Ele] deve velar especialmente pelo trabalho e a conduta
moral dos que dependem dele dos empregados (servitù). Deve esforçar-se cio-
samente para evitar o roubo e as más conversas. Procure evitar sempre que
alguém aceite encargos, assuntos relativos aos de fora, quaisquer que sejam.13

Em todos os rascunhos posteriores das Lembranças confidenciais, os coadju-


tores aparecem associados aos empregados. Embora as correções demonstrem que
se devem distinguir as duas categorias, os novos rascunhos do capítulo conservam
as características do rascunho anterior, criando ambiguidade ou confusão. Por
exemplo, a proibição “Não tenham familiaridade com os meninos” (art. 1o no
qual não se alude às amizades particulares, mas ao trato e contato com eles) fora
escrita exclusivamente para os empregados. Não se aplica aos salesianos coadju-
tores que, quando este rascunho foi escrito, atuavam claramente como educado-
res e administradores, especialmente nas oficinas.14

Marcelo Rossi (1847-1923), salesiano coadjutor. Nomeado provisoriamente


por Dom Bosco como porteiro do Oratório de Valdocco, ali permaneceu
por quarenta e nove anos. Nele se cumpriu de modo perfeito o dito de
Dom Bosco: “O bom porteiro é um tesouro para uma casa de educação”.

13
ASC A095: Ricordi confidenziale, FDB 1,361 E4. Esta é uma boa cópia do padre Berto com
correções de Dom Bosco. Para uma discussão sobre data e características, ver F. Motto, I Ricordi, 12-13.
14
Por causa da aparente ambiguidade, a proibição foi entendida por alguns, erroneamente,
como excludente da participação do salesiano leigo no trabalho educativo salesiano.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Designar o salesiano leigo como coadjutor era um costume estabelecido


nas Constituições e, também, na linguagem salesiana em geral, tanto escrita
como oral. O que o termo representa precisamente? Por razões linguísticas ou
etimológicas, o prefixo “co-” provavelmente não deveria ser tomado de modo
estrito, pois Dom Bosco utiliza nas Constituições também a simples forma aju-
dante para a mesma realidade. Sua forma composta, porém, levou a argumentar
que o termo refere-se a um co-ajudante, ou seja, aquele que ajuda com o grupo
de clérigos da Sociedade, em igualdade de condições e, deve-se presumir, na
obra salesiana. Neste sentido, também os padres são co-ajudantes. Por isso, pa-
rece que a coparticipação em pé de igualdade na vocação salesiana e no aposto-
lado, sendo real como é, deve basear-se em motivos distintos dos etimológicos.

5. Documentos dos anos setenta


Na década de 1870, Dom Bosco começou a falar da vocação salesiana
leiga em relação ao desenvolvimento das oficinas e do seu programa de for-
mação profissional.

Conferência de Dom Bosco (29 de outubro de 1872)


César Chiala, noviço em 1872-1873, anotou as conferências feitas por
Dom Bosco em Valdocco aos noviços, clérigos e leigos.15

Contexto e conteúdo
A conferência de 29 de outubro de 1872 versa sobre o Fim da Socieda-
de. Depois de expressar a finalidade com os termos mais simples possíveis (a
salvação da alma, a própria e a dos outros, especialmente a dos jovens), Dom
Bosco dirige-se aos noviços; diz-lhes que a salvação das almas é assunto de
todos, não só dos padres. Todos são chamados a participar dessa missão, cada
um a seu modo, mediante as capacidades adquiridas em uma das oficinas.
Percebemos pela declaração de Dom Bosco em 1872 que a vocação sa-
lesiana leiga é vista pela primeira vez a partir dos aprendizes do Oratório. Pa-
rece que até meados dos anos setenta, as oficinas, a seção dos aprendizes, não
foi a verdadeira fonte da vocação salesiana leiga, como Dom Bosco a expli-
cará em 1876. Nos anos setenta, somente alguns do relativamente pequeno
número de salesianos leigos que entraram vieram das oficinas ou mesmo da
escola do Oratório. A maior parte uniu-se a Dom Bosco como jovens adultos
ou adultos vindos de fora, com variados graus e tipos de educação.

ASC A0250201: Conferenze, Chiala, Conferenza agli aspiranti, 29 de outubro de 1972, FDB
15

441 E11-12; publicada em MB X, 1084ss.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Aparentemente, nesse momento (1872), alguns jovens da sessão dos apren-


dizes entraram ou desejavam entrar na Congregação, embora até 1876 Dom Bos-
co não tenha falado publicamente da vocação salesiana leiga à comunidade de
aprendizes. Os aprendizes tiveram uma pequena aprendizagem profissional, con-
forme o programa de estudo, e quase nada de educação humanista. Era a situação
de fato. Além do mais, a promoção das vocações sacerdotais através da piedade
e do estudo (o plano de estudos humanísticos) era a prioridade da Sociedade
Salesiana assim como da Igreja em geral. Tradicionalmente, só o padre possuía
as funções de ministro, evangelizador, educador etc. Poder-se-ia pensar que com
a secularização da sociedade através da Revolução Liberal, a prioridade cairia no
desenvolvimento de um laicato cristão e religioso educado, com um papel chave
na educação. Isso, porém, não aconteceria por um longo tempo!
Enquanto isso, um conjunto de circunstâncias históricas relacionadas
com o “mundo do trabalho” tornou possível a expansão do campo de ativida-
de para o salesiano coadjutor. A rápida percepção dos movimentos sociais da
parte de Dom Bosco convenceu-o de que o compromisso do salesiano leigo
como religioso e como educador no “mundo do trabalho” era uma forma
prática de definir o âmbito da atividade da vocação salesiana leiga. Nesse con-
texto, na medida em que as oficinas foram se convertendo numa adequada
escola de formação profissional, Dom Bosco considerou que a comunidade
dos aprendizes do Oratório haveria de ter um papel mais importante.

Manuscrito da conferência de Dom Bosco aos noviços, 29 de outubro


de 1872, redigido por César Chiale: Objetivo da Sociedade é salvar nossa
alma e depois salvar também a dos outros, especialmente dos jovens...

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Dom Bosco: história e carisma 2

Texto16
A finalidade da nossa Sociedade é salvar nossas próprias almas e as almas dos
outros, especialmente dos jovens.
Seria um erro entrar na Congregação com a esperança de viver melhor em
relação à alimentação, saúde, educação, fama, relações sociais, aos postos de
comando e assim por diante.
Nosso objetivo é salvar nossas almas e as [almas] dos outros. Que objetivo mais
nobre! Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio a este mundo com o único propósito
de salvar o que estava perdido. O melhor dom que concedeu aos seus apóstolos
e discípulos prediletos foi enviá-los a evangelizar o mundo. Deve-se assinalar
que os enviou primeiro a Israel e, mais tarde, ao mundo todo. Igualmente,
também nós precisamos começar com aqueles que estão mais perto de nós.
A melhor maneira de salvar nossa alma e a dos outros é reformar a nós mes-
mos e dar bom exemplo. Façamos tudo com a precisão dos relógios suíços.
Levemos a cabo com perfeição a tarefa que a Congregação nos confiou. Pode
ser que alguns de vós, aprendizes, digam: “Pode ser que a Congregação tenda
a salvar almas, mas isso é para os sacerdotes, não para nós”. Em nenhum ou-
tro lugar aparece tão certa a comunhão dos santos como numa congregação
religiosa, em que todos os religiosos se beneficiam [uns] dos outros. Os que
pregam e ouvem confissões devem comer. Como irão fazê-lo, sem um cozi-
nheiro? Do mesmo modo, também os mestres instruídos precisam de roupa
e sapatos, e como irão adiante sem alfaiates e sapateiros? O mesmo se diga de
nossos corpos. A cabeça é mais importante do que a perna, o olho mais do
que o pé, mas o corpo precisa das duas coisas. Se um graveto penetrasse no
pé, imediatamente a cabeça, os olhos e as mãos se mobilizariam em sua ajuda.
Vem aqui, muito a propósito, a comparação com uma fábrica de relógios.
Quando todos os componentes de um relógio são feitos com precisão, eles
se completam perfeitamente. O resultado é um relógio de precisão. É certo
que algumas partes são mais delicadas e essenciais do que outras; mas quebrai
qualquer parte e o relógio deixará de funcionar corretamente.
Aquele a quem a autoridade ou a sabedoria dá uma posição mais elevada
recorde-se do que disse Davi no apogeu da sua glória: “Sou um mísero infeliz
e moribundo desde a infância” (Salmo 87[88], 16). Quanto mais alguém for
elevado, mais precisa ser humilde. É como a escada de um bombeiro; quan-
to mais alto ele sobe, mais exato deve ser o seu controle, para que não caia.
Quanto mais se sobe, mais dura é a queda!

16
MB X, 1061s.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Comentário
As oficinas e a comunidade dos aprendizes foram criadas em Valdocco
em relação com o acolhimento dos jovens, por razões práticas, cuja principal
finalidade era proporcionar proteção extra aos jovens aprendizes, eliminando
os perigos morais e o tratamento abusivo nas oficinas da cidade. Havia ainda
uma razão prática: como os meninos eram extremamente pobres e talvez não
pudessem ou quisessem estudar, era importante adquirirem os meios que lhes
permitissem ganhar a vida honestamente. Por outro lado, as oficinas propor-
cionavam bens e serviços necessários à casa, servindo também a uma limitada
clientela externa.
Por isso, as 6 oficinas criadas no Oratório entre 1853 e 1862 (sapataria,
alfaiataria, encadernação, carpintaria, forjaria e gráfica) serviam a fins práti-
cos. Inicialmente, Dom Bosco não queria manter os meninos limitados a um
ofício ou emprego agrícola, sem acesso à educação e sem a possibilidade de
ascensão social, a menos que não pudesse evitá-lo.
Entretanto, os programas de educação do povo criados pela Revolução
Liberal e a introdução progressiva de novos métodos de produção deram lu-
gar a uma situação nova. Dom Bosco logo percebeu que as oficinas, que se fo-
ram convertendo gradualmente em escolas de formação profissional, teriam
um novo papel e, por isso, decidiu oferecer à comunidade dos aprendizes do
Oratório o desafio da vocação salesiana leiga.
Enquanto isso, ele já experimentara o valor dos poucos salesianos leigos
que se tinham unido a ele nos anos sessenta, precisamente no âmbito da
direção e administração das oficinas. Do ponto de vista da direção e organi-
zação geral, as oficinas passaram por várias fases. Inicialmente, Dom Bosco
pôde contratar mestres de oficina, com contratos diferenciados, para que eles
dirigissem as oficinas. Não contente com os contratos, ele mesmo num de-
terminado momento foi diretor e administrador de todo o setor. Contudo,
só conseguiu assentar bem as bases quando, depois de 1860, pôde dispor de
seus próprios salesianos leigos para dirigir e administrar as oficinas.
O Regulamento para as Oficinas, de 1862, que substitui os anteriores,
reflete a nova orientação. Acima do mestre de oficina, que, por força das cir-
cunstâncias, não era salesiano, havia uma nova presença, um “assistente leigo
salesiano”, cujo encargo era velar pela conduta moral dos jovens, administrar
a oficina e adquirir equipamentos e materiais. José Rossi, Frederico Oreglia
e José Buzzetti exerceram essa função. José Gaia trabalhava como cozinheiro.
É certo que esta estrutura foi modificada com a introdução de um “assistente
clérigo”, encarregado de vigiar a moral e disciplina dos meninos, norma esta

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Dom Bosco: história e carisma 2

acolhida no regulamento definitivo publicado em 1877. Isso, porém, foi pos-


sível para facilitar aos salesianos leigos a direção mais eficaz e a administração
dos sempre maiores e mais complicados programas das oficinas.
Estas experiências que foram um sucesso levaram Dom Bosco a envolver
intensamente os salesianos leigos no “mundo do trabalho”. Leve-se em conta
que, ao relacionar a vocação salesiana leiga com a oficina, Dom Bosco estava
respondendo a circunstâncias históricas concretas e tratava de adaptar-se a
elas. Não estava definindo, portanto, nesses termos, a vocação salesiana leiga
enquanto tal. Circunstâncias históricas e urgências práticas tiveram um papel
importante para determinar a direção para onde se dirigia a atividade dos
salesianos leigos e para o que se preparava e educava o “componente traba-
lhador (leigo)” nas casas salesianas; assim se expressaram os Capítulos Gerais
III e IV. Todavia, seria errado pensar que Dom Bosco fosse motivado, prin-
cipalmente, pela evolução histórica da sociedade ou, menos ainda, por uma
preocupação pragmática pessoal, expondo a ideia da vocação salesiana leiga
nas Constituições no final dos anos cinquenta. Sua motivação era, muito
mais, a profunda compreensão da natureza da vida religiosa e das possibilida-
des que ela oferecia ao leigo. Pode-se afirmar com segurança que Dom Bosco
jamais renunciou à ideia de um componente salesiano com vocação leiga que
trabalhasse pela salvação das almas lado a lado com o padre e que atuasse
principalmente nas áreas vetadas ao padre, fosse pelo costume fosse pela lei.
Em meados dos anos oitenta, as oficinas orientaram-se definitivamente
para o novo “mundo do trabalho” e converteram-se aos poucos em escola de
formação profissional. O Capítulo Geral II (1880) considerou a introdução
de algumas aulas pela manhã para os aprendizes, mas não tomou qualquer
medida para desenvolver um programa de formação e estudo próprio de uma
escola de formação profissional. O Capítulo Geral III (1883), porém, elabo-
raria um amplo programa de estudo, aperfeiçoamento e formação, ampliado
e completado pelo Capítulo Geral IV (1886).
Dessa forma, em meados dos anos setenta, Dom Bosco, ao pressentir tal-
vez os novos horizontes que se aproximavam, lançou uma campanha de recru-
tamento entre os aprendizes. Depois da aprovação das Constituições (1874),
iniciou um período de reflexão procurando sistematizar, também teoricamente,
os aspectos da sua obra e entrar em novos empreendimentos. As novas funda-
ções, na França e na América do Sul, com planos de expansão ainda maiores,
tornaram ainda mais importante a presença de salesianos leigos.
Deve-se levar em conta que, embora sem publicidade, Dom Bosco não
ficara inativo. Em 1876 havia 50 salesianos leigos, professos na Congregação,
28 com votos perpétuos e 22 trienais, além de 28 noviços coadjutores e 25

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

aspirantes coadjutores à espera de entrar no noviciado. Foi nessas circunstân-


cias que, em 1876, ele lançou em duas conferências um apelo à comunidade
dos aprendizes de Valdocco.

Conferência de Dom Bosco (19 de março de 1876)

Contexto
As Memórias Biográficas descrevem a ocasião da conferência de Dom
Bosco e identificam o padre Barberis como fonte.17
Normalmente, a festa de São José era marcada por uma conferência do padre
Rua aos salesianos do Oratório, mas, como estava em visita às nossas escolas
e supervisionando os exames semestrais de Teologia dos nossos clérigos, Dom
Bosco substituiu-o com muito gosto.
Dirigiu-se aos salesianos, noviços, postulantes e Filhos de Maria e estudantes
dos dois últimos anos da secundária [4o e 5o de bacharelado] [...]. Duzentas e
cinco [pessoas] assistiram à conferência de Dom Bosco, cujo tema foi o texto
bíblico: “A messe é grande, mas poucos os operários” [Lc 10,21].
No dia seguinte, padre Barberis reconstituiu a conferência de Dom Bosco, a
partir das anotações tomadas durante a apresentação. Declara que estava mais
preocupado com a substância do que com as palavras; mesmo assim, prestou-
-nos um notável serviço [...].
Padre Barberis comentou: “A mensagem foi muito clara; mas falou com tanta
energia, que nos dias seguintes vários jovens pediram para entrar na Congre-
gação Salesiana [...]”.

Texto
Messis multa, operarii pauci
Certo dia, nosso Divino Salvador passava pelo campo da vizinha Samaria.
Olhando ao redor, para as planícies e vales, e ao ver a abundante colheita,
indicou a seus apóstolos que eles também podiam desfrutar desse espetáculo.
Contudo, [eles] perceberam logo que não havia ninguém para a colheita. Vol-
tando-se para os apóstolos e, aludindo certamente a algo muito mais sublime,
Jesus lhes disse: “A messe é muita, mas os trabalhadores são poucos”. Ao longo
dos séculos, a Igreja e os povos de todas as nações ouviram o eco deste grito de
angústia. Podeis perceber rapidamente que com os campos e vinhedos, nosso

17
Apresenta-se aqui um resumo da conferência de Dom Bosco; outro texto mais completo pode
ser lido em MB XII, 625ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Divino Salvador queria indicar a Igreja e toda a humanidade; e que a colheita


na qual pensava eram as almas a reunir em seu celeiro. E que colheita tão
abundante é esta! Milhões de almas vivem nesta terra e grande é o trabalho
que resta para salvar o mundo todo! Contudo, os operários são poucos, não
só sacerdotes, mas todos os que de uma ou outra forma trabalham na salva-
ção das almas. Certamente, os sacerdotes estão mais diretamente envolvidos
com as almas, mas eles não estão sozinhos, nem são suficientes. Todos os que
trabalham pela salvação das almas são chamados de trabalhadores apostólicos,
assim como todos os que ajudam a ceifar se chamam ceifeiros.
Vede de quantos tipos de trabalhadores precisamos para trabalhar um campo.
Alguns aram, outros lavram a terra, rompem os torrões, aplainam o solo,
lançam as sementes e as cobrem com terra.
Depois, é preciso realizar uma dezena de outras tarefas antes que, finalmente, se
recolha e se armazene o trigo. A Igreja também precisa de todo tipo de operários,
e refiro-me a todas as classes. Ninguém pode dizer: “Minha conduta não é re-
provável, mas eu jamais faria alguma coisa de bom para a maior glória de Deus”.
Não penses assim, porque cada um pode fazer a sua parte. Os operários são
poucos. Que bênção seria contar com suficientes sacerdotes para cada cidade,
povoado e aldeia, suficientes para converter o mundo inteiro. Dado que isso
é impossível, outros devem ajudar. Além disso, como poderão os sacerdotes
dedicar plenamente o seu tempo ao ministério, se não houver pessoas que
assem o pão e cozinhem os alimentos para eles? Suponhamos que devesse
fazer seus próprios sapatos e roupa. Um sacerdote deve ter ajuda, e creio que
não me engano ao dizer que todos vós aqui presentes, sacerdotes, estudantes,
aprendizes e coadjutores podeis chegar a ser verdadeiros operários evangélicos
na vinha do Senhor. De que modo? De muitas maneiras: por exemplo, todos
podem rezar, e este é o elemento mais importante mencionado por nosso Sal-
vador ao comentar a escassez dos operários. Por isso, peçamos ao Senhor da
vinha que envie operários para sua colheita. A oração implora intensamente
a bondade de Deus e como que o obriga a enviar os trabalhadores. Assim,
pois, rezemos pelo nosso país e pelos países estrangeiros, pelas necessidades de
nossas famílias e cidades, pelas almas que ainda vivem nas trevas da idolatria,
da superstição e da heresia. Rezemos de todo o coração e com insistência ao
Senhor da messe.
Outra coisa que todos podemos fazer, muito útil e eficaz, é dar bom exemplo.
Quanto bem se poderá obter dessa maneira: bom exemplo de palavra, animar-
-se uns aos outros e comportar-se bem e dar conselhos oportunos. Alguém
pode ter dúvidas sobre a própria vocação, outro pode estar a ponto de tomar

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

uma decisão irremediavelmente nociva. Um bom conselho em tempo, uma


palavra de incentivo podem evitá-lo. Com frequência, uma única palavra, de
fato, pode marcar a diferença entre escolher o caminho certo ou o errado. São
Pedro costumava exortar os fiéis a serem uma “lâmpada que ilumina num lu-
gar tenebroso” [cf. 2Pd 1,19]. Oxalá essa luz fosse notada em nós, e que todos
ficassem edificados com as nossas palavras e ações! Oxalá tivéssemos o amor
ardente que nos fizesse adiar tudo para ajudar aos outros! Oxalá tivéssemos
a castidade perfeita que nos permitisse eliminar todos os vícios, a mansidão
que conquistasse os corações de todos! Creio que, então, poderíamos colocar
o mundo inteiro em nossas redes. [Seguem alguns parágrafos de conselhos
morais e espirituais. Depois, continua:]
Estes e outros mil caminhos estão abertos a todos os operários na vinha do
Senhor, sejam eles sacerdotes, clérigos ou leigos, independentemente da idade
e posição. O mundo todo, portanto, pode ajudar a colher a messe do Evan-
gelho, sempre e quanto estiver motivado pelo zelo da glória de Deus e da
salvação das almas. Vós, então, podeis perguntar: “Para onde Dom Bosco nos
quer levar? O que nos quer dizer e por quê?”.
Meus queridos filhos, [Jesus] gritou: “Os operários são poucos”, não foi só
um grito em épocas passadas, mas que é mais necessário do que nunca em
nossos dias e em nossa época. A colheita indicada à nossa Congregação cresce
dia a dia, num ritmo tal que se pode muito bem dizer que não sabemos por
onde começar e como realizar a nossa tarefa. Por isso, gostaria de ver todos vós
a trabalhar logo na vinha do Senhor. Chega-nos de diversas partes da Itália,
da França e de outros países, como Gibraltar, Argélia, Egito, Sudão, Arábia,
Índia, China, Japão, Austrália, Argentina, Paraguai, e de praticamente toda
a América do Sul, uma extraordinária quantidade de solicitações para novas
escolas para internos, casas e postos de missão. Surpreende em todas as par-
tes, a escassez de operários evangélicos, quando pensamos em quanto bem se
poderia fazer e se fica sem fazer por falta de missionários. Notícias dolorosas
chegam-nos do padre Cagliero. Na Argentina, o sacerdote não pergunta ao
penitente: “Quanto tempo faz que não te confessas?”, mas “Já te confessaste
alguma vez?”. Não é infrequente que a resposta de homens e mulheres de
idades compreendidas entre 30 e 40 anos seja que nunca se confessaram.
E não se trata de aversão à Igreja, mas somente porque nunca tiveram uma
oportunidade. Assim, portanto, podeis imaginar quantos se verão às portas
da morte, desejosos de fazer sua confissão e receber a absolvição e não podem
receber este consolo, porque muito raramente há um sacerdote disponível.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Todavia, não tenho a intenção de pedir que viajeis para terras tão distantes.
Alguns podem, mas nem todos, e há razões para isso. Em primeiro lugar,
temos uma necessidade urgente justamente aqui; e, além disso, nem todos
os chamados à Congregação Salesiana estão dispostos a ir para tão longe.
Contudo, em vista da necessidade e da falta de operários evangélicos, como
poderia ficar em silêncio? Reconhecendo que todos vós podeis de um modo
ou de outro trabalhar na vinha do Senhor, como poderia não revelar o desejo
oculto do meu coração? Sim, de verdade, espero ver-vos todos dispostos a
trabalhar, como tantos outros apóstolos. Este é o objetivo de todos os meus
pensamentos, preocupações e esforços. Esta é a razão dos nossos cursos rápi-
dos, e das maiores oportunidades que oferecemos para vestir o hábito clerical,
e para outros cursos de estudos especiais.18
Como ficaria em silêncio diante de tantas e tão urgentes necessidades? Como
faria ouvidos moucos ao povo que nos solicita de todas as partes? Creio que
é o mesmo Deus que fala através deles. Posso permanecer em silêncio e não
procurar aumentar as fileiras de missionários, quando Deus diz tão claramen-
te que deseja realizar grandes coisas através da nossa Congregação?
[Seguem parágrafos de exortação moral e espiritual. Depois, conclui:]
Que reine entre nós um intenso amor fraterno, de modo que aquilo que
aconteceu na Igreja também se reproduza em nossa Congregação. Além dos
apóstolos, havia 72 discípulos, os diáconos e outros cooperadores evangéli-
cos, todos trabalhavam em harmonia uns com os outros, todos unidos, firme-
mente unidos no amor. Por isso tiveram sucessos, assim o fizeram, para mu-
dar a face da terra; assim será também para nós. Onde quer que estivermos,
independentemente das tarefas que nos possam confiar, procuremos salvar as
almas, e principalmente a nossa. Fazei isso e será suficiente.

Comentário
O significativo nesta conferência é Dom Bosco ter falado a um grupo
em que estavam representados todos os setores da comunidade do Oratório,
inclusive o “elemento leigo”. E a respeito do tema, Messis multa, operarii pauci,
falou da missão confiada por Cristo à sua Igreja; e pela Igreja à Congregação
Salesiana; e da necessidade de todo tipo de trabalhadores, “sacerdotes, estu-
dantes, aprendizes e coadjutores”. Descreveu as maneiras de ajudar espiritual-
mente a outros e de cada um se preparar para ser digno operário evangélico.

18
Dom Bosco refere-se aqui à Obra de Maria Auxiliadora, ou dos Filhos de Maria, fundada
em 1875-1876 para o fomento das vocações adultas. Era-lhes oferecido um programa acelerado de
estudos, que facilitava a rápida vestidura clerical e, eventualmente, a ordenação.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

“Boa-noite” aos aprendizes (31 de março de 1876)

Contexto
Neste Boa-noite, sobre o qual nos informam as Memórias Biográficas,19
Dom Bosco expôs a vocação leiga e convidou os aprendizes a considerarem
esta possibilidade. Explicando a ocasião, Ceria escreve: “Nas últimas noites
de março, Dom Bosco deu três Boas-noites. Construtivas e breves, estas falas,
resgatadas do esquecimento, são deliciosas pelo seu frescor e perspicácia”.20
Em 26 de março, falou aos “estudantes e salesianos”. Em 30 de março, diri-
giu-se à comunidade dos jovens sobre vários pontos de disciplina. O terceiro
Boa-noite, no último dia do mês, foi dirigido apenas aos aprendizes.

Texto
Passou algum tempo desde o nosso último encontro após as orações da noite
e percebi que, desde então, aconteceram muitas coisas, como a dissolução e
retorno da banda de música. Creio que vos disseram por que isso aconteceu.
A principal, e realmente a única razão, foi que, embora alguns meninos se
comportassem muito bem, muitos outros não o faziam. Bom músico é quem
leva alegria às pessoas quando escutam a música de que gozaremos um dia no
paraíso. Muitos dos músicos, porém, agiram como se quisessem que o diabo
se regozijasse [...].21
Algo que vos causou muito dano e que me fez sofrer, a ponto de eu ter de
expulsar vários meninos, foi minha triste descoberta de que alguns de vós
eram ladrões, que se queixavam continuamente e eram desbocados. Senti-me
muito, muito triste por expulsá-los, sobretudo porque alguns não tinham
para onde ir e teriam de cuidar de si mesmos. Contudo, o que poderíamos
fazer? Quando um menino não dá mais atenção a seus superiores e age como
um lobo faminto entre os companheiros, não posso permitir que fique aqui e
prejudique os demais. Vós sabeis que não cedo neste ponto; não posso tolerar
que suporteis algum dano no aspecto moral.
Prestai atenção. Se algum de vós, lamentavelmente, falhou neste assunto, que
vire página e não continue a falar com os demais, porque poderia arruinar
sua própria reputação e correr o risco de ser expulso. Se alguém não consegue

19
MB XII, 148ss.
20
MB XII, 141ss.
21
Em 1875, Dom Bosco dissolveu a banda de música dos aprendizes por causa da falta de dis-
ciplina. Restabeleceu-a, com novas condições, no início de 1876, e escreveu um regulamento para ela.

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Dom Bosco: história e carisma 2

decidir-se a corrigir a própria conduta ou não tem a intenção de obedecer às


regras, que o diga e busque outro lugar. Nós lhe daremos, inclusive, os certifi-
cados necessários. Desta maneira, tudo se fará pacificamente e continuaremos
a ser amigos como antes.
Caso contrário, descobrindo-se a má ação, o culpado será expulso sem ceri-
mônia e não receberá de nós o certificado de boa conduta. Correria, assim,
o risco de perder qualquer possibilidade de emprego, pois atualmente essa
declaração é um requisito necessário para obter um emprego.
Eu, todavia, não vim aqui nesta noite para falar de coisas desagradáveis.
Também quero dizer-vos que estou muito contente com aqueles de vós que,
com frequência, vêm a mim, não só na confissão, mas também no pátio do
recreio e para conversações particulares. Aconteceu uma grande mudança
desde quando os aprendizes olhavam para Dom Bosco como se fosse um
espantalho e se afastavam dele. Naqueles tempos, os estudantes rodeavam
meu confessionário, principalmente nas noites dos sábados e nos domin-
gos pela manhã; entretanto, apesar de todos os meus esforços, só consegui
que me procurassem poucos aprendizes ou nenhum em absoluto. As coisas
melhoraram, mas, para dizer a verdade, alguns deixam passar muito tempo
para serem vistos por mim. Recordai-vos que me alegro sempre de ver-vos na
igreja e em todas as partes. Não vinde, porém, para agradar-me. Vinde para
receber um bom conselho.
Quero dizer-vos outra coisa. Antes de ontem e de hoje, alguns dentre vós
me perguntaram se podiam entrar na Congregação Salesiana. Dei a cada um
uma resposta, mas como sei que outros gostariam de fazer a mesma pergunta,
vou dar a todos uma resposta rápida. Creio que quase todos vós conheceis a
nossa congregação. Não é só para sacerdotes ou aspirantes ao sacerdócio, mas
também para os aprendizes. Trata-se de uma sociedade de sacerdotes, clérigos
e leigos, em especial os aprendizes, que desejam trabalhar juntos, procuran-
do ajudar-se um ao outro, e a outros, espiritualmente. Percebestes que nossa
congregação conta com muito poucos irmãos leigos. Qualquer pessoa que
quisesse salvar a própria alma é bem-vinda. Se algum de vós tiver realmente
esse desejo, prevendo que após sair do Oratório sofrerá um dano espiritual
e, depois, uma miserável vida terrena, arriscaria a condenação eterna, pode
solicitar a entrada na congregação.
Alguém, porém, perguntará: “Mas faltará para nós o necessário para a ali-
mentação e o vestuário?’. Confiando sempre na Providência de Deus, mãe
piedosa, posso garantir-vos que jamais nos faltará algo de que necessitamos,
seja sendo saudáveis ou enfermos, nos anos da juventude e nos da velhice.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Isso fez com que alguns ficassem na congregação; ou seja, o pensamento de


que fora daqui, se ficassem doentes ou quando chegassem à velhice, poderiam
ser abandonados, desprezados; e que, ao contrário, estando aqui, nada lhes
faltará. Assim, pois, quem buscar um lugar seguro, onde não lhe falte ao
longo da vida o pão, uma casa, o leito, a roupa, este pode fazer o pedido para
inscrever-se nesta congregação, que também cuidará de vossas necessidades
espirituais. Observai, ainda, que não há qualquer distinção entre os sócios
da congregação; todos recebem o mesmo tratamento, aprendizes, clérigos e
sacerdotes; todos nos consideramos irmãos, o mesmo que eu como, vós tam-
bém comeis, e o mesmo prato, o mesmo vinho que servem a Dom Bosco, ao
padre Lazzero, vosso diretor, ao padre Chiala e a todos os que pertencem à
congregação, é isso mesmo o que se serve a todos.
Alguém dirá: “Dom Bosco quer, realmente, que pertençamos a esta Socieda-
de? É do seu gosto que entremos?”. Meus amigos, ninguém pense entrar nesta
Sociedade para agradar a Dom Bosco. Não, não, em absoluto.
Não estou insistindo para que entreis. Eu vos disse isso para que saibais como
estão as coisas e possais ver se é isso que quereis na vida; por nenhuma outra
razão. Não estou pressionando a ninguém. Se desejardes entrar, bem; se não,
não vos preocupeis.
Outra coisa. Fazendo parte da nossa congregação, quem desejasse ir para a
América [do Sul] teria a oportunidade de fazê-lo. Todavia, não enviamos nin-
guém contra a própria vontade; somente aqueles que quiserem ir. Vós sa-
beis que alguns dos vossos companheiros que aqui estiveram no ano passado,
agora são missionários, e estão fazendo muito bem. Enquanto estavam aqui,
eram considerados como os demais, mas agora sua consideração é bastante
elevada. Recordai-vos de Gioia? Aqui, era sapateiro e, agora, entendi que vai
se transformando num especialista em todos os ofícios. É cozinheiro, costu-
ra e catequiza. Conheceis Scavini, aprendiz de carpinteiro. Pois bem, agora
é chefe de oficina, ensinando uns 20 meninos; e, no curto tempo em que
está ali, fez maravilhas. E Belmonte, lembrai-vos dele? Enquanto estava aqui,
acreditava não ter talento especial; agora, ouvimos grandes coisas sobre ele:
é sacristão, músico, catequista e até porteiro de nossa casa em Buenos Aires.
Também poderia mencionar Molinari, que agora estuda música. Entretanto,
no ano passado eram simples aprendizes.
Agora, na Argentina, são pessoas respeitadas, honradas. Pois bem, todos os
que quiserem ir têm todas as oportunidades para fazê-lo, enquanto os demais
podem permanecer tranquilamente aqui. Todavia, antes de eu partir para
Roma, escreveremos uma carta em nome de todos ao Papa, ao qual se pedirá
uma bênção especial para vós, meus queridos aprendizes.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Espero que seja para vosso bem espiritual e material e, sobretudo, que vos tor-
ne fortes para vencer todas as tentações do diabo, que tão duramente acossa
os meninos da vossa idade. Mais particularmente, espero que esta bênção vos
ajude a superar todas as tentações contra a virtude da modéstia. [...] Coragem!
E vereis que Deus, através da bênção de seu vigário, vos permitirá vencer o
demônio. Que mais quereis que vos diga?

Comentário
Ceria escreve:

Esta fala [de Dom Bosco] é muito mais importante do que parece à primeira
vista. Seu objetivo era apresentar o salesiano leigo e convidar os aprendizes de
coração generoso a pensar em sua possível adesão à Congregação Salesiana.
Dom Bosco nunca falara em público e tão claramente sobre o tema. A confe-
rência que fez na festa de São José [19 de março] pode ter sido com a intenção
de preparar o caminho.22

Dom Bosco, nesta importante declaração, começou expressando seu


descontentamento pelo mau comportamento de alguns; mas passou a ressal-
tar sua alegria porque a comunidade dos aprendizes em seu conjunto parecia
ter melhorado muito. Pode ser essa a razão pela qual não apresentara anterior-
mente a vocação salesiana aos aprendizes “de modo oficial”.
Depois da introdução: 1o com as palavras das Constituições, afirma
que a Congregação Salesiana não é só para os padres, mas também para os
clérigos e leigos, acrescentando surpreendentemente, em especial para os
aprendizes (!); 2o a razão principal para entrar deve ser a salvação da pró-
pria alma; mas Dom Bosco, realista como era, também fala da seguran-
ça oferecida pela Congregação, embora esta não deva ser a motivação real;
3o pela “unicidade” da vocação salesiana, “todos recebem o mesmo tratamen-
to, sejam leigos, clérigos ou padres”; 4o o apostolado missionário é oferecido
como opção; Dom Bosco fala dos sucessos obtidos nas missões por alguns
companheiros recentes; 5o Dom Bosco dá espaço considerável e importância
à preparação espiritual.

Circular de Dom Bosco aos párocos diocesanos (janeiro de 1880)


A fim de fortalecer as fileiras dos salesianos leigos, Dom Bosco decide
buscá-los fora da casa salesiana.
22
MB XII, 145s.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Texto
Muito reverendo senhor:
Apesar dos maus tempos que correm, ainda é possível encontrar almas privi-
legiadas entre os jovens que, conforme o caso, desejam abandonar o mundo
para garantir mais facilmente a salvação da própria alma. Com esta convicção,
o abaixo assinado dirige-se a V. S.
Se, por acaso, algum de seus filhos espirituais demonstrasse esta inclinação
e estivesse disposto a abraçar a vida de sacrifício que convém a um religioso,
convide-o a pedir seu ingresso na Pia Sociedade Salesiana, fundada pelo re-
verendo padre João Bosco. Estes jovens devem ter observado anteriormente
uma conduta inatacável, devem ser sadios mental e corporalmente, dispostos a
dedicar-se a qualquer trabalho, por exemplo, no campo, na horta, na cozinha,
na padaria, no preparo e cuidado dos refeitórios, atender à limpeza da casa e,
se tiverem cultura suficiente, para colocá-los nos escritórios, como secretários.
E se exercem alguma arte e ofício dos que se ensinam em nossos centros po-
deriam continuar com ele nas oficinas correspondentes. A idade deveria estar
compreendida entre 20 anos completos e os 30 aproximadamente. Neste pedi-
do, além do certificado de boa conduta [da parte] do pároco, deverão apresen-
tar a certidão de nascimento e de solteiro [de estado livre]. Se puder encontrar
alguém que cumpra as condições indicadas, facilitará a salvação de uma alma,
proporcionará um benefício à nossa Pia Sociedade e V. S. alcançará um grande
mérito diante de Deus. Aquele que subscreve agradece-lhe antecipadamente e,
com o sentimento do mais elevado apreço e profundo respeito, tem o prazer
de se professar, do senhor, obrigadíssimo servo [...].23

Comentário
A idade preferida, de 20 a 35 anos, requerida para os candidatos pode in-
dicar, talvez, o desejo de Dom Bosco iniciar um programa de Filhos de Maria
leigos, semelhante ao dos Filhos de Maria, iniciado alguns anos antes. Neste
apelo, Dom Bosco volta a colocar a salvação da própria alma como priori-
dade da vida religiosa. Além das diversas possibilidades de trabalho manual,
oferece também alternativas para os que estejam qualificados e preparados
para trabalhos de secretaria e de ensino profissional em cursos práticos. Isso
pode indicar que se realizava nas oficinas algum tipo de ensino profissional,
além da aprendizagem prática do ofício, embora, como se sabe, um programa
completo de ensino só teve início depois do Capítulo Geral IV (1886).
23
MB XIV, 784. A carta não tem data, mas as MB XIV, 783, datam-na nos inícios de janeiro de 1880.

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Dom Bosco: história e carisma 2

6. Declarações de Dom Bosco nos anos oitenta.


Evolução devida aos Capítulos Gerais Iii e Iv
Os Capítulos Gerais III e IV abordaram a questão da formação vocacio-
nal e profissional, tanto dos salesianos leigos quanto dos aprendizes.

Capítulo Geral III (1883)


Com o objetivo de comprometer o pessoal leigo da Sociedade com o
“mundo do trabalho” e aproveitar as atuais “comunidades de trabalho” nas
casas salesianas para vocações leigas, Dom Bosco decidiu que o assunto seria
discutido Capítulo Geral III.
Com essa finalidade, fixaram-se dois temas na agenda; cada um deles
foi entregue a uma comissão e, em seguida, foram apresentados à assem-
bleia capitular. O tema IV referia-se à “educação (cultura) dos salesianos
coadjutores”. O tema V tratava da “orientação a ser dada ao ‘elemento leigo’
nas casas salesianas e os meios para desenvolver as vocações salesianas entre
os aprendizes”.
Sabemos pelas atas que foram redigidos dois rascunhos, incluindo um
programa detalhado de estudo e formação, entregues a Dom Bosco e seu
Conselho para estudo e reflexão no Capítulo Geral IV. As atas também regis-
tram sumariamente um debate sobre o coadjutor, incluindo alguns impor-
tantes comentários de Dom Bosco.24
6 de setembro, sessão da manhã
Às 9h15, padre Rua dá início à sessão e faz as orações habituais. Padre
Belmonte, como porta-voz [da comissão] apresenta um relatório sobre o es-
tudo do tema IV, relativo à educação (coltura) dos irmãos coadjutores.
[Neste momento] chega Dom Bosco. Lê-se [o relatório d] o tema V
sobre a orientação etc. no que se refere à educação etc.
Todavia, coloca-se [imediatamente] a questão: “Há de se manter o termo
coadjutor para designar os membros leigos ou deve-se mudar para o termo ir-
mão?”. Dom Bosco e muitos outros são partidários de manter a denominação
coadjutor, deixando claro que não se pode aplicá-lo adequadamente aos empre-
gados domésticos.

Ver MB XVI, 411ss. Embora se afirme que os resumos eram incompletos e se tivessem per-
24

dido as páginas iniciais, as minutas eram completas, apesar de poucas; as primeiras páginas estão no
arquivo, mas não em seu lugar: ASC D579: Capitolo Generale III, FDB 1, 864 V10-12 e 1,863 D7-12
+ 1, 864 A1-B3. Sabemos por elas que o Capítulo começou à tarde de domingo, 2 de setembro, e
acabou à tarde de sábado, 7 de setembro de 1883.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Sobre esta questão, o coadjutor [confratello] Barale menciona que notou


algum descuido da parte de salesianos [padres?] tanto jovens quanto mais ve-
lhos.25 Dom Bosco responde muito adequadamente lendo: “Todos os mem-
bros sejam tratados entre si como irmãos etc. [Constituições] Capítulo 2o,
artigo 1o”.
Em seguida, padre Bonetti propõe que se aceite um artigo assim redigi-
do: “Todos os membros, sejam sacerdotes ou leigos, tratem-se uns aos outros
[como] irmãos”.
É indispensável que [se apliquem as seguintes medidas]:
Todo leigo professo deve ter a sua própria cela. Se isso não for possível
imediatamente, [os leigos] deveriam, ao menos, compartilhar um quarto, se-
parado dos não salesianos e [ter a privacidade de] uma cama com cortinado.
À mesa, os coadjutores professos devem sentar-se logo atrás dos sacer-
dotes e clérigos.
Os forasteiros [hóspedes] aos quais não se deva demonstrar uma consi-
deração especial devem sentar-se atrás dos coadjutores.
Os hóspedes mais distintos devem sentar-se à mesa dos superiores.
Os coadjutores devem ir à mesa arrumados e vestidos decorosamente;
ou seja, com sapatos, camisa e gravata em bom estado etc.
Padre Lazzero observa que no Oratório [os salesianos leigos e os não
salesianos] não vivem separados dessa maneira. Dom Bosco responde que
esta situação foi assim por razões especiais, mas chegou a hora de fazê-lo
adequadamente.
Dom Bosco [também] comenta que devem ser mantidos os termos
usados pela Congregação dos Bispos e Regulares, como frates coadjutores
[irmãos coadjutores].
Depois da modificação e aprovação [por votação?] dos artigos que se
referem à educação dos coadjutores [tema IV], começa a leitura dos relatórios
sobre o tema V: Orientação a ser dada ao componente trabalhador (leigo)
(nas casas salesianas).

25
A afirmação não é clara. Significa que se descuidava o uso do termo, ou, dada a reação de
Dom Bosco, que se negligenciara no tratamento dos coadjutores como pessoal de serviço. O coadjutor
Barale não está na lista dos 35 membros do Capítulo Geral III (cf. FDB 1,864 B6); fora convidado
a assistir à discussão. Pedro Barale (1846-1934), o “cavalheiro da gráfica”, trabalhou com sucesso na
livraria e gráfica do Oratório. Deu início ao Bibliofilo Cattolico (1876), para propagar os bons livros,
que Dom Bosco transformaria no Bollettino Salesiano em 1877 depois de fundar os cooperadores.

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Dom Bosco: história e carisma 2

6 de setembro, sessão da tarde


Debate-se a questão sobre a necessidade de estabelecer um noviciado
separado para os aprendizes que desejem unir-se à Sociedade Salesiana como
coadjutores. Dom Bosco pensa em separá-los [como aspirantes leigos] dos
demais aprendizes a fim de melhorar sua condição, para estabelecer um novi-
ciado que lhes proporcione, junto com a formação, uma aprendizagem pro-
fissional em seu ofício. A maioria dos membros apoia a ideia. E, embora não
se tome qualquer decisão, pede-se a Dom Bosco e seu Conselho que estudem
a possibilidade de realizar esse projeto em San Benigno.

Comentário
O Capítulo Geral III avançou consideravelmente na discussão sobre o
salesiano coadjutor, apesar de ter tratado o problema quase totalmente do
ponto de vista da necessidade interna da congregação. A ideia era preparar
os aprendizes que se destacassem com o fim de se sentirem atraídos para a
Sociedade e, eventualmente, se converterem em salesianos mestres de oficina,
substituindo assim os mestres não salesianos. O salesiano mestre de oficina
poderia exercer maior influência do ponto de vista educativo e religioso.
Motivação semelhante tinha em vista a possibilidade de maior educação e
formação daqueles que se uniam à Sociedade como salesianos leigos. A criação
de um noviciado separado para coadjutores fazia parte desse esforço, como
também a decisão de criar no Capítulo Superior o cargo de conselheiro de artes
e ofícios, então chamado conselheiro artístico. Padre José Lazzero foi o primeiro
a ser nomeado. Contudo, os programas não foram totalmente elaborados pelo
Capítulo, que durou apenas cinco dias. Precisaram ser modificados por Dom
Bosco e seu Conselho e, depois, pelo Capítulo Geral IV (1886); e, depois, no-
vamente pelo Conselho Superior antes de serem concluídos e aplicados.

Conferência de Dom Bosco aos 22 noviços coadjutores (19 de


outubro de 1883)
Contexto
Em outubro de 1883, por mandato do Capítulo Geral III, fora criado em
San Benigno um noviciado exclusivo para os noviços coadjutores. O local foi es-
colhido como noviciado de clérigos em 1879, enquanto os noviços coadjutores
faziam seu noviciado sem deixar de viver e trabalhar com os demais aprendizes
no Oratório. Agora, os noviços, clérigos e coadjutores, viviam em San Benigno,
mas em comunidades separadas com programas diferenciados.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Nesse outubro, Dom Bosco foi a San Benigno para a vestidura da bati-
na dos noviços clérigos. Antes de voltar para Turim, ele dirigiu-se separada-
mente aos noviços coadjutores. Padre Barberis registrou o famoso discurso
de Dom Bosco.
A fala divide-se em duas partes: a primeira é um preâmbulo sobre a
situação do leigo na Sociedade Salesiana com o tema “Não temas, pequeno
rebanho”; a segunda é uma curta exortação moral-espiritual que conclui com
o mesmo tema.

Texto
O evangelho desta manhã continha as palavras [de Jesus]: Nolite timere, pu-
sillus grex, não temas, pequeno rebanho. Também vós sois o pusillus grex, mas
não temais, nolite timere, pois crescereis. Fico muito contente que se tenha
iniciado com regularidade um ano de prova [noviciado] para os aprendizes.
Esta é minha primeira visita a San Benigno desde que estais aqui e, embora
tenha vindo para a imposição da batina aos clérigos, e não ficarei aqui mais
do que um dia, não quis ir embora sem dizer algumas palavras a vós em par-
ticular. Exporei dois pensamentos.
Primeiramente, quisera manifestar-vos a minha ideia sobre o salesiano coad-
jutor. Nunca tive tempo nem comodidade para expô-la adequadamente.
Vós, pois, estais aqui reunidos para aprender um ofício e educar-vos na pie-
dade. Por quê? Porque eu preciso de ajudantes. Há coisas que os sacerdotes
e os clérigos não podem fazer, mas vós, sim, podeis. Tenho necessidade de
[poder] dispor de alguém dentre vós, de enviá-lo a uma tipografia e dizer-lhe:
“Assuma-a como teu encargo e ponha-a para funcionar como se deve”. En-
viar outro a uma livraria e dizer-lhe: “Vai dirigi-la, faze com que tudo resulte
bem”. [Gostaria de poder] enviar alguém a uma casa e dizer-lhe: “Cuidarás
para que aquela oficina ou aquelas oficinas funcionem com ordem e não fal-
te nada; tomarás as medidas oportunas para que os trabalhos saiam como
devem sair”. Preciso [ter] em cada casa alguém a quem [se possam] confiar
as coisas mais reservadas, como o uso do dinheiro; [tratar com] pessoas pro-
blemáticas; preciso quem represente a casa nos ambientes externos. Preciso
que caminhem bem os assuntos da cozinha, da portaria; que tudo esteja em
ordem, que nada seja desperdiçado, que não se saia de casa [sem licença] etc.
Preciso de pessoas a quem se possam confiar essas incumbências. E vós deveis
ser estas pessoas. Numa palavra, vós não devereis ser aqueles que trabalham
diretamente ou sirvam como empregados, mas encarregados que dirijam.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Deveis ser como patrões (padroni) entre os demais trabalhadores, não como
empregados. Tudo, porém, com medida e dentro dos limites necessários; mas
deveis fazer tudo em nível de direção, como patrões (padroni), vós mesmos,
das oficinas e de seus equipamentos.
Esta é minha ideia de salesiano coadjutor. Tenho imensa necessidade de mui-
tos que me ajudem dessa maneira! Por isso, agrada-me que useis roupas de-
centes e limpas; que tenhais camas e celas convenientes, porque não deveis ser
empregados, mas patrões; não súditos, mas superiores.
Exponho-vos agora o segundo pensamento. Como sois chamados a colaborar
em tarefas grandes e delicadas, deveis adquirir muitas virtudes; e como deveis
estar à frente de outros, deveis dar, antes de tudo, bom exemplo. É preciso que
onde queira que se encontre um de vós, fiquemos certos de que ali reinará a
ordem, a moralidade, a virtude. Porque, se sal infatuatum fuerit... [se o sal se
tornar insosso...].
[...]
Concluamos, então, como começamos: Nolite timere, pusillus grex. Não te-
mais, pois o número crescerá; mas especialmente é necessário que cresçais em
bondade e fortaleza.
Vós sereis então invencíveis como leões e podereis fazer muito bem. Como
resultado, complacuit dare vobis regnum [agradou ao Pai dar-vos o reino]. Ficai
cientes: um reino, não a escravidão; e, sobretudo, um reino eterno!26

Comentário
O uso que Dom Bosco faz da imagem patrão-empregado pode ter sido
calculado para “elevar o ânimo” de um grupo “desanimado”. É evidente que
ele quis ressaltar o papel de líder do salesiano coadjutor em determinadas
áreas de apostolado da Sociedade. Nessas áreas, gestão das oficinas e outras
atividades de direção, o salesiano coadjutor é “pessoal dirigente” como os pa-
dres em suas próprias áreas, e podem ser encarregados de assuntos de grande
responsabilidade.27

26
MB XVI, 315s.
27
Estes conceitos, redigidos com uma retórica tão incomum, deve ter chamado a atenção de
alguns. Surpreendeu, certamente, alguns salesianos do Capítulo Geral XII, que elegeu padre Felipe
Rinaldi em 1921. Segundo as atas do Capítulo, o tema V, sobre o salesiano coadjutor, foi tratado na
sessão II. Durante o debate, um capitular, padre Costa, expressou suas reservas sobre o dar certidão de
cidadania ao discurso de Dom Bosco em San Benigno em 1883. De fato, questionava-se a autenticidade
do discurso e, sendo autêntico, se fora transmitido com fidelidade. Padre Nay respondeu que podia
garanti-lo, pois, sendo prefeito da casa naquela época, estivera presente e ouvido a fala. Também padre

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Capítulo Geral IV (1886)


O Capítulo Geral IV, último presidido por Dom Bosco, assumiu os
temas IV e V do Capítulo Geral III. Discutiu-se sobre o tema II do capítulo
IV “Orientações a dar ao componente leigo nas casas salesianas e os meios para
desenvolver a vocação salesiana entre os aprendizes”.
Quanto ao salesiano coadjutor, o Capítulo elaborou uma importante
declaração doutrinal e um conjunto de diretrizes práticas. Para os aprendi-
zes, foi composto em parágrafos um programa de formação profissional bem
equilibrado: formação religiosa e moral, formação intelectual ou de estudo e
formação profissional com a finalidade de obter trabalhadores qualificados.

Texto
§ 1. Coadjutor
[Preâmbulo]
Nossa Pia Sociedade é composta, não só por sacerdotes e clérigos, mas
também por leigos. [Const., capítulo 1o art. 1o]. Chamam-se coadjutores
[Const., capítulo 10o art. 14o; capítulo 13o art. 2o, capítulo 15o art. 3o] porque
sua função especial é ajudar (co-adiuvare) os sacerdotes nas obras de caridade
cristã próprias da congregação. Ao longo de toda a história da Igreja sobeja-
ram exemplos de leigos que ajudaram poderosamente os apóstolos e demais
ministros sagrados; a Igreja sempre se serviu de bons fiéis para o bem do povo
e a glória de Deus.
Em nosso tempo, mais do que em outros, podem as obras católicas e, entre
estas, nossa Congregação, obter uma ajuda eficacíssima dos seculares; em cer-
tas ocasiões, eles podem fazer mais e melhor do que os próprios sacerdotes.
Os coadjutores têm particularmente um amplíssimo campo aberto para exer-
cer sua caridade pelo próximo e expandir seu zelo para a glória de Deus:
[Podem atuar nesse campo] dirigindo e administrando os diversos empreen-
dimentos de nossa Pia Sociedade, atuando como mestres de aprendizes nas
oficinas, como catequistas nos oratórios festivos e, especialmente, em nossas
missões estrangeiras.

Barberis disse ter estado presente e ser, de fato, o autor da crônica. Estas testemunhas também disseram
que Dom Bosco falou desse modo, utilizando o termo “patrão” (padrone) em sentido amplo para, 1o reti-
ficar algumas falsas ideias sobre a situação de inferioridade do coadjutor que circulavam na Sociedade; 2o
para dar um impulso ao espírito desanimado dos irmãos. Padre Rinaldi acrescentou, como confirmação,
que no Capítulo Geral III, quando alguém quis que os coadjutores ficassem em seu lugar, de inferiori-
dade, Dom Bosco protestou: “Absolutamente! Os coadjutores são como os outros irmãos”. Nada ficou
registrado nas atas do Capítulo Geral III, nem sobre a sugestão desse salesiano, nem sobre a resposta
de Dom Bosco. Mas tocam no mesmo tema, e é provavelmente aquilo a que padre Rinaldi se referia.

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Dom Bosco: história e carisma 2

(Prescrições práticas)
[As seguintes diretrizes ajudarão os coadjutores a] corresponder melhor à pró-
pria vocação:

1o Demonstrarão em todo lugar e circunstância respeito aos superiores e aos


sacerdotes, vendo neles pais e irmãos, aos quais devem viver unidos com
o vínculo da caridade fraterna formando um só coração e uma só alma
(Const. cap. 2, art. 1).
2 Desempenharão com diligência o cargo que lhes for indicado, tendo em
o

conta que não é a importância do cargo que os torna agradáveis a Deus, mas
o espírito de sacrifício e de amor com que é realizado.
3 Não aceitarão trabalhos nem encargos externos sem consentimento expres-
o

so dos superiores.
4 Em todo lugar e ocasião, em casa ou fora dela, com palavras e ações, de-
o

monstrem que são bons religiosos, uma vez que não é o hábito que faz o
religioso, mas a prática das virtudes religiosas; e, do mesmo modo, tanto
diante de Deus quanto diante dos homens, é mais apreciado um religioso
vestido como secular, mas exemplar e fervoroso, do que outro vestido com
um hábito, mas tíbio e não observante.

§ 2. Sobre os aprendizes
[Preâmbulo]
Entre as obras de caridade realizadas pela nossa Pia Sociedade uma sobressai:
recolher, o quanto possível, jovens abandonados, aos quais seria inútil instruir
nas verdades da fé católica se não fossem instruídos ou preparados numa arte
ou ofício.
Nas casas em que o número de aprendizes for elevado, pode-se encarregar um
sócio do cuidado dos mesmos. Trata-se do conselheiro profissional.
A finalidade da Sociedade Salesiana, ao acolher e educar os jovens apren-
dizes é prepará-los com o ensino de um ofício, uma boa instrução religiosa
e alguns conhecimentos gerais adequados à sua situação. Dessa forma, ao
sair de nossas casas depois de concluída a aprendizagem, possam ganhar
honestamente o pão.
[Linhas gerais do programa]
Disso se segue que o plano de sua educação deve ser tríplice: religiosa e moral,
intelectual e profissional.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Formação religiosa e moral

1o O Regulamento das casas seja fielmente cumprido.


2o Recorde-se frequentemente aos alunos o pensamento de Deus e do dever,
e sejam convencidos de que os bons costumes e a prática da religião são
necessários para todas as classes de pessoas.
3o Os alunos percebam que são amados e valorizados pelos superiores. Para
consegui-lo, sejam tratados com espírito de verdadeira caridade, como se
recomenda no santo Evangelho.
4 Dê-se a devida importância ao estudo do catecismo; com este fim, estabele-
o

ça-se um exame especial, com prêmios apropriados.


5o Sejam instruídos no canto gregoriano para que, ao sair da escola, possam
participar das funções religiosas das paróquias e associações religiosas.
6 Além das já existentes Companhias para os aprendizes, faça-se o possível
o

para introduzir [para eles] a do Santíssimo Sacramento, a fim de incentivá-


-los à comunhão frequente.
7 Onde for possível, separem-se os pequenos dos mais velhos, particularmen-
o

te nos dormitórios e durante os recreios.


8 Evite-se passar à seção dos aprendizes os estudantes que forem recusados
o

por causa da conduta. Se, por motivos particulares, crer-se oportuno fazer
alguma exceção, não sejam deixados na mesma casa, mas passem a outra
para aprender algum ofício.
9 A cada dois meses, o Diretor faça uma conferência aos assistentes e chefes
o

de oficina, para ouvir as observações que se devessem fazer, e dar-lhes nor-


mas e instruções oportunas para o bom andamento das oficinas e, quando
necessário, convidem-se também os chefes não salesianos, se os houver.
10 A Sociedade precisa de muitos chefes de oficina para abrir novas casas e
o

estender o benefício da educação a um maior número de meninos. Por isso,


todo irmão, com o bom exemplo e a caridade, procure inspirar nos alunos
o desejo de fazer parte da nossa Pia Sociedade e, se algum deles for aceito
como noviço, seja enviado, mesmo com sacrifício, à casa do noviciado.
11 É muito importante colocar o aprendiz, que concluiu a aprendizagem, com
o

patrões bons e cristãos e dar-lhes uma carta de recomendação para se apre-


sentarem ao pároco.
12 Dê-se aos alunos uma carta de apresentação para alguma sociedade de ope-
o

rários católicos; e, se sua conduta tivesse sido boa, peça-se que se façam
salesianos cooperadores.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Formação intelectual
Para que os alunos aprendizes adquiram durante a aprendizagem um conjun-
to de conhecimentos literários, artísticos e científicos que lhes são necessários,
estabelece-se:

1o Tenham todos os dias depois do trabalho, uma hora de aula, e aos que
tiverem mais necessidade, também lhes seja dada aula pela manhã, depois
da missa da comunidade até a hora do café. Onde as leis exigirem mais,
também convirá adequar-se ao que é ordenado.
2 Redija-se um programa escolar a seguir em todas as nossas casas de aprendi-
o

zes. Indiquem-se os livros que devem ser estudados e explicados em aula.


3o Ao entrarem, os meninos sejam classificados depois de um exame, e coloca-
dos no curso adequado de aprendizagem, com mestres experientes.
4 Será dada semanalmente aos alunos uma aula de cerimônias e urbanidade.
o

5o Ninguém poderá ser admitido a aulas especiais como desenho, francês etc.
se não tiver sido aprovado nas matérias relativas ao ensino elementar.
6 Haja exames no final do curso e premiem-se os mais aplicados.
o

7o Quando um aluno sair da escola, por ter completado a aprendizagem, seja-


-lhe entregue um diploma e um certificado no qual conste seu aproveita-
mento na arte ou ofício, na instrução e na boa conduta.

Educação profissional (em um ofício)


Não basta que o aprendiz conheça bem a sua profissão; para exercê-la com
proveito, precisa ter adquirido o hábito do trabalho e fazê-lo de acordo com o
programado. Para adquirir habilidade no ofício, servirá de ajuda:

1o Favorecer, o quanto possível, a inclinação e o desejo dos meninos na escolha


da arte ou ofício.
2 Dotar as oficinas de hábeis e honrados mestres de arte para que, embora
o

com sacrifício econômico, os trabalhos possam ser realizados com perfeição


em nossas diversas oficinas.
3o O conselheiro profissional e o mestre de oficina preparem ou adotem um
programa gradual de cada ofício, de maneira que os aprendizes passem to-
dos os graus e, ao final da aprendizagem, conheçam e dominem todos os
detalhes do próprio ofício.
4 Não se pode determinar a duração da aprendizagem, pois nem todas as artes
o

requerem o mesmo tempo de aprendizagem. Para a maioria dos ofícios,


cinco anos serão suficientes.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

5o Por ocasião da distribuição anual de prêmios, faça-se em toda casa pro-


fissional, uma exposição dos trabalhos feitos pelos alunos; e, a cada três
anos, faça-se uma exposição geral, da qual participem todas as nossas
casas de aprendizes.

Em relação aos hábitos de trabalho


1 Será útil fazer semanalmente para cada aluno duas avaliações diversas, uma
o

pelo trabalho e outra pela conduta.


2o Também será útil distribuir o trabalho, estabelecendo certo percentual para
o aprendiz, de acordo como sistema preparado por uma comissão.
3 A casa para os noviços aprendizes seja bem dotada do material necessário
o

para o aperfeiçoamento nas diversas profissões. O noviciado tenha os me-


lhores salesianos chefes de oficina.28

Comentário
O preâmbulo da seção sobre os coadjutores é importante; ele apresenta
uma espécie de descrição eclesiológica da vocação salesiana leiga e define seus
possíveis campos de ação, tal como era possível no momento. Particularmente
importante é a reafirmação da igualdade constitucional da vocação salesiana
leiga, como também a afirmação de que “o papel específico dos coadjutores é
coadjuvar com o padre nas obras de caridade próprias da congregação”.
Entre os campos de atividade apostólica, parecem particularmente impor-
tantes, além das oficinas, os campos da catequese e das missões. O Capítulo
Geral IV foi um marco enquanto deu encaminhamento à escola profissional
salesiana com base profissional séria; pedia a formação e educação sistemática
do salesiano coadjutor. Também esperava que a recém-criada missão da Améri-
ca do Sul fosse o campo próprio da atividade dos salesianos leigos.

7. Conclusão
Ao longo de muitos anos, Dom Bosco tentou formular seu conceito de
vocação salesiana leiga e definir suas esferas de ação nas circunstâncias histó-
ricas concretas. Contudo, deixou a seus sucessores a continuação dessa explo-
ração e indicação para onde podia levar o desenvolvimento da ideia original,
virtualmente a todos os âmbitos não apropriados ao ministério ordenado.

28
MB XVIII, 699ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O Capítulo Geral XII (1922) foi o momento no qual, principalmente,


foi confirmado, ou, talvez, restabelecido o status do salesiano coadjutor. De-
finiu, primeiramente, o autêntico caráter da vocação salesiana leiga segundo
as Constituições. Depois, para simbolizar a unidade da vocação salesiana, em
seus dois ramos, clérigos e leigos, aboliu oficialmente o sistema de noviciado
separado que, embora exigido por necessidades práticas, produzia teoricamen-
te ambiguidades na compreensão da unicidade da vocação salesiana. Ressal-
tou, ainda, o papel singular do coadjutor, com a ampliação de seus campos de
ação, nos quais se incluíam tanto os cargos de responsabilidade nas casas como
o papel de chefe no desenvolvimento das escolas de formação profissional.
As propostas do Capítulo Geral XII foram desenvolvidas de modo con-
siderável com o padre Rinaldi e seus auxiliares, padre Ricaldone, prefeito, e
padre Vespignani, conselheiro de artes e ofícios. Padre Rinaldi, mais do que
seus predecessores, foi o responsável pela elaboração sistemática da intuição
de Dom Bosco.

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Apêndice

O SALESIANO COADJUTOR DEPOIS DE DOM BOSCO29

Os reitorados do padre Rua e do padre Albera (1890-1921)30


Padre Miguel Rua (1888-1910) e padre Paulo Albera (1911-1921) sim-
plesmente procuraram ressaltar as ideias de Dom Bosco sobre a vocação sale-
siana leiga e continuar o programa de Dom Bosco, como foi estabelecido no
Capítulo Geral IV (1886).
No período Rua-Albera, não houve novas declarações teóricas impor-
tantes sobre o coadjutor. Igualmente, por causa da crise anterior, durante e
posterior à Primeira Guerra Mundial, não foi possível um grande desenvolvi-
mento das estruturas de formação e aprendizagem.
Em 1920, padre Pedro Ricaldone, então conselheiro para as escolas
profissionais, lamenta-se de uma espécie de retrocesso nas escolas profissio-
nais e oferece as seguintes estatísticas da Itália: “À morte do nosso venerado
Fundador, havia 9 escolas de formação profissional num total de 24 obras

29
Breve nota bibliográfica sobre o salesiano coadjutor: F. Rinaldi, “Il Coadiutore Salesiano
secondo il Ven. Don Bosco”, ACS 40 (1927), 572-580; G. Vespignani, “Il Coadiutore Salesiano
secondo la mente del Beato Don Bosco”, ACS 54 (1930), 888-909; G. Aubry e P. Schoenemberger,
Don Bosco li volle così i Coadiutori Salesiani. Turim: LDC, 1961; P. Braido, Religiosi nuovi per il mondo
del lavoro: documentazione per un profilo del coadiutore salesiano. Roma: PAS, 1961; G. Favini, Salesiani
Coadiutori: caratterisitiche di una grande vocazione. Turim: LDC, 1963; P. Stella, “Cattolicesimo in
Italia e laicato nelle Congregazioni religiose: il caso dei coadiutori salesiani (1854-1974)”, Salesianum
37 (1975), 411-445; AA. VV., Atti Convegno Mondiale Salesiano Coadiutore (Roma, 31 de agosto-7 de
setembro de 1975). Roma: Esse-Gi-Esse, 1976; E. Bianco, La mano laica di Don Bosco: il Salesiano
Coadiutore. Leumann-Turim: LDC, 1982; F. Maraccani, “II Salesiano coadiutore e la formazione
professionale”, Rassegna CNOS 4 (1988), 87-97; Dicastero per la Formazione, II Salesiano Coadiu-
tore: storia, identità, pastorale vocazionale e formazione. Roma: SDB, 1989; A. Papes, “La formazione
del salesiano coadiutore nel 1883”, RSS 13 (1994), 143-224.
30
Cf. M. Rua, Lettere circolari di Don Michele Rua ai Salesiani. Turim: Direzione Generale Opere
Salesiane, 1965; P. Albera, Lettere circolari ai Salesiani. Turim: Direzione Generale Opere Salesiane,
1965. Reedições.

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Dom Bosco: história e carisma 2

salesianas, ou seja, 37%. Atualmente, há 17 escolas desse tipo entre as 126


obras; apenas 14%.31
Apresentamos agora uma seleção de declarações significativas que enfa-
tizam as ideias de Dom Bosco sobre a vocação salesiana leiga, a promoção das
vocações leigas e a formação dos coadjutores.

Padre Rua
[Promoção de vocações salesianas leigas]
Nossa sociedade é formada de tal modo que oferece abundantes possibilida-
des para o ministério apostólico, não só a seus membros sacerdotes salesia-
nos, como também a seus queridos salesianos coadjutores. Eles também são
chamados a um verdadeiro ministério apostólico em favor dos nossos jovens
em nossas escolas, sobretudo em nossos centros de formação profissional. De-
vemos promover a vocação do salesiano leigo entre nossos alunos aprendizes.
A escola de formação profissional é a obra salesiana mais solicitada nas Amé-
ricas, na África, na Ásia e em várias nações da Europa. A fim de satisfazer a
demanda e aumentar o número de boas vocações leigas, o Capítulo Geral IV
estabelece diretrizes excelentes para a formação moral, intelectual e profissio-
nal de nossos alunos aprendizes [...].
Quanto a este tema importante, a formação do pessoal é vital para o trabalho
de nossa Sociedade. Na Itália, os coadjutores obtiveram notáveis sucessos.
Muitos deles, por exemplo, obtiveram diplomas de ensino secundário, títulos
universitários e títulos de ensino para as escolas primárias.32

[Formação Espiritual dos Coadjutores que os prepara para o trabalho salesiano]


Ao falar de vocações, creio que devemos dar prioridade à verdadeira e per-
severante virtude na formação de nossos coadjutores. O campo aberto a seu
zelo pelo apostolado em várias casas é imenso, particularmente nas missões.
Eles também devem demonstrar que amam de coração o bem da Congrega-
ção, cultivando as vocações entre os aprendizes com os quais trabalham. Para
começar, podemos acolher esses noviços no noviciado de clérigos, até que o
número seja tal que justifique a abertura do noviciado exclusivo para eles.33

31
Atti del Capitolo Superiore 1 (1920), 103. Criados pelo padre Albera, os Atos do Capítulo
Superior começaram a ser publicados em 1920, no seu último ano de reitorado. Com exceção dos anos
da Segunda Guerra Mundial (1940-1944), sua publicação foi ininterrupta. Em 1965 (Capítulo Geral
XIX), o título passou a Atos do Conselho Superior (Atti del Consiglio Superiore). Em 1984, começou a ser
publicado com o título de Atos do Conselho Geral (Atti del Consiglio Generale).
32
Carta de 31 de janeiro de 1897, em M. Rua, Lettere, 188-189.
33
Carta de 20 de janeiro de 1898, em M. Rua, Lettere, 194.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

[Necessidade de vocações salesianas leigas em resposta ao clamor das missões]

Solicito-vos a promoverdes as vocações, não só para o sacerdócio salesiano,


mas também dos irmãos leigos; pois é grande a necessidade de bons salesianos
mestres de oficina. Estais cientes das solicitações urgentes de oficinas e escolas
de formação profissional que chegam constantemente de todas as partes do
mundo, em particular das missões. A sociedade, hoje mais do que nunca, tem
uma desesperada necessidade de bons operários cristãos. [...] Por isso, não
descansarei enquanto não souber que cada Inspetoria criou seu noviciado de
coadjutores, segundo o modelo de San Benigno. Creio que seja a única ma-
neira de formar salesianos mestres de oficina qualificados, dignos dos postos
que ocuparão.34

[Instrução religiosa e catequética]

Solicito aos nossos coadjutores que sejam competentes no conhecimento da


fé católica; de modo que, quando lhes for pedido para dar instrução religiosa,
estejam à altura. [...] Ficaria muito feliz ao saber que os coadjutores, como
os sacerdotes, foram organizadores de triunfantes certames entre os alunos de
nossas escolas e entre os jovens que participam dos nossos oratórios.35

[Não servos, mas irmãos]

Gostaria de acrescentar algumas palavras sobre nossos coadjutores e sobre


como devem ser bem-vindos em nossas comunidades. Posso dizer que amo
nossos coadjutores com todo o meu coração em Jesus Cristo. Em primeiro
lugar, creio que há muitos religiosos santos entre eles, ricos em virtudes,
tanto mais preciosas por não serem notados, e dispostos a qualquer sacrifí-
cio. Em segundo lugar, vejo o grande mérito de muitos deles, pelo trabalho
esmerado em nossas escolas de formação profissional, na administração e
nas mesmas missões. Por isso, peço que [inspetores e diretores] os queiram
verdadeiramente como irmãos e demonstrem seu afeto por eles, tratando-
-os com amabilidade, escutando-os; que se preocupem com sua saúde e
bem-estar e os atendam em suas necessidades. Devemos demonstrar com
fatos mais do que com palavras que os respeitamos e amamos como verda-
deiros irmãos.36

34
Carta de 24 de junho de 1898, em M. Rua, Lettere, 207-208.
35
Carta de 2 de julho de 1906, em M. Rua, Lettere, 408.
36
Carta aos inspetores e diretores, 1o de novembro de 1906, em M. Rua, Lettere, 425.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Padre Albera
A grande preocupação do padre Albera foi a vida espiritual dos salesia-
nos. Ele escreveu várias cartas circulares relativas aos critérios da vida espiri-
tual. Tomadas em seu conjunto, formam uma espécie de diretório espiritual,
um compêndio da espiritualidade salesiana. Em sua última carta circular,
sobre as vocações, faz importantes declarações sobre o salesiano coadjutor.
[Missão apostólica e educativa do salesiano coadjutor]
Nas antigas congregações religiosas, os irmãos leigos formavam uma espécie de
segunda ordem, sujeita à primeira, e participavam apenas em parte do bem es-
piritual da congregação e do espírito do fundador. Dom Bosco acabou com esse
dualismo. Todos os salesianos compartilham os mesmos direitos e privilégios.
[...] [Os coadjutores] não constituem uma segunda ordem; são plenamente re-
ligiosos salesianos, com a única vocação salesiana e o mesmo apostolado dos
sacerdotes, à exceção do que se refere especificamente ao ministério ordenado.
Disso se deduz que nossos coadjutores devem ser qualificados para este apos-
tolado: catequese, conferências sobre temas religiosos e sociais, ensino nas
escolas primárias e secundárias, ensino como mestres de oficina, assumindo
os deveres de assistência diurna e noturna dos meninos, a administração fi-
nanceira de uma comunidade etc. Em outras palavras, os coadjutores devem
participar de todos os âmbitos da pastoral salesiana que não sejam próprios
do ministério ordenado.
É assim que se deve falar da vocação salesiana leiga a nossos jovens. As vocações
laicais são essenciais nas obras salesianas. Sem elas, nossa Congregação não
seria capaz de responder aos desafios urgentes que lhe são oferecidos pela socie-
dade moderna. Além disso, a instituição do salesiano coadjutor é uma criação
realmente original da caridade de Dom Bosco; mesmo porque ela oferece ao
leigo, na única vocação, os meios da plena espiritualidade religiosa e perfeição.
Em consequência, promovamos as vocações salesianas leigas. E insistamos que
os sacerdotes e os coadjutores são iguais na única vocação salesiana; e isso se
refere tanto aos direitos sociais como aos benefícios espirituais [...].
Tenhamos em consideração, também o poder do bom exemplo. Nossas pa-
lavras e nossos esforços pelas vocações leigas seriam em vão, se nossos jovens
não vissem na prática em nossas comunidades a igualdade e a fraternidade
entre os salesianos sacerdotes e os coadjutores [...].
Quando um coadjutor salesiano é destinado a uma casa, o diretor não pense
que nada deva fazer pela sua educação e formação. Ao contrário, estas devem
continuar com toda paciência e cuidado.37

37
Carta sobre as vocações, 15 de maio de 1921, em P. Albera, Lettere, 504-506.525.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

REITORADO DO PADRE RINALDI (1922-1931)

Os reitorados dos padres Rua e Albera deram uma contribuição consi-


derável para o esclarecimento e a importância do pensamento de Dom Bos-
co sobre a doutrina e a vivência da vocação salesiana leiga; todavia, neste
aspecto, devem ser considerados de transição. Por outro lado, a década do
reitorado do padre Felipe Rinaldi deve ser recordada como fundamental para
a formulação do pensamento salesiano sobre a vocação do coadjutor. Ele é
o responsável pela formulação plena e madura da vocação salesiana leiga e a
criação de estruturas para sua aplicação prática exaustiva e sistemática, através
de uma série de evoluções teóricas e práticas:
1o O estudo e a reflexão que precederam o Capítulo Geral XII (1922)
e que nele foram produzidos reafirmaram a unidade da vocação
salesiana e suprimiram os noviciados separados. A unidade do no-
viciado foi considerada “mais conforme com o novo Código de
Direito Canônico, que previa um noviciado para todos os reli-
giosos que tivessem o status de igualdade em sua Congregação”.
Considerou-se também que isso simbolizava e “promovia a unida-
de de educação e formação religiosa de sacerdotes e coadjutores,
exigidas pela unidade da vocação”.
2o A carta fundamental, e programática, do padre Rinaldi, de 1927,
sobre “O Salesiano Coadjutor no pensamento de Dom Bosco”,
retoma e desenvolve de maneira sistemática as formulações de
Dom Bosco e do padre Albera.
3 O comentário interpretativo do padre Vespignani sobre a con-
o

ferência de Dom Bosco aos noviços leigos de San Benigno, em


1883, esclarece os aspectos da sua formação ascética e religiosa.
4o A reorganização profunda empreendida pelo padre Rinaldi deu às
escolas profissionais salesianas base e visão novas.
5o A criação de casas para aspirantes e de escolas pós-noviciado de
aperfeiçoamento para coadjutores proporcionaram um plano siste-
mático de estudos da formação profissional.
Capítulo Geral XII (23 de abril-9 de maio de 1922)
Padre Rinaldi foi eleito no Capítulo Geral XII. Por causa da Primeira
Guerra Mundial não fora possível celebrar um capítulo desde 1910, no qual
o padre Albera tinha sido eleito.
Entre os temas propostos à discussão, um deles, o quinto, referia-se aos sa-
lesianos leigos: “Programas de estudo e formação para os coadjutores, especialmente

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Dom Bosco: história e carisma 2

em relação à sua educação religiosa e profissional; possíveis novas formas de escola


de formação profissional, que não seja o típico colégio internato de artes de ofícios”.
O Capítulo trabalhou durante 16 dias e 24 sessões. Após as eleições em
que padre José Vespignani foi nomeado Conselheiro para as escolas de forma-
ção profissional, deu-se continuidade a prolongadas discussões sobre os temas
propostos, permitindo um conjunto de novas disposições gerais, entre outras,
para as escolas profissionais e os coadjutores.

Primeiro Regulamento Oficial para os Salesianos Coadjutores (1924)


Em 1924 foi publicada uma nova edição das Constituições e dos Re-
gulamentos gerais, segundo a disposição do Capítulo Geral XII, revisto em
conformidade com o novo Código de Direito Canônico (1917).
Pela primeira vez, apareceu no Regulamento um capítulo sobre os sale-
sianos coadjutores, que era uma compilação das deliberações dos Capítulos
Gerais anteriores.

58. Será dada instrução religiosa continuada aos irmãos leigos mediante ade-
quadas sessões semanais.
59. Também haverá na biblioteca da casa livros adequados às necessidades dos
irmãos leigos, para sua instrução e recreação.
60. Prescreve-se que os irmãos leigos que aprendem um ofício numa oficina,
depois da primeira profissão, façam um curso de dois anos de formação, a
fim de completar sua preparação profissional. Se for possível, haja em cada
Inspetoria uma casa específica para esse fim. Para sua gestão, seguir-se-á o
regulamento geral das casas, tendo em consideração o ditado do artigo 53.
[Este artigo trata do aperfeiçoamento e atenção aos estudantes clérigos.]
Seguir-se-á o plano de estudos para o curso de dois anos preparado pelo
Conselheiro geral para as escolas de formação profissional.
61. Os irmãos leigos deverão ser cuidadosamente instruídos e capacitados para
trabalharem em Oratórios festivos.

Capítulo Geral XIII (8-20 de julho de 1929)


Em 1925 foi celebrado o quinquagésimo aniversário das missões salesianas
(primeira expedição missionária). Fez parte de um grande esforço missionário
renovado da Congregação, no qual os coadjutores iriam ter um papel decisivo.
Em 1926 celebrou-se em Turim a Convenção Europeia de Diretores
Salesianos, com cerca de 300 participantes. O tema principal foi a formação
profissional dos coadjutores.

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Em 1927 foi criada a Escola Agrícola de Cumiana, próxima a Turim,


como centro de capacitação dos coadjutores e centro de formação para aspi-
rantes missionários leigos. Fazia parte da criação de estruturas para a educa-
ção dos coadjutores, sempre em progresso durante a década de 1920, paralelo
à da educação dos estudantes clérigos.
No Capítulo Geral XIII (1929) deu-se maior atenção ao tema das esco-
las profissionais e agrícolas. Discutiram-se os seguintes temas:
1o As verdadeiras escolas, como são pedidas nas Constituições (art. 5)
e Regulamentos.
2o Relatórios sobre a situação atual.
3o Organização, programas de estudo e gestão de novos centros de
formação profissional e agrícola.
4 Curso de aperfeiçoamento de dois anos para os irmãos leigos de-
o

pois do noviciado.
5 As vocações leigas e as casas para aspirantes leigos.
o

Documentos do padre Vespignani, Conselheiro para as Escolas Profissionais


Padre José Vespignani, eleito Conselheiro pelo Capítulo Geral XII
(1922), como porta-voz do Reitor-Mor e seu Conselho em matéria de forma-
ção profissional e do Salesiano Coadjutor, produziu uma série de diretrizes.
1o A missão e o apostolado do coadjutor salesiano.
Em sua primeira carta,38 dirige-se aos “mui Reverendos Superiores
Provinciais e a cada diretor de escolas de formação profissional, se-
jam de ofícios ou de agricultura”; pede sua ajuda para a tarefa que
lhe foi recomendada. Também pede aos irmãos coadjutores “par-
ticipantes da missão educativa” nas escolas, que façam um pacto
com ela sobre dois pontos: 1o assumam seu trabalho como missão
e apostolado e 2o trabalhem para aumentar as vocações salesianas
leigas. Escreve:
Em primeiro lugar, a obra de ensinar e assistir devem ser considerados real-
mente uma missão e um apostolado, dirigidos particularmente aos meninos
mais velhos. [Além da formação e instrução no ofício] devemos fomentar
o espírito de família, o amor pela escola salesiana, o dever e o trabalho.
Isso pode ser conseguido através do clima de confiança recíproca, através
de prêmios, através de conferências etc. [...]. Devemos atraí-los pelo amor

“As vocações salesianas e sua formação profissional, religiosa e salesiana”, ACS 3:16 (1922),
38

28-30 [24 de outubro de 1922].

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Dom Bosco: história e carisma 2

e o espírito de sacrifício, para que vivam nosso estilo de vida. Vê-se com
demasiada frequência, [...] que nossos diplomados que saem da escola, vão
embora com indiferença [...].
Em segundo lugar, nossas Constituições impõem-nos o dever de promover
as vocações entre os alunos em nossas escolas de formação profissional [...].
O Capítulo Geral celebrado recentemente [CG XII] reconhece os progressos obti-
dos com a fundação de muitas novas casas e missões. Contudo, também assinalou
a falta de pessoal habilitado e capaz de fazer apostolado em nossos centros de for-
mação profissional. Em outras palavras, neste momento, as Inspetorias não podem
contar com pessoal salesiano preparado profissionalmente para essas escolas [...].
Como o pessoal salesiano capacitado é escasso, [...] não deve ser diluído ainda
mais, dispersando-o por várias Inspetorias carentes. Mas deveriam ser concen-
trados nos centros de formação e capacitação profissional [...]. Estes centros
serão, então, viveiros de pessoal com formação profissional salesiana.

2. Promoção, formação e educação das vocações salesianas leigas39


Em relação a este assunto, a mim [padre Vespignani] agradaria acrescen-
tar o seguinte:
1o Sempre que for possível, cada Inspetoria deve designar uma casa, ou uma
parte dela, na qual se atendam particularmente aspirantes e irmãos leigos [...].
2o A casa de formação de pré-noviciado deve ser bem organizada e equipada
com oficinas em dia e eficientes, de tal modo que atraiam jovens inteligen-
tes, motivados e desejosos de progredir profissionalmente em seu ofício [...].
Os programas e as normas publicadas ou previstas pelo centro devem ser
seguidos por todos, em temas de planos de estudo, livros de texto, exames, di-
plomas etc. Do mesmo modo, dever-se-á dar grande importância a exposições
periódicas e permanentes [...].

3. Outros documentos similares


Padre Vespignani reafirma ao longo de vários anos os pontos anteriores,
com algumas variações e nova ênfase em documentos sucessivos. São impor-
tantes os seguintes:
1o Meios de formação de aprendizes e salesianos coadjutores.40
2o As Escolas salesianas profissionais e o salesiano coadjutor – Relatório sobre
os congressos de diretores europeus (26-28 de junho de 1926) e de diretores
italianos (30 de agosto-1o de setembro de 1926).41

39
ACS 4:19 (1923), 79-80 [24 de abril de 1923].
40
ACS 7:35 (1926), 465-470 [24 de junho de 1926].
41
ACS 7:36 (1926), 508-514 [24 de setembro de 1926].

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

3o Programa de aperfeiçoamento profissional (Corsi di perfezionamento profes-


sionale), uma prioridade – Curso de dois anos para os salesianos coadjutores,
decidido pelo Capítulo Geral XII, com a finalidade de obter diplomas ou
graduações.42
4o Programas de educação religiosa superior e de aperfeiçoamento profissional
para os salesianos coadjutores.43
5o Aperfeiçoamento profissional para os salesianos coadjutores a ser realizado
com maior intensidade durante a moratória declarada pelo padre Rinaldi para
os anos 1929-1932.44
6o Educação religiosa superior e capacitação profissional para os salesianos
coadjutores. Nova ênfase.45
7o Cursos de aperfeiçoamento profissional e recrutamento de vocações sale-
sianas leigas.46

Destacamos os seguintes elementos nos documentos mencionados an-


teriormente:
1o As oficinas (das quais derivam a escola profissional salesiana) constituem a
segunda obra, anexa ao Oratório de Dom Bosco.
2o São grandes em todas as partes a necessidade e a demanda de escolas de
formação profissional de tipo (caritativo) salesiano. Contudo, nosso pessoal
capacitado é escasso. Por isso, precisamos fomentar vocações salesianas leigas
entre os melhores aprendizes de nossas escolas, e formar nossos salesianos
coadjutores por meio de um plano regular de estudos.
3o As vocações devem ser buscadas em todas as partes, mas especialmente
entre os melhores aprendizes de nossas escolas de formação profissional.
Nossa caridade deve concentrar-se neles. Desde o início, eles devem receber
uma boa formação moral e religiosa, uma boa educação geral e uma boa
formação profissional.
4o Cada inspetoria (ou grupo de inspetorias) procure criar seus próprios cen-
tros de formação e capacitação em nível de pré-noviciado e, depois do novi-
ciado, um curso de aperfeiçoamento de dois anos. Uma inspetoria não deve
depender de outras nem do centro para suprir suas necessidades de pessoal.

42
ACS 7:37 (1926), 533-534 [24 de dezembro de 1926].
43
ACS 8:40 (1927), 582-584 [24 de julho de 1927].
44
ACS 10:47 (1929), 723-724 [6 de janeiro de 1929].
45
ACS 11:51 (1930), 841-842 [24 de janeiro de 1930].
46
ACS 11:53 (1930), 869-870 [24 de abril de 1930].

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Dom Bosco: história e carisma 2

5o Não obstante, o centro pôs em ação alguns programas modelos: San Benig-
no, para a formação profissional em vários campos (desde 1883); Cumiana,
para a formação de agricultores (1927); e Rebaudengo (1930), dos quais os
coadjutores de outras inspetorias podem participar. Estes centros também
têm finalidade missionária.
6o Os coadjutores procurem adquirir um bom conhecimento em seu ofício e
a especialização, e deve-se dar-lhes a oportunidade [para isso].
7o A formação religiosa permanente, a educação geral e a formação profissio-
nal dos salesianos coadjutores devem caminhar juntas e devem ter prioridade.
Os inspetores e diretores, sobretudo, devem cuidar dos coadjutores.
8o O salesiano coadjutor no pensamento de Dom Bosco – Comentário do padre
Vespignani sobre as duas partes da conferência de Dom Bosco em 1883 aos
noviços leigos em San Benigno47

Este extenso ensaio comenta cada frase importante das duas partes da
conferência de Dom Bosco; a primeira parte explica seu pensamento sobre o
coadjutor como profissional e mestre; a segunda, a formação espiritual. Padre
Rinaldi apresenta e felicita o ensaio como “as palavras do Pai explicadas por
um filho”. Espera que o ensaio seja conhecido de todos os coadjutores atra-
vés de sua tradução. Seria “uma pauta para sua formação e perseverança”, ao
mesmo tempo em que os introduz na “importância da sua missão e da sua
formação espiritual”.48
Documentos do padre Rinaldi
As cartas circulares do padre Felipe Rinaldi, publicadas nos Atos [do
Capítulo Superior], costumam ser breves. Entre a meia dúzia de cartas mais
extensas, é significativa aquela que trata dos salesianos coadjutores:
1o O salesiano coadjutor no pensamento de Dom Bosco.49
Esta carta desenvolve os seguintes pontos:
1. Necessidade e importância da formação profissional dos jovens pobres nas
missões, especialmente em relação à agricultura. Abre-se a escola agrícola de
Cumiana com finalidade missionária para capacitar os coadjutores.
2. O salesiano coadjutor é uma das criações mais originais e inspiradas de
Dom Bosco. Os coadjutores “não são uma segunda ordem, mas plenamente
religiosos salesianos, obrigados à mesma perfeição [dos sacerdotes]; e fazia

47
ACS 11:54 (1930), 888-909 [24 de outubro de 1930].
48
ACS 11:54 (1930), 877 [24 de outubro de 1930].
49
ACS 8:40 (1927), 572-580 [24 de julho de 1927].

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

um apelo para que cada um realizasse, na própria profissão, ofício ou tra-


balho, o mesmo apostolado educativo, que é a obra essencial da Sociedade
Salesiana [...]. O salesiano coadjutor não é o segundo melhor; não é ajudan-
te do sacerdote ou a mão direita do sacerdote. Ele é igual ao sacerdote no
chamado à perfeição religiosa [...]”.
3. Dom Bosco viu no salesiano coadjutor um componente essencial da con-
gregação e da sua obra. Como religioso salesiano, é chamado à perfeição
evangélica; como salesiano coadjutor é uma parte indispensável e caracte-
rística da obra salesiana.
4. O campo aberto ao salesiano coadjutor é imenso e a colheita muito abun-
dante. Isso requer numerosas vocações, que há de se buscar em todos os
lugares com uma atividade intensa, especialmente em nossos oratórios festi-
vos, em nossas escolas de formação profissional (de ofícios e de agricultura),
e nas paróquias das cidades e do país. Os sinais e os critérios para avaliar a
vocação de um jovem devem ser conhecidos e aplicados.
5. Tornar conhecida a vocação salesiana leiga.
6. Como a vocação salesiana leiga foi concebida por Dom Bosco ao mesmo
tempo em que a Sociedade, deduz-se que Dom Bosco é o modelo acabado
dos coadjutores quanto ao espírito e à dedicação ao trabalho com os jovens.
“Em suas Constituições, Dom Bosco estabeleceu o princípio de uma vo-
cação religiosa salesiana em perfeita igualdade, exceto no que é próprio do
ministério ordenado. Esta inovação permitiu a um grande número de leigos
participarem do apostolado salesiano no mundo todo, simples e completa-
mente como salesiano religioso”.
7. Conselhos espirituais básicos de Dom Bosco a todos os coadjutores, repeti-
dos frequentemente por seus sucessores: “Fidelidade às práticas de piedade
e obediência como base de todas as virtudes”.

2o Para a maior formação do salesiano coadjutor,50 padre Rinaldi recorda o que


escrevera sobre o pensamento de Dom Bosco a respeito do coadjutor em
sua carta anterior e insiste em alguns pontos. Em seguida, acrescenta que,
como no ano anterior foi criada a escola agrícola de Cumiana, agora se
criava um programa de capacitação profissional em San Benigno. Tratava-se
de um passo para realizar algumas intenções do Fundador. Continua infor-
mando sobre o retiro espiritual realizado em Valsálice para os coadjutores.
O último dia do retiro foi reservado para o estudo da vocação salesiana leiga
e a formação profissional dos coadjutores. Padre Fedele Giraudi, Ecônomo
geral, e padre Pedro Ricaldone, Prefeito geral, falaram, respectivamente,
sobre a vocação e a formação.

50
ACS 9:46 (1928), 688-691 [24 de setembro de 1928].

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Dom Bosco: história e carisma 2

3o Apostolado leigo, associações, os salesianos coadjutores como “educadores e


mestres”.51
4 Aperfeiçoamento profissional do coadjutor.52
o

5o Singularidade, grandeza e espírito da vocação salesiana leiga. Formação Per-


manente dos coadjutores.53

Depois de referir-se à conferência de Dom Bosco, de 1883, e ao co-


mentário do padre Vespignani, padre Rinaldi nomeia muitos coadjutores
distintos, formados pelo mesmo Dom Bosco: José Rossi, André Pelazza,
Francisco Frescarolo, Cipriano Audisio, José Buzzetti, Carlos Fontana,
Domingos Palestrino e Marcelo Rossi. Continua afirmando que se está a
fazer todos os esforços a fim de criar estruturas e programas para a capaci-
tação e formação dos coadjutores.

Reitorado do padre Ricaldone (1932-1951)


O reitorado do padre Ricaldone foi o período mais intensamente ativo
no que se refere a levar à prática em instituições concretas os princípios acei-
tos e as ideias desenvolvidas nos períodos anteriores. Foram criadas e organi-
zadas as casas para aspirantes, a formação de professores, a formação espiritu-
al, os centros de capacitação profissional de coadjutores e os programas para
a educação e instrução técnica, os estudos sociais etc.
A questão do plano de estudos de formação para coadjutores, desenvol-
vido há muito tempo, foi especialmente abordada de tal maneira que se asse-
melhasse a um clássico plano de estudos para a formação dos clérigos. Criar
este plano de estudos converteu-se numa preocupação absorvente dos Supe-
riores e dos Capítulos Gerais. Os Capítulos XV (1938), XVI (1947) e XVII
(1952) trabalharam nesse projeto e criaram uma normativa permanente.
Padre Ricaldone ressaltou a unicidade da vocação salesiana e, por isso,
do noviciado e da consagração religiosa. Padres e coadjutores não são duas
classes de religiosos, nem subordinados nem paralelos, mas duas formas que
expressam uma única vocação religiosa.
O Código de Direito Canônico de 1917, como o atual, confirmou essa
doutrina. O cânon 558 do Código de 1917, por exemplo, especifica que deve
haver um noviciado separado para classes distintas de religiosos no interior de
uma ordem ou congregação, mas não para categorias distintas de uma mesma
classe, como explicam os comentaristas:

51
ACS 11:55 (1930), 913-915 [24 de dezembro de 1930].
52
ACS 11:55 (1930), 921-922 [24 de dezembro de 1930].
53
ACS 12:56 (1931), 945-948 [24 de abril de 1931].

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O salesiano leigo, “coadjutor”, e a reflexão progressiva de Dom Bosco sobre esta vocação

Este cânon não se aplica aos institutos religiosos nos quais existem diversas ca-
tegorias, mas apenas uma classe de religiosos. Estes são, por exemplo, a Con-
gregação dos Irmãos das Escolas Cristãs [de] la Salle e a Sociedade Salesiana.
Nestes casos, portanto, o noviciado é único [...]. Este é o caso de um instituto
religioso leigo no qual existem apenas alguns sacerdotes, ou de um instituto
no qual não haja sacerdotes, mas apenas leigos de categoria diferente [mas de
uma só classe], ou de um instituto no qual, por disposição das constituições,
as categorias de sacerdotes e leigos constituem uma única classe de religioso.
Cf. Constituições da Sociedade Salesiana.54

Uma síntese do conceito de coadjutor salesiano foi apresentada ao Con-


gresso de Institutos Religiosos, reunidos em Roma, em 1950, pelo então
Conselheiro para a formação profissional, padre Antônio Candela. Nela se
reuniam os elementos educativos, religiosos, históricos e jurídicos que carac-
terizam o coadjutor, o “salesiano com roupa comum”.55
Esclarecido plenamente o conceito de coadjutor salesiano, e definidas
sua vocação leiga e condição paritária no interior da Congregação, os docu-
mentos posteriores não fizeram mais do que confirmar esta importante cria-
ção de Dom Bosco e insistir na unicidade da vocação religiosa salesiana tanto
leiga quanto sacerdotal. Assim é expresso pelo artigo 45 das Constituições:
“Cada um de nós é responsável pela missão comum e dela participa com a
riqueza de seus dons e das características laical e sacerdotal da única voca-
ção salesiana. O salesiano coadjutor leva para todos os campos educativos
e pastorais o valor próprio de sua laicidade, que o torna de modo específico
testemunha do Reino de Deus no mundo, mais próximo dos jovens e das
realidades do trabalho [...]. A presença significativa e complementar de sale-
sianos clérigos e de leigos na comunidade constitui um elemento essencial de
sua fisionomia e completeza apostólica”.56
A grande preocupação é a formação humana e religiosa e a qualificação
profissional dos irmãos coadjutores.57

54
A. Larraona, Commentarium pro Religiosi. Roma: Institutum Iuridicum Claretianum, 1935,
152-153.183-184.
55
Cf. Acta et Documenta Congressus Generalis de Statibus Perfectionis, vol. III. Roma: Pia Società
San Paolo, 1953, 208-212.
56
Cf. Atti Convegno Mondiale Salesiano Coadiutore (Roma, 31 de agosto-7 de setembro de
1975). Roma: Esse-Gi-Esse, 1976. Vejam-se especialmente: o discurso de abertura do Reitor-Mor
padre L. Ricceri, Ibidem, 15-21; a introdução geral de M. Midali, Perché e come ridefinire l’identità del
salesiano coadiutore; Ibidem, 23-49; e o artigo de P. Stella, I coadiutori salesiani (1854-1974), appunti
per un profilo storico socio-professionale; Ibidem, 53-99.
57
Cf. o documento publicado pelo Conselho Geral de Roma: El salesiano coadjutor: historia,
identidad, pastoral vocacional y formación. Madri: Editorial CCS, 1989.

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Bibliografia

Livros
AMADEI, Angelo. Don Bosco e il suo apostolato [...]. Vol. I. Turim: SEI, 1940.
BERTO, Gioachino. Compendio dell’andata di Don Bosco a Roma nel 1873,
em ASC A004: Cronachette, Berto, FDB 908 C8ss.
________. Appunti sul viaggio di Don Bosco a Roma. 1873, em ASC A004:
Cronachette, Berto, FDB 907 D12ss.
________. Brevi appunti pel viaggio di Don Bosco a Roma nel 1873-1874, em
ASC A004: Cronachette, Berto, FDB 908 B5-910 e 910 C4-911 A8.
BONETTI, Giovanni. Storia dell’Oratorio, publicada em série no Bolletino
Salesiano, a partir de maio de 1883, e depois reunida no volume inti-
tulado: Cinqui lustri di storia dell’Oratorio salesiano fondato dal sacer-
dote D. Giovanni Bosco. Turim: Tip. Salesiana, 1892. [Existe tradução
espanhola, Cinco lustros de historia del Oratorio Salesiano, Buenos Ai-
res, 1897.]
BOSCO, Giovanni, Costituzioni della Società di San Francesco di Sales [1858]-
1875. Edição crítica de Francisco MOTTO. Roma: LAS, 1982.
BRAIDO, Pietro. Scritti sul sistema preventivo nell’educazione della gioventù.
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________. Il sistema preventivo di Don Bosco. Zurique: PAS Verlag, 1964.
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Dom Bosco: história e carisma 2

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796

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Índice geral

Siglas e abreviaturas.............................................................................................. 5
Apresentação do Segundo volume. Expansão: de Valdocco a Roma
(1850-1875)......................................................................................................... 7
Capítulo I
A DÉCADA 1850-1861
1. O progresso da Revolução Liberal e suas reformas sociais............................... 9
A reforma escolar Boncompagni (4 de outubro de 1848)...................................... 9
As Leis Siccardi (9 de março e 8 de abril de 1850) e a ascensão política de Cavour......10
As Leis Siccardi.............................................................................................. 11
A reação do arcebispo Fransoni........................................................................ 13
A Lei Rattazzi, “lei dos conventos” (1854-1855)................................................. 15
Disposições da lei............................................................................................ 15
O relatório do Comitê sobre o estado da Igreja no Reino da Sardenha................. 15
Tentativas de negociação................................................................................. 16
Debate no Parlamento e mortes na casa real..................................................... 17
Alocução de Pio IX, posição da Santa Sé e resposta do rei................................... 18
Aprovação da lei no Parlamento, sua introdução no Senado e a “crise Calabiana”....19
Morte do filho mais novo do rei. Aprovação e assinatura da lei........................... 21
Comentário.................................................................................................... 21
A reforma educacional de Casati (13 de novembro de 1859).............................. 22
Descrição geral e normativa............................................................................. 22
Comentário.................................................................................................... 23
2. Os dois sonhos de Dom Bosco sobre mortes na casa real.............................. 23
Cronologia......................................................................................................... 23
Data do sonho.................................................................................................... 24
Texto e fonte da narração................................................................................... 25
Predições realizadas............................................................................................ 27
Teologia da retribuição....................................................................................... 27
3. Evolução dos acontecimentos políticos até a unificação da Itália (1861).......... 29
Mazzini, Garibaldi e o Partido da Ação.............................................................. 30
A Guerra da Crimeia e a participação do Piemonte (1854-1855)........................ 31

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Dom Bosco: história e carisma 2

A aliança de Plombières entre Napoleão III e Cavour (1858).............................. 32


A Segunda Guerra de Independência Italiana e a anexação da Lombardia........... 34
Anexação das regiões do centro da Itália............................................................. 35
Conquista do sul da Itália, invasão dos Estados Pontifícios e unificação
da Itália (1860-1861)......................................................................................... 36
Consequência: a “questão romana”..................................................................... 37
Apêndice
CONDE CAMILO BENSO DE CAVOUR (1810-1861)............................... 39
Os primeiros anos de Cavour e sua chegada ao poder......................................... 39
Cavour e a política eclesial piemontesa na década de 1850................................. 40
Cavour e a unificação da Itália............................................................................ 41
A personalidade de Cavour e seu modo de governar........................................... 42
Atitude religiosa final.......................................................................................... 43
JOSÉ GARIBALDI (1807-1882)...................................................................... 43
CRONOLOGIA DOS FATOS SIGNIFICATIVOS RELACIONADOS
COM O ESTADO, A IGREJA E A OBRA DE DOM BOSCO (1840-1861).......46
Capítulo II
AMPLIAÇÕES DA “CASA ANEXA” AO ORATÓRIO (1852-1862)
1. A década 1852-1862...................................................................................... 54
Cronologia das obras de ampliação..................................................................... 55
Acontecimentos importantes. Decisões e realizações........................................... 56
2. Oficinas para jovens artesãos e aprendizes..................................................... 57
As oficinas no plano educativo e prático de Dom Bosco..................................... 58
Modelos......................................................................................................... 58
Estratégia preventiva....................................................................................... 59
Objetivos de Dom Bosco.................................................................................. 60
Oficinas, educação humanista e profissional...................................................... 60
As oficinas criadas na década de 1850................................................................. 61
Oficinas de sapataria e alfaiataria................................................................... 61
Oficina de encadernação................................................................................. 62
Oficina de carpintaria.................................................................................... 63
Organização e administração das oficinas........................................................... 63
Primeiro regulamento para as oficinas.............................................................. 63

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Índice geral

Número de aprendizes..................................................................................... 63
Administração das oficinas.............................................................................. 64
A jornada de um aprendiz.............................................................................. 64
As oficinas na década de 1860 e o advento do salesiano coadjutor...................... 65
A tipografia.................................................................................................... 65
A oficina de ferreiro........................................................................................ 66
A livraria....................................................................................................... 67
O salesiano coadjutor......................................................................................... 67
Novo regulamento para as oficinas..................................................................... 67
Formas de aprendizagem.................................................................................... 68
O desenvolvimento das oficinas nas décadas de 1860 e 1870.............................. 69
Números........................................................................................................ 69
Crise e recuperação.......................................................................................... 69
Até a escola profissional...................................................................................... 70
Apêndice
PRIMEIRO REGULAMENTO (1854)........................................................... 72
Chefes de oficina................................................................................................ 72
REGULAMENTO DAS OFICINAS (POR VOLTA DE 1860-1861)............ 73
Capítulo III
DOM BOSCO, EDUCADOR E MESTRE ESPIRITUAL
1. A opção e o amor pelos jovens, compromisso vocacional de Dom Bosco...... 76
valorização dos jovens em Dom Bosco............................................................... 77
O relacionamento com os jovens........................................................................ 78
2. Método e estilo educativo de Dom Bosco...................................................... 79
Dom Bosco, educador realista............................................................................ 79
Escritos pedagógicos de Dom Bosco................................................................... 79
Primeiros escritos importantes.......................................................................... 80
Método e estilo educativo de Dom Bosco........................................................... 83
3. A “filosofia educacional” de Dom Bosco....................................................... 83
A “família” como modelo e o “espírito de família”.............................................. 83
A palavra e o exemplo de Dom Bosco................................................................. 86
A familiaridade e o espírito de família na prática................................................ 88

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Dom Bosco: história e carisma 2

Significado e papel da razão na educação......................................................... 89


Religião.......................................................................................................... 89
Amor, carinho, afeto....................................................................................... 90
Confiança...................................................................................................... 91
Algumas características da vida na casa do Oratório nos primeiros anos.............. 93
Estilo espartano de vida................................................................................... 93
O espírito de sacrifício de Dom Bosco............................................................... 93
Premonições de Dom Bosco.............................................................................. 93
4. Estratégias do método educativo................................................................... 94
Uso da religião................................................................................................... 94
Prevenção........................................................................................................... 94
Assistência.......................................................................................................... 95
Prioridade educativa....................................................................................... 95
Estratégia educativa........................................................................................ 96
5. Alguns recursos educativos de Dom Bosco.................................................... 98
Trabalho, estudo e “piedade”.............................................................................. 98
Grupos juvenis................................................................................................... 99
Jogos e pátio: uma ferramenta educativa inovadora............................................. 99
Outros recursos educativos............................................................................... 100
Excursões outonais........................................................................................ 101
Música......................................................................................................... 101
Representações dramáticas............................................................................. 103
Conclusão........................................................................................................ 103
Apêndice
ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS PARA OS INTERNOS DO ORATÓRIO......104
Conferência “associada” de São Vicente de Paulo............................................. 104
Conferência de São Francisco de Sales............................................................ 105
Transição na organização interna das associações juvenis................................. 105
Companhia da Imaculada Conceição............................................................. 106
Companhia do Santíssimo Sacramento........................................................... 109
Companhia do Pequeno Clero....................................................................... 110
Companhia de São José................................................................................. 110
À moda de conclusão........................................................................................ 110
Características gerais..................................................................................... 110
Características especiais................................................................................. 111

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Índice geral

A CONVERSA DE DOM BOSCO COM O MINISTRO


URBANO RATTAZZI, SOBRE A EDUCAÇÃO DOS JOVENS
E O EPISÓDIO DA GENERALA, NARRADO NA HISTÓRIA
DE BONETTI (1854-1855)....................................................................... 113
A conversa de Dom Bosco com o ministro Rattazzi.......................................... 113
O episódio da Generala................................................................................. 114
Capítulo IV
DOM BOSCO, DIRETOR ESPIRITUAL NA EDUCAÇÃO DOS JOVENS
1. O ideal de santidade proposto aos jovens. Meios para alcançá-lo................ 116
A proposta de Dom Bosco de santidade juvenil articulada na biografia
de Domingos Sávio.......................................................................................... 117
Domingos conhece Dom Bosco nos Becchi e matricula-se como estudante
no Oratório (1854)....................................................................................... 118
Progresso até a santidade, sob a orientação de Dom Bosco................................ 119
Início dos estudos secundários......................................................................... 120
Fatos edificantes............................................................................................ 121
A “segunda conversão” de Sávio: uma mudança na busca da santidade
e na vida espiritual....................................................................................... 122
Verão de 1855.............................................................................................. 123
Amigos especiais............................................................................................ 125
Experiências místicas..................................................................................... 125
A Companhia da Imaculada Conceição......................................................... 126
Enfermidade e repouso em Mondônio, no verão de 1856................................. 126
Quarto ano de ginásio na escola do padre Picco.............................................. 127
Evolução da doença e santa morte ................................................................. 129
2. Os “novíssimos” na proposta de santidade de Dom Bosco.......................... 131
Relação dos sonhos “extraordinários” de Dom Bosco e suas premonições sobre
mortes, nos anos de 1850 e 1860.......................................................................... 131
Elenco.......................................................................................................... 131
Comentário.................................................................................................. 142
Os “novíssimos” na proposta de santidade juvenil de Dom Bosco..................... 142
O Exercício da Boa Morte (dia de retiro mensal) no Oratório.......................... 142
As previsões de Dom Bosco sobre as mortes dos meninos,
especialmente em relação com o Exercício da Boa Morte.................................. 145
Tradição e prática do Exercício da Boa Morte................................................. 147
Componentes tradicionais e pessoais numa espiritualidade focada na morte...... 148
3. Comentário final......................................................................................... 149

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capítulo V
DOM BOSCO publicista. O APOSTOLADO DA IMPRENSA
1. Contexto histórico....................................................................................... 150
Educação generalizada e aumento do índice de alfabetização............................ 151
Resposta católica às reformas liberais e à secularização da sociedade.................. 151
Escritor e editor................................................................................................ 152
2. Escritos em defesa da Igreja e do papado..................................................... 153
História da Itália. Primeira edição (1855-1856)................................................ 153
Finalidade e estilo......................................................................................... 153
Fontes.......................................................................................................... 154
Organização e conteúdos............................................................................... 154
Ideologia...................................................................................................... 155
Segunda edição (1859)..................................................................................... 157
Oito novos capítulos...................................................................................... 157
Recensão do livro na Gazzetta del Popolo...................................................... 159
Crítica moderada de Nicolau Tommaseo........................................................ 159
Vidas de papas (1857-1858)............................................................................. 160
Propósito da série.......................................................................................... 160
Vida de São Pedro........................................................................................ 160
Outras vidas dos primeiros papas................................................................... 161
3. Escritos piedosos e educativos...................................................................... 162
O mês de maio em honra de Maria Santíssima Imaculada (1858)................... 162
Vade-mécum do cristão (1855)...................................................................... 163
A vida do jovem Domingos Sávio (1859)....................................................... 164
Cinco edições publicadas sob a supervisão de Dom Bosco................................. 164
Edições posteriores, baseadas no texto definitivo............................................... 165
Fontes.......................................................................................................... 166
Conteúdo..................................................................................................... 168
Apêndice
CARTA DE DOM BOScO SOBRE O APOSTOLADO DA IMPRENSA
(19 DE MARÇO DE 1885)............................................................................ 169
[Base teológica]............................................................................................. 169
[O poder do livro]......................................................................................... 170
[Dom Bosco e o compromisso dos salesianos com o Apostolado da Imprensa]...... 171

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Índice geral

[Livros para os jovens]................................................................................... 172


[Recrutamento de jovens para este apostolado]................................................. 173
[Exortação final].......................................................................................... 173
Capítulo VI
ESCRITOS POLÊMICOS E APOLOGÉTICOS DE DOM BOSCO
1. Dom Bosco e os valdenses........................................................................... 175
Antes de 1850.................................................................................................. 175
Polêmicas na década de 1850........................................................................... 176
Encontros pessoais............................................................................................ 178
Os anos seguintes............................................................................................. 178
2. Os escritos polêmicos antivaldenses (1850-1853)....................................... 180
Um precedente: a História eclesiástica, de Dom Bosco....................................... 180
Os valdenses na História eclesiástica................................................................... 180
Teses explícitas e ocultas................................................................................. 181
A Igreja católica, apostólica e romana ou Avisos aos católicos (1850)................ 183
Inícios polêmicos........................................................................................... 183
O católico instruído na sua religião (1853).................................................... 184
Os valdenses: uma defesa dos valdenses (1849)............................................. 184
Tratado antivaldense de Dom Bosco................................................................. 187
Comentário.................................................................................................. 189
As Leituras Católicas (a partir de 1853)............................................................. 189
Dom Moreno e Dom Bosco: projeto e planejamento da coleção......................... 189
Inícios e política editorial.............................................................................. 190
Sucesso da coleção......................................................................................... 191
Títulos dos primeiros anos............................................................................. 192
Comentário.................................................................................................. 194
Outros escritos apologéticos (a partir de 1853)................................................. 195
O quarto centenário do Milagre do Santíssimo Sacramento............................. 195
Fatos contemporâneos apresentados em forma de diálogo.................................. 195
Disputa entre um advogado e um pastor protestante........................................ 196
Continuação da polêmica antivaldense........................................................... 196
Il Galantuomo: almanaque das Leituras Católicas........................................ 197
Origem, finalidade e inspiração..................................................................... 197
O almanaque de Faà di Bruno associado às Leituras Católicas....................... 198
O almanaque de Dom Bosco (1855).............................................................. 200

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apêndice
OS VALDENSES E SEU FUNDADOR........................................................ 201
DOM LUÍS MORENO (1800-1878), BISPO DE IVREA............................ 203
Capítulo VII
ORIGEM DA SOCIEDADE SALESIANA. UMA “CONGREGAÇÃO”
DE COLABORADORES DO ORATÓRIO (1841-1876)
1. A primitiva “Congregação” e sua evolução.................................................. 206
Natureza da “Congregação” primitiva (1841-1859).......................................... 207
Uma associação de clérigos e leigos, homens e mulheres................................... 208
Uma dupla Congregação (1859)....................................................................... 210
A Sociedade Salesiana: vida em comunidade..................................................... 211
O grupo externo (1858-1874)........................................................................... 212
2. Alguns textos importantes........................................................................... 213
Origem desta Congregação............................................................................... 213
Cooperadores Salesianos (1877)....................................................................... 215
História dos Salesianos Cooperadores (1877)................................................... 218
Membros externos da Sociedade Salesiana........................................................ 221
3. Comentário dos textos e interpretação........................................................ 222
Existência de uma primitiva Congregação de São Francisco de Sales,
anterior às primeiras Constituições (1858) e sua “divisão” (1859)..................... 222
Interpretação de Desramaut........................................................................... 222
Os Cooperadores Salesianos em 1876 e sua aprovação..................................... 223
A Obra de Maria Auxiliadora (Filhos de Maria)............................................ 225
Crítica de Stella............................................................................................ 226
À maneira de conclusão................................................................................. 229
Apêndice
CRONOLOGIA DE 1858 A 1874................................................................. 231
Capítulo VIII
A FUNDAÇÃO DA SOCIEDADE SALESIANA (1859)
1. Dom Bosco reúne “seus meninos” e dá origem à Sociedade Salesiana......... 236
Testemunho das Memórias Biográficas............................................................... 236
MB III, 546-548, 572-574 (julho de 1849).................................................. 236
MB IV, 93-94 (28 de setembro de 1850)....................................................... 237

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Índice geral

MB IV, 139-141 (outubro de 1850).............................................................. 237


MB IV, 231 (2 de fevereiro de 1851)............................................................. 237
MB IV, 378 (31 de março de 1852).............................................................. 237
MB IV, 428-429 (5 de junho de 1852)......................................................... 238
MB IV, 487-488 (3 de outubro de 1852)...................................................... 238
MB V, 9-10 (26 de janeiro de 1854)............................................................. 238
MB V, 124-125 (outubro de 1854)............................................................... 240
MB V, 692-696 (1857) [da Storia, de Bonetti].............................................. 240
MB V, 860-861 (9 de março de 1858) [da Storia, de Bonetti]........................ 240
MB VI, 333-335 (18 de dezembro de 1859)................................................. 240
1854, verdadeiro início da Sociedade Salesiana................................................. 241
Fundação da Sociedade Salesiana (1854-1859)................................................. 243
A ideia de contar com um grupo para continuar a obra dos Oratórios.............. 243
A ideia de uma sociedade religiosa................................................................. 245
Reunião de Dom Bosco com Rattazzi, ministro do Interior (1857).................. 246
O tipo de sociedade religiosa imaginado por Dom Bosco.................................. 250
Dom Bosco e Pio IX (1858), segundo Bonetti e Lemoyne................................. 252
Interpretações de Bonetti e Lemoyne............................................................... 253
Correção de Bonetti-Lemoyne quanto às Constituições previamente escritas
e as três audiências papais.............................................................................. 253
Primeiro rascunho das Constituições Salesianas e Forma da Sociedade................ 256
Evolução imediata depois das audiências com Pio IX em 1858........................ 257
O momento fundacional: 18 de dezembro de 1859......................................... 258

Capítulo IX
PANORAMA HISTÓRICO DO PERÍODO 1861-1874
1. A unificação da Itália................................................................................... 265
A “questão romana”.......................................................................................... 266
Conflitos sociais, conspirações dos mazzinianos e dificuldades do governo........ 268
A Convenção de setembro................................................................................ 269
Terceira Guerra de Independência (1866)......................................................... 271
Ação militar de Garibaldi contra Roma (1867)................................................. 273
O Concílio Vaticano (8 de dezembro de 1869-20 de outubro de 1870)............ 274
A guerra franco-alemã e a tomada de Roma (20 de setembro de 1870)............. 276
A Lei das Garantias.......................................................................................... 277
2. Dom Bosco e sua obra na década 1862-1874............................................... 277

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apêndice
SILLABUS DOS ERROS (1864).................................................................... 280
PEDIDO DE INFORMAÇÃO, DE DOM BOSCO, SOBRE SUA
ASSISTÊNCIA AO CONCÍLIO VATICANO I............................................... 281
Carta a dom Joseph Fessler, secretário do Concílio Vaticano I,
de 22 de novembro de 1869.......................................................................... 281
Comentário.................................................................................................. 282
Capítulo X
AS PROFECIAS DE DOM BOSCO (1870-1873)
1. A guerra franco-alemã (19 de julho de 1870-10 de maio de 1871)............. 283
2. As profecias de Dom Bosco......................................................................... 285
Profecia (1870): “Só Deus é todo-poderoso...”.................................................. 286
Documentação............................................................................................. 286
Conteúdo..................................................................................................... 286
Introdução.............................................................................................. 286
Parte primeira ........................................................................................ 287
Parte segunda.......................................................................................... 287
Inserção.................................................................................................. 287
Epílogo................................................................................................... 287
Mensagem a Pio IX (1873): “24 de maio-24 de junho de 1873.
Era uma noite escura...”..................................................................................... 287
Documentação............................................................................................. 287
Conteúdo..................................................................................................... 288
Mensagem profética a Francisco José I (1873):
“Assim diz o Senhor ao imperador da Áustria...”.................................................. 288
Documentação............................................................................................. 288
Conteúdo..................................................................................................... 289
As três profecias, segundo as Memórias Biográficas............................................. 289
Quadro cronológico....................................................................................... 289
Primeira profecia (5 de janeiro de 1870)........................................................ 291
Introdução.............................................................................................. 291
Profecia.................................................................................................. 291
Conclusão............................................................................................... 294
Esclarecimentos............................................................................................. 294
Segunda profecia (24 de maio-24 de junho de 1873)...................................... 295
Terceira profecia (julho de 1873)................................................................... 297

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Índice geral

3. Cartas de Dom Bosco no mesmo período (1870-1873).............................. 298


Carta ao cardeal José Berardi (29 de outubro de 1870)..................................... 298
Carta ao cardeal José Berardi (11 de abril de 1871)........................................... 300
Carta a Pio IX (14 de abril de 1871)................................................................ 302
Apêndice
DOM CARLOS DE BOURBON (1848-1909)............................................. 305
Quem foi dom Carlos?..................................................................................... 305
O dom Carlos de Dom Bosco.......................................................................... 306
Dom Bosco e dom Carlos na Crônica de Barberis (1875)................................. 306
FORMAÇÃO DE UM MOVIMENTO CATÓLICO CONSERVADOR
NA ITÁLIA..................................................................................................... 307
DOM BOSCO E O PAPADO....................................................................... 309
Capítulo XI
AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS. PRIMEIRA ETAPA (1858-1867)
1. A aprovação das Constituições na prática da Igreja..................................... 312
Reforma das Constituições............................................................................... 313
Etapas do processo de aprovação....................................................................... 313
Etapas do processo de redação do texto constitucional de Dom Bosco.............. 315

2. Durante o exílio de dom Fransoni (1860-1862).......................................... 318


Texto constitucional de 1860 (Do), enviado ao arcebispo Fransoni................... 318
Observações do padre Durando (1860)............................................................ 320

3. Durante o tempo de sede vacante da Diocese de Turim.............................. 321


Primeira solicitação de Dom Bosco à Congregação dos Bispos e Religiosos
para a aprovação (1864). Texto de 1854 e o Decretum laudis............................. 321
O texto constitucional como foi apresentado em 1864 (Gb)............................. 321
Carta de Dom Bosco a Pio IX solicitando a aprovação da Sociedade Salesiana
e das Constituições........................................................................................ 322
Memorando de Dom Bosco. Observações sobre alguns pontos das Constituições
apresentadas em 1864................................................................................... 323
Decreto da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares recomendando a
Congregação Salesiana. Decretum laudis (23 de julho de 1864)..................... 325
Observações Savini-Svegliati sobre alguns pontos das Constituições Salesianas
e resposta de Dom Bosco (1864)...................................................................... 326
Nota introdutória......................................................................................... 326
Memorando................................................................................................. 327

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apêndice
O METHODUS............................................................................................. 334
Capítulo XII
AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS. SEGUNDA ETAPA (1867-1871)
1. Avaliação de dom Riccardi sobre a situação no Oratório............................. 336
2. Quadro cronológico do processo de aprovação nos anos 1867-1869........... 337
3. O texto latino (1867) apresentado em Roma para aprovação...................... 339
4. Cartas de recomendação.............................................................................. 340
5. Relatório do padre Durando e observações críticas (1867).......................... 341
6. Intervenção de dom Riccardi na Congregação dos Bispos e Regulares........ 344
7. Relatório negativo do representante do Vaticano, monsenhor Tortone......344
8. Negativa ao pedido de Dom Bosco.............................................................. 345
9. Aprovação da Sociedade, mas não de suas Constituições............................. 346
10. Conteúdo do Decreto................................................................................ 347
11. Incidentes desagradáveis............................................................................ 348
Apêndice
ALEXANDRE RICCARDI (1808-1870), ARCEBISPO DE TURIM
(1867-1870)......................................................................................................... 350
CARTAS DE DOM ALEXANDRE RICCARDI DI NETRO...................... 352
A Dom Bosco................................................................................................ 352
Carta confidencial ao cardeal Quaglia, prefeito da Congregação dos Bispos
e Regulares................................................................................................... 353
Observações feitas por dom Riccardi sobre as Constituições............................... 355
Capítulo XIII
AS CONSTITUIÇÕES SALESIANAS. TERCEIRA ETAPA (1872-1874)
1. 1872. Dom Gastaldi e Dom Bosco.............................................................. 358
Lourenço Gastaldi, arcebispo de Turim. Inícios difíceis.................................... 358
Primeiro distanciamento................................................................................... 361
Reinício do processo de aprovação das Constituições Salesianas........................ 362
“Declaração de intenções” de dom Gastaldi (24 de outubro de 1872)............... 363
Comentário...................................................................................................... 365

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Índice geral

2. 1873. Conflito para a aprovação das Constituições..................................... 367


Condições de dom Gastaldi para seu apoio....................................................... 367
Carta de dom Gastaldi: objeções e exigências................................................... 369
Provas e tribulações: primeira apresentação sem sucesso.................................... 372
Novos incidentes.............................................................................................. 373
As 38 observações de Bianchi sobre o texto constitucional de 1873 (Ns)........... 378
As observações de dom Vitelleschi.................................................................... 379
Resposta de Dom Bosco................................................................................... 380
3. 1874. Segundo pedido de Dom Bosco, novas revisões no texto definitivo.......386
Primeiros textos impressos em latim das Constituições de 1874 ...................... 386
Segundo e terceiro textos impressos das Constituições de 1874........................ 387
Duas sessões da Congregação Especial e aprovação definitiva............................ 388
Primeira sessão............................................................................................. 389
Segunda sessão. Aprovação definitiva.............................................................. 389
Resultados obtidos........................................................................................... 391
4. Conclusão.................................................................................................... 392

Apêndice
COMENTÁRIOS DE DOM BOSCO SOBRE QUESTÕES
IMPORTANTES RELACIONADAS COM A SOCIEDADE SALESIANA...... 396
O Noviciado................................................................................................ 396
Privilégios e dimissórias................................................................................. 397
RESUMO HISTÓRICO (Cenno istorico) DE 1873 - 1874.................. 398
Início desta Congregação............................................................................... 398
Pensamento do Santo Padre sobre esta Pia Sociedade....................................... 400
O decreto das cartas comendatícias de 1864................................................... 401
Dificuldades para as sagradas ordenações........................................................ 402
A aprovação da Sociedade em 1o de março de 1869......................................... 402
Programa de estudos...................................................................................... 404
As cartas dimissórias..................................................................................... 407
CARTAS DE DOM LOURENÇO GASTALDI............................................ 410
A Dom Bosco, 24 de outubro de 1872........................................................... 410
A Dom Bosco. 9 de novembro de 1872........................................................... 412
Resposta de Dom Bosco a dom Gastaldi.......................................................... 413
Carta de dom Gastaldi a Roma..................................................................... 415

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capítulo XIV
LOURENÇO GASTALDI (1815-1883). NOTAS BIOGRÁFICAS
1. Período anterior à ordenação episcopal (1815-1867).................................. 421
Família, educação e sacerdócio.......................................................................... 421
Rosminiano e missionário na Inglaterra............................................................ 424
Período pré-episcopal na arquidiocese de Turim............................................... 425
Dom Gastaldi e Dom Bosco............................................................................. 426
2. Bispo de Saluzzo (1867-1871)..................................................................... 427
O homem e o sacerdote.................................................................................... 427
Ministério episcopal em Saluzzo....................................................................... 428
Visita pastoral.............................................................................................. 428
Concílio Vaticano I....................................................................................... 429
Objetivos pastorais e enfermidade.................................................................. 429
3. Arcebispo de Turim (1871-1883)................................................................ 431
Nomeação........................................................................................................ 431
Diante de uma situação difícil.......................................................................... 431
A luta pelo Exequatur e a mediação de Dom Bosco.......................................... 432
Pastor reformador............................................................................................. 433
Colaboradores............................................................................................... 434
Reforma do clero e a vida da Igreja................................................................ 435
Os sínodos....................................................................................................... 436
Sínodo de 1874............................................................................................ 438
Sínodo de 1878............................................................................................ 439
Calendários litúrgicos.................................................................................... 439
Reforma das estruturas da educação e a formação do clero................................ 441
A Escola e a Faculdade de Teologia................................................................. 441
Reforma dos Seminários diocesanos................................................................ 441
Reforma do Colégio Eclesiástico e do ensino da Teologia moral......................... 442
Atividade pastoral entre o povo...................................................................... 443
A questão social e o movimento de leigos católicos........................................... 445
Relacionamento com os religiosos.................................................................... 445
Maria Luísa Angélica Clarac......................................................................... 447
Francisco Faà di Bruno................................................................................. 449
Morte do arcebispo.......................................................................................... 451

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Índice geral

Capítulo XV
ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS DAS PRIMEIRAS
CONSTITUIÇÕES. PRIMEIRA PARTE
1. Fontes literárias das primeiras Constituições Salesianas.............................. 453
Introdução....................................................................................................... 453
Os cinco modelos precedentes.......................................................................... 455
Constituições da Congregação dos Padres da Missão........................................ 455
Constituições da Congregação do Santíssimo Redentor..................................... 456
Constituições da Congregação dos Oblatos da Virgem Maria........................... 457
Constituições da Congregação das Escolas da Caridade.................................... 458
Constituições dos Padres da Sociedade de Maria............................................. 459
2. Estudo comparativo de dois textos importantes.......................................... 461
Preâmbulo........................................................................................................ 461
Texto............................................................................................................ 462
Comentário.................................................................................................. 464
Resumo histórico.............................................................................................. 464
As cinco etapas.............................................................................................. 464
Comentário.................................................................................................. 470
3. Fim da Sociedade......................................................................................... 472
Texto............................................................................................................ 472
Comentário.................................................................................................. 476
Fim da Sociedade Salesiana..................................................................... 476
A Sociedade Salesiana.............................................................................. 476
O fim específico da Sociedade Salesiana..................................................... 479
A finalidade, genérica e específica............................................................. 480
Comentário............................................................................................. 483
As obras de caridade................................................................................ 490
Possível razão.......................................................................................... 492
Apêndice
DESENVOLVIMENTO DAS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES POR
CAPÍTULOS NAS 8 ETAPAS......................................................................... 493
“POBRE, MAIS POBRE, O MAIS POBRE”, NO CAPÍTULO SOBRE
O FIM DA SOCIEDADE NAS PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES............. 494
Uso do termo e significado de “pobre”............................................................. 494
Os “mais pobres”: uma prioridade dentro de uma prioridade?.......................... 496

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capítulo XVI
ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS DAS PRIMEIRAS
CONSTITUIÇÕES SALESIANAS. SEGUNDA PARTE

1. Forma da Sociedade Salesiana...................................................................... 498


Artigo primeiro: consagração religiosa para o exercício da caridade................... 504
Análise......................................................................................................... 504
Virtudes da consagração religiosa e proeminência da obediência....................... 507
Valor espiritual da comunidade..................................................................... 508
Artigo segundo: direitos civis............................................................................ 508
Conceito de “direitos civis”............................................................................. 508
Os votos: a segunda contribuição básica do Papa ............................................ 511
Solicitação contínua de Dom Bosco da capacidade de dispensar os votos.......... 513
2. O voto de pobreza....................................................................................... 517
3. O voto de obediência................................................................................... 520
O voto de obediência no pensamento de Dom Bosco....................................... 522
O texto de 1860 e suas fontes......................................................................... 523
Os manuscritos........................................................................................ 523
Os artigos sobre a obediência.................................................................... 524
Comentário adicional................................................................................... 530
Conclusão.................................................................................................... 532
O exercício da autoridade do superior salesiano................................................ 532
Critérios epistemológicos para uma interpretação dos textos.............................. 533
Critério pessoal........................................................................................ 533
Critério institucional .............................................................................. 535
Fundamento teológico da autoridade do superior salesiano............................... 536
Dimensão teocêntrica e orientação cristológica .......................................... 536
Dimensão eclesial.................................................................................... 538
Missão e comunidade, conteúdo da autoridade do superior.............................. 538
O superior, o primeiro a obedecer a Deus e à regra..................................... 540
Estilo salesiano do exercício da autoridade................................................. 541
4. O capítulo sobre as práticas de piedade....................................................... 542
As práticas de piedade: a primazia da vida ativa................................................ 545
O exercício da caridade pastoral e a vida de oração dos salesianos..................... 545
Artigos básicos.................................................................................................. 546
Práticas individuais de piedade...................................................................... 548

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Índice geral

A faculdade de o superior dispensar ............................................................... 549


Comentário final.......................................................................................... 550
5. Conclusão geral........................................................................................... 550
Capítulo XVII
A LEGISLAÇÃO LIBERAL SOBRE A ESCOLA E A ESCOLA DO ORATÓRIO
1. A legislação educacional nos tempos da Revolução Liberal e da unificação
da Itália................................................................................................................. 552
Situação da escola com a reforma de Carlos Félix (1792-1849) ........................ 552
O progresso na educação pública sob o rei Carlos Alberto (1831-1848)........... 553
A reforma Boncompagni (1848)....................................................................... 554
Pontos mais significativos da lei..................................................................... 554
Professores-Padres.......................................................................................... 555
Reação à lei ................................................................................................. 556
A controvérsia sobre os direitos da Igreja na educação...................................... 557
Posicionamento de Dom Bosco....................................................................... 558
A instrução Cibrario (1853)............................................................................. 558
A lei Lanza (1857)............................................................................................ 559
A lei Casati (1859)........................................................................................... 560
Disposições da lei.......................................................................................... 560
Valores e defeitos........................................................................................... 561
A circular Correnti (1870)................................................................................ 563
Dom Bosco e as leis liberais.............................................................................. 563
2. O desenvolvimento e a organização da escola do Oratório com as leis
Boncompagni (1848) e Casati (1859).............................................................. 565
A escola do Oratório com a lei Boncompagni (1849-1859).............................. 565
A escola do Oratório com a lei Casati (a partir de 1860)................................... 567
Capítulo XVIII
EXPANSÃO DA OBRA SALESIANA EM TURIM,
NO PIEMONTE E NA LIGÚRIA (1863-1875)
1. Dom Bosco na encruzilhada dos anos sessenta............................................ 570
A situação fora de Turim.................................................................................. 572
Decisão de Dom Bosco.................................................................................... 572
2. Seminário menor e internato....................................................................... 572
Tipos de escolas................................................................................................ 574

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Dom Bosco: história e carisma 2

Seminário menor de Giaveno (1860-1862)...................................................... 575


Seminário menor de Mirabello (1863-1869).................................................... 577
Lanzo Torinese (1864)...................................................................................... 580
Trofarello (1865-1870)..................................................................................... 582
Cherasco, província de Cúneo (1869-1871)..................................................... 583
Alassio, província de Savona, Ligúria (1870).................................................... 583
Borgo San Martino (1870)............................................................................... 584
Varazze, província de Savona, Ligúria (1871).................................................... 584
Marassi (1871) e, em seguida, Gênova-Sampierdarena (1872).......................... 585
3. Importância da escola salesiana................................................................... 585
Nova orientação do trabalho salesiano nas escolas............................................. 586
A escola salesiana e a opção de Dom Bosco pelos jovens pobres........................ 587
Escolas, em geral, para jovens de classe média.................................................. 587
Compromisso permanente com os pobres......................................................... 588
O internato como experiência formativo-educativa.......................................... 589
O “artigo sobre o seminário menor” e a escola salesiana.................................... 590
Importância atual............................................................................................. 591
Conclusão........................................................................................................ 591
4. Evolução da obra salesiana de Turim e a atividade edilícia de Dom Bosco
(1860-1870).................................................................................................... 592
Cronologia das obras de ampliação................................................................... 593
No Oratório de Valdocco............................................................................... 593
Em outros locais de Turim............................................................................. 594
Aquisição de terrenos e a atividade edilícia em Valdocco (1869-1872).............. 594
Oratório de São José no Borgo San Salvario...................................................... 595
A igreja de São Segundo................................................................................... 597
Ampliação no Oratório de São Luís.................................................................. 598
A escola de Valsálice......................................................................................... 598
Capítulo XIX
DOM BOSCO E MARIA IMACULADA, AUXILIADORA DOS CRISTÃOS
1. A devoção de Dom Bosco a Maria sob o título de “Imaculada Conceição”..........602
Precedentes....................................................................................................... 602
Definição do Dogma da Imaculada Conceição................................................. 603
Expectativa e devoção no Oratório................................................................. 603

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Índice geral

Símbolo eclesial da mulher pisando a cabeça da serpente................................. 604


Maria Imaculada e a obra de Dom Bosco. Um símbolo educativo.................... 605
2. O mês de maio (1858).................................................................................. 606
História da prática da devoção do Mês de maio................................................. 607
A fórmula de vida cristã no exercício do Mês de maio, de Dom Bosco............... 607
Um curso de vida cristã................................................................................. 608
Maria no Mês de maio, de Dom Bosco.......................................................... 609
3. Dom Bosco e Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos........................... 611
Indícios anteriores a 1862................................................................................. 611
Os acontecimentos de Spoleto (1862).............................................................. 613
Aparições em Spoleto..................................................................................... 613
Spoleto e Don Bosco...................................................................................... 615
Auxiliadora dos Cristãos, segundo Spoleto....................................................... 616
Reação de Dom Bosco a Spoleto...................................................................... 618
4. Uma igreja dedicada a Maria (Imaculada) Auxiliadora dos Cristãos.
Sua importância............................................................................................... 620
Decisão de construir uma grande igreja............................................................ 620
O local da igreja: o “Prado dos Sonhos”............................................................ 622
Projeto e construção da igreja........................................................................... 627
Uma data “profética” para o estandarte de Gabriel?........................................ 629
Características do edifício.............................................................................. 630
A consagração................................................................................................... 631
Significado salesiano da igreja de Maria Auxiliadora......................................... 631
5. Dom Bosco, o apóstolo de Maria Imaculada, Auxiliadora dos Cristãos:
a expressão de sua devoção.............................................................................632
Como Fundador............................................................................................... 632
Como homem de oração.................................................................................. 632
Sub tuum praesidium (e Lembrai-vos)........................................................... 632
Maria Auxiliadora dos Cristãos, rogai por nós................................................ 633
Bênção de Maria Auxiliadora........................................................................ 633
Ó Maria, Virgem poderosa............................................................................ 634
Autor de folhetos marianos............................................................................... 635
6. Conclusão.................................................................................................... 636

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apêndice
O SONHO DE 1844...................................................................................... 638
Texto............................................................................................................ 638
Comentário ................................................................................................. 643
BÊNÇÃO DE MARIA AUXILIADORA DOS CRISTÃOS.......................... 643
Capítulo XX
A MEDIAÇÃO OFICIOSA DE DOM BOSCO ENTRE A SANTA SÉ
E O GOVERNO ITALIANO PARA A NOMEAÇÃO DE BISPOS (1865-1874)
1. Questões introdutórias................................................................................ 645
Motivo e natureza da participação de Dom Bosco nas negociações................... 645
Contexto político............................................................................................. 647
A questão das sedes vacantes............................................................................. 649
2. A “missão Vegezzi”....................................................................................... 650
A participação de Dom Bosco ......................................................................... 651
Xavier Vegezzi, negociador do governo............................................................. 652
3. As negociações Tonello (dezembro de 1866-junho de 1867)....................... 654
A “missão Tonello”........................................................................................ 655
A participação de Dom Bosco em Florença...................................................... 655
Relação de Dom Bosco com Tonello em Roma................................................ 658
Nomeações episcopais e sugestões de Dom Bosco ............................................ 661

4. Missão encomendada a Dom Bosco pelo primeiro-ministro Menabrea...... 664


Atividade revolucionária e agitação social......................................................... 664
Dom Bosco convidado a Florença pelo primeiro-ministro Menabrea................ 664
5. Dom Bosco e as nomeações de bispos em 1871.......................................... 666
Acontecimentos políticos.................................................................................. 666
Mediação de Dom Bosco.................................................................................. 668
Encontro com o primeiro-ministro Lanza em Florença?................................... 668
Dom Bosco na vila da condessa Corsi............................................................. 670
Carta de Pio IX a Vítor Emanuel II............................................................... 671
Dom Bosco em Florença................................................................................ 672
Dom Bosco em Roma.................................................................................... 673
Continua a participação de Dom Bosco na nomeação de bispos........................ 675
6. Mediação de Dom Bosco para obter o Exequatur (1872-1874)................... 676

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Índice geral

A entronização conflitante do arcebispo Gastaldi e a enfermidade de


Dom Bosco (dezembro de 1871-fevereiro de 1872) ........................................ 676
Exequatur e bens eclesiásticos: a participação de Dom Bosco em 1872............. 677
Atitude do governo e da Santa Sé................................................................... 677
Esforços renovados de Dom Bosco em busca de uma solução............................. 680
Participação de Dom Bosco na questão dos Exequatur nos inícios de 1873............681
Dom Bosco e os quatro modus vivendi.............................................................. 681
A batalha de Dom Bosco pelo Exequatur durante a segunda metade de 1873..........684
Nova e mais restritiva posição do cardeal Antonelli......................................... 685
Dom Bosco e o ministro Vigliani.................................................................... 685
Negociações de Dom Bosco em Roma, em 1874, com o ministro Vigliani ...........688
Uma fórmula para o acordo global................................................................. 688
Interrupção das negociações........................................................................... 691
Os expedientes práticos converteram-se em norma........................................... 692
7. Comentário final......................................................................................... 694
Capítulo XXI
A FUNDAÇÃO DO INSTITUTO DAS FILHAS DE
MARIA AUXILIADORA (1862-1876)
1. Projeto de Dom Bosco de fundar uma Congregação feminina e sua evolução.....698
Uma sociedade religiosa com as “mães” que tinha no Oratório?........................ 698
Dom Bosco e a senhorita Benedita Sávio, de Castelnuovo................................ 698
Maria Luísa Angélica Clarac, Filha da Caridade de São Vicente Paulo,
fundadora das Irmãs da Caridade de Santa Maria............................................. 699
Dom Bosco e irmã Clarac, colaboradores na fundação de uma
congregação feminina?................................................................................... 699
2. Dom Bosco, padre Pestarino e as Filhas de Maria Imaculada, de Mornese
(1860-1870).................................................................................................... 701
As Filhas de Maria Imaculada, de Mornese....................................................... 701
Maria Domingas Mazzarello e as Filhas de Maria Imaculada............................ 702
Encontro de Dom Bosco com o padre Pestarino............................................... 704
Dom Bosco e Mornese..................................................................................... 705
Dom Bosco consulta seu Conselho................................................................... 707
3. Dom Bosco procede à fundação e programa as Constituições..................... 707
Colaboração de madre Henriqueta Dominici................................................... 707

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Dom Bosco: história e carisma 2

Pontos-chave e comentários adicionais............................................................. 708


Dom Bosco, enfermo em Varazze, continua a ocupar-se com a fundação
(1871-1872)..................................................................................................... 711
As eleições de 29 de janeiro de 1872................................................................. 712
A cerimônia da profissão de 5 de agosto de 1872, data oficial da fundação.............713
4. Nota sobre o desenvolvimento inicial histórico e jurídico do Instituto
(1872-1876).................................................................................................... 715
Apêndice
PADRE JOSÉ FRASSINETTI (1804-1868).................................................. 719
PADRE DOMINGOS PESTARINO (1817-1874)........................................ 720
DADOS FUNDAMENTAIS DA VIDA DE MARIA MAZZARELLO.
HISTÓRIA INICIAL DO INSTITUTO DAS FILHAS DE
MARIA AUXILIADORA DOS CRISTÃOS.................................................. 724
EVOLUÇÃO ESPIRITUAL DE MARIA DOMINGAS MAZZARELLO........730
1. Primeiro período (1837-1860).................................................................. 730
2. Segundo período (1860-1872).................................................................. 732
AUTONOMIA JURÍDICA DO INSTITUTO DAS FILHAS DE MARIA
AUXILIADORA (17 DE JULHO DE 1906) ..................................................734
O decreto “Normae secundum quas”.............................................................. 734
A ação de Roma e a atuação do padre Marenco, procurador-geral salesiano....... 735
Notificação às irmãs e a reação inicial............................................................ 735
Tentativas do padre Rua com seu Conselho..................................................... 736
O Capítulo Geral V das Filhas de Maria Auxiliadora..................................... 737
Apresentação feita em Roma e o diálogo posterior............................................ 737
A intervenção da Congregação....................................................................... 739
Separação do Instituto da Sociedade Salesiana e divisão dos bens...................... 739
O Capítulo Geral VII. Mudança importante.................................................. 742
Capítulo XXII
O SALESIANO LEIGO, “COADJUTOR”, E A REFLEXÃO PROGRESSIVA
DE DOM BOSCO SOBRE ESTA VOCAÇÃO
1. A década 1875-1885.................................................................................... 743
2. A vocação salesiana leiga na reflexão progressiva de Dom Bosco................. 744
3. O salesiano leigo nas primeiras Constituições............................................. 746
Os artigos fundacionais sobre o Fim e a Forma da Sociedade............................ 746

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Índice geral

Os membros leigos........................................................................................... 747


Comentário...................................................................................................... 748
4. Primeiros documentos não constitucionais. O termo “coadjutor”............... 749
Regulamento para a Casa Anexa do Oratório de São Francisco de Sales............ 750
Lembranças confidenciais aos diretores............................................................ 751
5. Documentos dos anos setenta...................................................................... 754
Conferência de Dom Bosco (29 de outubro de 1872)...................................... 754
Contexto e conteúdo...................................................................................... 754
Texto............................................................................................................ 756
Comentário.................................................................................................. 757
Conferência de Dom Bosco (19 de março de 1876)......................................... 759
Contexto...................................................................................................... 759
Texto............................................................................................................ 759
Comentário.................................................................................................. 762
“Boa-noite” aos aprendizes (31 de março de 1876)........................................... 763
Contexto...................................................................................................... 763
Texto............................................................................................................ 763
Comentário.................................................................................................. 766
Circular de Dom Bosco aos párocos diocesanos (janeiro de 1880).................... 766
Texto............................................................................................................ 767
Comentário.................................................................................................. 767
6. Declarações de Dom Bosco nos anos oitenta. Evolução devida aos
Capítulos Gerais Iii e Iv................................................................................. 768
Capítulo Geral III (1883)................................................................................. 768
6 de setembro, sessão da manhã..................................................................... 768
6 de setembro, sessão da tarde........................................................................ 770
Comentário.................................................................................................. 770
Conferência de Dom Bosco aos 22 noviços coadjutores (19 de outubro de 1883).....770
Contexto...................................................................................................... 770
Texto............................................................................................................ 771
Comentário.................................................................................................. 772
Capítulo Geral IV (1886)................................................................................. 773
Texto............................................................................................................ 773
Comentário.................................................................................................. 777
7. Conclusão.................................................................................................... 777

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apêndice
O SALESIANO COADJUTOR DEPOIS DE DOM BOSCO..................... 779
Os reitorados do padre Rua e do padre Albera (1890-1921)............................. 779
Padre Rua......................................................................................................... 780
Padre Albera..................................................................................................... 782
REITORADO DO PADRE RINALDI (1922-1931)..................................... 783
Capítulo Geral XII (23 de abril-9 de maio de 1922)...................................... 783
Primeiro Regulamento Oficial para os Salesianos Coadjutores (1924).............. 784
Capítulo Geral XIII (8-20 de julho de 1929)................................................. 784
Documentos do padre Vespignani, Conselheiro para as Escolas Profissionais................785
Documentos do padre Rinaldi........................................................................ 788
Reitorado do padre Ricaldone (1932-1951)..................................................... 790
Bibliografia.......................................................................................................792
Índice geral.......................................................................................................828

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O autor

Arthur J. Lenti publicou numerosos artigos sobre Dom Bosco e outros temas
salesianos no Journal of Salesian Studies e em Ricerche Storiche Salesiane.
Formado em Sagrada Escritura e Teologia, depois de lecionar por mais de trinta anos
na cidade de Aptos, na Califórnia, e no Josephinum, em Ohio (Estados Unidos), chegou
à Don Bosco Hall, em Berkeley, Califórnia, em 1975, onde desde 1984 desenvolve um
intenso trabalho de pesquisa e ensino no Institute of Salesian Spirituality.
Seu livro mais recente é Don Bosco and his pope and his bishop: the trials of a founder
(Dom Bosco, seus papas e seus bispos: as dificuldades de um fundador). LAS: Roma, 2006.

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Esta obra foi composta e impressa
na Gráfica Salesiana.

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