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: DEPTP DE WISTORIA DE AMERICA «FERNANDEZ DE OVIEDO»


CENTRO DE ESTUDIOS HISTORICOS

REVISTA
Revista de I n d k , 1 995, vol LI/ núm 204

-'

A ILHA DA MADEIRA E O TRAFICO NEGREIRO


NO SÉCULOXVI
POR

ALBERTO VIEERA
Centro de Estudios de Historia do Atlántico
Funchal-Madeira

Este ti-ubajo sobre Ius reluciot~escoprzerciu1e.s de lu isla de Madeira sostiene la


in~portanciude acrividudes nzei-cai?rilescoij erros a~chipiélagaspróximos así como
c011otrvs nzár uiejndos desde e1 siglo XK coivzercio de cereal& y trúfico negrero,
tais en contra de /a /I zitooi-iografia tradicioi~alqzie defiende unicamente lu vincu-
hción de la isla c011 e1 Viejo Mzii?do /zasta e1 siglo XVIJ fecha en que se esfable-
cieroi? relacioi?es c011 el N~levo.Todo ello destacado a través de un raro e impor-
tante testamei?ta, e1 de1 co171ei-ciuiltei7zadeirense Frai?cisco Dúrz (1559).

A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a


vinculação da ilha ao Velho Mundo, realçando apenas a impor-
tância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Neste sentido
os séculos xv e xvx seriam definidos como os momentos áureos
deste relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a
expressão da viragem para o Novo Mundo, em que o vinho
assume o papel de principal protagonista e responsável destas
trocas comerciais.
Os estudos por nós realizados vieram a confirmar que o
relacionamento e-xterior da Madeira não se resumia a enas a
estas situações A margem destas vias e mercados su sistiam
outras que activaram também a economia rnadeirense, desde o
!
século XV. Neste contexto as conexões com os arqui. élagos próxi-
mos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Ver ! c e, S. Tomé e

(1) Alberto VIEIRA, "O comércio de cereais dos Açores ara a Madeira no
seculo XVU1', in Os A ~ o r e se o Ati&i~rico(sécrilos XW-XVY, Angra do Heroismo,
1984: "O comércio de cereais das Canarias para a Madelra nos séculos XVI e
XVII", in VI ColQuio de Hisrória Cat?urioAnzericanq Las Palmas, 1984; "Madeira
e Lanzarote. Comércio de escravos e cereais no século XVII", in W Jornadas de
Hissória de L a n ~ r o t e Ftlei-tevei?ttli-a,Arrecife de Lanzarote, 1989.
ALBERTO m R A

Príncipe) foram já motivo de uma aprofundada explanação, que


propiciou a sua necessária valorização na estrutura comercial
madeirense (2). Aqui ficou demonstrada a importância assumida
por estes contactos humanos e comerciais que, no primeiro caso,
resultaram da necessidade de abastecimento de cereais e, no
segundo, das possibilidades de intervenção no trafico negreiro,
mercê da vinculação as áreas africanas da Costa da Guiné, Mina
e Angola.
A praça comercial madeirense, para além do privilegiado rela-
cionamento com o mundo insular, foi protagonista de outros
destinos no litoral africano ou americano e rosário de ilhas das
Antilhas. No primeiro rumo ressalta a costa marroquina, onde os
portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e
fogo, pelas gentes da ilha (3). No século XVI, com a paulatina
afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, depara-
se a ilha um novo destino e mercado, que pautou o seu relacio-
namento externo nas centurias posteriores. Este novo mundo e
mercado foi para muitos uma esperança de enriquecimento ou a
forma de assegurar a posse de bens fundiários.
Gaspar Frutuoso testemunha este protagonisrno madeirense:
"A ilha da Madeira... que Deus pos no mar ocidental para escala,
refúgio, colheita e remédio dos navegantes, que de Portugal e de
outros regnos vão, e de outros portos e navegações vêm para
diversas partes, além dos que para ela somente navegam, levando-
lhe mercadorias estrangeiras e muito dinheiro para se aproveitar
do retorno que dela levam para suas terras..." (4).
Em qualquer das situações o estreitamente dos contactos
depende, primeiro, da presença de uma comunidade madeirense
que pretende manter o contacto com a terra-mãe e depois das
possibilidades de uma troca favorável. Neste contexto a oferta
de vinho e a sua procura pelos agentes do trafico negreiro, para
enganadoramente oferecerem aos sobas africanos, ou do outro
lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do açiicar, foi
o principal motor deste relacionamento. A situação influenciou
f2b O comércio inter-insular (Madeiro, Açores e Candriar) nos séculos XV e
X V , unchal, 1987.
(3) A. A. SARMEMTO, A Madeira e as pmçm de África. dum caderno de aponta-
mentos, Funchal, 1932: Robert RICARD, "Les places luso-rnarxaines e t les Iles
rrtu$aises de Mdantique", in Anais da Academia Portuguesa de Historh Lisboa,
séne, vol. 11, 1949; António Dias FARINHA, "A Madeira e o Norte de Africa nos
séculos XV e XVI", in Actas do I Coló uio Inrernacional a% História de Madeira
1986, Funchal, vol. I, 1989, páps. 360-379.
(4) Gas ar FRUTUOSO, Livro primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada,
1979,págr. $9- L W.

R. I., 1995, n g 204


A ILHA DA MADELRA E O TRAflCO NEGREIRO

decisivamente a estrutura comercial da ilha, a partir da segunda


metade da s&culo XW. Desde então as conexões comerciais ad- .
quirirarn uma maior complexidade, fazendo com que a Madeira,
através do vinho, se transformasse n u m ponto importante do
circuito de triangulação, que passou a dominar os contactos
entre os portos da costa ocidental africana, americana e as Anti-
ihas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a acção do madei-
rense Francisco Dias, que terá continuidade no século XWI com
Diogo %mandes Branco.

se no facto de que as Cmhrias e os Açores foram os


rotagonistas do comkrcio com o Novo Mundo,
e a Madeira para uma p i @ o excEntrica. Todavia,
dos dados disponíveis na do~urnentqãorevelam a
ontribuindo para isso a facto de a Madeira ter servido
para todas as tentativas de valorização económica do
do. Esta última situação favoreceu uma pronta erni-
e madeirenses, especializados nas diversas tarefas, e
manutenção do relacionamento, ainda que por vezes
S. Além disso a posição saiu reforçada com a oferta
e de produtos demandados pelos novos mercados. E,
nte, deverá juntar-se a activa participação dos mercadores
nestes circuitos comerciais, então trasados para o forne-
to de mão-de-obraescrava ou escoamento do açiicar.
ercado negreiro da costa ocidental africana foi alvo da
dos madeirenses, que cedo se intrometeram no trafico
estino à ilha, ao velho continente e, mais tarde, ao novo
Os madeirenses participaram activamente na,
ecirnento das terras da Sul. Aliás; desde 1470
cionou como u m importante entrepasto para o
comércio africano. Este relacionamento progrediu mercê de uma
Con'unturã favorável aos contactos com estas paragens: em 1483
h
0. anue1 recomendou as maiores facilidades na podo do Fun-
chal para os navios de Cabo Verde; depois, a partir de 1507, foi a
isenção do pagamento de direitos nos produtos exportados de
Cabo Verde para as ilhas e reino. Tudo isto facilitou o acesso do
madeirase ao mercado de escravos. Desk modo a ilha foi um
dos primeiros datino dos escravos resultantes das primevas razias
na costa ocidental africana.
336 ALBERTO VIEIRA

2. A MADEIRA E O MERCADO DE ESCRAVOS

A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida


no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do con-
trolo lusiada, tinha as portas abertas a este vantajoso comércio.
Deste modo a ilha e os madeirenses demarcaram-se nas iniciais
centúrias pelo empenho na aquisição e comércio desta pujante e
promissora mercadoria do espaço atlântico. A ilha chegaram os
primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que con-
tribuiram para o arranque económico do arquipélago.
O comércio entre a ilha e os principais mercados fornecedores
existiu, desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi em
alguns momentos fulgurante. Impossível é estabelecer com exac-
tidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente disponibi-
lidade documental, para os séculos xv a xw, não o permite.
Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e
dos contratos exarados nas actas notariais (5).
Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase
totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula a presença
dos de outras proveniências, como o Brasil, Antilhas e India.Isto
pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades
no trafico e, por outro, das assíduas medidas limitativas ou de
proibição, como sucedeu no Brasil e India. Apenas o mercado
africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos
portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Ai as únicas
medidas foram no sentido de regular o tráfico, como sucedeu
com os contratos e arrendamentos.
O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro,
pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné
e Angola, era a principal fonte de escravos. E ai a Madeira foi
buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios e, depois,
plantar os canaviais. Primeiro forarn os escravos brancos das
Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da Guiné e
Angola.
As condições particulares da presença portuguesa no Norte
de África definiram uma forma peculiar de aquisição. Os escravos
eram sinonimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas
pelejas, em que se envolveram portugueses e mouros. Para os
madeirenses, que defenderam com valentia a soberania portu-
guesa nestas paragens, os escravos mouros surgem ao mesmo
(5) Confronte se nosso estudo sobre Os escravos no arquipélago ah Madeira,
séculos XV a XVII, Funchal, 1993.

R. I., 1995, nQ 204


A ILHG D A MADEIRA E O TRAFICO NEGRERO 337

@mio e testemunho dos seus feitos bélicos. Outra


ição era o corso marítimo e costeiros, prática de
um a arnbas as partes. Idêntica situação ocorreu
os madeirenses também se evidenciaram nas di-
aí travadas, como sucedeu com Trktão Vaz da
ta Africana, além do Bojador, os meios de abasteci-
ravos eram outros: primeiro tivemos os assaltos e
is o trato pacifico com as populações indígenas. Tudo
uma dinâmica diferente para os circuitos de co-
porte. Aqui os cavaleiros e corsários são substitui-
ença dos guanches na Madeira é um facto natural.
contribuíram a proximidade da Madeira e o empenho
eirenses na iniciativa henriquina, Decorridos, apenas, 26
cio do povoamento da Madeira, os madeirenses
e na complexa disputa pela posse das Canárias ao
do senhor, o infante D. Henrique. Tais condições definiram
nça madeirense neste mercado de escravos, surgindo, na
a metade do século xv,algumas incursões de que resultou
risionamento de escravos. Destas referem-se três (1425, 1427,
3 que partiram da Madeira. Mais tarde, com a expedição a
p t a africana de 1445 o madeirense Álvaro de Ornelas fez um
+vi0 a ilha de La Palma onde tomou alguns indígenas que
m d u z i u a Madeira. Aliás, nas inúmeras viagens organizadas por
p u g u e s e s entre 1424 e 1446, surgem escravos que, depois,
h m m vendidos na Madeira ou em Lagos.
A partir de meados do século XV, são assíduas as referências
a escravos canários na ilha da Madeira como pastores e mestres
de engenho (6). A sua presença na ilha deveria ser importante
íImas últimas décadas do século XV. Os documentos clamando por
medidas para acalmar a sua rebeldia são indicio disso. Muitos
deles, fiéis a tradição de pastoreio, mantiveram-se na Madeira
fiéis a este ofício. Estranhamente, nos testamentos do século xv,
não encontramos indicação de qualquer escravo guanche. Para
além dos dois escravos que possuía o capitão Simão Gonçalves
da Câmara, sabe-se que João Esmeralda, na Lombada da Ponta
(6) Lothar SEMENS Liliana BARRETO, "Los esclavos aborígenes canarim en
ia isla de la Madera (14;s-1505)", Anuario de E r t u d k Anrerkai*os, Seviiia, d 20,
1974, ags 11 143 Aqui utilizamos o termo canário para designar os escravos
oriunfos do - ui &o das Canárias, não ob-te esse temono querer signihcar
os habitantexe grm Car~árhMas d ,o FRUTWOSO [4] iivro p,&o, p. 73)
"desta (Gran Canaria tomaram o nome gerd da canários os habitadores daç
b
outras, ainda que tam ém seus particulares nomes".
ALBERTOVIEIRA

do Sol, era também detentor de escravos desta origem, sem


referir o número (7). Cadamosto, na primeira passagem pelo
Funchal em 1455, refere ter visto um canário cristão que se
dedicava a fazer apostas sobre o arremesso de pedras (8). Será
que o Pico Canário (Santana) e o lugar do Canário (Fonta de Sol)
referem-se ao escravo ou ao pássaro tão comum nestes arquipé-
lagos?
Nos anos de 1445 e 1446 estão documentadas diversas expe-
dições às Canárias, que contribuiram para o aumento das presas
de escravos do arquipélago na Madeira. Em 1445 ambos os
capitães da ilha -Tristão Vaz e Gonçalves Zarco- enviaram
caravelas de reconhecimento a costa africana, mas o fracasso da
viagem leyou-os a garantirem a despesa com uma presa em La
Gomera. Alvaro Fernandes fez dois assaltos em La Gomera e em
1446 foi enviado por João Gonçalves Zarco, referindo Zurara a
intenção de realizar alguma presa. A última expedição, bem como
as acima citadas, revelam que os escravos canários adquiriram
u m a dimensão importante na sociedade madeirense pela sua
intervenção na pastoncia e actividade dos engenhos.
Na Madeira, a exemplo das Canárias, eles, nomeadamente, os
fugitivos foram um quebra-cabeças para as autoridades. Foi como
resultado desta situação insubmissa, de livres e escravos, que o
senhorio da Madeira determinou em 1483 (91, uma devassa, se-
guida de ordem de expulsão em 1490 (10). De acordo com este
último documento todos os escravos canarios, oriundos de Tene-
rife, La Palma, Gomera e Gran Canaria, exceptuando-se os mes-
tres de açúcar as mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos
do arquipélago. As reclamações dos funchalenses, sintoma de
que se sentiam prejudicados e de que esta comunidade era
importante, levou o infante a considerar apenas os forros (1 I). A
4 de Dezembro de 1491 houve reunião extraordinária da camara
para deliberar sobre o assunto. A ela assistiram o capitão do
Funchal, Simão Gonçalves da Camara, os oficiais concelhios e
homens bons. Ao todo eram vinte e cinco, destes onze votaram a
favor da saída de todos, nove apenas dos forros e quatro à sua
continuidade na ilha. Das primeiros registese a opinião de João
de Freitas e Martim Lopes, que justificam a opção, por todos os
(7) FRUTOSO (41, pág. 124.
(8) José Manuel GARC~A, Viagens dos descobrimentos, Lisboa, 1983, pag. 86.
(91 nmw,V O ~ .xv, p á g ~122-
. i 34.
(1 0) Zbidem, vol. XVI, págs. 240-244.
(1 1) Zbidem, vol. XVI, págs. 260-265.
A L H A DA MADEIRA E O TRAFICO NEGREIRO

mrmios, livr
& b s o nso e
r escravos, serem ladrões. Todavia para Mendo
assim que se castigava tais atropelos, pois existia
'"dução. Se consideramos, por hipótese, que cada
s pretendia defender os seus interesses, podemos
Wt,oxze dos presentes eram proprietários de escravos
,1503(12) o problema ainda persistia, ordenando o
pw eles fossem expulsos num prazo de dez meses. De
i retrocedeu abrindo uma excepção para aqueles que
de açúcar e dois escravos do capitão -Bastiam
Catarina-, por nunca terem sido pastores (13).
i o isto podemos concluir que as Canárias afirmaram-se
h
xv como o principal fornecedor de escravos, comple-
jorn as presas dos assaltos i costa mamquina e viagens
8.Os canários foram na ilha pastores e mestres de engen-
~onistasdo século xv e xvx relevam o activo protagonismo
aeirenses na manutensão e defesa das praças de Marrocos.
:I al aristocracia da ilha fez delas o meio para o reforço
~
!h*
& õ e sda cavalaria medieval, uma forma de serviqo ao
e fonte grangeadora de títulos e honras. Esta acção foi
,,e, e imprescindível a presença portuguesa, na primeira
$de do século XVI, destacando-se diversas armadas de socorro
p&, Azamor, Mazagão, Santa Cruz de Cabo Gué, Safirn. Aí
FmZncipais ptotagonistas foram os capitães do Funchal e Ma-
%r, bem como a aristocracia da Ribeira Brava e Funchal.
%tadupla intervenção dos madeirenses na conquista e ma-
:n@o das praças marroquinas e portos da costa além do
dor contribuíu para a abertura das rotas de comércio de
avos, daí oriundos. No caso de Marrocos a assídua presença
es na defesa trouxe-lhes algumas contrapartidas favoráveis
termos das presas de guerra. Dai terão resultado os escravos
uriscos que encontrámos. Gaspar Frutuoso refere, quanto a
de S. Miguel (Açores), que em 1522, quando do sismo e
cada de terras que soterraram Vila Franca do Campo, era
w e r o s o o gmpo de escravos mouros que o capitão Rui Gon-
GaIves da Câmara e acompanhantes detinham, quando anos antes
haviam ido a socorrer a Tanger e Arzila (14) IdEntico foi o com-
portamento dos madeirenses que participaram com assiduidade
(12) Ibídem vol. XVII, pags. 440-441.
(13) Ibidem vol. XViI, pags. 450-451.
I'
(14 Francisco de Athayde M. de Faria e M m , Capifãa das DoimfáriaE
(1439- 7661, Lkboa, 1972, 60.
ALBERTO VIEIRA

nestas campanhas. Talvez, por isso mesmo, os rnouriscos surgem


com maior incidência no Funchal e Ribeira Brava, áreas em que
os principais vizinhos mais se distinguiram nas guerras marro-
quinas. Hes situam-se, quase que exclusivamente, no século XVI,
se exceptuarmos um caso isolado do Funchal da década de 1631
a 1640. Poder-se-á entender a situação como corolário das medi-
das restritivas a posse de escravos mouros, estabelecidas pela
coroa a partir 15971 (15).
O comprometimento dos madeirenses com as viagens de ex-
ploração e comércio ao longo da costa africana, e a importância
do porto do Funchal no traçado das rotas, definiram para a iiha
uma posição preferencial no comércio dos escravos negros da
Guiné. Deste modo não seria difícil de afirmar, embora nos
faltem dados, que os primeiros negros da costa ocidentai africana
chegaram a Madeira muito antes de serem alvo da curiosidade
das gentes de Lagos e Lisboa.
A situação da Madeira e dos madeirenses nas navegações
supracitadas, a par da extrema carência de mão-de-obra para o
arroteamento das diversas clareiras abertas na ilha pelos primei-
ros povoadores, geraram, inevitavelmente, o desvio da rota do
comércio de escravos, surgindo o Funchal, em meados do século
xv, como um dos principais mercados receptores. E nenhum
outro local o escravo era tão importante como na Madeira. São
vários indícios de que o comércio de escravos era activo e de
que a Madeira foi, por algum tempo, a piaca giratória para o
negócio com a Europa. Em 1492 (16) a coroa isentava os rnadei-
renses do pagamento da dizima dos escravos que trouxessem a
Lisboa. Esta situação, resultante da petição de Fernando Pó,
revela que havia já na ilha um grupo numeroso de escravos e
que-muitos deles eram daí levados para o reino.
E pouca a informação disponível sobre o assunto, mas o
suficiente para revelar a importância que assumiu na Madeira o
comércio com o litoral africano, onde os escravos deveriam
preencher uma posição dominante. Todavia, ela' impede-nos de
avaliar com segurança o nível deste movimento e a importância
que os mesmos escravos assumiram, no século XV, na sociedade
madeirense. A insistente referência, na documentação da época,
aos negros, óbviamente desta área africana,poderá ser o teste-
(15) Vitorino WGALHAES GODINHO,Os Descobrimentos e a Economia Mu~tdiaL
Lisboa, vol. IV,1983, pág. 191.
(16) A.R.M., CMF., tomo i,fls. 223 vo-225, sentença régia isentando os mora-
dores da Madeira do pagamento de dizima nos escravos que levarem para
Lisboa, para seus eMço, publ. in A.H.IM, vol. XVI, 1973, nQ 161, págs. 269-271.
A LHA DA MADEIRA E O TRAFICONEGREIRO 341

m1: ortãncia. Em 1466 (17) os moradores repre-


ser çada sobre os moços
de ondicionava a presença em favor dos negros
em que temiam «vir algum perigo». Passados
o capitão do Funchal representara ao duque o
tava a ilha, por os vizinhos saírem para Lisboa
africano, «por bem dos rnuytos negros que hai
. disso, já em 1474 (19) a infanta D. Beatriz, em
3es do Funchal e Machico, estabelecera medidas
escravos e forros quanto a posse de casa, para
que vinham sucedendo.
rencia ao envio de um escravo de Cabo Verde
O) no testamento de
cruzados e sete ou
es para lhe trazer
enzo Pita de Gran
e em Cabo Verde a compra a troco de vinho. Manuel

pação activa no trato das Canárias com a Guiné (21).


da existência deste activo comércio de escravos entre
e Cabo Verde temo-la em 1562 (22) e 1567 (23). Nesta
dificuldades sentidas na cultura do açúcar levaram os
a solicitarem junto da coroa, faciiidades para o provi-
escravos na Guiné, com o envio de uma embarcação
efeito. O rei acedeu a esta legítima aspiração dos lavra-
adeirenses e ordenou que, após o terrninus do contrato
darnento com António Gondves e Duarte Leao, isto é,

, t. I, fls. 226-229 vo., 7 de Novembro de 1466. "Apnta-


Fernando, em resposta de outros", in A.HM, XV, 1972,

&dia do Funchal nQ 710,a.308-3118, testamento de 3 de

R L, 1995, nQ 104
ALBERTO VIEIRA

escravos, dos quais cem ficariam no Funchal e cinquenta na


Calheta.
A Madeira não se resumiu apenas a acolher os africanos, pois
na ilha também surgiram escravos de outras áreas, onde os
rnadeirenses tiveram uma activa intervenção, como o Brasil e as
Antilhas. A par disso existia um intenso comércio entre os dois
destinos e a Madeira mercê da constante solicitação do vinho,
que ai se trocava por açúcar, aguardente e farinha. Acresce,
ainda, no caso do Brasil, que a Madeira foi, durante a segunda
metade do século XVI, um importante entreposto para o contra-
bando de açúcar brasileiro, Esta foi uma das formas usadas
pelos mercadores, que se haviam empenhado no comércio do
açUcar madeirense para minorarem os prejuízos da quebra de
produção, motivada pela concorrência do brasileiro. Foi também
na mesma época que comecou a florescer o comércio do Wiho
com as Antilhas. Num e noutro caso está testemunhado a prese-
nça de escravos, sendo de realçar para o século XVE o caso de
Rarbados e no imediato o Brasil. Mas estes tanto poderiam ser
indígenas ou africanos, uma vez que apenas é indicado o local
de origem e nunca a situação étnica.
Das possessões portuguesas no Indico está também referen-
ciada a presença de escravos, ainda que em niimero diminuto.
Esta origem, ainda que fugaz, marca outra rota de envio de
mão-de obra para a Madeira, resultando, de modo especial, da
intervenção e rnadeirenses no processo de ocupagão e conquista.

3. FRANCISCO DIAS E OS NEGREIROS MADEIRENSES

Nos entrepostos do trafico negreiro em Santiago, S. Tomé ou


Angola, a presença de madeirenses era frequente. Eles gozavam
mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escra-
vos para as suas fazendas ou venda aos seus cornpatrícios que
as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contraban-
do, alargando aos seus negócios até ao Brasil ou Antilhas. Muitos,
fascinados pela aventura destas paragens, decidiram-se por uma
intervenção directa, fixando-se em Santiago ou na Costa da
Guiné. Note-se que a situação de vizinho era condição obrigatória
para participar neste trafico negreiro (24). Privados da família e
(24) Confronte-se António CALRURA,Cabo Verde, Lisboa, 1983, págs. 29-53.
DA MADEIRA E O TRAFICO NEGREIRO

um, entre muitos destes, que se lançou a

ela morte numa operação comercial na


o teve tempo para lavrar o testamento, o

se iniciava na Costa h Guhé e estendia-se a


Grande em amplos aposen-
s de boas mobiiias (no testamento refere: «leito e

Joana Lopes, dois escra-


e urna negra com dois
geneàlogia de Francisco
r em Cabo Verde, quer
identificação e o seu
ente expresso no tes-
ãs Isabel e Beatriz
Fernandes. Joham
&bmo tráfico negreiro da Guiné.
Ao apelido Dias associa-se uma tradição de famílias judaicas,
(25) Arquivo Regional da Madeira Misericórdia da F~incbtaknQ 684, h.785-
79W, em anexo
(26) deverá ser o mesmo ue em 1514 se encontrava em Cabo Verde
com memporteim mor da rendi@ aoos cativos. e dificilmente pderá ser identifi-
cado com um Joharn Fernandes, mestre de navia e capiEo, qsia no período de
I513 a 15 15 trouxe da costa da Guiné 56 peças c$ escmm (confronte-se História
Geral de Cabo Verde, corpo documental v01 4 Lisboa. k940).
com ramificações na Madeira, Açores e, mesmo, Cabo Verde.
Em qualquer destes espaços aos indivíduos identificados com
este apelido surge, quase sempre, associada a origem judaica e a
actividade mercantil (27).
Na Madeira são vários os individuos com o apelido Dias
associados ao sector comercial, havendo dois como o nome Fran-
cisco. Destes apenas um, Lopo Dias, é conhecido como judeu (28).
O mesmo se poderá dizer em relação aos Açores, onde encontrá-
mos onze, sendo três judeus (29). Neste grupo poder-se-á incluir
os Dias de S. Miguel, a que se encontra associado o Dr. Gaspar
Frutuoso, considerado filho de um Frutuoso Dias, activo rnerca-
dor da cidade de Ponta Delgada (30).
Em Cabo Verde é também evidente a presença destes, rela-
cionados com a administração e trafico negreiro. Assim surgenos
dois como almoxarifes (Alvaro e Gaspar Dias), outro como con-
tador (Darnião Dias) e dois envolvidos no trafico negreiro (Fran-
cisco e Vicente Dias). Também aqui esta comunidade judaica era
por demais evidente, o que terá levado António Correa de Sousa,
o capitão da cidade da Ribeira Grande, a afirmar que a Guiné
estava uperdida, por cauza desta ilha e guiné estar coalhada de
christãos novas que levam para lá muitas mercadorias, que se
deve ao corregedor que os traz tão favorecidoip (3 1). Por isso não
será dificil enquadrar a figura de Francisco Dias nesta comuni-
dade de cristãos novos das ilhas. Note-se que é sintomático o
facto de o mesmo não fazer no testamento qualquer referencia
aos seus progenitores.
Não é conhecida a data em que Francisco Dias se fixou em
Santiago, todavia é pouco provável que seja o mesmo que em
1513 surge a declarar ao alrnoxarife duas peças, avaliadas em
dez mil réis, que trouxe no navio aconceição~,armado por Rui
(27) Sobre a intervenção dos cristãos-novos neste comércio veja-se Jose
GONÇALVES SALVAWR, OS crista-novos e O cowzércio no Atkãntim rnedional S.
Paulo, 1978,págs. 1-36; idem, Os magnatas dos tráfico negreiro, S. Paulo, 1981.
(28) Confronte-se nosso estudo O com~rciointer-insular. séculos XV e
Funchd, 1987, págs. 167- 168.
(29) bidem pág. 177.
(30) Rodrigo RODRIGUES. "Nutícia biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso", in
Livro prinzeiro das S a a e s da Terra, Ponta Delgada, 1966, págs. XV-CXW;
Confronte-se António Ferreira de SERPA, Suum Quique (...), Porto, 1925; e Maria
Ana M. G. Borges COUTINHO, "Cristãos-Novos nos Açores. O caso de Gaspar Dias",
in Boletim do Instituto Nkrórico da iiha Terceirq vol. XLV, tomo I, Angra do
Heroismo, 1988, pá@. 625-664.
21) Citado por J. de Senna BARCELLOS, Subsúiios paro a Histbrin de Cabo
Ver e e mine 1. parte, Lisboa, 1899,pág. 120.
k U A DA MADERA E O TRAFICO mGRElRO 345

aja coincidência, então, teremos


a fazer comércio nestas paragens,
cisco Dias estava no trafico com a
o os cargos de memposteiro mór
do alrnoxarife um meio mais para reforçar
ctos com a costa africana eram
ompanhia de outros, como Lupo
lves e Manuel Aragão, por inter-
António (35), ou, indirectamente, por ini-
Ihercadores, como sucedia com Diogo Fernandes (36)

Francisco Dias, a exemplo dos demais


e
nde, estivesse integrado na rede de trato
com a Costa da Guiné, como mercador e armador.
e de negocios,
o Verde e Ma-
. Aqui estávamos
uavarn, por exem-
rrpdes. Este João
Alvaro Fernandes,
ando se encontrava em missão comercial
ando os seus negócios entregues ao tio.
co o s contactos com os mercados ne-
sentavam-no Manuel Diogo Cavalheiro
no importante das suas operações era
de alguns madeirenses (João Gonçal-
ias) poderão indiciar um activo trafico negreiro.
produtos de troca consistiam em nmiudezasu e
tónk Geral de Cabo Verde, corpo docadmei~ta[vd 11, págs. 62, 121,
(33) NZo era caso único, o mesmo sucedendo com Almro Dias,
h o x a n f ~veja-se Iva Maria Ataide V. C m t u , "A fazenda real, carn o
~adi~õe r
entre a coroa e os moradores de Santiqo. o exemplo de &varo Dia
~ck!
dmoxarife da Ribeira Grande, na la metade do seculo XW",in Mugma, nQ 5-6,
Fogo, 1990-, págs. 34-36.
(34) Organkmu várias expediçEes à Costa da Guiné, algumas delas de parceria
com Rui Pereira, confronte-se Hisfória Geral de Cabo Verde. corpo documental t.
H, págs. 57-58, 91, 93, 126-127, 163.
(351 Era habito o uso pelos mercadores de escravos ara os auxiliarem nas
operaçoes da costa africana. &ta situaqão resultava das Ecilidades no contacto
com as gentes africanas, erce do conhecimento da língua e da geografia da área.
(36) Parece-nos haver vários com o mesmo nome, sendo um vizinho da
Terceira, que em 1514 armou um navio para as partes da <Guiné.Aquele que nos
interessa era em 1512 escrivão e feitor em sanúago sur do i n h e r s vezes no
tráfico de escravos de dentes de marfim nos anos de 1 5Ea 1516. Confronte-se
História Geral de Cabo Verde. corpo dacunwntat t. JI,pá@. 87, 111, 126-127, 154,
289.
R. L, 1995, nQ 204
panos da produção local ou importados da Bretanha, que se
trocavam por escravos.
O seu testemunho é extenso testemunho da sua vivência de
negreiro em Cabo Verde, não sendo esquecido o mais ínfimo
pormenor das operações comerciais. A partir dos empréstimos,
dívidas e doações é possível reconstituir parte da sua fortuna,
avaliada em mais de três miihões de réis. Ele enuncia 9 devedo-
res, que totalizavam 105$050 réis assim distribuídos:

DEVEDORES OBSERVAÇÕES REIS

Diogo Garcia
Fenião Gomes criado de B. Esteves
Gaspar Soares
Juiz dos orfaos
Lopo Fernandes
Manuel Lopes Madeira
Martirn Albernaz
Pero Vaz corretor
Rui Dias almoxarife
Simão de Oliveira
Salvador Alvarez

TOTAL 135$650

A isto associam-se alguns créditos recentes, resultantes de


operações comerciais em curso na Costa da Guiné, Antilhas e
Madeira, o que denota estar o mesmo em plena actividade quan-
do caiu doente:

NOME LOCALIDADE VALOR

Álvaro Dias S . Domingos 686 pesos


Antonio Gonçalves 35$000 réis
Jerónimo Mendes 25$000
João Gonçalves Madeira im$or>o
Jorge Fernandes Ra Grande 951$000
Mariscai Diogo Cavalheiro Honduras 700 pesos
D A ~ E r S ~ O M E G R E I R O 347

além dos seis escravos ao seu serviço em


declara auttos vinte e quatro, em dívidas
trato na Costa da Guiné e Honduras.

4 WGas 680 pesos


i bixaguo

cunhado 85$000
Madeira 1O$rxn>
22$250
Terceira
AGRACIADOS OBSERVAÇÕES VALOR

Álvaro Fernandes sobrinha e filha de..


Andrk Ferreira Madeira
Antonio Gonçalves tes~amenteiro
Beatnz Álvares irmã
Beatriz hvares filhas de...
Isabel Álvares irmã
João Femandes sobrinho
Florença escrava
Misericórdia Ra Grande
Orfãos (10)
Se da R" Grande ornamentos

TOTAL 2332$000

Francisco Dias morreu no Outono de 1559 deixando um vazio


nas suas operações comerciais. Entregou tudo nas mãos do seu
testamenteiro a quem incumbira de encerrar as suas contas, não
deixava descendente para dar continuidade as suas operações.
Mas outros rnadeirenses seguiram o seu encalço, afirmando-se
com destacados intervenientes do contrabando de escravos para
as colónias castelhanas. No século dezassete as terras ocidentais
galvanizaram todo a atenção, tornando-se no principal pólo de
animação da vida comercial do Novo Mundo. Mais uma vez a
Madeira e as suas gentes são activos protagonistas (37).

(37) Como poderá ser testemunhado nos estudos de Enriqueta VILAVILAR,


His nu-America v e1 comercio de esclavos, Sevilla, 1977, pág. 17% Alberto VIEIRA,
no a,uipéhgo & Madeirq Funchd, 1991, págs. 46-47.
0 s~ c r a m
ILHA DA MADEIRA E O TRAFICO NEGRURO

I APÉNDICEDOCUMENTAL

(JSCO D ~ ZNATURAL
, DE MADEIRA QUE FALECE0 NO CABO

Santiago, 23 octubre 1559


por graça de Deos Rey de Portogal e dos dgarves
maar em f i c a senhor de Guine e da comquysta
rcio dethiopia Arabia Persia e da India pera todolos
ores provedores de minha fazenda e de fazenda dos
es e justiças oficiaes e pessoas de meus Reinos e seus
&ta minha carta testemunhavel com ho t r e h d o de hum
mostrado e outros com dito pertencer. Saude.
r que a mim enviou dizer por sua petição Johã Feriiadez
Francisco Dias escrivão que foy dos comtos e almoxarifado
e ja defuto que o dito Francisco Diaz deixara por seu
m o ha Antonio Gonçalvez morador na ilha da Madeira pera o
ra necesario o treilado do dito testamento do dito Francisco
orne lho mãodase dar nesta carta testemunhavel pera ho
dito Antonio Gonçalvez ha ilha da Madeira no que lhe faria
merce. E vemdo e ao que ele asy pedir me enviou mãdei que
o das fazendas dos defuntos destas ilhas ouvese vista a que
e semdo e temdo respondido rnãodei que me fose (. ..} e
renunciei por meu desernbargo que o testamento se poderia se
e me tornase conta ao que o satysfes asy certo prenunciei de
eilado que pello que mãodei se trelladase aquy todo de verbo
o cujo treliado he ho seguinte.
Nome de Deos Amem e qoantos esta çeduila de testamento
que no anno do nacimento de Noso Senhor Jeshu Christo de mil
@)bentae nove annos aos vinte he dous dias do mes doutubro do dito
%mo nesta ilha de S W Tyago na cydade da Ribeira Grãode nas pousadas
de Francisco Dias escrivão dahoxarifado e morador da dyta cydade
btando hele doente em cama em todo seu siso e entendimento que

r noso Senhor Ihe deu mãodou chamar ha mim Duarte Roiz e me dise e
mgou que fie firese este testamento pera nele declarar sua derradeira
vtítade de comas de sua consiencia o qual testamento he o seguinte.
Dise que se Noso Senhor por servido de o levar desta vyda presemte
desta doença de que hora estava enfermo ele encomendava a sua alma
a noso Senhor Deos que a fez deixa huma cousa (?)e a nosa Senhora a
virgem Santa Maria que ka tenha por bem de rogar hao seu bemto pelo
Noso Senhor Jeshú Christo que a queria levar ha sua sarnta gloria pera
honde foi levada amem.
ALBERTO VIE.iRA

Dise que sendo caso que hele faleça desta enfermidade que era por
bem que seu corpo seja sepultado em Nosa Senhora da Concepção
dentro na igreja ha rnao direita detras da porta e haa por bem que o dia
de seu enterrarnento se ouver tempo e se não ha houtro dia ihe digão hum
oficio de nove iliçõcs ofertado com hum saquo de farinha e hurn quarto
de vinho e ao dito oficio estarao todos os padres que nesta sydade
ouver e os mais que a ele quyserom estar e ser%pagos ha custa de lhe
darem esmolas.
Dise mais que pedia aos senhores do cabido que todos acompanhas-
sem seo corpo ate ser enterrado e lhes mande dar esmolla pello dito
acompanhamento dez cruzados.
M%da que por sua alma se digão cem misas rezadas ha omrra das
cinquo chagas que Noso Senhor recebe0 na arvore da Vera Cruz pellos
pecadores e outras cinquo lia omrra de Nosa Senhora de ComcepçãIo
que queira ser sua a avogada diante de seu fiho por sua allma.
Mãoda que de sua fazenda ha casa de nosa Senhora de Concepção
desta cydade dez cruzados pera ajuda de sua cera.
Mãoda que de ha confraria do Santissimo Sacramento outros dez
cruzados pera ajuda da cera da dita confraria.
Mãroda que se de ha casa da Santa Misericordia desta sydade trinta
d reis e que sejão pagos logo.
Dise hele testador que hele nao he casado nem nunca ho foi e que
a o tem pai nem mai nem filho nem filha nem houtro nenhum herdeiro
pra sy que sua fezemda aja de herdar e por asy ser hele hordena e
despemde sua fazenda desta maneira seguinte.
Dise que hele tem em poder de Jorge Fernandez Alrnoxarife de sisa
dos pannos dallfandega da sydade novecentos mil reais os quoaes ele
testador lhe remeteo por hua letra pasada por Duarte Roiz sobre Pero
Pardo.
Dise mais que erh poder do dito Jorge Fernandez esta mais cinqoenta
e hurn d que hele Ihe remeteo por hua letra pasada por Jacome
Fernandez sobre Jeronimo Cajado.
Dise que Lopo Fernandez irmão do dito Jorge Fernandez lhe deve
por hum asinado seu trinta e tantos mill reais.
Dise que hele tem em poder do Mariscall Diogo Cavalhero vizinho de
desa villa setecentos pezos os quoais ihe trouxe Rodrigo de Sallinas de
Humduras e estes ihe escreve0 dito Maryscall que estão na Casa da
Contratação.
Dise que em p d e r do dito Mariscd estão duzentos e vinte e s e i d
maravedis que lhe remeteo Luis de Mercado de seis peças que daquy
ihe rnaodou na mão de Gramilho.
Dise que tem mays em poder do Maryscall de resto de huum escravo

R.I., 1995, nP 204


A ILHA DA MADEIRA E O TRAFICO NEGREIRO

Perez pilloto vinte e tantos mill reais ou ho que sua


o mais lhe cõprou e gastou em voz e licenças.
em poder do cõtador de Sãto Domingo e de Alvaro
oatro peças (...) por carta que são seiscemtos e oytenta
oail dinheiro pera der ir ha mão do M q s c a l l ou ho
ter carta que estava carregado em seu navio de
dor em Vylla Nova.
em poder de Antonio Gonçalvez tratador trinta e
os quaes lhe mãodou tres cailabrestos e certas varas
hele disse que lhe resta ht dever se cobrara de sua
em que foi Llopo Fernandez em que hele testador
certas miudezas pera se venderem as quoaes avia
erro mãodou que ho que quer que montaase cobre.
em poder de João Gonçalves morador na ilha da Madeira
tantos mil1 reais ou aquiilo que por seu liivro se achar e
tem tres qyntaes e meio de cera e asi lhe remete0 que
Jeronimo Mendez que desta ilha vinte e cinquo mil1 reais
avia de entregar Francisco Afonso e asy emprestou hele
to Francisco Fernandez tres rnill reis que avia de dar ao
onio Gonçalvez e asy ihe tem o dito Antonio Gonçalvez huurn

e que hele tem em Giné o seguinte, no navio de Manoell daragzío


aliabretos que o mestre João Roiz Ieva a seu cargo, e tem mais
tas e sessenta varas de C..) que leva o negro Antonio pera
ha Diogo Fernandez das quoaes a metade he o retorno de
or Alvarez a hele testador lhe deve a outra arnetade e posto que
que ihe deve ha outra metade diz que as duzetas he trinta ihe
prestou Gravyell Nunes que mãodase lhe paguem.
Dise que Diogo Fernãodez do Rio Grãode lhe deve dous escravos
que o dito Antonio seu escravo hade arrecadar.
Dise que Basta0 Visente e Simão Vicente que andão Bastiso Mendez
ihe deve huurn escravo de huma ncomenda que lhe levou a fora outras
que tem por seu rol1 em seu llivro.
Dise elle testador que mãoda he quer e haa por bem que se de a
- duas sobrinhas suas filhas de Beatriz Allvarez sua irmãa mays velha mill
cruzados que sã mãoda quese cobrem delle.
Dise hele testador que hele quer e haa por bem que de sua fazenda
se tomem corenta mil1 reais nesta iiha os quoais serão pera se comprar
em huurn ornamento pera a see desta sydade ou serão pera ajuda da
see nova do feytyo della e sera destas duas cousas quoall ho senhor
bispo dom Francisco quiser e melhor lhe parecer e que os ditos cem
352 ALBERTOVLEIRA

cruzados se gastem porque ho que hele ordenar destas duas cousas hele
testador ha asy por bem.
Dise que hurn rnãocebo por nome Garcia ~ernãodezcriado de Diogo
de Crasto lhe deve trinta cruzados que lhe emprestou mãoda que se
cobrem dele.
Dise que Pero Vaz corretor Ihe devia trinta e nove mill e cento e
cinquo reais como se veraa por seu livro do dito Pero Vaaz mãoda que
se cobrem dele.
Dise que hele não he ilembrado que deva a nenhua possoa cousa
allguma e porem se allgurna pessoa mostrar ailgum certo llyqydo per
que ele deve allgurna çousa mãoda que os pagase.
Dise mais que hele deixa nesta testamento trinta mill reais ha Misen-
cordia desta sydade mãoda que se sejão cem cruzados que são mais dez
miü reais que dhodo vinte rniil reais por sy que seja forra e asy ha
porbem de lhe forrar dous pellos que a dita negra tem que em casa Lhe
nacerão ha macho e ouka fernea.
Dise que devia a Sailvador Alvarez mais dous mill e quoatrocentos
reis mãoda que hos dem.
Dtçe que o Juiz dos orfãos Ihe deve ha cabre que ihe vendeo por
quinze mil1 reais e allem disso lhe deve mays oito mil reais, digo oito
mil1 e qynhentos reais e ele ihe deve ao dito juiz dos orfãos o que
parece por ha mãodado do senhor corretor de frete e quoartos e vinte
nas que pegou a Diogo Nunez que terão de seu sobrinho que deos aja a
nesta parte mgoda que se lhe page.
Dise que hele he encargo ao genro dolirn Pedro e dom miü he tantos
reais e que Diogo Barrosa sabe quem he a mãoda que de sua fazenda
ihe sejão pagos.
Dise que devia ha capitoa da ilha da Madeira vinte e dous mil1 e
duzentos e cinquoenta reais de resto doque lhe devia mãoda que lhos
pagem.
Dise que Ihe devia Ruy Dias dmaxarife dous mil reais Pedro Mon-
teiro da ilha do Fogo.
Dise que lhe devia Gaçpar Soares seis mil e tantos reais manda que
de ha molher de Simão doliveira catorze miil reais silicet seis que ihe
arrecadou dez e João Fdeyro e oyto que lhe hele daa mais.
Mãoda que sua fazenda se partão cem mill reais opor cinqo orfãos
pera ajuda de seus casamentos a vinte mil1 reais cada hum e serzo a
contente de sua irmãa Beatriz Alvarez tomão direito e parecendo seos
Antonio Gonçalvez que por servyço de Noso Senhor lhe dara dos orf%os
e não naturaes da dha da Madeira.
Mãoda que se diga hurn oficio comprido de nove liições na ilha da

R I., 1995, n9 204


w pai e de sua mai ofertado com hum quoarto

escravos hti por nome Antonio que he em


de que em Portugd os quoaes
forros deste dia pera todo sempre poquoanto

m huua escrava sua por nome Florença mãoda


duzentos cada huua pera seos casamentos OS
seja0 dados por m8o de Antonio Gonçalves
amentos sejão alli do contento da
dito Antonio Gonçalvs que lhe pede que a
Senhor e p d a confiança que tem e sua

hde he encargo ha dita sua irmaa Beatriz Alvares em


se os m o tem

ele deiira ha outra sua irmãa por nome Isabeii Alvarez


cruzados os quoais sem asy pera ajuda do casamento de
emedio de sua vyda e pobreza.
Fernandez seu cunhado oytenta
ficamo elygydos da fazenda de
fdeceo os quoaiç oitenta e
ele Ihos tem mãodado dar mmda que se lhos não tem

reais a qual he moradora


da Madeira mãoda que hos de.
que dez d reais e que

Dise hele testador que na ilha Terceira na cydade de Angra vive h


homem omrrado por nome Moraes orne omrrado o q u d seu pai ou
seu arroo £aieceo nata no amo de vinte e oito ou vinte e nove e tinha
outra fazenda em poder de Martim Ailbernaz o quad ja hele testador
veio da ilha Terceira para o arrecadar e lhe parece em sua conciemcia
que Ihe pode ser em encargo ate dez mili reais moda que Ikos dem.
Diçe h& testador que do remanecente de sua fazenda &que se
de has ditas suas duas sobrinhas pera da dita sua irmãaa Beatriz Alvares
a l h do que lhe doixa d cruzados mays qynhetos a cada huua pera
seos casamentos.
354 ALBERTO V E E U

Dise que ha outra sua sobrinha filha daiivaro Fernãodez mzoda que
aliem do que ihe deixa ihe deixe mays duzentos e mai ou com eles o
qyserem partyr.
Dise mays que do dito remanecente da dita sua fazenda pella mesma
maneira maoda que na dita iiha da Madeira se casa mais dez orfãas
ornrradas e naturaes da t e m que o ajão mister e ihes darão duzentos
mili reais, vinte mill reais ha cada huua e sera c6 a propria declaração
que das cinqo o r f sejm
~ de fazer.
Dise que depois de caprydos seus liegados nesta iIha rnaoda que se
fação todo ko remrtnwnte que lhe ficar perde a seu testamenteiro que
abaixa declara que Iha faça ir ha ilha da Madeira a mar0 de Antonio
Gonçalves a quem h& d&a vinte mili reais por seu trabalho.
1
!
Dhe que h l e deixava a huum Andre Ferreira da Madeira doze mili
reis p - aajuda de suas- necesydades.
Dise que todo ho rnays que rernanecer de sua fazenda mãoda que
depois de tudo coprido o que asy doclara e mãoda que se faça querer
haa por bem que pouco ou meryto se dee ha Misericordia da ilha da
Madeira da sydade do FunchaU.
Dise que toda a fazenda que tem em Portogall como tem declarado
neste testamento mãoda que se pase ha ilha da Madeira ha mão do dito
Antonio Gonçalvez pera compryr seu Ilegados e asy tera cuidado de
cobrar tudo aqyllo que neste testamento decliara que ele deve em
Castelia pera se comprir seus Uegados.
Diçe que todo ho movell de seu scilicet, leito e cortinas e cama e
roupa de linho e caixas e toda Uouça e mesas he cadeiras que em sua
casa ouver que se de a Johana Wopez por serviço que ihe tem feito.
&e mays que em poder de Manueii Llopos que ora estaa nesta ilha
tinha huua encomenda que lhe deo de oito mili reais mão da que se
arrecade a dita encomenda.
Dise que Johã Gdzo tem seu escravo que hele deixou forro tem em
sua casa ha menino macho seu filho msoda que seja forro que asy ho
haa por bem.
Dise que Fernaão Gomes criado de Bernddim Estevez lhe deve
d o u mil1 reais que ihe emprestou m o d a que se cobrem deile.
E feito asy o dito testamento como acima e a t m parece todo respeito
por Duarte Roíz em estas cinqo folhas que s%o dez laudas como estas
ele dito Francisco Diaz testador estando em todo em siso e entendimento
comprydo que a Senhor Deos ihe deu adoentado corpo deytado em haa
cama suas pousadas nesta dita cydade de São Tyago por hele testador
foy dito a mim escripvam ao diamte nomeado em presença das teste-
munhas hão diãote escritas que hele fazia seu testamenteiro ao dito
Duarte Roiz em esta ilha porqoanto hele testador não tem herdeiro
DA MADEIXA E O T M C O NEGREIRO 355

aja de herdar na fazenda e Ihe pede he roga


$i dito r amor de Noso Senhor ele qeyra aceptar
$e t cumpra este dito testamento inteiramente
ele 1Ia sua quoando Deos for servido o levar e
10 €
verdade me requere0 a mim tabeliam ihe acabase
ento e lho aprouvase e pede e roga a todalias
Senhor e eclesiasticaç lhe cumprão he fação com-
to testamento como se nele contem porque hele asi
outorgou e aqui asinou e eu escrivão de mou oficio
ne testamento seu oje vinte he tres dias
mill e qynhentos e cinquoenta e nove anos e em fé
rovaçao encerramento deste testamento escrevi.
que for30 presentes Johã Marquez e Diogo Llopez
Graviel Nunes e Vicente Femodez e Pero Llopez e
e moradores nesta cydade e Gaspar
morador em viila da Praia e eu Gaspar Fernandez
das notas e judicial1 por ERey Noso Senhor nesta
de e seus termos que este estrornento
inei de meu publico sinaii
% Marquez Graviel Nunez

dado asy o dito testamento como dito he por o dito Johão


me foi pedido Lhe mãodase daar o treilado asy como pedido
ue lho mãodei pasar e mando que lhe seja dado em todo he
a fee e credito como se fora o proprio e originali do qual
o quoall fica em poder do escrivão que esta for e se lhe
e vai acresentado como ho
o curnprio asy dada nesta sydade de São Tiago do Cabo verde aos
he quatro dias do mes de Fevereiro Ell Rey Noso Senhor o
rnãodou pelb doutor Luys Martinez evangelho doseu desembarguo que
ha estas partes veio a prover nas cousas da justiça e fazenda corregedor
com allçada provedor e contador de sua fazenda e povoador dos Resy-
dos capellas e espritaes e provedor das fazendas dos defuntos em todas
' estas ilhas do Cabo Verde a fez anno do nacimento de Noso Senhor
Jeshu Christo de rnill e quynhentos e sessenta amos e vai treslladado
em dez folhas com esta pregou deste e dos autos que se fizerao por que
dele se pedio quatrocentos reais e de asinar vinte reais.
Doutor Lluis Martinez evangelho
Açertado comigo tabeliam Pero Roub%o.Concertado com ho proprio
Amador dalipoym pagou de sello corenta reais Amador dallpoim hhão
Fernãodez.
ALBERTOVIEIRA

Foi comsertado este treiiado com houtro que esta em carta


cestemunhavel que veyo de Cabo Verde que ficou em poder de Antonyo
Guomsalvez por mim com ho tabailyam abaixo asynado não faça duvida
no asertado em antreiiynha que diz haos duas porque se fez por verdade
oje vinte e trez dias do mes dabriil de mil quynhentos e sesenta anos
Pero Llopez trabaliyarn ho escrevy.

Manuel1 Diaz Pero Lopez


ARM. Misericordia do Funchal
leg. 684, fols. 785-790v.

The paper reveab the imprtant exteiqr to ivhich the isiand of Madeira sustained
frade relarions in grains and bhck slaves ivirh both neighboring archipelagos and
farther uiva? ones since the 15th century. The evdence to this effect undermines
the received, ivell-knaivn tkesiç thar Madeira had only trade relaíwns with the
Oid World until rhe 17th centta?, and ivith the Netv WorU from thar time
opiwards.

R. I., 1995, nQ204

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