Você está na página 1de 195

■ 1

A AMÉRICA LATINA E OS
DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO
ENSAIOS EM HOMENAGEM A RUY MAURO MARINI
2 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 3

Reitor
Pe. Jesus Hortal Sánchez, S.J.

Vice-Reitor
Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.

Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos


Prof. José Ricardo Bergmann

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos


Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo
A AMÉRICA LATINA E OS
Vice-Reitor para Assuntos Comunitários DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO
Prof. Augusto Luiz Lopes Duarte Sampaio ENSAIOS EM HOMENAGEM A RUY MAURO MARINI

Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento


Pe. Francisco Ivern Simó, S.J.

Decanos
COORDENAÇÃO
Profª Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) EMIR SADER E THEOTONIO DOS SANTOS
Profª Gisele Cittadino (CCS)
Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC) ORGANIZAÇÃO
CARLOS EDUARDO MARTINS E ADRIÁN SOTELO VALENCIA
Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM)
4 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 5

Editora PUC-Rio
Rua Marquês de S. Vicente, 225 – Projeto Comunicar
Praça Alceu Amoroso Lima, casa Editora
Gávea – Rio de Janeiro – RJ – CEP 22453-900 Prefácio
Telefax: (21)3527-1838-1760/3527-1760
Site: www.puc-rio.br/editorapucrio
E-mail: edpucrio@vrc.puc-rio.br Paulo M. d`Avila Filho*
Conselho Editorial
Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando Sá, Gisele Cittadino,
José Ricardo Bergmann, Maria Clara Lucchetti Bingemer,
Miguel Pereira e Reinaldo Calixto de Campos.
Independente da nossa relação com as reflexões de Marx ou dos
Capa e Projeto Gráfico
Flávia da Matta Design marxistas, do grau de adesão ou recusa a esta tradição de pensamento, é
forçoso admitir a importância desta corrente filosófica e política no mundo
Boitempo Editorial
Jinkings Editores Associados Ltda. todo. O marxismo teve maior influência prática e as mais profundas raízes
Rua Euclides de Andrade, 27 – Perdizes políticas na história do mundo moderno. Sua importância teórica e prática,
05030-030 – São Paulo – SP
Tel./fax: (11) 3875-7285 / 3865-6947 apaixonando corações e mentes que se lançaram às tarefas revolucionárias
Site: www.boitempoeditorial.com.br em seu nome, se estendeu “desde as margens do Oceano Ártico até a Pa-
E-mail: editor@boitempoeditorial.com.br
tagônia, e desde China, passando pelo Ocidente, até o Peru”; como nos diz
Coordenação editorial Eric Hobsbawm em sua introdução à História do marxismo1.
Ivana Jinkings
Como chamou nossa atenção meu colega de universidade Leandro
Editores
Konder em 1991 em uma brochura intitulada Intelectuais brasileiros e o
Ana Paula Castellani
João Alexandre Peschanski marxismo nossa intelligentzia não ficou alheia aos seus apelos: “não se pode
Assistente editorial
escrever a história do pensamento brasileiro no nosso século sem falar na
Vivian Miwa Matsushita presença do marxismo”2. Uma presença nas artes plásticas, nas artes cêni-
Produção gráfica cas, na literatura, na arquitetura, na historiografia, na filosofia, nas ciências
Marcel Iha sociais, entre outros. Não se pode falar da presença do marxismo no pen-
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por samento social e político brasileiro, ao mesmo tempo, sem considerarmos
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer diversos importantes autores entre os quais se encontra Ruy Mauro Marini,
sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
como: Astrogildo Pereira, Oswald de Andrade, Octávio Brandão, Luis Car-
ISBN: 978-85-7559-117-8
los Prestes, Caio Prado Júnior, Nélson Werneck Sodré, Roland Corbisier
e os que seguem fazendo essa história, como Luiz Jorge Werneck Vianna,

*
Cientista Político, professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do De-
partamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.
1
Hobsbawm, Eric. História do marxismo. 2ª ed., vol. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.12.
2
Ed. Oficina de Livros, 1991, Belo Horizonte, p. 8.
6 ■ A América Latina e os desafios da globalização Prefácio ■ 7

Carlos Nelson Coutinho, o próprio Leandro Konder e os coordenadores vontade do sujeito. O descrédito generalizado faz crescer o individualismo
deste livro, entre outros. e o conformismo com os parâmetros do capitalismo, alvo da astúcia crítica
No período entre os anos 1960 e 1980, na América Latina, é forjado um de intelectuais e militantes revolucionários de outrora.
conjunto de intelectuais que produziram suas obras à luz de um momento, O rumo dos acontecimentos fez esmaecer o brilho da contribuição de
no qual a utopia humana da construção de um novo mundo, o do socialis- vários intelectuais, inclusive de Marini, nos fazendo crer que suas aspira-
mo, liberto das amarras opressoras do capitalismo, se apresentava como uma ções jazem sepultadas. A retomada dessas questões, no entanto, me parece
tarefa não somente realizável como, muitas vezes, imediata. Nesses tempos, de fundamental importância para trazer novo sopro de ânimo, paixão e
o destino da humanidade parecia lhes bater à porta, convidando-os a sonhar iluminação às novas gerações que muito têm a aprender e recolher com a
e a formular suas idéias pautadas pela paixão advinda da crença na possi- contribuição de intelectuais, representantes de uma época em que a políti-
bilidade de conquistar a vitória da difícil batalha de reconstruir o mundo. ca, a vida pessoal e a produção intelectual se mesclavam intimamente em
Um mundo da liberdade, da participação democrática, e da autoconsciência um todo nem sempre harmônico, mas em permanente efervescência.
dos homens ou indivíduos de seu papel como agentes na construção dessa Não há nada mais ousado no universo do que o homem, pois o con-
tarefa. Ruy Mauro Marini pertence integralmente a esse tempo. teúdo mais íntimo de sua historicidade é precisamente a ousadia engendra-
Dentre as contribuições de Marini para a reflexão marxista no conti- da pela teleologia do processo de trabalho. Na melhor vertente da tradição
nente, a que mais chama a atenção é, sem dúvida, sua teoria da dependên- marxista, ao produzir socialmente, o homem passa a produzir-se como ser
cia e seus estudos sobre a América Latina, mas sua constante preocupação que reconhece alternativas e se apaixona por elas. Como assinalou Marx em
com o caráter democrático de um projeto socialista, democracia calcada O capital “em cada novo projeto o arquiteto imagina um edifício melhor”.
em modelos necessariamente participativos de decisão, dá a dimensão pro- Nesse sentido, o fenômeno humano de fato foi gesto “irresponsável” da
fundamente atual de suas reflexões. Não fosse por isso, Marini pertence a natureza consigo mesma, uma “inconseqüência” que cabe exclusivamente
uma geração para a qual o conhecimento é legítimo porque serve aos fins à consciência resgatar e atribuir em sentido.
emancipatórios do homem; que busca por intermédio da razão um sentido Para realizar essa missão, a consciência não deve começar perquir-
que lhes explique o mundo à sua volta e que o faz com crença e paixão. indo a si mesma, pois não está nela a chave para entender as tendências
Uma geração que não entregou, até o último minuto, ao sabor dos ventos, objetivas da realidade, da materialidade prática e da práxis humana. As op-
o rumo dos acontecimentos. ções humanas, sejam dos indivíduos ou das classes, sempre se encontram
Hoje, o que vem caracterizando o nosso tempo é a incredulidade com constrangidas pelas condições históricas e sociais nas quais se plasmam. O
relação às narrativas legitimadoras de outrora. A despeito da justeza de fenômeno humano, no entanto, caracteriza-se, de certa forma, como rebel-
propósitos de seus bravos artífices, as experiências socialistas, provenientes dia permanente da criatura em relação a seu criador, a natureza. Por isso,
da revolução leninista, produziram caminhos problemáticos que levaram como nos mostra Marx ao longo de boa parte de sua obra, em particular
ao desgaste da compreensão marxista da experiência humana na história. A nos escritos de juventude, nos textos históricos e em O capital, o homem é
deslegitimação se apresenta tanto na versão de um relativismo sem frontei- um ser que conhece e se reconhece à medida mesmo que se constrói.
ras quanto na adoção de valores universais a-históricos ou supra-humanos. A matéria, tomado o conceito em sua amplitude filosófica, é anterior
Substituem-se as determinações puramente econômicas de um material- ao pensamento; a realidade, entretanto, é um pressuposto e um resultado
ismo vulgar pela vulgata pseudo-humanista da determinação absoluta da como concreto pensado, como produto da práxis humana, como apontou
8 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 9

Marx no Método da economia política. Nesse momento, a “realidade”, o Sumário


concreto, torna-se objeto para o homem. Sua tentação idealista é atribuir-
lhe um “em si” que possui uma anterioridade que ele, Homem, não possui,
como se existisse já no universo, adormecido, anterior ao homem. Um an- 11 Apresentação
terior que pode ser Deus, a economia, o mercado, as estruturas sociais, o Carlos Eduardo Martins e Adrián Sotelo Valencia
espírito, entre outros.
A recusa a esta anterioridade me parece o espírito deste livro. Um livro
que trata ao mesmo tempo de acertar contas com a memória desse marxista, Parte I ■ O homem e a obra: política e revolução
acadêmico e militante que foi Ruy Mauro Marini e da mobilização do espírito
21 Ruy Mauro Marini: um pensador latino-americano
crítico e livre que animava sua atividade teórica. Em um primeiro momento,
Theotonio dos Santos
somos levados a conhecer mais de perto a vida e a obra de Ruy Mauro Mari-
ni, em um segundo momento somos brindados por argutas análises sobre o 27 Ruy Mauro, intelectual revolucionário
contexto da luta política contemporânea em âmbito internacional. Emir Sader
Os textos mobilizam filosofia, ciência social, economia e teoria políti-
37 Meu querido Ruy
ca, sob o olhar sempre complexo e infenso a academicismos dos intelec-
Ana Esther Ceceña
tuais animados pela sagacidade do estudioso sem preconceitos, bem equi-
pado e atento ao “movimento do mundo”. A complexidade deriva mais
da recusa em tratar os temas de forma simplista do que propriamente da Parte II ■ Globalização e dependência
démarche explicativa, marcada pela clareza e objetividade. Mauro Marini
e seus companheiros de jornada, assim como os autores dos artigos que 53 Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025
compõem esta obra, operam uma perspectiva que visa empreender a críti- Immanuel Wallerstein
ca radial das estruturas de dominação social sem sucumbir às determi-
79 Apresentando o Tio Sam – sem roupas
nações supra-humanas, procurando justamente desconstituir, desagregar, Andre Gunder Frank
essa anterioridade única determinante, definida a priori.
O marxismo é uma filosofia profana e enquanto tal deve ser encarada 111 Neo-imperialismo, dependência e novas periferias
aos moldes dos “hereges”, sem respeitar dogmas ou verdades imutáveis. na economia mundial
Adrián Sotelo Valencia
Este livro procede à necessária revisão dos pressupostos que orientaram
certa perspectiva analítica dos anos 1970, sem ceder às tentações do que os 135 A economia mundial e a América Latina no início do século XXI
alemães chamaram de “espírito do tempo” (zeitgeist), tão característico dos Orlando Caputo Leiva
anos 1990, que procura desconstituir a validade e a importância atual que
possui a corrente de pensamento que anima as reflexões aqui produzidas,
transformando a riqueza de suas contribuições em meras vulgaridades.
Esta perspectiva está absolutamente distante desta publicação.
10 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 11

Parte III ■ Capital, trabalho e economia mundial

167 Dependência e superexploração Apresentação


Jaime Osorio

189 A superexploração do trabalho e a economia política da dependência


Carlos Eduardo Martins

213 A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio.


Atualidade do pensamento de Ruy Mauro Marini sobre
a mais-valia absoluta
Pierre Salama A publicação de A América Latina e os desafios da globalização:
ensaios em homenagem a Ruy Mauro Marini faz parte das homenagens
251 Dependência e superexploração da força de trabalho dedicadas a Ruy Mauro Marini nos 10 anos de sua morte. Reúne prestigia-
no desenvolvimento periférico
dos pensadores contemporâneos para discorrer sobre temas ou conceitos
Marcelo Dias Carcanholo
desenvolvidos em sua obra à luz da conjuntura contemporânea.
Paradoxalmente pouco conhecido do leitor brasileiro, Marini possui
extraordinária importância no desenvolvimento das ciências sociais latino-
Parte IV ■ Pensamento latino-americano e mundo contemporâneo americanas. Fundador da teoria da dependência e, talvez, com Theotonio
dos Santos, o principal expoente de sua versão marxista, o autor contribuiu
267 Vigência e debate em torno da teoria da dependência
Marco A. Gandásegui, filho
decisivamente na construção de um novo paradigma de interpretação
das formações sociais latino-americanas e do capitalismo mundial. Apro-
297 A intelectualidade crítica brasileira no México e o priando-se criativamente da obra de Marx, e de sucessores como Lenin,
pensamento político de Ruy Mauro Marini Bujarin e Thalheimer, Marini aplica rigorosamente o seu método: move-se
Lucio Fernando Oliver Costilla
do abstrato ao concreto para compreender a problemática de totalidades
317 Ser ou não ser subdesenvolvido: a dialética da dependência complexas como as da economia mundial e do capitalismo periférico no
e a história do Brasil pós-guerra e nos processos de globalização. A partir daí, desenvolve a teoria
Oswaldo Munteal marxista e projeta o pensamento latino-americano para os grandes centros,
criando novos conceitos para a economia política, como os de superexplo-
333 A Revolução Cubana e a teoria da dependência:
ração do trabalho, subimperialismo, estados de contra-insurgência e de
Ruy Mauro Marini como fundador
Francisco López Segrera quarto poder, além de reinterpretar os esquemas de reprodução de Marx
para inserir neles o progresso técnico.
361 Teorias estruturalistas e teoria da dependência Pensador que articulava a teoria com a prática revolucionária, Marini foi
na era da globalização neoliberal dirigente político da Polop e do MIR chileno. Teorizou os limites do capi-
Cristóbal Kay
talismo latino-americano, os caminhos da revolução socialista na América
12 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentação ■ 13

Latina e os processos políticos que a ela se impuseram na região entre os ao comprometer-se com o feudalismo para dirigir o Estado, adicionou a si
anos 1960 e 1990: os estados de contra-insurgência e os processos de re- próprio características históricas que limitaram o pleno desenvolvimento de
democratização sob controle liberal e neoliberal. Ao fazê-lo, travou con- suas tendências internas, o socialismo, no século XX, ao emergir e compro-
tundentes polêmicas que marcaram a história das ciências sociais na região: meter-se com um mundo capitalista através da política do socialismo em
com Fernando Henrique Cardoso e José Serra, defensores do capitalismo um só país ou região, apresentou características que deverão ser ultrapas-
dependente como paradigma de desenvolvimento da América Latin­a, ou sadas e superadas para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.
com Agustín Cueva, teórico endogenista que via na articulação interna de A restrição à obra de Ruy Mauro Marini no Brasil e seu paradoxal
modos de produção a principal chave explicativa de nossa especificidade desconhecimento por parte dos brasileiros têm três raízes. A primeira, o
histórica e social. golpe militar de 1964, que o levou ao exílio antes que desenvolvesse grande
Para Marini, a derrota dos projetos socialistas na região não havia parte de sua obra no Chile e no México. O golpe apartou o país do enfoque
sido definitiva, muito pelo contrário. Uma prova disso é a persistência da latino-americanista que marcou as ciências sociais da região nos anos 1960-
revolução cubana, que sobrevive à queda da URSS e do bloco socialista 1970. A segunda, a ofensiva da Fundação Ford voltada para a construção de
no Leste europeu. Segundo o autor, a retomada dos processos de desen- uma comunidade acadêmica liberal capaz de gerenciar o capitalismo brasi-
volvimento sob a direção do neoliberalismo agudizaria os processos de leiro em marcos democráticos, uma vez terminada a ditadura. Chave para
superexploração, exclusão interna e periferização, levando à emergência isso foi o seu apoio a um enfoque analítico que fragmentasse as ciências
de novos atores sociais e ao ressurgimento de antigos que relançariam de sociais em disciplinas relativamente autônomas e impedisse uma com-
maneira renovada a problemática socialista. preensão globalizante de nossa formação social. Centros de pesquisa e as-
Segundo o autor, esse processo exigiria uma reconstrução teórica capaz sociações de pós-graduação com foco disciplinar foram priorizados nesses
de enfrentar os novos desafios da região. Para isso, a teoria da dependência investimentos, em vez de universidades, pois estimulavam a fragmentação
dos anos 1960 seria apenas o ponto de partida. Ela deveria ser transcendida do conhecimento em face de um enfoque mais universalizante das ciências
no plano do marxismo, isto é, depurada de seus aspectos estrutural-funcio- sociais. O Cebrap, dirigido por Fernando Henrique Cardoso, cumpriu aí
nalistas e reorientada para a construção de um socialismo libertário e origi- um papel importante, recebendo parte significativa dos investimentos, e
nal. Esse socialismo deveria se distinguir pela sua capacidade de introduzir publicando a crítica de Cardoso e Serra à Dialética da dependência sem a
elementos de democracia direta que permitissem o controle do Estado pela resposta de Marini. A terceira se refere à ofensiva neoliberal na região nos
sociedade e por sua capacidade de democratizar os processos de gestão anos 1990, estimulada pelo consenso de Washington e pela crise das uni-
internacionais. Trata-se, portanto, no plano teórico, de uma problemática versidades públicas, o que sujeitou a intelectualidade a pressões externas.
que requer não apenas a consolidação da teoria marxista da dependência, Entretanto, a crise de legitimidade do neoliberalismo potencializa a
mas a elaboração de uma teoria marxista do sistema mundial, capaz de abertura de novos espaços. Ao homenagear Ruy Mauro Marini, este livro
compreender globalmente a civilização capitalista e ultrapassá-la. busca dois objetivos. Contribuir para romper o cerco à sua obra no Brasil
O socialismo, como afirma Ruy Mauro Marini em América Latina: de- e atender aos propósitos por ele enunciados na última fase da sua obra:
pendência e integração (1992), do mesmo modo que o capitalismo, não sur- revisitar criticamente a produção latino-americana dos anos 1960-1970 e
giu de forma pronta e acabada, mas em um ambiente distinto que lhe limitou seus temas para atender aos desafios do empoderamento social de nossos
a potencialidade e as possibilidades. Se o capitalismo dos séculos XVI-XVIII, povos na primeira década do século XXI. Nesse sentido, convida e se soma
14 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentação ■ 15

a outras contribuições, entre as quais podemos destacar o primeiro volume e ao desenvolvimento interno de sua capacidade de associação. Andre
da Coleção Pensamento Crítico Latino-Americano, dedicado a Ruy Mauro Gunder Frank enfatiza as debilidades do Tio Sam, a quem considera um
Marini, lançada por Clacso, e Latinoamericana: enciclopédia contemporânea tigre de papel. O autor destaca, na associação entre especulação cambial e
de América Latina e Caribe, premiada no Brasil, em 2007, com os Jabu- proteção militar, que une o dólar ao Pentágono, uma aliança espúria que
tis de ciências humanas e livro do ano (não-ficção), fortemente inspirada finca as raízes de uma imensa crise econômica, social e política dos Esta-
no balanço do pensamento latino-americano que reivindica Marini, em dos Unidos, cujo detonante será a insustentabilidade das dívidas internas e
meados dos anos 1990, no México, quando dirige o Centro de Estudos externas que se acumulam com as suas políticas macroeconômicas especu-
Latino-Americanos (Cela) da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da lativas e a estratégia de poder unilateral.
Universidade Nacional Autônoma do México.1 Orlando Caputo, em visão que discrepa em certa medida das ante-
Este livro compõe-se de 16 artigos distribuídos em quatro partes que riores, identifica uma retomada da hegemonia estadunidense nos anos
abordam aspectos ou temas da vida e obra do autor. Na primeira parte, 1980-1990 vinculada à recuperação de sua taxa de lucro. Todavia, o au-
Theotonio dos Santos, Emir Sader e Aña Esther Ceceña destacam, sob tor destaca a presença crescente da China na economia mundial, de quem
diferentes ângulos, a dimensão revolucionária e o caráter militante da esta dependeria cada vez mais para manter o seu dinamismo econômico.
obra de Ruy Mauro Marini, dedicada à transformação das condições de Adrián Sotelo, por sua vez, analisa os efeitos provocados pela globalização
pobreza e marginalidade de nossos povos e formações sociais no mundo capitalista na economia mundial. Esta mundializa a lei do valor; cria novas
contemporâneo. periferias com a integração de grandes porções do antigo bloco socialista
Na segunda parte, Immanuel Wallerstein, Andre Gunder Frank, do Leste europeu à economia mundial; aumenta as transferências de va-
Adrián Sotelo Valencia e Orlando Caputo analisam as grandes tendências lor em detrimento das periferias ao elevar a concorrência nessas regiões;
contemporâneas do sistema e da economia mundial em perspectivas distin- e agrega-lhes novas funções, como a criação de um mercado mundial de
tas que estimulam o debate e o pensamento crítico. Immanuel Wallerstein força de trabalho que generaliza a superexploração para o conjunto da eco-
aborda a ascensão e crise da hegemonia estadunidense e suas implicações nomia, seja pela orientação da produção à economia mundial, seja pela
geopolíticas tomando como referência a longa duração braudeliana. Dis- exportação de força de trabalho aos grandes centros.
tingue entre 1945-1970 um período de hegemonia indiscutível dos Esta- Na terceira parte, Jaime Osório, Carlos Eduardo Martins, Marcelo
dos Unidos e, desde então, a sua lenta decadência. No período que se abre Carcanholo e Pierre Salama analisam as articulações entre a acumulação
entre 2001-2025, essa hegemonia, segundo o autor, deverá se romper e dar de capital e o trabalho na economia mundial. Jaime Osório e Carlos
lugar a uma profunda reorganização do poder mundial. Ele aponta que, Eduardo Martins revisam as principais teses de Marini sobre o conceito
na conjuntura das primeiras décadas do século XXI, as possibilidades de a de superexploração. Osório enfatiza sua gênese, atualidade e especificidade
América Latina vir a ter papel significativo no mundo contemporâneo são na teoria marxista e dedica-se a desfazer equívocos e confusões que ainda
muitas, mas estão ligadas à sua desvinculação da liderança estadunidense permanecem sobre esse conceito. Na mesma direção, Carlos Eduardo Mar-
tins reivindica a pertinência do conceito de superexploração no âmbito da
1
Martins, Carlos Eduardo (Org.). Ruy Mauro Marini (antologia). Ed. Clacso/Prometeo, teoria marxista do valor, buscando sua formalização matemática. Mostra
2007; e Sader, Emir; Jinkings, Ivana; Martins, Carlos Eduardo; Nobile, Rodrigo (Org.). Lati-
noamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. Rio de Janeiro: que este vincula-se, inicialmente, às condições de dependência e aponta
Ed. Boitempo, 2006. os determinantes para sua generalização na economia mundial durante
16 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentação ■ 17

globalização capitalista. O autor sugere ainda a pertinência de um quarto enfatizados nos enfoques do antigo sistema colonial e do sistema-mundo.
instrumento de superexploração: a queda dos preços da força de trabalho Francisco Lopez Segrera e Cristóbal Kay analisam a teoria da dependên-
abaixo de seu valor através do aumento da qualificação do trabalhador sem cia problematizando a questão das alternativas. Ambos, de forma polêmica
o incremento salarial correspondente. e instigante, talvez não compartilhada por alguns dos fundadores da teo-
Marcelo Carcanholo analisa os processos de acumulação no capita- ria da dependência, apontam a ruptura com a economia mundial como a
lismo periférico e mostra as diferenças de enfoque e projetos entre a teoria síntese do seu projeto socialista. Criticando o isolamento desse projeto
da dependência de Marini e Theotonio dos Santos, de um lado, e a teoria do – apesar das ressalvas aos resultados consistentes da revolução cubana –,
desenvolvimento associado de Cardoso e Faletto, de outro. Analisa os pro- sobretudo após a ofensiva neoliberal, os autores propõem-se explorar as
cessos de acumulação que se desenvolveram na América Latina nos anos possibilidades de um caminho menos conflitivo de integração à economia
1990, sob o primado do capital fictício, mostrando sua compatibilidade com mundial e de reconstrução do Estado latino-americano, tomando como
as teses da superexploração. Pierre Salama, por sua vez, analisa os proces- referência o neo-estruturalismo cepalino ou formas menos ortodoxas de
sos concretos de regulação da força de trabalho na economia mundial con- reconstrução do capitalismo nacional, fortemente apoiadas nos movimen-
temporânea dominada pela globalização comercial e financeira, buscando tos sociais, para alguns mais próximas do socialismo de mercado.
analogias com as teses de Marini. Ele enfatiza a queda da massa salarial e a A América Latina e os desafios da globalização: ensaios em homenagem
revitalização de mecanismos de extração de mais-valia absoluta como uma a Ruy Mauro Marini toma como referência uma das maiores expressões
das principais características dessa economia mundial. do pensamento social da região para refletir sobre a problemática latino-
Na quarta e última parte, Marco Gandásegui, Lucio Oliver, Oswaldo americana no mundo contemporâneo. Faz isso com o espírito crítico, sem
Munteal, Francisco Lopez Segrera e Cristóbal Kay abordam grandes debates dogmatismos, e com diversidade de enfoques. Não poderia ser de outra
e questões do pensamento latino-americano e sua pertinência no mundo maneira, diante dos desafios da reconstrução societária e das incertezas
contemporâneo. Gandásegui resgata os principais pontos de confrontação com que nos defrontamos. Contribui, assim, para que o leitor brasileiro
e convergência do debate entre Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva e re- desenvolva os seus instrumentos de reflexão para participar da aceleração
flete sobre eles tomando em consideração as três décadas que o cercam. do tempo histórico que parece destinada a se projetar sobre a região neste
Lucio Oliver faz um balanço contemporâneo das principais contribuições início de século XXI.
dos pensadores brasileiros exilados no México sobre o modelo político la-
tino-americano, destacando nestes o aporte de Marini. Oswaldo Munteal Carlos Eduardo Martins
inscreve o pensamento de Marini e a teoria da dependência na história do Adrián Sotelo Valencia
pensamento crítico latino-americano. Evidencia as suas vinculações com as
teorias do capitalismo colonial, das quais parte para superar seus limites, e
com outras visões, em particular as do antigo sistema colonial e do sistema
mundo. Munteal sublinha a necessidade de se trabalhar na convergência
entre os esforços em teorizar os processos de acumulação no capitalismo
periférico ou mundial, destacados na teoria da dependência, e os dedi-
cados à formação do sistema interestatal e ao papel coercitivo do Estado,
18 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 19

Parte I


O homem e a obra: política e revolução
20 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 21

Ruy Mauro Marini:


um pensador latino-americano

Theotonio dos Santos*

O pensamento social latino-americano alcançou, particularmente nas


quatro últimas décadas, um alto reconhecimento internacional e influiu
profundamente na metodologia e na temática das ciências sociais contem-
porâneas. Mais ainda, alguns desses pensadores, independente de suas res-
pectivas origens disciplinares (economistas, sociólogos, cientistas políticos,
historiadores ou antropólogos), representam referências fundamentais nas
lutas sociais de nosso tempo.
Entre todos, Ruy Mauro Marini ocupa uma posição privilegiada. Sua
obra teórica é profunda e clara e antecipou grande parte dos campos de
pesquisa e debate das ciências sociais contemporâneas. Ainda muito jo-
vem, Ruy Mauro levantou, na Organização Revolucionária Marxista Polí-
tica Operária (Polop) que fundamos, conjunto de militantes brasileiros de
várias origens em 1961, a polêmica sobre as tendências bonapartistas na
política brasileira e identificou a relação entre o populismo e as tendências
autoritárias em que deveria desembocar o Estado Brasileiro.1

* Nascido em 1936, é um dos fundadores da teoria da dependência. Autor de 38 livros,


co-autor, colaborador de 78 livros e de 150 artigos em revistas científicas, publicados em
16 línguas. Ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), diretor
da Cátedra e Rede Unesco/UNU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável
(Reggen – www.reggen.org.br), lecionou em diversas universidades, entre elas: UnB, UFF,
Unam, Universidade do Chile, Ritsumeikan University (Kioto), Northern Illinois University
e Universidade de Paris-8.
1
Refletindo os debates internos da Polop, Ruy Mauro já havia proposto um exame do
bonapartismo como categoria para compreender o caráter do governo Goulart. Seu artigo
de 1965 em Foro Internacional refletia esse enfoque: Contradicciones y conflictos en el Brasil
contemporâneo. Foro Internacional, México, abr./jun. 1965.
22 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro Marini: um pensador latino-americano ■ 23

Dentro da tradição analítica da Polop, da qual foi um dos principais na alta tecnologia e as economias especializadas em atividades secundárias.
fundadores, já colocava também a inevitável capitulação da classe do- Ele vai encontrar, na superexploração do trabalho, o fundamento das rela-
minante brasileira, diante das tarefas democráticas e nacionalistas que ções desiguais na economia mundial. Posteriormente, ao dirigir um Centro
poderiam viabilizar um desenvolvimento nacional autônomo do país. Sua de Pesquisas sobre o Movimento Operário, no México, aprofundou essas
contribuição se tornou mais original quando, após o golpe de Estado de análises com especial ênfase na reestruturação da indústria automobilística
1964, definiu a importância deste para a formação do capital financeiro e mundial e, particularmente, latino-americana (“Análisis de los mecanis-
sua eminente hegemonia sobre a economia brasileira.2 Nessa época, forjou mos de protección al salario en la esfera de la producción”, Secretaria do
o conceito de subimperialismo. Através dele, mostrava que o nascente ca- Trabalho, México).
pital financeiro brasileiro, surgido no bojo de uma forte dependência do Nos últimos anos de vida, Ruy Mauro lançou fortes luzes sobre a re-
capital internacional, teria de enfrentar a contradição entre sua tendência estruturação da economia internacional e a inserção da América Latina
expansionista – na busca de novos mercados para seus investimentos e (Democracia e integração na América Latina, São Paulo) na mesma (apro-
seus produtos – e sua condição subordinada e dependente do capital in- fundando o enfoque iniciado na segunda metade dos anos 1960), e realizou
ternacional.3 um levantamento amplo e profundo do pensamento social latino-americano
Em 1967, o conceito de subimperialismo, aliado à concepção da nova dos anos de 1920 aos nossos dias.6 Sua morte veio colhê-lo na fase final da
divisão internacional do trabalho em formação, já apontava para o sur- preparação de uma “Antologia do pensamento social latino-americano do
gimento dos Novos Países Industriais (os NICs), entre os quais vieram a século XX”, que organizava para a Unesco com a minha colaboração.
destacar-se, posteriormente, os tigres asiáticos. Há pouco, James O’Connor Nessas tarefas e nessas andanças, nas quais estivemos tantas vezes
me escrevia, em uma carta, com certo humor, que o conceito de semipe- juntos a ponto de sermos identificados (ele, Vânia Bambirra e eu) como
riferia de Immanuel Wallerstein correspondia de fato àquilo “que nós cha- uma corrente da chamada “teoria da dependência”, Ruy Mauro Marini for-
mávamos subimperialismo”. Essa é uma das marcas de Ruy Mauro Marini mou uma plêiade de discípulos magníficos que se podem ver nos quatro
no pensamento social contemporâneo.4 volumes que publicou sobre o pensamento social latino-americano pela
Mas sua contribuição alcançou um nível ainda mais alto com o livro Editora Caballito, do México. Sua obra terá necessariamente continuidade,
Dialética da dependência.5 Nele, o cientista social assume com rigor a tarefa e se aprofundará sua influência depois de sua morte, como é atestado no
de explicar as relações econômicas desiguais entre os produtores apoiados presente livro.
É lamentável que sua volta do exílio tenha sido precedida pela crítica
2
Brazilian interdependence and imperialist integration, Monthly Review, Nova Iorque, dez. de Fernando Henrique Cardoso e José Serra em um artigo infeliz dedicado
1965; La interdependencia brasileña y la integracion imperialista, Monthly Review en Castellano, à crítica de seu Dialética da dependência. Aqueles que identificaram, como
Buenos Aires, 1966.
3
O artigo de 1966 já anunciava esse conceito, que foi retomado e reelaborado no seu artigo de RMM, Vânia Bambirra, André Gunder Frank e eu, já em 1964, a dinâmica
1972 sobre o subimperialismo, também publicado na Monthly Review. Debati com Ruy Mauro do capitalismo mundial e brasileiro (mostrando sua entrada em uma nova
a viabilidade do subimperialismo brasileiro, pondo ênfase nas suas contradições internas.
Contudo, sempre concordei que a tendência ao subimperialismo seria uma constante na
evolução do Brasil, apesar de seu caráter contraditório. 6
Ruy Mauro dirigiu um amplo seminário no Centro de Estudos Latino-Americanos da Unam
4
Essas teses encontraram forma mais elaborada nos livros: Subdesarrollo y revolución, siglo XXI (Cela) sobre o pensamento social latino-americano que deu origem a uma coleção de quatro
(12. ed. [1. ed., 1969], México, 1985) e Il subimperialismo brasiliano (Turim: Einaldi, 1974). livros de análise sobre o tema, publicada pela Editoria Caballito, no México, e três volumes de
5
Ver 1973, várias edições. antologia de pensadores da região publicados pela Editora da Unam.
24 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro Marini: um pensador latino-americano ■ 25

fase caracterizada pela hegemonia crescente do capital financeiro, que en- nal da luta revolucionária de nossos povos, por sua intransigência revolu-
cerrava tendências expansionistas e levava a um papel crescente do Estado cionária, só podia ser uma incômoda presença no nosso país. Nele, a maior
junto ao capital privado nacional e internacional), procurou-se desqualificar parte da intelectualidade colocou-se a serviço do establishment oligárquico
como “estancacionistas”. Ruy Mauro Marini foi o oposto disso, e, antes de e entreguista, tornando-se os arautos disfarçados da pior distribuição de
Fernando Henrique Cardoso (ou qualquer um de nós), foi o primeiro a renda do planeta, dos assassinos de índios, crianças de rua e sem-terras,
identificar o caráter dinâmico do capitalismo dependente. Só que esse di- além de se converterem nos campeões do analfabetismo e da evasão esco-
namismo não era visto no sentido do equilíbrio macroeconômico, das li- lar, da maior taxa de acidentes do trabalho de todo o mundo etc.
berdades públicas e do bem-estar social, como nos querem impingir hoje Se queriam intelectuais para ajudar a enfeitar esse quadro miserável
em dia Fernando Henrique e outros. com um palavreado pretensamente científico, não podiam definitivamente
Sua resposta àquele artigo, só divulgada no Brasil muito recentemente, contar com Ruy Mauro Marini.
tem plena vigência.7 Não podíamos esperar do triunfo circunstancial dos
autores daquelas críticas mal-intencionadas um Brasil melhor, mais demo- Bibliografia
crático e mais justo. Pelo contrário: o que vemos são as densas nuvens de
um enorme desequilíbrio cambial e fiscal, de uma crescente ação do Estado Principais livros
a favor do grande capital financeiro nacional e sobretudo internacional, de MARINI, Ruy Mauro. Análisis de los mecanismos de protección al salario en
uma crescente superexploração da mão-de-obra assalariada8 e os evidentes la esfera de la producción. México: Secretaria do Trabalho, 1983.
sinais de um autoritarismo tecnocrático evidenciado na sucessão de “me- ________. Democracia e integração na América Latina. São Paulo, 1990.
didas provisórias” que prescindem do Parlamento. Infelizmente, a recente ________. Dialéctica de la dependência. 10. ed. [1. ed., 1973]. México: ERA,
derrota eleitoral dessa corrente no plano nacional não deu origem ainda a 1990. [Dialectique de la dépendance. In: Critiques de l’économie politi-
uma mudança radical dessa situação socioeconômica. que. Paris: Maspero, 1973; Dialektik der Abhangigkeit. In: SENGHA-
A morte de Ruy Mauro Marini deu-se no bojo dessa nova fase da luta AS, Diezer (Ed.). Peripherer Kapitalismus. Analysen uber Abhangigkeit
de nosso povo. Ele, que foi militante clandestino, prisioneiro torturado do und Unterentwicklung. Francfort: Suhrkamp Verlag, 1974; Dialéctica
Cenimar, exilado em tantas terras, militante latino-americano e internacio- da dependência. Coimbra: Centelha, 1976; Dialectica della dipenden-
za. Milão: Franco Angeli, 1979.]
7
A sua resposta polêmica a Fernando Henrique Cardoso não foi publicada no Brasil, e sim ________. El reformismo y la contrarrevolución. Estudios sobre Chile. Méxi-
em espanhol: Las razones del neo-desarrollismo, respuesta a F. H. Cardoso y J. Serra. Revista
Mexicana de Sociología, México, número especial, 1978 (este mesmo número publica o artigo co: ERA, 1976.
de Cardoso). Sobre a polêmica com Cardoso, veja-se meu artigo: Os fundamentos teóricos do ________. Il subimperialismo brasiliano. Turim: Einaldi, 1974.
governo Fernando Henrique Cardoso. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 17, p. 121-142, ago.
1996, também publicado na revista Política e Administração da Fesp/RJ, 1985. Uma tradução ________. Sous-développement et révolution en Amérique Latine. Paris:
para o português do artigo de Ruy Mauro Marini só foi publicada na antologia de textos editada Maspero, 1972.
por Emir Sader pela Editora Vozes sob o título de Teoria da dependência.
8
A importância dessas análises no plano internacional pode-se ver na divulgação ampla
________. Subdesarrollo y revolución, siglo XXI. 12. ed. [1. ed., 1969].
dos artigos citados: Brazilian sub-imperalism. Monthly Review, Nova Iorque, jan. 1972; México, 1985.
Subimperialismo del Brasil. Monthly Review, Buenos Aires, 1-2 maio 1973; Subdesarrollo y
________. Subdesenvolvimento e revolução. Lisboa: Iniciativas Editoriais,
revolución en América Latina. Tricontinental, Havana, com edições também em francês e
inglês, 1968; Monthly Review – Selecciones en Castellano, Santiago, set. 1969. 1975.
26 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 27

Principais artigos
MARINI, Ruy Mauro. Brazilian interdependence and imperialist integration.
Monthly Review, Nova Iorque, dez. 1965. [La interdependencia bra- Ruy Mauro, intelectual revolucionário
sileña y la integracion imperialista. Monthly Review en Castellano,
Buenos Aires, 1966.] Emir Sader*
________. Brazilian sub-imperialism. Monthly Review, Nova Iorque, jan.
1972. [Subimperialismo del Brasil. Monthly Review, Buenos Aires,
1-2, maio 1973.]
________. Contradicciones y conflictos en el Brasil contemporaneo. Foro
Internacional, México, abr./jun. 1965.
________. La dialéctica del desarrollo capitalista en Brasil. Cuadernos Ame- Ruy Mauro Marini é o melhor exemplo de intelectual revolucionário
ricanos, México, XXV-5, jun. 1966. na América Latina. Intelectual revolucionário porque pensou a realidade
________. Las razones del neo-desarrollismo, respuesta a F. H. Cardoso y J. de forma rigorosa e do ponto de vista da sua transformação revolucionária.
Serra. Revista Mexicana de Sociología, México, número especial, 1978 Intelectual revolucionário porque não apenas pensou a realidade do ponto
[este mesmo número publica o artigo de Fernando Henrique Cardoso]. de vista da sua transformação revolucionária, mas foi sempre um militan-
________. Subdesarrollo y revolución en América Latina. Tricontinental, te, um dirigente revolucionário, vinculado a organizações revolucionárias
Havana, com edições também em francês e inglês, 1968. [Monthly da América Latina. Trabalhou na construção da teoria revolucionária e da
Review – Selecciones en Castellano, Santiago, set. 1969.] força revolucionária do nosso tempo.
Tendo-se formado na Escola de Administração Pública, no Rio de
Janeiro, Ruy Mauro se desenvolveu em um ambiente marcado pelo nacio-
nalismo de Getúlio Vargas e pela linha nacional-desenvolvimentista do
Partido Comunista Brasileiro. Esta galvanizava a grande maioria da inte-
lectualidade brasileira, assim com o conjunto da esquerda, seja no movi-
mento sindical ou no estudantil.
Ruy Mauro foi influenciado por um sociólogo brasileiro que foi seu
professor, Guerreiro Ramos, assim como por Eric Sachs, imigrante alemão,
de formação luxemburguista, que terá influência determinante na organi-
zação em que Ruy Mauro militou no Brasil – a Polop (Política Operária).

* Nascido em 1943, é secretário-executivo da Clacso, diretor do Laboratório de Políticas Públi-


cas, professor da Uerj e professor aposentado da USP. Ex-presidente da Alas, é autor de centena
de artigos e dezenas de livros em ciências sociais. Ganhador dos Prêmios Jabutis de livro do ano
e de ciências humanas em 2007 pela coordenação e autoria de Latino-americana: enciclopédia
contemporânea da América Latina e do Caribe.
28 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro, intelectual revolucionário ■ 29

Em viagem a Paris, Ruy Mauro pôde desenvolver seu estudo do marxismo resolução conservadora, mediante o golpe militar de 1964. Ao contrário
e, no retorno, engajar-se definitivamente na militância política, que para ele do pensamento hegemônico naquele momento, Ruy Mauro pôde perce-
esteve sempre associada à elaboração teórica crítica e alternativa. ber como a democracia não era funcional ao desenvolvimento capitalista
brasileiro. Ele percebeu como os espaços democráticos conquistados pelo
Teoria e prática revolucionárias movimento popular – extensão do sindicalismo urbano, rural, do funcio-
Ao contrário da grande maioria dos intelectuais de esquerda do conti- nalismo público e até mesmo dos setores da baixa oficialidade das FFAA
nente, Ruy Mauro não pode ser incluído na categoria que Perry Anderson – ameaçavam a reprodução de nosso capitalismo.
chamou de “marxista ocidental”, isto é, uma elaboração teórica desvinculada Essa análise era de tal forma correta que a ditadura militar, ao con-
da prática política e dos seus problemas centrais. A obra de Ruy Mauro trário do que alguns previram, não significou um retrocesso na expansão
resgata de forma articulada, na melhor tradição marxista, a economia, a econômica, mas o seu redirecionamento, voltando-se mais para o mercado
história, a política e a ideologia, recompondo essa totalidade que caracteriza externo e o consumo das altas esferas do consumo. Marini demonstrou
o marxismo e faz dele – nas palavras de Sartre – “a filosofia insuperável do que, ao capitalismo, interessa a expansão do mercado, não importa se con-
nosso tempo”. Tanto sua obra teórica está voltada para o deciframento da centrando renda. Em um caso como o brasileiro, nesse momento, a concen-
realidade, na perspectiva da ação militante, como sua militância política tração de renda foi um mecanismo de aceleração da expansão econômica
esteve sempre iluminada pela teoria revolucionária. e preservação da taxa de lucro, fortalecendo a capacidade de consumo dos
Chegado ao Brasil de volta da Europa, Ruy Mauro buscou compreender setores com maior poder aquisitivo. Ruy Mauro tornou-se, assim, leitura
a natureza e o momento vivido pelo capitalismo brasileiro. O golpe de 1964 essencial para a compreensão não apenas do significado do golpe militar
é o momento privilegiado para a compreensão desses fenômenos, porque de 1964 no Brasil, mas também do caráter da política econômica colocada
instrumenta o capitalismo brasileiro a fazer sua grande opção no processo em prática pela ditadura militar.
de acumulação de capital. A realização através da exportação e da esfera Ainda no Brasil, como dirigente da Polop, Ruy Mauro foi detido e
alta do consumo passa a ter papel central no processo de acumulação, fe- brutalmente torturado pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar),
nômeno captado brilhantemente por Ruy Mauro e expresso mais adiante órgão de repressão da Marinha. Saiu posteriormente do Brasil para o Chile,
em seu Dialética da dependência. trabalhando na Universidade de Concepción e ligando-se imediatamente
Mas, antes disso, em dois artigos que circularam amplamente em pu- ao movimento que tinha características similares às posições da Polop e
blicações clandestinas no Brasil – e no primeiro número da revista Teoria e que ele defendia: Movimento de Esquerda Revolucionária – MIR.
Prática –, Ruy Mauro captou as razões que haviam levado ao golpe militar No mesmo estilo que havia desenvolvido no Brasil, Ruy Mauro seguiu
no Brasil. Com uma esquerda relativamente mais débil que as de outros combinando admiravelmente seu trabalho teórico com as responsabilida-
países da região – como a da Argentina, do Chile e do Uruguai –, o Brasil des de militância política. Ocupou cargos de direção no MIR chileno, ao
acabou tendo um golpe relativamente precoce. mesmo tempo em que desenvolvia sua obra teórica, dava cursos, dirigia te-
A análise das contradições e conflitos do capitalismo brasileiro lhe ses e tinha papel destacado de direção no Centro de Estudos Socioeconômi-
permitiu perceber o confronto entre as necessidades do processo de acu- cos (Ceso), da Universidade do Chile, onde se agruparam intelectuais como
mulação e o processo de mobilização social e de reivindicação social e André Gunder Frank, os brasileiros Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra,
política, na base da profunda crise que terminou desembocando na sua Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, os chilenos Marta Harnecker, Guillermo
30 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro, intelectual revolucionário ■ 31

Labarca, Cristóbal Kay, Silvia Hernandez, Roberto Pizarro, José Bengoa, os giavam a construção do Estado nacional, dos projetos de nação, as relações
cubanos German Sanchez, José Bell Lara, entre outros. com o sistema internacional, com os centros do capitalismo, sem conseguir
Sua obra desemboca no seu livro mais importante, Dialética da depen- articular essa abordagem com os processos de acumulação de capital e de
dência. Lembro-me que Ruy Mauro havia pedido um tempo de férias para enfrentamento de classes.
ir ao México, em pleno turbilhão de 1972, com as ofensivas golpistas da A obra de Ruy Mauro retira precisamente daí sua originalidade. Ela
direita chilena e as contra-ofensivas do movimento popular. Começamos a vem da sua capacidade de compreender a constituição das nossas forma-
ficar preocupados, na universidade e no MIR, quando havia passado uma, ções sociais de forma indissoluvelmente intrincada com a constituição do
depois duas semanas, e ele não retornava e não mandava notícias, quando, sistema capitalista internacional, no interior da qual nascem, como um de
de repente, Ruy Mauro reapareceu, trazendo consigo um manuscrito, que seus elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, condicionados por esse
era simplesmente o texto da Dialética da dependência. Isto é, em meio ao tipo de inserção subordinada.
furacão da luta de classes, Ruy Mauro encontrou o tempo e a forma de se O modelo de acumulação de capital das sociedades dependentes latino-
concentrar para escrever uma das obras-primas do pensamento marxista americanas é enfocado na sua dupla ótica, ambas intrinsecamente articu-
contemporâneo, revelando como é sempre possível produzir teoricamente ladas: fornece fatores de produção que permitem a reprodução de capital
e se dedicar à militância política. nas economias centrais do capitalismo e, ao mesmo tempo, condiciona as
burguesias da periferia, inferiorizadas na competição pelo mercado inter-
Dialética da luta de classes contemporânea nacional, a induzirem em nossas formações o processo de superexploração
O conceito-chave de superexploração do trabalho permite decifrar do trabalho. Integra-se, assim, o processo de acumulação em escala mun-
questões-chave da história contemporânea e da forma que assume a luta dial e o processo de acumulação em nível nacional, com as características
de classes. Pode-se dizer que, sem esse conceito, passar-se-ia ao largo das típicas da extração do excedente que a caracteriza.
particularidades desse processo na periferia capitalista, mas – e daí a sua Esse marco teórico permitiu, por um lado, a consciência de que os
surpreendente atualidade – também da extração do valor nos países do interesses da chamada “burguesia nacional” não tinham contradições sufi-
centro do capitalismo, no período histórico marcado pela desregulação e cientes com os do imperialismo e nem sequer do latifúndio, para que pudes-
pela deslocalização dos capitais, com a correspondente constituição de um sem estabelecer uma aliança com os trabalhadores da cidade e do campo,
mercado de trabalho no plano internacional marcado pela precariedade e centrada em um modelo de desenvolvimento econômico em ruptura com
pela mobilidade acentuada dos capitais. o grande capital internacional e com a propriedade monopolizada da terra.
Até a Dialética da dependência, o pensamento de esquerda da América O modelo de acumulação voltado para a exportação e para o consumo da
Latina vivia dilemas que não conseguia resolver, preso em difíceis contra- alta esfera do mercado exigia a restrição do mercado interno e pavimentava
dições. Uma parte das análises partia dos fundamentos do marxismo, sem, os caminhos para a aliança com o latifúndio e o imperialismo, retirando da
no entanto, conseguir dar conta da situação específica das formações sociais burguesia nacional qualquer caráter revolucionário.
da periferia do capitalismo, sem uma compreensão histórica da configu- Por outro, definiu um campo dos trabalhadores da cidade e do cam-
ração assumida pelo sistema capitalista internacional e do lugar particular po, como a força motriz das transformações anticapitalistas, com a classe
ocupado por essas formações, com suas conseqüências concretas. Por ou- operária como seu setor hegemônico.
tro lado, análises da formação histórica concreta dos nossos países privile-
32 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro, intelectual revolucionário ■ 33

A visão de Ruy Mauro permite, ao mesmo tempo, entender o esgo- Isso tem representado a formalização da regressão a economias primário-
tamento da capacidade do capitalismo latino-americano de retomar o de- exportadoras, em que a soja passou a ser a estrela da pauta exportadora de
senvolvimento de forma sustentada, com distribuição de renda e expansão grande parte dos países da região, em clara regressão dos espaços conquis-
minimamente orgânica das forças produtivas. As burguesias de cada país tados anteriormente no setor industrial – regressão esta de que o Brasil é o
se desnacionalizam cada vez mais, atrelando seus interesses e destinos aos melhor exemplo.
do mercado internacional, via modelos exportadores. Seus ciclos expansi- Porém, os aspectos mais diretamente vinculados à extração do exce-
vos, além de curtos, aprofundam o caráter desigual do desenvolvimento e dente presente nas teses da superexploração do trabalho se revelaram dra-
deformam cada vez mais sua estrutura econômica, com conseqüências de maticamente os mais atuais da obra de Ruy Mauro. Por um lado, porque o
profundos desequilíbrios no plano social. O desenvolvimento econômico Consenso de Washington trouxe no seu bojo as teses da “flexibilização labo-
possível na América Latina se daria somente com o aprofundamento da ral”, isto é, estender as propostas de desregulação para as relações de traba-
dependência e da desigualdade social. lho. Estas significaram a precarização ainda maior das relações de trabalho,
com a expropriação generalizada dos direitos dos trabalhadores, entre con-
A atualidade de Ruy Mauro Marini tratos provisórios, suspensão do pagamento de indenização por demissão e
A atualidade da obra de Ruy Mauro Marini se deu no marco do período todas as formas de incentivo à informalização das relações de trabalho.
hegemonizado pelo capital financeiro, na sua modalidade de capital especu- Os direitos trabalhistas, conquistados a duras penas através de longas
lativo. A desnacionalização das burguesias nativas se deu por intermédio da lutas do movimento sindical, foram sendo atingidos de forma privilegiada
sua financeirização, esta estreitamente vinculada aos compromissos interna- pelas políticas neoliberais, revelando da forma mais crua seu caráter clas-
cionais dos governos, endividados no marco das políticas de ajuste do FMI. sista. Como um de seus resultados, na América Latina a maior parte dos
Mas o principal tema de sua obra, que revela mais profundamente sua trabalhadores não tem carteira de trabalho assinada – nunca tiveram ou
atualidade, é o da superexploração do trabalho. Em primeiro lugar, por- deixaram de ter. Assim, não são cidadãos, no sentido de serem sujeitos de
que a globalização liberal acentuou a implementação de modelos de acu- direitos econômicos e sociais. Não podem associar-se, não podem acorrer
mulação centrados na exportação e no consumo da camada de alto poder à justiça do trabalho, não possuem direitos elementares, como um nível
aquisitivo – agregando-lhes a esfera de acumulação financeira, com suas mínimo de remuneração salarial, férias, décimo terceiro salário, licença-
típicas contradições –, como contrapartida dos mecanismos de exploração maternidade e todos os direitos previdenciários e assistenciais conquistados
da força de trabalho que bloqueiam a possibilidade de desenvolvimento de nas décadas anteriores.
um mercado interno de consumo de massas. Desde que o capitalismo passou do seu ciclo longo expansivo do se-
Esse mecanismo é o que explica que a América Latina tenha se visto gundo pós-guerra a seu atual ciclo longo recessivo, a desregulação típica
retroceder fortemente ao caráter primário exportador de suas economias. das políticas neoliberais incentivou amplamente a transferência de capitais
Modelos voltados para a exportação, em época de desregulação neoliberal, da esfera produtiva para a especulativa. Esta passou a aparecer como a de-
só podem abrigar-se de volta nos setores em que desfrutam das malfadadas sembocadura dos capitais excedentes, características dos períodos recessivos
“vantagens comparativas”. Daí as batalhas dos governos da região para des- do capital. O forte processo de reconcentração de renda, resultado da
bloquear os mercados de produtos primários – particularmente os agrícolas globalização neoliberal, acentuou esse processo de transferência, ao limitar
–, como se isso fosse representar um avanço significativo de suas economias. ainda mais a capacidade de consumo da esfera baixa do mercado.
34 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ruy Mauro, intelectual revolucionário ■ 35

Como uma de suas conseqüências mais claras, o capitalismo central força de trabalho em condições ainda mais vantajosas para o grande capital
passou de décadas de pleno emprego a níveis altos de desemprego – ausentes internacional, favorecendo ainda mais as condições de superexploração do
nas principais economias da Europa Ocidental ao longo de todo o ciclo trabalho. A competição ganha pela China contra o México espelha bem
longo expansivo. A mudança nas relações de força entre capital e trabalho, essa situação. Apesar da proximidade com os EUA e da oferta de mão-de-
decorrente do ciclo recessivo, dos níveis de desemprego, da desaparição obra barata – sobretudo de mulheres e crianças sem sindicalização –, o
do campo socialista e seus reflexos na esquerda, assim como a recessão México viu esvaziarem-se em grande parte suas indústrias fronteiriças com
profunda nos países periféricos, promoveram a imigração maciça de o vizinho do norte, porque a China ofereceu condições ainda melhores de
mão-de-obra de países da periferia para países do centro do capitalismo. exploração da mão-de-obra, apesar da sua distância dos EUA. Tudo às cus-
Essa mão-de-obra, além daquela explorada pela chamada “desloca- tas da expropriação intensiva e extensiva da força de trabalho.
lização”, com a utilização extensiva de força de trabalho em países como O setor social que mais cresce no mundo – segundo os dados da
o México – com as chamadas “maquilas” –, a China, a Indonésia, a Índia, pesquisa da ONU sobre as grandes metrópoles – é justamente o subpro-
o Brasil, entre outros, permitida pela criação de uma espécie de merca- letariado da periferia das grandes metrópoles. Um setor social submetido
do mundial de mão-de-obra, generalizou a superexploração do trabalho, às piores condições de exploração, sem direitos, sem socialização através
como modalidade essencial do processo de acumulação de capital na era de sindicatos, de movimentos sociais, de educação pública, em meio à vio-
neoliberal. No próprio ciclo curto expansivo da economia estadunidense lência e ao narcotráfico, adotando religiões evangélicas ou islâmicas como
dos anos 1990, grande parte dele foi devido aos mecanismos de enorme au- formas contemporâneas de alienação.
mento de produtividade, sem elevação significativa do nível de emprego e Sem a organização, a consciência social e a incorporação dessas jovens
de renda dos trabalhadores, devido à “flexibilização laboral”, que teve como gerações, dificilmente a esquerda poderá reconquistar força de massas e
uma de suas conseqüências a elevação dos EUA a país com a maior jornada voltar a protagonizar os grandes combates políticos do novo século. Sem
de trabalho do planeta. isso, o próprio Fórum Social Mundial seguirá privilegiando os direitos do
Essa extensão se dá porque, conforme os trabalhadores mudam ainda cidadão e do consumidor, como substitutos aos grandes temas do mundo
mais constantemente de emprego nesse país, pelas facilidades que a des- do trabalho – particularmente ausentes desses foros. Sem isso, será pratica-
regulação laboral permite, perdem em média 14% dos seus salários nes- mente impossível imprimir um caráter anticapitalista à luta antineoliberal
sa mudança. Buscam compensação agregando novos empregos, elevando – objetivo pelo que certamente Ruy Mauro estaria lutando com todas suas
sua jornada de forma desmesurada, aumentando a mais-valia absoluta. Os forças, de teórico e de militante revolucionário.
maiores empregadores de mão-de-obra nos EUA são a Wall Mart e suas
rigorosas proibições de sindicalização, entre outras normas coibidoras da
defesa do poder de negociação dos trabalhadores, e a Man Power, que in-
termedeia o aluguel de mão-de-obra temporária – de que os entregadores
de pizza no fim de semana são o caso paradigmático.
Por outro lado, na periferia capitalista – nos países citados, entre
outros –, a abertura para o ingresso de capitais estrangeiros e a sua busca,
para recompor os deficits públicos, lançaram mão abertamente da oferta de
36 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 37

Meu querido Ruy

Ana Esther Ceceña*

I
Era uma estranha reunião, dessas que eram feitas nos anos 1960.
Um pequeno grupo de brasileiros se havia encontrado para esperar,
com toda a solenidade, a chegada de um misterioso personagem. Nervosos
e ansiosos, eles se movimentavam, colocavam música e falavam de qual-
quer coisa, contudo, mantendo um comportamento de circunstância.
O personagem, que chegou logo depois, era um importante dirigente
que vinha do Chile, onde vivia exilado, depois de ter sido resgatado dos
cárceres da ditadura do general Castelo Branco no Brasil. O México era em
parte um longo percurso na procura de apoio para a luta do Movimiento de
Izquierda Revolucionario (MIR), do Chile, e a Junta Coordinadora Revolu-
cionaria (JCR),1 na qual se articulavam, além do Movimiento de Izquierda
Revolucionario (MIR), o Ejército Popular Revolucionario (EPR), da Argen-
tina, o Movimiento Tupamaro, do Uruguai, e o Ejército de Liberación Nacio-
nal (ELN), da Bolívia.

* Economista mexicana. Professora e pesquisadora do Instituto de Investigaciones Económicas


da Unam. Dirige a revista Chiapas e coordena o grupo sobre hegemonia e emancipações da
Clacso. Possui vasta obra publicada em livros, e artigos em revistas científicas.
1
“(...) para debater sobre uma organização revolucionária unificada, concebida originariamen-
te pelo líder do MIR, Miguel Enríquez. Os chefes do MIR, do ERP e dos Tupamaros começaram
as reuniões em outubro de 1972, no Chile, e os bolivianos se uniram nos encontros posteriores
na Argentina, por volta de junho de 1973 (...). Em agosto (...), um mês antes do golpe, as qua-
tro organizações tinham aprovado uma aliança formal, conhecida como a Junta Coordinadora
Revolucionaria [JCR]”. Dinges, 2004, p. 82.
38 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 39

Durante duas horas, ou um pouco mais, o homem descreveu a situação Sobre Ruy Mauro Marini, seria muito importante que fossem mandadas fo-
geral da luta revolucionária no Cone Sul do continente, fazendo um balanço tografias, se vocês as tiverem. Rawson3 já está avisado sobre a possível entra-
de suas perspectivas. Tudo indicava que era um momento decisivo, e a JCR da de Marini na Argentina.4
estava envidando todos os esforços para consolidar a sua posição.
Era um momento de enorme tensão, em que se buscava que as for- Marini, como figura destacada do Comitê Exterior do MIR, era um
ças revolucionárias de toda a América Latina e Europa, onde havia já um dos alvos privilegiados dos agentes internacionais da Operação Condor.
grande número de exilados, coordenassem as suas ações para alcançar um Membros da CIA (Central Intelligence Agency) dos Estados Unidos, como
avanço definitivo em prol da construção do socialismo. Vernon Walters (subdiretor da CIA nessa época) e os cubanos Osvald
A JCR era a primeira experiência internacional de organização e luta Bosch, Guillermo Novo, José Dionisio Suárez (Dinges, 2004, p. 181) e Luis
contra o sistema de dominação. Sua própria existência constituía um enor- Posada Carriles, que atuavam principalmente na América Central e na
me desafio. E as suas possibilidades eram muito maiores do que tudo o que Venezuela, mantinham um contato estreito e permanente com os grupos
se havia tentado anteriormente. de inteligência sul-americanos. A modernização dos métodos de contra-
O grupo ouviu atentamente a análise desse importante dirigente e se insurgência dos exércitos e dos organismos policiais dos países do Sul se
comprometeu com ele. Um forte sentimento latino-americano invadia a beneficiou das experiências desses agentes anticastristas e dos ensinamen-
sala. Estava-se na época da crise capitalista do início dos anos 1970, era a tos da Escola das Américas, e de algumas outras estabelecidas em território
época também das ferozes ditaduras da América do Sul, quando a dignidade norte-americano, onde se trabalhava com táticas anti-subversivas e méto-
só podia ser mantida lutando contra a barbárie. dos de interrogatórios de prisioneiros. Os militares brasileiros certamente,
Os exilados se abraçaram e decidiram manter a frente em voz alta. recolhendo sua experiência em ditaduras no seu país, instruíam os exérci-
Esse homem era Ruy Mauro Marini. tos regionais sobre técnicas de tortura.

II (...) a CIA fornecia treinamento através do Brasil (...) este país era o “cami-
Nos documentos não classificados da Operação Condor, de triste nho” através do qual os agentes da Dina (polícia secreta chilena) se familia-
memória, pode-se ler o seguinte: rizavam com as técnicas de tortura e de interrogatório. (Entrevista a Jahn,5
citada por Dinges, 2004, p. 156)
Da documentação capturada de “Daniel” se depreende que Ruy Mauro
Marini [“Luís”], segundo homem do C.E.2 do MIR e com amplas vincula-
ções com a JCR, viajará por estes dias para a Argentina, com sua identidade
3
“Osvaldo se transformou no homem de frente argentino em uma operação conjunta no Chile
verdadeira, para encontrar-se com Edgardo Enríquez. Ver a possibilidade e na Argentina, que tinha como objetivo encontrar e eliminar o que resta dos líderes da JCR na
de capturá-los... Argentina. A verdadeira identidade de Osvaldo era José Osvaldo Riveiro, tenente-coronel desig-
nado ao Batalhão de Inteligencia 601, a principal unidade operativa do Serviço de Inteligencia
do Exército (SIE). Para suas operações clandestinas se fazia passar por ‘Jorge Osvaldo Rawson’.”
Dinges, 2004, p. 159.
4
http://abogarte.com.ar//turcojulian l.htm.
5
O coronel das Forças Armadas Mario Jahn estava a cargo do projeto de internacionalização da
2
Comitê Exterior do Comitê Central. Operação Condor, do ponto de vista global. Dinges, 2004, p. 169.
40 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 41

A colaboração era ampla entre governos, exércitos, polícias, guardas de III


fronteira e grupos de inteligência. A Operação Condor constituiu um pri- Ruy Mauro Marini se propôs compreender o capitalismo de todos os
meiro esforço coletivo de construção de um banco de informação continen- seus pontos de vista, com suas contradições e modalidades contrapostas e
tal6 sobre militantes sociais e organizações políticas, que estava à disposição articuladas. Tratava-se de um sistema desigual e combinado, como dissera
de todos eles com o propósito de aperfeiçoar os sistemas de perseguição e de Trotsky, e, em sua compreensão, apelava para uma abordagem multidimen-
comprometimento e eficiência no campo da contra-insurgência. sional e multissituacional. Era preciso encontrar as complementaridades,
em muitos casos perversas, que configuravam a dinâmica de conjunto. Foi
Tratava-se de informação de interesse vital para todas as forças de segurança assim que, com a América Latina na carne e a partir de uma leitura cuida-
e de inteligência que operam na América do Sul. Tradicionalmente cautelo- dosa e crítica das obras de Marx, Marini mergulhou nos mares da mais-
sos no momento de compartilhar as informações, agora os organismos de valia e das estratégias multidimensionais de obtenção do lucro e produziu
inteligência começaram a trabalhar conjuntamente de maneira nunca vista. uma obra que, sem dúvida, condensa as suas maiores contribuições.
(Dinges, 2004, p. 133) A Dialética da dependência propõe uma reinterpretação da história
do capitalismo, colocando no centro a contribuição da América Latina e
Somente o golpe de Pinochet retirou Marini dessas terras sul-ame- de outras regiões semelhantes, que no pensamento dominante eram depre-
ricanas e, depois de uma passada pelo Panamá e por alguns países da ciadas com termos como “atraso”, “estorvo” ou “subdesenvolvimento”. Para
Europa, ele se instalou no México, onde continuou com suas atividades Marx, como é sabido, a construção de um modo de produção especifica-
de apoio à JCR. mente capitalista somente é possível no momento em que a concentração
de riquezas permite gerar novos modos de produzir através da invenção de
Pinochet começou a desenvolver uma estratégia internacional de longo pra- máquinas e da substituição relativa do trabalho vivo, ainda que, em termos
zo, quase imediatamente depois do 11 de setembro (data do golpe militar no absolutos, sejam mantidas altas taxas de crescimento. E, segundo Marx,
Chile de 1973). De acordo com um informe da CIA datado de 3 de outubro, “(...) é somente com o surgimento da grande indústria que se estabelece em
uma das suas primeiras medidas foi recorrer aos amigos que pensavam como bases sólidas a divisão internacional do trabalho” (Marini, 1991 [1973], p.
ele: “As Forças Armadas aparentemente acreditam que a esquerda está se rea- 20), na qual a América Latina desempenhará um papel fundamental:
grupando para levar a cabo atividades de sabotagem e guerrilha. Foi solicita-
(...) à sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que apa-
do a vários governos amigos material e treinamento em questões de contra-
rece como condição necessária de sua inserção na economia capitalista in-
insurgência. Brasil e Estados Unidos foram os primeiros a ajudar o Chile a
ternacional, se acrescentará logo a de contribuir para a formação de um
reconfigurar as Forças Armadas para as novas tarefas”. (Dinges, 2004, p. 75)
mercado de matérias-primas industriais, cuja importância cresce em função
do próprio desenvolvimento industrial.
6
“O traço característico da Operação Condor mais explicitamente descrito nos documentos
de fundação e reconhecido por Contreras em diversas entrevistas foi a criação de um banco de
dados centralizado para o qual todos os países membros contribuiriam com informação de in- Assim, não somente os custos de produção são diminuídos com a
teligência. Esse banco de dados ficaria localizado no Centro de Coordenação do quartel central
da Dina no Chile, designado como ‘Cóndor1’; foi formado para centralizar em um único lugar
diferença de preços relativos, mas também a contribuição em grãos e ali-
a melhor informação de cada país e de países fora do sistema, sobre ‘pessoas (...) organizações e mentos permite desvalorizar a força de trabalho e, com isso, dar um salto
outras atividades, direta ou indiretamente ligadas com a subversão’.” Dinges, 2004, p. 173.
de qualidade na produção e nos mecanismos de extração da mais-valia:
42 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 43

(...) a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para IV


que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção Colocar-se em perspectivas diferentes, a partir das chamadas margens
de mais-valia absoluta para a produção da mais-valia relativa... (...) o desen- de manobra, implica um deslocamento epistemológico, uma modificação
volvimento da produção latino-americana, que permite à região contribuir de planos que evita a cena cartesiana. Não se trata de olhar a situação a
para essa mudança qualitativa nos países centrais, se dará fundamentalmente partir do lado oposto, mas de olhá-la de outro modo, com outra perspec-
com base em uma maior exploração do trabalhador. Esse é o caráter contra- tiva e com outros olhos, como já insistiam na sua época Guillermo Bonfil
ditório da dependência latino-americana, [o] que determina as relações de e René Zavaleta. Implica recuperar (ou construir) as próprias matrizes de
produção no conjunto do sistema capitalista (...) (Marini, 1979, p. 23) pensamento, com o objetivo de entender a si mesmo dentro da totalidade.
Consiste em realizar a descolonização do pensamento para poder avançar
O modo de produção especificamente capitalista e a irreversibilidade na descolonização da vida social.
do processo de subordinação dos outros modos de produção sobre os quais É nesse esforço coletivo de construção de visões de mundo emanci-
o capitalismo constrói o seu domínio se explicam pela combinação de di- patórias que o pensamento de Marini deve ser colocado. Nos anos 1960 e
ferentes dinâmicas e mecanismos de integração e subordinação. A geração 1970, Ruy Mauro Marini realizou um salto epistemológico quando insistia
das condições de possibilidade da mais-valia relativa se sustenta, parado- em realizar uma leitura do capitalismo a partir da América Latina, muito
xalmente, na implantação de um sistema de extração da mais-valia abso- embora nesse nível de abstração não se tenha feito referência às associações
luta em amplas regiões do mundo. Por isso, a América Latina não pode resistentes que se mantinham ocultas ou invisíveis em um processo que as
ser compreendida como um processo idêntico, ainda que atrasado, como negava. O capitalismo, dizia Marini, não podia ser compreendido a partir
propunham os teóricos do capitalismo (Rostow, entre outros), mas como somente dos centros desenvolvidos; ele tinha de encontrar suas explicações
uma parte diferente e complementar de um processo global integrado. na reconstrução da totalidade, e devia ser entendido a partir de qualquer de
A América Latina ganhava vida através dessa reinterpretação, e a dis- suas partes, ainda que as perspectivas fossem diversas. Entre outras coisas,
cussão sobre a linearidade do desenvolvimento era profundamente con- é a economia dependente que explica em grande medida o desenvolvimento
testada. O capitalismo era reconstruído a partir de suas estratégias, e, ape- geral do sistema. Esse fator é insuficiente para explicar o capitalismo, tal
sar do corte estruturalista que a análise de Marini apresentou em muitos como a grande indústria, sem o trabalho em domicílio. As economias de-
momentos, os sujeitos reapareciam com seus conflitos e suas contradições. senvolvidas não existiriam se não mantivessem uma relação simbiótica com
A especificidade do capitalismo latino-americano era parte constitutiva da as chamadas economias subdesenvolvidas.
modernidade, mostrando, não obstante, as suas facetas mais selvagens. No entanto, para descolonizar o pensamento e gerar visões eman-
cipadas da realidade, é preciso mais que pensar a partir da margem de
(...) chamada para contribuir para a acumulação de capital com base na ca- manobra ou a partir do subdesenvolvimento, é preciso antes pensar para
pacidade produtiva do trabalho nos países centrais, a América Latina pre- além desse sistema de relações e imaginários sustentado na polaridade. A
cisou fazê-lo mediante uma acumulação fundada na superexploração do emancipação do operário não significa comparar o ser proletário e o ser
trabalhador. Nessa contradição está enraizada a essência da dependência capitalista, ou mesmo mostrar a sua superioridade; a emancipação do ope-
latino-americana. (Marini, 1991 [1973], p. 49) rário implica se transformar e se colocar fora dessa dicotomia enganosa
de dominado-dominador/dominador-dominado. O caminho consiste em
44 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 45

deslocar os planos, como fazem as pinturas surrealistas de Remedios Varo, dência, nas suas vertentes mais rigorosas, dialogava com o marxismo, intro-
e demonstrar que as margens de manobra não existem, mas são produzidas duzindo explicações para essa América Latina convulsionada que buscava
pelas relações de poder. caminhos próprios, que insistia na independência e descolonização, que
combatia o imperialismo e trabalhava para a transformação social.
V O Marx latino-americano que emerge da Dialética da dependência se
O México tinha deixado de pertencer à América Latina quando o neo- toma das mãos de O capital monopolista e a economia mexicana de José Luis
liberalismo, através de uma alteração de sentidos, conseguiu ocultar, ainda Ceceña, e ambos caminham por trajetórias que confluem para a recupera-
que apenas temporariamente, as suas referências históricas. A ilusão das ção-reconstrução da América Latina como objeto de estudo, mas sobretudo
mercadorias ocupou o lugar das utopias, e os três mil quilômetros de fron- de transformação. A partir de perspectivas diferentes, elas coincidem na
teira com o maior empório mundial se dissolviam nos imaginários. busca das causas da trajetória latino-americana. Ambas constroem impor-
Os espetaculares anúncios publicitários se apresentavam em inglês, e tantes genealogias que terão pontos de contato e desenvolvimentos dife-
o homem unidimensional ocupava as ruas e os grandes centros comerciais. renciados, a demonstrar, por isso mesmo, a complexidade dos processos
Essas eram as conseqüências do boom petrolífero que ampliou as expecta- sociais nas terras de Zapata, Bolívar, San Martín, Tupac Amaru e Zumbi,
tivas materiais da classe média. entre outros muitos lutadores.
Enquanto isso, na América do Sul, abriam-se processos de desmilita- A extração da mais-valia absoluta para alimentar a grande indústria,
rização, que, depois das experiências de aniquilamento dos golpes milita- que possibilita a revolução interna do modo de produção e o surgimento
res, das ditaduras e do Plano Condor, eram assumidos como um horizonte do modo especificamente capitalista, não somente permite controlar tecni-
desejável. A construção da democracia, com todas as suas limitações, subs- camente as proporções entre valor e mais-valia, dando origem à mais-valia
tituiu os projetos socialistas de outras épocas e a meta geral se deslocou relativa, mas também sustenta o aumento da capacidade produtiva e, com
para a recuperação dos direitos civis. Os exilados, que viviam lembrando isso, o seu derrame pelo mundo. As grandes empresas que hoje dominam
tristemente dos seus lugares e de sua gente, começaram a se postar decidi- o mundo tiveram origem nesse processo de concentração e objetivação,
dos a não perder esse processo. nesse processo de conformação das classes e dos grupos de poder.
O México perdeu. Ao longo dos anos 1970, a presença de pensadores e Nesses anos, grupos de poder, como o Morgan Guaranty, Chase Ro-
lutadores sociais do Cone Sul tinha estimulado os debates políticos e tinha ckefeller, First National City Bank e Du Pont Chemical Bank, os quatro
enriquecido o ambiente de criação intelectual. A Universidade Nacional superpoderosos dos Estados Unidos (Ceceña, 1963), junto com os primei-
Autônoma do México tinha se latino-americanizado, e, nas suas aulas e sa- ros grandes grupos financeiros do mundo, apelando para políticas de Esta-
las de reunião, eram compartilhados idéias, visões, costumes, projetos. Nos do e para uma divisão internacional do trabalho impostas por eles próprios,
momentos de compartilhamento, dançava-se samba, cantavam-se canti- eram os protagonistas privilegiados das relações de dependência e da ins-
gas e lembrava-se tristemente em ritmo de tango. A teoria da dependência tauração concreta da Doutrina Monroe. Economia, política e militarização
abria campo entre os estudiosos, e os debates sobre a sua pertinência diante combinaram histórias e processos para conformar uma unidade diversa,
do marxismo que se instalava nos herdeiros de 68 eram habituais. Eram os mas controlada, na qual os mecanismos e as modalidades da mais-valia e
tempos do Che e da esperança armada. Eram tempos de criar e lutar pela do lucro reapareciam nas formas concretas de articulação e submissão de
vida. Eram tempos de resistência e de reinterpretação. A teoria da depen- processos que estruturavam desestruturando.
46 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 47

O ambiente acadêmico criado no México a partir do final da déca- deslatino-americanizava com a repatriação dos exilados e com o avanço do
da de 1970 era bastante propício para ampliar visões e perspectivas. Com neoliberalismo, havia uma triste lembrança comum: os vazios se tornavam
olhares de muitos lugares do continente, armava-se o quebra-cabeças da evidentes para aqueles que voltavam e para aqueles que ficavam.
dominação, para pensar nas condições e possibilidades do que então se Dez anos depois, Marini estava de volta. Era necessário fortalecer o
chamava correntemente de mudança social. Sérgio Bagú, Theotonio dos Centro de Estudos Latino-Americanos, um dos poucos espaços universi-
Santos, René Zavaleta, Pedro Vaz, Vânia Bambirra, Pedro Vuskovic, Agus- tários que mantinham essa visão ampla e, na contracorrente, insistiam na
tín Cueva e alguns outros, junto com Ruy Mauro Marini, José Luis Ceceña, importância de olhar para o Sul.
Bolívar Echeverría, Pablo Gonzáles Casanova, Carlos Pereyra (o Tutti) e Foi então que Marini se propôs reencontrar os fios do pensamento
um conjunto de pesquisadores mexicanos formavam o que bem se pode latino-americano através de uma revisão que remontava ao início do século
chamar de a comunidade intelectual da época. O México era um aleph (pri- XX. Desde Ramiro Guerra e Mariátegui até chegar ao pensamento contem-
meira letra do alfabeto hebraico) do pensamento crítico latino-americano, porâneo, iam-se traçando as vias de explicação do mundo a partir de uma
que não somente permitiu um florescimento teórico comprometido com América Latina em luta. As visões estruturalistas, o enfoque gramsciano e
as lutas sociais, mas também contribuiu para formar uma boa parte dos as vertentes marxistas e cepalinas da América Latina se fizeram presentes,
intelectuais das décadas seguintes. cada uma apresentando a sua versão dos diferentes momentos da história
e da complexidade de um processo no qual economia, sociedade e cultura
VI são mantidas em permanente tensão.
A ditadura tinha destruído muitas coisas. Uma das mais importantes Discussões sobre a inserção da América Latina no capitalismo mun-
era a memória. dial e as particularidades sub-regionais colocaram em relevo os diferentes
Paradoxalmente, com uma presença internacional indubitável, Marini modos em que o capitalismo se apoderou dos processos de reprodução
retorna a um Brasil que não se lembra dele, que dificilmente o reconhece e social e foi imprimindo comportamentos. A qualidade e a importância dos
onde as suas obras não eram quase conhecidas. Um Brasil que quer viver exércitos industriais de reserva, a reprodução de uma força de trabalho in-
para frente para não carregar o peso de um passado que o compromete. dustrial subvencionada pela agricultura camponesa, a formação de pólos
Em pleno neoliberalismo, com a ilusão de um Brasil potência, apesar marginais, os estratos do processo industrial e, conseqüentemente, do pro-
da penetração cada vez mais evidente de capitais norte-americanos, a so- letariado, o disciplinamento social por desapossamento, a ilusão naciona-
ciedade brasileira aponta para o primeiro mundo. Ninguém se interessava lista das burguesias locais e o diferente conceito de nação que emanava da
pelos teóricos da dependência, que eram vistos como emissários de uma luta popular de descolonização, o impacto dos monopólios estrangeiros na
realidade que era preferível ignorar. Os anos 1980 foram os da atonia, mas conformação do perfil estrutural e na implantação das relações de poder,
também do reencontro. No entanto, os exilados não pareciam ser espera- o caráter e a origem do capital e a sua capacidade de hegemonizar e impor
dos por quase ninguém, e na volta não foi possível encontrar o que se tinha normas de concorrência e políticas públicas, mecanismos e modalidades
deixado ao partir. de dominação e alternativas de desenvolvimento ou de liberação – esses
Nessas sociedades apressadas, o ambiente de reflexão não conseguia eram alguns dos temas que era preciso colocar em debate em um momento
se recompor. Havia muita coisa que precisava ser reconstruída, e os mun- no qual o sistema mundial se reorganizava, transformando o conteúdo e o
dos acadêmicos estavam totalmente transformados. Enquanto o México se caráter da divisão internacional do trabalho.
48 ■ A América Latina e os desafios da globalização Meu querido Ruy ■ 49

Nesse espaço de reflexão, em um contexto muito mais diverso, ou pelo Bibliografia


menos desinteressado, que tinha mergulhado na dinâmica do desencanto Ceceña, José Luis. El capital monopolista y la economia mexicana. México:
ou do fim da história, ele conseguiu convocar um boa parte da comunidade Cuadernos Americanos, 1963.
acadêmica e recolocar o tema da mudança social, com suas perspectivas e Dinges, John. Operación Cóndor. Chile: Quebecor, 2004.
limites para o futuro da região, e conseguiu recuperar os “fios soltos”, como Herrera, Alicia. Pusimos la bomba... y qué?. La Habana: Política, 2005.
ele dizia, do pensamento crítico latino-americano. Marini, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. México: Era, 1991.
Marini, Ruy Mauro; Millán, Márgara. La teoría social latinoamericana.
VII México: El Caballito. 1994-1996. t. I-IV.
A Dialética da dependência tinha ficado para trás. Correspondia a um
momento superado. O mundo do trabalho se movia da fábrica para as ruas,
se informatizava, aproveitando a derrota das experiências socialistas e as
inovações tecnológicas. Os processos de trabalho foram planetarizados e o
mercado de trabalho se diversificava, combinando forças de trabalho com
culturas e histórias diferentes, enquanto as submetia a um duplo movimen-
to de cerco, reforçando as fronteiras nacionais e a diáspora, promovendo a
migração temporária e o nomadismo. Estudar as profundas mudanças no
mundo do trabalho e conseguir compreender a sua nova fisionomia e o seu
caráter eram algumas das suas grandes preocupações. Escrever a etapa se-
guinte da Dialética, reavaliar o capitalismo transformado do final do século
e repensar o conteúdo e o significado do proletariado.
O câncer impediu a continuação desse trabalho, que, de alguma ma-
neira, ele foi introduzindo nos seus discípulos, nos seus companheiros, nos
seus amigos de luta e reflexão.
Meu último encontro com ele foi no Rio. Mesmo com poucas ener-
gias, não deixava de se interessar pelos debates, pelas novidades inte-
lectuais, pelas vias de investigação que se desenvolviam... Insistia muito em
estudar a nova natureza do trabalho e das relações de trabalho e a maneira
como, a partir disso, podia-se pensar a revolução.
Morreu perto do seu filho, do seu mar e nesse Brasil por quem tanto
lutou.
Ele vive ainda em todos nós.
50 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 51

Parte II


Globalização e dependência
52 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 53

Mudando a geopolítica do sistema-mundo:


1945-2025

Immanuel Wallerstein*

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a geopolítica do sistema-


mundo atravessou três fases diferentes. O período que vai de 1945 até mais
ou menos 1970 foi um período de inquestionável hegemonia dos Estados
Unidos no sistema-mundo. Os anos de 1970 a 2001 foram um período no
qual a hegemonia dos Estados Unidos começou a declinar, mas a extensão
desse declínio ficou limitada pela estratégia que esse país desenvolveu es-
pecificamente para postergar e minimizar os efeitos do declínio. Os anos de
2001 a 2025 são um período no qual os Estados Unidos buscam recuperar
a sua posição com políticas mais unilaterais, o que, contudo, tem um efeito
bumerangue e realmente vem aumentando a velocidade e a profundidade
do seu declínio.

1. De 1945 a mais ou menos 1970


O fim da Segunda Guerra Mundial marcou a conclusão de uma luta
de 80 anos entre os Estados Unidos e a Alemanha. A rivalidade era sobre a
questão de quem seria o poder hegemônico que sucederia a Grã-Bretanha
no sistema-mundo, uma hegemonia que tinha começado a declinar pelo

* Nascido em 1930, é fundador do Fernand Braudel Center na Universidade do Estado de Nova


Iorque, em Binghamton, e um dos criadores das análises ou teoria do sistema mundial. Ex-
presidente da International Sociological Association (ISA), dirigiu a Comissão Gulbenkian de
reestruturação das ciências sociais. Possui obra vastíssima, publicada em diversas línguas, onde
se destaca a paradigmática trilogia O moderno sistema mundial, iniciada em 1974, mas ainda
inédita em português. O autor se aproxima hoje do milhão de citações no google.
54 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 55

menos desde 1873. A fase culminante dessa luta envolveu uma guerra de nucleares e um comando aéreo capaz de soltar essas bombas em qualquer
30 anos, de 1914 a 1945. Essa guerra envolveu todas as maiores potências lugar do globo. Havia outro grande poder militar no mundo – a União
industriais do sistema-mundo, e, na sua última fase (a chamada Segunda Soviética. Embora tivesse sofrido uma enorme sangria durante a guerra, o
Guerra Mundial), causou destruição física maciça às populações da Europa exército soviético era ainda muito grande e não havia sido absolutamente
e da Ásia e a devastação da maior parte do seu equipamento industrial. desmantelado. Além disso, em quatro anos, a União Soviética estava em
Os Estados Unidos venceram a guerra contra a Alemanha, obtendo condições de produzir as suas próprias armas nucleares e, com isso, que-
sua “rendição incondicional” – com a indispensável assistência dos seus brar o monopólio dos Estados Unidos.
principais aliados, a União Soviética e a Grã-Bretanha, que suportaram pe- A única solução racional para essa situação militar era algum tipo de
sadas perdas. Em 1945, os Estados Unidos emergiram da guerra como a negociação política entre o que seria mais tarde chamado as duas superpo-
única e maior potência industrial que tinha suas instalações intactas, algo tências. Essa negociação foi realizada. Chamamo-la pelo simbólico nome
que, de fato, tinha sido grandemente fortalecido pela expansão na época da de Yalta, mas ela foi, naturalmente, muito mais do que acordos formalmente
guerra. Isso significou que, durante os 15 ou 20 anos seguintes, os Estados feitos na Conferência de Yalta. A negociação consistia, na minha visão, de
Unidos estavam em condições de produzir todos os principais produtos três partes.
industriais com muito maior eficiência do que as outras nações industriais A primeira parte do acordo envolvia uma divisão do mundo em es-
e, com isso, podiam vender mais do que os produtores localizados nesses feras de influência. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado em uma
outros países em seus próprios mercados internos. certa fronteira na Europa, grosseiramente o rio Elba na Alemanha, e em
No período imediatamente após a guerra, a destruição física na Eu- uma hipotética projeção para o sul no Mediterrâneo. Da mesma maneira,
ropa e na Ásia foi tão maciça que muitos países dessas regiões sofreram na Ásia Oriental, essa linha existia ao longo do rio Yalu, dividindo a Coréia
inclusive com escassez de comida, moedas instáveis e graves problemas de em duas metades. De fato, o acordo era que cada uma das superpotências
balança de pagamentos. Eles precisavam de uma urgente assistência eco- manteria o controle (militar e político) do seu lado dessa fronteira, com-
nômica de muitos tipos, e olharam para os Estados Unidos para resolver a prometendo-se tacitamente a não usar a força militar para tentar mudar o
questão. status quo. De fato, isso garantia o controle soviético sobre as áreas que ti-
Os Estados Unidos estavam em condições de transformar facilmen- nham sido ocupadas pelo Exército Vermelho, cerca de um terço do mundo,
te a sua absoluta dominação econômica em uma primazia política. Eles e garantia aos Estados Unidos o controle sobre o resto.
também, pela primeira vez na sua história, se tornaram o locus central da Já que o acordo jamais fora explícito, houve algumas vezes em que ele
geocultura. Nova Iorque substituiu Paris como a capital do mundo da arte foi colocado em questão nos anos seguintes: no norte do Irã, na guerra civil
em todas as suas formas, e o sistema universitário norte-americano rapida- grega, no bloqueio de Berlim, na guerra da Coréia, no problema Quemoy-
mente veio a dominar o conhecimento, em virtualmente, todos os campos. Matsu, nos vários levantes na Europa Oriental (1953, 1956, 1968 e 1980-
A única arena na qual os Estados Unidos estavam apreensivos, com 1981), e, sobretudo, em toda a crise dos mísseis cubanos. O que deve ser
toda a razão, era a arena militar. A política interna norte-americana tinha observado em cada uma dessas “minicrises” é que ambos os lados sempre
ordenado a rápida redução do seu exército, cujo contingente tinha sido desistiam de usar armas nucleares (o chamado equilíbrio do terror), e cada
sustentado por um sistema de destacamento universal. Do ponto de vista um desses conflitos bélicos acabava com um retorno ao status quo ante. O
militar, esse país fiava-se principalmente em dois fatos: a posse de armas fato é que a aceitação mútua das fronteiras geopolíticas do outro perma-
56 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 57

neceu durante todo o período da chamada Guerra Fria, apesar de todos os mesma. Nenhum lado aceitava como legítima a “neutralidade” nessa guerra
tipos de pressões internas em cada campo no sentido de não respeitar os ideológica. Mas, coerentemente, impedia-se que a ideologia fosse efetiva-
termos do acordo tácito. mente o fator decisivo nas contínuas decisões políticas e econômicas. A real
A segunda parte do acordo se deu na arena econômica. Os Estados função da retórica era permitir que os líderes de cada campo controlassem
Unidos estavam determinados a reconstruir a infra-estrutura dos seus alia- os dissidentes potenciais no seu próprio campo e impedir o surgimento
dos. A razão para isso era, em parte, política (para assegurar a lealdade deles de qualquer grupo que pudesse colocar realmente em questão os acordos
como satélites políticos) e, em parte, econômica (não teria muita utilidade geopolíticos. O resultado disso era uma opinião pública mundial dividida
ser o produtor mais eficiente no mundo se não houvesse suficientes com- em dois campos, cada um deles possuindo um substancial grupo de crentes
pradores para os seus produtos). O que não se queria, de fato, era derramar e adeptos.
dinheiro na reconstrução da infra-estrutura econômica da União Soviética Com o acordo de Yalta na mão, os Estados Unidos não enfrentaram
e do seu bloco. Os dois lados tiraram vantagem do bloqueio de Berlim para nenhum sério obstáculo para fazer aquilo que os poderes hegemônicos fa-
estabelecer uma espécie de dique radical entre as duas zonas econômicas. zem: estabelecer uma ordem mundial que acomodasse os seus interesses,
Os Estados Unidos usaram o bloqueio de Berlim como a desculpa política com base em uma espécie de projeto societário mundial de longo prazo. Na
para obter do Congresso norte-americano a aprovação do Plano Marshall. arena geopolítica imediata, os Estados Unidos podiam contar com obter
Eles usaram depois a Guerra da Coréia para justificar tipos similares de quase tudo durante quase todo o tempo. Já que esse período foi um período
assistência econômica para o Japão, Taiwan e Coréia do Sul. A União So- de incrível expansão econômica da economia-mundo, os padrões de vida
viética, por sua vez, construiu o Comecon (Conselho para a Assistência estavam crescendo em todos os lugares, as facilidades de educação e saú-
Econômica Mútua), com os seus satélites da Europa Central e Oriental, e de estavam se expandindo e as artes e as ciências estavam no seu apogeu.
estabeleceu ligações econômicas extensas com a China e a Coréia do Norte. Apesar de muitas histerias passageiras, a confiança no futuro parecia reinar
O pano de fundo desse acordo era que um terço do mundo soviético se sobejamente.
afastava de uma interação econômica significativa com o resto da economia- As maravilhosas harmonias desse período – o que os franceses chama-
mundo capitalista, em uma espécie de protecionismo coletivo. Eles o usa- riam depois de trente glorieuses (trinta anos gloriosos) – eram muito boas
ram para se engajarem em uma considerável industrialização e para alcançar para durar. E não duraram. Havia duas moscas na sopa. A primeira era a
notáveis taxas de crescimento durante esse período. Os Estados Unidos o recuperação econômica da Europa Ocidental e do Japão (mais os chama-
usaram para construir estruturas econômicas internacionais (que, nesse mo- dos quatro dragões). Essas áreas se recuperaram tão bem, como resultado
mento, não incluíam os países do bloco soviético), criando uma ordem eco- de políticas colocadas em operação pelos Estados Unidos, que, na metade
nômica interestatal na qual o dólar seria a moeda de troca mundial e na qual dos anos 1960, começaram a se aproximar de uma paridade econômica
as empresas industriais e financeiras norte-americanas poderiam florescer. com os norte-americanos. Deixava de ser verdade que os produtores norte-
A terceira parte do acordo era ideológica. Era permitido e mesmo in- americanos podiam vender mais do que os produtores alemães, franceses
centivado a cada lado se empenhar em estrepitosas denúncias recíprocas. A ou japoneses nos seus próprios mercados domésticos. Pelo contrário, os
retórica norte-americana dividia a arena entre o mundo livre e os Estados Estados Unidos começaram a importar produtos industrializados desses
totalitários. A retórica soviética dividia a arena entre o campo burguês e o países. E todos eles vieram a se tornar relativamente competitivos em
bloco socialista. Os nomes eram diferentes, mas a liça era essencialmente a outros mercados. Uma vez que o fosso econômico entre os Estados Unidos
58 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 59

e os seus maiores aliados foi drasticamente reduzido, o alinhamento po- A combinação da emergência econômica da Europa Ocidental e do
lítico e financeiro automático desses países com os Estados Unidos podia Japão, o esgotamento econômico dos Estados Unidos para lutar na Guerra
ser revisado, e foi. do Vietnã (e sua derrota final) e a disseminação da ideologia “libertária”
A segunda mosca na sopa foi o chamado Terceiro Mundo, ou todos não somente no Terceiro Mundo, mas dentro dos Estados Unidos e da pró-
aqueles países cujos interesses e inclusive visões estavam totalmente fora da pria Europa Ocidental, fizeram soar o toque de finados da estrutura geopo-
jurisdição das duas superpotências. Eles buscaram agir autonomamente e lítica do pós-1945. Simbolicamente, o seu fim estava situado na revolução
com estardalhaço, onde e quando pudessem. Os comunistas chineses igno- mundial de 1968.
raram a advertência de Stalin para fazer um acordo com o Kuomintang e,
ao contrário disso, marcharam sobre Xangai e proclamaram a República 2. De mais ou menos 1970 a 2000
Popular da China. O Viet Minh não se sentiu obrigado por acordos fei- O novo período foi modelado por duas novas realidades: as transfor-
tos em Genebra entre os Estados Unidos, a França e a União Soviética; ele mações político-culturais trazidas pela revolução mundial de 1968 e as trans-
continuou a tentar libertar totalmente o seu país. Os argelinos recusaram formações econômicas realizadas pelo fim da expansão da economia-mundo
a idéia de que o Partido Comunista francês deveria ditar sua estratégia e (a chamada fase A de Kondratieff) e o começo do que ficou comprovado
seu futuro, e lançaram uma guerra de libertação nacional. E os cubanos de como sendo a longa estagnação de 30 anos na economia-mundo (a chamada
Sierra Maestra, conduzidos por Castro, ignoraram totalmente a presença fase B de Kondratieff). Cada uma delas precisa ser decifrada, se quisermos
do Partido Comunista cubano no governo de Batista. Eles continuaram a entender como a arena geopolítica foi fundamentalmente reestruturada.
descer das colinas, tomaram, primeiramente, posse de Havana e, em segui- A revolução mundial de 1968 (que, realmente, durou mais ou menos
da, do Partido Comunista cubano. de 1966 a 1970) foi uma violenta rebelião dos estudantes universitários e,
Em suma, a capacidade da União Soviética de impedir as forças po- em muitos casos, também dos trabalhadores contra todos os tipos de auto-
pulares no Terceiro Mundo de tentar frustrar os planos de Yalta se mos- ridade. Grandes revoltas mundiais eclodiram de repente, fulguraram e de-
trou insuficiente, e os líderes das superpotências se apressaram em ficar pois malograram, como uma Fênix. Enquanto prosseguiam, elas pareciam
a reboque desses movimentos, embora relutantemente e tardiamente. O um furacão de categoria cinco para todo e qualquer um que fosse apanha-
resultado foi que esses movimentos nunca obtiveram muita aprovação de do em qualquer lugar próximo dos muitos locais do distúrbio. Podemos
nenhuma superpotência. As duas superpotências abandonaram as suas po- chamar isso de uma revolução mundial porque ocorreu virtualmente em
líticas “não neutras” e começaram a buscar os líderes nacionalistas desses todos os lugares do mundo e porque especificamente atravessou a divisão
países que pudessem se alinhar com elas. No caso dos Estados Unidos, isso tripartite do sistema-mundo da época – o Ocidente, o Bloco Comunista e
significava que eles começavam a irritar os “velhos poderes coloniais”, que o Terceiro Mundo. Uma verdadeira história abrangente dos eventos está
consideravam essa nova política norte-americana como sendo imprudente ainda por ser escrita, e muitos observadores estão somente conscientes dos
e intervencionista. Essa mudança na política tácita da superpotência mar- acontecimentos mais espetaculares, aqueles cobertos pela mídia, mas não
cou o triunfo de Bandung – o encontro em 1955 de 29 países da Ásia e da têm conhecimento da enorme quantidade de pequenas revoltas, especial-
África que proclamaram o ingresso do mundo não ocidental no processo mente aquelas ocorridas em regimes muito autoritários.
de tomada de decisão do sistema-mundo e forçaram tanto os Estados Uni- Os problemas em cada lugar foram sempre definidos localmente,
dos quanto a União Soviética a começar a cortejá-los. como agora gostamos de dizer. Houve, naturalmente, problemas locais
60 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 61

em cada evento, e também uma retórica local, mas houve, realmente, dois que buscavam responder ao sentido dessa desilusão que estava agora tão
problemas globais que foram proclamados em quase todos os eventos. O disseminada – uma desilusão particularmente referente à idéia de que o
primeiro deles foi a rejeição dos acordos de Yalta. Isso, habitualmente, veio principal objetivo dos movimentos populares deveria ser ganhar o poder
na forma da denúncia do imperialismo norte-americano (essa era a época estatal, Estado por Estado.
da Guerra do Vietnã) e, simultaneamente, da denúncia do “conluio” entre a A desilusão política foi rapidamente fortalecida pela desilusão eco-
União Soviética e, o imperialismo, dos Estados Unidos. De fato, a descrição nômica. O período que vai de 1945 a 1970 foi movido pelo conceito de
do mundo como estando dividido entre as duas superpotências e os outros “desenvolvimento” – a idéia de que, de algum modo, adotando uma política
– uma invenção conceitual maoísta chinesa – é fruto específico de 1968. estatal correta, qualquer país poderia atingir o alto padrão de vida dos paí-
O segundo problema global que foi levantado em quase todo lugar foi ses mais ricos. Os Estados Unidos, a União Soviética e os países do Terceiro
a denúncia da “Velha Esquerda” pelos revolucionários de 1968, isto é, os Mundo tinham, sem dúvida, diferentes vocabulários sobre o desenvolvi-
três tipos clássicos de movimentos anti-sistêmicos – os partidos comunis- mento, mas as idéias básicas que todos eles alimentavam eram visivelmente
tas (no poder do chamado bloco socialista), os partidos socialdemocratas semelhantes. A proposta subjacente era de que a combinação de urbaniza-
(em alternância de poder na maioria dos países ocidentais) e os movimen- ção, agricultura mais eficiente, industrialização, educação e protecionismo
tos de libertação nacional e populistas (no poder da maioria dos países do de curto prazo (substituição de importações) constituíam o caminho para
Terceiro Mundo). A acusação básica contra a Velha Esquerda era que ela a terra prometida do desenvolvimento.
tinha oferecido a seus seguidores um programa de dois passos – primeiro Nos anos 1960, as Nações Unidas, sem a objeção de ninguém, anuncia-
chegar ao poder estatal, depois transformar o mundo –, e que, tendo chega- ram que a década de 1970 seria a década do desenvolvimento. Essa foi uma
do ao poder, esses movimentos da Velha Esquerda não cumpriram as suas das previsões menos cautelosas já feitas. Os anos 1970 se tornaram a década
promessas. Pois, era verdade que a Velha Esquerda tinha, de fato, chegado da morte do desenvolvimento como idéia e como política. O que aconteceu
ao poder estatal em uma grande parte do mundo no período de 1945 a é que a expansão da economia-mundo tinha alcançado os limites de muitos
1968, mas era também bastante claro que esses movimentos não tinham produtores nas indústrias de ponta (resultado da reconstrução da Europa
absolutamente transformado o mundo. O mundo permaneceu hierárquico, Ocidental e da Ásia Oriental) e, por conseguinte, um agudo declínio dos
não democrático e desigual (internacional e nacionalmente). E, na visão níveis de lucros nos setores mais lucrativos da produção mundial. Esse é
dos revolucionários de 1968, os partidos da Velha Esquerda no poder ti- um problema recorrente na operação da economia-mundo capitalista, e le-
nham se tornado o maior obstáculo para alcançar a verdadeira mudança vou a resultados padrões: remanejamento de muitas dessas indústrias para
que tinham prometido quando estavam na sua fase de mobilização. países semiperiféricos, onde os níveis salariais eram mais baixos (com esses
Essas duas visões – o conluio da União Soviética com o imperialismo países considerando esse remanejamento como sendo “desenvolvimento”);
dos Estados Unidos e o fracasso político da Velha Esquerda – traziam como crescimento do desemprego no mundo (mais notadamente nos países mais
conseqüência o fato de que o esforço político dos movimentos da Velha Es- ricos), levando ao declínio dos salários reais e dos níveis de tributação nes-
querda fora fatalmente liquidado. Mas havia algo mais. Dissipou-se o fácil ses países; concorrência na “tríade” dos Estados Unidos, Europa Ocidental
otimismo de longo prazo que tinha encorajado os sentimentos populares e Japão com a Ásia Oriental para exportar reciprocamente o desemprego;
por mais de um século. Os levantes de 1968 obrigaram as forças popula- transferência do capital de investimento das empresas produtivas para a
res a repensar suas estratégias; além disso, havia várias “novas esquerdas” especulação financeira; e a aguda crise da dívida pública.
62 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 63

Os anos 1970 viram as duas escaladas do preço do petróleo, que fi- medida em que as conseqüências econômicas da estagnação econômica
zeram sangrar os países do Terceiro Mundo. Tanto o Terceiro Mundo mundial os atingiu negativamente. Muitos dos seus regimes políticos co-
quanto os países do Bloco Socialista vieram a ter problemas de balanço meçaram a cair, com guerras civis e outros tipos de tumultos internos, ao
de pagamentos negativo, como resultado do mercado enfraquecido para lado dos seus dilemas econômicos. Um por um, eles cederam às demandas
suas exportações nos países ricos combinado com os custos crescentes das do Consenso de Washington. Nem mesmo o Bloco Comunista ficou isento
importações em razão dos aumentos nos preços do petróleo. Os lucros ob- dessa deterioração. As suas um dia impressionantes taxas de crescimento
tidos pelos países produtores de petróleo foram colocados maciçamente declinaram vertiginosamente, a sua autoritária coesão interna se desinte-
nos bancos dos Estados Unidos e da Alemanha, de onde esse dinheiro foi grou e a capacidade de a União Soviética agora controlar os ruidosos “sa-
“emprestado” para os agora desesperados países do Terceiro Mundo e do télites” pouco a pouco desapareceu. Finalmente, como sabemos, a própria
Bloco Socialista. Isso aliviou a situação deles durante alguns anos, mas as União Soviética entrou no caminho da “reforma” política e econômica
dívidas precisavam ser pagas. Não demorou muito, até que nos anos 1980 (Perestroika mais glasnost) com Gorbatchev. O remédio foi de muitas ma-
se viu a chamada crise da dívida, quando esses países descobriram o custo neiras um brilhante sucesso; mas, infelizmente, o paciente morreu.
de suportar dívidas excessivas para os seus fracos tesouros. Esse “fracasso” Então, pareceu a muitos que o sistema-mundo tinha entrado nesse
da ideologia desenvolvimentista montou o cenário para o ataque neolibe- período em uma era dourada para os Estados Unidos. Não, de maneira
ral, desferido pelos regimes de Thatcher e Reagan, pelo Fundo Monetário alguma, ocorreu exatamente o contrário. Em primeiro lugar, os Estados
Internacional e pelo Fórum Econômico Mundial de Davos. Unidos tiveram de admitir que tinham perdido a maior guerra para um
Uma nova definição do caminho para a terra prometida – o chamado país pequeno. Nixon se retirou do Vietnã ignominiosamente, e foi diagnos-
Consenso de Washington – inverteu a maioria dos dogmas do desenvol- ticado que os norte-americanos tinham sido acometidos por uma síndrome
vimentismo. A industrialização por substituição de importações era agora vietnamita – isto é, uma grave rejeição da população norte-americana em
definida como um processo de favorecimentos corrupto; a construção esta- comprometer suas tropas com uma ruinosa guerra em regiões distantes
tal, como alimentando uma burocracia inchada; a ajuda financeira dos paí- do mundo. Ao Vietnã se juntou o escândalo de Watergate, o que obrigou
ses ricos, como dinheiro derramado na sarjeta; e as estruturas paraestatais, Nixon a renunciar ao seu mandato de presidente.
como barreiras mortais para uma atividade empresarial lucrativa. Os Esta- A derrota militar e a crise política interna norte-americanas foram,
dos foram impelidos a adiar gastos com a educação e com a saúde. E foi re- de fato, apenas parte do cenário de um problema geopolítico mais grave
alçado que as empresas públicas, consideradas, por definição, ineficientes, dos Estados Unidos – a perda da sua automática superioridade econômica
deveriam ser privatizadas o quanto antes. O “mercado”, mais do que o bem- para os seus maiores aliados, a Europa Ocidental e o Japão. Pois, já que os
estar da população, agora se tornava a medida de toda atividade adequada três tinham se tornado mais ou menos iguais economicamente, os Estados
do Estado. O Fundo Monetário Internacional fortaleceu essa visão, tornan- Unidos não podiam mais contar com o comportamento da Europa Oci-
do os seus empréstimos dependentes do “ajuste estrutural”, o que significa dental e do Japão como satélites. A política externa norte-americana tinha
essencialmente seguir as prescrições do Consenso de Washington. de mudar, e mudou. Começando com Nixon e continuando nos 30 anos
A geopolítica do sistema-mundo mudou radicalmente. Os países do seguintes (de Nixon a Clinton, passando por Reagan), todos os presidentes
Terceiro Mundo perderam a autoconfiança que tinham alcançado na épo- dos Estados Unidos se concentraram em um objetivo não revelado: dimi-
ca anterior e os melhoramentos do seu padrão de vida desapareceram na nuir a velocidade do declínio da hegemonia norte-americana.
64 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 65

O programa que eles desenvolveram tinha três faces. O primeiro ele- potências nucleares trabalhariam para estabelecer negociações no sentido
mento destinava-se a manter o poder político dos Estados Unidos. Era a do desarmamento nuclear e para permitir, inclusive ajudar, outros países a
oferta de uma “parceria” para a Europa Ocidental e o Japão. Os Estados desenvolver usos pacíficos da energia nuclear em troca de uma renúncia do
Unidos, de fato, disseram para os seus maiores aliados que dariam voz a resto do mundo em produzir armamento nuclear. Três países se recusaram
eles na reconstrução de uma política geopolítica mundial conjunta, em tro- a assinar o tratado – Índia, Paquistão e Israel –, e todos eles, desde então,
ca do que a Europa Ocidental e o Japão se absteriam de buscar políticas adquiriram armamento nuclear. Mas todos os demais países finalmente as-
unilaterais no cenário mundial. A parceria foi implementada com a criação sinaram. E muitos países de quem se pensava terem começado programas
de uma série de instituições (a Comissão Trilateral, as reuniões do G-7, o no sentido de desenvolver armamento nuclear, de fato, encerraram esses
Fórum Econômico Mundial em Davos, entre outras coisas). O maior ar- programas. A lista não é uma lista formal, mas provavelmente inclui pelo
gumento que os Estados Unidos usaram era a necessidade de manter uma menos a Suécia, a Alemanha, a Coréia do Sul, o Japão, a África do Sul, o
frente unida contra a União Soviética (que tinha começado a abrandar Brasil e a Argentina. E, desde o colapso da União Soviética, três repúblicas
a implementação dos acordos de Yalta, por exemplo, envolvendo-se na agora independentes – Ucrânia, Bielo-Rússia e Kasaquistão – renunciaram
sustentação do regime comunista no Afeganistão). às armas que tinham sido instaladas no seu território. Há, naturalmente,
A parceria foi apenas em parte bem-sucedida em obrigar os maiores um pequeno grupo de países cujas práticas reais têm há muito estado em
aliados. A Alemanha decidiu perseguir a chamada Ostpolitik (política disputa: o Iraque (cuja capacitação nuclear de Osirak foi bombardeada por
oriental), contra os desejos do governo norte-americano. A Europa Oci- Israel em 1981), a Líbia (que desmantelou suas capacidades em 2004), a
dental (incluindo o governo da Sra. Thatcher) concordou em construir o Coréia do Norte e o Irã em particular.
gasoduto da União Soviética ao Ocidente, contra os desejos do governo A razão por que esse tratado é tão crucial para os Estados Unidos
norte-americano. E, nos anos 1990, a Coréia do Sul decidiu lançar uma “po- se deve a que parece claro que qualquer país, mesmo com algumas armas
lítica de amizade” para com a Coréia do Norte, também contra os desejos nucleares, representa um tal potencial para uma ação militar contra os Es-
do governo norte-americano. Mas, ainda que parcialmente bem-sucedida, tados Unidos, que isso limita claramente as opções norte-americanas e a
ela foi, pelo menos parcialmente, bem-sucedida. Os aliados dos Estados realidade da sua força militar. Podemos dizer que este segundo objetivo
Unidos não se desviaram muito. também foi parcialmente bem-sucedido, mas apenas parcialmente.
O segundo elemento destinava-se a assegurar a vantagem militar dos O terceiro elemento dessa revisada política externa era econômico.
Estados Unidos. Agora que o Vietnã tinha indicado os limites das forças Quando o Consenso de Washington substituiu o desenvolvimentismo como
terrestres norte-americanas, era mais importante do que nunca manter a doutrina econômica dominante no mundo, o que se fez foi tornar o envol-
sua vantagem nuclear. Os Estados Unidos tinham já perdido o monopólio vimento econômico e, particularmente, financeiro dos Estados Unidos nos
absoluto nas armas nucleares, por volta de 1964; a Grã-Bretanha, a União países do Terceiro Mundo muito mais extenso e lucrativo, e, por conseguinte
Soviética, a França e a China, todas tinham adquirido essas armas. Mas os compensou para alguns o declínio na lucratividade das antigas indústrias de
Estados Unidos decidiram que era crucial que a expansão terminasse aí. O ponta norte-americanas. De muitas maneiras, esse aspecto da política exter-
segundo elemento, por conseguinte, era fazer cessar a proliferação nuclear. na revisada foi o mais bem-sucedido dos três, até os últimos anos de 1990.
O Tratado sobre Não-proliferação de Armas Nucleares entrou com Tal como as políticas dos Estados Unidos no período de 1945 a 1970, a
força em 5 de março de 1970. O tratado oferecia uma negociação. As cinco parcialmente bem-sucedida política norte-americana de diminuir o ritmo
66 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 67

do declínio no seu papel hegemônico criou dificuldades para os Estados Tinha já completado uma inconclusiva e exaustiva guerra contra o Irã, uma
Unidos exatamente no momento, a década de 1990, em que esse país estava luta com o ativo incentivo dos Estados Unidos. Tinha contraído grandes
se felicitando com o seu “novo” papel de “única superpotência”. A primeira dívidas com o Kuwait e a Arábia Saudita, conseqüentemente, dívidas que
dificuldade foi que o colapso da União Soviética era negativo, não positivo, tinha dificuldade de pagar. Acreditava que o Kuwait estava drenando pe-
para a sua posição geopolítica. E, em meados da década de 1990, as muito tróleo dos campos do Iraque usando poços diagonais. E o Iraque tinha ar-
extensas vantagens dos Estados Unidos na economia-mundo do Consenso gumentado durante 70 anos que o Kuwait fazia parte do seu território, e
de Washington impulsionaram consideráveis resistências populares. Deve- que tinha sido apenas criado como um Estado separado pelos britânicos,
mos analisar cada uma dessas dificuldades. obedecendo às suas próprias razões. Assim, ele achava que podia resolver
A retórica norte-americana foi sempre que o sistema soviético teria todos esses problemas com um único golpe fatal, invadindo o Kuwait, que
terminado. Ronald Reagan tinha-o chamado de o “império do mal”, e gri- não era militarmente páreo para o exército iraquiano.
tou para Mikhail Gorbatchev: “derrube este muro (de Berlim)”. Quando Ele naturalmente se preocupava com a reação mundial ao que obvia-
Gorbatchev derrubou esse muro, de fato por suas próprias razões, e quan- mente era, pela lei internacional, uma agressão. Mas, por causa do iminente
do ele forçou um considerável desarmamento recíproco com os Estados colapso da União Soviética, podia se permitir desconsiderar as visões so-
Unidos, estes ficaram perplexos, em grande parte sem acreditar nisso e ab- viéticas. Sentiu que podia manipular militarmente a Arábia Saudita, caso
solutamente inseguros sobre como manipular esse novo desenvolvimento. precisasse fazer isso. O seu único obstáculo eram os Estados Unidos. Pro-
O fato é que, em um período relativamente curto, os Estados da Europa vavelmente, raciocinou assim: ou os Estados Unidos não reagiriam (como
Oriental e Central derrubaram os seus regimes comunistas e encerraram ele se certificou com o embaixador dos Estados Unidos no Iraque dois dias
as suas ligações econômicas e militares com a União Soviética. Isso foi antes da invasão), ou reagiriam. Ele provavelmente tinha 50% de chances.
seguido pela dissolução do Partido Comunista da União Soviética, pelo Se os Estados Unidos reagissem, o pior que possivelmente fariam seria ex-
desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nas suas pulsar o Iraque do Kuwait. Assim, em tudo e por tudo, esse parecia um jogo
16 repúblicas constituintes e pelo paralelo desmantelamento da República que valeria a pena jogar. E evidentemente fez a aposta.
Federal da Iugoslávia. O que aconteceu então? Os Estados Unidos, depois de uma hesitação momentânea, decidiram
As principais conseqüências geopolíticas foram duas. Os Estados Uni- reagir. Mobilizaram uma campanha política e militar. Conseguiram quatro
dos perderam o último argumento importante que tinham diante da Europa países (Alemanha, Japão, Arábia Saudita e Kuwait) para arcar com 90%
Ocidental para que ela permanecesse politicamente ligada a eles – a neces- dos custos da operação norte-americana. Os Estados Unidos e seus aliados
sidade de manter uma frente comum contra a União Soviética. E os Estados expulsaram o Iraque do Kuwait e pararam na fronteira, porque se temia
Unidos perderam a última coerção indireta que tinham sobre as políticas quanto às conseqüências negativas que poderiam vir da invasão norte-
dos países do Terceiro Mundo – o papel da União Soviética como o país americana do Iraque. O resultado final foi o status quo ante. Este foi certa-
que impunha (nos países que eram hostis aos Estados Unidos) as regras mente modificado pelas sanções das Nações Unidas e por várias coerções à
dos acordos de Yalta. Isto foi dramaticamente visto nas ações de Saddam soberania do Iraque. Contudo, Saddam Hussein permaneceu no poder.
Hussein nos anos 1990-1991. No front da economia-mundo, os anos 1990 deviam ser o momento
Não deveríamos interpretar erradamente o que aconteceu quando da institucionalização de longo prazo da ordem global neoliberal, cujo
Saddam Hussein decidiu capturar o Kuwait. Ele tinha uma série de motivos. principal instrumento devia ser a Organização Mundial do Comércio,
68 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 69

encarregada de assegurar que os países do Sul abririam as suas fronteiras mica mundial neoliberal, ela precisou enfrentar demonstrações popula-
aos fluxos comerciais e financeiros do Norte e garantiriam a sua proprie- res (principalmente os movimentos sociais norte-americanos) que de
dade intelectual. O slogan básico foi aquele lançado pela Sra. Thatcher uma fato descarrilaram esses procedimentos. Isso foi seguido por outras tantas
década antes: “Não há alternativa” (Tina: “There is no alternative”). Uma demonstrações em vários outros encontros internacionais nos cinco anos
realização geopolítica inicial dos Estados Unidos foi a assinatura do Tra- seguintes, e depois pela criação do Fórum Social Mundial, que se reuniu
tado de Livre-Comércio das Américas (Nafta: North American Free Trade pela primeira vez em Porto Alegre (Brasil) em janeiro de 2001. O Fórum
Agreement), que devia ser implementado a partir de 1º de janeiro de 1994. Social Mundial destinava-se a ser a contrapartida popular antineoliberal ao
Os países do antigo bloco socialista, incluindo a própria Rússia, engaja- Fórum Econômico Mundial de Davos, o oficial encontro de base das forças
ram-se em uma orgia de privatizações e fronteiras abertas. Assim o fez mundiais que levavam adiante a agenda neoliberal.
também um grande número de países do Sul. O programa geopolítico dos Estados Unidos de 1970-2000 – a dimi-
O resultado imediato em um grande número de países não foi uma nuição do ritmo do declínio da hegemonia norte-americana – parecia estar
melhor situação econômica, mas uma economia grandemente agravada, sendo paralisado. Era hora de buscar outro olhar.
com o desaparecimento das redes de segurança do bem-estar social, de-
semprego crescente e moedas declinantes – tudo isso ocorrendo lado a lado 3. De 2001 a 2025
com o surgimento repentino de novos estratos ricos. O quadro era de de- Quando George Bush foi celebrado como presidente dos Estados Uni-
sigualdades internas grandemente aumentadas nos países menos ricos do dos, em 2001, trouxe para as mais altas posições do seu governo um grupo
mundo. Quando a única área do Sul que tinha estado melhor economica- de pessoas que chamamos de “neoconservadores”. Esse grupo realmente se
mente – a Ásia Oriental e o Sudeste da Ásia – foi acometida por uma grave constituiu em uma presença pública nos anos 1990, em uma organização
crise em 1997, seguida por crises semelhantes na Rússia e no Brasil, a opção chamada Programa para um Novo Século Americano (Program for a New
neoliberal perdeu a sua máscara de solução para os problemas econômicos American Century). Eles fizeram várias declarações públicas a respeito das
do mundo. suas visões geopolíticas no período de 1997 a 2000, de modo que o seu
Houvera já reações políticas de vários tipos. Uma foi o retorno ao programa não era secreto. Embora George W. Bush não fosse um mem-
poder dos antigos partidos comunistas em vários países, agora remode- bro desse grupo, este incluía o seu vice-presidente, o secretário e o vice-
lados como partidos socialdemocratas que estavam pelo menos prontos secretário de Defesa, o seu irmão e outras pessoas que se tornaram juízes e
para manter alguns fornecimentos de bem-estar. Outra foi a erupção dos conselheiros do governo Bush.
zapatistas em uma pobre área remota do Sul, os Chiapas no México. Os Os neoconservadores eram extremamente críticos da política externa
zapatistas irromperam a sua revolta simbolicamente em 1o de janeiro de de Clinton, mas não somente de Clinton. De fato, eles estavam criticando
1994, a data em que o Tratado de Livre-Comércio das Américas veio a se todas as iniciativas da política externa norte-americana no período de 1970
efetivar. Eles falaram em nome da população indígena, que clamava pelo a 2000, que estou chamando de a política externa de Nixon a Clinton, e que
controle autônomo de suas próprias vidas e rejeitava as opções neoliberais tinha como seu principal objetivo reduzir o declínio do poder hegemônico
para si e para todo o mundo. dos Estados Unidos. Esse grupo dizia que o copo do poder norte-ameri-
Quando a Organização Mundial do Comércio se reuniu em Seattle cano não era meio cheio, mas meio vazio. Eles acreditavam que o declínio
em 1999 para redigir as regras definitivas que criariam a ordem econô- era muito real. Contudo, não o viram como o resultado de estruturas mu-
70 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 71

tantes do sistema-mundo (por exemplo, o fim da superioridade econômica imediatamente os neoconservadores se viram em condições de fazer George
dos Estados Unidos diante da Europa e do Japão), mas, antes, da ineficácia W. Bush comprar toda a sua abordagem da geopolítica. O que provavelmen-
política e da falta de decisão consistente dos sucessivos presidentes dos te o convenceu e a seus conselheiros imediatos foi o fato de que assumir o
Estados Unidos. Eles não isentaram Ronald Reagan dessa crítica, embora manto de um “presidente da guerra” parecia ser o caminho mais seguro
não dissessem isso em voz alta. para a reeleição, assim como para garantir o programa doméstico, que era
Os neoconservadores exigiram uma revisão radical da política externa muito caro a George W. Bush.
norte-americana. Eles desejavam substituir o “multilateralismo frouxo”, que A lógica da posição dos neoconservadores era muito simples. Derru-
era a base da “parceria” que os Estados Unidos ofereciam aos seus princi- bar Saddam Hussein pela força, preferencialmente por uma grande força
pais aliados entre 1970 e 2000, por uma “decisão unilateral”, que ofereciam unilateral, não somente restauraria a honra dos Estados Unidos, mas tam-
a seus aliados com base no “pegar ou largar” (take-it-or-leave-it). Queriam bém, efetivamente, intimidaria três grupos cujas políticas pareciam cons-
insistir sobre a adesão imediata à não-proliferação nuclear daqueles países tituir a maior ameaça à hegemonia norte-americana: a Europa Ocidental,
que pareciam resistir à idéia, embora quisessem ao mesmo tempo desatre- com suas pretensões de autonomia geopolítica, os proliferadores nucleares
lar os Estados Unidos das restrições que tinham aceitado sobre a expansão potenciais (especialmente a Coréia do Norte e o Irã) e os governantes dos
e a atualização do seu próprio arsenal nuclear. Desejavam recusar qualquer Estados árabes, que estavam se movendo com força para ajudar a desati-
participação dos Estados Unidos em novos tratados que de alguma ma- var o conflito palestino-israelense, mas concordando com uma resolução
neira limitassem as decisões nacionais norte-americanas (o Protocolo de “duradoura” que permanecia grandemente nos termos de Israel. Os neo-
Kioto, a Lei do Tratado do Mar etc.). E, principalmente, desejavam desti- conservadores raciocinaram que, se pudessem alcançar esses três objetivos
tuir Saddam Hussein pela força. Sua impressão era de que Saddam Hussein rápida e definitivamente, todas as graves oposições à hegemonia norte-
tinha humilhado os Estados Unidos permanecendo no poder no Iraque. americana se desintegrariam e o mundo entraria realmente em um “novo
E censuraram implicitamente o primeiro presidente Bush (George H. W. século americano”.
Bush) por não ter marchado sobre Bagdá em 1991. Eles cometeram muitos erros de avaliação. Admitiram que a conquista
É importante observar que muitos, se não a maioria desses indiví- militar do Iraque seria relativamente simples e custaria pouco, tanto em
duos, tinham conservado altas posições nos governos de Ronald Reagan e homens quanto em dinheiro. Está claro agora que estavam errados nisso.
George H. W. Bush, mas jamais tinham sido capazes de conseguir que esses Embora as tropas norte-americanas tivessem entrado rapidamente no Ira-
governos comprassem tal programa. Eles tinham sido impedidos por um que, elas foram incapazes de estabelecer a ordem no país. As forças do Baath
grande número de pessoas que aderiram à estratégia de Nixon a Clinton e escapuliram para formar a base de uma resistência de guerrilha, cuja am-
viram as propostas dos neoconservadores como sendo extremamente ar- plitude e eficácia cresceram permanentemente. Os Estados Unidos estavam
riscadas. Assim, foram frustrados não somente por Saddam Hussein, mas claramente despreparados para manejar a complexidade da política interna
pelo que devia ser pensado como sendo o establishment da política externa do Iraque e chafurdaram no meio de um pântano não somente militar, mas
norte-americana. também político, do qual ficou muito difícil se livrarem. De fato, enquanto
E nos primeiros oito meses da segunda presidência de Bush, os neo- o tempo passava, os Estados Unidos viram que tinham cada vez menos
conservadores continuavam frustrados. Então veio o ataque de 11 de se- espaço de manobra e vieram a se parecer com Gulliver submetido pelos
tembro de Osama Bin Laden às Torres Gêmeas e ao Pentágono. E quase pequenos liliputianos.
72 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 73

Além disso, a política de intimidação se inverteu totalmente. Longe de Quanto aos chamados regimes árabes e muçulmanos, a conclusão que
ceder à pressão dos Estados Unidos, a Europa Ocidental (particularmen- tiraram da invasão do Iraque era de que as políticas ambíguas que eles ti-
te a França e a Alemanha) começou a exibir um grau de independência nham conduzido por décadas eram de fato a única politicamente plausível
política desconhecida desde 1945. Em 2003, os Estados Unidos privaram- para a sua própria sobrevivência. Eles ficaram em geral espantados com
se de recolher a resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas as conseqüências políticas da invasão do Iraque – para o Iraque, mas tam-
para endossar a invasão norte-americana, quando se tornou claro que a bém para os seus próprios países. Certamente, não foram persuadidos para
resolução receberia somente quatro dos 15 votos, uma margem de perda aprovar essa linha, mais do que tinham sido em relação aos projetos norte-
de sustentação que os Estados Unidos nunca tinham experimentado an- americanos para o Oriente Médio.
teriormente nas Nações Unidas. Longe de fazer voltar a Europa Ocidental Finalmente, no front do neoliberalismo, o Consenso de Washington
do status de “parceiros” para o de “satélites”, a nova política unilateralista não parecia mais obrigatório para os países do Sul, exatamente por causa
tornou virtualmente impossível que esse continente aceitasse novamente o da enfraquecida posição geopolítica dos Estados Unidos como resultado da
status de meros “parceiros”, ao invés do de atores autônomos na arena po- sua política no Iraque. As negociações na Organização Mundial do Comér-
lítica mundial que deviam ou não deviam se aliar com os Estados Unidos cio, que o regime de Bush procurou ressuscitar, assim como o programa de
em questões particulares. Bush para criar a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) resultaram
A intimidação também não funcionou melhor em relação aos proli- em impasses, nos quais o governo brasileiro assumiu a liderança junto com
feradores nucleares. A Coréia do Norte e o Irã tiraram como conclusão da outros governos do Sul.
invasão norte-americana contra o Iraque que os Estados Unidos tinham Nos encontros da Organização Mundial do Comércio de 2003, em
praticado esse ato não porque o Iraque tivesse armas nucleares, mas exata- Cancun, o Brasil juntou forças com a África do Sul, a Índia e a China para
mente porque não tinha armas nucleares. Parecia óbvio aos governos desses formar o bloco de países do G-20, para negociar com os Estados Unidos
dois países que a defesa mais segura dos regimes aí existentes era acelerar
e com a Europa Ocidental. A posição básica do G-20 era de que, se eles
o seu projeto de adquirir armas nucleares. Por razões táticas, o Irã negou
deviam abrir mais amplamente as suas fronteiras aos fluxos comerciais e
isso, mas a Coréia do Norte, não. Os Estados Unidos afirmaram que os
financeiros do Norte e proteger os direitos intelectuais das empresas do
dois países estavam de fato dando prosseguimento a esses programas, mas
Norte, o Norte tinha, em troca, de abrir mais as suas fronteiras aos fluxos
os norte-americanos se acharam enfraquecidos tanto militarmente quanto
de comércio do Sul, em áreas como produtos têxteis e agrícolas. Os Estados
politicamente pela invasão do Iraque. Do ponto de vista militar, ficou claro
Unidos e a Europa Ocidental acharam que era politicamente impossível
que eles não estariam em condições de uma invasão por terra bem-sucedida.
(em vista de suas políticas domésticas) atender a essas demandas em qual-
Dever-se-iam, é claro, previamente, usar armas nucleares aéreas, mas,
quer grau significativo. E o G-20 respondeu que, nesse caso, eles também
politicamente, as conseqüências negativas para os Estados Unidos eram
não poderiam atender às demandas do Norte. O resultado disso foi um
desanimadoras. Do ponto de vista político, eles se acharam enfraquecidos
beco sem saída, que efetivamente liquidou a capacidade da Organização
pela Europa Ocidental, mas também pela Ásia Oriental, em qualquer esforço
Mundial do Comércio de pressionar em qualquer nível para implementar
para obrigar os dois países a abandonarem os seus programas. Os Estados
os seus objetivos neoliberais.
Unidos estavam, por conseguinte, em piores condições para fazer parar a
A mesma coisa aconteceu com a Área de Livre-Comércio das Améri-
proliferação nuclear depois da invasão do Iraque, exatamente o contrário
cas (Alca). O Brasil e a Argentina, já ligados no Mercosul – a comunidade
do que os neoconservadores esperavam que acontecesse.
74 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 75

comercial que liga os dois países ao Uruguai e ao Paraguai –, pressionaram desequilibrar o sistema, ou pelo menos torná-lo extremamente volátil. Em
ou outros países sul-americanos para estreitarem seus laços com o Merco- qualquer caso, o declínio do papel central do dólar criará maiores dificul-
sul, em vez de considerarem se alinhar com a Alca. Nisso, eles obtiveram dades econômicas para os Estados Unidos para lidarem com a sua dívida
forte apoio da Venezuela. Como conseqüência, o projeto da Alca nunca nacional acumulada já existente, e, provavelmente, isso poderá trazer como
progrediu muito, e os Estados Unidos se refugiaram na tentativa de estabe- conseqüência uma redução do padrão de vida dentro desse país.
lecer pactos comerciais bilaterais com pequenos países, uma tática que, de Três regiões recebem uma vigilância especial, porque todas estão em
fato, reduz mais o livre-comércio mundial do que o faz crescer. uma considerável desordem política, cuja conseqüência provavelmente
O resultado líquido de toda a política externa de Bush foi acelerar o mudará de maneira significativa o quadro geopolítico: a Europa, a Ásia
declínio da hegemonia norte-americana, mais do que invertê-lo, como se Oriental e a América do Sul. A história européia é a mais conhecida e está
pretendia. O mundo adentrou uma divisão geopolítica do poder multila- no centro da evolução atual. Nos cinco anos que vão de 2001 a 2005, os dois
teral e relativamente desestruturada, com uma quantidade de centros de maiores desenvolvimentos ocorreram na Europa. O primeiro foi a conse-
poder de força variável manobrando por vantagens – os Estados Unidos, o qüência direta da revisão unilateral da política externa norte-americana de
Reino Unido, a Europa Ocidental, a Rússia, a China, o Japão, a Índia, o Irã, Bush. Tanto a França quanto a Alemanha se opuseram publicamente à in-
o Brasil, pelo menos. Não há qualquer superioridade esmagadora – econô- vasão norte-americana do Iraque e obtiveram apoio de vários outros países
mica, política, militar ou ideológico-cultural – de nenhum desses centros. europeus. Ao mesmo tempo, eles estreitaram suas ligações políticas com a
E não há nenhum forte conjunto de alianças no momento, embora seja Rússia e começaram a criar um eixo Paris-Berlim-Moscou. Em resposta a
provável que ele venha a existir. isso, os Estados Unidos, auxiliados pela Grã-Bretanha, criaram um contra-
Quando olhamos para frente, para 2025, que tipo de tendências pode- movimento, trazendo a maioria dos Estados da Europa Centro-Oriental
mos imaginar? A primeira é um total colapso da não-proliferação nuclear, para o seu campo. Foi o que Donald Rumsfeld chamou de “velha Europa”
com o surgimento de uma ou duas dúzias de pequenas potências nucleares, contra a “nova Europa”. As razões que motivaram os Estados da Europa
além daquelas já existentes. O grave declínio do poder norte-americano Centro-Oriental derivavam principalmente dos seus temores permanentes
mais os interesses concorrentes dos vários centros de poder virtualmente em relação à Rússia, daí sua ênfase em estabelecer fortes vínculos com os
garantem que aqueles países que encerraram esses programas no período Estados Unidos.
de 1970 a 2000 vão retomá-lo, sem dúvida junto com outros países. Isso O segundo desenvolvimento foi a derrota da revisão da Constituição
levantará ao mesmo tempo em muitas zonas do mundo um obstáculo ao européia como resultado dos votos “não” nos referendos na França e na
lançamento de ações militares e tornará muito mais perigosa a conseqüên- Holanda. Aqui, os alinhamentos eram bastante diferentes daqueles relacio-
cia dessas ações. nados com a invasão do Iraque. Os motivos que levaram aos votos “não” fo-
Na arena das finanças mundiais, o domínio do dólar norte-americano ram basicamente dois e eram muito diferentes. Alguns votos “não” vieram
provavelmente desaparecerá e cederá espaço a um sistema múltiplo de mo- da forte oposição ao neoliberalismo e dos temores de que a nova Constitui-
edas. Obviamente, o euro e o yen se tornarão os modos de acumulação ção européia defendesse algumas doutrinas neoliberais. Mas outros votos
financeira mais usados e as bases mais freqüentes das trocas de mercado- “não” vieram dos temores que surgiram em relação à futura expansão da
rias. A questão é se outras moedas também se juntarão à lista e o grau no Europa para o Oriente (e, especialmente, a possível entrada da Turquia na
qual a expansão da quantidade de moedas no uso econômico mundial irá União Européia). Em ambos os casos, os que votaram “não” estavam votan-
76 ■ A América Latina e os desafios da globalização Mudando a geopolítica do sistema-mundo: 1945-2025 ■ 77

do por uma Europa mais autônoma e uma Europa que eles achavam que capaz de atrair os Estados Unidos para o seu campo como uma espécie de
deveria tomar mais distância dos Estados Unidos. “estadista mais velho”/parceiro júnior combinados. Esse não é exatamente
No entanto, a combinação dos dois desenvolvimentos – a cisão quanto o papel que os Estados Unidos vêem para si próprios com George W. Bush,
à invasão do Iraque e a derrota da nova Constituição – parou momenta- mas, em 2025, poderá parecer um negócio atrativo para a liderança e tam-
neamente o ímpeto para uma Europa mais forte, mais unificada e mais bém para a população desse país.
autônoma. A questão é se, na próxima década, esse projeto poderá ser re- Finalmente, a América do Sul tem potencial para surgir como um ator
lançado em uma base institucional e popular mais firme. Está ainda aberta autônomo importante – afastada dos Estados Unidos e associada economi-
a questão sobre se esse relançamento do projeto europeu, caso ele decole, camente de alguma maneira. Se ela for capaz de atrair o México para o seu
chegará a um tal acordo político com a Rússia, que nos permitirá falar de campo, estará então em condições de dar gigantescos passos econômicos e
um pólo geopolítico Europa-Rússia. políticos para a frente – em detrimento, certamente, dos Estados Unidos.
Se nos voltarmos para a região da Ásia Oriental, o cenário é muito Onde as outras forças potenciais – em particular, mas não somente,
diferente do cenário europeu. Primeiro, estamos lidando com apenas três Índia, Irã, Indonésia e África do Sul – abririam espaço para esse realinha-
países, todos grandes: China, Coréia e Japão. Dois desses países estão mento geopolítico é a questão menos clara na arena geopolítica. E, à esprei-
atualmente divididos e a sua reunificação está definitivamente no mapa das ta, atrás de todos esses realinhamentos, estará a questão do acesso à energia
propostas políticas. A reunificação (Coréia do Norte e do Sul, República e à água, que não são problemas menores em um mundo acossado por
Popular da China e Taiwan) também não será fácil de alcançar, mas ambas embaraços ecológicos e vasta potencialidade de sobreprodução pelas forças
são absolutamente possíveis até 2025. da acumulação capitalista. Esse poderia ser o problema mais explosivo de
Há, então, um segundo problema muito diferente daquele que a Euro- todos, e um problema absolutamente não resolvido por toda essa manobra
pa enfrenta. Na Europa, a clivagem histórica entre a França e a Alemanha geopolítica.
está grandemente sanada, enquanto a clivagem entre o Japão e a China e
a Coréia não está absolutamente sanada. As paixões são ainda grandes em
todos as partes. Por outro lado, as vantagens econômicas para todos três
através de ligações mais estreitas são muito grandes e podem servir para
colocar de lado os ódios históricos que ainda persistem. Há um problema
complicado a resolver: quem, a China ou o Japão, desempenhará o papel
de “liderança” em uma possível futura união da Ásia Oriental. Essa questão
envolve problemas militares, monetários e político-culturais. Ela não é in-
solúvel, mas exigirá uma grande dose de liderança política inteligente e de
visão em todos os três países.
Porém, se os obstáculos forem superados, a união da Ásia Oriental
deverá surgir como o membro mais forte da ainda existente tríade do Norte
– América do Norte, Europa e Ásia Oriental. Além disso, se a união da Ásia
Oriental, de alguma maneira, for realmente realizada, provavelmente será
78 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 79

Apresentando o Tio Sam – sem roupas

Andre Gunder Frank*

O Tio Sam quebrou a regra do jogo e continua não pagando mais de


40% da sua dívida externa de trilhões de dólares, e ninguém disse uma pa-
lavra sequer, exceto uma linha no Economist semanal. Em uma linguagem
clara, isso significa que o Tio Sam passa mundialmente um conto do vigá-
rio com os seus próprios dólares, baseado na certeza de que recebeu esse
conto de outros em todo o mundo, sendo também um parasita na medida
em que não honra e não paga o dinheiro que recebeu. Quanto do nosso
risco-dólar perdemos depende de quanto nós, os credores, originariamente
pagamos por ele. Através das suas políticas econômicas deliberadamente
políticas, o Tio Sam deixou que seu dólar caísse significativamente contra o
euro, o yen, o yuan e outras moedas. O dólar ainda está caindo, e é mesmo
capaz de cair vertiginosa e completamente.1
Na verdade, com a queda do dólar, caiu também o valor real que os
estrangeiros pagam pelo serviço de sua dívida com o Tio Sam. Isso funcio-
na somente se eles próprios puderem ganhar um lucro com um aumento
de valor das outras moedas diante do dólar. Caso contrário, os estrangeiros

* Nascido em 1929 e falecido em 2005. Um dos fundadores da teoria da dependência e das


análises do sistema mundial. Deixou obra com 44 livros, 400 artigos em revistas científicas e
169 capítulos de livro publicados em 30 línguas. Parte de seus trabalhos pode ser acessada em
www.rrojasdatabank.org/agfrank. O artigo que dedicou a Marini está entre seus últimos escritos.
1
Houve também uma torrente de desvalorizações de concorrência nos anos 1930, e ela foi cha-
mada de “Sua Indigente Política de Vizinhança” (“Beggar Thy Neighbor Policy”), uma política de
mudar os custos para que os vizinhos os suportassem.
80 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 81

ganham e pagam com o mesmo dólar desvalorizado, e sofrem a perda da A procuração da Guerra Fria do Tio Sam para a guerra do
desvalorização desde o momento em que receberam o dólar e aquele em Noroeste contra o Sul
que devem pagá-lo ao Tio Sam. Mas a China e os outros países da Ásia Antes de continuarmos, vamos primeiro traduzir essa confusão de
Oriental de fato ganham com isso e fixaram suas moedas pelo dólar, na me- números em uma linguagem clara. Isso já tinha sido feito em 1948 por
dida em que tinham já desperdiçado uma parte essencial do seu até agora George Kennan, aliás conhecido como Mister X, o arquiteto da Política de
maior risco-dólar do mundo. E eles, como todos os outros, perderão tam- Contenção do Tio Sam:
bém em suas reservas desde que convertidas em dólar.
A dívida do Tio Sam com o resto do mundo já monta a mais de um Temos quase a metade da riqueza do mundo (...) mas somente 5% da sua
terço da sua produção doméstica nacional anual, e ela continua crescen- população (...) Nessa situação (...) a nossa tarefa real nos próximos anos é
do. Somente isso já torna a sua dívida econômica e politicamente im- traçar um padrão de relações que nos permita manter essa posição de desi-
possível de pagar, ainda que quisesse, o que ele obviamente não quer. A gualdade (...) Para fazer isso, temos de renunciar a todo sentimentalismo e
dívida federal do Tio Sam é agora de 7,5 trilhões de dólares, dos quais um devaneio (...) temos de nos concentrar em todo lugar nos nossos objetivos
trilhão foi construído nas três últimas décadas, os outros dois trilhões nacionais imediatos (...) [e] lidar com conceitos de poder direto. Quanto

nos últimos oito anos e o último trilhão nos últimos dois anos. Isso custa menos estivermos estorvados por slogans idealistas, melhor será.2

mais de 330 bilhões de dólares em juros, comparados com os 15 bilhões


Naturalmente, essa afirmação estava voltada apenas para o consumo
gastos com a Nasa.
interno privado do Tio Sam. Para o resto do mundo, incluindo os Tios
O Congresso fez subir o teto da dívida para 8,2 trilhões de dólares.
Sams, os “slogans idealistas” terão melhor sorte, até onde naturalmente
Para que possamos ter uma idéia, apenas um trilhão de dólares em peque-
não os impeçam. Pois eles exemplificam o maior Esquema Ponzi do Con-
nas contas acumuladas de 1.000 dólares equivaleria a um edifício da altura
to do Vigário já passado em todo o mundo pelo Tio Sam. Como “manter
de 40 andares, de modo que 7,5 trilhões de dólares seriam 300 andares ou
essa desigualdade”? O poder nu e cru ajuda, mas não é o bastante. Tanto
cerca de três vezes a altura do Empire State Building. Aproximadamente
mais porque, desde que Mister X escreveu, a já então terrivelmente injus-
metade disso é devido a estrangeiros. Toda a dívida do Tio Sam, incluindo a
ta distribuição mundial da renda se tornou três vezes mais desigual. Por
dívida privada interna de cerca de 10 trilhões de dólares, mais a dívida cor-
agora, considere-se simplesmente este índice: 265 milhões de Tios Sams
porativa e financeira, com suas opções, derivados e similares, mais a dívida
consomem mais petróleo, 22% do total do mundo, do que os 3 bilhões
do Estado e do governo, chega a um inimaginável 37 trilhões de dólares; asiáticos, que todos juntos alcançam uns 20% – e eles querem mais, es-
para que vocês tenham uma idéia, 1.480 vezes a altura do Empire State pecialmente os chineses. Para levá-lo a conseguir isso, ele também conta
Building, e aproximadamente quatro vezes o produto nacional interno. com Pentágono, que é provavelmente o maior e o menos observado único
Somente uma parte dessa dívida e sua negação próxima podem ser poluidor de tudo.
administradas internamente, mas com perigosas limitações para o Tio Essa observação também indica uma continuidade através deste outro
Sam, como foi observado antes. Essa é apenas uma das razões por que que- muro, aquele que caiu em Berlim em 1989. Pois isso mostra que a Guerra
ro refutar o Tio Sam, o audacioso parasita, que pode lembrá-los do filme Fria de Contenção de Mister X não era somente ou mesmo principalmente
Meet Joe Black. Pois, tal como vamos identificar melhor o Tio Sam depois,
veremos que ele é também um Shylock, e um Shylock corrupto. 2
Department of State Policy Planning Study, n. 23, 1948.
82 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 83

contra os russos, mas também uma Contenção dos outros 95% do mundo Assim, o Tio Sam simplesmente paga os chineses e os outros essen-
e, especialmente, da enorme maioria pobre que sofre mais com a desigual- cialmente com esses dólares que não têm valor real além do papel e da
dade que ele observou. Realmente, Mister X afirma que a Guerra Fria entre tinta. Especialmente a China pobre entrega por absolutamente nada ao Tio
Ocidente e Oriente, com a qual ele já tinha colaborado quando indicado Sam um valor de centenas de bilhões de dólares de produtos reais pro-
como embaixador do Tio Sam em Moscou, era grandemente uma procura- duzidos internamente e consumidos pelo rico Tio Sam. A China investe
ção – e especialmente para Tio Sam – na guerra real do Norte contra o Sul, e comercializa esses mesmos bilhões de dólares de papel do Tio Sam em
para se apropriar dessa metade, ou das duas metades, da riqueza do mun- outro dólar-papel chamado bônus do Certificado do Tesouro, que é ain-
do. Isso nos deixaria menos surpresos com o fracasso do equivocadamente da mais desvalorizado, a não ser que pague um percentual de juros. Pois,
previsto “Dividendo da Paz” para materializar-se, depois, a derrubada desse como já observamos, ele jamais poderia ser convertidos em dinheiro e res-
pequeno muro em 1989. A outra guerra, ou melhor, a guerra real, continua; gatado totalmente ou em parte, e já perdeu muito do seu valor para o Tio
ela apenas assume outras formas, ou melhor, rótulos, como “direitos hu- Sam. Em um ensaio anterior, afirmei que o poder do Tio Sam repousa em
manos”, “democracia”, “livre mercado”, “livre-comércio”, “liberdade” em ge- apenas dois pilares, o dólar e o Pentágono. Um sustenta o outro, mas a
ral, “civilização”, todos eles aparecendo como ecos do “encargo do homem vulnerabilidade de um e de outro é também o calcanhar de Aquiles que
branco” do século xix. Acrescentaram-se alguns novos inimigos e elemen- ameaça a viabilidade do outro. Desde então, o Afeganistão e o Iraque mos-
tos: primeiro o “narcoterrorismo”, por Bush Pai, contra Noriega; e agora o traram muito da sua certeza ao Pentágono para se terem extraviado. Isso
indefinido “terrorismo”, por Bush Filho, contra todos e cada um “que não ajudou a reduzir a confiança e também o valor na moeda dólar, o que, em
esteja conosco”. Não podemos esquecer as “armas de destruição em massa”, troca, reduziu a capacidade do Tio Sam de usar esse dólar para financiar
aquelas que o Tio Sam tem e usa mais, e as armas de fraude em massa, que as aventuras externas do seu Pentágono. Ver meu ensaio de 2004, “Coup
o Tio Sam usa como ninguém. Isso é naturalmente a condição sine qua non d’État e tigre de papel em Washington, o dragão fumegante do Pacífico”,
de qualquer Conto do Vigário, principalmente um dos maiores do mundo, que também invoca o crescimento produtivo da China: <http://rrojasdata-
como observaremos ad nauseam. bank.info/agfrank/new_world_order.html#coup>.
Além disso, devemos imaginar que os números do Tio Sam para mais
O Tio Sam vive divinamente da abundância da terra ou para menos são também literalmente relativos. Até agora, as relações –
do mundo e do trabalho chinês particularmente com a China – ainda favorecem o Tio Sam, mas elas tam-
O Tio Sam é o mais privilegiado do mundo, pois tem o direito exclusi- bém ajudam a manter uma imagem enganosa. Considere-se o seguinte:
vo de imprimir à vontade a reserva mundial de moeda com um custo ape-
(...) um brinquedo de dois dólares que sai de uma fábrica do Tio Sam na
nas do papel e da tinta com que ela é impressa. Fazendo isso, ele pode tam-
China é uma remessa de três dólares que chega a San Diego. No momento
bém exportar para o estrangeiro a inflação que sua impressão irresponsável
em que um consumidor do Tio Sam paga por isso 10 dólares no Wal-Mart, a
de dólares origina. Pois há já pelo menos três vezes mais dólares flutuando
economia do Tio Sam registra 10 dólares nas vendas finais, menos três dóla-
no mundo do que na casa do Tio Sam. Além disso, dele é também a única
res do custo de importação, para um adendo de sete dólares para o produto
dívida “externa”, a maior designada na sua própria moeda. A maioria da
bruto interno do Tio Sam.3
dívida dos estrangeiros é também designada no mesmo dólar, mas eles têm
de comprar dólar do Tio Sam com a sua própria moeda e produtos reais. 3
<http://archives.econ.utah/archives/a-list/2004w07/msg00083.htm>.
84 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 85

Além disso, nunca o inteligente Tio Sam arranjou coisas assim para A produtividade famosa da “nova economia” de Clinton dos anos
ganhar 9% de suas holdings econômicas e financeiras no exterior, ao passo 1990 se limitou a computadores e tecnologias de informação, e mesmo
que os estrangeiros ganham para si apenas um retorno de 3%, e somente isso provou ser uma fraude quando a bolha estourou no mercado de ações.
1% sobre os seus Certificados do Tesouro, investidos na Terra Sagrada do Além disso, não somente o aparente crescimento dos “lucros”, mas também
Tio Sam. Observe-se que essa diferença de 6% dobra já o que o Tio Sam da “produtividade” estava sendo explodido pela loja, pelo escritório e pelas
paga, e seu total tomado de 9% é o triplo dos 3% que ele devolve. Portanto, vendas apressadas e/ou pelo tempo de trabalho mais longo na base. O Wal-
embora a reciprocidade de cada uma das holdings estrangeiras com o Tio Mart obriga a não-união (não se permite nenhuma) dos trabalhadores sob
Sam e no exterior seja agora quase igual, o Tio Sam é ainda o grande ga- ameaça de demissão e marcação da hora do fim do serviço (clock-out) e
nhador de juros, tal como qualquer Shylock, mas ninguém jamais fez um da volta ao trabalho sem pagamento. No topo, a produtividade e os lucros
negócio tão grande. eram explodidos pela fama da contabilidade criativa (accounting creative)
Mas o Tio Sam também ganha muito bem, muito obrigado, de outras pela Enron, Worldcom, Arthur Anderson e outros semelhantes engajados
holdings no exterior, por exemplo, com os pagamentos de serviço pela em fraudes.
maioria dos devedores estrangeiros pobres. As somas envolvidas não são
insignificantes. Pois, dos seus investimentos diretos somente em proprie- O Tio Sam não pode se salvar: ele está preso no consumo
dade estrangeira, o Tio Sam lucra agora 50%, e, incluindo suas receitas vin- e em outras drogas
das de outras holdings no exterior, agora são 100% redondos dos lucros Por que tudo isso?, devemos perguntar. A única resposta é que o Tio
do Tio Sam derivados de todas as suas atividades domésticas combinadas! Sam, que está crescentemente preso no consumo, para não falar nas drogas
Essas receitas externas acrescentam mais de 4% ao produto interno bruto. mais pesadas, poupa não mais do que 0,2% da sua própria renda. O guru
Isso ajuda bem a compensar o fracasso dos lucros domésticos, e ainda para do FED (Federal Reserve), Alan Greenspan,4 o Doutor da mágica financeira
recuperar inclusive o seu nível de 1972. Essa é a razão por que o Tio Sam e da mídia, observou que isso é assim porque os 20% mais ricos de Tios
fracassou na realização suficiente de bons investimentos reais no âmbito Sams, que são os únicos que poupam, reduziram suas poupanças a 2%. Po-
interno para eclodir produtivamente e lucrar com isso. Esse lucro extra rém, mesmo essas desprezíveis poupanças (os outros países e os países mais
vindo do exterior também compensa muito o ainda crescente deficit pobres poupam inclusive 20, 30 ou mesmo 40% da sua renda) são mais do
comercial do Tio Sam. Os mais de 600 bilhões de dólares por ano vindos que contrabalançadas pelo deficit de 6% do governo do Tio Sam, que faz tão
do excesso do consumo interno sobre o que ele próprio produz e que logo largamente como representante deles. É isso que traz a média entre os dois
se ampliarão. Isso resultou em trilhões de dólares (três trilhões, se diz) da juntos para aquele 0,2%. Assim, o Tio Sam tem um deficit orçamentário co-
sua dívida externa. Mas o Tio Sam joga as cartas próximo do seu Tesouro municado de mais de 400 bilhões de dólares, que é realmente mais de 600
e é compreensivelmente avesso a fazer qualquer revelação oficial de quão bilhões de dólares, se contarmos, como deveríamos, os mais de 200 bilhões
grande (mais do que o Empire State Building em bilhões?) é realmente a de dólares que o Tio Sam “toma emprestado” do superavit temporário no
sua dívida externa. No entanto, podemos ficar seguros de que sua dívida seu próprio fundo de Seguridade Social Federal, que está também falindo.
externa bruta é até agora a maior do mundo e permanece assim também
como dívida externa líquida, ainda que deduzamos as dívidas dos estran- 4
Presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos de 11 de agosto de 1987 a 31 de dezembro
geiros para com ele. de 2006. (N.E.)
86 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 87

Mas não importa, o presidente Bush do Tio Sam prometeu privatizar muito mas provenientes dos impostos extraídos dos pobres. Desse modo, a ren-
nessa área e deixar o povo comprar a sua própria segurança de velhice em da é “transferida” internamente dos pobres para os ricos, e também desses
um mercado sempre inseguro. pobres através da dívida externa para exatamente os mais ricos no exterior.
O rico Tio Sam, principalmente os seus maiores ganhadores e consumi- Essas poupanças literalmente forçadas dos pobres são então mandadas para
dores felizardos, assim como, naturalmente, o Grande Tio em Washington, o Tio Sam na forma de “serviço” da dívida em dólar que é “devido” a ele.
usufruem as melhores coisas do mundo. Além de imprimir a moeda mun- Privatização é o nome do jogo no Terceiro e no resto do mundo, exce-
dial, o Tio Sam também faz isso com os seus “deficits gêmeos”, primeiro o to para a dívida! Somente a dívida foi socializada depois que ficou sujeita
seu deficit orçamentário de 600 bilhões de dólares e depois aquele outro principalmente pelo negócio privado, mas somente o Estado tem suficiente
mencionado, o deficit comercial de 600 bilhões de dólares, agora em uma poder para extorquir uma grande massa de pagamentos do couro dos seus
média anual no mês passado de 666 bilhões de dólares. pobres e das pessoas da classe média e transferi-los como “pagamentos in-
Com eles, o Tio Sam absorve as poupanças daqueles que estão – fre- visíveis de serviço” para o Tio Sam. Somente a Argentina, e por enquanto,
qüentemente muito – abaixo, em circunstâncias desfavoráveis. Particular- a Rússia declararam uma efetiva moratória sobre o “serviço” da dívida, mas
mente os seus bancos centrais colocam muitas das suas reservas em moeda isso somente depois de acatarem as políticas econômicas governamentais
mundial, em dólar, nas mãos do Tio Sam em Washington, e algumas tam- impostas pelos conselheiros do Tio Sam e pelo seu braço forte, o Fundo
bém em dólar internamente. Seus investidores privados vendem dólar ou Monetário Internacional, políticas que destruíram inteiramente essas so-
compram ativos em dólar em Wall Street, tudo com a convicção de que ciedades, como nunca antes em tempos de “paz”. A Secretaria do Tesouro
estão colocando todos os seus recursos no mais seguro do céu do mundo do Tio Sam e o seu criado FMI alegremente continuam a se pavonear no
do Tio Sam (que, naturalmente, faz parte do mencionado Conto do Vi- mundo, insistindo para que o Terceiro Mundo – e o ex-segundo, agora
gário). Somente dos bancos centrais, estamos olhando para somas anuais também Terceiro Mundo – naturalmente continue a pagar suas dívidas
acima de 100 bilhões de dólares da Europa, acima de 100 bilhões de dólares externas, especialmente a ele. Não importa que, com taxas de juros multi-
do pobre Terceiro Mundo. plicadas várias vezes pelo próprio Tio Sam depois do coup de Paul Volker
do Tesouro (Federal Reserve) em outubro de 1979, a maioria já tenha pago
Como o Tio Sam cria e recolhe a dívida do Terceiro Mundo os seus empréstimos originais mais de três a cinco vezes. Para pagar com
Além disso, o Tio Sam também obriga os Estados do Terceiro Mundo essas taxas de juros que Volker aumentou para 20%, eles tinham de pedir
a agirem como agências recolhedoras ou mesmo como provocadores (Repo mais empréstimos com taxas ainda maiores, de modo que a projeção da
Goons), em que provocadores são aqueles mandados para resgatar a pro- sua dívida externa dobrou e triplicou. E assim também ocorreu com a sua
priedade do Poderoso Chefão (Godfather) por quaisquer meios. Somente dívida interna, na qual a parte referente aos pagamentos externos aumen-
nesse caso, não é ainda isso; pois ele está tomando posse novamente, já que tou, como particularmente no Brasil. Tudo isso, enquanto o Tio Sam fica
a dívida original há muito já foi paga. Os Estados aumentam os impostos e alegremente não pagando a sua própria dívida externa, como já tinha feito
os tributos da população, mas fazem menos gastos sociais com educação e várias vezes antes, no século xix.
saúde, e assim desviam fundos domésticos para pagar a dívida externa. Eles É bom lembrar pelo menos duas advertências daquela época: Lord
também, por outro lado, tomam empréstimos do capital privado doméstico Cromer, que administrou o Egito atendendo aos interesses imperiais britâ-
com altas taxas de juros, juros que o Estado paga aos ricos emprestadores, nicos então dominantes, disse que o seu mais importante instrumento para
88 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 89

alcançar isso eram as dívidas do Egito para com a Inglaterra. Estas multi- trola o petróleo. Com o “choque” do petróleo, que recuperou o seu preço
plicaram quando o Egito foi obrigado a vender as ações do seu Canal de real depois de sua cotação em dólar cair em 1973, o sempre manhoso Henry
Suez da Inglaterra para pagar suas dívidas anteriores. O primeiro-ministro Kissinger fez um negócio com o maior exportador de petróleo do mundo
britânico Disraeli explicou e justificou a sua compra igualmente alegando na Arábia Saudita, pelo qual ele continuaria a vender o petróleo em dólar
que isso fortaleceria os interesses imperiais britânicos. Atualmente, isso é e esses ganhos seriam depositados no Tio Sam, em parte compensados por
chamado de “trocas de dívida por eqüidade” (debt-for-equity swaps), que aparato militar. Esse negócio de facto se estendeu para toda a Opep (Orga-
é uma das políticas favoritas recentes do Tio Sam de usar a dívida para nização dos Países Exportadores de Petróleo) e ainda permanece, menos
adquirir reais recursos lucrativos e/ou estrategicamente importantes, tal para o Iraque, que, antes da guerra, optou subitamente por ligar o preço do
como foi o Canal o caminho mais rápido e seguro para a jóia do Império seu petróleo ao euro, e o Irã ameaçou fazer o mesmo. A Coréia do Norte
Britânico na Índia. não tem petróleo, mas o comercializa totalmente em euro. Isso constitui o
A outra recomendação prática veio do primeiro grande estrategista triplo “Eixo do Mal dos Estados Embusteiros”. Atualmente, a Venezuela é
militar, Clausewitz: deixem que as terras que vocês conquistaram paguem o maior fornecedor de petróleo para o Tio Sam, e também fornece algum
por sua própria conquista e administração. Isso foi exatamente o que a com taxas preferenciais em trocas de comércio efetuado em outra moeda
Inglaterra fez na Índia através dos famosos “encargos domésticos” (home que não seja dólar para outros países pobres, como Cuba. Assim, o Tio Sam
charges) remetidos para Londres em pagamento pela administração ingle- patrocinou e financiou os comandos militares do seu Plano Colômbia ao
sa na Índia. Os próprios ingleses reconheceram que isso era um “tributo”, lado, promoveu um golpe ilegal, e quando também fracassou um referen-
responsável por muito da “drenagem” da Índia para a Inglaterra. Era muito dum legal na sua tentativa de outra “mudança de regime”; a esses três países
mais eficiente deixar que os próprios Estados dos países estrangeiros admi- juntou-se a Venezuela para serem batizados como o novo “eixo do mal”.5
nistrassem (a Inglaterra chamava isso de “domínio indireto”), mas através Tudo o que foi dito antes é parte e parcela do maior e jamais visto
das regras estabelecidas e impostas pelo Tio Sam levadas a cabo pelo FMI, esquema Ponzi do Conto do Vigário mundial. Como todos os outros, a
que então realiza, de algum modo, uma drenagem do serviço da dívida. sua característica essencial é que ele só pode continuar a pagar dólares e
Assim, nesse aspecto, a Inglaterra estabeleceu um precedente no século xix se manter no topo enquanto continuar a receber de fato novos dólares, vo-
com Estados “independentes”. Desde então, isso ficou conhecido como o luntariamente, se possível através de confiança, ou então pela força. (Natu-
“imperialismo do livre-comércio”. ralmente, as fórmulas de Clausewitz e de Cromer trazem como resultado
Até onde as regras funcionam, tudo bem. Quando não funcionam, um que os mais pobres pagam o máximo, já que eles são os mais indefesos, de
pouco da diplomacia da canhoneira (gun-boat) pode ajudar, e o Tio Sam já maneira que aqueles que se servem deles transferem grande parte do custo
aprendera a usar esse expediente no início do século xx. Quando nem mes- e do sofrimento para eles.)
mo isso bastava, a primeira opção era invadir e, se necessário, ocupar – e de- Mas, o que ocorre se e quando a confiança se esgota e os dólares não
pois confiar na regra Clausewitz de fazer com que as suas vítimas pagassem chegam mais? As coisas já estão ficando mais tumultuadas na casa do Tio
por sua própria ocupação. Observaremos vários exemplos disso adiante, e Sam. O dólar declinante reduz os necessários influxos de dólares. Assim, o
que se preste uma atenção especial ao que está acontecendo agora no Iraque.
Por último, mas não menos importante, os produtores de petróleo 5
Em 2005, a Venezuela retirou as suas reservas do Estados Unidos para transferi-las a bancos
também colocam suas poupanças no Tio Sam. O Tio Sam consome e con- europeus. (N.E.)
90 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 91

FED precisa aumentar as taxas de juros para manter a atração do Tio Sam não dar início à proposta de um fundo monetário da Ásia Oriental, que
pelos dólares externos de que ele necessita para preencher o buraco comer- teria prevenido pelo menos o pior da crise econômica. Mas, atualmente,
cial. Mas fazer isso ameaça explodir a bolha doméstica, que foi construída o verdadeiro amigo do necessitado Tio Sam, a China, já está dando passos
com baixas taxas de juros e hipotecas – e re-hipotecas. É nos seus valores na direção desse arranjo, só que em uma escala financeira e agora também
domésticos que a maioria do povo do Tio Sam tem suas poupanças, caso as econômica muito maior.
tenha. Essas poupanças e esse efeito de riqueza imaginária sustentaram o No dia seguinte ao que escrevia isso, li no Economist (11-17 de dezem-
superconsumo e a dívida interna, que era aproximadamente tão alta quanto bro 2004, p. 50) uma reportagem sobre o encontro de cúpula da semana
o produto interno líquido. anterior da Asean + 3 na Malásia. O seu primeiro-ministro anunciou que
Para muito além de Osama Bin Laden, da Al Qaeda e de todos os ter- essa cúpula deveria estabelecer os fundamentos para uma Comunidade
roristas colocados juntos, a maior ameaça real mundial ao Tio Sam é que da Ásia Oriental (EAC) que “construiria uma área de livre-comércio, de
o seu dólar não se mantenha em funcionamento. Por exemplo, os bancos cooperação financeira, e assinaria um pacto de segurança (...) que trans-
centrais estrangeiros e os investidores privados (diz-se que esses “chineses formaria a Ásia Oriental em um bloco econômico coeso (...). De fato,
ultramarinos” têm um fluxo de trilhões de dólares) podem, um dia desses, alguns destes esquemas estão já em andamento (...) a China, como poder
simplesmente decidir colocar o seu dinheiro em outro lugar que não no de- econômico e militar preeminente da região, sem dúvida dominaria (...) e
clinante dólar e abandonar o pobre Tio Sam a seu destino. A China poderia seria a anfitriã da segunda Cúpula da Ásia Oriental”. A matéria continua a
duplicar a sua renda per capita muito rapidamente, se fizesse reais investi- lembrar que, em 1990, o Tio Sam derrubou uma iniciativa prévia por medo
mentos internos em vez de investimentos financeiros com o Tio Sam. de perder sua influência na região. Agora a reportagem se intitula “Yankees
fiquem em casa”.
Liquidar o dólar do Tio Sam por euro e pela moeda Ou, tal como tudo passa, os exportadores de petróleo simplesmente
da comunidade da Ásia Oriental? deixam de fixar o seu preço em um dólar continuamente desvalorizado
Os bancos centrais, os europeus e os outros, podem agora colocar as e, em vez disso, fazem uma casa da moeda ligando-se ao euro em alta e/
suas reservas – em alta! – em euros ou mesmo, imediatamente, revalorizar ou criando uma cesta de moedas da Ásia Oriental. Para que se ponham de
o yuan chinês. Daqui a não muito tempo, pode haver uma moeda da Ásia acordo, para ainda estarem em condições de comprar petróleo, eles am-
Oriental, por exemplo, uma cesta primeiro da Asean (Associação das Na- plamente diminuem a demanda mundial e o preço do dólar, obrigando
ções da Ásia e do Sudeste Asiático) + 3 (China, Japão, Coréia) – e depois + qualquer um que queira comprar petróleo a comprar e aumentar o preço
4 (Índia). Embora o total das exportações da Índia nos últimos cinco anos de demanda do euro ou do yen/yuan em vez de dólar. Isso levaria o dólar
subissem 73%, aquelas para a Asean cresceram o dobro dessa média e as à falência e faria o Tio Sam desabar em uma queda vertiginosa, na medi-
para a China, seis vezes. A Índia se tornou um parceiro de primeira linha da em que os proprietários estrangeiros e mesmo domésticos de dólares
da Asean, o seu primeiro-ministro declarou que a Índia quer relações cada também venderiam o máximo que pudessem e o mais rápido possível, e os
vez mais próximas com a Asean, e suas ambições se estendem mais para bancos centrais dos outros países afastariam suas reservas do dólar no não
um EAC (Comunidade da Ásia Oriental) da Índia ao Japão (EPW). Não mais seguro céu do Tio Sam. Isso derrubaria ainda mais o dólar, e, natu-
sem razão, em 1997, na crise da moeda da Ásia Oriental e, posteriormente, ralmente, faria parar qualquer outro influxo de dólares para o Tio Sam por
na crise econômica generalizada, o Tio Sam armou fortemente o Japão para parte dos estrangeiros que estavam financiando a sua farra de consumo.
92 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 93

Já que vender petróleo por dólar declinante em vez de euro em elevação mundial real de produtor > comerciante > consumidor, ainda que a base
é, evidentemente, um mau negócio, os maiores exportadores mundiais na financeira também forneça crédito para essas reais transações mundiais.
Rússia e na Opep têm considerado de fato fazer exatamente isso. Até agora, E, se olharmos para o mundo como uma rosquinha frita (doughnut6), ana-
muitos exportadores de petróleo e outros ainda colocam o seu montante logamente a tantas cidades no cinto enferrujado do Tio Sam, o centro está
acrescido de dólares com o Tio Sam, ainda que ele atualmente ofereça um desamparado e oco, enquanto a produção e o consumo se moveram para
céu bem menos atrativo e menos seguro, mas a Rússia está agora compran- os subúrbios próximos (na Detroit do automóvel, as janelas da principal
do mais euros com alguns dos seus dólares. loja de departamento de Hudson foram fechadas por anos, mesmo quan-
Assim, os bancos centrais de muitos países começaram a colocar uma do Detroit construiu um caro “Renaissance Center” para enobrecer nova-
boa parte das suas reservas em euro e em moedas diferentes do dólar do mente o seu centro urbano, um processo que “alcançou êxito” em algumas
Tio Sam. Agora, inclusive o melhor amigo de fato, o Banco Central da Chi- outras cidades). Uma General Motors Flint negligente nos foi apresentada
na, o maior amigo do Tio Sam precisado, começou a comprar alguns euros. por Michael Moore, que retratou isso (GM CEO) de “Roger and me” até
A própria China também começou a usar alguns dos seus dólares – até “Fahrenheit 9-11”. Deveríamos olhar para todo o mundo em termos de ros-
onde eles ainda são aceitos – para comprar produtos reais de outros países quinhas fritas, com todo o Tio Sam colocado em um buraco vazio no meio,
asiáticos e toneladas de minério de ferro e aço do Brasil etc. Seu presidente que não produz quase nada que possa vender no exterior. As principais ex-
recentemente levou uma enorme delegação comercial para China, e uma ceções são os produtos agrícolas e o material bélico, que são pesadamente
delegação chinesa foi à Argentina. Eles estão indo atrás do petróleo africa- subsidiados pelo governo do Tio Sam, subsídios originados dos pagadores
no e também dos minerais sul-africanos. de impostos e da impressão de dólar, e, mesmo assim, ele incorreu em um
deficit orçamentário de mais de 600 bilhões de dólares em 2003.
Tio Sam e sua própria economia são o verdadeiro vazio de uma rosca A grande diferença dessa rosquinha frita que é o Tio Sam é que tanto
Todos os esquemas Ponzi constroem uma pirâmide financeira. Muitos o orçamento quanto o deficit comercial de 600 bilhões de dólares são fi-
daqueles que depositam neles também vivem em um mundo financeiro, nanciados pelos estrangeiros, como já vimos.7 O Tio Sam excluiria a maio-
mas outros precisam derivar suas receitas a partir de ganhos da produção ria deles como pessoas, mas alegremente recebe os produtos reais que eles
no mundo real. No mundo das transações financeiras de hoje, que a cada produzem. Na condição de consumidor mundial de último recurso, como
dia são cem vezes maiores do que todas a receitas de produtos e serviços reais já afirmado, o Tio Sam realiza esta importante função na divisão político-
juntos, as receitas financeiras colocam as receitas reais na sombra atrás do econômica internacional do trabalho: todos os demais produzem e preci-
seu brilho. Além disso, para simplificar muito uma questão bastante com- sam exportar, e o Tio Sam consome e precisa importar.
plexa em uma linguagem humana mais inteligível, as opções, os derivati- A falência do dólar desintegraria (desintegrará) essa rosquinha frita
vos, as trocas e outros instrumentos financeiros recentes foram bem mais político-econômica que envolve e organiza o mundo e lançaria centenas
longe, convertendo já os juros compostos nas reais propriedades em que o de milhões de pessoas, para não mencionar uma quantidade indetermina-
seu dinheiro apostado e as dívidas estão baseados, o que contribuiu para da de dólares e seus possuidores, em uma desordem com conseqüências
o crescimento espetacular desse mundo financeiro. No entanto, a pirâmi-
de financeira que vemos em todo o seu esplendor e brilho, especialmente 6
Rosquinha de massa frita, geralmente recheada com geléia ou creme. (N.E.)
no seu centro, na casa do Tio Sam, ainda assenta no topo de uma base 7
Dados para 2003. (N.E.)
94 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 95

imprevistas e imprevisíveis. Muitas pessoas, no alto e no baixo pólo totê- cio de manter o esquema Ponzi do Tio Sam coloca a maior e a mais louca
mico mundial, têm um grande interesse em evitar isso, ainda que isso exija Armadilha-22 (Catch-22).
continuar a encher o vazio Tio Sam como um balão. Ou, para se referir a Todos os outros argumentam por que isso deve ser resolvido. Mas a
uma bem conhecida comparação, continuar a fingir que o Imperador Nu maneira da louca Armadilha-22 não precisa ser uma aterrissagem macia.
está vestido e mandar para ele algo para calçar. Isso também inclui a China, Pode ser uma aterrissagem dura realmente. Essa dissolução do esquema
para quem uma revelação diante do Tio Sam seria uma sorte no infortúnio. Ponzi do Tio Sam será dispendiosa, e os maiores custos serão, como habi-
Isso obrigaria a China a mudar o seu curso econômico-político e, em vez de tualmente ocorre, provavelmente descarregados sobre os mais pobres, que
entregar de graça os seus produtos ao Tio Sam, a transferir sua produção e são os menos aptos a suportar esses custos, mas que são também os menos
seu consumo para dentro, para o seu pobre interior e para a vizinhança pró- capazes de se protegerem contra a pressão de suportá-los. E a transição
xima da Ásia Oriental. Tudo isso podia e devia já estar sendo feito; quanto à historicamente necessária, a partir do mundo da rosquinha frita que o Tio
transferência da produção e do consumo para os vizinhos próximos na Ásia, Sam põe em movimento, pode mergulhar todo o mundo na maior depres-
a China recentemente começou a fazê-lo, mas não para o seu interior. são de que se tem notícia. Somente a Ásia Oriental está em uma posição
Então, o que acontecerá aos ricos no topo do esquema Ponzi do Tio relativamente boa para se defender de ser arrastada – ou empurrada – para
Sam, quando a confiança dos bancos centrais mais pobres e dos exporta- o fundo, mas, mesmo assim, somente depois de pagar um alto preço por
dores de petróleo no meio se esgotar, e quando os pobres mais destituídos essa transição – para si própria!
no mundo, confiantes ou não, não puderem mais, de fato, fazer os seus Contudo, o mundo está enfrentando uma Armadilha-22 geopolítica
pagamentos? O esquema Ponzi do Conto do Vigário do Tio Sam viria – ou e militar global ainda mais louca. Ela permanece grandemente desconhe-
virá – a se despedaçar, como todos os outros esquemas anteriores, só que cida ou talvez incognoscível. Como o Tio Sam reagiria (ou reagirá) como
agora com um grande estrépito mundial. Isso, em última instância, derru- um Tigre de Papel (dinheiro) que se encontra ferido por um colapso do
baria a demanda atual de consumo do Tio Sam para o tamanho mundial Esquema Ponzi do Conto do Vigário a partir do qual ele e milhões de Tios
real e feriria muitos exportadores e produtores em todo o mundo. De fato, Sams desconhecidos levaram uma boa vida? Ao compensar com menos
isso pode envolver uma reorganização fundamental da venda por atacado pão e menos direitos civis, porém com mais atos “patrióticos” em casa,
da economia política mundial agora liderada pelo Tio Sam. um Tio Sam mais chauvinista pode fornecer o circo da Terceira Guerra
Mundial no exterior. Uma quebra do dólar puxará ardilosamente o tapete
O dólar tigre de papel coloca uma louca armadilha geopolítica 22 financeiro, e isso desencorajará suas vítimas estrangeiras a continuar pa-
Naturalmente, a quebra do dólar poderia também, em um golpe cruel, gando novas aventuras do Pentágono no exterior. Mas algumas guerras a
eliminar, isto é, fazer desaparecer toda a dívida do Tio Sam. Com isso, essa mais poderiam ainda ser possíveis com as armas que ele ainda teria e com
quebra também faria, simultaneamente, todos os estrangeiros e os ricos um outro deficit governamental keynesiano militar gasto em casa, também
norte-americanos perderem o total de seus ativos em dólar. Eles estão com as novas “pequenas” armas nucleares (nukes) que ele está fabricando
tentando desesperadamente salvar o máximo possível para não caírem na para a ocasião. Esse poderia muito bem ser – horrivelmente – o custo
falência, isto é, para não ficarem sem dinheiro. Ou seja, eles estão tentando para o mundo que são as políticas atuais para “defender a Liberdade e a
proteger o resto da sua capacidade de investimento em dólar, garantindo Civilização”. A Superarmadilha-22 significa que quase ninguém, a não ser
que o seu dólar viva mantendo a bomba de ar funcionando. Todo o negó- Osama Bin Laden, quer correr esse risco.
96 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 97

Contudo, essa transição não seria (será?) historicamente nova. Lem- nômica. Ela foi tão grande que varreu o governo do presidente Suharto, que
brem o quanto a transição custa para o Tio Sam? Uns 30 anos de guerra o Tio Sam tinha instalado lá há 30 anos antes com um golpe da CIA contra
de 1914 a 1945, com a interposição da Segunda Grande Depressão em um Sukarno, o pai popular da independência da Indonésia. Isso custou entre
século que custa 100 milhões de vidas perdidas na guerra, mais do que em pelo menos meio e um milhão de vidas, que Suharto tirou diretamente, mais
toda a história prévia combinada do mundo, para não falar literalmente a pobreza gerada pela infame “Máfia de Berkely”, que ele instalou para levar
de (centenas?) milhões que sofreram e morreram de fome e doença. Ou a ao chão a economia da Indonésia. Os paralelos com o passado incluem tam-
transição anterior para Major Bull britânico que custou as guerras napo- bém a degradação ambiental e a transferência do dano ecológico dos ricos
leônicas, a Grande Depressão de 1873-1895, o colonialismo e o semicolo- que os produziram para os pobres do Terceiro Mundo, que suportaram a
nialismo, para falar apenas de algumas coisas, e seus custos humanos. Este sua maior carga. E, naturalmente, não podemos esquecer a Terceira Guerra
último custo coincidiu com as mais pronunciadas mudanças climáticas El Mundial (a terceira depois da segunda e travada no Terceiro Mundo), que
Niño em dois séculos, mudanças que devastaram indianos, chineses e mui- Bush Pai começou contra o Iraque em 1991. (Ver o meu “A terceira guerra”.
tos outros pela fome. Mas essa fome foi em troca aumentada pelos poderes <http://rrojasdatabank.info/agfrank/nato_kosovo/msg00080.html>.)
coloniais imperiais, que a usaram em vista dos seus próprios interesses, por Contudo, há também outros no mundo que não experimentaram
exemplo, aumentando as exportações de trigo da Índia, especialmente du- (ainda?) tudo o que se pode obter com a Armadilha-22. Calculadamente,
rante os anos de fome. Os paralelismos com a atualidade, incluindo, de fato, logo antes da eleição do Tio Sam do ano 2004, um deles disse em alta voz
novamente tirar vantagem de um século que, mais tarde, renovou um El em um programa de televisão para todo o mundo. Parece ter sido menos
Niño mais forte, são horríveis demais e geradores de uma culpa que dificil- publicamente notado por seu principal destinatário, o Tio Sam, que deveria
mente alguém suportaria. Eles incluem o “ajuste estrutural” imposto pelo ter sido a parte mais interessada: pois não foi outro senão o próprio Bin
FMI do Tio Sam, que obriga os camponeses mexicanos a já ter comido o Laden a anunciar que ele “iria arruinar o Tio Sam”. Em vista da cegueira
próprio cinto que o FMI quer que eles apertem ainda mais. Os três milhões deliberada do Tio Sam diante da instabilidade da base do seu mundo no
de mortos, número que vem aumentando em Ruanda e Burundi, e depois exterior, um colapso tão maciço no exterior não pode ser mais difícil de
alguns no Congo vizinho, vieram depois dos estrangulamentos impostos arrumar do que era simplesmente derrubar o seu símbolo doméstico das
pelo FMI e do cancelamento, principalmente pelo Tio Sam, do Acordo do Torres Gêmeas.
Café que tinha sustentado o seu preço para esses produtores. E agora, não O Pentágono é a maior economia planejada do mundo para transferir
somente desde o assassinato de Lumumba pela CIA e da ascensão de Ko- a renda dos pobres para os ricos interna e externamente e para chantagear
savubu em Katanga em 1961, mas, realmente, desde a reserva privada do amigos e adversários a fazerem o mesmo.
Congo no século xix pelo rei da Bélgica, temos lá o arrasto, a produção e a No entanto, de volta para a fazenda (back on the farm), como se diz
venda de ouro para o Fort Knox do Tio Sam, e agora também titânio, para no Texas, o que o próprio Tio Sam alegremente faz com as poupanças e o
que possamos nos comunicar através de telefones celulares móveis, dia- dinheiro ganhos com dificuldade no mundo? Os seus consumidores ainda
mantes certamente, e assim por diante. O Tio Sam também tirou vantagem os consomem demais, sem que os 99,9% deles saibam o que estão fazendo,
de um outro forte evento do El Niño que devastou o Sudeste da Ásia, espe- já que dificilmente alguém diz isso para eles. E o governo do Tio Sam usa
cialmente a Indonésia, simultaneamente com a posterior crise financeira de quase todo o seu aumento de centenas de bilhões de dólares no Pentágono.
1997, que o Tio Sam deliberadamente desdobrou em uma depressão eco- Esse dinheiro não é gasto para pagar os seus pobres soldados profissio-
98 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 99

nais que chegam, na sua maioria, de pequenas cidades rurais da América Dar suporte ao “encargo do homem branco” de defender
e agarram a única ocupação que podem obter, e se gasta menos ainda com a sua “civilização”: a lei do Ocidente é a lei do “Western Spaghetti”
os infelizes reservistas. da vigilância do bando armado
O complexo industrial-militar, contra o qual o general Eisenhower se O unilateralismo do Tio Sam não o é tanto, por assim dizer, como
acautelara no seu discurso presidencial de despedida em 1958, está vivo e freqüente e equivocadamente se supôs, solitário. Ele se proclama estar lu-
impetuoso, mais do que nunca sob a administração do “vice”-presidente tando pela “Liberdade” (de quem?, poderíamos perguntar) e “salvando a
Cheney e do seu secretário de Defesa Rumsfeld.8 Com seus trabalhos de- civilização”, como o presidente Bush do Tio Sam e sua mais eloqüente voz
sastradamente bem-executados, ambos estão sendo mantidos para um se- no Reino Unido, o ex-premiê Tony Blair, proclamavam diariamente. A sua
gundo mandato. Entre 1994 e a metade de 2003, o Pentágono do Tio Sam maneira mais simples de “salvar” a civilização foi, simplesmente, abolir de
fez mais de 3.000 contratos avaliados em mais de 300 bilhões de dólares um dia para o outro o precioso conjunto de leis internacionais para manter
com 12 companhias militares privadas de Tio Sam, de 35 estimadas pelo a paz, que o Ocidente levou séculos para desenvolver, reconhecidamente a
New York Tribune, sendo as outras, pequenas, e oferecendo serviços merce- partir dos seus próprios interesses imperiais. No entanto, isso era a única lei
nários. Contudo, mais de 2.700 desses contratos foram dados a apenas duas internacional e o melhor que tínhamos, que ao menos é muito melhor do
companhias: para a Kellog Brown & Root, uma subsidiária da Halliburton que nada. Agora, a única “Lei do Ocidente” que permanece é de fato a lei do
de Cheney, e para a Booz Allen Hamilton (Centro do Consórcio Interna- “Western Spaghetti”: a lei de vigilância do bando armado que, com ou sem
cional de Jornalistas Investigativos para a Integridade Pública, citado em um juiz conivente, toma a “lei” nas suas próprias mãos para formar um par-
Mafruza Khan e-mail, 16.8.2003). No Iraque, essas companhias militares tido do linchamento. Eles vão atrás de quem, onde e quando lhes aprouver.
privadas têm agora tantos mercenários quanto as tropas do Tio Sam e do Lamentavelmente, agora, no mundo real, os autoproclamados bandos ar-
Reino Unido juntas. Mas, naturalmente, isso são somente “pequenas” bata- mados operam “fora da área”, em uma escala muito maior do que qualquer
tas, já que o grosso do dinheiro do Pentágono Tio Sam o dirige para a com- filme espaguete ocidental de ficção jamais poderia ter imaginado.
pra de caros sistemas de armas dos únicos quatro maiores contratadores de Isso também significa estripar e paralisar a instituição das Nações Uni-
“defesa” do Tio Sam e preferidos do vice-presidente Cheney da Halliburton. das, que foi estabelecida para manter a paz, exceto quando o Tio Sam, de-
O Tio Sam, então, usa essas armas unilateralmente para cingir as outras pois de suas próprias guerras, recicla a ONU para recolher os pedaços que
armas pela ameaça armada e pela chantagem e, se isso não for o bastante, ele destruiu na Iugoslávia, no Afeganistão e agora no Iraque. Mas fazer isso
invadir o mundo que forneceu primeiramente o dinheiro. Finalmente, o significa também enganar, ameaçar, induzir, chantagear todos os outros –
Tio Sam tem de fazer o que deve para manter o dinheiro entrando. amigos e inimigos igualmente – para manter sua autoridade sobre qualquer
problema, grande ou pequeno. Ele treinou todo um exército civil de fun-
cionários para fazer isso. Desse modo, o Tio Sam “unilateralmente” atira o
seu ainda aparente peso sobre todas as outras instituições internacionais
que lidam com esforços, desde a agricultura e a aviação até a zoologia. O
8
Secretário de defesa de Gerald Ford (1975-1977) e de George W. Bush (2001-2006). Rumsfeld, Tio Sam extorque reais favores unilaterais para si, através de suas relações
um dos principais ideólogos da invasão ao Iraque, foi substituído por Robert Gates, ex-diretor
da CIA, em função da derrota do Partido Republicano nas eleições legislativas, em que desem- bilaterais. Por isso, a Organização Mundial do Comércio morreu no nasce-
penhou papel significativo o rechaço da população à ocupação e à sua manutenção. douro. O Tio Sam agora prefere para si relações unilateralmente bilaterais,
100 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 101

enquanto se isola progressivamente no plano internacional. Assim, ele do que quando o Talibã o erradicou, representando um terço do produto
pode exercer um poder de barganha militar, político e econômico ainda interno bruto do Afeganistão, de acordo com o anúncio do novo presiden-
maior sobre qualquer uma das suas vítimas do que pode sobre todas ou te instalado pelo Tio Sam. No momento em que escrevo, o Tio Sam está
ainda muitas delas nas instituições internacionais. lançando uma renovada ofensiva militar contra o Talibã; mas já não se faz
mais qualquer menção a Bin Laden. E agora o inocente Iraque é novamente
A marcha orgulhosa do Tio Sam das montanhas de Montezuma o alvo e a vítima do Tio Sam. Quem será o próximo? O Irã? A Síria? – não
às praias de Trípoli – no Panamá, duas vezes no Iraque, no Afeganistão a Líbia, que está agora obedientemente fazendo negócios de petróleo com
Quando essa barganha não é o bastante, o Tio Sam simplesmente ataca o Tio Sam; e também não a Coréia do Norte, que produz armas nucleares
e invade: a pequena Granada (população total de 300 mil habitantes); a Ni- para se proteger exatamente disso.
carágua (com a ajuda do arquiinimigo Irã); o Panamá (sete mil civis mortos Podemos ainda mencionar duas alternativas adicionais, desde que
em uma noite para capturar apenas um homem, o antes amigo e aliado de possíveis, anteriores à invasão. Uma é naturalmente patrocinar, organizar
Bush Pai, Noriega – há uma foto sorridente deles apertando as mãos); o Ira- ou mesmo dar um coup d’État ou militar, do que a CIA tem uma orgulhosa
que em 1991 (que foi inclusive uma especulação financeira, na medida em recordação: Irã em 1953, Guatemala em 1954, Congo em 1960, Brasil em
que o Tio Sam extorquiu mais dólares dos seus aliados para pagar a guerra 1964, Guiana em 1964, Indonésia em 1964-1965, República Dominicana
do que ela efetivamente custava para ele! Mas o Iraque foi contaminado por em 1965, Gana em 1966, Grécia em 1967, Camboja em 1970, Chile em
urânio refinado do Tio Sam, o que aumentou o nascimento de pessoas de- 1973, Argentina em 1976, Bolívia sempre, Fiji em 1987, Nicarágua em 1990
feituosas por lá – e que acarretou a infame “síndrome da Guerra do Golfo” pela “eleição” sob ameaça de continuar a Guerra dos Contras, Haiti sem-
nas suas próprias tropas e na tropas britânicas, o que o Tio Sam negou e pre – contra o ex-fantoche do Tio Sam colocado lá em primeiro lugar, para
recusou admitir). Quanto menos dizer sobre a Somália, melhor. A Iugoslá- citar alguns dos mais conhecidos (naturalmente, não na casa do Tio Sam).
via foi atacada, em parte, para dar um exemplo sobre o que pode acontecer A outra alternativa, a dos atentados contra lideranças que desafiam
quando um Estado é fraco o bastante, alvo de abjeta desconfiança do Tio seu poder, é mais conhecida e tentada várias vezes seguidas contra Fidel
Sam e do seu FMI, quando pretende manter alguma propriedade estatal Castro em Cuba, com charutos explosivos e outras imaginativas “sujas arti-
de importantes meios de produção e ainda fornecer proteção social do Es- manhas” da CIA, todas fracassadas. Assim foi o bombardeamento da tenda
tado do bem-estar para a sua população. Tal como ocorreu agora também do coronel Ghadafi, que acabou matando a sua filha. Mas podemos men-
na Bielo-Rússia, onde o Tio Sam tentou igualmente obter uma “mudança cionar uma tentativa bem-sucedida da CIA.
de regime”, mas a ação militar é mais difícil na fronteira da Rússia, salvo Os japoneses queriam financiar e construir um canal-de-nível no Pa-
quando há um pacto, como contra o Afeganistão, ou se é comprado. Além namá. (O seu presidente Omar) Torrijos conversou com eles sobre isso, fato
disso, a Iugoslávia somente desistiu em 1999, depois de a Rússia retirar o que muito aborreceu a Bechtel Corporation, cujo presidente era George
seu apoio a ela, uma vez que o Tio Sam usou, com sucesso, a chantagem Schultz, e o presidente do conselho, Casper Weinberger. Quando Carter
econômico-política e parcialmente a comprou em Berlim. perdeu a eleição para Reagan (e essa é uma interessante história de como
O Afeganistão se tornou a vítima visada com a ajuda do Irã e da Rús- isso ocorreu), Schultz chegou como secretário de Estado da Bechtel, e
sia. Isto é, depois que o Tio Sam criou e patrocinou o governo Talibã que Weinberger veio da Bechtel para ser Secretário da Defesa. Ambos estavam
erradicou o ópio. Mas o Afeganistão “libertado” produz ainda mais ópio extremamente furiosos com Torrijos – tentaram conseguir dele a renego-
102 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 103

ciação do Tratado do Canal e que ele não falasse disso com os japoneses. a guerra no Pacífico contra o Japão. A Segunda Guerra Mundial foi ven-
Ele recusou firmemente. Torrijos era um homem surpreendente. Morreu cida na Europa, em Stalingrado, em 1943, pelas tropas russas que teriam
em um estrepitoso desastre de avião, onde se encontrava um toca-fitas chegado a Berlim, mesmo que o Tio Sam não tivesse chegado depois. A
ligado a explosivos. Não tenho qualquer dúvida de que foi a CIA que o Guerra da Coréia foi e continua sendo um beco sem saída. A guerra contra
matou, e mais, muitos investigadores latino-americanos chegaram à mes- o Vietnã foi perdida. A guerra contra a Iugoslávia foi “vencida” somente
ma conclusão.9 quando os russos retiraram o seu apoio e apenas sete tanques iugoslavos e
Torrijos tinha anteriormente assinado um tratado com o presidente todos os seus aviões ficaram em Kosovo ilesos. Somente Kosovo e a infra-
Carter para entregar o Canal do Panamá ao – Panamá! Um simples exame estrutura civil da Iugoslávia foram bombardeadas e feitas em pedaços, e o
também revela que ser um amigo político muito bom ou um instrumento mais amplo ambiente dos Bálcãs poluído por neônio pelo uso continuado
do Tio Sam pode ainda ser muito arriscado. Este pode proferir a sua sen- de urânio refinado do Tio Sam. A guerra contra o Afeganistão está sendo
tença de morte política ou física ou o apunhalar pelas costas. Um sucessor perdida, tal como também a guerra contra o Iraque, apesar do uso referido
de Torrijos está agora sentado em uma prisão do Tio Sam, depois de leal- mais uma vez do urânio refinado, também outra vez com napalm, tal como
mente servi-lo e sorrir em uma foto com George Bush (o pai). Mas a lista no Vietnã, e gás.
é longa e vai pelo mundo todo, começando nos anos 1950 e 1960: Rhee na
Coréia; Diem no Vietnã; Trujillo na República Dominicana; Somoza na A geopolítica muçulmana do Tio Sam e o plano do petróleo
Nicarágua; virtualmente todos no Haiti, de Papa Doc e Baby Doc ao padre do “meio oriente” de Casablanca a Jacarta
Aristide, instalado por Clinton e removido por Bush; o xá do Irã – colocado Não obstante, o Tio Sam possui muitos outros planos militares geopo-
lá depois do coup da CIA em 1953 contra Mossadegh, depois que ele nacio- líticos novamente em andamento. Para começar, ele já construiu 800 bases
nalizou o petróleo iraniano, e retirado quando a sua utilidade desapareceu; militares em todo o mundo e, especialmente, na “terra” rica em petróleo, o
o caso de Mobutu depois de três décadas no Zaire; de Saddam Hussein – o tabuleiro de xadrez global de Zbigniew Brzezinski (de Ziggy), para cercar
próprio Rummy10 foi vê-lo duas vezes na sua já prévia encarnação como a China. O Pentágono deve também transferir 60% da frota submarina dos
secretário de Defesa; de Milosevic da Iugoslávia – ele era o necessário e o Estados Unidos para o Pacífico Ocidental (de acordo com P. Jakob Förg:
confiável implementador do acordo de Dayton do Tio Sam na Bósnia; e, j.foerg@msc-salzburg, de 12 de dezembro 2004, e-mail). Tudo isso para ser
é claro, do Talibã – o próprio Tio Sam formou-o e colocou-o a cargo do empregado no futuro, mas também na já atual influência política. Além
Afeganistão; para não falar de Osama Bin Laden – ele também serviu o disso, o presidente Bush do Tio Sam tem um novo “Plano para o Oriente
Tio Sam lá. Médio”, que agora se estende do Marrocos para além do Paquistão – para
(Não?) por acaso, um simples exame de fatos palmares revela que, se a Indonésia muçulmana? O que esse plano exatamente envolve não está
as “linhas de defesa” mencionadas fracassarem e o Tio Sam for à guerra, claro ainda, mas a sociedade civil já está também abrindo caminho: a Yale
exceto para a pequena Granada, nem uma única linha ou qualquer ou- University Press já lista o Paquistão entre os seus estudos sobre o “Oriente
tra guerra do Tio Sam foi sempre ganha por sua força militar, a não ser Médio”, e a Swissair tem o papel de estabelecer uma esteira que coloca
Karachi, Dehli e Mumbai como suas destinações no “Oriente Médio”. O que
9
<http://www.democracynow.org/article.pl?sid=04/11/1526251>.
10
Ronald Rumsfeld, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante os governos Gerald Ford
está claro é que Israel deve permanecer como o Cavalo de Tróia político e
(1975-1977) e Bush filho (2001-2006). militar do Tio Sam na região, o que sempre foi. Não importa que sejam os
104 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 105

republicanos ou os democratas a dominarem em Washington, permanece bém tenta se certificar de ter sua mão sobre qualquer torneira para contro-
o papel de cão de caça de Israel para o Tio Sam na sua rica área petrolífera lar quem mais pode e, especialmente, quem não pode comprá-lo. Essa é a
de operação. Em troca, a segurança de Israel goza da proteção internacio- razão por que podemos vê-lo tentando o controle político e financeiro do
nal diplomática, política e militar do Tio Sam, em qualquer coisa, assim dólar das torneiras de petróleo, onde quer que ele ainda possa, uma pre-
como recebe o apoio direto econômico e militar, sem o qual Israel não po- sença militar na Ásia Central, ou o seu poder militar para entrar no Iraque.
deria existir. Somente agora, o alcance regional atribuído e autoconferido Usá-lo como uma alavanca de controle e/ou para advertir seus vizinhos
de Israel pode se expandir, inclusive para mais longe, na medida em que os sobre o que pode acontecer a eles se eles não continuarem a concordar com
dois neoconservadores mencionados, altamente colocados no Pentágono, o Tio Sam. Felizmente para ele, a maior parte da Ásia Oriental e, especial-
foram inclusive lá operar um plano para o racista-chauvinista Partido Li- mente, a China também parecem que estão obrigadas a comprar o petróleo
kud, agora no poder.11 E o próprio Bush foi à África, especialmente à África estrangeiro, mesmo se amanhã talvez não mais com dólar, mas com yen ou
Ocidental, para ver o seu petróleo. yuan. Por outro lado, é também verdadeiro que o maior vendedor de petró-
Nas Américas, o seu Plano “Colômbia” (ela tem petróleo também) foi leo do mundo é a Rússia, cujas torneiras permanecem fora do controle do
estendido para toda a região andina (o Equador também exporta petróleo), Tio Sam. Mas, como poderia o Tio Sam continuar a pagar e manter todas
mas ele tem ainda outro plano para a Amazônia (talvez algum petróleo essas audaciosas aventuras suas em Defesa da Liberdade com esse próprio
possa ser achado lá e, nesse ínterim, ele constrói aí uma imensa base, su- dólar de papel – se ninguém o aceita mais? E por que alguém deveria?
postamente para a Nasa – a Agência Espacial Norte-Americana –, o que
não é desconhecido, para utilizá-la em aventuras militares), um plano para A grande causa do Tio Sam no Iraque: dar seus
“garantir” que o Banco Mundial socorra o maior depósito subterrâneo de 30 bilhões de dólares para Halliburton e outros
água doce do mundo, nas Cachoeiras do Iguaçu, onde Brasil, Argentina Dos 18 bilhões de dólares que o Congresso do Tio Sam destinou para
e Paraguai se encontram, e ele está já agora novamente treinando 40.000 a “reconstrução” do Iraque, não mais do que 388 milhões de dólares – ou
militares latino-americanos nas bases internas do Tio Sam, e ele tem mais 2,15% – desse dinheiro do Tio Sam tinham sido gastos. E somente 5 bi-
meia dúzia delas fora da sua costa. lhões de dólares desse dinheiro tinham sido orçados pelo Tio Sam no Ira-
Tudo isso é uma gigantesca base global, econômica, política e militar que, na época em que o pró-cônsul Brenner do Tio Sam voltou para casa
sobre a qual se pode manter o Esquema Ponzi financeiro do Conto do Vi- com a tarefa bem-cumprida. O Bom Tio achou que era melhor ter gastado
gário, e baratear duas vezes o preço para aqueles que acabam por possuir 13 bilhões dos 20 bilhões de dólares dos fundos iraquianos. Isso era 65% do
dólar, enquanto possam pagar por tudo com o dólar-papel feito em casa, o dinheiro iraquiano comparados com somente 2% do montante aproxima-
que, até agora, também mantém o negócio global de Ponzi. damente equivalentes do dinheiro original do Tio Sam. Na época em que o
Não somente o Tio Sam precisa comprar cada vez mais petróleo, agora novo governo iraquiano assumiu a direção de algumas tarefas do Tio Sam,
com o seu próprio dólar, mas talvez amanhã com euros ou yuan. Ele tam- que o colocou lá, eles descobriram que um total de 20 bilhões de dólares
dos seus fundos tinham sido gastos, 11 bilhões das vendas de petróleo (In-
11
O Likud permaneceu no poder durante o governo do primeiro-ministro Ariel Sharon, entre ternational Herald Tribune). Como vieram? – podemos perguntar. Muito
2001 e 2005. Em novembro de 2005, Sharon abandona o Likud, funda um novo partido, o
Kadima, dissolve o parlamento e convoca novas eleições legislativas que consolidarão a lideran-
simples foi a resposta do funcionário financeiro “responsável”, o almirante
ça do Kadima e de Ehud Olmert, que o substitui como primeiro-ministro. (N.E.) Oliver do Tio Sam: “Eu sei que gastamos algum dinheiro do fundo (ira-
106 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 107

quiano). Isso porque nós não tínhamos mais o dinheiro do Tio Sam” – do para com ele! Deus nos livre de que qualquer novo pagamento da dívida do
qual havia simplesmente outros 17,5 bilhões não gastos. Deveríamos ima- Iraque fosse para aqueles russos irreligiosos, franceses traidores ou mesmo
ginar que o bom general tinha sido instruído em Clausewitz sobre a guerra para os melhores amigos chineses, que mais investiram no Iraque, o que é,
e ocorreu descobrir seu bom conselho de fazer a vítima conquistada pagar antes de tudo, uma coisa covarde de fazer, quando o Tio Sam tem muito
por sua própria ocupação militar, nesse caso pelo Tio Sam. mais valiosas causas para o dinheiro iraquiano.
O representante iraquiano para o desembolso do fundo e o comitê Mas podemos perguntar: quais são essas mais altamente valiosas cau-
de supervisão foram somente a uma das suas 43 reuniões; mas, por que sas do Tio Sam? O maior único pagamento de 1,4 bilhões de dólares foi
se envolver com mais, quando a maioria dos gastos foi autorizada abso- naturalmente para a mesma Halliburton do vice-presidente Cheney. Con-
lutamente sem qualquer reunião? Então, embora os fundos do Tio Sam tudo, sabemos agora que, ao mesmo tempo, ele estava também trapace-
tenham sido orçados para todo tipo de projetos, eles foram pagos pelos ando lateralmente, inclusive contra o seu generoso benfeitor Tio Sam, em
fundos iraquianos. Desses fundos, muitos gastos foram mesmo feitos sem outras centenas de milhões de dólares, comprando petróleo por dólares no
qualquer contrato; em um único caso foram 1,4 bilhões de dólares. A maio- Kwait e vendendo-o no Iraque a um preço de cinco a 10 vezes maior, além
ria dos outros ocorreu sem qualquer concorrência múltipla, também não de outras fraudes dissimuladas. No todo, a Halliburton obteve os contratos
com uma proposta aberta. Os fundos do Tio Sam, por outro lado, conti- do Iraque por um descarado de 10 bilhões de dólares – mais o troco (In-
nuaram virtualmente sem gastos no Iraque. Talvez o almirante Oliver “não ternational Herald Tribune). (Cheney também tem interesse na Unocal,12
tivesse mais o dinheiro do Tio Sam” no Iraque porque este permaneceu que há muito tem desejado construir um oleoduto da Ásia Central ao Oce-
com o Tio Sam em casa, em Washington; e se foi realmente desembolsado, ano Índico através do Afeganistão, primeiramente com a ajuda do Talibã,
simplesmente mudou de mãos e de contas bancárias exatamente lá. Além a quem o Tio Sam tinha posto a cargo exatamente com esse propósito e
do mais, isso é muito mais eficiente do que seria mandá-lo de um lado para a quem depois ele convidou para o Texas para conversações, embora eles
o outro, e uma parte dele não voltar. Isso nada mais é do que aquilo que o ainda parecessem estar fazendo o trabalho que lhes foi atribuído. De fato,
Tio Sam faz com o Terceiro Mundo: empresta ou mesmo “dá” a esses países, eles também visitaram inocentemente a equipe da “pesquisa acadêmica”
justamente com o intuito de deixar os dólares em casa, a quem ele pertence afegã na Universidade de Nebraska em Omaha. Mas, que pena, o Talibã
e para onde deverá retornar de uma maneira ou de outra. Mas isso não im- não estava cumprindo a tarefa que lhe foi conferida de manter a ordem
porta, o Congresso do Tio Sam já havia se apropriado de outros 30 bilhões para a construção do oleoduto, por isso tinha de ser afastado. Agora o Tio
de dólares para “preparar a transição para as eleições” que ocorreram no Sam e Unocal usariam, em vez disso, os bons ofícios do novo presidente
Iraque em janeiro de 2005. do Afeganistão e do embaixador do Tio Sam lá, “ocorrendo” ambos serem
Sendo esse o caso, seria, naturalmente, de todo indesejável que os fun- justamente as primeiras (?) pessoas da Unocal.)
dos do Iraque, deixado o Tio Sam livre, fossem esbanjados em qualquer
serviço da velha dívida externa do Iraque com outros. Essa era, de fato, a ló-
gica para os fortes aliados que não podem já remediar a perdida dívida do
Tio Sam para com eles, e também perdoar a dívida iraquiana. Isto é, como
12
A Unocal é uma empresa petrolífera da Califórnia, fundada em 1890 e incorporada pela
podemos lembrar do que foi dito, embora o Tio Sam ainda insista em que Chevron em 2005, empresa da qual Condoleeza Rice foi diretora entre 1991-2001, e com quem
o resto do Terceiro Mundo deva continuar a manter em dia suas dívidas a Halliburton tem contratos multimilionários.
108 ■ A América Latina e os desafios da globalização Apresentando o Tio Sam – sem roupas ■ 109

A “Medalha de Liberdade” do Tio Sam para Brenner, Franks, Halliburton, saídos dos fundos iraquianos sem proposta de concorrência.”
Tenet – por uma tarefa bem feita de roubar o Iraque em Ontem, o presidente Bush do Tio Sam deu o certificado mais elevado do
benefício de Cheney e de outros Tio Sam, a Medalha de Liberdade, para L. Paul Bremer III, o pró-cônsul
Sem sombra de dúvidas, a maior parte dos outros abundantes dólares civil do Tio Sam que examinou isso tudo, e para o general Tommy Franks,
iraquianos e até agora esparsos do Tio Sam, gastos no Iraque, foram para que, principalmente, conduziu a invasão que tornou tudo isso possível.
as mãos de outro amigo íntimo do Tio Sam. Algumas migalhas caídas da George Tenet, o diretor da CIA que forneceu toda a informação adulterada
mesa para corporações do Reino Unido e mesmo para indivíduos privados de Tio Sam para “legitimar” todo o seu empreendimento que ele iria come-
e militares que tinham seus dedos na caixa registradora. Que pena, nunca çar e que foi, desde então, desacreditado e forçado a renunciar, também não
saberemos quem são eles; já que, conforme o inspetor-geral do Tio Sam, foi esquecido e recebeu o terceiro prêmio. O International Herald Tribune
“eu estava candidamente não interessado em ter auditores militares porque publicou uma fotografia cerimonial de todos três sorrindo com George W.
achava que tínhamos de penetrar sorrateiramente no sistema iraquiano tão Bush, que estava sorrindo também. Enfim, esse é o reconhecimento devido
rapidamente quanto possível”. Francamente, não sendo eu um militar e na por um trabalho bem-feito. Graças a vocês, podemos descansar seguros
condição de um anti-militarista, eu próprio não li Clausewitz. Então, não como aqueles que estão a serviço da “Liberdade” (para quem e o quê?,
sei que bom conselho que ele dá em confiar na corrupção como sendo o podemos perguntar).
primeiro princípio para cortar e dividir o bolo conquistado.
Toda esta minha “especulação” foi escrita antes de o Conselho Con- Em conclusão: Tio George W. Sam diz que o único direito dos nos-
sultivo e de Monitoramento para o Desenvolvimento das Nações Unidas sos rapazes é colocar suas vidas em jogo para proteger a liberdade de a
no Iraque (International Advisory and Monitoring Board for Development Halliburton roubar o Iraque.
in Iraq) ter publicado um relatório das suas investigações sobre a adminis- Podemos estar seguros de que os outros que têm suas mãos na caixa
tração do Tio Sam. Depois que conseguimos o relatório, devemos ter em registradora e na sarjeta estão entre aqueles a quem, podemos lembrar, o
mente que o FT observa diplomaticamente que “as Nações Unidas têm se Doutor Greenspan do Federal Reserve rotulou como sendo os 20% ganha-
mostrado relutantes em incumbir publicamente o Tio Sam dos seus gastos dores superiores de renda do Tio Sam. Eles são os maiores superconsumi-
dos fundos iraquianos”. O FT cita diretamente do relatório: “Houve fraque- dores privilegiados, que são totalmente (ir)responsáveis pela subpoupança
zas de controle (...) sistemas de contabilidade inadequados, aplicação irre- do Tio Sam, disse ele, e também pelo crescente deficit comercial, o qual o
gular de acordo sobre procedimentos contratuais e observância de registro Doutor recentemente lamentou em Berlim. Se examinarmos a distribui-
inadequada.” O International Herald Tribune também faz o seu próprio re- ção de renda do Tio Sam um pouco mais, poderemos bem aprender que,
sumo do mesmo relatório: “Houve amplas irregularidades, incluindo má entre esses 20%, a parte do leão desses dólares, como a maior parte dele
administração financeira, falha em cortar o contrabando (saída do petróleo do Pentágono, termina nos bolsos dos 2% superiores mais superprivilegia-
e de outras propriedades físicas iraquianas; ninguém sabe a que preço e dos, na medida em que eles podem superconsumir ainda mais da nata da
para benefício de quem) e dependência excessiva de contratos não declara- terra. Quem negaria a eles que isso é seguramente uma causa valiosa para
dos.” O FT, por seu turno, oferece um traço específico a mais do relatório: a proteção da Liberdade a qualquer preço? Isso inclui o convite (in)fame
“Particularmente importantes (...) foram os contratos de às vezes bilhões do presidente Bush para os iraquianos “deixá-los vir para o Tio Sam”. É
de dólares que foram conferidos às companhias do Tio Sam, tais como a difícil compreender o presidente quando ele incentiva os iraquianos “a vir”
110 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 111

quando eles estão já em casa no Iraque e quando foi o próprio Tio Sam que
mandou suas tropas para lá. Mas talvez Faluja explique o que o presidente
tinha em mente sobre os iraquianos “virem” para o Tio Sam. Mas, como o Neo-imperialismo, dependência e
próprio presidente Bush do Tio Sam disse ao mundo, é um direito exclu- novas periferias na economia mundial
sivo “nosso” excluirmos os outros países da sarjeta e da caixa registradora
no Iraque. Afinal, ele explicou que, quando os iraquianos aceitaram o seu Adrián Sotelo Valencia*
convite, foram “os nossos rapazes que puseram suas vida em jogo”. Eu de-
sejaria que a personificação do Tio Sam tenha também explicado para que
e para quem.
Os poucos números que não estão geralmente disponíveis, ou no cita-
do FT de 10 e 15 de dezembro de 2004 e em outras fontes, como o Interna- Introdução
tional Herald Tribune, também de 15 de dezembro, e o Economic and Politi- O presente ensaio1 pretende ser uma modesta contribuição ao co-
cal Weekly (Mumbai: 4 de dezembro de 2004, p. 5.189) são de “A economia nhecimento da nova configuração histórico-estrutural da dependência e
de imperialismo do Tio Sam na virada do século xxi”, de Gerard Dumenil do subdesenvolvimento no contexto do sistema capitalista globalizado. Ele
& Dominique Levy, na Review of International Political Economy, 11 de 4 parte da avaliação da teoria da dependência no seu filão marxista no século
de outubro de 2004, p. 657-676. O autor ficou agradecido a eles em Paris, a xxi, assim como das inestimáveis contribuições teóricas, metodológicas e
Jeffrey Sommers em Riga, William Engdahl em Frankfurt e Mark Weisbrot políticas que no seu desenvolvimento trouxe Ruy Mauro Marini, a quem
em Washington por seus úteis e muito usados comentários do Tio. Barry agora rendemos homenagem neste livro.
Gills em Newcastle insistiu em que eu me refiro apenas a Tio Sam e propôs O trabalho se divide em quatro partes. A primeira trata da lei do valor
a divisão do trabalho mundial entre os consumidores e produtores do Tio e da superexploração do trabalho; a segunda versa sobre o contexto estru-
Sam em todo lugar e me referiu a Clausewitz. Os leitores serão mais gratos tural e histórico do surgimento das novas periferias; a terceira se situa na
a Arlene Hohnstock por ter tornado tudo isso um conto legível. Natural- análise da política de deslocamento de empresas européias para os países
mente, nenhum deles tem qualquer responsabilidade pelo uso da forma do ex-bloco socialista; finalmente, a quarta parte reflete sobre o impacto
rosquinha frita (doughnut) que eu fiz deles. Muito mais das minhas – atra- da tendência que essa nova divisão internacional do trabalho e do capital
vés dos olhos deste menininho – observações podem ser encontradas no acarreta para as economias dependentes da América Latina.
meu website em <rrojasdatabank.info/agfrank/new_world_order.html> e
<http://rrojasdatabank.info/agfrank/online.html#current>.
* Sociólogo, professor titular do Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidade
Nacional Autônoma do México (Cela/Unam). Um dos principais assistentes de Ruy Mauro
Marini nos anos 1970-80, é autor de vários livros e dezenas de artigos em várias línguas.
1
Este trabalho constitui parte de um projeto de pesquisa sobre as novas periferias que chega-
ram à economia mundial depois da queda da União Soviética e do bloco socialista na Europa
Oriental no final da década de 1980. Nele, faço uma avaliação do seu impacto tanto nas velhas
periferias dependentes da América Latina como particularmente no mundo do trabalho e nas
suas projeções de futuro.
112 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 113

1. Premissa teórica: duas hipóteses e um resultado integrados, caminha assim no sentido de nivelar de maneira cada vez mais
A hipótese central com que lidamos neste ensaio é a de que a base efetiva os valores e, tendencialmente, de suprimir as diferenças nacionais que
material, política e econômica da globalização do sistema capitalista con- afetam a vigência da lei do valor. (Marini, 2000, p. 64; grifo meu)
temporâneo é a lei do valor e a sua generalização para o conjunto do sis-
tema econômico. Além disso, como segunda hipótese, depreende-se que o 3a) Além disso, a introdução e a aplicação de nova tecnologia trazem
regime de superexploração do trabalho, que Marini circunscreveu no seu como resultado a extensão do desemprego e do subemprego, o que provoca
livro Dialética da dependência basicamente às economias subdesenvolvidas um aumento da exploração dos trabalhadores ocupados, através do aumento
e dependentes da periferia do capitalismo, começa a se estender significa- da jornada de trabalho, de sua intensificação, assim como da remuneração
tivamente aos países desenvolvidos, embora com formas particulares, nas da força de trabalho abaixo do seu valor, elementos que hoje são avaliados
suas novas periferias surgidas no bojo da desintegração do bloco socialista. praticamente na maior parte das estruturas produtivas do mundo.
Esta última proposta, objeto de estudo deste ensaio, é causa de debates e 4a) Dessa forma, conclui Marini: “generaliza-se em todo o sistema, in-
de reflexão. No entanto, ela encontra respaldo no pensamento de Marini, clusive nos centros avançados, o que era um traço distintivo (ainda não
particularmente no texto publicado no meio de um trabalho coletivo (cf. operativo) da economia dependente: a superexploração generalizada do
Marini, 2000, p. 48-68. In: Marini & Millán, v. IV, 2000), no qual ele resume trabalho” (2000, p. 65).
as seguintes formulações: Tão importante e simbólica é essa extensão da superexploração em
1a) A economia mundial capitalista entrou em uma nova fase carac- escala planetária, que autores como Hardt & Negri reconhecem que: “é pre-
terizada pela progressiva diminuição das fronteiras econômicas nacionais ciso ser geógrafo para traçar o mapa topográfico da exploração” (2004, p.
(globalização), para se estender a mercados cada vez mais amplos e com- 195), sem menoscabo de sustentar posturas pós-modernistas muito pró-
plexos, o que produziu uma intensificação da concorrência intercapitalista ximas do neoliberalismo (desses autores, ver seus livros Império, 2002, e
entre as grandes empresas, com o intuito de obter aqueles lucros extra- Multidão, 2004). E no mesmo sentido se expressa Ulrich Beck quando, ao
ordinários que são o verdadeiro motor do desenvolvimento histórico do afirmar a existência da sociedade do risco na Europa avançada, do capital e
capitalismo. das corporações, diz também que
2a) Nesse contexto, foi gerada uma tendência caracterizada pelo fato
de que a difusão tecnológica tende a padronizar as mercadorias para faci- quanto mais as relações de trabalho são “desregulamentadas” e “flexibili-
litar o seu intercâmbio em escala global que, com o passar do tempo, (a) zadas”, mais rapidamente se transforma a sociedade laboral em uma socie-
provocou (como tendência) a homogeneização dos processos produtivos; dade de risco (...) a insegurança endêmica será o traço que caracterizará
(b) a igualação da produtividade do trabalho e, concomitantemente, da sua no futuro o modo de vida da maioria dos homens, inclusive das camadas
intensidade. Das afirmações anteriores, Marini conclui que (c) médias, aparentemente bem situadas! (2000, p. 11)

paralelamente, o notável avanço alcançado em matéria de informação e A extensão da lei do valor e do regime de superexploração do trabalho
comunicação proporciona uma base muito mais firme do que antes para está moldando a nova fisionomia que as estruturas produtivas e as socie-
conhecer as condições da produção e, portanto, para estabelecer os preços dades do século xxi terão de adotar. Os trabalhadores – que continuam
relativos. O mercado mundial, pelo menos nos seus setores produtivos mais existindo produzindo valor, mais-valia e lucros para o capital, apesar das
114 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 115

evidentes mudanças das estruturas e das formas organizativas de tipo flexí- dos países imperialistas da União Européia – Alemanha e França, princi-
veis do mundo do trabalho – inserem-se nessa nova conjuntura com orga- palmente – e dos Estados Unidos, assim como à influência de empresas
nizações sindicais e políticas fracas, situação que possibilitou a saraivada de transnacionais, como a Siemens ou a Volkswagen, os países e economias
golpes sistemáticos desfechados pelo neoliberalismo em todo o mundo no anteriormente do bloco comunista, incorretamente chamados “em transi-
curso das duas últimas décadas do século xx. Isso, juntamente com o ciclo ção”, transformaram-se em autênticas plataformas produtoras e importa-
de crise e recuperação capitalista, contribuiu para introduzir o regime de doras de mercadorias e de serviços estrangeiros com muito baixos salários,
superexploração do trabalho nos centros dos países avançados e em suas altos índices de exploração do trabalho e intensos ritmos de atividade.
respectivas periferias “endógenas”. Fenômenos como a globalização do capital, a reestruturação produtiva
O esquema que Wallerstein elaborou na sua teoria do moderno siste- e tecnológica, a concorrência muito aguda entre países e empresas capita-
ma mundial, baseado na existência de centros, periferias e semiperiferias, listas em escala mundial, a concentração e centralização de ativos, capital
diversifica-se com as novas periferias surgidas da transição do socialismo e tecnologia na esfera dos circuitos de acumulação do G-7, o enorme e
para o capitalismo na Europa Oriental na última década do século passado. crescente desemprego, assim como a dinâmica própria do ciclo da crise
Hoje, essa nova divisão internacional do trabalho está redefinindo e pres- capitalista, estão provocando a transformação paulatina, mas iminente, das
sionando as antigas periferias dependentes da América Latina para ado- velhas periferias dependentes e subdesenvolvidas que se constituíram his-
tarem mudanças de ordem econômica, produtiva e trabalhista de acordo toricamente desde meados do século xix na América Latina e no Caribe
com a (nova) lógica da mundialização do capital, caracterizada pela simul- (Marini, 1973; Halperin, 1993).
taneidade dos seus ciclos econômicos (produção-circulação-produção) e Como está amplamente documentado pela análise socioeconômica
pelo predomínio do neo-imperialismo como forma dominante do modo e a ciência histórica, essas periferias em boa medida foram responsáveis
de produção. pela expansão capitalista durante todo o século xx. Entre outros efeitos
O mundo do trabalho e os seus protagonistas, os trabalhadores, terão desses processos de expansão-destruição capitalista das novas periferias
de travar suas lutas em torno da restituição de suas condições de vida e de surgidas do desastre dos sistemas socialistas, figura o fenômeno que Jorge
trabalho, que o capitalismo neoliberal lhes arrebatou através da imposição Isaac (2004, p. 168) caracteriza como um “severo processo de esvaziamento
da desregulação e da flexibilização do trabalho. Estes últimos regimes, que produtivo do espaço econômico”, quando estuda o caso mexicano, mas que
abrem totalmente as portas da superexploração do trabalho, são essenciais pode ser estendido muito bem ao conjunto da periferia latino-americana,
para a sobrevivência do capitalismo como modo de produção e de explo- concomitantemente ao ascendente processo de desindustrialização de
ração universal. amplas regiões, países e localidades da periferia do centro capitalista
(Sotelo, 2004).
2. Contexto histórico-estrutural do surgimento das novas periferias Em virtude da instauração de relações político-econômicas de domi-
A desintegração da União Soviética no final do século xx desenca- nação e de dependência entre o centro e a periferia, os países dependentes
deou uma série de acontecimentos e transformações econômicas e políticas desempenharam o papel predominante como produtores de matérias-pri-
que estimularam, entre outros processos, a formação de novas periferias na mas e alimentos para abastecer a crescente demanda dos centros imperiais,
economia internacional capitalista em crise sistêmica. Ao ficarem vincu- sendo ao mesmo tempo veículo para acelerar a passagem do eixo de acu-
lados à dinâmica da acumulação e da centralização do capital dos centros mulação de capital da produção da mais-valia absoluta para a produção da
116 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 117

mais-valia relativa (e depois para a articulação dessas duas categorias em A pressão que a política de unificação exerce de cima por parte das
condições histórico-concretas de produção) nas economias dos países im- burguesias européias a partir de Bruxelas aponta nesta direção: tornar
perialistas (Marini, 1973, p. 23 e segs.; Martins, 1999, p. 121-138). precário o mundo do trabalho, flexibilizá-lo, pressionar os salários para
Em meados do século xviii, essa articulação virtuosa, entre outros baixo e estender o regime de superexploração do trabalho ao conjunto das
fenômenos, desencadeou a primeira revolução industrial na Inglaterra, que classes operárias dos países da União Européia. Sobre essas tendências,
mais tarde se estendeu aos principais países mais desenvolvidos da Europa pressiona a crise capitalista, que agora, com o recente “não” e a rejeição
Ocidental e, posteriormente, aos Estados Unidos e ao Japão, sob a forma de majoritária (55% do total de votos) dados pela cidadania francesa à Cons-
fordismo, pós-fordismo e taylorismo flexíveis. tituição da União Européia (29 de março de 2005), assim como com o
Com a generalização do sistema industrial e produtivo no curso do “não” no mesmo sentido dos holandeses em uma proporção de 62% do
século xx e, particularmente, depois da Segunda Guerra Mundial, os países padrão nacional, engendra, além disso, uma crise de legitimidade do pro-
da América Latina e outros do Terceiro Mundo conseguiram desenvolver jeto neoliberal nessa região.
suas forças produtivas, instaurar alguns segmentos da indústria, primeiro Ambas as crises possuem raízes estruturais e subjetivas, como postula
leve e depois pesada – especialmente de produção de meios de produção –, Búster (30 de maio de 2005), quando afirma que:
e, ao mesmo tempo, adotar e desenvolver nichos de produção e de mercado
de tecnologia de ponta. Esse foi o caso do Brasil, do México e de outros como O processo de reestruturação neoliberal da economia européia, iniciado na
a Coréia do Sul no curso da década de 1970, quando se desencadearam os sua fase atual com o Tratado de Maastricht, responde e agrava por sua vez
processos de substituição de importações e quando, neste último, o Estado um já baixo nível de crescimento econômico e da capacidade de concorrer
impulsionou as exportações. Mas na década seguinte foi imposto o padrão na economia global com os Estados Unidos e o Japão.
de acumulação de capital de matiz neoliberal e desindustrializador (Sotelo, De acordo com este autor, o mecanicismo que o capital europeu encontrou
2004), ao lado do influxo das políticas de ajuste estrutural do neoliberalis- desde os anos 1990 para contrabalançar a queda da taxa de lucro que, entre
mo. Na década seguinte, esse processo seria completado em escala universal, outros fatores, resulta do baixo crescimento da produtividade da economia
particularmente depois do Tratado de Maastricht (1992) na Europa, quando européia e que, por sua vez, segue o fraco investimento em tecnologia, é o
deu início o processo de desmoronamento do Estado de bem-estar. “aumento da exploração do trabalho, ou diretamente reduzindo salários e
aumentando as horas de trabalho, ou desmantelando o chamado ‘modelo
(...) sob o golpe de políticas econômicas neoliberais que preparavam a in- social europeu’”. (Búster, 30 de maio de 2005)
trodução do euro e estendiam o mercado único. A ampliação para os novos
Estados-membros da Europa Central levou este processo adiante, ao exercer À lógica neoliberal mercantilista, que restringe os países latino-ame-
uma pressão externa sobre os salários e os direitos trabalhistas com a chan- ricanos a estas duas funções: abastecimento de matérias-primas para os
tagem dos deslocamentos. A precariedade e a concorrência desregulada centros industrializados e transferências de valor e de mais-valia exclu-
com os trabalhadores emigrantes estão sendo a última fase deste processo, sivamente em benefício destes, deve-se acrescentar a função de ter-se
que não somente está reestruturando a própria composição da classe operá- constituído em exportadores de mão-de-obra – principalmente para os
ria européia, mas também as suas identidades e as suas lealdades políticas. Estados Unidos – e em plataformas de transformação do capital produtivo
(Búster, 30 de maio de 2005) em capital fictício, entendido este como o conjunto dos “meios de circulação
118 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 119

imaginários”, como na sua época J. W. Bosanquet o denominou.2 Claro e em 50% o nível de pobreza no mundo para 2015, simplesmente não serão
evidentemente, trata-se da especulação que hoje representa uma das ca- cumpridos, ou melhor, praticamente ficarão postergados indefinidamente
racterísticas da economia capitalista mundial. O fato realmente importante devido aos efeitos e à lógica perversa da aplicação das políticas microeco-
aqui é que o capital fictício serve para reciclar o capital de maneira rentável nômicas e macroeconômicas do neoliberalismo.
para os países industrializados e informatizados do sistema neo-imperia- Essas dimensões (queda da rentabilidade, deterioração crescente e
lista, provocando, em contrapartida, um crescente endividamento externo constante dos preços dos produtos de exportação e contração da demanda
na maior parte dos países latino-americanos, que, por essa via circular e interna pelo influxo da diminuição geral das rendas da sociedade) consti-
contraditória, mantêm-se prostrados diante dos organismos financeiros e tuem a contrapartida perversa das exigências das grandes empresas trans-
monetários internacionais. nacionais e dos Estados imperialistas, para se decidirem investir nos países
Uma quarta função complementar do neoliberalismo pode ser obser- da periferia do capitalismo dominante.
vada nas mudanças que se deram na configuração da economia mundial Como estímulo dessas transformações, figuram a revolução tecnoló-
e na divisão internacional do trabalho, sintetizadas na nova mudança da gica e a sua monopolização nesses Estados e empresas, e ainda as determi-
função histórica do subdesenvolvimento, que indica que “este deixou de nações econômicas e políticas que o capital financeiro (fictício) acarreta na
ser um desenvolvimento subordinado, caótico-elitista, complementar às dinâmica das economias dependentes, entre outras coisas, que provocam
necessidades dos países centrais, para se transformar em depredação das graves e recorrentes crises estruturais e financeiras e ciclos de desacumulação
forças produtivas, aniquilamento de populações” (Beinstein, 9 de agosto de capital (desindustrialização); transferência de valor e de mais-valia a que
de 2004). se vêem submetidas as economias subdesenvolvidas para poder continuar
Para grandes partes da África, da Ásia e da América Latina, o surgi- sendo “sujeitos de crédito” dos organismos internacionais do Fundo Mone-
mento das novas periferias nos centros imperiais e sua possível expansão tário Internacional e do Banco Mundial; a dinâmica e o ciclo das migrações
como espaços consolidados de superexploração do trabalho e de produção maciças de força de trabalho dos países dependentes aos desenvolvidos,
de valor, como pilares da globalização do capital, representam enormes de- que atualmente se transformaram em peças-chave do padrão de acumula-
safios e grandes problemas para as populações e os trabalhadores dessas ção capitalista dependente neoliberal; e as pressões e ameaças imperialistas
regiões. Eles terão de enfrentar fortes desvalorizações de suas economias, de utilização da força militar, quando esta se transforma na última garantia
de suas exportações e sobretudo de seus salários e rendas, com todas as de manutenção da ordem imperialista imposta pela supremacia militar dos
conseqüências sociais e políticas que isso representa. Estados Unidos, como de resto exemplarmente indica a situação de ataque
Entre outros efeitos desastrosos na ordem social e cultural para as po- e ocupação de países pobres como o Afeganistão e o Iraque por tropas de
pulações desses países e regiões, destaca-se o fato de que os Objetivos do intervenção norte-americanas.
Desenvolvimento da ONU para o Milênio, que foram estabelecidos expli- Nos últimos anos, as políticas do capital, a reestruturação produtiva e
citamente pelas Nações Unidas (a respeito disso, ver na Internet: <http:// a força desagregadora do capitalismo financeiro de matiz especulativo, com
www.un.org/spanish/milleniumgoalsl>) e com os quais ela presume reduzir sua onda de bolhas financeiras, provocaram o surgimento de um conjunto
de fenômenos que podem ser resumidos em três vertentes: a desregulação
2
Metalic, paper and credit currency. Londres, 1842. Apud Marx. O capital. México: FCE, 2000. do trabalho, a implementação da flexibilidade do trabalho e, finalmente, o
t. 3, cap. XXV, p. 382. fenômeno conhecido e detectado pelos trabalhadores e estudiosos de pers-
120 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 121

pectiva crítica concernente à precarização do trabalho. Esses três elementos messas (exportação de força de trabalho) que o novo modo de reprodução
articulados constituem um novo regime que, de maneira progressiva, ten- capitalista neoliberal está provocando praticamente em todos os países e
dencial e inexorável – na medida em que não seja contrabalançado pelas regiões do planeta.3
lutas dos trabalhadores e da sociedade – está se impondo praticamente em As novas e as velhas periferias estão se estruturando em função dos,
todo o mundo e em todas as dimensões das relações sociais e humanas: nas cada vez mais freqüentes, deslocamentos do capital e de suas empresas
fábricas, nas oficinas, na indústria, nas localidades, regiões e países, assim transnacionais, que, partindo dos países dinâmicos do centro imperialista,
como na vida cotidiana, que cada vez mais fica exposta às vicissitudes que como Alemanha e França – países que até agora são a coluna vertebral da
marcam e sobredeterminam a lógica do capital na sua vertente neoliberal União Européia –, estão sendo levados a cabo para impor novas formas
e mercantilista. organizativas e de exploração das relações sociais, trabalhistas e políticas
A queda da União Soviética no final da década de 1980, no sécu- entre o capital e o trabalho, com absoluto prejuízo deste.
lo passado, acontecimento que, diga-se de passagem, ficou marcado na Dessa forma, os deslocamentos (outsourcing) estão mudando a corre-
mundialização do capital e na confirmação dos Estados Unidos como lação econômica e política da antiga dependência com o surgimento nos
neo-imperialismo unilateralista; a derrota dos levantes revolucionários na próprios centros de periferias capitalistas, porque esse novo modo de pro-
América Central; a arremetida imperialista através do decálogo do Con- dução e de dominação do capital está articulando novas formas de conceber
senso de Washington e de suas políticas neoliberais; a implementação da a dependência e o atraso, estabelecendo, ao mesmo tempo, enormes desa-
democratização formal dos regimes políticos ditatoriais latino-america- fios para a compreensão dessa nova etapa do desenvolvimento histórico
nos a partir de meados da década de 1980; o início da guerra preventiva do capitalismo universal no despontar do século xxi.
dos Estados Unidos depois da primeira Guerra do Golfo, em 1991, são As novas migrações que se desenvolvem praticamente por todos os
fenômenos que, da perspectiva da sociologia crítica e da economia políti- países e regiões do mundo; o crescente e paradigmático envio de remessas
ca marxista, abriram novos mercados e ampliaram o raio de ação da acu- dos trabalhadores estrangeiros dos países desenvolvidos a seus países de
mulação e reprodução do capital em escala planetária, para tentar resolver origem; o processo de fragmentação dos sistemas produtivos que se desen-
de maneira duradoura os graves problemas de acumulação e reprodução volve de maneira concomitante com os chamados processos de integração
de capital e produção de lucros extraordinários que se apresentaram no (TLC, Mercosul, Alca); o despovoamento de grandes extensões e regiões do
período anterior. sul da Europa, da Espanha (particularmente em regiões como a Galícia), de
Explica-se, assim, nesse contexto, que as “novas áreas liberadas”, tal Portugal e outros, como a Estônia e a Lituânia, e o seu repovoamento com
como as pertencentes ao velho sistema estatal-socialista e planificado que contingentes humanos de força de trabalho provenientes da África, da Ásia
existiu na Europa Oriental até o final da década de 1980, no contexto da e da América Latina, são características que o surgimento e a expansão das
formação da União Européia, estejam se abrindo e se configurando como novas periferias vão consolidar no futuro mediato.
novas periferias no contexto e no espaço econômico-político e territorial
dos centros capitalistas imperiais. Isso assinala enormes reptos e desafios 3
Para avaliar a importância do fenômeno migratório e do envio de remessas para a América
(teóricos, metodológicos, analíticos e políticos) para as velhas zonas sub- Latina, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que, nos próximos 10 anos,
a América Latina receberá em torno de 300 bilhões de dólares a esse título, dos quais 80%,
desenvolvidas e dependentes da periferia do capitalismo desenvolvido,
cerca de 240 bilhões de dólares, caberão ao México, à América Central e ao Caribe. Ver López
particularmente em função do mundo do trabalho, das migrações e re- Espinoza [s.d.].
122 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 123

A Organização Internacional do Trabalho reconhece que os deslocamen- Hungria e das repúblicas Tcheca e Eslováquia, o custo da mão-de-obra [da
tos não transferem empregos de uma parte a outra do mundo e que o aumen- ordem de 120 dólares por mês] é essencialmente menor do que na União
to da produtividade nos países desenvolvidos não se traduz necessariamente Européia. Diferentemente, os trabalhadores das montadoras de automó-
em aumento de emprego. Pelo contrário, provocam “a destruição de empre- veis alemães têm salários da ordem de 28 dólares por hora. (Chossudovski,
gos que não são substituídos, particularmente no setor manufatureiro” (OIT, 2002, p. 90)
12 de dezembro de 2004), mas, ao contrário, aumentam os investimentos:
Um dirigente da Confederação Intersindical da Galícia (CIGa) subli-
O deslocamento dos postos de trabalho para países com salários muito mais nha as causas da precarização do trabalho, concretamente na província da
baixos aumenta o ritmo dos investimentos alemães no estrangeiro, ao passo Galícia no Estado espanhol:
que diminuem os que ficam na Alemanha: de 90 bilhões de euros na segun-
da metade de 2000 passaram a 71 bilhões na primeira metade de 2004. E isso As causas e os fatores que alimentam e estendem a precariedade e criam um
apesar de o Governo não ter outra política de emprego a não ser aumentar âmbito maior de superexploração estão relacionados à expansão universal
o lucro empresarial (baixa de impostos, moderação salarial), a única que ele e às necessidades do modelo neoliberal, à sua doutrina de desintegração
considera adequada para que os investimentos cresçam, e com eles os postos do sistema de economia mista na redução máxima da economia pública
de trabalho. (Sotelo, 8 de janeiro de 2005) estatal, à aplicação de reformas trabalhistas para desregular o mundo do
trabalho, flexibilizando a contratação temporária e causal e intensificando,
James Petras constata que o aumento da dependência também de al- flexibilizando e ampliando a jornada de trabalho, à externalização e tercei-
guma maneira, deriva do forte aumento dos investimentos, que, por sua
rização do sistema produtivo e de serviços, igualmente nos setores públicos
vez, são produtos dos deslocamentos e da expansão das novas periferias na
e privados, e à criação de um universo subsidiário de microempresas, com
economia mundial:
o conseqüente aprofundamento da estratificação trabalhista e de classe, à
diminuição da produção de valor e mais-valia no sistema produtivo com
A Europa e o Japão estão investindo fortemente no Irã, na Rússia, na Líbia e na
a conseqüente crise do padrão de acumulação de capital, com queda livre
África para garantir o fornecimento de energia. Essa concorrência interimpe-
de salários e das condições de trabalho nos países subdesenvolvidos e sua
rial aprofunda a dependência da América Latina, no seu papel tradicional na
derivação magnética desse metabolismo aos países centrais do capital, as-
divisão internacional do trabalho como um fornecedor de matérias-primas e
sim como pelo desvio dos investimentos de capital para o terreno financeiro
importador de artigos industriais. (Petras, 28 de dezembro de 2004)
especulativo, o que poderia explicar que, durante esse período de recessão
prolongada na economia produtiva, os valores financeiros, em situação con-
Por sua vez, Chossudovski também constata que:
trária, tenham um constante decréscimo e rentabilidade. (Alcántara, 2004)
O capitalismo alemão está se expandindo para além do [rio] Oder-Neisse
até o seu Lebensraum4 de antes da guerra. Nas montadoras da Polônia, da

Adolf Hitler utilizava essa palavra para descrever a necessidade que o III Reich alemão tinha de
4
Termo alemão que significa “espaço vital”. A expressão foi cunhada pelo geógrafo alemão encontrar novos territórios para onde se expandir, especialmente à custa dos povos eslavos da
Friedrich Ratzel e posteriormente adotada pelos geopolíticos da primeira metade do século xx. Europa Oriental (Biblioteca de Consulta Microsoft, Encarta, 2005).
124 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 125

Um dos efeitos desses processos de reestruturação e deslocamento 3. Deslocamentos e novas periferias na economia mundial
exerce um impacto negativo nos mercados de trabalho. Na literatura con- No contexto do desaparecimento de empresas, da perda de postos de
vencional, os mercados de trabalho tradicionais se consideram estrutu- trabalho e da crise econômica,
rados quando 70 a 80% da força de trabalho se encontram ocupados em
postos formais, em relação de dependência para com o capital. No entan- as autoridades governamentais e os sindicatos discutem sobre a necessi-
to, agora, os empregos formais em relação de dependência estão em vias dade de renunciar a certas conquistas alcançadas, especialmente no marco
de diminuir e, em alguns casos, estão em extinção. Em vastas regiões do do chamado Estado de bem-estar. Assim, discutem sobre a urgência de es-
mundo, predomina o trabalho “golondrina” (barco), os contratos são de tabelecer maior flexibilidade da jornada de trabalho e aumentar as horas de
curta duração, por contratação, e, em outros países desenvolvidos, é o te- trabalho, sem que isso necessariamente conduza a aumentos de salário, o
letrabalho. Aumentaram o número de trabalhadores por conta própria, os que ocorre já há muito, em detrimento da situação da classe trabalhadora.
empregos informais e transitórios. Inclusive os trabalhadores qualificados, (Swiney González, 23 de agosto de 2004)
com altas rendas e títulos universitários, diminuíram e estão submetidos
à instabilidade do emprego e a regimes de precarização e superexploração Por isso, foi colocada a reforma trabalhista na União Européia para
do trabalho.5 alcançar “(...) a flexibilidade na jornada de trabalho com ênfase na amplia-
Enquanto nas décadas anteriores, na América Latina, geralmente mais ção das horas (...) para poder adaptá-la ao longo do ano às condições que o
de 80% dos postos de trabalho eram de longa duração, com contratos in- mercado exigir a fim de melhorar a produtividade” (ibid.).
tegrais e com prestações, agora, ao contrário, calcula-se que o setor não Empresas transnacionais como a Siemens conseguiram, sob pressão e
estruturado dos mercados de trabalho, constituído por trabalhadores por chantagem, deslocar a sua produção para a Hungria (onde o salário médio
conta própria, empresas familiares, ocupados em microempresas e serviço em 2004 é de 3,8 euros por hora, comparado com 26,5 euros na Alemanha),
doméstico, represente 85 de cada 100 empregos na década de 1990, ao passo em junho de 2004, e fazer um acordo com a direção do sindicato IG Metall
que os empregos modernos vêm diminuindo e, cada vez mais, registra-se no sentido de um aumento da jornada de trabalho de 35 a 40 horas por
uma criação menor de emprego nas grandes empresas (Aspiroz, Fossati & semana para quatro mil trabalhadores no ramo da telefonia móvel, sem
Mendoza, [s.d.]). compensação salarial e com a renúncia explícita ao pagamento a título de
Confirma-se, assim, a passagem de uma economia capitalista que benefício natalino (abono) e férias. O exemplo, com seus matizes particu-
crescia com a criação de postos de trabalho em relação de formalidade lares, está sendo seguido pela Mercedes Benz, Volkswagen, Continental e
jurídico-trabalhista com o capital para o predomínio de uma economia outras companhias que oferecem essa modalidade de emprego para 25%
com crescentes dificuldades para prosperar e que, quando o faz, a geração dos trabalhadores alemães.
de empregos tende a ser precária e a diminuir os direitos e as prestações O efeito de demonstração da Siemens veio em cascata na Alemanha
dos trabalhadores, que são submetidos ao império da superexploração do e, por extensão, promete se estender por toda a Europa. É assim que, para
trabalho. “salvar o emprego”, a empresa Daimler Chysler, com o consentimento da
direção sindical, aceitou aumentar as horas de trabalho semanais com re-
5
Entende-se aqui por precarização do trabalho o processo crescente de perda de direitos e
prestações para os trabalhadores, com o objetivo de submetê-los a regimes de exploração do
dução salarial em torno de 3% em média, com o único objetivo de conse-
trabalho, ao livre-arbítrio dos patrões e das empresas. guir da empresa a promessa de garantia de emprego pelo menos até o ano
126 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 127

2012 e manter os postos de trabalho na casa dos 160 mil. O mesmo está o aumento da jornada, reduzir a massa salarial e aumentar a intensida-
ocorrendo nas companhias Mercedes Benz (que ameaçou se transferir para de do trabalho (elementos, certamente, do regime de superexploração do
a África do Sul), na Volkswagen, na Continental e em outras empresas des- trabalho que Marini formulou nos seus textos fundamentais para o caso
se país. Na França, os trabalhadores da companhia Bosch Vénissieux (que da América Latina). À medida que isso ocorresse, estar-se-ia assistindo à
ameaçou se transferir para a República Tcheca) “aceitaram” trabalhar uma quebra definitiva do Estado de bem-estar, tal como este surgiu depois da
hora a mais em troca da manutenção do emprego. A empresa Opel estuda Segunda Guerra Mundial do século passado, e à transição para um regime
a possibilidade de aumentar a jornada de trabalho para 40 horas semanais específico de superexploração do trabalho no capitalismo avançado.
sem compensação salarial. Recentemente, em novembro de 2004, a trans- Exemplo paradigmático dos embates dos deslocamentos empresa-
nacional Volkswagen, na Alemanha, conseguiu um acordo com a direção riais, estimulados pela feroz concorrência intercapitalista e pela lógica neo-
sindical para congelar os salários dos trabalhadores durante 28 meses, com liberal de direção imperial da União Européia, é a ameaça de extinção dos
o pagamento, em uma única vez de 1.000 euros para cada trabalhador. estaleiros espanhóis, sob as pressões que a direção da União Européia em
Dessa forma, a jornada de trabalho de 35 horas se transformou em um Bruxelas vem exercendo para que o governo do Estado espanhol retire em
verdadeiro pesadelo para o patronato europeu. torno de 300 milhões de euros a título de subsídios, que até agora vinham
Esses acontecimentos, cifrados em deslocamentos, em reorientação sendo feitos para esse importante ramo da economia espanhola. Outro ele-
dos investimentos, na arrogante política da chantagem patronal, na des- mento que trabalha contra a existência dos estaleiros estatais é a enorme
regulação, flexibilidade e precarização do trabalho, estão levando a uma competitividade dos asiáticos que ameaça colocar na rua mais de 45.000
verdadeira reversão histórica das conquistas operárias, que tinham con- trabalhadores, que não terão outra saída senão imiscuírem-se nas corren-
seguido se materializar, entre outras conquistas, na redução da jornada de tes migratórias da União Européia, concorrendo com trabalhadores prove-
trabalho, no seguro contra o desemprego, nos aumentos importantes dos nientes do Marrocos e, em geral, dos países africanos e latino-americanos.
salários globais e em um conjunto de prestações que permitiram a estudio- Outro ângulo do problema pode ser observado em regiões inteiras,
sos e direções sindicais caracterizar o Estado como sendo de bem-estar, o como a Galícia, onde, segundo o coletivo Mulheres(em)causaencantada.
qual, justamente em razão desses acontecimentos, está hoje em crise e em org, aproximadamente 60.000 mulheres trabalham em oficinas clandesti-
processo de destruição.6 nas, sem luz natural, durante 12 horas e com soldos de 200 euros por mês
Na França, a situação é complexa: o patronato e o governo conserva- para a empresa Inditex, que é a matriz de marcas como Zara, Stradivarius,
dor de Jacques Chirac ameaçavam os trabalhadores com levar a cabo uma Oysho, Pul & Bear, Bherska, Massimo Dutti e Kiddy’s (apud Corpas, 7 de
reforma trabalhista para reverter a legislação das 35 horas (a única que na maio de 2005).
Europa está regulada por lei), com o objetivo de codificar juridicamente Além disso, ocorre um outro fenômeno derivado do processo de des-
locamento de empresas na Galícia:
6
As políticas do capital assentadas na privatização e na desregulação, além de provocarem
crises catastróficas no mundo do trabalho, incidem também na crise econômica. Nesse sentido, as empresas de moda já ocupam mais trabalhadoras fora do que dentro da
referindo-se à crise nos setores de telecomunicações, de eletricidade e do sistema bancário dos comunidade autônoma. Mais da metade da produção se instalou no estran-
Estados Unidos, diz Stiglitz (2003, p. 127): “Embora o decréscimo econômico de 2001 só tenha
sido uma manifestação benigna destas doenças mais virulentas, não há dúvida de que esta que- geiro, em países com mão-de-obra muito mais barata e em condições de
da econômica foi em grande parte atribuída à desregulação dos anos de 1990.” trabalho deficientes, como são Marrocos, Romênia, Peru, Paquistão, Índia e
128 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 129

Malásia. O deslocamento, que prejudica mais de 400 oficinas de confecção desenvolvido e imperial. Isso certamente acarretará uma concorrência
instaladas na Galícia, permitiu aos 15 maiores industriais galegos, encabe- interimperialista mais acirrada e indiscriminada – e na própria força de
çados por Inditex, Adolfo Dominguez, Caramelo, Lonia e Roberto Verino, trabalho – com as populações trabalhadoras das velhas periferias que
consolidar ainda mais a sua posição no setor (...) No Marrocos, as traba- constituíram as relações de dependência nos séculos xix e xx.
lhadoras podem chegar a trabalhar por menos de 180 euros mensais, su- Do ponto de vista da economia política e da teoria da dependência,
perando a semana de 48 horas que a legislação marroquina estabelece. No considero que as novas periferias tendem a cumprir as seguintes funções
caso de Tanger, onde estão concentradas numerosas fábricas que trabalham atribuídas a elas tanto pela divisão internacional do trabalho quanto pela
para empresas como El Corte Inglés ou Stradivarius, o salário não chega própria dinâmica regional, que, nesse caso, está circunscrita ao âmbito
a 60 centavos de euro por semana e se trabalha em condições subumanas europeu e à dinâmica de deslocamento das empresas multinacionais com
de salubridade e habitação (...) firmas como Mango e Induyco (El Corte base em países como a Alemanha e a França:
Inglés) submetem as mulheres a jornadas de trabalho de 12 a 16 horas na 1a) Servir como plataformas de recepção de grandes empresas que
alta temporada, porque na Espanha são pedidos prazos de entrega de seis decidam se deslocar para aproveitar vantagens como proximidade geo-
dias. (Corpas, 7 de maio de 2000) gráfica, diferenças salariais, jornadas de trabalho flexíveis, nenhuma ou
pouca legislação trabalhista, baixo ativismo sindical e disposição de go-
Como se pode observar, o surgimento de novas periferias e a política vernos neoliberais.
de deslocamento estão se transformando em verdadeiras fontes de obten- 2a) Pressionar as empresas localizadas em países desenvolvidos, como
ção de valor e de acumulação de capital para as grandes empresas, que, dos na Alemanha e na França, para que as suas respectivas burguesias empresa-
seus centros e Estados imperiais,7 pressionam tanto os seus próprios traba- riais e os governos possam chantagear suas classes operárias e o mundo do
lhadores quanto os de outras latitudes, com o objetivo de lhes impor condi- trabalho no sentido de baixar os salários, aumentar as taxas de exploração
ções de trabalho, de emprego e de salários em função de suas prerrogativas do trabalho e acirrar a concorrência entre os trabalhadores por postos de
de concorrência internacional e de obtenção de lucros extraordinários. trabalho precários e escassas oportunidades de emprego.
3a) Uma vez assumida a superexploração do trabalho em qualquer
4. Dependência, neo-imperialismo e novas periferias modalidade no capitalismo avançado, as novas periferias se transformam
É preciso entender que estamos diante de um novo mapa de formação em verdadeiras concorrentes das antigas periferias, como as da América
das novas migrações em nível internacional, regional e local que corres- Latina, para atrair e manter barata a força de trabalho, a tecnologia, os in-
ponde a uma nova estruturação dos processos de acumulação e reprodução vestimentos estrangeiros e as empresas, o que, por sua vez, é aproveitado
do capital e de uma divisão internacional do trabalho caracterizada pelo pelos países imperialistas para aprofundar essa desigualdade em benefício
surgimento de novas periferias dentro do próprio centro do capitalismo da rentabilidade e da expansão dos seus negócios.
4a) Dessa forma, se em um primeiro momento as antigas periferias
7
Isso reforça a tese do Estado forte na globalização do capital, muito distante da concepção historicamente serviram como plataformas para a expansão do capital in-
fascistóide de um Fukuyama (2004), que, ao se referir aos “Estados fracassados” de países sub- ternacional, hoje as novas periferias tendem a desempenhar esse mesmo
desenvolvidos, como o Haiti, o Afeganistão ou o Iraque, justifica qualquer intervenção impe-
rialista por parte da mal-afamada “comunidade internacional”, certamente encabeçada pelos
papel no plano regional, o que pressiona as antigas periferias para que estas
Estados Unidos, contra o “terrorismo”. aprofundem as políticas neoliberais e ajustem as suas economias à lógica
130 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 131

mercantilista e de lucros que o grande capital monopolista internacional riamente, das grandes empresas transnacionais, mas muito pouco em be-
lhes impõe. nefício das grandes massas populares latino-americanas. Por isso, vale a
Somente a teoria da dependência, na sua vertente crítica e marxista, pena perguntar: o que significa essa integração? Estão integradas nações
pode esclarecer estes acontecimentos estruturais e sociopolíticos e caracte- neocoloniais, como o Haiti, ocupadas por exércitos imperialistas e subim-
rizá-los dentro da lógica expansionista da economia capitalista mundial. perialistas? O México, país dependente e subdesenvolvido, está realmente
A América Latina precisa enfrentar grandes desafios, entre outros o integrado às economias imperialistas dos Estados Unidos e do Canadá, em
fato de que o capital e os fortes Estados dos países centrais encontraram, condições de igualdade e de competitividade internacional, ou antes se trata
nas novas periferias, elementos suplementares e mecanismos de pressão de uma subordinação absoluta que incrementa a sua multidependência?
e de submissão para redobrar a sua dependência e redefinir o seu papel Essas são perguntas que devem ocupar a atenção dos estudiosos, pelo
dentro do esquema dominante de divisão internacional do trabalho, em menos dos críticos da integração forçada, que estão interessados em encon-
detrimento dos setores industrial, de serviços e, de maneira fulminante, da trar verdadeiras respostas de fundo para essas problemáticas que deveriam
agricultura, com grandes repercussões para as classes camponesas e pro- ser vislumbradas e reavaliadas à luz do surgimento e da consolidação das
dutoras latino-americanas, que verão assim depreciados os preços de seus novas periferias, que, ao que parece, têm como objetivo estratégico subs-
produtos, assim como as suas já deterioradas condições gerais de vida e de tituir as velhas como territórios de investimento, de acumulação e como
trabalho. plataformas de exportação e de pressão para aumentar a concorrência in-
Durante a segunda metade do século xx, a América Latina e o Caribe ternacional das grandes empresas transnacionais, que, agora, articuladas
perderam a vantagem e a participação no comércio internacional, tanto em com seus Estados neo-imperiais, são as únicas que mostram vocação pla-
relação aos países desenvolvidos como perante os novos países industria- netária para impor a globalização e redefinir a dependência estrutural em
lizados (NICs), que floresceram nesse período. A tal ponto, que a região seu benefício.
atualmente não supera 5% do comércio internacional, e isso apesar das pri-
vatizações neoliberais ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 e da entrega Bibliografia
dos seus recursos naturais e estratégicos ao capital internacional. Alcántara, Antolín [Secretário Confederal de Ação Sindical da Confe-
Além disso, a maior parte dos países latino-americanos reestruturou deração Intersindical Galega]. La precariedad y la sobreexplotación de
os seus aparelhos produtivos e os seus padrões de acumulação de capital la fuerza de trabajo en los sectores en Galiza. Galícia, out. 2004 [fotocó-
em benefício de setores tradicionais (primário-exportadores), fundados na pia]. Disponível em: <http://galizacig.net/arquivo/pdf/a>.
produção de petróleo, gás, agricultura, gado, minerais, frutas e, nos casos Aspiroz, José Ramón; Fossati, Felipe; Mendoza, Yanila. Situación
do México e da América Central, na exportação de força de trabalho para laboral de América Latina, [s.d.]. Disponível em: <http://utal.org/
os Estados Unidos. trabaio17.htm>.
Diante desses fatos, o Estado latino-americano impulsionou certos Beck, Ulrich. Un nuevo mundo feliz, la precariedad del trabajo en la era de
processos de integração, como o Tratado de Livre-Comércio, o Mercosul, o la globalización. Barcelona: Paidós, 2000.
Caricom e o Mercado Comum Centro-Americano, entre outros. No entanto, Beinstein, Jorge. La viabilidad del postcapitalismo. La vida des-
estes foram levados a cabo no contexto de políticas neoliberais, geralmente pués de la muerte. Disponível em: <http://www.rebelion.org/
em benefício de frações restritas das burguesias dependentes e, majorita- noticiaphp?id=312>, 9 ago. 2004.
132 ■ A América Latina e os desafios da globalização Neo-imperialismo, dependência e novas periferias na economia mundial ■ 133

Búster, G. El no francés puede abrir la puerta a outra Europa possible. Ruy Mauro; MILLÁN (Coord.). La teoría social latinoamericana:
In: Chossudovski. Globalización de la pobreza y nuevo orden cuestiones contemporâneas. 2. ed. México: El Caballito, 1996. t. IV.
mundial. México: Siglo XXI, 2002. Martins, Carlos Eduardo. Superexploração do trabalho e acumulação de
Coriat, Benjamin. Pensar América Latina revés. Trabajo y organización capital: reflexões teórico-metodológicas para uma economia política
en la empresa japonesa. México: Siglo XXI, 1992. da dependência. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política,
Corpas, Antón. Las localizaciones, cierres y despidos, las recetas para la Rio de Janeiro, n. 5, p. 121-138, 1999.
industria têxtil. Rebelión [revista eletrônica]. Disponível em: <http:// OIT. El aumento de la produtividad provoca más desempleo que deslocaliza-
www.rebelion.org/noticiaphp?id=14841>, 7 maio 2005. ción. Disponível em: <http://www.rebelion.org/noticiaphp?id=8718>,
Donghi, Tulio Halperin. Hispanoamérica después de la independência. 12 dez. 2004.
Buenos Aires: Paidós, 1993. Petras, James. El imperio en el año de 2005. Disponível em: <http://
EGURROLA, Jorge Isaac. La dimensión regional. In: EGURROLA, Jorge rebeilion.org/noticia.php?id=9394>, 28 dez. 2004.
Isaac; ROMERO, Luis Quintana. Siglo xxi: México para armar, cinco Sotelo, Ignácio. Desmontaje del Estado. Disponível em: <http://rebe-
dimensiones de la economía mexicana. México: Plaza y Valdés, Cen- lion.org/noticia.php?id=9719>, 8 jan. 2005.
tro de Estudios para el Desarrollo Alternativo, A.C., 2004. p. 125-170. Stiglitz, Joseph. Los felicez 90, la semilla de la destrucción. México: Tau-
Espinoza, Mario López. (OIT): Remesas de mexicanos en el exterior y rus, 2004.
su vinculación com el desarrollo económico, social y cultural de suas Valencia, Adrián Sotelo. Desindustrialización y crisis del neoliberalismo,
comunidades de origen. Estudios sobre migraciones internacionales, n. maquiladoras y telecomunicaciones. México: Plaza y Valdés/UOM/
59, [s.d.]. Disponível em: <http://www.oit.org.mx/pdf/remesas/reme- Enat, 2004.
sas.pdf>. ________. La reestructuración del mundo del trabajo, sobreexplotación y nue-
Fukuyama, Francis. La construcción del Estado. Hacia um nuevo ordem vos paradigmas de la organización del trabajo. México: Itaca/UOM/
mundial en el siglo xxi. Barcelona: Ediciones Benjamin, 2004. Enat, 2003.
GONZÁLES, Adela Mac Swiney. El papel del trabajo; la Unión Europea, ce-
der derechos para mantener el empleo. Disponível em: <http://www.
iornada.unam.mx/2004/ago04/040823/006n1>, 23 ago. 2004.
Hardt, Michael; Negri, Antonio. Império. Buenos Aires: Paidós. 2002.
________. Multitud. Barcelona: Debate, 2004.
La jornada. Informalidad y migración se consolidan como puntales de
la economia, 4 jun. 2004.
Marini, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependência. México: Era, 1973.
________. El ciclo del capital en la economía dependiente. In: OSWALD,
Úrsula (Coord.). Mercado y dependência. México: Nueva Imagen,
1979. p. 37-55.
_____. Proceso y tendencias de la globalización capitalista. In: Marini,
134 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 135

A economia mundial e a América Latina


no início do século XXI1

Orlando Caputo Leiva*

Publicamos este artigo em homenagem a Ruy Mauro Marini. Nele,


estão presentes orientações e temas centrais desenvolvidos pelo autor, em
particular sua visão sobre economia mundial na seção “Economía mundial
e as limitações da ciência econômica”, e sobre a superexploração do traba-
lho nas seções que tratam dos seguintes temas: o incremento da exploração
do capital sobre o trabalho e a mudança nas relações sociais de produção;
aprofundamento  do desenvolvimento desigual e do subdesenvolvimento
da América Latina; e da proeminência do capital financeiro à proeminên-
cia do capital produtivo.
Este artigo está baseado em dois anteriores: “Estados Unidos e China:
locomotivas na recuperação e nas crises cíclicas da economia mundial?” e
“Economia mundial e as limitações da reprodução econômica na América
Latina”. Nas partes sobre os Estados Unidos e a América Latina, são apre-
sentados novos desenvolvimentos com informação recente de algumas das
séries estatísticas relevantes, incluindo a forte presença dos investimentos

* Economista chileno, ex-diretor geral da Codelco durante o governo Allende, é destacado au-
tor da escola da dependência. Entre seus inúmeros escritos, destaca-se o clássico Dependencia y
relaciones internacionales (1973). Atualmente, dirige o Centro de Estudios sobre Transnaciona-
lización, Economia y Sociedad (Cetes), é membro da Red de Estudios de la Economia Mundial
(Redem) e faz parte do Grupo de Estudos sobre Estados Unidos, da Clacso.
1
Agradeço à economista Graciela Galarce, pesquisadora do Centro de Estudos sobre
Transnacionalização, Economia e Sociedade (Cetes), com quem dividi por muitos anos alguns
temas de pesquisa. Ela participou ativamente na elaboração deste documento.
136 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 137

da Espanha na América Latina, que concorrem com os Estados Unidos e Sua origem remonta às primeiras fases do desenvolvimento do capi-
que, em certos setores, desempenham um papel de protagonista. talismo. O protecionismo e o livre-comércio sempre foram pensados como
Várias das conclusões das nossas pesquisas – para as décadas recentes, as políticas econômicas mais globais que caberia adotar de acordo com o
ou pelo menos para a próxima década – são diferentes daquelas tiradas por grau de desenvolvimento e as necessidades dos capitalismos nacionais em
Robert Brenner e diferentes também das conclusões de Gérard Duménil e sua participação na economia mundial.
Dominique Lévy. Essas diferenças estão presentes, entre outras, nas seguin- O enfoque de economia mundial foi desenvolvido por Marx, como fica
tes questões: no enfoque teórico da economia mundial; sobre o crescimento claramente demonstrado a partir de suas primeiras obras, particularmente
dos lucros, sobre o crescimento dos investimentos e a reconquista da hege- no Manifesto comunista e nos diferentes planos da sua obra. No entanto,
monia dos Estados Unidos; sobre a preeminência do capital financeiro ou a a maioria das interpretações no interior do marxismo compreende Marx
preeminência do capital produtivo. como um economista de economia nacional.
A China está modificando todo o panorama mundial. Em trabalhos Na história da economia mundial se encontram períodos de alta in-
recentes e neste artigo, destacamos o papel desse país na produção mun- tegração das economias nacionais, tal como o desenvolvimento anterior à
dial, no comércio mundial e nos lucros. A China é um centro nevrálgico na crise dos anos 1930 e como é a globalização atual.
recuperação dos lucros da economia mundial. No entanto, poderia afetá- As principais categorias econômicas e leis tendenciais funcionam no
los diminuindo-os. O capitalismo está dependendo cada vez mais da China nível da economia mundial e das economias nacionais, ainda que o façam
do que a China do capitalismo. A mudança na hegemonia da economia com algumas diferenças. Existem mercados mundiais para muitos produtos
mundial está se dando mais rapidamente do que as projeções previstas. específicos, formam-se preços internacionais de mercadorias semelhantes,
produzidas em diferentes condições e em diferentes países.
1. A economia mundial e os limites da ciência econômica O desenvolvimento da estrutura produtiva mundial e da circulação
Existe uma economia mundial e, no entanto, a ciência econômica, nas mundial das mercadorias tem por base um desenvolvimento diferente e
suas principais escolas teóricas, tem como cenário o estreito espaço nacio- desproporcional dos diferentes ramos e setores das economias nacionais,
nal, razão por que é incapaz de prever e explicar os principais problemas que pode ou não alcançar uma proporcionalidade em nível mundial, pro-
contemporâneos e que desenvolveremos depois. Entre eles, as mudanças duzindo os diferentes momentos do ciclo e as crises cíclicas, quando não se
no nível da hegemonia econômica mundial; os ciclos econômicos; as cri- consegue a proporcionalidade em nível mundial.
ses cíclicas da economia mundial etc. Na realidade, a economia mundial, Na economia mundial, estão presentes também as principais formas
as economias nacionais e as grandes empresas transnacionais transitam e de movimento: o desenvolvimento desigual, as ondas longas, o movimento
promovem grandes transformações, adiantando-se à ciência econômica e à cíclico e as crises cíclicas periódicas. As verdadeiras crises cíclicas se mani-
margem dela, que, posteriormente, tenta assimilá-las sem conseguir enten- festam como crise de mercado mundial.
der e explicar essa realidade. Apesar da existência objetiva da economia mundial, a ciência eco-
A existência objetiva da economia mundial capitalista fica em evidên- nômica, na sua construção teórica, raciocina com uma suposta economia
cia através do desenvolvimento crescente de uma estrutura produtiva mun- nacional fechada. Posteriormente, são analisadas as modificações das estru-
dial, da circulação mundial de mercadorias e de capitais, que se superpõem turas teóricas em condições de economia aberta. Em seguida, nos ramos
às economias nacionais e que são superiores ao mero somatório delas. especializados, vai adiante, relacionando as economias abertas, que ela
138 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 139

designa como comércio internacional, finanças internacionais, e a econo- 3o) A imunidade de cidadãos norte-americanos perante processos nos
mia internacional. Nesse sentido, o título que escolhe é muito ilustrativo: Tribunais Criminais Internacionais.
“economia internacional”; ele se refere a relações econômicas entre países, No texto que estamos citando, acrescenta-se o seguinte:
como assinalou Javier Peinado no seu trabalho “O que há por trás do con-
flito do Iraque” (março de 2003). Ao comentar esta nova estratégia de segurança nacional, o senador Edward
A ciência econômica, por ter como cenário fundamental de análise a M. Kennedy declarou que: “a doutrina da Administração é um chamado ao
economia nacional e assumir a economia mundial somente como relações imperialismo norte-americano no século xxi, que nenhuma outra nação
econômicas entre países, fica muito limitada para entender o funcionamen- poderia ou deveria aceitar”. (7 de outubro de 2002)
to da economia mundial, e também das economias nacionais. Por essas
razões, muitos fatos e transformações, assim como as crises da economia A reestruturação da economia dos Estados Unidos e a reconquista da
mundial, foram uma verdadeira surpresa para a ciência econômica no nível hegemonia econômica em nível mundial constituem uma das bases funda-
acadêmico e nos organismos internacionais. Por exemplo, a crise do início mentais da nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos.
dos anos 1980 e a sua gravidade na América Latina; a decadência atual da De forma rápida, apresentaremos a reestruturação da economia dos
América Latina como conseqüência da globalização; e assim ocorreu tam- Estados Unidos e a sua transformação em única potência mundial, o que
bém com a crise asiática do final de 1997, que foi uma surpresa, como, de lhes permite afirmar, na sua nova política de segurança nacional, que os Es-
resto, foi amplamente reconhecido. tados Unidos não aceitam dividir com ninguém, incluindo os outros países
desenvolvidos, esse “indiscutível” domínio global.
2. A nova hegemonia dos Estados Unidos e a Essa reestruturação da economia norte-americana, com forte apoio
nova política de segurança nacional estatal, produz-se na época da globalização da economia mundial, o que
No artigo de Monthly Review, “As ambições imperiais dos Estados lhe permitiu passar novamente a ser a única potência mundial. Em meados
Unidos no Iraque”, afirma-se que a nova estratégia de segurança nacional da década de 1980, os principais setores da economia norte-americana e a
dos Estados Unidos, comunicada pelo Poder Executivo ao Congresso própria economia dos Estados Unidos se caracterizavam como uma econo-
(New York Times, 20 de setembro de 2002), estabelece três princípios fun- mia decadente, que estava sendo substituída pela Europa, e, especialmente,
damentais da política estratégica norte-americana: pelo Japão e pelo Sudeste Asiático.
1o) Assegurar permanentemente o indiscutível domínio global dos
Estados Unidos, de modo que a nenhuma nação seja permitido rivalizar O crescimento dos lucros a partir de meados dos anos 1980
ou ameaçar os Estados Unidos. No artigo “Estados Unidos e China...”, afirmávamos o seguinte: os lu-
2o) A disposição permanente dos Estados Unidos de realizar de forma cros globais se mantiveram estagnados e em um nível extremamente baixo
rápida ataques militares preventivos contra Estados ou forças em qualquer por muitos anos. Também a taxa de lucro desde 1970 até meados dos anos
parte do mundo, que sejam consideradas uma ameaça à segurança dos Es- 1980 esteve muito deprimida.
tados Unidos, às suas forças e às suas instalações no exterior, ou a seus
amigos aliados.
140 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 141

Gráfico 1 – Estados Unidos: lucros globais das empresas Os lucros globais tiveram uma forte queda na recessão do início dessa
(bilhões de dólares) década. Mas, a partir de 2002, ocorre uma forte recuperação até o primeiro
trimestre de 2004, contemplado no gráfico.
1.300
1.200 A informação recente – fevereiro de 2006 – confirma a informação
1.100
1.000
do gráfico e da tabela, que mostra que, depois da queda dos lucros na
900 crise do início dessa década, a partir de 2002, produz-se uma forte recu-
800
700 peração. Tanto é assim que os lucros como média simples dos três primei-
600
500 ros trimestres de 2005 superam o 1 trilhão e 300 bilhões de dólares, que,
400
300
em dólares correntes, é superior em 54% os lucros globais de 1999, o ano
200 anterior à crise.
100
0
1959 1962 1968 1971 1974 1977 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 1-2004
Tabela 1 – Estados Unidos: lucros globais das empresas
Lucros (Correntes) Lucros (US$ 2 mil) (bilhões de dólares)

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos. 1998 1999 2000 2001 2002 2003 204 2005
Lucros 801,6 851,3 817,9 767,3 886,3 1031,8 1161,5 1309,6

O gráfico mostra a estagnação prolongada que sofreram os lucros Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
globais – em dólares de 2000 – no período que vai do final de 1960 até
meados de 1980. Esse período se caracterizou como de crescimento lento Para 2005, os lucros correspondem a uma média simples dos três pri-
e perda crescente da hegemonia dos Estados Unidos a favor da Europa e meiros trimestres.
do Japão.
A partir de meados de 1980, observa-se um grande crescimento dos Crescimento do investimento a partir de meados da década de 1980
lucros no conjunto das empresas – financeiras e não financeiras. De 1960 Junto com os lucros, os investimentos, como outra categoria econô-
até 1968, os lucros nos Estados Unidos mostram um crescimento signifi- mica fundamental, também tiveram um crescimento significativo como
cativo de 55%; no período que vai de 1968 a 1983, crescem somente 2,2%; tendência nos últimos 20 anos. Deve-se destacar especialmente que o in-
e de 1983 a 1997, 125%. Quando se amplia este último período até o pri- vestimento global dos Estados Unidos cresce de forma exponencial desde
meiro trimestre de 2004 – o ano como critério –, o crescimento dos lucros 1991 até 1999. Sua “inclinação” não encontra um comportamento seme-
é de 183%. lhante nos últimos 40 anos. Em 1991, o investimento tinha caído, como
Acrescentamos que também os lucros das empresas norte-americanas conseqüência da crise do início dos anos 1990, para 822 bilhões de dólares
no exterior aumentaram enormemente. Além disso, os lucros das empre- americanos. Em 1999, chegou a 1 trilhão e 643 bilhões de dólares. De 1991
sas e a taxa de lucro foram beneficiados por uma grande diminuição dos a 1999, o crescimento do investimento foi de 100%.
impostos.
142 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 143

Gráfico 2 – Estados Unidos: investimento interno privado bruto O coeficiente que mede o investimento global, que inclui os investi-
(bilhões de dólares em dólares de 2000) mentos privados e públicos, é mais categórico ainda. Aumenta de 12,5%
em 1970 para 20,8% em 2000 e em 2005. A reestruturação da economia
2.500
norte-americana se dá particularmente na década de 1990, quando ocorre
2.000 um grande aumento desse indicador.

1.500
Tabela 3 – Investimento público como porcentagens
1.000 do investimento privado (em porcentagens)

500 1970 1980 1990 1995 2000 2005


Inv.
0
Público/Privado 10,2 15,6 24,1 20,5 17,5 20,9
1959 1962 1968 1971 1974 1977 1980 1983 1986 1989 1992 1995 1998 2001 2004

Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.

O gráfico mostra que os investimentos caem profundamente nas cri- Como dissemos, a reestruturação da economia dos Estados Unidos
ses cíclicas. É notória a queda na crise de 1974-1975, na crise de 1980-1982, teve um grande apoio estatal. Isso fica claro, já que em 1970 o investimento
na crise do início dos anos 1990, e foi particularmente forte a queda do público era somente de 10% do investimento privado. Em 1990, ele aumen-
investimento na recessão do início dessa década. tou para 24%, e, daí por diante, mantém-se em níveis que quase dobram os
Os investimentos começam a se recuperar a partir de 2003. Em 2004 e níveis de 1970.
2005, eles apresentam um forte crescimento. Em 2005, chegam a 1 trilhão e
916 bilhões de dólares, bastante superior ao nível alcançado antes da crise, 3. O grande crescimento do investimento em equipamentos
que, em 2002, foi de 1 trilhão e 735 bilhões de dólares. de alta tecnologia e a forte diminuição dos preços
A reestruturação da economia norte-americana foi tão profunda que No interior do investimento privado, o investimento nas empresas
modificou substancialmente a relação de investimento e produto. Em 1970, cresce mais do que os investimentos residenciais. No interior das empresas,
o investimento sobre o PIB (Produto Interno Bruto) nos Estados Unidos os investimentos que mais crescem são os de equipamentos e software de
era de 11,3%; em 2000 e em 2005, alcançou 17,7% e 17,2%, respectivamente. alta tecnologia. No entanto, os investimentos em edifícios e em estruturas
físicas das empresas têm um crescimento muito pequeno.
Tabela 2 – Estados Unidos: investimento/PIB Em síntese, os grandes investimentos, particularmente em equipamen-
(em porcentagens) tos de alta tecnologia, em vez de ampliarem a base tecnológica existente, têm
1970 1980 1990 1995 2000 2005 substituído os equipamentos anteriores usando os mesmos prédios ou es-
Inv. Int. Privado/PIB 11,3 12,5 12,6 14,1 17,7 17,2 truturas físicas das empresas. Isso se revela como uma outra característica
Inv. Int. Privado e Público/PIB 12,5 14,4 15,6 17,0 20,8 20,8 essencial da reestruturação da economia dos Estados Unidos.
Fonte: Departamento de Comércio dos Estados Unidos.
144 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 145

Além disso, outra mudança importante foi a grande diminuição dos da empresa. Destacamos também o papel da China no aprofundamento do
preços das máquinas e dos equipamentos de alta tecnologia. No trabalho ciclo e nas crises cíclicas da economia mundial.
anterior que citamos, dizíamos: “De 1980 a 2003, os preços dos bens de A produção da economia da China na produção mundial foi de 13,2%,
consumo e daqueles utilizados na construção residencial e de edifícios baseada na paridade do poder de compra em 2004. A dos Estados Unidos
das empresas aumentaram em mais de 100%. No entanto, os preços de foi de 20,9%. Quer dizer, a produção chinesa equivale a 63% da produção
máquinas, equipamentos e software diminuíram nesse mesmo período dos Estados Unidos em 2004. A produção chinesa (13,2%) é maior do que o
em 6%.” produto da Alemanha, da França, da Itália e da Espanha, que somam todos
Quer dizer, os preços relativos dos equipamentos e software de 1980 a 12% da produção mundial, e ela é quase o dobro do produto do Japão, que
2003 diminuíram em 56% em relação aos bens que são utilizados na estru- fica em 6,9% da produção mundial.
tura física das empresas. Essa grande mudança acontece particularmente A China precisou de 10 anos, nas exportações mundiais, para aumen-
na década de 1990, constituindo outra mudança essencial da reestrutura- tar a sua presença com 1% nos anos 1980. Agora, só precisa de um ano.
ção da economia dos Estados Unidos. Em 2004, tomou o lugar do Japão e ocupa o terceiro lugar nas exportações
Do ponto de vista da economia política, isso significa uma diminuição mundiais, depois dos Estados Unidos e da Alemanha. Supera em 40% o
de uma das partes principais do capital constante. Marx tinha previsto no total das exportações da América Latina. Cada vez mais, a China exporta
tomo III de O capital a diminuição do valor do capital constante, junto com todo tipo de bens, maquinarias e equipamentos de alta tecnologia, equipa-
outras modificações, para períodos nos quais, em vez de ocorrer a tendên- mentos de transporte, têxteis e brinquedos, entre outras coisas.
cia decrescente da taxa de lucro, esta começa a crescer. As importações da China aumentaram mais rapidamente do que as
Como dissemos, as crises cíclicas mostram uma queda profunda do exportações nos últimos anos. Muitas regiões e países do mundo estão de-
investimento. No entanto, essas crises permitem substituir maciçamente pendendo crescentemente das importações chinesas.
maquinaria e equipamentos obsoletos por novos equipamentos tecnologi- A recuperação do Japão em 2003 e 2004 foi baseada nas exportações
camente muito mais avançados e de menor valor, que permitem um salto para a China, com um grande componente de maquinarias e equipamentos
na produtividade de todos os setores e ajudam a recompor os lucros globais de alta tecnologia. A China é um grande importador de bens primários.
e a taxa de lucro. Em 2002, importou 4% das importações mundiais de produtos naturais,
15% de cobre, 20% de alumínio e cerca de 20% de soja. Ao mesmo tempo,
4. Na perspectiva histórica, o capitalismo dependerá mais usa três vezes os níveis de consumo de aço dos Estados Unidos.
da China do que a China do capitalismo Como se sabe, a China se constituiu em um dos principais destinos
O capitalismo mundial depende cada vez mais da China e a China de- dos investimentos estrangeiros de muitas empresas de diversos países. No
pende cada vez mais do capitalismo mundial. Em uma perspectiva histórica, entanto, o mais recente e a maior novidade são os investimentos chineses
o capitalismo dependerá mais da China do que a China do capitalismo. no exterior, comprando e criando empresas no estrangeiro. Por exemplo,
Sobre a economia chinesa, aparecem cada vez mais artigos destacando a as siderúrgicas chinesas pretendem construir fundições no Brasil, na Aus-
sua potencialidade econômica. Nestas notas, destacamos o significado da trália e nos Estados Unidos. A China procura comprar jazidas de petróleo e
economia chinesa na produção mundial, no comércio mundial e no papel de minerais. “Se não ajudar a desenvolver novas fontes de matérias-primas,
vital dos lucros que são gerados na China, como parte dos lucros globais o resto do mundo vai passar por maus momentos.” Isso devido ao forte
146 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 147

aumento dos preços básicos nos últimos tempos, assinala The Wall Street potencialidade de crescimento. Essa alternativa é muito limitada nos países
Journal (março de 2004). desenvolvidos, nos quais o mercado interno tem um alto nível de satura-
A China possui a segunda reserva monetária internacional maior do ção. Na China, a força combinada e potenciada de mercado, a regulação e
mundo. Ela cresce de forma acelerada, e, em 2004, superava os 500 trilhões a planificação podem levar a que o capitalismo dependa cada vez mais da
de dólares. A China é um dos principais investidores financeiros no mundo China do que a China do capitalismo.
e principalmente nos Estados Unidos. Um dos fatos mais significativos é que a China é um centro nevrálgico
A China está acirrando a concorrência no mercado mundial e nos dos lucros na economia mundial atual. Os lucros na China em 2003 equi-
mercados nacionais, provocando quebras de empresas e deslocamento da valem a 44% dos lucros globais dos Estados Unidos. Equivalem também
produção para esse país. Aprofunda a superprodução de produtos indus- a 66% dos lucros da indústria doméstica e são superiores aos lucros das
triais e transformou a superprodução de matérias-primas e energia em empresas não financeiras dos Estados Unidos.
subprodução com aumentos significativos de preços. A China está gerando As empresas não financeiras incluem todas as empresas industriais
uma mudança histórica nos termos de intercâmbio. que produzem maquinaria e equipamentos, computadores, veículos, ele-
As exportações chinesas equivalem a 80% das exportações de bens dos trônicos etc. Incluem, além disso, todas as empresas produtoras de bens
Estados Unidos, e as importações equivaliam a 50% em 2004. Essa equiva- de consumo durável e não durável, transporte e outros serviços e comércio
lência está se estreitando a cada ano. Portanto, a China se transformou e, por atacado ou a varejo.
tal como os Estados Unidos, atua como locomotiva da economia mundial. A China é um centro nevrálgico dos lucros na economia mundial e
o será muito mais. Nesse sentido, também o capitalismo está dependendo
Assim foi a partir da crise asiática e na recuperação da crise no início dessa
cada vez mais dela. A transformação da hegemonia na economia mundial
década. Também poderia atuar como locomotiva da economia mundial em
está se transformando mais rapidamente do que as projeções previstas.
uma próxima crise cíclica.
No entanto, queremos destacar que o crescimento chinês provocou
A China, ao aprofundar a superprodução de produtos industriais,
grandes problemas sociais e danos ao meio ambiente. Se a China continuar
provoca uma diminuição adicional de preços. A sua crescente demanda de
ampliando os níveis de consumo na lógica do capitalismo desenvolvido,
matérias-primas eleva os preços e aumenta os custos na economia mun-
os problemas internos permanecerão. Os recursos naturais do mundo se
dial. Esse país pode desempenhar um papel superior em uma nova crise cí-
tornarão insuficientes e ficarão aceleradamente esgotados. É de se esperar
clica mundial. Na atualidade, uma diminuição, por mais leve que seja, da já
que a transição para uma economia sustentável aprovada em nível político
elevada taxa de crescimento da China gera pânico em diversos mercados.
se torne efetiva.
Uma crise da economia chinesa na atualidade seria desastrosa.
Para evitar uma possível crise na China, ou o impacto de uma crise da 5. O domínio aumentado do capital sobre o trabalho,
economia mundial, esse país iniciou uma nova etapa em 2002, que privile- sobre os recursos naturais e sobre os Estados
gia o desenvolvimento para dentro: a indústria de casas, automotriz, imo- A globalização da economia mundial tem provocado transformações
biliária e também a infra-estrutura. A China combina o desenvolvimento profundas nas relações capital-trabalho, capital-recursos naturais, entre os
para dentro com o já forte desenvolvimento para fora. Dessa maneira, ela capitais e entre os capitais e os Estados nacionais. Essas transformações
poderia deslocar, em uma eventual crise, uma parte significativa da sua permitem um aumento da dominação do capital sobre a sociedade, sobre a
exportação para o mercado interno. Mercado interno que tem uma grande natureza e nos níveis de ingerência nos Estados nacionais.
148 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 149

A dinâmica econômica da globalização baseada nas exportações apro- conseguiu o controle da mente humana de grande parte da sociedade. A
funda a concorrência em nível mundial e em cada economia nacional. Ne- concorrência e não a solidariedade predomina no senso comum e na vida
las diminuem os custos, particularmente os custos salariais, e se promove cotidiana.
um grande incremento da produtividade e da produção. A globalização As mudanças nas relações sociais de produção, que o capitalismo
da economia mundial está fundamentada teoricamente no neoliberalismo. conseguiu com a globalização, expressam-se em todas as categorias eco-
Este promove a liberdade dos mercados, a livre circulação internacional de nômicas e na forma de síntese nos lucros globais, na taxa de lucro e na
mercadorias e de capital. O domínio crescente do capital que se expressou reprodução do capital.
grandemente na flexibilidade do trabalho e no fracionamento dos proces-
sos produtivos aprofundou a fraqueza das organizações dos trabalhadores. 6. As seis crises cíclicas nas três últimas décadas
A concorrência internacional promove também a diminuição dos A globalização está associada ao funcionamento mais livre dos merca-
custos de acesso aos recursos naturais. A tendência extrema é a apropriação dos. O neoliberalismo afirma que, se os mercados funcionassem livremente,
privada dos recursos naturais por parte das grandes empresas transnacio- as crises não se produziriam. Inclusive, os chamados “shocks externos”, que
nais, o que se manifestou com muita força na América Latina. A legislação poderiam provocar crises nas economias nacionais, seriam neutralizados,
que promove investimentos estrangeiros contemplou a entrega como pro- caso se deixasse que os mercados funcionassem livremente. No entanto,
priedade privada dos diversos recursos naturais, incluindo valiosos recursos em oposição às formulações teóricas, a partir dos anos 1970, com a globa-
energéticos, mineiros e hídricos. A propriedade privada desses recursos lhes lização e o predomínio do neoliberalismo, houve seis crises na economia
permite obter, além dos lucros do capital, a renda dos recursos naturais. mundial. De 1991 a 2001, ocorreu quatro dessas seis crises cíclicas. Isso
O caso emblemático foi a desnacionalização do cobre no Chile, que reflete claramente a acentuação do movimento cíclico e a presença muito
estava nacionalizado em quase 100% com Salvador Allende. As empresas mais periódica dessas crises.
estrangeiras controlam há alguns anos cerca de 70% da produção de cobre Também se produz uma mudança importante na origem das crises. A
no Chile. O cobre é a principal riqueza básica, e cerca de 40% das reservas crise de 1994 teve origem no México, e a de 1997, no Sudeste Asiático. Pela
mundiais desse metal se encontram no Chile. primeira vez na história, as crises tiveram origem na periferia do capitalis-
Outra situação emblemática é o tratado mineiro chileno-argentino, mo mundial e em locais de grande dinamismo e que se apresentavam como
que entrega os recursos naturais da Cordilheira dos Andes e parte das pla- exemplos de globalização.
nícies dos dois países às grandes mineradoras mundiais. As crises cíclicas aparecem separadas no tempo, mas não é assim. Elas
A desnacionalização das empresas, o fracionamento dos processos fazem parte de um movimento único no tempo, movimento que, através
produtivos, as diferentes associações empresariais expressam as novas re- das crises e das outras fases do ciclo, vai relacionando-as umas com as ou-
lações entre diversos capitais. A privatização e a desnacionalização de em- tras, reproduzindo algumas condições e gerando novas situações.
presas e de recursos naturais expressam as novas relações entre as grandes O encadeamento da crise e dos ciclos permite visualizar no tempo
empresas mundiais e os Estados nacionais. a economia mundial. Por exemplo, a crise de 1974-1975 foi uma crise de
O neoliberalismo, o mercado, a liberdade individual, a propriedade superprodução de produtos industriais e de subprodução ou de falta de
privada se apresentam como os grandes vencedores diante do fracasso his- matérias-primas, alimentos e energia. Os preços das matérias-primas,
tórico do deformado “socialismo”. O neoliberalismo, no campo das idéias, dos alimentos e da energia não foram muito afetados e logo aumenta-
150 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 151

ram. As perspectivas de lucros levaram a um incremento muito grande etapa atual da globalização. Nos países centrais, são redefinidos os graus de
dos investimentos, o que provocou a transformação da subprodução em hegemonia. Algumas regiões têm um grande desenvolvimento, outras têm
superprodução. A partir de 1980-1982 até a crise do início desta década, estagnações e involuções.
as crises se apresentaram como crise geral de superprodução de todo tipo Os Estados Unidos superaram a decadência e reconquistaram a he-
de mercadorias. gemonia, como já observamos. O desenvolvimento desigual se apresentou
Os ciclos e as crises cíclicas mundiais também estão relacionados, en- com muita força nos países asiáticos. Nas últimas décadas, destaca-se o
volvendo cada vez mais países e regiões. Os ciclos e as crises estão encadea- grande desenvolvimento da China. O capitalismo mundial, por sua lógica
dos no tempo e no espaço geográfico. A superprodução provém de muitos interna, produz o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. As estratégias
países e regiões, responde a uma estrutura produtiva mundial por cima dos nacionais de inserção criadora na economia mundial podem superar essa
países que vendem as suas mercadorias no mundo. lógica interna.
Na recuperação atual, novamente se apresenta uma subprodução ou O desenvolvimento desigual se apresentou de forma muito acentuada
uma escassez de matérias-primas e de produção de energia, razão por que a na América Latina, quando comparada aos países desenvolvidos, e parti-
próxima crise cíclica pode ser parecida com aquela de 1974-1975. Quer di- cularmente em relação aos Estados Unidos, isso por causa da ausência de
zer, uma crise de superprodução de produtos industriais, além disso, agora, uma estratégia nacional e regional de inserção na economia mundial.
produtos indústrias de alta tecnologia, e também uma crise de subprodu- A reestruturação na América Latina, impulsionada pela globaliza-
ção ou escassez relativa de energia e de matérias-primas não renováveis. É ção e pelo neoliberalismo, aprofundou o subdesenvolvimento. O aumento
possível que nesta crise, diferentemente da crise de 1974-1975, produza-se da pobreza e a má distribuição da renda se devem em grande medida a
uma superprodução relativa de alimentos. uma reprodução simples do capitalismo com níveis muito baixos de in-
A globalização da economia mundial exige a ampliação permanente vestimento para a criação e ampliação de empresas. Isso, apesar dos lucros
do capitalismo em regiões onde ele não havia chegado ou tinha mesmo elevados. Os lucros na América Latina crescem como nos Estados Unidos,
abandonado. Por outro lado, as crises cíclicas são momentos de apro- e, possivelmente, até mais. A diferença é que nos Estados Unidos há um
fundamento das tendências, destruição de condições e criação de novas forte processo de investimento e, na América Latina, uma estagnação do
situações. investimento nas últimas décadas. Essa estagnação combina uma diminui-
Não se deve descartar a possibilidade de uma crise cíclica profunda no ção dos investimentos em maquinaria e equipamento com um aumento do
capitalismo como aquela que ocorreu nos anos 1930, uma crise que con- investimento em novos ramos residenciais e turísticos.
duza a uma ruptura da globalização e à estruturação da economia mundial Em 1980, o investimento global da América Latina equivalia a 53%
com base em blocos regionais. do investimento dos Estados Unidos. Nos últimos anos, essa cifra gira em
torno de 20%. Isso contrasta com o grande crescimento do investimento
7. O aprofundamento do desenvolvimento desigual estrangeiro. Mas, na realidade, o investimento estrangeiro veio fundamen-
e do subdesenvolvimento na América Latina: o fracasso talmente comprar empresas já existentes.
do neoliberalismo A desnacionalização foi acentuada. No ano 2000, das 200 maiores
O desenvolvimento desigual de países e regiões está se aprofundan- empresas exportadoras, 98 eram estrangeiras. No período de 1998-2000,
do, manifesta-se com mais velocidade e se apresenta em todos os níveis na das 100 principais empresas manufatureiras, 59 eram estrangeiras e contro-
152 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 153

lavam 62% das vendas.2 Os estrangeiros também controlavam respectiva- O investimento estrangeiro se localizou em todos os setores, com ên-
mente 76,5% e 54,5% dos ativos totais dos bancos. Na Bolívia, controlavam fase diferenciada nos países para os quais a Cepal fornece informação. É
85% dos fundos de pensão; no Peru, 78,5%; na Argentina, 73,6%; no Méxi- necessário destacar que o investimento não somente se orientou para o se-
co, 66,6%.3 As empresas estrangeiras controlam grande parte das empresas tor primário, mas é muito mais importante na indústria manufatureira e
de serviços públicos e suas concessionárias de infra-estrutura. particularmente nos serviços. Nos serviços, destacam-se os investimentos
Os investimentos estrangeiros na América Latina e no Caribe tiveram financeiros em bancos, seguros, associações de fundos de pensão e em ser-
um grande crescimento no período de 1990 a 1994 e um crescimento extra- viços públicos residenciais: água, gás, eletricidade e telefonia.
ordinário dos investimentos anuais no período de 1995 a 1999 e nos anos
2000-2001. No período de 2002 a 2005, a média anual dos investimentos Tabela 5 – América Latina: distribuição setorial
diminuiu um pouco, mas continua sendo bastante elevada. Os investimen- do investimento estrangeiro direto – 1996-2003
tos estrangeiros dos anos 1990 até agora são muito significativos em relação (em porcentagens)
a indicadores econômicos globais da região. O investimento estrangeiro
Argentina Brasil Chile Colômbia Equador México Total
se orientou fundamentalmente para a compra das principais empresas em
Primários 42,7 4,1 27,8 19,2 84,8 1,0 13,6
cada um dos países e criou muito poucas novas empresas. A diminuição do
Manufaturados 18,6 24,0 11,5 18,0 3,8 47,9 27,9
investimento nos últimos anos na região está em parte associada ao fato de Serviços 30,9 71,9 60,7 62,9 11,4 51,1 57,3
que o processo de desnacionalização de empresas está se esgotando. Outros 7,8 0,0 0,0 0,0 0.0 0.0 1,2

Tabela 4 – América Latina e Caribe: Fonte: construída a partir de O investimento estrangeiro na América Latina e no
fluxos de investimento estrangeiro direto líquido – 1980-2005 Caribe (2003).
Médias anuais por períodos
(milhões de dólares) Brasil, México, Argentina, Venezuela e Colômbia, no período de
1996 a 2002, captaram 83% dos fluxos líquidos de investimento estran-
1980-1984 1985-1989 1990-1994 1995-1999 2000-2001 2002-2005 geiro direto da América Latina e do Caribe. Aos Estados Unidos coube
5.833 5.419 12.973 53.337 67.000 42.124
33%; à Espanha, 18%; aos Países Baixos, 8%; e a outros países coube uma
Fonte: construída com base no Anuário Estatístico da Cepal (2004) e no Balanço porcentagem menor.
Preliminar das Economias da América Latina (2005). No entanto, é preciso destacar que os fluxos de investimento estran-
geiro direto da Europa, nesse período, nos principais países da América
Os governos da América Latina, apoiados no neoliberalismo, promo- Latina mencionados, correspondem a 40,4%, mais do que os fluxos dos
veram a desnacionalização das empresas nacionais, outorgando condições Estados Unidos e do Canadá, que têm 36%. Os investimentos do Japão
especiais na legislação para os investimentos estrangeiros, condições que participam somente com 2,2%. Isso demonstra que, com a globalização, a
foram aproveitadas especialmente pelas grandes empresas estrangeiras. América Latina foi uma região de disputa aberta entre os Estados Unidos
e a Europa. Na realidade, deu-se um verdadeiro processo de absorção da
2
Cepal. O investimento estrangeiro na América Latina e no Caribe. Informe 2001. região por parte do capitalismo desenvolvido.
3
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Informe 2002.
154 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 155

As empresas espanholas desempenharam um papel de liderança nes- Santander Central Hispano e o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, da Es-
sa disputa e absorção. Os investimentos espanhóis foram tão elevados que panha, ocupam o primeiro e o segundo lugares, respectivamente. Os dois,
equivalem a cerca de 55% dos investimentos dos Estados Unidos no perío- em conjunto, concentram 48,3% dos ativos consolidados. Substituíram o
do de 1996-2003, nos países já referidos da América Latina. Na Argentina, City Bank dos Estados Unidos e todos os outros bancos transnacionais,
os investimentos espanhóis (43%) superam amplamente os investimentos em um período curto de tempo. Os outros 23 bancos que individualmente
dos Estados Unidos (12%). Na Colômbia, no Chile e no Brasil, os investi- possuem ativos muito menores e bastante distantes dos bancos espanhóis
mentos espanhóis são tão importantes quanto os dos Estados Unidos. Os controlam o restante, 51,7% (O investimento estrangeiro na América Latina
investimentos dos Estados Unidos na Venezuela e no México superam am- e no Caribe, 2004).
plamente os investimentos espanhóis. De acordo com a Cepal, em 2003 e 2004, diminuiu a participação das
empresas estrangeiras em diversos indicadores de produção e venda. Deve
Tabela 6 – Fluxos de investimento estrangeiro direto ser assinalado que a diminuição se deve em parte às dificuldades das expor-
no período 1996-2003 tações manufatureiras do México, ao aumento dos preços das exportações
(em milhões de dólares) de recursos naturais. Em alguns países, entre os quais figuram a Argenti-
na, a Bolívia e a Venezuela, as empresas petroleiras estatais começaram a
Argentina Brasil Chile Colômbia Venezuela México Total
despertar um renovado interesse. Nesses três países mencionados, está se
Espanha 26.020 25.612 8.882 2.882 2.218 6.068 71.671
desenvolvendo uma estratégia de desenvolvimento e de inserção interna-
EUA 7.552 33.998 9.613 2.592 6.231 70.579 130.565
cional oposta àquela desenvolvida pelo neoliberalismo.
Fonte: construída a partir de Investimento estrangeiro na América Latina e no A lógica interna do capitalismo na América Latina produz o estrangu-
Caribe, Cepal (2003). lamento da reprodução econômica e social da América Latina. Estimamos
que o total dos investimentos estrangeiros na América Latina – dívida
Entre as 10 maiores empresas transnacionais, de acordo com as ven- externa, investimento estrangeiro direto, bônus internacionais, créditos
das consolidadas em 2003, três pertencem à Espanha, quatro pertencem associados e com correções para evitar contabilidades duplas – alcança
aos Estados Unidos, duas à Alemanha e uma à Itália. A “Telefônica de 1 trilhão e 230 bilhões de dólares. Quanto às amortizações, aos juros, às
España S.A.” aparece em segundo lugar, depois da “General Motors Corp.”; amortizações e às depreciações do capital estrangeiro e outras saídas de
“Repsol-YPF de España”, em sétimo lugar; e a “Endesa España”, em oitavo capital da América Latina, estimamos que se aproximam de 230 bilhões de
lugar. dólares anuais, que representam 13% do PIB da região, contrastando com
Quando se amplia a lista para as 50 maiores empresas, não se registra o limitado investimento, que nos últimos anos alcança níveis de 18% e 19%
nenhuma nova empresa espanhola. Os investimentos espanhóis são eleva- do PIB. A relação desses dois processos mostra claramente o estrangula-
dos, mas estão concentrados em um número pequeno de empresas (Inves- mento do processo de reprodução econômica e social da região. Chama a
timento estrangeiro na América Latina e no Caribe, 2004). atenção o fato de que, nas análises econômicas, desapareceu a importante
Essa situação se apresenta de forma mais categórica no setor finan- diferença entre PIB (Produto Interno Bruto) e PN (Produto Nacional).
ceiro da América Latina e do Caribe. Dos 25 maiores bancos transnacio- O estrangulamento é mais evidente quando somente consideramos o
nais, de acordo com os ativos consolidados em junho de 2004, o Banco PIB das empresas produtoras de bens e serviços e deixamos de lado o PIB
156 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 157

produzido pelos trabalhadores por conta própria, a contabilização imputada Na região, assim como nos Estados Unidos, há um aumento dos lucros
como arrendamento dos proprietários de bens de raizes e outros compo- globais e da taxa de lucro. A participação dos salários nas rendas globais
nentes que aumentam o PIB. dos países da região diminuiu em vários pontos percentuais e aumentaram
Uma das expressões mais evidentes do estrangulamento da reprodução os excedentes operacionais e os montantes por depreciação. Como já assi-
econômica e social da região se manifesta no fato de que, novamente, a par- nalamos, os investimentos globais e particularmente os investimentos em
tir de 1999, a América Latina transferiu grandes recursos para o exterior. maquinaria e equipamentos na América Latina permanecem estagnados.
O aumento dos excedentes operacionais se destina preferencialmente ao
Gráfico 3 – América Latina: transferências líquidas consumo suntuário, aos investimentos residenciais em novos bairros e
de recursos 1976-2005 zonas turísticas, e uma parte importante é transferida para o exterior.
(milhões de dólares) Esse estrangulamento pode continuar nas condições atuais da globali-
40.000 zação, através de novos investimentos estrangeiros que aprofundam a des-
nacionalização. Esses investimentos estrangeiros estão contemplando de
20.000
forma crescente o reinvestimento de amortizações e de juros.
0

-20.000 8. A nova etapa: superprodução de produtos industriais


-40.000 e subprodução de matérias-primas e energia?
-60.000
Os aumentos recentes de preços das matérias-primas e da energia po-
deriam ser o início do fim da superprodução destes, e a transição para um
-80.000
1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 momento de subprodução ou escassez relativa. Pelo lado da demanda, isso
se deve em parte ao grande desenvolvimento da economia chinesa. Pelo
Fonte: construído com base no Anuário Estatístico da Cepal (2004) e no Balanço
lado da oferta, trata-se de uma superprodução com preços baixos que limi-
Preliminar das Economias da América Latina (2005).
taram os investimentos para uma subprodução, explicada também por um
As transferências líquidas de recursos são calculadas como a renda esgotamento relativo de recursos.
líquida de capitais menos o saldo da balança de renda, que, na sua grande A oferta mundial se modificou através dos ciclos e das crises cíclicas.
maioria, corresponde aos pagamentos líquidos de amortizações e juros. A Como já dissemos, a crise de 1974-1975 foi de superprodução de produtos
renda líquida de capitais totais corresponde ao saldo da balança de capital industriais e subprodução de matérias-primas, alimentos e energia. As ou-
e financeira, mais erros e omissões, mais empréstimos e uso do crédito do tras cinco crises cíclicas desde o início dos anos 1980 até a do início desta
Fundo Monetário Internacional e financiamento excepcional. As cifras ne- década foram de superprodução geral de mercadorias. Na etapa atual,
gativas indicam transferências de recursos para o exterior. assim como ocorreu no início dos anos 1970, estão se combinando uma
No gráfico, pode-se observar que as transferências líquidas de recur- superprodução de produtos industriais e de serviços com uma subprodu-
sos nos últimos anos são bastante superiores às transferências de recursos ção de matérias-primas e energia.
que se seguiram à profunda crise do início dos anos 1980, que provocou o
prolongamento da crise durante toda a década de 1980.
158 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 159

9. Para um período de termos de intercâmbio favoráveis A passagem da deflação parcial para um novo período de inflação é a
A combinação anterior se expressa em mudanças significativas nos grande preocupação atual. As empresas vêem aumentar os custos – o pe-
preços relativos e nos termos de intercâmbio em nível internacional. Pode- tróleo a 60 dólares o barril, janeiro-fevereiro de 2006 – e enfrentam redu-
ríamos estar no início de uma mudança estrutural de médio e longo prazo, ções de preços. O resultado mais viável é a diminuição da rentabilidade das
que poderia ser muito positiva para os países atrasados do capitalismo. empresas, o que pode levar a uma nova crise cíclica mundial.
No entanto, como já mencionamos, com a globalização, desenvol-
veu-se uma mudança profunda da relação de capital com os recursos na- 11. Da preeminência do capital financeiro à preeminência
turais. Nos últimos 20 anos, uma parte importante dos recursos naturais do capital produtivo
dos países atrasados se transformou em propriedade privada das empresas As empresas produtoras de bens e serviços se libertaram do domí-
transnacionais. Estas se apropriam dos lucros acrescidos pelo aumento dos nio que, em décadas anteriores, exerceu sobre elas o capital financeiro dos
preços e também da renda dos recursos naturais, já que agora possuem a países desenvolvidos. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, o capital
propriedade privada deles. As principais mobilizações e mudanças políti- financeiro captava em torno de 35% dos lucros das empresas; posterior-
cas na América Latina nos últimos anos estão vinculadas ao resgate dos mente, isso foi diminuído para menos de 20% dos lucros. Nos períodos de
recursos naturais. auge, aproximam-se dos 10%. Essa mudança se apóia na forte diminuição
da taxa de juros. Os grandes investimentos que foram realizados foram
10. Da deflação à inflação? autofinanciados com o grande crescimento dos lucros e com a colocação
Antes da crise de 2001, durante e depois, houve uma grande preocupa- no mercado de ações e bônus.
ção com a deflação, que ganhava força em vários países importantes, entre A nós nos parece um grande erro continuar caracterizando o capita-
eles a China, o Japão, a Alemanha e em vários setores e ramos da economia lismo mundial atual como dominado pelo capital financeiro, como ocorre
dos Estados Unidos. Foram realizadas análises comparativas para ver as se- na maioria das análises, incluindo os cientistas sociais críticos, que usam
melhanças e as diferenças com a deflação mundial na crise dos anos 1930 inadvertidamente as concepções dos organismos internacionais, como o
– FMI, World Economic Outlook, 2001 e 2002, e Banco Internacional de Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Essas instituições ex-
Pagos, BIS, Informes Anuais 2000 e 2001. Afirmava-se nesses documentos plicam o ciclo econômico internacional e as crises cíclicas quase exclusiva-
que, se a deflação ganhasse força em nível mundial, essa seria uma situação mente como sendo causadas pelos movimentos financeiros e monetários e
desastrosa. Foram recomendadas e executadas políticas fiscais e monetárias sua relação com o deficit externo e fiscal. Deixam completamente de lado as
para promover a demanda agregada, para evitar que a crise de 2001 se apro- condições de produção e de realização das mercadorias.
fundasse e, com ela, a deflação. Elevou-se o crédito e diminuiu-se a taxa de O predomínio do capital produtivo sobre as outras formas de capital
juros. Nos Estados Unidos, passou-se de um superavit fiscal, que tinha sido permite atribuir maior significado à relação de dominação do capital sobre
alcançado por alguns anos, a um avultado deficit fiscal, com o aumento dos o trabalho e a sociedade, que se expressa na flexibilidade do trabalho, e
gastos em defesa, com a segurança nacional e com a invasão do Iraque. atribuir menor importância às relações entre as frações do capital.
O aumento dos preços das matérias-primas e da energia, devido à es- Diferentemente do que ocorre nos países desenvolvidos, na Améri-
cassez relativa por parte da produção e ao aumento da demanda da China, ca Latina o capital produtivo e o capital financeiro atuam conjuntamente,
ajudou para que a deflação parcial não se transformasse em deflação global. potencializando-se reciprocamente. Os investimentos diretos das grandes
160 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 161

empresas transnacionais produtoras de bens e serviços são os que domi- Bibliografia


nam o panorama na América Latina. Esses investimentos têm um alto BIS. Informes Anuales Banco Internacional de Pagos – BIS. 2002, 2001.
componente de créditos associados. O capital produtivo das transnacio- Brenner, Robert. La expansión económica y la burbuja bursátil. Estados
nais, em conjunto com o capital financeiro internacional e seus vínculos Unidos y la economía mundial. Madri: Akal, 2003 (2002).
com os capitais e Estados nacionais da região, explica em grande parte o ________. Nueva expansión o nueva burbuja? La trayectoria de la economía
estrangulamento da reprodução econômica e social na América Latina e estadounidense. New Left Review, Londres, n. 25, jan./fev. 2004.
do Caribe. ________. Turbulencias en la economía mundial. El desarrollo desigual y
la larga fase descendente: la economía capitalista avanzada desde el
12. Abundância ou escassez de capital? boom América Latina estancamiento, 1980-1998. Santiago: LOM,
É possível que o capitalismo mundial esteja passando para uma etapa 1999 (1998).
na qual o capital se torne relativamente abundante. Junto com o capital que Caputo L., Orlando. Economía mundial y las militaciones de la reproduc-
se amplia com os incrementos da produção e dos lucros, ganhou força cres- ción económica en América Latina. Comunicação apresentada na Se-
cente o capital-dinheiro, que tem sua origem nos Fundos de Pensão e nos gunda Reunião depois Grupo de Trabalho de Clacso – Globalización,
Fundos de Investimentos, que aumentam a disponibilidade de capital. economía mundial e economías nacionales. Medelin: Universidade
Marx e Keynes previam que nas etapas avançadas do capitalismo se Nacional da Colômbia, jun. 2005.
produziria um excesso de capital. Keynes afirma: ________. Estados Unidos y China: locomotoras en la recuperación y en las
crisis cíclicas de la economía mundial?. In: ESTAY, Jaime (Org.). La
Estou seguro de que a demanda de capital está limitada estritamente no economía mundial y América Latina. Tendencias, problemas y desafios.
sentido de que não seria difícil aumentar a existência do mesmo até que Buenos Aires: Clacso, 2005. Coleção “Grupo de Trabajo”.
sua eficácia marginal descesse a uma cifra muito baixa (...) significaria a ________. La economía mundial actual y la ciencia econômica. In: ESTAY,
eutanásia do rentista e conseqüentemente a eutanásia do poder de opressão Jaime; GIRÓN, Alicia; MARTINEZ, Osvaldo (Coord.). La globaliza-
acumulativa do capitalista para explorar o valor de escassez do capital (...) se ción de la economía mundial. Cuba: Ciem; México: Benemérita Uni-
a poupança coletiva pudesse se manter, por meio da intervenção do Estado, versidade Autônoma de Puebla/Universidade Autônoma do México/
a um nível que permitisse o crescimento do capital até que deixasse de ser Instituto de Pesquisas Econômicas, 1999.
escasso (...). Vejo portanto o aspecto rentista do capitalismo como uma fase ________. Las crisis del capitalismo global. In: Capital sin fronteras. Espa-
transitória que desaparecerá tão logo tenha cumprido o seu destino e, com nha: Icaria, 2001.
o desaparecimento do aspecto rentista, muitas coisas que há nele sofrerão ________. Sistema mondiale del capital e limiti della scienza economica.
uma mudança radical. (Keynes, 1956) Invarianti, Roma, n. 2, 1987.
CEPAL. Anuario estadístico 2004 y CD, 2005.
________. La invsersión extranjera en América Latina y El Caribe, 2004
(2003).
________. La inversión extranjera en América Latina y El Caribe, 2005
(2004).
162 ■ A América Latina e os desafios da globalização A economia mundial e a América Latina no início do século XXI ■ 163

________. Balance preliminar de las economías de América Latina y El Cari- ________. Unipolaridade ou hegemonia compartilhada. In: SANTOS,
be, 2005 e números anteriores. Theotonio dos (Org.). Os impasses da globalização. São Paulo: Loyola,
Departamento de Comércio dos Estados Unidos: Bureau 2003. v. 1.
of Economic Analysis. Gross domestic products, corporate Villa, José María Vidal; Martinez P., Javier. El futuro del Estado en el
profits. Disponível em: <www.bea.gov>. capitalismo global. In: Capital sin fronteras. Más Madera: Icaria, out.
Duménil, G.; Lévy, D. El imperialismo en la era neoliberal. Cuadernos 2001.
del Sur, v. 37, 2004. ________. Las ambiciones imperiales de Estados Unidos en Irak. Monthly
________. El imperialismo en la era neoliberal. Revista de Economía Crítica, Review, 2002.
n. 3, 2005. ________. Mundialización. Barcelona: Icaria, 1988.
Reyno, Jaime Estay. Economía mundial y polarización econômica. In: ________.Mundialización e integración econômica. Este e outros artigos
Capital sin fronteras. Espanha: Içaria, 2001. disponíveis em: <www.redem.buap.mx>.
________. El incremento de la polarización. 2001. Este e outros artigos dis-
poníveis em: <www.reden.buap.mx>.
FMI. World economic Outlook. 2004 e anos anteriores.
Frank, Andre Gunder. Tigre de papel, dragão de fogo. In: SANTOS,
Theotonio dos (Org.). Os impasses da globalização. São Paulo: Loyola,
2003. v. 1.
Keynes, John Maynard. Teoría general de la ocupación, el interés y el dine-
ro. México: Fondo de Cultura Econômica, 1956 (1936).
Krugman, P.; Obsfeld, M. Economía internacional. 2. ed. Madri:
McGraw Hill-Interamericana de Espanha, 1994.
Martinez P., Javier. El capitalismo global. Barcelona: Icaria, 1999.
________. Lo que el capitalismo mundial no puede gestionar. 1999. Este e
outros artigos disponíveis em: <www.reden.buap.mx>.
________. Que hay detrás del conflicto de Irak. 2003. Disponível em: <www.
reden.buap.mx>.
Marx, Karl. Manifesto del Partido Comunista. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Obras escojidas. Moscou: Progreso, 1973 (1848). v. I.
Santos, Theotonio dos. A teoria da dependência. Balanço e perspectivas.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
________. Los retos de la globalización. Ensayos en homenaje a Theotonio dos
Santos. Caracas: Unesco. 1998. t. I e II. Editado por Francisco López.
Outros artigos disponíveis em: <www.redem.buap.mx>.
164 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 165

Parte III


Capital, trabalho e economia mundial
166 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 167

Dependência e superexploração

Jaime Osorio*

Em 2003, cumpriram-se 30 anos da publicação de Dialética da


dependência,1 material que, dentro de uma produção ampla, constitui o
trabalho mais importante de Ruy Mauro Marini. Esse livro, como muitas
obras clássicas, suscitou, desde o seu aparecimento, múltiplas – e não poucas
– encarniçadas discussões, tanto a partir de posições alheias ao marxismo,
como de dentro dessa corrente.
Essa situação não é por acaso. A Dialética da dependência constitui o
ponto mais alto na explicação das particularidades da reprodução do capi-
talismo dependente. As críticas de fora do marxismo em geral se encontram
ligadas à idéia de que o capitalismo latino-americano pode alcançar os mo-
dos de desenvolvimento central, ou pelo menos uma forma mais “civilizada”
(mais equânime?, mais integrada?, menos heterogênea?) do que aquela que
se apresenta na região, razão por que as suas “barbaridades” atuais fariam
parte de “atrasos”, “deformações” ou estágios que serão superados, à medida
que o capitalismo justamente avance. Daí seu recurso a termos como “países
em vias de desenvolvimento” e outros tantos semelhantes.
Diante de uma obra que dá sustentação teórica a afirmações “radi-
cais”, como as formuladas por Andre Gunder Frank sobre o fato de que o
capitalismo na região leva ao “desenvolvimento do subdesenvolvimento”,2

* Economista chileno e importante autor da escola da dependência. Autor de diversos livros e


artigos, é professor e pesquisador da Universidade Autônoma do México (UAM).
1
México: Era,1973.
2
In: Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1970.
168 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 169

não é fácil entender o enorme esforço para desacreditar a cientificidade das O caminho das respostas a esses problemas tomou rumos insuspei-
formulações de Dialética da dependência. tados. O marxismo latino-americano, em geral cristalizado em interpreta-
Na perspectiva do marxismo, as críticas se apegam a uma ortodoxia ções mecânicas e evolucionistas da “sucessão dos modos de produção”, não
mal-compreendida (por exemplo, a afirmação de que a análise de Marini é podia encontrá-las. A crítica marxista a esse marxismo só alcançará uma
“circulacionista”, quando deveria predominar a “produção”; que tudo aqui- forma madura na região nos anos 1960.
lo que ocorre com o capitalismo “real” já foi dito em O capital, razão por Com a criação da Comissão Econômica para a América Latina (Ce-
que qualquer conceito que ali não esteja desenvolvido se transforma em pal), no final dos anos 1940, um organismo dependente das Nações Unidas,
objeto de suspeita). Mas também se encontram críticos que se apegam a abrir-se-á uma porta por onde menos se esperava. A crise regional que
um Marx que o próprio Marx desconheceria (seja porque se situam em um a grande crise do mercado mundial propiciou, que vai da Primeira até a
pré-marxismo e/ou porque desconhecem as questões centrais dessa teoria). Segunda Guerra Mundial, e a queda quase generalizada dos preços das ma-
O objetivo deste trabalho é uma síntese teórica que permita esclarecer térias-primas que sustentam o padrão agromineiro exportador dessa zona
a atualidade das teses da Dialética da dependência para pensar o capitalismo propiciaram na Cepal que se prestasse atenção à chamada “deterioração
latino-americano dos nossos dias e sua pertinência para explicar as tendên- dos termos de intercâmbio”.
cias fundamentais que o atravessam. A exposição terá como núcleo central As mercadorias que a América Latina exportava (como parte da perife-
a categoria da “superexploração” (ou exploração redobrada), assinalada por ria) reclamavam montantes maiores para obter os mesmos bens industriais
Marini como “fundamento da dependência” (p. 101) e que concentrou os importados dos países centrais, que se viam favorecidos no intercâmbio, em
debates principais nas críticas à Dialética da dependência. detrimento dos países especializados na produção primária. Essa consta-
tação alcançada por Raúl Prebisch, juntamente com um grupo seleto de
1. Breve contextualização economistas (entre eles, Celso Furtado e Aníbal Pinto), colocou em evidên-
A partir da década de 1950 até meados dos anos 1970, a América cia os erros das teses clássicas do comércio internacional, que postulavam
Latina presenciou uma etapa de febril produção intelectual. Os debates que a especialização produtiva em bens sobre os quais se tinham vantagens
têm como um dos eixos centrais a caracterização do capitalismo na re- comparativas propiciaria o desenvolvimento das nações que participavam
gião.3 Depois da vitória da Revolução Cubana em 1959, o aspecto político nessas relações comerciais.
do debate teórico tornou mais intenso esse ponto. Como era possível a Para a Cepal daqueles anos, a solução se encontrava na industrializa-
revolução em uma ilha do Caribe, onde se supunha haver um capitalismo ção, na medida em que esse processo permitiria o progresso técnico e, des-
imaturo e, de acordo com a ortodoxia, onde as forças produtivas não es- sa forma, poderia inverter ou pelo menos deter a transferência de recursos
tavam desenvolvidas a ponto de entrar em contradição com as relações de da “periferia” para o “centro”.
produção?4 No interior do marxismo, surgiria uma corrente que poria em questão
esse pressuposto, enfatizando que é o capitalismo como sistema mundial
que gera desenvolvimento e subdesenvolvimento, tese que foi partilhada
3
Este debate teve uma de suas derivações na discussão sobre o caráter feudal ou capitalista da pelas vertentes de esquerda da Cepal, em particular pelo Instituto Latino-
América Latina.
4
O tema foi desenvolvido em Osorio, Jaime. América Latina hoy. Entre la explotación redobla-
Americano de Planificação Econômica (Ilpes), organismo dependente
da y la actualidad de la revolución. Herramienta, Buenos Aires, n. 35, jun. 2007.
170 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 171

da Cepal.5 Contudo, vai-se mais longe. A industrialização não resolverá 2. A superexploração do trabalho no marxismo
o problema, já que a lógica que orienta o capitalismo dependente leva ao A superexploração pretende dar conta de uma modalidade de acumu-
“desenvolvimento do subdesenvolvimento”,6 ou, nas palavras de Marini, “o lação em que, de maneira estrutural e recorrente, viola-se o valor da força
fruto da dependência não pode ser (...) senão mais dependência” (Dialéti- de trabalho. É uma categoria que não aparece em O capital,9 o que provoca
ca da dependência, p. 18), razão por que aquele projeto somente aguçaria reticências em muitos críticos de Dialética da dependência.
os velhos problemas estruturais e criaria outros novos. A história regional Para compreender o seu significado como categoria que busca dar con-
terminaria dando razão a essa formulação, qualificada pelo menos de ex- ta do aspecto central da reprodução do capital dependente, isto é, no seio
tremista naquela época. de formações econômico-sociais específicas, geradas pelo funcionamento
Mas, apesar da sua correção, essa tese carecia de sustentáculos teó- do capitalismo como sistema mundial, é necessário partir de uma questão
ricos que pudessem explicar as razões que tornavam possível o seu fun- metodológica elementar: a existência de diferentes níveis de abstração e
cionamento.7 Esse é o vazio que Dialética da dependência termina por de unidades de análise no marxismo, isto é: modo de produção, sistema
preencher. Em poucas páginas, em que foram pintadas “em largos traços” mundial, padrão de reprodução do capital, formação econômico-social e
(a brochazos) “algumas das conclusões às quais tinha chegado a sua pes- conjuntura.
quisa”, Marini acaba por fechar um círculo na definição das tendências que Cada um desses níveis, como unidades que vão da abstração maior
regem a reprodução do capital nas economias dependentes, no marco do para a menor, ainda que façam parte de um sistema conceitual e categorial
desenvolvimento do capitalismo como sistema mundial. Somente isso, mas inter-relacionado, reclama por conceitos específicos, porque dizem respei-
isso não é pouco. Por isso, afirmamos em outro lugar que a Dialética da to a problemas particulares.
dependência é aquela obra na qual são formuladas “as bases da economia Em O capital, temos os elementos centrais que definem o modo de
política da dependência” e de uma “teoria marxista da dependência”.8 produção capitalista, em que se destacam as noções de mais-valia (forma
que assume o produto excedente em uma organização societária definida
5
Foi aqui que F. H. Cardoso e Enzo Faletto escreveram Dependencia y desarrollo en América
pela relação capital-trabalho assalariado) e a tendência descendente da taxa
Latina. México: Siglo XXI 1969, e Oswald Sunkel e Pedro Paz escreveram o seu livro El subde- de lucro.
sarrollo latinoamericano y la teoría de la dependência. México: Siglo XXI, 1970.
As categorias e as relações daquela obra constituem o ponto de partida
6
Andre Gunder Frank. Op. cit. Esta formulação nada tem a ver com a idéia de “estagnação”
ou da impossibilidade de crescimento das economias dependentes, como de maneira errônea para analisar a organização das unidades de análise menos abstratas (ou
e reiterada repetem muitos críticos. Se puede crecer, pero acentuando los desequilíbrios propios mais concretas), mas não as esgotam. Daí a necessidade de novas categorias
del subdesarrollo.
7
No ensaio “América Latina como problema teórico”, pode-se encontrar uma crítica aos pres- para abordar a análise do sistema capitalista mundial, os padrões da repro-
supostos teóricos e metodológicos do trabalho de Frank. No meu livro Las dos caras del espejo. dução de capital, as formações econômico-sociais e a conjuntura.
Ruptura y continuidad en la sociología latin-americana. México: Triana, 1995.
8
In: El marxismo latinoamericano y la dependência. Cuadernos Políticos, México, n. 39, jan./
mar. 1984. Para José Valenzuela Feijóo, esses são juízos “ditirâmbicos”. (Ver Sobreexploración y
dependencia. Investigación Econômica, n. 21, jul./set. 1997, nota de rodapé, p. 108.) Mas elogios análises” e quem “propôs uma ambiciosa teoria para explicar a dialética da dependência”. In: Las
“excessivos” também foram feitos por outros autores, muitos deles em desacordo com as teses desventuras de la dialéctica de la dependência. Revista Mexicana de Sociología, v. XL, número
de Marini. Em um trabalho crítico da Dialética da dependência, que se propõe “levantar obstá- extraordinário 78, 1978. A resposta de Marini (“Las razones del neodesarrollismo”) se encontra
culos que fechem as falsas saídas”, um trabalho igual ou maior do que a obra que eles criticam, no mesmo número dessa revista, razão por que não nos ocuparemos aqui com este trabalho.
Fernando Henrique Cardoso e José Serra assinalam que se ocuparão da obra de Marini, já que 9
Marx fala de “exploração redobrada” e, como veremos, é um nível que não desenvolve pelo
este “foi sem dúvida quem apresentou uma quadro explicativo mais geral para dar coerência às plano de abstração em que realiza sua reflexão. Mas ele não o desconhecia.
172 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 173

Noções como imperialismo e dependência (ou “centros” e “periferias” aparece como o único caminho que permite alcançar o núcleo interno que
na antiga linguagem cepalina), ou intercâmbio desigual, por exemplo, ofe- organiza a economia política capitalista, a fim de que “a transformação do
recem ferramentas para a análise do sistema capitalista mundial e das di- dinheiro em capital possa ser investigada com base em leis imanentes à
ferenças e heterogeneidades em matéria de formações econômico-sociais troca de mercadorias, tomando portanto como ponto de partida a troca de
que o capitalismo gera nesse nível de análise. equivalentes”.12 E, apesar disso, o capital consegue obter uma mais-valia,
A noção de superexploração explica a forma como o capitalismo se dada a diferença entre o valor criado pela força de trabalho na sua utiliza-
reproduz nas economias dependentes, no marco do desenvolvimento desse ção, quer dizer, colocada para trabalhar, e o seu valor de troca.
sistema. Seu tratamento não pode ser encontrado na maior obra de Marx, No plano de trabalho de Marx, a passagem para níveis mais concre-
tal como aquele do imperialismo ou das categorias para a análise de con- tos de análise (por exemplo, aproximar-se de situações em que alguns dos
juntura, porque as unidades de análise que estes expressam não é o que se pressupostos considerados não se cumprem, mas agora com elementos
aborda em O capital. teóricos para compreender por que não se cumprem) foi contemplada.
A discussão sobre se o capitalismo nas regiões dependentes reclama Assim, ele assinalava em 185713 a redação de seis livros,14 e no primeiro
a violação do valor da força de trabalho para funcionar, como postula Ruy analisa o capital em geral: a seção sobre a concorrência, a seção sobre o
Mauro Marini,10 exige responder às razões pelas quais Marx, na sua aná- sistema de crédito e a seção sobre o capital acionário.
lise em O capital, não desenvolve esse problema. Isso é assim porque esse Em 1866, a obra havia se reduzido a quatro livros, os três de O capital,
processo não pode se reproduzir? É uma decisão assumida a partir da con- que conhecemos, mais um quarto formado pelas Teorias da mais-valia. Se
sideração de que ele constitui um fenômeno irrelevante? Ou simplesmente nos primeiros livros de O capital a análise se move em torno do capital “em
porque o nível de abstração aplicado na análise exige não contemplá-lo? geral”, no terceiro se incluem também os temas da concorrência, do crédito
e do capital acionário (...), ainda que não (...) da forma que havia se propos-
2.1. Os pressupostos na análise de O capital to Marx inicialmente.15
Esta última posição é a correta. São muitas as observações em que Isso explica, por exemplo, que nesse terceiro livro de O capital, apesar
Marx manifesta a sua atenção pelo problema. Já no tomo I, editado e publi- de que já se consideram diferenças entre valores e preços (assunto de que
cado em vida do autor, Marx indica que “fazer descer o salário do operário não se trata nos livros I e II), seja assinalado que, embora a redução do sa-
abaixo do valor da força de trabalho” é um “método que desempenha um lário abaixo do valor da força de trabalho seja “uma das causas mais impor-
papel muito importante no movimento real dos salários”, e que “fica excluí- tantes que contribuem para contrabalançar a tendência decrescente da cota
do” das suas considerações “por uma única razão: porque aqui partimos do de lucro”, o problema não é analisado e apenas é citado “empiricamente,
pressuposto de que as mercadorias, incluindo entre elas a força de trabalho, (...) já que (...) como tantas outras coisas (...) nada tem a ver com a análise
são compradas e vendidas sempre por todo o seu valor”.11
A análise do “capital em geral” obriga a deixar de lado considerações
12
Ibid. p. 120 (primeiro grifo meu).
que no terreno histórico podem desempenhar papéis significativos. Mas 13
Plano esboçado por Marx no final da Introdução de 1857. Ver Grundrisse. México: Siglo XXI,
1971. t. 1, p. 29-30.
14
Eram eles: o livro do capital, o da propriedade da terra, o do trabalho assalariado, o do Estado,
10
Ver sua Dialética da dependência. México: Era, 1973. o do comércio exterior e o do mercado mundial e das crises.
11
Marx. El capital. t. 1, p. 251 (segundo grifo meu). 15
Rosdolsky, R. Gênesis y estructura de El capital de Marx. México: Siglo XXI, 1978. p. 69.
174 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 175

geral do capital, mas se relaciona com o problema da concorrência, que não dalidade de exploração se encontra no centro da acumulação. Não é então
é estudado nesta obra”.16 nem conjuntural nem tangencial à lógica de como essas sociedades se or-
Como fica evidente, o fato de que, pelo nível de abstração em que se ganizam. E ganha sentido quando se analisa o capitalismo como sistema
move a análise de O capital, não seja abordado o tema da violação do valor mundial, que reclama transferências de valores das regiões periféricas para
da força de trabalho, isso não significa que o fenômeno fosse desconhecido o centro, e quando as primeiras, como forma de compensar essas transfe-
por Marx ou que ele o considerasse um assunto irrelevante. Muito pelo rências, acabam transformando parte do “fundo necessário de consumo
contrário, os limites que ele se auto-impõe por razões de método, a fim do operário” em um “fundo de acumulação de capital”,18 dando origem a
de desentranhar a lógica que organiza, articula e reproduz a economia uma forma particular de reprodução capitalista e a uma forma particular
burguesa, levam-no a não analisar o problema. de capitalismo, o dependente.
Esses limites já não existem quando postos em níveis mais concretos
de análise, e, particularmente, quando se considera o sistema capitalista 3. Exploração e superexploração
mundial: aí é necessário distinguir as particularidades entre economias que A superexploração, como violação do valor da força de trabalho, não
funcionam como centro do sistema e outras que operam como semipe- implica uma maior exploração. Essa foi outra das pedras na qual muitos crí-
riféricas e dependentes (ou periféricas, na linguagem da Cepal dos anos ticos da superexploração tropeçaram. A noção de exploração no capitalis-
1950 e 1960). mo remete ao problema da apropriação por parte do capital de um produto
Definitivamente, o nível de historicidade e de aproximação a reali- excedente gerado pelos trabalhadores. A geração desse produto excedente
dades mais concretas (como as consideradas por Marx no seu plano de se dá pela diferença entre o valor da força de trabalho e o valor produzido
trabalho de 1857 e que ele não chegou a escrever, referentes, por exemplo, acima daquele valor. Ou, dito de outra maneira, pela existência de um tra-
ao comércio exterior ou ao mercado mundial) requer a consideração de balho excedente acima do tempo de trabalho necessário.
processos que antes, apesar de conhecer a sua importância, foram deixados O aumento do produto excedente pode se dar de muitas maneiras:
de lado, mas que agora se transformam em elementos essenciais para dar prolongando a jornada de trabalho, elevando a produtividade do traba-
conta dos problemas abordados. lho e reduzindo o tempo de trabalho necessário, intensificando o trabalho,
É nessa lógica que Marini postula que “o fundamento da dependência apropriando-se de parte do fundo de consumo (ou de parte do tempo de
é a superexploração do trabalho”17 (nome que outorga ao processo de vio- trabalho necessário) para transformá-lo em fundo de acumulação.
lação do valor da força de trabalho). Com isso, postulava a tese mais signifi- A superexploração remete a uma forma de exploração em que não se
cativa gerada até agora para identificar o núcleo central de como se reproduz respeita o valor da força de trabalho. E isso pode se dar, como vimos, de ma-
o capitalismo dependente. neira direta sobre o seu valor diário, via apropriação de salários. Ou então,
Essa tese não nega a existência de superexploração nas chamadas eco- de maneira indireta, via prolongamento da jornada ou intensificação do
nomias centrais, seja de maneira conjuntural, seja em tempos de maior
duração. A diferença reside em que, nas economias dependentes, essa mo- 18
Marx. El capital. t. 1, p. 505. Reforçando as considerações metodológicas e as abstrações que
assinalamos anteriormente, Marx afirma aqui que, “ao estudar a produção de mais-valia, parti-
mos sempre do pressuposto de que o salário representa pelo menos o valor da força de trabalho.
16
Marx. El capital. t. 3, p. 235 (grifo meu). No entanto, na prática, a redução forçada do salário abaixo desse valor tem uma importância
17
Marini, R. M. Dialética da dependência. México: Era, 1973. p. 101. muito grande (...)”. (Id., ibid.)
176 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 177

trabalho, que, ainda quando venham acompanhadas de aumentos salariais, razão por que o tempo de vida produtiva e de vida total também se prolon-
acabam afetando o valor total da força de trabalho e, por intermédio disso, garam. Isso implica que, se atualmente um indivíduo pode trabalhar por
o seu valor diário. 30 anos sob condições normais, o pagamento diário da força de trabalho
Nesse quadro é que devem ser lidas certas frases do trabalho de Mari- deve permitir a ele se reproduzir de tal forma que possa apresentar-se no
ni, em que a superexploração é assimilada à “maior exploração do trabalho” mercado de trabalho durante 30 anos e viver por um determinado número
(Dialética da dependência, p. 23, por exemplo). Sua afirmação, vista no con- de anos de aposentadoria em condições normais, e não menos.
texto geral das formulações da Dialética da dependência, é para diferenciar Um salário insuficiente ou um processo de trabalho com superdesgaste
entre uma exploração que se apóia no “aumento da capacidade produtiva”, (seja pelo prolongamento da jornada de trabalho, seja pela intensificação
o que pode ser alcançado respeitando o valor da força de trabalho e pro- do trabalho), que encurte o tempo de vida útil total e de vida total, cons-
piciando melhores salários e maior consumo (que predomina no mundo titui um caso no qual o capital está se apropriando hoje dos anos futuros de
“central”), das formas de exploração que se sustentam na violação do valor trabalho20 e de vida. Definitivamente, estamos diante de processos de supe-
da força de trabalho (que predomina no mundo dependente), como vere- rexploração, na medida em que se viola o valor da força de trabalho.21
mos um pouco mais adiante. Podem-se produzir processos de trabalho que aumentem a jornada ou
que a intensifiquem a tal ponto que – apesar dos pagamentos de horas extras
4. Valor da força de trabalho e luta de classes ou de aumentos salariais por aumento nas mercadorias produzidas – aca-
4.1. Dimensões no valor da força de trabalho bam reduzindo a vida útil e a vida total do trabalhador. Acontece assim por-
Na análise feita por Marx sobre o valor da força de trabalho, encon- que, ainda que se possa atingir a quantidade necessária (e inclusive maior)
tram-se presentes duas dimensões: por um lado, o valor diário, por outro, o de bens que conformam os meios de vida para assegurar a reprodução do
valor total. Este último considera o tempo total de vida útil do trabalhador trabalhador, este não pode alcançar as horas e dias de descanso necessários
ou o total de dias que o possuidor da força de trabalho pode vender a sua para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas. Quando
mercadoria no mercado em boas condições, além dos anos de vida em que isso ocorre, o salário extra só compensa uma parte dos anos futuros que o
não participará na produção (ou os anos de aposentadoria). capital se apropria com jornadas extenuantes ou de trabalho redobrado.22
É o valor total da força de trabalho que determina o seu valor diário. A
isso Marx alude quando indica que “o valor de um dia de força de trabalho 20
Sob a forma do discurso de um operário a um capitalista, Marx argumenta assim essa situ-
é calculado (...) sobre a sua duração normal média ou sobre a duração nor- ação: “calculando que o período normal de vida de um operário médio que trabalhe racional-
mal da vida de um operário e sobre o desgaste normal médio (...)”.19 mente é de 30 anos, teremos que o valor diário da minha força de trabalho, que tu me abonas
um dia com outro, representa 1 / 365 × 30, ou seja, 1 / 10950 do seu valor total. Mas se deixo que
Então, o valor diário da força de trabalho deve ser calculado consi- a consumas em 10 anos e me abones 1 / 10950 em vez de 1 / 3650 do seu valor total, resultará
derando um determinado tempo de vida útil dos trabalhadores e de vida que só me pagas um terço do seu valor diário, roubando de mim portanto dois terços diários
do valor da minha mercadoria. É como se pagasses a força de trabalho de um dia empregando
média total, de acordo com as condições existentes na época. Os avanços a de três”. (Marx. O capital. t. 1, p. 180)
na medicina social, por exemplo, permitiram elevar a expectativa de vida, 21
A formulação teórica desse tema se encontra no livro de Ruy Mauro Marini: Dialética da
dependência.
22
Essa é uma das expressões do poder despótico do capital de pôr a vida entre parênteses, tema
19
Marx. O capital. t. 1, p. 440 (grifo meu). Marx reitera essa idéia quando indica: “Sabemos que que está na base da proposta de Michel Foucault para sua formulação de biopoder, mas que pelos
o valor diário da força de trabalho é calculado tomando como base uma determinada duração limites teóricos de sua reflexão não pode desenvolver. Veja-se de Jaime Osório: Biopoder y bio-
de vida do operário (...).” (Id., ibid. p. 451 (grifo meu)) capital. El trabajador como moderno homo sacer. Herramienta, Buenos Aires, n. 33, out. 2006.
178 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 179

Uma vez estabelecido o tempo de vida útil e de vida média total dos Existem elementos históricos e morais que não podem ser deixados
trabalhadores, cifra que em cada época é determinada pelas condições mé- de lado, elementos que fazem com que essas calorias, vitaminas e proteí-
dico-sociais existentes, deve-se passar ao cálculo do valor diário da força de nas não possam ser calculadas com base em qualquer alimento, mas sobre
trabalho, aquele que deve tornar possível a venda da força de trabalho em aqueles que fazem parte da cultura e da história alimentar de um povo.
condições normais pelo número de anos considerados. O desenvolvimento material da sociedade e a generalização de novos
O valor diário da força de trabalho é determinado pelo valor dos bens vão transformando estes em bens necessários em épocas determina-
meios de vida necessários para assegurar a subsistência e a reprodução do das. Por isso, não há nada de estranho no fato de que, nas periferias urbanas
seu possuidor. Aparecem aqui as necessidades referidas de alimentação, pobres, multipliquem-se as antenas de televisão, apesar de que os seus habi-
vestuário, moradia, educação, saúde etc. tantes não contem com alimentos básicos. O que deve surpreender não são
Com as dimensões espaço e tempo, fazem-se presentes novos elemen- as antenas, mas que, nesse grau de desenvolvimento social, existam pessoas
tos a considerar. O lugar geográfico é importante em relação ao valor da que não possam contar com os bens materiais básicos, próprios da época
força de trabalho, já que as particularidades climáticas definem necessida- em que vivem, e satisfazer ao mesmo tempo o resto de suas necessidades de
des específicas. Considerem-se simplesmente as diferenças que exige uma maneira suficiente.
zona de clima frio diante de outra de clima tropical em relação ao tipo de O aumento do número de bens necessários que o desenvolvimento
alimentação, vestuário, moradia etc. histórico propicia pressiona no sentido da elevação do valor da força de tra-
Também devem ser consideradas questões concernentes à educação, balho. Mas o aumento da produtividade e o barateamento dos bens indis-
à cultura e aos costumes em que foram educados os trabalhadores, o que pensáveis em geral atuam em sentido contrário, com o que o valor da força
faz com que determinadas necessidades básicas se resolvam de maneiras de trabalho se veja permanentemente pressionado por essas duas forças.
distintas em diversos países, regiões e culturas. Por exemplo, uma cultura
sustentada pelo milho soluciona as suas necessidades básicas em matéria 4.2. A luta de classes e o valor
de alimentação de maneira diferente de outras sustentadas com o trigo É sobre as bases objetivas que definem o valor da força de trabalho
ou o arroz. que pode ser entendido o papel do desenvolvimento da luta de classes na
Mas a historicidade do problema não termina aqui. As necessidades determinação dos salários, tal como são a mais-valia e a sua transfiguração
básicas da população trabalhadora não são as mesmas, hoje, que no final em lucro e lucro médio na concorrência os elementos fundamentais para
do século xix ou no início do século xx, simplesmente porque variaram compreender a disputa entre capitais. Definitivamente, não é a luta de clas-
para o conjunto da sociedade. Contar com um rádio, um refrigerador ou ses que determina o valor, mas é este que define o eixo em torno do qual se
uma televisão, por exemplo, constituem necessidades sociais tão essenciais desenvolverá a luta de classes.
na nossa época quanto contar com o pão (ou tortillas), leite ou frijoles. Visto em uma perspectiva geral, o problema que Marx procura resolver
A reprodução dos trabalhadores – que inclui as novas gerações, razão é a definição das bases objetivas que explicam a luta de classes no capitalismo,
por que se deve contemplar no seu valor a família operária – não pode ser e não, ao contrário, que a luta de classes explique os problemas que devem
calculada como a soma de um montante determinado de calorias, proteínas ser investigados. Por este último caminho, ficamos presos em um beco sem
e vitaminas que se encontrem em quaisquer bens, o que implicaria conside- saída: a luta de classes acabaria por explicar tudo; mas o que explica a luta
rar a reprodução fisiológica como quem dá de comer a um animal de carga. de classes? Quais são as suas determinações no capitalismo?
180 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 181

A partir disso, podemos entender o erro de quem sustenta que uma dutores de bens de salário, com os quais o valor da força de trabalho e os
diminuição nos salários, qualquer que seja a forma, implicaria uma dimi- salários nesses países e regiões precisam ser mais baixos do que nos países
nuição do valor da força de trabalho.23 dependentes. O curioso é que ocorre exatamente o contrário. Isso seria ex-
Vimos que somente pela via de aumentos na produtividade dos bens plicado porque a luta de classes é mais exacerbada nos primeiros do que
de salário e pela diminuição do valor e dos preços desses bens é que se pode nos segundos? Certamente, como já afirmamos em páginas anteriores, a
alcançar uma diminuição do valor da força de trabalho, em proporção ao resposta não pode ser encontrada nesse nível.
peso desses bens naquele valor. Mas uma diminuição salarial propiciada
por outros efeitos (como pela força alcançada pelo capital na luta de classes, 5. Diversas modalidades do capitalismo
o que permite a ele “impor” diminuições salariais), somente esta nos pode Nos países e regiões imperiais, o capital se reproduz de uma maneira
esclarecer sobre as condições através das quais o capital acaba violando o particular. Em um determinado momento do seu desenvolvimento, eles
valor da força de trabalho. deverão incorporar de maneira ativa os trabalhadores na realização, isto é,
Se a produtividade do trabalho é mais elevada nos países imperialistas gerarão uma modalidade de capitalismo em que uma parte substantiva da
(ou centrais),24 é lógico supor que ela também se estende aos ramos pro- sua produção se dirige ao mercado interno e os assalariados desempenham
um papel relevante. Isso ocorre não porque os capitalistas do mundo cen-
23
Como sustenta Valenzuela Feijóo, quando indica: “O que acontece quando, por exemplo, o tral são mais civilizados ou tenham mais ética no momento de tomar essas
salário real tende a cair? (...) Devemos falar aqui de superexploração? Na nossa opinião, não decisões. O problema, nesse nível, remete ao fato de que eles precisavam do
devemos fazer isso. O que de fato cabe é falar de uma diminuição no valor da força de trabalho,
de uma redefinição para baixo, e pela via da redução salarial, desse valor.” Op. cit. p. 113 (último mercado interno para a enorme produção que a elevação da produtividade
grifo meu). Em Marx, o caminho vai na direção contrária daquilo que Valenzuela Feijóo postu- gerava, razão por que deveriam criar as condições para aumentar a explo-
la. Não é o salário que é o critério para determinar o valor. Caso fosse assim, não se entenderia
todo o trabalho de Marx para ir além do mundo imediato (o mundo onde os valores transfigu- ração e, ao mesmo tempo, elevar o consumo dos assalariados. Isso pode ser
ram os preços e o valor da força de trabalho em salário) e o seu aprofundamento na tarefa de obtido pela via da elevação da produtividade do trabalho em geral e, a partir
precisar uma teoria do valor. Aquilo não somente não tem nada a ver com Marx, nem sequer
com a economia clássica pré-marxista. daí, baratear os bens de salário em particular, com o que se reduz o tempo de
24
Velenzuela Feijóo aqui se equivoca novamente, afirmando que Marini sustentava o contrário trabalho necessário e se amplia o tempo de produção de mais-valia.
(Op. cit. p. 109). Sua base é uma frase isolada, tirada do post scriptum que acompanha a Dialética
da dependência, que diz, considerando as outras linhas, que “a superexploração não correspon- Essa transformação no capitalismo central foi marcada por revoluções
de a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas é inerente a esta tecnológicas que cresceram no seu seio – processo que exigiu acumulações
e cresce proporcionalmente ao desenvolvimento da força produtiva de trabalho” (Dialética da
dependência, p. 98). A frase está inscrita na discussão de Marini com F. H. Cardoso, que pos- em que não são alheias as transferências de metais preciosos da periferia
tula que a superexploração se identifica com a mais-valia absoluta, ao passo que o capitalismo para o centro –, assim como pela ativa incorporação da América Latina no
industrial se sustenta na mais-valia relativa, “por mais importante que seja (a) importância
histórica [da superexploração], ela carece de interesse teórico” (V, p. 92). Nesse quadro, Marini mercado mundial como região produtora de alimentos, o que barateou ele-
argumenta que, particularmente no capitalismo dependente, as fórmulas da mais-valia relativa mentos do capital variável e incidiu na redução do tempo de trabalho neces-
propiciam superexploração, ao favorecer a produtividade e a intensificação do trabalho. Nisso
segue Marx, que afirma que a intensidade do trabalho permite impor “um desgaste maior de sário nas economias centrais, no momento em que as exportações regionais
trabalho durante o mesmo tempo”, “tapando mais densamente os poros do tempo de trabalho”
de matérias-primas operavam no sentido de baratear o capital constante.
(Marx. O capital. t. 1, p. 336-337). Basta ler o conjunto da Dialética da dependência para cons-
tatar a descontextualização que Valenzuela Feijóo realiza da posição de Marini. Tampouco se Dessa forma, a América Latina ajudou para que o capitalismo cen-
entende que um pesquisador sério, apoiado em fórmulas que não acabam por tapar os erros
tral conseguisse resolver a equação de elevar a taxa de exploração acom-
teóricos, festeje sua “descoberta” de que “os Estados Unidos é uma economia dependente e a
Nicarágua uma potência dominante” (Ibid. p. 112). panhada de uma elevação dos salários; resolver problemas de realização,
182 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 183

ampliando o seu mercado interno com a incorporação crescente da sua tor fundamental da sua reprodução, processo que termina se expressando
população trabalhadora ao mercado; e contrabalançar as tendências de na fratura de seu ciclo do capital, ao criar um aparato produtivo que se
queda da taxa de lucro. distancia das necessidades de consumo da população trabalhadora.
Nesse marco estrutural é que se dá a luta de classes nessas regiões, É sobre essas bases estruturais que se desenvolve a luta de classes na
ao que se deveria acrescentar a permanente transferência de recursos das região e a partir do que se pode interpretar os diversos projetos (ou pa-
regiões dependentes para o mundo central, processo que apresenta moda- drões) de reprodução presentes na história posterior da América Latina,
lidades diversas em diferentes momentos históricos. os quais se reorientam em alguma medida nos primeiros passos do chama-
Como bem assinala Marini, enquanto a inserção da América Latina do modelo de industrialização, com a gestação de ramos que privilegiam
no mercado mundial no século xix concorreu para gerar os efeitos antes o mercado interno e a fraca incorporação de assalariados a esse mercado
referidos no mundo central, os seus resultados no interior da região foram (em um mercado mundial tresloucado e em crise pelos efeitos da Primeira
diametralmente distintos (Dialética da dependência, p. 23 e segs.). A contar Guerra, da crise de 1929 e da Segunda Guerra), para voltar a se aguçar a
a partir da etapa colonial, com uma economia voltada para o mercado ex- ruptura nas últimas décadas do projeto industrializador, até chegar a nos-
terno, processo que se aprofunda depois dos processos de independência sos dias, com a gestação de um padrão de reprodução que tende a privile-
e com maior força na segunda metade do século xix (conformando-se ao giar os mercados externos e o alto mercado interno, com o que se volta a
padrão ou ao modelo agromineiro exportador), o capital latino-americano reiterar, sob novas condições, a brutal fratura entre o que se produz e para
contou com todas as condições objetivas para aguçar ao máximo a tensão quem e as necessidades do grosso da população local.25
que o capital enfrenta de procurar explorar ao máximo os trabalhadores, no Diante dessa situação, não é difícil entender o mal-estar de certos crí-
momento da produção, e esperar que contem com salários suficientes no ticos, que quiseram ver um capitalismo mais civilizado ou menos selvagem
momento em que esses produtores, na segunda fase da circulação, transfor- no mundo dependente e na América Latina em particular, ou que acredi-
mam-se em consumidores para participar na realização da mais-valia. taram ser possível que este se pudesse fazer presente em algum futuro não
Aqui já se fazia presente um primeiro fator objetivo para colocar em distante.26 Mas aí os desejos se chocam com a realidade.
marcha os mecanismos da superexploração. Os trabalhadores locais não
constituíam um fator fundamental na realização, já que o grosso da produ- 25
Esses são os temas centrais abordados no ponto 1 (Integração ao mercado mundial) e 2 (O
ção era destinado a outros mercados, situados preferencialmente na Euro- segredo do intercâmbio desigual) de Dialética da dependência. Este último ponto Valenzuela
pa e nos Estados Unidos. qualifica como “uma confusão teórica descomunal”, a qual “mais vale esquecer”, já que é “im-
possível [dela] se desenredar”. Curiosa forma de discutir: o que não se entende se desqualifica.
A esse primeiro fator se junta um outro: as transferências de valores Bastaria voltar à discussão de Cardoso-Serra com Marini, citada na nota 7, na qual se encontra
e o intercâmbio desigual entre essas e aquelas economias, dada a diferença uma extensa critica e réplica esclarecedora sobre o tema. Mas se compreendem as desqualifi-
cações quando Valenzuela Feijóo afirma que o pesquisador só deve “recolher” dados, estabe-
de produtividade (sobre isso e além disso, a diferença de força no mercado lecer “médias ponderadas”, constatar a queda de salários e com essas coisas dar como certa a
mundial), procuraram ser compensados pelo capital nas economias depen- diminuição do valor da força de trabalho. Dados estão dados, basta apenas “recolhê-los”. Além
disso, com algumas sofisticações estatísticas, os problemas ficam resolvidos. Tudo soa como um
dentes, pelo fácil expediente de se apropriar de parte do “fundo de consu- empirismo de extrema ingenuidade. Estranho em um pesquisador que teoriza e conta com uma
mo” dos assalariados e transformá-lo em “fundo de acumulação”. Com isso, sólida formação, não somente em economia política.
26
As formulações de F. H. Cardoso e J. Serra se situam claramente nessa perspectiva (Op. cit.).
faziam-se presentes as condições objetivas para criar uma modalidade de Suas práticas nas tarefas governamentais que realizam no Brasil anos depois (o primeiro como
capitalismo, o dependente, que acaba fazendo da superexploração um mo- presidente e o segundo como secretário de Fazenda) acabam por confirma o que foi dito.
184 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 185

Pensar que os capitalistas que dominaram esses processos na América elevados níveis de pobreza e miséria, insuficiente capacitação dos recursos
Latina poderiam ter atuado de maneira diferente daquilo que aqui foi resu- humanos, mercados internos fracos, pobre desenvolvimento tecnológico,
mido é esquecer as determinações objetivas nas quais se registram as ações ausência de empresários empreendedores, investimentos insuficientes, he-
das classes. Por que não iniciaram processos de industrialização no sécu- terogeneidades estruturais, ausência de profundas reformas no campo, falta
lo xix? Por que não levaram a cabo revoluções industriais e posteriores de integração produtiva, carência de instituições sólidas, corrupção etc.27
gastos na busca de inovações tecnológicas? Por que não incorporaram os Em geral, nas visões que recolhem um ou vários elementos antes
trabalhadores no consumo e ampliaram o mercado interno por intermédio anunciados, nunca aparecem os fatores que explicam as razões do porquê a
de melhores salários? América Latina apresentar essa (ou outras) característica. Muito menos os
Se não o fizeram e continuam não fazendo, não foi porque foram processos que poderiam reverter o que se considera como tendências an-
(ou sejam) menos civilizados do que seus pares nos Estados Unidos e tidesenvolvimento. No fundo, nada disso pode ser alcançado, porque esses
na Europa. Não foi porque desconhecessem (e porque desconheçam) os diagnósticos apresentam uma aguda carência de explicações teóricas, que
fundamentos da economia e as teorias do desenvolvimento. Eles agiram primeiro dêem conta do que existe e depois se perguntem – a partir das
e agem na racionalidade que a lógica da reprodução do capital impõe em tendências que predominam e do que ocorre – como modificar o estado de
circunstâncias determinadas. coisas dominante.
Ao contar com mercados externos para a produção de banana, açúcar, A ausência de teorizações é suprida, em geral, com a transferência me-
salitre ou estanho, não havia elementos que os levassem a inventar ou criar cânica de algum modelo de desenvolvimento construído a partir da expe-
indústrias no século xix. Se naqueles mercados resolviam a venda prin- riência de um ou vários países centrais e/ou alguns países “emergentes”, e a
cipal dos seus produtos, o que poderia impulsioná-los a produzir outros partir daí são constatados os “desvios”, as “distorções” ou as “insuficiências”.
bens de salário para ampliar o mercado interno? Se seus trabalhadores não Desse ponto de vista, tudo se reduz a enquadrar a realidade ao modelo pro-
participavam de maneira fundamental na realização, a título de que – que posto. Mas, como a realidade se comporta com outras lógicas, pior para a
não sejam pressupostos imperativos morais e religiosos – iriam elevar os realidade, a fim de que o modelo – geralmente acompanhado de fórmulas
salários? mais ou menos sofisticadas – esteja lógica e racionalmente construído.
Se transferirmos essas perguntas para a situação atual, as respostas No marxismo as coisas não caminham melhor. Ou são repetidas fór-
caminharão na mesma direção. mulas em um nível de generalidade válidas para toda a economia capitalista
em algum momento, como debilidades ou crises na acumulação, quedas da
6. A título de conclusão: superexploração e totalidade taxa de lucro, desproporção entre os setores etc., ou a lista dos elementos se
Nos esforços para tentar explicar o atraso e o subdesenvolvimento faz com linguagem “marxista”: fraco desenvolvimento das forças produti-
latino-americano, as correntes dos mais variados matizes coincidem em vas, baixa composição orgânica do capital e baixa produtividade, redução
um aspecto: elas oferecem elementos dispersos que jamais terminam por de salários, aumento do pólo da riqueza diante do pólo da miséria, expansão
se integrar em qualquer esquema explicativo. do exército industrial de reserva etc. As razões do porquê esses processos
A lista de fatores dessas diversas correntes que caracterizam e/ou pro-
piciam o subdesenvolvimento pode ser grande: fraco crescimento, falta de 27
Muitos desses elementos se fazem presentes nos “diagnósticos” de organismos internacionais,
eqüidade, polarização social, baixos salários, enorme população excedente, como a nova Cepal, aderida ao pensamento neo-estrutural.
186 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração ■ 187

e fenômenos se apresentam brilham por sua ausência. Muito mais a in- Osório, J. América Latina hoy. Entre la explotación redoblada y la actua-
tegração delas em um esquema que não seja a repetição do que O capital lidad de la revolución. Herramienta, Buenos Aires, n. 35, jun. 2007.
estabelece. A “teoria”, assim concebida, nunca termina por se integrar com Osorio, J. Biopoder y biocapital. El trabajador como moderno homo sa-
a realidade que ela tenta explicar. cer. Herramienta, Buenos Aires, n. 33, out. 2006.
A partir da proposta teórica formulada por Martini na Dialética da ________. Las dos caras del espejo. Ruptura y continuidade n la sociología
dependência, que gira em torno da noção de superexploração, o processo latinoamericana. México: Triana, 1995.
histórico que deu vida à forma particular de reprodução do capital no ca- Sunkel, O.; Paz, O. El subdesarrollo latinoamericano y la teoría del desar-
pitalismo dependente alcança um nível de integração que outros esquemas rollo. México: Siglo XXI, 1979.
interpretativos não alcançaram, permitindo-nos compreender os seus mo- Valenzuela, Feijóo J. Sobreexploración y dependência. Investigación
vimentos e períodos, à luz das tendências presentes no sistema capitalista Económica, México: Faculdad de Economia/Unam, n. 221, jul./set.
mundial, como, de maneira resumida, esboçamos nas páginas anteriores. 1997.
Diante do desarme teórico e da especialização fragmentária que pre-
valece nas escolas, nas faculdades e nos centros de pesquisa de economia e
das ciências sociais em geral, alimentadas pelo auge de vertentes neoclás-
sicas e neo-estruturais, a proposta teórica e metodológica da Dialética da
dependência caminha na contracorrente. Seu radicalismo é somente a re-
construção, no plano do conhecimento, de uma realidade obstinadamente
radical.

Bibliografia
Cardoso, F. H.; Faletto, Enzo. Dependencia y desarrollo en América
Latina. México: Siglo XXI, 1969.
Cardoso, F. H.; Serra, José. Las desventuras de la dialéctica de la de-
pendência. Revista Mexicana de Sociología, México: Instituto de In-
vestigaciones Econômicas/Unam, n. 78, 1978.
Frank, A. G. Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. Buenos Ai-
res: Siglo XXI, 1970.
Marini, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Era, 1973.
________. Las razones del neodesarrollismo. Revista Mexicana de Sociolo-
gía, México: Instituto de Investigaciones Sociales/Unam, n. 78, 1978.
Marx, C. El capital. 7. reimpr. México: Fondo de Cultura Económica,
1973 (1946).
188 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 189

A superexploração do trabalho e a
economia política da dependência

Carlos Eduardo Martins*

O conceito de superexploração do trabalho foi estabelecido por Ruy


Mauro Marini, no final dos anos 1960 e na década de 1970, em um conjunto
de trabalhos, dentre os quais Dialética da dependência (1973) é a expressão
clássica e concentrada.1 Tal conceito constitui um dos principais pilares da
teoria marxista da dependência. Todavia, devido ao caráter paradigmático
do aporte de Marini e à relativa dispersão de suas contribuições em livros,
artigos ou trabalhos de circulação restrita, torna-se necessário um aprofun-
damento da teoria da superexploração, uma vez que, como afirmava Mari-
ni, Dialética da dependência (1973) não pretendia mais do que introduzir o
tema, ainda que tenha lançado suas bases de forma definitiva.2

* Nascido em 1965, é doutor em Sociologia pela USP. Professor do Departamento de Ciência


Política/UFF, pesquisador da Reggen e membro do Grupo de Estudos sobre Estados Unidos
(Clacso). Autor de dezenas de artigos, colaborador e organizador de diversos livros. Ganhador
dos Prêmios Jabutis de livro do ano e de ciências humanas em 2007 pela coordenação e autoria
de Latino-americana: enciclopédia contemporânea de América Latina e do Caribe.
1
Esse conceito começa a se esboçar em Subdesarrollo y revolución (1968), adquire uma forma
mais sistemática em Dialética de la dependencia (1973) e continua a se desenvolver em Las
razones del neodesarrollismo (1978), Plúsvalia extraordinária y acumulación de capital (1979) e
El ciclo del capital en la economía dependiente (1979). Posteriormente, nos anos 1990, Marini o
retoma à luz das transformações do capitalismo globalizado, principalmente através do artigo
“Proceso y tendencias de la globalización capitalista” (1995).
2
“Dialéctica de la dependencia não pretende ser senão isto: uma introdução à temática de inves-
tigação que me vem ocupando e às linhas gerais que me orientam este trabalho. Sua publicação
obedece ao propósito de adiantar algumas das conclusões a que tenho chegado, suscetíveis
talvez de contribuir ao esforço de outros que se dedicam ao estudo das leis de desenvolvimento
do capitalismo dependente, assim como ao desejo de dar-me a mim mesmo a oportunidade de
contemplar no seu conjunto o terreno que busco desbravar” (Marini, 1973, p. 81).
190 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 191

Neste artigo, tentaremos sintetizar os principais resultados teóricos intensidade de trabalho e a redução do fundo de consumo do trabalhador
alcançados por Ruy Mauro Marini na elaboração do conceito de superex- (Marini, 1973, p. 95-96).4
ploração, enfatizando sua relação com a gênese da acumulação capitalista. A maior exploração do trabalho, embora caracterizasse as formas da
Buscamos contribuir para o avanço do estado da arte da teoria mediante acumulação em situações de baixo desenvolvimento tecnológico, não se
a formalização matemática e quantitativa do conceito. Essa formalização resumiria a esse cenário, expandindo-se durante a evolução tecnológica do
permite visualizar as condições concretas em que se desenvolve a super- modo de produção capitalista. Segundo Marini, essas duas grandes formas
exploração e ilumina a pertinência da contribuição do autor ao campo de exploração tenderiam a se combinar durante o desenvolvimento capi-
marxista da teoria do valor. Seguimos, assim, as indicações de Cristóbal talista, produzindo economias nacionais com maior incidência de uma ou
Kay (1989) que, em seu livro clássico sobre o pensamento social latino- outra. Ao predomínio da maior exploração do trabalho corresponderia, pre-
americano, afirma que a formalização do conceito de superexploração é cisamente, a superexploração do trabalho.5 Mas, antes de identificarmos as
um complemento necessário à obra de Ruy Mauro Marini.3 Ao final, desta- condições que levam ao protagonismo da maior exploração do trabalho,
camos o novo alcance histórico que assume esse conceito a partir do desen- vejamos mais em detalhe o porquê de esta se vincular ao aumento da força
volvimento da globalização neoliberal no sistema mundial. A análise dessa produtiva do trabalho.
fase apenas chegou a ser esboçada nos escritos do autor. As razões para que essas formas de exploração se articulem no regi-
Desde a sua formulação, esse conceito vem despertando intensas po- me capitalista de produção e na economia mundial que o desenvolve são
lêmicas. Não é nossa intenção, neste momento, retomá-las de forma mais estabelecidas no conjunto da obra de Marini e encontram a mais rica ela-
ampla, tarefa que, em parte, realizamos em outros trabalhos (Martins, 2003, boração em seu artigo “Mais-valia extraordinária e acumulação de capital”
2006-A e 2006-B). Mas a elas faremos referência no que for indispensável (1979), considerado pelo autor um complemento indispensável à Dialética
para a elucidar e desenvolver o enfoque de Marini. da dependência (Marini, 1990, p. 43). Como fundamentos dessa tendência
à combinação, podemos mencionar:
1. Superexploração e a acumulação de capital a) O aumento da produtividade do trabalho, que, ao reduzir o tempo
Ruy Mauro Marini afirma, em Dialética da dependência (1973), que o necessário para a produção de uma certa massa de mercadorias, permite ao
regime capitalista de produção desenvolve duas grandes formas de explora- capital exigir a expansão do trabalho excedente do operário, combinando a
ção, que seriam o aumento da força produtiva do trabalho e a maior explo-
ração do trabalhador. O aumento da força produtiva do trabalho ocorreria 4
A maior exploração do trabalhador, mediante os três processos assinalados, significaria um
quando, no mesmo tempo e com o mesmo gasto de força de trabalho, hou- maior desgaste de sua força de trabalho, que se reproduziria apenas parcialmente, esgotando
vesse maior quantidade de mercadorias produzidas. Já a maior exploração prematuramente sua capacidade produtiva ou impedindo a sua conservação em estado normal:
“Nos três mecanismos considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que se
do trabalhador se caracterizaria por três processos, que poderiam atuar de negam ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho:
forma conjugada ou isolada: o aumento da jornada de trabalho, a maior nos dois primeiros casos, porque se lhe obriga a um dispêndio de força de trabalho superior
ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no
último, porque se lhe retira inclusive a possibilidade de consumir o estritamente indispensável
para conservar sua força de trabalho em estado normal” (Marini, 1973, p. 41-42).
3
Ao mencionar a obra de Marini, Kay assinala: “Sua análise poderia ter ganho maior precisão 5
“A superexploração do trabalho não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos
e clareza se ele tivesse usado as formulações algébricas de Marx e suas notações, do que se re- de acumulação de capital, mas é inerente a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da
pousasse exclusivamente em palavras” (Kay, 1989, p. 243). força produtiva do trabalho” (Marini, 1973, p. 98).
192 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 193

maior produtividade com a maior exploração do trabalho. Marini assinala, segmentos do setor I que para ele produzem. Essa análise é desenvolvida a
ainda, que a elevação da produtividade do trabalho impulsiona o aumen- partir de uma profunda releitura dos esquemas de reprodução capitalista
to da intensidade de trabalho e conduz à maior exploração do trabalho e de Marx, em que introduz o progresso técnico no seu funcionamento.6
desgaste da força de trabalho, caso a extensão da jornada não seja redu- De acordo com Marini, o subsetor IIa (que produz bens-salário) e
zida. Nos países centrais, a rigidez apresentada pela jornada de trabalho o setor I (que produz insumos para esse) não são capazes de sustentar a
desde várias décadas indica que a maior exploração do trabalho, longe de generalização do progresso técnico no ramo, pois a conservação da mas-
representar uma etapa pretérita, acompanha a elevação da produtividade sa de valor representada pelo capital variável entra em contradição com o
(Marini, 1973, p. 96-97). progresso técnico e/ou com a elevação da intensidade do trabalho, neces-
b) A distinção que realiza entre produtividade e mais-valia relativa, sários para a obtenção da mais-valia extraordinária no ramo. As mercado-
afirmando que o aumento da produtividade cria apenas mais produtos ao rias constituídas de bens-salário, ao manterem o seu valor social apesar da
mesmo tempo, e não mais valor para o capitalista individual. O aumento redução do valor individual, não encontram demanda para sua realização,
da produtividade se expressaria em uma mais-valia extraordinária, ao per- pois se expressam em uma maior massa física de produtos.
miti-lo reduzir o valor individual das mercadorias e manter o seu valor so- Já o setor IIb e os segmentos do setor I, que produzem direta ou in-
cial, resultando na apropriação por esse capitalista de uma maior massa de diretamente bens suntuários, podem sustentar, até certo ponto, a gene-
mais-valia e na queda das taxas de mais-valia e da taxa de lucro dos outros ralização do progresso técnico e da intensidade do trabalho na busca de
capitalistas, por manter-se constante a massa de mais-valia no ramo. A ge- mais-valia extraordinária. A perda da participação relativa do capital va-
neralização do aumento de produtividade no ramo suprimiria essa alteração riável na estrutura produtiva, gerada pelo aumento da produtividade ou
na repartição do valor, expandindo a massa global de produtos sem elevar da intensidade do trabalho, forneceria a demanda para a maior oferta de
a massa de valor. O resultado disso seria a queda da massa de mais-valia produtos suntuários.7
no ramo, pois uma parte dela seria absorvida pelo aumento da composição
orgânica do capital que a generalização do aumento de produtividade esta-
6
Marx, no livro II de O capital, demonstra que a reprodução do capital depende da
proporcionalidade entre os valores de uso e de troca que são intercambiados pelos setores
belece. A única possibilidade de burlar essa queda e sustentar a mais-valia dedicados à produção de meios de consumo e de meios de produção. A reprodução ampliada
extraordinária, afirmará Marini mais adiante, será mediante a sua extensão e do capital exige como condição para a sua realização que a soma de valores, representada pelo
capital variável e as mais-valias, acumulada e improdutiva do setor que se dedica à geração de
deslocamento do interior do ramo produtivo para as relações intersetoriais. meios de produção, equivalha ao capital constante e à mais-valia acumulada do setor produtor
O aumento da produtividade apenas geraria mais-valia relativa quan- de bens de consumo.
Mediante os esquemas de reprodução, Marx busca determinar as condições de equilíbrio
do a elevação da produtividade atingisse o setor que produz bens-salário, que permitem ao capital se reproduzir em sua totalidade, articulando os ciclos dos capitais
implicando a desvalorização da força de trabalho e o aumento do tempo de produtivo, mercantil e financeiro. A introdução da noção de equilíbrio foi a razão pela qual se
desatou uma ampla polêmica, na qual alguns procuraram ver nos esquemas uma contradição
trabalho excedente. com o livro I, em que o autor postula a vinculação entre o capital e o progresso tecnológico a
c) O desenvolvimento em “Mais-valia extraordinária e acumulação partir de desequilíbrios provocados pela mais-valia extraordinária. A contribuição de Marini
enfatiza a compatibilidade entre os esquemas de reprodução e o progresso técnico, destacando
de capital” (1979) dos argumentos anteriores (a e b) apresentados em Dia-
que são níveis de análise, não apenas compatíveis, mas articulados do processo de acumulação
lética da dependência. Nesse artigo, Marini assinala que o progresso técni- de capital. Ele afirma que é possível haver equilíbrio entre o setores I e II e, simultaneamente,
co somente é introduzido pelo capital individual e que a sua liderança em mais-valia extraordinária e elevação do progresso tecnológico, como veremos.
7
“Estabeleçamos algumas premissas essenciais. A demanda se encontra estruturada diretamente
âmbito setorial cabe ao setor produtor de bens de consumo suntuário e aos por relações de distribuição, as quais, ainda que determinadas pela produção, como vimos,
194 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 195

d) O nivelamento das taxas de lucro entre os ramos produtivos.8 de trabalho.10 De outro lado, a capacidade do segmento IIa e I, produtor
Esse nivelamento tenderia a ocorrer quando a expansão da acumulação de capital circulante, de proporcionar os insumos materiais para IIb e I,
em IIb e o segmento de I correlato atingissem uma tal intensidade, que produtor de capital fixo, é limitada pelos crescentes diferenciais de produti-
a oferta de mercadorias do setor IIa e I produtor de capital circulante9 vidade que vão se desenvolvendo entre esses subsetores. Em conseqüência,
não conseguisse manter-se à altura da procura em IIb e I. Isso porque a esgota-se, a médio e longo prazo, a ampliação da circulação de mercadorias
concentração da produtividade em IIb e I criaria uma situação em que, de pela via da extensão da divisão nacional e internacional do trabalho, o que
um lado, o aumento da composição orgânica do capital nesses subsetores permite aumentar a massa física de produtos destinadas ao subsetor IIb e à
exigiria escalas de produção crescentes, que se manifestariam no aumento produção de capital fixo sem reduzir-se o diferencial de produtividade em
mais que proporcional de seu consumo de matérias-primas, na crescente face deles. Então, apenas o nivelamento das taxas de lucro e a transferência
intercambiabilidade tecnológica e no aumento de seu consumo de força tecnológica correlata de IIb e I, produtor de capital fixo, para IIa e I, produ-
tor de capital circulante, permitem romper com a queda das taxas de mais-
valia e de lucro nos primeiros subsetores (ao desvalorizarem e depreciarem
repercutem sobre esta, desde o momento em que se transformam em determinações da
demanda, com o que sobredeterminam a produção de valor e mais-valia (...). Verifiquemos os insumos fornecidos por IIa e I correlato), elevando as taxas globais de
agora como as mudanças na produção afetam as relações intersetoriais em nível de mercado, mais-valia e de lucro do capital em geral. Mas também realizam uma sig-
partindo de uma situação de equilíbrio (...). Consideremos o setor IIa. O aumento da mais-valia
ali verificado se acompanha, como sabemos, de uma massa maior de mercadorias. Se não se nificativa transferência da massa de mais-valia para os segmentos IIb e I,
modifica o valor individual destas, não se pode aumentar a sua demanda por parte de I e IIb, já produtor de capital fixo, o que tende a eliminar cada vez mais a autonomia
que v se mantém ali constante; mas sim, caso se reduza relativamente a demanda criada por IIa,
pela redução da participação de v em seu produto (ainda que mantenha seu valor absoluto). (...) de um segmento produtor de capital fixo exclusivo ao subsetor IIa. O ni-
Assim, do ponto de vista do mercado, IIa – ainda menos que I – não está em condições de realizar velamento das taxas de lucro se estabelece segundo uma lógica geral que
sustentadamente um lucro extraordinário.
Suponhamos agora que aumente a mais-valia e o produto mercantil em IIb. Este pode manter
responde às necessidades de concentração de mais-valia nos segmentos IIb
o princípio do valor individual de suas mercadorias, pelo fato de que a demanda para estas e I correspondente para atender à valorização de sua maior composição
deriva exclusivamente da mais-valia, a qual se encontra aumentada. Este pode manter, em
princípio, o valor individual de suas mercadorias, pelo fato de que a demanda para estas deriva
técnica e orgânica. Esse nivelamento não elimina as restrições produzidas
exclusivamente da mais-valia,, a qual se encontra aumentada pela mudança da relação básica de à expansão do consumo popular pelos segmentos que impõem a mais valia
distribuição no próprio setor, o que confere uma maior elasticidade à demanda para os produtos extraordinária intersetorial. Antes pelo contrário. Atende aos seus condi-
de Iib” (Marini, 1979b, p. 28-29).
8
Em Dialética da dependência (1973), o nivelamento das taxas de lucro é o principal fundamen- cionamentos e demandas de valorização, produzindo os insumos necessá-
to para a combinação da maior exploração do trabalho com a maior produtividade do trabalho. rios para o consumo de capital circulante e de bens-salários que resulta de
Ele permite deslocar o intercâmbio da regulação pelo valor para a sua determinação pelos pre-
ços de produção, o que implica desvios de preço em relação à quantidade de trabalho abstrato sua liderança no processo de acumulação.
que são determinados pelos diferenciais de produtividade do trabalho entre capitais de distinta Todo esse processo de acumulação de capital, descrito por Marini,
composição orgânica e técnica. Tal temática é desenvolvida e ampliada em Mais-valia extraor-
dinária e acumulação de capital (1979) e em O ciclo do capital na economia dependente (1979). que parte: da mais-valia extraordinária introduzida pelo capitalista indi-
9
O subsetor I produtor de capital circulante tenderia a se situar como um segmento apenas vidual (de maior composição técnica e orgânica do capital); de sua fixação
parcialmente vinculado à mais-valia extraordinária produzida nos subsetores IIb e I produtor
de capital fixo para este. O segmento produtor de capital circulante gera os insumos energéticos
nos ramos ligados ao consumo suntuário em detrimento dos dedicados
de ampla aplicação e os insumos materiais passíveis das mais vastas transformações produtivas,
produzindo bens que indiretamente entram no consumo da força de trabalho. Entretanto, a
aplicação da revolução científico-técnica à natureza permite um crescente nível de diferencia- 10
Esse aumento é necessário para que o capital domine os elementos materiais de um processo
ção e de agregação das matérias-primas, impulsionando sua especificação setorial e suntuária. de trabalho que aprofunda cada vez mais a sua composição técnica.
196 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 197

ao consumo popular; da limitação do nivelamento das taxas de lucro às Essas tendências enunciadas por Marini no plano da concorrência
necessidades de valorização e consumo dos setores suntuários; até atingir (itens b, c e d) podem ser lidas como absolutas ou hegemônicas do de-
um novo ciclo ampliado de fixação de mais-valia extraordinária em favor senvolvimento capitalista. As primeiras remeteriam à existência de uma
dos subsetores IIb e Ib, constitui o quadro teórico e conceitual de inscrição economia capitalista pura, que realizasse suas tendências mais agudas de
do conceito de superexploração, no âmbito da teoria do valor, como uma desenvolvimento, pois supõem a plena liderança dos segmentos IIb e I cor-
tendência dinâmica do capitalismo.11 O movimento de produção de mais- respondentes na introdução do progresso técnico e a completa dependên-
valia torna-se simultaneamente um movimento de apropriação de mais- cia tecnológica dos subsetores IIa e I correspondentes.13 Como tendências
valia, implicando desvios de preços em relação ao valor que resultam na hegemônicas, manifestam-se no fato de explicarem uma parte crescente e a
depressão das taxas de lucro dos capitalistas individuais e subsetores desfa- maior parte do crescimento econômico.
vorecidos. Estes buscam, na fixação dos preços da força de trabalho abaixo A superexploração do trabalho se estabelece, a partir do desenvolvi-
de seu valor, os mecanismos de compensação e restauração da mais-valia mento da produtividade do trabalho, naquelas empresas, ramos ou regiões
que lhes foi apropriada por meio da concorrência. Estabelece-se a superex- capitalistas que sofrem depreciação do valor de suas mercadorias, em razão
ploração do trabalho, que significa o predomínio da maior exploração do da introdução, em seu espaço de circulação, de progresso técnico realizado
trabalho sobre o aumento da capacidade produtiva do trabalhador como por outras empresas, ramos ou regiões. Isso ocorre quando a maior parte
mecanismo de acumulação de mais-valia. Ela se expressa, como vimos, por
três mecanismos: a extensão da jornada de trabalho ou da intensidade de
explica, entretanto, por três fatores principais: a) a constituição do sistema mundial que faz
trabalho, sem a correspondente elevação salarial; e a redução do fundo de parte da gênese do capitalismo histórico e atua para transferir excedentes da periferia e semi-
consumo do trabalhador.12 periferia aos países centrais e limitar a ação depressiva exercida pelo setor de bens de consumo
suntuário sobre o consumo popular; b) o relativo equilíbrio tecnológico entre os subsetores a e
b, que permite aos segmentos dedicados aos bens de consumo reagir à introdução de inovações
11
Marini define duas grandes situações em que se desenvolve a apropriação de mais-valia que ligadas aos bens suntuários, quando da convergência entre a disponibilidade de tecnologias e
gera a superexploração. A primeira, desenvolvida em Dialética da dependência (1973), quando de demanda interna; c) a luta dos trabalhadores dos países centrais, desde os anos 1840, para
os preços de produção se afirmam na economia mundial e deslocam as relações de troca do elevar sua renda e estabelecer sua cidadania, aproveitando as possibilidades estruturais do capi-
intercâmbio com base no valor, reduzindo os preços dos segmentos exportadores da periferia talismo dos países centrais. O resultado foi o impulsionamento do progresso tecnológico junto
para fixá-los segundo o nivelamento das taxas de lucro internacionais, o que beneficia os capi- aos segmentos de bens de consumo, que, ao atenderem a um mercado mais amplo, impulsio-
tais de maior composição técnica e menor taxa de lucro. A segunda, desenvolvida, sobretudo, naram as escalas tecnológicas e direcionaram para si o subsetor mais dinâmico do capital fixo.
em Mais-valia extraordinária e acumulação de capital (1979), quando a superexploração é de- Essa análise é confirmada pelas estatísticas fornecidas por Wallerstein sobre salários reais na
terminada a partir da mais-valia extraordinária e sua atuação entre os diversos setores produti- Inglaterra (Wallerstein, 1979, p. 111). Segundo o autor, o salário de um carpinteiro inglês medi-
vos, nivelando os preços no conjunto da economia de acordo com a produtividade. do em quilogramas de trigo cai de um índice de 143,5 em 1451-1500 para 94,5 em 1801-1850.
12
Marini segue rigorosamente o pensamento de Marx e desenvolve o grau de elaboração Apesar de a Revolução Industrial se desenvolver desde fins do século XVIII, é apenas a partir
da economia política marxista. Na obra deste autor, o progresso técnico não tem relação da segunda metade do século XIX, quando a abolição da lei dos cereais impulsiona a especia-
necessária com a mais-valia relativa. Ela não é o objetivo do capitalista que introduz a inovação lização na economia mundial e Índia e China se integram efetivamente à divisão internacional
tecnológica e só se estabelece quando o aumento da produtividade ou da intensidade do trabalho do trabalho, que os salários dos trabalhadores mudam a inflexão para baixo que vinham desen-
se generaliza no setor que produz bens de consumo, conduzindo a uma redução do valor da volvendo secularmente.
força de trabalho. O que impulsiona o capitalista a introduzir a tecnologia é a concorrência, Como veremos, em maior detalhe, a ruptura desse equilíbrio relativo interno entre as frações
e a obtenção de mais-valia extraordinária torna-se seu objetivo central por lhe permitir uma burguesas dos países centrais em conseqüência da própria concentração monopólica que resul-
posição favorável no jogo competitivo. ta do desenvolvimento tecnológico impulsiona a superexploração nessas regiões.
O predomínio da mais-valia relativa na regulação da força de trabalho dos países centrais não 13
As formas puras e absolutas devem ser tomadas apenas como indicativas pelo pensamento
foi, portanto, um resultado direto da inovação tecnológica. Foi uma construção histórica, e dialético, pois o seu compromisso com a história e o movimento impede que se aceite a plena
desde os anos 1970, tem sido questionada em favor da superexploração. Essa construção se realização desse absoluto.
198 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 199

do crescimento da produtividade, nesse âmbito, origina-se de inovações a) As inovações tecnológicas introduzidas nos segmentos dinâmicos,
tecnológicas externas – produzidas em outras empresas, setores ou regiões ao não desvalorizarem a força de trabalho, não ampliam a taxa global de
–, não podendo os primeiros compensar com a geração endógena de pro- mais-valia da formação social em questão e desenvolvem a contradição en-
gresso técnico o movimento de apropriação de mais-valia que sofrem.14 tre o aumento da composição orgânica do capital e a redução da massa de
As inovações atuam sobre o trabalho aplicado nas condições da capa- mais-valia no conjunto da economia, tornando a superexploração neces-
cidade instalada, depreciando a massa de valor e de mais-valia produzida sária para que a taxa de lucro global seja preservada. A redução da massa
nesses segmentos, e exigem a depreciação do valor da força de trabalho de mais-valia no conjunto da economia dependente é função da inovação
como mecanismo de compensação para reequilibrar as taxas de mais-valia tecnológica, baseada na tecnologia estrangeira. De um lado, ela deteriora
e de lucro. os termos de troca ao elevar a composição orgânica do capital, transferindo
É justamente a situação descrita que fundamenta o desenvolvimen- mais-valia para fora da região. De outro, altera internamente a repartição da
to dependente de uma região ou formação social; isto é, quando a maior massa de valia sem aumentá-la, ao gerar mais-valia extraordinária. Assim,
parte do aumento da produtividade de seus capitais decorre de inovações deprecia a massa de mais-valia dos ramos produtivos que produzem para o
tecnológicas produzidas pela acumulação capitalista de outros centros, ou conjunto da economia, gerando uma baixa na taxa geral de mais-valia e de
quando, na ausência de dinamismo tecnológico interno, suas mercadorias lucro que se conjuga com a fixação da mais-valia extraordinária nos setores
sofrem somente a depreciação oriunda da concorrência estabelecida por dinâmicos e dirigidos ao consumo não-popular.17
inovações introduzidas em outros pólos.15 b) A baixa competitividade produzida pelo regime de acumulação
Nessa região, estabelece-se uma separação entre a expansão da cir- fundado na superexploração do trabalho permite que as empresas estran-
culação da massa de mercadorias ligadas às inovações tecnológicas e a circu-
lação de mercadorias ligadas à reprodução da força de trabalho, que tende a em seus gastos, pois isso não elimina os seguintes fatos: que a grande massa de mercadorias
se restringir. Desse modo, as inovações passam a vincular-se à produção de introduzidas por inovações de processo e produto destina-se ao consumo suntuário e não des-
valoriza a força de trabalho; e que a circulação das mercadorias que compõem a reprodução
mercadorias que não se destinam à reprodução da força de trabalho (con-
da força de trabalho tende a se restringir, ainda que existam importantes contratendências à
sumo suntuário nos próprios países dependentes ou consumo produtivo sua concreção. Entre elas podemos citar, no âmbito estrito da superexploração, o aumento da
ou popular nos países centrais). Quando estas se associam à produção de intensidade e da jornada de trabalho e a elevação da qualificação da força de trabalho sem o
equivalente salarial, ou, de maneira mais independente, mas a ela vinculada, a ampliação do
mercadorias destinadas à reprodução da força de trabalho, o fazem margi- mercado de trabalho.
nalmente.16 Tal fato possui duas implicações: Em suas reflexões sobre os níveis de consumo dos trabalhadores superexplorados, Marini não
integrou, com toda a amplitude, as potencialidades da elevação da qualificação da força de
trabalho, que, combinadas ao aumento da intensidade de trabalho, podem estabelecer uma im-
14
Mais adiante, procuramos delimitar as condições específicas da concorrência capitalista em portante contratendência à redução do fundo de consumo dos trabalhadores. Em razão disso,
que um capital não consegue compensar, com o recurso à tecnologia, a apropriação de mais- o autor desenvolveu, por vezes, uma visão bastante cética sobre as possibilidades de reprodução
valia que sofre. da força de trabalho superexplorada, manifesta, por exemplo, em algumas passagens do texto
15
Na seção 3 fazemos uma demonstração detalhada desse ponto. citado. Mas isso em nada afeta a estrutura de sua obra e de seus argumentos. Entretanto, as con-
16
Parte da literatura crítica à obra de Marini tem buscado mensurar certas modificações no tratendências à restrição dos bens-salários, que se desenvolvem em certas conjunturas históri-
consumo popular, vinculadas à industrialização e ao avanço tecnológico introduzido pelo ca- cas, são provisórias. As tendências seculares do desenvolvimento do capitalismo apontam para
pital estrangeiro, para invalidar suas postulações. Em Las razones del neodesarrollismo (1978), o direcionamento da superexploração às suas formas mais graves, o que ganha plena concreção
Marini responde a parte dessas críticas. Todavia, é importante frisar que a esfera de realização com a globalização neoliberal.
da circulação é posterior à esfera da produção, e não anula suas determinações. Assim, pou- 17
Como vimos, só a desvalorização dos produtos que compõem o consumo do trabalhador
co importa que os trabalhadores passem a consumir novos produtos e realizem modificações aumenta a taxa de mais-valia.
200 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 201

geiras, estabelecidas em formações sociais em que esse processo se estru- Do século XVI até meados do século XIX, a internacionalização esteve
tura, mantenham altas taxas de remessas de capitais para suas regiões de sob a hegemonia dos capitais comercial e usurário e, posteriormente, a par-
origem, de onde parte e se organiza a circulação global e ampliada de seu tir do final do século XIX, sob a hegemonia do capital produtivo. A partir
capital, uma vez que sua liderança no processo local de acumulação é pou- daí, o desdobramento de D em D’ fundamenta-se no capital produtivo,20 e a
co ameaçada. Essas remessas, que são realizadas através de diversos meca- reprodução ampliada da economia mundial adquire uma base sustentada e
nismos (pagamentos de juros e serviços do financiamento externo, envio orgânica ao possuir um fundamento técnico (Dos Santos, 1978a). A depen-
de remessas de lucros, pagamentos de royalties, patentes e assistência téc- dência ganha, então, caráter sistemático e passa a se vincular às tendências
nica, prática de sobrepreços nas relações intrafirmas, pagamentos de fretes econômicas do desenvolvimento capitalista, em que o componente tecno-
ou simplesmente deslocamento de capitais para regiões onde as condições lógico torna-se a base da apropriação de mais-valia das sociedades depen-
macroeconômicas são mais seguras e atrativas), superam amplamente as dentes e da expansão das formas usurárias e comerciais de apropriação do
entradas de capitais realizadas, resultando em significativo processo de ex- valor produzido nessas sociedades.
propriação de capitais e divisas.18 Os países centrais passam a concentrar, em seu aparato produtivo, os
elementos tecnológicos que articulam o crescimento da composição técni-
2. Dependência e superexploração ca e orgânica do capital e que permitem o desdobramento internacional de
De acordo com Theotonio dos Santos (1978 e 1991), a dependência D em D’. Os países dependentes são objeto dessa articulação e oferecem os
representa uma situação em que a estrutura socioeconômica e o cresci- elementos materiais para a especialização do centro através de sua integra-
mento econômico de uma região são determinados, em sua maior parte, ção à divisão internacional do trabalho. Essa integração é constantemente
pelo desenvolvimento das relações comerciais, financeiras e tecnológicas redefinida pelo centro, segundo as necessidades do crescimento mundial
de outras regiões.19 A dependência é gerada e reproduzida a partir da in- da composição técnica e orgânica do capital.
ternacionalização capitalista e de sua tendência a concentrar e centralizar Diferentemente dos países centrais, onde a combinação entre a re-
os excedentes que resultam da acumulação mundial nos centros dinâmicos lativa homogeneização da base tecnológica e as pressões das massas para
do sistema mundial. partilhar parte dos superlucros obtidos no mercado mundial permitirá ao
subsetor IIa responder tecnologicamente às inovações introduzidas pelos
segmentos vinculados ao consumo suntuário, criando a base para um mer-
cado de massas e para a indústria de bens de capital que alavancarão de
18
Para os anos 1950-1960 e 1970, o texto clássico para a mensuração das relações entre as
remessas ao exterior e os fluxos de entrada do capital estrangeiro é Dependencia y relaciones forma orgânica a industrialização no centro,21 os países dependentes, ao se
Internacionales (1973), de Orlando Caputo e Roberto Pizarro. Em nossa tese de doutorado,
Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2003), estendemos essa meto-
dologia para os anos 1980, 1990 e a primeira década do século XXI. Os resultados, publicamos 20
Isso não quer dizer que, após a fundamentação da acumulação capitalista sobre o capital
em Pensamento latino-americano e sistema mundial (2006) e no ensaio para a Latinoamericana: produtivo, o capital usurário não possa vir a ter preponderância como forma de acumulação
enciclopédia de América Latina e Caribe (2006), intitulado “Pensamento social”. capitalista, particularmente durante os períodos depressivos da economia mundial que impul-
19
“A relação de interdependência entre duas ou mais economias, e entre estas e o comércio sionam a centralização de capitais. Entretanto, essa preponderância gira em torno dos limites
mundial, assume a forma de dependência quando alguns países (os dominantes) podem determinados pelos ciclos do capital produtivo e pela concentração da produção, que impulsio-
expandir-se e auto-impulsionarem-se enquanto os outros, os dependentes somente podem na a formação do capital financeiro e a apropriação de mais-valia.
fazê-lo como reflexo desta expansão que pode atuar de forma positiva e/ou negativamente 21
Para os países centrais, as tendências descritas por Marini se apresentam como dinâmicas até
sobre seu desenvolvimento imediato” (Dos Santos, 1978, p. 305). o final do boom do pós-guerra, quando o salto no processo de oligopolização dessas economias
202 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 203

integrarem no mercado mundial a partir de grandes desníveis tecnológi- mente, ele analisa o dinamismo tecnológico capitalista no interior da con-
cos, sofrem, inversamente, descapitalização, e não poderão responder da corrência e considera a produtividade do trabalho e a maior exploração do
mesma forma, recorrendo à superexploração do trabalho.22 trabalho como pólos associados, que expressam a presença da produção e
Portanto, como se observa, o enfoque de Marini articula os livros I, da apropriação de mais-valia na acumulação internacional capitalista, para
II e III de O capital e reposiciona amplamente os enfoques usuais sobre a depois verificar em que medida a elevação da composição técnica e orgâ-
maturidade da acumulação capitalista, os quais, ao priorizarem o livro I nica do capital resulta em maior exploração do trabalho e superexplora-
de Marx – que abstrai a concorrência, esfera real na qual se dá a acumu- ção ou, inversamente, no aumento da produtividade do trabalho para um
lação capitalista –, consideram a mais-valia relativa e a produtividade do capital particular. A obra de Marini descreve e associa teoricamente dois
trabalho como as formas normais dessa acumulação. Não se trata de uma movimentos, que não ocorrem separadamente: a) um, de elevação da com-
visão estagnacionista, como lhe atribuíram, entre outros, Cardoso e Serra posição técnica do capital e conseqüente desvalorização de mercadorias,
(1978),23 fundada na incompreensão da capacidade do capitalismo indus- que, direcionado à produção de bens de consumo necessários, é capaz de
trial e “pós-industrial” gerar a mais-valia relativa, mas sim de uma visão expandir a massa de mais-valia; b) outro, concorrencial, em que os dife-
dialética, capaz de levar em consideração os diversos níveis do processo de renciais da composição técnica fundamentam a apropriação da mais-valia
acumulação capitalista e o movimento do simples ao complexo. de uma determinada estrutura capitalista por outra. Quando o segundo
Na visão de Marini, o capitalismo surge na sua globalidade, isto é, movimento predomina sobre o primeiro, estão estabelecidas as condições
como um modo de produção e de circulação de mercadorias. Primeira- para a superexploração do trabalho.

parece vincular a maior parte das inovações ao consumo suntuário, tornando a pressão salarial 3. Para uma formalização do conceito de superexploração do trabalho
das grandes massas negativa para as taxas de mais-valia e de lucro do setor IIa, que passa a
sofrer forte desnível tecnológico. Parte das críticas feitas a Marini considera que sua análise é circulacio-
22
As diferenças entre a industrialização dos países centrais e dos países dependentes têm levado nista, afirmando que ele se dedica à apropriação da mais-valia e se esquece
os teóricos marxistas da dependência a designar o processo de industrialização dependente
como submetido a uma acumulação externa de capitais, em que o setor I, produtor de bens
do livro I de O capital, em que a expansão da mais-valia é realizada funda-
de capital, é em grande parte externo às formações dependentes (Dos Santos, 1978; Bambirra, mentalmente através do recurso à tecnologia, tornando a maior exploração
1978). Nesse sentido, Marini assinala: “A aquisição dos meios de produção no mercado mundial
do trabalho secundária diante do aumento da força produtiva do trabalho.
não é de per si uma característica da economia dependente. Nenhum país capitalista, nenhuma
economia em geral, vive hoje isolado. O que caracteriza a economia dependente é a forma agu- Em nossa opinião, o equívoco dessas críticas está em não situar ade-
da com que adquirem esta característica (...). Efetivamente, nos países capitalistas avançados, quadamente os níveis do modo de produção e do capital em geral, de um
a tendência geral do processo de industrialização foi a de produzir primeiro bens de consumo,
para desenvolver, depois, a produção de bens de capital (...). Entretanto, a expansão da indús- lado, e da concorrência e das formações sociais concretas, de outro, em que
tria produtora de bens de consumo obriga a desenvolver a produção de bens de capital para esta o primeiro nível se realiza, como planos de análise diferenciados e necessa-
indústria, dando lugar a uma industrialização que poderíamos chamar de orgânica” (Marini,
1979a, p. 45). riamente articulados do funcionamento da economia mundial capitalista.
23
O artigo de Fernando Henrique Cardoso e José Serra (1978) teve, principalmente no Brasil, Nesta seção, demonstraremos que a apropriação de mais-valia e a su-
importância na formação da opinião da comunidade acadêmica sobre a obra de Marini. Isso
deve ser atribuído não apenas à projeção desses autores no âmbito das ciências sociais brasi- perexploração são compatíveis com o modo de produção especificamente
leiras, mas também ao fato de essa crítica ter sido publicada pelo Cebrap, sem a correspon- capitalista e com o recurso à maior intensidade tecnológica pelo capital ex-
dente resposta de Marini, inversamente do ocorrido no México, onde a Revista Mexicana de
Sociologia, na edição especial de 1978, apresenta ambos os textos em uma seção dedicada à
propriado. Para isso, construiremos um modelo que nos permitirá visuali-
polêmica sobre a dependência. zar essa situação. Nosso modelo partirá da situação mais avançada descrita
204 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 205

por Marini, referente à ação da mais-valia extraordinária entre os setores Se elevarmos o nível de abstração, do capital particular para as estru-
produtivos. Por referir-se à situação mais avançada, incide sobre a forma- turas de produção capitalistas nacionais e regionais, poderemos concluir
ção dos preços de produção e o nivelamento da taxa de lucro, que supõem que a dependência é a condição do atraso interestatal e inter-regional que
a redução de preços, segundo a produtividade, no setor que recebe o capital determina a correlação entre a apropriação e a produção de mais-valia
migrante. que fundamenta a superexploração. Isso porque a dependência descreve
A superexploração acontece sempre que a apropriação de mais- uma situação na qual uma região se insere em um espaço de circulação de
valia de um capital por outro não puder ser compensada pela expansão mercadorias em que a maior parte do crescimento da composição técnica
de mais-valia (mediante a geração endógena de tecnologia) pelo capital do capital origina-se de inovações introduzidas ou geradas por capitais
expropriado, estabelecendo-se de maneira irrevogável a sua necessidade estrangeiros.24
para a sustentação das taxas de mais-valia e de lucro. A superexploração Vejamos isso mais em detalhe. Nas equações a seguir trabalhamos
torna-se a base do regime de acumulação quando a expansão do diferen- com as fórmulas de preço de produção de Marx e, para fins de simplifica-
cial de produtividade entre o capital A (que determina os valores médios ção, estamos o considerando equivalente ao preço de mercado.
das mercadorias em um espaço determinado da circulação) e o capital B A equação I descreve o preço de produção de um capital que produz
(expropriado) for suficiente para neutralizar o movimento de expansão da nas condições médias e que, portanto, não sofre perda de mais-valia para
mais-valia em B, ou para torná-la inferior à elevação da composição orgâ- a concorrência. A equação II descreve uma situação na qual a perda da
nica que a gera, derrubando sua taxa de lucro. massa de mais-valia de um determinado capital é função da variação da
Levando-se em consideração a dinâmica concorrencial da acumula- composição técnica média em relação à sua produtividade. A variação da
ção capitalista, se a variável-chave da apropriação e expansão de mais-valia produtividade externa em relação à interna está representada por x, e a
é a tecnologia, o ponto de equilíbrio para o capital B – em que a apro- perda de mais-valia, por y. A equação III indica como o aumento de produ-
priação sofrida neutraliza a expansão de mais-valia – é aquele em que o tividade, gerado pelo capital que determina os valores médios, é traduzido
aumento do diferencial de produtividade intercapitalista for equivalente ao em elevação de sua massa de mais-valia. O aumento da produtividade é
crescimento da produtividade em B. Portanto, uma vez que há aumento na expresso por z, e a massa de mais-valia acrescentada, por m’. A equação IV
composição técnica média dos capitais, a elevação da composição técnica indica a tentativa do capital expropriado de reagir à perda de mais-valia,
em B terá de ser equivalente a 50% do crescimento total da composição mas, ao mesmo tempo, assinala seu caráter parcial e limitado, uma vez que
técnica média, pois somente assim o aumento da produtividade em B se o aumento da produtividade z pode corresponder, no máximo, a 50% do
igualará ao diferencial de expansão de produtividade entre A e B. crescimento da produtividade externa.
Em resumo, a superexploração ocorreria sempre que o crescimento
da composição técnica em B não alcançasse a metade do aumento da com-
posição técnica do capital que determina as condições da concorrência,
ou quando, mesmo alcançando metade ou mais, não conseguisse gerar
uma massa de mais-valia suficiente para compensar o aumento da própria 24
A tecnologia estrangeira é gerada ou introduzida por capitais estrangeiros e não é, em seus
fundamentos, dominada pelos países dependentes. Em nosso modelo, deve ser entendida
composição orgânica do capital que a elevação de sua composição técnica
como um nível de produtividade que esses países não são capazes de introduzir por iniciativa
propiciaria. própria.
206 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 207

I) c + v + m = p x' = relação entre a produtividade externa acrescentada de sua variação


(λ) e a produtividade interna igual a 1 de determinado capital somada
II) (c + v + m) – y = p Donde: se p – y = p ; y = p – p = px - p
x x x x à sua variação endógena em determinado período de tempo (∆t)
pz = massa de valor, expressa sob a forma-preço, incrementada pela
III) (c + v + m) z = p + m’ Donde: se pz = p + m’; z = 1 + m’; m’ = pz – p elevação da produtividade interna
p m' = mais-valia criada com a variação da produtividade interna

IV) (c + v + m) z – y = pz Donde: (c + v + m) z – y = p + m’
x’ x A equação II corresponde à dimensão mais geral das condições de
progresso técnico que criam a superexploração. Aqui, a sua determinação
Sabendo-se que:
como compensação à perda de mais-valia é evidente e absoluta. A introdu-
ção de progresso técnico no espaço de circulação das mercadorias dos países
x=λ–w+1
dependentes, através do investimento direto, da importação de tecnologia
x’ = λ – z + 1
ou da mera concorrência internacional, cria uma depreciação no valor da
grande massa de trabalho desses países.25 Nessa equação, demonstra-se
Considerando que:
como o diferencial de produtividade entre estruturas de produção capita-
listas significa, para o capital desfavorecido, uma perda de mais-valia.
c = capital constante
Na equação IV, evidenciamos a compatibilidade da teoria da supe-
v = capital variável
rexploração com a geração endógena de progresso técnico pelas estrutu-
m = mais-valia criada por um determinado capital e que se reflete em
ras capitalistas desfavorecidas no processo de concorrência capitalista. Os
sua estrutura de preços p
capitais, que sofrem depreciação de sua mercadoria, somente conseguem
y = depreciação que incide sobre determinado capital
neutralizar a perda de mais-valia quando conseguem elevar sua composi-
p = massa de valor expressa sob a forma-preço
ção técnica do capital em pelo menos 50% do aumento ocorrido no capital
u = produtividade externa inicial em um momento (t1)
concorrente. A partir de qualquer exemplo numérico, verifica-se que m’ e
λ = produtividade externa inicial (u) acrescentada de sua variação em
y equivalem-se, resultando em anulação mútua da depreciação sofrida e da
determinando período de tempo (∆t)
w = produtividade interna inicial de determinado capital (= 1) em um
momento (t1) 25
Convém mencionar que a depreciação do valor ocorre principalmente nos ramos da pequena
z = produtividade interna inicial (= 1) somada à sua variação endógena e média burguesia, que concentram a grande massa de trabalho local. Estes não são capazes de
recorrer à importação de tecnologia e, quando o fazem, é com fraco dinamismo, que é incapaz
– sem o recurso à queda dos preços da força de trabalho abaixo de seu de impedir a depreciação, ficando sujeitos à mais-valia extraordinária. O trade-off entre a tec-
valor. Na equação IV, a variação endógena de z oscila entre 0% e 50% nologia local e a estrangeira exige alta concentração de poupança local para impulsionar essa
importação e restringe amplamente o seu acesso aos setores majoritários e menos dinâmicos da
da variação da produtividade externa.
burguesia. A introdução da tecnologia estrangeira, ao ser dirigida pela concorrência e acumu-
x = relação entre a produtividade externa acrescentada de sua variação lação capitalista – muitas vezes através do auxílio da intervenção do Estado, como nas políticas
(λ) e a produtividade interna igual a 1 de determinado capital de substituição de importações –, resulta em transferências de mais-valia intra e intersetoriais,
com as implicações assinaladas.
208 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 209

mais-valia gerada pelo capital em questão. Tal situação configura o limite utilizando-se a equação II, teríamos que y = 500, o que representa a perda
técnico a partir do qual atua a superexploração e a articula organicamente líquida de mais-valia do capital B, já que essa não seria compensada por
com a situação de dependência.26 Entretanto, mesmo na equação IV, cabe nenhuma geração interna de mais-valia (m’), pois a variação endógena em
assinalar que, para efeitos de simplificação, estamos desprezando a eleva- z equivale a zero e torna z = w.
ção da composição orgânica do capital propiciada pelo aumento da produ- Em uma segunda situação, um capital A e um capital B partem também
tividade interna do capital. Quando isso ocorre, parte de m’ transforma-se das condições médias de produtividade, em um momento (t1). Entretanto,
em capital constante, a taxa de lucro é reduzida e a superexploração do supõe-se que, uma vez decorrido um período (∆t), o capital B gere uma
trabalho estende-se para além do limite técnico assinalado. dinâmica tecnológica própria, equivalente a 50% do aumento da produtivi-
Façamos, todavia, um exercício numérico a título de exemplificação dade do capital A, que, por sua vez, aumenta a sua produtividade em 100%,
das equações II e IV: em exata equivalência à variação das condições médias de produtividade
Em uma primeira situação, um capital A e um capital B partem das que determinam o valor. Tomando-se os mesmos valores para c, v, m, p,
condições médias de produtividade, em um momento (t1). Supõe-se que, teríamos que: x = 2; λ = 2; z = 1 + 50% = 1,5; x' = 1,5. Assim, o capital B
uma vez decorrido um período (∆t), o capital B não gere qualquer dinâ- geraria internamente um acréscimo em mais-valia (m') através da elevação
mica tecnológica e apenas mantenha a sua produtividade anterior; e que de sua produtividade, de tal forma que m' = 500 – aceitando-se a suposição
o capital A aumente a sua produtividade em 100%, em exata equivalência de que não haveria alteração do valor em c. Todavia, ao situar-se abaixo das
com a variação das condições médias de produtividade que determinam condições médias de produção do valor, o capital B sofreria uma perda de
o valor. Dessa forma: w = u = 1. Sabendo-se que c = 500; v = 200; m = 300; mais-valia (y), calculada na equação IV, em que y = 500 = m’, neutralizando
p = 1.000, teríamos ainda que: λ = 1 + 100% = 2; x = 2. Portanto, nesse caso, a geração do acréscimo de mais-valia.
Se admitirmos que ocorre um aumento da composição orgânica do
capital de B, nessa segunda situação, para produzir-se m’, expresso em uma
26
É preciso considerar que o elemento técnico não é o único determinante da superexploração
elevação do valor de c, parte de m’ deverá converter-se em c, tornando y >
do trabalho. Entre os diversos outros fatores, destacamos os elementos financeiros e a expa-
triação de capitais sob a forma de remessas de lucros, que se fundam na internacionalização m’. Tal resultado, como mencionamos, ativaria as condições de atuação da
dos centros de decisão da economia dependente. Todavia, a situação técnica é a que, em última superexploração do trabalho.
instância, fundamenta a evolução dos diversos aspectos que atuarão no desenvolvimento da
superexploração do trabalho. Quanto mais as tendências absolutas do desenvolvimento dependen-
Essa maneira de abordar a superexploração, situando inicialmente seus determinantes tecno- te se afirmarem e os capitais de uma determinada região tenderem a se
lógicos no âmbito da acumulação capitalista para depois identificar seus aspectos financeiros
e socioeconômicos, foi o caminho metodologicamente seguido por Marini em Dialética da subordinar de maneira total às estruturas monopolísticas do capitalismo
dependência: internacional, mais a geração endógena de progresso técnico dos capitais
“Não examinaremos aqui os efeitos próprios às distintas formas que reveste a absorção tecno-
lógica e que vão desde a doação até a inversão direta do capital estrangeiro, já que do ponto dependentes estará próxima a 0% do crescimento da produtividade intro-
de vista que orienta nossa análise, isso não tem maior importância. Ocupar-nos-emos tão- duzida pelos capitais que determinam os valores médios das mercadorias,
somente do caráter desta tecnologia e de seu impacto sobre a ampliação do mercado” (Marini,
1973, p. 70).
reduzindo a equação IV à equação II.27 Esse foi o ponto mais acentuado
A importância do componente tecnológico, na apropriação do valor produzido nas sociedades
dependentes e no impulsionamento das formas comerciais e usurárias vinculadas ao capital
financeiro, será tanto maior quanto maior for a presença da inovação tecnológica na geração do
crescimento econômico dessas formações sociais e da economia mundial. 27
Ainda que esse limite nunca seja atingido.
210 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 211

por Marini, por representar as tendências de longo prazo da geração de São totalmente incorretas as críticas a Marini, que tomam como su-
progresso técnico nos países dependentes. posto a necessidade de uma estagnação tecnológica do capitalismo depen-
No post-scriptum que faz ao seu artigo “Dialética da dependência: dente para que a superexploração venha a ocorrer. Essas críticas refletem
a economía exportadora” (1972), que integra a Dialética da dependên- em grande parte razões políticas, mas também a dificuldade em perceber os
cia (1973), Marini alerta o leitor para o nível de abstração do seu ensaio. elementos centrais do conceito formulado por Marini. O conceito de supe-
Visando ao desenho das leis fundamentais do capitalismo dependente, al- rexploração do trabalho é dos mais complexos dentro da economia política
guns traços foram feitos a grossas pinceladas, sem que fossem examinadas marxista. A sua compreensão como parte da teoria do valor requer a arti-
situações particulares que introduzissem um certo grau de relativização ao culação dos níveis da produção e da circulação para podermos identificar
estudo. Todavia, o autor indica o caráter tendencial dessas leis: os efeitos produzidos pela concorrência na economia global capitalista e
em seus diversos rincões. Procuramos evidenciar a compatibilidade entre a
Aproveitarei, pois, este post-scriptum para esclarecer algumas questões e teoria da superexploração do trabalho e a teoria do valor, demonstrando-a
desfazer certos equívocos que o texto tem suscitado. Efetivamente, apesar matematicamente. Para isso, partimos das equações dos preços de produ-
do cuidado em matizar as afirmações mais contundentes, sua extensão limi- ção, pois constituem a instância analítica que permite a comunicação entre
tada levou a que as tendências analisadas se pintassem em grossas linhas, o os níveis da produção e da concorrência, e inserimos nelas a formação da
que lhes conferiu, às vezes, um perfil muito extremo. Por outra parte, o nível mais-valia extraordinária entre os ramos produtivos, descrevendo as con-
mesmo de abstração do ensaio não propiciava o exame de situações particu- dições maduras do desenvolvimento da superexploração. Ao fazermos isso,
lares, que permitissem introduzir no estudo um certo grau de relativização. respeitamos a lógica interna do pensamento de Marini e suas observações
Sem pretender justificar-me com isso, os inconvenientes mencionados são sobre as tendências mais dinâmicas da acumulação capitalista.28
os mesmo a que alude Marx, quando adverte (...) teoricamente, que se parte
do suposto de as leis de produção capitalista se desenvolvem em estado de
28
“Convém ter presente que, ao transferir os aumentos de produtividade aos preços em menor
medida que I e IIa, o subsetor IIb estabelece com os demais uma relação que implica uma
pureza. Na realidade, as coisas ocorrem sempre aproximadamente; mas a transferência intersetorial de mais-valia, via preços, que vai mais além do que corresponderia
aproximação é tanto maior quanto mais desenvolvida se faz a produção ca- estritamente aos mecanismos de nivelamento da taxa de lucro e que os viola; em outros termos,
configura-se uma situação similar a que alude à noção de intercâmbio desigual na economia
pitalista (...). (Marini, 1973, p. 82) internacional. Isso reduz a massa de lucro que toca a I e IIa (ainda que os ramos de I que pro-
duzam fundamentalmente para IIb possam ressarcir-se, recorrendo também ao lucro extraor-
4. O balanço do conceito de superexploração dinário) e pressiona para baixo sua taxa de lucro. Em outras palavras: o subsetor IIb exerce um
efeito depressivo sobre a taxa de geral de lucro, a qual é rigorosamente a contrapartida da taxa
Procuramos demonstrar que a teoria da superexploração do trabalho, de lucro que nele se verifica.
elaborada por Ruy Mauro Marini, não apenas é compatível, mas exige, para Observemos, finalmente, que a especificidade de IIb, quanto à produção de mais-valia extra-
ordinária e sua conversão em lucro extraordinário, acentua-se necessariamente ali onde rege a
o seu pleno desenvolvimento, a introdução do progresso técnico e do dina- superexploração do trabalho, configurando uma situação em que se estabelecem salários baixos
mismo tecnológico nas sociedades capitalistas. A vinculação entre progres- e lucros elevados. Isso implica que, ao tempo que se apresenta com pouco dinamismo, a esfera
baixa da circulação, criada pelos primeiros, tende a inflar-se a esfera alta, gerada pelos segun-
so técnico e superexploração do trabalho está demonstrada, não apenas
dos. Em tais circunstâncias, entende-se perfeitamente que o subsetor IIb tenda constantemente
em Dialética da dependência (1973), mas em um conjunto de artigos que ao crescimento desproporcionado, em relação aos demais, assim como faça mais acentuada, no
compõem parte da obra de Marini. Por isso, recuperamos os elementos plano do mercado, a subordinação do setor I em relação ao subsetor IIb, mais que ao subsetor IIa.
Como em qualquer outro campo observado, também aqui a economia dependente, baseada na
centrais de sua reflexão para sistematizar sua visão sobre a relação entre superexploração do trabalho, sofre de maneira ampliada as leis gerais do regime capitalista de
superexploração e capitalismo dependente. produção” (Marini, 1979, p. 29).
212 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 213

A formalização matemática, em nosso entender, é fundamental para presarial, é chave nesse processo de globalização da superexploração. Elas
desenvolver a teoria da superexploração. Marx também formalizou os prin- reorganizam a divisão internacional do trabalho em escala mundial e criam
cipais conceitos de sua economia política como os de mais-valia, mais-valia novas unidades de produção que concentram a maior parte das inovações
absoluta, mais-valia relativa, mais-valia extraordinária, valor de mercado, tecnológicas e produzem para o mercado mundial, tornando obsoletas as
preços de produção, taxa de lucro, tendência decrescente da taxa de lucro empresas estritamente nacionais e pequenas e médias dos países centrais,
etc. Sua utilidade é vincular os níveis mais abstratos do pensamento aos que empregam a maior parte da força de trabalho dessas regiões e passam
mais concretos e delimitar as condições específicas em que um conceito se a sofrer perdas de mais-valia em função do redesenho das transnacionais.
torna um lugar real de existência. De um lado, as empresas globais monopolizam a ciência e o conhecimento
Esperamos, ao revisitar o conceito de superexploração, contribuir para simbólico – que se transformaram desde os anos 1970 na principal força
esclarecer os equívocos e mal-entendidos sobre sua gênese. Retomar sua produtiva – em suas unidades localizadas nos países centrais e produzem
força analítica nos parece fundamental. Nos anos 1960 e 1970, Ruy Mauro mercadorias de alto valor agregado para o mercado mundial; de outro, des-
Marini, Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra e Florestan Fernandes se centralizam a tecnologia e o conhecimento incorporado para elevar a in-
esforçaram em mostrar o caráter superexplorador do capitalismo latino- tensidade tecnológica do trabalho superexplorado da periferia e semiperi-
americano para assinalar a inviabilidade de um caminho de reformas so- feria, dirigindo-os à elaboração de partes e componentes de baixo e médio
cioeconômicas em seu interior que resolvesse os problemas da pobreza e valor agregado, também para a economia mundial. Com isso, deslocam
miséria das grandes massas e proporcionasse consistência a uma democra- a concorrência de bases nacionais para globais, bem como os padrões de
cia burguesa. O capitalismo latino-americano, afirmavam os autores, pro- competição empresarial.
duz desenvolvimento e subdesenvolvimento em sua expansão e é politica- A formalização matemática da superexploração em condições de de-
mente instável. A erradicação da pobreza, a construção de um padrão de pendência ajuda a compreender a sua extensão aos países centrais, na medi-
crescimento socialmente equilibrado e de um modelo político estável são da em que situa como componente-chave para a sua ativação a concentração
conquistas a serem alcançadas na transição para formas de desenvolvimen- da inovação tecnológica em monopólios. A economia mundial contempo-
to socialistas. Enquanto as perdas de mais-valia do capitalismo dependente rânea, ao integrar crescentemente os mercados nacionais no mercado inter-
impediam que a ação dos trabalhadores derrogasse a superexploração sem nacional e converter as empresas globais em seu centro de dinamismo tecno-
liquidar esse sistema, no capitalismo dos países centrais, a acumulação da lógico, inscreve-se dentro dos padrões de geração de superexploração.
mais-valia apropriada criava os marcos estruturais para impulsionar a ação Como afirma Marini (1995), a extensão da superexploração aos países
dos trabalhadores em busca da generalização da mais-valia relativa. centrais unifica os regimes de reprodução da força de trabalho e as lutas
Hoje é fundamental aprofundar o domínio teórico do conceito inau- mundiais da classe trabalhadora. Elas se materializam na formação de um
gurado por esses autores, pois a superexploração não apenas se aprofunda sujeito global capaz de articular – desde periferias, semiperiferias e centros
na América Latina, mas estende-se aos próprios países centrais do sistema – as lutas nacionais e regionais e reivindicar no interesse das grandes maio-
mundial capitalista. Essa extensão foi percebida e denunciada por Marini, rias temáticas de alcance universal: a erradicação da pobreza e da exclusão,
que começou a teorizá-la em seus últimos escritos, como Proceso y tenden- a democratização radical do mundo contemporâneo, a sustentabilidade
cias de la globalización capitalista (1995). A emergência das chamadas em- planetária, a paz e o fim do imperialismo, e a construção de uma civilização
presas globais, como uma etapa mais avançada da transnacionalização em- global diversificada e solidária.
214 ■ A América Latina e os desafios da globalização A superexploração do trabalho e a economia política da dependência ■ 215

A constituição desse sujeito é um processo que caminha em meio a MARINI, Ruy Mauro. América Latina: dependência e integração. São Pau-
um passado de chauvinismos e estranhamentos. A consciência das leis de lo: Brasil Urgente, 1992.
acumulação que enfrentamos na conjuntura contemporânea do capitalis- ________. Dialéctica de la dependencia. México: Era, 1973.
mo é um importante instrumento para superá-los. E, para isso, a economia ________. El ciclo del capital en la economía dependiente. In: ÚRSULA,
política da dependência joga um papel crucial, projetando-se como parte Oswald. Mercado y dependencia. México: Nueva Imagen, 1979a. p. 37-
indispensável da economia política mundial. 55.
________. El reformismo y la contra-revolución: estudios sobre Chile. Méxi-
Bibliografia co: Era, 1976.
BAMBIRRA, Vânia. El capitalismo dependiente latinoamericano. México: ________. Estado y crisis en Brasil. Cuadernos Políticos, México: Era, n. 13,
Siglo Veintiuno, 1974. p. 76-84, 1977a.
BRESSER, Luiz Carlos. Interpretações sobre o Brasil. In: LOUREIRO, Ma- ________. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo. Cua-
ria Rita. 50 anos de ciência econômica no Brasil: pensamento, institui- dernos Políticos, México: Era, n. 12, p. 21-38, 1977b.
ções, depoimentos. Petrópolis: Vozes/Fipe, 1997. p. 17-69. ________. Las razones del neodesarrollismo. Respuesta a Fernando Hen-
CARDOSO, Fernando Henrique. As idéias e seu lugar. 2. ed. Petrópolis: rique Cardoso y José Serra. Revista Mexicana de Sociología, México:
Vozes, 1993. Unam, ano XL, número extraordinario, p. 57-105, 1978.
CARDOSO, Fernando Henrique; FALLETO, Enzo. Dependência e desen- ________. Memorial. 1990. (mimeo)
volvimento na América Latina. Ensaio de interpretação sociológica. 7. ________. Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital. Cuadernos Po-
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. líticos, México: Era, n. 20, p. 18-39, 1979b.
CARDOSO, Fernando Henrique; SERRA, José. Las desventuras de la dia- ________. Proceso y tendencias de la globalización capitalista. In: MARINI,
léctica de la dependencia. Revista Mexicana de Sociología, México: R.; MILLÁN, M. (Coord.). La teoría social latinoamericana. México:
Unam, ano XL, número extraordinario, p. 9-55, 1978. El Caballito, 1995. t. 4. p. 49-69.
CAPUTO, O.; PIZARRO, R. Dependencia y relaciones internacionales. Cos- ________. Sobre el nuevo padrón de reproducción del capital en Chile.
ta Rica: Educa, 1973. Cuadernos de Cidamo, n. 7, 1982.
FEIJÓO, J. Valenzuela. Superexplotación y dependencia. Investigación Eco- ________. Subdesarrollo y revolución. 12. ed. México: Siglo Veintiuno,
nómica, México: Unam, n. 221, p. 105-127, 1997. 1985.
KAY, Cristóbal. Latin American theories of development and underdevelop- MARINI, R.; MILLÁN, M. (Coord.). La teoría social latinoamericana. Mé-
ment. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1989. xico: El Caballito, 1994a e 1995a. 4t.
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. Petrópolis: Vozes, ________. La teoría social latinoamericana: textos escogidos. México: El Ca-
1984. ballito, 1994b e 1995b. 3t.
________. O pensamento econômico brasileiro de 60 a 80: os anos rebeldes. MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na
In: LOUREIRO, Maria Rita (Org.). 50 anos de ciência econômica no América Latina. Tese (Doutorado). Departamento de Sociologia. São
Brasil: pensamento, instituições, depoimentos. Petrópolis: Vozes/Fipe, Paulo: USP, 2003.
1997. p. 107-157. ________. Neoliberalismo y superexplotación: los nuevos patrones de re-
216 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 217

produccón de la fuerza de trabajo en America Latina. In: LOPEZ, M.


A. Guadalupe Acevedo; VALENCIA, Adrián Sotelo (Org.). Reestrutu-
ración económica y desarrollo en America Latina: el debate latinoame- A abertura revisitada: crítica teórica e empírica
ricano. Cidade do México: Siglo XXI, 2004. v. 2, p. 206-225. do livre-comércio.
________. O pensamento latino-americano e o sistema mundial. In: CLACSO Atualidade do pensamento de Ruy Mauro Marini
(Org.). Crítica y teoría en el pensamiento social latinoamericano. 1. ed. sobre a mais-valia absoluta
Buenos Aires: Clacso, 2006a, p. 153-216.
________. Pensamento social. In: SADER, Emir; MARTINS, Carlos Eduar- Pierre Salama*
do; JIINKINGS, Ivana; NOBILE, Rodrigo (Org.). Latinoamericana. 1.
ed. São Paulo: Boitempo, 2006b, p. 925-934.
________. Theotonio dos Santos: introdução à vida e obra de um intelectual Um dos traços característicos da evolução das rendas na América
planetário. In: SEGRERA, Francisco López. Los retos de la globaliza- Latina nestes últimos 15 anos reside no desatrelamento dos salários reais
ción – ensayos en homenaje a Theotonio dos Santos. Caracas: Unesco, em relação à produtividade do trabalho. Ainda que a produtividade do tra-
1998. t. I. p. 33-89. balho retome um ritmo sustentado, fora dos períodos de crise, os salários
MARTINS, Carlos Eduardo; VALENCIA, Adrián Sotelo. La teoría de la de- testemunham um crescimento fraco. Portanto, a parte das rendas do traba-
pendencia y el pensamiento económico brasileño. Aportes, México, lho no valor agregado diminui fortemente, a parte dos lucros aumenta e os
ano III, n. 7, p. 73-93, 1998. lucros financeiros apresentam uma progressão espetacular (ver Gráfico 1).
OURIQUES, Nildo. La teoría marxista de la dependencia: una história crí- Outro traço diz respeito à heterogeneidade crescente dos salários. As de-
tica. Tese (Doutorado). Facultad de Economía de la Universidad Na- sigualdades entre os assalariados são acentuadas, os salários menores têm
cional Autónoma de México. México: Unam, 1996. a tendência de diminuir, os salários mais elevados, a crescer, em um ritmo
SANTOS, Theotonio dos. A teoria da dependência: um balanço histórico e próximo daquele da produtividade do trabalho. No entanto, no conjunto,
teórico. In: SEGRERA, Francisco López. Los retos de la globalización as desigualdades, medidas globalmente pelo coeficiente de Gini,1 são mais
– ensayos en homenaje a Theotonio dos Santos. Caracas: Unesco, 1998.
t. I, p. 93-151.
________. Democracia e socialismo no capitalismo dependente. Petrópolis: * Economista egípcio, nascido em 1943 e naturalizado francês. Professor da Universidade de
Paris XIII, dirige a revista Thiers Monde e deu grande impulso a Critiques d`Economie Politique.
Vozes, 1991. Possui obra de grande prestígio e difusão internacional e foi distinguido em 2006 como doutor
________. Imperialismo y dependencia. México: Era, 1978. honoris causa pela Universidade de Guadalajara.
1
O coeficiente de Gini é um indicador das desigualdades: coloca-se em relação às porcentagens
SEGRERA, Francisco López (Org.). Los retos de la globalización – ensayos da população e às porcentagens da renda distribuída. População e rendas, em porcentagens,
en homenaje a Theotonio dos Santos. Caracas: Unesco, 1998. 2t. formam os dois lados de um quadro. Se, por exemplo, a 5% da população cabem 5% da ren-
da, se a 10% cabem 10% etc., obtém-se uma distribuição das rendas absolutamente igual. Ela
corresponde à diagonal do quadro. A distribuição das rendas é, na realidade, mais ou menos
desigual de acordo com o país: a 10% da população cabem, por exemplo, 5% das rendas; 20%
recebem 9% etc., por exemplo. Obtém-se uma linha que reflete essa distribuição das rendas. Ela
carrega o nome de Lorentz. A superfície que existe entre essa linha e a diagonal, relacionada
à metade da superfície do quadro, constitui um indicador das desigualdades, chamado Gini.
218 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 219

ou menos estáveis nesse período. Elas permanecem em um nível extrema- É preciso lembrar que uma das teses desenvolvidas por Ruy Mauro
mente elevado. No entanto, a curva de Lorentz muda: a relativa estabilidade Marini na Dialética da dependência dizia respeito à especificidade dos mo-
do coeficiente de Gini mascara um processo de bipolarização das rendas. dos de exploração da força de trabalho na América Latina e, mais particu-
As camadas médias “baixas e médias” diminuem na distribuição das ren- larmente, nas grandes economias semi-industrializadas, “subimperialistas”,
das, assim como as camadas pobres e modestas; as camadas “altas” e as como o Brasil. Em vez de uma evolução para modos de exploração que
camadas médias “altas” aumentam o peso na distribuição das rendas. privilegiam a mais-valia relativa,2 como aquela que se pôde observar nos
países ditos desenvolvidos, assistir-se-á a uma persistência dos modos de
Gráfico 1 - Evolução da estrutura do valor acrescentado exploração “antigos”: a mais-valia absoluta constituindo o modo de explo-
das empresas não financeiras no Brasil ração por excelência nas economias semi-industrializadas. Essa persistência
desses modos de exploração não seria, assim, isenta de conseqüências na
radicalização dos trabalhadores e no seu grau de conscientização. O nosso
artigo estará centrado nessa questão.
O mundo mudou: ele é mais globalizado do que era antes. A globa-
lização comercial avança a passos a largos, a globalização financeira está
quase totalmente completada na América Latina. A distribuição das ren-

2
A intensificação do trabalho se refere aos mecanismos de mais-valia absoluta “moderna”, em
oposição à mais-valia absoluta arcaica ligada ao prolongamento do tempo de trabalho. Em um
nível conceitual, ela é distinta da mais-valia relativa, ainda que as duas se traduzam estatistica-
mente, ou diretamente, ou indiretamente, por uma variação da produtividade do trabalho. O
campo da primeira é microeconômico e significa que, em um mesmo tempo de trabalho, mais
bens e mais valor são produzidos quando a intensificação aumenta, ou por crescimento das
cadências, ou por uma organização do trabalho que reduz o tempo morto, ou por uma flexi-
bilidade aumentada da força de trabalho quando os equipamentos se prestam a isso. O campo
da segunda – a mais-valia relativa – é macroeconômico, ainda que o seu local de aplicação seja
Tal como se pode observar, a parte dos impostos aumenta, a parte dos a empresa. Em uma mesma jornada de trabalho, produzem-se mais bens graças à introdução
juros cresce sensivelmente desde 1997 e, sobretudo, a parte dos salários de novos equipamentos. Portanto, a produtividade do trabalho aumenta. O valor de cada um
diretos e indiretos cai consideravelmente, já que passa de 60,3%, em 1955, desses bens baixa e o valor da cesta de bens necessários à reprodução da força de trabalho é
reduzido. Esse mecanismo de mais-valia relativa é difícil de distinguir da mais-valia absoluta
a 43,2%, em 2002 (fonte: M. Bruno, 1995). “moderna” quando nos limitamos à leitura da evolução da produtividade do trabalho, pois elas
se traduzem ambas por uma melhora da produtividade do trabalho. A distinção é importante
para compreender o uso da força de trabalho: quando a intensificação aumenta, ela produz um
cansaço prematuro, físico, porém, hoje, cada vez mais psíquico, sentido como uma degradação
das condições de trabalho, o que não acontece necessariamente quando o grau de tecnicidade
cresce. No entanto, sem entrar nessa discussão conceitual, a literatura recente demonstra que
Quanto mais a curva de Lorentz se aproxima da diagonal, menos a superfície ocupada entre a ligação entre intensidade e produtividade só é pertinente se o trabalho é decomposto em
essa curva e a diagonal é grande e mais o Gini é elevado, e vice-versa. Compreende-se também operações relativamente homogêneas: nesse caso, a ligação entre produção e esforço é imediata.
que a superfície ocupada entre essa curva e a diagonal pode ser produzida por duas curvas de Quando a organização do trabalho se torna mais complexa, quando os objetivos coletivos são
Lorentz diferentes na sua curvatura. Isso significa que um mesmo grau de desigualdade pode definidos, a ligação entre intensidade e produtividade é mais diluída, pois a medida de intensi-
significar situações diferentes e que é preciso então recorrer a outros indicadores mais precisos. dade individual é difícil de se realizar.
220 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 221

das evolui para uma bipolarização na América Latina, o desatrelamento às regras do mercado, deveria conduzir a uma convergência das economias
do crescimento dos salários em relação ao crescimento da produtividade, pouco desenvolvidas e daquelas que o são mais, isto é, com as economias
as desigualdades mais acentuadas entre os salários traduzem uma com- desenvolvidas. Em outras palavras, as economias “atrasadas” deveriam re-
binação original de formas de exploração. A mais-valia absoluta de tipo cuperar aquelas que existiam antes... Em termos de salários, a tradução des-
arcaico (prolongamento da jornada de trabalho) diz respeito sobretudo aos sas evoluções deveria conduzir a uma diminuição das desigualdades, gra-
trabalhadores assalariados que ocupam empregos informais e a um cer- ças a uma especialização relacionada às dotações relativas dos fatores, a um
to número de trabalhadores “por conta própria”.3 A mais-valia absoluta de aumento dos salários e dos empregos. Os modos de colocação no trabalho
tipo moderno, mas também às vezes arcaica, caracteriza o emprego de uma deveriam, portanto, evoluir e sua avaliação deveria se aproximar daquela
grande parte dos assalariados, não qualificados e qualificados, que ocupam dominante nos países ditos desenvolvidos. Nada disso. É por essa razão
os empregos formais. A mais-valia relativa não está, contudo, ausente. Ela que fazemos uma crítica dessas teses que têm freqüentemente o atrativo da
diz respeito aos assalariados, aí incluídos aqueles que ocupam os empregos evidência. A abertura, compreendida como o estrito respeito às regras do
mais qualificados, em razão do crescimento da produtividade do trabalho mercado, conduz a uma evolução do crescimento e das rendas que não tem
no setor de bens de consumo, ligado à introdução de equipamentos mais nada a ver com as premonições dessas teses, mas explica em parte a per-
eficazes. A especificidade das economias latino-americanas em relação às sistência de formas de dominação fundadas principalmente na mais-valia
economias ditas desenvolvidas, mas também em relação a certas economias absoluta. Mas há abertura e abertura, aquela dos livre-cambistas e aquela
emergentes asiáticas,4 reside na articulação entre os três modos de extração dos intervencionistas ditos estruturalistas. A segunda poderia conduzir a
da mais-valia: absoluta, arcaica e moderna, e enfim relativa, privilegiando uma modificação dos modos de submissão do trabalho ao capital e a uma
os dois primeiros. Essa especificidade está ligada à maneira como a globali- melhora do nível de vida; ela é rejeitada pelas instituições internacionais,
zação se realizou nestes 15 últimos anos: selvagem na América Latina, mais mais preocupadas com os interesses dos credores estrangeiros do que com
controlada na Ásia. uma distribuição das rendas mais equânime.
O objetivo deste artigo não é discutir a lógica interna da tese de Marini
sobre as formas de exploração, nem retomar a discussão sobre as relações Duas ou três coisinhas antes de dizer muitas bobagens...
possíveis entre radicalização e formas de exploração. A nossa abordagem é 1. O crescimento do comércio exterior foi em média muito mais ele-
essencialmente teórica, centrada nas teses que tratam dos efeitos benéficos vado do que o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nestes últimos
da abertura comercial em termos de crescimento, de distribuição de rendas 30 anos (ver Gráfico 1 anexo). A idéia de estabelecer uma relação de cau-
e de salários. Na literatura teórica, considera-se, de fato, muito freqüente- salidade entre o crescimento de um e de outro vem naturalmente à mente.
mente, que a globalização comercial, compreendida como a adesão estrita Indo mais longe, muitos economistas consideram que o único meio de fazer
crescer a taxa de crescimento do PIB é deixar o mercado operar livremente
3
Em toda lógica, não se deveria fazer referência a esses conceitos para essa categoria de traba- uma alocação ótima de recursos de cada país graças à livre-troca. Alguns
lhadores, já que eles não são assalariados e não entram em relação salarial. No entanto, na me-
dida em que, para a maioria deles, têm empregos de estrita sobrevivência e que, por razões que economistas5 consideram (ainda...) que a abertura das economias, seguida
não podemos analisar aqui, são “por sua própria conta”, na falta de poderem ser assalariados, da adoção de uma política de livre-comércio que reconhece as virtudes do
sua sobrevivência passa pelo prolongamento da duração do trabalho, que lhes é imposto pelo
sistema no seu conjunto, em vez de sê-lo por um empresário.
4
Mais particularmente, as economias ditas da primeira geração, a saber, os quatro “dragões”: 5
Ver principalmente o relatório do Banco Mundial (2004), páginas 31 e 32, em que se faz refe-
Coréia, Taiwan, Cingapura e Hong Kong. rência a essa abordagem.
222 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 223

mercado, deveria conduzir os países grandemente dotados de trabalho não um lado, são vantagens de custos absolutos de tipo smithiano,7 e, por outro,
qualificado e de pouco capital a se especializarem na produção e na expor- somente para melhor criar para si novas “vantagens” mais úteis. O preço da
tação de produtos manufaturados labor using. sua mão-de-obra lhes permitiu, assim, obter vantagens absolutas em uma
A abertura de uma economia não significa necessariamente o re- quantidade restrita de produtos, quando existia um espectro de técnicas
conhecimento das virtudes das leis do mercado. Ela é freqüentemente o que permitiam utilizar combinações produtivas pouco intensas de capital,
resultado de uma política deliberada do Estado: os subsídios para exporta- substituíveis às combinações intensivas de capital e que permitiam uma ren-
ção, as políticas de taxas de juros seletivas, o protecionismo temporário e tabilidade superior. E foi a partir dessa vantagem que elas puderam, graças
seletivo, a manifestação de uma política industrial ativa têm caracterizado a uma política industrial ativa, flexibilizar o seu aparelho de produção para
os modos e as seqüências da abertura dos principais países asiáticos nestes a produção de produtos que exigiam mais capital, trabalho qualificado, que
últimos 40 anos. Sabe-se também que a abertura das economias produz apresentava uma elasticidade tornada maior. Quer seja no caso da Coréia,
sobretudo especializações intra-setoriais, bem distantes das especializações de Taiwan, do Brasil e já da China, pode-se observar esse movimento para
intersetoriais, fundadas nas dotações relativas de fatores de produção. Os uma tecnicidade aumentada, e isso apesar do custo ainda pequeno da sua
países que permanecem especializados em produtos primários, agrícolas e mão-de-obra. A verdadeira “ameaça” para os países desenvolvidos, para
minerais são hoje marginalizados no comércio internacional, a menos que um período mais ou menos próximo, não é que aqueles países se especia-
eles se voltem para a “industrialização” da sua agricultura, desenvolven- lizem em produtos ricos de mão-de-obra pouco qualificada (labor using),
do uma agroindústria que utiliza tecnologias de ponta, tanto no nível dos o que eles fizeram no início, mas que venham a concorrer finalmente com
inputs quanto no setor de equipamentos (Chile e Argentina, por exemplo). as empresas neles localizadas em produtos de alta tecnologia, intensivos de
A estrutura do comércio internacional dos países em vias de desenvolvi- capital, utilizando uma mão-de-obra qualificada, com baixa remuneração.8
mento foi profundamente transformada há pouco mais de duas décadas. O seu crescimento é financiado por um duplo processo de acumulação pri-
Em 1980, 25% das exportações dessas economias eram constituídos de mitiva: o primeiro no sentido dado por Marx, visando à superexploração
produtos manufaturados; em 1998, essa porcentagem se elevou para 80%, da migração de camponeses para as cidades, impondo uma “gestão livre da
e, desde então, continua a crescer (Banco Mundial, 2004, p. 45). Esses pa- sua força de trabalho”; a segunda, nova, original, consiste em tirar vanta-
íses, pouco numerosos, orientam então as suas exportações para os pro- gens dos ganhos obtidos nos empreendimentos que utilizam muita mão-
dutos manufaturados. Os outros, os países menos avançados, são cada vez de-obra pouco remunerada para investir em setores com tecnologia mais
mais marginalizados no comércio internacional. Essa nova orientação não sofisticada e que utilizam uma mão-de-obra mais qualificada, mais bem
corresponde, portanto, a uma especialização de acordo com os “cânones” remunerada do que aquela que não é qualificada, mas recebendo rendas
da “teoria pura do comércio internacional”.6 menores, quando comparadas com as rendas vigentes nas economias semi-
2. Como sempre, a realidade é, no entanto, mais complexa do que industrializadas.
parece. As economias asiáticas que se tornaram emergentes puderam, por
exemplo, se beneficiar das “vantagens” ligadas às dotações relativas de fato- 7
O que não deve ser confundido com as vantagens comparativas do tipo Ricardo, versão Hecker
res (mão-de-obra pouco cara e, essencialmente, pouco protegida), mas, por Ohlin, como se lê freqüentemente.
8
Tal como sublinha, por exemplo, a revista Business Week: ver o número de 6 de dezembro de
2004, intitulado “The three scariest words in US industry: cut your price...” (“As três palavras
6
Ver infra seção C para maiores desenvolvimentos. mais marcantes na indústria norte-americana: corte seu preço...”).
224 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 225

3. A abertura comercial impõe novas regras do jogo para as econo- Quadro 1 – Do Consenso de Washington aos objetivos do milênio
mias semi-industrializadas. Incapazes de se beneficiarem das vantagens li-
gadas à “competitividade fora dos custos”, exceto para raros países e em um Originariamente, o primeiro objetivo do Consenso de Washing-
número restrito de produtos, elas sofrem a “competitividade-preço” muito ton (1990) era conter a alta de preços, vertiginosa na América Latina
mais fortemente do que a velocidade em que se abrem para o exterior. As nos anos 1980. Ele se apresenta sob a forma de 10 mandamentos e um
empresas são colocadas diante da seguinte escolha: ou se adaptar, ou desa- fio condutor: a liberalização dos mercados.
parecer, ou enfim tentar uma terceira via, a saber, buscar uma ajuda – direta Os 10 mandamentos10 são: 1o) uma disciplina fiscal; 2o) uma re-
ou indireta – do Estado, e adotar uma política “malthusiana” nos salários orientação das despesas públicas visando a adequar as despesas com
e no emprego, quando isso é possível. Quando, nas empresas, o desvio dos a infra-estrutura, a saúde, a educação, centradas nas necessidades de
custos unitários do trabalho (salário real na sua relação com a produtivi- base, e isso em prejuízo de uma intervenção do Estado no setor econô-
dade do trabalho), associado a uma taxa de câmbio determinada, é muito mico; 3o) uma reforma fiscal a partir de uma ampliação da estabilidade
importante, a probabilidade de desaparecimento é muito forte na ausência fiscal e uma baixa dos tributos obrigatórios; 4o) uma liberalização das
de uma rentabilidade suficiente.9 É isso que pudemos observar, com mais taxas de juros com o abandono das taxas preferenciais a fim de eliminar
ou menos amplitude, na maioria das economias latino-americanas como a “repressão financeira” e melhorar a seleção dos investimentos graças
conseqüências do estabelecimento de políticas de ajustes liberais inspiradas a uma alta das taxas de juros; 5o) uma taxa de câmbio competitiva sem
pelo Consenso de Washington (ver Quadro 1). As importações substituem que seja claramente indicado se esta deveria ser fixa ou flexível; 6o) a
então os segmentos de linha de produção. Trata-se de um processo inverso liberalização do comércio exterior graças à baixa drástica dos direitos
daquele que caracterizou os regimes de acumulação durante os 30 ou 40 alfandegários, o fim dos contingenciamentos e o abandono de autoriza-
anos seguintes à crise dos anos 1930. Uma “de-substituição” (désubstitui- ções administrativas; 7o) a liberalização dos investimentos estrangeiros
tion) das importações que se chama geralmente pelo vocábulo “de-verticali- diretos, o que significa o abandono dos procedimentos administrativos,
zação” (déverticalization). Quando as importações se concentram nos bens pesados e custosos, de autorização da remessa dos lucros, dos dividen-
de equipamentos e nos produtos intermediários, o efeito positivo sobre a dos e de outros royalties; 8o) a privatização das empresas públicas; 9o) o
valorização do capital das empresas que utilizam esses bens importados abandono das regulamentações cujo objetivo fosse instituir barreiras à
é, em geral, positivo. Eles custam menos, incorporam outras tecnologias entrada e à saída de capitais, favorecendo os monopólios e diminuindo
mais recentes do que os produtos da concorrência produzidos localmente a mobilidade; 10o) a garantia, enfim, dos direitos de propriedade.
e ameaçados de desaparecimento. O efeito abertura é comparável àquele da É interessante observar que esses 10 mandamentos não implicam
crise a priori. As empresas obsoletas desaparecem e sua produção é substi- explicitamente a liberalização da conta capital do balanço de pagamen-
tuída pelas importações naturais para melhorar a valorização do capital. tos, posto que se fez explicitamente referência à liberalização da conta
mercadoria (comércio exterior) e do investimento estrangeiro direto,
sem se referir aos outros movimentos de capitais.11 Mas isso é o que

9
A menos que uma política específica (subsídios, proteção em caráter temporário) seja colo- 10
Tal como foram reformulados em 2000 por Williamson.
cada em prática. 11
É interessante observar a ausência de acordo entre os economistas do FMI e muitos eco-
226 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 227

ocorre com qualquer projeto: há o que é escrito e o que é colocado em mes de câmbio intermediários entre o fixo e o flexível; 18o) a indepen-
prática. O “sucesso” do Consenso de Washington, quer dizer, mais exata- dência dos bancos centrais e o estabelecimento de metas em matéria de
mente, a referência obrigatória às políticas de ajuste estruturais assinadas inflação; 19o) a constituição de redes de proteção social; 20o) enfim, os
com o Fundo Monetário Internacional, traduzir-se-á por sua vez em uma objetivos claramente definidos de redução da pobreza absoluta.
ampliação das medidas de liberalização e em uma extensão geográfica, A proximidade mais freqüentemente elástica das instituições (cf.
aplicando para a Ásia e a África medidas que visam a conter os preços, supra) e a manutenção das principais orientações contidas nos 10 pri-
legitimadas pela “década perdida latino-americana dos anos 1980”. meiros mandamentos constituem os limites dessa nova versão do Con-
O sucesso (desaparecimento da hiperinflação), mas também o fra- senso de Washington. Os dois últimos “mandamentos”, que, no quadro
casso (a) incapacidade de promover um crescimento conseqüente com da lógica do Consenso de Washington renovado, chegam um pouco
pouca volatilidade; b) dificuldades para dominar o funcionamento, o “como um cabelo na sopa”, estão na origem de um projeto mais ambi-
desenvolvimento e as conexões dos mercados financeiros; c) incapa- cioso dito do Milênio que combina primeiramente, mas não finalmen-
cidade para reduzir de maneira significativa a pobreza absoluta; d) in- te, a redução drástica do nível de pobreza (reduzir o nível de pobreza
compreensão quanto ao forte crescimento chinês e, de maneira geral, absoluto em 1990 à metade de agora em 2015, mas também melhorar a
quanto ao crescimento asiático, a partir desses 10 mandamentos) con- saúde – baixar em dois terços a taxa de mortalidade infantil de menos
duziram a uma “nova versão” do Consenso de Washington, centrada de cinco anos, reduzir em três quartos a taxa de mortalidade das mu-
dessa vez na necessidade de encontrar “boas instituições”. Progressiva- lheres no momento do parto, combater a AIDS e as epidemias; a edu-
mente, a esses 10 mandamentos serão acrescentados 10 outros manda- cação – fazer de modo com que as crianças de sete a 14 anos, de ambos
mentos (D. Rodrik, 2003b): 11o) o governo da empresa; 12o) as medidas os sexos, possam cumprir uma educação de base, promover a igualdade
contra a corrupção; 13o) uma liberalização estendida ao mercado de de homens e mulheres em todos os níveis da educação) com (1) polí-
trabalho; 14o) a adesão aos princípios da Organização Mundial do Co- ticas macroeconômicas e despesas públicas eficazes; (2) uma parceria
mércio; 15o) a adesão aos códigos e padrões que regulam as finanças; público-privada; (3) uma harmonização do auxílio em face dos países
16o) uma abertura “prudente” da conta capital; 17o) a ausência de regi- mais pobres, levando em conta os critérios do bom governo; (4) uma
diminuição do protecionismo de facto dos países mais ricos e um me-
lhor acesso do seu mercado para os países mais pobres; (5) a garantia
nomistas ortodoxos sobre esse ponto: o FMI preconiza uma liberalização da conta capital, e de um desenvolvimento duradouro (ambiental, mas também redução
alguns economistas, como McKinnon, vêem aí um perigo. Para uma apresentação do debate à metade da porcentagem das pessoas que não têm acesso à água potá-
entre os economistas partidários do big bang e aqueles que se inclinam para medidas gradua-
listas, ver P. Salama e J. Valier (1994). Observa-se uma discordância também no que se refere vel). O conjunto desses objetivos envolve um caráter importante. Os in-
à taxa de câmbio: o FMI apoiou durante todos os anos 1990 a manutenção de uma política de dicadores sociais e ambientais são levados em consideração. Mas, para
câmbio fixa (anunciar um câmbio flexível para sair da inflação poderia ter um impacto negativo
na credibilidade das medidas tomadas, mas, ao contrário, o abandono de uma possibilidade de
que eles não permaneçam no nível do “catálogo das boas intenções”, a
regulamentar os fluxos de capitais quando os câmbios são fixos é no mínimo perigoso, quan- articulação das ligações entre esses diferentes objetivos deve ser precisa.
do o afluxo de capitais é brutal em um sentido ou em outro, tal como o exemplo extremo da
Assim, deve ser a ligação positiva estabelecida entre o desenvolvimento
Argentina demonstrou), e a maioria dos economistas ortodoxos se inclinam para as taxas de
câmbio flexíveis, mas foi preciso “esperar” a crise financeira do final dos anos 1990 para que este do comércio, o crescimento e, portanto, a redução da pobreza. De um
último regime fosse preconizado.
228 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 229

de Dollar e Kraay (2001), sublinharam essa ambigüidade e mostraram que


lado, a liberalização comercial produz muitos “perdedores” que devem
“o conteúdo das exportações e as mudanças nos preços mundiais contam
ser auxiliados; de outro, a liberalização deve ser perseguida pelo estabe-
mais na história da globalização dos globalizers do que a sua liberalização”
lecimento de boas instituições, e não ser decidida independentemente
(p. 15). Esse indicador coloca de fato em relação um denominador compos-
da qualidade destas, por exemplo, como observa Maxwell (2005).
to da absorção e do saldo das trocas externas, e um numerador que compre-
ende a soma das importações e das exportações. Considerando dois países
Com essas duas ou três coisinhas ditas e escritas, podemos analisar
idênticos, basta que um aceite um deficit como conseqüência de suas trocas
mais a fundo as relações complexas que existem entre a abertura e o cresci-
externas para que ele apareça como mais “aberto” do que outro que não ad-
mento, do ponto de vista do comércio.
mite esse deficit. Na mesma ordem das idéias, basta que haja uma melhora
dos termos de intercâmbio para que os países principalmente exportadores
Globalização comercial: mais abertura, mais crescimento?
de matérias-primas apareçam como mais abertos, e façam parte do grupo
1. Um indicador que diz freqüentemente o inverso dos globalizers de Dollar e Kraay, e, ao contrário, basta que haja uma der-
do que ele pretende medir rocada do curso das matérias-primas e que esses países sigam uma política
Um indicador simples, mas discutível, permite a priori medir a evolu- rigorosa visando a equilibrar suas contas externas, para que eles não façam
ção do grau de abertura das economias: trata-se da soma das importações e mais parte desse grupo, assim como mostram Birdstall e Hamoudi (Op. cit.)
das exportações sobre o PIB no tempo t e no tempo t + 1. De 1977 a 1997, e o relatório da Unctad sobre os países menos desenvolvidos (2004).
por exemplo, China, México, Argentina, Filipinas, Malásia, Bangladesh, Estabelecer uma relação econométrica de causalidade entre abertura
Tailândia, Índia e Brasil conheceram um progresso mais rápido do seu nu- externa – considerada sob o único aspecto da redução dos direitos alfan-
merador do que do seu denominador. Essas economias foram, portanto, degários e do aumento do indicador de abertura – e o nível da taxa de
abertas, ao contrário do Paquistão, Quênia, Togo, Honduras, Senegal, Nigé- crescimento do PIB, sem considerar, de uma parte, o que se passa do lado
ria, Egito e Zâmbia, para retomar os exemplos dados por D. Dollar (2004). das medidas de contingenciamento, das licenças de importação, da prote-
Esse autor classifica os países segundo essa ratio (calculada nos períodos de ção pela qualidade e, sobretudo, sem levar em consideração, de outra, as
1975-1979 e 1995-1997 para 68 países em vias de desenvolvimento), com- políticas industriais empreendidas (subsídios, reduções preferenciais das
pletada por um outro indicador (a redução dos direitos alfandegários entre taxas de juros), pode, portanto, dar uma visão distorcida dos processos em
1985-1987 e 1995-1997). Uma porcentagem de 30% (ou seja, 24 países), curso e conduzir a interpretações simplistas, quando não errôneas.12 Al-
que, ao mesmo tempo, mais fizeram crescer o seu comércio em relação aos
respectivos PIBs e reduziram mais os seus direitos alfandegários, seriam
os globalizers (globalizadores), que teriam conhecido uma aceleração do 12
Como dizem muito bem Birdstall e Hamoudi (p. 6): “Não estamos argumentando a favor do
seu crescimento, mesmo no caso de eles serem relativamente “fechados”, aí fechamento ao comércio internacional (...) mas a afirmação de que ‘a globalização é boa para os
pobres’ [como o fazem Dollar e Kraay] – e também a afirmação de que ela ‘fere os pobres’ – não
incluídos depois dessa fase de abertura (Brasil e Argentina, por exemplo). é útil para aqueles muitos países que já estão razoavelmente ‘abertos’, mas ainda lutando com o
Daí a atribuir virtudes à abertura... é somente um passo, logo transposto. que ocidentalmente é chamado de ‘a enganosa busca do crescimento’” (“We are nor arguing in
favor of closure to international trade (...) but the claim that ‘globalization is good for the poor’ –
Esse indicador se presta mais à confusão, porque ele não mede a evolu- just like tha claim that it ‘hurts the poor’ – is not helpful to those who are already reasonably ‘open’
ção da abertura. Birdsatll e Hamoudi (2002), nas suas críticas aos trabalhos but still struggling with what Easterly calls ‘the elusive call for growth’”).
230 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 231

guns países se abrem, mas controlando a sua abertura através de medidas forte processo de modernização. As exportações podem então continuar,
de proteção indiretas, transitórias, acompanhadas de políticas industriais tanto mais porque se beneficiam de uma política industrial conseqüente
específicas que permitem proteger uma produção local que, no final, será (protecionismo temporário e seletivo para as indústrias nascentes, até que
destinada às exportações (como demonstram as experiências asiáticas). elas tenham atingido um nível de competitividade que lhes permita expor-
Outros países se limitam a aplicar as medidas liberais preconizadas pelas tar maciçamente, antes mesmo de buscar satisfazer o seu mercado interno,
instituições internacionais sem medidas de acompanhamento, assim como política de baixas taxas de juros e risco de câmbio assumido pelo governo).
se pôde observar na América Latina e de maneira caricatural na Argenti- Não são, portanto, as exportações que estão na origem da aceleração do
na nos anos 1990. Como, aliás, observa Kandur (2004), a ratio exportação crescimento, e a ratio de abertura crescente, porque se acrescentam uma
mais importação sobre o PIB não é um indicador de política econômica causa (as importações) e um efeito (as exportações), perde a sua pertinên-
em si, mas antes uma variável dependente, e o seu aumento não depende cia em explicar o crescimento. Compreende-se, então, o quanto a alta dessa
necessariamente da redução dos direitos alfandegários, mas do “clima dos ratio, para retomar Kandur, é um produto (uma variável dependente) mais
negócios”, da eficácia das instituições.13 do que um indicador de política econômica (abrir para crescer).
Enfim, como mostra Rodrik (1995), em um artigo antigo, medir o grau
de abertura pela ratio exportação mais importação sobre o PIB e deduzir que 2. A relação entre abertura e crescimento é mais complexa
o seu crescimento está na origem de uma aceleração do crescimento desse do que aquela apresentada geralmente14
PIB pode estar errado. Tomando o exemplo de Taiwan e da Coréia do Sul,
Rodrik mostra que há um descolamento entre o progresso do crescimento e 2.1. A abertura não é redutível às leis do mercado livre
o aumento do PIB nos anos 1950, no início do processo de industrialização de qualquer intervenção
“em marcha forçada”. A aceleração da taxa de crescimento do PIB procede Wing Thye Woo (apud Akkerman & Teunissen, 2004), em um estudo
do crescimento das exportações. Observa-se, ao contrário, que as curvas do muito interessante, analisa de maneira crítica os fundamentos teóricos da
investimento e do PIB correspondem: é porque a taxa de formação bruta se relação positiva entre a liberalização comercial e o crescimento que funda
eleva que o crescimento se acelera. Quando se refina a análise, observa-se o Consenso de Washington (ver Quadro 2). Esse estudo repousa sobre três
finalmente que há também um paralelismo entre a curva dos investimentos pilares: a) a média dos direitos alfandegários era mais elevada na Ásia do
e a curva das importações, e, mais particularmente, das importações de bens que na América Latina; b) o desvio típico desses direitos era mais elevado
de equipamento. A lição é clara: por um lado, as importações de bens de na América Latina do que na Ásia, o que significava, segundo a corrente
equipamento permitem ao mesmo tempo incorporar tecnologias recentes ortodoxa, que a intervenção do Estado no primeiro caso tinha um caráter
e melhorar de maneira significativa a produtividade do trabalho, e, por ou- “intempestivo”, que menos mercado se traduz por menos eficácia e mais
tro, os investimentos maciços aceleram o crescimento impulsionando um ganhadores e perdedores do que na Ásia;15 c) na Ásia, a taxa de proteção

13
Birdstall e Hamoudi (p. 4): “muitos deram um pulo de uma associação entre a ratio comércio 14
Para uma apresentação do conjunto das questões levantadas por diferentes testes economé-
e o crescimento para uma recomendação política de reduzir as tarifas, mas isso existe em um tricos, ver Winters, A. et al. (2004), e para uma apresentação do debate no seio das instituições
abismo que não é fácil transpor metodologicamente (...)” (“many have made the leap from an internacionais, ver Lora E.; Pagés, C.; Paniza, U.; Stein, E. (sob a direção de) (2004, p. 29-34).
association between the trade ratio and growth to a policy recommendation to reduce tariffs, but 15
É interessante observar que, de acordo com essa abordagem, a relação Estado-mercado é
this is not easily bridged methodologically (...)”). considerada como um jogo de soma zero: quanto mais o Estado, significa menos mercado,
232 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 233

efetiva era aproximadamente a mesma que o subsídio efetivo voltado para


efeitos se neutralizam. As economias asiáticas, graças a essa neutraliza-
as exportações, enquanto na América Latina a primeira taxa tinha grande-
ção e também porque o desvio padrão das taxas de proteção é menos
mente uma superioridade sobre a segunda, o que significava que a proxi-
elevado do que na América Latina, podem ser assim qualificadas como
midade das taxas produziria um efeito semelhante à ausência de taxas, anu-
regimes de free trade, cujo crescimento vivo seria então puxado pelo
lando-se os dois efeitos produzidos por essas taxas, o que não seria o caso
crescimento das exportações, graças ao papel mais importante desem-
na América Latina. Na Ásia, o jogo de forças do mercado seria reconheci-
penhado pelo mercado, mais eficaz hipoteticamente do que o Estado.
do, o que explicaria a vivacidade do seu crescimento, enquanto na América
Um tal resultado “matemático” vai em sentido oposto a muitas análises
Latina, a intervenção do Estado frearia o crescimento, favorecendo o mer-
da industrialização das economias asiáticas (Amsten, Wade, Rodrik] e
cado interno. Wing Thye Woo critica fortemente este último diagnóstico,
causa espanto.
partindo da apresentação que dele fez Lal (1985) e mostrando o seu caráter
Essa demonstração é uma “farsa”, segundo Wing Thye Woo (p. 18):
equivocado: a proximidade das taxas de proteção das importações e das
ela não distingue os bens segundo estejam submetidos à concorrência
taxas de subsídio para as exportações, observada nas economias asiáticas,
externa (tradable), tanto para as importações quanto para as exporta-
não é suficiente para concluir pela neutralização dos efeitos dessas duas ta-
ções, ou protegidas desta (non tradable). Uma elevação da proteção de-
xas (ver Quadro 2) e deduzir que as economias asiáticas testemunham um
termina mais a produção dos bens importados em prejuízo dos bens
crescimento elevado graças ao free trade (livre-comércio), ao contrário das
exportados, favorecendo, assim, a produção para o mercado interno,
economias latino-americanas.
mas ela se traduz também por um declínio da produção dos bens non
tradable. Daí se deduz que as duas situações t = s > 0 e t = s = 0 não são
Quadro 2 - De um erro às conclusões erradas...
equivalentes, e que é, portanto, abusivo deduzir da primeira situação
um regime de free trade.
Seja Pi o preço dos produtos importados, Px o preço dos bens exporta-
Seja Pt o preço local dos bens tradable, Pn o preço local dos bens
dos, “t” a taxa de proteção, “s” a taxa de subvenção creditada aos bens
non tradable e PWt o preço mundial dos bens tradable. Então pode-
exportados, PWi o preço no mercado mundial das importações e PWx
remos escrever:
o preço das exportações no mercado doméstico. Teremos a seguinte
Pt = para Pi + (1 – a) Px com 0 < a < 1 [3]
igualdade Pi/Px = PWi (1 + t) / PWx (1 + s) [1].
PWt = para PWi + (1 – a) PWx [4]
Se “t” aumenta ou baixa “s”, então a relação Pi/Px se eleva e os empre-
A equação [3] pode ser escrita utilizando a equação [1]:
sários preferirão produzir mais para o mercado interno do que para o
Pt = (1 + t) + (1 – a) PWx (1 + s) [5]
mercado externo. Se t = s > 0, então a equação [1] se torna Pi/Px = PWi
Quando t = s > 0, podemos escrever esta última equação sob a
/ PWx [2], o que parece justificar o argumento segundo o qual os dois
forma:
Pt = (1 + t) PWt [6]
Esse é o caso de uma economia que conhece um regime de cresci-
tendo-se, portanto, menos eficácia. Aqui se está longe das abordagens que concebem a relação
Estado-mercado de maneira orgânica: o funcionamento do mercado só se tornando possível mento puxado pelas exportações (RCE). Quando comparamos a ratio
graças a uma intervenção do Estado que defina as regras, intervenha diretamente para que o dos preços dos bens tradable e dos preços dos bens non tradable com a
mercado exista e funcione.
234 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 235

2.2. Não esquecer o “terceiro excluído”


ratio dos preços sob o regime free trade, temos: Pt / Pn sob RCE = [(1 + t)
A relação entre as taxas de crescimento e a abertura ao comércio in-
PWt / Pn] > PWt / Pn = Pt / Pn sob free trade [7].
ternacional é complexa. O crescimento maior pode ser o produto de uma
A conclusão é simples: o regime de crescimento puxado pelas ex-
melhora no funcionamento das instituições17 (ver Quadro 3, infra), de uma
portações faz crescer a produção de bens tradable às expensas da pro-
política industrial efetiva e coerente que controla a abertura, da situação e
dução dos bens non tradable. O crescimento não vem, portanto, de uma
da estrutura da economia.18 A relação entre o crescimento “y” e as variáveis
vizinhança de “t” com “s”, neutralizando os seus respectivos efeitos e
explicativas xi parece com aquela habitualmente testada do tipo y = Σ ai xi,
provocando um comportamento da economia do tipo free trade, mas
ela pode tomar a forma: y = [Σ ai xi] + [x4 Σ bi xi] + x1 x2 x3 x4] + e, na qual os
da queda da produção de bens protegidos (non tradable). O que faz
“i” do primeiro termo vão de 1 a 4 e no segundo de 1 a 3. O primeiro termo
com que o crescimento possa ser alimentado pelo crescimento da pro-
indica a influência das variáveis explicativas, o segundo termo influi no
dução de bens tradable em detrimento dos outros bens é que a primeira
crescimento apenas se x4 não for nulo, o terceiro termo não exerce qualquer
tem uma valorização mais elevada – graças a uma política de apoio a
influência se uma das variáveis for nula. Ela pode, de maneira mais radical,
esse setor – do que a segunda, mais arcaica, representada em geral pela
tomar a forma somente do segundo termo, seja y = x4 Σ bi xi, a variável x4
agricultura de subsistência não modernizada. Conseqüentemente, toda
sendo então freqüentemente considerada como representando a qualidade
política industrial que visa à expansão da primeira, por intermédio de
subsídios seletivos e temporários, pode ser favorável ao crescimento. A
survey da literatura), querendo muitas vezes justificar as políticas de liberalização preconizadas
conclusão é, portanto, exatamente o inverso daquela tirada pelos auto- pelas instituições internacionais mais importantes. Supõe-se que os fundamentos teóricos dessas
res da mainstream (corrente dominante). Não é a alocação ótima pro- políticas existam na maioria dos trabalhos, o que está longe de ser o caso.
17
Para alguns autores (D. Acemoglu, S. Johnson, J. Robinson e Y. Thaicharoen, 2002), em uma
duzida pelo livre jogo do mercado que explica o forte crescimento, mas perspectiva histórica, desde a Segunda Guerra Mundial, a qualidade das instituições explica
um combinado de intervenção do Estado e das forças do mercado.16 mais o crescimento e a sua volatilidade do que as boas ou más políticas macroeconômicas.
Estas seriam somente mais sintomas do que causas dos desempenhos econômicos. A qualidade
das instituições é medida nesse estudo por uma variável proxy (substituta): a taxa de mortali-
dade dos colonos na época colonial.
16
Tal como observa D. Rodrik (2003, p. 11), as ligações entre os fundamentos teóricos da análise 18
Wing Thye Woo estabelece uma comparação interessante entre os países orientais e as eco-
neoclássica e as recomendações de política econômica são fracas. Referindo-se às principais nomias asiáticas socialistas. Os primeiros conheceram uma primeira fase no mínimo difícil
conclusões dos trabalhos teóricos recentes, Rodrik lembra que a correspondência entre os fun- no momento da sua adoção das regras do mercado, depois da ruptura do sistema soviético
damentos e as políticas deveria levar em consideração os seguintes pontos: “a liberalização dos (hiperinflação, depressão econômica profunda, empobrecimento, elevação exponencial das
mercados deve ser completa, ou melhor, a redução das restrições às importações deve levar em desigualdades), e uma segunda fase mais positiva (fim da inflação, retomada do crescimento,
conta as possibilidades de substituição e de complementaridade entre esses bens; não deve haver diminuição da pobreza). As economias asiáticas conhecem, há várias décadas, uma fase de pro-
nenhuma imperfeição do mercado em nível microeconômico, a não ser aquelas que dizem res- gresso pronunciado (crescimento pujante e pouco volátil, diminuição drástica da pobreza, mas
peito a essas restrições, caso contrário, as interações de ‘second best’ [segundo melhor] não de- aumento substancial das desigualdades) com a adoção do “socialismo de mercado”. De acordo
vem ser negativas; a economia deve ser pequena relativamente ao mercado mundial, ou melhor, com Wing Thye Woo (p. 25-26), não é o ritmo das reformas que explica a diferença das taxas de
a liberalização não deve conduzir a se situar sobre o mau declive da tarifa ótima; a economia deve crescimento, mas principalmente o fato de que as primeiras eram economias industriais, que
estar próxima do pleno emprego e, no caso contrário, as autoridades fiscais e monetárias deve- podiam ser reformadas, ao passo que as segundas eram, e são ainda, economias “camponesas”.
riam ter a capacidade de gerar a demanda; os efeitos distributivos da liberalização não devem Existe nestas últimas um reservatório de mão-de-obra, e passar do campo para a cidade permi-
ser considerados pela sociedade como indesejáveis e, no caso contrário, uma política de com- te, ao mesmo tempo, pagar pouco à mão-de-obra e melhorar o seu poder de compra relativo,
pensação, via fisco, deveria poder ser posta em operação; a liberalização deve ser politicamente criando, com todas as peças, uma indústria manufatureira e de serviços moderna. Sem o dizer,
sustentável e acreditada de tal maneira que os agentes não tenham de temer sua realização”. A Wing Thye Woo utiliza um modelo de tipo Lewis para explicar o crescimento e a “facilidade”
maioria dos países está longe de cumprir essas condições. Isso não impede que os trabalhos eco- da transição, mas, fazendo isso, sublinha a importância das estruturas originárias para explicar
nométricos, cada vez mais sofisticados, sejam cada vez mais numerosos (ver Winter para uma a possibilidade de obter um crescimento elevado.
236 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 237

das instituições: as instituições muito ruins conduzem a um crescimento


situações, diferenciar os tratamentos, criar novas oportunidades (...)
nulo qualquer que seja o grau de abertura. A definição das instituições é, no
(p. 6)
entanto, freqüentemente “elástica”, cada uma pode aí colocar o que desejar:
Essa definição é rigorosa, mas tem um inconveniente, o de ser
os aparelhos do Estado, o conjunto das regras, dos costumes e das práticas,
muito ampla, de modo que deixa espaço para a ambigüidade, quando
ainda que, se elas não são precisas, medem então o “grau de ignorância”,
as instituições são evocadas para explicar um processo, uma crise, um
para tomar uma expressão de Abramovitz aplicada residualmente aos testes
crescimento. Não se sabe mais muito bem a que se está referindo: aos
das funções de produção macroeconômica well behaved (bem comportada)
ordenamentos constitucionais fundamentais, mas também ao sistema
do tipo Cobb Douglas.
financeiro, ao sistema educativo etc., ou, antes, aos hábitos e às conven-
ções, e assim qual seria então a parte do pressuposto na definição das
Quadro 3 - Algumas observações sobre as instituições
regras (um pouco de conhecimento de antropologia seria muito bom
para os economistas...). Sabe-se, por exemplo, que, para alguns autores
É preciso desconfiar das palavras, sobretudo quando são úteis,
pertencentes ao mainstream, as instituições são más quando as nor-
pois poderiam ser muito úteis e, no entanto, mascarar a incapacidade
mas de propriedade não são respeitadas... e a ausência de crescimento
de compreender um processo, um fenômeno, ou apresentar sob no-
é então explicada por esse desrespeito. Como lembra Rodrik (2004),
vos hábitos mais atraentes as políticas econômicas as quais não se ousa
com humor, medir as instituições para analisar os seus efeitos “revela
chamar pelo seu próprio nome. As definições muito elásticas ocultam
um conjunto de questões sem resposta”; capturar as percepções dos in-
grandes ambigüidades, principalmente quando são muito importantes.
vestidores a partir das regras do direito, como é o respeito às regras de
Como aquela dada por P. Petit:
propriedade,19 não permite compreender por que a China apresentou
O que se entende por instituição permanece muito amplo, indo
uma expansão sem precedentes do seu PIB, dos investimentos estran-
dos hábitos e convenções até os ordenamentos constitucionais funda-
geiros diretos, lá onde esses direitos são negados. Enfim, Rodrik, conhe-
mentais, passando pelas leis e pelos regulamentos (...) A noção de ins-
cido por suas contribuições ao papel das instituições, cita um estudo de
tituição reenvia assim a tudo aquilo que “regula” o comportamento dos
Haussman et al. que mostra que a aceleração do crescimento observado
agentes, quer se tratasse de coagir as suas margens de ação ou, pelo
em 80 casos (aceleração de 2% que dura sete anos) desde 1950 não pro-
contrário, ampliar o seu campo (para facilitar a coordenação e a coo-
cede geralmente de reformas importantes, como a abertura e a libera-
peração). Além disso, as regras em questão não são todas de aplicação
lização econômica... (p. 10). Por muito utilizar as instituições, julgadas
estrita, e os agentes podem dispor de uma margem de avaliação (...) Os
agentes podem ou não achar legítimos os sistemas de coerções que vêm
pesar sobre suas decisões. Opções políticas, culturas e ideologias vão 19
No relatório de 2005 do Banco Mundial, são encontradas referências evidentes sobre o respei-
portanto condicionar o funcionamento das instituições. Com o correr to devido aos direitos de propriedade. A eficácia do governo (medida pela qualidade do serviço
público, da burocracia, da competência dos funcionários, da sua independência e, enfim, da
do tempo, todas estas diversas formas vão permitir adensar uma rede
credibilidade da engrenagem dos compromissos assumidos pelos governos) seria muito maior
institucional. A cada período, um processo de institucionalização, que do que seria importante o respeito pelos direitos de propriedade e inversamente, também no
toca diferentemente as diversas formas estruturais, vai especificar as caso de voice and accountability (voz e responsabilidade) fracos ou fortes (medidos por um
conjunto de indicadores referentes aos processos políticos, ao respeito pelas liberdades, à pos-
sibilidade de os cidadãos participarem na escolha dos seus governos).
238 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 239

cimento, melhor seria analisar em primeiro lugar, previamente, os efeitos


boas ou más de acordo com critérios que se deseja de facto impor, para
do comércio sobre o crescimento, sobre a distribuição das rendas e sobre
se enganar com isso, coloca-se freqüentemente a conclusão procurada
a pobreza.
na hipótese e o raciocínio científico se torna tautológico: a Argentina
teria passado por uma crise porque teria más instituições; idem para os
Novamente... sobre os efeitos benéficos da abertura compreendida
países do Oriente logo depois da queda do muro de Berlim, a “desco-
como uma vitória do mercado sobre o Estado
berta” de que o capitalismo coreano, funcionando segundo as relações
De acordo com os economistas que pertencem ao mainstream, a aber-
de “companheirismo” (crony capitalism = capitalismo de amigos), esta-
tura deveria permitir que se estabelecesse uma economia mais eficiente
ria minado a ponto de engendrar a crise dos anos 1990 (mas então qual
graças a uma alocação dos fatores segundo a sua raridade relativa. Essa
é a razão da retomada robusta e duradoura, por que o crony capitalism
corrente certamente evoluiu e, para muitos economistas, convém consi-
teria desaparecido tão rapidamente?).
derar hoje a qualidade das instituições (mas então como medi-la, a partir
Essas observações têm justamente por objetivo sublinhar o abuso
de que critérios?), e levar em conta a ética.21 No entanto, para vários eco-
dessa palavra trazida à moda e servindo muitas vezes para apresentar
nomistas, não levar em conta a raridade relativa dos fatores entrava o fun-
velhas receitas sob novos hábitos. Elas não têm por objetivo negar às
cionamento eficiente do mercado e, portanto, é uma heresia. Adotar uma
instituições um papel importante, com a condição de que, a cada vez
política econômica voluntarista que visa a substituir as importações pela
que se utilize o termo, diga-se o que ele recobre exatamente.
produção local favorece o rent seeking (especulador), o excesso de Estado
e a burocracia, o clientelismo e a corrupção, e conduz a uma alocação não
A abertura pode, portanto, permitir um aumento da taxa de cresci-
ótima dos recursos. A observação histórica, porém, ressalta que os gran-
mento, mas somente quando ela é acompanhada de medidas que não têm
des períodos de industrialização, tanto na América Latina quanto na Ásia,
nada a ver com o free trade.20 Estas constituem o “terceiro excluído”, aquilo
caracterizam-se por uma intervenção conseqüente do Estado, a ponto que
que não aparece em primeiro lugar, mas sem o que nada fica compreensí-
se pôde, às vezes, qualificar essas economias como “capitalismo de Estado”:
vel. Não acompanhada dessas medidas, a abertura não produz os efeitos
o Estado investidor em vez de uma burguesia industrial fraca, em vias de
desejados.
constituição...22 Esquecidos são os períodos suntuosos da industrialização
Uma abertura de tipo big bang (explosivo), sem medidas de acompa-
“a mercado forçado” que algumas economias sul-americanas apresentaram
nhamento, pode ser empobrecedora quando conduz a uma especialização
durante mais de 40 anos, deformadas são as interpretações das experiências
que privilegia os produtos cujas elasticidades-rendas seriam fracas no ní-
das economias asiáticas, ditas emergentes, durante várias décadas, lembra-
vel internacional, ainda que fosse “legitimada” pelas dotações relativas dos
dos somente os difíceis anos 1980 (a “década perdida” latino-americana),
fatores. Como observa a Unctad (2004), fazendo isso, os defensores dessa
abordagem colocam “a carroça à frente dos bois”: em vez de analisar pri-
meiramente os efeitos da liberalização do comércio exterior sobre o cres- 21
Ver, por exemplo, o relatório do Banco Mundial de 2005, centrado nessas questões.
22
Sublinhou-se, inclusive, que uma das especificidades dessa intervenção do Estado era que ela
produziu a camada social que ela estava destinada a representar. Encontrar-se-á no nosso livro
20
Pelo contrário, não se pode demonstrar econometricamente, de maneira substancial, que as res- (Mathias & Salama, 1983) uma apresentação do conjunto dessas discussões, assim como uma
trições à abertura favoreceram o crescimento desde a Segunda Guerra Mundial, contrariamente proposta teórica para compreender a importância dessa intervenção. Para as economias asiáti-
ao que se pôde freqüentemente observar no século xix e na primeira metade do século xx. cas, podemos nos referir às obras que se tornaram clássicas de A. Amsten (1989).
240 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 241

como se estas, independentemente dos efeitos depressivos e inflacionários (portanto, sem custo de transação) no seio de cada país. Supõe-se que as
do serviço da dívida externa, fossem representativas da justeza da tese libe- funções de produção, para cada produto, são idênticas em cada país, con-
ral do market friendly (mercado amigável). tínuas e derivadas. O raciocínio consiste em comparar dois equilíbrios, um
É preciso reconhecer que a tese do crescimento puxado pelas expor- como autarquia, o outro como livre-comércio. Essa tese explica a especia-
tações e o papel principal atribuído ao livre jogo das forças do mercado lização intersetorial segundo as dotações relativas de fatores, e mostra, por
têm, primeiramente, o atrativo da evidência. Como se opor a uma redução exemplo, que um país pouco dotado de capital e “rico” em trabalho deve-
da intervenção do Estado quando, a partir de uma leitura superficial da ria optar pelos produtos que privilegiam a utilização intensiva de mão-de-
situação de crise, observa-se que esta é ineficaz, que os preços se curvam obra. Ele ganharia de fato em bem-estar, praticando o livre-comércio mais
e, com eles, a pobreza, que o crescimento se torna negativo e grandemente do que a autarquia. A segunda tese analisa os efeitos distributivos da nova
volátil, como foi o caso nos anos 1980 na América Latina? O peso do Es- especialização obtida segundo as dotações relativas. Os países pobres de
tado se assemelha, então, àquele da burocracia, do clientelismo e da cor- capital e mão-de-obra qualificada, mas ricos em mão-de-obra não quali-
rupção, quando inclusive esse Estado perde a sua eficácia em razão de sua ficada e escassez de capital, especializaram-se segundo uma combinação
incapacidade para superar a crise da dívida externa, que solapa e destrói os produtiva que utiliza mão-de-obra não qualificada e pouco capital, sem
aparelhos de Estado, cresce consumando o seu “deficit de racionalidade”. que, por isso, a especialização tivesse de ser absoluta. O raciocínio inverso é
Mas, entre “parecer” e “ser”, há grandes diferenças e, ainda que se trate mui- concebido para os países que têm uma dotação rica de capital e de mão-de-
tas vezes de reconstruir o Estado e os seus aparelhos, a corrente liberal se obra qualificada. A mobilidade da mão-de-obra no interior de cada país,
obstina em colocar abaixo o fantasma do Estado, criando assim um choque pressuposição para que essa especialização possa ocorrer, fará crescer re-
de modo a romper o círculo vicioso da hiperinflação, da volatilidade de lativamente a demanda de trabalho não qualificado em relação àquela que
um crescimento em média fraco quando não negativo, do crescimento da é qualificada nos primeiros países e inversamente nos segundos. A curva
pobreza, mas isso ao preço de uma vulnerabilidade externa muito elevada de salário deveria, portanto, ser reduzida nos países em vias de desenvolvi-
como conseqüência, de uma tendência à estagnação econômica e de uma mento e se acentuar nos países desenvolvidos. É nesse momento que inter-
incapacidade para reduzir a pobreza. vém a análise econométrica. Observa-se que, em um longo período (de 20
a 25 anos), os países – asiáticos, em geral – que têm a desigualdade menos
1. O perigo dessa tese justifica que nos demoremos sobre ela e que anali- pronunciada são aqueles que conheceram um crescimento pujante, ao con-
semos outros argumentos colocados previamente para justificar sua perti- trário daqueles cujas desigualdades são relevantes. A conclusão é grave de
nência. A abertura acoplada ao livre-comércio seria de modo a dinamizar um ponto de vista ético: as desigualdades são insuportáveis, é legítimo que
o crescimento. A demonstração se realiza a partir da combinação de duas elas sejam reduzidas. Essa redução pode ser alcançada quando se “respei-
teses que se desejaria complementares e de uma constatação econométri- tam” as leis do mercado, quer dizer, quando se favorece o livre-comércio
ca obtida a partir de uma análise panorâmica, mais exatamente em bando e se rejeita qualquer política voluntarista de industrialização que não res-
(uma amostra de países em um período longo). A primeira é a análise de peita as dotações relativas. Ao contrário, uma intervenção do Estado que
Hecsker-Ohlin sobre os custos comparativos. As dotações dos fatores são substitui o mercado produz as desigualdades. Ela é, portanto, condenável.
dadas, somente as mercadorias podem ser trocadas e os fatores de produ- A conclusão parece grave de um ponto de vista econômico: a abertura
ção são, portanto, supostos imóveis entre os países, mas totalmente móveis permite uma redução das desigualdades dos países em desenvolvimento,
242 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 243

esses países poderão fazer parte do clube dos países de forte crescimento. fizeram os defensores de uma divisão internacional segundo as dotações
Mas trata-se aqui de um sofisma. A supor que as desigualdades pudessem relativas dos fatores. Incorporando os rendimentos de escala crescentes, a
ser reduzidas graças à abertura, o que é contestável, não é porque elas são diferenciação dos produtos, ela mostrou teoricamente que o comércio se
menos importantes que ipso facto isso implicaria um maior crescimento, realizava segundo uma especialização intra-setorial, o que era pelo menos
a menos que se comprovasse economicamente a relação, o que não é fato bem-vindo. A observação, mesmo elementar, das especializações mostra,
senão sob a forma de pressupostos: a liberalização dá mais eficácia e produz de fato, ao mesmo tempo, que estas operam principalmente no interior dos
mais crescimento. E quando se abandona a análise panorâmica, na qual a setores e que, enfim, aquelas que continuam a se realizar entre os setores
Birmânia se avizinha aos Estados Unidos, em que o período considerado são cada vez mais abandonadas, reservadas aos países “menos avançados”
não tem nada a ver com os subperíodos que cada país conhece segundo o que não chegam a “decolar”. A composição das exportações dos países em
seu regime de acumulação dominante, não se pode compreender por que desenvolvimento foi completamente subvertida nestas últimas décadas.
o Brasil apresentou as suas mais fortes taxas de crescimento nos anos 1970 Eles exportam mais de 80% de produtos manufaturados, como já indica-
com desigualdades crescentes, que se tornaram possíveis com a chegada mos.23 Certamente, o custo da mão-de-obra é geralmente baixo, quando
de ditaduras militares. Não se pode compreender por que, nas economias comparado com aquele dos países desenvolvidos,24 e isso pode constituir
latino-americanas e asiáticas, submetidas a uma abertura rápida nos anos uma vantagem relativa, isto é, permitir que as exportações desses países
1990, as desigualdades salariais cresceram nesses anos. Não se pode com- concorram com os produtos nacionais dos países desenvolvidos. Mas duas
preender, enfim, a explosão das desigualdades na China, a manutenção da observações devem imediatamente ser feitas. A primeira diz respeito ao
sua taxa de crescimento em um nível muito elevado, a sua inserção cada vez próprio raciocínio: dizer que o custo da mão-de-obra menos elevada pode
maior no comércio mundial. constituir uma vantagem não é, por isso, raciocinar em termos de custos
comparativos (Ricardo, depois a “teoria pura do comércio internacional”),
2. Duas objeções podem ser feitas. Os países “pobres” de capital utilizam mas em termos de custos absolutos comparados (Adam Smith, em segui-
de facto, quando podem, técnicas intensivas de capital, pois as suas empresas da, freqüentemente, a nova teoria do comércio internacional), o que está
não poderiam, caso contrário, resistir à concorrência internacional, sendo longe de ser a mesma coisa, a comparação se fazendo produto por produto
a sua competitividade muito insuficiente, exceto se fossem extremamente entre dois países, e não em termos relativos no interior de um país que se
protegidas por direitos alfandegários, contingenciamentos e outras licenças compara em seguida ao custo relativo no interior de outro país. A segunda
de importações dissuasivas. Desde os anos 1960, a escola da Cepal mostrou está relacionada com a função de um produto: ela não é nem contínua,
então que, na América Latina, com economias supostamente pobres de ca- como imaginam os teóricos da “teoria pura do comércio internacional”,
pital (em relação à mão-de-obra), gastava-se mais capital do que os países nem semelhante nos dois países. Ela é descontínua, quebrada em peque-
desenvolvidos, sendo suas capacidades ociosas de produção relativamente nos segmentos. As possibilidades de escolha entre as técnicas são, portanto,
mais importantes, o que, no mínimo, é um paradoxo para os defensores restritas. Não se pode utilizar uma técnica antiga, sob pretexto de que ela
da especialização internacional de acordo com as dotações relativas de fa-
tores. O comércio internacional obedece cada vez mais a uma lógica de 23
Mais exatamente, em 1980, 25% das exportações dos países em vias de desenvolvimento eram
de produtos manufaturados, e em 1998 eram de 80% (Banco Mundial, 2004, p. 32).
especialização intra-setorial. A nova teoria do comércio internacional, sob 24
O custo da hora de trabalho era de 31,88 dólares na Alemanha, 19,34 dólares na França e 0,25
o impulso de Kaldor via Krugman, conciliou mais fatos e teoria do que o centavos de dólar na China e na Índia em 1995 (Banco Mundial, 2004, p. 45).
244 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 245

emprega muita mão-de-obra e pouco capital, senão para uma quantidade Rodrik em muitos dos seus artigos, estes não podem se reduzir aos “câno-
restrita de produtos. nes” da ortodoxia: respeito aos direitos de propriedade, transparência. O
De fato, a comparação dos custos unitários do trabalho entre os países crescimento sustentado da China e também, mais recentemente, o cresci-
subdesenvolvidos, que utilizam uma combinação produtiva intensiva de mento da Índia estão aí mesmo para demonstrar isso ao vivo.27
trabalho não qualificado e exigindo pouco capital, e os países desenvol- A liberalização da economia pode não estimular o crescimento nem
vidos, que utilizam uma combinação produtiva, não é possível, do ponto favorecer o aumento da produtividade; ela pode arruinar muitas pessoas,
de vista da competitividade, senão para um número restrito de produtos. destruir mercados sem permitir que outros sejam reconstituídos, se as eco-
Essa é a razão por que muitos países asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan etc., nomias se mostrarem incapazes de responder aos choques externos sem
a China agora) que utilizaram essa “vantagem absoluta comparada” busca- um apoio adequado do Estado e estiverem na origem de uma vulnerabi-
ram em seguida (Coréia do Sul, Taiwan etc.), buscam (China, Índia), graças lidade maior, quando a nova inserção repousa em especializações pouco
a uma política industrial voluntarista, ampliar a gama dos seus produtos, dinâmicas, sujeitas a uma demanda internacional volátil (Winters et al.,
utilizar técnicas de ponta, e, para alcançar isso, empreenderam grandes es- 2004), produzindo especializações ditas “empobrecedoras”. A relação que
forços em formação e pesquisa, como já vimos. A tese dos custos compara- parece se impor entre maior abertura comercial e mais crescimento não
tivos25 tem o aspecto da evidência, mas em economia é preciso se prevenir é, portanto, mais evidente do que gostariam de fazer crer as instituições
contra o que parece evidente.26 As empresas procuram valorizar os seus internacionais. A abertura pode favorecer o crescimento e, com isso, con-
capitais e, portanto, minimizar os seus custos unitários de trabalho (salário tribuir para diminuir a pobreza, mas, para que seja eficaz e mantenha a
e produtividade); elas buscam se beneficiar dos subsídios diretos do Esta- coesão social, quer dizer, a consolide, ela deve se realizar segundo modali-
do, de uma política de câmbio, depreciada quando exportam ou trabalham dades que têm pouco a ver com o livre-comércio. Para além das confusões
para seu mercado interno, mas apreciada quando importam. Em outras existentes que atrelam abertura e livre-comércio, para além do simplismo
palavras, não são os custos comparativos que são importantes, mas os custos que consiste em opor o Estado e o mercado sem compreender as suas rela-
absolutos. Abandonando David Ricardo (análise dinâmica), extraviado por ções orgânicas, propor uma inserção mais forte na economia mundial não
Hescker-Olin (análise estática), retorna-se para Adam Smith... Fazendo- é incompatível com o desenvolvimento do mercado interno, algo possível
se isso, descobrem-se novamente os “terceiros excluídos”, aqueles sem os graças a uma distribuição de rendas que respeite mais as regras simples da
quais se compreendem mal os fenômenos econômicos, quando não se os eqüidade, na condição, todavia, de que a abertura mais importante seja...
compreendem absolutamente. Um dos “terceiros excluídos” ou ainda um pensada. A abertura, compreendida dessa maneira, pode então permitir
“presente ausente”: as instituições, como vimos. Mas, como faz observar uma distribuição de rendas mais equânime, e as obrigações que pesam so-
bre os modos de exploração da força de trabalho poderiam assim evoluir. À
25
Observemos que ela se beneficia de uma ambigüidade de linguagem: quer seja no quadro da medida que as causas da persistência da mais-valia absoluta do tipo arcaico
teoria das vantagens absolutas, ou daquela das vantagens comparativas, compara-se sempre;
mas, em um caso, trata-se de custos comparativos comparados, e, no outro, de custos absolutos
comparados.
26
Sem querer entrar no detalhe, este artigo não pode explicar por que as empresas fariam um 27
Retomando os trabalhos de Qian, Rodrik indica que essas podem ser “instituições de tran-
raciocínio em termos de custos comparativos. Para que elas pudessem fazer isso, seria preciso sição”, colocando em prática políticas pragmáticas de transição, como aquelas dos preços du-
que houvesse de fato um “avaliador público” (commissaire priseur) ou, na sua falta, um “dita- plos, das formas intermediárias de propriedade etc. Ver Rodrik (2003a) e Qian, in Rodrik (ed.)
dor”, no caso de seguirmos Oskar Lange. (2003a), e, sobretudo, in Rodrik (2003b).
246 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 247

vão sendo atenuadas graças a uma política industrial ativa, a sua persis- Amsden, A. Asia’s next giant. South Corea and late industrialization. Nova
tência como modo de exploração da força de trabalho pode também ser Iorque: Oxford University Press, 1989.
atenuada. Bairoch, P. Economic and world history: miths and paradozes. Tradução
francesa da Ed. La Découverte. Clarendon Press, 1993.
Conclusão Banco Mundial. Globalization, growth and poverty: building an inclu-
A globalização comercial sem controle explica em grande parte a bi- sive world economy. 2004.
polarização das rendas na América Latina, a persistência de modos de ex- ________. World development report 2006: development and equity. 2005.
ploração arcaicos da força de trabalho, a importância da flexibilidade. Essa Barros, R. Paes de et al. Poverty, inequality and macroeconomic instabil-
globalização comercial não é, certamente, a única responsável pelas busca ity. Texto para Discussão, IPEA, n. 750, 2000.
de modos de exploração que privilegiam a mais-valia absoluta arcaica e Barros, R. Paes de; Mendonça, R. O impacto do crescimento econô-
moderna. A globalização financeira, muito mais adiantada e com pouco mico e das reduções no grau de desigualdade sobre a pobreza. Texto
controle na América Latina, produz coerções de um novo tipo. Estas levam para Discussão, IPEA, n. 528, 1997.
a buscar uma flexibilidade maior da força de trabalho e um desligamento Birdsall, N. Asymetric globalization: global markets require good global
dos salários reais, acentuando os efeitos perversos de uma globalização co- politics. Working Paper, Center for Global Development, n. 12, 2002.
mercial não controlada, compreendida como sendo o livre jogo das forças Birdsall, N.; Hamoudi, A. Commodity dependence. Trade and
do mercado. Mas isso é uma outra história... Outras vias são possíveis, bas- growth: when “openess” is not enough. Working Paper, Center for
ta comparar e aprender para imaginar políticas econômicas diferentes. A Global Development, n. 7, 2002.
escolha não se dá entre abertura ou fechamento, mas entre modalidades de BIT. World development report: employment, produtividty and poverty re-
abertura. Os efeitos da globalização comercial sobre a persistência e a im- duction. Genebra, 2004.
portância dos mecanicismos de mais-valia absoluta mais a sua articulação Bosworth, B.; Collins, S. The empirics of growth: an update. Wash-
específica com os mecanicismos de mais-valia relativa dão uma atualidade ington: Brooking Institution/Georgetown University, 2003.
segura aos trabalhos de Ruy Mauro Marini. Bruno, M. Crescimento econômico, mudanças estruturais e distribuição.
As transformações do regime de acumulação no Brasil. Tese. Brasil:
Bibliografia UFRJ; França: EHESS, 2005. (mimeo)
Acemoglu, D.; Johnson, S.; Robinson J.; Thaincharoen, Y. CEPAL; IPEA; PNUD. Hacia el objectivo del milenio de reduzir la pobreza.
Institutional causes, macroeconomics symptoms: volatility, crises and Santiago, 2003.
growth. Carnegie-Rochester Conference, NYU e MIT, 2002. (mimeo) Cling, J. P.; De Vreyer, Ph.; Razafindrakoto, M.; Roubaud,
Akkerman, A.; Teunissen J. J. (Ed.). Diversity in development. Recon- F. La croissance ne suffit pas pour réduire la pauvreté. Revue Française
sidering the Washington Consensus. Haia: Fondad, 2004. Ver particu- d’Économie, Paris, v. XVIII, n. 3, 2004.
larmente: WOO, Wing Thie. Serious inadequacies of the Washington Dollar, D. Poverty and inequity since 1980. Policy Research, Working
Paper, World Bank, n. 3.333, 2004.
Consensus: misunderstanding the poor by the brightnest; e os comen-
Durya, S.; Jaramillo, O.; Pagés, C. Latin American labor markets in
tários de A. Buira e B. Stalling.
the 1990s: deciphering the decade. Working Paper, Washington: BID,
n. 486, 2003.
248 ■ A América Latina e os desafios da globalização A abertura revisitada: crítica teórica e empírica do livre-comércio ■ 249

Faini, R. Trade liberalization in a globalization world. Working Paper, Uni- ________. Growth policy, getting interventions right: how South Corea and
versidade de Roma Tor Vergata/CEPR/IZA/CSLA, n. 28.976, 2004. Taiwan grew rich. Economic Policy, Grã-Bretanha, 1995.
Frenkel, R.; Ros, J. Desempleo, politicas macroeconomicas y flexibili- ________. Growth strategies. Harvard, School of Government, 2003.
dad del mercado laboral. Argentina e México en los noventa. Desar- ________. (Ed.). In search of prosperity. Princeton University Press, 2003.
rollo Economico, Buenos Aires, v. 44, n. 173, 2004. [Ver “Introduction: what do we learn from countries narratives?”]
Furtado, C. Développement et sous développement. Paris: PUF, 1969. ________. Por que hay tanta inseguridad económica en América Latina.
Lora, E.; Pagés, C.; Panizza, U.; Stein, E. A decade of development Revista da Cepal, Chile, n. 73, 2001.
thinking. Washington: Inter-american Development Bank, Research Rodrik, D.; QUIAN, Y. (Ed.) How reform worked in China. In: In search
Department, 2004. of prosperity. Princeton University Press, 2003a.
Kandur, R. Growth, inequalitiy and poverty: some hard questions. 2004. Ros, J. El crecimento económico en México y Centroamerica: desempleo y
(mimeo). Disponível em: <www.people.cornell.edu/pages/sk145>. perspectivas. Serie Estúdios y Perspectivas, Santiago: Cepal, n. 18, 2004.
Lustig, N. Crisis and the poor. Socially responsible macroeconomics. Salama, P. La dollarization. Paris: La Découverte, 1989. [Traduzido em
Washington: Inter-american Development Bank, Technical Papers português pela Editora Nobel.]
Series, 2000. ________. La tendance à la stagnation revisitée. Problèmes d’Amérique
________. La desigualdad en México. Economía de América Latina: las Latine, Paris, n. 52, 2004.
dimensiones de la crisis, México, CET, n. 18-19, 1989. ________. Le défi des inégalités, une comparaison économique Amérique La-
Mathias, G.; Salama, P. L’État surdeveloppé, des métropoles au Tiers tine/Asie. Paris: La Découverte, 2006.
Monde. Paris: La Découverte/Maspero, 1983. [Traduzido em portu- ________. Un procès de sous développement. 2. ed. mod. Paris: Maspero,
guês pela Editora Brasiliense.] 1976. [Traduzido em português pela Editora Vozes.]
Maxwell, S. The Washington Consensus is dead! Long live the meta Salama, P.; Valier, J. Pauvretés e inégalités dans le Tiers Monde. Paris:
narrative!. Working Paper, Londres, Overseas Development Institute, La Découverte, 1994. [Traduzido em português pela Editora Nobel.]
n. 243, 2005. Székely, M. The 1990s in Latin American: another decade of persistent
McKinnon, R. I. Financial liberalization and economic development: inequality, but with somewhat lower poverty. Journal of Applied
a reassessment of interest-rate policies in Asia and Latin América. Economic, Buenos Aires, n. 2, 2003.
Oxford Review of Economy Policy, v. 5, n. 4, 1989. UNCTAD. Rapport 2004 sur les pays les moins avancés: commerce interna-
Meredith, G. et al. México. Selected issues FMI. Washington, 2004. tional et réduction de la pauvreté. Genebra, 2004.
OIT. Global employment trends. Genebra, 2003. ________. Trade and poverty from a development perspective. Genebra,
________. Panorama laboral: América Latina y Caribe. Genebra, 2004. 2003.
Petit, P. La difficile émergence de nouveaux régimes de croissance à Willem te Velde, D. Foreign direct investment and income inequality
l’ère de l’information et de la communication. Working Paper, Paris, in Latin American: experience and policy implication. Working Paper,
Cepremap, 2005. (mimeo) ODI, 2004.
Rodrik, D. Getting institutions right. Working Paper, Harvard University, Winters, A.; McCulloch, N.; McKay, A. Trade liberalization and
2004. poverty: the evidence so far. JEL, v. XLII, 2004.
250 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 251

Anexo

Gráfico - Produto Interno Bruto e exportações mundiais a Dependência e superexploração da


preços constantes (1990-2004) força de trabalho no desenvolvimento periférico
(taxas anuais de variação)
Marcelo Dias Carcanholo*
% 14.0

12.0

10.0

8.0

6.0
1. Acumulação de capital na periferia: dependência
4.0

2.0
e (sub)desenvolvimento
0.0
Costuma-se entender como economia periférica aquele país, ou região,
-2.0 que apresenta, em geral, instáveis trajetórias de crescimento, forte depen-
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004b/ dência de capitais externos para financiar suas contas correntes (fragilidade
financeira), baixa capacidade de resistência em face de choques externos
Exportações Mundiais
(vulnerabilidade externa) e altas concentrações de renda e riqueza. Isso ca-
PIB Mundial
racterizaria o subdesenvolvimento dessas economias.1
Fonte: Elaboração com base em FMI. World economic Outlook, set. 2004. A percepção convencional, a partir dessa constatação factual, tende
a) com base em paridades do poder de compra de 2000. a conceber a situação de subdesenvolvimento como sendo equivalente
b) valor estimado. à ausência de desenvolvimento, isto é, como um “atraso” em relação às
experiências históricas de desenvolvimento. Assim, seria possível extrair
modelos de desenvolvimento das experiências de economias avançadas,
com a definição de estágios que pudessem superar o atraso e atingir a mo-
dernidade. Mesmo concepções um pouco mais críticas, como a visão clás-

* Economista brasileiro, nascido em Santiago do Chile em 1973, é professor da Universidade


Federal Fluminense e ex-professor da Universidade Federal de Uberlândia. Vice-presidente da
Sociedade Brasileira de Economia Política, é autor de diversos artigos em livros e revistas in-
ternacionais. Membro do grupo de estudos sobre economia mundial da Clacso, é pesquisador
da Reggen e da Redem.
1
A nomenclatura para essa situação varia de acordo com as circunstâncias/conjunturas polí-
tico-econômicas de cada momento. As economias nessa situação já foram chamadas de sub-
desenvolvidas, em vias de desenvolvimento, periféricas, “mercados emergentes”, dentre outros
neologismos.
252 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 253

sica da Cepal, entenderam desenvolvimento e subdesenvolvimento como O conceito de dependência, assim entendido, implica uma situação em
fenômenos quantitativamente diferenciados, podendo resolver o segundo que uma economia está condicionada pelo desenvolvimento e expansão de
com medidas corretivas, no plano do comércio internacional, e com uma outra a quem está subordinada, isto é, a condição de subdesenvolvimento
política econômica adequada, que dependeria das situações concretas vi- estaria conectada estreitamente à expansão dos países centrais. Essa con-
venciadas pela economia mundial.2 dição, portanto, representaria uma subordinação externa, mas com mani-
Restrição ao crescimento, fragilidade financeira, vulnerabilidade exter- festações internas nos “arranjos” social, político e ideológico.4
na e perfil concentrado de renda e riqueza seriam, dessa forma, anomalias Marini (1977, p. 18) sintetiza o significado da dependência: “(...) relación
das economias periféricas, passíveis de correção por arranjos internacionais de subordinación entre naciones formalmente independientes, en cuyo marco
e/ou políticas econômicas adequadas, ortodoxas ou não, dependendo da las relaciones de producción de las naciones subordinadas son modificadas o
filiação teórica dos proponentes. recreadas para asegurar la reproducción ampliada de la dependencia”.
O que esse tipo de perspectiva não consegue captar é que desenvolvi- Isso não é o equivalente à constatação óbvia, e quase tautológica, da
mento e subdesenvolvimento são fenômenos qualitativamente diferenciados interdependência entre as diversas economias no cenário mundial. Quan-
e ligados tanto pelo antagonismo como pela complementaridade, ou seja, do essa interdependência implica, no país dominante, expandir-se (crescer)
que, embora sejam situações antagônicas, os dois fenômenos pertencem à auto-sustentadamente, enquanto os outros só o fazem como reflexo des-
mesma lógica/dinâmica de acumulação de capital em escala mundial. sa expansão, tendo efeitos positivos e negativos no seu desenvolvimento,
A dialética do desenvolvimento assim percebida concebe que o sub- define-se a condição de dependência. Dessa forma, o subdesenvolvimento
desenvolvimento de alguns países/regiões resulta precisamente do que de- não seria um primeiro estágio de evolução rumo à modernidade desen-
termina o desenvolvimento dos demais. A lógica de acumulação de capital volvida, mas, ao contrário, característica antagônica e complementar ao
em escala mundial possui características que, ao mesmo tempo, produzem processo de desenvolvimento dentro de uma mesma lógica global de acu-
o desenvolvimento de determinadas economias e o subdesenvolvimento de mulação capitalista.5
outras. É para essa dependência dos países periféricos, em face da acu-
mulação de capital, centrada em determinadas regiões, que a teoria da 2. Condicionantes da dependência e superexploração da força de trabalho
dependência chamou a atenção.3 Entendendo assim o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como
A partir dessa perspectiva, todas as características de uma economia um par dialético, têm-se os dois fenômenos como qualitativamente diver-
periférica, citadas anteriormente, possuem um caráter estrutural, deter- sos – em vez de uma mera diferenciação quantitativa, contornável através
minado pela própria condição de dependência, não passíveis de supera- da superação de estágios de desenvolvimento – e marcados pelo antago-
ção/solução pelo mero manejo “adequado” do instrumental de política nismo e pela complementaridade. Antagonismo justamente por se tratar
econômica.
4
Santos (1970) identificou três formas históricas de dependência: (i) colonial; (ii) financeiro-
industrial; e (iii) tecnológico-industrial do pós-guerra, sob a liderança das empresas transna-
cionais. A identificação da atualidade neoliberal como uma nova forma histórica de dependên-
2
No contexto de formação da Cepal, as políticas econômicas defendidas como “corretas” esta- cia financeira poderia ser tematizada.
vam ligadas ao projeto industrializante de substituição de importações. 5
A influência da teoria marxista do imperialismo é inegável, uma vez que o subdesenvolvimen-
3
Referimo-nos aqui à teoria da dependência na sua versão marxista, como pode ser encontrada to é uma conseqüência e uma parte do processo de concentração/centralização do capital, em
em Marini (1977), Santos (1970) e Santos (2000). escala mundial.
254 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 255

de situações distintas dentro da lógica de acumulação capitalista mundial, finindo também um mecanismo de transferência de valor. Esses dois meca-
mas complementaridade por serem necessariamente elementos constitu- nismos operam dentro do condicionante (i) de dependência.
tivos dessa lógica. Adicionalmente, dada a característica atual de aprofundamento da
De um ponto de vista esquemático, e correndo todos os riscos redu- desregulamentação e abertura financeira, deve-se ressaltar o funcionamen-
cionistas desse tipo de procedimento, é possível identificar três condicio- to de outro mecanismo de transferência de valor, além daquele próprio do
nantes histórico-estruturais da dependência: (i) o fato empírico recorrente comércio internacional de mercadorias. O capital externo, na forma de in-
de perda nos termos de troca, ou seja, a redução dos preços dos produtos vestimento direto, tende a repatriar lucros e dividendos e, portanto, remete
exportados pelas economias dependentes – geralmente produtos primá- valor criado na periferia para o centro. Por outro lado, na sua forma de
rios e/ou com baixo valor agregado – vis-à-vis aos preços dos produtos endividamento, implica a transferência de valor a partir do pagamento de
industriais e/ou com maior valor agregado importados dos países centrais, juros e amortizações de dívida. Por fim, a dependência tecnológica tam-
em um verdadeiro processo de transferência de valores; (ii) remessa de ex- bém coloca a transferência de valor produzido na periferia para o centro na
cedentes dos países dependentes para os avançados, sob a forma de juros, forma de pagamento de royalties.
lucros, amortizações, dividendos e royalties, pela simples razão de os pri- De um ponto de vista histórico, pode-se afirmar que, do período
meiros importarem capital dos últimos; (iii) instabilidade dos mercados pré-capitalista até a consolidação inicial do modo de produção capitalista,
financeiros internacionais, geralmente implicando altas taxas de juros para os países desenvolvidos extraíam o excedente produzido na periferia por
o fornecimento de crédito aos países dependentes e colocando os países meio da expropriação, dentro da acumulação primitiva de capital. Mais tar-
dependentes periféricos à mercê do ciclo de liquidez internacional. de, nas regiões periféricas, a extração do excedente passa a se dar por meio
Marini (1977) procura explicar os mecanismos de transferência de dos fluxos comerciais, dentro dos mecanismos de transferência de valor já
valor inerentes ao condicionante (i) a partir de dois lados. Em primeiro observados, da expansão do capital que conduz à extração da mais-valia
lugar, operam os mecanismos internos a uma mesma esfera de produção. localmente, através dos investimentos diretos estrangeiros, e da desregula-
mentação interna e externa dos fluxos de capitais.
Como as mercadorias tendem a ser vendidas a partir do valor de mercado,
Esses elementos condicionantes da dependência provocam uma forte
isto é, do valor referente às condições médias de sua produção (produtivi-
saída estrutural de recursos, levando a recorrentes problemas de estrangu-
dade média), e os países dependentes possuem padrões de produtividade
lamento externo e restrições externas ao crescimento. A única maneira que
inferiores aos dos países do centro, ocorre a transferência de valor exceden-
a acumulação de capital interna à economia dependente tem para prosse-
te (mais-valia extra) da periferia para o centro por conta do processo de
guir seria aumentar a sua produção de excedente. Assim, ainda que uma
concorrência entre os capitais externos e internos, dentro de uma mesma
parcela crescente desse excedente seja apropriada e, portanto, acumulada,
esfera de produção. Em segundo lugar, opera o processo de concorrência
externamente, o restante (a partir da taxa de lucro interna) pode sustentar
entre distintas esferas de produção. Esse processo de concorrência reflete a
uma dinâmica de acumulação interna, mesmo que restringida e dependen-
entrada e saída de capitais de várias esferas, conforme as diferentes taxas de
te. A forma associada à condição de dependência para elevar a produção de
lucro vigentes nessas esferas, o que tende a igualar as taxas de lucro. Entre-
valor é a superexploração da força de trabalho, o que implica o acréscimo
tanto, o monopólio de produção de mercadorias com maior valor agregado
da proporção excedente/gastos com força de trabalho, ou a elevação da taxa
no centro faz com que os capitais externos possam vender seus produtos a
de mais-valia, por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho,
um preço que supera aquele que prevaleceria com iguais taxas de lucro, de-
em associação com aumento da intensidade do trabalho.
256 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 257

Ou seja, os condicionantes da dependência colocam uma maciça o outro complexificam os deficits estruturais de balanço de pagamentos,
transferência de valor produzido na periferia que é apropriado no centro formas de manifestação dos mecanismos de transferência de valor. Logo, a
da acumulação mundial, e a dinâmica capitalista na periferia é garantida manutenção de taxas de crescimento sustentadas na periferia recoloca de
pela superexploração da força de trabalho, ao invés de bloquear esses me- forma ampliada os seus condicionantes restritivos. A condição de depen-
canismos de transferência de valor. dência é estrutural (própria da lógica de acumulação mundial) e tende a
Marini (1977: 37) resume o processo: se aprofundar, justamente porque esses condicionantes são reforçados por
essa própria lógica.
lo que aparece claramente, pues, es que las naciones desfavorecidas por el in- A essa perspectiva teórica da dependência são associadas, erronea-
tercambio desigual no buscan tanto corregir el desquilibrio entre los precios y mente, ao menos duas teses que lhe são estranhas. Por um lado, afirma-se
el valor de sus mercancías exportadas (lo que implicaría un esfuerzo redobla- que essa perspectiva supervaloriza os fatores externos (de dependência),
do para aumentar la capacidad productiva del trabajo), sino más bien com- em detrimento dos fatores internos. Ao contrário, se, de fato, a dependência
pensar la pérdida de ingresos generados por el comercio internacional, através é um fenômeno externo, suas manifestações e arranjos internos não pos-
del recurso a una mayor explotación del trabajador. suem papel secundário. A aliança e o conflito entre as classes internas, sem
desconsiderar a adesão destas à ideologia e aos projetos das classes externas,
Com essa dinâmica de acumulação de capital, o capitalismo depen- assim como a luta política que é correlata, são determinantes,7 por exem-
dente pode crescer, contornando sua restrição externa.6 Entretanto, com plo, na opção de inserção externa passiva dos países latino-americanos nas
esse quadro, fica fácil entender como essa dinâmica traz consigo as conse- últimas décadas. A implementação das políticas neoliberais de abertura ex-
qüências inevitáveis da dependência: distribuição regressiva da renda e da terna e desregulamentação dos mercados, que aprofundam a dependência,
riqueza, associada a uma marginalidade e violência crescentes. pode ser entendida como fruto de uma conformação entre os interesses da
A superexploração da força de trabalho não coloca, em princípio, classe dominante da região e os imperativos político-ideológicos do centro
empecilhos para a acumulação interna de capital, ao restringir o consumo da economia mundial, implícitos no Consenso de Washington.
da força de trabalho, porque sua dinâmica de realização pode depender do Por outro lado, também é atribuído erroneamente à teoria da depen-
mercado externo e/ou de um padrão de consumo que privilegie as cama- dência o que se chama de estagnacionismo. Afirma-se que, a partir dos
das média e alta da população. Neste último caso, entretanto, o incremento condicionantes da dependência (restrição e estrangulamentos externos), a
dos lucros pode ser direcionado não como demanda interna (sem contra- economia dependente não teria como crescer, definindo uma tendência à
partida de produção interna), mas orientado para aumento de importa- estagnação crônica. Isso, como visto, é falso. Afirmar que subdesenvolvi-
ções, seja de bens de consumo para essas camadas da população, seja para mento e desenvolvimento são elementos de um mesmo processo contradi-
meios de produção necessários para a acumulação. Tanto um caso quanto

7
Nesse ponto específico não se pode desconsiderar que, em cada país/região periférico, as con-
6
A resposta periférica à sua condição dependente é mais atual do que nunca, no sentido de que, dições de formação e desenvolvimento das classes dominantes locais são específicas, de forma
“nas economias subdesenvolvidas, os ganhos de produtividade foram obtidos principalmente que é possível tanto a constituição de uma classe dominante local altamente vinculada a inte-
através do aumento nas taxas de desemprego, da jornada de trabalho e da precarização dos resses externos até uma associação mais explícita entre as duas. As especificidades de formação
trabalhadores” (Nakatani, 2002, p. 1). e desenvolvimento também são importantes no que diz respeito à classe trabalhadora.
258 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 259

tório de acumulação de capital8 não significa que a economia dependente vestimento direto, não só financiaria o crescimento econômico, como seria
não possa crescer, mas que, quanto mais cresce, no alicerce da superex- portador de inovações tecnológicas necessárias para o choque de produ-
ploração da força de trabalho, mais aguça as diferenças específicas do tividade, que, em conjunto com as políticas sociais compensatórias, com-
capitalismo central. Dessa forma, em situação de dependência, maior pletaria o “jardim do Éden” periférico, possibilitando elevação dos padrões
desenvolvimento capitalista, com o crescimento da economia dependente, de vida e redução das desigualdades. Restaria à periferia implementar a
implica maior dependência,9 o que não é sinônimo de estagnação. abertura e a desregulamentação dos mercados para atrair esse capital ex-
A teoria da dependência, assim entendida, em nada se parece com terno.11 Desenvolvimento capitalista associado e neoliberalismo são termos
a abordagem da interdependência presente em Cardoso & Faletto (1970). distintos para uma mesma proposta. Como a década de 1990 é considerada
Entender a relação da economia periférica com a economia mundial como “mais do que perdida” para a economia latino-americana, justamente por
interdependência significa defender a possibilidade de um desenvolvimen- conta da aplicação desse tipo de perspectiva, isso dispensa maiores comen-
to capitalista associado. Para essa perspectiva, seria possível um desenvol- tários críticos a essa interpretação da interdependência.
vimento capitalista periférico, associado a regimes políticos liberais e de- O importante a reter é que, dados os condicionantes histórico-estru-
mocráticos, que amenizasse os efeitos da dependência com políticas sociais turais da dependência, reforçados pela própria dinâmica de acumulação
compensatórias e conseguisse uma certa elevação do emprego nas fases de mundial, a resposta periférica para o desenvolvimento capitalista está
crescimento do ciclo mundial. Para esse pensamento, os inimigos do de- baseada na superexploração da força de trabalho e, conseqüentemente, na
senvolvimento periférico seriam as forças internas, que impediriam a eco- distribuição regressiva da renda e da riqueza, assim como no aprofunda-
nomia periférica de aproveitar as oportunidades de associação com o ciclo mento dos problemas sociais.
econômico do centro sistêmico, a saber, o populismo e o corporativismo.10
Qual é a proposta de associação com o centro capitalista? Uma vez que 3. Dialética do capital fictício: (dis)funcionalidade
este tem a possibilidade de exportar capitais, em determinadas conjuntu- do capital fictício para a acumulação
ras cíclicas, caberia à periferia oferecer condições para o crescimento desse A essa dinâmica de acumulação de capital na periferia agregam-se,
fluxo de capital externo, nos momentos favoráveis da conjuntura mundial, com maior força na atualidade, o desenvolvimento e a dialética do capital
que teria duas funções básicas. Por um lado, o capital externo superaria a fictício.
escassez de divisas que caracteriza a periferia. Por outro, sob a forma de in- O capital fictício pode ser entendido como um desdobramento (com-
plexificação) do capital portador de juros. O desenvolvimento da autono-
mização das formas do capital e a separação entre o capital-propriedade
8
É nisso, basicamente, que consiste a tese do desenvolvimento do subdesenvolvimento segun-
do Frank (1980). Sobre isso, Marini (1992, p. 88) afirma que “o subdesenvolvimento não é uma e o capital-função permitem o aparecimento do que Marx chamou de
etapa que precede o desenvolvimento, ele é um produto do desenvolvimento do capitalismo mercadoria-capital.12 É possível, a partir disso, que o capitalista-proprie-
mundial; nesse sentido, ele corresponde a uma forma específica de capitalismo, que se apura
em função do próprio desenvolvimento do capitalismo”.
9
O caso do recente “milagre” asiático é característico. Embora esses países tenham optado por 11
A proposta da nova Cepal, expressa na Reforma das reformas e na Transformação produtiva
maior soberania em suas inserções externas ativas, isso não resolveu o caráter dependente de com eqüidade, guarda insignificante distância com essa perspectiva, como pode ser constatado
suas economias, relembrado e reposto pela crise de 1997. em Ocampo (1999), Ffrench-Davis (1999), Cepal (1990) e Cepal (1998).
10
Assim como nas origens da teoria do desenvolvimento, quando o subdesenvolvimento era 12
Marx (1985, livro III, cap. 21) desenvolve essas categorias dentro da temática do capital por-
mero estágio para a modernidade, a culpa pela situação de subdesenvolvimento seria responsa- tador de juros. Especificamente sobre o capital fictício, os caps. 25, 27, e 29 são a referência
bilidade única e exclusiva de “escolhas” erradas dos próprios países dependentes. principal.
260 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 261

tário abdique de utilizar seu capital-dinheiro como meio para inserir-se no caráter fictício desse capital não lhe retira influência sobre a acumulação de
processo de produção de mercadorias e empreste seus recursos para outro capital; sua lógica interfere na dinâmica da acumulação. Essa interferência
capitalista que pretenda fazê-lo. Esse capital-função entrará no processo de é, como a própria dinâmica capitalista, contraditória, dialética. A dialética
circulação do capital, comprando meios de produção e contratando força do capital fictício está relacionada à sua (dis)funcionalidade para o processo
de trabalho, produzindo mercadorias com um valor acrescido, um exce- de acumulação de capital.
dente ou mais-valia, e vendendo essas mercadorias. A partir do resultado Como todo o processo de autonomização das formas do capital, o ca-
obtido, com a realização da mais-valia, esse capital-função poderá pagar o pital fictício apresenta uma funcionalidade para a acumulação de capital. A
seu empréstimo, acrescido dos juros (remuneração do capital-propriedade, sua centralização por parte do capital bancário15 permite o funcionamen-
ou seja, do capital portador de juros), e mesmo assim poderá apropriar-se to de atividades produtivas que, de outra forma, teriam de esperar muito
de um lucro. Juros constituem o rendimento do capital-propriedade, en- tempo para serem implementadas. Além disso, essa forma autonomizada
quanto lucro constitui o rendimento do capital-função. promove a liberação de capital para o processo produtivo, uma vez que
O desenvolvimento desse processo faz com que todo rendimento ob- recursos que seriam gastos para a compra de meios de produção e força de
tido a partir de uma determinada taxa de juros apareça como o resultado trabalho, assim como para cobranças de mercadorias vendidas e ainda não
da propriedade de um capital, isto é, da propriedade de um capital porta- pagas, não precisam mais se ocupar dessas funções, permitindo ao capital
dor de juros. Do ponto de vista do indivíduo, trata-se realmente de capital produtivo individual ocupar-se apenas do processo produtivo.16
para o seu proprietário, dado que ele consegue um rendimento em deter- Isso permite a maior acumulação global de capital, a redução do tempo
minado período. A partir dessa remuneração, para uma certa taxa de juros, de rotação do mesmo e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período.
obtém-se um montante de capital através do que se chama de capitaliza- A rotação do capital, reduzindo o tempo de seu ciclo, é uma resposta da
ção.13 Entretanto, do ponto de vista da totalidade da economia capitalista, economia capitalista à redução da taxa de lucro, imposta por seu próprio
esse capital é fictício, uma vez que tem como base a participação de títulos funcionamento de crise cíclica. O capital fictício, nesse momento, pode
de crédito em rendimentos futuros, que podem nem se realizar; além do contribuir com essa resposta do capital para sua própria crise.17
que, o mesmo título pode ser revendido inúmeras vezes, a partir da mesma Todavia, o capital fictício não produz apenas benesses para a dinâ-
taxa de juros, formando várias propriedades (direitos de participação) com mica de acumulação de capital. Ele possui a funcionalidade descrita, mas
base em apenas um montante de capital inicial, que pode nem completar o possui uma disfuncionalidade que não pode ser negligenciada. O capital
seu processo de circulação.14 fictício, do ponto de vista individual, por si só não é capaz de produzir
Assim, do ponto de vista individual, trata-se de capital para seu pro-
prietário; mas, do ponto de vista do capital global, é fictício. Entretanto, o
15
Que não precisa se restringir à instituição financeira bancária. Instituições financeiras não
bancárias podem perfeitamente cumprir essa função, como ocorre na atualidade. A categoria
capital bancário, nesse sentido, não pode ser confundida com a instituição concreta banco.
16
O capital comercial autonomizado permite o mesmo no que se refere à comercialização das
13
Capitalização seria, assim, a formação do capital fictício. A partir de um determinado ren- mercadorias produzidas. Aliás, o capital portador de juros e o capital fictício, enquanto opera-
dimento que, aplicando-se à taxa de juros vigente, forma um montante de recursos (capital), dos pelo capital bancário, podem ser entendidos como desdobramentos dialéticos do capital
independentemente do fato de esse capital existir ou não (Marx, 1985, v. V, p. 5). de comércio de dinheiro.
14
O caráter autônomo da circulação do capital fictício é explicitado quando a cotação dos pa- 17
“O período recente da expansão americana só foi possível através da transferência de mais-
péis supera o valor do capital industrial em que foi transformado o capital-dinheiro, e oscila valia produzida em todo o mundo e pela gigantesca expansão do capital fictício, o que masca-
com independência desse capital industrial em movimentos puramente especulativos. rou a pressão decrescente da taxa de lucro” (Nakatani, 2002, p. 1).
262 ■ A América Latina e os desafios da globalização Dependência e superexploração da força de trabalho ■ 263

valor excedente, mais-valia, pelo simples fato de que não entra no processo pital fictício, que não contribui diretamente na produção desse excedente,
produtivo. O que ele faz é possibilitar/facilitar o financiamento do capital a mais-valia passa a ser apropriada cada vez mais em termos financeiros do
produtivo, em alguns momentos específicos. A sua lógica diz respeito à que produtivos. Maior remuneração financeira (manifestada em altas taxas
apropriação do excedente (via juros), não à sua produção, embora ele con- de juros, por exemplo) do que taxa de lucro do capital produtivo incentiva
tribua indiretamente – via rotação do capital global – para o aumento da os capitais individuais a se transferirem para essa primeira esfera, a operar
acumulação. Assim, se a lógica da apropriação de mais-valia é alastrada/ex- segundo a lógica do capital fictício. Isso deprime ainda mais a taxa de lucro
pandida, em detrimento da produção do excedente, uma parcela cada vez do capital produtivo, uma vez que se tem menor produção de excedente,
maior do capital global procurará apropriar-se de um valor que está sendo definindo um círculo vicioso de acumulação de capital travada.
produzido cada vez menos. O resultado final é a redução da taxa de lucro e Assim, a acumulação de capital “virtuosa” expande as fases ascenden-
o aprofundamento do comportamento cíclico da crise. tes do ciclo, impulsionadas pela funcionalidade do capital fictício, enquan-
Por um lado, a funcionalidade do capital fictício permite o prolonga- to a acumulação de capital travada aprofunda a fase descendente – crise –,
mento da fase ascendente do ciclo, possibilitando a redução do tempo de complexificada pela disfuncionalidade do capital fictício.
rotação do capital global e elevação da taxa de lucro. Por outro lado, quando Essa dialética do desenvolvimento periférico permite entender, por
sua lógica individual de apropriação se expande, a fase descendente (cri- exemplo, o que ocorreu na economia da América Latina durante os anos
se) do ciclo também é aprofundada. A disfuncionalidade do capital fictício 1990. Nos poucos períodos em que o capital fictício foi funcional à acu-
amplia as potencialidades da crise. A dialética do capital fictício, com sua mulação de capital, acelerando sua rotação e financiando investimentos
(dis)funcionalidade, complexifica/amplia a tendência cíclica do processo produtivos, as economias apresentaram um leve crescimento. Entretanto,
de acumulação de capital. durante a maior parte do período, a região apresentou uma dinâmica de
Qual é a relação dessa característica, inerente ao funcionamento do acumulação de capital travada, de forma que a elevação da taxa de mais-
modo de produção capitalista, com a possibilidade de desenvolvimento ca- valia por intermédio da superexploração da força de trabalho não se trans-
pitalista na periferia, baseada na superexploração da força de trabalho? formou em maior ritmo de acumulação de capital, porque a apropriação fi-
A superexploração da força de trabalho por arrocho salarial e/ou ele- nanceira pelo capital fictício reduziu as taxas de lucro do capital produtivo,
vação da jornada e da intensidade do trabalho faz com que se produza uma principal incentivo para a acumulação de capital.
maior massa de mais-valia em relação ao valor criado no processo pro- A década mais do que perdida para a região, como ficou conhecido o
dutivo, aumentando a taxa de mais-valia. Quando esse maior excedente é período, combinou superexploração da força de trabalho com uma acumu-
apropriado em maior proporção pelo capital produtivo, são criadas as con- lação de capital travada.
dições para a acumulação de capital acelerada, “virtuosa”.18 Por outro lado,
quando a lógica de apropriação do excedente se amplia, sob a lógica do ca- Bibliografia
CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na Améri-
ca Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
18
Obviamente, o “virtuoso” aqui diz respeito aos interesses do capital que aumenta o ritmo CEPAL. América Latina y El Caribe: políticas para mejorar la inserción en
de sua acumulação com maiores taxas de lucro. Do ponto de vista da força de trabalho, sua la economía mundial. 2. ed. Santiago: Fondo de Cultura Económica,
superexploração redunda, como visto, em distribuição regressiva da renda e da riqueza e na
ampliação das mazelas sociais. 1998.
264 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 265

________. Transformación productiva con equidad: la tarea prioritária del


desarrollo de América Latina y el Caribe en los años noventa. Santia-
go, 1990.
FFRENCH-DAVIS, R. Macroeconomía, comercio y finanzas: para reformar
las reformas en América Latina. Santiago: Cepal/McGraw-Hill, 1999.
FRANK, A. G. Acumulação dependente e subdesenvolvimento: repassando a
teoria da dependência. São Paulo: Brasiliense, 1980. Parte IV
MARINI, R. M. América Latina: dependência e integração. Brasil Urgente,
1992. ■
________. Dialéctica de la dependencia. 3. ed. México: Era, 1977. Serie Po-
pular. Pensamento latino-americano e
MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultu-
ral, 1985.
mundo contemporâneo
NAKATANI, P. A crise atual do sistema capitalista mundial. VII Encontro
Nacional de Economia Política. Curitiba: Sociedade Brasileira de Eco-
nomia Política, 2002.
OCAMPO, J. A. La reforma del sistema financiero internacional: um debate
em marcha. Chile: Fondo de Cultura Económica/Cepal, 1999.
SANTOS, T. dos A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
________. The structure of dependence. The American Economic Review,
Nova Iorque, 1970.
266 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 267

Vigência e debate em torno da


teoria da dependência

Marco A. Gandásegui, filho*

Este artigo começará com uma breve introdução ao debate em tor-


no da teoria da dependência que caracterizou a década de 1970, centrado
nos sociólogos Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva. Em continuação, uma
abordagem da relação entre as noções de desenvolvimento e dependência,
para compreender os elementos constitutivos da teoria da dependência e a
crítica dos “marxistas tradicionais”. Serão abordados três conceitos centrais
ao debate em torno da teoria da dependência – teoria do valor, imperialis-
mo e sujeito histórico –, e o artigo termina com uma conclusão relevante
para o começo do século xxi.

As contribuições que foram feitas durante o debate sobre a teoria da


dependência na década de 1970 estão reaparecendo por causa da urgência
de encontrar os instrumentos teóricos que orientem a ação política dos
povos nesta conjuntura dominada pela crise do neoliberalismo (Sotelo,
2001). Nesta comunicação, queremos resgatar o debate em torno da teoria
da dependência que Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva personificaram
na década de 1970. Para Marini, a essência da dependência reside em uma
profunda contradição que aparece como conseqüência do contraste entre
a capacidade produtiva do trabalho nos países que se situam no centro do
sistema capitalista (consumidores de “bens de salário”) e a superexploração

* Doutor em Sociologia pela Universidade do Estado de Nova Iorque (Suny). Desde 1971, é
professor de Sociologia na Universidade do Panamá. Diretor do Cela (Panamá), ex-presidente
da Alas, fundador e ex-ccordenador do grupo sobre Estados Unidos da Clacso.
268 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 269

do trabalhador nos países periféricos (consumidores de “bens de produ- çava a nascer e que se caracteriza pela afirmação hegemônica, em todos os
ção” dos países centrais). Isso explica a crescente separação entre os países planos, dos grandes centros capitalistas. (Marini, 2005)
do centro e os países da periferia. Ao contrário, segundo Cueva, a divisão
entre países mais e países menos desenvolvidos é o resultado da presen- Não se pretende, neste momento, fazer uma avaliação dos debates em
ça de formas pré-capitalistas de produção ainda enquistadas nos países torno da teoria da dependência. O seu aparecimento na década de 1960 e a
dependentes. Cueva rejeitou a proposta de Marini, por entender que a sua preeminência na década seguinte se deveram, em parte, aos processos
dependência e a superexploração eram “tendências” históricas e, como sociais que sacudiam o mundo e, em particular, ao continente americano
tais, careciam de consistência teórica. naquela época. O desenvolvimento do capitalismo no quarto de século após
Queremos demonstrar neste artigo que a teoria da dependência ainda a Segunda Guerra Mundial (1945-1970) introduziu profundas transforma-
tem vigência e que pode ser aplicada em escala global e também nas análises ções na região latino-americana (a Revolução Cubana foi o epicentro), o que
por região e mesmo por país (por cada formação social). As idéias sobre a não deixou de revolucionar a estrutura social.
dependência, desenvolvidas na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, Agustín Cueva diria que
partem do princípio de que as leis que caracterizam o desenvolvimento do
a década de 1960 inicia um tipo de época de ouro das nossas ciências sociais,
capitalismo podem ser aplicadas onde essa organização da produção (social
que pela primeira vez deixam de ser uma mera caixa de ressonância do que
e material) é dominante ou exerce uma influência importante. Além disso,
se diz na Europa e nos Estados Unidos para configurar sua própria proble-
elas podem explicar o surgimento de pólos diferenciados de desenvolvi-
mática e até pretender elaborar sua própria teoria: a teoria da dependência.
mento no sistema capitalista mundial.
(Cueva, 1987, p. 176-177)
No início do século xxi, existem incertezas sobre a pertinência dos
conceitos associados à teoria da dependência. Agustín Cueva diria que, no Ruy Mauro Marini dá um passo a mais ao destacar a influência das
calor dos acontecimentos que sacudiram a região latino-americana no final ciências sociais e, em particular, as noções sobre a dependência naquele
da década de 1970, há 25 anos, o debate em torno das noções de dependên- período, sobre a produção teórica em todo o mundo. Segundo Marini, a
cia perdeu o seu impulso original. Segundo Cueva, o debate girava teoria da dependência contribuiu para o “estudo da América Latina pelos
próprios latino-americanos...”; da mesma maneira, ela conseguiu inverter
entre a teoria da dependência e uma teoria da “articulação de modos de
“pela primeira vez o sentido das relações entre a região e os grandes cen-
produção sob o domínio capitalista”, discussão que na sua época levantou
tros capitalistas (...). Em vez de receptor, o pensamento latino-americano
acesas paixões, mas que hoje, à distância (final da década de 1980), parece
passou a influir sobre as correntes progressistas da Europa e dos Estados
em grande medida superada (...). (Cueva, 1987, p. 178)
Unidos” (Marini, 2005).
Sobre a influência das correntes de pensamento da periferia em escala
Ruy Mauro Marini atribuiria a perda de vigência das noções em torno
mundial, Samir Amim diria que “o pensamento social crítico se moveu
da dependência a outros fatores. De acordo com o sociólogo brasileiro,
durante as décadas de 1960 e 1970 para a periferia do sistema”.1
a pobreza teórica da América Latina na década de 1980 é, em ampla medida, 1
“No centro dessa crítica havia uma nova advertência sobre a polarização criada pela expansão
o resultado da ofensiva contra a teoria da dependência, o que preparou o global do capital, que tinha sido subestimada e às vezes ignorada há já um século e meio. Essa
terreno para a reintegração da região ao novo sistema mundial que come- crítica está na origem da entrada da periferia no pensamento moderno (...). Mais ainda, essa
270 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 271

Dependência e desenvolvimento É preciso reconhecer as importantes contribuições das teorias do


As idéias sobre a dependência penetraram em amplos setores das ciên- desenvolvimento que incorporaram noções sobre o intercâmbio desigual
cias sociais em todos os centros acadêmicos e políticos do mundo. O con- e a exploração da força de trabalho (Kay, 2001). Talvez a proposta mais
ceito mais comum sobre as relações de desigualdade (que faziam referência destacada que as teorias desenvolvimentistas fizeram se referia à suposta
à oposição entre dominação e dependência) fazia referência à antinomia viabilidade de um desenvolvimento capitalista sem transformações radi-
desenvolvimento e subdesenvolvimento. Para muitos, essa relação era um cais ou levantes violentos. A proposta, ancorada nas críticas à economia
eufemismo para diferenciar os países ricos dos países pobres. Também se política de Marx e Keynes, assegurava que os países da periferia podiam
referia ao contraste entre Estados poderosos e Estados fracos. alcançar o centro do sistema capitalista mediante negociações políticas e
A maioria dessas abordagens tinha como referência elementos em- político-econômicas. Cardoso e Faletto, no seu texto clássico publicado em
píricos e de sentido comum. Não se podiam negar as relações coloniais, 1969, afirmariam que
neocoloniais e de outra natureza que caracterizavam as relações entre os
países mais ricos e os países mais pobres, tanto no presente quanto no a superação ou a manutenção das “barreiras estruturais” ao desenvolvimento
passado. Essas relações são de dominação, são impostas – a maioria das e à dependência, mais do que as condições econômicas tomadas isolada-
vezes – por meios violentos. mente, dependem do jogo de poder que permitiria a utilização em vários
A teoria da dependência, no entanto, não tinha como propósito fa- sentidos dessas condições econômicas. (Cardoso & Faletto, 1969, p. 165)
zer uma descrição das relações na estrutura de poder ou das diferenças na
organização econômica entre os países em escala global. Esse trabalho já Enquanto os desenvolvimentistas propunham um desenvolvimento
tinha sido realizado, de maneira minuciosa. As correntes positivistas são capitalista com “dependência associada”, os marxistas rejeitavam essa pro-
suas paisagens contrastantes entre “civilização” e “barbárie”. Do mesmo posta em diferentes graus. O debate entre as diferentes correntes marxistas
modo, o funcionalismo deu suas contribuições sistemáticas, desenhando girou precisamente em torno do conceito de dependência e dos seus efeitos
um mundo “dual”, separando os povos “modernos” daqueles apegados ao sobre o desenvolvimento capitalista. É preciso recordar, como assinala
“tradicional”. Os avanços da pesquisa funcionalista, que se autodenomina- Sotelo, que são muito diversas as correntes
vam “científicos”, criavam indicadores de natureza diversa para medir as
diferenças, os avanços e os retrocessos das instituições sociais.2 que concorrem para caracterizar a dependência como conceito, hipótese ou
teoria (...). Ainda que todas falem da dependência, o que as distingue é o
predomínio ou a subordinação que o conceito de dependência ocupa dentro
de aparato teórico-conceitual.
crítica fez reviver o debate sobre o marxismo e sobre o materialismo histórico, entendendo
desde o início a necessidade de superar os limites do eurocentrismo que vinha dominando o Para a Cepal, a dependência é uma categoria conjuntural, “na medida em
pensamento moderno” (Amim, 2000). que pode ser superada pela ação da política econômica dos governos”. Ao
2
“Por exemplo, Gino Germani (1971) dizia que “todos os estudos comparativos, baseados na
utilização de uma variedade de indicadores de modernização econômica, política e social, si-
contrário, Frank sustentava que “a dependência e o subdesenvolvimento são
tuam a América Latina em uma posição na metade superior da escala” (p. 13). Esse autor, no categorias estruturais que correspondem ao modo de produção capitalista e
entanto, também dizia que “muito pouco se poderia entender acerca da situação da América
somente são superadas com a sua abolição”. (Sotelo, 2001, p. 52)
Latina sem levar permanentemente em consideração as diversas formas e os graus de depen-
dência implicados na ‘situação periférica’ (...)” (p. 9).
272 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 273

Os chamados marxistas tradicionais, apoiados em noções elaboradas dentro do padrão de acumulação capitalista e eram mesmo um estímulo
pelos desenvolvimentistas, sustentavam a viabilidade de uma aliança po- para a sua consolidação com base em suas duas premissas: abundância de
pulista entre capitalistas e operários. Também subscreviam parcialmente matéria-prima e abundância de mão-de-obra. A industrialização posterior
as teses da Cepal no sentido de que, se eles tomassem o poder, poderiam do século xx estaria solidamente assentada nas premissas deixadas pela
impulsionar políticas transformadoras a partir do governo. Os marxistas economia exportadora (em todos os sentidos). Dessa análise, Marini diria
da “nova esquerda” rejeitaram essa possibilidade, assinalando que as leis que “a história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do
próprias do desenvolvimento capitalista cancelavam essa alternativa.3 desenvolvimento do sistema capitalista mundial”.
A respeito desse ponto, a teoria da dependência da corrente marxista
desenvolveu uma proposta original. Nas palavras de Ruy Mauro Marini, A teoria da dependência e sua crítica marxista
era preciso “buscar uma teoria intermediária que, baseada na teoria mar- Marini entendeu a relação de dependência, no marco do desenvol-
xista, conduzisse a compreensão do caráter subdesenvolvido e dependente vimento capitalista, como o produto de uma “profunda contradição” que
da economia latino-americana e sua legalidade específica”. emerge como conseqüência do contraste entre a capacidade produtiva do
Na Dialética da dependência, Marini rejeitaria trabalho, nos países centrais, e a acumulação fundada na superexploração
do trabalhador, nos países periféricos. “Nesta contradição reside a essência
a linha tradicional da análise do subdesenvolvimento, mediante a qual esta da dependência latino-americana” (Marini, 1973, p. 49). É preciso ver esse
se fazia através de um conjunto de indicadores que, por sua vez, serviam processo um pouco mais de perto. Assinalava Marini:
para defini-lo (...). O resultado não somente era descritivo, mas também
tautológico: um país seria subdesenvolvido porque seus indicadores corres- Nos países industriais, apesar de que o capital privilegie o consumo produti-
pondiam a um certo nível de uma escala determinada e esses indicadores vo do trabalhador (o processo de trabalho) e se incline a negar o seu consu-
se situavam nesse nível porque o país era subdesenvolvido. (Marini, 2005, mo individual (para repor a sua força de trabalho), isso se dá exclusivamente
p. 19-20) no momento da produção. Ao se abrir a fase de realização, esta contradição
aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do
Marini mudou o eixo sobre o qual se estudava o subdesenvolvimento capital desaparece, uma vez que esse consumo (somado ao dos capitalistas e
e começou a investigar a relação e a integração da América Latina no mer- das camadas improdutivas em geral) faz retornar para o capital a forma que
cado mundial. O seu estudo sobre a economia exportadora do século xix o lhe é necessária para começar um novo ciclo, um elemento decisivo na cria-
levou a concluir que esse processo era o resultado de uma transição para o ção da demanda para as mercadorias produzidas (...). (Marini, 1973, p. 51)
capitalismo, no marco de uma determinada divisão internacional do traba-
lho. Portanto, as transferências de valor que eram feitas da periferia para o Ao contrário, afirma ainda ele:
centro não constituíam “anomalias ou obstáculos”, mas antes eram normais
na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra ma-
neira. Como a circulação se separa da produção e se realiza basicamente no
3
Agustín Cueva assinalaria, em meados da década de 1980, que, “para o caso da América
âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não in-
Latina, não é supérfluo recordar que também existem diferenças muito claras no desenvolvi-
mento dos partidos comunistas” (Cueva 1987, p. 166). terfere na realização do produto, ainda que determine a taxa da mais-valia.
274 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 275

Em conseqüência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao má- Cueva reconheceu a contribuição teórica de Marini, mas indicou
ximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar com criar as con- o seu desacordo com a corrente desenvolvida pelo sociólogo brasileiro,
dições para que este a reponha, sempre e quando ele possa ser substituído afirmando que ela distorcia alguns conceitos centrais do marxismo. Para
mediante a incorporação de novos braços no processo produtivo (...). [O] aquele autor, não havia como negar a “situação” real da dependência, a
resultado foi o de dar livre curso à compressão do consumo individual do partir de uma perspectiva histórica. No entanto, considerava que não era
operário e portanto à superexploração do trabalho. (Marini, 1973, p. 52) correto colocar uma teoria da dependência com fins explicativos (Roit-
man, 2005).
Levando em consideração essa contradição, entende-se como É interessante constatar que Marini trabalhou no seu livro Dialética
da dependência durante vários anos, quando trabalhava no Ceso da Uni-
a produção latino-americana não depende, para a sua realização, da capa- versidade do Chile. Na sede do Ceso, em Santiago do Chile, trabalhava com
cidade interna de consumo. Assim, se dá, a partir do ponto de vista do país pesquisadores como Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra, entre outros.
dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capi- O livro foi publicado na Cidade do México pela Era em 1973. Cueva, ao
tal – a produção e a circulação de mercadorias –, cujo efeito é fazer com que contrário, encontrava-se trabalhando na Unam no marco das correntes
apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição marxistas tradicionais (em estreito contato com Sergio de la Peña e Roger
inerente à produção capitalista em geral, quer dizer, a que opõe o capital Bartra, entre outros), que desenvolviam noções em torno da “articulação
ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias. (Marini, dos modos de produção”.
1973, p. 50) Apesar das distâncias que separavam os diferentes centros de produ-
ção de ciências sociais na região, existiam excelentes meios de comunicação.
A conclusão de Marini é simples. Quanto maior for o desenvolvimen-
Não surpreende, portanto, que, mesmo quando o livro de Marini veio a
to capitalista, maior será a superexploração do trabalhador na periferia e,
público em setembro de 1973, já no XI Congresso da Associação Latino-
em particular, do trabalhador latino-americano. A única solução é romper
Americana de Sociologia (Alas), realizado em julho de 1974, Cueva tenha
a relação de dependência e começar a construir uma nova forma de acu-
feito uma severa crítica às teses dependentistas sustentadas pelo sociólogo
mulação que beneficie os trabalhadores da região.
brasileiro.
O “marxismo tradicional” questionou essa tese e confrontou a teoria
Na comunicação que apresentou no Congresso da Alas, organizado
da dependência. Do mesmo modo que as outras correntes de pensamento,
pela Universidade da Costa Rica em San José, Cueva começou fazendo
os marxistas vinculados à linha tradicional apresentaram as suas críticas
uma clara separação de águas:
à totalidade das propostas “dependentistas”. Poder-se-ia colocar Agustín
Cueva à cabeça dessa ofensiva.4 Diferentemente da maioria dos críticos, no
A teoria da dependência, pelo menos na sua vertente de esquerda, nasce
entanto, Cueva teve o bom critério de distinguir entre os “dependentistas”
marcada por uma dupla perspectiva (...). Em primeiro lugar, surge como
marxistas, os desenvolvimentistas e mesmo os funcionalistas.
uma violenta impugnação da sociologia burguesa (...). Por outro lado, surge
em conflito com o que, a partir de certo momento, resolverá chamar-se de
4
Anos mais tarde, Cueva admitiria que “nunca achamos que as nossas críticas de meados da
“marxismo tradicional”. (Cueva, 1979, p. 65)
década de 1970 à teoria da dependência, que pretendiam ser de esquerda, poderiam se somar
ao aluvião direitista que depois se precipitou sobre aquela teoria” (Marini, 2005, p. 43).
276 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 277

Nessa vertente de esquerda, Cueva colocaria de forma explícita os tra- nossas sociedades que determina, em última análise, a sua vinculação ao
balhos de Vitale, Frank, Quijano, Theotonio, Vânia Bambirra e Ruy Mauro sistema capitalista mundial.
Marini. Também menciona Stavenhagen, Weffort e Cardoso.5 Enquanto Cueva descarregava todo o seu peso conceitual na sua crí-
Cueva questionou a forma como Marini utilizou o processo de produ- tica a Marini, este não parou de indicar os erros metodológicos em que
ção capitalista e sua manipulação da noção de circulação. Dizia ele: incorriam os marxistas tradicionais. Nas primeiras páginas de Dialética da
dependência, Marini mostrava que
Essa mesma produção exportável, que torna possível a implantação de um
modo de produção especificamente capitalista nos países industrializados, os pesquisadores marxistas incorreram, no geral, em dois tipos de desvios:
tem como contrapartida, nos países dependentes, o estabelecimento de um no primeiro caso, os estudos marxistas chamados de ortodoxos (...) [dão]
modo de produção baseado na superexploração. Quer dizer, na remune- lugar a descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico,
ração permanente do trabalho abaixo do seu valor, o que por sua vez se sem se fundir com ele. No segundo (...) os estudiosos de formação marxista
transforma em um freio para o desenvolvimento (...). (Cueva, 1979, p. 89) recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a
conseqüência necessária desse procedimento é o ecletismo (...).
Essa abordagem de Cueva despertou equívocos. Afirmava-se que
Marini tinha proposto um novo modo de produção dependente para ex- E acrescentava:
plicar o desenvolvimento latino-americano e do Terceiro Mundo em geral.
Estes desvios nascem de uma dificuldade real: diante do parâmetro do modo
Qualquer consideração desse tipo foi descartada logo depois, sem que
de produção capitalista puro, a economia latino-americana apresenta pecu-
Marini tivesse de discutir a fundo as suas implicações.
liaridades, que são tidas às vezes como insuficiências e outras – nem sempre
Cueva também criticou Marini, na sua memorável comunicação, pelo
distinguíveis facilmente das primeiras – como deformações (...). Por isso,
que chamou de falta de rigor histórico. Rejeitou sua proposta que susten-
mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis
tava que, para entender o padrão de acumulação dos países da periferia,
que só adquire sentido quando o contemplamos na perspectiva do sistema
era necessário entender o desenvolvimento capitalista em escala mundial.
no seu conjunto, tanto em nível nacional, como principalmente em nível
Nesse caso, Cueva subordinava o desenvolvimento capitalista mundial a
internacional. (Marini, 1973, p. 14-15)
supostas formações históricas feudal-oligárquicas que resistiam às trans-
formações que o imperialismo lhes impunha. Os enfrentamentos entre Cueva e Marini – em congressos, nas sa-
Finalmente, Cueva rejeitou a abordagem da teoria da dependência, las de aula e em publicações – contribuíram para esclarecer um conjunto
que assinala que a natureza das formações sociais seria determinada, em de perguntas sobre o desenvolvimento do capitalismo, particularmente a
última análise, por sua forma de articulação no sistema capitalista. Sugeriu teoria do imperialismo do final do século xx. Podemos mencionar seis
inclusive inverter a afirmação e se perguntar se não era antes a natureza das antinomias que foram enfocadas pelos dois sociólogos:
1a) Dominação e hegemonia. Sem desconhecer o valor do conceito de
hegemonia de Gramsci, Cueva o relegava a um segundo plano diante da
5
Sobre o livro de Cardoso e Faletto (1969), Cueva pontua “que todo o discurso teórico dos
autores parece remeter constantemente a um duplo código e ser suscetível, portanto, de duas noção de dominação. Provavelmente, essa diminuição de importância da
leituras, uma marxista e outra desenvolvimentista (...)” (Cueva, 1979, p. 74). contribuição crítica de Gramsci se deveu ao embate entre os eurocomunis-
278 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 279

tas e marxistas tradicionais da época. Marini empregou ambos os conceitos mesmo padrão em escala mundial, que pode apresentar manifestações dis-
e os utilizou de forma dialética, afirmando que os dois faziam parte de um tintas em diferentes momentos conjunturais (a noção de superexploração
só movimento na luta de classes. é um bom exemplo).
2a) Etapas e sistemas. No caso de Cueva, ele apresentava as três etapas 6a) Um bloco socialista em construção ou um socialismo realmente exis-
no desenvolvimento do capitalismo na América Latina como articulações tente. Reforma ou revolução. Para Marini, era necessário colocar as reformas
de diferentes modos de produção. Ao contrário, Marini situava sua crítica no marco de alternativas revolucionárias, ao invés de processos contínuos
no marco de um sistema internacional capitalista, em que a burguesia dos que conduziam o regime político capitalista ao seu fortalecimento. Cueva
países dominantes exercia a sua dominação em escala global, em um pro- sustentava a construção do socialismo em um país por via de aproximações
cesso caracterizado por contradições e conflitos. e reformas cumulativas.
3a) Colonialismo e dependência. Segundo Cueva, a dependência da Em seguida, foram enfocados três conceitos marxistas desenvolvidos
América Latina em relação às potências européias remonta à colônia e à por Marini para explicar a dialética do desenvolvimento capitalista mun-
conquista. É um fenômeno histórico com adornos econômicos e culturais dial e o modo como aparecem as relações de dependência. Nessa aborda-
explícitos. Para Marini, a dependência é um produto do desenvolvimento gem, serão incorporadas as críticas de Cueva.
do capitalismo, que gera uma relação dialética entre o centro do sistema Em primeiro lugar, Marini sustentou que qualquer estudo do capita-
que se expande e a periferia que é submetida à sua lógica. lismo (entendido como sistema mundial) tinha de partir da teoria do valor
4a) Processos nacionais e processos globais. Segundo Cueva, a luta de (do trabalho social) desenvolvida por Marx na sua crítica da economia po-
classes deve ser estudada em cada formação social, e daí a importância das lítica. A pergunta fundamental era (e continua sendo): como se produz a
lutas de libertação nacional. O papel dos partidos marxista-leninistas e o en- mais-valia e como esta se transforma em lucro para o capitalista? Por um
frentamento do imperialismo são de vital importância para conduzir essas lado, ela é fundamental porque ainda é a pergunta que serve para poder
lutas. Para Marini, a luta de classes ocorre entre os capitalistas e os trabalha- entender o nível que alcançou a luta de classes no início do século xxi. Por
dores submetidos a uma lógica global. É entendendo esse processo em escala outro, o debate serviu para descartar definitivamente, naquele momento, a
internacional que os setores mais avançados da classe operária de cada país suposta necessidade de erradicar um feudalismo inexistente.
podem culminar com êxito as revoluções políticas e a tomada do poder. Em segundo lugar, Marini sustentava a necessidade de utilizar a teoria
5a) Somente um sistema capitalista e dois sistemas capitalistas. A crí- do imperialismo e a sua aplicação nas contradições geradas pelo desenvol-
tica mais severa de Marini aos marxistas tradicionais estava baseada no vimento do capitalismo na segunda metade do século xx. Nesse aspecto,
conceito retirado dos estruturalistas, que colocava em lugares opostos o todas as implicações teóricas do imperialismo foram submetidas a um exa-
desenvolvimento e o subdesenvolvimento, um conceito inserido em uma me no marco das antinomias assinaladas supra.
articulação de dois ou mais modos de produção, o que levava à proposta de Finalmente, Marini introduziu no debate o problema do sujeito his-
que podiam coexistir dois sistemas capitalistas. Por um lado, o capitalismo tórico e o papel das classes sociais, da nação e dos partidos políticos. A
avançado; por outro, o capitalismo atrasado, cada um com as suas próprias discussão em torno do estatuto teórico da classe operária, de suas alianças
características. Marini sustentava que o desenvolvimento e o subdesenvol- e do seu projeto socialista é o elemento central nesse tema. Além disso, a
vimento eram indicadores que podiam ser úteis para descrever situações discussão sobre a construção do socialismo e o rompimento com o sistema
concretas. No entanto, a tendência da acumulação capitalista segue um capitalista vai desempenhar um papel importante.
280 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 281

A teoria do valor foi que, na prática, pôs fim às ideologias que pretendiam explicar o sub-
Apoiando-se na teoria do valor, Ruy Mauro Marini penetrou nas áre- desenvolvimento como uma conseqüência do suposto atraso (escassez de
as mais profundas do modo de produção capitalista. A sua primeira pre- instituições modernas) dos países periféricos. Mais importante, nesse sen-
ocupação estava relacionada com a forma na qual as relações sociais de tido, os debates deram um ponto final aos discursos que colocavam entre as
produção capitalistas produzem excedentes (mais-valia) e como estes se prioridades a liquidação do feudalismo na América Latina.
transformam em lucros. É nessa exploração que Marini coloca a sua prin- O subdesenvolvimento capitalista é o resultado de uma lógica que é
cipal tese, a qual, por outro lado, foi objeto de severas críticas por parte dos própria do desenvolvimento capitalista. Em outras palavras, o desenvol-
marxistas tradicionais. vimento capitalista e o subdesenvolvimento capitalista só podem ser expli-
Para entender o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, cados através da compreensão das próprias leis gerais do capitalismo. Essa
na periferia do sistema capitalista, Marini afirma que é preciso desen- lógica eliminava das discussões teóricas qualquer menção ao feudalismo
tranhar o problema da circulação (dos valores de troca no processo de como forma de organização social da produção, que freava o desenvolvi-
produção). Diferentemente dos países centrais, nos quais o momento da mento capitalista. Desaparecia, por sua vez, a proposta de uma aliança entre
produção determina todo o ciclo, nos países dependentes é a circulação as classes capitalista e operária para liquidar os remanescentes feudais supos-
que ainda define o processo. É importante levar em consideração essa dis- tamente enquistados nas formações sociais dos países subdesenvolvidos.
tinção, diz Marini, já que ela permite explicar por que a força de trabalho Obviamente, isso não implicava desconhecer a forma de organização
na periferia é objeto de superexploração. da produção social historicamente associada ao feudalismo. Como resulta-
Como a circulação se separa da produção e se realiza basicamente no do do debate em torno da teoria da dependência, a discussão política sobre
âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não in- as tarefas correspondentes à classe operária não passou mais por alianças
terfere na realização do produto, embora determine a taxa de mais-valia. de classe para combater senhores feudais inexistentes.
Em conseqüência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao má- A superexploração não era um remanescente do feudalismo, tal como
ximo a força de trabalho do operário (Marini, 1973, p. 49). a preeminência da circulação tampouco era. Marini deixou assentada a ne-
A transferência desses lucros para os países industriais se transforma, cessidade de continuar aprofundando na descoberta das relações entre os
de acordo com Marini, em uma condição necessária do capitalismo mun- processos de acumulação do capitalismo como sistema mundial.
dial. A crise de superprodução que afetava o sistema capitalista mundial Segundo Sotelo, alguns autores vêem a noção de Marini sobre a supe-
a partir da década de 1970 alterou parcialmente esse processo.6 Autores rexploração como a sua contribuição mais acabada e original. Vânia Bam-
como Harvey (2005) afirmam que, atualmente, o capitalismo voltou às suas birra diria que “a grande contribuição de Marini à teoria da dependência
práticas “primitivas” de rapina, por não conseguir as taxas médias de lucro foi ter demonstrado como a superexploração do trabalho configura uma lei
necessárias para a sua reprodução. de movimento própria do capitalismo dependente” (Sotelo, 2001, p. 55).
Uma das conseqüências mais importantes, do ponto de vista político, Agustín Cueva, porém, tinha outra posição diante dos avanços de
que teve o debate em torno das noções de circulação e superexploração Marini. Diria ele: “A nós nos parece extremamente controvertidas aquelas
posições teóricas que, a partir de um fato certo, qual seja, a situação de de-
6
Segundo Harvey, “o único ponto de acordo geral é que algo significativo tinha mudado no
pendência, consideram que a história das nossas nações é um mero reflexo,
modo de funcionamento do capitalismo desde 1970”. Apud Giovani Arrighi (1999, p. 16). positivo ou negativo, do que acontece fora delas.”
282 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 283

Cueva afirmava ainda “que o desenvolvimento do capitalismo não mercado mundial e como um estímulo ao desenvolvimento da produção
é outra coisa senão o desenvolvimento das suas contradições específicas, capitalista latino-americana com base em duas premissas (abundância de
quer dizer, de um conjunto de desigualdades presentes em todos os níveis recursos naturais e abundância de mão-de-obra = superexploração do tra-
da estrutura social”. balho). (Marini, 2005, p. 20)
Até aqui, não há contradições com as noções de Marini. De acordo
com essa lógica, Cueva acrescentaria que o desenvolvimento do capitalismo De acordo com a exposição de Cueva, o desenvolvimento do capitalis-
na “América Latina não constitui propriamente uma infração à regra, mas mo na América Latina, através dos investimentos e da modernização, leva-
antes uma realização ‘extrema’ dela própria”. Para Marini, aqui se apresenta va à criação de novas condições favoráveis para uma transformação social.
uma ambigüidade que levaria Cueva por um caminho sem saída. Por isso, Em outras palavras, o desenvolvimento do capitalismo na América Latina
Cueva acaba afirmando que, “aqui, o desenvolvimento desigual adquire por acabaria por criar contradições de classe que só poderiam ser resolvidas
isso o caráter de uma verdadeira ‘deformação’, ao mesmo tempo em que a pelo aparecimento de novas formas de organização social. A posição de
exploração e a conseqüente pauperização das massas assumem o caráter de Marini era que precisamente o desenvolvimento do capitalismo na região
uma ‘superexploração’ (...)” (Cueva, 1977, p. 99). (ou no terceiro mundo, em geral) aprofundava as relações sociais capitalis-
Cueva insistiria, diversamente das colocações dos teóricos da depen- tas de dependência, quer dizer, a superexploração da força de trabalho.
dência marxistas, que os investimentos do centro capitalista contribuíam Cueva assinalaria depois, no final da década de 1980, em um capítulo
para a redefinição das relações de produção nos países da periferia. Marini, intitulado “A superexploração revisitada”, que, “no plano da abstração mais
por sua vez, consideraria que esse enfoque passava por alto a mais impor- elevada, acaba sendo praticamente impossível sustentar uma teoria da
tante análise do desenvolvimento capitalista em escala mundial. A repro- superexploração” (Cueva, 1988, p. 53). No entanto, acrescentaria:
dução de relações desiguais entre os setores que configuram a sua estrutura
social é parte medular do desenvolvimento capitalista e a constituição de só o fato de que algo não apareça com nitidez no plano teórico não demons-
relações de dependência é uma das características mais importantes do tra que não exista no plano histórico. Tal como a dependência, a superex-
sistema capitalista mundial. ploração pode se dar dentro de uma constelação histórico-concreta sem que
De acordo com Marini, a modalidade do desenvolvimento capitalis- necessariamente reflita uma legalidade teórica inexorável.
ta na América Latina não tem características “extremas” ou “deformadas”.
Essa modalidade “funciona” para a economia capitalista mundial e “altera” a Cueva também não aceitou a fundamentação teórica da superexplora-
economia latino-americana. Marini afirmaria que “a economia exportadora, ção exposta por Marini. Mas admitiria que se trata “de um fato pelo menos
que surge em meados do século xix, aparecia como o processo e o resultado tendencial, dadas não tanto as características teóricas do modo de produ-
de uma transição para o capitalismo e como a forma que assume esse capita- ção capitalista, mas antes as modalidades concretas de articulação do capi-
lismo, no marco de uma determinada divisão internacional do capitalismo”. talismo em escala mundial, isto é, do imperialismo”.
Como conseqüência disso: Além disso, em um gesto muito próprio de Agustín Cueva, ele con-
cluiu que “se algum erro podemos detectar (...) esse erro não residiria na
as transferências de valor não podiam ser vistas como uma anomalia ou superexploração, mas no que diz respeito ao subimperialismo (...)” (Cueva,
um obstáculo, mas antes como uma conseqüência da legalidade própria do 1988, p. 54).
284 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 285

A teoria do imperialismo sente em todas as suas fases do desenvolvimento e abarcando todas as suas
Nas décadas de 1960 e 1970, as teorias marxistas do imperialismo contradições sociais.
entraram em uma fase de grande produção, respondendo aos processos Para Cueva, o imperialismo tinha três efeitos na América Latina. Em
sociais que caracterizavam o desenvolvimento capitalista mundial nesse primeiro lugar, desnacionalizava a economia latino-americana com suas
momento histórico. Arrighi7 diria que foram décadas nas quais a teoria do conseqüências políticas. Em segundo lugar, deformava o aparelho pro-
imperialismo parecia se encontrar em uma Torre de Babel, onde os pró- dutivo local. Em terceiro lugar, dizia Cueva, “estes investimentos são o
prios marxistas não se punham de acordo sobre o seu objeto de estudo. veículo mais expedito para a sucção do excedente econômico. O capital
O período foi semelhante àquele gerado no início do século xx, meio imperialista flui para a América Latina atraído pela possibilidade de obter
século antes, quando foram discutidas as noções de um imperialismo que, superlucros (...)”.
por um lado, impulsionava a expansão permanente do capitalismo (obriga- Marini rejeitou essa concepção do imperialismo. Por causa disso, foi
do a resolver as suas crises periódicas), e, por outro, descrevia um capitalis- alvo de críticas tanto dos marxistas tradicionais como também de parte dos
mo que crescia seguindo etapas sucessivas e cumulativas. desenvolvimentistas. Segundo Marini, “não é no interesse do imperialismo
No início do século xx, os personagens que deixaram suas marcas que é preciso rejeitar este tipo de raciocínio, mas no interesse das possibi-
políticas em torno da discussão foram Lenin e Rosa Luxemburgo. Duas lidades das massas exploradas da América Latina em abrir caminho para a
figuras teóricas, mas sobretudo revolucionárias, que encabeçavam proje- sua libertação”.
tos de transformação social, respectivamente, na Rússia e na Alemanha.8 Sua visão pode ser sintetizada na seguinte citação: “Para lutar contra o
Meio século depois, na América Latina, a discussão girava também em imperialismo, é indispensável entender que ele não é um fator externo à so-
torno de dois teóricos: de um lado, Agustín Cueva; de outro, Ruy Mauro ciedade latino-americana, mas antes o terreno onde esta finca as suas raízes
Marini. Na melhor escola leninista, Cueva formularia a tese do desenvol- e um elemento que a permeia em todos os aspectos” (Marini, 1974a).
vimento capitalista por etapas. A característica central do capitalismo no Essa relação dialética entre o interno e o externo é o aspecto que os
século xx seria o imperialismo, a última e superior etapa do desenvolvi- marxistas tradicionais não aceitavam. Marini incorpora ao quadro ocu-
mento capitalista, posterior aos seus diversos desenvolvimentos nacionais. pado por noções econômicas o elemento político, ao falar do papel das
Marini, ao contrário, entenderia a economia mundial e suas assimetrias “massas exploradas”. Acrescentaria que “as conseqüências do conhecido
como uma característica inerente ao desenvolvimento do capitalismo, pre- símbolo gráfico, que nos mostra o malvado Tio Sam manipulando suas
marionetes, não são para a análise política e a estratégia de luta que dele
7
Giovani Arrighi (1999, p. 14) diz que, “durante a década de 1970, a tendência predominante deve derivar, mas a denúncia lacrimosa e a impotência indignada” (Marini,
parecia apontar para a recolocação destes processos a partir dos países de renda mais elevada 1974a, p. VII-XXIII).
(centro) para os países e regiões de renda baixa (periferia). Durante a década de 1980, pelo
contrário, tendência predominante parecia apontar para uma nova centralização do capital nos Em outras palavras, as afirmações de Cueva no sentido de que “o
países e regiões de renda elevada”. capital imperialista flui para a América Latina atraído pela possibilidade
8
Sobre esse caso particular, é interessante, por duas razões, a comunicação de Franz Lee (1983),
apresentada à V Conferência da Associação Nigeriana de Ciência Política, em abril de 1981, em
de obter superlucros” não se sustenta. O capital se distribui no sistema
que ele diz que “o enfoque da teoria da ‘dependência’ começou nas análises marxistas ‘clássicas’ segundo as suas possibilidades de gerar excedentes. A superexploração se
[no período entre] 1910 e 1920”. A primeira razão se refere à ascendência que Lee atribui às
efetua através da redução do salário abaixo dos níveis de reprodução da
noções sobre a dependência. A segunda razão é comprovar como, naquela época, as noções de
dependência eram discutidas na África. força de trabalho.
286 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 287

Para Cueva, essas afirmações eram “extremamente controvertidas”. ciário imediato era a classe burguesa ascendente na Europa. Caso se possa
Cueva aceita que “a nossa história particular está inserida naquela (do falar de articulações entre as formas de exploração introduzidas pela Euro-
centro do sistema) (...)”. No entanto, acrescentaria que “esta inserção não pa e pelas organizações socioeconômicas existentes na região, tratava-se de
se dá de forma passiva, mas com um dinamismo próprio”. Referindo-se a relações que se ajustavam aos interesses dos colonizadores.
Marini, sem dúvida, formula que “são extremamente controvertidas aque- A reação de Agustín Cueva consistiria em assinalar que querer explicar
las posições teóricas que, a partir de um fato certo, qual seja, a situação de o desenvolvimento histórico da América Latina e os efeitos do imperialis-
dependência, consideram que a história das nossas nações é um mero refle- mo nas diferentes formações sociais da região não conduziria a conclusões
xo positivo ou negativo do que acontece fora delas” (Cueva, 1977, p. 147). teoricamente sustentáveis. Segundo ele, explicar o desenvolvimento interno
Marini, no entanto, não se referia a uma relação entre nações. Para de cada formação social a partir da sua articulação com outras formações
isso, teria de retornar a Marx, que, em meados do século xix, assegurava sociais tem suas “limitações inerentes”. Ele sugere que seria mais produtivo
que, com a construção de ferrovias na Índia, este país podia ver o seu futuro inverter a pergunta e colocar para si se “não seria antes a índole de nossas
refletido na Inglaterra, país dominado pela nova tecnologia do transpor- sociedades aquilo que determina em última análise a sua vinculação com o
te. A preocupação de Marini estava no desenvolvimento do capitalismo sistema capitalista mundial”.
em escala mundial e nos seus efeitos sobre a região latino-americana. Ele Cueva rejeitaria as formulações de Marini, que lança mão da teoria
insistia em que a reprodução capitalista nos países que eram alvos da do- marxista para demonstrar a forma pela qual o continente americano foi
minação imperialista devia ser estudada a partir da circulação mundial de incorporado a um incipiente desenvolvimento capitalista depois da con-
mercadorias. O ciclo da produção, no que se refere à realização, assume quista e que, desde então, continuou a crescer dentro da lógica expansiva
forma específica no país dependente. do padrão de acumulação capitalista. As três etapas de desenvolvimento
Nesse enfrentamento com os marxistas tradicionais, que sustentam a formuladas por Cueva (feudal, oligárquico e burguês) foram reduzidas por
tese que Sotelo (2001) chama de “endogenista”, Marini assinalava que, para Marini a um só movimento de acumulação capitalista sob formas depen-
aquela corrente de pensamento, “o imperialismo constituiria uma variável dentes de dominação.
a ser introduzida ex post, uma vez entendida a particularidade da formação
social estudada”. O edifício teórico dos seguidores da vertente tradicional O sujeito histórico
estaria no desenvolvimento histórico latino-americano ao longo de sua Ao se perguntarem sobre a identidade do sujeito histórico, Marini e
conquista e colonização até o século xx. Seu ponto de partida “é a acu- Cueva rapidamente se separam. Para Cueva, com sua noção de “articulação
mulação primitiva do capital nessas economias, que deve ser seguida, de dos modos de produção”, aparece a possibilidade de estabelecer vínculos
acordo com o esquema de Marx, pelas fases manufatureira e fabril, em um e alianças entre os sujeitos ou classes sociais que, em um dado momento,
processo que está entrelaçado e articulado com outros modos de produção são os mais progressistas. Nesse sentido, identifica a “burguesia nacional”
que preexistiram ao capitalismo” (Marini, 1992, p. 93). surgida no calor da política de industrialização, baseada na substituição de
O processo de acumulação originária atravessado pela América Lati- importações, entre as décadas de 1930 e 1960, como uma classe progres-
na não foi para a acumulação de economias ou para impulsionar a ascensão sista que se opõe ao imperialismo. Ao contrário, Marini sustentou que não
das classes sociais do continente americano recém-aberto à exploração em existe a chamada burguesia nacional, tal como é concebida por Cueva (que
escala maciça. Ao contrário, respondia a um processo global cujo benefi- compartilha essa noção com os desenvolvimentistas e estruturalistas). A
288 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 289

burguesia subordinada ao padrão de acumulação capitalista mundial, com uma segunda instância dominada por uma oligarquia agroexportadora, em
maior (Brasil) ou menor (El Salvador) grau de autonomia, é o obstáculo que os remanescentes feudais continuam presentes. Na terceira instância,
principal que a classe operária e os setores populares precisam superar, surge o Estado dominado por uma classe burguesa, que deve negociar com
segundo Marini. os remanescentes oligárquicos e feudais enfraquecidos, ao mesmo tempo em
Marini descarta a possibilidade de construção de alianças entre a que enfrenta uma classe operária ascendente e suas organizações partidárias.
burguesia e os setores populares. Assinala que não se pode confundir a Nesta última fase analisada por Cueva, também está presente a “questão so-
burguesia ascendente, e sua aliança com o “povo”, com a burguesia “na era cial” e o aparecimento de Estados do “bem-estar” que tentam se transformar
do imperialismo”. Ele afirmaria que “a revolução burguesa corresponde a em “árbitros reguladores do conflito social” (Cueva, 1977, p. 162).
uma etapa definida do capitalismo, marcada pela ascensão de uma burgue- Cueva foi o primeiro a destacar e celebrar a presença e a militância, a
sia que se incluía ainda em uma ampla medida no movimento popular”. partir do início do século xx, de uma crescente classe operária, que inclu-
No entanto, “na era do imperialismo, que hoje vivemos, todo movimento sive organizou partidos comunistas e socialistas. No entanto, ele assinalaria
autenticamente burguês só pode ser antipopular e, como tal, contra-revo- a importância que teve para essas organizações o cumprimento das tarefas
lucionário” (Marini, 1974). “democrático-burguesas” e o fato de deixar para outra etapa a luta pelo so-
Inicialmente, Cueva envolve Marini nas acusações gerais que, na época, cialismo. Cueva também afirmava a existência, ainda em muitos países, de
os marxistas tradicionais faziam aos cientistas sociais que buscavam ca- “um corpo social predominantemente pré-capitalista, com uma estrutura
minhos mais apropriados para encontrar respostas para as perguntas que de classes caracterizada pela presença onipresente das massas pequeno-
resistiam a se dobrar. No caso de Marini, ele mudou as perguntas para bus- burguesas e dos camponeses feudais (...)”.
car respostas fora dos marcos tradicionais dos partidos comunistas lati- Tanto Cueva quanto Marini descrevem a transição do Estado oli-
no-americanos. A inovação de Marini custou-lhe uma severa reprimenda gárquico para o Estado burguês industrial como “relativamente pacífica”
por parte de Cueva. Segundo Cueva, o que Marini tentava era legitimar as (Marini, 1974, p. 10), ou “sem transformações verdadeiramente radicais”
práticas políticas das “vanguardas de origem intelectual [que] acreditavam (Cueva, 1977, p. 163). Para Marini, a transformação é precisamente obra da
poder substituir o proletariado nas suas tarefas revolucionárias” (Cueva, mesma classe que muda o padrão de acumulação. A oligarquia exportado-
1979, p. 92). A saída fácil ao problema que Marini expunha não obteve ra se transforma em burguesia industrial. No processo das transformações,
êxito. Cueva pensou que a sua comunicação na Costa Rica poria um fim ao ela tem de manter um controle sobre as massas camponesas despossuídas
debate com Marini. Disse que a teoria da dependência “parece encontrar-se de suas terras e, além disso, administrar sua relação com a crescente classe
agora – 1974 – em franco declínio, ou em vias de uma positiva superação” operária trazida pela industrialização. Marini, por conseguinte, descarta a
(Cueva, 1979, p. 93). alternativa de uma aliança política populista (capital e trabalho), por causa
A posição de Cueva foi mudando e começou a apresentar problemas das suas implicações negativas.
muito mais complicados. No entanto, a sua interpretação do sujeito histó- Em um livro publicado posteriormente por Cueva, ele afirmaria que a
rico não mudou. Diferentemente de Marini, ele define três etapas no desen- estratégia dos partidos comunistas na América Latina mudou radicalmente
volvimento das lutas sociais da região. Em uma primeira instância, a massa depois da Revolução Cubana de 1959. Segundo ele, a insurreição armada
de trabalhadores está submetida a relações de dominação com característi- da década de 1950 e a declaração do socialismo em Cuba na década de 1960
cas coloniais e feudais. As guerras de independência abrem caminho para modificaram o pensamento dos partidos comunistas.
290 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 291

Era evidente que, nos outros países da região, a “burguesia nacional”, O caso da Unidade Popular e sua vitória eleitoral de 1970 foi objeto de
apavorada com o curso da Revolução Cubana, ia se transformando em uma análise também por parte de Marini. Ele pontua:
força cada vez menos progressista (Cueva, 1987, p. 176).
Acrescentou ele que a transnacionalização das economias regionais A especificidade da “via chilena” estaria em que a tomada do poder não
tinha tornado raquítica a “antiga burguesia nacional”. precede, mas segue a transformação da sociedade. (...). Em outras palavras,
Marini já tinha estabelecido uma postura diferente nesse sentido. Em a modificação da infra-estrutura social é aquilo que, alterando a correlação
1974, ele afirmava: de forças, impõe e torna possível a modificação da superestrutura. A toma-
da do poder (segundo a via chilena) se realizaria assim gradualmente e, em
a revolução burguesa não se faz às custas da própria burguesia, como se deu certo sentido, pacificamente, até conformar um novo Estado, correspon-
no Brasil em 1964 e depois em 1968, mas contra as forças que entravam o dente à estrutura socialista que se foi criando.
desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário de uma revolução burguesa,
o processo brasileiro representa a derrota das camadas médias burguesas e Ainda de acordo com Marini:
pequeno-burguesas – e imediatamente das massas trabalhadoras – diante
do grande capital nacional e estrangeiro. [A burguesia] inclusive não vaci- [tratando-se] da revolução burguesa (produto de processos históricos que
lou, sobretudo na primeira fase do processo, em se aliar com os setores mais se prolongam por mais de dois séculos), dá-se a possibilidade de uma mu-
reacionários do país, para impor a eles a sua hegemonia. (Marini, 1974a) dança política gradual e pacífica (...) porque as duas classes que lutam entre
si pelo poder se baseiam também na exploração das outras. [Ao contrário],
Marini também analisa o processo cubano e a transição do período a situação do proletariado, cuja condição de existência não é o socialismo,
caracterizado pelas reformas no marco do regime burguês até o momento mas o próprio capitalismo, coloca em um plano totalmente distinto o pro-
em que se declara a revolução socialista: “A luta pelo socialismo é funda- blema do enfrentamento político e da possibilidade de proceder à mudança
mentalmente uma luta política, no sentido de que o proletariado tem de social através de adaptações ou reformas.
contar com o poder do Estado para quebrar a resistência da burguesia.”
Essa posição descartava a via gradual que se pregava naquela época. Ele Para Cueva, a aliança com a burguesia nacional era um imperativo
ainda acrescentaria: histórico, na medida em que ele parte do suposto encadeamento dos modos
de produção como sistemas concretos que subjazem a uma variedade de
as tarefas democráticas que o proletariado levanta não são tarefas da bur- formações sociais concretas. As classes dos modos mais avançados pactuam
guesia, nem podem ser cumpridas no marco da democracia burguesa. Isto para eliminar as classes dos modos mais atrasados. Em outras palavras, as
é certo principalmente para as tarefas que se referem à democratização do tarefas da aliança populista entre capitalistas (mais progressistas) e operá-
Estado. Recordemos que o Estado burguês cria obstáculos e afoga a parti- rios têm de ser a liquidação dos remanescentes feudais que protegem os
cipação política das massas, seja porque restringe as tomadas de decisão senhores feudais e as suas relações de exploração com os camponeses.
aos órgãos do Estado, que se situam fora de qualquer controle por parte do Para Marini, era preciso ter claro que “as transformações superestru-
povo, seja porque exerce sobre este a coerção armada. (Marini, 1976a) turais seguem, não precedem a revolução política”. As reformas não trazem
como efeito criar os elementos da nova sociedade dentro da velha, mas
292 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 293

tão-somente melhorar as condições a partir das quais a classe que nega a comitês). Entre eles não havia mais nexo de união, a não ser um nexo
sociedade existente acumula forças para liquidar essa sociedade. O refor- ideológico (...)” (Lenin, 1969, p. 70).
mismo só conduziria a mais do que já existe. O objetivo verdadeiro da crítica de Luxemburgo, no entanto, não era
É certo que em todas as sociedades, em um grau maior ou menor, so- o suposto centralismo do partido revolucionário russo dirigido por Lenin,
brevivem remanescentes das organizações de classe anterior ao capitalismo. mas antes ela utilizava as experiências bolcheviques como um exemplo
No entanto, não são esses resquícios que definem as características de uma para atacar a socialdemocracia alemã. Afirmava ela que
formação social. Inclusive, já em 1894, Lenin reconhecia que na Rússia o
inimigo principal não era a monarquia absoluta, os rentistas ou os senhores se a tática do partido é o produto, não do Comitê Central, mas do conjunto
feudais. Segundo Lenin, era o capitalismo que constituía o sistema de domi- do partido, ou melhor, do conjunto do movimento operário, é evidente que
nação que devia ser destruído. Alguns anos depois, em 1899, ele diria que as seções e as federações precisam dessa liberdade de ação que é a única que
caberia aos camponeses lutar contra os senhores da terra. Enquanto isso, à lhes permite utilizar todos os recursos de uma situação e desenvolver a sua
nascente classe operária rural caberia lutar contra a burguesia do campo. iniciativa revolucionária. (Luxemburgo, 1969, p. 51-52)
Marini nos remete à velha disputa entre Rosa Luxemburgo e Berns-
tein. O reformista socialdemocrata “pretendia liquidar progressivamente o As posições assumidas por Cueva e Marini também divergiam teo-
sistema capitalista através de reformas legislativas” (Marini, 1974b). Berns- ricamente e também na prática. No caso da Unidade Popular, Cueva sus-
tein chegou à conclusão de que a revolução consistia em transformar os tentou que a “via chilena para o socialismo” era viável, na medida em que
operários em “cidadãos” e, como conseqüência, a sua maioria acachapante as forças políticas envolvidas administravam a transição de uma maneira
lhes permitiria tomar o poder a partir das urnas (Cueva, 1988, p. 47). Ma- eficaz. Ao contrário, Marini sustentou que
rini e Cueva concordaram com Luxemburgo e Lenin no sentido de que o
sujeito histórico é a classe operária. Eles partem de diferentes direções, tal não é tentando obter o apoio da maioria do povo que o proletariado pode
como Luxemburgo e Lenin, quanto à constituição da “vanguarda” ou do tomar o poder, mas é tomando o poder que o proletariado pode ganhar
partido político. Luxemburgo criticava Lenin pelo “centralismo acerbado” para si o apoio da maioria. Porque somente o exercício do poder permite ao
do Partido Bolchevique. Lenin respondia assinalando que “na Rússia já se proletariado demonstrar praticamente para as classes aliadas e as camadas
davam todas as premissas necessárias para que fossem acatadas as decisões vacilantes do povo a sua disposição e a sua capacidade (...). (Marini, 1976a)
dos congressos e que já tinha passado o tempo em que os organismos do
partido podiam ser superados por círculos privados” (Lenin, 1969, p. 67). Conclusão
Lenin e Luxemburgo partiam de experiências muito diferentes. En- O objetivo deste artigo era demonstrar que a teoria da dependência
quanto na Rússia Lenin lutava para manter as comunicações entre os seus pode ainda ser aplicada em escala global e também nas análises por região
militantes (tanto dentro como fora do país), no caso da Alemanha (onde e inclusive por país (por cada formação social), para entender o desenvol-
Luxemburgo militava), a socialdemocracia afogava a “espontaneidade” dos vimento do capitalismo. As noções sobre a dependência desenvolvidas na
seus militantes. Na sua resposta a Luxemburgo, Lenin lembrava a ela que, América Latina nas décadas de 1960 e 1970 partem do suposto de que as
depois da fundação da socialdemocracia na Rússia, “o partido se transfor- leis que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo podem ser aplicadas
mou em um conglomerado disforme de organizações locais (os chamados onde essa organização da produção (social e material) é dominante ou exerça
294 ■ A América Latina e os desafios da globalização Vigência e debate em torno da teoria da dependência ■ 295

uma influência importante. Além disso, elas podem explicar o surgimento de Bibliografia
pólos diferenciados de desenvolvimento no sistema capitalista mundial. Amim, Samir. The political economy of the twentieth century. Monthly
Mesmo quando o propósito era resgatar o debate da década de 1970, Review, v. 52, n. 2, jun. 2000.
permanece aberta a discussão em torno do estudo das contradições que Arrighi, Giovani. El largo siglo xx. Madri: Akal, 1999.
atualmente sacodem o sistema capitalista mundial e a utilidade da teoria Cardoso, Fernando Henrique; Faletto, Enzo. Desarrollo y dependen-
da dependência. cia en América Latina. México: Siglo XXI, 1969.
No que se refere à forma como o centro capitalista extrai os excedentes Cueva, Agustín. El desarrollo del capitalismo en América Latina. 1. ed.
gerados pela periferia, fica mais claro no início do século xxi do que na México: Siglo XXI, 1977.
década de 1970 o fato de que “o fruto da dependência” só pode ser mais de- ________. La teoría marxista. Quito: Planeta, 1987.
pendência e que a “sua liquidação supõe necessariamente a supressão das ________. Las democracias restringidas en América Latina. Quito: Planeta,
relações de produção que ela envolve” (Marini. 1973, p. 18). 1988.
Por outro lado, em relação ao debate em torno do imperialismo, a te- ________. Problemas y perspectivas de la teoría de la dependência. In:
oria da dependência continua vigente ao levar em conta o fato de que, mais CAMACHO, Daniel (Ed.). Debates sobre la teoría de la dependência.
do que um desenvolvimento insuficiente do capitalismo na periferia, essa San José de Costa Rica: Educa, 1979.
realidade tende a se reproduzir e se aprofundar. Não há uma alternativa Germani, Gino. Sociología de la modernización. Buenos Aires: Paidós,
de desenvolvimento através de uma estratégia de “dependência associada” 1971.
que possa sustentar a ilusão de “alcançar” (catch up) os países desenvol- Harvey, David. El nuevo imperialismo: acumulación por desposesión.
vidos. A teoria da dependência indica com clareza que “por causa da sua In: El nuevo desafío imperial. Socialist Register 2004. Buenos Aires:
estrutura global e do seu funcionamento, [a periferia] não poderá jamais se Clacso, 2005.
desenvolver da mesma maneira como as economias capitalistas tidas como Kay, Cristóbal. Estructuralismo y teoría de la dependencia en el período
avançadas se desenvolveram” (Marini, 1973, p. 14). neoliberal: una perspectiva latinoamericana. Tareas, n. 108, maio-ago.
Sobre o sujeito histórico, a teoria da dependência não deixa dúvida de 2001.
que a classe operária tem de estabelecer a sua própria estratégia, definindo Lee, Franz. Teoría de la dependencia y teoría revolucionaria. In: BO-
as suas alianças com as demais forças populares e colocando a classe capi- RONGO, Yolamu R. (Ed.). Political science in Africa: a critical review.
talista no lugar que lhe cabe. Situando a teoria da dependência no marco Londres: Zed Press, 1983.
do período dos ajustes que dominaram os últimos 25 anos (políticas neo- Lenin, V. Un paso adelante, dos atrás. In: Teoría marxista del partido
liberais), pode-se entender Marini quando ele afirmava o caráter contra- político. Córdoba: Cuadernos de Pasado y Presente 12, 1969.
revolucionário de nossa “revolução burguesa” por representar a derrota das Luxemburgo, Rosa. Problemas de organización de la socoialdemocra-
camadas médias burguesas e pequeno-burguesas – e logo das massas traba- cia rusa. In: Teoría marxista del partido político. Córdoba: Cuadernos
lhadoras – diante do grande capital nacional e estrangeiro (Marini, 1974a). de Pasado y Presente 12, 1969.
Ou, ainda, quando ele afirmava também que: “A luta pelo socialismo é fun- Marini, Ruy Mauro. América Latina, dependência e integração. São Paulo:
damentalmente uma luta política, no sentido de que o proletariado precisa Brasil Urgente, 1992.
contar com o poder do Estado para quebrar a resistência da burguesia.” ________. Dialéctica de la dependência. 1. ed. México: Era, 1973.
296 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 297

________. La pequeña burguesía y el problema del poder. In: El reformismo


y la contrarrevolución. Estudios sobre Chile. México: Era, 1976b. Serie
Popular. A intelectualidade crítica brasileira no México
________. Memoria. 2005. Disponível em: <http://www.marini-escritos. e o pensamento político de Ruy Mauro Marini
unam.mx/>.
________. Prólogo a La Revolución Cubana: una reinterpretación. In: BAM- Lucio Fernando Oliver Costilla*
BIRRA, Vânia. La Revolución Cubana: una reinterpretación. México:
Nuestro Tiempo, 1976a.
________. Reforma y revolución: una crítica a Lélio Basso. In: Acerca de la
transición al socialismo. Buenos Aires: Periferia, 1974b.
________. Subdesarrollo y revolución. México: 5. ed. Siglo XXI, 1974a. A condição de perda
Panitch, Leo; GINDEN, Sam. Capitalismo global e imperio norte-ame- O tema da presença e das contribuições da intelectualidade crítica per-
ricano. In: El nuevo desafío imperial. Socialist Register 2004. Buenos mite uma construção muito positiva do exílio brasileiro no México. Mas,
Aires: Clacso, 2005. antes de entrar no assunto, quero insistir no fato de que todos esses homens
Roitman, Marcos. La dependencia: teoría o situación?. Edição exclusiva e mulheres, sobre os quais vamos falar, estiveram aqui sob uma condição
para Rebelión. 2005. de perda e, portanto, de busca de compensações. A “condição de exílio”
Sotelo, Adrián. La crisis de los paradigmas y la teoría de la dependencia é normalmente de perda: perdem-se uma atividade, uma integração po-
en América Latina. Tareas, n. 108, maio-ago. 2001. lítica e social, um território, uma sociabilidade cheia de interesses, afetos,
cultura, família. Nisso, os vocábulos desterro e expatriação são sinônimos.
Nesse sentido, o exilado é um ser na condição de desprotegido. Por isso, a
tendência será normalmente a de ressentimento pessoal com os diretamen-
te responsáveis por sua situação e de uma busca de compensações afetivas:
de novas amizades, de outra sociabilidade, de um afeto que nunca substitui
o que foi deixado para trás. Intimamente, a situação envolve um espírito
em uma posição delicada. Comento isso porque, normalmente, quem vive
com os exilados a partir de sua condição pessoal de normalidade não re-
flete o suficiente sobre o significado dessa “outra condição” que essas pes-
soas carregam. Certamente, aqui se abre uma interrogação no campo das
ciências sociais: haveria uma sociologia do exílio, tal como existe toda uma
literatura do exílio? Em que medida esse tipo de exilados (os intelectuais)

* Sociólogo mexicano e professor titular do Cela/Unam, que dirigiu. Possui artigos em revistas
científicas publicados em vários países.
298 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 299

projeta a sua subjetividade dolorosa nas ciências sociais? Será que todos os Os dois países
temas são iguais para quem está nessa condição, ou há alguns que eles se Refletir sobre a presença e as contribuições do exílio brasileiro no
recusam a pensar e outros sobre os quais pensam obsessivamente? Como México nos leva a pensar os dois países, suas identidades e diferenças,
se adaptam as temáticas antigas da vida anterior e como são adotadas novas suas relações e sua distância. Trata-se de dois países que são, em certo sen-
temáticas a partir da interação com a nova realidade? Por agora, não tenho tido, os maiores da região, econômica e demograficamente, ambos com um
ainda respostas para essas perguntas. processo de construção histórica interna muito forte, cada um com uma
área de influência própria e separada, com força cultural e com grande per-
A comemoração dos 500 anos sonalidade internacional. Ambos compartilham estruturas econômicas e
Há alguns anos, participei dos eventos relacionados com as relações sociais atrasadas que geram muitos dos problemas do subdesenvolvimento
Brasil-México, a partir da perspectiva da comemoração no México dos 500 que são comuns a eles. Mas, para além dessas identidades, há evidentes
anos do Brasil em convocação conjunta de instituições da Unam (Univer- diferenças: uma delas é o peso da herança escravista em um lado e servil no
sidad Nacional Autónoma de México) e a embaixada do Brasil no México. outro; outra é a tendência colonial portuguesa de privilegiar os assentamen-
Essa ocasião se prestou “não só para a reflexão, mas também para uma tos nos litorais, e a indo-espanhola de procurar o altiplano; outra diferença
profunda avaliação do desenvolvimento do país sul-americano em todos forte está vinculada aos aspectos federais descentralizados do Brasil, que
os âmbitos de sua expressão histórica, política e cultural”. periodicamente reaparecem, apesar das políticas concentradoras de alguns
Avaliar o exílio brasileiro a partir dos anos 1970 em um país como dos governos nacionais, e o contraste com a rígida e permanente centrali-
o México nos obriga a contextualizá-lo em toda a experiência do exílio zação econômico-política do México, que nunca se apaga totalmente. Há,
latino-americano, já que, nesses anos, o nosso país era considerado como por outro lado, um elemento de atração mútua entre as culturas de ambos
uma espécie de Meca do latino-americanismo. No meu caso, sou levado a os países: os ganhos na industrialização, a urbanização, o esporte, a cultura,
pensar o exílio a partir do que ocorreu entre os anos 1964 e 1976, quer di- a música e o forte nacionalismo sem raízes do Brasil atraem os mexicanos,
zer, a partir de dois momentos políticos significativos: o momento do golpe assim como a integração nacional, a impressionante cultura mesoamerica-
de Estado militar de 1964 no Brasil e o que se produziu nove ou 10 anos de- na e o nacionalismo milenarista do México atraem os brasileiros. É uma
pois, nas ondas de golpes militares no Chile, Uruguai, Bolívia e Argentina, pena que nenhum dos dois Estados nacionais tenha procurado unir suas
onde foram se refugiar um conjunto de brasileiros de oposição ao regime forças e sua capacidade de direção em um projeto de integração latino-
militar do seu país e que logo tiveram de exilar-se novamente, mudando- americana e que ambos tenham cedido tanto à dominação imperial dos
se para o México ou para outros países distantes do Brasil. O México era Estados Unidos.
um lugar muito atrativo porque, devido à política de Estado do presidente
Luis Echeverría Álvarez, foram abertas as portas para os desterrados da A investigação
América do Sul, que vieram em grandes quantidades, produto da onda de Entre as referências com as quais conto para uma investigação como a
militarismo que ocupou a região nesses anos. que me proponho fazer, posso mencionar a existência de uma equipe extra-
Estimativas iniciais indicam, por exemplo, três mil intelectuais chile- ordinária na Unam, que está já há algum tempo estudando o exílio latino-
nos e outro tanto de países da região sul-americana. americano no México a partir de entrevistas com antigos exilados. Mas, em
geral, os seus estudos e as suas entrevistas têm uma intenção diferente da
300 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 301

minha; trata-se de uma intenção própria das humanidades: historiadores, que possa receber no transcurso da minha investigação, por agora posso
antropólogos, psicanalistas. Meu interesse é outro, ele me conduz por vere- comentar que a intelectualidade brasileira, como tal, tem, evidentemente,
das peculiares que em seguida quero comentar. uma origem teórica e analítica distinta da intelectualidade mexicana, o que
Primeiro: interessa-me o enfoque dos intelectuais críticos e sobre tem repercussões na sua forma de entender a América Latina.
eles. O meu estudo está relacionado com a questão dos intelectuais e sua A intelectualidade mexicana produz o seu conhecimento e as suas fi-
relação com a evolução do Estado e da nação. Em particular, desejo rea- liações culturais, ideológicas e políticas basicamente a partir da sua relação
lizar uma avaliação analítica da trajetória e do amadurecimento da inte- contraditória com as diferentes revoluções e contra-revoluções nacionais
lectualidade crítica do Brasil, tanto no próprio país como fora dele. Nesse (de independência em 1810-1821, de reforma em 1857-1867, de instaura-
sentido, trata-se de levar a cabo um estudo da intelectualidade brasileira, ção revolucionária de um projeto nacional-capitalista de 1910-1921 e de
que certamente me parece impressionante e surpreendente. Impressionan- reformas profundas de caráter nacional e popular de 1934-1940), e a par-
te por seu rigor e universalidade, mas também surpreendente por seu alto tir de suas dificuldades para caracterizar o Estado e as oposições surgidas
grau de desenvolvimento, que contrasta com os antecedentes coloniais, dessas revoluções. A intelectualidade desse século foi formada no marco
tão pobres, que o Brasil teve no que diz respeito à educação, e porque, na das mudanças radicais do Estado-nação mexicano no começo do século,
trajetória da desigualdade social brasileira, não há um grande processo mas também na década de 1930, como facilmente se pode ver no caso de
de seleção socionatural de intelectuais. Contudo, o meu interesse está re- Octavio Paz, e poucos foram os intelectuais críticos que ampliaram os seus
lacionado com a contribuição que a intelectualidade brasileira deu para a horizontes para outras perspectivas. Nos anos que nos ocupam, destacam-
construção nacional do Brasil e com a crítica da nação capitalista, para a se várias personalidades da crítica sociopolítica: José Revueltas, Rodolfo
partir daí procurar entender as suas contribuições no México para o co- Stavenhagen, Pablo González Casanova, Enrique Semo, Roger Bartra, Ser-
nhecimento da América Latina. gio de la Peña, Lorenzo Meyer, entre outros, cuja luta principal foi entender
Um conhecimento ainda superficial da intelectualidade do Brasil e criticar o Estado mexicano e suas políticas “reformadoras”, para poder
permite ver que o mundo intelectual deste país, hoje, está permeado de passar a outro tipo de análise do desenvolvimento capitalista no México e
influências culturais distintas do mundo intelectual mexicano. Interessa- na América Latina. Mas a sua reflexão teve, inclusive, um horizonte latino-
me indagar sobre as raízes dessa diferença. E, sobretudo, como assinalei, americano, e se achou de tal modo isolada em um mar de intelectuais me-
pensar a evolução e o amadurecimento da intelectualidade do Brasil na sua xicanos obcecados por caracterizar as transformações, que não conseguiu
própria história. situar o México como um país latino-americano, e, com isso, abriu espaço
Segundo: o eixo do meu enfoque sobre a análise da presença e das para uma política demasiadamente local e eurocêntrica de ver o mundo.
contribuições da intelectualidade é a sua contribuição para a sociologia na- No caso dos brasileiros, trata-se de uma leitura que não parte de qual-
cional e para o pensamento social latino-americano. No meu caso, tenho o quer revolução, mas das raízes oligárquicas e de um projeto industrial estatal
conhecimento das pessoas e dos temas relacionados com as ciências sociais. autoritário “de compromisso” entre a velha classe dominante da agricultura
A minha hipótese é de que a presença da intelectualidade crítica brasileira e as novas frações da indústria nacional, imposto a um país extremamente
no México e as suas contribuições a partir dos anos 1970 para o pensamento descentralizado. Sua reflexão se apóia em pensadores críticos tanto do fe-
social latino-americano estão vinculadas fortemente a temas fundamentais deralismo como do projeto de centralização e em pensadores importantes
do pensamento sociológico brasileiro. Com a reserva das novas impressões do Brasil e do Cone Sul, preocupados em entender a integração ou a desin-
302 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 303

tegração do Brasil ao mundo, a partir da economia agroexportadora e da brasileiros: o exílio destes últimos foi seletivo, ao que parece, pela negativa
economia industrial que se desenvolveram na primeira metade do século do governo mexicano em conceder vistos a exilados brasileiros. Emir Sader
xx. Um exemplo disso foi a influência que teve o argentino Silvio Frondizi comentou o seguinte:
em alguns pesquisadores históricos, como Caio Prado Jr., Florestan Fer-
nandes e, por essa via, em intelectuais do exílio brasileiro no México nos Sei que o exílio brasileiro para o México, a partir do Chile, foi seletivo,
anos 1964 a 1976, influência que se registra facilmente, por exemplo, em porque o México não aceitava dar vistos a eles. Assim que as pessoas saíram
dois exilados da época, Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini. do Chile passaram pelo México e foram para outro lugar. (Emir Sader, on-
Destaca-se, então, uma diferença básica, não obstante as exceções line, 29 de novembro de 1999)
citadas: a intelectualidade brasileira parece ver a região latino-americana e
o seu país a partir do mundo e da perspectiva de manter a unidade interna Nos anos 1970, aumenta o número de exilados e muda, em parte, sua
em um processo de expansão geográfica, ao passo que a mexicana o obser- composição para incluir vários estudantes. Severo Salles nos diz: “Nos 70,
va a partir de seus ganhos de coesão ideológica e política interna, da defesa voltou Marini; Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra voltaram do Chile.
nacional e popular e dos conflitos locais. Também chegaram Raimundo Arroio, Severo Salles, outro líder sindica-
Terceiro: o meu interesse sobre a visão dos intelectuais críticos brasi- lista. Betinho e Neiva Moreira (por pouco tempo). Estavam nos 70 muitos
leiros procura se aprofundar na especificidade do latino-americanismo que estudantes opositores que organizaram uma associação de brasileiros pela
contribuiu para trazê-los para o México nos anos 1960 e 1970. E de como democracia no México, muito ativa” (Severo de Salles, on-line, 29 de no-
se desenvolveu na América Latina uma importantíssima polêmica contra vembro de 1999).
as teses nacionalistas e desenvolvimentistas da época.
A época
Os personagens A América Latina viveu grandes comoções sociais no início da segun-
Entre 1965 e 1975, há duas levas de exilados brasileiros no México, for- da metade do século XX. A luta política recrudesceu enormemente, envol-
mada por umas 300 ou 400 pessoas, entre outras por dissidentes políticos, vendo quase todas as sociedades nos conflitos. Atrás deles, produziu-se um
por pesquisadores e professores e por estudantes de ciências sociais. Uma agudo choque de estratégias, concepções e personalidades das diferentes
contagem inicial e superficial nos diz que na primeira onda, dos anos 1960, forças econômico-políticas continentais. Já desde os anos 1950 a região
chegaram “Ruy Mauro Marini, Francisco Julião, Isaac Scheinwar, um líder viveu a crise do Estado populista e sua posterior substituição no final
sindical, Flávio Tavares, que chegou ao México trocado por um embaixador, dessa década pelo Estado desenvolvimentista. Embora ambos os modelos
além de outros” (Severo de Salles, on-line, 29 de novembro de 1999). de Estado tivessem em comum o modelo de acumulação de capitalismo de
De qualquer modo, parece que a grande maioria das pessoas dessa Estado, chamado teoricamente de “fordismo periférico”, e vivenciassem as
primeira leva do exílio partiu do Brasil para a Europa, para o Canadá e tentativas tímidas e parciais de criar Estados de bem-estar latino-america-
para países vizinhos do Brasil, como Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai nos, a relação entre a sociedade e o Estado nesses anos trouxe modificações
etc. De acordo com Emir Sader, a orientação política dessa leva de exila- substanciais.
dos foi “principalmente brizolista” (Emir Sader, on-line, 29 de novembro Nos anos 1960, a precariedade das condições de trabalho, a perda da
de 1999). Produziu-se uma diferença entre os exilados sul-americanos e os condição de cidadania social que as grandes massas tinham conquistado
304 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 305

nos anos 1940, a evolução política sindical dos trabalhadores e a formação A década de 1970 foi palco de novos e mais fortes embates sociais,
de grandes monopólios privados que cresceram no calor do capitalismo de inclusive de caráter revolucionário, na Bolívia (1971) e no Chile (1970-
Estado levaram à crise do Estado populista, fato que fica demonstrado na 1973). Houve também um crescimento das lutas sociais no Uruguai e na
multiplicidade das lutas sociais de contestação e na sua importância nacio- Argentina. Enquanto nessas lutas foram desenvolvidas plenamente estraté-
nal e regional. O Estado desenvolvimentista pretendeu afirmar um capitalis- gias políticas dos movimentos populares, no lado da reação foram urdidas
mo democrático liberal associado com o capital transnacional, em benefício as políticas do autoritarismo militar da contra-insurgência e da segurança
das forças dos monopólios, com um acentuado controle do Estado sobre nacional. Novamente entre 1973 e 1976 se produz uma onda de golpes de
os trabalhadores, o que gerou ainda mais resistências e lutas sociais im- Estado militares que leva a novas clandestinidades e a migrações, dessa vez,
portantes. Efetivamente, há nos anos 1950 e no início dos anos 1960 uma inclusive, a novos exílios dos já anteriormente exilados.
ascensão do movimento de massas em vários países da região, entre outros, Às perguntas dos anos 1960 sobre os projetos de desenvolvimento na-
no Brasil (1960-1964) e no México (1957-1968). Também se destacam as cional se juntam novas e mais elaboradas perguntas, relacionadas agora
lutas sociais no Peru, na Colômbia, na Argentina e no Equador. Há, inclu- com o problema direto de como, com que políticas, impedir a repressão
sive, três processos revolucionários importantes: na Bolívia (1950-1952), autoritária e como contribuir para tornar mais complexas a organização e
na Guatemala (1945-1955) e em Cuba (1952-1960), que contribuem para a estratégia política para tomar e manter o poder, assumindo a inevitável
estimular e desenvolver as lutas populares. Esse ambiente de ascensão da resistência dos militares e das classes capitalistas em vista do avanço dos
luta social interna topou com uma reação política extrema em nossos paí- projetos populares. O projeto de Assembléia Popular na Bolívia e o projeto
ses, articulada com a estratégia norte-americana de contra-insurgência do do Estado de transição da Unidade Popular do Chile sucumbiram. Alguns
pós-guerra, que assumiu a forma de uma concepção militar da luta políti- dos portadores materiais dessas perguntas são os exilados brasileiros que
ca nos países periféricos. O resultado foram os golpes de Estado militares reiniciam, pela segunda vez, uma nova vida, e se encontram com o México.
que assolaram a região sul da América Latina, dentre os quais o do Brasil
aparece logo em 1964. Os novos regimes militares implantaram Estados A presença
burocrático-militares e levaram ao extremo as formas de repressão ideo- Em um texto muito interessante, “A década de 1970 revisitada”,1 Ruy
lógica, política e social, obrigando uma enorme quantidade de políticos Mauro Marini, um brasileiro exilado nesses anos no México, nos diz que,
e universitários a esconderem-se na clandestinidade, a envolverem-se na para o movimento popular subcontinental de então,
luta armada e a sair para outros países. O período mais agudo da repressão
brasileira ocorreu por volta de 1968-1970, e em geral abarca os 10 anos que o México se transformou no centro desta elaboração crítica, seja porque
vão de 1964 a 1974. tinha concentrado a massa de intelectuais exilados da região, seja porque,
Não é difícil imaginar que doía na cabeça dos perseguidos a idéia de por sua infra-estrutura acadêmica e cultural e pelo clima de liberdade que
que os projetos de desenvolvimento nacional inclusivos e democráticos ti- ali se respirava, erigiu-se como a Meca dos cientistas sociais de todo mundo
nham acabado ou eram impossíveis, diante da reação política extrema dos que visitavam a América Latina.2
militares e da facilidade dada à entrada maciça de capital externo e de as-
1
Ver Marini, Ruy Mauro; Moncayo, Márgara Millán (Coord.). La teoría social latin-americana.
sessores norte-americanos. Era preciso pensar na razão por que tudo isso
La centralidad del marxismo. Colección de ensayos. México: El Caballito/Unam, 1995. t. III.
tinha acontecido e também em quais seriam então as alternativas. 2
Ibid. p. 37.
306 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 307

Essa visão coincide com a emitida em 1985 pelo pesquisador equato- Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra, Thiago Cintra, Va-
riano Agustín Cueva, que nos diz: nia Salles, Severo de Salles e outros. Também aí estiveram por algum tempo
Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira e outros. Os cursos de
Qualquer balanço a propósito do desenvolvimento dos estudos latino-ame- pós-graduação se encheram de estudantes brasileiros que, posteriormente,
ricanos no México (neste caso, sociológicos), não pode ignorar este fato evi- ingressariam também como professores universitários. Dessa época vieram
dente: grande parte da história da ciências sociais latino-americanas trans- Guadalupe Teresinha Bertussi e Magda Fischer.
correu neste país – o México – e através dele, pelo menos durante os últimos O grande desenvolvimento do pensamento latino-americano e a im-
quinze anos.3 portante presença que adquiriram os exilados latino-americanos no Mé-
xico e no mundo se devem também à atividade de três editoras da época:
No México, o exílio latino-americano dos anos 1970 coincidiu, feliz- Era, Nuestro Tiempo e Siglo XXI, e à atividade de várias revistas e publi-
mente, com vários elementos que permitiram que esse país se tornasse o cações periódicas que se propuseram como objetivo explícito desenvolver
centro da criatividade intelectual e do interesse político pela América Lati- o pensamento latino-americano (Historia y Sociedad, Revista Mexicana de
na; isso surge da presença de milhares de exilados latino-americanos, mas Ciencias Políticas y Sociales, Cuadernos Políticos). Também cabe mencionar
também do fato de que o México divide nesse momento os problemas dos que o exílio não foi somente individual: “algumas vezes ele é também insti-
outros países da região, coloca-se em um lugar geopolítico especial por ser tucional. Isso ocorre, por exemplo, com a revista Marcha de Montevidéu, ou
a fronteira entre os Estados Unidos e a América Latina e pelo fato de que o com a própria Asociación Latinoamericana de Sociologia”.4
nosso país começou a ter uma presença mais ativa no âmbito internacional
nesses anos. As contribuições
Por outro lado, a incorporação dos exilados à vida nacional coincidiu Segundo Agustín Cueva:
com uma necessidade política do presidente mexicano Luis Echeverría Ál-
varez (1970-1976) de levar a cabo uma ampliação das instituições públicas convém recordar que os estudos latino-americanos no México não foram
de educação superior e das matrículas para responder à crise de legitimi- feitos “de fora”, por “latino-americanistas” interessados em conhecer um
dade do governo, crise surgida como resultado da repressão contra o mo- objeto mais ou menos exótico e alheio, nem tampouco respondem a uma
vimento estudantil popular mexicano de 1968. Foram criadas várias uni- perspectiva de dominação. Pelo contrário, trata-se de pesquisas ou de ativi-
versidades, como a Universidade Autônoma Metropolitana, e também foi dades docentes realizadas por profissionais de diversas nacionalidades, con-
aprovada uma política de professores de carreira para os exilados na Unam, vencidos de que, através do conhecimento da América Latina, descobrem
no Colégio de México e em universidades privadas, como professores de eles novas dimensões da sua própria identidade, ao lado de um conjunto de
tempo integral ou como conferencistas convidados. Foi aí que desenvol- problemas comuns.5
veram suas atividades professores brasileiros da estatura do próprio Ruy
De fato, como disse o próprio autor, trata-se da construção
3
Ver Cueva, Agustín. El desarrollo contemporâneo de los estudios latinoamericanos en
México. In: Balance y perspectiva de los estudios latinoamericanos. Cuadernos de Estudios
Latinoamericanos I, México: Centro de Estudios Latinoamericanos, División de Estúdios de 4
Cueva, Agostín. Ibid. p. 8.
Posgrado, FCPyS, Unam, p. 7, 1985. 5
Ibid. p. 9.
308 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 309

de um sujeito histórico cuja identidade e integração estão constantemente que o autor não mudou muito, em contraposição com a idéia generalizada
ameaçadas, não só por epidêmicos brotos de um chauvinismo conservador nas universidades de que ele tinha abandonado as suas teses básicas. O
e balcanizador, mas sobretudo pelas concepções “pan-americanistas”, “he- texto mais importante dessa elaboração foi o Dependência e desenvolvi-
misféricas”, cuja origem imperial é amplamente conhecida.6 mento na América Latina, escrito com Enzo Faletto, em 1969.
O segundo núcleo explicativo foi elaborado por três exilados no
Cabe aos intelectuais críticos brasileiros exilados no México, nas duas México: Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini, que
levas, dos anos 1960 e dos anos 1970, terem dado uma contribuição fun- avançaram para uma teoria marxista da dependência, cujos acentos estão
damental aos estudos latino-americanos no campo das ciências sociais: a em assinalar que na América Latina se desenvolveu um capitalismo local
corrente conceitual da dependência e a teorização sobre o Estado de con- tanto no período da economia agroexportadora como na fase industrial,
tra-insurgência. condicionado pelas relações imperialistas, baseado na superexploração
Quanto à primeira contribuição, sobre a dependência, Marini nos diz da mão-de-obra e na ausência de um ramo significativo de produção de
o seguinte: “o golpe militar de 1964 precipitou a crise do desenvolvimen- bens de capital. Capitalismo dependente que pode significar crescimento
tismo cepalino e abriu o caminho para a afirmação da teoria da dependên- econômico, mas que não permite resolver os grandes problemas econômi-
cia”. O fato político da ditadura militar do Brasil permitiu a aquisição de cos, sociais e políticos do desenvolvimento. O texto mais importante dessa
um novo horizonte de visibilidade: o da articulação dependente dos nossos elaboração foi o chamado Dialética da dependência, preparado em 1969 e
países. No entanto, essa franja da criação teórica não se produziu no Bra- publicado em 1973.
sil, por causa exatamente das condições de repressão. Foi no Chile onde Um terceiro núcleo de contestação de ambos foi a elaboração de Fran-
a intelectualidade crítica brasileira começou a construir teoricamente as cisco Weffort, intitulada “Notas sobre a teoria da dependência: teoria de clas-
suas interpretações sobre a dependência. O capitalismo dos nossos países se ou ideologia nacional?”, publicado em 1971, e que, basicamente, criticava
depende, isto é, está condicionado pelo desenvolvimento e pelas possibili- as contribuições de Cardoso e Marini, assinalando que essas elaborações
dades ou limitações do capitalismo central dos países altamente industria- não tinham abandonado o enfoque da Cepal e esqueciam a importância dos
lizados. No entanto, logo se viu que, entre os próprios brasileiros, o mesmo processos nacionais internos, mesmo quando não o tinham proposto.
horizonte produzia um conhecimento diferente, que logo derivou em três A teoria da dependência entrou em crise posteriormente. Isso ocorreu
grandes núcleos explicativos sobre a dependência. não tanto por causa do desenvolvimento de concepções alternativas mais
A primeira contribuição foi produzida pelo ex-presidente do Brasil, o bem sustentadas, mas por todos os questionamentos intelectuais que surgi-
sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que entendeu o problema da de- ram a partir da derrocada de Allende no Chile, do posterior deslocamento
pendência a partir da conformação de estruturas internas de dominação das lutas revolucionárias para a América Central nos anos 1980 e do ad-
que dependiam das estruturas econômicas articuladas com o exterior. Isso vento da mundialização do capital e das transformações da última década
permitia pensar em novos processos de desenvolvimento sempre e quando do século XX.
as velhas estruturas de dominação fossem substituídas por outras em con- Outra contribuição importante do exílio brasileiro dedicado às ciências
formidade com as novas relações econômicas de dependência. Concepção sociais no México foi o estudo dos regimes militares e a polêmica em torno
do caráter desses regimes. Dessa ótica, participaram Ruy Mauro Marini,
6
Ibid. p. 10. Theotonio dos Santos, Severo de Salles, Emir Sader e outros. A maturidade
310 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 311

intelectual dos exilados e a experiência com a ditadura militar brasileira, anos de sua vida, a situação do Estado e a democracia na nossa região, no
que em 1974 iniciou uma fase de refluxo e de retrocesso na sua política re- contexto da emergência de uma nova ordem estatal promovida pela rees-
pressiva, permitiram que eles analisassem a especificidade do novo Estado truturação do capitalismo e pela transnacionalização, e pela existência dos
militar. Em sua definição, não predominará a caracterização de fascista, movimentos sociais de resistência à globalização pelo alto. Essas idéias fo-
mas a de que eram Estados de contra-insurgência e de segurança nacional ram expostas em nossas reuniões de trabalho no Centro de Estudos Latino-
que a contra-revolução capitalista tinha impulsionado para enfrentar a as- Americanos do México, entre os anos 1992 e 1994, algumas já expostas no
censão popular. Entretanto, estes não tinham força para se estabilizarem livro América Latina: dependência e integração,7 que ele mesmo trouxe para
por muito tempo como regimes de terror, sendo vulneráveis à ofensiva de nós no México, nos prólogos aos textos de A teoria social latino-americana,8
uma recomposição democrática. A história posterior desses regimes daria e outras que estão no livro Dialética da dependência, coleção de ensaios do
razão a eles e a seus enfoques e os transformaria em uma importante con- autor publicada por Emir Sader no Brasil.9 Sobre outras épocas, Marini ti-
tribuição para o estudo do poder na América Latina. nha já deixado clara a sua profundidade analítica sobre os temas do poder
e da política em textos como o Subdesenvolvimento e revolução,10 dedicado
Algumas contribuições de Marini na sua terceira época mexicana sobretudo a analisar as mudanças do Estado brasileiro e chileno, “O Estado
Os anos 1970 passaram, e agora a América Latina vive outra fase do de contra-insurgência”,11 no qual ele analisa o caráter e o projeto dos regi-
seu desenvolvimento. No entanto, o estreito vínculo entre os exilados bra- mes militares da América Latina dos anos 1960 e 1970, e “O Estado e as
sileiros e o México se manteve com presenças e relações permanentes. Vá- lutas de classes na América Latina”,12 no qual analisa sobretudo o sentido
rios brasileiros regressaram a seu país e outros tiveram a oportunidade de da resistência das massas de trabalhadores aos regimes militares e tecno-
voltar ao México convidados pela universidade e por outras causas. Entre cráticos dos anos 1970.
eles, fica a grata recordação do mestre Marini, que voltou ao México pela No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Marini estudou o sen-
terceira vez: em 1992, veio dirigir o Centro de Estudos Latino-Americanos tido e o caráter da nova ordem emergente na América Latina e das lutas
da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Unam, em um momento sociais e políticas dos trabalhadores na busca de afirmar e ampliar a sua
delicado dos estudos latino-americanos, quando pesava uma onda de con- participação nas novas democracias renovadas e continuar resistindo no
servadorismo que exigia das universidades mexicanas um ingresso no pri- embate contra o neoliberalismo. Esse é o contexto no qual se produzem as
meiro mundo e que entendia que o Tratado de Livre-Comércio da América últimas contribuições de Ruy Mauro Marini.
do Norte (Nafta) significava que o México deixava de pertencer à América
Latina. Marini soube entender o momento, não somente como de necessá- 7
Marini, Ruy Mauro. América Latina: dependência e integração. São Paulo: Brasil Urgente,
1992.
ria resistência contra essas políticas, mas como renovação do programa de 8
Marini, Ruy Mauro; Millán, Márgara. La teoría social latinoamericana, textos escogidos.
pesquisa e docência dos Estudos Latino-Americanos, um projeto renovado México: Unam, 1995; Id. La teoría social latinoamericana, colección de ensayos. México: El
Caballito, 1994 e 1995.
de vinculação com o Brasil, e ele deixou uma herança inestimável, assim 9
Marini, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes/Clacso (Conselho Latino-
como uma grande marca no coração das novas gerações de pesquisadores Americano de Ciências Sociais)/LPP, 2000.
10
Id. Subdesarrollo y revolución. México: Siglo XXI, 1975.
e estudantes de pós-graduação em Estudos Latino-Americanos. 11
Id. El Estado de contrainsurgencia. Revista Cuadernos Políticos, México, Era, n. 18, out./dez.
No contexto dessa contribuição, quero externar algumas das idéias 1978.
12
Id. El Estado y las luchas de clases en América Latina. Folheto publicado pelo Centro de
expressadas por Ruy Mauro Martini sobre como ele concebia, nos últimos Estudios Latinoamericanos/FCPyS/Unam, 1978.
312 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 313

Novas premissas da luta democrática popular Os novos Estados nacionais debilitados e submetidos
Em primeiro lugar, Marini apontava que as políticas de repressão dos ao capital transnacional
regimes autoritários dos anos 1970 e 1980 criaram no movimento popular Marini também analisava as variações na situação dos Estados na-
latino-americano (e particularmente brasileiro) um retorno a situações de cionais da região, pelo menos dos mais bem constituídos. Enquanto, “nos
luta social por direitos em âmbitos locais: o bairro, a habitação, o local de anos 1980, o declínio relativo do poderio norte-americano abriu caminho
trabalho, os problemas de abastecimento de alimentos, água, luz, gás etc. para uma maior autonomia dos Estados latino-americanos no plano inter-
(Dependência e integração na América Latina, 1992). Isso deu origem a no- nacional, nos anos 1990, pelo contrário, já estava claro que se estava ‘im-
vos movimentos sociais de bairro, ecologistas, geracionais, feministas etc., pondo uma política de transformação econômica funcional aos objetivos
que criaram um tecido denso no movimento popular e uma capacidade dos grandes centros capitalistas’, que, internamente, estava levando a um
de compreender, manipular e controlar os complexos mecanismos de pro- desmantelamento das nossas estruturas produtivas e dos nossos próprios
dução e circulação de bens e serviços. Isso, juntamente com a herança dos mercados e, politicamente, à perda da autonomia relativa dos Estados”
fenômenos de urbanização e assalariamento, criou potencialidades de par- (América Latina: dependência e integração, 1992). Podemos constatar atu-
ticipação popular nas estruturas e no exercício do poder que não existiam almente que as políticas de integração à globalização foram consolidadas
antes. Dessa forma, Marini se mostrava otimista em relação ao fato de que, através das reformas conservadoras do Estado e de uma submissão maior à
na América Latina, existisse um novo movimento de massas pela democra- hegemonia norte-americana.
cia, portador de um enraizamento local e de uma dimensão social que lhe Inclusive no plano da organização política do Estado, a transforma-
daria condições de força na luta social que antes não tinha: ção democrática liderada pelas frações modernizadoras do capital trans-
nacionalizado veio na fórmula da democracia governável, orientada para
De fato, se é certo que o modo como se desenvolveu o movimento po-
o controle político e social, para o parlamentarismo e para a luta eleitoral,
pular se constituiu em obstáculo para sua plena afirmação política, pro-
uma fórmula aceitável para processar a transição para uma nova institucio-
porciona-lhe porém as premissas para uma estratégia de luta pelo poder
nalidade de acordo com os padrões neoliberais. Para Marini, estava claro
e para um projeto novo de sociedade. (América Latina: dependência e
que mesmo essa estratégia tinha sido elaborada pelos Estados Unidos para
integração, 1993)
renovar a sua hegemonia na América Latina. No interior dos nossos países,
as forças armadas, os setores duros dos ministérios de governo, desenha-
A hegemonia das frações capitalistas na luta pela democracia
ram a política do quarto poder, no qual aos processos democratizantes se
Já nos anos 1990, no entanto, para Marini, estava claro que tinha pre-
acrescentam a tutela do exército e das polícias especiais que cuidam da boa
valecido a hegemonia conjunta do imperialismo e da burguesia na luta
ordem democrática. Com isso, produz-se uma continuidade sui generis das
social para influir e dirigir o processo de democratização. Essa hegemonia
políticas de contra-insurgência, cuja terceira fase era reinstalar uma demo-
impôs uma separação entre essas lutas populares locais e a luta política
cracia tutelada e governável (A teoria social latino-americana, 1995).
geral, mas também uma desagregação no plano do Estado. Durante os
Marini considera que, em face do enfraquecimento e da transnacio-
anos 1980, a burguesia aderiu às lutas sociais e sua hegemonia se traduziu
nalização do Estado, a esquerda já não pode voltar atrás para “defender in-
no predomínio de um regime de eleições e parlamentos. Foram as frações
discriminadamente sua presença na economia, nem para bater-se por um
mais ligadas ao grande capital transnacional que se colocaram no coman-
protecionismo exagerado”, mas tem de apelar para o Estado no sentido de
do da transição para a democracia.
314 ■ A América Latina e os desafios da globalização A intelectualidade crítica brasileira no México ■ 315

“que assuma um papel de direção a fim de orientar o processo e controlar los Estados Unidos, realmente não integram as nossas sociedades e os nos-
a cobiça dos grupos nacionais e transnacionais”. A experiência indica que sos Estados, e muito menos introduzem uma especialização produtiva ou
já não é desejável postular a concentração de poderes nas mãos do Esta- uma complementaridade entre eles. Eles são anexações em separado dos
do, dado que isso o fortalece como instrumento de opressão da burguesia nossos países dispersos e isolados, que inclusive concorrem entre si para
(América Latina: dependência e integração, 1993). Ruy Mauro chegou mes- isso, aos interesses e ao projeto político internacional dos Estados Unidos
mo a defender a idéia de enfraquecer o Estado, retirar dele força econômica de construir seu próprio bloco no mundo, países submetidos a políticas
e política, sempre que isso implicasse transferir atribuições e riqueza ao econômicas de transnacionalização do capital norte-americano e de inte-
povo e não à burguesia. E, para tanto, propunha a criação de uma área so- gração externa e desintegração interna das nossas economias.
cial regida pelo princípio de autogestão e subordinação dos instrumentos Marini atualizou o sonho de Bolívar assinalando com clareza que a in-
estatais de regulação às organizações populares. tegração econômica da América Latina havia se tornado um pré-requisito
Dessa maneira, para Marini, as propostas da esquerda deviam susten- indispensável para a nossa integração à economia mundial. Pensava no de-
tar alguns pontos programáticos básicos de sua tradição, tais como postu- senvolvimento conjunto, através de mecanismos multinacionais, de novos
lar que o Estado assuma o papel de direção na economia e que as políticas setores produtivos e de serviços, baseados em tecnologia de ponta e com
de austeridade redirecionem o gasto estatal para as políticas sociais, nas mecanismos compensatórios que minimizassem os custos sociais da trans-
quais seriam prioritárias a saúde e a educação, para que formação (América Latina: dependência e integração, 1993).
No entanto, um projeto de integração avançada dos países latino-
a população latino-americana seja capaz de ajustar-se às exigências que as americanos não poderia ser visto como um objetivo de governos e da classe
mudanças técnico-científicas acarretam no âmbito da produção e dos ser- dominante interna, mas como um projeto sob a iniciativa dos povos, re-
viços, além de ser fator essencial na elevação do nível político e cultural dos sultado da coordenação de esforços em todos os planos: sindical, social,
trabalhadores. cultural, parlamentar e partidário. Para Marini, a integração não é um ne-
gócio, mas um grande projeto político e cultural. Daí que a unificação das
No entanto, em vista da transformação do capitalismo mundial e das demandas e das lutas das forças populares fizesse parte do processo de in-
políticas da globalização, Marini estava consciente da precariedade das tegração. Assim, Marini propunha a latino-americanização das lutas e das
alternativas da esquerda. Mais ainda, ele falava já de “um vazio teórico plataformas de ação como sendo a resposta globalizada dos nossos povos
e ideológico” e da ausência de uma estratégia adequada para fazer frente a às políticas de globalização dos impérios (América Latina: democracia e
essa problemática (A teoria social latino-americana, 1994). integração, 1993).
Além de Ruy Mauro Marini, outros exilados de antes fazem hoje
Uma América Latina integrada e solidária perante os blocos mundiais parte dos espaços acadêmicos e dos programas de pós-graduação no Mé-
Também quero me referir à preocupação de Marini com o fato de as xico e contribuem com os seus conhecimentos e sua atividade acadêmica
políticas de reforma do Estado poderem levar à balcanização definitiva da para os fins e a produção de um acervo de riqueza incalculável para a
região, caso esta não conseguisse se orientar para uma integração econô- América Latina.
mica, política e cultural. De fato, para Marini já estava claro que projetos
como a Associação de Livre-Comércio das Américas (Alca), liderados pe-
316 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 317

Ser ou não ser subdesenvolvido: a dialética


da dependência e a história do Brasil1

Oswaldo Munteal*

(...) o rancor de Fernando Henrique Cardoso e de José Serra em relação a


minha análise econômica não os leva à atitude suicida de rejeitar a existência
de contradições no modo de produção capitalista. Além disso, o reformismo
em suas diversas variantes mostrou que é possível aceitá-las sem que isso
implique assumir uma posição revolucionária. Não, o que Cardoso e Serra
não podem aceitar é que se identifiquem contradições concretas na socie-
dade latino-americana e, em especial, na brasileira. Diante disso, clamam
pela pureza do marxismo, querendo reduzi-las outra vez à contradição abs-
trata, ou não vacilam em lançar mão de analogias formais e por isto mesmo
caricaturescas, para desqualificar a possibilidade de que essas contradições
concretas sejam reconhecidas.
Ruy Mauro Marini. Dialética da dependência.

O dilema hamletiano se encaixa perfeitamente no desafio enfrentado


nos últimos 40 anos no Brasil acerca da condução do nosso destino. Afi-
nal, para onde eu vou? O que eu desejo ou quero concretamente? Quais
escolhas ou caminhos a serem trilhados são mais justos e adequados à mi-
nha vida? Essas indagações do príncipe Hamlet diante da morte do rei da

* Historiador brasileiro nascido em 1965. Professor da Uerj, PUC-Rio e das Faculdades Inte-
gradas Helio Alonso. Possui dezenas de artigos e vários livros publicados ou organizados.
1
Este estudo deve muito à minha assistente de pesquisa Nashla Dahás, pela contribuição para
a elaboração do quadro “A dialética da dependência e a história do Brasil”, e à pesquisadora
Gláucia Pessoa, pelas sugestões para a redação deste trabalho.
318 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 319

Dinamarca são comparáveis em uma escala ampliada, mas não superior, Caio Prado Júnior publicou o livro Evolução política do Brasil em
ao conjunto da sociedade brasileira. O que efetivamente nós desejamos, se 1933, dentro da efervescência do pensamento intelectual daqueles anos,
compreendemos nós como essa complexa aliança entre o povo e as elites, sendo também a primeira análise da história brasileira, em um curto ensaio
dirigidos para um único foco? O Brasil não construiu um Estado prussia- de síntese da Colônia até o Império, a utilizar o materialismo histórico de
no, tampouco possui uma sociedade civil orgânica. A miséria, a corrupção, forma consistente. Nessa obra, via o feudalismo da Colônia apenas como
a traição das oligarquias relativamente ao seu povo e a ignorância impedem uma “figura de retórica”, ainda que o regime das capitanias tenha sido “em
o país de arrancar para o seu futuro. A obra e a vida de Ruy Mauro Marini princípio caracteristicamente feudal”. No entanto, o paralelismo entre a
estão inscritas nessa zona turbulenta de possibilidades quanto à conquista economia nacional e a da Europa medieval era inexistente, já que, desde o
da soberania nacional, que se apresenta debaixo de uma lógica perversa de início da colonização, nossa estrutura econômica foi capitalista. Também
expectativas e frustrações. nessa obra pode-se destacar a análise sobre as rebeliões regenciais, vistas
Nos dias que correm, o sujeito na história foi esquecido, ou melhor, por ele como movimentos relativamente organizados e oriundos de uma
fragmentado e dissolvido na luta pela sobrevivência imediata. A sedução fermentação popular, que tentaram romper a ordem colonial. Ele colocava
em torno de uma estratégia de salvação pessoal foi consagrada em detri- o povo em um lugar de relevo na história do Brasil, o que não era tratado
mento da instituição da coletividade. Nesse sentido, o papel dos intelec- pela historiografia tradicional. A Independência foi um movimento mais
tuais foi drasticamente reduzido no Brasil no que concerne a uma criação de “arranjo político” do que propriamente de libertação, pois se preserva-
teórica original que chegue aos círculos de poder de forma independente ram as instituições e a ordem colonial.
e crítica. Nas décadas de 1960 e 1970, Ruy Mauro Marini foi um dos ex- Em um segundo momento, Caio Prado Júnior escreveu Formação do
poentes de uma tradição de combatividade em torno da questão nacional Brasil contemporâneo, publicado em 1942, no qual fez um corte temporal
e da relação complementar e contraditória do Brasil referido ao cenário do fim do século XVIII e a primeira metade do século XIX para caracteri-
internacional. Como pensador, Marini estabeleceu direta ou indiretamente zar o que foi a Colônia. O capítulo “O sentido da colonização” serve como
um diálogo permanente com os historiadores latino-americanos, especial- principal referência de sua obra histórica. Para Caio Prado, a compreensão
mente os brasileiros. O nosso esforço neste trabalho repousa em um exame da história brasileira se faz ao se desvelar o seu sentido, que se definiria
sobre a contribuição da teoria da dependência para a compreensão da his- na sua formação colonial. Para tanto, ele parte do início do século XIX,
tória do Brasil. quando a obra colonizadora se encerra, retornando ao passado para en-
O pensamento crítico latino-americano, em seus diversos matizes e tender esse sentido e, mais ainda, entendê-lo relacionado à expansão dos
matrizes, sofreu pesadas derrotas, porém traduziu uma consciência social séculos XV e XVI. Todas as políticas de conquistas e colonização daquela
em torno do Terceiro Mundo como um problema a ser investigado e, se época tinham um caráter comercial, voltado para as atividades mercantis
possível, equacionado pelos intelectuais engajados. Marini, no seu livro e imediatas. Caio Prado defendeu que o caráter colonial permanecia na
Dialética da dependência, apresenta uma interseção com a produção teó- estruturação da sociedade brasileira ainda quando escreveu sua obra, re-
rica de Caio Prado Júnior e de Sérgio Bagú, ambos representantes de um sultante de uma sociedade que se moldara na especialização da produção
estilo de pensamento responsável pela integração filosófica da América La- de bens agrícolas de grande valor para o mercado europeu, produzida em
tina. Esse patrimônio intelectual apresentou desdobramentos importantes latifúndios monocultores. Em 1945, publicou História econômica do Brasil,
que serão expostos mais adiante neste trabalho. um texto interpretativo da formação econômica do país, atendendo a uma
320 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 321

expectativa de se ampliar uma bibliografia voltada para a história política. da reflexão crítica do autor. A descrição que faz sobre o Brasil revela um
Uma parte da obra é reaproveitada da Formação, inovando a partir de “A sentido que está implícito na própria visão de mundo que dominava a sua
era do liberalismo”, que aborda o período de 1808 a 1850. Trata dos proble- concepção de história. Nasceu com essa geração uma preocupação com o
mas da industrialização, do imperialismo, da vida econômica e financeira, método e com a teoria. A universidade recebeu forte influência da obra do
insuficientemente analisados até então. Não era uma obra de grandes dados autor que, afinal, marcou os estudos sobre o colonialismo durante mais de
econômicos de exemplificação, mas de interpretação, o que lhe valeu algu- 50 anos, com orientações, conferências e a formação de quadros docentes
mas críticas. que fizeram época, a partir do momento que tinham uma visão do Brasil,
Caio Prado Júnior integrou um movimento de revisão da história do partindo da questão nacional. O olhar sobre o Brasil foi marcado por uma
Brasil nos anos 1930, que revolucionou a maneira de compreender a evo- relação constante entre as estruturas macro e determinadas singularidades
lução política e social do nosso país. Contribuiu para uma renovação teó- regionais. Nessa direção, toda a abordagem sistêmica acerca das relações
rica que enxergava como horizonte de sentido da economia brasileira um entre o Brasil e o contexto internacional tem muito a dever a um dos seus
destino periférico e dependente, que afinal definiu a própria história do principais historiadores latino-americanos do século XX. Após 1964, Caio
Brasil contemporâneo. Até a década de 1930, a tese de que o Brasil era um Prado Júnior questiona os seus críticos e exegetas da sua obra, com a pu-
país sem povo vigorava. A partir desse momento e com as contribuições blicação, em 1966, de A revolução brasileira. Nessa obra, e mais tarde em A
decisivas de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e do próprio Caio questão agrária, ele revê o marxismo que fora utilizado em suas primeiras
Prado, houve uma mudança nesse panorama, trazendo novos paradigmas, obras e demonstra que aqueles que as estudaram não penetraram fundo
como cultura, tradição, modernização, patriarcalismo e revolução, que fo- nos conceitos e nas categorias da teoria crítica da sociedade. A influência
ram sendo assim incorporados ao vocabulário corrente dos círculos inte- do PCB e das respectivas teses do aparelho partidário simplificou a história
lectuais e universitários brasileiros. A revolução brasileira aparece como do capitalismo brasileiro. E, com isso, Caio Prado amplia as suas formula-
uma das estratégias para superação do atraso e a ruptura com o passado ções incorporando as leituras do marxismo italiano e recusando o ranço
oligárquico vem através da idéia de modernização. stalinista que predominava nos círculos comunistas da época. Em A re-
Caio Prado, com lentes de aumento e imune às metodologias micros- volução brasileira, ele lembra que a tradição do pensamento de esquerda
cópicas e arrivistas, constata que o passado persiste teimosamente a retor- no Brasil tem invertido o processo metodológico adequado – ao invés de
nar e a condenar o Brasil aos seus vínculos seculares com a escravidão. A partir da análise dos fatos, a fim de derivar daí os conceitos com que se
influência do materialismo histórico se faz presente na sua obra através estruturará a teoria, procede-se em sentido inverso, partindo da teoria e
dos estudos em torno da história econômica e administrativa e da teoria dos conceitos, que se buscam em textos consagrados e clássicos, para, em
da história. As obras Evolução política do Brasil, Formação do Brasil con- seguida, procurar os fatos ajustáveis em tais conceitos e teoria.
temporâneo e História econômica do Brasil representam um esforço de sis- Com a publicação de Economía de la sociedad colonial (1949) e Es-
tematização dos conceitos tomados da tradição do pensamento marxista, tructura social de la colonia (1952), o historiador argentino Sérgio Bagú
aliados a uma narrativa pormenorizada dos principais acontecimentos que transformou os estudos históricos sobre a América colonial, rompendo as-
atravessam a nossa evolução sociopolítica. Esse conjunto de obras está liga- sim com a interpretação clássica da historiografia que vigorava até então.
do a um momento da produção intelectual de Caio Prado, que se refere à Briseida Allard elucida: “La antigua historiografía fue quedando paulati-
fase considerada, a partir de uma interpretação mais superficial, ortodoxa namente aislada en las cátedras, las revistas y las academias tradicionales,
322 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 323

mientras se difundía un análisis especializado, que se tradujo en la creación idéias foram marcadas por um marxismo e socialismo latino-americanos,
de cátedras de historia económica, historia demográfica e historia social, así definidas por uma “creación heróica”, respeitando as especificidades cultu-
como en la aparición de revistas dedicadas a esas especialidades.”2 rais, econômicas e políticas da América Latina. Tinha como uma de suas
Para Allard, a partir da década de 1950, as ciências sociais na América principais referências o pensamento do peruano Mariátegui. Dessa forma,
Latina deixaram de representar disciplinas isoladas. Começou a haver a ne- não reproduziu ou importou idéias do marxismo que se aplicavam a uma
cessidade de se eliminarem as fronteiras entre as áreas, para assim se poder outra realidade histórica. Buscou, em primeiro lugar, entender a América
ter uma melhor compreensão do complexo tecido social que emergia. Foi Latina para então dialogar dialeticamente com o ideário marxista, apon-
dessa forma que a história, a economia e a sociologia se encontraram inte- tando para a transformação do continente. Bagú questiona, já em 1949, em
gradas em diversos trabalhos e livros da época. Esse foi o caso de Bagú que A economia da sociedade colonial, o pretenso passado feudal da América
reconheceu a pluralidade de variáveis política, sociais e econômicas presen- Latina. As colônias espanholas e portuguesas constituem um capitalismo
tes no contexto histórico da região. Nesse sentido, S. Bagú considera que: colonial, não sendo, assim, um mero apêndice da economia européia. Nes-
se mesmo livro, afirma Ricupero, ele “indica também caminhos que poste-
Cuando un sociólogo busca en la perspectiva histórica un instrumento que le riormente se mostrarão ricos para a historiografia latino-americana, apon-
permita esclarecer mejor su propio panorama, o bien cuando un historiador tando para o papel do colonialismo e do tráfico de escravos na acumulação
se vuelca hacia el análisis sociológico de una coyuntura, lo que ocurre es que primitiva de capital, ocorrida no período de transição entre o feudalismo e
tanto uno como otro, en el afán por enriquecer su propia capacidad de análi- o capitalismo industrial”.4
sis, atraviesan los lindes de su especialidad y se van ubicando en esa frontera Dessa forma, podemos perceber que Bagú acredita ser indispensável
incierta donde lo sociológico se transforma en histórico y a la inversa. (...). o conhecimento da realidade histórico-social do continente. É a partir da
La ciencia, por fuerza, explora parcelas de la realidad y en la misma medida noção da situação histórica de colonialismo e imperialismo que se pode
en que la ciencia se hace más exigente y abarca realidades más amplias, la transformar esse contexto. Com isso, permaneceu ao lado das lutas po-
especialidad se impone como una necesidad perentoria que se origina en la pulares, sempre buscando a igualdade, a democracia, a autonomia latino-
limitación de la capacidad de trabajo del ser humano.3 americana em face da dominação européia e norte-americana. Assim,
aponta para a situação de dependência de “nuestra América”. Theotonio
Em Tiempo, realidad social y conocimiento, apresenta três dimensões dos Santos destaca a importância da crítica de Bagú e outros pensadores
distintas da temporalidade que são importantes para a reflexão do papel latino-americanos: “A crítica de Bagú, Vitale e Caio Prado Júnior ao con-
dos indivíduos na sociedade. A primeira dimensão indica o tempo como se- ceito de feudalismo aplicado à América Latina foi um dos pontos iniciais
qüência ou duração – o “transcurso”. A segunda aponta para o tempo como das batalhas conceituais que indicavam as profundas implicações teóricas
“radio de operações” – o “espaço”. A terceira remete à rapidez dos aconteci- do debate que se avizinhava.”5
mentos, à multiplicidade de combinações possíveis – a “intensidade”. Suas O método herdado dessa tradição e seguido por Ruy Mauro Marini
possibilita um padrão de explicação histórica que parte da premissa básica

2
Allard, Briseida. Homenaje: Sergio Bagú. Tareas, Panamá: Cela, n. 113, p. 125-135, jan./
abr. 2003. 4
Ricupero, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro.
3
Bagú. Apud Allard. Op.cit. 5
Santos, Theotonio dos. Imperialismo y dependencia. México: Era, 1977. p. 31.
324 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 325

de que a História está fundamentada em leis gerais e categorias abstratas, formulação dialética. O diálogo de Ruy Mauro Marini com esse enfoque
que afinal se articulam em torno de um todo conceitual. As relações econô- se acelera, por exemplo, nesta passagem: “Ninguém nega a influência dos
micas e socais de produção são deduzidas a partir de um levantamento em- fatores internacionais sobre as questões internas, principalmente quando
pírico dos dados objetivos que estão na realidade, portanto o real existe e é se está em presença de uma economia das chamadas centrais, dominantes
concreto, não se trata de uma ilusão de sentido dos homens. A realidade não ou metropolitanas, e de um país periférico, subdesenvolvido. Mas, em que
pode ser confundida com a ideologia que a informa, seduz e falsifica. O mé- medida se exerce essa influência? Que força tem frente aos fatores internos
todo dialético proposto por Marini advém de uma formação teórica prévia. específicos da sociedade sobre a qual atua?”7 A interação entre Marini e os
Mais uma vez ressalto que o real se impõe não como um ideal utópico, dis- historiadores, sobretudo do período colonial, refere-se à lógica da explora-
tante e intangível, mas sim através de procedimentos teórico-metodológicos ção do excedente (exclusivo) e, conseqüentemente, à fórmula encontrada
que possibilitem ao cientista não supor o que é a realidade, mas afirmar, por pelas economias metropolitanas para impor um padrão de acumulação ca-
conceitos e categorias precisos e concisos, como a sociedade evolui. pitalista à periferia.
O tronco genético crítico da teoria da dependência na discussão his- A função do monopólio é decisiva na análise do sistema colonial, pois
toriográfica tem os seus desdobramentos com a produção intelectual acer- é a condição necessária para o movimento de acumulação dependente,
ca do espaço colonial e as relações entre as metrópoles européias e as colô- que se agudiza com a concentração e acumulação de capital realizado pe-
nias nas Américas. A discussão em torno do sistema colonial tem no Brasil los Estados metropolitanos. Portanto, de fora para dentro e com a parceria
como seu principal expoente o historiador Fernando Novais. No final dos cada vez maior das elites internas, o quadro se completa em um acordo
anos 1960 e início da década de 1970, Novais desenvolveu uma tese sobre de siameses. O monopólio objetiva garantir a nova divisão internacional
a crise do antigo sistema colonial luso-brasileiro, entre 1777 e 1808, que do trabalho, transferindo, de uma forma desigual, mercadorias, homens
acabaria por se transformar em um clássico da nossa historiografia.6 e riquezas naturais de uma maneira geral. Até mesmo a compreensão da
A perspectiva sistêmica que afinal integrou o Brasil aos quadros da natureza se altera com o monopólio colonial. Animais, minérios e plantas
divisão internacional do trabalho ocupou um espaço relevante nos estu- são transformados em coisas passíveis de comercialização. As colônias são
dos e teses de Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fer- grandes empórios, e a sua natureza é transformada em mercadoria, sob o
nandes e Fernando Novais. A zona de interseção não se refere apenas às manto do fetiche da abundância.
franjas da teoria da dependência, mas sim ao âmago dos conceitos e da sua A história do monopólio colonial é trabalhada com intensidade por
Marini no conjunto de sua obra. Ruy Mauro afirma que:

6
A obra de F. Novais foi muito bem focalizada por Paulo Arantes: “Fernando Novais deslo- A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desen-
cou inteiramente o eixo da questão, que de local se torna mundial. Aí a grande inovação: pela
primeira vez, o centro de gravidade de uma História do Brasil deixa de ser nacional – mais ou volvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para
menos como nas teorias da Dependência, das quais a nova explicação historiográfica é contem- quem deseja compreender a situação que se enfrenta atualmente neste sis-
porânea. Tudo bem pesado, uma verdadeira desprovincianização da História do país, que de
comparsa, torna-se protagonista de uma transição cujo centro está na Europa, mas cujo raio de
tema e as perspectivas que se abrem. Somente de uma forma contraditória
ação é internacional. Nesse novo enquadramento, a periferia colonial se apresenta como o pon- pode-se compreender a evolução e os mecanismos que caracterizam a eco-
to nevrálgico em que o capitalismo metropolitano revela a sua natureza. Doravante a categoria
básica vem a ser a noção inclusiva de Sistema Colonial” (Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento
da dialética na experiência intelectual brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 84-85). 7
Marini, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000. p . 11.
326 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 327

nomia capitalista mundial proporcionando uma análise da problemática ceição Tavares, Carlos Lessa e Antonio Barros de Castro, e a historiografia
latino-americana. 8
dedicada à estrutura e montagem do sistema colonial. Lembrando mais
uma vez F. Novais, observemos os pontos de convergência com a dialética
Para os historiadores e cientistas sociais comprometidos com a abor- proposta pela teoria da dependência:
dagem sistêmica e dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil, a
perspectiva de crise do sistema é fundamental. A crise deriva da noção de (...) a economia capitalista comercial, e pois a burguesia mercantil ascen-
movimento, portanto os críticos do sistema colonial devem examinar com dente não possuía ainda suficiente capacidade de crescimento endógeno,
cuidado duas questões: 1) o papel do Estado moderno como instrumento a capitalização resultante do puro e simples jogo do mercado não permitia
efetivo para o processo de acumulação de capital nas colônias; 2) a crise do a ultrapassagem do componente decisivo – a mecanização da produção.
sistema colonial não pode ser estática pela própria natureza do processo Daí a necessidade de pontos de apoio fora do sistema, induzindo uma acu-
histórico atrelado às concepções de tempo e espaço. A teoria da dependên- mulação que, por se gerar fora do sistema, Marx chamou de originária ou
cia e a análise do sistema colonial apresentam muitos pontos de contato, primitiva. Daí as tensões sociais e políticas provocadas pela montagem de
inclusive no que tange ao momento de ruptura: “Crise do sistema colo- todo um complexo sistema de estímulos. O mercantilismo foi, na essência,
nial é, portanto, aqui entendida como o conjunto de tendências políticas e a montagem de tal sistema.11
econômicas que forcejavam no sentido de distender ou mesmo desatar os
laços de subordinação que vinculavam as colônias ultramarinas às metró- Marini confirma essa preocupação com a história do mecanismo mo-
poles européias.”9 Não se deve afirmar que as posturas metodológicas são nopolista e as suas articulações com o mercado mundial em construção,
idênticas, entre a teoria da dependência proposta por Marini e o enfoque quando afirma:
desenvolvido por Novais, entretanto não se pode dizer também se tratar
apenas de uma coincidência teórica de uma geração. A atitude de pensar o A vinculação ao mercado mundial na América Latina surge enquanto tal
Brasil,10 e as suas contradições internas e tensões com o externo remonta ao incorporar-se ao sistema capitalista em formação, quer dizer, quando da
à obra de Caio Prado e tem a sua culminância analítica no final dos anos expansão mercantilista européia do século XVI. (...) No curso dos três pri-
1950, 1960, e início de 1970, com a Cepal, a teoria da dependência, a nova meiros quartos do século XIX, e concomitantemente com a afirmação defi-
dependência de Fernando Henrique e Faletto, os neocepalinos, como Con- nitiva do capitalismo industrial na Europa, sobretudo na Inglaterra, a região
latino-americana é chamada a uma participação mais ativa com o mercado
8
Marini, Ruy Mauro. Subdesarrollo y revolución. México: Era, 1974. p. 54. mundial, já como produtora de matérias primas e como consumidora de
9
Novais, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: uma parte da produção industrial européia. A ruptura com o monopólio
Hucitec, 1983. p. 13.
10
Consultar a esse respeito o instigante ensaio de Fernando Uricoechea: Os intelectuais e a po-
colonial ibérico se impõe nesse sentido como uma necessidade, desencade-
lítica na América Latina. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano IV, n. 5, 2003. Especialmente ando o processo de independência política.12
esta passagem: “O ideário do intelectual republicano no contexto latino-americano do século
XX gravita em torno de duas questões tópicas: a idéia de nacionalidade e a de Estado. (...)
As peculiaridades históricas e institucionais próprias da gênese e desenvolvimento de nosso
11
Novais, Fernando. Ibid. p. 69-70. Consultar sobre a relação entre o mercantilismo e o de-
intelectual – por contraste, como já vimos, com as do europeu – deram ocasião para uma sin- senvolvimento econômico: Falcon, Francisco J. C. Mercantilismo e transição. São Paulo:
gular percepção sobre as relações entre Estado e nação ou, dito de outro modo, entre cultura e Brasiliense, 1981.
política” (p. 50).
12
Marini, Ruy Mauro. Sudesarrollo y revolución. México: Era, 1974. p. 58.
328 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 329

Marini demonstra que a evolução histórica da América Latina aponta próprios colegas na universidade brasileira. A trajetória intelectual de Ma-
para um cenário em que o sentido da colonização parece claro e os males rini se confunde muitas vezes com a história da comunidade cientifica no
do presente dialogam com o passado. Para Ruy Mauro, no conjunto da sua Brasil. Um clima de intolerância com a diferença que, afinal, confunde-se
obra, só existe uma alternativa para o Brasil e para o Terceiro Mundo: su- com determinados padrões de competitividade universitária de orienta-
perar a condição de periferia. A história do Brasil, para Marini, deve ser ção liberal.
estudada a partir dos seus ciclos de acumulação, crescimento e crise, e, des- Um dos episódios marcantes desse ataque às idéias verificou-se no
sa forma, com esse entendimento, auxiliar-nos a explicar as circunstâncias debate entre Marini e Fernando Henrique Cardoso em torno do neodesen-
de cada colapso político. Ainda na linha de raciocínio que aponta para as volvimentismo reformista proposto pelo Cebrap. A discussão política na
contradições seculares que envolvem a história econômica do Brasil com o teoria da dependência refere-se ao caminho para a conquista da soberania
sistema mundial capitalista, deve-se retomar F. Novais: nacional: os dependentistas como Marini acreditavam na ruptura com a
ordem econômica internacional capitalista, e na via revolucionária para a
De fato, a ultrapassagem do último e decisivo passo na instauração da chegada ao socialismo. Enquanto isso, Cardoso e Faletto perguntavam se a
ordem capitalista pressupunha, de um lado, ampla acumulação de capital alternativa era a revolução, ou a aliança com o capital estrangeiro a fim de
por parte da camada empresária, e de outro, expansão crescente do mer- possibilitar o desenvolvimento. Fernando Henrique, em nenhum momen-
cado consumidor de produtos manufaturados. Ambos esses pré-requisitos to, demonstra confiança na burguesia nacional como um instrumento ca-
geram-se no processo mesmo de desenvolvimento da economia de merca- paz de tirar o país do subdesenvolvimento. Para agravar a situação, segun-
do, pois a dissolução das antigas formas de organização econômica, ao en- do Marini, a aposta de FHC e José Serra vai toda na direção de um modelo
volver e acentuar a divisão social do trabalho e especialização da produção, econômico que pudesse aliar dependência com desenvolvimento.
cria ao mesmo tempo mercado e acumula capital; já vimos porém que esse Para Marini, a história do Brasil se confunde com a história da sua
mecanismo na sua pureza esbarra em obstáculos intransponíveis, em cuja subordinação econômica. Nessa direção, em suas Memórias, Ruy Mauro
superação se mobilizam a política mercantilista e o sistema colonial.13 sintetiza as suas grandes teses em um dos seus principais livros, Dialética
da dependência: 1) o ciclo do capital na economia dependente; 2) a trans-
A clave de discussão que ora se encerra serve a uma retomada de um formação da mais-valia em lucro; 3) a teoria do subimperialismo. No que
longo debate que foi interrompido pela interdição do debate em torno da se refere ao ciclo do capital, a investigação partiu da relação circulação-
questão nacional desde os anos 1970, e também para rever toda a rede de produção-circulação, aplicando-a, primeiro, às mudanças da economia
aproximações intelectuais em torno de uma perspectiva mais abrangente e brasileira, a partir do primeiro choque do petróleo. No plano da teoria ge-
crítica sobre a história do Brasil. ral, analisou o movimento da economia dependente no contexto do ciclo
Ruy Mauro Marini sofreu dois exílios ao longo da vida. O primeiro do capital-dinheiro.
em função da ditadura militar implantada no Brasil em 1964, e pela seqüên- Em seu livro sobre a dialética da dependência, Ruy Mauro Marini de-
cia de golpes desferidos contra os regimes constitucionais em boa parte da senvolve as teses do sistema mundial articulando-as ao debate em torno
América Latina, e o segundo em função de um silêncio imposto pelos seus das origens oligárquicas do nosso país. A posição de Giovanni Arrighi a
respeito dos confrontos em uma escala territorial é decisiva:
13
Novais, Fernando. Op. cit. p. 70.
330 ■ A América Latina e os desafios da globalização Ser ou não ser subdesenvolvido ■ 331

Em parte alguma, com exceção da Europa, componentes do capitalismo A dialética da dependência e a história do Brasil
fundiram-se na poderosa mescla que impeliu as nações européias à conquis- • Longa duração
• Ciclo Kondratieff (Estrutura, conjuntura
ta territorial do mundo e à formação de uma economia mundial capitalista e coerção e acontecimento)
poderosíssima e verdadeiramente global. Por essa perspectiva, a transição Teoria Immanuel Wallerstein Sistema
• Norbert Elias (O processo Civilizador –
O mecanismo monopolista)
do sistema (O moderno sistema interestatal
realmente importante, que precisa ser elucidada, não é a do feudalismo para mundial mundial)
• Charlles Tilly (Coerção e Estado )
Fernand Braudel • Karl Polanyi (A grande transformação –
o capitalismo, mas a do poder capitalista disperso para um poder concentra- (Civilização material, centralização e concentração)
Consenso economia e capitalismo)
do. E o aspecto mais importante dessa transição é a fusão singular do Estado Giovanni Arrighi
(O longo século XX)
com o capital, que em parte alguma se realizou de maneira mais favorável Relação Estado / mercado auto-regulável
Sistema Conceito de trabalho produtivo –
A dinâmica do exclusivo e o trabalho produtivo
do que na Europa. Colonial Ruy Mauro Marini
(mercantilismo) – Francisco J. C. Falcon
• Dialética da dependência
• Mercantilismo, excedente econômico e Estado moderno
• Teoria do subimperialismo
• Absolutismo Ilustrado e a política econômica
• Teoria da seperexploração do trabalho
Fatores endógenos determinaram o modelo de apropriação precária • O imperialismo e a mais-valia relativa
mercantilista
• Reformismo Ilustrado e tensões coloniais
do excedente e os conflitos inerentes à própria compulsão das elites estatais. Sentido exógeno da colonização – • Aparelho de Estado, burocratização e controle dos
Caio Prado Júnior meios de administração
Os elementos exógenos, e não somente as conjunturas estáticas, contribuí- • O sentido da colonização brasileira
• A revolução brasileira Dinâmica do “exclusivo” metropolitano –
ram decisivamente para a exclusão do jogo do poder dos Estados moder- • A relação centro-periferia e a história do Brasil Fernando Novais – Eric Williams
• A concepção dialética da história • Apropriação do “exclusivo”e a lógica mercantilista
nos, aqueles que, mais tarde, viriam a constituir a periferia do capitalismo. Nexos complementares e contraditórios entre • Acumulação dependente e a questão colonial
• Sistema colonial e sistema mundial
A obra de Ruy Mauro Marini adquire uma importância fundamental colonos e colonizadores –
Maria Odilla Dias e Ilmar R. Mattos • Relações entre as metrópoles européias e as colô-
nias nas Américas
para o enfoque sistêmico ao tratar das relações coloniais. Essa contribuição • O enraizamento da lógica metropolitana
• As relações entre colono, colonizado e colonizador
deve ser revista, com a inclusão da evolução da concorrência entre os Esta- • A moeda colonial e os nexos complementares e
contraditórios da plantation escravista
dos, pela via de um conjunto de forças que integram o esforço de militari- • A função da região de agricultura mercantil
escravista e a dinâmica endógena da classe senhorial
zação, controle fiscal e financeirização crescente. O arranque da contempo- • A influência das idéias Reformistas-Ilustradas e o
projeto colonizador (manutenção do “exclusivo” e da
raneidade está indissoluvelmente associado ao movimento de acumulação lógica do sistema colonial mercantilista)

de forças pelos Estados nacionais articulados à lógica de acumulação de Teoria da dependência CEPAL • O processo de substituição de importações • Política econômica neoclássica
• Construção de um mercado interno • Abertura das fronteiras econômicas
capital em uma escala planetária. Para uma compreensão apurada da his- • Método dialético • Política de distribuição de renda gradual • Criação de uma infra-estrutura
• Classe e Estado • Ritmo de desenvolvimento econômico necessária
tória do movimento de capitais entre os blocos econômicos, é necessário • Burocracia, centralização acelerado para fomentar o desenvolvimento
e concentração do poder • Estado equilibrado • Concentração das atividades
entender a história dos Estados nacionais que, no tempo longo, conduzi- • Sociedade civil organizada econômicas
• Desenvolvimento auto-sustentável nos países periféricos para obtenção
ram o processo de gestão do capitalismo até o momento mais recente. Os • Renegociação da dívida externa de vantagens comparativas
termos de troca estão também condicionados pela compulsão dos Estados Fernando Henrique Cardoso e a nova teoria Dependentistas
Keynes e o neomercantilismo
hegemônicos à destruição das economias nacionais da periferia, a imposi- da dependência
• Fortalecimento dos vínculos com o
• Vertente revolucionária para o desen-
• Fim do laissez-faire = Liberdade política volvimento nacional
ção do flagelo do endividamento, da pobreza e da recolonização. O sistema versus liberdade econômica capital estrangeiro • Guerra de movimento
• Pleno emprego • Desenvolvimento econômico depen- • Oriente versus Ocidente
mundial permanece, assim, uma economia mundial capitalista, baseada em • Multiplicador Keynesiano dente associado • Sociedade civil fragmentada
(pressão sobre os salários) • Estado equilibrado • Saída da condição de país periférico
uma divisão dual do trabalho, trocas desiguais e um sistema interestatal. • Agenda do Estado: convicções políticas; • Reforma fiscal, política e patrimonial como alternativa
orientação macroeconômica • Ritmo de desenvolvimento econômico para o crescimento econômico
prolongado • Ruptura com as agências financeiras
• Captação de poupança externa internacionais
• Descrença no papel da burguesia (FMI, Banco Mundial e credores
nacional norte-americanos)
332 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 333

A Revolução Cubana e a teoria da


dependência: Ruy Mauro Marini como fundador

Francisco López Segrera*

I. Um pensador latino-americano: teoria da dependência


e Revolução Cubana
Acho que nunca se fez uma biografia e definição mais precisa de Rui
Mauro Marini do que a realizada por Theotonio dos Santos em “Rui Mau-
ro Marini: um pensador latino-americano”, imediatamente depois de sua
morte.1 Apesar de ser algo sintético, fornece-nos de maneira correta a tra-
jetória desse intelectual revolucionário, desse fundador, junto com Theo-
tonio dos Santos e Vânia Bambirra, da teoria da dependência.2
Não penso, neste breve ensaio, em avaliar a dimensão de Rui Mauro
Marini, pai fundador da teoria marxista da dependência, a importância
que tiveram os seus conceitos de subimperialismo e superexploração, a sua
visão da dialética da dependência, o seu conceito de trabalho produtivo,
ou melhor, a sua análise dos fundamentos da dependência na economia
exportadora. Essa avaliação, eu já a fiz profusamente, de maneira implí-
cita, citando os seus textos nos meus livros sobre a economia, a política,

* Ex-diretor de Iesalc-Unesco; membro do GT de Clacso  de Universidade e Sociedade; mem-


bro do Comitê Científico Latino-americano do Foro Unesco de Educação Superior, Investi-
gação e Conhecimento. Professor visitante do Iuce, da Universidade de Salamanca, Espanha.
Investigador titular adjunto do Centro Juan Marinello, Cuba. Autor de dezenas de artigos em
revistas internacionais e diversos livros. Em português, publicou Cuba Cairá? (Editora Vozes).
1
Ver p. 39 de El pensamiento social latinoamericano en el siglo xx. Coordenadores: Rui Mauro
Marini; Theotonio dos Santos. Editor: Francisco López Segrera. Caracas: Oficina Unesco, 1998.
2
Carlos Eduardo Martins, p. 44, em Los retos dela globalización. Ensayos en homenaje a
Theotonio dos Santos. Editor: Francisco López Segrera. Caracas: Oficina Unesco, 1998. t. I.
334 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 335

a sociedade e a cultura cubanas, incluindo-os em antologias editadas por O defeito essencial da teoria da dependência foi não ter percebido que
mim de forma explícita em Herencia y perspectivas de las ciencias sociales en nenhum sistema pode ser independente do sistema histórico atual, da eco-
América Latina y el Caribe.3 Nesse ensaio, analisei brevemente a teoria da nomia mundial. Essa realidade interdependente não implica, no entanto,
dependência e me referi àquelas que são, na minha avaliação, as contribui- validar o neoliberalismo e as suas políticas de ajuste estrutural – que ten-
ções principais das ciências sociais latino-americanas na segunda metade dem a privilegiar a função do mercado em detrimento da sociedade civil e
do século xx. Vejamos uma parte dessa análise.4 do Estado – como a única receita válida, e muito menos como fim da histó-
No final dos anos 1950, o futuro da América Latina era visto através ria. Sobretudo quando hoje sabemos, depois de mais de duas décadas eco-
dos paradigmas estrutural-funcionalista, do marxismo tradicional (e, em nomicamente perdidas, que o ajuste estrutural implicou para a região uma
seguida, da nova versão que apareceu como conseqüência da Revolução profunda deterioração das condições sociais e uma concentração cada vez
Cubana) e do pensamento desenvolvimentista da Cepal (Comissão Eco- maior da riqueza, junto com o crescimento da pobreza e a exclusão social.
nômica para a América Latina). Se a falha do funcionalismo foi considerar Se hoje falamos de desenvolvimento humano sustentável (conceito enun-
que se podia reproduzir na periferia o esquema clássico do desenvolvi- ciado pelo Bruntland Report em 1987), é porque o outro desenvolvimento,
mento capitalista do centro – tese validada pelo marxismo tradicional, que na realidade, foi um crescimento econômico perverso e desequilibrado que
via a América Latina como uma sociedade feudal –, e o erro da Cepal era atenta contra o homem e seu habitat.5
pensar que, somente com a substituição de importações e com um Estado As duas influências teóricas que predominaram nas ciências sociais
e um setor público fortes, seria alcançado o desenvolvimento, a Escola da latino-americanas nos anos 1990 – o neoliberalismo e o pós-modernismo
Dependência, na sua crítica ao chamado capitalismo dependente latino- – carregam consigo alguns perigos. O neoliberalismo se inclina para a rea-
americano, não foi capaz de oferecer uma reflexão com resultados viáveis a firmação dogmática das concepções lineares do progresso universal e para
respeito de como construir um modelo alternativo de sociedade. a idéia de um desenvolvimento, e o pós-modernismo, para a apoteose do
O desenvolvimentismo cepalino de Raúl Prebisch foi considerado pe- eurocentrismo. O fato de que os metarrelatos em voga no século xx te-
los teóricos da dependência como um paradigma que, embora colocasse a nham entrado em crise no final desse século não significa a crise de todo
necessidade de reformas estruturais modernizadoras, na prática, foi inca- modo de pensar o futuro, e muito menos deste.
paz de superar o reformismo. A crítica neoliberal do desenvolvimentismo Como axiomas e/ou contribuições fundamentais das ciências sociais
se concentrou no excessivo intervencionismo estatal, no estrangulamento latino-americanas e caribenhas na segunda metade do século xx, pode-
da iniciativa privada e na concessão de recursos de forma irracional. mos mencionar, entre outros, os seguintes:
1o) O axioma do capitalismo colonial de Sérgio Bagú:
3
Segrera: Franscico López. Cuba: capitalismo dependiente y subdesarrollo (1510-1959).
Havana: Colección Premio Casa de las Américas, 1972; Id. Raíces históricas de la Revolución O regime econômico luso-espanhol do período colonial não é o feudalismo. É
Cubana (1868-1959). Havana: Premio Uneac de Ensayo 1978, 1980; Id. Cuba: cultura y socie- o capitalismo colonial, (...) que apresenta reiteradamente nos diferentes con-
dad (1510-1985). Havana: Letras Cubanas, 1989. Os livros que editei como conselheiro regional
de ciências sociais da Unesco e citados nas notas 2 e 3: El pensamiento social en el siglo xx e Los tinentes algumas manifestações externas que são semelhantes ao feudalismo.
retos de la globalización, incluem textos de Rui Mauro Marini.
4
Ver Segrera, Francisco López. Herencias y perspectivas de las ciencias sociales en América 5
Existe uma abundante literatura sobre a teoria da dependência, mas, na minha avaliação, a
Latina y el Caribe. In: Segrera, Francisco López; Filmus, Daniel (Coord.). América Latina 2020. melhor análise dessa teoria foi levada a cabo por Theotonio dos Santos. La teoría de la depen-
Buenos Aires: Flacso/Unesco/Temas Grupo Editorial, 2000. p. 403-406. dencia: un balance histórico e teórico. In: Los retos de la globalización. Op. cit. v. I, p. 93.
336 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 337

É um regime que conserva um perfil equívoco, sem alterar por isso a sua encontra atada; uma situação histórica que configura a estrutura da econo-
inquestionável índole capitalista. Longe de reviver o ciclo feudal, a América mia mundial de tal maneira, que determinados países ficam favorecidos em
ingressou com surpreendente celeridade no capitalismo comercial, já inau- detrimento de outros e que determina as possibilidades de desenvolvimento
gurado na Europa (...) e contribuiu para dar a este ciclo um vigor colossal, das economias internas.9
tornando possível a iniciação do capitalismo industrial anos mais tarde.6
Os autores citados são especialmente emblemáticos, mas expressam
2 ) O axioma do “centro-periferia” de Raúl Prebisch: “em outras pala-
o
amplos movimentos de reflexão na região, dos quais são tributários. Esses
vras, enquanto os centros conservaram integralmente o fruto do progresso axiomas apresentam uma especial relevância, do nosso ponto de vista, para
técnico da sua indústria, os países da periferia transferiram para eles uma a compreensão do papel da América Latina e do Caribe no atual sistema-
parte do fruto do seu próprio progresso técnico”.7 mundo capitalista. Há muitas outras contribuições relevantes das ciências
3o) O axioma do “subimperialismo” de Rui Mauro Marini: sociais na Nossa América, às quais me referi no trabalho citado, mas a con-
tribuição de Rui Mauro Marini, na minha percepção, esteve entre as quatro
Passou o tempo do modelo simples de centro-periferia, caracterizado pela que considero de maior relevância.
troca de manufaturas por alimentos e matérias-primas (...). O resultado foi Tive vários encontros no início dos anos 1970 – época quando o
uma reestruturação, uma hierarquização dos países de forma piramidal e, conheci pessoalmente, pois já conhecia os seus trabalhos publicados na
por conseguinte, o surgimento de centros médios de acumulação, que são segunda metade dos anos 1960 – com Rui Mauro Marini no México e em
também potências capitalistas médias – o que nos levou a falar da emergên- Cuba. Impressionou-me a sua agudeza intelectual para examinar as simpli-
cia de um subimperialismo. ficações de Revolução na revolução, de Regis Debray, e como considerava
que a teoria do foco, mesmo sem ser proposta, legitimava a tese do serviço
Este conceito acaba sendo equivalente ao de semiperiferia de de inteligência dos Estados Unidos (CIA: Central Intelligence Agency), que
Wallerstein, pois se refere ao papel desempenhado por países como o considerava os revolucionários como um corpo estranho nas sociedades
Brasil e os tigres asiáticos na nova divisão internacional do trabalho.8 latino-americanas. Em contraposição à luta de um pequeno foco guerri-
4o) O axioma da “dependência” de Theotonio dos Santos: a depen- lheiro que se transforma no motor inicial da futura luta revolucionária, ele
dência é enfatizava a importância da luta de massas e as condições objetivas, sem
cair absolutamente no conformismo típico de muitos partidos comunistas
uma situação na qual a economia de um certo grupo de países está condi- latino-americanos dos anos 1960, que não consideravam que o dever dos
cionada pelo desenvolvimento e pela expansão de outra economia, à qual se revolucionários era fazer a revolução. Continuamos a nos ver ocasional-
mente e me encontrei novamente com ele no Rio de Janeiro em 1996, no
momento em que acabava de ser nomeado conselheiro regional de ciências
6
Bagú, Sérgio. Economía de la sociedad colonial. México: Grijalbo, 1993. p. 253.
7
Prebisch, Raúl. El desarrollo económico en América Latina y algunos de sus principales
problemas. In: Marini, Rui Mauro. La teoría social latinoamericana. Textos escoljidos. México:
Unam, 1994. t. I, p. 238. 9
Dos Santos, Theotonio. La crisis de la teoría del desarrollo y las relaciones de dependencia
8
Marini, Rui Mauro. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo. Cuadernos
en América Latina. In: La dependencia político económica de América Latina. México, 1969.
Políticos, México, Era, n. 12, p. 21, abr./jun. 1977.
p. 184.
338 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 339

sociais para a América Latina e o Caribe da Unesco (United Nations revolucionário, depois da morte de Che e dos reveses sofridos pelo movi-
Educational, Scientific and Cultural Organization). Pude visitá-lo na sua mento guerrilheiro latino-americano. Nesse marco, os textos dos teóricos
casa, com Theotonio dos Santos, e propus a ele que preparasse uma an- da dependência foram uma lufada de ar fresco.
tologia do pensamento social latino-americano no século xx, junto com Os trabalhos de Fernando Martinez Heredia, Joel James e Germán
Theotonio. Essa foi a sua obra póstuma. Tivemos muito contato a propósito Sánchez, analisando o capitalismo dependente cubano e os aspectos essen-
da mencionada antologia – que foi publicada com o título de O pensamen- ciais da história de Cuba mais recente, e os livros já citados de Francisco
to social latino-americano no século xx –, e ele se transformou, até a sua López Segrera, entre outros trabalhos, inscreveram-se nesse esforço an-
morte, em um dos assessores principais que tive, junto com outros colegas, tidogmático. A vitória da Revolução Sandinista de 1979 contribuiu para
como Theotonio dos Santos, Atílio Borón, Pablo Gonzáles Casanova, Emir fortalecer a tese de Fidel Castro, de setores da liderança cubana e dos se-
Sader, Julio Carranza, Germán Sanches e, naquela época ainda muito jovem, guidores da teoria da dependência, que consideravam que a revolução não
Carlos Eduardo Martins, nas minhas tarefas como conselheiro regional de estava morta na América Latina. O Centro de Estudos da América – e sua
ciências sociais. Recordo também a emocionada homenagem organizada revista Cuadernos de Nuestra América –, onde se concentraram intelectuais
por Emir Sader que rendemos a Rui Mauro Marini, recém-falecido, quando da estatura de Luis Soares, Juan Valdés, Illya Villar, Fernando Martinez,
do XXI Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), Rafael Hernández e Julio Carranza, entre outros, marcou uma continuida-
realizado na Universidade de São Paulo (USP) em 1997. Participei dessa de do esforço para entender, com os paradigmas da teoria da dependência
homenagem junto com outro cubano, Fernando Martínez, que, como di- adequados à nossa realidade, os problemas mundiais, latino-americanos e
retor da revista Pensamento Crítico, teve um papel fundamental na difusão cubanos. Também a revista Casa de las Américas, sabiamente dirigida por
da teoria da dependência em Cuba. Roberto Fernández Retamar, publicou textos de dependentistas. É nessas
Vejamos agora o que significou para a Revolução Cubana a teoria da duas revistas que se podem encontrar as melhores análises das ciências so-
dependência e a obra de Rui Mauro Marini. Alguns dos trabalhos de Marini ciais cubanas. Nos anos 1990, foi fundada a revista Temas, dirigida com
foram publicados pela primeira vez em Cuba. Foi o caso de “Subdesenvolvi- grande acerto por Rafael Hernández, na qual se encontram as melhores
mento e revolução na América Latina”.10 Também os seus textos publicados análises e debates das ciências sociais cubanas no denominado “Período
na Monthly Review, “Interdependência brasileira e integração imperialista” Especial”, como ficou conhecido nos anos posteriores à crise e à derrubada
(dezembro de 1965) e “Subimperialismo brasileiro” (janeiro de 1972) fo- do “socialismo real”. Muitos autores que publicaram nessa revista são tribu-
ram amplamente difundidos em Cuba. Durante os anos 1960, a Revolução tários da teoria da dependência e do pensamento de Marini.
Cubana e a difusão do pensamento de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara Já mencionamos que uma das principais conseqüências da Revolu-
contribuíram para a radicalização das ciências sociais latino-americanas e ção Cubana na área da América Latina foi contribuir para o florescimento
tiveram um grande impacto no surgimento dos novos enfoques da teoria de uma nova ciência social marxista – capaz de diagnosticar com segu-
marxista da dependência. No entanto, o fechamento da revista cubana Pen- rança os fatores que produzem o subdesenvolvimento, mas menos capaz
samento Crítico e a adoção, em muitos aspectos, do modelo soviético em de trazer projetos alternativos para superá-lo –, contraposta às concepções
Cuba no início dos anos 1970 implicaram um certo fechamento do debate ideológicas da burguesia dependente e do imperialismo. A Revolução Cuba-
na demonstrou que era possível o socialismo em um país dominado pelo
10
Tricontinental, Havana, n. 7, jul./ago. 1968. imperialismo, por mais fortes que fossem os laços de dependência, e que
340 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 341

as formas peculiares do socialismo na América Latina eram determina- A morte de Che na Bolívia (1967) e de Allende em La Moneda (1973)
das pela específica configuração socioeconômica do continente. Em razão marcaram o início do refluxo do movimento guerrilheiro e revolucionário
de suas raízes históricas e das características da sua liderança, a Revolu- que, com a vitória dos sandinistas na Nicarágua em 1979 e de Maurice
ção Cubana não foi derrubada junto com o “socialismo real”, e isso é sem Bishop em Granada – invadida pelos Estados Unidos em 1983 –, teve as
dúvida uma homenagem aos lutadores revolucionários da estatura de Rui suas últimas vitórias de importância, sem esquecer a significação do go-
Mauro Marini, que nunca perdeu a confiança na Revolução Cubana e nas verno de Omar Torrijos no Panamá e de Velasco Alvarado no Peru. As
possibilidades da luta revolucionária. ditaduras militares no Cone Sul começaram com o golpe de 1964 no Brasil
e se estenderam a todos os países dessa área nos anos 1970. Foi um projeto
II. Vigência da teoria marxista da dependência: do triunfo da Revolução contra-revolucionário dirigido pelos Estados Unidos, uma vez fracassada a
Cubana às vitórias de Chávez, Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez Aliança para o Progresso de Kennedy. Nos anos 1970, os governos militares
1. Triunfo, refluxo e renascimento do movimento revolucionário na Amé- estiveram na ordem do dia em toda a América Latina e o Caribe.
rica Latina e no Caribe
Como conclusão deste ensaio que, como uma modesta homenagem, 2. O impacto do neoliberalismo
dedicamos à obra de Rui Mauro Marini, faremos uma breve análise da re- O resultado das ditaduras militares dos anos 1960 e 1970, das frágeis
gião latino-americana entre 1959 e 2005. Análises recentes de autores como democracias dos anos 1980 – década na qual a região sofreu a sua mais
Emir Sader, Theotonio dos Santos, Atílio Borón e Aníbal Quijano, entre grave crise em 50 anos, segundo o então secretário executivo da Cepal,
outros, mostram-nos a plena vigência de uma análise aggiornada que parte Enrique Inglesias – e do neoliberalismo das três últimas décadas foi uma
da teoria marxista da dependência. O período que analisamos começou América Latina e Caribe com estagnação econômica, com a maior quanti-
com a Revolução Cubana – herdeira do independentismo cubano, da Re- dade de pobres da sua história, com a maior porcentagem de desemprego,
volução Mexicana e das lutas de Sandino, entre outras – e continuou com afundados no caos social e com sua independência e soberania ameaçadas
o objetivo de transformar os Andes em uma Sierra Maestra através do pelos esquemas integracionistas (Alca, Tratado de Livre-Comércio) e pela
processo de luta guerrilheira que viu surgir as novas ditaduras militares, estratégia militar dos Estados Unidos.
entronizadas no poder e/ou apoiadas pelos Estados Unidos, salvo no bre- Dessa situação caótica, parecem emergir as novas alternativas ao
ve interlúdio da presença de Jimmy Carter com sua política de defesa dos neoliberalismo, através de mobilizações populares contra os regimes que
direitos humanos. Outro marco foi a Década Perdida (dos anos 1980) na entronizaram o neoliberalismo na forma do Consenso de Washington. A
economia e as novas democracias, ficando demonstrada a tese dos que deslegitimação do neoliberalismo coloca, finalmente, diferentes propostas
consideravam que era possível construir a “democracia” no capitalismo para o debate, diferentes opções para superar a crise. Antes de analisá-las,
dependente (Cardoso), diferentemente daqueles que acreditavam que a vejamos alguns dados adicionais sobre a situação da América Latina e do
alternativa era na América Latina entre socialismo ou fascismo. Nos anos Caribe (Sader, 2001; Gambina, 2002).
1990 – embora a sua incubação remonte aos anos 1970 –, surgiu com for- A América Latina e o Caribe enfrentam uma crise do seu capital social
ça o neoliberalismo, apoiado no Consenso de Washington; e finalmente a que envolve diversos fatores: clima de confiança social, grau de associacio-
região chegou agora à crise estrutural mais profunda da sua história, como nismo, consciência cívica, valores culturais (Kliksberg, 2001). De acordo
explicaremos em seguida. com a Cepal (2000): “os anos noventa contribuíram para estabelecer uma
342 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 343

nova estratificação ocupacional que não favorece a mobilidade social nem tar tão presente nos setores empresariais – e inclusive políticos – de certos
uma melhor distribuição da renda. Aumentam o emprego precário (...) países da região. A tendência para a transnacionalização e o caráter des-
e a vulnerabilidade social”. De acordo com uma pesquisa de opinião da nacionalizador que se estabeleceram na região, a falta de capacidade de
Latinobarómetro (2000), há a percepção de que “a minha geração está pior aggiornamento com o novo paradigma tecnológico e a crise de paradigmas
do que a anterior”. Em 2000, a população mundial era de 6.200 milhões. A e alternativas são desafios que a região enfrenta na transição de uma socie-
cifra na América Latina e Caribe era de 481 milhões (América do Sul: 319; dade de produção para outra do conhecimento. A chave para solucionar
América Central: 126; Caribe: 36). Segundo o Banco Mundial, a América esses desafios é a existência ou não de uma vontade política para realizar as
Latina e o Caribe são as regiões com “a maior polarização distributiva do inadiáveis mudanças. A democracia foi viável no marco do chamado capi-
mundo”: 150 milhões nos anos 1990 (BID: Banco Interamericano de De- talismo dependente com exclusão social. A pergunta que muitos se fazem
senvolvimento) viviam com menos de dois dólares por dia e 250 milhões, é: até quando? “A experiência histórica e contemporânea são concludentes:
de acordo com a Cepal, no ano 2000. Quarenta por cento da população somente obtêm êxito os países capazes de pôr em execução uma concepção
trabalhavam no setor informal da economia. Cinqüenta por cento das ex- própria e endógena do desenvolvimento e, com base nisso, integrar-se ao
portações da região eram dirigidos para o pagamento da dívida externa. De sistema mundial” (Ferrer, 1999, p. 23).
acordo com a Cepal (2002), o desemprego chegava a 9,1% e os pagamentos É, portanto, o Estado nacional que deve criar a estratégia de desen-
de juros da dívida externa (39 bilhões de dólares) equivaliam a 2,4% do volvimento necessária e implementar políticas que fortaleçam as empresas
PIB da região. O Banco Mundial assinalou no WDR (1990) que, caso se nacionais. A passagem do ajuste estrutural à “retórica” com rosto humano
transferisse 0,7% da renda do PIB, a pobreza seria erradicada. Isso equiva- e depois social não parece oferecer perspectivas realistas de eqüidade e
leria a um imposto de 2% da renda para os 20% mais ricos da população. desenvolvimento. Serão a integração econômica e o renascimento da cul-
Ainda segundo a Cepal, com 1% da renda do PIB, a pobreza extrema seria tura política que tornarão viável esse processo na região? Ou os prazos já
eliminada, e com 4,8%, a pobreza em geral. Na América Latina e no Caribe, estão esgotados e a dependência no marco da interdependência globali-
no final dos anos 1990, o imposto sobre os lucros como proporção do PIB zada é inevitável? Poderosas forças políticas e sociais na região, excluídas
era de 2,5% contra 15% nos países da Europa Ocidental, situação essa que da ordem atual, expressam o seu protesto de várias maneiras: Chiapas,
não mudou. Os impostos que prevalecem são os indiretos sobre os pobres, os Sem-Terra, a crise na Argentina, a situação de guerra na Colômbia,
através do IVA (Imposto do Valor Agregado). as crises que os países andinos atravessam, o drama da América Central
No caso da América Latina e do Caribe, passou-se do projeto cepa- agravado por ciclones como o Mitch, as vitórias eleitorais de Chávez, Lula,
lino de substituição de importações, produção para o mercado interno e Rafael Corrêa, Kirchner e Tabaré Vazquez, junto com as crises boliviana e
fortalecimento do Estado, para as ditaduras militares e, em seguida, para equatoriana que levaram Evo Morales e Rafael Corrêa à presidência – são
o modelo neoliberal, para chegar aos anos 1990 ao que foi chamado de somente algumas expressões dos desafios à governabilidade das democra-
Novo Modelo Econômico. O drama parece consistir em que, enquanto nos cias. O investimento fugiu dos mercados latino-americanos. Dentre as 10
anos 1950, na era da Cepal, existia um sujeito político e social na região moedas que maior valor perderam no ano 2003 em face do dólar, seis são
na forma de líderes populistas e de um incipiente empresariado industrial, latino-americanas: o peso argentino caiu 72%; o bolívar venezuelano, 44%;
que aspirava a um desenvolvimento nacional autônomo, nos anos 1990 e o peso uruguaio, 40%; o real brasileiro, 27%; o peso colombiano, 15%; e o
no início do século xxi, essa vontade política e econômica não parece es- peso mexicano, 6%.
344 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 345

O aggiornamento que a terceira via representou para o Estado de bem- mesmo tempo em que aumenta os gastos militares e as pressões para con-
estar na Europa não parece ter aplicabilidade na nossa região. Na sua nova seguir uma adesão incondicional no plano interno (Congresso) e interna-
fundação em 1951, a socialdemocracia falou de “terceira via”, também o cionalmente dos aliados do governo norte-americano, primeiro na guerra
economista tcheco Ota Sik e, no final dos anos 1980, os socialdemocratas e depois na ocupação do Iraque, na América Latina, desenvolve-se acele-
suecos (Giddens, 1999). A sua apropriação por Clinton – durante a sua radamente uma nova liderança política de centro-esquerda e movimentos
presidência – e Blair – simultânea às vitórias eleitorais dos socialdemocra- sociais anti-sistêmicos, apesar de ser a região mais diretamente submetida
tas no Reino Unido, na França, na Itália, na Áustria, na Grécia e em vários aos Estados Unidos. A crise do projeto Fox no México; a recuperação do
países escandinavos e à sua crescente influência na Europa Oriental, sem sandinismo na Nicarágua e do Farabundo Martí em El Salvador; a radicali-
esquecer o Congresso em 1999 da socialdemocracia em Buenos Aires, an- zação em torno de Chávez na Venezuela; o reagrupamento das Farc (Forças
terior à Cúpula do Rio –, e a teorização da terceira via como renovação da Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação
socialdemocracia feita por Anthony Giddens colocaram-na na ordem do Nacional) na Colômbia diante da tentativa de liquidação militar; os resul-
dia. É uma ironia da história que se tenha produzido o ataque da Otan ao tados das eleições no Equador com a vitória de Lucio Gutierrez; o movi-
Kosovo durante governos socialdemocratas. Mas talvez isso esclareça o fato mento indígena na Bolívia; o renascimento do Apra e da esquerda unida
de que a terceira via não é para nós, latino-americanos e caribenhos, que no Peru; o desmoronamento do modelo neoliberal na Argentina e a vitória
jamais tivemos um Estado de bem-estar. de Kirchner; a evolução e fortalecimento do processo cubano, apesar do
embargo e do bloqueio; a vitória de Lula e do PT no Brasil; o triunfo da
O conceito de terceira via não é aplicável à realidade latino-americana. Frente Ampla e a eleição de Tabaré Vazquez à presidência do Uruguai; e
Aqui, não temos de escolher entre dois caminhos distintos, mais ou menos a fusão como em um crisol desse novo pluralismo anti-sistêmico no Fó-
eficazes de desenvolvimento, a distribuição da renda e a inserção interna- rum de Porto Alegre – todas essas coisas testemunham a afirmação feita
cional, tal como se coloca agora para a socialdemocracia européia. Aqui, é anteriormente (Dos Santos, 2002; Sader, 2003). Enquanto a Ásia, apesar
preciso deixar para trás um legado histórico de atraso e subordinação, agra- da sua diversidade e dos seus diversos espaços, está próxima do status quo,
vado em épocas recentes pela estratégia neoliberal, e iniciar um caminho a América Latina, o mundo árabe e a África Sul-Saariana parecem buscar
diferente. Um caminho novo que produza desenvolvimento e bem-estar e formas originais, ao se verem excluídos da “nova ordem internacional” e da
insira a América Latina na globalização como uma comunidade de nações globalização neoliberal, e são, sem dúvida, vulcões em erupção.
capaz de decidir sobre o seu próprio destino na ordem mundial. (Ferrer, O aumento da desigualdade na forma de exclusão social influiu ne-
1999, p. 22) gativamente no desenvolvimento dos programas educativos nos anos 1980
e 1990. De 1980 a 1990, os latino-americanos abaixo da linha de pobreza
Poderia parecer paradoxal que, enquanto nos Estados Unidos se ins- aumentaram de 37% para 39% no caso da pobreza urbana, e de 25% para
taura um governo de extrema direita – orientado ideologicamente pelos 34% no caso da pobreza rural. Em 1970, a distância entre o 1% mais pobre
falcões e por Norman Podhoretz, que, em um artigo publicado em setem- e o 1% mais rico da população latino-americana era de 363 vezes; em 1995,
bro de 2002 em Commentary, considera que a Doutrina Bush de guerra aumentou para 417 vezes. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvi-
preventiva é excelente, e na tradição de Reagan e não do pai de Bush –, mento, nos anos 1990, produziu-se um aumento da pobreza de mais de 150
que adota um comportamento imperial e rechaça o multilateralismo, ao milhões de latino-americanos, que equivale a cerca de 33% da população
346 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 347

que recebe menos de dois dólares por dia, mínimo necessário para cobrir como na vitória da Frente Ampla no Uruguai; agindo através de mobiliza-
as necessidades básicas de consumo. Em 1998, apesar de o PIB ter crescido ções de massa contra as tentativas das forças políticas tradicionais de desle-
em 2,6%, o desemprego na região aumentou de 7,2% para 8,4%. Ao lado gitimar os líderes da esquerda que encabeçam as pesquisas de opinião para
disso, observa-se uma diminuição dos empregos no setor formal e o fato as eleições presidenciais ou de fraudar eleições, como no caso do PRD no
de que, no período de 1990-1997, de cada 10 empregos que foram criados, México com a pessoa de López Obrador (López Segrera, 2004).
nove deles pertencem ao setor informal. A Cepal, no seu Panorama Social
da América Latina 2000, estima que a população vivendo em condições de 3. América Latina no século xxi
pobreza cresceu de 204 milhões em 1997 para 220 milhões em 2000. Hoje, A oração fúnebre entoada pelo livro de Jorge Castañeda – A utopia
na América Latina, 5% da população são donos de 25% da renda nacional, desarmada –, em 1990, que dava notícia da perda de poder dos sandinistas
ao passo que 30% somente possuem 5% da renda nacional. A Cepal, no nas eleições e da institucionalização do movimento guerrilheiro centro-
seu Panorama Social da América Latina 2002, afirma que há 220 milhões americano de El Salvador e Guatemala, anunciando um longo termidor
de latino-americanos na pobreza, dos quais 95 milhões são indigentes. Isso para a esquerda e para as forças revolucionárias, teve apenas quatro anos de
representa 43,4% da população e 18,8%, respectivamente. Na Argentina, a vigência. A crise mexicana de 1994 foi o primeiro grande anúncio da cri-
taxa urbana de pobreza dobrou, passando de 23,7% a 45,4%, ao passo que se do neoliberalismo e do Consenso de Washington. Aos sobreviventes da
a indigência subiu de 6,7% para 20,9% (Filmus, 1998; Tedesco, 2000; Cepal, pós-Guerra Fria – a Cuba revolucionária, o PRD mexicano, a Frente Ampla
2000; Cepal, 2002; BID, 1998; Kliksberg, 2001). no Uruguai, o PT no Brasil, o Farabundo Martí em El Salvador – uniram-
O que caracteriza a região no período que vai de 2003 a 2005 são, en- se na luta contra o neoliberalismo, com diferentes programas e táticas: os
tre outras coisas, quatro fenômenos: 1o) a extinção dos movimentos guer- zapatistas do subcomandante Marcos; os seguidores de Chávez, de Lula,
rilheiros, a não ser o caso de Chiapas (Exército Zapatista de Libertação de Kirchner; a vitória da Frente Ampla no Uruguai e a força crescente de
Nacional) e as guerrilhas colombianas; 2o) a vigência das democracias; 3o) Evo Morales na Bolívia e do PRD no México (Sader, 2003; López Segrera,
a vigência, apesar da sua crise, das políticas econômicas neoliberais; 4o) 2004).
um estado generalizado de revolta popular contra essas políticas e seus Essa crise de hegemonia foi o resultado de uma polarização social sem
representantes políticos, que teve uma expressão das forças do conjunto precedentes, como vimos nas já mencionadas estatísticas de desemprego,
da região nos Fóruns de Porto Alegre. A mobilização popular contra essas pobreza e desigualdade na distribuição de renda. Para aplicar os programas
políticas se expressou: votando contra os partidos tradicionais (Venezuela, de ajuste estrutural, com o fim de pagar os serviços da dívida e se ade-
Brasil); elegendo líderes radicais (Equador); com rebeliões contra a dola- quar às receitas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, o
rização da economia, como no Equador, desalojando o então presidente Estado reduziu os gastos fiscais nos serviços públicos, como na saúde, na
Jamil Mahuad e, posteriormente, Lúcio Gutierrez; derrubando presidentes educação, na seguridade social, na infra-estrutura urbana e nos transportes
por corrupção, como no caso de Fujimore no Peru; destituindo presidentes (Ziccardi, 2001; Briceño, 2002).
identificados com as políticas do Fundo Monetário Internacional, como no Aldo Ferrer (1999) explicou a concentração de riqueza e a crescen-
caso de Fernando de la Rua na Argentina; ou, ainda, por suas políticas de te estratificação social e política dos anos 1980 e 1990 como expressão da
entrega dos recursos nacionais, no caso de Sánchez Losada ou Carlos Mesa ausência de vontade política nas classes dominantes na América Latina e
na Bolívia; arrasando eleitoralmente a hegemonia da direita tradicional, no Caribe para alcançar o desenvolvimento nacional. As prioridades dos
348 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 349

servidores do neoliberalismo foram na América Latina e no Caribe: a esta- Em uma conjuntura em que os governos da América Latina e do Ca-
bilidade da moeda e o pagamento da dívida externa. ribe foram eleitos democraticamente, aumentam as irrupções sociais e as
As reformas do Estado nos anos 1980 e 1990 deram lugar a Estados mobilizações contra as políticas neoliberais e vislumbra-se um horizonte
menores na América Latina e Caribe. No início dos anos 1990, os funcio- de crise social generalizada. No entanto, não parece que os golpes militares
nários públicos eram em torno de 9% da população nos Estados Unidos, na nem as revoluções estejam na ordem do dia. Os discursos anti-sistêmicos
Alemanha, na França, na Inglaterra... e apenas 3% na Argentina, no Chile não parecem anunciar, pelo menos por agora, uma ruptura, como aquela
e no Brasil. Áreas completas do setor estatal foram privatizadas no México, que significou o triunfo da Revolução Cubana e o auge dos movimentos
no Chile, na Argentina, na Venezuela, no Equador... guerrilheiros e a vitória do sandinismo entre 1959 e 1979. Isso não nos deve
O neoliberalismo aplicou, diferentemente do modelo cepalino, um estranhar, já que, depois da derrocada do socialismo em 1989 e da desin-
novo modelo econômico que se caracteriza por um Estado menor, como tegração da União Soviética, a esquerda ficou sem um projeto alternativo
resultado das privatizações e da redução do gasto social, sob a alegação da claro. O mosaico de posições que se expressa em Porto Alegre é expressão
estabilidade macroeconômica. O crescimento econômico se baseia nas ex- de uma revolta social contra o status quo, mas ainda não é um programa
portações, na desregulação do mercado de trabalho, na abertura ao comér- claro de organização da economia, da política e da sociedade.
cio internacional e no endividamento externo. O Consenso de Washington Apesar dessas ambigüidades, um novo sujeito social surge na forma
– hoje em crise – promoveu esse novo modelo econômico. No começo do de movimentos indígenas – em protestos sociais indígenas com diferentes
século xxi, apareceu uma nova teoria em substituição ao Consenso de sinais no México, na Guatemala, no Equador, na Bolívia e inclusive em pa-
Washington, a teoria dos Estados viáveis (Brasil, México, Chile...) e dos íses de fraca etnia indígena, como a Colômbia; nos lacandones do Exército
não viáveis (América Central, Países Andinos...). Zapatista de Libertação Nacional liderados pelo subcomandante Marcos; e
Segundo Atílio Borón (1999), ao contrário do que dizem os especia- nos movimentos camponeses – Movimento dos Sem-Terra (MST) no Bra-
listas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial – e do que sil – que puderam se fundir em um bloco, que, em alguns países, pude-
fazem os governos da América Latina e do Caribe –, nenhum país se de- ram se incorporar ao protesto social dos afro-latino-americanos e de todos
senvolveu combinando: auge exportador, mercados internos deprimidos, aqueles excluídos dos escassos benefícios do bloco oligárquico.
desemprego e baixos salários. Essa fórmula da América Latina e do Caribe A percepção de que, por um lado, sem o mercado, ninguém pode vi-
nas últimas duas décadas é uma rota segura para perpetuar o atraso e o ver e, por outro, de que, somente com o mercado, também não pode viver
subdesenvolvimento. uma crescente maioria das populações, dá-se em um contexto de aumento
O neoliberalismo significou também a transnacionalização e a su- da escravidão, da servidão pessoal e da economia informal na forma de
bordinação das burguesias latino-americanas – com exceção da brasileira pequena produção mercantil independente; ou melhor, do intercâmbio da
– e o controle dos recursos produtivos e da acumulação de capital pelas força de trabalho e produtos, evitando o mercado, à maneira dos movi-
corporações transnacionais, que aumentam o desemprego, aplicando a mentos piqueteros na Argentina. Este último movimento demonstra como
“reengenharia”, não pagam impostos em geral, exportam os seus lucros e a crescente massa de desempregados se orienta para além dos reclamos
contaminam o meio ambiente. O capital especulativo financeiro também tradicionais de emprego, salários e serviços públicos, organizando-se em
não paga impostos e tem a proteção do Estado, como mostram os casos da redes de autogestão e governo de caráter comunitário. A base social de Kir-
Argentina, da Venezuela, do Equador, do Peru, entre outros. chner na Argentina, de Chávez na Venezuela, de Lula no Brasil, de Tabaré
350 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 351

Vázquez no Uruguai... está composta por muitos dos membros dos setores de Davos; a situação crítica em que o neoliberalismo mergulhou o aparato
excluídos que se unem no marco da crise com os setores médios urbanos de Estado, trazendo uma grande incapacidade e debilidade para desenvolver
desempregados. políticas públicas, mesmo quando há vontade, como são os casos da Vene-
O impacto excludente do neoliberalismo e a emergência dos novos zuela e Argentina, entre outros; e a fragilidade da esquerda latino-americana
sujeitos sociais mencionados se dão no marco de condições positivas e ne- em nível nacional, continental e internacional para estruturar um programa
gativas para os movimentos políticos de esquerda. alternativo ao neoliberalismo e ser capaz de organizar, aglutinar e liderar os
Entre as condições positivas se encontram: a crise e o esgotamento do diversos movimentos de protesto social e político (Sader, 2003).
modelo neoliberal e do Consenso de Washington; a incapacidade para ag- Como conseqüência disso, no marco da crise de hegemonia das bur-
giornar as políticas neoliberais e incorporar o protesto social contra o status guesias e das classes políticas da região produzida pela aplicação de políticas
quo; o aumento das mobilizações sociais e políticas contra essas políticas e neoliberais – que significa um esgotamento dos blocos de poder tradicio-
a substituição violenta do poder das classes dominantes-subordinadas que nais nos diversos países –, os movimentos anti-sistêmicos que surgem às
as representam; a emergência de novas forças sociais e políticas – Equador, vezes parecem se esgotar antes mesmo de alcançarem as reivindicações
Bolívia... – e o fortalecimento das forças constituídas em períodos anterio- prometidas: o caso de Chávez na Venezuela, que superou “milagrosamen-
res: a Frente Ampla no Uruguai, o PT no Brasil, o PRD no México. te” o golpe de Estado de abril de 2003; ou antes, no caso do Brasil, suscitam
Entre as condições negativas se encontram: um contexto internacio- fortes críticas da esquerda, em que alguns consideram que a tática de se
nal extremamente hostil às forças da esquerda, no qual a socialdemocracia aliar com o capital produtivo brasileiro contra o especulativo e de fortalecer
européia escorregou para a direita, transformando-se em um social-neo- o Mercosul poderia transformar o projeto de Lula em um refém das forças
liberalismo, em que o governo dos Estados Unidos aplicou a sua doutrina tradicionais neoliberais da oligarquia brasileira, caso não se avance simul-
da “guerra preventiva”, tomando como pretexto os atentados terroristas de taneamente no aprofundamento do projeto social de setores radicais, como
11 de setembro de 2001, com o objetivo de alcançar uma recomposição he- o Movimento dos Sem-Terra (MST).
gemônica. Essas posições conservadoras das classes dominantes européias As ciências sociais latino-americanas são ricas de tipologias – Darcy
e norte-americanas se tornaram evidentes nas reuniões da Organização Ribeiro, Vânia Bambirra... – para analisar as formas políticas e econômi-
Mundial do Comércio (OMC), em que um novo bloco liderado pelo Brasil, cas do capitalismo dependente latino-americano. Na conjuntura de 2003, é
pela Índia e pela China se confrontou com o unilateralismo norte-ameri- necessário elaborar novas tipologias que enquadrem as diversas propostas
cano e com a retórica multilateral dos europeus, que preferem subsidiar para o debate, como o fez Aníbal Quijano (2003).
alguns poucos agricultores dos seus países, enquanto milhões de pessoas Temos, em primeiro lugar, a emergência em um novo contexto para
dos países do Sul não podem ter acesso aos mercados do Norte com seus a proposta de um capitalismo nacional – defendida por Prebisch e Furta-
produtos e vêem como se aprofunda a fome nos seus países. Outras condi- do na Cepal nos anos 1950 e 1960 e derrotada nos últimos 30 anos –, nos
ções negativas para a região e para as forças da esquerda são: o ciclo reces- casos da Venezuela (Chávez), do Brasil (Lula), da Argentina (Kirchner) e
sivo da economia mundial, que impede a expansão do comércio exterior do Uruguai (Tabaré Vazquez) e Bolívia (Evo Morales). No caso do Equador
das economias latino-americanas e reduz os investimentos; a inexistência (Lucio Gutierrez), que parecia semelhante aos anteriores, ao que parece,
de um forte movimento internacional com um programa ou um projeto al- afastou-se desse caminho, retomado através de Rafael Correa. O PRD no
ternativo à ordem neoliberal, pois Porto Alegre é ainda muito fraco diante México se inscreve nessa corrente.
352 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 353

Em segundo lugar, temos a continuidade das políticas neoliberais, lítica externa, em vez de negociar unilateralmente (fortalecer o Mercosul,
representada essa corrente pelas forças políticas dos governos do México, aliança do Brasil com a Argentina e de ambos com a Venezuela, apoio da
da América Central e do Chile, apesar da sua especificidade. Venezuela ao Uruguai e aos referidos países), e pela busca de fórmulas al-
Em terceiro lugar, temos o caso sui generis de Cuba. O seu mode- ternativas de financiamento e desenvolvimento (novos mercados de expor-
lo, apesar das deformações que a sua vinculação com o “socialismo real” tação de petróleo e gás por parte da Venezuela, incentivos ao investimento
produziu, subsistiu devido à sua ampla base social, às características da chinês na Argentina, vários acordos econômicos desses países com a Chi-
liderança histórica e ao fato de que, no seu caso, fundem-se os temas das na, novas formas de negociar a dívida externa, especialmente no caso da
reivindicações sociais e da independência nacional diante da ameaça dos Argentina).
Estados Unidos. Esse é o único caso no Ocidente de um regime que se guia Foi possível um dia combinar capitalismo dependente e democracia.
explicitamente pelos princípios do socialismo científico, ao mesmo tempo Será ainda possível harmonizar um capitalismo nacional com a globali-
em que se move lentamente para o denominado socialismo de mercado zação? Para isso, seriam necessárias, entre outras condições, uma grande
que existe na China e no Vietnã. massa de investimento do capitalismo mundial na região e a flexibilização
Por último, no Fórum Mundial de Porto Alegre, observam-se corren- e/ou o perdão da dívida externa. São necessárias políticas que diminuam
tes tradicionais vinculadas ao marxismo e ao socialismo científico e uma sensivelmente o desemprego e que reduzam a polarização social. Quer di-
nova corrente radical que ataca não somente a forma neoliberal do capita- zer, retornar ao Estado cepalino em um novo contexto – ou constituí-lo
lismo, mas também o sistema capitalista como tal. Em ambas as tendên- onde ele não existiu, como na Venezuela – sem as corruptelas que foram
cias e, especialmente, nesta última, há uma total rejeição das propostas do geradas anteriormente. Se observarmos as negociações do Fundo Monetá-
chamado “socialismo real”, que é percebido como estatizante e antidemo- rio Internacional com a Argentina, poderemos concluir que talvez isso seja
crático. Os debates no Fórum Social Mundial de Porto Alegre – em 2001, possível, mas se observarmos o que ocorre nas reuniões da Organização
2002, 2003, 2004 e 2005, como alternativa a Davos – mostraram uma gran- Mundial do Comércio, as conclusões serão opostas.
de diversidade de propostas e planos de ação e alcançaram um consenso A vitória do capitalismo nacional não parece fácil no contexto de uma
em torno de três pontos importantes: 1) a globalização neoliberal está au- nova primarização e terceirização – e finalmente desindustrialização – da
mentando as desigualdades em nível mundial e nacional e está destruindo estrutura produtiva da região, com a única exceção do Brasil. Isso significa
o meio ambiente; 2) as agências internacionais, como o Banco Mundial, o que as burguesias industriais com base nacional são débeis ou inexistentes,
Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, assim como a classe operária industrial, em um contexto de crise da exis-
são consideradas como parte de um poder mundial que produz os males tência social das camadas médias, como se viu na Argentina, entre outros
da globalização neoliberal através do capitalismo financeiro de caráter es- países. O caso da Argentina ilustra de forma dramática o que foi dito an-
peculativo em uma economia cassino; 3) a política de “guerra preventiva” teriormente em relação à burguesia, ao proletariado e às camadas médias.
da administração Bush é a antítese da construção da paz pela via do multi- Também no México se produziu uma transnacionalização da burguesia.
lateralismo. (Seoane & Tadei, 2001; López Segrera, 2004). Somente o Brasil é uma exceção. Esses três países nos anos 1980 concentra-
A nova esquerda latino-americana no poder se caracteriza pelo se- vam 77% da produção industrial da região.
guinte: pela chegada ao poder através das urnas (Chávez, 1998; Lula, 2002; O neoliberalismo implicou que as burguesias latino-americanas aban-
Kirchner, 2003; Vazquez, 2004), pela coordenação e união nas ações de po- donassem o caminho da industrialização por substituição de importações e
354 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 355

da produção para o mercado interno, caminho seguido entre os anos 1930 ________. Higher education in Latin America and the Caribean. IDB,
e 1970, e empreenderam a estratégia de produção para a exportação, dando Washington, D.C., n. EDU-101, 1997.
lugar ao crescimento dos produtos primários e dos serviços e à diminuição Boersner, D. Latinoamérica y la democracia internacional: mandato
da produção industrial. Devido ao fato de que o mercado de produtos pri- bolivariano. In: GONZÁLES, H.; SCHMIDT, H. Democracia para una
mários e de serviços estava controlado em nível mundial pelas burguesias nueva sociedad. Caracas: Nueva Sociedad, 1997.
metropolitanas, os setores sobreviventes da “burguesia compradora” lati- Borón, A. El nuevo orden imperial y cómo desmontarlo. In: SEOANE, J.;
no-americana ficaram totalmente subordinados a essa burguesia financeira TADDEI, E. (Org.). Resisetencias mundiales, de Seattle a Porto Alegre.
internacional. Clacso, 2001.
Em resumo, a crise do Estado oligárquico e da burguesia urbano-in- ________. Imperio – imperialismo. Una lectura crítica de M. Hardt y A. Ne-
dustrial que foi seu protagonista deu lugar à hegemonia de uma “burguesia gri. Buenos Aires: Clacso, 2002.
compradora”, integrada por especuladores financeiros e produtores de pro- ________. Tiempos violentos. Colección Clacso-Eudeba, 1999.
dutos primários e de serviços, subordinados à burguesia internacional. Em BRICEÑO-León, R. Violencia, sociedad y justicia en América Latina. Bue-
vista dessa situação sociológica, é extremamente difícil reconstituir o capi- nos Aires: Clacso, 2002.
talismo nacional, exceto em um país como o Brasil, onde existe um forte Brzezinski, Z. El gran tablero mundial. Barcelona: Paidós, 1998.
setor produtivo de burguesia nacional. Não obstante, isso não significa que Buarque, Cristovam. La universidad en la frontera del futuro. Costa Rica:
seja impossível a vitória do capitalismo nacional em outros países, em um Universidad Nacional, Heredia, 1991.
contexto em que a via para uma ruptura sistêmica não parece visível. CANCLINI, N. García. Consumidores y ciudadanos. Conflictos multicultu-
A alternativa ao neoliberalismo – independentemente das vias nacio- rales de la globalización. México: Grijalbo, 1995.
nais que ele adote – não pode ser outra senão a reconstrução do Estado na ________. Vers des cultures hybrides. In: Les clés du xxie siècle. Paris: J.
América Latina e no Caribe. Bindé/Seuil/Unesco, 2000.
Em suma: fortalecimento do Estado; reforma da administração; luta Castro, F. La historia me absolverá. Havana: Populares, 1961.
contra a corrupção; novo papel do Estado na vida econômica e social; Ceceña, A. E.; Sader, E. La guerra infinita. Buenos Aires: Clacso,
reconstrução das instituições democráticas; novas políticas do Estado 2002.
orientadas para o investimento no recolhimento de impostos e em recur- CEPAL. Panorama social de América Latina. Santiago, 1998.
sos humanos (capital humano) enquanto recursos sociais (capital social). ________. Panorama social de América Latina. Santiago, 2000.
________. Panorama social de América Latina. Santiago, 2002.
Bibliografia Ferrer, A. De Cristóbal Colón a Internet. In: América Latina y la globali-
Arquillla, J.; Ronfeldt, D. Networks and netwar. Los Angeles, 2001. zación. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1999.
Arrighi, G. O longo século xx. Rio de Janeiro: Contraponto/Unesp, Filmus, D. Educación y desigualdad en América Latina en los noventa: una
1996. nueva década perdida?. Anuario Social y Político de América Latina y el
Banco Mundial. Prioridades y estrategias para la educación. Examen Caribe, Buenos Aires: Flacso/Unesco/Nueva Sociedad, n. 2, 1998.
del Banco Mundial. Washington, D.C.: Banco Mundial, 1996. Gambina, J. La globalización económico-financiera. Su impacto en Améri-
BID. Desarrollo más allá de la economía. Washington, D.C., 2000. ca Latina. Buenos Aires: Clacso, 2002.
356 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 357

Girvan, N. El Alca y la integración de América Latina y el Caribe. In: Quijano, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In:
Sección Prensa, ponencias, 2003. Disponível em: <http://www.sela2. LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias
sela.org>. sociales. Caracas: Clacso/Unesco/Unidad Regional de Ciencias Socia-
Gorostiaga, X. En busca del eslabón perdido entre educación y de- les, 2000.
sarrolllo: desafíos y retos para la Universidade en América Latina y el ________. El laberinto de América Latina: hay otras salidas?. Comunicação
Caribe. In: TÜNNNERMANN, C.; SEGRERA, F. López. La educación apresentada no Seminário Internacional, Reggen. Rio de Janeiro, 2003.
en el horizonte del siglo xxi. Editorial Iesalc/Unesco, Colección Res- Ramonet, I. Geopolitica del caos. Temas de Debate, Madri, 1999.
puestas, n. 12, 2000. ________. Guerres du xxie siècle. Peurs et menaces nouvelles. Paris: Galilée,
________. El sistema mundial: situación y alternativas. In: El mundo actual. 2002.
Unam, 1995. ________. Un mundo sin rumbo. Temas de Debate, Madri, 1997.
Hobsbawm, E. Historia del siglo xx (1914-1991). Crítica. Barcelona: Gri- ________. Vassalité. Le Monde Diplomatique, out. 2002.
jalbo Mondatori, 1996. Romero, A. El Alca y la integración. Sección Prensa, 2003. Disponível
Huntington, S. P. El choque de las civilizaciones. Barcelona: Paidós, em: <http://www.sela2.sela.org>.
1997. Sader, E. Año crucial para la América Latina. Le Monde Diplomatique
(edição espanhola), 2003.
Kennedy, P. El poder de EEUU no tiene precedentes en la historia. El
________. El ajuste estructural en América Latina. Costos sociales y alterna-
País, 10 fev. 2002.
tivas. Buenos Aires: Clacso, 2001.
Kissinger, H. La diplomacia. México: Fondo de Cultura Económica,
Santos, T. dos. Cambios a la vista. Servicio informativo electrónico “alai-
1994.
amlatina”, 25 out. 2002.
Klare, M. La nueva geografía de los conflictos internacionales. Foreign
________. La teoría de la dependencia: un balance histórico e teórico. In:
Affairs (espanhol), v. 1, n. 2, verão de 2001.
SEGRERA, F. López (Coord.). Los retos de la globalización. En home-
Kliksberg, B. El reclamo mundial por ética. Diario Universal, Caracas,
nage a T. Dos Santos. Caracas: Unesco, 1998.
20 maio 2001.
Segrera, F. López (Ed.). El pensamiento social latinoamericano en el siglo
Lander, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias so-
xx. Caracas: Unesco, 1999.
ciales. Caracas: Clacso-Unesco, Unidad Regional de Ciencias Sociales,
________. Cuba después del colapso de la URSS (1989-1997). Colección El
2000.
mundo actual (Dirigida por Pablo Gonzáles Casanova), México: Unam/
Leff, E. Tiempo de sustentabilidad. In: SEGRERA, F. López; FILMUS, D. Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Humanidades, 1998.
(Coord.). América Latina 2020. Facso-Unesco, 2000. ________. Del triunfo de la revolución cubana a las victorias de Chávez,
Lula da Silva, L. I. La política exterior de Brasil. El País, 23 abr. 2003. Lula y Kirchner. In: Segrera, F. López et al. América Latina y el
Nettleford, R. Universities: mobilising the power of culture, a view Caribe en el siglo xxi. México: Porrúa/Unam (Cesu)/Universidad Au-
form the Caribbean. In: Higher education in the Caribbean. Caracas: tónoma de Zacatecas/Cámara de Diputados, 2004.
Iesalc/Unesco, 1998. ________. Educación permanente, calidad, evaluación e pertinência. (Com
PNUD. Informe sobre desarrollo humano 1998. Madri: Mundi-Prensa, a colaboração de José Luis Grosso e Manuel Ramiro Munõz). Cali:
1998. Unesco/Universidad de San Buenaventura, 2002.
358 ■ A América Latina e os desafios da globalização A Revolução Cubana e a teoria da dependência ■ 359

________. Globalización y educación superior en América Latina y el Cari- F. López (Ed.). Los retos de la globalización. Caracas: Unesco, 1998.
be. Colección Respuestas, Caracas: Iesalc/Unesco, n. 18, 2001. ________. The battle of the resolutions. Commentary, n. 98, 1o out. 2002.
________. Importancia de la investigación universitaria latinoamericana Disponível em: <http://binghamton.edu/commertr.htm.>.
en un mundo globalizado. In: La educación superior en el siglo xxi. ________. The US-Irak war, seen from the long durée. 2002. Disponível em:
Visión de América Latina y el Caribe. Caracas: Cresal/Unesco, 1997. <http://fbc.binghamton.edu/commentr.htm>.
________. La Unesco y el futuro de las ciencias sociales en América Latina ________. Utopística. México: Siglo xxi, 1998.
y el Caribe. In: BRICEÑO-LEÓN, R.; SONNTAG, H. (Ed.). Pueblo, Wolfensohn, J. D. La outra crisis. Discurso perante a Junta de Gover-
época y desarrollo: a sociología de América Latina. Caracas: Nueva So- nantes. Washington, D.C.: Banco Mundial, 1998.
ciedad, 1998. ________. Prefacio: informe sobre el desarrollo mundial 1997. Washington,
________. (Coord.). Los retos de la globalización. In Homenage a T. dos D.C.: Banco Mundial, 1997.
Santos. Caracas: Unesco, 1997. World Bank. Access, quality and efficiency in Caribbean education: a
Segrera, F. López et al. (Coord.). América Latina y el Caribe en el siglo regional study. Washington, D.C.: Population and human resources
xxi. México: Porrúa/Unam (Cesu)/Universidad Autónoma de Zaca- division. Department 3: Latin American and the Caribbean. 1992.
tecas/Cámara de Diputados, 2004. ________. Higher education in developing countries: peril and promise.
Segrera, F. López; FILMUS, D. América Latina 2020: escenarios, altena- Washington, D.C., 2000.
tivas y estrategias. Buenos Aires: Flacso/Unesco/Temas Grupo Edito- ________.Higher education. The lessons of experience. Washington, D.C., 1994.
rial, 2000. Ziccardi, A. Pobreza, desigualdad social y cuidadanía. Buenos Aires:
Segrera, F. López; Maldonado, A. Educación superior latinoameri- Clacso, 2001.
cana y organismos internacionales. Un análisis crítico. Cali: Unesco/
Universidad de San Buenaventura/Boston College, 2002. Outras fontes
Segrera, F. López; Morin, E.; Prigogine, I.; Bindé, J. et al. The Ver os diversos números do Observatório Social da América Latina (Osal)
representation of displaced indentitites. In: MENDES, C. (Ed.). Répre- publicados pela Clacso.
sentation et complexité. Rio de Janeiro, 1997. <www.futuribles.com>
Segrera, F. López; TÜNNERMANN, C. La educación en el horizonte del <www.wfs.org/wfs>
siglo xxi. Colección Respuestas, Caracas: Iesalc/Unesco, n. 12, 2000. <http://fbc.binghamton.edu/estructur.htm>
Seoane, J.; Taddei, E. (Org.). Resistencias mundiales: de Seattle a Porto <www.unesco.org>
Alegre. Clacso, 2001. <www.un.org/esa/society>
Serbin, A. Impacto de la globalización en el Gran Caribe. Venezuela Ana- <www.undp.org/undp/coinfo/table1.htm>
lítica (revista bilíngüe), n. 6, ago. 1996. <www.worldbank.org>
Stiglitz, J. E. El malestar en la globalización. Madri: Taurus, 2002. <www.iadb.org>
________. Puede empeorar la economía de EEUU?. El País, 13 out. 2002. <www.cepal.org>
Wallerstein, I. Después del liberalismo. México: Siglo xxi, 1998. <www.clacso.org>
________. Paz, estabilidad y legitimación. 1990-2025/2050. In: SEGRERA,
360 ■ A América Latina e os desafios da globalização ■ 361

Teorias estruturalistas e teoria da dependência


na era da globalização neoliberal

Cristóbal Kay *

Na fase atual da globalização neoliberal, torna-se ainda mais impor-


tante do que nunca reafirmar e continuar a desenvolver as teorias sociais
latino-americanas. Isso não deveria ser interpretado de uma estreita ma-
neira chauvinista, mas, pelo contrário, como uma contribuição dos cien-
tistas sociais latino-americanos a uma teoria crítica internacionalista que
adquire hoje a maior urgência em vista das devastações da globalização
neoliberal. Ao oferecer uma crítica à globalização neoliberal, os cientistas
sociais latino-americanos podem confiantemente dar uma contribuição
para a emancipação das pessoas no mundo, particularmente nos países
subdesenvolvidos. Desde as originais reflexões marxistas de José Carlos
Mariátegui sobre a realidade peruana nas décadas de 1920 e 1930, o mar-
xismo latino-americano se tornou uma das principais contribuições para
essa teoria emancipadora. Nesse sentido, Ruy Mauro Marini não somente
deu a maior contribuição para a teoria crítica social latino-americana, mas
também para o marxismo na América Latina, especialmente através dos
seus escritos sobre a teoria da dependência.1

* Economista e sociólogo chileno. Professor e pesquisador do Institute of Social Studies na Ho-


landa. Com vasta obra publicada, é autor de livros de grande repercussão como Latin-american
theories of development and underdevelopment (1989), entre outros.
1
Para um breve resumo das idéias de Ruy Mauro Marini, ver Sotelo (2002), entre outros. A mi-
nha própria visão de algumas das contribuições de Marini para a teoria social latino-americana
e para o marxismo pode ser encontrada em Kay (1989) e Kay (1991).
362 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 363

Além disso, Ruy Mauro Marini foi também um dos primeiros defen- e da dependência são raramente visualizadas hoje. Isso parece surpreen-
sores e difusores da teoria social latino-americana, não somente através dos dente, já que elas observaram os problemas do subdesenvolvimento e do
seus escritos, cursos e participação em debates públicos, mas também atra- desenvolvimento dentro de um contexto global. Sem dúvida, as teorias es-
vés da sua obra publicada.2 Subscrevo totalmente (1994, p. 14) a afirmação truturalistas e da dependência apresentam várias limitações e precisam ser
de Marini de que reformuladas.3 Mas, nas seções seguintes, vou lançar luz em alguns temas
nos quais essas teorias continuam a ter muita relevância, com o que podem
No passado, a nossa região soube criar paradigmas e linhas interpretativas dar outras contribuições válidas para a teoria social crítica e para a teoria
que conformaram uma teoria social rica e original, cujo impacto se fez sen- do desenvolvimento latino-americano.4
tir inclusive nos países de maior desenvolvimento científico e cultural. Mais
do que adotar a atitude fácil de seguir as modas que esses centros nos ditam, A globalização e a crescente assimetria no mundo
parece-nos que, para captar a problemática em que nos encontramos inse- A globalização tem sido associada a uma série de transformações eco-
ridos, é a esta teoria que devemos recorrer, não para aplicá-la acriticamente nômicas, políticas, sociais e culturais na América Latina. Em termos de glo-
aos problemas atuais, nem com o propósito de ignorar os avanços do pensa- balização econômica, deveria ser enfatizado que o capitalismo foi sempre
mento em outros lugares, mas para – a partir dos ganhos teóricos e metodo- um sistema internacional. Contudo, atualmente, a integração internacional
lógicos que foram alcançados anteriormente em nossos países – estabelecer da economia de mercado mundial está progredindo em um passo muito
bases mais sólidas para a tarefa de chamar para nós o grande desafio histó- rápido. Esse processo envolve transformações econômicas na produção,
rico com o qual estamos em confronto. no consumo, na tecnologia e nas idéias. Muitos cientistas sociais definem
a realidade atual como uma globalização sem precedentes e demandam
É com esse espírito que desejo sublinhar a relevância contemporânea novas formas de governo global. Muitos observadores apresentam a globa-
das teorias estruturalistas e da teoria da dependência latino-americanas. lização como uma manifestação concreta e inquestionável do capitalismo
O meu argumento neste ensaio é de que as teorias estruturalistas e a contemporâneo. Contra essa tendência, há agora também um poderoso
teoria da dependência latino-americanas apresentam uma relevância ainda movimento antiglobalização. O movimento antiglobalização é uma am-
maior agora, em uma fase em que as forças que se ocultam atrás do capi- pla coalizão de uma grande variedade de grupos que desejam fazer ouvir
talismo global são ainda menos retraídas do que no passado, comparado sua preocupação sobre o impacto negativo do processo de globalização em
com o período em que essas teorias foram originariamente formuladas, questões como meio ambiente, direitos trabalhistas, condições de trabalho
ou seja, na época da industrialização por substituição de importações e do e identidade cultural de grupos e nações. Contudo, esses protestos antiglo-
capitalismo de Estado. Porém, paradoxalmente, as teorias estruturalistas balização ainda não se consolidaram em um movimento social permanente
e coerente. Embora esse movimento possa não ter fundamentalmente con-
2
Em relação à sua obra publicada, ver, entre outros, os quatro volumes que ele editou com
Márgara Millán sobre La teoría social latino-americana (t. 1: Los orígenes; t. 2: Subdesarrollo y 3
Há uma vasta literatura crítica das teorias estruturalistas e da dependência, algumas das quais
dependência; t. 3: La centralidad del marxismo; t. 4: Cuestiones contemporâneas), publicados examinei em Kay (1989). Para algumas tentativas válidas de reformulação dessas teorias e a
pelas Ediciones El Caballito, no México, entre 1994 e 1996. Ele também editou com Márgara relação delas com a atual fase neoliberal da globalização, ver Frank (1991), Sunkel (1993), Hills
Millán La teoría social latinoamericana. Textos escojidos (t. 1: De los orígenes a la Cepal; t. 2: (1994), Marini (1996), dos Santos (1998, 2002), Ocampo (2001) e Slater (2004).
La teoría de la dependência; t. 3: La centralidad del marxismo), publicados pela Universidad 4
Parte do texto que se segue foi escrito juntamente com R. N. Gwynne. Ver Gwynne & Kay
Nacional Autónoma de México, entre 1994 e 1996. (2004).
364 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 365

testado ou mudado o sistema capitalista global, ele teve um relativo sucesso ria ocorrer, eles teriam relativamente uma vida curta e seriam transitórios.
em levantar uma preocupação mais ampla sobre as conseqüências negati- Tal como há assimetrias entre as regiões na economia global, há também
vas do processo de globalização. Um movimento antiglobalização maior no assimetrias crescentes na América Latina e no Caribe. A disparidade entre
Sul está sendo construído pelo Fórum Social, que teve várias reuniões em os países ricos e os países pobres da América Latina continuou a crescer
Porto Alegre, no Brasil, e também um encontro na Índia. Milhares de re- rapidamente nos últimos 25 anos. Os países maiores tiveram mais sucesso
presentantes de ONGs, sindicatos e outras organizações do Norte e do Sul na industrialização e no desenvolvimento de estruturas econômicas mais
se reuniram durante uma semana para discutir uma grande variedade de complexas; eles têm um pouco mais de espaço de manobra em um mundo
problemas relativos ao impacto econômico, social e político da globalização globalizado do que os países menores. Enquanto isso, os países menores
e do neoliberalismo, principalmente sobre os povos do Sul. Busca-se forjar ficam economicamente vulneráveis, não somente em termos dos setores
um movimento internacional que enfrente as corporações transnacionais e tradicionais, como a agricultura, mas também em relação a novos setores,
as políticas seguidas por governos no Norte e no Sul que tentam alimentar como produção de vestuário e finanças externas. Assim, a periferia e a se-
a globalização neoliberal. Esses encontros e movimentos de protesto anti- miperiferia da América Latina estão se tornando cada vez mais diferencia-
globalização vêem a globalização como um termo guarda-chuva que cobre das. Aqueles espaços (seja na escala do Estado-nação, da região ou da cida-
uma grande variedade de transformações atuais, atribuídas à extensão e in- de) que estão ficando mais totalmente inseridos em uma economia global
tensificação do capitalismo e vistas como trazendo efeitos deletérios sobre e em condições de alcançar um melhoramento sustentado na concorrência
povos, culturas e o meio ambiente em todo o mundo. internacional parecem estar operando como novos pólos de crescimen-
A globalização não acarretou uma convergência ou menores desigual- to na América Latina, atraindo capital, tecnologia e trabalho (quando se
dades entre os países e dentro deles, como pregavam os neoliberais; pelo permite a mobilidade do trabalho). No entanto, tanto os grandes quanto
contrário, acarretou desigualdades crescentes. Essas desigualdades pare- os pequenos Estados na América Latina precisam cada vez mais perseguir
cem ser o resultado do fato de que a produção, o comércio e as finanças alvos e objetivos nacionais dentro de parâmetros e estruturas definidos glo-
se tornaram crescentemente transnacionais em dimensão. No entanto, se balmente, devido à sua dependência. A conseqüência de estar mais total-
alguns países, regiões, comunidades e famílias se beneficiarão economica- mente inserido na economia global significa cada vez menor espaço para
mente por estarem ligados intimamente aos sucessos da economia global, uma ação política independente. Em parte, isso existe porque os governos
outros (e talvez a maior parte da América Latina) ficarão em desvantagem. dos países em desenvolvimento são mais dependentes da aprovação políti-
Como conseqüência disso, a globalização está associada a novos padrões ca das instituições globais que “supervisionam” a economia mundial (como
de estratificação global, nos quais alguns Estados, sociedades e comunida- são o Fundo Monetário Internacional, a Organização do Comércio Mun-
des estão ficando cada vez mais implicados na ordem global, ao passo que dial e o Banco Mundial) e das decisões de investimento das companhias
outros estão ficando cada vez mais marginalizados. transnacionais que podem ser fortemente influenciadas pelas decisões das
Portanto, a disparidade entre os países e a desigualdade entre dife- instituições internacionais.
rentes regiões do mundo ficaram entrelaçados com a globalização. A evi- A queda do Muro de Berlim e a crise do mundo soviético no final
dência da disparidade crescente entre os países latino-americanos, por um dos anos 1980 reafirmaram a dominação do sistema capitalista mundial e
lado, e as economias desenvolvidas ou centrais, por outro, é inquestionável enfatizaram a importância do sucesso econômico para estabelecer núcle-
(Eclac, 2002). Embora houvesse períodos nos quais a convergência pode- os de poder no mundo. A morte do mundo bipolar, que estava fundado
366 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 367

nas ideologias políticas da Guerra Fria, mudou a ênfase para as variações ponto de partida que o sistema mundial enraíza o subdesenvolvimento em
da economia política no interior do sistema capitalista mundial. Embora relações desiguais no seu interior. O divisor econômico e a diferença de
haja variações dentro da América Latina, a chave das relações políticas e renda entre o centro, ou os países desenvolvidos, e a periferia, ou os países
econômicas se dá com os Estados Unidos, a personagem dominante no sis- subdesenvolvidos, têm ampliado continuamente, em particular durante a
tema econômico e político global do início do século xxi. Mas as relações dívida e o ajuste da década de 1990, com o que se justificam as previsões das
econômicas entre a América do Norte e a América Latina são assimétri- teorias estruturalistas e da dependência, em oposição às teorias neoclás-
cas. As exportações dos países da América Latina para os Estados Unidos sicas e neoliberais que pressupunham a convergência. No entanto, dentre
(fora aquelas do México e do Brasil) existem principalmente na forma de os países periféricos ou dependentes, alguns tiveram sucesso em alcançar
produtos primários, e os produtos manufaturados dominam as importa- admiráveis e consistentes altas taxas de crescimento econômico nas últi-
ções que vêm dos Estados Unidos. As exportações para os Estados Unidos mas três ou quatro décadas, assim como melhoramentos na igualdade. Esse
são também inferiores às exportações norte-americanas para a América é o caso da primeira geração dos novos países industriais (os chamados
Latina. O superavit comercial dos Estados Unidos com a América Latina NICs: newly-industrializing countries), tais como a Coréia do Sul, Taiwan,
está em contradição com o seu permanente deficit comercial com o Japão Hong Kong e Cingapura. Em particular, os maiores países, a Coréia do Sul
e com a Ásia Oriental. O comércio de produtos e serviços e o movimento e Taiwan, com o espetacular sucesso na industrialização voltada para a ex-
de capital são muito móveis entre a América Latina e os Estados Unidos. portação, adquiriram o status de semiperiféricos e podem ser considerados
Contudo, isso é muito menos verdade para o trabalho. Em um mundo ver- como economias centrais. Nesse sentido, a visão estruturalista e a visão
dadeiramente globalizado e orientado para o mercado, o trabalho devia de “desenvolvimento dependente associado” de Cardoso (1973) se mos-
também ser livre para se mover, na medida em que representa o fator-chave tram mais relevantes quando comparadas com a versão da dependência de
da produção – e os modelos econômicos neoliberais estão supostamente Frank (1967), a tese do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, que é
baseados no livre fluxo dos fatores de produção entre os países. No entanto, incompatível com o desenvolvimento alcançado por esses países.
essa mobilidade do trabalho está restrita a viagens dentro das economias Deve ser enfatizado que essa dramática transformação no Leste Asiá-
centrais ou a viagens de pessoas das economias centrais aos países desen- tico foi possível devido ao papel central desempenhado pelo Estado nacio-
volvidos. Quanto ao trabalho na América Latina, há pouca oportunidade nal desenvolvimentista, com uma política fortemente industrial (imposta
de migração legal, a menos que o migrante seja um profissional altamente depois de ampla reforma agrária), na busca da concorrência internacional
qualificado ou possua considerável capital. A migração ilegal é uma opção e do crescimento (Kay, 2002). Isso confirmou a posição dos estruturalistas
para o trabalho não qualificado, como ocorre na migração de mexicanos e e dos dependentistas, que apontaram a importância do Estado na promoção
centro-americanos para os Estados Unidos, mas isso cria um novo conjun- do desenvolvimento. Mas o modelo do Leste Asiático mostrou que essa
to de problemas e inseguranças. intervenção do Estado tem de ser seletiva e transitória, assegurando que as
firmas adquiram competitividade internacional em um período específico.
A importância do Estado no desenvolvimento Ao contrário das reivindicações iniciais dos neoliberais, o sucesso dos NICs
Um aspecto central do estruturalismo foi a sua visão do sistema in- da Ásia Oriental foi mais induzido pelo Estado do que pela orientação de
ternacional como sendo constituído por relações assimétricas entre o cen- mercado, como manifestado tão bem pela expressão “dirigir o mercado”,
tro e a periferia. Da mesma maneira, a teoria da dependência toma como de Wade (1990). O Banco Mundial (1993) tentou acomodar algumas das
368 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 369

muitas críticas das suas primeiras interpretações dos NICs, no seu estudo e prolongada crise argentina que começou no final de 2001 são exemplos
do “milagre do Leste Asiático”, em que reconhecia a influência do Estado. disso. Poder-se-ia argumentar que os investidores internacionais mudaram
Mas, em compensação, isso gerou críticas posteriores, na medida em que das estratégias de assunção de risco nos anos 1990 para as estratégias de
o argumento básico do Banco Mundial não mudou, continuando a afirmar aversão de risco no início do século xxi. Há também o problema do con-
que é melhor menos intervenção do Estado. Na minha visão, o papel do Es- tágio. Quando uma crise financeira explode em um país latino-americano,
tado nas economias periféricas é crucial para assegurar a competitividade os investidores internacionais não somente retiram os seus fundos do país,
e para se precaver diante da crescente vulnerabilidade de cada país em uma mas também dos seus vizinhos (ainda que não haja aparente problema fi-
economia mundial globalizada. nanceiro nesses países vizinhos). Os banqueiros argumentam que o con-
tágio está em parte ligado a dificuldades de liquidez – quando o preço de
Vulnerabilidade financeira e dependência um utensílio particular cai, eles são obrigados a vender outros tipos de pro-
A crise da dívida latino-americana dos anos 1980 e suas conseqüências priedade para restaurar a sua própria liquidez. Além disso, os banqueiros
podem ser vistas como uma ilustração a mais da relevância contemporânea não somente usam semelhantes sistemas tributários de risco, mas também
da teoria da dependência. Com um grande aumento na mobilidade de capi- avaliam o desempenho dos investimentos em curtos períodos de tempo.
tal e sua disponibilidade na economia mundial desde os anos 1970, as eco- Esses fatores exacerbam os efeitos de contágio tanto dentro quanto entre os
nomias dos países em desenvolvimento se tornaram cada vez mais depen- mercados financeiros latino-americanos.
dentes do capital externo. Esse fato fez crescer grandemente sua exposição A crise da dívida e suas conseqüências demonstraram os impactos da
e vulnerabilidade às mudanças nos mercados mundiais de capital e reduziu volatilidade dos fluxos de capital, particularmente aqueles do crédito de
substancialmente o seu espaço de manobra política. Como conseqüência curto prazo. Enquanto isso, nos anos 1990, o crescimento e a queda da car-
da crise da dívida, as instituições financeiras internacionais ficaram geral- teira de investimentos acrescentaram um outro componente volátil. Essa
mente em condições de ditar suas políticas econômicas e sociais aos países volatilidade pode ter graves implicações nas economias nacionais, através
endividados, especialmente às economias mais fracas e menores, através de dos seus impactos nas taxas de câmbio. Por exemplo, quando a entrada de
programas de ajustes estruturais. Embora o Brasil e o México estivessem capital líquido cresce, o valor da moeda nacional latino-americana também
em condições de negociar melhores termos com o Banco Mundial e com os cresce, criando uma taxa de câmbio supervalorizada (que, em troca, pro-
credores internacionais, a Bolívia e outros pequenos países não estavam. duz um efeito negativo sobre as exportações). No entanto, quando a entra-
A partir dessa crise da dívida, tem havido flutuações significativas nos da de capital líquido declina (às vezes levando à saída de capital líquido), o
fluxos de capital para a América Latina. Em suma, esses países experimen- valor da moeda nacional latino-americana pode cair vertiginosamente, na
taram festim e também fome. Isso é extraordinário, visto que a maioria medida em que a moeda nacional é vendida pelos investidores internacio-
dos países seguiu o Consenso de Washington e liberalizou os mercados fi- nais. Esse padrão de montanha-russa tende a aprofundar a recessão e exige
nanceiros para atrair o capital internacional. Quais são as explicações para ajustes econômicos dolorosos. Isso demonstra a crescente vulnerabilidade
essa volatilidade nos fluxos de capital? O impacto das crises financeiras em e dependência dos países latino-americanos em relação às oscilações brus-
alguns países-chave da América Latina sobre o comportamento dos inves- cas nos fluxos de capital. O fracasso em expandir as poupanças nacionais
tidores internacionais fornece uma razão. A desvalorização brasileira de durante os anos 1990 e no início do século xxi aumentou essa vulnerabi-
janeiro de 1999, a primeira crise argentina de outubro de 2000 e a segunda lidade. Sobretudo, a maior parte da América Latina permanece altamente
370 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 371

dependente dos mercados financeiros internacionais, que, em troca, im- processo de industrialização por substituição de importações latino-ame-
põem uma série de obrigações aos governos latino-americanos. ricano nos anos 1960 e 1970, em razão das dificuldades que estavam ex-
perimentando para mudar das indústrias de bens de consumo para as in-
Termos comerciais e intercâmbio desigual dústrias de bens de capital, que são a fonte de algumas novas tecnologias
Recentes estudos confirmaram a deterioração dos termos de inter- (Gwynne, 1985). Os países maiores, como o Brasil, tentaram desenvolver
câmbio da periferia em relação às economias centrais (Eclac, 2001, p. 38), um substancial setor industrial de bens intermediários, por exemplo, as in-
um fato primeiramente realçado pelo estruturalismo e incorporado na te- dústrias siderúrgicas e químicas. Apesar da presença crescente das corpo-
oria do intercâmbio desigual dos dependentistas (Sarkar, 2001). Isso não rações transnacionais na América Latina, houve uma baixa difusão tecno-
significa necessariamente que os ganhos do comércio exterior declinaram lógica, o que confirmou a crítica da teoria da dependência às corporações
– freqüentemente o caso tem sido o contrário, devido ao crescimento con- transnacionais. A política governamental não desenvolveu uma capacidade
tínuo no volume das exportações de produtos da periferia. Mas isso sig- tecnológica endógena na América Latina, e poderia ter atuado mais deci-
nifica que uma parte substancial do excedente econômico da periferia é sivamente para assegurar que as corporações transnacionais dessem uma
transferida para as economias centrais, além disso, fortalecendo o poder da contribuição para esse processo.
classe capitalista do centro. No entanto, o Brasil e até certo ponto o México adquiriram alguma
A lição continua a ser que os países latino-americanos deveriam, an- capacidade tecnológica competitiva, em grande parte como conseqüência
tes, mudar a sua estrutura de exportação para um maior valor agregado de de uma política industrial deliberada. Com a nova biotecnologia, a revolu-
mercadorias e serviços, do que continuar a exportar produtos primários ção eletrônica e de comunicações, as economias mais avançadas ganharam
básicos, que podem levar à redução da fonte e a conseqüências ambientais uma vantagem competitiva a mais na geração de novas capacidades tecno-
negativas. Não deveria ser esquecido que os teóricos estruturalistas estavam lógicas sobre os países latino-americanos. Além disso, esse fato aumentou
entre os primeiros a afirmar que os governos latino-americanos deviam a dependência tecnológica destes últimos (Castells & Laserna, 1995). Atra-
incentivar as exportações industriais, algo que aqueles viam como sendo vés da remessa de royalties, lucros e pagamentos de juros, os países latino-
a próxima fase do processo de industrialização da região. No entanto, os americanos continuam a transferir um significativo excedente econômico
governos (exceto os do Brasil e do México) não agiram ou o fizeram muito líquido para as economias centrais, geralmente e em particular para os Es-
timidamente. Alguns países que tentaram diversificar para exportações de tados Unidos. Essas transferências de excedentes vindas dos pagamentos
manufaturados foram impedidos nos seus esforços pelas medidas prote- de tecnologia, dos investimentos externos e do intercâmbio desigual no
cionistas do governo dos Estados Unidos. Assim, como foi afirmado pelos comércio exterior significam uma grande redução de fundos que poderiam
pensadores estruturalistas e dependentistas, a maior lição continua a ser ter sido usados no investimento interno nos países da América Latina.
que, para superar o intercâmbio desigual, é preciso mudar radicalmente o
sistema econômico internacional e particularmente as relações Norte-Sul. Globalização: limitações e oportunidades
Nem o estruturalismo nem a teoria da dependência previram o rápido
Dependência tecnológica crescimento do comércio mundial no período do pós-guerra. Este adquiriu
Os escritores dependentistas colocam uma ênfase particular na de- uma nova dimensão na fase atual da globalização, com sua compressão de
pendência tecnológica. Os estruturalistas apontaram para a fraqueza do espaço e tempo e o mais recente ímpeto à liberalização da economia mun-
372 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 373

dial, com a redução das barreiras à mobilidade de produtos, serviços e capi- teoria da dependência surgiram dentro da América Latina, o atual paradig-
tal através das fronteiras, por cujo intermédio foram criadas novas oportu- ma neoliberal foi dirigido principalmente por fontes externas. Segunda, o
nidades para o comércio internacional e para o investimento externo. paradigma orientado para dentro foi o paradigma dominante do século xx
Essas forças globalizadoras certamente reduziram ainda mais o espaço (estendendo-se dos anos 1930 até os anos 1980); isso pode levar alguém a
de manobra das políticas nacionais de desenvolvimento, quando compara- ver o novo paradigma neoliberal como aquele que seria mais representativo
do ao período da industrialização por substituição de importações, assim para as primeiras décadas do século xxi.
confirmando um dos princípios-chave da teoria da dependência. Atual- Esse paradigma abriu um novo capítulo no desenvolvimento da Amé-
mente, as forças do mercado internacional dominam com uma força ainda rica Latina, particularmente no sentido de criar novas relações com a eco-
maior do que no passado, e os Estados nacionais têm de levar em maior nomia mundial. Tal fato pode ser indicado como uma mudança paradig-
consideração essas forças de mercado globais do que faziam antes; caso mática e ser relacionado historicamente à inserção da América Latina na
contrário, eles podem ter de enfrentar grandes retiradas de capital externo economia global do século xix. Embora as economias latino-americanas
(como no caso do México e da Argentina durante as respectivas crises fi- nessa época pudessem contar com as vantagens comparativas dos seus re-
nanceiras de 1994-1995 e 2001-2002), o castigo das instituições financeiras cursos naturais, a questão importante agora é como as vantagens compara-
internacionais e dificuldades com firmas e investidores internacionais. tivas podem ser geradas e criadas – tanto no nível do Estado-nação quanto
Por outro lado, os processos de fortalecimento da globalização e da no da empresa. Isso exige novos conceitos. O estruturalismo subestimou a
liberalização têm aberto novas oportunidades de exportação para as eco- importância crucial da concorrência no mercado mundial de transformar
nomias latino-americanas e têm atraído montantes crescentes de investi- economias e sociedades. O estruturalismo achava que as economias latino-
mento externo para a região. Em alguns países latino-americanos, o setor americanas podiam se defender das forças globais e que podiam continuar
de exportação foi capaz de dar um novo dinamismo à economia nacional. a contar com as vantagens comparativas em minérios e produtos primários
Essa capacidade dinâmica do sistema mundial de comércio foi subestimada básicos, embora promovendo uma industrialização voltada para dentro.
pelos estruturalistas e vista como tendo conseqüências negativas por alguns Da mesma maneira, a teoria da dependência achava que o desenvolvimen-
escritores dependentistas. Embora alguns desses receios sejam justificados, to desligado e autônomo era factível e era o único modo de alcançar o de-
isso tem impedido de focalizar mais firmemente as questões-chave das po- senvolvimento auto-sustentado.
líticas internas buscadas pelo Estado e das classes e outras forças sociais que Ao contrário, a forma “pura” do modelo neoliberal acredita na abertu-
dirigem essas políticas e as forças internas de mercado na periferia. ra total das economias nacionais aos mercados globais sem a mediação do
Estado. Parece, portanto, querer sacrificar setores não competitivos (mais
Globalização na era neoliberal: mudança de paradigma notadamente na indústria) à concorrência externa. O corolário disso foi
na teoria e na política o retorno em contar com as vantagens dos recursos naturais e o que ficou
A América Latina experimentou uma mudança de paradigma tanto conhecido como exportações não tradicionais. Entretanto, os pensadores
na teoria quanto na política, particularmente desde a crise da dívida dos não estruturalistas viram a necessidade de o Estado realizar as necessárias
anos 1980. Duas conclusões imediatas podem ser mencionadas nesse con- mudanças institucionais das economias latino-americanas para produzir
texto. Primeira, a comparação entre as fontes teóricas para os dois para- vantagens competitivas. A necessidade de fazer parte do mercado mun-
digmas recentes; enquanto importantes elementos do estruturalismo e da dial é agora totalmente aceita, mas é também identificado que há um papel
374 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 375

fundamental do Estado na promoção do desenvolvimento, por exemplo, de- encalharam na dependência procuraram reformar o capitalismo tanto in-
senvolvendo recursos humanos. Isso pode ser visto como uma interpretação ternacional quanto nacionalmente, ao passo que a versão neomarxista da
do modelo do Leste Asiático, o sucesso econômico baseado na concorrência dependência se esforçava para derrotar o capitalismo, na medida em que o
industrial, e sua aplicabilidade na América Latina (Fajnzylber, 1990). socialismo era visto como o único sistema capaz de resolver o problema do
O modelo de reestruturação social neoliberal, paradoxalmente orien- subdesenvolvimento.
tado pelo Estado, respondeu às exigências do mercado global e da dimi- Em vista do colapso do sistema socialista da Europa Oriental e a tran-
nuição das barreiras econômicas entre a economia nacional e o mercado sição da China de uma economia planejada para uma economia de merca-
mundial. De certo modo, ele representou uma abordagem repressiva às do, a alternativa socialista da dependência se mostra incapaz de fornecer
demandas dos perdedores sociais do novo modelo econômico. Essa rees- muito suporte no mundo subdesenvolvido, ao passo que a visão estrutu-
truturação social trouxe impactos variáveis em diferentes grupos sociais e ralista de reforma do sistema capitalista deveria ser vista como uma opção
variou mesmo de país para país. Em suma, deu-se menos proteção a alguns mais factível para aqueles que buscavam uma alternativa para o modelo
setores (tais como a classe operária industrial, os camponeses e os grupos neoliberal existente. Subscrevo a afirmação de Marini de que
indígenas) do que a outros (tais como a classe média empresarial e os novos
grupos financeiros emergentes). A classe capitalista se mostrou mais capaz a importância do tema central da economia mundial e sua interdependência
de se reajustar diante das circunstâncias mutantes e das realidades do mer- se tornou mais forte. O que mudou foi minha crença, em grande medida
cado internacional e, como resultado disso, não somente cresceu em tama- implícita na idéia de dependência, de que se pode lograr um estado de inde-
nho e influência, mas também se tornou o principal vencedor nacional da pendência, ou ao menos de não-dependência, ao desvincular-se da econo-
mudança de paradigma. Enfim, foi o capital transnacional que colheu os mia mundial através de ações políticas concertadas nos países ou regiões do
benefícios e consolidou o seu poder global com a viragem neoliberal. Terceiro Mundo. No que respeita a esse ponto, suponho que foi o que mais
mudou, sobretudo desde o golpe militar no Chile. A experiência tem mos-
As teorias latino-americanas como uma alternativa ao neoliberalismo trado que é sumamente difícil, quando não impossível, que a ação política
Em vista da crise do socialismo e do fracasso do neoliberalismo para voluntarista desvincule a países específicos da economia mundial. (Apud
tratar da questão social, é imperativo desenvolver um paradigma de de- Kay, 2006, p. 187)
senvolvimento alternativo que seja capaz de resolver os problemas men-
cionados. Embora esteja além do escopo deste ensaio desenvolver esse Dependência, neo-estruturalismo, neoliberalismo e
paradigma alternativo, é nossa visão que um ponto de partida útil é cons- Fernando Henrique Cardoso
truir sobre a contribuição da América Latina à teoria do desenvolvimento, É importante enfatizar que o modelo neoliberal evoluiu, da interpre-
ainda que considerando também outras contribuições. O estruturalismo tação freqüentemente estreita e economicista do assim chamado “Con-
deveria fornecer idéias mais relevantes que permitissem pensar sobre as senso de Washington” (Williamson, 1990) para uma interpretação mais
estratégias de desenvolvimento alternativas para aqueles que têm uma vi- socialdemocrata no Chile (Ffrench-Davis, 2002) e no Brasil (Bresser Pe-
são mais pragmática, ao passo que, para aqueles que têm uma posição mais reira, 1996). De fato, alguma forma de convergência entre o neoliberalis-
radical e uma visão de longo prazo, as idéias dos teóricos da dependência mo e o estruturalismo parece ter ocorrido em algumas partes da América
devessem parecer mais atraentes. O estruturalismo e os estruturalistas que Latina com a emergência de uma posição neo-estruturalista desde o final
376 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 377

dos anos 1980.5 Podia ser argumentado que o neo-estruturalismo ganhou Cammack (1997, p. 242) ironicamente observa que “Cardoso, o soci-
alguma influência sobre a política governamental na América Latina, tal ólogo, permanece o mais agudo crítico de Cardoso, o presidente”, e, uma
como nos regimes de Concertación do Chile desde 1990 e, possivelmente, vez no poder, ele despojou a promessa socialdemocrática do seu projeto e a
no Brasil, com o governo de Cardoso (1995-2002), e talvez mesmo com o reduziu a uma receita para a consolidação do neoliberalismo na prática. De
governo de Lula desde 2003. fato, para Petras e Morley (1992, p. 159), essa metamorfose é sintomática na
Já que Fernando Henrique Cardoso é considerado como uma das fi- maioria dos intelectuais de esquerda da América Latina, que, na sua visão,
guras principais da teoria da dependência, é útil avaliar o seu próprio tes- retrocedeu do marxismo para visões liberais socialdemocráticas. “Cardoso
temunho quando no governo. Como um escritor dependentista, Cardoso mesmo disse, na frente de câmeras de televisão: ‘Esqueçam tudo o que um
preferiu falar mais da “análise das situações concretas da dependência” do dia eu escrevi’” (Branford, 2003, p. 75).
que de uma teoria da dependência, na medida em que era sensível às dife- No entanto, Cardoso insistiu várias vezes no fato de que ele não era
renças entre países dependentes, tal como era cético em relação às grandes um neoliberal. Na sua visão, a globalização exige que o Estado seja refor-
teorias. Ele também cunhou o termo “desenvolvimento dependente”, assim mado para intervir menos, porém mais eficientemente, e a privatização da-
como a idéia de que os países dependentes podiam se desenvolver e não quelas empresas estatais que possam ser administradas mais eficazmente
estavam condenados a um processo de “desenvolvimento do subdesenvol- pelo capital privado. Na visão de Cardoso (2001, p. 246), isso não entra em
vimento”, como foi afirmado por Andre Gunder Frank, que era visto por choque com os ideais tradicionais da esquerda, ainda que pareça parado-
alguns, especialmente no mundo de fala inglesa, como a figura central no xal. Cardoso (2001, p. 257) se defende contra essas acusações afirmando
movimento dependentista. Enquanto Frank continuou a sua vida como um que “o tempo e a motivação do político são essencialmente diferentes do
acadêmico engajado e progressista, Cardoso, como foi observado, moveu- tempo e da motivação do cientista social. O político não pode esperar pela
se para a política, tornando-se presidente do Brasil de 1995 a 2002. sedimentação do conhecimento para agir. Se ele fizesse isso, seria ultrapas-
Enquanto Frank permaneceu um crítico feroz do capitalismo e da sado pelos fatos”. Ele afirma que a globalização não pode ser evitada, que
globalização, Cardoso é visto por alguns analistas como tendo abraçado ela oferece oportunidades e, ainda que condicione a ação do governo, há
o neoliberalismo e a globalização. Como Birdsall e Lozada vigorosamente espaço de manobra. A maioria dos críticos da esquerda concorda com a
colocaram (1996, p. 17): visão de Branford (2003, p. 76) de que, “por volta de 1990, Cardoso tinha se
convertido totalmente ao neoliberalismo”. Mas, na visão de outro analista
Longe de querer sair do sistema econômico mundial, a América Latina está brasileiro:
dando todos os passos necessários para não ser deixada de fora. Fernando
Henrique Cardoso do Brasil, uma vez um propositor de ponta da teoria da Fica extremamente claro que os desenvolvimentos da política no Brasil du-
dependência e agora um defensor da reforma de mercado, exemplifica essa rante o governo de Cardoso surgiram de dentro, como produto da situação
mudança. única e do modus operandi do país, tendo pouca coisa em comum com o
neoliberalismo per se ou com sua ideologia. (Cunningham, 1999, p. 82)
5
Sobre o surgimento e o declínio do estruturalismo da Cepal, ver Love (2002). Para uma com-
paração entre neoliberalismo e neo-estruturalismo, ver Sunkel & Zuleta (1990), Bitar (1998)
Contudo, Cardoso (2001, p. 248) admite que suas visões mudaram:
e Muñoz (2001). Para uma avaliação crítica do neo-estruturalismo, ver, entre outros, Leiva
(1998) e Harris (2000).
378 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 379

Quando eu escrevi meus livros sobre a teoria da dependência, a hipótese De fato, o país se tornou mais dependente do que nunca do capital
subjacente era que o processo internacional do capitalismo afetava adver- financeiro internacional, ficando à mercê de especuladores, e mais vulne-
samente as condições do desenvolvimento. Ele não impedia o desenvolvi- rável a choques externos, com isso liquidando a capacidade brasileira de
mento, mas o tornava desequilibrado e injusto. Muitos consideravam que tomar decisões soberanas e independentes.
a economia voltada para dentro era a forma possível de defesa contra a al- É irônico que o primeiro teórico e crítico do desenvolvimento depen-
ternativa de uma integração internacional, vista como arriscada e perigosa. dente tivesse realizado, como presidente da maior economia da América
Essa visão mudou. Temos de admitir que a participação na economia global Latina, uma profunda desnacionalização e aumentado mais a sua depen-
pode ser positiva, que o sistema internacional não é necessariamente hostil. dência em relação às corporações transnacionais e às instituições financei-
Mas devemos trabalhar cuidadosamente para agarrar as oportunidades. A ras internacionais. Como teórico, ele deveria ter previsto as contradições
integração bem-sucedida na economia global depende, por um lado, da ar- desse projeto, que aniquilariam de um golpe o seu objetivo desejado de
ticulação diplomática e de parcerias comerciais adequadas e, por outro lado, aumentar a autonomia do Brasil como o principal poder regional na cena
do trabalho doméstico individual de cada país em desenvolvimento baseado global. “Assim, uma vez Cardoso no poder, a questão da dependência e
em uma construção do consenso democrático. do desenvolvimento mudou na sua cabeça” (Rocha, 2002, p. 10). Além
disso, caracterizar as políticas seguidas pelo governo de Cardoso como
Assim, Cardoso sustenta que é possível fazer o trabalho da globalização neo-estruturalistas seria ir muito longe, ainda que essa pudesse ter sido a
para o desenvolvimento nacional. Se ele realizou ou não com sucesso essa sua intenção.
tarefa desafiadora durante a sua presidência, isso é duvidoso. Para críticos
como Commack (1997), Petras, Rocha (2002) e Theotonio dos Santos (1998, Neo-estruralismo como uma alternativa ao neoliberalismo?
2002), Cardoso certamente não obteve sucesso. De fato, muitos analistas Posteriormente, com a eleição do presidente Lagos, em 2000, no Chi-
concluem que o anterior desempenho da economia dirigida pelo Estado era le, a dimensão do governo de Concertación chileno ganhou mais proemi-
claramente superior ao desempenho conduzido pelo mercado de Cardoso. nência. Em seguida, com a eleição de Luís Inácio da Silva, o “Lula”, para
Renunciando à sua inicial análise da dependência, ele subestimou as rea- a presidência do Brasil, em 2002, uma mudança para as políticas neo-
lidades políticas globais e também nacionais, o que limitou grandemente estruturalistas devia ocorrer em vista da sua prioridade de lutar contra a
e destruiu o seu projeto de desenvolvimento. Paradoxalmente, durantes os pobreza e seu programa de reforma agrária.6 Alguns autores rejeitaram o
seus dois governos presidenciais, tendo sido reeleito em 1998, a dependên- neo-estruturalismo como sendo simplesmente a face humana do neolibe-
cia do Brasil se aprofundou, ao passo que o crescimento econômico perma- ralismo e sua segunda fase ou uma variante do neoliberalismo, que pode
neceu, infelizmente, baixo. De acordo com Branford (2003, p. 76): ser caracterizado como “populismo neoliberal” (Demmers et al., 2001).
Leiva (1998, p. 35) afirma que o neo-estruturalismo pode ser visto como
Na época em que Cardoso encerrou os seus oito anos de governo, o capital uma continuação lógica do modelo neoliberal, na medida em que
internacional tinha tomado posse de enormes áreas da economia brasileira e o
país foi acometido pela armadilha de uma dívida externa de proporções sem pre-
cedentes. O desemprego – e o crime – alcançaram níveis recordes. 6
Mas vários analistas estão já caracterizando as políticas de “Lula” como neoliberais. Ver Petras
& Veltmeyer (2003-2004), entre outros.
380 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 381

a oportunidade histórica do neo-estruturalismo aparece uma vez que ele é processo apresentou a tendência de excluí-los. Entretanto, os neoliberais
necessário para consolidar e legitimar o novo regime de acumulação origi- desejam um Estado minimalista, colocando o mercado no lugar central, na
nariamente colocado em prática pelas políticas neoliberais. O neoliberalis- medida em que acreditam nele como sendo a maior força transformadora
mo e o neo-estruturalismo, portanto, não são estratégias antagônicas, mas e afirmam que quantos menos obstáculos sejam postos à livre operação do
antes, devido a suas diferenças, desempenham papéis complementares que mercado, melhor será para a economia, a sociedade e a política nacional.
asseguram a continuidade e a consolidação do processo de reestruturação. A interpretação dos neo-estruturalistas a respeito da experiência dos
novos países industrializados do Leste asiático também difere da interpre-
O neo-estruturalismo, apesar de reconhecer as assimetrias no siste- tação dos neoliberais. Enquanto os neoliberais exaltam essa experiência
ma mundial, vê a necessidade de continuar fazendo parte desse sistema. como um modelo de economias de livre-mercado, os neo-estruturalistas
É certamente verdadeiro que houve uma mudança do estruturalismo para enfatizam o papel crucial que o Estado desempenhou no processo de de-
o neoliberalismo, na medida em que ele assumiu alguns elementos do ne- senvolvimento deles. A principal lição que os neo-estruturalistas tiram dos
oliberalismo, mas ao mesmo tempo conservou algumas idéias centrais do novos países industrializados do Leste asiático é a necessidade de se integrar
estruturalismo – daí o rótulo de neo-estruturalismo. Além disso, há dife- seletivamente na economia mundial e criar vantagens competitivas através
renças que dizem respeito principalmente às suas respectivas visões sobre de políticas industriais bem-delimitadas e flexíveis (Fajnzylber, 1990). Es-
a relação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, assim sas políticas industriais e de exportação tentam continuamente explorar
como entre o Estado, a sociedade civil e o mercado. Até que ponto essas nichos no mercado mundial e mudar a contracorrente para produtos que
diferenças são significativas o bastante para afirmar que esse neo-estrutu- exijam mais destreza, tecnologia avançada e maior valor agregado. As po-
ralismo constitui uma alternativa muito diferente do neoliberalismo, isso líticas para melhorar a base de conhecimento da economia e, sobretudo, a
está aberto ao debate. capacidade tecnológica nacional são vistas como cruciais para alcançar um
A visão neoliberal exige uma liberalização maior da economia mun- crescimento de longo prazo sustentado. Assim, a importância da educação
dial e afirma que isso beneficiaria consideravelmente os países em desen- é enfatizada, assim como o aperfeiçoamento da capacidade estatal e a dis-
volvimento. Ao contrário, os neo-estruturalistas, assim como os escritores tribuição de renda, além da reforma do sistema desigual de posse da terra,
dependentistas, vêem a economia mundial como um sistema de poder hie- na medida em que esses fatores são ingredientes essenciais no sucesso dos
rárquico e assimétrico que favorece os países centrais e, particularmente, novos países industrializados do Leste asiático.
as corporações transnacionais. Eles são, portanto, mais céticos a respeito Os neo-estruturalistas dão mais importância às forças do mercado,
da maior liberalização, acreditando que ela agiria no sentido de aumentar à empresa privada e ao investimento direto estrangeiro quando compara-
as desigualdades entre e no interior dos países; grupos globais poderosos dos ao estruturalismo, mas eles afirmam que o Estado deveria governar o
localizados nos países desenvolvidos asseguram que os benefícios da libe- mercado através de fortes corpos regulatórios. No pensamento dos neo-
ralização global seriam canalizados a seu favor. estruturalistas, o Estado desempenha papéis menos essenciais no desenvol-
Quanto à relação entre Estado, sociedade civil e mercado, os neo-es- vimento do que tinha na industrialização por substituição de importações,
truturalistas atribuem um papel mais importante ao Estado no processo na medida em que o Estado não mais leva a cabo atividades produtivas
de transformação social e estão sedentos por envolver os grupos prejudi- diretas através da propriedade pública da indústria ou de outros empre-
cados da sociedade nesse processo, particularmente na medida em que o endimentos. A capacidade do Estado para dirigir a economia é limitada,
382 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 383

na medida em que o protecionismo e os subsídios são usados somente de 3a) A vulnerabilidade comercial foi intensificada como resultado de
uma maneira restrita e esporádica. O imperativo de alcançar e sustentar o flutuações dos níveis de demanda e dos termos de intercâmbio, em parte
equilíbrio macroeconômico é reconhecido, enquanto agora a estabilidade devido à contínua deterioração nos preços das mercadorias.
dos preços e o equilíbrio fiscal são vistos como condições do crescimento, 4a) Na mobilidade econômica dos fatores de produção. Embora as
o que necessariamente não foi o que ocorreu no passado. Outro elemen- reformas neoliberais tivessem aumentado enormemente a mobilidade de
to essencial do neo-estruturalismo é o atingimento de vantagens compe- capital, a mobilidade do trabalho continua a ser restrita. Essa assimetria
titivas em algumas áreas produtivas fundamentais no mercado mundial distorce a distribuição de renda em favor do capital e coloca o trabalho em
através da liberalização seletiva, da integração na economia mundial e de desvantagem, especialmente na periferia ou nos países em desenvolvimen-
uma política industrial voltada para a exportação e para o crescimento. Os to, devido a seu excedente de trabalho.
neo-estruturalistas são defensores entusiasmados do “regionalismo aberto”, Para superar essas assimetrias, os neo-estruturalistas (Eclac, 2002)
que eles esperam que elevaria a posição da América Latina na economia propõem uma agenda global que inclua medidas para: 1o) aumentar a
mundial, ao mesmo tempo em que reduziria sua vulnerabilidade e depen- transferência do progresso tecnológico dos países centrais para os países da
dência (ver Eclac, 1994). As tentativas anteriores de integração regional na periferia; 2o) promover o desenvolvimento do capital institucional, social,
América Latina, como a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio humano e de conhecimento para fortalecer o crescimento endógeno nos
(Alalc) e o Pacto Andino, olhavam mais para dentro, na medida em que países da periferia; 3o) assegurar a participação adequada nos processos
eram uma ampliação da estratégia da industrialização por substituição de de decisão no nível internacional; 4o) baixar gradualmente as barreiras da
importações domésticas em um nível regional. Ao contrário, a integração migração do trabalho, particularmente dos países da periferia para aqueles
econômica através do “regionalismo aberto” é vista como complementan- do centro; 5o) reduzir a volatilidade financeira; 6o) reduzir o montante dos
do a orientação para fora, através do aumento da competitividade interna- subsídios à produção e à exportação dos produtos agrícolas no centro, isto
cional e das exportações. é, nas economias centrais.
Os escritos neo-estruturalistas nesses anos recentes do Eclac perma- Os neo-estruturalistas renovaram o seu compromisso com a eqüidade
nente tentaram lidar com os fenômenos da globalização (Eclac, 2002). e acrescentaram um novo foco às suas análises com sua ênfase na cidadania
Afirma-se que a globalização, na atual fase neoliberal, longe de levar à (Eclac, 2001). Nesse estudo, os neo-estruturalistas lamentam que a globali-
convergência, como afirmada pelos neoliberais, reproduz e, freqüente- zação e o neoliberalismo tenham dissipado a coesão social e a solidarieda-
mente, exacerba quatro grandes assimetrias: de, assim como a ação coletiva para o bem comum. A ênfase dos neolibe-
1a) No progresso técnico, com a extrema concentração da inovação rais nas relações de mercado fragmentou e individualizou a sociedade. Os
e da capacidade tecnológica no centro, ou seja, nas economias centrais e neo-estruturalistas propõem, assim, religar o indivíduo com a sociedade,
grandemente sob o controle das corporações transnacionais. desenvolvendo a cidadania, que implica um compromisso recíproco entre
2a) Na vulnerabilidade financeira, na medida em que os países perifé- as instituições públicas e o indivíduo. Para esse propósito, o Estado deveria
ricos ou em desenvolvimento estão agora muito mais expostos aos choques promover a educação, o emprego, a saúde e a seguridade social entre os
externos do que no passado, devido à sua maior dependência financeira, ao cidadãos. A elevação da coesão social implica a participação dos indiví-
lado de sua associada volatilidade. duos na vida pública e nos processos de decisão que afetam as suas vidas
e o futuro do país. A crescente alienação das pessoas em relação à política
384 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 385

precisa ser revertida. Isso também exige a abolição da discriminação de emergir e começar a resolver os grandes problemas essenciais da pobreza,
sexo e de raça e a redução do fosso entre os indivíduos ou grupos incluídos da exclusão social e da eqüidade.
e excluídos. Somente com o fortalecimento da cidadania é que será possível
ganhar uma coesão suficiente e uma legitimidade política para levar a cabo Bibliografia
as grandes transformações requeridas para alcançar um desenvolvimento BITAR, S. Neo-liberalism versus neostructuralism in Latin America. Cepal
equânime e sustentado. Review, n. 34, p. 45-62, 1998.
Em suma, o neo-estruturalismo não deveria ser interpretado como a Brandford, S. The Fernando Henrique Cardoso legacy. In: BRANFORD,
rendição dos estruturalistas ao neoliberalismo, mas antes como uma tenta- S.; KUCINSKI, B.; WAINWRIGHT, H. Politics transformed: Lula and
tiva de chegar a um acordo com a nova realidade da globalização e apren- the worker’s party in Brazil. Londres: Latin America Bureau, 2003. p.
der com a experiência de desenvolvimento bem-sucedida, como aquela dos 74-102.
novos países industrializados do Leste asiático. Nesse sentido, o estrutura- Bridsall, N.; Lozada, C. E. Recurring themes in Latin American
lismo está mostrando mais uma capacidade de se adaptar às circunstâncias thought: from Prebisch to the market and back. In: HAUSMANN,
históricas mutantes do que permanecer congelado no passado. Apesar das R.; REISEN, H. (Eds.). Securing stability and growth in Latin America:
deficiências do neo-estruturalismo, muitos analistas o vêem como sendo policy issues and prospects for shock-prone economics. Paris: OECD,
a única alternativa factível e digna de crédito ao neoliberalismo nas atuais 1996. p. 11-21.
circunstâncias históricas. Até que ponto o neo-estruturalismo pode se tor- Cardoso, F. H. Associated-dependent development: theoretical and
nar uma alternativa à globalização neoliberal que seja capaz de superar os practical implications. In: STEPAN, A. (Ed.). Authoritarian Brazil:
problemas do subdesenvolvimento e da dependência, essa é uma questão origins, policies, and future. New Haven, CT: Yale University Press,
aberta, mas até agora a evidência é muito pequena. 1973. p. 142-170.
________. Charting a New course: the politics of globalization and social
Conclusões transformation. Editado e introduzido por M. A. Font. Lunham (MD):
Os problemas pendentes da América Latina clamam com urgência Rowman & Littlefield Publishers, 2001.
crescente por uma economia política alternativa ao processo contempo- Castells, M.; Laserna, R. The new dependency: technological change
râneo da globalização neoliberal. Os cientistas sociais latino-americanos and socioeconomic restructuring in Latin America. In: KINCAID, A.
podem valer-se de uma rica herança do pensamento crítico e progressista D.; PORTES A. (Eds.). Comparative national development: society and
que precisa ser renovado para enfrentar os desafios de hoje. É da responsa- economy in the new global order. Chapel Hill (NC): University of
bilidade dos intelectuais orgânicos, que estão ligados aos vários movimen- North Caroline Press, 1995. p. 57-83.
tos sociais que desafiam a globalização neoliberal, desenvolver primeiro Commack, P. Cardoso’s political project in Brazil: the limits of social
a teoria social crítica para oferecer propostas alternativas para a eventual democracy. In: PANITCH, L. (Ed.). Socialist Register 1997: ruthless
emancipação dos grupos sociais mais vulneráveis e que possam alcançar criticism of all that exist. Londres: Merlin Press, 1997. p. 142-170.
uma ampla aceitação no meio do povo. Permanece obscuro se um possível Cunningham, S. M. Made in Brazil: Cardoso’s path from dependency
“Consenso do Sul” progressista, inspirado por uma renovação da teoria so- via neoliberal options and the Third Way in the 1990s’. European Review
cial crítica latino-americana que desafia o “Consenso de Washington”, pode of Latin American and Caribbean Studies, n. 67, p. 75-86, 1999.
386 ■ A América Latina e os desafios da globalização Teorias estruturalistas e teoria da dependência ■ 387

Demmers, J.; Fernández, A.; Hogenboom (Eds.) Miraculous ________. Latin American theories of development and underdevelopment.
metamorphoses: the neoliberalization of latin american populism. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1989.
Londres/Nova Iorque: Zed Books, 2001. ________. Marxism in Latin America. In: BOTTOMORE, T. (Ed.). A
ECLAC. Equity, development and citizenship. Santiago: Eclac, 2001. dictionary of marxist thought. 2. ed. Oxford: Basil Blackwell, 1991. p.
________. Globalization and development. Santiago: Eclac, 2002. 362-365.
________. Open regionalism in Latin America and the Caribbean. Santiago: ________. Why East Asia overtook Latin America: agrarian reform,
United Nations Economic Commission for Latin America and the industrialization and development. Third World Quarterly, n. 23 (6),
Caribbean (Eclac), 1994. p. 1.073-1.102, 2002.
Fajnzylber, F. Industrialización en América Latina: de la “cajá negra al Leiva, F. Neoliberal and neostructuralist theories of cosmopolitan and
casillero vacío”. In: Cuadernos de la Cepal 60. Santiago: Nações Unidas/ flexible labor: the case of Chile’s manufactured exports. Dissertação
Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), 1990. de PhD. Departamento de Economia, University of Massachusetts/
Ffrench-Davis, R. Economic reforms in Chile: from dictatorship to de- Amherst, 1998. (Não publicado)
mocracy. Ann Arbour (MI): University of Michigan Press, 2002. Love, J. L. The rise and decline of economic structuralism in Latin
Frank, A. G. Capitalism and underdevelopment in Latin America: America. Apresentado no XXV Congresso da Latin American Studies
historical studies of Chile and Brazil. Nova Iorque: Monthly Review Association (Lasa). Los Angeles: Nevada, 2004.
Press, 1967. Marini, R. M. Proceso e tendencias de la globalización capitalista. In:
________. Latin American development theories revisited: a participant MARINI, R. M.; MILLÁN, M. (Coord.). La teoría social latinoameri-
review essay. European Journal of Development Research 3 (2), p. 146- cana: cuestiones contemporâneas. México: El Caballito, 1996. t. 4.
159. Uma versão ampliada foi publicada em The Scandinavian Journal Munck, R. Dependency and imperialism in the new times: a Latin
of Development Research, n. 10 (3), p. 133-150, 1991. American perspective. European Journal of Development Research, n.
Gwynne, R. N. Industrialization and urbanization in Latin America. 11 (1), p. 56-74, 1999.
Baltimore (MD): John Hopkins University Press, 1985. Muñoz, O. Estrategias de desarrollo en economías emergentes: lecciones
Gwynne, R. N.; Kay, C. (Eds.). Latin America Transformed: globalization de la experiencia latinoamericana. Santiago: Flacso, 2001.
and modernity. 2. ed. Londres: Arnold; Nova Iorque: Oxford University Ocampo, J. A. Raúl Prebisch y la agenda del desarrollo en los albores del
Press, 2004. siglo xxi. Revista de la Cepal, n. 75, p. 39-50, 2001.
Harris, R. L. The effects of globalization and neoliberalism in Latin Pereira, L. C. Bresser. Economic crisis and state reform in Brazil: toward
America at the beginning of the millennium. Journal of Developing a new interpretation of Latin America. Boulder (CO): Lynne Rienner,
Societies, n. 16 (1), p. 139-162, 2000. 1966.
Hills, J. Dependency theory and its relevance today. Review of International Petras, J.; Morley, M. Latin America in the time of cholera: electoral
Studies, n. 20 (2), p. 169-186, 1994. politics, market economics, and permanent crisis. Nova Iorque:
Kay, C. André Gunder Frank (1929-2005): pionero de la teoría de la de- Routledge, 1992.
pendencia y mundialización. Revista Mexicana de Sociología, n. 68 Petras, J.; Veltmeyer, H. A donde va Brasil?. Marxismo vivo. Revista de
(1), p. 181-190, 2006. Teoría y Política Internacional, n. 7, p. 27-39, 2003; n. 8, p. 77-92, 2004.
388 ■ A América Latina e os desafios da globalização

Rocha, G. M. Neo-dependency in Brazil. New Left Review, n. 16, segun-


da série, p. 5-33, 2002.
Santos, T. dos. La teoría de la dependencia: balance y perspectivas. Bar-
celona/Cidade do México: Plaza y Janés, 2002.
________. The theoretical foundations of the Cardoso government: a new
stage in the dependency-theory debate. Latin American Perspectives,
n. 25 (1), p. 53-70, 1998.
Sarkar, P. The North-South terms-of-trade debate: a re-examination.
Progresso in Development Studies, n. 1 (4), p. 309-327, 2001.
Slater, D. Geopolitics and the post-colonial: rethinking North-South
relations. Oxford: Blackwell, 2004.
Sotelo, A. Marxismo y dependencia: el pensamiento de Ruy Mauro
Marini. Tareas, n. 111, p. 75-87, 2002.
SUNKEL, O. (Ed.) Development from within: towards a neostructuralist
approach for Latin America. Boulder (CO): Lynne Rienner, 1993.
Sunkel, O.; Zuleta, G. Neo-structuralism versus neo-liberalism in the
1990s’. Cepal Review, n. 42, p. 35-41, 1990.
Wade, R. Governing the market: economic and the role of government
in East Asia industrialization. Princeton (NJ): Princeton University
Press, 1990.
Williamson, J. (Ed.). Latin American adjustment: how much has hap-
pened?. Washington, D.C.: Institute for International Economics,
1990.
World Bank. The East Asia miracle: public policy and economic growth.
Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 1993.

Você também pode gostar