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Um breve passeio pela História da Educação

Para começar a nossa conversa, não há nada melhor do que mergulhar no mar da história.
Vamos voltar ao passado e, pela precisão, ao antigo Egito. Como toda sociedade que produz
riquezas a partir da exploração da maioria dos seus habitantes, percebemos logo que o saber
não é democratizado e que cada setor só tem acesso a um determinado tipo de educação.

Em grandes linhas, podemos dizer que no antigo Egito existem quatro grupos de pessoas que
recebem um ensino diferenciado: o faraó e os senhores da corte, os escribas e todos aqueles
que se dedicam às funções administrativas, os artesãos e, por último, os escravos. Cerca de
2.600 anos antes de Cristo, os filhos do faraó, seus futuros conselheiros e os nobres do Egito
são educados para dominar a arte da palavra. Ao falar da instrução a eles destinada Ptahotep
escreve:
“Se a sua boca procede com palavras indignas, tu deves domá-lo em sua boca, inteiramente... A palavra
é mais difícil do que qualquer trabalho, e seu conhecedor é aquele que sabe usá-la a propósito. São
artistas aqueles que falam no conselho... Reparem todos que são eles que aplacam a multidão e que sem
eles não se consegue nenhuma riqueza”. (Citado in: MANACORDA, 1996: 14)

Em português claro, para comandar e pôr ordem na sociedade é imprescindível dominar a arte
da palavra. Não é pra menos. É indispensável saber falar em público tanto para intervir nos
conselhos restritos do poder, como para passar uma lábia na multidão, acalmar seus ânimos,
justificar a repressão dos descontentes e reafirmar os valores dominantes como os únicos
capazes de organizar a sociedade.

Mas a sociedade muda e força o ensino destinado aos faraós a adaptar-se às mudanças. Lá
pelo ano 2.000 antes de Cristo os nobres do Egito conquistam a possibilidade de governar suas
regiões num regime de maior autonomia em relação ao poder do faraó. O país é dividido em
feudos e começa um período de desordem e agitação social. É neste contexto que o ensino
destinado às elites incorpora uma formação mais aprimorada do homem político e a educação
física como parte da preparação necessária para eventuais enfrentamentos nos campos de
batalha.

É interessante reparar que o círculo dos nobres e da família do faraó não se preocupa em
ensinar a seus filhos a escrever. Acontece que, nesta época, a escrita é apenas um
instrumento que permite registrar os atos oficiais e administrativos. Por isso, a tarefa de
escrever é deixada aos escribas que, em geral, aprendem esta arte com os pais. Além da
escrita, as relações que se desenvolvem no interior dos círculos do poder impõem que o ensino
destinado a estas pessoas incorpore o aprendizado de um profundo sentimento de obediência
e submissão. Neste sentido, Amenemope escreve:
“Quando erras perante o teu superior e teus discursos ficam desconexos, tuas adulações serão
retribuídas com afrontas e tuas lisonjas com pancadas. Diga a verdade perante o nobre, para que não se
torne dono de tua cabeça. Não escute as conversas de um magnata na sua casa e não as espalhes fora
para outros. Não ofendas a quem é maior do que tu. Deixa que ele te bata enquanto a tua mão fica sobre
o peito; deixa que ele te ofenda enquanto a tua boca cala: amanhã se estiveres na frente dele, te dará
pão à vontade. O cão late para quem lhe dá pão, pois ele é o seu dono”. (Citado in id: 36)

No que diz respeito à instrução dos artesãos e das massas populares, Diadoro da Sicília nos
traz uma informação razoavelmente confiável:
“O resto da multidão dos egípcios aprende dos pais e dos parentes, desde a idade infantil, os ofícios que
exercerá na sua vida. Ensinam a ler e a escrever um pouquinho, não a todos, mas àqueles que se
dedicam a um ofício”. (Citado in id.: 39)

É fundamental que você saiba que este “resto da multidão”, ao qual se ensinam as noções
necessárias para o exercício da profissão e para os contatos sociais que ela supõe, não inclui a
massa dos escravos. Para além da concepção de mundo assimilada no interior do clã ou do seu
grupo social, o escravo terá o capataz como seu professor e o chicote como único recurso
pedagógico que lhe ensinará com o sangue a trilhar o duro caminho da submissão e da dor.

Você já deve ter percebido que no antigo Egito, como em toda sociedade dividida em classes,
os grupos dominantes usam o processo educativo como um meio para moldar as várias
camadas da população. Assim como o oleiro dá forma ao barro para que ele se transforme
num determinado objeto, as elites se preocupam em formar cada setor da sociedade de acordo
com a necessidade de garantir a exploração e a ordem que proporciona a concretização de
seus interesses. Em outras palavras, na civilização egípcia já podemos visualizar uma
característica que vai se manter constante ao longo da história: há sempre uma relação direta
entre o tipo de educação e a posição que o indivíduo ocupa na pirâmide social.

Em Roma antiga, as coisas não são muito diferentes. Lá, o primeiro educador é o “pater
familiae”. Desde a fundação da cidade, a autonomia da educação paterna é uma lei do Estado
pela qual o pai é dono e artífice de seus filhos. A antiga monarquia romana, de fato, é uma
república constituída pelos proprietários das terras e dos núcleos rurais (familiae), dos quais
fazem parte as mulheres, os filhos, os escravos, os animais e qualquer outro bem. O pai-
proprietário (pater) exerce sobre eles um poder soberano que, entre outras coisas, lhe permite
matar os filhos anormais, prender, flagelar, condenar aos trabalhos agrícolas forçados, vender
ou matar os filhos rebeldes, mesmo quando, já adultos, estes ocupam cargos públicos.

A educação no seio dessa família visa, basicamente, o ensino das letras, do direito, o domínio
da retórica e das condições para desempenhar as atividades políticas, típicas das classes
dominantes. Ainda que o desenvolvimento histórico imponha mudanças nos costumes e nas
instituições que se dedicam à educação dos jovens, a organização do Estado romano impede o
livre acesso do povo simples à arte da palavra. As poucas escolas existentes tornam-se cada
vez mais um meio para a capacitação de um grupo restrito de indivíduos, como burocratas, no
poder do Estado.

Neste contexto, feita exceção pela agricultura que é um aspecto e uma fonte de domínio do
pai-proprietário, todas as atividades produtivas são consideradas indignas de um homem livre.
Exercidas pelos escravos ou pelos estrangeiros que migram para Roma, seu ensino é
reservado aos membros dessas classes sociais. À diferença da situação que encontramos no
Egito, em Roma nos deparamos com a necessidade de fazer com que os conhecimentos e as
habilidades de algumas profissões sejam ensinados em escolas. Trata-se de um costume que
os patrões “mais empreendedores” praticam para melhor explorar o trabalho servil. Além de
formarem escravos mais qualificados para serem empregados em suas propriedades, as
“escolas profissionalizantes” da época permitiam utilizar o ensino como investimento “de
capital” na medida em que possibilitava vender ou alugar os mesmos escravos a um preço
bem mais alto.

Se é verdade que, ao longo dos séculos, as descobertas da ciência e da técnica impõem


mudanças aos processos de aprendizagem, é também verdade que cada passo do
desenvolvimento histórico impõe a necessidade de resolver o velho problema de como e
quanto instruir quem é destinado não aos círculos do poder e sim à produção. Um documento
do início de 1400 (época em que já temos uma burguesia urbana no interior da sociedade
feudal) nos ajuda a perceber melhor quanto acabamos de afirmar:
“Messer Giannozo Manetti nasceu no ano de 1393... O pai... , Bernardo, mandou-o, ainda de poucos
anos, segundo o costume da cidade, a aprender a ler e a escrever; tendo aprendido em pouco tempo
quanto é necessário para ser um bom mercador, passou-o para o ábaco e em poucos meses tornou-se
tão douto naquela ciência quanto um profissional da mesma. Aos dez anos foi posto no banco e em
poucos meses lhe foi entregue a conta do caixa. Depois que, conforme o costume, ficou algum tempo no
caixa, foram-lhe entregues os livros e ele dedicou-se a este trabalho por vários anos. Feito isso, começou
a pensar consigo mesmo se seria possível ele conquistar fama ou glória para si e para a sua família com
aquilo que estava fazendo, mas não viu essa possibilidade e chegou à conclusão de que o único meio
para tanto era o estudo das letras: e por isso determinou absolutamente de, posposta qualquer outra
preocupação, dedicar-se a esses estudos.” (Citado in id.: 171)
A preparação escolar de Messer Giannozzo é feita em vista do exercício de sua profissão. Ele
aprende gramática, letras e cálculo de acordo com um conjunto de noções básicas que um
bom comerciante deve dominar, mas ainda trata-se de uma formação técnica
substancialmente diferenciada daquela que se dirige a quantos se preparam para o exercício
do poder.

As coisas não mudam mesmo sob o impulso dos ideais da Revolução Francesa. Os defensores
de uma educação pública e universal fazem questão de reafirmar que o esforço de estender a
instrução escolar a todos os cidadãos não significa que ela tenha que ser igual para todos. Em
1809, por exemplo, Murat escreve:
“É necessário que exista uma instrução para todos, uma para muitos e uma para poucos. A primeira não
deve fazer do povo tantos sábios, mas deve instruí-lo tanto quanto basta para que possa tirar proveito
dos sábios”. (Citado in id.: 256)

Se considerarmos o fato de que os sábios são os intelectuais a serviço da ordem, podemos


tranqüilamente concluir que se trata de um aprendizado cujo objetivo central é garantir as
condições mínimas para que as classes trabalhadoras possam assimilar de maneira confiável a
visão de mundo, as convicções e os valores dos grupos dominantes. Apesar de estarem
empunhando a bandeira da “liberdade, igualdade e fraternidade” e cantarem a marselhesa, os
novos tubarões vão levantando novas e mais aprimoradas cercas.

Uma preocupação deste tipo já havia sido explicitada em 1803 pelo industrial e economista
francês Jean Baptiste Say. Suas observações indicavam que a ignorância e os efeitos da
divisão do trabalho produzem apenas operários e operárias que se orientam somente por seus
instintos “egoístas” e imediatos, ou seja, são pessoas incapazes de “sentimentos e convicções
cívicas” indispensáveis para manter suas ações nos limites da ordem. Para ele, um trabalhador
embrutecido pela repetição e simplicidade de suas tarefas, dificilmente é capaz de conceber
“relações gerais, sentimentos nobres” como, por exemplo, a compreensão de que “o respeito
pela propriedade privada favorece a prosperidade pública”. Say encerra seu raciocínio com
uma indagação que dispensa comentários:
“Como se poderia dar a eles o grau de instrução que julgamos necessária para o bem estar da ordem
social?” 1[1]

A esta altura, espero que você já não tenha dúvidas quanto ao fato de que a educação numa
sociedade dividida em classes não se manifesta como um fim em si mesmo, e sim como um
instrumento de manutenção ou transformação de uma determinada ordem social. Orientada
pelas elites, a escola não tem apenas a tarefa de preparar os indivíduos para um determinado
tipo de trabalho, mas também a de fazer com que eles incorporem valores, idéias, critérios de
análise da realidade e formas de comportamento capazes de garantir que as coisas até
mudem... para que o essencial (a exploração) possa continuar. Por isso, para a própria classe
dominante, é importante que todos freqüentem as salas de aula e que a educação escolar de
um certo nível seja até mesmo obrigatória e paga pelo Estado. Como reconhecia a imperatriz
Maria Teresa da Áustria já em 1760:
“Em cada época, a instrução é, e sempre foi, um fato político”. (Citado in MANACORDA, 1996: 247)

Vejo que está coçando a cabeça e, talvez, eu sei o que está pensando. Você deve estar
achando que estas reflexões dizem respeito a épocas distantes, cheias de indivíduos atrasados
e autoritários, e que as democracias do terceiro milênio já deixaram para trás a visão que
sustenta a minha análise. Para ir de encontro às suas inquietações vou finalizar este breve
mergulho na história da educação com as duas reflexões que seguem.

Você tem razão de dizer que hoje a escola está aberta a todos, que ninguém obriga os pobres
a freqüentar este ou aquele instituto de ensino e que já têm filhos e filhas de famílias operárias

1[1] As considerações sobre o pensamento de Say foram extraídas da tese de doutoramento de Reginaldo Carmello
Correa de Moraes, Planejamento: democracia ou ditadura? - Intelectuais e reformas sócio-econômicas no
pós guerra, USP, São Paulo 1987, pg. 247-248.
cursando as melhores universidades do país. Mas, será que isso pode se aplicar à maioria? Não
está confundindo a exceção com a regra? Vou explicar isso com um exemplo.

Coloque lado a lado uma criança nascida no seio de uma família de trabalhadores e outra que
teve um berço de ouro, típico da reduzidíssima “classe alta”. A primeira, provavelmente, só vai
ter acesso a papel, lápis, borracha, canetas, etc., com 6 ou 7 anos quando, se tiver sorte, vai
entrar na pré-escola ou diretamente na primeira série. Não bastasse isso, ela vai pegar seus
materiais numa mistura de temor e curiosidade alimentada pelos protestos dos pais que,
encurralados por uma renda familiar bem apertada, acham um absurdo a lista de materiais
pedida pelos professores e não hesitam em soltar alguns gritos quando lápis e caderno
acabam. Suas aulas acontecerão numa escola pública, com classes superlotadas, docentes mal
remunerados e, às vezes, despreparados, em horários que objetivamente são um obstáculo ao
aprendizado e em estruturas físicas onde é materialmente impossível manter a concentração e
a dedicação aos estudos. Em caso de notas vermelhas, tapas, puxões de orelha e chineladas
serão, talvez, o único reforço escolar que lhe será oferecido no ambiente doméstico. Na hora
do “descanso”, não poucas vezes esta criança terá que engraxar sapatos, vender sorvete nas
ruas ou se dedicar a outras formas que ajudam a aumentar o minguado orçamento familiar. As
estatísticas dizem que, em breve, as precariedades de suas condições de vida vão levar a
grande maioria destes alunos e alunas a abandonarem a escola ou, na melhor das hipóteses, a
completarem os estudos após jornadas de trabalho estafantes e a optar por cursos
profissionalizantes.

Vamos olhar agora para a criança da classe alta. As condições econômicas de que dispõe, e o
próprio ambiente doméstico, vão fazer com que o seu acesso à escola, a cadernos, canetas,
etc., aconteça muito mais cedo. Sua formação se dará nos melhores institutos com direito a
aulas particulares, cursos extracurriculares, viagens ao exterior, dedicação exclusiva ao
estudo, jornais, revistas, internet e o que tem de mais moderno no campo da cultura e da
informação. Além disso, esta criança já vai mandar nos empregados que estão a serviço da
família, é estimulada a falar em público, a assumir um papel de protagonista nos círculos que
freqüenta e, pouco a pouco, a cuidar da herança e dos negócios da família. Afinal de conta,
berço é berço e não se discute.

O que eu quero dizer é que, apesar da lei e das autoridades não destinarem aos pobres esta
ou aquela escola e de incentivarem o acesso ao ensino, são as diferentes condições de vida
das classes trabalhadoras e das elites que se encarregam de viabilizar e reproduzir a mesma
discriminação que a “igualdade de direitos”, prevista pela lei, diz querer corrigir. Como? Você
acha que isso é só “coisa do Brasil” ou de país subdesenvolvido?

Em qualquer sociedade baseada na exploração (mesmo que nos moldes do Estado do bem-
estar social), o fato de tratar com igualdade situações econômicas diferentes não elimina e sim
aumenta as desigualdades. Os dados que se referem aos crescentes níveis de pobreza e de
exclusão nos países do primeiro mundo estão em todos os jornais. Parece incrível, mas é a
pura realidade.

A segunda reflexão diz respeito à preocupação das classes dominantes com os valores e as
idéias que são ensinadas nas escolas. Não, não estou me referindo somente às aberrações que
lotam os livros e são uma verdadeira homenagem à submissão na medida em que apresentam
um modelo de cidadania que apenas fortalece a ordem atual. Estou falando, por exemplo, do
que reza a legislação do Texas (EUA) a respeito dos livros a serem usados nas escolas. Este
Estado que é parte de um país internacionalmente considerado como “a mais sólida
democracia do planeta”, prevê em suas leis que:
“O conteúdo do livro didático deve promover a cidadania e a compreensão das qualidades
essenciais e das vantagens do sistema de livre empresa, enfatizando o patriotismo e o respeito
pela autoridade constituída, promovendo o respeito pelos direitos individuais. Os livros didáticos
não devem incluir extratos ou obras que encorajem ou aprovem a desobediência civil, a agitação
social ou o desrespeito à lei, nem devem conter idéias que sirvam para o enfraquecimento da
autoridade ou que possam causar situações constrangedoras ou interferências na atmosfera de
aprendizado na sala de aula. Por fim, os livros didáticos não devem encorajar estilos de vida que
se afastem dos padrões geralmente aceitos na sociedade”.2 [2]

Até nas “melhores” sociedades a democracia dos tubarões, desculpe, do capital só funciona
bem quando tudo se mantém nos estreitos limites da sua ordem. Para bom entendedor... meia
palavra basta.

EMILIO GENNARI

2[2] Extraído de Apple M. W. e Oliver A “Indo para a direita - a educação e a formação de movimentos
conservadores” em: GENTILI P. (Org.) Pedagogia da Exclusão, pg. 279.

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