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A ÚLTIMA CONVERSA

AGOSTINHO
DA SILVA
Entrevista de Luís Machado
Prefácio de Eduardo Lourenço

notícias
editorial
ISBN 972-46-0841-7

© Luís Machado
Direitos reservados por
Editorial Notícias
Rua da Cruz da Carreira, 4 B 1150 Lisboa

Capa:
Fernando Felgueiras
com uma fotografia de Luís Machado

Edição n. 0 01 401 015


6. • edição: Setembro de 1998
Depósito legal n.0 I 00 000/97

Fotocomposição e fotolito:
Textype- Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento:
Rolo & Filhos- Artes Gráficas, Lda.
A ÚLTIMA CONVERSA
AGOSTINHO DA SILVA
Entrevista de LUÍS MACHADO

Prefácio
Eduardo Lourenço

6.• edição

rrell9!ícias
Obras publicadas nesta colecção:

PORTUGAL, A EUROPA E O FUTURO


Manuel José Homem de Mello
NÃO HÁ ALMOÇOS GRÁTIS
COLECTÂNEA DE ARTIGOS DE OPINIÃO
João César das Neves e Quantum Satis
CAPITÃO DE ABRIL- HISTÓRIAS DA GUERRA
DO ULTRAMAR E DO 25 DE ABRIL- DEPOIMENTOS- 3.• edição
Fernando Salgueiro Maia
NO REGRESSO VINHAM TODOS- RELATO
DA COMPANHIA N°2549
Vasco Lourenço
BANQUEIROS DE RAPINA
Ernst Ekaizer
A ÚLTIMA CONVERSA- AGOSTINHO DA SILVA- 6.' edição
Entrevista de Luís Machado
OPUS DEI- UMA INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA- 3.• edição
Vittorio Messori
HISTÓRIA DE UMA CRISE- O BRITO DO BISPO DE SETÚBAL
Alcídio Torres
RELIGIÕES EM GUERRA?- O DEBATE DO SÉCULO- 2.• edição
Roger Garandy
SUA SANTIDADE O DALAI-LAMA
Conversa com Gilles van Grasdorff
OS FILHOS DE HITLER - FILHOS DE DIRIGENTES DO TERCEIRO REICH
FALAM DOS SEUS PAIS E DE SI PRÓPRIOS
Gerald L. Posner
EUROPA- O ESTADO DA UNIÃO
Maurice Duverger
PASSAPORTE PARA A VIDA
Yukiko Sugihara
MANDELA - MEU PRISIONEIRO, MEU AMIGO
James Gregory
NÃO HÁ ALMOÇOS GRÁTIS -II
COLECTÂNEA DE ARTIGOS DE OPINIÃO
João César das Neves
A TRANSIÇÃO POLÍTICA EM ESPANHA
Raúl Morado
À memória de Augusto, meu pai,
cujos ideais de Liberdade e de Democ~acia
desde muito cedo me marcaram.
A sua generosidade,
que tantas vezes revejo
no humanismo de Agostinho da Silva,
merecia, decerto, a partilha
desta bela e inesquecível conversa.

'
~

----
NÓTULA

Ao publicar este livro, pretendi prestar uma simples, mas


justa, homenagem à figura notável de um grande pen-
sador português com quem tive o privilégio de privar.
Nunca, até finais dos an'os 80, tinha tido opor-
tunidade de estabelecer qualquer contacto com
Agostinho da Silva, mas já nutria por ele respeito e
profunda admiração. Em Outubro de 1990 telefo-
nei-lhe e falei-lhe dos meus projectos imediatos.
Agostinho da Silva recebeu-me cordialmente, mas,
invocando razões de saúde, declinou o meu convite
para participar no ciclo «Conversas à Quinta-Feira»,
que então pens.ava realizar.
Meses depois as conversas começavam e o
Professor, embora impedido de nelas participar,
seguia, atentamente, através da imprensa, os ecos que
as sessões realizadas no Martinho da Arcada reco -
lhiam, chegando ao pormenor de memorizar e co~
tar algumas afirmações dos participantes naquelas "'\
tertúlias. O sucesso obtido impôs uma posterior edi-
ção em livro e Agostinho da Silva incentivou-me,
então, a organizar uma nova série.
7
Assim, logo no ano seguinte, decidi avançar, sempre
na esperança de o ter como convidado. Porém, a sua
saúde, mais uma vez, não o permitiu, e o Mestre
esteve ausente. Contudo, com a generosidade que o
caracterizava, disponibilizou-se para escrever o prefá-
cio ao livro da II série das «Conversas à Quinta-Feira».
A partir daí, em finais de 1992, apesar de o nosso
conhecimento ser bastante recente, senti que a estima
que tinha por ele era retribuída e tornámo-nos, assim,
amigos. Infelizmente, esta entrevista foi mesmo a
última que o Professor concedeu.
Aconteceu numa chuvosa manhã de um sábado
de Outono, mais precisamente no dia 9 de Outubro
de 1993, no 3. 0 andar direito do n. 0 7 da Travessa do
Abarracamento de Peniche. Foram mais de cinco
horas de conversa, gravada em vídeo, apenas inter-
rompida, por breves minutos, por um telefonema de
sua irmã, Maria Cecília.
Dado o valor do depoimento recolhido, entendi
que seria de um censurável egoísmo «arquivá-lo»,
impedindo, assim, que chegasse ao conhecimento do
grande público. Acresce dizer que a realização desta
conversa vem também concretizar um sonho, há
muito tempo acalentado: incluir na minha galeria de
entrevistados o nome de Agostinho da Silva.

Lisboa, 3 Abril de 1995.

(T~ J..v4~~
8
PREFÁCIO

(
UM HOMEM EXTRA-ORDINÁRIO

Parece fácil falar de Agostinho da Silva. Em fim


de vida e graças à televisão, a sua figura, o seu pen-
sar em directo e em voz alta para milhões de pes-
soas, como se tivesse conseguido unir milagrosa-
mente a unidade do seu ser à sua aparência de Sócrates
familiar, missionário sem mais missão que a de incul-
car que todos somos naturalmente sábios e filóso-
fos, Agostinho da Silva era a encarnação perfeita de
uma existência transparante. No sentido original do
termo, uma existência não-hipócrita. O mínimo de
comédia de que precisamos para representar no palco
da vida era-lhe estranho. Com razão, esta ausência
de pose, que em outros podia passar pela mais refi-
nada das. poses, fascinava aqueles que assistiam, nem
sempre convencidos, a este exemplo, mais do que
raro, de um homem em que era impossível separar
o verbo da acção por ele enunciada, como se fosse
o acto mais óbvio e simples do mundo.
Podíamos atenuar este espanto que já não o era,
catalogando Agostinho da Silva na categoria já sem
surpresas, mas sempre surpreendente, do místico.

11
É uma roupagem que lhe assenta bem e nem se vê
outra que melhor defina o estilo de existência que
nele se encarnou ou ele encarnou. Acontece ape-
nas que a imagem do «místico» arrasta consigo um
certo número de referências, evoca uma atmosfera
eclesial e sobretudo, entre nós, uma tradição, por
assim dizer, homologada oficialmente por uma auto-
ridade institucional ou institucionalizada. E como
era visível, nada estava mais distante de Agostinho
da Silva do que esta inscrição do autor de
Aproximações ao círculo da mística cristã tal como
vulgamente se entende e é exemplificada desde
S. João da Cruz a Santa Teresa, ou mesmo pelo tão
evocado S. Francisco de Assis. Claro que todos os
«místicos», ou aquilo que assim chamam aqueles
que o não são, mesmo os mais teologicamente insus-
peitos, relevam do excepcional e da excepção. A esse
título, Agostinho da Silva não destoaria na ilus-
tre e canónica companhia. Digamos que pode
figurar na mais rara espécie de homens que são os
«místicos» se lhe acrescentarmos uma dose suple-
mentar de «extravagância» ou, se se prefere, de
excentricidade.
Não em meros termos de comportamento exte-
rior, de total desprezo pelas regras, costumes ou ritos
mundanos, que fazem parte do folclore da mais ine-
quívoca santidade, mas da íntima e irredutível ex-cen-
tricidade. Agostinho da Silva não tendeu, graças a
qualquer tipo de ascese, para uma experiência ine-
fável do que se convenciona designar por Absoluto,
transcendência mais ou menos heterogénia à essên-
12
cia humana. Agostinho da Silva, se foi «místico»,
foi-o de um misticimo «sulfuroso» pela natureza
naturalista da sua visão do mundo e da vida. Não se
instalou na excepção, pregou e viveu no combate à
ideia de excepção, em todos os domínios, numa espé-
cie de anarquismo profético e radioso, no fundo mais
próximo de Rousseau que de qualquer figura clás-
sica da família «mística».
O misticismo de Agostinho da Silva - se assim
se lhe pode chamar - é um misticimo por defeito,
por intencional desconsideração daquilo que, em
todas as ordens, desde a do pensamento, da ima-
ginação, da vontade, mas também da acção, se apre-
senta como exemplar. Foi, com uma naturalidade
quase provocante, um marginal, mas não da mar-
ginalidade maldita, sacrificial, infeliz, que tanto
agrada aos «mártires» da liberdade, da criação ou
da acção. Se não fosse de essência provocatória,
quase demoníaca, o seu utopismo, o seu optimismo
voluntarista, a sua aparente ou realíssima recusa
do trágico, seriam quase intoleráveis. É possível
imaginar que neste grau, a sua aposta, diametral-
mente antagónica da de Pascal, releva, em qualquer
desvão, de não sei que paradoxal ressentimento.
Há em Agostinho da Silva um tão estremado gosto
pela «estaca zero» do humano, uma tão intensa
denegação de tudo o que signifique ou pretenda,
a que título for, ser tido como «distinto», como
«valioso» no sentido de se arrogar assim como
s'igno de qualidade ou mérito, que só em termos
de ressentimento parecem explicáveis. E, todavia,

13
precisamente, a imagem que ele deu a quem o
conheceu ou teve ocasião de o ver quando, cândida
e desarmadamente, se ofereceu ao juízo público,
parece incompatível com esse reflexo, caracterís-
tico de alguém secretamente ferido, como precisa-
mente, mas também dando impressão oposta, o foi
Jean Jacques Rousseau.
Estamos a anos-luz daquela imagem-mito que
não só nos últimos anos, mas penso, sempre, se colou
ao homem e à figura de Agostinho da Silva, como
exemplo de existência clara, sem sombra de sombra,
vida activamente inserida na sua «pregação profé-
tica» sem hiato com a sua vida. Não foi um vaga-
bundo irónico como Sócrates, nem um provocador
cénico, mais em actos do que em palavras, como
Diógenes, mas de um e outro exemplificou, aparen-
temente sem suscitar nem fundado espanto, nem des-
confiança, junto daqueles que, incapazes de medir o
alcance da sua palavra intrinsecamente subversiva,
mais inclinados estavam - ou estão - a compará -lo
a uma figura como S. Francisco de Assis.
Quando um dia se ler a sério Agostinho da Silva
- que é um original escritor e um pensador per-
turbante - , terá inevitavelmente que se evocar o
revivalismo franciscanista que tantos ecos teve na
cultura portuguesa desde os finais do século XIX.
Agostinho da Silva insere-se nessa tradição confe-
rindo-lhe uma dimensão e uma tonalidade singulares.
Para os franciscanistas da geração de 70 e das
gerações seguintes, desde Guerra Junqueiro a Eça
de Queirós até Teixeira de Pascoaes e Cortesão, o

14
culto e mesmo a mitologia de S. Francisco foi uma
espécie de hipercristianismo de gente que cortara
com o catolicismo tradicional e, sobretudo, com um
clericalismo omnipresente e retrógado, ainda muito
sensível na sociedade portuguesa. Esse aspecto é o
que avulta no autor da Velhice do Padre Eterno, mas
não é o mais importante. A sua forma acabada e
aquela onde a «filosofia» do cristianismo, segundo
Francisco de Assis, se exprime de maneira convin-
cente, encontra-se nos Simples. S. Francisco é para
essas gerações o S. Paulo da nova igreja dos
«Simples», o santo que concilia o culto da Santa
Pobreza com o amor e a efusão da Natureza. A com-
ponente e a função social deste franciscanismo onde
se conciliava simbolicamente o revolucionarismo
utópico dos «Jacques» tão caros a Eça, com as aspi-
rações místicas de um cristianismo puro, não é a
mais significativa. Em todo o caso não o será, nem
para Jaime Cortesão nem para Agostinho da Silva,
que prolonga e transfigura a visão franciscanista do
poeta de Aguia e futuro historiador dos Desco-
brimentos. O essencial da visão franciscanista da
vida para ambos concentra-se nessa paixão pela
Natureza, mas uma natureza, por assim dizer, «sem
mancha de pecado original». Em suma, como corpo
de Deus com o qual o corpo e a pulsão natural da
humanidade, logo desvinculada dos artifícios da civi-
lização e da cultura (herança de Rousseau), se con-
fundem. Isto foi lido, e não sem razão, no que diz
respeito a Jaime Cortesão, como uma forma de paga-
nização subtil do cristianismo, coberta pela refe-

15
rência insuspeita a S. Francisco, menos do que, como
forma imposta pelos imperativos de um Evangelho
depurado das excrescências da autoridade e do
dogma. Daí os grandes hinos de Cortesão ao ins-
tintivo, ao sensual e mesmo ao erótico e a grande
complacência com que exalta como expressão da
nossa singularidade nacional uma cultura impreg-
nada do sentimento pânico da vida ou louva a nossa
lírica tão inocentemente sensual.
Agostinho da Silva retém um certo número de
traços da visão do mundo ou da leitura da nossa
maneira de ser proposta por Jaime Cortesão. Não
foi impunemente que o universitário Agostinho da
Silva se interessou pelo mais «erótico» e pouco reco-
mendável, segundo os nossos hipócritas códigos
vigentes, autor antigo, Catulo. A escrita límpida, o
lado de profetismo e misticidade característicos da
prosa de Agostinho da Silva, velam um pouco o que
não pode deixar de se designar por «erótica» agos-
tiniana. Um erotismo que não tem apenas o con-
teúdo negativo da recusa ou denegação do ascetismo,
essência da comum espiritualidade lusitana, desde
os bons tempos de Heitor Pinto, mas o gosto posi-
tivo pela vida, na sua natural pulsão vital e fonte de
sedução. O seu famoso paracletismo, a apologia do
Espírito Santo, não é apenas um eco mimético da
tradição joaquimista, uma maneira de considerar
findo o reino da Lei (o do Pai) e do Sacrifício (o do
Filho) com a entrada no terceiro reino, o da
Liberdade, que é, sobretudo, o do Amor. Esse seu
culto do Espírito Santo é o de uma nova Criação,
16
~-.

filha da esperança e aberta como a esperança sobre


um futuro em que o homem se descobrirá, ou des-
cobrirão, ao abdicarem das formas imperfeitas da
Lei c da Dor, como «eternas crianças» e imperado-
res da sua própria vida. Foi isto que Agostinho da
Silva reteve como mais válido e profundo em
Fernando Pessoa, o Fernando Pessoa da Mensagem,
;t quem dedicou a primeira leitura simbólica coe-
rente (na luz da sua própria visão) que se conhece.
Este homem de uma vasta e segura cultura, como
Pessoa, encontra-se com ele numa mesma espécie
de recusa transcendente, mas não menos decidida,
de uma cultura livresca, esquecida da silenciosa sabe-
doria que a todos nos habita quando nos abando-
namos ao sopro do «Espírito Santo», à lição de uma
Natureza que ensina quando nós nos calamos.
E assim, com o tempo, e cada vez mais despojado
das realidades e investiduras do mundo, do mundo
social e dos seus ritos, do mundo intelectual e das
suas rendosas imposturas, Agostinho da Silva se
revestiu, com todos os sinais da autenticidade, das
ronotações de um verdadeiro símbolo e até herói
da Contra-Cultura. Ou melhor, de qualquer coisa
mais rara que não vive da negação, mesmo a mais
fundada - e em Agostinho da Silva também esse
;lspccto existe - , mas da transcendência do cultu-
ral, da vitória sobre ele quando se olha todo o seu
imponente império, não como mera poesia da san-
dália dos deuses, mas com a inocência de uma criança
que acaba de abrir os olhos para o Universo e a sua
gratuita magnificência.

17
.....

Como toda a gente da minha geração, conheci


Agostinho da Silva através dos célebres fascículos,
vendidos então a quinze tostões, que punham o
público ledor, culto ou popular, na intimidade de
grandes figut:as e, sobretudo, grandes e saborosos
textos do passado. O primeiro que comprei foi sobre
Stendhal, autor então em vias de reconhecimento
universal e hoje, pensando bem, vejo nisso não um
mero acaso, mas a chave para a futura inscrição de
um homem que foi a Liberdade, mesmo no campo
de um autor tão pessoal, tão classicamente inclassi-
ficável como o autor da Cartuxa de Parma. Mais
tarde, li a sua tradução de três ensaios de Montaigne,
pai da prosa do corpo, da alma e da inteligência, seu
outro modelo - à parte o impessoal dos clássicos
da infância- que o da sua própria vida, observa-
dos sem complacência, mas também sem reticências.
Mas só o acaso de uma errância brasileira me fez
encontrar o homem dos sete ofícios, profeta, peda-
gogo, sábio, naturalista por conta própria, em Santa
Catarina, onde então Agostinho da Silva era uma
espécie de oficioso secretário de assuntos culturais
e, como sempre, um pólo de vida activamente con-
templativa, de que não conheci segundo exemplo .
. Recebeu-me (recebeu-nos, a mim e minha mulher)
como se me conhecesse desde sempre. Com uma
enorme e negra aranha dos trópicos na palma da mão
esquerda, divertido com o meu assombro e não
pequeno temor. A ;Natureza e a sua face misteriosa,
terrífica, o símbolo dos pesadelos e das ficções cien-
tíficas, repousava nas suas mãos como num berço.

18
Tinha domesticado «o mal» como se ele não exis-
tisse. Ou como se ele não o quisesse ver. Não sei se
isto basta para perceber que espécie de «misticismo»
era o seu. Mas bastou-me para sentir, e definitiva-
mente, que estava diante de um dos Homens mais
extra-ordinários que me foi dado conhecer.

Lisboa, 7 de Março de 1995.

~~ltL ~~ .- .e. ....... "--


/

19
Nasceu no Porto em 1906, sob o signo de Aquário.
O pai, algarvio, era inspector das alfândegas, a
mae, alentejana, dona de casa.
Ccorge Agostinho Baptista da Silva, de seu nome
11npleto, é um de três irmãos. Do seu «Livro de
1:.unília» constam também dois casamentos, oito
fi Ihos, vinte e dois netos e dois bisnetos.
Aprende a ler aos 4 anos, faz a instrução primá-
1'1,\ cm Barca de Alva e frequenta o liceu e a univer-
idadc no Porto. No tempo recorde de quinze dias
lrcpara o doutoramento, com uma tese sobre civi-
l iz~tçôes clássicas. Mais tarde, a convite da Junta
N~H:ional da Educação, parte para a capital, onde
funda o Centro de Estudos de Filologia da Universi-
li\(ll· de Lisboa. É bolseiro em França e Espanha,
onde aprofunda conhecimentos em história, filoso-
fin c literatura. De regresso a Portugal, é colocado,
p6s concurso, no ensino oficial, mas em 1935 é
demitido por se ter recusado a assinar uma decla-
l'i\Çfio que impunha aos funcionários públicos jura-
não pertencer a qualquer associação secreta.

23
....

Desempregado, aceita convites para leccionar, tem-


porariamente, no ensino particular. Simultaneamente,
lança uma série de opúsculos de teor enciclopédico,
de grande valor pedagógico.
Em 1943, um desses cadernos, O Cristianismo,
provoca alguma celeuma nos meios católicos mais
conservadores e origina inúmeros convites para a
realização de conferências. O envio de uma carta ao
cardeal patriarca de Lisboa e os acontecimentos ante-
riores levam à sua detenção no Aljube. Um grupo
de sacerdotes de Braga promove, entretanto, uma
autêntica cruzada contra a sua pessoa, que culmina
com a sua excomunhão.
Cansado de Portugal, emigra para o Brasil na
busca de novos caminhos.
Com o entusiasmo e o vanguardismo que sem-
pre caracterizaram o seu percurso, ajuda a fundar
universidades e cria diversos centros de estudos por-
tugueses.
A difusão dos seus ideários, a forma simples e
autêntica, quase «franciscana», de estar na vida,
cativam e atraem todos os que o rodeiam, suscitando
facilmente o respeito e a admiração, não só dos amigos,
mas também dos alunos e dos colegas professores.
Em 1969, depois de considerar estar cumprida a
sua missão em terras brasileiras, regressa a Portugal,
onde, ao longo de mais de duas intensas décadas,
continua a lutar pela união da comunidade de lín-
gua portuguesa no mundo.
Em meados dos anos 80 é nomeado consultor do
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

24
A participação numa série de programas de tele-
visão granjeia-lhe, junto das camadas mais jovens,
simpatia e grande popularidade.
Entretanto, alguns livros da sua vasta e impor-
tante obra, esgotados há já muitos anos, são final-
mente reeditados.
Dominando quinze línguas, o seu universalismo
cultural eleva-o a cidadão do mundo.
Infelizmente, a vida não é eterna: o poeta, peda-
gogo e filósofo, cujo nome figurará certamente na
nossa história como o último grande pensador deste
século, morre aos 88 anos, em Lisboa.
..,,-
::- ::-

Sereno, visivelmente bem disposto, apesar do dia


chuvoso, Agostinho da Silva, ao longo de cinco horas
de conversa, evoca o seu percurso e esclarece alguns
pormenores das suas vivências.
Sem nunca vacilar, aceita bem as nossas curiosidades
e presta-se a satisfaze-las. No seu depoimento lem-
bra também o convívio com políticos famosos e fala
ainda sobre a vida, o amor, a solidão e a morte. Um
discurso vivo, cheio de frescura, de clareza, de lucidez
de espírito e de humor, embora às vezes atraiçoado
por pequenas, mas compreensíveis, falhas de memória.
Revelando uma força e uma resistência pouco vul-
gares num homem de 87 anos, o velho mestre ace-
deu a receber-nos.
Aqui fica, pois, o derradeiro testemunho de um
grande português.

25
Luís MACHADO- Mais uma conversa ... não é,
Professor?

AGOSTINHO DA SILVA- Acho bom, vamos a ela ...


Como sabe, sempre gostei de desafios.

LM - Bom, não será propriamente um desafio,


mas advinha que vamos ter uma conversa bem sabo-
rosa. Se me permite, começo, talvez, por lhe pedir
que me conte como foi a sua infância?

AS - Muito bem, caro amigo. Recordo...,me que


esta conversa já estava combinada há muito tempo,
creio até que, a primeira vez que me telefonou, eu
ainda era brasileiro ...

LM- Não, nessa altura já não era brasileiro ...

AS - Já não era brasilei_ro?

LM- Não. Apesar das diversas contingências que


levaram aos adiamentos sucessivos deste nosso encon-
tro, nessa altura o Professor já não era brasileiro,
porque, se a memória não me falha, o senhor read-
quiriu a cidadania portuguesa a 12 de Março de
1992. Mas comecemos pelo princípio. O Professor
Agostinho da Silva é do Norte, pelo que sei nasceu
no Porto.
.
AS - Sim, nasci no Porto, em Campanhã, que é
um bairro aristocrático.

26
LM- Pois, mas logo de seguida foi para Barca de
Alva.

AS - Fui, porque o meu pai era inspector das


alfândegas e foi transferido para lá, de maneira que
eu tive essa sorte. Não sei se sabe, mas naquala altura
o Porto era um município profundamente republi-
cano; o fidalgo, que ainda tinha uma grande costela
monárquica, só podia estar no Porto dois dias ou
três, depois era obrigado a sair; não aguentava morar
no Porto durante todo o tempo.
Mas nisso não era o único, porque o próprio
infante D. Henrique, que era do Porto, também não
gostava de lá viver. Conta-se até que quando pre-
parava a expedição a Ceuta teve necessidade de ir ao
Porto buscar carne, foi por isso que no Porto só fica-
ram as tripas, daí os seus naturais terem o nome de
tripeiros. Tripas à moda do Porto, não é?

LM- Sim, sim ... e depois?

AS - Bem, deixei então o Porto e tive a sorte de,


a partir dos meus 7 ou 8 meses, crescer numa aldeia
mesmo na fronteira junto ao Douro, que era a mais
primitiva que se podia imaginar em Portugal. Havia\ .
montes de relevo igual aos que atravessavam Trás- ~
-os-Montes ou mesmo a Beira, mas sem uma única
árvore, sem nada, completamente despidos, com-
pletamente nus .
Não havia escola, não havia correio, não havia
luz eléctrica, nem havia coisa nenhuma, nem pão

27
havia ... só à segunda-feira! ... Mas voltando atrás.
Deixei, portanto, o Porto com menos de 1 ano, vim
para Barca de Alva e só mais tarde voltei ao Porto,
para fazer o liceu e a faculdade!

LM- Segundo li algures, o Professor foi para


a escola primária tendo a sua mãe como professora,
não foi?

AS- Exacto.

LM- Portanto, a sua mãe era professora?

AS - Não era bem professora, mas tinha muito


jeito para ensinar, e depois em Barca de Alva não
havia escola ...

LM- E então?

AS - A minha mãe, embora alentejana de nas-


cimento, tinha estado no Brasil durante 'uma longa
temporada e conviveu com gente italiana bastante
culta para a época, com quem aprendeu bastantes
coisas, sobretudo de carácter prático. Portanto,
depois, quando chegou a Barca de Alva, como não
havia escola e a casa da alfândega tinha uma sala
disponível, resolveu utilizá-la para dar aulas aos
meninos da terra que quisessem, contanto que
trouxessem um banquinho, pois nem banquinhos
havia! Nessa altura, naquele Portugal de início de
século, a pobreza era muita. Bom, e foi assim que

28
então aprendi a ler. Mas não me lembro absoluta-
mente nada do que li, nem sequer como foi. No
fundo, quer isto dizer que para a criança o apren-
der a ler é um acto de violência terrível, porque
naquela idade o que ela quer é brincar com car-
ros ou, como eu fazia, andar a caçar lagartos ou
qualquer coisa assim! Não é ler, não acha? Mas
tudo começa por a nossa educação ser uma edu-
cação em que a criança é presa. Um neto de uma
senhora que faz serviço aqui ao lado, que é um
menino despachado, activo, interessado pelas coi-
sas, entrou agora na escola primária. Todas as tar-
des, quando vem para casa, diz logo para a famí-
lia: «Tomara que aquela escola arda, tomara que
rebente. Aquela porcaria não há maneira de aca-
bar.» E repete, repete até à exaustão. No fundo, é
uma reacção natural. .. !
Há uma experiência feita por um checo, que
ensinava numa escola de deficientes. Em dada altura,
houve qualquer sarilho; então ele resolveu instalar
uma escola por sua conta e levar consigo alguns
deficientes. Ensinou várias coisas, coisas até que
não sabia, mas que teve de aprender (assim como
eu já ensinei o que não sabia e também tive de
aprender antes ... ). Aconteceu um dia que os alu-
nos quiseram um móvel, mas como ele de carpin-
taria não sabia nada, os alunos disseram-lhe: «Vá
aprender!»
E obrigaram-no a aprender e mais tarde a ensi-
nar carpintaria. A coisa corria, mas ninguém lia nem
escrevia, até que um dia chegou uma carta para um

29
deles de um tio que estava na América. O rapaz foi
ter com ele, com o professor, e disse-lhe:
«- Uma carta, dizem que é do meu tio, para o
senhor ler. .. »
«-Eu?! Mas eu não sou o sobrinho!»

LM- Segundo os dados de que disponho, o senhor


aprendeu a ler em Barca de Alva e terminou a ins-
trução primária já no Porto ...

AS - Sim, mas uns meses antes, para me prepa-


rar melhor para o exame da 4.a classe, fui para o
Porto (a leitura ainda estava pouco segura e preci-
sava também de fazer muitas contas), e o exame aca-
bou por correr bem.

LM- O que é que o seu pai fazia?

AS - Trabalhava ... lá naquela coisa da alfândega.

LM- Portanto, era funcionário público ...

AS - Sim, e foi demitido quando veio a República.


Parece que na minha família a demissão é uma coisa
quase genética ...

LM- Ai, sim ... Conte-nos como foi, Professor...

AS - É. Curiosamente, é uma coisa que já vem


detrás. Olhe, primeiro foi o meu avô, depois o meu
pat. ..

30
LM- O seu avô também foi demitido!?

AS - Mais tarde foi a vez do Pedro, o meu filho


que ensina Antropologia na Baía.

LM- Quantos irmãos tem?

AS - Tenho uma irmã viva e houve outra que já


morreu. Ainda me lembro dela ao colo da minha
mãe. Morreu com pouca idade, pouco depois de ter
nascido. Coitada, nem chegou a completar os 2 anos!

LM- Mas não eram duas raparigas e dois rapazes?

AS- Sim ... as raparigas eram duas.

LM- E rapazes?

AS - Fui o único rapaz.

LM- Eram então duas raparigas e um rapaz?

AS - Sim, justamente, naquela Barca de Alva, que


é a última terra portuguesa antes da fronteira espa-
nhola.

LM- O senhor era o mais velho dos irmãos?

AS - Sim, sim ... Nasci em mil novecentos e ...

LM- Em 1906.

31
AS - Sim, em 1906. É engraçado, porque tenho
bem presente na memória que a minha irmã Cecília
nasceu no ano do fenómeno do Cometa Halley e da
grande cheia do Douro; ora tudo isso aconteceu em
191 O, tinha eu 4 anos. Portanto está certo, foi mesmo
em 1906 ...

LM - O Professor desculpe, mas vou voltar um


pouco atrás, só para não perder aqui um pormenor
interessante. Tinha-me falado que as demissões na
sua família eram quase uma questão genética e que
começaram com o seu avô, que creio que era militar...

AS - Pois ... era militar e estava colocado no


Alentejo, mas devia descender de algum riquíssimo
maometano, porque era um homem muito truculento
e um pouco agressivo ...

LM- Mas essa demissão também foi por razões


políticas ...

AS - Em parte sim, mas mais até porque ele era


indisciplinado, uma característica da família. Acho
se juntaram as duas coisas, mas a verdade é que teve
de sair daqui e foi experimentar o Brasil, onde tam-
bém não se deu bem, e acabou por voltar.

LM- E com o seu pai, como foi?

AS - Bom, como há pouco lhe disse, ele era fun-


cionário na alfândega. Entretanto, dá-se aquela coisa

32

I
da «monarquia do Porto», mas ele continuou o seu
trabalho e fazia o que tinha para fazer. Porque achou
que a alteração política não devia interferir com o
trabalho. Bom, mas no fundo também devia haver
gente que não gostava muito dele, talvez porque ele
gostava de cumprir a lei. Portanto, logo que se ins-
taurou a República e a monarquia no Porto foi esma-
gada, ele foi preso e demitido. Naturalmente que os
meses que se seguiram não foram fáceis, sobretudo
economicamente. Mas acabou por arranjar emprego
no jornal O Comércio do Porto como jornalista. Mais
tarde, como tinha de se levantar muito cedo, deci-
diu aceitar um convite e foi trabalhar na Carris.

LM - E depois, a seguir, chegou a vez de o


Professor ser demitido. Creio que em 1935 ...

AS - Sim, demitido por me recusar a assinar um


papel onde tinha que jurar que não pertencia a
nenhuma sociedade secreta. Claro que o que eles
visavam era sobretudo a Maçonaria, que represen-
tava uma força que o regime temia.

LM- Mas assinar a declaração era mesmo obri-


gatório?

AS- Sim, sim ... Mas a dizer um não categórico


só houve duas respostas, a do Fernando Pessoa e a
minha. O Fernando Pessoa respondeu inteligente-
mente, argumentando que haver uma lei contra as
sociedades secretas era absurdo, porque quando duas

33
pessoas se entendem, imediatamente se forma uma
sociedade secreta. Um gesto, uma palavra, um silên-
cio, um olhar, são sinais para o outro. Claro que eu
não dei uma resposta inteligente como deu o
Fernando Pessoa, eu apenas testemunhei a meu favor,
no fundo foi isso. Isto porque o que eu ambicio-
nava, o que tinha por ideal, como professor de liceu,
era poder viajar pelo mundo, era estar em todos os
lugares, sobretudo aqueles por onde tinham passado
os Portugueses, apesar de muita coisa historicamente
já estar ultrapassada, mas o meu desejo era ver como
era, ver a forma daquilo, como era a cor do céu,
como é que a terra impressionava as pessoas. Por-
tanto, tornava-se necessário passar por todos esses
lugares. Mas como dinheiro não havia, existia apenas
aquele que ganhava no liceu, a única maneira era
concorrer a um lugar que houvesse numa colónia, e
depois seguir para lá. Um dia abriu uma vaga em
Moçambique, concorri e tive até muito boas notas,
por isso fui logo seleccionado. Só me faltava fazer a
inspecção de saúde. Nessa altura, quando se traba-
lhava nas colónias ganhava-se um pouco mais e sobre-
tudo trabalhava-se bastante menos, mas o clima tam-
bém era muito demolidor e envelhecia as pessoas
mais cedo. Em Aveiro, os meus amigos, os colegas
professores, os alunos e os pais dos alunos dávamo-
nos todos muito bem. Um dia, suspeitaram que eu
ia embora, exactamente por isso, para me reformar
mais cedo e para ganhar mais dinheiro, e ficaram
tristes, mas nunca me disseram nada. É justamente
nessa altura que sai o tal decreto. Vi muita gente que

34
pertencia a associações secretas ter de assinar o papel
para poder viver!
Pensei bem, e embora não pertencendo a associa-
ções secretas e também precisasse de comer, decidi
não assinar o papel.

LM - Portanto, foi demitido.

AS- Claro, apesar de terem ainda tentado con-


vencer-me a assinar o papel. Até o bispo de Aveiro
chegou a pressionar o Salazar, mas ele foi implacável.

LM - A propósito, o senhor Professor chegou a


conhecer Salazar, falou alguma vez com ele?

AS - Não, não o conheci. Vi -o uma vez ao longe,


a passar na arcada do Terreiro .do Paço, dirigia-se
para um dos ministérios ...

LM- Mas nunca se cruzou com ele?

AS - Nunca me encontrei com ele, mas soube


através de amigos que ele pedira informações a meu
respeito ...

LM - A propósito de políticos, quem uma vez o


visitou no Brasil foi Marcelo Caetano ...

AS- Sim, mas antes do Marcelo já tinha estado


lá, no início dos anos 60, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros de Salazar. O homem foi lá e encon-
35
...
<

trámo-nos. Bem, eu já tinha contactado Franco


Nogueira anteriormente. Expus as minhas ideias,
conversámos de política e sobre a cultura portuguesa.
Ele ouvia-me e registava todas as minhas opiniões,
no fundo eram coisas que interessavam a Salazar e
ao Governo de Portugal. Conversámos também sobre
África, que já nessa altura começava a constituir um
problema para o Governo Português, e falou-se até
do que havia a fazer com Goa. Bom, o Franco
Nogueira parece que achou algumas ideias interes-
santes, e disse-me:
«- Você devia ir outra vez para Portugal, para
falar sobre essas coisas e discutir as suas soluções ... »
«- Para quê? Para encontrar a PIDE? Decerto
que ela deve estar à minha espera, portanto não vou
fazer nada para lá.»

LM- A propósito da PIDE, o senhor nunca foi


preso?

AS - Fui, fui preso de várias maneiras - umas


vezes com residência fixa, outra no Aljube e ainda
quando do meu regresso do Brasil, no aeroporto.
Como vê, deram-me uma variedade de «ementas»
para eu provar.

LM- Mas voltando ainda a Franco Nogueira ...

AS- Bom, então.Franco Nogueira, logo que che-


gou a Portugal, não deixou de dizer a Salazar que
me tinha encontrado lá no Brasil, que tínhamos con- .
36
versado, e que ele, Franco Nogueira, tinha achado
boas as minhas ideias sobre África e sobre a Índia.
Salazar ouviu tudo e perguntou-lhe:
«- Então por que é que você não lhe disse para
ele vir para cá?»
«-Eu disse, mas ele respondeu-me que não estava
para aturar a PIDE.»
Agora aqui é que é o ponto fundamental. .. bom,
então Salazar respondeu-lhe:
« - Ele que venha, porque nós não dizemos nada
à PIDE.»

LM- Mas isso é uma resposta de antologia ...

AS - Quer dizer que aquele homem finalmente


percebeu, e aí se vê a inteligência que havia nele, per-
cebeu que embora tendo criado uma polícia como a
PIDE acabava por ser seu prisioneiro ... Se ele me
enderessasse um convite oficial, iria desagradar à
polícia, o que no fundo não queria; assim, preferia
usar de subterfúgios e de habilidades para tentar
enganar a PIDE.

LM- Ainda antes de regressar a Portugal, o senhor


teve um encontro no Brasil com o Professor Marcelo
Caetano, não teve? -

AS - Sim, e até gostei de falar com ele. O Mar-


celo esteve lá a representar Portugal integrado numa
comissão qualquer e apresentou-se na sessão de
abertura para falar em nome de Portugal. Então,

37
..

houve uns amigos meus de lá que me disseram,


preocupados:
«-O que é que você vai fazer?»
«- Farei o que faria com qualquer pessoa: pri-
meiro, ouço o que é que ele diz, e se houver razões
para o contradizer, faço-me ouvir.»
E foi assim ...

LM- O Professor já o conhecia pessoalmente?

AS - Não, a única coisa que sabia era que era


professor. Portanto, suponho que ele ainda não era,
nem sonhava ser, ministro.

LM - Creio que nessa altura já era reitor...

AS- Realmente, não me lembro; só sei que apa-


receu lá.

LM - Isso foi na primeira metade dos anos 60,


não foi?

AS - Olhe, não me lembro muito bem, mas é


possível. .. Havia um congresso luso-brasileiro, qual-
quer coisa assim, e Portugal tinha mandado uma
delegação, onde ele e o Franco Nogueira compare-
ceram. Eu fui lá e exprimi a minha opinião, natu-
ralmente contrária à dele, mas o homem mostrou
·humildade e abertura ao diálogo, o que levou a que,
no final, · conversássemos amigavelmente, sem
nenhuma espécie de oposição da sua parte, pelo
38
menos, que eu notasse. Mais tarde, quando resolvi
vir para Portugal, um amigo meu, que tinha sido
meu aluno no Infante de Sagres e era amigo de
Marcelo Caetano, foi dizer-lhe:
«- Fulano», que era eu, «agora vem para cá.
Como é, acha que ele pode vir sem complicações?»
E Marcelo respondeu-lhe:
«-Ele que venha já e que ninguém ouse tocar-
-lhe.»
Esta era uma faceta de Marcelo Caetano que ele
não teve a coragem de assumir na totalidade, como
já tinha acontecido, quando mais tarde pediu a demis-
são de reitor.

LM - Sim... ele nessa altura tomou uma posição


a favor dos estudantes ...

AS- Pois, tomou uma posição a favor dos meni-


nos, dos estudantes, que estavam em greve legítima.
Eu apesar de estar longe também estava solidário
com eles. Isto não deixa de ser curioso, porque nes-
tes políticos há sempre cambiantes e às vezes até plu-
ralidades várias, não é?!

LM- Quantos filhos é que o senhor Professor


tem?

AS- Tenho vários, mas assim em números redon-


dos são oito.

LM- Quantos rapazes e quantàs raparigas?

39
AS- Três raparigas ... não- quatro raparigas e
quatro rapazes. Uns estão na Suíça, outros estão na
Inglaterra, dois no Brasil e dois em Portugal. O que
espero de cada um deles é que alcancem o que mais
desejam ... Cada um está à vontade para fazer o que
mais lhe convier ou o que mais lhe apetecer. O impor-
tante é dar aos homens, na plenitude, a liberdade de
serem aquilo que gostariam de ser. Mas para além
dos filhos, há os netos, que já são uma turma.

LM- São assim tantos?!

AS - Seguramente, são já mais de vinte. Qualquer


dia há bisnetos. Mas para isso decerto já não tenho
tempo.

LM- Os oito filhos são de vários casamentos?

AS- Sim ... mas ... existem várias maneiras de as


pessoas se casarem: pela metafísica ou pela física.
Tudo depende de uma coisa ou de outra ... Mas creio
que a gente há pouco falávamos ...

LM - ... falávamos do seu regresso a Portugal,


mas também da expulsão do Colégio Infante de
Sagres, por ser acusado de comunista ...

AS- É verdade, mas olhe que nunca fui comu-


msta.

LM- Mas noutro partido, nunca esteve inscrito?


40
AS - Não, e essa é uma das razões que tenho para
não votar.

LM- Mas não vota mesmo?

AS - Em consciência, não posso votar num par-


tido. A lista é de um partido. Portanto, eu não devo
votar, quando não sou de nenhum partido. Mas
mesmo em relação aos independentes, quando os há,
a questão é meramente ilusória, porque eles acabam
por se constituir num grupo de alinhados que, na
prática, reage como qualquer partido.

LM- Claro. Mas uma das coisas dita por pessoas


que acompanharam o seu percurso político é que, no
início dos anos 40, o senhor esteve ligado ao Partido
Comunista.

AS- Pois ... mas não estive ...

LM- Mas tinha uma série de amigos que eram


do PC?

AS - Ai sim, mas isso era outra coisa.

LM- Amigos comunistas muito activos, alguns até


com pesadas responsabilidades no aparelho partidário ...

AS -Você, Luís, naturalmente não sabe, mas tive


um adversário com quem tive um único encontro
que se revelou, logo nesse encontro, tal como hoje é.

41
....

LM- Não me diga que era o Dr. Alvaro Cunhal?

AS - Precisamente o Álvaro Cunhal. Era numa


época de ditadura, ia haver eleições, preparava-se a
reeleição de Carmona, então deram «liberdade» para
haver mais uns jornais ... Lembro-me só do nome
do Diabo, mas havia também outro jornal de opo-
siç~o onde até cheguei a colaborar escrevendo um
artigo ...

LM- A propósito de jornais e revistas, o Professor


foi um dos fundadores da Seara Nova?

AS - Fundador não, mas colaborei com eles.

LM - Apesar de assinar com pseudónimo, creio


que a partir de 1930, o Professor foi um dos seus cola-
boradores mais activos ...

AS - Activo e sem estar sempre de pé atrás.


Porque1 eu acho que quando se é amigo de uma
pessoa que está na política, é para a ajudar, não
para ser oposição. Porque a mania da política hoje
é ser da oposição. Para mim, a verdadeira política
não é essa, a verdadeira política é a da composi-
ção: ver o que é aproveitável no outro e o que
parece ser aproveitável em nós e tentarmos então
que essas duas coisas vão para a frente juntas, não
é assim?

1
Referência indirecta a António Sérgio.

42
LM- Desculpe, mas eu interrompi-o precisamente
quando estava a falar do Dr. Alvaro Cunhal.

AS - Bem, eu não conhecia o Álvaro Cunhal.


Mas aconteceu que ele estava no Chiado com alguém
que me conhecia, e que o alertou para a minha pre-
sença ou qualquer coisa assim, e então foi ele que
veio ter comigo e disse-me:
«-Não gostei do seu artigo no jornal tal.»
Como sabe, ele é do tipo de homem que não dis-
farça as coisas. É franco e o que tem a dizer diz logo.
Podia ter vindo com umas habilidades e umas des-
culpas do género: «Olhe, li», «porém, não é nada
disso», etc. Naturalmente que lhe perguntei o por-
quê, não é? E ele, muito frontalmente, disse-me:
« - Porque você, no seu artigo, trata das relações
que se estabelecem entre a criança e o brinquedo, e
não devia fazer isso. Você o que devia era ter escrito
um artigo sobre as crianças que não têm brinque-
dos.»
Delicadamente, respondi -lhe:
« - Pois é, até podia ter escrito, mas na ocasião
não foi isso o que me interessou escrever; o que me
interessou escrever foi apenas sobre a relação entre
a criança e o brinquedo. Mas quem sabe se um dia
não poderei vir a escrever sobre as crianças que não
têm brinquedos.»
E ele disse:
~<-Pois é, mas você devia era ter feito isso agora.»
E foi assim, sempre a mesma coisa; até ao fim da
conversa não houve mais nenhum assunto. Até que
43
ele se despediu, ou fui eu que me despedi, já não sei
qual de nós o fez primeiro. Logo a seguir ele entrou
na clandestinidade. De maneira que nunca mais houve
a possibilidade de retomarmos a conversa.

LM- O que pensa do 25 de Abril?

AS - Bem, acho que veio sobretudo fechar uma


página da nossa história, porque pôs termo à dita-
dura. Depois apontou aos Portugueses novos hori-
zontes, novos caminhos, e uma coisa muito impor-
tante: trouxe a liberdade de pensar e de agir ...

LM - Acha que a partir do 25 de Abril se cria-


ram oportunidades de Portugal se reencontrar?

AS - Portugal tem de ressurgir, mas não da forma


que tem tentado fazê-lo. É importante recordar que
desde o princípio do século XIX, isto é, desde o
regresso de D. João VI do Brasil, houve duas formas
de monarquia portuguesa: uma em que Portugal era
uma espécie de ajuntamento de municípios indepen-
dentes republicanos, coordenados por um rei, que
viajava pelo país como o faz hoje o Soares. Ele ganhou
esse costume dos reis ... A propósito disso, lembro-
-me de uma conferência que fui fazer e à qual Mário
Soares presidia. Eu tinha de falar sobre D. Dinis e
disse, entre outras coisas, que esse rei tinha inven-
tado uma coisa rara po seu tempo, que era a «Realeza
Aberta». Já imaginou esta associação: Presidência
Aberta/Realeza Aberta? Claro que isto levou logo
44
o Presidente Soares a sorrir, sendo de imediato imi-
tado pela assistência, que aproveitou para saudar e
aplaudir a Presidência Aberta que ele então reali-
zava. No fundo, esta até era muito idêntica àquela
que o rei fazia. O rei percorria o País, falava com
este ou aquele, recolhia opiniões e tentava coorde-
nar aquilo tudo. Quando isso não lhe parecia sufi-
ciente, reunia as Cortes Gerais, e vinham os repre-
sentantes dos municípios, dos nobres e do clero ...

LM- Há pouco estava a contar o episódio do


encontro com o Dr. Alvaro Cunhal, mas não chegou
a acabar a história.

AS -Depois houve outro diálogo, ou melhor ...


houve um triálogo.

LM- Um triálogo?

AS - Sim, você é capaz até de saber o ano em que


isso aconteceu. Foi quando o Mário Soares tinha 17
ou 18 anos. O pai achou que, embora ele já tivesse
uma boa cultura geral, era importante que aprofun-
dasse questões ligadas à cultura portuguesa e per-
guntou-me se eu estava disposto a dar lições ao filho.
Evidentemente que respondi que sim ao Dr. João
Soares e é então aí que apareceu o Mário Soares.
Claro que nunca houve lições de cultura portu-
guesa, era outra coisa, foram discussões de cultura
portuguesa, porque nessa altura o Cunhal era moni-
tor lá no colégio deles.
45
LM- Sim, em 1941, ele era regente de estudos no
Colégio Moderno ... O Professor nunca chegou, por-
tanto, a trabalhar no colégio dele?

AS - Não senhor, onde leccionei foi no Infante


de Sagres, e num outro que já não me lembro como
se chamava e que depois passou a ser um colégio
para senhoras, ali no cimo da Alameda, ao pé do
Hospital de Arroios ...
Era um colégio simpático, interessante, estive lá
um ano ou dois, só. No Infante de Sagres é que foi
mais tempo. Mas voltando de novo à sua pergunta
sobre o Cunhal. Lá no colégio, o rapaz (o Soares)
conversava com o Cunhal, discutia com ele as ideias
e vinha depois discuti-las comigo. Portanto, eu, ao
discutir as ideias com ele, estava, também, indirec-
tamente, a discuti-las com o Cunhal, daí o triálogo.
Entretanto, o Soares teve um ataque de asma, coisa
que ele tinha já desde pequeno. As lições foram então
interrompidas e nunca chegaram a recomeçar. Mas
ainda a propósito do Álvaro Cunhal, talvez não saiba,
mas ele foi das poucas pessoas que teve a amabili-
dade de responder a uma carta minha, quando entendi
que devia enviar-lhe uma saudação pelo regresso a
Portugal, após o seu longo tempo de exílio.

LM- Segundo as palavras de David Mourão-


-Ferreira, o Professor Agostinho da Silva era uma
espécie de descobridor de vocações, como aqueles
vedares que sabem onde se encontram os cursos de
água subterrâneos. Ora isto, no fundo, significa que
46
foi graças ao senhor que algumas pessoas fizeram,
profissionalmente, opções mais certas ...

AS - Não sei se porventura todas teriam sido as


mais certas, mas admito que algumas o tenham sido.
Agora é possível que eu já tenha ultrapassado muita
coisa e também esteja diferente. Naquela altura, talvez
ainda pensasse como o actual Ministro das Finanças, 1
que considera que o problema da inflação é o mais
terrível e portanto aquele que é preciso combater. Eu,
por exemplo, não penso assim; acho que o problema
que mais preocupa toda a gente é o do desemprego,
e eu, particularmente, até gostaria de o ver resolvido.

LM- Considera então que, neste momento, o pro-


blema mais grave que assola a sociedade portuguesa
é o desemprego?

AS - Sim, mas também a inflação, embora se pre-


veja que o desemprego vá aumentar em todos os paí-
ses, porque basta o simples aperfeiçoamento das
máquinas, para que isso aconteça. Quando hoje se
diz que o que é preciso é manter o subsídio de desem-
prego, não estou de acordo, porque acho que o que
é preciso é criar um subsídio ao ócio ...

LM- Porquê ao ócio?

AS - Ao ócio, porque assim não seria necessário


tanta gente trabalhar.
1
Braga de Macedo.

47
LM- Professor Agostinho da Silva, mas na socie-
dade portuguesa temos também outros problemas
graves - a saúde, por exemplo, mas não só ...

AS - É verdade, e naturalmente também têm de


ser resolvidos.

LM- A saúde e a educação são ...

AS - Pois é, são exemplos com que estou de


acordo consigo. Mas em Portugal, tal como no Brasil,
há também outro tipo de problemas: sonegar im-
postos. Você, por acaso, já viu as contas que há por
aí, relativas à quantidade de dinheiro que tem sido
roubado ao Estado? Olhe, estava previsto no ano
passado um orçamento com 300 ou 400 milhões de
receitas fiscais. Quando o ano fiscal encerrou, sabe
quanto é que foi apurado? 600 ou 800 milhões. Ora
isto quer dizer que toda a gente que quer, facilmente
pode roubar impostos. E rouba. No Brasil é exac-
tamente a mesma coisa; no fundo, o que todos que-
rem é fugir ao pagamento dos impostos!
O nosso Portugal também teve na sua história
um coitado chamado José do Telhado. Nem ele pen-
sou que um dia haveria outros Josés do Telhado, a
cair em cima do Estado e a dar cabo do sistema fis-
cal. O tal Portugal que eu acho que foi o mais ver-
dadeiro, o Portugal dos municípios governado por
um rei, o tipo de regime que também a Espanha
devia ter adoptado e há-de adoptar um dia.
Naturalmente que não será um conjunto de muni-

48
cípios, mas um conjunto de repúblicas, cada uma
com a sua cultura e a sua independência ou inter-
dependência, porque agora não há ninguém inde-
pendente, mesmo com ou sem rei. Acredito que um
dia toda a Península seja assim, um conjunto de ter-
ritórios interdependentes, autónomos. No fundo,
continuo a acalentar o sonho de ver a verdadeira
filosofia portuguesa a comandar isto tudo e a partir
daí ver Portugal a desempenhar um novo e impor-
tante papel no mundo.
Quando é que Portugal muda? Justamente
quando há o triunfo de D. João I em Aljubarrota.
Aljubarrota é tida em Portugal como o esplendor
das batalhas, toda a gente a fugir à frente dos por-
tugueses, a padeira de Aljubarrota e Portugal a
meter-se em grande empresas. Muitos dos que
tinham estado ao lado de D. João I nas batalhas
pensaram que o rei os ia compensar, como faziam
os outros, com um castelo, uma vila, uma aldeia, e
os respectivos vassalos. Mas o rei não fez isso,
D. João I foi o primeiro rei que disse: «Menino, o
castelo está aqui e aqui estão as terras, mas os vas-
salos, não, os vassalos são meus!» E foi realmente
este o primeiro rei de Portugal que começou a man-
dar. Foi assim que Portugal mudou e houve então
gente que não gostou e passou para o lado de
Espanha para combater Portugal.

LM- Quem o conhece sabe que o senhor tem sido


sempre um iberista. Porquê esse antieuropeísmo, não
gosta mesmo da Europa?

49
AS - Realmente, não morro muito de amores por
ela. Mas será que a Europa julga que pode governar
sem a Península, sobretudo sendo ela, como é, dupla-
mente mediterrânica e atlântica? É bom lembrarmo-
-nos que foi essa Península que construiu o Bundest
Bank e outras coisas de grande dimensão; o Delors
vem de vez em quando com um pacote e oferece-
-nos 10%, esquecendo-se que muito mais que esse
dinheiro roubaram-nos eles no Tejo, aquando do
negócio da pimenta, e mais tarde também ficaram
com o dinheiro que veio do Brasil, a primeira grande
exportação do açúcar. Mas depois ainda veio o ouro,
e os diamantes, e a madeira da Amazónia, foi tudo
isso que construiu a Europa. Talvez seja realmente
menos pró-europeu, porque entendo que cabe à
Península comandar essa união, sem a menor hesi-
tação, e não só deve como pode fazê-lo.

LM- Quando estava a falar da Península, lem-


brei-me, nem sei porquê, dos oceanos e dos mares.
Ora a propósito disso sei que uma das suas grandes
paixões era ter sido marinheiro. Por que é que nunca
realizou esse sonho?

AS - Mas olhe que já fui.

LM - Foi, como?

AS- Já fui, embora nunca tenha sido sequer gru-


mete, mas hoje até já sou almirante. Sabe porquê?
Porque pertenço à Academia de Marinha ...

50
LM- Mas, Professor, eu sei que o senhor na ado-
lescência queria mesmo ir para a Marinha ...

AS- Pois é, mas sabe de quem é que foi a culpa?


Foi do Pires de Lima, que era um grande professor
de Português que vivia no Porto. Foi ele que me
levou a tomar contacto com grandes portugueses,
sobretudo com poetas. A partir daí, a minha paixão
pelo mar esmoreceu, dando logo lugar a uma outra:
os escritores, a cultura portuguesa ...

LM- Mas olhe que consta que a sua família tam-


bém terá tido alguma influência nessa desistência.
Foi um pouco dissuadido, não foi?

AS- No início, sim. Houve realmente uma certa


desaprovação, mas depois deixaram-me inteiramente
à solta para fazer aquilo que quisesse.
Recordo-me até que, quando constatei que
não tinha a Física e a Matemática suficientes para
poder ingressar na Escola Naval, eles me suge-
riram que tentasse a Escola de Marinha Mercante.
Mas aí eu realmente pensei melhor e disse não.
Sabe porquê? Porque não estava para andar
toda a vida a transportar bois de Leixões para
Bucelas.
Pronto, foi assim. Não fui mesmo e acabou-se.
Parti para outras coisas ...

LM- Em termos do seu percurso por terras bra-


sileiras, o senhor deu um contributo cultural notá-
I
51
vel, não só ajudando a fundar várias universidades,
na Baía, em Brasília, mas ...

AS - Sim, e também outras lá para cima, Paraíba,


Santa Catarina ...

LM- Exacto. E criou também centros de estudos


portugueses ...

AS - Onde fiz a tal aventura de ensinar o que


não sabia.

LM- O que não sabia? Como assim?

AS - Quando cheguei lá, o governador que-


ria fundar a universidade. Eu trabalhava nessa
altura no Ministério da Educação no Rio e
alguém me disse que o reitor andava à procura
de pessoal e que até já tinha pensado em mim
para ensinar Cultura Portuguesa. Procurei-o e
disse - lhe:
«-Está bem, vamos a isso.»
Admitiram-me logo e lá fui então conhecer o
Nordeste, aquele local maravilhoso. Logo que che-
guei, fui falar com o homem que estava indigitado
para dirigir a Faculdade de Filosofia, e ouvi, meio
espantado, da sua boca o seguinte:
«- Sabe que aconteceu uma coisa grave; de facto,
eles contrataram-no, mas esqueceram-se que só há
Cultura Portuguesa no 3. 0 ano. E agora o que é que
a gente faz? »

52
«- Não sei, meu amigo, isso agora é consigo, eu
- .
nao sei.»
Então ele disse-me:
«- Talvez encontremos uma saída, sabe, é que
nós já tínhamos convidado o professor português
Mariano Feio para ensinar Geografia Humana, que
foi discípulo do Orlando Ribeiro, e ele até veio; mas,
por questões pessoais, regressou a Portugal. Será que
você não é capaz de ensinar Geografia Humana?»
Respondi -lhe: _
«-Olhe, eu não sei nada de Geografia Humana,
a não ser o que aprendi nas conversas que tive com
o Orlando Ribeiro; portanto, de Geografia Humana,
não sei rigorosamente mais nada ... »
Mas o homem tanto insistiu comigo que acabei
mesmo por aceitar. Mas impus uma condição: que a
data prevista para o início do ano lectivo fosse atra-
sada pelo menos um ou dois meses. O homem con-
cordou e eu preparei-me. Logo que abriram as aulas,
nesse primeiro ano, tinha inscritos apenas dois alu-
nos: um era o secretário-geral do governador e o
outro era a mulher dele, que decidiu inscrever-se
porque adorava Geografia Humana. No final do ano,
feito o balanço, apurámos que tínhamos ficado a
saber alguma coisa sobre aquela matéria; e pronto,
foi assim.

LM- Para além do Brasil, o senhor foi um homem


que praticamente percorreu as sete partidas do
mundo. Esteve em Timor, em Macau, também em
Africa ...

53
AS - Sim, estive em Moçambique. Mas foi já
depois de ter regressado do Brasil. Estava no ICALP,
deparou-se-me algo em Moçambique que era inte-
ressante fazer e ofereci-me para ir para lá. Em
Lourenço Marques, aproveitei até para visitar a campa
da minha mãe ... Às vezes costumo dizer que tam-
bém sou moçambicano.

LM- A sua mãe morreu em Moçambique?

AS - Sim, morreu, porque logo após o faleci-


mento do meu pai foi para lá viver com a minha
irmã - com a Cecília e o meu cunhado Arnaldo,
que era um sujeito extraordinário. Aliás, eles sem-
pre gostaram muito de Moçambique; talvez por isso
eu também tenha tentado ficar lá colocado, mas como
não assinei o tal papel. ..

LM- Portanto, recapitulando o seu percurso: nasce


no Porto, vai para Barca de Alva, volta ao Porto e
depois vem para Lisboa. Não foi bem e~;ssim, porque
a faculdade também a fez no Porto. E isso, não é?

AS - Sim, em Lisboa, o que fiz foi a Escola


Normal Superior.

LM- Escola Normal Superior?

AS - É porque para entrar como professor efec-


tivo nos liceus era necessário esse curso. Mas entre-
tanto estive para não ir para o liceu, porque apare-

54
ceu um concurso para professor de Belas-Artes. Aliás,
cheguei a increver-me no concurso, porque se ficasse
com o lugar, em vez de trabalhar toda a semana no
liceu, passava a trabalhar apenas três horas por semana
nas Belas-Artes. Bom, já depois de me inscrever
encontro na rua um homem que não fazia outra coisa
senão estudar história, sobretudo a história da
2.a Grande Guerra. Como não tinha emprego, vivia,
estudava e trabalhava no café.
Começámos a conversar e ele disse-me que ten-
cionava inscrever-se nesse concurso. Então respondi-
-lhe:
«- 6 homem, mas se você quer ir para lá, eu saio!»
E nessa mesma tarde fui lá e «desinscrevi-me.»
Algum tempo depois tive conhecimento que o
grande filósofo Vieira de Almeida, um excelente pro-
fessor da Faculdade de Letras, também se tinha ins-
crito nesse concurso para a Escola de Belas-Artes.
Repare que o Vieira de Almeida era mesmo uma
pessoa respeitabilíssima. Não sei se foi por isso ou
por outra coisa, o certo é que decidi inscrever-me
de novo. Quando voltei lá, o chefe da secretaria
reconheceu-me e disse-me, furioso:
«- Outra vez!? Outra vez!? Você anda a brin-
car. .. »
«- Pois é, decidi voltar a inscrever-me.»
Para aquele concurso, era preciso redigir uma tese
e apresentá-la impressa, portanto aquilo foi mesmo
escrever de corrida, ir para a tipografia, voltar lá para
corrigir as provas! Mas lá me chamaram para o exame
e o primeiro professor a interrogar-me foi o Agos-

55
-.
tinho Fortes. Recordo-me que a sala tinha muita
gente e que na assistência se encontrava o marido da
Maria Keil, o arquitecto Keil do Amaral, que gos-
tava muito de assistir aos exames.
Mas voltando ao exame: o Agostinho Fortes pegou
então na minha tese e disse com um ar professoral:
« - Ora temos então aqui uma tese sobre um poeta
pérsio ou latino que ninguém conhece. É curioso,
sabe, mas olhe que não se percebe nada da sua pon-
tuação, está tudo 'barafustado'.»
« - O senhor professor dá-me licença?»
E ele disse:
«-Com certeza!»
«-Já sei que é um velho costume seu: quando
o senhor não sabe das coisas, pega pela pontuação.
Veja lá se hoje passa a outra coisa mais concreta, por-
que isso não adianta nada.»
Bom, como deve calcular, o efeito de uma resposta
destas, para além de pôr a rir a assistência, «liquidou»
o nosso amigo. O outro examinador era o perito, o
homem que sabia muito de oceanos e dessas coisas.
Na véspera de eu ir lá (nessa altura vivia numa
pensão, porque não tinha casa em Lisboa), estava no
meu quarto quando um colega entrou e me disse:
«- Você por acaso já viu es.sa história do mar,
das correntes? Olhe que eles agora andam a per-
guntar multo Isso.»
Respondi -lhe:
«-Olhe, por acaso, esqueci-me completamente
dessa matéria, mas mais logo vou ver se ainda con-
sigo ver alguma coisa.»

56
Naquela noite estudei portanto as correntes, para
o caso de aparecer alguma pergunta ...
Mas então o tal professor chega lá e diz-me:
«- Quero saber o que é que o senhor sabe da
corrente que vem do México e atravessa todo o
Atlântico para chegar até aqui, às nossas costas.
Descreva-me esse percurso.»
Bem, então eu lá descrevi, sem grandes hesita-
ções, porque estava tudo ainda muito fresco, tinha
aprendido na véspera. E o homem disse:
«- Mas ela aqui divide-se, o senhor não falou
nisso!»
«- Mas divide-se como?», retorqui eu.
«-Há uma que passa mais abaixo da costa ... »,
e tal, tal e tal... E eu então respondi-lhe:
«- Mas quais são os pontos por onde a outra
passa, o senhor sabe?»
«- É indeciso.»
«- Pois é, então não vale a pena estarmos a falar
de coisas indecisas, porque creio que estamos aqui
é para falar de ciência. Ou o senhor sabe por onde
é que passa a corrente, ou não sabe, mas por favor
não complique mais a nossa vida.»
Escusado será dizer que a minha prova acabou
logo ali. Quem ficou?, vai decerto perguntar-me você.
O rapaz do café ... No fundo, era o que eu queria.
Eles não tiver-ªJll cQragem de nomear o Vieira de
Almeida, que, por acaso, também não fez grande
figura no concurso, e a mim nem por sombras me
queriam ver lá dentro, tomaram eles que eu desapa-
recesse. Aceitámos passivamente o resultado, dado

57
que não queríamos causar mais complicações ao outro
candidato ...

LM- E o que é que aconteceu ao rapaz do café?

AS - Foi aprovado e passou a ensinar nas Belas-


-Artes, embora como de costume continuasse a estu-
dar e a «viver» no café.

LM - Professor, em termos do seu percurso, o


senhor cursou a Escola Superior para ficar habilitado
a leccionar no ensino oficial, e só mais tarde é que
faz o doutoramento, não é verdade?

AS- Não, fiz o doutoramento antes. Um dia


passei pelo Rossio e cruzei-me com o homem das
Conferências do Casino, o António Augusto
Salgado Júnior, que já no Porto era um dos
homens que mais sabia de literatura portuguesa,
tanto ou mais que os próprios professores da
Faculdade. O Salgado logo que me viu veio cum-
primentar-me e alertou-me para o problema da
discussão da tese de doutoramento no Porto;
informou-me que o prazo estava quase a acabar,
pois faltavam apenas três ou quatro meses . Não
sei se sabe, mas a Faculdade de Letras do Porto
tinha sido extinta por decreto. Então o Salgado
disse-me:
«-Olhe, eu vou fazer o doutoramento, p9rqu~
quero mesmo seguir a carreira universitária. Agora
quanto a si, você é que sabe.»

58
Respondi -lhe:
«- A mim não me interessa muito, porque quem
deu cabo da Faculdade do Porto foi a Universidade
de Coimbra e a Universidade de Lisboa, de maneira
que quando eu puder rebentar com elas, rebento.
Car.re.ira ~ambém não tenciono seguir, mas sou con-
tra 1llJUStlças ...
De repente pensei melhor e disse para mim:
«Quem sabe se um dia realmente um doutoramento
até não me vai ser útil.» E disse-lhe:
«-Também vou!»
«-Olhe, então vamos os dois!», respondeu ele.
Tive assim de preparar, à pressa, uma tese onde
defendia que os Romanos nunca tinham ido ter com
os Gregos e que estes não tinham ideia do decor-
rer do tempo da história. Nunca mais li aquilo. Hoje
acho que ela deve ser muito ruim, mas com tão
pouco tempo para a preparar, tinha de ser mesmo
assim, e lá fui doutorar-me ao Porto, na minha uni-
versidade ...
Na cerimónia, entre a assistência, estava o Dou-
tor Joaquim de Carvalho, que apesar de ser um
homem da Universidade de Coimbra não se con-
fundia com o resto da universidade, porque estava
à parte; por isso conservei relações com o Joaquim
de Carvalho. Uin dia escreveu-me para me dizer que
tinha assistido ao meu doutoramento. Logo a seguir
tive uma bolsa para ir para Paris.

LM- Dois anos, entre a Sorbonne e o College de


France?

59

AS - Sim, devem ter sido quase dois anos. Nessa


altura, o Joaquim de Carvalho enviou-me um cartão
para Paris a convidar-me para escrever alguma coisa
para a imprensa da universidade. Foi assim que os
meus primeiros livros foram impressos pela Imprensa
da Universidade de Coimbra, que acabou por ser
extinta alguns meses depois, porque publicou algo
sobre o Islão que foi considerado subversivo. Mas
mesmo assim ainda lá consegui publicar alguns livros.

LM- O Professor Agostinho da Silva teve o pri-


vilégio de ter conhecido algumas das grandes figu-
ras deste século. Recordo, por exemplo, o Rafael
Alberti, um dos grandes poetas espanhóis da geração
de 27. E Lorca, chegou a conhecer?

AS - Não. Esse não conheci.

LM- Mas privou de perto com Jaime Cortesão,


António Sérgio, Leonardo Coimbra, Adolfo Casais
Monteiro, Aquilino Ribeiro, Jorge de Sena, Eduardo
Lourenço, Hernâni Cidade, Raul Proença, Jacinto
Simões e muitos outros portugueses ilustres desse tempo.

AS - Sim, é verdade ...

LM- E Fernando Pessoa, também conviveu com


ele?

AS - Não. Redigi foi uma nota biográfica sobre


ele. Como sabe, eu estive na Seara Nova, com a gente

60
mais culta que havia em Portugal naquela altura.
Talvez não acredite, mas nunca ninguém me falou
do Fernando Pessoa, nunca. Nem o Sérgio, nem o
Câmara Reis, nem o Aquilino, ninguém falava nele.
Aliás, quase que não se sabia que ele existia, não foi
nunca chamado para nenhuma coisa nem metido
num partido, como é tão vulgar hoje fazerem.

LM - Depois da sua demissão do ensino oficial,


abandonou Portugal e foi para Espanha. Mas antes
esteve em Paris ...

AS - Sim, estive dois anos em Paris e só depois


é que fui para Espanha ... Porque quando volto aqui,
depois de Paris, é que se dá a tal história da demis-
são, e foi o Joaquim de Carvalho que se interessou
por mim e insistiu com o Armando Castro para eu
ter uma bolsa. E lá fui então para Espanha. Nessa
altura, estava lá em exílio o Sérgio ...

LM- Mas o António Sérgio não estava exilado


em Paris?

AS - Não, nessa altura já estava em Espanha.

LM - Bem, mas então isso foi antes da Guerra


Civil?

AS - Pois, isto tudo dá-se antes da Guerra Civil


Espanhola. As coisas para mim até correram bem.
Felizmente, consegui escapar à Guerra Civil e vim

61
para Portugal. Mas, curiosamente, um dos moti-
vos que me trouxe a Portugal foi o Sérgio. Comecei
a deixar de me entender com o Armando Castro,
porque ele estava a falar castelhano de mais para
mim; as coisas começaram a não correr bem e assim
que vi que podia escapar-me, decidi voltar para
Portugal.
Eu estava lá para estudar, e era isso que eu fazia,
o que por vezes me levava, até sem querer, a alhear-
-me de outras realidades. Como as coisas se azeda-
ram com o Armando Castro, procurei então o Sérgio
e disse-lhe:
«- Vou voltar a Portugal.»
«-Olhe, isso vem mesmo a calhar, porque pre-
parei, você ainda não sabe, um plano revolucioná-
rio para Portugal, um grande plano. Assim, vou já
escrever os pormenores e você leva-os, porque é
mesmo o correio ideal. »
Um bocado surpreendido, disse-lhe:
«-Nem pense nisso. Imagine o que pode acon-
tecer se eu entrar em Portugal com uma coisa dessa
natureza ... o plano de uma revolução!. .. Não, eu
vou é decorar tudo isso ... »
«-Está bem, então, venha cá!»
Andámos uma porção de tempo a passear, de um
lado para o outro, lá num jardim qualquer, para eu
decorar os planos do Sérgio. (Acho que ainda não
contei este episódio.) E foi assim que me vi metido
nessa coisa que não deu nada, como de costume.
Ali~s, acreditei log.o~ desde o princípio, que aquele
proJecto nunca tena sucesso.

62
LM- O Professor parte para o Brasil em 1945 ...

AS- Não, foi em 1944.

LM- E a Argentina e o Uruguai, foram mais tarde?

AS - Foi já depois de estar no Brasil, logo nos


primeiros anos, que estive na Argentina e no Uruguai.
Estive também para ir ao Chile, mas felizmente não
fui, senão tinha-me metido naquele sarilho com o
Allende. As coisas propiciaram-se no Brasil para que
eu ficasse lá durante 25 anos. Foi um quarto de século.
Andei um pouco por toda a parte, fiquei com um
bom conhecimento do Brasil. Houve, sobretudo,
uma coisa muito boa, que foi trabalhar directamente
com Jânio Quadros, justamente quando ele foi
Presidente da República. Nessa altura, já eu estava
naturalizado brasileiro e era cada vez mais difícil
voltar a Portugal, o clima político continuava asfi-
xiante, as possibilidades eram praticamente nulas.
No Brasil encontrei o essencial para viver, mais até
do que tinha em Portugal.
As autoridades portuguesas, a certa altura, não
gostaram daquela paixão que o povo português arran-
jara pela rainha Isabel. Mas quando se «descobriu»
o Brasil, houve logo muita gente a querer ir para lá,
gente essa que levava consigo o culto do Espírito
Santo, o culto do divino ... O culto do divino é ainda
hoje uma coisa perfeitamente viva no Brasil. Naquela
altura, vivia-se muito a rotina de um dia a dia calmo,
sem grandes políticas. -I

63
...
.
O drama do Brasil começou quando as autori-
dades portuguesas obrigaram muita gente a ir para
lá. Depois, mais tarde, quando o Brasil começou a
render dinheiro, nomearam militares para o gover-
nar, militares esses que foram governar as gentes
assim um bocado em pulsão. O Brasil tem sido um
diálogo dificílimo entre os geneticamente portugue-
ses do Espírito Santo e as outras gentes da Europa
e da América que o têm percorrido. Tem sido, em
termos humanos, um choque contínuo, excepto agora,
mais nestes últimos anos, em que as coisas se têm
atenuado mais. Quando o Jânio Quadros foi eleito,
eu já tinha fundado o Centro de Estudos Africanos
e Orientais. Logo no início, lutei contra o reitor, que
se opunha, o Edgar Santos, agora celebrizado numa
canção de Caetano Veloso. Ele, eu e a Lina Basto
somos os três os heróis da Baía. Bom, mas eu fui ter
com o reitor e disse-lhe:
«-É muito importante falar com o Jânio Qua-
dros, porque ele, num discurso da campanha, falou
que as relações com África eram fundamentais para
o Brasil. E eu acho a mesma coisa. Não me quer
mandar lá?»
E o reitor disse:
«- Mas eu não conheço ninguém dessa gente!»
«- Posso ir lá eu?»
E ele disse:
«-Pode.»
Mal saí do gabinete. telefonei para o Jânio Quadros
e ele recebeu-me na manhã seguinte, pelas seis horas.
Começava sempre a trabalhar muito cedo. Consta

64
~~-~
~

A obediência dos povos alimenta


a tirania dos governos.

Agostinho da Silva
-


que a certa altura do dia se metia um bocado no
whisky, e depois quem tinha de o aguentar era o José
Aparecido, esse que veio aqui para Portugal como
embaixador. Mais tarde, até, fomos os dois convi-
dados para trabalhar directamente com o Jânio
Quadros. Fomos assessores de política externa, que
era uma área muito interessante. Ocupavamo-nos,
essencialmente, das ligações entre o Brasil e a África.

LM - A propósito de trabalhar cedo, o Professor


Agostinho da Silva ainda continua a levantar-se às
quatro da manhã?

AS - Não, agora já não, é às cinco!

LM - Levantar-se bem cedo e fazer a sesta são


para si ,quase rituais diários, não é verdade?

AS - Sim ... é um pouco isso. Digamos que são


hábitos antigos que me dá prazer manter.

LM- Professor, e a que horas é que se deita?


Normalmente, deita-se cedo, não?

AS - Nem por isso, nunca me deito antes das


onze horas, meia-noite, mas não dispenso a sesta.
E se me apetece dormir durante o dia, durmo. Às
vezes até estou a ler e adormeço. Não me incomodo
nada com isso, desde que o sono seja satisfeito, quero
lá saber do resto. Sabe que, ao dormir duas vezes,
um dia acaba por parecer durar dois ...

(:.5
...

LM- Em relação aos seus 25 anos de Brasil, o


senhor decerto contactou também com muitos inte-
lectuais brasileiros. Ocorre-me o nome de Manuel
Bandeira, mas sei que houve muitos outros ...

AS - Sim, o Manuel Bandeira. Há pouco queria


citá-lo e não me lembrava do nome dele ...

LM - E o Jorge Amado, conheceu?

AS -Jorge Amado? Sim, logo que o conheci


não gostei muito dele. Diria até que antipatizei
com ele, e depois até acabámos mesmo por nos
zangar.

LM- Sim? Mas ainda continuam zangados?

AS- Hoje já não. Eu conto-lhe como foi. A certa


altura o Jorge Amado escreveu, acerca de qualquer
coisa que eu tinha feito, ou dito, a dizer mal, inclu-
sive foi pouco simpático para Portugal. Hoje já
nem me lembro do que foi, sabe ... A memória é
assim, às vezes escapa-se. Bom, mas eu, então, apro-
veitei e respondi-lhe à letra, dizendo que havia
insolência em toda aquela sua glória triunfalista.
Entretanto, um jornal português de lá apressou-se
logo a publicar as minhas palavras. Naturali]#ente
que depois de tudo aquilo as nossas relações cor-
taram-se. Mas, anos mais tarde, quando estava aí
o José Aparecido de Oliveira, acabámos por fazer
as pazes.

66
LM- Professor Agostinho da Silva, o senhor_ ainda
continua a defender que o futuro está em Africa?

AS - Sem dúvida. África vai ser a grande terra


do futuro. Hoje, os africanos, depois de terem tido
em cima deles, ao longo de mais de 600 anos, gente
não africana, os europeus, os muçulmanos, que che-
garam primeiro que estes à costa, sentem-se agora
finalmente livres. Conseguiram ressuscitar, têm ali
gente extraordinária, com qualidades incríveis, mui-
tas das quais se transmitiram ao Brasil. Uma das
características do Brasil é realmente estar muito afri-
canizado. O toque de África também foi muito
importante, muita gente foi para lá servir. Não os
escravos, mas as escravas, as grandes escravas, que
passaram os seus costumes, a sua maneira de ser, a
muita .outra gente no Brasil. De maneira que essa
África vai receber duas ajudas extraordinárias: uma
é a ajuda do Brasil, que, tanto quanto sei, continua
com o Presidente Itamar. Hoje, os que querem nave-
gar já não precisam de o fazer por navio, porque
hoje navega-se com fax, dá-se a volta ao mundo com
fax, e o navio já não é preciso para nada. A outra é
a da China, porque lhe vai traçar uma economia para
o mundo na junção das duas economias: a de mer-
cado e a outra, a do nosso amigo Li-Peng, quando
estiver aperfeiçoada, pronta a funcionar para toda a
China e para todo o Oriente, vai passar para a África,
muito provavelmente por Moçambique, que é a porta
de entrada deles. Então haverá África, haverá Brasil
e haverá China, e eu chamo a isso a política do ABC.

67
LM - A pouco, a propósito da sua saída de Por-
tugal, o Professor contava-me, mas entretanto mudá-
mos de assunto, que tinha chegado a ser preso em
Lisboa, pela PIDE. Pormenorize-me essa detenção.

AS - Um grupo de ex-alunos meus de Aveiro


convidou-me um dia para fazer uma conferência em
Aveiro, e lá fui. Mas quando cheguei (tinha ido de
comboio), o grupo que me esperava na estação
disse-me:
«-Olhe, a sua conferência foi proibida, sabe, foi
considerada subversiva. Mas não faz mal, vamos
todos para casa de um de nós e o senhor conversa
na mesma connosco, e nós conversamos consigo.»
Lá fomos, então. Quando cheguei, vi que tinham
arranjado uma sala com cadeiras e fiz a conferência.
No final, fui preso logo à saída, porque tinha trans-
gredido a ordem para não haver conferência. Trouxe-
ram-me então logo para Lisboa e meteram-me numa
cela no Aljube.

LM- Foi a única vez que esteve preso ... ?

AS - Sim, tirando uma estúpida detenção no aero-


porto, o resto foi residência fixa.

LM - Residência fixa ... ?



AS - Sim. Apesar· de tudo, tive muita sorte nas
residências fixas, porque tive residência fixa na Praia
da Rocha, ainda no tempo em que se chegava à Praia

68
da Rocha de carro de bois, e depois tive residência
fixa lá mais para cima, em Cabeceira de Bastos. A casa
pertencia ao sogro do Fernando Rau, que era um
homem que tinha sido governador de Macau e que
a
passava vida a consertar o motor do automóvel.
Andava sempre cheio de óleo, era uma porcaria, e a
mulher fartava-se de protestar, mas ele dizia-lhe
sempre a mesma coisa: «Eu, à noite, lavo-me!»
E lavava-se, mas só para o jantar!
Como vê, tive sempre a sorte de ter residência
fixa em lugares bons. Mas voltando à cela do Aljube:
não sei porquê, deram-me a cela mais dura e mais
escura que lá havia.
Recordo-me que a partilhava com um homem
que já estava preso à muito tempo e que riscava os
varões da grade por cada dia que estava lá. Os domin-
gos eram assinalados com um tracinho maior. Pela
soma dos traços, o desgraçado já devia estar metido
entre as grades há uma porção de tempo. Às vezes
aparecia um guarda, nunca percebi com que inten-
ções. Abria a porta, aquilo tinha duas portinholas,
abria só a de fora (depois ainda ficava a de dentro)
e então falava de coisas, de política ... Não sei se real-
mente ele queria ou não saber o que eu pensava, mas
se era isso, eu dizia-lho sempre. Não tinha medo e
não me importava nada com isso.

LM- Esteve muito tempo preso?

AS - Não me lembro bem! Mas acho que não


chegou a um mês.

69
LM- Isto aconteceu mais ou menos em que altura?
No início dos anos 40?

AS- Talvez. Foi um bocado antes de eu ter par-


tido para o Brasil.

LM- Professor, vamos falar de viagens. O senhor


também foi a Timor. Em que circunstâncias é que lá
esteve?

AS- Fundamentalmente, devido à minha ida ao


Japão. O motivo principal da viagem era ir ao Japão
por causa da Universidade de Brasília. O reitor da
Universidade de Brasília tinha achado que seria inte-
ressante que eu visitasse o Japão, para observar como
eram as universidades de lá, e depois ver se havia
alguma coisa a adoptar na nossa. Estive, por isso,
bastante tempo no Japão. Estudei um pouco da cul-
tura deles, trabalhei e discuti problemas. Olhe, por
exemplo, uma vez, o presidente da Escola Normal
de Tóquio disse-me o seguinte:
«-Estamos muito atrapalhados, porque passa-
mos grande parte da vida a comportarmo-nos como
americanos. De dia, saímos do metro a correr, para
chegar a horas lá àquela coisa, trabalhamos muito,
cantamos sempre o hino da companhia e fazemos
aquelas coisas todas que caracterizam os Americanos.
Só depois, à noite, é que nos soltamos e somos' ver-
dadeiramente japoneses.»
Claro que o homem não me disse como é que
eles se soltavam, como é que viviam depois, quando

70
voltavam a ser japoneses. Mas decerto descalçavam-
-se, sentavam-se no chão e comiam em cima de uma
almofada, aquelas coisas ...

LM- ... e acompanhavam a comida com saké ou


outras bebidas à base de arroz ...

AS- Sim, sim. Um dia mais tarde, chamaram-me


para discutir o que é que eu achava que os Japoneses
iam ser. Disse-lhes com muita franqueza:
«- Se .não tiverem sorte, vocês correm real-
mente o risco de serem 'americanos'. Talvez já
não se lembrem, mas quem vos preparou para a
vida moderna não foram os Americanos. A che-
gada dos portugueses ao vosso país ensinou-vos
muita coisa: arquitectura, navegação ... O primeiro
hospital organizado foi criado por portugueses
no Sul.
Aliás, eu já tinha percorrido bastante o Sul e tinha
exactamente visto isso. Uma vez, até fiquei com o
retrato fiel do que era uma grande companhia no
Japão. Eu queria visitar umas terras com acessos difí-
ceis, nem havia comboio. Então, por acaso, encon-
trei um homem que me disse:
«- Olhe, parece que há um camião, um auto-
carro de uma companhia, que vai percorrer essas ter-
ras todas que o senhor quer visitar.»
Bem, lá fui, e consegui arranjar um lugar. Sabe o
que era?

LM -Não ...

71
...

AS- Era o autocarro em que as viúvas da com-


panhia iam percorrer o Sul do Japão. Por aqui se
pode calcular o que era a organização. Nessa altura,
apesar de não terem chegado ao que chegaram hoje,
já havia, nos cemitérios, o mausoléu da companhia.
Todo o empregado, quando morria, tinha direito a
ir para lá. A admissão numa empresa era feita em
função dos conhecimentos demonstrados. Por exem-
plo, supondo que você era admitido na companhia
para ser escriturário e depois mostrava que era incom-
petente para o lugar, não o punham fora; iam-no
colocando em lugares cada vez mais baixos, até que
acabava, por exemplo, a abrir a porta da rua, mas
nunca o despediam, mantinham-no lá.
Mas, portanto, o grande problema deles era que-
rerem saber o que iam ser.

LM- Professor, mas em relação a Timor, foi só


então depois do Japão que visitou esse território?

AS- Sim, uma vez que estava por aquelas para-


gens, decidi aproveitar para ir a Macau e a Timor.

LM - Ah!, não sabia que também conhecia


Macau ...

AS - Pois, primeiro fui conhecer Macau e só


depois é que fui a Timor, onde, aliás, me dei mt.Iito
bem. Gostei muito de Timor. Se tivesse de me deci-
dir, escolhia morar n~ ponta leste de Timor. É uma
coisa linda aquela ponta até ao lado terra, as casas

72
todas com um andar em baixo, junto ao chão, sobre-
tudo as pequenas casas construídas sobre um tripé
e com outro andar lá em cima. O andar de baixo é
para se conversar com os vizinhos; para o de cima
sobe-se para dormir. Cá em baixo é onde se come e
se recebem as visitas. Aquilo é mesmo uma verda-
deira delícia. Timor é uma coisa extraordinária!

LM- Sim, mas não achou que, em termos de


administração, era um território um bocado aban-
donado?

AS - Não. Por acaso não me ocorre agora o nome


do governador. Lembro-me bem é do adjunto do
governador, que é hoje o Chefe de Estado-Maior. ..

LM- O Chefe do Estado-Maior do Exército?

AS - Não, o Chefe de Estado-Maior-General das


Forças Armadas ...

LM- Ah( o general Soares Carneiro!

AS- Exactamente. Nessa altura, ele era o adjunto


militar do governador. Conhecemo-nos lá ...

LM- Então isso deve ter sido aí na década de 60.


O Professor já estava no Brasil há muitos anos ...

AS - Sim, por aí, porque eu até já estava em


Brasília.

73
...

LM- Então foi em 62 ou 63 ...

AS - Sim, sim ... Gostei imenso daquilo, recordo-


-me até que um soldado foi esperar-me ao aeroporto
e depois levou-me para Díli. Que gente maravilhosa
e que paisagem extraordinária.

LM- Ficou realmente bem impressionado ...

AS - Absolutamente. Portugal é que não soube


fazer política. Não sei se sabe, mas aquele arquipélago
tem 13 SOO pequenas ilhas e fala 200 línguas. É evi-
dente que aquilo não poderá ter futuro enquanto não
tiver autonomia, e enquanto isso não acontecer vai ser
um arquipélago cheio de esquadras da polícias, é evi-
dente. Em 65, ou coisa que o valha, houve grande agi-
tação política na Indonésia, e o Suharto fez aquela
matança. Toda a gente que parecia identificada com
ideias comunistas era logo presa ou executada. Mas
olhe que ele não se meteu com o lado português, por-
que sabia que enquanto lá estivesse o nosso exército
não precisava de ter essa preocupação. Mas quando
os portugueses abandonaram aquilo, e a verdade é que
abandonaram mesmo aquilo, a recém-nascida Fretilin
ganhou outra dimensão. É sabido que os portugueses
que estavam lá, comandantes e respectivos ajudantes,
eram da direita, não é assim, e por isso acharam que
aquele movimento de guerrilha, onde ao que pa'rece
já entrava o Xanana, to~a aquela história, era uma coisa
de comunistas, e portanto abandonaram aquilo ver-
gonhosamente. O resultado foi aquele que se sabe ....

74
LM - O Professor critica, portanto, o abandono
português. Acha que foi· mau ... que foi uma decisão
política infeliz?

AS - Claro. Se eles tivessem previsto as conse-


quências, decerto que teriam agido com mais cuidado.
Havia sobretudo que dialogar com todos os partidos
e dizer-lhes: «Vocês não vão ter futuro se não forem
um arquipélago com autonomia, portanto entendam-
se uns com os outros.» Mas é difícil, a gente sabe
como o João Jardim na Madeira tem agido, não é fácil.

LM- Sim, mas a Madeira é diferente ... Professor,


há semanas estive precisamente a falar com o padre
Victor M elícias sobre Timor e ele, entre outras coi-
sas, dizia-me que os portugueses em relação a Timor
tinham sido uns grandes hipócritas, porque agora
andavam muito preocupados com a situação política
de Timor, mas na altura pouco ou nada fizeram para
evitar a tragédia.

AS- Exacto, exacto, ele nesse ponto tem razão!

LM- Em relação a Timor, acho que o lado do bom


samaritano já não pega. É preciso encontrar soluções
práticas que possam conduzir à audodeterminação ou
a uma autonomia progressiva ... Não concorda comigo?

AS - Antigamente, quando conheci os timorenses,


eles eram mesmo timorenses e estavam à sua von-
tade ... o que era normal, porque aquilo era a sua terra.

75
....

LM- Mas então quando o Professor lá esteve, em


meados dos anos 60, não lhe pareceu, ou não notou,
que havia alguma miséria, subdesenvolvimento?

AS - Pelo menos fome e miséria não havia ...

LM- Mas entre a população decerto havia gran-


des diferenças ...

AS - Sim, admito que havia desigualdades e igno-


rânCia.

LM- Vamos voltar a África. Como é que encara


a situação actual em Angola? O que pensa dos prin-
cipais líderes angolanos?

AS - A diferença entre um Savimbi e um José


Eduardo dos Santos é que o Savimbi nunca estu-
dou nada de profundo no hemisfério norte, mas é
doutor. O José Eduardo não, o José Eduardo veio
aqui, estudou na universidade, estudou quanto podia
e, quando voltou a África, ainda era preto, mas
tinha deixado de ser africano. Ele agora está a ten-
tar defender e levar para a frente uma Angola que
não é africana, uma Angola portuguesa com as suas
etnias todas traçadas com laços portugueses. E o
outro? O outro está a defender uma Angola afri-
cana, à maneira africana, e o Durão Barroso 'fez
com ele um tratado, um tal Bicesse, como se a nego-
ciação ocorresse entre dois países do hemisfério
norte ...

76
É África, senhores! Não é assim! ... Ele não per-
cebeu que logo no Bicesse o nosso amigo Savimbi
leu que tinha a palavra BI de Bicesse ... Então, ele
continuou a fazer manobras, que obviamente nunca
poderiam ser bem aceites.
Mas, mesmo hoje, sabendo-se o que se sabe, con-
tinua-se a ajudar o mais que se pode o José Eduardo,
quando quem vai vencer é o outro, porque Angola
de certeza que vai tornar-se uma Angola africana.

LM- Acha então que o vencedor vai ser Savimbi?

AS - Claro, não duvido. Acaba por haver Cabinda,


por haver uma Angola dos Humbundos e uma
Angola dos Kibundos, e talvez, com sorte, uma fede-
ração. Aí o Savimbi e o José Eduardo dos Santos
ficam convidados ... Curioso que o José Eduardo dos
Santos tenha dado autonomia a Cabinda, mas disse:
«Vocês têm autonomia para dançarem como quise-
rem, cantarem como quiserem, fazerem as coisas da
maneira_que lhe apeteça ... mas não se esqueçam que
o petróleç> é nosso! ... » O lha que belo exemplo de
federação!

LM- Deixemos Angola e falemos de outras coi-


sas. Gostava de abordar consigo os conceitos de amor
e de paixão. Como é que o Professor os diferencia?

AS - Se eu tivesse seguido uma carreira nessa área,


decerto ter-me-ia dedicado à filologia, sobretudo às
etimologias, na ligação com o indo-europeu. De

77
...
II
I

maneira que, talvez por isso, sempre que posso, gosto


de reflectir sobre essas coisas. A palavra latina que
se identifica com o coração, a que nós damos fun-
ções que não são as do cérebro, pois ele faz o favor
de fazer muito mais, a palavra latina é cordis, donde
vem cordial- coração, afectuoso. Os Italianos, des-
cendentes directos dos Romanos, chamaram-lhe cuore
e os Franceses couer. Mas nem os Portugueses nem
os Espanhóis caíram nessa, deram-lhe mais impor-
tância! Introduziram-lhe um aumentativo, porque
couer deu em português «coração», e em espanhol
corazón, com uma acentuação nítida no aumentativo.
Para se ver como isto é claro, perguntem-lhes o que
é que fizeram de «cabeça»? Fizeram a palavra «cabe-
ção», que é uma coisa que não vale nada, é um sim-
ples acessório no vestuário. Ora o coração é que é o
pólo a que as coisas se têm de referir, é o sentimento,
é ... Mas ainda tem outra coisa, sabe? Coeur, no indo-
-europeu, tem a mesma raiz que a palavra «acredi-
tar»- credere -,portanto deu «crença», «crer», etc.
Sabe-se perfeitamente que o coração não é guia para
a matemática, que é uma matéria complexa, a não ser
quando serve para resolver problemas práticos.
Desiste-se dela quando o teórico é muito difícil. Foi
o que aconteceu com Einstein. Einstein, a pouca mate-
mática que sabia (ele era sobretudo um poeta) apren-
deu-a com a primeira mulher, que era uma gpnde
algebrista. Esses conhecimentos foram úteis para a
relatividade especial (ele não diz relatividade restrita);
para ele, relatividade especial é aquilo a que chama-
mos relatividade. A ideia de Einstein foi: vamos pen-
III

78
sar o que é que no mundo aconteceria se a velocidade
da luz fosse diferente ... Bem ... podemos imaginar
duas coisas: uma velocidade duas vezes maior. E qual
é a nossa noção de espaço e tempo num mundo em
que essa velocidade é duas vezes maior? Mas ainda
podemos imaginar coisa pior. Por exemplo, uma velo-
cidade infinita - já não se trata de o comboio che-
gar lá, trata-se de o comboio ser solto dos céus, para
baixo, para cair com qualquer velocidade. Portanto,
assim já é muito mais difícil conceber as coisas. Daí
ele usar a designação «relatividade especial».
Entretanto, mais tarde, houve um dia que o nosso
amigo quis juntar as duas coisas, no que chamava o
campo único, ou contínuo, mas não o conseguiu atra-
vés da matemática. Porque parece que no mundo há
uma porção de coisas que escapam à matemática!
Bom, mas a paixão, o amor, são coisas que, quando
existem, é difícil que existam.

LM- Acha que sim ... ?

AS - Eu acho. Quando você me diz: «Gosto muito


de quintas», eu posso perguntar-lhe de imediato:
«Tem alguma?» E você responde-me: «Tenho uma!»
Então eu desconfio que isso não tem nada a ver com
amor ... É simplesmente o lucro, é a comodidade,
qualquer coisa do género ... Se, por outro lado, você
me diz: «Não tenho nenhuma quinta, nem quero!»,
então aí já eu penso: «Este sabe o que é amar.» Como
vê, são dois verbos distintos, o verbo «amar» e o
verbo «ter»; a posse destrói sempre o amor.

79
~

LM- Mas a paixão muitas vezes está associada à


posse ...

AS - Se tem a ver com a posse não é paixão.


Bom, mas vamos então à posse: se uma pessoa
faz as coisas no mundo «por», é uma coisa; se as
pessoas fazem alguma coisa «para», é diferente. Ao
entrarmos na sala de um museu, ou de vários museus,
é-nos indirectamente comunicada uma ideia e um
sentimento acerca da pintura. Se um pintor que tem
a paixão da pintura pinta, e se o que ele quer é só
«ser», então basta ver a sua obra para também cap-
tarmos um determinado sentimento acerca da
pmtura.
Eu costumo dizer que Van Gogh se suicidou por-
que até o fim da vida não conseguiu que o reco-
nhecessem como pintor. Bom, Deus criou «por» (não
«para»). O pintor que pinta para depois vender o
quadro, pintou «para». Quem ama, ama «por», não
há confusão possível com o verbo «ter». Às vezes,
é muito difícil viver bem com o «por», porque o
«para» entra muito em conflito com o «por».
Há pouco esteve aqui a visitar-me um grupo de
jovens, a quem tive de explicar estas coisas, porque
eles fizeram algumas perguntas acerca disso. Mas no
fim falei-lhes também de dinheiro. Eu, actualmente,
vivo do que me dão. Porquê? Porque quando, che-
guei ao Ministério, para assinar os papéis para tra-
tar da minha reintegração, disseram-me:
«- A partir de agora, vai ficar com uma pensão
vitalícia.»

80
E eu disse:
«-Muito bem, mas para mim essas pensões têm
um defeito, é só serem vitalícias, ou seja, nós não
conseguirmos viver o tempo suficiente para elas nunca
acabarem.
Mas isso é demasiado dinheiro para mim! Não
será melhor repartir esse dinheiro com o Ministério?
Eu podia devolver uma parte e com ela talvez fizes-
sem coisas para as quais não têm verba. Portanto,
apenas me davam aquilo que entendessem que eu
precisava para viver, do modo mais restrito possível.»
E o Souto Tomé, que era o funcionário que estava
a tratar do assunto comigo, respondeu-me:
«- Mas o Ministério não pode fazer uma coisa
dessas, porque o que propõe não é legal!»
Mas acabou por me dar uma sugestão:
«- Talvez se pudesse fazer uma coisa interes-
sante: ia falar com a Caixa de Pensões e pedia-lhes
para depositarem o seu dinheiro no Montepio.
Depois, nós fazíamos um acordo com eles.»
Assim, combinou-se tudo e lá se criou o Fundo
D. Dinis, para onde vai esse dinheiro. Agora, final-
mente~ já posso tirar o meu dinheiro - em teoria,
todo - e dá-lo aos outros. Naturalmente, é desse
dinheiro que eles hoje me dão aquilo que eu preciso
para viver.
As pessoas, às vezes, não percebem bem o raci-
ocínio e perguntam-me: «Mas então esse dinheiro é
100% do Fundo?» Não, porque se eu já o dei, com
certeza que não vou tirá-lo, uma vez que são eles
que dizem em que condições é que eu o posso levan-

81
- •

tar. Assim, sempre que preciso de mais dinheiro,


escrevo apenas uma carta e peço licença para isso.
O Couto dos Santos, que, com o meu acordo, fez o
regulamento para o Fundo D. Dinis, definiu que o
pedir dinheiro fica estritamente a meu cargo.
Acredita-se, portanto, que quando eu peço dinheiro
é só porque tenho necessidade dele. Como vê, estou,
de facto, a viver do que me dão!

LM - Possivelmente, até se sente mais contente


assim, não é?

AS - Contentíssimo. Se agora eu estivesse a


receber esse dinheiro, neste momento quem me diz
que alguém não poderia pensar, ou até dizer: será
que aquele merece esse dinheiro? Fosse ele muito
ou pouco. Deste modo, com a constituição do Fundo,
acho realmente que tudo é mais transparente e até
ma1s JUSto.

LM- Professor, a sua reintegração na função


pública só aconteceu em finais dos anos 70, portanto
já uns anitos depois do 25 de Abril. Porquê?

AS - Pois, o 25 de Abril veio e eu fiquei na


mesma ... Depois de reflectir bem, achei que teria
alguma dificuldade em decidir se tinha sido real-
mente o Salazar que me tinha demitido ou se fui eu
que me demiti a mim próprio. Portanto, não quis
sair daquela história como um herói (o que naquela
altura até teria sido fácil), e acabei correndo o risco

82
de sair como um réptil. .. Mas foi melhor assim;
como realmente não tinha bem a certeza, decidi não
reivindicar a readmissão. Aliás, evitei até falar nisso
aos amigos. Mas logo que o Mário Soares foi nome-
ado Primeiro-Ministro, apressou-se a mandar-me
um recado, onde dizia: «Diga-me a que horas é que
está em casa, que eu quero visitá-lo!» E eu pensei:
«Não senhor. Não me visita, porque agora já não é
meu aluno! Agora é o Primeiro-Ministro de Portugal
e quem vai visitá-lo sou eu, perguntem-lhe se o
posso fazer.» Dias depois fui recebido e conversá-
mos à vontade. A certa altura, o Mário Soares per-
guntou-me:
«-Neste momento, o que é que está a fazer, está
a trabalhar para alguma instituição?»
«- Sim, estou ali no ICALP, a fazer uma pes-
quisa histórica ... »
«- Em relação ao seu afastamento do ensino, foi
demitido? Nunca o reintegraram?»
«- Também nunca pedi isso ... »
E ele disse:
«-Bom, então vou pedir eu!»
«- O senhor é o Primeiro-Ministro, portanto
manda e faz como quiser.»
Ele redigiu de imediato o decreto, mas o Eanes
vetou-o. Claro que houve logo pessoas a pergunta-
rem:
«- Por que é que o Eanes veta ,. uma c.oisa des-
tas? Decerto que não é uma atitude contra você!»
«- Suponho que não ... »
«- Então só pode ser para aborrecer o Soares.»

83

Respondi-lhes:
«- É possível, mas pode ser também que o Soares,
com a vontade de resolver depressa a situação, se
tivesse esquecido da Constituição ou utilizado mal
a legislação. Embora ele seja advogado, é humano
enganar-se.».
Como já disse, o Soares apressou-se a enviar a
proposta ao Eanes, mas ele vetou-a. Nessa altura,
quiseram saber se eu tinha ficado contra o Eanes.
E eu respondia: eu? Bem pelo contrário, até fiquei
foi agradecido. Aliás, dou-me bem com ele e com
a mulher, só que ainda não tive ocasião para lhe
diz.er como fiquei agradecido por ele ter agido
assim.

LM- Mas depois de tantos anos, será possível que


não tenha ainda sido reintegrado?

AS - Sim, acabei por ser reintegrado, mas mais


tarde.

LM- Quando?

AS- Em Junho do ano passado ...

LM - Portanto, só em 1992.
fi
AS - Sim, mas os grandes «culpados» foram o
Roberto Carneiro e o·Primeiro-Ministro. No fundo,
o Cavaco também desejava que isso acontecesse. Um
dia, ele e o meu Pedro encontraram-se ...

84
LM- Refere-se ao seu filho ...

AS-+ Sim ... E então ele perguntou-lhe por mim.


O Pedro lá lhe disse como é que eu estava. Porém,
antes de se despedirem, o Cavaco saiu-se com esta: '
«- Então, e os gatos dele?»
Bom, esta pergunta vinda de um sujeito com a
aparência do nosso amigo Cavaco é uma coisa um
tanto ou quanto inesperada. Até porque ... há uma
certa tendência em se estabelecerem comparações
entre ele e o Marcelo Caetano ... Para muita gente,
Cavaco Silva personifica, um pouco, o sucessor de
Caetano ... ou até para alguns o de Salazar. ..
Ora, quando ele pergunta pelos gatos, este homem
vem demonstrar que até tem uma linha de humani-
dade que não se deve desprezar. Bem, mas em rela-
ção ao Eanes foi realmente isso que aconteceu: ele
vetou a proposta, talvez por a considerar inconsti-
tucional. Mas sabe por que é que eu lhe estou agra-
decido? Porque se o Mário Soares tivesse conseguido
a aprovação do decreto, eu tinha sido, realmente,
readmitido; simplesmente, ficava a ganhar como pro-
fessor do ensino secundário. Assim, uma vez que o
Eanes a vetou, quando mais tarde surgiu outra oca-
sião para me readmitirem, descobriram que eu até
tinha feito um doutoramento, e então no Ministério
perguntaram-me?
«- O senhor é doutorado?»
E eu respondi:
«- Sim, mas já não me lembro do nome da
tese ... »

85
...

LM- Desculpe interrompê-lo, mas o Professor às


vezes costuma dizer, com ironia, que tem um dou-
toramento em Raiva e uma licenciatura em Liber-
dade ...

AS - Sim, é verdade, mas naquela situação não


era o caso. Foi então o Pedro, o meu filho, que por
acaso estava comigo, que lá os conseguiu convencer.
«- Mas sendo assim não o podemos readmitir
aqui no secundário!»
Pouco tempo depois fui então reintegrado no
ensino superior. Portanto, foi graças a isto que estou
hoje com uma pensão vitalícia do ensino superior,
porque o Eanes vetou. Não acha que lhe devo estar
agradecido? É evidente que sim.

LM - Pois, mas também não podemos esquecer


que o Presidente da República nessa altura já era o
Mário Soares ...

AS - Sim, isso também é verdade ... O lhe, um dia,


quando o João de Deus Pinheiro ainda era Ministro
da Educação, pediu-me que fosse ao Ministério por-
que queria falar comigo ...
Lá fui, e então o João de Deus, entre outras coi-
sas, disse-me:
«-Olhe, chamei-o aqui para lhe transmitir~ um
recado do Primeiro-Ministro. Ele acha que o senhor
merecia, pelas coisas que tem feito pela cultura, um
subsídio permanente da Secretaria de Estado da
Cultura. Vamos, pois, pensar nisso.»

86
Então, eu respondi-lhe:
«- Olhe, senhor ministro, eu estou no ICALP,
e eles dão-me uma bolsa que, para mim, é o bastante
para viver. Claro que o montante desse subsídio per-
manente, provavelmente, até é maior, mas não vale
a pena. O dinheiro que recebo, chega, não preciso
de mais. Gostava, no entanto, de agradecer ao seu
chefe a ideia de se ter lembrado de mim.»
Trataram do encontro e lá fui. Nessa altura, ele
andava na campanha que lhe deu a maioria abso-
luta ...

LM- Refere-se a Cavaco Silva ...

AS- Sim, ao Cavaco Silva, que arranjou um tem-


pinho e me recebeu ... Agradeci-lhe e disse-lhe o
segumte:
«- Um dia, se eu precisar de alguma coisa para
a qual não me chegue o dinheiro, então, nessa altura,
tomarei a liderdade de lhe dizer quanto preciso. Se
o senhor Primeiro-Ministro me disser que não,
paciência, é porque não pode. Fica combinado?»
E ele disse-me, a sorrir:
«- Sim senhor, fica combinado.»
De maneira que, se algum dia, realmente, me fal-
tar dinheiro para alguma «maluqueira», eu acho que
sou perfeitamente capaz de chegar lá e dizer-lhe:
lembra-se daquela nossa conversa? Pois agora o
dinheiro é mesmo preciso. E se ele me disser que
não pode, é porque não pode, ou então foi porque
o Braga de Macedo não quis ...

87
LM - Desculpe-me voltar um pouco atrás, mas
gostava que concluísse o interessante raciocínio de há
pouco sobre a paixão e o amor. Afinal, como se dis-
tinguem?

AS- Costuma dizer-se em relação à paixão, teori-


camente, que é um sentimento mais encarniçado, e que
o amor é uma coisa mais terrena, e por vezes dá -se-
-lhe pouca importância, enquanto que à paixão não.
Repare que no amor o sujeito pode ser activo,
mas a paixão é passiva, vem da palavra passio (pas-
sivo), não é verdade?, exactamente passividade. Ora
o amor é activo, portanto, criador; a paixão já não,
dado que o ser foi dominado por alguma coisa.
Quando se diz: estou apaixonado por isto ou por
aquilo, no fundo também podemos dizer, se quiser-
mos, estou dominado por isto ou por aquilo. A pes-
soa que se apaixona por outra tem tendência a obe-
decer-lhe ...

LM- Mas na generalidade a paixão ndo tem


tendência a perdurar...

AS - Não, às vezes mantém-se, pode continuar ...

LM- Mas não é muito frequente perdurar, pois


não? 11

AS - Depende, meu amigo, embora tenha havido


no mundo muitos exemplos de paixões do incons-
tante.

88
LM - Do inconstante?

AS - Sim, do inconstante. Quantas vezes não


acontece apaixonarmo-nos e logo na semana seguinte
desapaixonarmo-nos.

LM- Mas há quem defenda que quando a pai-


xão acaba, fica o amor...

AS- Às vezes fica, e outras não. Depende ...

LM - Mas pode não ser assim ...

AS - Porque são duas coisas diferentes.

LM - Sim, claro que são duas coisas diferentes,


e daí...

AS- Olhe, há uma porção de coisas passivas que


nós muitas vezes não aceitamos como tal. Por exem-
plo, quando você me diz: a vida custa, portanto, é
mesmo preciso paciência para ela, não é!? Muitas
vezes acontecem contrariedades para as quais é pre-
ciso paciência, é por isso que eu digo que «paciên-
cia» se devia escrever tudo com «s», para mostrar
como ela é passiva. Creio que, para aturar a vida pre-
sente, não é de paciência que precisamos; o que é
preciso é acreditarmos no futuro com entusiasmo ...

LM- O Professor considera-se um homem apai-


xonado?

89
...

AS - Sempre, e espero continuar a sê-lo.

LM- Uma das características importantes do ser


humano é a capacidade de amar, não concorda
. 2
comzgo . ...

AS - Sim, e eu sinto-me cada vez mais apaixo-


nado, mas por coisas que a matemática não prova
que existam, isto é, por religião. Às vezes, as pes-
soas dizem-me assim: mas há os ateus. Não há, por-
que são religiosos também. A matemática não pode
provar que há Deus, nem pode provar que não há,
portanto é uma crença acreditar que há ou que não
há. O cristão acredita que há e o ateu acredita que
não há. Nas coisas importantes da vida, é assim, nós
nunca temos prova matemática. Qual é a prova mate-
mática de que um de nós não está a sonhar que está
com o outro? Não há ... Eu não vejo maneira de se
provar isto pela razão matemática, porque não se
sabe, não se sabe se somos reais, se somos
imaginários.

LM - Dos muitos conceitos que tem proferido,


houve um que retive na memória: «Cada povo é o
que é, mesmo antes de o ser.» Sempre achei esta frase
extraordinária. Quer acrescentar algo ...

AS - Não, mas é evidente que os Portugues~ só


vão ser o que quiserem ser! No fundo, é simples,
depende apenas de encararmos o futuro como pas-
sado ou o passado como futuro ...

90
LM- O senhor foi um homem que viveu os gran-
des acontecimentos deste século ...

AS - Calhou ... Mas deixe-me contar-lhe uma


coisa divertida, de que só ontem, e por acaso, tive
conhecimento: recentemente foi dado o nome de
Silva Leal a uma rua perto do Colégio Infante de
Sagres ...

LM- Ao Silva Leal, o director desse colégio, onde


na altura o senhor dava aulas?

AS - Esse mesmo. Imagine você que a Câmara


Municipal de Lisboa publicou um folheto com a bio-
grafia do homem, todas aquelas coisas com verdade,
e a certa altura lê-se: entre as pessoas que passaram
por aqui está fulano, sicrano ... e até o meu nome
está lá. Só uma coisa não foi referida: é que fui demi-
tido por ele! ...
Obviamente esse parêntesis não está lá, nem podia
ser referido, senão as pessoas iriam logo perguntar:
como é que esse homem, que tem um nome numa
rua, o dem1.tm. ....
~

O Leal era legionário e um dia embirrou comigo.


A partir daí passou a considerar-me um perigoso
comunista. O homem era mesmo um temperamen-
tal!
Recordo-me de um rapaz, que hoje é arquitecto,
não me lembro agora do nome dele, ter feito qualquer
coisa e de o director o ter expulso do colégio. Como
conhecia bem o rapaz, tinha sido meu aluno, resolvi

91
interceder por ele, mas não fui bem sucedido. Tive
então de dizer ao Leal, para o pressionar, que tam-
bém me iria embora caso ele não revisse a sua deci-
são. O rapaz, então, voltou. Tinha sido «desexpulso»!
Apesar de tudo, era um homem interessante. Não
posso esquecer-me que ele me deu a liberdade de
«não ensinar». A aula era uma espécie de anfiteatro,
e eu, logo no princípio do ano (era no 3. 0 ano e nessa
época os alunos tinham de fazer exame), cheguei e
disse:
«- Vamos fazer uma experiência: eu não vou
ensinar-vos. Vocês trazem de casa os livros que tive-
rem disponíveis, ou aqueles que mais gostarem, para
a gente aqui na classe os ler. Então, assim que a aula
principiar, cada um pega num livro e lê à vontade.
Depois, uma vez por semana, vocês fazem um jor-
nalzinho e contam-me coisas ... Eu leio o jornalzi-
nho e, se houver um erro, uma coisa que eu não
goste, eu digo.»
Combinou-se que isto seria feito todos os sába-
dos. E assim foram aprendendo sem eu os «ensinar».
Um belo dia, quando entrei no anfiteatro, notei
que havia grande reboliço.
«- O que é que há para aí?», perguntei.
«- Foi um rato que apareceu aqui.»
«-Deixem lá o rato!»
Bom, e lá ficou tudo sossegado. Mas logo que
tocou a campainha para sair, vejo os meus aLunos
correrem para a frente, para tentarem levantar o
estrado que havia diante da lousa, onde se subia para
se escrever, e começarem às pisadas, a ver se matavam

92
o animal. Aproximei-me, furioso, peguei num e ati-
rei-o contra a porta, que com a força se quebrou, e
ele caiu no corredor. Escusado será dizer que a caça
ao rato parou logo. E eu não disse mais nada, nem
sequer expliquei coisa nenhumaz. aquilo foi o bastante.

LM- Essa sua atitude, digamos que tempera-


mental, foi uma consequência do seu amor pelos ani-
mais?

AS - Não sei se terá sido uma consequência, por-


que o que eu tenho é ódio à estupidez. O matarem
o rato era sobretudo um perfeito acto de estupidez.

LM - Se o Professor Agostinho da Silva tivesse


uma grande quinta, o seu amor aos animais levava-o
a transformá-la num pequeno jardim zoológico?

AS- Acho que não. Olhe, outro dia estive numa


casa em que vive um homem que faz colecção de
pássaros. Tinha tudo quanto há de pássaros, uns
falando, outros não. Acredita que eu, depois de sair,
fiquei com muita pena dos pássaros?

LM- Percebo ... Decerto por estarem presos. Mas


eu quando falei de jardim zoológico não era para os
ter em cativeiro, mas sim em liberdade. Era mais um
parque ou um jardim sem gaiolas ...

AS - Ah, aí sim. Eu tenho uns melros que vêm


aí comer e eu, muitas vezes, passo horas à janela à

93
....

espera que eles apareçam. Agora fazer colecção de


pássaros, não!

LM- O senhor sempre gostou muito de animais ...

AS - Acho que sim. Mas lembro-me de uma vez


ter matado um pardal a tiro.

LM- Engraçado, não o imaginava a fazer uma


coisa dessas!

AS - Pois, mas fiz. Estava a passar umas férias lá


para a Lousã, com uns amigos, que tinham espin-
gardas, e ficavam à espera que os pássaros dessem a
volta pelo rio para atirarem. A mim apeteceu-me
também ver como era e então dei um tiro num.
Chega. Chegou. Até hoje, nunca mais.

LM- Neste final de milénio, assiste-se a um certo


desmoronamento social, pontuado por uma forte
ausência de valores e um grande vazio. Sente tris-
teza por isso estar a acontecer?

AS - Não, porque há melhor exemplo. Os


Romanos, no passado, também devem ter começado
assim: «Você não tem pena de a Grécia ter acabado?»
É claro que o romano deve ter dito isto contentís-
simo. «Nós vamos fazer outra coisa diferentef que
ainda não se fez no mundo: ser prático.»
O Império Romano fez o que podia fazer, e por
intermédio dos Portugueses, que se portaram bem.

94
Mas agora com essa ideia do Aparecido e do Itamar,
e de outros brasileiros que há por lá (não se esqueça
que eles são os descendentes directos dessa gente
que teve de fugir de Portugal), os tais que faziam o
culto do Espírito Santo ... Bem, mas essa gente tem
uma filosofia que consiste no seguinte: nós não temos
de nos importar muito com Deus, temos é de nos
preocupar com a máquina do mundo e estudá-la o
mais possível. A cada passo, cada vez mais nos vamos
maravilhar. Misturam-se dois líquidos e saem os sóli-
dos todos que há nos minerais, e outras coisas assim.
Isso, realmente, é extraordinário. Mas há outra pala-
vra pela qual, por costume antigo, nós podemos dizer
a mesma coisa que extraordinário - é divino.
Os Portugueses pensavam o seguinte: quero lá
saber se o Camões coxeava de um lado ou não, se
roubou ou não roubou as mulheres dos amigos, se
enjoava a bordo ou não enjoava! O que eu quero é
ler os seus sonetos, não é assim, porque o resto tanto
me faz. Se o homem tinha os olhos de uma cor ou de
outra, era indiferente, porque o importante era que
aqueles sonetos eram os dos Lusíadas, não é assim?
Então eu chego a Deus, e a minha ideia é outra.
Quero lá saber se Deus é o que é, e tudo quanto é,
c o que eu imagino que é, e até mesmo tudo quanto
cu nem imagino que ele é. Eu quero ver é isso no
prato, aquilo que eu posso apreciar, não é? Então
tenho de estudar cada vez mais para saber mais coisas.
Alfabetizar hoje uma pessoa não é apenas mos-
tr·ar-lhe como se escreve isto ou aquilo. Curiosamente,
foi uma coisa que só descobri em mim há pouco

95
..
~

tempo. Estava a ler um artigo sobre a Lua e o autor


explicava por que é que há Lua Nova. Eu nunca tinha
pensado naquilo. Eu era analfabeto em Lua Nova.
Por isso, agora, não é preciso alfabetizar as pes-
soas. Agora era apenas preciso vir um homem e dizer
assim: essa coisa do satélite português que foi para o
ar, como é que trabalha? Então eu explico-lhe como
é que é, e ele fica alfabetizado para o importante, que
no fundo é perceber o mundo actual e o mundo em
que vivemos. Escrever, só se escreveu algum tempo
depois de ter acontecido na história, não é verdade?

LM- Pois ... estamos sempre a aprender...

AS -Temos, sobretudo, de aprender duas coisas:


aprender o extraordinário que é o mundo e apren-
der a ser bastante largo por dentro, para o mundo
todo poder entrar.

LM- Continua a acreditar no Quinto Império?

AS - Eu acredito na ideia de Vieira. O padre


António Vieira, quando andava no seminário, con-
trariando os professores, tinha lido nos Lusíadas o
Canto IX, o da «ilha dos Amores», que os profes-
sores proibiam nesse tempo, como aliás ainda era
proibido aos meninos até há pouco. Vieira leu tudo
aquilo e disse: este Camões é de raça! Fez uma por-
ção de coisas interessantes, por exemplo, isto de dizer
que as pessoas deviam seguir o Confúcio, em que
ele estava interessado, porque era jesuíta.

96
Naturalmente que os Jesuítas, interessados por
Confúcio, arranjaram a coisa de tal maneira que os
Chineses, pasmados, ouviam e juravam que eles fala-
vam do L ao-Tsé, do Deus deles, como s~ fosse
Confúcio. Você não nasceu para viver na sociedade,
você nasceu para ser o que é, e isso é que é o impor-
tante. Você pode ser o único que é diferente entre
biliões e biliões de pessoas.
Os próprios Gregos também se sentiram presos
no tempo e no espaço. O Camões, inclusivamente,
ensinou, na ilha dos Amores, que a pessoa só está
presa no tempo e no espaço quando não é criador,
c nós sabemos isso através da nossa própria expe-
riência: quando estamos muito entusiasmados com
uma coisa, dizemos muitas vezes: olha como o tempo
passou!? Já nem sabia que estava aqui com vocês.
Pronto! E porquê? Porque a ilha dos Amores foi
criada pela deusa da criatividade. Foi ela que fez
aquilo e que depois veio falar aos portugueses. Falar
de quê? Falar de Futuro!
Ensinou-lhes que estavam no fim do século XV e
eles saíram dali a saber o século XVI todo. O Camões,
aliás, transmitiu isso com bastante clareza.
Bom, e depois a deusa criadora fez um desenho
do mundo e eles ficaram livres do espaço, o espaço
só existe no mundo. A criatividade deriva do tempo
c do espaço, mas a pobre deusa grega criadora era
uma coisa de nada perante o meu Deus criador (dele,
Vieira). E;não o que eu vou querer no mundo é uma
ilha dos Amores, criada por um deus criador e não
pela coitada da deusa grega. Bem, na ilha dos Amores

97
todos os problemas levantados por Confúcio e por
L ao-Tsé ficaram resolvidos ...
Os portugueses, para chegarem a Calecut, anda-
ram sempre pelo Confúcio. Era a vida em sociedade.
O rei mandava, o almirante comandava, o outro dis-
parava a artilharia, o marinheiro tinha o leme, tudo
aquilo funcionava e estava perfeitamente organizado.
No regresso, eles já seguiram Lao-Tsé. Foram, por-
tanto, ser aquilo para que tinham nascido. Costumo
dizer que há nos Lusíadas uma grande falha: não se
sabe o que fizeram os marinheiros que ouviram a
deusa criadora no regresso de Calecut, que fizeram
eles em Portugal, não é? O Camões desculpou-se:
«Não mais, musa, não mais, que a voz já tenho enrou-
quecida ... » e não sei que mais ... Desculpava-se assim,
dizendo que estava doente, velho e desanimado da
vida e que, portanto, a história acabava ali. Mas nós
não, temos de ter uma resposta. Sabe que ainda nos
continuam muito a perguntar isso. Eu digo sempre
assim: vocês decerto não sabem por que foi? Bom,
foi porque quando os marinheiros chegaram a
Portugal e contaram o que tinham feito na ilha dos
Amores, as sogras ficaram todas contra eles e
criticaram-nos por não terem conseguido realizar
mais nada ...

LM- Bem, mas porquê Quinto Império?



AS - Ele quando chamou Quinto Império não
era para dizer que era depois do Quarto, era sim
para dizer é que não havia um Sexto.

98
Ele foi ao livro do Daniel, na Bíblia (que ele lia
a Bíblia, como eu leio, mas por outros motivos, ele
lia porque era padre), e leu lá que até àquela altura
já tinha havido quatro impérios, mas que todos eles
tinham falhado porque tinham defeitos, sobretudo
pela falta de qualidades do imperador, que não pres- /

tava. Então ele disse: não, o império que eu vou pro-


clamar, o Quinto, é um que tem Deus como impe-
rador, o Deus em que ele acreditava, um Deus bom,
e todas essas histórias. Portanto, não vai haver Sexto.
É Quinto e acabou-se!

LM- O senhor, para além de acreditar, é mesmo


um defensor acérrimo do Quinto Império! ...

AS - É claro que acredito no Quinto Império,


porque senão o acto de viver era inútil. Para quê
viver se não achássemos que o futuro vai trazer-nos
uma solução que cure os problemas das sociedades
de hoje? Eu, por exemplo, estou convencido que a
China, um dia, vai resolver os problemas concretos
com que se debate a sua sociedade. Mas voltando ao
culto popular do Espírito Santo: os Portugueses, com
a «coroação do menino imperador», queriam dizer
sobretudo que o homem é a coisa mais extraordi-
nária que aparece no mundo, é o inesperado feito
pessoa. Por isso celebravam a festa com um ban-
quete gratuito e abriam a cadeia e soltavam toda a
gente que estava lá dentro. Você já imaginou o que
seria se um dia o nosso Mário Soares desse um indulto
alargado? Sim, porque eu acho que ele devia dar tam-

99
...
~

bém indulto aos guardas; nunca dá, é só aos presos.


O guarda está mais preso que os presos, não é assim,
está preso na cadeia (porque tem de estar lá a vigiar),
está preso pelos presos, e só cometeu um crime: nas-
cer pobre. Portanto, toda a gente deveria ser indul-
tada, tal como fazia o menino.

LM- Deixava então de haver guardas, saía tudo ...


isto é, criminosos e guardas em liberdade.

AS - Claro, acabava tudo isso. Acho que os por-


tugueses que pensam no teológico não se preocupam
muito com essa história de Deus, e sobretudo não
discutem teologia, portanto nunca irão entender o
mundo e nunca o vão conceber de modo a ele ser
bastante largo para poder caber em nós.
Nos Açores, a festa, às vezes, era celebrada com
a coroação de um homem pobre, mas o habitual era
ser uma criança, dado que representava o modelo do
homem. Escolhiam um menino que nem à escola
primária ainda tivesse ido. Olhe, o Roberto Carneiro
chegou a ser imperador do Espírito Santo, na Terceira,
aos 4 anos, quando felizmente ainda não tinha sido
educado. Eles só coroavam «imperador do mundo»
aqueles que tinham escapado à educação.
Às vezes, quando vou visitar amigos que têm
crianças, levo bolos ou brinquedos; como é normal,
eles atiram-se logo às prendas. Mas vem a mãe t diz
assim: «Já agradeceu? » Pronto, aí o poético é ime-
diatamente destruído. Muitas vezes não deixamos as
.
cnanças - ...
serem o que sao

100
LM- Pois ... é verdade ... estrangulamos toda a
autenticidade .. .

AS - Às vezes, ouvia contar uma história sobre


umas índias na Bolívia, acho que era na Bolívia, que
não gostavam do feitio da cabeça com que lhes nas-
ciam os filhos. Então, punham-lhes umas talas, para
eles terem uma cabeça «apresentável» em sociedade,
e só quando a cabeça se aproximava do fotmato de
um cubo, então é que as mães bolivianas ficavam
satisfeitas.
Hoje, as pessoas dizem: oh!, felizmente acabaram
essas brutalidades, acabou essa porcaria toda! Mas
na verdade não acabou, porque, hoje, quando uma
pessoa faz um curso e consegue alcançar o douto-
ramento, em geral sai de lá com a cabeça cúbica.

LM- Ó senhor Professor, às vezes sai é quase sem


cabeça!

AS - Pois, ou isso ... Portanto, não vale a pena


estarmos contentes porque esse hábito das bolivia-
nas desapareceu. De certeza ficaram outros seme-
lhantes ou piores. Acho que Portugal tem de rea-
cordar e descobrir uma maneira diferente para se dar
ao mundo e a si mesmo. Cada vez acho mais extraor-
dinário o acto de nascer, é uma coisa incrível, não
acha? Não precisamos de pensar tanto na morte como
fazem os Chineses. Parece que eles durante a vida
inteira não fazem outra coisa senão pensar nela.
É como que um viver já na morte.
I
101
......

Naturalmente que o mundo para eles é o cami-


nho. Aliás, tanto o Confúcio como o Lao-Tsé tam-
bém têm a mania de chamar àquilo caminho.

LM- Deixemos os Chineses e falemos um pouco


mais de si. Em relação à sua tese de doutoramento,
creio que a temática que versa tem a ver com os
Gregos e também com a própria noção de tempo e
de espaço ...

AS - Sobretudo tempo.

LM- Chegou alguma vez a ser publicada?

AS- Sim, está publicada, porque era mesmo obri-


gatório fazê-lo. Foi uma edição de autor.

LM- Como é que se pode consultar essa tese?


O acesso a ela é fácil?

AS - Olhe, não sei. Eu não tenho comigo


nenhum exemplar. Aliás, não tenho nenhum livro
meu. Mas estou convencido que na Faculdade, onde
era obrigatório apresentar meia dúzia de exempla-
res, creio que encontrará pelo menos um. Sabe,
nunca mais pensei naquilo. Fiz o doutoramento e
acabou-se, está feito. Para quê continuar a pensar
nisso. •

LM- Por que é que dá tão pouca importância a


essa tese?

102
AS - Bem, para lhe ser franco, hoje já nem me
lembro muito bem dela. Era capaz de ser um bocado
má. Mas também não tenho nenhuma curiosidade
cm a ler. Lembro-me, muito vagamente, que defen-
dia que os Gregos não tiveram a noção de tempo,
nem queriam, porque eles, no fundo, pretendiam era
estar livres do tempo e do espaço. Aliás, foi isso que
o padre António Vieira viu.

LM- Há pouco falámos de crianças. O que é que


pensa delas?

AS- Acho-lhes muita graça ...

LM - Acha-lhes graça ou gosta mesmo?

AS - Não sei. Porque o que eu acho graça é ao


universo extraordinário que elas inventam, sobretudo
antes de irem à escola. Depois, as únicas coisas que
têm engraçadas é quando realmente fogem da peda-
gogia. Porque só visto assim é que elas são extraor-
dinárias. Quando se procura nelas a poesia, e não
outra coisa qualquer, são realmente uma gente extraor-
dinária. Já viu o que elas inventam, as perguntas que
fazem, o modo como atrapalham toda a gente grande ...

LM- Isso é verdade ...

AS - No fundo, é fazendo pergunta. que elas vão


descobrir muitas coisas. Vou contar-lhe uma histó-
ria passada com um amigo meu, polaco, o Henryk

103
.....

Siewierski, que veio a Portugal ensinar polaco na


Faculdade de Letras. Ele tinha um filho ainda pequeno,
quando saíram lá da Polónia, e era anticomunista,
todo do Walesa. E o menino aí estava, na pré-pri-
mária. O meu amigo tinha sido noviço num mosteiro
polaco. Era um homem com tão bom carácter que a
certa altura achou que não teria nunca a coragem, a
condição suficiente para ser monge, e saiu. Foi só
noviço, mas sabia muito de teologia. E um dia o
menino chegou a casa e perguntou-lhe: «Pai, por que
é que Deus não tem mulher?» E o pai nada. Ficou
calado, simplesmente porque não soube responder.

LM- Como é o seu dia a dia? Sei que se levanta


às cinco da manhã. E depois, Professor, como é que
são as suas 24 horas?

AS - De manhã, a primeira coisa é tratar dos


gatos: lavar as louças deles, ter tudo arrumado e dar-
-lhes comida. Eles já sabem como é e aceitam tudo,
sabem os horários, sabem aquela coisa toda ...

LM- Ainda tem gatos?

AS- Sim.

LM- Como se chamam os bichos?



AS - Assim que algum deles está pronto para pas-
sear, basta eu dizer-lhes: terraço. E eles já sabem, vão logo
a correr à minha frente para o terraço, é só abrir a porta.

104
LM- Mas como é que se chamam?

AS - Não têm nome, nunca me disseram ... mas


acho que era indecente dar-lhes um nome, de cer-
teza que eles também não aceitavam. Mas se eu pro-
nunciar as palavras «gato» e «gatinha», eles perce-
bem logo ...

LM- Mas, então, faz a comida e lava a louça


deles. E depois... \

AS - Só então, depois disso tudo, que acaba lá


pelas sete, é que vou fazer aquilo que não teria paciên-
cia para fazer durante o resto do dia: umas cartas
que é preciso pôr em ordem, traduzir o Virgílio (olhe,
aqueles textos ali foram todos traduzidos de manhã),
o Horácio também, e não tenho muito mais paciên-
cia para outras coisas. Depois leio um bocado o jor-
nal, às vezes o N ews Week, para ter notícias do que
vai pelo estrangeiro.

LM - E dos portugueses, que jornais lê normal-


mente?

AS - Leio o Calvin, no Público. Aliás, é sempre


a primeira leitura que faço é a do Calvin e do tigre
do Calvin. Acho que, no jornal, a coisa que vale mais
é aquilo que está ali; só depois é que vou ver as notí-
cias. Considero aquela invenção do Calvin e do tigre
uma coisa extraordinária. Bom, e às vezes intercalo
com outas coisas. Olhe, agora, por exemplo, estou

105
....

a ler umas coisas sobre África. Mas já não estou


muito para ler, estou mais para estar quieto e deixar
a cabeça pensar o que ela queira. Não quero andar
atrás de nenhum problema.

LM - E depois faz a comida ...

AS- Não, depois servem-me a comida.

LM- Mas não gosta de cozinhar?

AS- Às vezes, se for preciso. De manhã, geral-


mente, a primeira refeição sou eu que a faço. Real-
mente, não sei cozinhar, nem nunca aprendi. Essa
agora da cozinha fez-me lembrar uma pergunta que
uma vez me fizeram:
« - O senhor, com esse entusiasmo todo pela
Marinha, deve saber nadar bem?»
« - Não, nunca aprendi.»
« - Então o senhor quer ir para a Marinha e ainda
não aprendeu a nadar?»
« - Não, porque um marinheiro nunca abandona
o navio. E mesmo que às vezes tenha vontade de o
fazer, se não souber nadar, o melhor é não o aban-
donar mesmo.»

LM- Mas voltando ainda à cozinha. O Professor,


pelo menos, é capaz de fazer uns ovos, não? •

AS - Ah, até aí ainda vou, e até, se fosse pre-


ciso, era capaz de os comer crus. É verdade, sou

106
homem para isso. Gosto muito de pão, se não
houver mais nada para comer, pão e café chegam.
Claro que se houver um pouco de fruta, tanto
melhor.

LM - E de sopa, não gosta?

AS - Sim, de sopa também gosto muito.

LM- Faz alguma dieta?

AS - Não faço dieta nenhuma, a minha dieta é


comer do que gosto, embora evite comer coisas que
me obriguem a mastigar muito.

LM- E uma pinguita, não bebe?

AS- Água.

LM- Só água?

AS - Quase sempre água.

LM- Então e vinho, nunca?

AS - Só quando há festa; então aí é que bebo um


copo de vinho, ou de cachaça, ou mesmo até de
~guardente.

LM- Isso quer dizer que para si a festa é uma


coisa bonita?

107
AS - Sim. A festa para mim é sempre uma cele-
bração, uma coisa para a qual se tem de estar dis-
ponível e participante.

LM- Voltando aos ritos do dia a dia: o senhor,


depois de comer alguma coisa, vai fazer a tal sesta-
zinha, entre as duas e as quatro, e só depois é que
recomeça a ler?

AS - Ou faço outra coisa que me apeteça fazer,


porque às vezes, quando não me apetece fazer nada,
também me sento aí numa cadeira e pronto, fico
asstm.

LM- Actualmente, o senhor dá menos passeios e


já sai menos de casa ...

AS - Agora só saio às vezes. Só para ir ali ao


Príncipe Real, e quase sempre de corrida.

LM- E porquê de corrida?

AS - Gosto de seguir aquela filosofia popular que


diz: se estás embaraçado, anda depressa!

LM- Gosta de ver televisão?

AS - Pouco, porque adormeço muito. Se ftxo


o ecrã durante muito tempo, fico a dormir, excepto
quando há alguma coisa interessante. Vejo o
Telejornal, porque gosto de ter notícias de
108
África. Durante muito tempo os jornais não
publicavam nada, saíam pouquíssimas notícias
sobre Angola. Então, costumava ligar a televisão
para ouvir o Telejornal, à espera de ouvir essas
notícias.

LM- Lê algum semanário em especial?

AS - Não. É muito raro ler semanários.

LM- Portanto, isso quer dizer que, no fundo, o


seu jornal preferido é mesmo o Público?

AS - É o Público, mas sobretudo é por causa do


Calvin.

LM- Ultimamente, o Professor afastou-se um


bocado da vida pública, tem-se isolado muito.
Porquê?

AS - Sobretudo por razões de saúde, que têm


a ver com uma operação que fiz há três anos. Mas
não só, porque depois também comecei a achar
menos interessante sair. É claro que se eu conti-
nuasse a sair como fazia, passava muito tempo na
rua, à procura deste e daquele, e acabava por nunca
parar em casa. Assim, como este cavalheiro não
soube impor uma disciplina a si próprio, teve de
ser a disciplina a impor-se a ele. Acho que é a vida
que tem de fazer as ·coisas, não somos nós; por-
tanto, ela que faça.
109

LM - H ouve uma altura, há dois ou três anos


atrás, em que o Professor apareceu muito na televi-
são, numa série de programas, aliás bem interessan-
tes, que levaram o seu pensamento a muitos portu-
gueses ...

AS- Aconteceu quase por acaso, não fiz nada


por isso. Um dia, veio aqui a minha casa o Joaquim
Furtado, acompanhado por um director da TV, e
perguntaram-me se eu estava disposto a falar numa
série de programas na televisão que eles tinham
pensado produzir, assim um pouco no estilo
daquelas suas conversas no Café Martinho. Disse-
lhes que aceitava, mas impondo duas condições:
primeiro, que me fizessem perguntas, e segundo,
não queria saber quem é que ia lá aparecer naquele
dia para falar comigo. Naturalmente que também
não queria conhecer as perguntas que tinham para
me fazer.
Hoje gosto mais de ser apanhado desprevenido e
n~o sentir as coisas muito preparadas.

LM- Sim, realmente parece-me mais interessante


deixar as coisas um pouco ao sabor do improviso, sem
excessivas preocupações. No fundo, é permitir que a
autenticidade venha ao de cima! ...

AS- Justamente, o que tiver de vir, vem meshlo.


Curiosamente, depois de os programas terem aca-
bado, nunca mais ninguém me disse mais nada nem
me convidaram para outras coisas.
110
LM- Mas se neste momento lhe fizessem um novo
convite, aceitava?

AS - Pode ser que sim ou pode ser que não. Talvez


até não me apeteça mais falar na televisão ...

LM- Muitas vezes parece-me acertado dizer não.


Aliás, há sempre também que ter em conta um natu-
ral desgaste de imagem.
I

AS - Sim, é um facto.
Hoje, gosto muito mais que as coisas sejam fei-
tas com perguntas objectivas, no género daquelas
que você colocava naquele seu livro de entrevistas
ou como algumas conversas que têm sido publica-
das no Público. Às vezes digo não, porque já não
tenho paciência para grandes discursos ...

LM- Professor Agostinho da Silva, estamos pra-


ticamente a chegar ao fim desta nossa conversa e con-
fesso que saio daqui contagiado pelo seu optimismo
e pela sua alegria de viver. Há coisas na vida boni-
tas e difíceis de esquecer. Este encontro, para mim,
foi uma dessas coisas ...

AS - Pois, mas essas coisas bonitas não nos devem


impedir de também vermos as desgraças que aconte-
cem às pessoas. De vez em quando o infortúnio abate-
-se sobre um desgraçado qualquer, que não tem outro
remédio senão aguentar o sofrimento. Estou sempre
com eles ... Pena é que o mundo não seja óptimo.
111

LM - Numa era de tanto individualismo, essa


sua posição de solidariedade para com os desafortu-
nados é bonita ...

AS - Meu amigo, é a velha história da lógica


metida na vida. Há que subir as escadas para chegar
ao terraço.

LM- Vou-lhe fazer ainda mais duas ou três per-


guntas. Será que, às vezes, o senhor não se sente
um homem solitário?

AS -Não, não me sinto. Como é que eu


posso e~tar sozinho se no fun~o sou um ~ornem
que se Interessa por tanta coisa que existe no
mundo!

LM- Mas não se sente um pouco desacompa-


nhado?

AS - Não. Olhe, vou repetir o que já algumas


vezes tenho dito: eu sinto-me sempre acompanhado.
Mais que não fosse, pelo menos, tinha o Sol e a
chuva ...

LM- São realmente boas companhias, mas o que


pensa da solidão?

AS - Acredito que não deve ser fácil as pessoas
estarem desacompanhadas, sentirem-se sozinhas,
não comunicarem com ninguém. Daí, companhia,

112
não é. Companhia vem de «comer o pão juntamente
com outro».

LM - Pois, no fundo as pessoas sentem-se por


vezes tristes e sozinhas porque não têm com quem
partilhar as coisas ...

AS - Ora é isso mesmo ... Partilhar o que há,


comer com o outro. Mas há ainda outra coisa, que
é, digamos, outra espécie de retiro: «o retiro da
existência». É sempre bom lembrarmo-nos que
«camarada» é o que dorme no mesmo aposento em
que dormem os outros; e há ainda a terceira liga-
ção, que é «colega», «aquele que tem a mesma lei».
Portanto, se podemos, escolhemos uma destas três
«solidões».

LM- Qual é a que o senhor escolhia?

AS - Eu não escolhia nenhuma, só que elas às


vezes parece que combinaram e aparecem todas ao
mesmo tempo!

LM- Como encara a morte?

AS - Com serenidade ... Se não a encararmos


como um fantasma, se não a esperarmos com a
entristecida resignação dos Gregos, se a virmos ape-
nas como uma forma entre as formas, então ela é
natural. Mas eu nunca morri, portanto não sei o
que isso é ...

113
....

::-
:~ ::-

A conversa tinha chegado ao fim. No nosso reló-


gio eram 14.30 horas.
O tempo parecia ter passado depressa de mais.
Despedimo-nos de Agostinho da Silva com a pro-
messa de um breve encontro, que nunca se viria a
realizar. Uma semana mais tarde, o Professor era
hospitalizado.
Embora tivesse recuperado parcialmente, o seu
fim parecia já inevitável.
Meses depois, com muitas crónicas, a sua morte
era anunciada, num domingo de Páscoa do ano da
graça de 1994.

114
ÚLTIMA PÁGINA

É verdade que as palavras são como as cerejas.


Deslocam-se, flutuam, voam como num autêntico
bailado. Seduzem!
Uma conversa com alguém de que gostamos é
mais solta, é mais espontânea, é mais coração. No
fundo é um pouco como na paixão, sentimo-nos
mais pródigos em associar ideias e sentimentos.
É assim mesmo. Quando quebramos barreiras somos
menos defensivos e mais autênticos. É, pois, neste
contexto que surge esta obra, a qual pretende ser,
realmente, o testemunho de uma conversa informal.
Como é sabido, Agostinho da Silva era também
um exímio conversador e um verdadeiro contador
de histórias. Talvez, por isso, reunir em livro as pala-
vras ditas durante «A Última Conversa», não foi
tarefa fácil; ao contrário, tornou-se numa espécie de
missão árdua e espinhosa, porque continha um calei-
doscópio imbricado de ideias, pensamentõ's, par~­
bolas e profecias difíceis de sintetizar. Apesar' de
tudo, constituiu um desafio fas.cin~nte ·e inesquecí-
vel. Naturalmente que a redacção final do texto exi-

115
. ,.
.

giu alguns cortes e a reconstituição de certas passa-


gens menos perceptíveis. Evitámos estruturar exces-
sivamente a conversa, procurando manter, sempre
que possível, o lado coloquial, tão característico do
Professor. A sequência em que decorreu o diálogo,
quase sempre disperso, não foi praticamente alte-
rada, tendo inclusive a própria ordem das pergun-
tas sido mantida.
Para que este livro pudesse sair em Maio de 1995,
precisamente quando passam treze meses após a
morte de Agostinho da Silva, foram necessárias
alguma azáfama, correrias e labuta. Mas a causa era
nobre e justificava bem os serões.
Agora que esta bela aventura chega ao fim, fica a
homenagem, e sobretudo a satisfação, de levar a
público uma conversa inédita de Agostinho da Silva.
Naturalmente que se impõe registar nestas pági-
nas uma palavra de gratidão àqueles que de algum
modo apoiaram este projecto: à Lourdes Duarte, à
Isabel L age, à Clementina Campos, ao Joaquim Braga,
ao José Alberto Azevedo e ao Armando Carita o
meu sincero obrigado.
Um agradecimento ainda à empresa Emílio de
Azevedo Campos, L,da, pelo precioso e imprescin-
dível apoio técnico na impressão fotovideográfica
das imagens que ilustram este livro.
Finalmente, o reconhecimento ao Professor Eduardo
Lourenço, pelo valioso e generoso contributo •que
nos deu. Na verdade, ·o que poderia ser um simples
prefácio transformou-se num notável ensaio que
muito contribui para construírmos um retrato mais

116
fidedigno de Agostinho da Silova. Obviamente que
não podíamos esquecer aqui duas pessoas também
importantes: Maria Violante, que com muita ternura
e amizade acompanhou os últimos anos do Professor,
e a irmã de Agostinho da Silva, Maria Cecília. Ambas
prontamente se disponibilizaram a fornecer-nos
alguns dados biográficos, indispensáveis à feitura
desta obra.
A todos os já citados, mais uma vez, aqui fica a
minha profunda gratidão.

117
4


AGOSTINHO DA SILVA

(George Agostinho Baptista da Silva)

1906- Nasce no Porto, freguesia da Campanhã, a 13 de Fevereiro.


1907 - Parte com os pais para Barca de Alva, onde passa a infância.
1909- Nasce a irmã Estefânia Estrela, a 27 de Janeiro.
1910- Nasce a irmã Maria Cecília, a 5 de Janeiro. Estefânia Estrela
morre com apenas 18 meses.
1911 - Aprende a ler aos 4 anos com sua mãe, Georgina do Carmo
Baptista Rodrigues da Silva.
1915 - Regressa ao Porto para fazer o exame da 4.a classe. O pai
matricula-o na Escola Industrial Mouzinho da Silveira, a fim
de seguir uma carreira técnico-profissional.
1917 - Insucesso escolar e falta de aproveitamento aconselham uma
mudança de área. Muda para o Liceu Rodrigues de Freitas.
1919- Com o esmagamento da «monarquia do Norte», o pai,
Francisco José Agostinho da Silva, é preso e demitido da
função pública.
1924- Conclui o curso geral dos liceus com a classificação de 20 valo-
res e ingressa na Faculdade de Letras do Porto.
1928 - Licencia-se em Filologia Clássica com 20 valores, defen-
dendo uma tese sobre o poeta latino Catulo. Insurge-se con-
tra a extinção da Faculdade de Letras do Porto e com um
decreto que impõe a separação dos sexos nas escolas em
todos os locais onde existisse mais de uma escola.
1929 - Inicia a sua colaboração na Seara Nova. Publica, a suas expen-
sas, Breve Ensaio sobre Pérsio.
1930 - Parte para Lisboa, onde frequenta a Escola Normal Superior.
Contrai matrimónio com Berta David.
1931 -A Universidade do Porto confere-lhe o doutoramento com
distinção e a sua tese, «Ü Sentido Histórico das Civilizações

121
....

Clássicas», obtém alguma repercussão no meio académico.


Breve passagem como professor provisório pelo Liceu
Alexandre Herculano.
1932 - Declina um convite para leccionar em Angra do Heroísmo.
Funda, a convite da Junta Nacional de Educação, o Centro
de Estudos Filológicos da Universidade Clássica de
Lisboa. Parte para Paris, com uma bolsa, e faz uma pós-
-graduação na Sorbonne com uma tese sobre Mon-
taigne. Paralelamente, frequenta o College de France, onde
aprofunda os seus conhecimentos em história e literatura
francesa. Na capital francesa convive com exilados polí-
ticos famosos: António Sérgio, Jaime Cortesão e Jacinto
Simões.
1933 - Regressa a Portugal. Concorre para professor efectivo dos
liceus e é aprovado, classificando-se em 1. 0 lugar, sendo colo-
cado no Liceu José Estevão, em Aveiro.
1935 - Candidata-se, através de concurso público, para leccio-
nar em Moçambique e é aprovado. Não assina a declara-
ção de fidelidade ao Estado Novo que os normativos que
regem a Lei Cabral impõem e é demitido do ensino
público.
1936 - Desempregado e desencantado com o clima político que se
vive em Portugal, aceita um convite de Joaquim de Carvalho
e fixa-se em Madrid como bolseiro do Ministério das
Relações Exteriores, onde frequenta o Centro de Estudos
Históricos de Madrid, investigando sobre o misticismo
espanhol.
1937- Regressa a Lisboa e é convidado a leccionar no ensino secun-
dário particular. O Colégio Infante de Sagres é um dos poucos
locais onde consegue trabalho. Funda o Núcleo Pedagógico
Antero de Quental. Recebe inúmeras solicitações de todo o
país para proferir conferências.
1938 - Nasce-lhe o primeiro filho, Pedro Manuel.
1939 - Inicia a publicação dos cadernos «Iniciação>>, a que se segui-
rão, mais tarde, as séries «Antologia>> e «Volta ao Mundo>>.
1940- Nasce a filha Maria Gabriela.
1943 - A edição de O Cristianismo, o endereçamento de uma ca~ta
ao cardeal Cerejeira e a realização de algumas palestras em
locais conotados com a esquerda levam à sua prisão pela
polícia política de Salazar. Detido no Aljube, é ordenada a
confiscação da sua biblioteca. É libertado, por pressão de

122
um grupo de intelectuais, umas seman~s depois. Triste e des-
motivado, suspende a publicação das séries dos cadernos que
dirigia.
1944 - O clima repressivo que se vive em Portugal e problemas da
sua vida familiar levam-no a emigrar para o Brasil.
1945 - Inicia um novo percurso afectivo com Judite Cortesão, filha
do historiador Jaime Cortesão.
1946- Nasce a filha Carlota, fruto desta última ligação 1• Viaja para
o Uruguai, onde lecciona História e Filosofia nos Colégios
Libres.
1947 - Visita a Argentina e aceita o convite da Escola de Estudos
Superiores de Buenos Aires para organizar cursos de Peda-
gogia Moderna.
1948 - Regressa ao Brasil.
1949 - Seu pai morre em Portugal, após prolongada doença.
1953 - Trabalha no Instituto de Biologia Oswaldo Cruz.
1954- Integra o grupo de professores que fundam a Universidade
Federal de Paraíba.
1955 - É nomeado director dos Serviços Pedagógicos da Exposição
Histórica do IV Centenário da Cidade de S. Paulo. Desloca-
-se a Portugal para visitar os filhos do primeiro casamento
e passa, quase clandestinamente, por óbvias razões políticas,
uma curta temporada de férias no Baleai.
1956 - É empossado como director de Cultura do Estado de
Santa Catarina. Funda a Universidade Federal de Santa Catarina.
1957- Sua mãe morre em Lourenço Marques, Moçambique.
1958 - Naturaliza-se cidadão brasileiro. Integra a Comissão Insta-
ladora da Universidade de Brasília.
1959 - Funda o Centro de Estudos Africanos e Orientais da
Universidade Federal da Baía.
1961 - É nomeado assessor de política cultural externa do Presidente
da República brasileiro Jânio Quadros.
1962 - Desloca-se a Portugal a fim de discutir os estatutos do Centro
de Estudos Portugueses da Baía, mas é preso logo à chegada
ao aeroporto.
1963 - Visita, graças a uma bolsa de estudos da UNESCO, o Japão,
Macau e Timor.

1
Em anos seguintes, cujas datas não foi possível apurar, nascem-lhe mais
cinco filhos: Jorge, Leonor, Regina, Marcus e Bruno.

123

«

1964- Funda no Japão um Centro de Estudos Luso-Brasileiros.


1965- Publica em Lisboa, na revista O Tempo e o Modo, o ensaio
«Aqui falta saber, engenho e arte>>.
1968 -: É eleito membro da Academia Internacional de Cultura
Portuguesa.
1969 - É autorizado a regressar a Portugal com um visto provisó-
rio de um ano.
1972 - Inicia uma colaboração regular na revista Vida Mundial.
1975 -Já reinstalado em Portugal, visita a Galiza.
1976 - Requer a aposentação como professor titular das universi-
dades federais brasileiras.
1983- É nomeado director do Centro de Estudos Latino-Ame-
ricanos do Instituto de Relações Internacionais da Universi-
dade Técnica de Lisboa.
1984- Desempenha funções como consultor do ICALP.
1985 - É nomeado delegado no nosso país da Universidade de Santa
Catarina.
1987 - É condecorado pelo Presidente da República português Mário
Soares, por serviços prestados à cultura nacional, com a Grã-
-Cruz da Ordem de Santiago da Espada. Visita Olivença
com um grupo de amigos, onde é inagurado um centro cul-
tural com o seu nome.
1988 - Desloca-se a Moçambique. É lançado no Mosteiro dos Jeróni-
mos, com alguma pompa e circunstância, com a presença do
Presidente da República Mário Soares, o livro Dispersos.
É eleito membro efectivo da Academia de Marinha a 11 de
Maio.
1989 - Participa nas conferências dos Estados Gerais, no Museu de
Arte Antiga.
1990 - Em Março, protagoniza na RTP uma série de treze episó-
dios com a designação «Conversas Vadias>>.
1991 - Gozando de aparente boa saúde, apesar de já contar 84 anos,
é operado de urgência a uma peritonite no Hospital de
S. Francisco Xavier.
1992 - Readquire a cidadania portuguesa a 12 de Março.
1993 - Um inesperado acidente vascular de certa gravidade, a 17 de
Outubro, impõe-lhe internamento hospitalar. Semanas fnais
tarde, já parcialmente recuperado, regressa a casa.
1994- Um agravamento do seu estado de saúde, a que sobrevém
uma pneumonia, provoca-lhe a morte, que ocorre a 3 de
Abril, domingo de P~scoa.

124
OBRAS MAIS CONHECIDAS DE AGOSTINHO DA SILVA

1929 - Sentido Histórico das Civilizações Clássicas


1930 - A Religião Grega
1939 - O Método Montessori
1941 - Sanderson e a Escola de O undle
1944 - Conversação com Diotima
1945 - Diário de Alcestes
Glossas
1946- Sete Cartas a Um Jovem Filósofo
1955 - Um Fernando Pessoa
1957 - Educação e Cultura do Brasil
1958 - Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa
1960 - As Aproximações
1970 - Educação de Portugal
1975 - Proposição, Aditamento Um
1988 - Dispersos
1989 - Considerações e Outros Textos
Uns Poemas de Agostinho
1990 - Quadras Inéditas
1994- Ir à Índia sem Abandonar Portugal
Vida Conversável

125
.....


ÍNDICE

N()TULA ............. .. ... ............................................. 7


I'I{EFÁCIO ............................................................... 9
A ULTIMA CONVERSA .. .. .. ....................................... 21
!'JI .'I'IMA PÁGINA.................................................. . ... 115
I'I'INERÁRIO CRONOLÓGICO.. .. ................................ 119
I >liRAS MAIS CONHECIDAS DE AGOSTINHO DA SILVA 125
stamos a anos-luz daquela imagem-mito
E que não só nos últimos anos, mas penso,
sempre, se colocou ao homem e à figura de
Agostinho da Silva, como exemplo de exis-
tência clara, sem sombra de sombra, vida
activamente inserida na sua t«pregação pro-
fética» sem hiato com a sua vida. Não foi um
vagabundo irónico como Sócrates, nem um
provocador cénico, mais em actos do que em
palavras, como Diógenes, mas de um e outro
exemplificou, aparentemente sem suscitar
nem fundado espanto, nem desconfiança,
junto daqueles que, incapazes de medir o
alcance da sua palavra intrisecamente subver-
siva, mais inclinados estavam - ou estão - a
compará-lo a uma figura como S. Francisco
de Assis.
Quando um dia se ler a sério Agostinho da
Silva - que é um original escritor e um pen-
sador perturbante -, terá inevitavelmente
de se evocar o revivalismo franciscanista que
tantos ecos teve na cultura portuguesa desde
finais do século XIX. Agostinho da Silva inse-
re-se nessa tradição conferindo-lhe uma di-
mensão e uma tonalidade singulares.

EDUARDO LOURENÇO

ISBN 972-46-0841-7

111111111111111111111111111111
9 789724 608419

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