Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Construção Sociológica Da Raça No Brasil
A Construção Sociológica Da Raça No Brasil
Raça no Brasil1
Sérgio Costa
Resumo
Partindo da constatação de que as adscrições raciais no Brasil im-
plicam desigualdades sociais que podem ser reunidas de sorte a definir
dois grupos populacionais polares, brancos e não brancos, alguns es tu-
dos raciais adotam o conceito (não biológico) de raça como categoria so-
ciológica e política ampla. Válida e mesmo imprescindível no âmbito do
estudo das desigualdades raciais, a categoria raça, quando transformada
em instrumento geral de análise e desiderato normativo, leva a uma com-
preensão incompleta da formação nacional brasileira, a uma visão obje-
tivista das relações sociais e à redução das identidades sociais a sua di-
mensão político-instrumental.
Palavras-chave: desigualdades raciais, identidade cultural, reconheci-
mento social no Brasil
Abstract
The Sociological Construction of Race in Brazil
Establishing positively that race records in Brazil lead up to social
inequalities that might permit a definition of two basic population
groups – whites and non-whites –, some racial studies adopt the concept
(non-biological) of race as a general sociological and political category.
The race category, although essential for the studies of race inequalities,
when transformed in a general instrument of analysis and normative
desideratum, leads to an incomplete comprehension of the Brazilian
national formation, to an objectivist vision of the race relations and to a
re duc ti on of the so ci al iden ti ti es to its po li ti cal-instrumental
dimension.
Keywords: race inequalities, cultural identity, social acknowledgement
in Brazil, race categories.
Résumé
La Construction Sociologique du Concept de Race au Brésil
Après avoir constaté que les façons dont la notion de race a été
construite au Brésil impliquent des inégalités sociales qui peuvent être
assemblées de sorte à définir deux grands groupes de populations, Blancs
et non-Blancs, quelques études sur les races ont adopté le concept (non
pas sous l’aspect biologique) de race comme large catégorie sociale et
politique. Bien qu’utile, voire incontournable, en ce qui concerne
l’étude des inégalités raciales, la catégorie race – lorqu’elle est prise en
tant qu’instrument général d’analyse voué à dicter des normes – mène à
une compréhension incomplète de la formation nationale brésilienne, à
une vision objectiviste des rapports sociaux ainsi qu’à une réduction des
identités sociales à leur dimension politique et instrumentale.
Mots-clé: inégalités raciales, identité culturelle, reconnaissance sociale
au Brésil
36
Nacionalidade e Raça
[...] espaço de representação demarcado por três pólos raciais – o bran co,
o negro e o índio –, se distanciando cuidadosamente de cada um deles
[...], [atualmente] o branco de classe média busca sua segunda nacionali-
dade na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão – ou cria uma xenofo-
bia regional racializada; o negro constrói uma África imaginária para tra-
çar sua as cen dên cia, ou bus ca os Esta dos Uni dos como meca
afro-americana; os índios recriam a sua tribo de origem. (Guimarães,
2000a: 28)
Conclusões
Notas
1. Além do parecer anô nimo da EAA, este arti go se beneficiou dos comentários de Wi-
vian Weller, Jessé Souza, Myrian Santos, Omar Ribeiro Tho maz, Ursula Ferdinand,
Renate Rott, Sérgio Luis Silva, Luis Edmun do Moraes e Andre as Hofbauer. Registro
meu agradecimento aos colegas, sem fazê-los naturalmente co-responsáveis por
eventuais incorreções cons tantes da presen te versão.
2. Mesmo que não possa ser adequadamente desenvolvida nos li mites desse ar tigo, re -
gistre-se que a idéia de reconhecimento social aqui utilizada remete, fun da men tal-
55
mente, a Charles Tay lor (1994) e Axel Honneth (1994a, 1994b) e diz respeito, no
plano epistemológico, ao lugar de ancoramento social de uma pers pectiva teóri ca
crítica (tal argumento encontra-se melhor de senvolvido em Costa & Werle, 2000).
3. Concebida de tal ma neira, “raça histórica” corresponde às definições de etnia que se
tornaram clássicas, como aquelas reunidas por Hut chinson & Smith (1996). Como
mostrar-se-á mais adiante, a indistinção entre etnia e raça leva a uma superposição
entre cultura e tra ços fenotípicos, analítica e politicamente problemática.
4. A comparação de Senkman (1997:133ss) entre o varguismo e o peronismo é es cla re-
cedora para mostrar como a ló gica iden titária em ambos os casos não “bus cava ex clu-
ir, mas integrar todos os agrega dos ao povo para redefinir a nova nação”. Assim, se in -
cluem, no caso brasileiro, na nova identidade nacional, “as massas urbanas de cor”,
tratadas até a República Velha, pela oli garquias ca feeiras, como “um Outro no in-
terior da nação” (p. 133).
5. Não se está afirman do ob viamente que o patriarcado foi inventado no Barsil nos
anos 1930. No âmbito do Estado Novo, contu do, a ên fase conferida à pátria e à fa mí-
lia (ver Carneiro, 1990) reconstrói, sob uma chave conservadora, as fun ções fe mi ni-
nas tradicionais, neutralizando, ideologicamente, as transformações es trutura is mo -
dernizantes que, des de o sé culo XIX, redesenhavam o lu gar de inserção da mu lher na
estrutura social brasileira (ver Costa, E. V., 2000, cap. 10). Com efeito, con forme
mostra Le vine (1998:120 s), ainda que as mulheres ga nhem o direito ao voto – de
resto, pouco valioso sob a di tadura – e vejam crescer significativamente no pe río do
sua participação no mercado de tra balho, sobretudo no setor têxtil, o Estado Novo é
marcado pela existência de po líticas sis temáticas voltadas para a promoção do papel
da mulher como mãe e dona-de-casa.
6. Carece de plausibilidade a subsun ção das adscrições regionais no âm bito das adscri-
ções raciais con tra os afro-descendentes operada por Guimarães (1999:55), ao afir -
mar que baianos e nordestinos passaram a ser “uma codificação neutra para os ‘pre-
tos’, ‘mulatos’ ou ‘pardos’ das classes subalternas, transformados, assim, nos alvos
principais do ‘novo racismo’ brasileiro”. Ainda que possam partilhar de uma ads cri-
ção negativa que pode, em de termindas situações, alcan çar intensidade equivalente,
negros e nordestinos seguramente não são sim bolicamente constru í dos como ca te-
gorias sími les e substituíveis no repertório racista brasileiro. Pelo menos des de o fi nal
do Século XIX, constrói-se a imagem do “Norte”, depo is do Nordeste, como região
inepta para o progresso e re fratária à modernização e é, sob tal chave e não na polari -
zação bran co/negro, que deve ser buscada a ex plicação para o racis mo de que se tor -
nou víti ma o nordestino no Sul e Sudeste do País (ver Albuquerque Jr., 1999:68ss.)
7. Lembre-se aqui os dados da abrangente pesquisa do Datafolha (Turra & Venturi,
1995), segundo os qua is qua se 90% dos entrevistados admitem que “os brancos têm
preconceito de cor em relação aos negros” no Brasil (p. 96). A relativização da im por -
tância do mito da de mocracia racial é constatada de formas diversas. Hasenbalg
(1995:367ss.) mostra que há uma “clara percepção de que as pes soas rece bem tra ta-
mento di ferenciado confor me sua cor”, indicando que a “ideologia ra cial” que se
mantém é aquela que re ifica a ausência de “confronto racial”. De forma similar, Han -
chard (1994:43) nota o declínio do mito da democracia racial, en tendendo que o que
permanece intocado é o mito da “excepcionalidade racial” brasileira. Cons tata-se, no
56
último caso, contu do, a insistência em subsumir uma ide o lo gia na cional abrangente
num ideário racial, enquanto o mais razoável pa rece ser precisamente o con trário, ou
seja, entender-se o componente ra cial – o banimento discursivo das clas si fi ca ções ra -
ciais – como parte de uma ideologia na cional.
8. Conforme os dados da PNAD de 1997, no ní vel de es colaridade em que as di fe ren ças
de rendimento mais fa vorecem os “amarelos” – 4 a 7 anos de es colaridade –, estes
apresentam uma renda média mensal em torno de R$800,00 contra R$350,00 dos
brancos, R$250,00 para pardos e tam bém para pretos, e R$200,00 para indígenas
(cf. Schwartzman, 1999:95).
9. A rigor, nos es tudos sobre de sigualdade ra cial, os grupos de mográficos “amarelo” e
“indígena” não são incluídos nas com parações, o que é compreensível quando se tra-
ta da comparação e da simu la ção es tatísticas. Quando se trata, contu do, da utili za ção
de raça como categoria ana lítica geral, como fazem os estudos raciais recentes, os pro-
blemas aqui levantados ganham relevância.
10. Roland (2000) e Soares (2000) mostram, a partir de perspectivas distintas, as im pli-
cações impor tan tes para as lutas an ti-racistas decorrentes do duplo des fa vo re ci men-
to das mulheres negras.
11. Winant (1994:138ss) busca resolver o problema de não reduzir raça a uma categoria
estrutural, introduzindo a perspectiva da “formação racial”, segundo a qual raça
compreende tanto o plano micro da “psiquê individual e dos relacionamentos en tre
indivíduos relações individuais [quanto] o nível ma cro das identidades coletivas e es -
truturas sociais” (ibi dem:139). A su gestão do autor, con tudo, pa rece não solucionar a
dificuldade analítica de compatibilizar a relevância da raça como orde na do ra das
oportunidades pesso a is e a multiplicidade de fatores que estruturam os re la ci ona -
mentos e iden tidades sociais.
12. A convicção de que a po larização racial das relações sociais combaterá o ra cis mo re ve-
la, implicitamente, uma con cepção do poder e da po lítica se melhante àquela que
Castoriadis (1995) identificou no marxismo. Ou seja, a política é trata da, na ima -
gem emprestada da Fí sica, como um cam po ve torial, cuja resultante ex pressa a “cor-
relação de forças” existente, daí a necessidade de fortalecimento do suposto pólo frá -
gil do campo de forças, de sorte a fazer a his tória se mover numa direção de ter mi na-
da. Tal concep ção desconsidera que, nas democracias contemporâneas, a polí ti ca
tornou-se, antes, o campo de disputas em tor no da “construção de espaços sociais de
reconhecimento” (Melucci, 1996:219). Aqui, os atores sociais não correspondem a
vetores num campo de forças que se anulam reciprocamente; ao contrário, o poder
destes é ex presso pela legitimidade pú blica para “nomear” as experiências co le tivas,
vale dizer, de finir os significados compartilhados socialmente. Vis to sob esta óti ca, o
eixo da luta anti-racista no Brasil passa a apoiar-se – como pare ce ser a estratégia de
boa parte do movimento negro – na obliteração da legitimidade ima nente de que se
co brem as prá ti cas ra cis tas e não mais na po la ri za ção das re la ções bran-
cos/não-brancos propugnada por alguns estudos raciais.
13. Não se trata aqui da adesão à tese de Reis de que se tome a democracia racial não
como mito, mas como meta a ser alcançada. Conforme se mostrou em outro con tex-
to (Costa & Werle, 2000), a persistência cultural de hierarquias históricas, como o
“branqueamento”, justifica po líticas voltadas para a promoção e valorização de for -
57
Bibliografia
58
FELIX, João B. (2000), Chic Show e Zimbawe e a Cons trução da Identidade nos Bai les
“Black” Paulistanos. Dissertação de Mestrado em Antropologia, São Paulo, USP,
192 pp.
GIESEN, Bernhard (1999). Kollektive Identitäten. Die Intellektuellen und die Nation 2.
Frankfurt/M.
GILROY, Paul (2000). Against Race. Imagining Political Culture Beyond the Color Line.
Cambridge, Mass., Harvard University Press.
GREVE, Martin (2000), “Kreuzberg und Unkapani. Skizzen zur Musik türkis cher Ju-
gedlicher in De utschland“. In I. Attia e H. Mar burger, Alltag und Lebenswelten von
Migrantenjugendlichen. Frankfurt/M., IKO, S. 189-212.
GUIMARÃES, Antô nio S. (2001). “Nacionalidade e Novas Identidades Raciais no Bra -
sil: Uma Hipótese de Tra ba lho”. In J. Souza (org.), Democracia Hoje. Brasília, Ed.
UnB.
(2000). “Pre fácio”. In A. S. Guimarães & L. Huntley (orgs.), Tirando a Máscara.
Ensaios sobre o Racismo no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, pp. 11-30.
(1999). Racismo e Anti-Racismo no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. 34.
(1995). “Ra cismo e Anti-Racismo no Bra sil”. Novos Estudos, nº 43.
HANCHARD, Michael (1996). “Americanos, Brasileiros e a Cor da Espécie Humana.
Uma Resposta a Peter Fry”. Revista da USP, nº 31, pp. 164-175
(1994). Orpheus and the Power. Princeton, Princeton University Press.
HASENBALG, Car los A. (1995). “Entre os Mitos e os Fatos: Racis mo e Relações Ra ciais
no Bra sil”. Da dos, vol. 38, nº 2, pp. 355-374.
(1992). “Negros e Mestiços: Vida, Cotidiano e Movimento” (en tre vis ta). In N. do
V. Silva & C. A. Ha sen balg, Relações Ra ci a is no Brasil Con temporâneo. Rio de Ja ne i-
ro, Rio Fundo, pp. 149-164.
(1979). Discriminação e Desigualdades Ra ci a is no Brasil. Rio de Janeiro, Graal.
& SILVA, Nelson do V. (1988). Estrutura So cial, Mobilidade e Raça. Rio de Janeiro,
Iuperj/Vértice.
HOFBAUER, Andreas (1999). Uma História de “Branqueamento” ou o “Negro” em
Questão. Tese de doutorado em Antropologia, São Paulo, FFLCH/USP, 375 pp.
HONNETH, Axel (1994). Kampf um Anerkennung. Frankfurt, Suhrkamp.
(1994). “The So cial Dyna mics of Disrespect: On the Loca ti on of Critical Theory
To day”. Constellations, vol. I, nº 2.
HUTCHINSON, John & SMITH, Anthony (1994). Ethnicity. Oxford, Oxford Uni-
versity Press.
KRIEGER, Heinrich (1940). Die Rassenfrage in Bra si li en. Archiv für Rassen- und Ge-
sellschaftsbiologie. Vol. 34, no. 1, pp. 9-56.
LESSER, Jeffrey (1999). Negociating National Identity. Immigrants, Mi norities and the
Struggle for Ethnicity in Brazil. Durham and London, Duke University Press.
LEVINE, Robert M. (1998). Father of the Poor? Vargas and his Era. Cambridge, Cam -
bridge University Press.
LOVELL, Peggy A. (1995). “Raça e Gênero no Bra sil”. Lua Nova, nº 35, pp. 39-71.
MAIO, Mar cos C. (2000). “O Projeto UNESCO: Ciên cias Sociais e ‘Credo Racial Bra -
sileiro’”. Revista da USP, nº 46.
59
60
TURRA, Cleusa & VENTURI, Gustavo (orgs.) (1995). Racismo Cordi al. São Paulo,
Editora Ática.
TWINE, Francis (1998). Ra cism in a Racial Democracy. The Maintenance of Whi te Supre-
macy in Brazil. New Brunswick, Rutgers University Press.
WADE, Peter (1997). Race and Ethnicity in Latin America. Lon don, Plu to.
WIEVIORKA, Michel (1999). “Contextualizing French Multiculturalism and Ra -
cism”. Theory, Culture and Society, vol 17, nº 1.
WINANT, Howard (1994). Racial Con ditions. Min neapolis, University of Minne so ta
Press.
YOUNG, I. (1995). “Together in Difference: Transforming the Logic of Group Poli ti cal
Con flict”. In W. Kymlicka (ed.), The Rights of Minority Cultures. New York, Oxford
University Press, pp. 155-176.
61