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TENTATIVAS CONTRA A
VIDA DELA

DE MARTIN CRIMP (1997)

TRADUÇÃO DE DANIELE AVILA (2010)


VERSÃO DAS LETRAS DAS MÚSICAS POR FELIPE VIDAL
TENTATIVAS CONTRA A VIDA DELA

17 SITUAÇÕES PARA O TEATRO

Martin Crimp

“Ninguém terá vivenciado diretamente o curso real de tais


acontecimentos, mas todos terão recebido uma imagem deles.”
Baudrillard
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TENTATIVAS CONTRA A VIDA DELA

17 SITUAÇÕES PARA O TEATRO

1. TODAS AS MENSAGENS FORAM APAGADAS

2. TRAGÉDIA DE AMOR E IDEOLOGIA

3. FÉ EM NÓS MESMOS

4. A INQUILINA

5. A CÂMERA TE AMA

6. MÃE E PAI

7. A NOVA ANNY

8. FÍSICA DE PARTÍCULAS

9. A AMEAÇA DO TERRORISMO™ INTERNACIONAL

10. MEIO ENGRAÇADO

11. SEM TÍTULO (100 PALAVRAS)

12. ESTRANHAMENTE!

13. COMUNICANDO-SE COM ALIENÍGENAS

14. THE GIRL NEXT DOOR

15. A DECLARAÇÃO

16. PORNOGRAFIA

17. PREVIAMENTE CONGELADO


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Esta é uma peça para um grupo de atores cuja


composição deve refletir a composição do mundo além
do teatro.

Que cada situação em palavras – os diálogos – se


desvele contra um mundo específico – um desenho –
que melhor exponha sua ironia.

Um travessão no início de uma fala indica uma mudança


de ator. Se não houver travessão depois uma pausa, isso
significa que o mesmo personagem continua falando.

Uma barra (/) marca o ponto de interrupção na


sobreposição do diálogo.
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1. TODAS AS MENSAGENS FORAM APAGADAS

beep

Anne. (pausa) Sou eu. (pausa) Eu estou ligando de


Viena. (pausa) Não, desculpa, eu estou ligando de…
Praga. (pausa) É Praga. (pausa) Eu tenho quase
certeza que é Praga. Enfim, olha… (respira) Anne…
(respira) Eu quero pedir desculpas. (respira) Eu sei o
quanto eu te machuquei, minha muito muito querida,
e… (respira) Ah. Olha. Olha, tem alguém na outra linha,
Anne. Realmente, realmente — Eu sinto muito — mas
eu tenho mesmo, mesmo, que atender essa ligação. Eu
te ligo de volta.

“Segunda-feira, 8:53 a.m.”

beep

Anne. Oi. Escuta. Eu só tenho um instante. Você está


aí? Não? OK. Olha. É isso. O que a gente tava
discutindo? Você lembra? Então o que você acha, o
que você acha, o que você acha se, vamos supor,
vamos supor, vamos apenas supor… que as árvores
têm nomes? OK? Isso mesmo — as árvores. Você acha
— eu sei — você acha que eu sou maluco(a). Mas
vamos só aceitar por um momento, tá legal, que as
árvores têm nomes? Então e se, e se, e se… esta fosse
a árvore dela. Você entende o que eu estou dizendo?
Anne? Se a gente de repente, o quê, assumisse, que a
árvore é dela. Merda. Desculpa. Olha, eu tenho que
embarcar agora. Mas pensa nisso. As árvores têm
nomes. E uma delas é a árvore dela. Eu tenho que
correr.
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“Segunda-feira 9:35 a.m.”

beep

[falado em, por exemplo, tcheco] Você sabe quem está


falando. Você deixa o dispositivo numa picape nos
fundos do prédio. Você vai pegar a picape com o Barry.
O Barry vai entrar em contato com você para dar mais
instruções.

“Segunda-feira 11:51 a.m.”

beep

…Ah. Alô? É a mãe…

“Segunda-feira 1:05 p.m.”

beep

…Anne? Alô? É a mãe. (pausa) Recebi o seu cartão


postal. (pausa) É muito bonito. (pausa) E a foto. É você
mesmo? (pausa) Fico feliz que você esteja fazendo
amigos e tal. (pausa) O negócio, Anne, é que nós não
temos dinheiro para mandar para você. Eu falei com o
seu pai e ele disse que não, de jeito nenhum. (pausa)
(Ouvimos a voz de um homem ao fundo: “Nem mais um
centavo. Deixa isso bem claro.” A mãe responde: “Eu
estou dizendo para ela, eu estou dizendo para ela.”
Depois de volta ao telefone.)
Eu lamento muito, Anne querida, mas nós não podemos
mais continuar com isso.
(Voz de homem de novo: “Se você não disser para ela,
eu mesmo digo.”)
Olha, eu tenho que ir, querida. O seu pai está te
mandando um beijo. Tá? Deus te abençoe.
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“Segunda-feira 1:06 p.m.”

beep

Alô, aqui é a Sally da Coopers. Só pra dizer que o


veículo está no showroom agora e está pronto para a
senhora vir buscar. Obrigada.

“Segunda-feira 1:32 p.m.”

beep

A gente sabe onde você mora sua vaca filha da puta.


Você tá praticamente morta. As merdas que você fez. A
gente não esquece. (pausa) Você vai se arrepender de
ter nascido.

“Segunda-feira 2:20 p.m.”

beep

Anne? Você está aí? Atende o telefone, Annie. (pausa)


OK… São dez e quinze aqui em Minnesota e nós só
estamos ligando para dizer: nossos pensamentos e
nossas orações estão com você, Annie. E nós te
amamos muito.

“Segunda-feira 4:13 p.m.”

beep

Anne? Brilhante. É comovente. É atual. É perturbador.


É engraçado. É sexy. É profundamente sério. É
divertido. É esclarecedor. É enigmático. É obscuro.
Vamos nos encontrar. Me liga.

“Segunda-feira 10:21 p.m.”

beep
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Anne. Boa noite. Deixa eu te dizer o que eu vou fazer


com você. Primeiro você vai chupar o meu pau. Depois
eu vou te foder por trás. Com uma garrafa quebrada. E
isso é só pra começar. Dona bucetinha.

“Segunda-feira. 10:30 p.m.”

beep

Anne?
Atende o telefone. (pausa) Eu sei que você está aí.
(pausa) Não adianta se esconder, Anne. Você está se
escondendo de quê? (pausa) Do mundo? Você está se
escondendo do mundo, Anne? Vamos lá. Cresce. Vê se
cresce, Anne, e atende o telefone. (pausa)
Então o que significa isso? Um pedido de ajuda? Não
vá me dizer que isso é um pedido de ajuda. Por que o
que exatamente eu tenho que fazer com o seu pedido
de ajuda? Hein? (pausa)
E se você estiver aí deitada, Anne, morta? Hein?
É essa a situação que eu tenho que imaginar?
Um cadáver apodrecendo ao lado da secretária
eletrônica? (uma leve risada) (pausa)
O quê, que as larvas das moscas estão ouvindo os seus
recados?
Ou que o seu prédio foi destruído.
Ou que a sua cidade foi destruída.
Os aeroportos e as lojas de sapatos. Os teatros e os
cafés chiques com letreiros de neon que surgiram nos
armazéns desativados à beira dos canais desativados.
Hein?
(uma leve risada) Então só as larvas dos insetos estão
ouvindo os seus recados, escutando o que eu digo,
Anne, enquanto se enfiam pelos seus restos.
(pausa)
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Eu estou ficando mórbido(a), Anne.


Eu acho que você deveria atender o telefone e me fazer
sorrir, me fazer sorrir como você fazia antes, Anne.
Eu sei que você está aí.
Eu sei que você está aí, Anne. E eu sei que se eu for
paciente, você vai responder.
(pausa)
Você vai responder, não vai Anne?

“Terça-feira 12:19 a.m.

Esta foi a última mensagem.


Para salvar todas as mensagens, tecle 1.

(pausa)

Todas as mensagens foram apagadas.”


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2. TRAGÉDIA DE AMOR E IDEOLOGIA

Verão. Um rio. Europa. Estes são os ingredientes


básicos.

E um rio que atravessa.

Um rio, exatamente, que atravessa uma grande cidade


européia e um casal à margem deste rio. Estes são os
ingredientes básicos.

A mulher?

Jovem e bonita, naturalmente.

O homem?

Mais velho, taciturno, sensível, naturalmente.

Um homem naturalmente sensível, mas, no entanto, um


homem com poder e autoridade que sabe que isso está
errado.

Ambos sabem que isso está errado.

Ambos sabem que isso está errado, mas eles não


conseguem / se conter. Exatamente.

Eles estão fazendo amor no apartamento do homem.

Fazendo o quê?

Fazendo amor. Fazendo amor no apartamento do


homem. Um apartamento de luxo, naturalmente, com
vista para a cidade inteira. Estes são os / ingredientes
básicos.
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Um panorama da cidade inteira. A charmosa geometria


dos telhados. Os arranha-céus e as chaminés antigas.
E por trás das antenas de TV, estão os monumentos da
cultura: o Duomo de Florença e o arco em La Défense,
a Coluna de Nelson e o Portão de Brandenburgo / para
mencionar apenas quatro.

A mulher — Anne — grita. Seus cabelos dourados


caem em cascata, por assim dizer, sobre a beira da
cama. Ela agarra o lençol. Os nós dos dedos ficam
brancos. Há lágrimas / em seus olhos.

O apartamento é lindamente mobiliado.

Bom, é claro que o apartamento seria lindamente


mobiliado. É claro que teria o pé direito alto e janelas
altas e deve datar de muito provavelmente deve datar
do final do século XIX quando a alta na especulação
imobiliária coincidiu com as aspirações que a burguesia
liberal tinha de criar esquemas arquitetônicos
monumentais tais como o que eu estou pensando agora
eu estou pensando na Ringstrasse de Viena que tanto
impressionou o jovem Adolf Hitler quando ele esteve
uma vez / diante da Ópera.

Ou como aquelas vias triplas de Paris / os boulevards.

Ou uma das grandes, exatamente, vias triplas de Paris/


os boulevards.

E enquanto isso como você ia dizendo seus cabelos


dourados caem em cascata por assim dizer sobre a
beira da cama. Ela agarra o lençol. Os nós dos dedos
ficam brancos e as pupilas dilatam, enquanto ele—

Vamos dizer que ele grunhe.


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Grunhe?

Vamos dizer que ele grunhe, sim, mas sutilmente.


Vamos dizer que é um grunhido sensível de um homem
atraente com poder e autoridade, não se trata, por
exemplo, do grunhido suíno e vulgar de um mecânico
deitado num espaço confinado tentando soltar uma
porca com uma chave maior e mais pesada que o
necessário.

De jeito nenhum.

De jeito nenhum, é o grunhido imperioso de um homem


que toma café da manhã em um continente e almoça
em outro, que viaja de primeira classe com um
guardanapo de linho e uma extensa carta de vinhos.

Esse tipo de homem.

Esse tipo de grunhido.

Esse tipo de iluminação.

Que tipo de iluminação?

O tipo de iluminação que invade. Invade pelas janelas


altas transformando os corpos deles numa espécie de
massa dourada.

Uma massa que se contorce.

A luz, a massa dourada, estes são os / ingredientes


essenciais.

Mas agora uma expressão surge em seu rosto.

Uma o quê?
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Uma expressão.

Uma dúvida.

Uma expressão de dúvida, sim, ótimo, surge no rosto da


Anne.

Até nesse momento.

Até nesse momento na / intensidade da paixão.

Até nesse momento na intensidade da paixão uma


espécie de sombra surge em seu rosto.

Uma sombra premonitória.

Premonitória?

Uma sombra premonitória, sim, surge no rosto dela.

Isso é uma palavra?

Isso é uma palavra?

Pausa.

Bom, sim, é claro que premonitória / é uma palavra.

Mais tarde. Noite.

As luzes da cidade à noite. Fios de luz suspensos como


estrelas ao longo do cais e das molduras das pontes.
Estranhas e tediosas luzes vermelhas piscando nos
topos dos arranha-céus e das emissoras de TV. O
homem ao telefone. Sua voz que agora fala mais baixo.
Seu olhar de relance, incomodado.

A Anne acorda na grande cama de madeira, escuta


aquela voz masculina, lânguida, no quarto ao lado. O
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peculiar relógio Luís XIV ao seu lado marca três horas


através de um mini mini pastorzinho nu, que toca um
mini mini sininho dourado, preso entre os dentes de
um lobo esmaltado, sem dúvida uma referência a algum
mito ancestral muito conhecido pela nobreza francesa
do século XVII, mas que agora está completamente
apagado do conhecimento humano.

Ting ting ting.

Pausa.

Três da manhã. A Anne acorda. Ouve uma voz. Acende


o cigarro. Aparece na porta. Diálogo.

Quem era, ela pergunta.

Nada, ele diz.

Quem era, porra, ela diz. Fim do diálogo.

E agora ela está com raiva—exatamente: fim do


diálogo—e agora ela está com raiva. Ela está com raiva
porque ela sabe exatamente quem era.

Os mentores políticos dele/ estão telefonando.

Os mentores políticos dele, isso mesmo, estão


telefonando. Como sempre telefonaram. Os mesmos
mentores políticos que ela odeia com cada fibra, por
assim dizer, do seu ser. Os mesmos homens e
mulheres, que ela, Anne, no seu idealismo juvenil,
responsabiliza pela fatal injustiça desse mundo.

Os líderes que, na sua ingênua e apaixonada opinião,


destruíram tudo o que ela preza em nome (a) dos
negócios e (b) do laissez-faire.
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Em nome (a) da racionalização (b) do empreendimento.

Em nome do (a) assim chamado individualismo e (b) do


assim chamado arbítrio.

Os ingredientes básicos, em outras palavras, de toda


uma tragédia.

Toda uma, exatamente, toda uma tragédia, se desvela


diante dos nossos olhos em Paris, Praga, Veneza ou
Berlin, para mencionar apenas quatro, enquanto a lua,
enorme e laranja, nasce sobre as cúpulas
renascentistas, palácios barrocos, zoológicos e
estações de trem do século XIX e blocos modernistas
de habitações sociais que exemplificam o dito ―a forma
segue a função‖.

A forma segue a função.

Toda esta tragédia / de amor.

Toda esta tragédia de ideologia e amor.

Ela apaga o cigarro.

Ela começa a gritar.

Ela começa a bater nele com os punhos.

Ela começa a mordê-lo com os dentes.

Ela começa a chutá-lo com seus tolos pés descalços.

Ela bate e bate / e bate.

Ela bate e bate. E o peculiar relógio que sobrevivera a


duas revoluções e três séculos é espatifado no chão de
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taco liso e cuidadosamente encerado, enquanto ela


bate, morde e chuta.

O mini mini pastorzinho e o mini mini sininho


desaparecem—bem lembrado—desaparecem para
sempre debaixo da / cama de madeira.

Até que ela para para respirar. Digamos que ela


finalmente, digamos, ela para, neste momento, para
respirar.

A mulher?

A mulher, Anne, sim, para para respirar.

Pausa.

E ele?

Abaixa a cabeça.

Sim.

Olha para ela.

Sim.

Pega o seu rosto coberto de lágrimas / o seu rosto entre


as mãos.

Pega o rosto de Anne, que está coberto de lágrimas,


entre as mãos como um precioso cálice.

Ou como uma bola de vôlei.

Como um precioso cálice de prata ou, como você disse,


como uma bola de vôlei antes do saque, ele pega o
rosto da Anne, que está coberto de lágrimas e de raiva,
entre as mãos.
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Ele ainda a ama.

Com todas as suas diferenças ideológicas—isso


mesmo—ele ainda a ama. Fala.

Um dia, Anne, ele diz, você vai entender o meu mundo.


Um dia, Anne, você vai entender que nós temos que
pagar por todas as coisas, temos que pagar até mesmo
pelos nossos ideais.

Fim da fala.

Durante a qual ele afasta os fios de cabelo molhados


dos lábios dela e lhe dá um beijo. Estes são os /
ingredientes básicos.

Ele a beija e faz com que ela se deite na cama. Ou ela


faz isso com ele. Melhor: ela faz com que ele se deite
na cama, tamanha é a sua confusão emocional,
tamanho é o seu apetite sexual, tamanha é a sua
inabilidade para distinguir o que é certo e o que é errado
nesta imensa paixão que a consome neste apartamento
de pé-direito alto, com a grande cama de madeira, o
chão de taco encerado, o grande piano Pleyel, de 1923,
sem o qual ela talvez tivesse pensado em algum
possível meio de proteção contra gravidez, no caso da
Anne, ou no caso dos dois, contra doenças
sexualmente transmissíveis, incluindo o chamado vírus
da ‗AIDS‘, mais corretamente conhecido como a
síndrome da imunodeficiência ou / HIV para resumir.

O retrato de uma jovem, desenho outrora atribuído a


David, mas agora atribuído à sua contemporânea
feminina Constance Charpentier, e um cinzeiro amarelo
triangular com a inscrição Ricard, com três guimbas de
cigarro e um bocado de cinza fina e acinzentada.
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Pausa.

Uma grande tragédia, em outras palavras / de amor.

Uma grande—exatamente—tragédia de ideologia / e


amor.

Estes são os ingredientes básicos.


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3. FÉ EM NÓS MESMOS

Silêncio

A totalidade do passado está lá, no rosto dela. Está


escrito lá, como uma história. A história da família dela.
A história da própria terra—esta terra onde a família
dela morou durante várias gerações.

Silêncio

É um vale.

É um vale —sim—bem no meio das colinas.

É um vale no meio das colinas onde os modos


tradicionais foram preservados durante várias gerações.
E lá existem árvores frutíferas.

Cada criança que nasce nesse vale tem uma árvore


frutífera que foi plantada em seu nome. Na verdade,
eles têm uma espécie de cerimônia.

É formal essa—exatamente—cerimônia.

Uma espécie de cerimônia formal acontece no vilarejo.


E, geração após geração, essa cerimônia formal de
nomeação acontece no nascimento de cada criança.

As árvores em outras palavras têm nomes.

Elas têm nomes assim como os habitantes têm nomes.


Existe a pessoa e existe a árvore. Existe Anya, a
mulher, e existe Anya, a árvore.
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As árvores têm nomes assim como as lâminas, as


lâminas da relva. Porque a vida é tão preciosa, a vida é
tão sentida, as coisas são tão vivas, tão sagradas, que
até as lâminas da relva têm nomes. É algo que nós mal
conseguimos compreender.

Nós mal conseguimos compreender essa vida tão tão


sagrada, essa noção de completude está além do
nosso entendimento, essa noção de assombro nos
torna humildes.

Mas agora, a devastação.

O quê?

A devastação. A harmonia das gerações / foi destruída.

Exatamente. Esse mundo fechado, seguro, foi


dilacerado.

A harmonia das gerações foi destruída. As mulheres


foram violentadas. As criancinhas foram estripadas.

As mulheres foram violentadas, e depois estripadas. Os


homens se desfizeram, uns aos outros, em pedaços.

Irmão matou irmão.

Primo assassinou primo. Irmão violentou irmã.

Irmão violentou—sim—irmã, e agora os cães estão


comendo os restos.

A gasolina que era usada como combustível para os


antigos tratores e para gerar energia elétrica para os
antigos televisores preto e branco foi usada para atear
fogo às pessoas.
21

Sim.

Primeiro para queimar as pessoas vivas, e agora, por


razões de saúde, para queimar os cadáveres.

Ateando fogo às pessoas vivas. O vapor frio da


gasolina, depois a rajada quente das chamas. As
pessoas que estavam morrendo queimadas correm em
chamas por entre as árvores frutíferas que têm os seus
nomes, chamuscando as folhas, contorcendo-se nas
lâminas da relva, enquanto os soldados acompanham
rindo.

Os soldados estão rindo apesar de essas pessoas


serem os seus próprios primos, seus próprios pais,
suas/ mães e pais.

Queimando seus próprios pais no pomar sagrado.


Queimando-os vivos e rindo.

Ou enterrando-os vivos. Enterrando-os vivos até o


pescoço no solo fértil, e depois abrindo os seus crânios
com uma pá. Eles têm um nome para isso.

‗A flor‘

Eles chamam, isso mesmo, ‗a flor‘.

Silêncio

E tudo isso está lá, no rosto dela.

Tudo isso o quê?

Está tudo lá. Está tudo lá no rosto dela.


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No rosto da Anya. Não precisamos de palavras. Ela


está além das palavras. A sua boca, na verdade a sua
boca estremece, mas não sai nenhuma palavra.

A inadequação das palavras.

A terrível, sim, inadequação das palavras, enquanto ela


permanece ao lado de uma árvore coberta de delicadas
pétalas brancas.

Uma cereja.

Uma cerejeira coberta de delicadas pétalas brancas,


este é o momento…

Sim.

…o momento em que nos damos conta de que esta é a


árvore dela.

Esta é a sua própria árvore, a árvore da Anya.

A árvore da Anya, que foi plantada o quê? Quarenta?


cinquenta? anos atrás no dia em que ela nasceu. O
buraco que o seu pai cavou, as raízes que a sua mãe
espalhou e regou e que foi cultivada pela família que
agora jaz morta.

A sua própria árvore.

O ar ainda cheira a gasolina.

É primavera.

Silêncio

Panorama de todo o vale.

De todo aquele vale na primavera.


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As árvores. A grama.

Uma abelha se aninha no cálice de uma flor.

E agora ela fala.

Sim. Porque ela precisa. Porque as palavras vêem


enquanto ela está ali ao lado da sua árvore.

A árvore lhe dá força, a força/ para falar.

Ela aponta para alguns troncos carbonizados. Esta, ela


diz, era a minha casa. Meus filhos estavam escondidos
embaixo da cama. Mataram os dois. Primeiro o menino.
Depois a menina. Puseram fogo no cabelo da minha
filha. Eu ainda não sei porque eles puseram fogo no
cabelo da minha filha. Estalava como uma pilha de
gravetos.

E então ela sucumbe.

Quem? A Anya?

Ela grita. Ela sucumbe e arranha o rosto como se fosse


uma coisa / de tragédia antiga.

Eu acho que não. Eu acho que ela não grita não. Eu


acho que ela não sucumbe e ela não arranha o rosto
como se fosse uma coisa de tragédia antiga. Eu acho
que os olhos dela resplandecem. Eu acho que ela vai
na direção da câmera e começa a xingar. Seus
assassinos filhos da puta, seus merdas, ela diz. Seus
estupradores, tarados escrotos. Estupradores das
próprias irmãs, assassinos de criancinhas, babacas sem
noção, matadores de merda. Eu vou cuspir nos seus
túmulos e nos túmulos das mães de vocês e no túmulo
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dos pais de vocês e vou rogar uma praga em todas as


suas gerações futuras.

Ela está com raiva.

Ela está com muita raiva.

Silêncio

Ela está com muita raiva, mas ela tem esse direito.

Ela tem—muito obviamente—o direito de estar com


raiva. Tudo destruído. Uma forma de vida destruída.
Uma relação / com uma natureza destruída.

E é por isso que nós simpatizamos com ela

É claro que nós simpatizamos com ela.

E não se trata apenas de simpatia, mas de empatia.


Nós temos empatia por ela…

Sim.

…porque o vale da Anya é o nosso vale. As árvores da


Anya são as nossas árvores. A família da Anya é a
família a que todos nós pertencemos.

Então isto é uma coisa universal / obviamente.

É uma coisa universal que nós reconhecemos,


estranhamente, nós reconhecemos a nós mesmos. O
nosso próprio mundo. A nossa própria dor.

A nossa própria raiva.

Uma coisa universal que estranhamente… o quê? o


quê? o quê?
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Que estranhamente restaura.

Que estranhamente restaura—eu acho isso—sim—a


nossa fé em nós mesmos.
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4. A INQUILINA

Ela é o tipo de pessoa que acredita naquela frase que


vem na nota fiscal.

―Agradecemos a preferência‖

Ela não vai além dessa frase…

Nunca.

…e nem fala com o motorista.

Pausa

Quando chega uma carta endereçada ―à inquilina‖, ela


primeiro prepara…

O quê? Uma xícara de chá?

Sim. E então ela se senta à mesa da cozinha para abrir


a carta. Ela abre e lê a carta com a mesma atenção que
ela daria a uma carta do seu próprio filho, que está
morando nos Estados Unidos.

Canadá, na verdade.

Ela é o tipo de pessoa que acredita que os números da


sorte / foram sorteados

Toronto.

Especialmente para ela. Que, de certa forma é claro,


foram. E se ela responder no prazo de dez dias, ela
recebe um presente surpresa. / Toronto? É mesmo?
27

Não é um presente surpresa, não. Ela tem que marcar o


quadradinho, é múltipla escolha, ela escolhe o presente
que ela quer receber: Quem sabe um prático rádio-
relógio, uma camêra, ou um kit de / mini ferramentas.

Um kit de mini ferramentas ou uma prática câmera


portátil.

Ela é não-fumante.

Silêncio

Ela é definitivamente não-fumante. Embora eu ache


possível dizer que ela pode ocasionalmente aceitar
cigarros de outras pessoas.

Exatamente. Nas festas.


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5. A CÂMERA TE AMA

A câmera te ama
A câmera te ama
A câmera te ama

Nós temos que simpatizar


Nós temos que empatizar
Nós temos que anunciar
Nós temos que realizar
Nós somos os caras bons
Nós somos os caras bons

Nós precisamos ver que real isso pode ser


Não é só atuação
exige uma sensação
maior que a atuação
Falamos de realidade
Falamos de humanidade
Falamos de um plano para ser
SOTERRADOS pela absoluta totalidade
e profundamente possível tridimensionalidade
TRIDIMENSIONALIDADE
de todas as coisas que a Anne pode ser
TODAS AS COISAS QUE A ANNE PODE SER

O que é Hécuba pra ela ou ela pra Hécuba?


Uma megastar
UMA MEGASTAR

A câmera te ama
A câmera te ama
A câmera te ama
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Nós temos que fantasiar


Nós temos que improvisar
Nós temos que sintetizar
Nós temos que anunciar que
Nós somos os caras bons
Nós somos os caras bons

Temos que ir
para o ambiente mais sexy
E não é só escrita
isso excita
mais que a escrita
Falamos de atualidade
Falamos (de) contemporaneidade
Dizemos que queremos na verdade
ser SOTERRADOS pela absoluta quantidade
SIM PELA ABSOLUTA QUANTIDADE
de todas as coisas que a Anne pode ser
TODAS AS COISAS QUE A ANNE PODE SER

O que é Hécuba pra ela ou ela pra Hécuba?


Uma megastar
(Uma megastar? Porra é isso que vai ficar)

A câmera te ama
A câmera te ama
A câmera te ama
a câmera a câmera
a câmera a câmera
A CÂMERA TE AMA
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6. MÃE E PAI

Não é a primeira tentativa dela.

Não deveria ser a primeira tentativa. Ela tentou em


várias épocas. Mesmo antes dela sair de casa / ela
tenta, não tenta?

Ela tenta várias vezes ao longo da vida dela.

Nós vemos as outras épocas.

Nós vivemos nessas outras épocas. Nós vivemos nessa


época agonizante.

Silêncio

Nós vemos fotos, não vemos?

Nós vemos um grande número de fotos.

Nós vemos essas fotos de perto, tão de perto que dá


pra ver os pontinhos. Não é engraçado, como tudo em
determinado ponto se transforma nesses pontinhos—
até o sorriso dela.

É um sorriso feliz. É um sorriso bem autêntico.

Ah sim, é genuinamente autêntico o / sorriso sim.

Porque ninguém está forçando ela a sorrir, não é?

Ninguém está forçando ela a fazer nada. A ideia da


Annie, da pequena Annie sendo forçada a fazer alguma
coisa é francamente absurda.
31

Sem dúvida.

Silêncio.
No silêncio:

―Ela gosta de receber convidados para as festas


porque ela ama encontrar as pessoas.
Ela vai apresentar você aos outros convidados
para garantir que todos estejam se divertindo.‖

Absolutamente—e isso tem que ficar claro—


absolutamente, está fora de questão que ela faça o que
ela não / quer fazer.

Tudo em determinado ponto se transforma nesses


pontinhos—olhos, cabelo, sorriso.

Sorrisos do mundo todo.

Pessoas do mundo todo. Pessoas do mundo todo


tiraram fotos com a Annie. Sorrindo com a Annie.
Personagens, eu suponho, que simplesmente entraram
e / saíram da vida dela.

E depois saíram de novo.

E depois—sim—saíram fora outra vez.

Pornográficas, na verdade, algumas delas.

Pornográficas? Ah... Dificilmente.

Bem pornográficas, na verdade, algumas/ daquelas


fotos.
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É pouco provável que eu diga que elas são


pornográficas, são apenas espirituosas. O que elas têm
é o tipo de espirituosidade que se espera de uma garota
que está sempre sorrindo, sempre sorrindo, sempre
atuante, sempre encontrando alguém, sempre se
despedindo de alguém, sempre numa sala de
embarque ou numa estação rodoviária ou esperando na
esteira de um aeroporto ou dormindo no corredor / de
um trem.

Sempre na beira da estrada em algum lugar com aquela


grande bolsa vermelha dela. Em algum lugar na África,
vamos supor, com aquela grande bolsa vermelha de
lona que ela ganhou da Mãe e o do Pai quando ela fez
dezesseis anos. Em algum lugar da América do Sul.

Em algum lugar da Europa com aquela grande/ bolsa


vermelha.

Europa, África, América do Sul, é só escolher. Brasil.

Cuba. Brasil. Romênia. / Nigéria.

Romênia. Cuba. Flórida. Austrália.

É isso. Austrália. Nova Zelândia. As / Filipinas.

Marrocos. Argélia. Tunísia. O deserto do Saara.

O deserto de Kalahari, os contrafortes do Himalaia.

Os contrafortes dos Alpes.

Isso mesmo—o como é que chama—

O Piemonte.
33

O Piemonte. Sempre nos contrafortes de algum lugar


com aquela grande bolsa vermelha dela.

Porque, vamos confessar, ela está preocupada.

Mas é claro que ela está preocupada. Dá pra ver que


ela está preocupada. É só você olhar pra ela, por
exemplo, naquelas fotos, a forma como ela se coloca
lado a lado com os pobres. Ela não está com medo,
naquelas fotos, de estar lado a lado com os pobres.

Fotos dela nas favelas com os favelados.

Fotos dela nas montanhas com os montanheses


sorridentes.

Fotos dela—exatamente— com os montanheses


sorridentes cuja terra sofreu erosão, simplesmente
arrancados—fhuuu!—pelo vento.

E em depósitos de lixo.

Fotos da Annie em depósitos de lixo ao lado de


pessoas sorridentes que de fato vivem nos lixões, que
de fato vivem lá no meio do lixo / com seus filhos.

Famílias inteiras de ciganos ou sei lá o quê parecem


estar vivendo, isso mesmo, lá no meio do lixo.

Isso não se trata—e talvez seja nesse sentido que essa


tentativa se diferencie daquelas anteriores—isso não se
trata de um pedido de ajuda.

Está bastante claro que a decisão dela / está tomada.

Isso não é um pedido de ajuda. É muito importante


estabelecer isso – vocês não concordam? – pra
34

começar. É muito importante estabelecer que ninguém


poderia ter ajudado / ela àquela altura.

Ninguém poderia ter ajudado ela—nem a Mãe—nem o


Pai dela—e certamente nenhum dos seus supostos /
amigos.

Ela não ia / querer ajuda.

Ajuda é a última coisa que ela ia querer.

Silêncio
No silêncio:

―Ela gosta de passar bastante tempo com os convidados,


e ela se sente muito satisfeita
quando todo o mundo está se divertindo.
Ela diz que as pessoas se abraçam muito na estação
na hora de ir embora, com os viajantes
acenando e dizendo
‗ate a próxima‘ da janela do trem.‖

Risos por toda a passagem seguinte:

Tem umas coisas estranhas que ela diz…

Tem umas coisas estranhas que ela dizia para a Mãe o


Pai quando ela era criança: ―Eu me sinto uma tela.‖

―Eu me sinto uma tela.‖

Ela está lá deitada, não é, com aquele tubo no bracinho


fininho dela, terrivelmente pálida, mais branca até que /
o travesseiro.

―Como uma tela de TV‖ ela diz ―onde tudo parece vivo e
verdadeiro pela frente, mas por trás só tem poeira e um
monte de fios.‖
35

―Poeira e um monte de fios.‖ A imaginação dela…

Ela diz que ela não é uma personagem de verdade, que


ela não é uma personagem de verdade como as
personagens dos livros ou da TV, mas uma falta de
personagem, uma ausência como ela diz, não é, de
personagem.

Uma ausência de personagem, seja lá o que isso quer


dizer…

Depois ela quer ser terrorista, não é?

Isso mesmo. Numa noite ela desce até a cozinha com


aqueles grandes olhos intensos que ela tem e diz pra
Mãe e pro Pai que ela quer ser terrorista.

A cara deles…

Ela quer ter um quartinho só pra ela e uma arma e uma


lista de nomes.

―Alvos‖

Uma lista—isso mesmo—dos tais alvos e fotos deles.


Ela quer matar um por semana, depois voltar pro
quartinho dela e tomar chá Earl Grey.

Isso mesmo—tem que ser Earl Grey—e tem que ser um


por semana.

Coitados da Mãe e do Pai, estão / horrorizados.

Eles simplesmente não sabem como lidar com isso.

Eles nunca compraram chá Earl Grey em toda a vida


deles.
36

Ela quer agir como se fosse uma máquina, não é


mesmo.

Agir? Ela quer ser uma máquina. Às vezes ela passa


vários dias, vários dias inteiros fingindo ser uma
televisão/ ou um carro.

Um carro ou uma televisão, uma pistola automática ou


uma máquina de costura com pedal.

Silêncio
No silêncio:

―Ela é ótima anfitriã para solteiros,


e adora levar as pessoas
para fazer visitas guiadas.‖

Máquina de costura… As coisas que ela inventa…

Então, é claro, ela sai pelo mundo. Num minuto ela está
na África, no outro na América do Sul ou na Europa.

Em algum lugar na Europa.

Europa, África, América do Sul, é só escolher. Brasil.

Cuba. Brasil. Romênia. / Nigéria.

Romênia. Cuba. Flórida. Austrália.

Isso mesmo. Austrália. Nova Zelândia. As / Filipinas.

Marrocos. Argélia. Tunísia. O deserto do Saara.

O deserto do Kalahari. Os contrafortes do Himalaia.

Os contrafortes dos Alpes.

Isso mesmo—como é que se chama—


37

O / Piemonte.

O Piemonte, O Piemonte, O Piemonte, é claro. Sim.


Sempre nos contrafotes de algum lugar com aquela
grande bolsa vermelha que ela tem.

E o mesmo cabelo. Não esquece do mesmo cabelo /


até a cintura.

O mesmo cabelo comprido até a cintura aos quarenta


anos como ela usava quando tinha vinte—como uma
menininha ainda, não é, em algumas / daquelas fotos.

Até aos quarenta ela ainda parece uma menina e se


veste como uma menina com metade da idade dela.

Mas o que é realmente determinante é que a bolsa está


cheia de pedras.

O que é fascinante, isso mesmo, é que no final das


contas a bolsa está cheia / de pedras.

As pedras são para manter ela no chão, não importa o


quanto ela se agite, e as alças da bolsa ficam
amarradas no tornozelo dela.

Não resta dúvidas, em outras palavras, de que se trata


de um / pedido de ajuda.

Em outras palavras ela planejou isso tudo, ela planejou


essa agitação, ela sabia disso, da mesma forma que ela
sabia que a bolsa continuaria puxando ela para baixo a
despeito de qualquer coisa. Então não há, em nenhum
momento, nenhuma dúvida quanto ao fracasso da
tentativa. Não há, em nenhum momento, nenhuma
dúvida quanto a qualquer pessoa ter a capacidade de
intervir—nem a Mãe e nem o Pai com certeza.
38

Certamente nem a Mãe nem o Pai—e certamente


nenhum dos tais amigos dela.

Se é que se pode dizer que eles são / amigos.

Bom, é óbvio que não se pode dizer que eles são


amigos.

Silêncio
No silêncio:

―Ela gosta de frequentar aulas de ginástica,


de teatro amador, e de participar
de cabarés animados.
Ela também faz parte da
Associação da Digressão do bairro em que ela mora.‖

E nós ficamos tentados a pensar—não é mesmo—que


talvez a bolsa estivesse sempre cheia de pedras. Desde
o momento mesmo em que ela saiu de casa, da casa
da Mãe e do Pai no aniversário de dezesseis anos dela.
Não ficamos?

Pausa

Então, não ficamos?

Não ficamos o quê?

Tentados. Tentados a imaginar que talvez a bolsa


estivesse sempre cheia de pedras desde aquele
primeiro dia. Do momento em que ela saiu da casa da
Mãe do Pai e fechou o portão da casa da Mãe do Pai e
pegou o ônibus. Que a bolsa vermelha nas fotos está
cheia de pedras. Que nos caminhões e nos trens, e nas
mulas em que ela costumava subir as montanhas—e
nos lixões e nas favelas e nas colinas e nas praças
39

pavimentadas da Renascença, a bolsa está cheia de


pedras. E nos campos de refugiados, onde ela posou, a
pedido deles, perto dos moribundos, assim como ela
posou a princípio sem dar um pio ao lado das piscinas
olímpicas de milionários barrigudos, a bolsa está cheia
de pedras. E nas esteiras dos aeroportos.
Particularmente nas esteiras dos aeroportos às duas da
manhã esperando, com passageiros de outros fusos
horários, de outras zonas de guerra, que a maquinária
comece a funcionar e que as malas apareçam nas
cortinas de tiras pretas de borracha, na esteira preta de
borracha—as sacolas e as malas de couro, as
Samsonites e as caixas de papelão fechadas com fita
adesiva—a bolsa, aquela bolsa vermelha dela está
cheia de pedras.

Nós não podemos ter certeza.

Bom, é claro que nós não podemos ter certeza. Mas


pelo que sabemos dela, pelo que vemos dela, não é /
impossível.

Nós não podemos ter certeza de que a bolsa está cheia


de pedras. Ela pode estar cheia de roupas velhas,
drogas… / qualquer coisa.

Por que não? Porque nós não podemos ter certeza?


Por que nós não podemos dizer de uma vez por todas
que a bolsa está cheia de pedras, e que as pedras
explicam o sorriso?

As pedras. É verdade, explicariam o sorriso.

As pedras definitivamente explicariam o sorriso, pelo


que nós vimos dela. Porque existe um lado engraçado
nisso.
40

Um o quê?

Um lado. Um lado engraçado.

Ah sim. Existe definitivamente um lado engraçado.

Silêncio
No silêncio:

―Ann acha que às vezes existe um problema


com o termo ‗solteiro‘, uma vez que é sempre mal-
compreendido.
Ela gostaria de enfatizar que estas viagens
não são eventos para formar casais, mas para juntar
pessoas que têm a ver umas com as outras
em ambientes informais e amigáveis,
permitindo que eles aproveitem um fim de semana juntos,
e se despeçam como amigos.‖
41

7. A NOVA ANNY

Cada fala é dita primeiro em algum idioma africano ou


do leste europeu.* Uma tradução na língua local é dita
logo depois.

[The car twists along the Mediterranean road]

O carro desliza por uma estrada mediterrânea.

[It hugs the bends between the picturesque hillside


villages.]

Faz curvas entre os vilarejos pitorescos nas colinas.

[The sun gleams on the aerodynamic body.]

O sol brilha no seu corpo aerodinâmico.

[The aerodynamic body of the new Anny.]

O corpo aerodinâmico da nova Anny.

[We see the new Anny snake along between the red-
tiled Mediterranean rooftops.]

Vemos a nova Anny serpentear entre os telhados de


terracota do mediterrâneo.

[Fast]

*
Na primeira produção, servo-croata
42

Veloz

[Sleek]

Lustrosa

[Free]

Livre

[We understand that the Anny comes with electric


windows as standard.]

Sabemos que a Anny vem com janelas elétricas de


fábrica.

[We understand that the Anny comes with driver‘s and


passenger‘s airbag as standard.]

Sabemos que a Anny vem com airbag para o motorista


e para o carona de fábrica.

[We understand that all the things other manufacturers


offer as extras…]

Sabemos que todas as coisas que os outros fabricantes


oferecem como extras…

[…are offered on the Anny as standard.]

…são oferecidas na Anny de fábrica.


43

[Air-conditioning.]

Ar-condicionado.

[Engine-immobiliser]

Imobilizador de motor.

[And a mobile telephone.]

E um telefone celular.

[We understand that our children will be safe and happy


in the back seat of the Anny just as the adults will be
relaxed and confident at the wheel.]

Sabemos que os nossos filhos vão estar seguros e


felizes no banco de trás da Anny assim como os adultos
vão estar descontraídos e confiantes ao volante.

[Happy.]

Felizes.

[Secure]

Seguros

[In control]

No controle.
44

[The Anny skims the white beaches of the world as


easily as she parks outside the halogen-lit shoe-shops
of the great cities.]

A Anny desliza pelas alvas praias do mundo com a


mesma facilidade com que estaciona na porta das lojas
de sapato com fachadas de neon nas grandes cidades.

[When we arrive at our destination in the Anny…]

Sempre que chegarmos ao nosso destino com a


Anny…

[…we will always be embraced by good-looking men


and good-looking women.]

…seremos abraçados por homens bonitos e por


mulheres bonitas.

[We will not be betrayed.]

Não seremos traídos.

[Tortured.]

Torturados.

[Or shot.]

Nem baleados.
45

[The two litre Anny achieves excellent mileage in the


simulated urban cycle…]

Com dois litros, a Anny alcança uma excelente


quilometragem no circuito urbano simulado…

[…and is also available in diesel]

…e também está disponível a diesel.

[As a testimony to our ongoing concern for a cleaner,


greener, environment…]

Como uma prova da nossa crescente preocupação com


um meio-ambiente mais limpo, mais verde…

[…there are no filthy gypsies in the Anny.]

…você não vai encontrar ciganos imundos na Anny.

[Not in the Anny nor in the sun-filled landscapes through


which the Anny drives.]

Nem na Anny nem nas paisagens ensolaradas pelas


quais a Anny dirige.

[No one in the Anny lies cheats or steals]

Ninguém mente, trai ou rouba na Anny.

[Dirty bastards.]
46

Babacas escrotos.

[Gangsters]

Mafiosos.

[Motherfuckers]

Filhos da puta.

[There is no room in the Anny for the degenerate


races…]

Não tem lugar na Anny para raças degeneradas…

[…for the mentally deficient…]

…para deficientes mentais…

[…or the physically imperfect.]

…nem para os fisicamente imperfeitos.

[No room for gypsies, Arabs, Jews, Turks, Kurds, Blacks


or any of that human scum.]

Não tem lugar para ciganos, árabes, judeus, turcos,


curdos, pretos nem pra nenhuma escória humana.

[We understand that zero per cent finance is available]


47

Sabemos que o financiamento a sem juros está


disponível.

[But hurry]

Mas apresse-se.

[Since this is a limited offer.]

Já que esta é uma promoção limitada.

[The Anny crosses the Brooklyn Bridge.]

A Anny cruza a ponte do Brooklyn.

[The Anny crosses the Sahara.]

A Anny cruza o deserto do Saara.

[The Anny streaks through the vineyards of Bordeaux.]

A Anny corta os vinhedos de Bordeaux.

[The Anny streaks at dawn through North African


villages…]

A Anny corta o crepúsculo através dos vilarejos do norte


da África…

[Fast.]
48

Veloz.

[Sleek.]

Lustrosa.

[Free.]

Livre.

[…where the veiled women can only gaze with wonder


at the immaculate rust-protected paintwork with its five
year warranty.]

…onde as mulheres cobertas com os seus véus podem


apenas contemplar admiradas a pintura imaculada a
prova de ferrugem com os seus cinco anos de garantia.

[No one ever packs the Anny with explosives to achieve


a political objective.]

Ninguém nunca vai encher a Anny de explosivos para


atingir um objetivo político.

[No man ever rapes and kills a woman in the Anny


before tipping her body out at a red light along with the
contents of the ashtray.]

Nenhum homem nunca estupra e mata uma mulher na


Anny para depois jogar o corpo dela para fora do carro
em um sinal vermelho junto com o lixo do cinzeiro.
49

[No one is ever dragged from the Anny by an enraged


mob.]

Ninguém nunca é arrancado da Anny por uma multidão


enfurecida.

[No child‘s pelvis is ever shattered by a chance collision


with the new Anny.]

Nenhuma criança tem o seu quadril estilhaçado por


uma eventual colisão com a nova Anny.

[The back seat is never made slippery by sperm.]

O banco de trás nunca fica escorregadio com esperma.

[Slippery by blood.]

Escorregadio com sangue.

[Slippery by beer.]

Escorregadio com cerveja.

[Slippery by saliva.]

Escorregadio com saliva.

[Or sticky by melted chocolate.]

Ou grudento com chocolate derretido.


50

[Melted chocolate. Yum yum yum.]

Chocolate derretido. Nham nham nham.

Letras miúdas:

[On the road price includes VAT, number plates, delivery and six months road fund
licence.]

Os preços incluem IPVA, emplacamento, taxa de entrega e seis meses de pedágio.

[Financial packages subject to status.]

Pacotes de financiamento estão sujeitos ao status.

[Smoking can harm your unborn child.]

Fumar é prejudicial para o bebê.

[Your house is at risk if you do not keep up the repayments on a loan]

A sua casa estará em risco se você não estiver em dia com as prestações.
51

8. FÍSICA DE PARTÍCULAS

Eu vou te contar uma coisa: ela tem um tipo de cinzeiro.


Daqueles altos com uma haste. O tipo de coisa que
você vê no lobby de um hotel barato, o tipo de hotel
onde você passa algumas horas à tarde num dia de
semana numa cidade estranha com um homem que
você/ acabou de conhecer.

Com um homem que você nunca mais vai ver.

Com um homem—exatamente—que você acabou de


conhecer e não tem a menor intenção de ver de novo.
Esse é o tipo de cinzeiro, com a parte de dentro
cromada e a haste cromada e aquela aura de sexo
inesperado sem camisinha num quarto de hotel barato.

Ela também fala cinco línguas e, com a ajuda do


acelerador do Conselho Europeu de Pesquisa Nuclear
em Genebra, descobriu uma nova partícula elementar
que vai ter o nome dela e vai mudar completamente a
forma como percebemos o universo.
52

9. A AMEAÇA DO TERRORISMO™ INTERNACIONAL

Parece que ela não se importa. Ela não tem


consciência. Ela não demonstra remorso. Ela diz ―Eu
não/ reconheço a sua autoridade‖.

―Eu não reconheço a sua autoridade‖. O que ela quer


dizer com isso? Quem ela pensa que é? Será que ela
acha mesmo que ela não vai ter que arcar com as vidas
que ela destruiu? Será que ela acha mesmo que
qualquer coisa pode justificar aqueles atos de violência
aleatória sem sentido? Não há nada nos olhos dela que
revele uma centelha / de sentimento humano.

Nem uma centelha—isso mesmo—de sentimento


humano e nem um traço de vergonha. Ela é aquela
criança, aquela mesma criança que uma vez colocou
um vestido de algodão cor-de-rosa e um chapéu de
palha e saiu com as filhas dos médicos, dentistas,
apresentadores de TV e promotores imobiliários para a
escola na colina que tem aquelas placas em latão
polido e as professoras de saia xadrez? Essa é a
mesma criança que tinha a Barbie Fantasy ™, o Ken
Fantasy ™ e todas as roupinhas: os mini mini tênis e os
mini mini sapatinhos? A casa, o cavalo, e até mesmo/ o
carro da Barbie™?

Essa é a mesma pequena Annie que colocava todos os


mini mini sapatinhos em fileiras e todas as mini mini
bonequinhas em fileiras e todas as mini mini
miçanguinhas em fileiras e sabe Deus™ mais o quê
todas as noites/ sem qualquer senso de ironia?

Que pedia a Deus™ ―Deus™ proteja a Mamãe, Deus™


proteja o Papai, Deus™ proteja o gatinho Wiggy,
53

Deus™ proteja todo o mundo‖ sem nenhum senso de


ironia, pelo contrário, com uma crença sincera de que
ela era capaz de invocar, de joelhos e de pijama da
Minnie™, a bênção do pai, do filho/ e do espírito santo.

Amém.

Que fazia xixi na cama todas as noites até que os seus


pais, insones, levaram ela ao médico, que tinha aquele
monte de revistas e dava aquele sorriso pra abaixar a
calcinha dela naquela poltrona de couro enorme e fria e
dizia ―Vamos dar uma olhada nisso, Anne, / hein‖?

A mesma Anne que saiu do hospital com uma caixa de


madeira com uma campainha pra ficar do lado da cama,
dois pedaços de gaze de metal e uns / fios pretos?

A mesma Anne que acordou todas as noites seguintes


com o som daquela campainha horrorosa naqueles
horrorosos/ lençóis molhados?

A mesma Anne que agora —o quê?—fica ali parada?


Fica parada ali diante de homens e mulheres sérios
com testemunhas e provas em sacos plásticos
selados—passaportes falsos e pedaços de carne
humana—que fica lá parada e se recusa / a reconhecer
a autoridade / deles?

Pedaços de carne humana, passaportes falsos, listas


de nomes, traços de explosivos, fitas com telefonemas
gravados, vídeos de bancos e shoppings e caixas
automáticos. Artigos de psiquiatras que confirmam (a) a
inteligência dela e (b) a sanidade dela. ―Ela deu início
ao trabalho‖ eles dizem ―com o mais terrível
distanciamento de uma artista.‖ As testemunhas se
debulham/ em lágrimas.
54

As testemunhas se debulham em lágrimas enquanto os


vídeos de bancos e de shoppings mostram a Anne
apenas como mais uma pessoa resolvendo as suas
coisas sob constante observação, até que, vinte
minutos depois que ela sai, explode a chapa de vidro da
vitrine de uma loja de sapato em silêncio absoluto e as
figurinhas cinzas se desfazem e voam pelos ares em
silêncio absoluto com os mini mini sapatinhos voando,
são seres humanos de verdade misturados com o vidro.
Ninguém consegue descobrir / qual era o motivo dela.

Ninguém consegue descobrir o motivo da Anne.

Ela mora sozinha?

Ela mora sozinha.

Ela trabalha sozinha?

Ela trabalha sozinha.

Ela dorme sozinha?

Parece que sim.

Mata / sozinha? Come?

Ela vive trabalha dorme mata e come completamente


sozinha. Na verdade, os telefonemas gravados dela
consistem quase inteiramente em pedidos de refeições
que deveriam ser entregues em quartos que ela alugava
com vista para os subúrbios metropolitanos—uma pizza
grande, pão de alho, um litro e meio de Diet Pepsi™
tudo isso por nove libras e / noventa e nove centavos.

Telefonemas que a princípio foram tomados por /


mensagens codificadas.
55

Telefonemas que a princípio, isso mesmo, foram


tomados por mensagens codificadas mas que são
simples pedidos de refeições que deveriam ser
entregues a ela por garotos em motocicletas / e pagos
com dinheiro.

Essa é a mesma pequena Anne que agora tem


testemunhas que se debulham em lágrimas? Que agora
faz com que policiais experientes de ambos os sexos
precisem de aconselhamento por causa dos suores
noturnos, da impotência, da amenorreia, dos tremores e
dos flashbacks de cabeças humanas que se abrem
como se fosse em câmara lenta e por causa do terrível
lamento interminável de uma criança enterrada
inacessível recorrente como uma como se chama?

Uma alucinação auditiva?

Sim. Motivo pelo qual eles agora estão querendo/ uma


compensação.

A mesma Anne que acordou quando soou a campainha


e ficou olhando a sombra das amendoeiras se movendo
na parede do quarto dela e de / pijama molhado?

A mesma Anne que soldou complicados mecanismos


de contagem de tempo e interruptores de mercúrio a um
circuito impresso com a boca cheia de / pizza com
massa bem grossa?

Que sintetizou o tom / da sua geração.

Que apareceu duas vezes na capa da / revista


Vogue™.
56

Que vendeu os direitos do filme por dois milhões e meio


/ de dólares.

Que estudou profundamente os procedimentos para


lidar com a bagagem e memorizou as tabelas de
horários das principais companhias aéreas/
internacionais.

Que era abre aspas uma solitária / fecha aspas.

Que escuta abre aspas sem expressão fecha aspas a


descrição dos abre aspas absurdos fecha aspas após
abre aspas absurdos fecha aspas após abre aspas
absurdos fecha aspas que ela fez.

A mesma! A mesma! A mesma!


57

10. MEIO ENGRAÇADO

É meio engraçado e é meio triste.


Acho que é meio agridoce.
Acho que é uma dessas coisas agridoces, uma dessas
coisas que você ri e chora ao mesmo tempo.
Depois de tanto tempo, depois de tantos anos, ele
finalmente volta para a Mãe dele.
E num primeiro momento, sabe, como ―Quem é esse?‖
E então vem o momento em que ela se dá conta: ―Meus
deus: é o meu próprio filho.‖

E eles estão se abraçando ali mesmo na cozinha e, sabe,


é tão comovente.
Eu quero dizer que é tão comovente ver que ele encontrou
aquela coisa, aquela força, pra perdoar a Mãe.
Que ele tenha perdoado o alcoolismo dela.
Que ele tenha perdoado ela por ter andado por aí com
outros homens.
Que ele tenha perdoado ela por ter destruído a fé que o
pai dele tinha em si mesmo e por ter levado ele ao
suicídio.
E eles estão lá meio chorando e rindo e chorando de novo
tudo ao mesmo tempo tudo na mesma cozinha em que ele
ficava sentado quando era um menininho que
testemunhava as discussões terríveis dos pais. O Pai aos
prantos derramando a bebida dela na pia às dez horas da
manhã enquanto ela gritava e se ele fosse um homem de
verdade com um pingo de amor próprio ela não ia precisar
se embebedar até morrer, não é mesmo.
E tem uns riscos bem pequenininhos na mesa que ele se
lembra de ter feito com um garfo sem ninguém saber. E
58

você tá ligado, sabe, tipo, na continuidade das coisas, na


natureza agridoce das coisas.

E aí ele diz, ―Então, Mãe, eu tenho uma surpresa pra


você.‖ E a Mãe meio que se recompõe e enxuga as
lágrimas e diz: ―Que surpresa?‖
E ele diz, ―Olha pela janela, Mãe.‖
E do lado de fora da janela tem uma dessas picapes
empoeiradas com duas mini mini criancinhas no banco de
trás meio que olhando. Só olhando pra câmera.
E ela mal consegue acreditar que aqueles são os seus
próprios netos.
E aí ele diz, ―Mãe, eu quero que você conheça a Annie.‖

E é aí que essa tal de Annie sai da picape e ela é tipo


muito alta e loura e tem uns braços fortes e olhos claros
que te olham direto no coração, e ela é assim—bom eu
acho que ela é o que todos os homens sonham que uma
boa mulher deve ser, e a mulher que toda mãe sonha
escolher para o seu filho.

E no final das contas ele e a Annie e as crianças estão


construindo essa nova, como se diz? Bom, uma vida. Eles
estão construindo, sim, uma vida nova para eles longe da
cidade. Vivem da terra. Plantando coisas. Caçando coisas.
Cavando a terra em busca de água pura e clara.
Educando os seus próprios filhos. Com a crença de que o
Homem é livre diante de Deus para forjar o seu próprio
destino e tomar qualquer providência para proteger a sua
família.
59

E durante o almoço—um tipo de salada de galinha com


maionese—ficamos sabendo que ele é na verdade o
comandante de todo um grupo de indivíduos que pensam
da mesma forma e que pegaram em armas não por sede
de sangue, mas por necessidade porque nós estamos em
guerra. ―Guerra?‖ a Mãe pergunta. ―O que você quer dizer
com isso?‖

Então a Annie tem que explicar que eles não acreditam


em impostos, qualidade de vida e nenhuma dessas
merdas. Que essa é uma guerra contra o governo que tira
o pão da boca dos trabalhadores pra dar pros produtores
de filme pornô, pros defensores do aborto desse mundo.
É uma guerra contra as bichas desgarradas de deus.
É uma guerra contra os traficantes de crack e contra os
pretos.
É uma guerra contra os judeus conspiradores e suas
tentativas de reescrever a história.
É uma guerra contra as imagens degeneradas disfarçadas
de arte.
É uma guerra contra todos aqueles que negam o nosso
direito de ter armas.

E a Annie tem uma luz interior.


É assim, uau, ela se destaca, ela se destaca, ela se
destaca no meio dessa confusão toda e desse falatório
sobre as nossas vidas e sobre a nossa época e ela
encontrou essa, essa o quê mesmo?
Essa coisa, eu acho.
Essa coisa, essa coisa tipo suprema.
É como se ela tivesse encontrado essa coisa.
É como se a Annie tivesse encontrado essa coisa, essa
60

chave, isso, essa coisa-chave, esse segredo, essa certeza


e essa simplicidade, essa coisa simples e secreta pela
qual todos nós procuramos ao longo de toda a nossa vida
e que é, eu acho que é, a verdade.

Sim. E é meio comovente ver como ele é atencioso com


as crianças.
Como é ele quem corta o frango e limpa a boca deles com
um guardanapo de papel—a imagem, sabe, desse cara
enorme de roupa camuflada dando conta de toda essa
coisa doméstica.
Porque a família está no coração das coisas, eu acho.

E uma das mini mini criancinhas levanta a cabeça e


pergunta, ―Pai, por que ela está chorando?‖
E é verdade.
A mãe dele está chorando.
Enquanto ela está lá sentada à mesa da família olhando
para essa família que ela não sabia que tinha—o filho e
sua bela esposa, seus filhos fortes e inocentes com a vida
toda pela frente—ela, sim de fato, está se debulhando em
lágrimas como se ela mesma fosse uma criancinha.

E a Annie faz um carinho no cabelo do menino—que está


raspado bem curtinho, sabe—como um soldadinho de
verdade—e diz, ―porque ela está muito feliz, filho. Porque
ela está muito feliz.‖
61

11. SEM TÍTULO (100 PALAVRAS)

O que vemos aqui são diversos objetos associados com


as tentativas de suicídio da artista nesses últimos meses.
Por exemplo: vidros de remédio, protocolos de entradas
em hospitais, polaróides dos vários homens soropositivos
com os quais ela fez sexo propositalmente sem camisinha,
pedaços de vidro quebrado…

Bilhetes de suicídio.

…sim, e as paredes da galeria foram cobertas, é claro,


com os seus diversos bilhetes de suicídio. Além das
polaróides existem umas gravações bem desagradáveis,
eu devo dizer, umas gravações em vídeo das tentativas
propriamente ditas.
Bom, quanto às outras pessoas eu não sei, mas depois de
alguns minutos dessa coisa toda eu comecei a desejar
que ela tivesse conseguido logo na primeira vez.

Silêncio
No silêncio:

cabeça
verde
água
cantar
morte
longo
barco
pagar
janela
amigável
mesa
62

perguntar
frio
talo
dançar
cidade
lago
doente
orgulho
cozinhar

Bom, eu acho que esse é um comentário


injustificadamente frívolo para se fazer a respeito de uma
obra que é nitidamente um marco. É comovente. É atual.
É perturbador. É engraçado. É doentio. É sexy. É
profundamente sério. É divertido. É esclarecedor. É
obscuro. É muito pessoal e ao mesmo tempo levanta
questões vitais sobre o mundo em que estamos vivendo.

O que me fascina é o uso que ela faz das texturas. Eu


acho que há uma grande sensibilidade aqui nessa
justaposição de materiais: couro e vidro, sangue e papel,
vaselina e aço, que desperta no espectador quase uma /
reação visceral.

Eu temo que isso que nós estamos vendo aqui seja puro
narcisismo. E eu acho que nós temos que nos perguntar
quem é que aceitaria esse tipo de exibicionismo indigesto
como obra de arte?…

Sim, mas é exatamente isso, essa é a questão que ela


está tentando colocar: onde estão as fronteiras? O que é
aceitável?

…porque é mera / auto-indulgência.


63

…Onde é que a ‗vida‘—literalmente nesse caso—termina,


e onde a ‗obra‘ começa?

Com todo o respeito, eu acho que, para ela, toda essa


ideia de ―colocar uma questão‖ está absurdamente fora de
moda. Se há qualquer ―questão‖ aqui é justamente a
questão de que a questão que está sendo colocada não é
a questão e, na verdade, essa nunca foi a questão. Trata-
se, com certeza, da questão de que toda a busca por uma
questão é, em si, questionável, e que toda a questão deste
exercício – ou seja, estas tentativas contra a vida dela –
questionam isso. O que me faz pensar naquele provérbio
chinês: o lugar mais escuro é sempre embaixo da luz.

Silêncio
No silêncio:

tinta
com raiva
agulha
nadar
viagem
azul
abajur
pecar
pão
rico
árvore
afligir

amarelo
montanha
morrer
sal
novo
64

hábito
rezar

O quê?

O lugar mais escuro. É / chinês.

Por que as pessoas não aprendem a desenhar? Por que


as pessoas não aprendem a pintar? Os alunos deveriam
aprender a ter habilidades, não ideias. Porque o que
estamos vendo aqui é a obra de uma garota que
nitidamente não deveria estar numa escola de arte, mas
num hospital psiquiátrico.

Silêncio
No silêncio:

dinheiro
burro
caderno
despreza
dedo
querido
pássaro
cair
livro
injusto
sapo
partir
fome
branco
criança
prestar atenção
lápis
triste
65

cereja
casar

Num o quê?

Num hospital psiquiátrico. Em algum lugar em que ela


possa / se tratar.

Bom, eu devo dizer que eu acho que esse é um


comentário inacreditável e que eu não esperava ouvir isso
a não ser numa delegacia de polícia…

Ah por favor…

… e que—não, me desculpe, me desculpe, isso precisa


ser dito—que parece uma tentativa de reinstalar a noção
de Entartete Kunst…

Ah que besteira. Que absurdo essa reação / exagerada.

…a chamada ‗arte degenerada‘ proibida—besteira? Eu


não acho—proibida pelos nazistas. O que eu quero dizer é
escuta o que você está dizendo: você está dizendo que
não deveriam permitir que essa artista produzisse obras,
mas que em vez disso ela deveria ser forçada a se internar
para receber tratamento psiquiátrico.

Eu só estou sugerindo que essa coitada dessa garota…

―Essa coitada dessa garota‖

… essa coitada dessa garota, sim, precisa de ajuda—e eu


não sugeri como você bem sabe em nenhum momento
que ela deveria ser / ‗forçada‘.

Precisa de ajuda? Realmente? E na opinião de quem? Na


opinião de Goebbels? Na opinião talvez de Joseph Stalin?
A Anne não está na verdade antecipando as terríveis
66

consequências dessa argumentação e nos perguntando o


que ‗ajuda‘ realmente significa? Ela não está dizendo, ―eu
não quero a sua ajuda‖? Ela não está dizendo, ―a sua
ajuda me oprime.‖? Ela não está dizendo que o único jeito
de evitar que ela seja uma vítima das estruturas patriarcais
do capitalismo da segunda metade do século XX é
tornando-se a sua própria vítima?
Não é esse o verdadeiro significado dessas tentativas
contra a vida dela?

Sua própria vítima—isso é fascinante.

Ah realmente, que argumentaçãozinha mais chinfrim.

Silêncio
No silêncio:

casa
querido
vidro
discutir
pele
grande
cenoura
pintar
parte
velho
flor
bater
caixa
selvagem
família
lavar
vaca
amigo
67

felicidade
mentir

Bom eu acho que independentemente dos mais


variados assuntos pessoais que nós possamos colocar
aqui, todos concordamos que se trata de um marco. É
comovente. É atual. É perturbador. É engraçado. É
doentio. É sexy. / É profundamente sério. É divertido. É
enigmático. É obscuro. É muito pessoal e ao mesmo
tempo levanta questões vitais a respeito do mundo em
que vivemos.

[deixa ‗sexy‘] Essa argumentação é muito chinfrim


mesmo. A sua própria vítima? Se ela está mesmo—
como parece—tentando se matar, então com certeza a
nossa presença aqui nos transforma em meros voyeurs.
Se por outro lado ela está só atuando, então toda a
obra não passa de uma mera e cínica performance e é
duplamente asquerosa.

Mas por que não? Por que não poderia ser / ‗uma
performance‘?

Exatamente—ela se torna um tipo / de teatro.

É teatro—isso mesmo—num mundo em que o próprio


teatro está morto. No lugar daquelas convenções
cansadas de diálogo e de personagens que se arrastam
para as constrangedoras peripécias do teatro, a Anne
está nos apresentado o mais puro diálogo entre objetos:
entre o couro e o vidro, entre a vaselina e o aço; entre o
sangue, a saliva, e o chocolate. Ela está nos
apresentando nada menos que o espetáculo da sua
própria existência, a pornografia radical—se me
68

permitem essa palavra tão desgastada—do seu próprio


despedaçado e violentado—quase crístico—corpo.

Um objeto em outras palavras. Um objeto religioso.

Um objeto, sim. Só que não o objeto dos outros, mas o


objeto dela mesma. Essa é a situação/ que ela
apresenta.

Mas é claro que nós já vimos isso tudo. Não é verdade


que nós já vimos isso tudo no chamado ‗radicalismo‘
dos anos sessenta barra setenta?

Silêncio.
No silêncio:

extradição
estreito
irmão
temer
cegonha
falso
ansiedade
beijar
orgulho
puro
porta
escolher
feno
contente
ridículo
dormir
mês
bom
69

mulher
abusar

Vimos—talvez. Mas não vimos ao vivo, não vimos


agora, não vimos no contexto de um mundo pós-radical,
de um mundo pós-humano onde os gestos do
radicalismo adquirem novos significados numa
sociedade em que o gesto radical não passa de mais
uma forma de entretenimento isto é mais um produto—
neste caso uma obra de arte—para / ser consumida.

O teatro não tem nada a ver com isso e eu fico


amargamente ressentido(a) com a insinuação de que
eu sou algum tipo de nazista.
70

12. ESTRANHAMENTE!

Ela está dirigindo para longe da cidade bombardeada


num Cadillac vermelho metálico de 1956…

NOME!

…Quando ela chega numa blitz iluminada por uma


fogueira de pneus e perguntam—exatamente—qual é o
nome dela.

ESTRANHAMENTE!

Estranhamente ela não responde a essa simples


pergunta mas em vez disso começa a dizer uma série
de palavrões. ―Seus filhos-da-puta assassinos de
merda‖ ela diz. ―Seus babacas escrotos do caralho‖

LINGUAGEM!

―Seus assassinos estupradores sem noção com cara de


cu.‖

LINGUAGEM!

―Eu vou cagar no seu túmulo e no túmulo da sua mãe e


do seu pai…‖

IDENTIDADE!

―...e vou rogar uma praga para todas as suas futuras


gerações.‖ E depois quando perguntaram de novo—isso
mesmo—sobre a identidade dela, ela ficou calada.

SILÊNCIO!
71

Silêncio

O QUÊ?

Silêncio

O QUÊ?

De repente ela começa a murmurar alguma coisa sobre


o jardim dela e as cerejeiras e as fontes secas da
cidade. Sobre—o que é?—a água que ela aquecia em
garrafas de plástico para não causar impacto nas
raízes. Ela está murmurando alguma coisa sobre…

FALA ALTO!

… ela está murmurando alguma coisa sobre—isso


mesmo: fala alto piranha—alguma coisa sobre perda de
eletricidade, as noites passadas numa escuridão
completa e a deterioração da carne congelada. Sobre a
mulher que batia panela nas ruas como uma forma de
lamento…

NOME!

…sobre bibliotecas inteiras incendiadas cheias de livros


e manuscritos insubstituíveis e sobre um monte de pão
dormido jogado de caminhões e mais e mais sobre as
cerejas e as flores brancas…

ENQUANTO ISSO!

…e o cheiro de esgoto café e restos humanos e


enquanto isso—isso mesmo: enquanto isso—
obrigado—os soldados se amontoam em volta dessa
mulher sem nome com o cabelo longo e grisalho
manchado de sangue e envolta do Cadillac iluminado
72

pelas pilhas de pneus em chamas e perguntam a ela


aonde é que, puta que pariu, aonde é que ela acha que
vai com essa porra?

Silêncio

O QUÊ?

Silêncio

O QUÊ?

―Para o aeroporto.‖

FALA ALTO!

―Para o aeroporto. Eu vou levar a minha filha para o


aeroporto. Você não precisa gritar comigo. Eu sou uma
pessoa culta—eu não sou nenhuma caipira no meio da
roça que veio pra cidade pra lavar privada de rico. Eu
tenho passaporte, tenho conta no banco e eu vou levar
a minha filha para o aeroporto.‖

ESTRANHAMENTE!

―Agora por favor me deixe passar.‖ Mas sim, como você


diz, estranhamente não há nenhuma criança ali.
Criança? Que criança? E as mulheres que têm
passaportes não têm essa aparência. As mulheres que
têm conta no banco não têm essa aparência. O cabelo
delas é profissionalmente pintado nos salões de beleza
com tinta de cabelo, não com sangue humano. E elas
não têm Cadillacs velhos, elas têm jipes japoneses com
tração nas quatro rodas que têm um step que elas
nunca vão usar do lado de fora da porta de trás. Vamos
dar uma olhada com a lanterna, não é, no banco de trás
e ver do que ela está falando afinal.
73

CRIANÇA? QUE CRIANÇA?

Vamos deixar de enrolação—que criança—


exatamente—lanterna, e vamos ver do que ela está
falando afinal, o que ela quer dizer com ‗criança‘, essa
mulher sem nome com o cabelo longo e grisalho e com
a cara cheia de marca de catapora. E já que estamos
falando da aparência dela, por que ela não é mais
atraente? Por que ela não é mais simpática? Por que
ela não tem mais dentes? Por que ela não se abaixa um
pouquinho pra gente ver a bunda dela? Por que ela não
começa a chorar pra fazer a gente querer consolar ela
em vez de ficar olhando assim e cuspindo?

ESTRANHAMENTE!

E—daí?—sim—desculpa—estranhamente como você


diz a luz revela no banco de trás do carro apenas dois
pequenos sacos pretos amarrados até o pescoço mas
nenhuma criança.

CRIANÇA? QUE CRIANÇA?

E agora ela está murmurando alguma coisa sobre…

FALA ALTO!

…alguma coisa sobre um balanço num jardim, alguma


coisa sobre a filha dela, a pequena Anne, a sua
pequena Annushka. Alguma coisa—o que é? Fala
alto—alguma coisa sobre a sua Annushka ―que está
nos sacos‖ e sobre a necessidade que ela tem, a
urgência de levar estes sacos para o aeroporto com a
sua cultura e a sua conta no banco e comprar as
passagens.
Será que ela não sabe que o aeroporto está fechado?
74

Será que ela não ouviu que a estrada foi bombardeada?


Será que ela não viu que os foguetes estraçalharam o
asfalto como se alguém tivesse jogado uma pedra
numa piscina?

ESTRANHAMENTE!

Será que ela não sente o calor branco do combustível


queimado? Não. Estranhamente como você diz parece
que ela acredita que o aeroporto está funcionando
normalmente. Estranhamente ela parece pensar que as
alvas praias do mundo e as cidades cosmopolitas ainda
estão a poucas horas de distância graças aos voos
regulares.

ESTRANHAMENTE!

Parece que essa mulher sem nome estranhamente


imagina que ela ainda pode movimentar a conta que ela
tem no banco com um cartão de plástico e viajar de
primeira classe com a pequena Anne, com a Annushka,
fora da mira dos rifles e dos machados, para uma
cidade cheia de galerias de arte, luzes de neon, cafés
charmosos e sapatos expostos de maneira atraente.

ESTRANHAMENTE!

Silêncio

E sim—estranhamente—ninguém pergunta a ela o que


ela quer dizer quando diz que a Annushka ―está nos
sacos‖.

ESTRANHAMENTE!

Silêncio
75

E sim—estranhamente—ninguém pede pra ver os


sacos.

ESTRANHAMENTE!

Silêncio

E sim —mais estranhamente ainda—ninguém questiona


porque uma criança estaria em dois sacos e não em um
só.

Silêncio

ESTRANHAMENTE!
76

13. COMUNICANDO-SE COM ALIENÍGENAS

Depois nós ficamos sabendo que ela está sendo


penetrada por raios misteriosos que fazem com que ela
fique invisível nas fotos.

O quê? Raios-X?

Não, raios-X não. É um tipo novo de raio. É um tipo


novo de raio produzido por uma catástrofe no espaço /
sideral.

Você quer dizer—tá—que ela está se comunicando


você quer dizer através desses raios com alienígenas?

Não, comunicando não. Não. Os alienígenas estão


usando ela. Eles estão usando ela, mas sem ela /
saber.

Os alienígenas—é isso mesmo—estão usando a mente


dela como uma espécie de Cavalo de Tróia através do
qual eles podem invadir toda a consciência / humana.

E o que é assustador é que ela poderia ser qualquer um


de nós.
77

14. GIRL NEXT DOOR

Ela é a menina ali do lado


Ela é a causa da tramoia
Ela apresenta o caminho errado
Por ela começou toda a guerra de Troia

Ela é coroada
Ela é uma artista plástica
Uma refugiada
Numa nave fantástica

Ela é uma estrela de filme pornô


Uma assassina e um carro Renault
Uma assassina e um carro Peugeot
UMA ASSASSINA E UM CARRO RENAULT

She‘s a terrorist threat


She‘s a mother of three
She‘s a cheap cigarette
She is Ecstasy

She‘s a femme fatale


She‘s the edge of the knife
She‘s one helluva gal
She‘s Intelligent Life

She‘s a presidential candidate


For every little warring state
EVERY LITTLE WARRING STATE!
78

Ela é o inverno dos Andes


Ela é o canto da sala
Tem uma boca grande
E nunca fala

Ela ganhou uma pá


Numa terra amarela
Para ela cavar
A cova dela

Passa com um tanque branco


Sobre os recém-nascidos
Ela assalta um banco
E deixa reféns feridos

She bombs by stealth


Has unlimited wealth
White knobbly knees
WHAT? KNOBBLY KNEES?
Yes. Knobbly knees
And speaks Japanese
ELA FALA JAPONÊS

O-shigoto wa nan desu ka?


Oku-san wa imasu ka?
OKU-SAN WA IMASU KA?

Ela é um bronzeado artificial


Gordura em frigideira de metal
Ela é o filme no projetor
A merda no ventilador

Ela é aquela que vazou


Quando o tiroteio começou
79

Ela é uma garota com um plano


Ela é um carinha com um mano
Ela é uma sapata com uma fã
Ela é um maluco com uma van

She‘s the predator


She‘s the god of war
She‘s the fatal flaw
She‘s the girl she‘s the girl
She‘s the girl she‘s the girl
She‘s the girl she‘s the girl
SHE‘S THE GIRL NEXT DOOR!
80

15. A DECLARAÇÃO

O senhor está dizendo que ela anda de bicicleta em


qualquer clima?

Qualquer clima. Isso mesmo.

Silêncio

E ela usa um chapéu.

Sim. Ela usa um chapéu.

Que, como o senhor declarou, ela mesma fez.

Eu acredito que sim.

Silêncio

Ela planta tomate-cereja em…

Potes de margarina.

Potes de margarina.

Isso mesmo.

Silêncio

Ou de iogurte…

Potes de iogurte.

Sim.

Entendo.

Silêncio
81

O senhor acha que ela faz isso por quê?

O quê? Plantar tomate-cereja?

Sim.

Silêncio

Para as festas.

Para o quê?

As festas. Ela vende os tomates nas festas.

Claro. E eu imagino que ela leve os tomates para as


festas de bicicleta.

Isso mesmo.

Em qualquer clima.

Isso mesmo.

Numa caixa de papelão.

Isso mesmo.

Mas o senhor acha que ela faz isso por quê? Por que o
senhor acha que ela leva esses, como é, tomates-
cereja em potes de iogurte, por que o senhor acha que
ela leva eles de bicicleta numa caixa de papelão para
as festas em qualquer clima?

Longo silêncio

O senhor declara abre aspas que quando ela era


criança ela dormia na mesma cama com duas ou três
irmãs mais novas fecha aspas. O senhor mantém essa
declaração?
82

Sim.

Por quê?

Porque ela fazia isso.

―Porque ela fazia isso.‖

Porque ela fazia isso, sim. Porque elas eram pobres.


Porque elas não tinham nada.

Um mundo diferente, não?

Silêncio

O senhor pode assinar aqui?

O quê?

Sim. Se o senhor puder assinar aqui para afirmar que o


senhor leu a declaração e considera o documento
verdadeiro.

Silêncio

Bom, o senhor não considera o documento verdadeiro?

Se eu tivesse uma caneta…

Alguém traz uma caneta, tira a tampa. O papel é


assinado e devolvido.
Silêncio.

É só isso?

Por enquanto sim. Obrigado.

Silêncio

Muito obrigado.
83

Silêncio
84

16. PORNÔ

O locutor principal é uma mulher muito jovem.


Enquanto ela fala, suas palavras são traduzidas
imparcialmente para uma língua africana, sul-
americana ou do Leste Europeu.*

Os melhores anos da vida dela estão à sua frente.

[The best years of her life are ahead of her.]

Ela deve ter dezessete ou dezoito anos…

[She may be seventeen or eighteen...]

…mas o ideal é que ela seja mais nova…

[...but ideally she‘s younger…]

…catorze anos talvez ou ainda menos.

[…fourteen perhaps or younger still.]

É muito muito importante entender que ela está no


controle.

[It‘s really really important to understand that she is in


control.

Ela está sempre no controle de tudo o que acontece.

[She‘s always in control of everything that happens.]

*
Na primeira produção, português.
85

Mesmo quando as coisas parecem violentas ou


perigosas.

[Even when it looks violent or dangerous.]

O que elas não são.

[Which it is not]

(uma leve risada) Obviamente.

[(faint laugh) Obviously.]

(uma leve risada) É claro que não existe uma estória


para se contar…

[(faint laugh) Of course there‘s no story to speak of…]

…nem personagens.

[…or characters.]

Não no sentido convencional, com certeza.

[Certainly not in the conventional sense.]

Mas isso não quer dizer que não haja uma demanda de
habilidades.

[But that‘s not to say that skill isn‘t required.]

Já que nós ainda precisamos sentir que o que estamos


vendo é real.

[Since we still need to feel that what we‘re seeing is


real.]

Não é só atuação.

[It isn‘t just acting.]


86

Na verdade é muito mais difícil que atuar—pelo simples


motivo que isso aqui está acontecendo de verdade.

[It‘s actually far more exacting than acting—for the


simple reason that it‘s really happening.]

Pausa. Parece que ela esqueceu o que tem que dizer e


procura um ponto.

Sim?

(ponto) Ela gosta do trabalho dela.

O quê?

(mais enfático) Ela gosta do trabalho dela.

Ela gosta do trabalho dela.

[She enjoys her work.]

Ela é jovem e magra e está feliz com o seu corpo.

[She‘s young and fit, and happy with her body]

O que ela faz com o corpo é uma decisão dela.

[How she uses her body is her decision.]

Obviamente.

[Obviously.]

A pornografia não impede que ela viva uma vida normal.

[na tradução ‗Pornografia‘ deve ter uma pronúcia


característica] - Porno doesn‘t stop her leading a normal
life]

Ela tem um namorado…


87

[She has a regular boyfriend...]

…e todos os interesses normais de uma menina da


idade dela.

[and all the normal interests of a girl of her age.]

(uma leve risada) Roupas.

[(faint laugh) Clothes.]

Garotos.

[Boys.]

Maquiagem. Animais de estimação.

[Make-up. Pets.]

Música.

[Music.]

A diferença é…

[The difference is...]

…que a pornografia está construindo para ela o tipo de


segurança e de independência que muitas mulheres
invejariam.

[is that Porno is building up for her the kind of security


and independence many women would envy.]

A pornografia…

[Porno...]

…na verdade é uma maneira de estar no controle.


88

[…is actually a way of taking control.]

A pornografia…

[Porno...]

…na verdade é o oposto do que parece.

[is actually the reverse of what it seems]

Porque ao invés de estar consumindo as imagens…

[Because rather than consuming the images]

…ela está produzindo as imagens.

[...she is producing them]

Isso, para ela, é uma das belezas da pornografia.

[That, for her, is one of the beauties of Porno.]

Mais uma pausa. Parece que ela esqueceu o que tinha


que dizer: mas isso revelaria uma perturbação que não
pode ser demonstada. Ela procura o ponto.

Sim?

(ponto) Ela não é insensível à luz do crespúsculo.

O quê?

(mais enfático) Ela não é insensível /à luz do


crespúsculo.

Ela não é insensível à luz do crepúsculo que toca os


topos dos pinheiros com o seu brilho alaranjado.

[She is not insensitive to the evening light when it strikes


the tops of the pine trees with brilliant orange]
89

Ela tem uma vida interior.

[She has an inner life.]

Ela responde com muita sensibilidade ao mundo.

[She responds sensitively to the world]

Na verdade a situação da criança drogada e


dessensibilizada…

[The scenario in fact of the drugged and desensitised


child.]

…humilhada…

[...humiliated...]

…e depois fotografada ou filmada sem o seu


conhecimento…

[...and then photographed or filmed without her


knowledge...]

…é uma caricatura risível.

[...is a ludicrous caricature]

Mais uma pausa. Mais uma vez ela procura um ponto.

Sim?

(ponto) Está tudo providenciado.

O quê?

(mais enfático) Está tudo providenciado de acordo com


as necessidades dela.

Pausa
90

Eu não consigo.

[tradução de ‗I can‘t‘]

Pausa

Eu não consigo.

[translation of ‗I can‘t‘]

Ela se vira. Confusão momentânea. Mas então outro


locutor assume. Na verdade o resto do grupo pode
aparecer e dividir as próximas falas, enquanto a
primeira garota bebe um copo d’água e se recompõe:
mais uma vez não deve ficar claro se ela está nervosa
por estar em cena ou se está realmente perturbada.
O tradutor permance impassível.

Está tudo providenciado de acordo com as


necessidades dela. Inclusive uma educação integral.

[Everything is provided for her needs. Including a regular


education.]

Aos vinte e um anos os melhores anos da vida dela


ainda estarão à sua frente…

[By age twenty-one the best years of her life will still be
ahead of her...]

…e ela vai ter dinheiro no banco graças à pornografia.

[and she‘ll have money in the bank from Porno.]

Nem todo mundo tem um começo desses na vida.

[Not everyone has this start in life.]

Nem as oportunidades que ela tem.


91

[Or her opportunities.]

Obviamente.

[Obviously.]

A jovem aos poucos começa a participar de novo, com


a ajuda das outras vozes.

Ela poderia por exemplo ser modelo…

[She could for example become a model...]

…uma personalidade da TV…

[…a TV personality...]

…ter o seu próprio pub ou viajar pelo mundo.

[run her own country-pub or travel the world]

Ela poderia pintar…

[She could paint...]

…nadar profissionalmente…

[...swim professionally...]

…ou estudar para se formar em engenharia química.

[…or study for a degree in chemical engineering]

Todos com um crescente élan.

A Anne poderia mudar o mundo…

[Anne could change the world]

…terminar com o sofrimento animal…


92

[...end animal suffering...]

…terminar com o sofrimento humano…

[...end human suffering…]

…e aprender a pilotar helicópteros.

[...and learn to fly helicopters.]

Começa uma música de violino cigana apaixonada.

A Anne vai distribuir com justiça os recursos do mundo


pela Terra…

[Anne will distribute the world‘s resources evenly across


the earth...]

…levantar do chão os rostos dos insatisfeitos…

[...raise from the dust the faces of the disaffected...]

…enquanto garante não corroer os privilégios da classe


média.

[…while guaranteeing not to erode the privileges of the


middle-class.]

Ela vai popularizar a teoria psicanalítica…

[She will popularise psycho-analytic theory...]

…ao investigar as raízes do comportamento humano…

[…by probing the roots of human behaviour...]

…com uma série de artigos publicados em periódicos


semanais.

[in a series of weekly magazine articles.]


93

A música se intensifica.

A Anne viu o mundo do espaço…

[Anne has seen the world from space...]

…as rugas das montanhas…

[...the wrinkles of the mountains...]

…os fios de cobalto dos rios.

[…and the cobalt threads of the rivers]

Ela escavou covas rasas.

[She has excavated the shallow graves...]

…e catou os crânios despedaçados dos mortos.

[…and picked over the shattered skulls of the dead.]

Ela disseminou informações pelas fibras óticas…

[She has scattered information in the optic fibres...]

…e dançou com as partículas de luz.

[…and danced with the particles of light.]

A música se intensifica. Os louctores se dividem,


criando duas fileiras simultâneas, cada uma traduzida
imparcialmente para uma língua diferente:

A Anne regou as ruas de


Bucareste…

[Anne hose down the A Anne vai demonstrar


streets of Bucarest] agora a posição de
94

…e escutou o coração colisão…


do feto.
[Anne will now
[…and listened to the demonstrate the crash
fœtal heart.] position...]

Ela derreteu junto com as …que deve ser adotada


calotas glaciais… conforme a orientação
dos comissários…
[She has melted with the
ice-caps.] […which you should
adopt when instructed
…e transbordou pelos
by the stewards...]
férteis deltas.
Cabeça para baixo.
[…and flowed into the
fertile deltas.] [Head down.]

Ela mesma se encarregou Joelhos unidos.


de certificar uma marca
[Knees drawn up.]
de cerveja importada.

Em caso de
[She has personally
despressurização…
endorsed a brand of
imported lager.] [If oxygen is required...]

Ela comprou uma página …máscaras individuais


inteira de um jornal… de oxigênio cairão
automaticamente.
[She has bought an entire
newspaper page...] […oxygen masks will
drop down
…para publicar um longo
automatically.]
e franco pedido de
desculpas. Puxe uma delas para
liberar o fluxo.
[…to print a full and
95

unreserved apology] [Pull on the mask to start


the oxygen.]
Ela exterminou ciganos…
Não fume enquanto
[She has exterminated
estiver usando a
gypsies...]
máscara de oxigênio.

…e comprou um ramo de
[Do not smoke while
erva pinheirinha.
oxygen is in use.]

[…and bought a sprig of


Por favor apertem os
lucky heather]
cintos…

Ela foi crucificada, morta


Please ensure that your
e sepultada…
seatbelt is fastened...]

[She has hung on a cross


…e verifiquem se a
to die...]
mesa à sua frente está

…ressuscitou no terceiro fechada…

dia…
[…your table is folded

[…risen on the third day away...]

from the dead...]


…e se o seu assento

…deixou a barba está na posição vertical.

crescer…
[…and that your seat is

[…grown a beard...] in an upright position.]

…e entrou triunfante em Durante o vôo…

Meca.
[During the flight...]

[…and entered Mecca in


…nós vamos distribuir
triumph]
uma lista de produtos do

A Anne vai nos salvar da free-shop.

ansiedade do nosso
[…we will be coming
96

século… round with a list of duty-


free goods]
[Anne will save us from
the anxiety of our A Anne vai nos salvar da
century...] ansiedade do nosso
século.
…e apontar o caminho
numa época em que o [Anne will save us from
espiritual e o material… the anxiety of our
century.]
[…and usher in an age in
which the spiritual and the E apontar o caminho
material...] numa época em que o
espiritual e o material…
…o comercial e o trivial…
[And usher in an age in
[…the commercial and the
which the spiritual and
trivial...]
the material...]

…a onda e a partícula…
…o comercial e o

[…the wave and the trivial…

particle...]
[…the commercial and

…estarão finalmente the trivial]

reconciliados!
…a onda e a partícula…

[…will finally be
[…the wave and the
reconciled!]
particle...]

...estarão finalmente
reconciliados!

[…will finally be
reconciled!]
97

A música cresce.
98

17. PREVIAMENTE CONGELADO

Tá legal, ela tem um monte de coisa na cabeça. As


coisas…

Bom, é isso.

…as coisas o quê? as coisas mudaram para ela nos


últimos anos.

Isso é a mais pura verdade.

Eu quero dizer que dá pra ver—vamos encarar isso: dá


pra ver que alguma coisa morreu.

Alguma coisa o quê?

Morreu. Alguma coisa/ morreu.

Ela acha que ela não deu certo.

Exatamente. Ela acha que o trabalho dela não deu


certo.

Mas também como pessoa—o trabalho dela, sim—mas


também como pessoa ela acha que tem alguma coisa,
alguma coisa dentro dela que morreu.

E morreu?

O quê?

E essa coisa morreu?

O que foi que morreu?

Essa coisa, essa tal dessa coisa dentro dela.


99

Que tal de coisa?

A coisa, a coisa, a coisa, a coisa / dentro dela.

No caso dela, sim, vamos dizer que tenha morrido.


Vamos dizer que todas as coisas pelas quais ela
trabalhou—toda a vida dela—morreu. (risos) vamos
dizer que a vida dela até esse momento tem sido o
quê? O quê? O quê? Como um…

Livro?

Como um livro, como um…

Fio?

Como um livro, como um fio, como um…

Barco?

Como um barco. Vamos dizer que toda a vida dela—


isso, muito bom—até esse momento tem sido como um
barco, como um barquinho…

À deriva.

…à deriva alegremente num lago. Mas agora ela sente


a água…

Entrando pelas rachaduras?

Inundando.

Inundando o quê?

O coração partido dela.

Risos.
100

O coração—exatamente—sim—absolutamente—
partido. Ela sente a água do lago inundando o coração/
partido dela.

O trabalho dela foi abandonado. A casa dela foi


abandonada pelos filhos.

Ela mesma foi abandonada pelo marido. Onde é que ele


está agora?

Paris? Praga? / Viena? Berlin?

Paris? Praga? Trepando? Ele está trepando com


alguém que tem metade da idade dela numa cidade
com palácios renascentistas e/ cúpulas barrocas?
Fazendo um papel numa fantasia adolescente,
enquanto ela faz tentativas para reconstruir a vida dela.

Mas ela nunca teve um marido.

Ela nunca o quê?

Ela nunca teve um marido. Ela nunca acreditou no


casamento.

OK. Talvez ela nunca tenha acreditado no casamento,


mas ela tinha um marido assim mesmo.

Risos

O Paul.

Quem?

O Paul.

O Paul? O Paul não era marido dela.

Risos
101

Então ele era quem?

Não sei. Ele era só uma espécie de, uma espécie de,
uma espécie de… / pessoa.

Era como fumar.

O quê? Exatamente. Isso. Era como fumar um cigarro.

Silêncio

Por falar nisso, você sabia que ela ainda tem aquele
cinzeiro alto, com uma haste?

Por falar em quê?

Nisso. Por falar nisso.

Ela não tem esse cinzeiro.

Tem sim. Ela ainda leva esse cinzeiro com ela de/
quarto em quarto.

É uma coisa horrível.

Não é uma coisa horrível.

É uma coisa de lobby de É sim. Parece uma


hotel barato, o tipo de escarradeira. Ou qual é
hotel onde você passa aquela outra coisa?
algumas horas à tarde
Que coisa?
num dia de semana numa
cidade estranha com um Aquela coisa. Aquela
homem que você/ acabou palavra. Aquela outra
de conhecer. palavra.

Com um homem que você O quê? Que não é


102

nunca mais vai ver. escarradeira?

Com um homem— Humidor?


exatamente—que você
Não. Humidor não, mas
acabou de conhecer e não
é parecido.
tem a menor intenção de
ver de novo. Com a parte Pausa
de dentro cromada e a
haste cromada e aquela Cuspideira?

aura de sexo inesperado


Cuspideira. É isso.
sem camisinha num
Parece uma cuspideira.
quarto de hotel barato.
Uma cuspideira? O que é
isso?

Uma coisa. Uma coisa em que se cospe.

Ela não cospe. Do que é que vocês estão falando? Ela


não casa. Ela não tem filhos.e com certeza ela / não
cospe.

Ninguém está dizendo que ela cospe.

Então por que ela tem uma coisa em que se cospe?

Ela não tem uma coisa em que se cospe, ela tem uma
coisa que / parece com isso.

Mas nesse caso, o que é um humidor?

É uma caixa para / guardar charutos.

É uma caixa—isso mesmo—para guardar charutos.

Silêncio

Tá. E daí? Ela não trabalha?


103

Ela trabalha sim.

Ela já trabalhou.

Ela pode trabalhar.

Ela vai trabalhar.

Ela não vai trabalhar.

O quê?

Ela não vai trabalhar.

Mas ela tem habilidades.

Ah sim, ela tem habilidades mas qualquer habilidade


que ela tenha parece inadequada ao mundo em que ela
vive. Qualquer trabalho que ela faça parece inadequado
para o mundo em que ela vive. Tudo o que ela pode
fazer é ficar andando de um lado para o outro em volta
do cinzeiro ou pegar livros da estante aleatoriamente.

Não diga: textos clássicos.

Isso mesmo—os clássicos que ela deveria ter lido


enquanto era estudante vinte ou trinta anos atrás.

E assim como vinte ou trinta anos atrás ela não passa


do prefácio.

Risos

As partes que ela sublinhou com uma esferográfica


preta toda ferrada…

Essas partes—exatamente—que ela sublinhou com


uma esferográfica porque ela pensou que elas tinham o
quê? Um significado?
104

Ou aprendeu.

Ou o quê?

Aprendeu. De repente ela não pensou, mas aprendeu.


Aprendeu que eles / tinham significado.

Bom—pensou, aprendeu, não importa, a questão é que


seria melhor para ela se ela fizesse leituras mais
superficiais.

Ok, você está querendo dizer que fazer leituras mais


superficiais seria mais adequado para o mundo/ em que
ela vive.

É exatamente o que eu estou querendo dizer: seria


melhor para ela se ela fizesse leituras mais superficiais.
Que seria melhor para ela se ela lesse uma parte menor
das coisas. Parte de uma receita. Parte de uma carta.
Parte de / um artigo.

Parte de uma receita. Parte de uma carta em resposta a


uma carta que ela nunca leu sobre um artigo que ela
também não leu.

Que artigo é esse?

Ela não leu.

Ela não leu—ok—mas nós ainda podemos imaginar o


que ela pode ter perdido.

Aquela coisa sobre o ator.

Aquela coisa sobre o político.

Aquela coisa sobre o salmão fresco.


105

Aquela coisa sobre o


assassino. Como ele O que é essa coisa?
conseguiu deixar um total
O salmão?
de 37 marcas de facadas
na mãe da criança É.
enquanto a criança dormia. Bom, era sobre como
E era o filho dele. se define o termo
‗fresco‘. O que o termo
Não, não era o filho dele.
‗fresco‘ numa
Mas o filho dele estava lá.
expressão como
Ele levou o próprio filho ‗salmão fresco‘
para assistir. realmente quer dizer.
Ele levou o próprio filho— Você está pensando se
isso mesmo— para assistir isso pode querer dizer
ele assassinar a mãe dessa ‗previamente
outra criança. congelado‘?

Exatamente.
Ele fez o quê?

Levou o próprio filho. Levou o próprio filho de pijama


para ver ele fazer aquilo. Esfaquear aquela mulher. Sim.

Silêncio

E pode?

Pode o quê?

Querer dizer ‗previamente congelado‘?

Silêncio.

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