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Romano Guardini

O mundo religioso de Dostoievski

Por Romano Guardini, “O mundo religioso de Dostoievski”, p. 3-10.

"Os sete capítulos desta obra propõem-se versar a existência do


fenômeno religioso e a sua problemática tal como se nos apresentam nas
grandes criações de Dostoievski: nos romances Rodion Raskolnikov, O Idiota,
Os Possessos, O Adolescente e Os Irmãos Karamazov. Gostaria,
primeiramente, de fazer uma pequena introdução ao assunto."

 Todos os que procuram analisar o fenômeno religioso nas obras de


Dostoievski logo percebem de que escolheram para assunto do seu trabalho
nada menos do que todo o mundo daquele autor. Nas suas obras não se
encontra uma única personagem importante ou um acontecimento de relevo
que, no seu contexto, não tenha adquirido relevância por intermédio de uma
maior ou menor intervenção do elemento religioso. As personagens de
Dostoievski são condicionadas por forças e motivos de ordem religiosa que vão
determinar as suas verdadeiras decisões. Mais do que isso, o seu mundo como
«mundo», a interdependência das suas realidades e valores e toda a estrutura
em que os acontecimentos se processam têm, no fundo, uma base religiosa.

Apercebi-me do que significa querer compreender este «mundo»,


quando, no verão de 1930, preparava uma palestra de duas horas, e debalde
me esforcei para dominar a totalidade do assunto num curto espaço de tempo.
O mundo dos cinco grandes romances — especialmente quando se consultam
as suas outras obras, ainda que de passagem — é de uma riqueza
surpreendente. Ao longo de toda a obra as personagens estão condicionadas
ao destino e aos símbolos e, se bem que passado algum tempo se repare que
determinados motivos no esboço das personagens, determinadas formas
básicas no desenrolar dos acontecimentos e situações e determinadas linhas
mestras do pensamento em relação ao significado do mundo e da existência
humana nunca deixam de estar presentes, estes momentos ordenados pouco
mais são do que guias de segunda categoria numa floresta em contínuo
crescimento e expansão.
Gostaria, portanto, de explicar como procurei orientar-me. Tornar-se-á,
assim, mais clara a relação existente entre os capítulos desta obra.
Em primeiro lugar, era necessário investigar a concepção de
Dostoievski em relação ao homem. A conclusão tirada foi a de que aos
habituais conceitos de inteligência, intuição, fantasia, vontade, ação,
criatividade, sensação e sofrimento se deve dar um sentido muito mais lato que
o habitual, porque, no caso presente, essas formas-atos não existem num
estado puro; pelo contrário, em cada uma delas se incluem as outras. E tanto
assim é que se progride muito mais quando não se vai em demanda dos atos
individuais do homem, mas sim das estruturas que constituem todo o seu ser:
portanto, as vidas física e metafísica, o coração e a alma, as vidas do sonho e
do símbolo, a vida do espírito e a vida psíquica.
A questão da forma como são construídas as personagens de
Dostoievski trouxe-nos importantes esclarecimentos, sobretudo se
compararmos a estrutura dessas mesmas personagens com a estrutura
ocidental que conhecemos; a análise do confronto de personalidades e da
dependência do indivíduo em relação ao todo foram também de capital
importância. Verifica-se, com surpresa, como essas estruturas pessoais são
amplas, complexas, lábeis, sobretudo elásticas, e adquirem-se assim os mais
importantes esclarecimentos para a compreensão das relações existentes
entre os romances e, além disso, para a assimilação dos problemas da
estrutura e situação de perigo em que a personagem incorre.
A questão passou, então, a abranger os vários campos de cultura e
existência e sua interligação. Entre outras, chegou-se à conclusão de que, no
mundo de Dostoievski, as pedras propriamente basilares da vida cotidiana,
começando pelo trabalho, parecem não estar presentes. Assim, os homens
parecem estar expostos de uma maneira particular ao destino e às forças
religiosas.
Houve depois que analisar as realidades básicas da estrutura
existencial, levantar perguntas como estas: o que significam no mundo de
Dostoievski a natureza, o «todo», o sol, as árvores, as plantas, a terra e os
animais? O que é o povo? O que são a mãe, a criança, o rapaz e a moça?
Como encara Dostoievski o adulto e o velho? Tem conhecimento de
personalidade emancipada e de como se forma? Qual o significado da dor e do
mal nas suas diversas formas: doença, pobreza, alcoolismo, sofrimento
psíquico, discriminação social, loucura e demência? O que é o mal — desde
pecado, crime, depravação, baixeza e infâmia até ao mal como poder, até ao
satanismo? Não se poderão igualmente omitir as perguntas quanto ao
fantasmagórico...
A partir daí uma nova direção se divisou em relação aos mais simples e
simultaneamente mais intensos fenômenos da existência: a vida, o ser, o
tempo e a eternidade. Também esteve presente a problemática do limite da
existência: morte, transitoriedade, o nada.
Foram consideradas ainda as crises da existência formadas pelo tédio,
cansaço, asco, medo, desespero, apatia, desamparo...
O rumo da investigação voltou-se por fim para os valores existentes no
mundo de Dostoievski, principalmente os mais nobres: honra, nobreza,
franqueza, inocência, liberdade, amor, humildade e alegria, nos quais se
enquadra tudo o que pertence a uma esfera superior — a luz, o bom, o belo, a
unidade e a tranquilidade.
A tudo isto associou-se a questão da problemática religiosa que
conduziu à tentativa de encontro de uma fenomenologia dos atos e formas de
existência religiosas, representados na teia da «existência retrógrada».
Verificou-se assim que todos os fatores anteriormente descritos,
quando de qualquer forma se aprofundavam, estavam tanto mais saturados de
violência religiosa quanto mais próximos se encontravam do elementar, de tal
modo que realidades como o sol, a terra, as árvores e os animais; fatores
existenciais, como a alegria, a doença e o sofrimento; conceitos genéricos
como vida e ser; inclusive o aparecimento de limiares como morte,
transitoriedade, o nada, a partir de certo ponto —atingido rapidamente — eram,
na íntegra, religiosos.
A abundância de personagens e a problemática vigente em toda a obra
tornavam extremamente complexa a análise, tendo sido necessário um fio
condutor e ordenador. Julguei encontrá-lo na relação das personagens com a
terra, o povo e os poderes básicos da existência. Esta linha de relação começa
com personagens que se encontram inteira e despercebidamente nessa
dependência. Conduz-nos em seguida àqueles em quem esta ligação é
consciente, se estrutura e se desagrega em tensões, até chegar àqueles em
quem se transforma inteiramente em «cultura», sem, no entanto, perder a sua
substância. É este o caminho seguido nos quatro primeiros capítulos do
presente livro e que começam por se referir ao povo e suas figuras, passando
em seguida às duas Sônias, depois aos homines religiosi e por fim a Aliocha
Karamazov.

Serão abrangidos, porém, pela mesma linha, as personagens em quem


essa mesma substância básica é posta em risco, diminuída, distorcida,
destruída; momentos isolados dessa substância são levados a extremos e
encarados sob um aspecto excessivamente doutrinal.

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