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AGOSTINHO
DA SILVA
Entrevista de Luís Machado
Prefácio de Eduardo Lourenço
notícias
editorial
ISBN 972-46-0841-7
© Luís Machado
Direitos reservados por
Editorial Notícias
Rua da Cruz da Carreira, 4 B 1150 Lisboa
Capa:
Fernando Felgueiras
com uma fotografia de Luís Machado
Fotocomposição e fotolito:
Textype- Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento:
Rolo & Filhos- Artes Gráficas, Lda.
A ÚLTIMA CONVERSA
AGOSTINHO DA SILVA
Entrevista de LUÍS MACHADO
Prefácio
Eduardo Lourenço
6.• edição
rrell9!ícias
Obras publicadas nesta colecção:
'
~
----
NÓTULA
(T~ J..v4~~
8
PREFÁCIO
(
UM HOMEM EXTRA-ORDINÁRIO
11
É uma roupagem que lhe assenta bem e nem se vê
outra que melhor defina o estilo de existência que
nele se encarnou ou ele encarnou. Acontece ape-
nas que a imagem do «místico» arrasta consigo um
certo número de referências, evoca uma atmosfera
eclesial e sobretudo, entre nós, uma tradição, por
assim dizer, homologada oficialmente por uma auto-
ridade institucional ou institucionalizada. E como
era visível, nada estava mais distante de Agostinho
da Silva do que esta inscrição do autor de
Aproximações ao círculo da mística cristã tal como
vulgamente se entende e é exemplificada desde
S. João da Cruz a Santa Teresa, ou mesmo pelo tão
evocado S. Francisco de Assis. Claro que todos os
«místicos», ou aquilo que assim chamam aqueles
que o não são, mesmo os mais teologicamente insus-
peitos, relevam do excepcional e da excepção. A esse
título, Agostinho da Silva não destoaria na ilus-
tre e canónica companhia. Digamos que pode
figurar na mais rara espécie de homens que são os
«místicos» se lhe acrescentarmos uma dose suple-
mentar de «extravagância» ou, se se prefere, de
excentricidade.
Não em meros termos de comportamento exte-
rior, de total desprezo pelas regras, costumes ou ritos
mundanos, que fazem parte do folclore da mais ine-
quívoca santidade, mas da íntima e irredutível ex-cen-
tricidade. Agostinho da Silva não tendeu, graças a
qualquer tipo de ascese, para uma experiência ine-
fável do que se convenciona designar por Absoluto,
transcendência mais ou menos heterogénia à essên-
12
cia humana. Agostinho da Silva, se foi «místico»,
foi-o de um misticimo «sulfuroso» pela natureza
naturalista da sua visão do mundo e da vida. Não se
instalou na excepção, pregou e viveu no combate à
ideia de excepção, em todos os domínios, numa espé-
cie de anarquismo profético e radioso, no fundo mais
próximo de Rousseau que de qualquer figura clás-
sica da família «mística».
O misticismo de Agostinho da Silva - se assim
se lhe pode chamar - é um misticimo por defeito,
por intencional desconsideração daquilo que, em
todas as ordens, desde a do pensamento, da ima-
ginação, da vontade, mas também da acção, se apre-
senta como exemplar. Foi, com uma naturalidade
quase provocante, um marginal, mas não da mar-
ginalidade maldita, sacrificial, infeliz, que tanto
agrada aos «mártires» da liberdade, da criação ou
da acção. Se não fosse de essência provocatória,
quase demoníaca, o seu utopismo, o seu optimismo
voluntarista, a sua aparente ou realíssima recusa
do trágico, seriam quase intoleráveis. É possível
imaginar que neste grau, a sua aposta, diametral-
mente antagónica da de Pascal, releva, em qualquer
desvão, de não sei que paradoxal ressentimento.
Há em Agostinho da Silva um tão estremado gosto
pela «estaca zero» do humano, uma tão intensa
denegação de tudo o que signifique ou pretenda,
a que título for, ser tido como «distinto», como
«valioso» no sentido de se arrogar assim como
s'igno de qualidade ou mérito, que só em termos
de ressentimento parecem explicáveis. E, todavia,
13
precisamente, a imagem que ele deu a quem o
conheceu ou teve ocasião de o ver quando, cândida
e desarmadamente, se ofereceu ao juízo público,
parece incompatível com esse reflexo, caracterís-
tico de alguém secretamente ferido, como precisa-
mente, mas também dando impressão oposta, o foi
Jean Jacques Rousseau.
Estamos a anos-luz daquela imagem-mito que
não só nos últimos anos, mas penso, sempre, se colou
ao homem e à figura de Agostinho da Silva, como
exemplo de existência clara, sem sombra de sombra,
vida activamente inserida na sua «pregação profé-
tica» sem hiato com a sua vida. Não foi um vaga-
bundo irónico como Sócrates, nem um provocador
cénico, mais em actos do que em palavras, como
Diógenes, mas de um e outro exemplificou, aparen-
temente sem suscitar nem fundado espanto, nem des-
confiança, junto daqueles que, incapazes de medir o
alcance da sua palavra intrinsecamente subversiva,
mais inclinados estavam - ou estão - a compará -lo
a uma figura como S. Francisco de Assis.
Quando um dia se ler a sério Agostinho da Silva
- que é um original escritor e um pensador per-
turbante - , terá inevitavelmente que se evocar o
revivalismo franciscanista que tantos ecos teve na
cultura portuguesa desde os finais do século XIX.
Agostinho da Silva insere-se nessa tradição confe-
rindo-lhe uma dimensão e uma tonalidade singulares.
Para os franciscanistas da geração de 70 e das
gerações seguintes, desde Guerra Junqueiro a Eça
de Queirós até Teixeira de Pascoaes e Cortesão, o
14
culto e mesmo a mitologia de S. Francisco foi uma
espécie de hipercristianismo de gente que cortara
com o catolicismo tradicional e, sobretudo, com um
clericalismo omnipresente e retrógado, ainda muito
sensível na sociedade portuguesa. Esse aspecto é o
que avulta no autor da Velhice do Padre Eterno, mas
não é o mais importante. A sua forma acabada e
aquela onde a «filosofia» do cristianismo, segundo
Francisco de Assis, se exprime de maneira convin-
cente, encontra-se nos Simples. S. Francisco é para
essas gerações o S. Paulo da nova igreja dos
«Simples», o santo que concilia o culto da Santa
Pobreza com o amor e a efusão da Natureza. A com-
ponente e a função social deste franciscanismo onde
se conciliava simbolicamente o revolucionarismo
utópico dos «Jacques» tão caros a Eça, com as aspi-
rações místicas de um cristianismo puro, não é a
mais significativa. Em todo o caso não o será, nem
para Jaime Cortesão nem para Agostinho da Silva,
que prolonga e transfigura a visão franciscanista do
poeta de Aguia e futuro historiador dos Desco-
brimentos. O essencial da visão franciscanista da
vida para ambos concentra-se nessa paixão pela
Natureza, mas uma natureza, por assim dizer, «sem
mancha de pecado original». Em suma, como corpo
de Deus com o qual o corpo e a pulsão natural da
humanidade, logo desvinculada dos artifícios da civi-
lização e da cultura (herança de Rousseau), se con-
fundem. Isto foi lido, e não sem razão, no que diz
respeito a Jaime Cortesão, como uma forma de paga-
nização subtil do cristianismo, coberta pela refe-
15
rência insuspeita a S. Francisco, menos do que, como
forma imposta pelos imperativos de um Evangelho
depurado das excrescências da autoridade e do
dogma. Daí os grandes hinos de Cortesão ao ins-
tintivo, ao sensual e mesmo ao erótico e a grande
complacência com que exalta como expressão da
nossa singularidade nacional uma cultura impreg-
nada do sentimento pânico da vida ou louva a nossa
lírica tão inocentemente sensual.
Agostinho da Silva retém um certo número de
traços da visão do mundo ou da leitura da nossa
maneira de ser proposta por Jaime Cortesão. Não
foi impunemente que o universitário Agostinho da
Silva se interessou pelo mais «erótico» e pouco reco-
mendável, segundo os nossos hipócritas códigos
vigentes, autor antigo, Catulo. A escrita límpida, o
lado de profetismo e misticidade característicos da
prosa de Agostinho da Silva, velam um pouco o que
não pode deixar de se designar por «erótica» agos-
tiniana. Um erotismo que não tem apenas o con-
teúdo negativo da recusa ou denegação do ascetismo,
essência da comum espiritualidade lusitana, desde
os bons tempos de Heitor Pinto, mas o gosto posi-
tivo pela vida, na sua natural pulsão vital e fonte de
sedução. O seu famoso paracletismo, a apologia do
Espírito Santo, não é apenas um eco mimético da
tradição joaquimista, uma maneira de considerar
findo o reino da Lei (o do Pai) e do Sacrifício (o do
Filho) com a entrada no terceiro reino, o da
Liberdade, que é, sobretudo, o do Amor. Esse seu
culto do Espírito Santo é o de uma nova Criação,
16
~-.
17
.....
18
Tinha domesticado «o mal» como se ele não exis-
tisse. Ou como se ele não o quisesse ver. Não sei se
isto basta para perceber que espécie de «misticismo»
era o seu. Mas bastou-me para sentir, e definitiva-
mente, que estava diante de um dos Homens mais
extra-ordinários que me foi dado conhecer.
19
Nasceu no Porto em 1906, sob o signo de Aquário.
O pai, algarvio, era inspector das alfândegas, a
mae, alentejana, dona de casa.
Ccorge Agostinho Baptista da Silva, de seu nome
11npleto, é um de três irmãos. Do seu «Livro de
1:.unília» constam também dois casamentos, oito
fi Ihos, vinte e dois netos e dois bisnetos.
Aprende a ler aos 4 anos, faz a instrução primá-
1'1,\ cm Barca de Alva e frequenta o liceu e a univer-
idadc no Porto. No tempo recorde de quinze dias
lrcpara o doutoramento, com uma tese sobre civi-
l iz~tçôes clássicas. Mais tarde, a convite da Junta
N~H:ional da Educação, parte para a capital, onde
funda o Centro de Estudos de Filologia da Universi-
li\(ll· de Lisboa. É bolseiro em França e Espanha,
onde aprofunda conhecimentos em história, filoso-
fin c literatura. De regresso a Portugal, é colocado,
p6s concurso, no ensino oficial, mas em 1935 é
demitido por se ter recusado a assinar uma decla-
l'i\Çfio que impunha aos funcionários públicos jura-
não pertencer a qualquer associação secreta.
23
....
24
A participação numa série de programas de tele-
visão granjeia-lhe, junto das camadas mais jovens,
simpatia e grande popularidade.
Entretanto, alguns livros da sua vasta e impor-
tante obra, esgotados há já muitos anos, são final-
mente reeditados.
Dominando quinze línguas, o seu universalismo
cultural eleva-o a cidadão do mundo.
Infelizmente, a vida não é eterna: o poeta, peda-
gogo e filósofo, cujo nome figurará certamente na
nossa história como o último grande pensador deste
século, morre aos 88 anos, em Lisboa.
..,,-
::- ::-
25
Luís MACHADO- Mais uma conversa ... não é,
Professor?
26
LM- Pois, mas logo de seguida foi para Barca de
Alva.
27
havia ... só à segunda-feira! ... Mas voltando atrás.
Deixei, portanto, o Porto com menos de 1 ano, vim
para Barca de Alva e só mais tarde voltei ao Porto,
para fazer o liceu e a faculdade!
AS- Exacto.
LM- E então?
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então aprendi a ler. Mas não me lembro absoluta-
mente nada do que li, nem sequer como foi. No
fundo, quer isto dizer que para a criança o apren-
der a ler é um acto de violência terrível, porque
naquela idade o que ela quer é brincar com car-
ros ou, como eu fazia, andar a caçar lagartos ou
qualquer coisa assim! Não é ler, não acha? Mas
tudo começa por a nossa educação ser uma edu-
cação em que a criança é presa. Um neto de uma
senhora que faz serviço aqui ao lado, que é um
menino despachado, activo, interessado pelas coi-
sas, entrou agora na escola primária. Todas as tar-
des, quando vem para casa, diz logo para a famí-
lia: «Tomara que aquela escola arda, tomara que
rebente. Aquela porcaria não há maneira de aca-
bar.» E repete, repete até à exaustão. No fundo, é
uma reacção natural. .. !
Há uma experiência feita por um checo, que
ensinava numa escola de deficientes. Em dada altura,
houve qualquer sarilho; então ele resolveu instalar
uma escola por sua conta e levar consigo alguns
deficientes. Ensinou várias coisas, coisas até que
não sabia, mas que teve de aprender (assim como
eu já ensinei o que não sabia e também tive de
aprender antes ... ). Aconteceu um dia que os alu-
nos quiseram um móvel, mas como ele de carpin-
taria não sabia nada, os alunos disseram-lhe: «Vá
aprender!»
E obrigaram-no a aprender e mais tarde a ensi-
nar carpintaria. A coisa corria, mas ninguém lia nem
escrevia, até que um dia chegou uma carta para um
29
deles de um tio que estava na América. O rapaz foi
ter com ele, com o professor, e disse-lhe:
«- Uma carta, dizem que é do meu tio, para o
senhor ler. .. »
«-Eu?! Mas eu não sou o sobrinho!»
30
LM- O seu avô também foi demitido!?
LM- E rapazes?
LM- Em 1906.
31
AS - Sim, em 1906. É engraçado, porque tenho
bem presente na memória que a minha irmã Cecília
nasceu no ano do fenómeno do Cometa Halley e da
grande cheia do Douro; ora tudo isso aconteceu em
191 O, tinha eu 4 anos. Portanto está certo, foi mesmo
em 1906 ...
32
I
da «monarquia do Porto», mas ele continuou o seu
trabalho e fazia o que tinha para fazer. Porque achou
que a alteração política não devia interferir com o
trabalho. Bom, mas no fundo também devia haver
gente que não gostava muito dele, talvez porque ele
gostava de cumprir a lei. Portanto, logo que se ins-
taurou a República e a monarquia no Porto foi esma-
gada, ele foi preso e demitido. Naturalmente que os
meses que se seguiram não foram fáceis, sobretudo
economicamente. Mas acabou por arranjar emprego
no jornal O Comércio do Porto como jornalista. Mais
tarde, como tinha de se levantar muito cedo, deci-
diu aceitar um convite e foi trabalhar na Carris.
33
pessoas se entendem, imediatamente se forma uma
sociedade secreta. Um gesto, uma palavra, um silên-
cio, um olhar, são sinais para o outro. Claro que eu
não dei uma resposta inteligente como deu o
Fernando Pessoa, eu apenas testemunhei a meu favor,
no fundo foi isso. Isto porque o que eu ambicio-
nava, o que tinha por ideal, como professor de liceu,
era poder viajar pelo mundo, era estar em todos os
lugares, sobretudo aqueles por onde tinham passado
os Portugueses, apesar de muita coisa historicamente
já estar ultrapassada, mas o meu desejo era ver como
era, ver a forma daquilo, como era a cor do céu,
como é que a terra impressionava as pessoas. Por-
tanto, tornava-se necessário passar por todos esses
lugares. Mas como dinheiro não havia, existia apenas
aquele que ganhava no liceu, a única maneira era
concorrer a um lugar que houvesse numa colónia, e
depois seguir para lá. Um dia abriu uma vaga em
Moçambique, concorri e tive até muito boas notas,
por isso fui logo seleccionado. Só me faltava fazer a
inspecção de saúde. Nessa altura, quando se traba-
lhava nas colónias ganhava-se um pouco mais e sobre-
tudo trabalhava-se bastante menos, mas o clima tam-
bém era muito demolidor e envelhecia as pessoas
mais cedo. Em Aveiro, os meus amigos, os colegas
professores, os alunos e os pais dos alunos dávamo-
nos todos muito bem. Um dia, suspeitaram que eu
ia embora, exactamente por isso, para me reformar
mais cedo e para ganhar mais dinheiro, e ficaram
tristes, mas nunca me disseram nada. É justamente
nessa altura que sai o tal decreto. Vi muita gente que
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pertencia a associações secretas ter de assinar o papel
para poder viver!
Pensei bem, e embora não pertencendo a associa-
ções secretas e também precisasse de comer, decidi
não assinar o papel.
37
..
39
AS- Três raparigas ... não- quatro raparigas e
quatro rapazes. Uns estão na Suíça, outros estão na
Inglaterra, dois no Brasil e dois em Portugal. O que
espero de cada um deles é que alcancem o que mais
desejam ... Cada um está à vontade para fazer o que
mais lhe convier ou o que mais lhe apetecer. O impor-
tante é dar aos homens, na plenitude, a liberdade de
serem aquilo que gostariam de ser. Mas para além
dos filhos, há os netos, que já são uma turma.
41
....
1
Referência indirecta a António Sérgio.
42
LM- Desculpe, mas eu interrompi-o precisamente
quando estava a falar do Dr. Alvaro Cunhal.
LM- Um triálogo?
47
LM- Professor Agostinho da Silva, mas na socie-
dade portuguesa temos também outros problemas
graves - a saúde, por exemplo, mas não só ...
48
cípios, mas um conjunto de repúblicas, cada uma
com a sua cultura e a sua independência ou inter-
dependência, porque agora não há ninguém inde-
pendente, mesmo com ou sem rei. Acredito que um
dia toda a Península seja assim, um conjunto de ter-
ritórios interdependentes, autónomos. No fundo,
continuo a acalentar o sonho de ver a verdadeira
filosofia portuguesa a comandar isto tudo e a partir
daí ver Portugal a desempenhar um novo e impor-
tante papel no mundo.
Quando é que Portugal muda? Justamente
quando há o triunfo de D. João I em Aljubarrota.
Aljubarrota é tida em Portugal como o esplendor
das batalhas, toda a gente a fugir à frente dos por-
tugueses, a padeira de Aljubarrota e Portugal a
meter-se em grande empresas. Muitos dos que
tinham estado ao lado de D. João I nas batalhas
pensaram que o rei os ia compensar, como faziam
os outros, com um castelo, uma vila, uma aldeia, e
os respectivos vassalos. Mas o rei não fez isso,
D. João I foi o primeiro rei que disse: «Menino, o
castelo está aqui e aqui estão as terras, mas os vas-
salos, não, os vassalos são meus!» E foi realmente
este o primeiro rei de Portugal que começou a man-
dar. Foi assim que Portugal mudou e houve então
gente que não gostou e passou para o lado de
Espanha para combater Portugal.
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AS - Realmente, não morro muito de amores por
ela. Mas será que a Europa julga que pode governar
sem a Península, sobretudo sendo ela, como é, dupla-
mente mediterrânica e atlântica? É bom lembrarmo-
-nos que foi essa Península que construiu o Bundest
Bank e outras coisas de grande dimensão; o Delors
vem de vez em quando com um pacote e oferece-
-nos 10%, esquecendo-se que muito mais que esse
dinheiro roubaram-nos eles no Tejo, aquando do
negócio da pimenta, e mais tarde também ficaram
com o dinheiro que veio do Brasil, a primeira grande
exportação do açúcar. Mas depois ainda veio o ouro,
e os diamantes, e a madeira da Amazónia, foi tudo
isso que construiu a Europa. Talvez seja realmente
menos pró-europeu, porque entendo que cabe à
Península comandar essa união, sem a menor hesi-
tação, e não só deve como pode fazê-lo.
LM - Foi, como?
50
LM- Mas, Professor, eu sei que o senhor na ado-
lescência queria mesmo ir para a Marinha ...
52
«- Não sei, meu amigo, isso agora é consigo, eu
- .
nao sei.»
Então ele disse-me:
«- Talvez encontremos uma saída, sabe, é que
nós já tínhamos convidado o professor português
Mariano Feio para ensinar Geografia Humana, que
foi discípulo do Orlando Ribeiro, e ele até veio; mas,
por questões pessoais, regressou a Portugal. Será que
você não é capaz de ensinar Geografia Humana?»
Respondi -lhe: _
«-Olhe, eu não sei nada de Geografia Humana,
a não ser o que aprendi nas conversas que tive com
o Orlando Ribeiro; portanto, de Geografia Humana,
não sei rigorosamente mais nada ... »
Mas o homem tanto insistiu comigo que acabei
mesmo por aceitar. Mas impus uma condição: que a
data prevista para o início do ano lectivo fosse atra-
sada pelo menos um ou dois meses. O homem con-
cordou e eu preparei-me. Logo que abriram as aulas,
nesse primeiro ano, tinha inscritos apenas dois alu-
nos: um era o secretário-geral do governador e o
outro era a mulher dele, que decidiu inscrever-se
porque adorava Geografia Humana. No final do ano,
feito o balanço, apurámos que tínhamos ficado a
saber alguma coisa sobre aquela matéria; e pronto,
foi assim.
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AS - Sim, estive em Moçambique. Mas foi já
depois de ter regressado do Brasil. Estava no ICALP,
deparou-se-me algo em Moçambique que era inte-
ressante fazer e ofereci-me para ir para lá. Em
Lourenço Marques, aproveitei até para visitar a campa
da minha mãe ... Às vezes costumo dizer que tam-
bém sou moçambicano.
54
ceu um concurso para professor de Belas-Artes. Aliás,
cheguei a increver-me no concurso, porque se ficasse
com o lugar, em vez de trabalhar toda a semana no
liceu, passava a trabalhar apenas três horas por semana
nas Belas-Artes. Bom, já depois de me inscrever
encontro na rua um homem que não fazia outra coisa
senão estudar história, sobretudo a história da
2.a Grande Guerra. Como não tinha emprego, vivia,
estudava e trabalhava no café.
Começámos a conversar e ele disse-me que ten-
cionava inscrever-se nesse concurso. Então respondi-
-lhe:
«- 6 homem, mas se você quer ir para lá, eu saio!»
E nessa mesma tarde fui lá e «desinscrevi-me.»
Algum tempo depois tive conhecimento que o
grande filósofo Vieira de Almeida, um excelente pro-
fessor da Faculdade de Letras, também se tinha ins-
crito nesse concurso para a Escola de Belas-Artes.
Repare que o Vieira de Almeida era mesmo uma
pessoa respeitabilíssima. Não sei se foi por isso ou
por outra coisa, o certo é que decidi inscrever-me
de novo. Quando voltei lá, o chefe da secretaria
reconheceu-me e disse-me, furioso:
«- Outra vez!? Outra vez!? Você anda a brin-
car. .. »
«- Pois é, decidi voltar a inscrever-me.»
Para aquele concurso, era preciso redigir uma tese
e apresentá-la impressa, portanto aquilo foi mesmo
escrever de corrida, ir para a tipografia, voltar lá para
corrigir as provas! Mas lá me chamaram para o exame
e o primeiro professor a interrogar-me foi o Agos-
55
-.
tinho Fortes. Recordo-me que a sala tinha muita
gente e que na assistência se encontrava o marido da
Maria Keil, o arquitecto Keil do Amaral, que gos-
tava muito de assistir aos exames.
Mas voltando ao exame: o Agostinho Fortes pegou
então na minha tese e disse com um ar professoral:
« - Ora temos então aqui uma tese sobre um poeta
pérsio ou latino que ninguém conhece. É curioso,
sabe, mas olhe que não se percebe nada da sua pon-
tuação, está tudo 'barafustado'.»
« - O senhor professor dá-me licença?»
E ele disse:
«-Com certeza!»
«-Já sei que é um velho costume seu: quando
o senhor não sabe das coisas, pega pela pontuação.
Veja lá se hoje passa a outra coisa mais concreta, por-
que isso não adianta nada.»
Bom, como deve calcular, o efeito de uma resposta
destas, para além de pôr a rir a assistência, «liquidou»
o nosso amigo. O outro examinador era o perito, o
homem que sabia muito de oceanos e dessas coisas.
Na véspera de eu ir lá (nessa altura vivia numa
pensão, porque não tinha casa em Lisboa), estava no
meu quarto quando um colega entrou e me disse:
«- Você por acaso já viu es.sa história do mar,
das correntes? Olhe que eles agora andam a per-
guntar multo Isso.»
Respondi -lhe:
«-Olhe, por acaso, esqueci-me completamente
dessa matéria, mas mais logo vou ver se ainda con-
sigo ver alguma coisa.»
56
Naquela noite estudei portanto as correntes, para
o caso de aparecer alguma pergunta ...
Mas então o tal professor chega lá e diz-me:
«- Quero saber o que é que o senhor sabe da
corrente que vem do México e atravessa todo o
Atlântico para chegar até aqui, às nossas costas.
Descreva-me esse percurso.»
Bem, então eu lá descrevi, sem grandes hesita-
ções, porque estava tudo ainda muito fresco, tinha
aprendido na véspera. E o homem disse:
«- Mas ela aqui divide-se, o senhor não falou
nisso!»
«- Mas divide-se como?», retorqui eu.
«-Há uma que passa mais abaixo da costa ... »,
e tal, tal e tal... E eu então respondi-lhe:
«- Mas quais são os pontos por onde a outra
passa, o senhor sabe?»
«- É indeciso.»
«- Pois é, então não vale a pena estarmos a falar
de coisas indecisas, porque creio que estamos aqui
é para falar de ciência. Ou o senhor sabe por onde
é que passa a corrente, ou não sabe, mas por favor
não complique mais a nossa vida.»
Escusado será dizer que a minha prova acabou
logo ali. Quem ficou?, vai decerto perguntar-me você.
O rapaz do café ... No fundo, era o que eu queria.
Eles não tiver-ªJll cQragem de nomear o Vieira de
Almeida, que, por acaso, também não fez grande
figura no concurso, e a mim nem por sombras me
queriam ver lá dentro, tomaram eles que eu desapa-
recesse. Aceitámos passivamente o resultado, dado
57
que não queríamos causar mais complicações ao outro
candidato ...
58
Respondi -lhe:
«- A mim não me interessa muito, porque quem
deu cabo da Faculdade do Porto foi a Universidade
de Coimbra e a Universidade de Lisboa, de maneira
que quando eu puder rebentar com elas, rebento.
Car.re.ira ~ambém não tenciono seguir, mas sou con-
tra 1llJUStlças ...
De repente pensei melhor e disse para mim:
«Quem sabe se um dia realmente um doutoramento
até não me vai ser útil.» E disse-lhe:
«-Também vou!»
«-Olhe, então vamos os dois!», respondeu ele.
Tive assim de preparar, à pressa, uma tese onde
defendia que os Romanos nunca tinham ido ter com
os Gregos e que estes não tinham ideia do decor-
rer do tempo da história. Nunca mais li aquilo. Hoje
acho que ela deve ser muito ruim, mas com tão
pouco tempo para a preparar, tinha de ser mesmo
assim, e lá fui doutorar-me ao Porto, na minha uni-
versidade ...
Na cerimónia, entre a assistência, estava o Dou-
tor Joaquim de Carvalho, que apesar de ser um
homem da Universidade de Coimbra não se con-
fundia com o resto da universidade, porque estava
à parte; por isso conservei relações com o Joaquim
de Carvalho. Uin dia escreveu-me para me dizer que
tinha assistido ao meu doutoramento. Logo a seguir
tive uma bolsa para ir para Paris.
59
•
60
mais culta que havia em Portugal naquela altura.
Talvez não acredite, mas nunca ninguém me falou
do Fernando Pessoa, nunca. Nem o Sérgio, nem o
Câmara Reis, nem o Aquilino, ninguém falava nele.
Aliás, quase que não se sabia que ele existia, não foi
nunca chamado para nenhuma coisa nem metido
num partido, como é tão vulgar hoje fazerem.
61
para Portugal. Mas, curiosamente, um dos moti-
vos que me trouxe a Portugal foi o Sérgio. Comecei
a deixar de me entender com o Armando Castro,
porque ele estava a falar castelhano de mais para
mim; as coisas começaram a não correr bem e assim
que vi que podia escapar-me, decidi voltar para
Portugal.
Eu estava lá para estudar, e era isso que eu fazia,
o que por vezes me levava, até sem querer, a alhear-
-me de outras realidades. Como as coisas se azeda-
ram com o Armando Castro, procurei então o Sérgio
e disse-lhe:
«- Vou voltar a Portugal.»
«-Olhe, isso vem mesmo a calhar, porque pre-
parei, você ainda não sabe, um plano revolucioná-
rio para Portugal, um grande plano. Assim, vou já
escrever os pormenores e você leva-os, porque é
mesmo o correio ideal. »
Um bocado surpreendido, disse-lhe:
«-Nem pense nisso. Imagine o que pode acon-
tecer se eu entrar em Portugal com uma coisa dessa
natureza ... o plano de uma revolução!. .. Não, eu
vou é decorar tudo isso ... »
«-Está bem, então, venha cá!»
Andámos uma porção de tempo a passear, de um
lado para o outro, lá num jardim qualquer, para eu
decorar os planos do Sérgio. (Acho que ainda não
contei este episódio.) E foi assim que me vi metido
nessa coisa que não deu nada, como de costume.
Ali~s, acreditei log.o~ desde o princípio, que aquele
proJecto nunca tena sucesso.
62
LM- O Professor parte para o Brasil em 1945 ...
63
...
.
O drama do Brasil começou quando as autori-
dades portuguesas obrigaram muita gente a ir para
lá. Depois, mais tarde, quando o Brasil começou a
render dinheiro, nomearam militares para o gover-
nar, militares esses que foram governar as gentes
assim um bocado em pulsão. O Brasil tem sido um
diálogo dificílimo entre os geneticamente portugue-
ses do Espírito Santo e as outras gentes da Europa
e da América que o têm percorrido. Tem sido, em
termos humanos, um choque contínuo, excepto agora,
mais nestes últimos anos, em que as coisas se têm
atenuado mais. Quando o Jânio Quadros foi eleito,
eu já tinha fundado o Centro de Estudos Africanos
e Orientais. Logo no início, lutei contra o reitor, que
se opunha, o Edgar Santos, agora celebrizado numa
canção de Caetano Veloso. Ele, eu e a Lina Basto
somos os três os heróis da Baía. Bom, mas eu fui ter
com o reitor e disse-lhe:
«-É muito importante falar com o Jânio Qua-
dros, porque ele, num discurso da campanha, falou
que as relações com África eram fundamentais para
o Brasil. E eu acho a mesma coisa. Não me quer
mandar lá?»
E o reitor disse:
«- Mas eu não conheço ninguém dessa gente!»
«- Posso ir lá eu?»
E ele disse:
«-Pode.»
Mal saí do gabinete. telefonei para o Jânio Quadros
e ele recebeu-me na manhã seguinte, pelas seis horas.
Começava sempre a trabalhar muito cedo. Consta
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~~-~
~
Agostinho da Silva
-
•
que a certa altura do dia se metia um bocado no
whisky, e depois quem tinha de o aguentar era o José
Aparecido, esse que veio aqui para Portugal como
embaixador. Mais tarde, até, fomos os dois convi-
dados para trabalhar directamente com o Jânio
Quadros. Fomos assessores de política externa, que
era uma área muito interessante. Ocupavamo-nos,
essencialmente, das ligações entre o Brasil e a África.
(:.5
...
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LM- Professor Agostinho da Silva, o senhor_ ainda
continua a defender que o futuro está em Africa?
67
LM - A pouco, a propósito da sua saída de Por-
tugal, o Professor contava-me, mas entretanto mudá-
mos de assunto, que tinha chegado a ser preso em
Lisboa, pela PIDE. Pormenorize-me essa detenção.
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da Rocha de carro de bois, e depois tive residência
fixa lá mais para cima, em Cabeceira de Bastos. A casa
pertencia ao sogro do Fernando Rau, que era um
homem que tinha sido governador de Macau e que
a
passava vida a consertar o motor do automóvel.
Andava sempre cheio de óleo, era uma porcaria, e a
mulher fartava-se de protestar, mas ele dizia-lhe
sempre a mesma coisa: «Eu, à noite, lavo-me!»
E lavava-se, mas só para o jantar!
Como vê, tive sempre a sorte de ter residência
fixa em lugares bons. Mas voltando à cela do Aljube:
não sei porquê, deram-me a cela mais dura e mais
escura que lá havia.
Recordo-me que a partilhava com um homem
que já estava preso à muito tempo e que riscava os
varões da grade por cada dia que estava lá. Os domin-
gos eram assinalados com um tracinho maior. Pela
soma dos traços, o desgraçado já devia estar metido
entre as grades há uma porção de tempo. Às vezes
aparecia um guarda, nunca percebi com que inten-
ções. Abria a porta, aquilo tinha duas portinholas,
abria só a de fora (depois ainda ficava a de dentro)
e então falava de coisas, de política ... Não sei se real-
mente ele queria ou não saber o que eu pensava, mas
se era isso, eu dizia-lho sempre. Não tinha medo e
não me importava nada com isso.
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LM- Isto aconteceu mais ou menos em que altura?
No início dos anos 40?
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voltavam a ser japoneses. Mas decerto descalçavam-
-se, sentavam-se no chão e comiam em cima de uma
almofada, aquelas coisas ...
LM -Não ...
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...
•
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todas com um andar em baixo, junto ao chão, sobre-
tudo as pequenas casas construídas sobre um tripé
e com outro andar lá em cima. O andar de baixo é
para se conversar com os vizinhos; para o de cima
sobe-se para dormir. Cá em baixo é onde se come e
se recebem as visitas. Aquilo é mesmo uma verda-
deira delícia. Timor é uma coisa extraordinária!
73
...
74
LM - O Professor critica, portanto, o abandono
português. Acha que foi· mau ... que foi uma decisão
política infeliz?
75
....
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É África, senhores! Não é assim! ... Ele não per-
cebeu que logo no Bicesse o nosso amigo Savimbi
leu que tinha a palavra BI de Bicesse ... Então, ele
continuou a fazer manobras, que obviamente nunca
poderiam ser bem aceites.
Mas, mesmo hoje, sabendo-se o que se sabe, con-
tinua-se a ajudar o mais que se pode o José Eduardo,
quando quem vai vencer é o outro, porque Angola
de certeza que vai tornar-se uma Angola africana.
77
...
II
I
78
sar o que é que no mundo aconteceria se a velocidade
da luz fosse diferente ... Bem ... podemos imaginar
duas coisas: uma velocidade duas vezes maior. E qual
é a nossa noção de espaço e tempo num mundo em
que essa velocidade é duas vezes maior? Mas ainda
podemos imaginar coisa pior. Por exemplo, uma velo-
cidade infinita - já não se trata de o comboio che-
gar lá, trata-se de o comboio ser solto dos céus, para
baixo, para cair com qualquer velocidade. Portanto,
assim já é muito mais difícil conceber as coisas. Daí
ele usar a designação «relatividade especial».
Entretanto, mais tarde, houve um dia que o nosso
amigo quis juntar as duas coisas, no que chamava o
campo único, ou contínuo, mas não o conseguiu atra-
vés da matemática. Porque parece que no mundo há
uma porção de coisas que escapam à matemática!
Bom, mas a paixão, o amor, são coisas que, quando
existem, é difícil que existam.
79
~
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E eu disse:
«-Muito bem, mas para mim essas pensões têm
um defeito, é só serem vitalícias, ou seja, nós não
conseguirmos viver o tempo suficiente para elas nunca
acabarem.
Mas isso é demasiado dinheiro para mim! Não
será melhor repartir esse dinheiro com o Ministério?
Eu podia devolver uma parte e com ela talvez fizes-
sem coisas para as quais não têm verba. Portanto,
apenas me davam aquilo que entendessem que eu
precisava para viver, do modo mais restrito possível.»
E o Souto Tomé, que era o funcionário que estava
a tratar do assunto comigo, respondeu-me:
«- Mas o Ministério não pode fazer uma coisa
dessas, porque o que propõe não é legal!»
Mas acabou por me dar uma sugestão:
«- Talvez se pudesse fazer uma coisa interes-
sante: ia falar com a Caixa de Pensões e pedia-lhes
para depositarem o seu dinheiro no Montepio.
Depois, nós fazíamos um acordo com eles.»
Assim, combinou-se tudo e lá se criou o Fundo
D. Dinis, para onde vai esse dinheiro. Agora, final-
mente~ já posso tirar o meu dinheiro - em teoria,
todo - e dá-lo aos outros. Naturalmente, é desse
dinheiro que eles hoje me dão aquilo que eu preciso
para viver.
As pessoas, às vezes, não percebem bem o raci-
ocínio e perguntam-me: «Mas então esse dinheiro é
100% do Fundo?» Não, porque se eu já o dei, com
certeza que não vou tirá-lo, uma vez que são eles
que dizem em que condições é que eu o posso levan-
81
- •
82
de sair como um réptil. .. Mas foi melhor assim;
como realmente não tinha bem a certeza, decidi não
reivindicar a readmissão. Aliás, evitei até falar nisso
aos amigos. Mas logo que o Mário Soares foi nome-
ado Primeiro-Ministro, apressou-se a mandar-me
um recado, onde dizia: «Diga-me a que horas é que
está em casa, que eu quero visitá-lo!» E eu pensei:
«Não senhor. Não me visita, porque agora já não é
meu aluno! Agora é o Primeiro-Ministro de Portugal
e quem vai visitá-lo sou eu, perguntem-lhe se o
posso fazer.» Dias depois fui recebido e conversá-
mos à vontade. A certa altura, o Mário Soares per-
guntou-me:
«-Neste momento, o que é que está a fazer, está
a trabalhar para alguma instituição?»
«- Sim, estou ali no ICALP, a fazer uma pes-
quisa histórica ... »
«- Em relação ao seu afastamento do ensino, foi
demitido? Nunca o reintegraram?»
«- Também nunca pedi isso ... »
E ele disse:
«-Bom, então vou pedir eu!»
«- O senhor é o Primeiro-Ministro, portanto
manda e faz como quiser.»
Ele redigiu de imediato o decreto, mas o Eanes
vetou-o. Claro que houve logo pessoas a pergunta-
rem:
«- Por que é que o Eanes veta ,. uma c.oisa des-
tas? Decerto que não é uma atitude contra você!»
«- Suponho que não ... »
«- Então só pode ser para aborrecer o Soares.»
83
•
Respondi-lhes:
«- É possível, mas pode ser também que o Soares,
com a vontade de resolver depressa a situação, se
tivesse esquecido da Constituição ou utilizado mal
a legislação. Embora ele seja advogado, é humano
enganar-se.».
Como já disse, o Soares apressou-se a enviar a
proposta ao Eanes, mas ele vetou-a. Nessa altura,
quiseram saber se eu tinha ficado contra o Eanes.
E eu respondia: eu? Bem pelo contrário, até fiquei
foi agradecido. Aliás, dou-me bem com ele e com
a mulher, só que ainda não tive ocasião para lhe
diz.er como fiquei agradecido por ele ter agido
assim.
LM- Quando?
LM - Portanto, só em 1992.
fi
AS - Sim, mas os grandes «culpados» foram o
Roberto Carneiro e o·Primeiro-Ministro. No fundo,
o Cavaco também desejava que isso acontecesse. Um
dia, ele e o meu Pedro encontraram-se ...
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LM- Refere-se ao seu filho ...
85
...
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Então, eu respondi-lhe:
«- Olhe, senhor ministro, eu estou no ICALP,
e eles dão-me uma bolsa que, para mim, é o bastante
para viver. Claro que o montante desse subsídio per-
manente, provavelmente, até é maior, mas não vale
a pena. O dinheiro que recebo, chega, não preciso
de mais. Gostava, no entanto, de agradecer ao seu
chefe a ideia de se ter lembrado de mim.»
Trataram do encontro e lá fui. Nessa altura, ele
andava na campanha que lhe deu a maioria abso-
luta ...
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LM - Desculpe-me voltar um pouco atrás, mas
gostava que concluísse o interessante raciocínio de há
pouco sobre a paixão e o amor. Afinal, como se dis-
tinguem?
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LM - Do inconstante?
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...
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LM- O senhor foi um homem que viveu os gran-
des acontecimentos deste século ...
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interceder por ele, mas não fui bem sucedido. Tive
então de dizer ao Leal, para o pressionar, que tam-
bém me iria embora caso ele não revisse a sua deci-
são. O rapaz, então, voltou. Tinha sido «desexpulso»!
Apesar de tudo, era um homem interessante. Não
posso esquecer-me que ele me deu a liberdade de
«não ensinar». A aula era uma espécie de anfiteatro,
e eu, logo no princípio do ano (era no 3. 0 ano e nessa
época os alunos tinham de fazer exame), cheguei e
disse:
«- Vamos fazer uma experiência: eu não vou
ensinar-vos. Vocês trazem de casa os livros que tive-
rem disponíveis, ou aqueles que mais gostarem, para
a gente aqui na classe os ler. Então, assim que a aula
principiar, cada um pega num livro e lê à vontade.
Depois, uma vez por semana, vocês fazem um jor-
nalzinho e contam-me coisas ... Eu leio o jornalzi-
nho e, se houver um erro, uma coisa que eu não
goste, eu digo.»
Combinou-se que isto seria feito todos os sába-
dos. E assim foram aprendendo sem eu os «ensinar».
Um belo dia, quando entrei no anfiteatro, notei
que havia grande reboliço.
«- O que é que há para aí?», perguntei.
«- Foi um rato que apareceu aqui.»
«-Deixem lá o rato!»
Bom, e lá ficou tudo sossegado. Mas logo que
tocou a campainha para sair, vejo os meus aLunos
correrem para a frente, para tentarem levantar o
estrado que havia diante da lousa, onde se subia para
se escrever, e começarem às pisadas, a ver se matavam
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o animal. Aproximei-me, furioso, peguei num e ati-
rei-o contra a porta, que com a força se quebrou, e
ele caiu no corredor. Escusado será dizer que a caça
ao rato parou logo. E eu não disse mais nada, nem
sequer expliquei coisa nenhumaz. aquilo foi o bastante.
93
....
•
94
Mas agora com essa ideia do Aparecido e do Itamar,
e de outros brasileiros que há por lá (não se esqueça
que eles são os descendentes directos dessa gente
que teve de fugir de Portugal), os tais que faziam o
culto do Espírito Santo ... Bem, mas essa gente tem
uma filosofia que consiste no seguinte: nós não temos
de nos importar muito com Deus, temos é de nos
preocupar com a máquina do mundo e estudá-la o
mais possível. A cada passo, cada vez mais nos vamos
maravilhar. Misturam-se dois líquidos e saem os sóli-
dos todos que há nos minerais, e outras coisas assim.
Isso, realmente, é extraordinário. Mas há outra pala-
vra pela qual, por costume antigo, nós podemos dizer
a mesma coisa que extraordinário - é divino.
Os Portugueses pensavam o seguinte: quero lá
saber se o Camões coxeava de um lado ou não, se
roubou ou não roubou as mulheres dos amigos, se
enjoava a bordo ou não enjoava! O que eu quero é
ler os seus sonetos, não é assim, porque o resto tanto
me faz. Se o homem tinha os olhos de uma cor ou de
outra, era indiferente, porque o importante era que
aqueles sonetos eram os dos Lusíadas, não é assim?
Então eu chego a Deus, e a minha ideia é outra.
Quero lá saber se Deus é o que é, e tudo quanto é,
c o que eu imagino que é, e até mesmo tudo quanto
cu nem imagino que ele é. Eu quero ver é isso no
prato, aquilo que eu posso apreciar, não é? Então
tenho de estudar cada vez mais para saber mais coisas.
Alfabetizar hoje uma pessoa não é apenas mos-
tr·ar-lhe como se escreve isto ou aquilo. Curiosamente,
foi uma coisa que só descobri em mim há pouco
95
..
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Naturalmente que os Jesuítas, interessados por
Confúcio, arranjaram a coisa de tal maneira que os
Chineses, pasmados, ouviam e juravam que eles fala-
vam do L ao-Tsé, do Deus deles, como s~ fosse
Confúcio. Você não nasceu para viver na sociedade,
você nasceu para ser o que é, e isso é que é o impor-
tante. Você pode ser o único que é diferente entre
biliões e biliões de pessoas.
Os próprios Gregos também se sentiram presos
no tempo e no espaço. O Camões, inclusivamente,
ensinou, na ilha dos Amores, que a pessoa só está
presa no tempo e no espaço quando não é criador,
c nós sabemos isso através da nossa própria expe-
riência: quando estamos muito entusiasmados com
uma coisa, dizemos muitas vezes: olha como o tempo
passou!? Já nem sabia que estava aqui com vocês.
Pronto! E porquê? Porque a ilha dos Amores foi
criada pela deusa da criatividade. Foi ela que fez
aquilo e que depois veio falar aos portugueses. Falar
de quê? Falar de Futuro!
Ensinou-lhes que estavam no fim do século XV e
eles saíram dali a saber o século XVI todo. O Camões,
aliás, transmitiu isso com bastante clareza.
Bom, e depois a deusa criadora fez um desenho
do mundo e eles ficaram livres do espaço, o espaço
só existe no mundo. A criatividade deriva do tempo
c do espaço, mas a pobre deusa grega criadora era
uma coisa de nada perante o meu Deus criador (dele,
Vieira). E;não o que eu vou querer no mundo é uma
ilha dos Amores, criada por um deus criador e não
pela coitada da deusa grega. Bem, na ilha dos Amores
97
todos os problemas levantados por Confúcio e por
L ao-Tsé ficaram resolvidos ...
Os portugueses, para chegarem a Calecut, anda-
ram sempre pelo Confúcio. Era a vida em sociedade.
O rei mandava, o almirante comandava, o outro dis-
parava a artilharia, o marinheiro tinha o leme, tudo
aquilo funcionava e estava perfeitamente organizado.
No regresso, eles já seguiram Lao-Tsé. Foram, por-
tanto, ser aquilo para que tinham nascido. Costumo
dizer que há nos Lusíadas uma grande falha: não se
sabe o que fizeram os marinheiros que ouviram a
deusa criadora no regresso de Calecut, que fizeram
eles em Portugal, não é? O Camões desculpou-se:
«Não mais, musa, não mais, que a voz já tenho enrou-
quecida ... » e não sei que mais ... Desculpava-se assim,
dizendo que estava doente, velho e desanimado da
vida e que, portanto, a história acabava ali. Mas nós
não, temos de ter uma resposta. Sabe que ainda nos
continuam muito a perguntar isso. Eu digo sempre
assim: vocês decerto não sabem por que foi? Bom,
foi porque quando os marinheiros chegaram a
Portugal e contaram o que tinham feito na ilha dos
Amores, as sogras ficaram todas contra eles e
criticaram-nos por não terem conseguido realizar
mais nada ...
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Ele foi ao livro do Daniel, na Bíblia (que ele lia
a Bíblia, como eu leio, mas por outros motivos, ele
lia porque era padre), e leu lá que até àquela altura
já tinha havido quatro impérios, mas que todos eles
tinham falhado porque tinham defeitos, sobretudo
pela falta de qualidades do imperador, que não pres- /
99
...
~
100
LM- Pois ... é verdade ... estrangulamos toda a
autenticidade .. .
AS - Sobretudo tempo.
102
AS - Bem, para lhe ser franco, hoje já nem me
lembro muito bem dela. Era capaz de ser um bocado
má. Mas também não tenho nenhuma curiosidade
cm a ler. Lembro-me, muito vagamente, que defen-
dia que os Gregos não tiveram a noção de tempo,
nem queriam, porque eles, no fundo, pretendiam era
estar livres do tempo e do espaço. Aliás, foi isso que
o padre António Vieira viu.
103
.....
AS- Sim.
104
LM- Mas como é que se chamam?
105
....
106
homem para isso. Gosto muito de pão, se não
houver mais nada para comer, pão e café chegam.
Claro que se houver um pouco de fruta, tanto
melhor.
AS- Água.
LM- Só água?
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AS - Sim. A festa para mim é sempre uma cele-
bração, uma coisa para a qual se tem de estar dis-
ponível e participante.
AS - Sim, é um facto.
Hoje, gosto muito mais que as coisas sejam fei-
tas com perguntas objectivas, no género daquelas
que você colocava naquele seu livro de entrevistas
ou como algumas conversas que têm sido publica-
das no Público. Às vezes digo não, porque já não
tenho paciência para grandes discursos ...
112
não é. Companhia vem de «comer o pão juntamente
com outro».
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....
::-
:~ ::-
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ÚLTIMA PÁGINA
115
. ,.
.
116
fidedigno de Agostinho da Silova. Obviamente que
não podíamos esquecer aqui duas pessoas também
importantes: Maria Violante, que com muita ternura
e amizade acompanhou os últimos anos do Professor,
e a irmã de Agostinho da Silva, Maria Cecília. Ambas
prontamente se disponibilizaram a fornecer-nos
alguns dados biográficos, indispensáveis à feitura
desta obra.
A todos os já citados, mais uma vez, aqui fica a
minha profunda gratidão.
117
4
•
AGOSTINHO DA SILVA
121
....
122
um grupo de intelectuais, umas seman~s depois. Triste e des-
motivado, suspende a publicação das séries dos cadernos que
dirigia.
1944 - O clima repressivo que se vive em Portugal e problemas da
sua vida familiar levam-no a emigrar para o Brasil.
1945 - Inicia um novo percurso afectivo com Judite Cortesão, filha
do historiador Jaime Cortesão.
1946- Nasce a filha Carlota, fruto desta última ligação 1• Viaja para
o Uruguai, onde lecciona História e Filosofia nos Colégios
Libres.
1947 - Visita a Argentina e aceita o convite da Escola de Estudos
Superiores de Buenos Aires para organizar cursos de Peda-
gogia Moderna.
1948 - Regressa ao Brasil.
1949 - Seu pai morre em Portugal, após prolongada doença.
1953 - Trabalha no Instituto de Biologia Oswaldo Cruz.
1954- Integra o grupo de professores que fundam a Universidade
Federal de Paraíba.
1955 - É nomeado director dos Serviços Pedagógicos da Exposição
Histórica do IV Centenário da Cidade de S. Paulo. Desloca-
-se a Portugal para visitar os filhos do primeiro casamento
e passa, quase clandestinamente, por óbvias razões políticas,
uma curta temporada de férias no Baleai.
1956 - É empossado como director de Cultura do Estado de
Santa Catarina. Funda a Universidade Federal de Santa Catarina.
1957- Sua mãe morre em Lourenço Marques, Moçambique.
1958 - Naturaliza-se cidadão brasileiro. Integra a Comissão Insta-
ladora da Universidade de Brasília.
1959 - Funda o Centro de Estudos Africanos e Orientais da
Universidade Federal da Baía.
1961 - É nomeado assessor de política cultural externa do Presidente
da República brasileiro Jânio Quadros.
1962 - Desloca-se a Portugal a fim de discutir os estatutos do Centro
de Estudos Portugueses da Baía, mas é preso logo à chegada
ao aeroporto.
1963 - Visita, graças a uma bolsa de estudos da UNESCO, o Japão,
Macau e Timor.
1
Em anos seguintes, cujas datas não foi possível apurar, nascem-lhe mais
cinco filhos: Jorge, Leonor, Regina, Marcus e Bruno.
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OBRAS MAIS CONHECIDAS DE AGOSTINHO DA SILVA
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.....
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ÍNDICE
EDUARDO LOURENÇO
ISBN 972-46-0841-7
111111111111111111111111111111
9 789724 608419