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© 2003 Casa do Psicólogo Livraria e Editora Lida.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade , sem
autorização por escrito dos editores.

1• Edição
2003

Editores
lngo Bernd Gunll'rl e Silésia Delphino Tosi

Produção Gráfica & Editoração Eletrônica


Rena/a Vieira Nun es

Capa
Rena/a Vieira Nunes

Ilustração da Capa
"O Violinista no Telhado " de Chagai

Revisão Gráfica
João Vaz

Dados Internacionais de Catalo gação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cymrot, Paulina
Ninguém escapa de si mesmo: psicanálise com humor/ Paulina
Cymrot. - São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2003.

Bibliografia.
ISBN 85-7396-224-0

l . Continência psíquica 2. Psicanálise 3. Psicanálise - Estudos


de casos 4. Psicanálise - Técnica 5. Psicoterapeuta e paciente
1. Título.

CDD- 150.195
Dedico este livro ao Osvaldo,
03-2399
com quem viver toda uma vida é pouco.
Índices para catálogo sistemático:
1. Continência: Psicanalista e analisando: Relacionamento:
Psicanálise: Psicologia 150. l 95

impresso no Brasil
Printed in Brazi/

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

.&::::!! : : ! Casa do Psicólogo® Livraria e Editora


Ltda.
i~f Rua Mourato Coelho, [059 Vila Madalena 05417 -011 São Paulo/SP Brasil
~ Tel.: 1) 3034.3600 E-mail: casadopsicologo@casadopsicologo.com.br
(l
"-? site: www.casadopsicologo.com.hr
Nota da Autora

Este livro baseia-se na tese de doutorado que apresentei na


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) - Pós-gra-
duação em Psicologia Clínica, Núcleo de Psicanálise, com o título:
Um fundamento da análise: o movimento de retração=expansão da
continência para a vida psíquica.
Trata-se de um trabalho clínico, no qual procurei ter um cons-
tante cuidado com a preservação do sigilo profissional. Penso que
devo, como psicanalista e supervisora clínica no consultório e na
universidade, apresentar, para além das teorizações, o meu trabalho
clínico-- como o exerço no encontro com uma outra pessoa, na ses-
são psicanalítica. O objetivo é estabelecer uma troca de idéias com
meus colegas e alunos para repensar a prática da Psicanálise.
Percebo-me consciente da pequenez deste estudo, mas me vejo
com o sentimento de contribuir para a humanização do sofrimento,
substanciando-o em imagem e comunicando-o através da palavra.
Este livro versa sobre a apaixonante e difícil tarefa de exercer a
Psicanálise e a continência para a vida psíquica. Exige do analista
treinamento, paciência, coragem, humildade para haver alguma con-
tenção de percepções esquizóides, de identificações projetivas. Tole-
rância às emoções, para que estas sejam transfom1adas em comuni-
cações que sirvam para a vida do analisando.
8 PAUU:,JA CYMROT

Para pensar em algumas questões propostas neste livro, apoiei-


me em experiências de vida, de análise pessoal, e em experiências
profissionais, além do apoio em algumas teorias psicanalíticas. Quan-
do me refiro à experiência, entendo que toda experiência é emocio-
nal, conjetural, contextual e permite a construção de hipóteses. Não
falo de fatos, nem de verdades ou de realidades. Trato de apreensões
de experiências, de investigações, de vértices, de transformações de
vivências. Não suponho que uma experiência - ou mais -, em si
Apresentação
mesma, valida algo, pois acredito que tal crença de que a experiência
define ou confirma, a meu ver, serve para dar uma sensação de con-
fiança que pretende compensar a insegurança própria da prática da
Psicanálise.
Julgo que cada hipótese depende de vértices e leva a novas in- Mais uma vez, Paulina Cymrot teve a capacidade de encontrar, em
dagações. Considero que este livro me foi útil para refletir sobre al- meio à profusão de conceitos que povoam o mundo teórico-conceituai
guns pensamentos disponíveis e inquietantes, e para estimular em da Psicanálise, um tema sobre o qual ainda há muito a ser investigado.
mim alguns outros. Em 1997, quando publicou Elaboração psíquica - teoria e clíni-
Agradeço as contribuições a este livro que me foram oferecidas ca psicanalítica, a autora trabalhou sobre a questão pouco examinada
pelos doutores Renato Mezan, Gilberto Safra, Tales Ab' Saber, Darcy na literatura psicanalítica. E neste livro, que tem como eixo principal o
Antonio Portolese, Isac Germano Karniol, João Augusto Frayse Pe- tema da "continência", consegue caracterizá-la de forma bastante par-
reira, Sergio Luis Blay. Agradeço também aos doutores Pérsio Osório ticular quando a associa aos movimentos de retração e expansão.
Nogueira, Ceei! José Rezze, Deocleciano Bendocchi Alves, Julio A leitura do livro é bastante agraciável, uma vez que se encon-
Frochtengarten e Antonio Carlos Eva por suas contribuições para a tra, em meio aos conceitos, uma profusão de ilustrações clínicas,
minha formação profissional. citações provenientes ele áreas fora da Psicanálise (Guimarães Rosa,
Meu especial agradecimento ao amigo Ingo Güntert, da Casa Antonio Damásio, Lygia Fagundes Telles, dentre outros). Paulina põe
do Psicólogo Livraria e Editora, que de pronto e carinhosamente grande ênfase na questão do humor e dedica todo um capítulo (IV) a
publicou este livro. Agradeço à Silésia e à Marlene, do setor de estudá-lo como um dos fatores da expansão da continência.
editoração da Casa do Psicólogo, pelo constante apoio recebido na Ao mesmo tempo em que procura caracte1izar, nos capítulos I e
publicação do Livro. li, o que compreende por "estar continente" e as dificuldades para o
Minha gratidão ao meu marido, Osvaldo Lopes do Amaral, que exercício dessa função, a autora fornece fragmentos clínicos retira-
me nutre com o seu carinho constante e o seu humor inteligente. dos de sua prática em consultório. Este modo ele apresentação - en-
tremeando teoria e clínica - tanto fornece uma ilustração de suas
Paulina Cymrot concepções como favorece que estas sejam realizadas, evitando as-
Abril de 2003 sim um desfilar de conceitos vazios.
10 PAULINA (YMROT

A questão da continência tem sido geralmente tratada como uma


qualidade do sujeito- "ser continente". Paulina a trata como umajim-
ção - "estar continente"- relacionada à capacidade de abrigar senti-
mentos, peí1samentos, fantasias, imaginações, sonhos que, por ofício,
cabem ao analista exercer junto ao analisando para que possa desen-
volver suas capacidades emocionais e mentais. Assim, continente não
é algo que o analista é, mas algo apenas possível, transitório e limita- Sumário
do, dependente da interação de cada momento e de cada relação. Paulina
declica-se, então, a estudar os fatores que podem estimular a expansão
dessa função (com ênfase especial na curiosidade, paciência e humor)
ou, ao contrário, levar a uma retração da capacidade de continência
(por inveja. ódio ao novo, indiscriminação eu-não eu). Ela descreve o
espaço analítico como uma oportunidade para viver, ser e se ver, para
Introdução
o acontecer humano propiciar novos sentidos à existência, propiciar a
Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar?
percepção de que o encontro com o outro pode resultar em compara-
Introduzindo idéias, buscando o diálogo ......................... 15
l - Experiência psicanalítica: José - Olho por olho, dente
ções, em estremecimento, em desencontro, em aprendizado, em cres-
por dente? ............................................................................. 25
cimento. A conjunção desses fatores - e a conseqüente oscilação
retração=expansão da continência - se constitui, segundo a autora,
num dos principais fundamentos da Psicanálise.
Penso que a própria Psicanálise deveria ser considerada não como CAPÍTULO I
o continente estático, pronto e acabado, para todos os conteúdos men- O que caracteriza estar continente? ................. . .. .. 43
tais, mas uma área para a qual a investigação ainda pode trazer grande Em águas rasas e calmas é fácil ser um bom nadador! ...... 43
desenvolvimento. O que me faz recordar a expressão latina lmmota l. Vivência analítica: Paulina - É dos carecas que elas
Labascunt et quae perpetuà sunt agitata, manent, isto é, "O que é rígi- gostrun 1nais? ...................................................................... . 44
do desaba e que está em constante movimento persiste". 2. Experiência analítica: Simone - Nunca a vi, sempre a
Acredito que o livro - produzido originalmente como tese de an1ei ...................................................................................... 45
doutoramento na PUC/SP em 2002, sob a orientação de Renato Mezan 3. Experiência analítica: Melanie -- Se todos fossem iguais a
- é coerente com o tipo de pensamento próprio da prática psicanalí- você, que maravilha viver.................................................... 47
tica. Por isso, é de grande valor para os que se interessam por Psica- 4. Ilustração de uma experiência clínica: Ana - Nunca a vi, e
nálise e suas evoluções. alucinei ................................................................................. 58
5. Momento clínico: Patrick ............................................... 70
Julio Frochtengarten
Membro Efetivo e Analista Didata da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
12 PAULINA CYMROT
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 13

CAPÍTULO II 4. Experiência analítica: Giovana - E cada qual no seu canto,


O difícil percurso: do desamparo=onipotência à em cada canto uma dor...................................................... 181
compaixão ......................................................................... 81 5. Experiência psicanalítica: Caroline - Seja você quem for,
Dificuldades para estar continente ........................................ 81 seja o que Deus quiser....................................................... 181
1. Experiência Clínica: Luiz - O coração tem razões que a
própria razão desconhece .................................................... 82
CAPÍTULO V
2. Outro momento clínico com Luiz 90
lnconclusão - O medo de Seu Medo ............ ........ .............. 185
1. No cotidiano da clínica: Amália - Nunca vi fazer tanta
exigência, nem fazer o que você me faz ... 201
CAPÍTULO III 2. Experiência clínica: Katia - Ser ou não ser, esta é a
Reflexões sobre a experiência de análise com Frederico Graça questão! 205
e pensamento .................................................................... 97
1. Momento clínico ........ .................................. .................. 11O Bibliografia ........................................................... 219
2. Experiência clínica, conforme a transformei ................ 116
3. Uma outra situação psicanalítica5 ... ............................. 120
Sobre a autora ....................................................... 227
li 1

!1 11
4. Momento clínico ... .........................................................
5. Instantes de outro encontro psicanalítico ......................
123
131
6. Momento clínico ............................................................ 134
7. Momento clínico com Frederico ................................... 140
8. Momento clínico ............................................................ 142
9. Experiência clínica ........................................................ 144
10. Momento da análise .................................................... 152

CAPÍTULO IV
Perseguição=humor, humanidade, humildade ................... 159
1. Experiência clínica: Tereza - Tristeza não tem fim, felici-
dade sim ............................................................................. 160
2. Experiência clínica: Eva - O paraíso existe! ................ 161
3. Experiência clínica: Paulo - "Tornei-me um ébrio, na
bebida busco esquecer..." ................................................... 175
Introdução
Não sou eu quem me navega,
quem me navega é o mar?
Introduzindo idéias, buscando o diálogo

Parece-me que a maioria das pessoas exalta os estados de bem-


estar, de prazer, de felicidade, confundindo--os com normalidade. E,
conseqüentemente, as experiências de tristeza, de dor, de sofrimento
ficam equivalentes ao fracasso, a desvalorização pessoal, a doença.
Neste livro, proponho-me a discutir a continência para a vida psíqui-
ca, por considerá-la um fundamento da análise. Procurarei relatar
algumas experiências cotidianas vividas no exercício da clínica psi-
canalítica.
Para a esc1itora Clarice Lispector, o que se escreve, o que se fala,
não traduz o essencial pois corre-se o risco de esmagar muito com as
palavras o que está nas entrelinhas de um texto. Para mim, o que eu
escrevo neste livro corresponde às tTansformações que realizei das lei-
turas, de minhas experiências clínicas. Penso que a atenção, o registro
de uma realidade sensível, a percepção, a memória, a linguagem arti-
culam-se internamente segundo a lógica pessoal, o vé1tice, a perspec-
tiva de quem registra, transforma e representa. Refiro-me às experiên-
cias pessoais ou subjetivas, aos sentimentos, às impressões e suas trans-
I"
11

Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 17


.16 PAULINA (YMROT

formações, que acompanham a percepção, a memó1ia, a atenção, o Lendo esse compêndio, lembrei-me da música do compositor
pensamento. Não trato de desc1ições objetivas ou causais, mas de ex- Chico Buarque de Holanda - Com açúcar; com afeto, fiz seu doce
periências únicas, pessoais, irreversíveis no tempo e, portanto, não predileto pra você ficar em casa, qual o que (..) E pensei que para
reprodutíveis de forma idêntica. Entendo que é da natureza do objeto alguns analisandos o que o analista lhes oferece é suficiente, o anali-
da Psicanálise ser não-reprodutível, nem objetivável. Então, suponho sando apresenta-se disponível para colaborar com a análise, enquan-
que entre a percepção e a linguagem não há conflito, mas uma comu- to para outros analisandos não é isso o que acontece. As disposições
nidade de forma, uma expressão da singularidade. do analista e do analisando variam durante as sessões. Pergunto-me
Ao transcrever uma expetiência, filtro-a, condenso-a, concentro-a, se isso depende dos limites e das possibilidades de cada um, da qua-
e o que resulta é um relato utilizável, aquele que me parece suficiente lidade da interação, da disposição mútua, de o continente poder abri-
para o meu uso, para a mü1ha finalidade, pelo menos por ora. É o que gar o incontido.
desejo e posso ressaltar. A transcrição não recupera o contato vivo, nem Este livro representa uma tentativa de me aproximar dessa idéia.
por isso deixa de ter validade. ProcLu-ei destacar o que me pareceu razo- Estou de acordo com Vernant (] 997), quando ele escreve que os
ável para este livro. Espero que minhas idéias gerem problematizações, gregos mostraram-nos a tragédia. Nela há vida, o cotidiano, o ho-
discussões, desdobramentos e diálogos com o leitor. Desejo refletir so- mem com suas vicissitudes, com seus vícios, com seu corpo, com
bre o movimento de retração=expansão do estado de continência para a seus desejos, com a intensidade de seus impulsos e de suas paixões.
vida psíquica, por considerá-lo um fundamento da análise. l~xpressa-se no pensamento humano (ao menos no pensamento oci-
Embora não seja possível equiparar as plantas às pessoas, pen- dental), no teatro, onde os temas propostos evocados por Sófocles,
so ser possível aproximá-las em algum aspecto. Em Plantas orna- 1Iomero, Hesíodo, nos são familiares, tradicionais, pois mostram o
mentais no Brasil, livro de Lorenzi e Souza (1999), um compêndio trágico como parte da natureza humana.
da flora brasileira, li algo sobre a natureza das plantas; há aquelas de Shakespeare, um expert em questões humanas, escreve em
aparência delicada e frági 1, como o miosótis, o jasmim, o narciso, o Macbeth que. (...) os temores presentes são menos horríveis do que
amor-perfeito, o cipó-neve, a celestina e outras. Todas elas são capa- os que inspira a imaginação! E em Troilo e Cressida, uma outra
zes de tolerância e de adaptação às variações climáticas, às baixas tragédia escrita por esse autor notável pela sua capacidade de apre-
temperaturas, aos ventos. Por serem plantas miúdas e aparentemente ensão da condição humana, encontrei este diálogo que, a meu ver,
fracas, elas surpreendem por sua resistência, inclusive às geadas. Ou- ilustra a complexidade humana, os aspectos paradoxais e as contra-
tras - como o goivo, o álisso, o papiro do Egito - necessitam de terra 11ições humanas, a necessidade do homem de dispor de recursos pes-
fértil, de iJTigação constante e cuidados permanentes para sobrevive- soais para enfrentar as adversidades e as solicitações da vida, das
rem. Isso é da natureza dessas plantas, e mesmo considerando-se quais nenhum humano escapa:
esta natureza, há variações entre elas em sua condição e força de Agamenon: (. . .) Por que, então, vós, príncipes,
sobrevivência. considerais nossa obra com olhares tão consternados e
chamais de vergonha aquilo que não passa de provas
1. De acordo com Bion (1965), é a função pt!la qual as impressões sensoriais se
prolongadas do grande Júpiter, para descobrir nos ho-
transformam em elementos capazes de ser acumulados , para serem empregados no sonho e mens a constância persistente? Não são os favores da
em outros pensamentos.
11

1
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 19
18 PAULINA CYMROT

Shakespeare põe em cena personagens que são heróis e, ao


Fortuna que permitem reconhecer a beleza do metal
dessa virtude, pois, experimentados por esta pedra de mesmo tempo, o espectador pode se reçonhecer neles. São pessoas
toque, o valente e o covarde, o discreto e o tolo, o hábil que cometem erros, enganos, faltas, que se iludem, e o fazem não por
e o ignorante, o forte e o fraco parecem da mesma afini- rllaldade ou pobreza de espírito, mas porque são levadas a tanto con-
dade e parentesco; mas, quando sopram o vento e a rorme os recursos que dispõem para se orientarem diante das solici-
tempestade de sua cólera, então a deusa encarregada lações da vida, na tentativa de obter prazer, de se evadirem da dor, de
de estabelecer as diferenças, armada com um crivo gran- ,obreviver. Não são seres desprezíveis, loucos, odiáveis, mas movi-
de e poderoso, criva todos os homens juntos, disseca dos por necessidades, ignorância, desconhecimento, fazem escolhas,
tudo o que seja leve e sobra somente o que tem peso e tomam decisões numa direção por vezes destrutiva, catastrófica, um
consistência, rico pela virtude e sem mistura. .11.:ontecimento gerando outros. Não são criaturas monstruosas, por
wzes com ambições sem freios, com paixões intensas e em conflito,
Nestor: (..) Tuas últimas palavras, grande Agamenon, n1jos pensamentos e ações apresentam contradições. É do homem
foram recolhidas por Nestor para desenvolvê-las com que Shakespeare fala, de sua condição humana, da loucura momen-
todo o respeito que é devido ao nosso trono divino. As tanea mais ou menos temperada pela imprudência, do trágico como
durezas da Fortuna são a verdadeira prova dos homens. vi1.:issitude dessa condição.
Quando o mar está calmo, humildes barquinhos de brin- Concordo com o neurofisiologista Damásio (2000a) em sua idéia
quedo se atrevem a navegar sobre seu tranqüilo seio e de que no ser humano as emoções, os sentimentos servem de guias
fazer rota, com os navios de maior tamanho! Mas, se o internos e de elos entre a natureza, enquanto um conjunto de sistemas
brutal Bóreas vier a encolerizar a nobre Tétis, vereis 1· adaptações geneticamente estabelecidas, as vicissitudes adquiridas

logo como a barca de flancos robusto abre caminho atra- através das interações sociais, ambientais e a história de vida, conside-
vés das montanhas líquidas, saltando entre os dois ele- rando-se os processos conscientes e inconscientes. Reafamando al-
mentos úmidos, como o cavalo de Perseu. E a barca guns pressupostos psicanalíticos, o autor entende que não é possível
presunçosa de costados fracamente construídos, que ..,cparar natureza e aprendizagem, genético e adquirido, corpo e mente,
pouco antes rivalizava com a grandeza, onde está ago- psicológico e biológico, processos conscientes e inconscientes, razão
ra? Ou fugiu em direção ao porto, ou Netuno de/afez 1· emoção para se compreender o comportamento humano, pois esses
seu bocado. Assim é como nas tempestades da sorte: a l,1tores são mutuamente interferentes, estão interligados. Guimarães
aparência do valor e a realidade do mesmo se diferen- Rosa escreveu que a gente sai do sertão, mas o sertão não sai da
ciam, pois, sob o brilho e os raios da Fortuna, o reba- .l!,c>nte. Não escolhemos quem somos, embora podemos fazer algo em
nho sofre mais tormentos do tavão do que do tigre; mas nosso benefício. Penso que a mente é complexa, o comportamento
quando o vento irresistível faz com que os troncos
humano resulta de múltiplos fatores, sobredeterminados. Ninguém
nodosos dos carvalhos se dobrem e as moscas fujam
L'sçapa de si mesmo, o homem não escolhe quem ele é, não escolhe a
:li
1
para a sombra, então, o ser valoroso, como tendo des-
111cnte que tem e nem se desfaz dela, mas pode contê-la, desenvolvê-la,
pertado pela cólera dos elementos, simpatiza com ela e
rnnhecê-la, ao menos em alguns aspectos.
responde à Fortuna com acentos do mesmo diapasão.
20 PAULINA (YMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 21

Parece-me que Vernant, Shakespeare, Damásio e Rosa são au- sas comunicações ou expressões. De sua atenção à contingência, à
tores que não postulam o fatalismo que torna o ser humano uma víti- subjetividade, à diferença, sem valorizar a supremacia de uns esta-
ma passiva. Fazendo uma aproximação com os fundamentos da Psi- dos mentais sobre outros, o que, a meu ver, implica um juízo deva-
canálise, entendo que cada indivíduo é autor de suas próprias desgra- lor, um vértice normativo, moral. uma busca implícita de um desen-
ças, naquilo que lhe cabe, pelas decisões e ações que põe em prática, volvimento. Como psicanalista, sei que não é fácil o exercício da
pelas paixões incontidas e nas quais se deixa dominar. A ação huma- Psicanálise, não é simples escapar de um vértice normativo.
na é a principal causa da tragédia, e para ela contribuem o acaso e o Na minha experiência clínica e de vida, verifico que, freqüente-
simples acidente. Concebo que o homem é autor, naqui lo que lhe mente, as pessoas não toleram sentir dor, desesperança, depressão,
compete, do drama dos amores juvenis, da insensatez, da imprudên- fr ustração, ódio, amor, dependência, carecendo de um continente in-
cia, dos efeitos do ódio, da intolerância à sua verdade e à dor, da falta terno mais estável para esses e outros estados mentais, para a própria
de discernimento. Ele crê agir pela lógica, pelas melhores intenções, destrutividade e a do outro, para o selvagem em si e o selvagem do
e, muitas vezes, dá-se conta de que alcança algo diverso do que pre- outro. A intensidade da dor e do sofrimento que sentem aumenta o
tendeu, que seus atos e suas emoções lhe escapam, excedem-no, que 111c<lo de experimentá-los. Carecem de humor para se tolerarem, e
ele fica ao sabor dos acontecimentos. Seus atos, por vezes, adquirem tolerarem o outro. Sentem dificuldades de serem encontradas pelo
sentido e valor opostos aos que desejou dar. outro, e, ao mesmo tempo, de encontrar a si mesmas.
De acordo com a proposta psicanalítica, pelo menos como a Na 26ª das Conferências Introdutórias à Psicanálise, Freud es-
entendo, no psiquismo operam processos mentais inconscientes, em ncveu que o ponto de vista psicanalítico não é um sistema de idéias
que o tempo não existe, as contradições e os opostos coincidem, o L'-.peculativo. Pelo contrário, resulta de experiências, de observações
1111 pensamento obedece ao princípio do processo primário, a condensação diretas e de inferências dessas observações. Resulta de décadas de
e o deslocamento constituem sonhos, lapsos, chistes, alucinações, pesquisa, de um trabalho particularmente intenso, difícil e absorven-
pensamentos, atos falhos, constituem a singularidade de cada pes- lL'. Requer uma escuta e uma observação cuidadosa, que obedece a
' I 11 soa. Trata-se de processos dinâmicos, em eterna mudança, caóticos, urn a proposta e a princípios. Para tal observação, é necessário um
1 auto-organizadores, dependentes de um complexo e vasto conjunto longo trabalho pessoal de análise do analista, a transformação ele suas
de fatores, percebidos e não percebidos, da própria natureza e das 1L·sistências .
possibil idades existenciais ele cada um. Esses processos estão encar- A minha vida influencia a minha obra, e a minha obra intelfere
nados nas fantasias, nas vivências, nos desejos, nos pensamentos, na minha vida. Em trabalhos anteriores (Cymrot, 1993; 1997), inte-
nos comportamentos cios diferentes indivíduos. Falo de indivíduos 1cssei-me pela evolução do conceito de elaboração psíquica, desde
únicos, vivendo conforme as suas possibilidades, e não enquanto que este foi inicialmente proposto por Freud. Descrevi que elaborar
pessoas que apresentam deficiências. 1kpende de um trabalho mental constante e complexo, ajudado pela
Refiro-me à necessidade pelo psicanalista do reconhecimento 111tcração com o outro. Difere das idéias de cura, de solução perma-
ela diversidade humana, da riqueza de experiências sensoriais, de sig- nrnte dos conflitos, de eliminação definitiva da dor, do medo, do
nificados humanos, de valores, de preferências, de estilos, de possi- i.ofrimento. Nestes escritos correlacionei o conceito de elaboração
bilidades de manifestações, comunicações, e de interpretações des- ps1quica à teoria das posições PS = D de Klein, à teoria das transfor-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 23
PAULINA (YMROT
22
111étodo de aprendizagem da criança sobre os seus estados internos,
mações de Bion, destacando as noções de transitoriedade, de
111étodo relacionado aos mecanismos projetivos e introjetivos menci-
fugacidade, de descontinuidade da experiência emocional, da verda-
()l]ados por Klein ( 1934; 1946).
de e do conhecimento. Na experiência da análise, entendo que o ana-
Winnicott enfocou que qualquer interferência nessa interação
lisando se mostra para o analista e que o fenômeno presente no en-
visual é atribuída, especialmente, ao objeto externo. A mãe, o analis-
contro analítico é interpretado por este analista; essa interpretação
ta têm presença e função no tempo. Servem de estímulos para o indi-
depende das suas teorias, do seu vértice, da sua condição de conti-
viduo criar o seu modo de ser, quando estão disponíveis para sintoni-
nência. A teoria serve para o analista se localizar, mas não serve para
ar com ele e estimulá-lo na criação do que é necessário à sua reali-
ele equiparar fenômeno com verdade, com realidade. No presente
1ação. Sendo tolerantes para o tempo de espera e para não invadi-lo,
estudo, apoio-me nas idéias de Freud, Klein, Bion, Winnicott, na
.1 mãe, o analista ajudam o indivíduo em seu processo maturacional.
minha prática clínica e de análise pessoal, para discutir a importân-
l 'onforme Winnicott, a vivência do eu-sou, a consciência da
cia da continência para a vida psíquica, já que julgo que ninguém
ll'111poraliclade e da própria destrutividade comportam o processo
escapa ele si mesmo. Desejo ocupar-me do tema da retração =expan-
111aturacional. Trata-se de vivências que possibilitam ao sujeito preo-
são do estado de continência para a vida psíquica, na tentativa de
1 upar-se com os seus sentimentos e com o sofrimento do outro, res-
verificar a hipótese de que seja um fundamento da análise. Pretendo
p1 insabilizar-se pelos próprios sentimentos, pensamentos e atos.
também examinar a função do humor enquanto uma condição psico-
O autor considera que a bondade passa pela percepção da des-
lógica para a expansão do continente interno. 11 utividade, e a agressão com culpa e reparação constrói-se nas rela-
Em seu livro Privação e delinqüência, Winnicott (1999) lem-
~m:s familiares. A capacidade de perceber a destrutividade e de se
bra-nos que: (..) não é necessário que haja uma precisão absoluta
p1 l.!ocupar com o sofrimento do outro resulta da suportabilidade da
quanto ao tempo, e, de fato , a maioria dos processos que se iniciam 1unsciência da própria destrutividade, do sentimento de culpa, e da
nos primeiros meses de vida nunca se estabelecem plenamente e con-
1 l'rificação de que a fantasia de destruição difere da destruição mes-
tinuam sendo fortalecidos pelo crescimento que prossegue nos anos 111a. A tolerância para os impulsos destrutivos dirigidos ao objeto
subseqüentes da infância - e, na verdade, na vida adulta e, até mes- .1111oroso e de dependência depende de encontrar um objeto tolerante
mo na velhice. p.ira a agressividade. Falhas nesse processo podem levar ao desam-
O autor (1967) ensina-nos que a maioria dos processos psíqui- p.,ro, ao desespero, à atitude anti-social. Para Winnicott, se há sufici-
cos presentes no início da vida não se desenvolve plenamente; eles 1·1H.:ia de cuidados ambientais, especialmente no início da vida, há
seguem ajudados pela qualidade dos vínculos afetivos, pelo cresci- 1·~11.tço para as elaborações.
mento nos anos subseqüentes da infância. Os processos mentais pri- Winnicott descreve uma área de transicionalidade enquanto área
mitivos perduram durante toda a nossa vida. O autor desenvolve a d1• subjetividade para haver alguma discriminação entre fantasia e
idéia de um estado materno que reflete o estado do bebê, e de acordo 1l·alidade, e aponta para o risco de esta se tornar um refúgio psíquico
com Hinshelwoocl ( 1992), Winnicott reconheceu as descrições feitas
d11L'cionado para a manutenção da patologia. Ao crescer e discrimi-
por Lacan (1949) a respeito das descobertas que a criança faz de si 11.u melhor os sentidos, ao desenvolver a motricidade, a criança ma-
mesma ao se espelhar. Percebeu que o rosto da mãe constitui um 1til L·sta a motilidade e não só a agressividade. Mas ela é impiedosa e
"espelho" emocional para o bebê, e descreveu isto como sendo um
PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 25
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o compadecimento depende do seu amadurecimento. É esperado que Escrevendo sobre essas idéias de Winnicott, lembrei-me de uma
a mãe proteja-se da agressividade da criança sem vingança ou retali- experiência clínica que acredito ser ilustrativa das mesmas:
ação, sobrevivendo às tentativas de ser destruída por esta. Um modo
de destruição precisa ocorrer, é da natureza humana agredir, destruir:
o bebê possui uma intenção inconsciente de atacar o que existe e é
l - Experiência psicanalítica: José - Olho por
"bom", sendo esta a sua maneira de verificar o que existe de fato, de
discriminar fantasia e acontecimento. O objeto da criação precisa ser olho, dente por dente?
destruído para a criança descobrir a mãe real, que ambas sobrevivem
independentemente do ataque, que pode usá-la, pois sobrevive à des- No final de uma sessão, José reagiu com rispidez devido à sua
truição. Disso resulta a experiência de culpa, a possibilidade de sig- frustração pela minha impossibilidade de atendê-lo no seu pedido de
nificar o amor, de reconhecer a individualidade, de perceber o objeto troca do horário da sessão do dia seguinte. Pareceu-me que ele notou
mais real, de aprender a amar o outro que não é o si mesmo, e não só a minha expressão de surpresa, dada a sua reação violenta. E ocor-
amar a sua criação. reu-me que ele esperou uma retaliação de minha parte. Na sessão
A necessidade de criar e de destruir o objeto não tem a ver com seguinte, ele confirmou essa impressão. Disse que ficou surpreso,
as falhas da mãe. Para Winnicott, há um elemento de destrutividade pois não aconteceu a retaliação esperada. Disse que me viu decepci-
que é intrínseco ao amor primitivo, há a necessidade de estragar, de onada com ele e que achou que também teria ficado decepcionado,
sugar, de usar. E, perpetuamente, há a necessidade de elaborar o que se eu tivesse feito com ele o que ele fez comigo.
é destruído e que é também construído - (. . .) haverá mais Associo também com essas idéias de Winnicott uma história nar-
confiabilidade em si mesmo após o sujeito ter repetidamente agredi- rada no Ta/mude, o livro que contém comentários de estudiosos sobre
do o objeto. A diferenciação eu- não-eu se estabelece com mais se- os fundamentos morais e éticos do judaísmo. A história trata do tema
gurança num vínculo mais estável, contínuo. confiável. Ainda assim, da calúnia e de suas conseqüências: Um sujeito procurou o rabino da
não está eliminado o risco de dissociações, depressões, tendências -..ua aldeia porque se sentia culpado de ter caluniado um amigo, a quem
anti-sociais, psicoses. "Pôr a cara para fora" não é uma experiên- 111vejava. Queria reparar o prejuízo moral, pessoal, e profissional cau-
cia tranqüila, há angústias próprias ao estado de integração. ,ado a essa pessoa. Perguntou ao rabino o que deveria fazer para repa-
A mãe pode falhar e sobreviver à destruição quando sobrevi- rar os danos causados. Este pensou no problema que lhe foi apresenta-
vem as qualidades reais do objeto que foi criado como "bom" e que do e disse para o homem pegar o seu travesseiro, feito de penas de
é percebido enquanto um outro e diferente do que foi criado. A crian- •anso, descosturá-lo e sacudi-lo ao ar livre. O sujeito ficou aflito com
ça, então, aprende a usar o objeto e aprende que a destruição pode o conselho recebido, mas seguiu a orientação. Ao sacudir o travessei-
ocorrer somente na fantasia. Se o objeto não retalia, se permanece m, as penas de ganso foram levadas pelo vento. Depois, o rabino pediu
estável, abre-se espaço para a confiabilidade, para a sustentação do ,u> homem que as recolhesse de volta e as pusesse no travesseiro. O
continente interno. A via para isso é a do aprendizado por meio da homem percebeu a impossibilidade de reconstituir o travesseiro. O
interação, da experiência que produz segurança e continência para o ,.,bino disse-lhe que a calúnia deixa marcas, sendo impossível repará-
ódio, para a agressividade e para o gesto da criança. la~, assim como era impossível refazer o travesseiro.
Nln!,'llém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 27
PAULINA CYMROT
26
hle não postula a agressividade ditada pelo instinto de morte. Se a
Voltando a Winnicott, ele não vincula a agressão somente ao niança faz a experiência de destruição e verifica que esta ocorreu na
ciúme, à inveja, à frustração, ao sadismo; ela é parte do exercício que fantasia , que ela pode usar o objeto sem necessariamente poupá-lo,
leva à descoberta dos objetos de amor e de dependência existentes e .,prende que as pessoas têm propriedades próprias. O estado "eu-
necessários. O bebê morde o seio, e a mãe pode vê-lo como um ser ,ou" não é tranqüilo. Posicionar-se, ter opinião própria, responsabili-
vivo, sem permitir ser atingida. Da criação do objeto para a sua ar-se, dá-se gradualmente e envolve medos, ameaças, culpa, além
externalidade depende a capacidade de este sobreviver e não retaliar, de outros sentimentos. Ser, viver com liberdade, com autonomia,
e, nesse sentido, auxiliar o desenvolvimento da consciência da crian- . . 1,põe uma complexidade de sentimentos. Winnicott diferencia os
ça de que ele não é uma projeção daquele criado por ela. E, desse 1·..,1ados de não-integração, que pertencem à patologia, dos estados
modo, auxiliá-la na conquista da individualidade. O autor descreve que se referem ao déficit de desenvolvimento. Fala de experiências
que essas são condições que favorecem a experiência do compadeci- 111omentâneas de integração, mas havendo sobrecarga emocional
mento, a preocupação com os sentimentos do outro. Considera que a podem ocorrer estados de não-integração, de perda de integração.
natureza humana vem provida de potencialidades para a culpa, para l Jma vez alcançado o estado "eu-sou", a criança sente-se responsá-
se relacionar, e para criar, que precisam ser estimuladas por condi- ,l'I pelos ataques ao objeto cuidador, percebe seu impulso, sua impi-
ções ambientais favoráveis. Winnicott escreve que o ser humano nasce rdade. E isso é diferente de fazer o que quer sem se dar conta do
com um potencial criativo que se manifesta através do gesto, e este 1·..,1rago, pois se percebe autora do estrago. Percebe que a mãe tran-
necessita de um ambiente favorável para que ganhe um sentido. O qti i la, protetora e excitada é a mesma, pois pode integrar, reunir ele-
setting analítico e o holding (sustentação no tempo, respeito ao ritmo 111entos. A partir do alcance do estado "eu-sou", a criança sente que,
do analisando) auxiliam a experimentar tais vivências. Todavia, mes- quando ela atinge a mãe, provoca estragos, buracos em seu corpo
mo com um ambiente facilitador, podem predominar os estados 1 hcio de riquezas, diferencia o eu do não-eu, sendo esta experiência
psicóticos, a hostilidade ao não-eu. No ser humano, há tendências ,,,~ustadora, dado o medo da retaliação pelos seus ataques e a culpa.
construtivas e destrutivas, viver comporta a violência. Estar com o O estado de preocupação pelo sofrimento causado no outro fa-
outro não é o mesmo que anulá-lo. A presença de um indivíduo inco- , 1,rcce um sentido mais amplo de temporalidade. A criança percebe
moda o outro, e isto difere de não ter presença, não ser ouvido, não q11c atacou, ataca e vai continuar a atacar. Inicialmente incompadecida,
ouvir, não se compadecer. Ter existência implica ocupar espaço, atra- da se experimenta piedosa, o instinto, a culpa, o temor de perda a
vessar a vida do outro, ser influenciado por este e intervir nele. Um pnscguem . Compadecida, tem a noção de si, de seu impulso, da cul-
pré-requisito para tolerar a responsabilidade pelos próprios sentimen- p.1 e da responsabilidade pelos seus atos, e isto promove rnodifica-
tos, pensamentos, pelo desenvolvimento pessoal, naquilo que lhe ,,,cs no self e no objeto, integra a destrutividade à sua impulsividade,
compete, para preocupar-se com os sentimentos e com o sofrimento 111 seu ser, experimenta a reparação amorosa.
do outro, decorre da experiência de sentir-se separado, de poder dis- Winnicott prefere falar em compadecimento, em lugar de posi-
criminar-se em relação ao não-eu; depende do registro de que o outro 1, ,111 depressiva. Supõe que a culpa envolve a ambivalência e que o
é efetivamente outro, diferente de si mesmo. 11111padecimento implica maior integração e crescimento, retenção
Winnicott aponta para a consciência da temporalidade e da ,I,, ·'bom" objeto devido à confiabilidade introjetada, manutenção viva
separabilidade como conquistas necessárias para o amadurecimento.
28 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 29

do "bom" objeto interior e da relação com o mesmo, ao lado da des- ,, aprendizagem de que a destruição não é em si mesma destrutiva,
trutividade. Implica preocupar-se com os sentimentos do outro, tole- 111as psíquica. Dessas experiências decorre a consciência da realida-
rar-se e tolerá-lo, assumindo responsabilidades pelos próprios pen- ,k psíquica, quando há um continente interno para as mesmas.
samentos, sentimentos, atos, pelas conseqüências da vida instintual. Winnicott (1950) escreveu que a agressividade é equivalente à
Essas experiências são transitórias, oscilatórias, se dão através de ,11 1vidade e que a agressão constitui a expressão primitiva do amor.
interações. nas quais o jogo da lealdade se constrói, e, paralelamente, < 'onsidera a agressividade como integrante do desenvolvimento men-
o desenvolvimento psíquico acontece. Winnicott correlaciona o com- t.tl e só secundariamente como uma resposta à frustração. Pergunto-
padecimento à consciência de temporalidade, aponta para a fusão 111e se a toxicomania e a anorexia podem ser respondidas com as
necessária do elemento erótico com o agressivo, do impulso exerci- ideias de amor sem piedade, de amor primitivo, de desintegração e
do inicialmente sem piedade com o impulso exercido com liberdade, 111tcgração. E penso que a teoria pulsional de Freud mereceria ser
com controle, com responsabilidade, e não só contido, restringido. O 111ais considerada por Winnicott. Na primeira tópica, Freud postulou
li
cuidado de um outro é importante para acompanhar os ataques de- ,1 aliança terapêutica com o apoio do ego. Mas, na segunda tópica, a
1::
111
fensivos, as manifestações paranóides, cabendo ao analista tolerar os 11ovidade em sua teorização não é somente a conceituação da pulsão
movimentos relativos à integração, perceber o que o analisando ne- ,k morte e do superego. Freud apontou para a variedade de formas
cessita, colaborar para que o padrão paranóide não permaneça mais 111conscientes do ego, para os mecanismos presentes nas psicoses,
organizado. Se o sujeito tem um objeto que o suporta, com quem ele para a intolerância e a evacuação da frustração, temas importantes e
pode compartilhar seus medos, suas fantasias, o momento do "eu- 1l'tomados por Bion. O inconsciente não corresponde somente ao
sou" pode ser mais tolerado. ninteúdo reprimido; Freud trata doravante na natureza inconsciente
Acredito que o analista precisa ser destruído como objeto inani- do ego, da consciência que escapa ao sujeito, do incontido, do cindido,
mado, para que a pessoa se revele, nisto está a dimensão do encontro .dl'm do reprimido. O desconhecimento de si está no centro de seu
vivo e de renovadas descobertas. Na minha opinião, o impulso agres- ,~tema teórico, o conflito entre as tendências construtivas e destrutivas
sivo é potencialmente destrutivo e pode atingir o objeto. Todavia, a ,d,arca a subjetividade, a admissão ele múltiplas temporalidades, a
interpretação de sua intencionalidade ser destrutiva, ou não, depende questão da alteridacle. No sentido psicanalítico, o indivíduo resiste
do objeto para quem ele se dirige. O objeto precisa sobreviver, e não 1·111 ser encontrado pelo outro, e, ao mesmo tempo, encontrar-se a si
apenas não-retaliar; aceitar a culpa, para que a realidade psíquica 111vsmo; há resistências à coexistência de selves conflitantes e convo-
seja discriminada de outra realidade. Torna-se desesperador se uma ' .,dos a se tolerar mutuamente. Penso que a noção de eu, de pessoa
pessoa não pode reparar, ela precisa atacar e reparar. O objeto dispo- 111tcgrada, sustenta-se mais teoricamente do que na prática, podendo
nível para essas experiências propicia crescimento, ajuda a conten- ,l'I uma ilusão, embora uma ilusão que permite cada pessoa organi-

ção do impulso, a formação do pensamento, a discriminação de que .ir sua vida mais eficientemente, conferindo-lhe sentidos, ajudando
a destruição ocorreu somente no sonho, na fantasia. A sobrevivência 1·111 sua interação com outros, em sua sobrevivência.
do objeto propicia alívio, confiança, abre uma brecha na criação, Em seus escritos, Winnicott ressalta a importância do objeto
possibilita a verificação de que o mundo existe em si mesmo, de que nlcrno cuidador, primário e transformador para o desenvolvimento
no sonho é possível matar e o outro permanecer vivo e disponível, e p,1quico, objeto capaz de lidar com as angústias e as necessidades
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 31
30 PAULINA CYMROT

lioa não supõe que tudo se resume a uma relação dual. As falhas dos
fundamentais do bebê. Creio que se toma difícil para o psicanalista
pais são inevitáveis, e elas podem estimular a criatividade da criança,
avaliar o cuidado, a qualidade dos vínculos e dos afetos recebidos
pelo analisando fora da sala de análise, no início e durante a sua vida, ,ua autonomia, sua independência. Creio que pais superprotetores,
1i11ipotentes, favorecem a imaturidade emocional, a
no passado. E penso que não seja essa a função analítica. A extensão
rnmplementaridade psicótica. Acredito que a pessoa recebe intluên-
da influência dos fatores psíquicos e do peso do caráter dos respon-
1 ias de seus relacionamentos e inteifere neles. De sua potencialidade,
sáveis pela criança, o grau de intetferência das circunstâncias adver-
dos vínculos que constitui, das oportunidades que se apresentam e de
sas, é difícil precisar; frustrações e privações podem engendrar no
1·01110 ela se serve delas depende a qualidade da sua existência. Opor-
indivíduo uma visão hostil de si mesmo, de mundo, e, a meu ver, isto
1u11idades apresentam-se a uma pessoa. Ao nascer, ela não escolhe
não se dá automaticamente. A recepção e a interpretação do cuidado
ua família, sua cultura, seu gênero, sua condição social. Mas, ao
recebido, a dinâmica projeção=introjeção, continente=conteúdo, e
longo da vida, pode encontrar novas oportunidades, fazer novas es-
suas transformações, falam de disposições variáveis do funcionamento
1 olhas, aprender, se desenvolver. Expresso a minha idéia de que os
mental, de invariantes desse funcionamento que são realçadas por
pais, o analista, interferem no sujeito e sofrem influência dele; há
cada uma das teorias psicanalíticas.
11111a interação, uma mútua interferência, mas cada sujeito é o res-
Depende da escuta do analista o seu entendimento daquilo que
ponsável pela sua possibilidade de pensar, sentir, interpretar.
facilita ou que atrapalha o desenvolvimento mental, do que é ou não
Acredito que são poucos os relacionamentos em que um se ser-
é agressivo. Depende das teorias que nele ecoam, do seu treinamen-
H' das boas qualidades do outro, em que ambos os envolvidos se
to, a interpretação da intencionalidade e da intensidade das manifes-
1opeitam, se escutam, e aprendem sobre si e sobre o outro. Penso
tações clínicas. O psiquismo nã.o se constitui espontaneamente, mas
qul.! a experiência analítica deve se basear nisso.
só através das relações. Eis um pressuposto psicanalítico - Os olhos
O conceito de identificação projetiva tornou-se decisivo para
não enxergam a si mesmos, precisam ser refletidos em qualquer ou-
1\ kin (1946); ela descreve uma teoria psicanalítica na qual o
tra coisa, escreve Shakespeare. O homem necessita do outro, de um
p,iquismo se constitui a partir das relações com os objetos internos e
continente para se perceber, para se desenvolver, para se conhecer. A
,·,1ernos.
meu ver, o ser humano não nasce apto para conter suas emoções e
Para Bion (1962; 1963), o conceito de continência deriva da
seus impulsos, e para se responsabilizar, naquilo que lhe compete,
1bc:rição do conceito de identificação projetiva e pressupõe que,
pela sua vida. Para Bion (1962; 1963; 1977), a criança não nasce
1kte1 minada pessoa, em certo sentido, contém uma pa1te da outra,
com um psiquismo apto para tolerar sentimentos dolorosos e, conse-
i•,lo baseado no contato emocional do bebê com a mãe. Bion (1962)
qüentemente, para correlacionar experiências, pensar, julgar, pois tais
111ilizou-se da teoria kleiniana das posições e da teoria da identifica-
capacidades dependem de tolerância para os estados psíquicos
1,.10 projetiva para examinar a relação continente=contido; ele consi-
incontidos. Dependem de um continente que acolha o incontido. Penso
,li·rn que na identificação projetiva há uma intenção de comunicação.
que especialmente nos primeiros anos de vida, o ambiente facilitador,
e ·0111 desespero e violência, o analisando tenta livrar-se dos aspectos
o apoio parental, é essencial para o desenvolvimento da criança, para
,·utidos como intensos e poderosos demais para serem contidos. Sua
ela ter oportunidades e criar o que encontra em sua vida. Entendo
1,·,1\·ão pode parecer uma agressão primária, dada a violência; pode
que a noção pressuposta por Winnicott de uma mãe suficientemente
32 p AULINA (YMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 33

ser uma reação hostil ao analista, se ele espera que este experiencie Para Bion, o objeto psicanalítico é constituído dos elementos de
seus medos incontidos, se espera que o analista tolere a experiência l\i canálise que se apresentam na sessão psicanalítica. Estes se com-
de tais sentimentos que ele sente que a mãe renegou-lhes o ingresso pl>em, dinamicamente, para expressar as experiências emocionais,
em sua mente, tornando-se presa da ansiedade resultante da introjeção , tia combinação, sua evolução na situação analítica. Representam
desses "maus" sentimentos (a situação em que a mãe não sabe como !unções da personalidade, cada qual entendida como um conjunto de
atender a criança, por exemplo). O analisando cinde seus medos e .u;ões físicas e mentais governadas por um propósito; são idéias e
projeta-os para que sejam experienciados, transfo1mados na mente ,cntimentos que podem ser representados nas categorias de uma gra-
do analista, modificados, para serem reintrojetados por ele com se- de proposta pelo autor. Todos os elementos de Psicanálise são conce-
gurança. Bion propõe um modelo para explicar o desenvolvimento bidos como tendo dimensões que na mente do analista correspondem
do aparelho para pensar, o qual depende da introjeção de um objeto .,, impressões sensoriais, aos mitos (ou a construção de modelos) e a
capaz de conter, compreender a experiência emocional do bebê e paixão derivada dos vínculos de amor, de ódio e de conhecimento,
fornecer-lhe sentido. Basicamente, a idéia é a de que o analisando que representam as emoções e sua intensidade, quando do contato de
projeta seu se(f danificado na mente do analista, constituindo o ana- duas mentes com a dor da solidão, do isolamento, da perseguição, da
lista, o qual contém os objetos destruídos e recusados. Em lugar de ,kpressividade, da separação. Dentre os elementos de Psicanálise que
se aliviar por meio dessa projeção, o analisando pode tornar-se mais l' relacionam com o objeto psicanalítico, Bion aponta para

ansioso pelo temor do que o analista pode colocar nele, e, então, os rnntinente-contido, identificação projetiva, PS-D (oscilação entre
processos introjetivos perturbam-no. .1, posições esquizo-paranóide e depressiva), e a dinâmica dos víncu-
Bion ressalta a importância dos vínculos para o desenvolvimento lw, de amor, de ódio, de conhecimento, enquanto elos que contribu-
psíquico, especialmente o vínculo de conhecimento que se direciona 1·111 para a formação do pensamento e para o desenvolvimento psíqui-
para as transformações em O. Essas transformações não são aleatóri- ' 11. O autor entende que os vínculos de amor e de ódio, em si mes-

as; elas têm relação com um vínculo que privilegia a experiência de 111os, não são suficientes para promover aprendizado pela experiên-
ser o que se é, que estimula o crescimento psíquico, e não o saber. ' 1.1 emocional, sendo necessária a transformação em direção à

Penso que, para o autor, o desenvolvimento psíquico depende 111,aturação de conteúdos, de verdades; isto supõe certa condição
de poder estar continente para pensar as experiências emocionais. ,·11,ocional, uma atitude mental de abertura, de tolerância e de humil-
Envolve desarranjar o continente de estados emocionais e isto pres- il.1de para conhecer o que é desconhecido da vida psíquica, conter o
supõe condições psíquicas da dupla para sustentar a desestruturação 111rnntido e conhecer a vida como ela é. lmpljca alguma condição
e a reestruturação de experiências emocionais, de verdades. Supõe a 11,11a a atenção, a notação, a indagação, a investigação, a ação.
sustentação de ansiedades, da catástrofe potencial. Na análise, Bion Em sua te0tia das transformações, Bion (1965) chama a atenção
privilegia a observação da atmosfera emocional da sessão e da p,1ra a possibilidade de transformação do vínculo de conhecimento (C)
interação da dupla analítica, evitando a saturação de emoções e de 111 -conhecimento (--C), quando há perda da preservação do estado
memórias que dificultam a investigação, a atenção, a indagação em l''•lquico que comporta a dúvida, a incerteza, o questionamento. Os
direção a O ou ao desconhecido a respeito de si mesmo e da vida , 111nilos -amor (-A), -ódio (-0), -conhecimento (--C) estariam a ser-
(veremos mais a esse respeito no capítulo que se segue). 1~ <, <la evasão da frustração, do "desentender", relacionados com aquilo
34 PAULINA CYMROT Nin!,'uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor
35

que o autor chama de reversão de perspectiva e relacionados às experi- ,10 singular, ao genuíno ele cada indivíduo, aquilo sem o que a pessoa
ências emocionais de rivalidade, inveja, arrogância, indiferença, des- n;io seria ela mesma.
prezo, voracidade. Bion considera que a dor e a ansiedade não estão Neste livro, ocupo-me ela importância da expansão cio conti-
ausentes na mente e nem no ato de conhecer. Através de vários meca- lll'nte interno, enquanto uma função da mente para abrigar esse míni-
nismos, o analisando procura se evadir desses estados, podendo fazê- 1110 irredutível, incurável e imutável. Considero a expansão cio esta-
lo através da perspectiva reversível, quando ele distorce o conteúdo da do de continência para a vida psíquica como um fundamento da aná-
interpretação e a intenção do analista. 11\L'. Em minha leitura da obra de Bion, suponho que ele se refere a
A meu ver, Bion penetrou profundamente no espírito humano, disposições, a estados mentais dinamicamente compreendidos, e não
sua obra tem uma especificidade. Ele abordou o poder da destrutivi- 1algo preestabelecido ou estático, embora, muitas vezes, alguns es-
dade na mente humana, a evolução do pensamento, a evacuação da 1.idos se apresentem no sujeito com mais persistência, com mai s in-
frustração, a importância do aprendizado pela experiência emocio- 11·11sidacle. Na análise, concebo a idéia de dinâmica psíquica em um
nal; a complexidade da mente, a função alfa e a possibilidade de , ontexto relacional, e esta difere da noção de estrutura psíquica
transformação da sensorialidade e qualidade psíquica, o poder de p1ccstabelecida. Podemos observar que há disposições mais freqiien-
expulsão de conteúdos intoleráveis, a força da atuação e da evacua- h·s. ainda assim, penso que elas não conduzem à previsibilidade, à
ção mental nas relações intrapsíquicas e intersubjetivas, a clificulda- pcrmanência, pois tal idéia impossibilitaria a própria análise. Creio
de em se pensar numa pessoa total. Entendo que o autor considera na que a vida, a análise sejam feitas de incertezas, de inseguranças, de
'
idéia de continente-contido que o desconhecimento de si mesmo en- 111presas, de invisibilidades, de imprevisibilidades. ele
contra-se no centro de sua teoria, que o conflito humano que é ine- 1111permanência.
rente à existência do ser humano. Na música Como uma onda no mar, parece-me que o compositor
1,
Em seu livro Cogitations, Bion (1992) apontou para um dilema 1 11lu Santos aproxima-se dessa idéia de dinâmica da experiência emo-
fundamental: a modificação da frustração ou o seu esvaziamento; a ' 11 lllal, de transitoriedade da experiência, que expus anteriormente:
conservação do objeto, da representação, da singularidade, do con-
flito, mesmo se for considerado ameaçador, ou sua expulsão e o es- Nada do que foi será de novo do j eito que já foi um dia,
vaziamento da mente; o reconhecimento da singularidade, da res- Tudo passa, tudo sempre passará,
ponsabilidade pessoal, da alteridade, e alguma continência disto, ou A vida vem em ondas como o mar
a incontinência para certos conteúdos, o ataque ao pensamento, aos Num indo e vindo infinitos
vínculos. Escreveu sobre o vínculo -C relacionando-o ao desenten- Tudo o que se vê não é
der, à reversão de perspectiva. Não é só a frustração, o "mau" objeto Igual ao que a gente viu a um segundo
que é esvaziado, mas a toda a personalidade fica empobrecida. O 1i1do muda o tempo todo no mundo
incontido, o recusado na mente, torna-se sem valor, e nesse sentido, Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo
toda a existência fica esvaziada. De acordo com Bion (1963), há um Agora há tanta vida lá fora
mínimo irredutível, incurável, imutável em cada sujeito, algo ligado E aqui dentro, sempre
à essência de cada um, e que o diferencia de outras pessoas, referido Como uma onda no mar
36 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: PsicarníáJ.ise com Humor 37

A experiência analítica é transitória, como é a vida; o tempo é 111ultiplicidade de elementos, que se opõem uns aos outros, numa
silencioso, tem seus segredos, não se compromete e nem promete dialética inconciliável. Consi<dero que a análise revela a dinâmica
nada à ninguém. , ,111tido=incontido, proximida1de=distanciamento de si e do outro, e
Marcelo Gleiser, professor de Física teórica (EUA), escreveu, em l' refere a experiências emoQ:ionais que oscilam. Neste livro, sem
1998, sobre a irreversibilidade do tempo: o tempo avança indiferente dl'smerecer as idéias de Bion, 1que são tão úteis para a minha ativida-
aos questionamentos humanos; nenhum momento jamais se repete. dl· clínica, considero a hipótes,e de estar continente para a transitori-
Perante o tempo, somos todos impotentes. Sua passagem é democráti- ,·dade da vida emocional come:, um fundamento da análise, pois desta
ca, e ironicamente, rígida e inflexível (. .). A irreversibilidade do tem- 11111ção mental de continência _depende o pensamento, o sentido de
po está relacionada à complexidade do mundo. \lstir. Examino a função do !humor para a expansão do continente
Gleiser (1998) explica-nos que o movimento dos planetas em 1nll'rno. Considero a ausência Cde vínculos estáveis e significativos de
torno do Sol pode, em princípio, ir em qualquer sentido; se filmamos 1111paro e de confiabilidade, q1ue possibilitam o crescimento psíqui-
esse movimento, podemos passar o filme em qualquer direção sem ' 11, relacionada à carência de: um continente interno mais estável.
saber qual delas é a justa direção. Responde como a Física explica a \presento descrições clínicas para uma aproximação à hipótese que
óbvia irreversibilidade do tempo: a resposta, mesmo que não com- , 1111sidera o movimento de rettração=expansão da continência como
pletamente satisfatória, está na segunda lei da Termodinâmica, que i1111 l'undarnento da análise, e at função do humor e sua relação com a
afirma que a irreversibilidade de um sistema está relacionada com 11111dança psíquica. Quancfo me refiro ao movimento ele
sua "entropia", uma medida de sua complexidade. Em um sistema ... ,, ação=expansão da continê1ncia como um fundamento da análise,
reversível, os elementos podem traçar seus passos da situação final qttl·ro esclarecer que não aponlto para uma afirmação de causalidade,
até a inicial. O problema complica quando os vários elementos l11111pouco desconsidero que e,xistem muitas psicanálises. Penso na
interagem. Nesse caso, a probabilidade de que todos os elementos llllnação de modelos teóricos e não em um único modelo genérico,
do sistema possam retraçar seus passos é muito pequena, quase zero; 11.1 observação a partir do camJpo psicanalítico, supondo que há dife-
o sistema é irreversível, e o tempo flui em uma direção. 1,·111cs concepções a respeito ido funcionamento psíquico. Há dife-
Entendo que a análise não é predeterminada, é constante o esta- !L'llll'S teorias, com suas própri.as questões, e diferentes analistas com
do de expectação do analista, do analisando. O acontecer humano é 11\ estilos e com a história clee vida e sua formação.
estimulado pela análise. Apresento algumas das rninhas experiências clínicas, que ex-
A experiência analítica não tem a finalidade de cura jiic\sam certa forma de escut.ar e de observar no campo analítico.
psicopatológica, que me parece estar mais próxima da moralidade; l.-11ho em mente um vértice, a complexidade de condições e de fato-
não visa conduzis o sujeito para a superação do sintoma, já que este ., ... que a experiência intrapsíquica e intersubjetiva da análise supõe,
expressa o seu modo de existir, o seu estilo, a sua singularidade, a 111l· a oscilação do estado de ccmtinência envolve. Tenho em mente o
sua linguagem, a sua desesperança, a sua dor, os seus medos, o seu 11.11er incalculável de resp<)stas individuais para os múltiplos
desespero, o seu limite. Penso que na dinâmica eu =o utro, lttnrninantes, conscientes e inconscientes, finitos e infinitos, referi-
continente=contido, PS=D, o sujeito se constitui psíquicamente. !,,, a contextos e relações. Retiro-me às forças e aos limites inespe-
Trata-se de experiências emocionais que expressam uma 1,1d11s, desconhecidos, latentes que se atualizam a cada momento no
1\1111!:uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 39
38 PAULINA CYMROT

Continente= contido é função da interação? Do exercício da fun-


contexto da análise, e que oscilam. Aponto para as disposições pes- 2
\•lll alfa (Bion)? Da combinação de certos fatores?
soais da dupla analítica, para os diversos elementos que se combi-
O impulso busca gratificação, alívio; o infantil, presente na men-
nam, dinamicamente, para as condições desejáveis, possíveis e vari-
li'. pode perpetuar a voracidade, a onipotência, o pensamento concre-
áveis do par, e que resultam em encontros e desencontros.
lt 1. o apoio em "realidades" que justificam a arrogância, a paranóia, a
Julgo que nos seres humanos há variações em termos de força
olqm.:ssão; as defesas podem ser gratificantes. Como então expandir o
interior, de possibilidades de sobrevivência, de disposição para o
, , 111 tinente interno para o pensar, para as inevitáveis experiências de
humor; há variações quanto à coragem, quanto à curiosidade, quanto
ol111, de solidão, de perseguição, de depressão, de ódio, de angústia, de
à esperança, quanto à tolerância. Há variações de atenção nas experi-
11wclo, de inveja, de frustração, de dependência, de perda?
ências e nas ações vividas, há variações de indagação, de contenção,
A continência é preestabelecida? Estar continente supõe uma
de consciência nas experiências. Há comportamentos que substitu-
1pl 1dão? Um potencial a ser exercido, desde que estimulado por um
em a espontaneidade, a inventividade, há criatividade.
11wH1 favorável para isso?
Neste livro, considero a importância de estar continente para
A continência é liberada, é expandida quando estimulada pela
abrigar e desenvolver o próprio ser, para pensar e aprender com a
11 1,il idade do vínculo? Depende da qualidade da interação do par?
experiência emocional. Examino como a experiência psicanalítica
O que dificulta a expansão do continente interno? Em nossas
pode estimular o estado de continência. embora não pode criá-lo.
, ,, ias, temos respostas para o que favorece, para o que impede o
Inúmeras vezes durante a análise, o analista é pressionado pelo
1.1clo de continência?
analisando a dizer algo, a fazer algo. É comum o analista escutar o
11 possível reparar falhas básicas e essenciais que dificultam a
analisando dizer: Você não tem nada para me dizer? Não fala nada?
,111111ência e o desenvolvimento dos pensamentos?
Não agüento mais, não sei o que posso fazer para não sofrer desse
Como a experiência analítica pode favorecer a expansão do con-
jeito! Não vou agüentar! Não quero que seja assim! Não quero ser
1t1w11lc interno se, a meu ver, enquanto uma condição emocional do
assim!
111. il1 sta e do analisando, isso seria um fundamento à análi se?
O que significa estar continente para a vida psíquica?
Como o analista, com seu método, pode favorecer a expansão
Trata-se de certa condição que é necessária para a apropriação
111 l1111ção continente? O movimento retração= expansão da conti-
do ser?
11(1111 1a depende p1incipalmente das chamadas interpretações mutativas
Do que depende estar continente?
11.,c hey)? Existe alguma especificidade na técnica psicanalítica que
Como o arcaico, o primitivo, o infantil, o recusado, os estados
1111p1cia a expansão da continência?
mentais que estimulam os estados psicóticos, e que estão operantes
O humor auxilia para essa expansão? Como isso se dá?
em qualquer sujeito e são assustadores. avassaladores, temidos, ca-
<)ue transformações decorrem da expansão do continente inter-
tastróficos, podem ser abarcados, abrigados, contidos, pensados, ela-
1111 ·'
borados, ao invés de somente inundarem a mente?
Como um sujeito que dispõe de precária continência, de pouco
l)e acordo com Bion (1984, p.39), o fato selecionado refere-se à ex periê ncia de dar
abrigo para os seus sentimentos, para os seus pensamentos, para o '[ ,,, '" e si gnificado a fatos já conh ecidos, mas cuj a relação não hav ia sido pe rcebid a
l,1
convívio com o outro, pode expandir a continência?
Nlni:uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 41
40 PAULINA CvMROT

Espero que essas indagações estimulem o leitor a continuar a 111x1lio do humor para a expansão do mesmo. Descrevo outras duas
ler este livro. Ilustrando com situações clínicas e de supervisões que 1111ações clínicas que ilustram que fazer teoria é mais fácil do que
realizei no consultório e em clínicas psicológicas de universidades, pa.11 icá-la e expandi-la.
pretendo aproximar dessas questões. Acredito que a analisabiliclade No Capítulo II, relato algumas dificuldades experimentadas na
resulta da qualidade interativa da dupla analítica. Minha proposta é p1 .il ica clínica para estar continente. O capítulo intitula-se "O difícil
que todo relacionamento está presidido pelas emoções e pela quali- pnt:urso: do desamparo=onipotência à compaixão".
dade emocional do vínculo. Através do vínculo analítico uma pessoa No Capítulo III, "Reflexões sobre a experiência de análise com
pode se perceber, se ver e pensar sobre o que ela sente, e o que ela 1 11·dcrico", descrevo mais extensamente minhas experiências psica-
pode fazer com o que sente. Se o prazer, a angústia, o medo, a dor 1.il1ticas com um analisando, que me estimularam a pensar nas hipó-
ll:•,l'S que exponho neste trabalho.
não imobilizam o analista ou o analisando, se estes estados forem
tolerados, creio que há a possibilidade de cada um deles responsabi- O Capítulo IV, intitulado "Perseguição= humor, humanidade,
lizar-se pelos seus sentimentos e pensamentos. Concebo que quando l111111ildade", serve-me para desenvolver a associação entre humor e
esse conjunto favorável de elementos acontece, emerge o fato seleci- p,:11samento.
onado2, sendo possível perceber algo de natureza psíquica resultante No Capítulo V, "O medo de Seu Medo - lnconclusão", apresen-
de uma experiência emocionalmente compartilhada. 111 .dgumas considerações finais sobre as questões mencionadas nes-
Quem teve uma experiência de análise sabe que nesta se reve- 11• livro. Lembro ao leitor que o tema é complexo e que muitas ques-
lam a fragilidade e a precariedade do que parece sólido. Revelam-se tn,•, licam sem respostas. Afinal, não é esse o espírito do trabalho
o desconhecido e o invisível, que parecem não existir. Evidencia-se a 11·11t1fico?
força do que se acredita ser fraco, banal. A escritora Lygia Fagundes
Telles observou: Não há nitidez na natureza humana, e é nisto que
está a graça da vida. A aparência não revela tudo, como nos mos-
tram as plantas. Nenhuma análise é completa, ninguém se conhece
muito, e não conhece muito do outro. Estou convencida de que a
análise pode aproximar aquele mínimo irredutível incurável, imutá-
vel que constitui cada sujeito (Bion, 1963; 1965), e que é no contato
com este que, freqüentemente, se revela a carência do estado de con-
tinência, a recusa pelo sujeito, dos aspectos incontidos de si mesmo.
No Capítulo I, a seguir, denominado "Em águas rasas e calmas
é fácil ser um bom nadador!", examino o que, para mim, caracteriza
estar continente. Relato uma experiência pessoal, a do primeiro en-
contro que tive com o meu analista, por considerá-la como uma se-
mente germinadora de idéias desenvolvidas neste livro a respeito da
importância do continente interno para o crescimento psíquico e do
CAPÍTULO I
O que caracteriza estar continente?

H111águas rasas e calmas é fácil ser um bom


11.1dador!

Porque a dor nem sempre, o medo nem sempre


se pode, acalmar pela amizade, pela palavra.
Shakespeare, ln: Tróilo e Crcssida

Shakespeare tem a capacidade de sintetizar a dificuldade do


1 humano de conter aspectos não tolerados nele mesmo, e no
li I ll l.

111 icio este capítulo apresentando uma experiência pessoal, que


111-,Hkro estimuladora de questionamentos que originaram este Li-
111 Na experiência relatada a seguir, o humor do analista ajudou a
11iil1\.t11da na contenção de angústias persecutórias.
44 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 45

1. Vivência analítica: Paulina - É dos carecas 1,1s clínicas e de vida, deu o impulso e o sentido a este livro, para eu
111l' interessar sobre a importância de estar continente para o próprio
que elas gostam mais?
r1 e para o outro; e o uso do humor na análise como instrumento
11'1 apêutico e para fins de expansão dessa continência.
Do primeiro encontro que tive com o meu analista, guardo alem- Apresento duas outras situações clínicas vividas com Simone, e
brança ora relatada, e expresso-lhe a minha gratidão pelas suas contri- ,un Melanie, com o intuito de demonstrar a dificuldade de realiza-
buições, pelas experiências compartilhadas durante o convívio analíti- 11> <lo exercício da continência para a vida psíquica. Na prática, a
co. Essa experiência, embora não tenha sido a única, motivou-me a 1e111ia pode ser outra! A continência para as angústias arcaicas não é
escrever este livro. Neste primeiro encontro que tivemos, o analista, 1111ples de ser vivida. Nessas situações clínicas, o humor da analista
com sua atitude respeitosa, favoreceu que eu me expressasse livre- li,10 encontra a ressonância da analisanda. É possível que, na oca-
mente. Expus-lhe os meus temores, com a expectativa de me curar 1.10, essas duas analisandas necessitassem de mais solidariedade da
deles. Dentre eles, eu estava assustada com a queda dos cabelos de 111111ha parte para com elas. É possível que precisassem que eu as
uma pessoa da minha família e achava (na ocasião, eu não tinha a 11 ulhesse e nomeasse para elas corno se sentiam. É possível que eu

dimensão de que me referia a uma fantasia) que isso se devia à heredi- 1r11ha maximizado os seus recursos para abarcar o sofrimento. É pos-
tariedade e que, se eu ficasse angustiada, o mesmo ocorreria comigo. 11 l'i que meus esforços foram insuficientes. É possível que a inten-
Percebi o analista atento, sensibilizado e interessado no que eu 1d.1de das angústias arcaicas dessas analisandas impossibilitaram
lhe falei. Disse que percebeu o meu interesse por uma análise e que ele 111.dquer contenção. São apenas algumas considerações, a posteriori ...
também se sentiu disponível e interessado para termos uma experiên-
cia analítica. Para minha surpresa, e perplexidade, avisou-me que, caso
eu começasse a perder os meus cabelos, ele pouco poderia me ajudar,
pois nem os próprios cabelos ele conseguiu segurar na própria cabeça! Experiência analítica: Simone - Nunca a vi,
Nesse instante, percebi que ele era quase completamente calvo! ·1npre a ame1. ..
Rimos muito, espontaneamente, e essa experiência foi, e conti-
nua sendo, marcante para mim, pois nela pude vivenciar e reconhe- Antes de conversar comigo pessoalmente, Simone me escolheu
cer o que denomino de alucinação, de idealização, de onipotência, 11 ,1 ser a sua analista. Sem termos convivido ou conversado, fui
tão humanos! hT1onada para salvar seu namoro, que lhe parecia prestes a nau-
Aprendi que seriedade não equivale à solenidade, à formalida- 1:ur.
de. E que o humor respeitoso, por estar fo1talecido por um vínculo Quando nos encontramos pela primeira vez, ela anunciou qual
amoroso e de conhecimento, humaniza, aproxima, diminui a perse- lit ,, nosso único problema: a análise poderia ser inteITompida após
guição, auxilia a expansão da continência para conteúdos recusados l1l1., 111eses devido ao término de seu contrato de trabalho em São
por serem assustadores, podendo promover mudança psíquica. l 1,11do, pois, de acordo com ela, havia o risco de este contrato não ser
Hoje, enquanto escrevo estas linhas, comparo essa experiência 1111va<lo e, então, ela teria que voltar à sua cidade natal. Uma possí-
a uma semente que, aliada a outras experiências de análise, experiên- 1 ·,L'paração logo foi anunciada!
1t11111l'lll escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 47
46 PAULINA CYMROT

Indaguei-a se a sua situação profissional era o nosso único pro- q111va lente ou similar a um continente, ou seja, a uma bomba prestes
blema. E Simone reiterou sua afirmativa. Essa pergunta deixou-a per- nplodir, mas não a um continente para pensar os conteúdos. De-
plexa, talvez porque a interrompi durante seu relato, mas não serviu m itdeou-se em mim um continente de contemplação humana para
,l' equivalente nuvem/bomba continente.
para despertar a curiosidade, ou a ansiedade em relação a ela mesma.
Pareceu-me que a minha fala não ecoou nela. Estava ocupada em me Quando ela não era atendida no amor como queria, sua mente
1t 1 podia conter? Suspeitei que em outras situações de sua vida ela
apresentar as dificuldades vividas com o namorado. Queria saber o
que devo jàzer para aparar as arestas desse relacionamento, pois se tr, 1.1 apresentar continência para os seus conteúdos; contou-me que
sentia apaixonada, e não queria perder o namorado. Disse-me que es- 1.il,.tlhava, fora promovida, era conversável no contato comigo. Mas o
tava decepcionada com muitas coisas em relação a ele: queria que o p11· ocorria com essa pessoa fora da sala de análise, eu não podia teste-
namorado fosse sexualmente mais ativo, mais carinhoso, e pontual. 1111111 har. Ela disse que em seu trabalho era competente, que chefiava
Encontrei o homem que procurei na vida. Mas temia que a sua 11111.,s pessoas. O que queria dizer isso? Se exercia uma função de
explosividade, que se manifestava quando se sentia desconsiderada ou ,111,1ndo, podia exercer a violência? Que ela operava por cisões efica-
1
, 1~u não podia saber. Pareceu-me que, na minha presença, ela ten-
rejeitada, pudesse destruir o relacionamento com ele. E, embora esti-
véssemos nos apresentando naquele momento, de acordo com ela, a 111 111e encurralar, se impor, e me transformar em quem ela desejava.
nossa relação estava imune de desencontros, de decepções, de descon- Nesse encontro, a minha fala foi pouco audível por ela. Em seu
li ·.,·,pero, pressionou-me para saber o que deveria fazer para que o
troles, de conflitos. Pude observar o par que ela ia compondo comigo.
Eu existia e era considerada, à medida que ela determinava, do jeito 1111ora<lo não a deixasse. Pareceu-me que seu estado de perseguição
dela e conforme a sua necessidade. A minha natureza, em si mesma, 1,1, ., incontido e dificultava o diálogo, o pensar. Em seu desespero,
lr,•l'll me para livrá-la dos medos persecutórios de abandono, de
não parecia importar para ela, naquele momento.
1•,11,1C,·ão, incontidos.
Fiquei com a impressão de estar com uma pessoa cujo vínculo
l'crguntei-me como a formulação analítica pode estimular a ex-
comigo era intenso, mas era fraco. Com desespero, ela me apresentou
111· .. 111 da continência para a vida psíquica. Pensei que a intensidade das
sua tragédia afetiva: não conseguia estabilidade em seus namoros, eles
i1r11•,lias arcaicas, incontidas, podia transformar o pretenso encontro
duravam pouco. Explicou-me que ou ela sentia que a dependência do
iii d,·scncontro. Como expressou o poeta Vinícius de Moraes, a vida é a
namorado sufocava-a, ou o namorado era quem se distanciava dela.
111 dD encontro, apesar de tantos desencontros (consigo, com outros ) !
Disse estar ansiosa, sem poder dormir à noite, porque temia que sua
neurose estrague o relacionamento com o namorado. Disse que tudo
ia muito bem com ele, acreditou ter encontrado o homem ideal, mas ele
se distanciou depois de um episódio no qual eu explodi,porque ele não I· xperiência analítica: Melanie - Se todos
se comportou como eu esperava, disse ela. Seguiu contando sobre ou-
tras experiências semelhantes de explosividade emocional ocorridas
lm"crn iguais a você, que maravilha viver...
quando experimentou decepção, desconsideração.
Ao escutá-la, veio-me à mente a imagem de uma nuvem for- Vlelanie compareceu à sessão e sorriu brevemente, com forma-
mada de fragmentos, de partículas explosivas, um aglomerado, o l.1dl· O ~orriso me pareceu convencional. Logo desapareceu e deu
11M111·111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 49
48 PAULINA CYMROT

lugar a uma fala de desalento e de infelicidade. Disse não agüentar Não me ocupei em saber sobre a relação dela com a filha. Prefe-
mais o seu sofrimento. Durante aproximadamente trinta minutos re- 1.il.ir lhe da experiência que eu testemunhei, daquela que eu e ela
latou, num monólogo sem pausas, que sua filha foi à faculdade pela 11111 ,pávamos, e não da experiência que ela me apresentou. Cha-

manhã e ao meio-dia voltou para casa e se trancou no quarto como 11ri ., para a experiência presente.
sempre ela fàz, sem fàlar comigo, e fez uns telefonemas. Prosseguiu 1ila expressava tédio, ódio, desalento, impotência, em tom de

contando que mexeu nas coisas da filha, enquanto ela estava ausente, jlli'I ,a, ele lamentação. A meu ver, inundado pelas suas emoções,

e achou alguns recortes figurativos de pessoas, de móveis, e ficou 1,1·. decepções, o campo do pensamento, da atenção, da aprendiza-
horrorizada! Você vê, ela é uma criança, fica colecionando figurinhas! 111 11ao operou. Devido à carência de continência para o ódio, para
Saí para andar um pouco para ver se me acalmava, mas logo voltei. 1111potência, para as suas expectativas frustradas?
Senão ela fica sem comer. Trouxe um lanche para ela, e ela devorou <> que se passou entre nós?

tudo! Não sei mais o quefàzer, se não levo comida ela não se alimen- < 'omo eu me sentia?

ta ... Ela fica muito em casa e está engordando cada vez mais ... Não O que ela fez com ela mesma? Como se relacionou comigo?
sei mais o que fàzer. Não agüento mais vê-la deste jeito! (Chora). < > que ela não agüentou?

Essa menina é um problema! Meu marido diz que eu preciso me O que pensei que ela não percebeu?
desligar dela, mas ele fala isso porque ele não é a mãe! 1k meu ângulo, ela careceu de continência para os estados men-
Ao fornecer esses dados, Melanie reviveu, na minha presença, si- dt· lídio, frustração, impotência, e para atentar para a experiência
tuações de sofrimento. Pareceu-me que tentou me paralisar. tornar-me h ·., ·11tc. Seu instrumento possível pareceu-me ser a intolerância para

sua aliada incondicional. Estava movida pela certeza de que a sua infeli- 1111 lo que a confrontou, para os sentimentos presentes. Sua possibi-

cidade ou a sua felicidade dependiam do comportamento da filha. Des- 111,li· l'ra o ataque à percepção de si, ao vínculo de conhecimento.
creveu suas atitudes e denegiiu-a, dizendo: Ela é esquizofrênica, infàn- 1,1 "distanciamento de seu mundo mental, possivelmente devido à
til, incompetente para tudo. Queixou-se do distanciamento que a filha .. ,o da intolerância às expectativas frustradas, ao ódio, à impo-
lhe impunha. Ao escutá-la, notei que, naquele momento presente, ela 11, 1,1

não me percebia separada dela. Tratou-me como alguém que a apoiava, l •,quei com a impressão de que ela se serviu de certas circuns-
que pensava e sentia como ela. Observei que ela se fundia comigo e lii 1.1s para pôr em movimento sua crença de que, se o outro
pensei que, momentaneamente, era o que ela podia fazer. Fiquei com a 11,·,ponder aos seus anseios, ela será feliz e não sofrerá. Pareceu-
impressão de que ela operava mentalmente de modo a não se ver implicada ljllL' desejou obter credibilidade e que não duvidou da objetivida-

nas suas relações. Acreditou saber qual era o seu problema. Definiu a 1lu -.l'u juízo. De minha perspectiva, ela não considerou a interfe-

causa responsável pelos seus sentimentos de ódio, de impotência. Não nc1.1 das suas emoções e dos seus anseios incontidos, no seu julga-

duvidava da sua percepção, ela enxergava bem e não se enganava. 111, ,. Não verificou que, de suas emoções, de suas fantasias depen-

Ocorreu-me que eu tinha a tarefa de acessá-la, de atraí-la para k , , , timo ela percebe e o como se relaciona com ela mesma e com o
conversar comigo, embora a percebesse com pouca abertura para 1111, Mclanie afirmou que a filha necessita de cuidados. Disse amá-
escutar algo diverso do que pensava. Quando ela falava, não havia . 111t·ocupar-se com ela, mas o que pôde fazer, na sessão, foi
questionamentos, e sim certezas. 1, , .dorizá-la.
1w111•111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 51
50 PAULINA CYMROT

t ., n:sponsável pelo que eu sentia. Perguntei-lhe se havia alguma


Perguntei-me se ela expressava ódio e sofrimento para que eu
,idrncia, para ela, na experiência ora vivida comigo, de que eu esta-
os contivesse, os metabolizasse. Achei que ela me lançou nas suas
i ,il,orrecida ao escutá-la.
preocupações, que tentou me envolver na situação, para que eu a
Mclanie riu, pareceu ter ficado surpreendida com o que ouviu.
apoiasse e lhe oferecesse a solução, para o que ela denominava ser o
,11rnrdou comigo. Senti que eu a havia tocado. Ela permaneceu
meu problema. Perguntei-me se ela suportava a metabolização, a con-
ll'l1rnisa por uns minutos. E, na seqüência, reconheceu sua necessi-
tenção de experiências emocionais, ou se o seu interesse estava mais
1,,.i,, de ajuda, que era preciso ela fazer algo para ela mesma, pois se
para o desabafo, para a evacuação dos conteúdos intoleráveis.
1111.1 <'.\gotada.
Ocorreu-me a idéia ele que ela se sentiu impotente quando con-
"lo entanto, o tom emocional de suas palavras despertou em
frontada, frustrada e, por não conter, isso se acompanhou de ódio, de
111 duvida, não fiquei convencida da sinceridade das mesmas, e
ressentimento. Se ela não percebia a experiência vivida entre nós, se
11111111quei-lhe isso.
não reconhecia que os seus movimentos e o seu modo ele relaciona-
\ analisanda comentou, com descontração e satisfação, que
mento interferiam na qualidade cio nosso relacionamento e na quali-
lt ;11 que eu estava bem atenta à ela. Porém, imediatamente reto-
dade de sua existência, então, pensei, ela não aprendia com as pró-
Ili ,1 1:tlar da decepção em relação à filha, do desprezo que sentia
prias experiências e se repetia.
t ,·I., e da falta de sorte em sua vida.
A analisanda redundou na lamentação pela falta de sorte com a
< >ptci por chamar a sua atenção para a minha presença, para a
filha.
111•11cia imediata e presente, e testemunhada por nós; e não para
Falou ininterruptamente durante trinta minutos, e, repentinamen-
pniências anteriores ou futuras. Lembrei-a de que eu estava
te, virou-se no divã, olhou-me e disse que achou que eu devia estar
o'llll' e disponível para conversar com ela, que estávamos num
cansada de ouvi-la despejar aquele problema, que ela devia estar
'" 111omento, numa outra relação, mas que a notei somente pondo
sendo chata. No entanto, não se interrompeu, nem esperou pela mi-
1L,u1 na filha, "não dando muita bola" para o que eu lhe dizia.
nha resposta, e continuou no mesmo tom lamentoso e conteúdo.
.\ ll'lanie riu e respondeu que eu era firme e competente, e que
Interrompia-a dizendo que a percebia tomada pela decepção,
111, 1111tado ao marido sobre a minha competência. Mas, na seqüên-
pelo ódio, pela impotência, e que a intensidade desses estados podia
lMl' que ele é pai, e não mãe, e por isso não sofre o que eu sofro
estar contribuindo para que ela se interessasse mais em desabafar do
,,. preocupa como eu. A meu ver, denotou pouca condição de
que em conversar comigo e me escutar; contudo, eu estava disponí-
1i11rncia para os seus estados mentais e para a minha contribuição.
vel para conversar com ela. Disse-lhe que fiquei com a impressão de
1 11 l"iquei com a impressão de tê-la tocado, pois ela se
que ela acreditava que os seus sentimentos, sua felicidade ou infeli-
,1111.iiu, mudou de estado, mas duvidei da ressonância da parte
cidade dependiam do comportamento de sua filha. Num tom afetivo,
Lt I la disse que temia chatear-me, e eu a via achatando outros
calmo e humorado, falei-lhe que eu não podia falar de sua filha, pois
lri11los num só. Ocorreu-me que ela precisou confirmar a sua te-
nem a conhecia, eu podia oferecer ajuda somente para quem me pro-
,1,. que com ela ninguém pode, e não há o que se possa fazer por
cura e se interessa por essa ajuda. Disse que observei que, por um
, ~e momento, lembrei-me também de que ela buscou ajuda;
momento, ela se preocupou comigo, se me causou sentimentos desa-
lii11·111os a moviam para estar ali.
gradáveis, se me cansou, e me mostrou que ela pensou ser ela, e não
52 PAULINA CYMROT li1w111•111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 53

Pensei que a análise, assim como a vida, é feita de sucessivos Do meu ângulo, no momento, não houve mudança em seus es-
momentos, nos quais o movimento de retração=expansão da função 11111, mentais e, portanto, não houve mudança em sua percepção.
de continência para a vida psíquica se presentifica. Cada sessão é úni- 1•~•vHlo à intensidade do ódio? Este não serviu para se ver separada
ca, não se sabe se ocorrerá a próxima. Se foi válida a minha hipótese '411111tro? Devido à idealização da relação mãe-filha? À inconsciên-
de que ela operou por fusão, e que para ela nós éramos duas almas l,1 quanto aos recursos que dispõe para conviver com o outro?
gêmeas que sentem e pensam o mesmo a respeito do problema dela, eu Não fui competente para contê-la? A minha comunicação não
não podia esperar dela a noção de que a sua percepção não é objetiva e ,11l1ciente para ela? Não fui continente para as suas emoções?
que depende dos seus sentimentos, das suas expectativas, dos seus de- hsas interrogações ficam sem respostas. A análise ocorre num
sejos, dos seus ideais, das suas angústias, da frustração incontida. Pa- 1111111 relacional, minado, em que o clima emocional é variável, im-
receu-me que, para ela, o que viu e sentiu era verdade, realidade, fato. ' 1,10, assim como são efêmeras e transitórias todas as experiências.
Falei-lhe o que se passou comigo e entre nós, conforme pude A meu ver, a condição possível para essa pessoa, nessa sessão,
selecionar no momento; e, na tentativa de não endossar o seu sistema 11·v1ver, desabafar, descarregar, buscar alívio. Coube-me a função
1111
de idéias, apresentei-lhe um outro, diferente do dela, observando o 1,il111L·a ele acolher, tolerar, conter, nomear, dar opinião. Procurei
uso feito por ela. 11111 como ressoou em mim tal experiência, e ocorreu-me que a
A meu ver, o que se passou na sessão? 111l1·,.111da apresentou uma idéia de zelo, de cuidado, diferente da
Do que pude observar, o sofrimento da analisanda não era falso, ili1l1.1 Seu recurso possível, dada a frustração, pareceu-me ser ades-
mas "de bom tamanho"! Pensei que precisava ajudá-la focalizando um tr,1 ele emoções desagradáveis, de intolerância ao ódio, à depen-
ponto, e procurei observar se surgiu algum reconhecimento de si. Ela li~ 1.1 aos anseios frustrados . Ela estava sendo ouvida por mim,
mergulhou em amargura, desesperança, impotência=onisciência, ódio, l,1\ :1 acompanhada, mas não me pareceu que reconheceu e que su-
1

frustração, e a minha tentativa foi infrutífera. Na sessão, ela reviveu 111>11 ~·ssa experiência. Na sessão, fiquei com a impressão de que
experiências, e se repetiu. Não foi possível ela se deter no que lhe 1c 111ou me lançar na situação, me envolver para que eu resolvesse
ofereci, estava convicta de que a sua sorte ou o seu azar dependiam da 111.1, alllente o que ela considerou ser o seu problema; e esperou
boa vontade ou da falta de colaboração do outro para com ela. Desse 111·1 ,tpoio pelo que sofria, o que é compreensível, mas sem se
seu vértice, se a filha fosse outra, ela não sofreria, e sua vida seria p!11,,11 na produção desse sofrimento.
maravilhosa. Pertenceu ao meu vértice a idéia de que o seu sofrimento 1. ·11111uniquei-lhe algo a respeito do que pensei ser a sua crença e
relacionava-se a uma desproporção entre os seus anseios, os seus ide- pw rntcndi que ela podia fazer com o que sentia, naquele instan-
ais e a continência para os seus recursos mentais, para se discriminar e 1', 1m· ofereci para conviver com ela, e para juntas aprendem1os
discriminar o outro. Foi o que eu percebi. E se ela teve uma outra , 111.11s sobre o seu sofrimento. Melanie construiu uma história,
percepção, não foi porque ela estava enada, e eu certa; penso que se l.1 possível e tolerável para ela sobreviver com os recursos de
deveu às nossas diferenças de compreensão quanto ao seu sofrimento. dhpoe. Na sua versão, na sua visão, se as pessoas forem como
Dessa perspectiva, entendo que a teoria do analista não é me- p11:1. ela não sofrerá? Nessa sessão, não consegui acessá-la, a
lhor e nem superior à teoria do analisando, é somente uma outra, que 1111-1 1111 mulação não estimulou a continência para as angústias e
pode, ou não, ser aproveitada por ele. 1 w; l'lllOÇÕes incontidas.
54 PAULINA CYMROT 111·111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 55

Apresentei três experiências analíticas, cada qual com suas vi- Interesso-me pelos movimentos psíquicos, pelo cruzamento
cissitudes. Com Paulina, o humor operou rumo à expansão da conti- 1111, u,11al que evolui durante a sessão analítica. O que cada um faz
nência ao temor. Com Simone e com Melanie, o humor não ressoou. 111 11 que escuta e com o que sente, o que cada um enfatiza, o que
Sobre o humor, discorrerei mais no Capítulo IV. O desespero de Si- 1id:1 Como cada um interage e experimenta a situação analítica. A

mone impediu-a de pensar? A intolerância, a impotência de Melanie i1;,H, de examinar a experiência clínica do ângulo da oscilação
impediram-na de aprender com a experiência? l\,IO• •expansão da continência não é inócua, nem é indiferente

As questões propostas neste texto apontam para a complexida- 1 11 rnnstrução das idéias por mim propostas. Faço um recorte,

de, e não para a simplificação de respostas. Certamente, elas deixam 111 ldtragem. Não ignoro que a memória, a percepção e a atenção
mais dúvidas e inconclusões do que respostas. O meu intuito é pen- ektivas, pois tenho em mente que a singularidade é constituinte
sar a prática psicanalítica, é tentar me aproximar um pouco mais das llilhalho científico. E que a observação inevitavelmente está
nuanças dessa prática, ciente de que muita coisa da experiência clíni- 1111 ,1d.1 de experiências prévias. Procuro atentar para que os pre-
ca fica desconhecida. li c11rn,, o juízo moral e a saturação de memórias e de desejos fi-

Este trabalho expõe a minha idéia de que estar continente não 'lli 111inimizados. Lembrando-me que, para observar, para escutar,

se refere a informar, a explicar, tampouco a desfazer as teorias do pii'CI\O paciência. E sobre a paciência Shakespeare, em Tróilo e

analisando. Mas a estimular para que ele observe a experiência emo- 11,/11, assim escreveu:

cional que evolui quando ele se junta com o analista. Penso que é
essencial ao analista uma disciplina que inclui o seu treinamento, Tróilo: ( ... ) Que sigam para o campo de batalha os
paciência, fé no seu método e alguma segurança para exercê-lo com troianos, donos do próprio coração! Ai! O coração de
liberdade, sendo tais condições emocionais favorecidas pela conti- Tróilo já não me pertence.
nência aos seus medos, às suas angústias, às suas incertezas e à igno- Pândaro: Vosso estado é, então, irremediável.
rância. Em meu trabalho clínico, verifico que as formulações que Tróilo: Os gregos são fortes e além de fortes são há-
contêm o humor espontâneo, respeitoso, derivado da continência do beis; além de hábeis são cruéis e além de cruéis são
analista para as angústias do analisando, podem ajudar a expansão valentes! Quanto a mim, sou mais fraco que uma lágri-
ma de mulher, mais tímido do que o sono, maisfãcil de
da continência para os conteúdos recusados. Ajudam a humanizar o
ser enganado do que a ignorância, menos valente do
que antes surgia como perseguição, quando o analisando é tocado
que uma virgem durante a noite e menos hábil do que
pelas formulações do analista. Quando isso se dá, é concomitante a
uma criança sem experiência.
condição de continência do analisando e do analista, naquele instan-
Pândaro: Está bem; já vos falei o necessário a esse res-
te. A análise é uma parceria. A espontaneidade, a informalidade, o
peito; por minha parte, não quero imiscuir-me, nem ir
diálogo franco e humorado auxiliam estar continente para o sofri-
mais além no assunto. Quem quer ter um bolo com tri-
mento. Ajudam o analista e o analisando a suportarem a oscilação go deve esperar que seja moído.
retração=expansão da continência. E isso me parece fundamental Tróilo: Já não esperei?
para a continuidade da análise, conforme a entendo e pratico, e cien- Pândaro: Sim, a moenda, mas é preciso esperar o
te de que há muitas formas de pensar a Psicanálise. peneiramento.
56 PAULINA CYMROl tM11i·111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 57

Tróilo: Já não esperei? !i1.1, teorias não supõe estar na experiência com a mente saturada
Pândaro: Sim, o peneiramento, mas é preciso esperar a 111110s, de memórias e de verdades. Entendo que assimilar, se
fermentação. 11·,, tL·ntizar, significa se apropriar, metabolizar, se instrumentar.
Tróilo: Sempre esperei.
l11lgo ser impossível provar a veracidade de uma teoria, mas ser
Pândaro: Sim, até a fermentação, mas na palavra "de-
,, l'I contestá-la. As teorias científicas não são sugeridas por fa-
pois" estão ainda compreendido a amassadura, a con-
cl.1s se referem a abstrações e não ao fenômeno mesmo, decor-
fecção do bolo, o aquecimento do forno e o cozimento.
1 d.1 observação e da intuição humana. Não há verdades últimas,
Ainda é preciso que o deixeis esfriar ou correis o risco
11it•, algumas teorias resistem aos testes mais do que outras, e acre-
de queimar os lábios.
'IIIL' esse critério pode demarcar a consistência das mesmas, já
1,111.,~ elas são insuficientes para abarcar as experiências que re-
Habitualmente, o significado da palavra paciência está associa-
111.1111. A variedade e a complexidade psíquica têm uma amplitu-
do a uma idéia de conformismo, passividade, resignação. O que es-
li 1.11111 do que a teoria. Entendo que uma teoria pode se expandir se
tou considerando neste livro é um atributo oposto a isso. Paciência
11,·1 observação continuada e intuição. As teorias são idéias que
entendo como uma atitude ativa, enquanto um tempo de espera ne-
ll'ill IL'alizações para não ficarem desvinculadas das particularida-
cessário, uma possibilidade de contenção da ansiedade, para que uma
lr ,L'll objeto de estudo, e, em se tratando da Psicanálise, penso
pessoa adquira confiança, respeite-se ou respeite o ritmo do outro,
o objeto a ser estudado é a singularidade, é o desconhecido da
permita-se dar passos rumo a um terreno desconhecido. Penso que a
li,l.11h· psíquica que se revela quando do contato de duas mentes,
capacidade de experimentar paciência faz parte da disponibilidade
11c11111ro psicanalítico. Quando o analista conceitua algo, ele faz
interior de operar como um continente.
1l>·,1ração, quando ele interpreta, ele nomeia, configura a expe-
Em 1926 (A questão da análise leiga), Freud concluiu que, em
1,1 , 111ocional. O analista pode se aproximar ou se afastar da ex-
si, toda ciência é unilateral, e que assim deve ser, visto que se restrin-
111, 1,1 L~mocional do analisando em curso na sessão. Sabemos que
ge a conceitos, assuntos, pontos de vista e métodos próprios e espe-
tsl11111 uma idéia a respeito do outro, especialmente se ele é um
cíficos, sendo uma insensatez lançar uma ciência contra a outra. Con-
lo ,1111111ado e se o observador também é um participante da rela-
cordo com essa afirmação de Freud, e com a sua observação (1920)
de que nas atividades humanas, e, inclusive na produção científica, 110 mínimo, complicado; supõe um trabalho mental continua-
1;1 1tl1,1ração para a realização, e desta para a abstração.
não há neutralidade, imparcialidade; os comportamentos, as esco-
>11crn esclarecer que entendo que a atividade de conhecer im-
lhas têm suas razões conscientes e inconscientes.
p:11 a mi rn, fazer algo ao objeto, interferir, ressoar nele, e so-
As teorias são necessárias para se localizar, se definir, mesmo
l i111,·tf'crência deste. E nessa direção, observar, conhecer, pres-
porque não é possível perceber algo de um universo sem estabelecer
11111 processo ativo, um estado mental de abertura para inves-
ligações, correlações. A teoria do analista faz a ligação entre as vicis-
lok-rância para certos sentimentos e ansiedades. Comporta
situdes da relação analítica e a metapsicologia, nas quais estão as
grandes hipóteses, os principais conceitos, os esquemas da imagina- 11!11cia de que a assimilação do conhecimento se acompanha
11u111.1,'(ll'S e deriva do contato com as emoções. Isso difere de
ção propostos enquanto modelos teóricos. No entanto, assimilar al-
11lii1111.1\•úes, de alcançar resultados. Penso que a assimilação
PAULINA CYMROT
58 111111'111 t•scapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 59

de um conhecimento decorre de sua aproximação com a experiên- n/111; com força interior, a separação conjugal. Por isso, queria
cia emocional, de viver, ser, perceber-se nessa vivência e dela apren- 1111.1111ente iniciar a análise. Disse ter sido recomendada por uma
der. Para conhecer é preciso sentir, penso que seja possível conhe- lq•,1 que lhe falou a meu respeito, que eu era uma ótima profissio-
cer se há continência para os estados mentais. Um conhecimento ,· que essa amiga logo se identificou comigo. Decidiu, sem se-
pode ser armazenado. Mas cada experiência é única, é nova e ele 1 rn11vcrsar comigo, que se eu servia para a sua colega, eu tam-
pode ser insuficiente. Considero a mobilidade psíquica, a 111 •,nviria para ela, eu era a pessoa mais indicada para fortalecê-la
efemeridade da experiência emocional, e a necessidade de expan- tilit -.l'paração conjugal. No meu modo de ver, alucinadamente fui
são da continência para o sujeito conter o que sente, para pensar, ll11da para ser seu continente.
para ser, para aprender, para vi ver. l 1·1 ro (] 995; 1998a; 1998b) usa a noção de narrativa para ex-
1:11 Neste livro, apresento outros recortes de experiências psica- 11 a natureza da Psicanálise, em vez de evocar a noção de méto-
nalíticas que servem ao meu propósito de ilustrar os movimentos 11 .111alítico. De acordo com o autor, o analista, em suas interpre-
psíquicos, oscilatórios, ele ret:ração=expansão da continência na orcrece ao analisando os derivados narrativos das transfor-
análise; e a possibilidade do uso do humor, para favorecer essa nn que se processam nele mesmo, quando ele pode estar em
expansão. Na prática psicanalítica, estamos no campo da inter- 11,11,, l'Olll a sua própria imagem mental. Em seus escritos, escreve
subjetividade, no campo das hipóteses e conjecturas, que são tes- 111 ,111alise há a solicitação do continente por parte de um conteú-
'I tadas à cada momento. No setting há uma constante construção 1111111 larrnente turbulento e que remete ao terror - o "continente
1111 de hipóteses a respeito da experiência relacional vigente; e aque- 11w111ado" transforma-se em conteúdo projetado, invasivo e que
las dependem dos estados mentais que surgem, dos limites e da~ lr111.1111cnte irrompe. A falência da capacidade de contenção do
possibilidades do par, da mútua interferência dos envolvidos, o~ 11111,1 pode intensificar o fluxo de identificações projetivas (Klein,
quais são testados e conhecidos durante o encontro analítico. Re- 11 , i_ll- angústias impensáveis (Winnicott).
firo-me a uma parceria emocionalmente ativa, viva, em pulsação. N,, 111cu trabalho clínico, verifico que as pessoas juntam experi-
No cotidiano da clínka, tenho observado que o interesse do 111', 1·111ocionais, que são captadas fragmentariamente, e contam
analisando em ser compreendido, apoiado, cuidado, aceito, aliviado 1,1,. L'.xemplificando e justificando o que lhes ocorre. Aconteci-
sobrepõe-se ao seu interesse pela verdade psíquica. E não há nada dl' lil',, , 1vências são ordenados enquanto narrativas, com os mitos
criticável, nenhum pecado nisso! 1;1i'i, numa justaposição de fatos, criando-se um enredo, inven-
111eu ver, a narrativa supõe uma seleção de impressões de
10,1 \L'nsorial e emocional. A rotinização, os hábitos, os rituais,
i1u1al11.ações geralmente encobrem o contato com a experiên-
4. Ilustração de uma experiência clínica: Ana - lil\ H 1011al, podendo resultar em comportamentos inconscientes
Nunca a vi, e alucinei ... ,., suas razões. Alguns movimentos psíquicos são perceptí-
11q11a11to outros não. Há crenças que não são afetadas pelas
Ana apresentou-se para mim como psicóloga e estudante de urn 111 1.1s e que produzem sistemas de pensamentos e de compor-
curso de especialização em Psicanálise. Queria contar comigo pani 1lo•, que empobrecem o indivíduo em sua relação com ele mes-
11 1•~t'.1p,1 de si mesmo: Psicanálise com lf-lumor 61
60 PAULINA CYMRO I

mo e com os seus objetos. Os fatos relatados podem estar articuladm 11i_::,; 1110 vértice (Mezan, 1988). Um conceito pode ter concep-
ou desconectados em relação com a experiência emocional. lil t.: 1,•1t1c:-.. Os conceitos variam die autor para autor, assim como
O analista, como o analisando, capta fragmenta.riamente as expc i111p111 lúncia nas teorias. Refiro-ime à leitura, à assimilação teó-
riências. Durante a sessão analítica, ele focaliza algo e dá um sentid1 1'1.111ca clínica, ao vértice e ao campo que se apresenta a um
ao fenômeno que se apresenta para ele. Comunica a sua impressãl 1d, 11 Portanto, é preciso buscar um denominador comum quan-
para o analisando, sem saber qual será o desdobramento dessa comu 1111li ,.1 um conceito de diferente.s maneiras.
nicação, que transformações serão feitas pelo analisando, conformt .. 1 direção, Laplanche e Pontalis (1977) sugerem que mais
1111 aquilo que ele experiencia. O analista necessita estar continente par 111r 111 ,lmiar a multiplicidade do L1so de um conceito através do
apreender algo da experiência conjunta, a qual vai mudando, cvoluin p11 , dn t:spaço, é preciso recupení-lo no momento em que ele é
do. Ele forma uma opinião a respeito do que se apresenta para ele n, 1111.1110, para evitar a disputa de c1uem tem o saber. E lembrarn-
experiência, dependendo das emoções, das ansiedades que estão en lllt 11 111odo como as teorias são C<)nstruídas a partir de evidênci-

trânsito a cada instante da sessão. A evolução da sessão analítica i 11i1p,111 Ilhadas, e como devem s~r questionadas, é regido por
imprevista para o par. Há invariantes na mente humana, há uma dinfi 11i 1:11~ teóricos diferentes. É neCf!ssário verificar o que é intrín-
mica emocional, há padrões emocionais mais ou menos flexíveis , h P, 1111ccito, como ele se insere no corpo teórico, pois a estraté-

disposições psíquicas e relacionais que se atualizam na sessão. Contu 11111, .1 depende da articulação teórico-metodológica.
do, no psiquismo prevalece o ideal de estabilidade, de previsibilidadt l •111 ,L' tratando de continência, P::tra Bion (1973), o objeto-con-

il de durabilidade emocional, de mudança do que é indesejável em ~ 1ll' 11~1 L'bc o projetado, desintoxica a emoção e a pessoa que se
lll 111 drsso se identifica com o COhtinente.
mesmo e no outro (costumamos denominar de "defeitos" aquelas ca
1

racterísticas recusadas, não toleradas em nós e nos outros). i ,111L' isso sugere? Que ela dispõe de flexibilidade mental para
De acordo com Mezan ( 1988), quando se fala em um conceito. 11 rn de continência, naquele momento?
111
a homofonia da palavra pode ocultar a variedade de conteúdos qrn 111. n contato do sujeito com se4s conteúdos já é expressão de
Ili 1,1'!
ele assume em cada teoria psicanalítica, e essa diversidade pode SL''
pouco importante ou fundamental. Cabe ao analista definir para si 1 11i1H1 a relação analítica pode ajudar a expansão de continên-
conceito, discernir sua correlação com outros conceitos, o seu stat11 1 .1 vida psíquica?
dentro de uma teoria. E o seu vértice de trabalho. O método utilizad1 111 "1 nculo de confiabilidade e de conhecimento construído ao
pelo analista não está desvinculado de sua capacitação profissional l.1 .111álise e favorecido pela exJ>eriência de continência pode
de suas teorias, de seus questionamentos e de como estes serão re~ 1111.11 uma pessoa dela mesma, C')ntribui para uma diminuição
pondidos, ou seja, as opções teóricas e a prática clínica obedecem ii:d.1des persecutórias e de aluci1ações. É a qualidade do vín-
uma rede de fatores articulados e sobredeterminados. lih' l' 111ternalizada e favorece a Continência?
Da clínica surgem as indagações e as tentativas de soluciona i11.111do falamos em internalizaÇão, em identificação, do que
las, a construção dos conceitos e dos dispositivos técnicos corre~ 11, ·;11,tlando?
pondentes aos modelos elaborados. O movimento psicanalítico ten i '11q11anto psicanalistas, dispomos de teorias consistentes. Con-
uma história. Os psicanalistas não falam a mesma língua, não possu 111: 11h11ma contém os fatos que prccura esclarecer. A Psicanálise
11,·111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 63
62 PAULINA CYMROT

não pode conter o domínio mental, ela não é um continente (Bion, <)uando Freud (1921; 1923; 1931) se defrontou com a impor-
1962; 1965), mas uma vivência com fins de uma investigação. Não 111,1;1 das vicissitudes do objeto, ele usou o termo identificação. Por
dispomos de respostas que expliquem como se formam os pensa- , t·xpressão, contudo, ele se referia ao processo pelo qual um ob-
mentos, como se formam os sentimentos, quais os processos mentais 111. que foi um dia experienciado como externo, é interiorizado no
envolvi dos na transformação de um estímulo em uma determinada 11 um processo misterioso, no qual há uma atividade fantasmática,
emoção, em um pensamento. lt11 111atória, mas que altera o ego. A pessoa se modifica. Freud con-
As diferentes propostas teóricas selecionam os fatores interferen- 11'1 a que o ser humano possui uma tendência para odiar, para des-
tes nos processos mentais, mas muito nos é desconhecido. A teoria da 1111. para se culpabilizar, para alucinar, para amar e para se identifi-
11 1~m se tratando de identificação, este é um processo inconsciente
constituição psíquica do sujeito não é simples de ser descrita. Contudo, o
1111· depende do desejo de identificação. Portanto, não se trata de um
vínculo estável de confiança e de conhecimento, apoiado na experiência
11 que se plasma ao objeto. Há uma introjeção da relação com esse
de continência, parece-me ser básico para o desenvolvimento psíquico,
hJclo.
já que ele possibilita o contato com a interi01idade, alguma tolerância à
intensidade das emoções, e, nesse sentido, permite o pensar. Ao conceituar o superego (1923), Freud modifica o conceito de
Cada sujeito orienta-se a partir de pré-concepções 1 e tem ex- 111n~jeção: Com o desbotamento do complexo de Édipo, os objetos
pectativas de realizações. Inicialmente, o mundo é captado pela cri- 1111ados são introjetados para formar o superego, que se torna um
1hjl'LO interno. Este pode permanecer enquanto uma estrutura inter-
ança por meio da imitação, e espera-se que ela, ao introjetar relações,
desenvolva capacidades de discriminação, de pensamento. A curio- ''' \eparada, caso não ocorra a identificação (Freud, 1930).
sidade da criança articula-se primeiramente à sexualidade (Freud, Conforme Hinshelwoold (1992, p. 359-361), o conceito de
1905; 1908), à relação dos pais, às questões ligadas à origem, à vida, 111 mjeção acha-se ligado à projeção. O termo foi cunhado por Ferenczi
11109) quando alguns analistas examinavam pacientes psicóticos. Esse
para ampliar-se para as diferentes áreas do conhecimento. No entan-
to, poucos indivíduos expressam interesse pelo fenômeno mental, 111lor foi um dos pioneiros a relacionar os impulsos orais à introjeção,
os impul sos anais à projeção.
pelo conhecimento da sua natureza enquanto pessoa.
Na teoria kleiniana, os objetos introjetados tornam-se objetos
l11ll'rnos. Klein concebeu um mundo psíquico povoado por estes, que,
1. Bion (] 965) classifica as interpretações psicanalíticas e aplica-as à grade. Essa
classificação pode ser aplicada a todos o, enunciados formulados seja pelo anali sando, seja por um lado, se tornam uma fonte de objetos para identificação e, por
pelo analista. No eixo genético da grade, o autor fala em pré-concepção. Corresponde a um 111l ro, representam um conjunto de experiências vividas como ''boas"
estado de expectativa, um estado mental adaptado para receber uma margem restrita de
fenômenos. Por exemplo, a expectativa do bebê pelo seio. Uma pré- concepção com uma 111 ''más" e que constituem o ego em suas relações com os seus obje-
realização cria uma concepção. A teoria bioniana do pensar consiste no acasalamento de los. Em sua teoria, a introjeção é um mecanismo concernente à vida
uma pré-concepção com uma realização, o resultado sendo uma concepção representa um
degrau na construção do pensamento e das teorias . A relação existente entre a pré-concepção 111ental, um processo psíquico que não se interrompe, mas que pode
e a realização, nesse processo, é de continente-contido. O termo pré-concepção representa lracassar. Seu êxito consiste em o sujeito poder confiar nele mesmo,
um estado de expectativa; é a contraparte de uma variável na lógica matemática. Bion (1962)
escreve sobre uma "história evolutiva" de um pensamento: uma pré-concepção inata, tal ,~10 se mantendo na ausência do objeto, ou seja, dependendo da esta-
como a expectativa neural e anatômica que a boca tem de um mamilo, encontra uma realização hilidade de sua interiorização no self A introjeção não equivale à
(o mamilo real entra na boca): o resultado é uma concepção, que é uma conjunção satisfatória.
De acordo com Bion , se há tolerância , as impressões sensoriais são transformadas, acasalam- posse do "bom" objeto, supõe mobilidade psíquica, uma dinâmica
se com pré-concepções em pensamentos utilizáveis.
l11K11(•m escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 65
64 PAULINA CYMROT

de relações, de cunho fantasmático, com os objetos internos e exter- 111111l'liva. Esses autores consideram que no mecanismo de identifica-
nos. Em 1940, Klein escreveu que toda relação com o objeto é neces- ,, projetiva também há um potencial de comunicação, além da bus-
sariamente acompanhada da interiorização do mesmo, o que produz • di: um objeto continente que ofereça contenção ao incontido. O
e reproduz constantemente os objetos internos. Embora a introjeção 1111l·eito de identificação projetiva normal foi distinguido por Bion
refira-se a uma representação mental, diz respeito também a um me- 11· uma identificação projetiva excessiva ou utilizada para a evacua-

canismo defensivo - uma fantasia inconsciente engendrada com o :lu de acúmulo dos "maus" objetos internos. Na mãe ressoam senti-

fim de defesa contra certas experiências emocionais. 1111·11tos dos quais o bebê deseja se livrar, nela podem ser despertados
Enquanto para Freud a introjeção é uma defesa contra a perda ,~ ll'mores experimentados pelo bebê. Ela pode tolerá-los e reagir a
do objeto externo, para Klein trata-se de uma vivência mental k, com continência e, dessa forma, ela ajuda o bebê assustado a
concernente à ansiedade relativa a um mundo interno sentido como uportá-los, a metabolizar os seus medos, o não-seio. Para desempe-
aterrorizante. Sendo realidade psíquica, supõe um mundo interno que 1har essa função, a mãe deve estar em uma condição mental de réverie
contém objetos "maus" e persecutórios que ameaçam o ego. Em re- llll' se aproxima de um estado de atenção flutuante (Freud), ou con-
lação ao conceito de identificação projetiva (1947; 1952), Klein aponta forme Bion, da mente que minimiza a memória e o desejo. Se a mãe
para a necessidade de evacuação de conteúdos mentais intoleráveis l1acassa nessa função, o bebê projeta violentamente nela seus con-
para dentro de um objeto que a contenha e a transforme. Surge então l1•udos incontidos, identificando-a como um objeto incompreensivo,
a necessidade, expressa na fantasia, de internalizar o objeto externo 111 vez de suas frustrações ganharem significado.
"bom" e a introjeção é adotada como defesa para preservar o ego ou Bion (1962) investigou as vicissitudes do relacionamento com
os "bons" objetos. No entanto, se o temor dos objetos perseguidores , rnntinente através da descrição do elo existente entre a mente con-
internos for intenso, pode ficar obstacularizada a internalização do l i11c11te e os conteúdos colocados nela. Esses elos possuem as poten-
"bom" objeto, prevalecendo o temor de que este seja danificado pelo ialidades de amor, de ódio e o desejo de conhecer a respeito dos
próprio sujeito. A internalização do "bom" objeto constitui um im- 011teúdos. A mãe pode se encontrar em uma condição mental de
portante mecanismo psíquico empregado para construir o sentimen- 1111or ao filho, de ódio, de abertura para observar corno ele experi-
to de confiança e possibilitar a expansão da continência, mediante a llll'llta, sente, pensa.
experiência do senso de bondade, de generosidade, de autoconfiança, Conforme Bion, a intensificação do mecanismo de identificação
e de uma relativa estabilidade emocional. Na vivência da posição projetiva supõe o despojamento do significado da intenção do objeto, e
depressiva, a introjeção é o processo dominante, há a consciência de 1 introjeção de um objeto invejoso que priva de significado e de quali-

um mundo interno, de limites e de responsabilidades pessoais, há Bion ( 1965) entende o aparelho de pensar como um continente de estados emocionais.
alguma discriminação em relação ao mundo externo ao psiquismo, e 1 li- ,e interessou pela natureza da mudança p&íquica, a natureza do pensar. O desenvolvimento
l"l'lllico, para Bion, supõe o desenvolvimento do aparelho continente de pensar. A mudança
tolerância à identificação projetiva. p,111111ca envolve desarranjar o continente de estados emocionais. O autor denominou as
Bion articulou o conceito de continência aos conceitos de iden- tr1111as, e as entidades contidas na mente, de conjunções de eventos. Mudar implica
1,·"·struturar as teorias e reestruturar novas conjunções, supõe a oscilação de processos de
tificação projetiva, PS=D e continente=contido2 para verificar como 111r111entação e processos de integração, ou a oscilação entre as posições esquizo-paranóide
o pensamento é operado, transformado, utilizado. Para ele, Joseph e l'S) e depressiva (D); supõe a oscilação continente=contido. Isso se acompanha de condições:
Ir ,u,tentação da desintegração e a reestruturação, significa a sustentaç5o das ansiedades a
Rosenfeld, estar continente supõe a tolerância para a identificação 11·,pcito da desintegração, da catástrofe potencial.
66 PAULINA CYMROT 111111·111 escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 67

<lactes. Há ausência do vínculo de conhecimento, e as capacidades para pcln analista. O analisando se mostra, se apresenta para o analista,
pensar e para conhecer ficam destruídas e favorecem o surgimento de 111:il o observa, o escuta e o interpreta conforme as suas condições
uma condição psicótica paranóide. Com um ego enfraquecido pela 111l·mnais, as suas teorias. E, nesse sentido, considero o conceito de
cisão e projeção de sua capacidade de conhecer, o sujeito sente que 111 ili cação projetiva conforme foi proposto por Klein. Suspeito que
enfrenta objetos hostis e para dentro dos quais, em fantasia, expele 111alista pode se aproximar do objeto psicanalítico somente através
violentamente os conteúdos incontidos. Prevalece, então, a dimensão l1a11sformações, de intuições, e tenho a consciência de que é tênue
da falsificação, do acting-out, da rivalidade, da superioridade. Dessa l1rn1Lcira entre intuição e onisciência! Bion fala de pensamentos
maneira, a frustração e o sofrimento são evitados pela projeção, pela 111 pensador e da procura de alguém para pensá-los. Acredito que o
evasão à frustração. O que deveria ser um pensamento torna-se um 1lisando se revela para o analista, e que este se aproxima da expe-
"mau" objeto, indistingüível de uma coisa em si, adequado apenas lll'Ía emocional presente na medida em que ressoam nele as expe-
para ser evacuado. Fracassa o desenvolvimento de um aparelho para 11rias emocionais primitivas e ele pode estar continente para elas.
pensar os pensamentos (Bion, 1962) quando o uso do mecanismo de ulrntificação projetiva não tem uma qualidade onipotente em si;
identificação projetiva é intensificado. Há a tentativa de livrar a mente tia se de um mecanismo intrapsíquico, de uma fantasia, que não
do acúmulo de "maus" objetos internos. A intolerância à frustração, à lllt' da mente do analisando e se aloja automaticamente na mente

privação, à inveja, os ataques à concepção edípica, à representação do 1 analista, sem que nisso intervenha a sua participação4 •

casal parental, podem dificultar a criação de pensamentos utilizáveis Entendo que quando falamos em identificação projetiva, em
para o aprendizado sobre si através da experiência. 11r11jcção, estamos no campo das fantasias inconscientes do sujeito,
Bion descreve a identificação projetiva como um elemento de lkeis de serem distinguidas, e referidas a uma descrição por parte de
Psicanálise, e estabelece uma relação dinâmica entre esse mecanis- 111 nbservador. Na investigação psicanalítica, do ponto de vista do
mo e a relação continente-contido. Essa dinâmica supõe um vínculo l'rvador, o indivíduo experimenta, de um modo fantasmático, obje-
do sujeito que sofre de fome e devido aos temores de aniquilamento, t' qualidades inerentes à relação com estes de "fora" para "dentro".

e um outro, capaz de transformar tais sentimentos em vitalidade e 1111rojeção, conforme evidenciada pelo observador, aproxima-se de
confiança, pois pode metabolizar as angústias, pode estar continente
para os estados de desintegração, característicos dos momentos
A funç ão de réverie do analista supõe um estado de empatia, de receptividade aos
paranóides. O autor destaca a importância de um continente adequa- rnnteúdos e aos conteúdos do analisando, uma atividade mental consciente dirigida
do, ou seja, aquele que supoita os movimentos ligados à identifica- 11t~nção flutuante , quando o analista pode dispor da imaginação, do sonho, da associação
, pcriências, quando ele pode estar em contato com sua própria imagem mental. Refere-
ção projetiva (1962), e articula a continência à função de réverie e à ,·ontenção de aspectos amorosos e hostis, diz respeito ao, movimentos emocionais que
qualidade do vínculo para o desenvolvimento psíquico3 • A insufici- h-mlem estimular a simbolização. Esse estado permite que o analista expresse sua opiP.ião,
1111pressão, trabalhe com liberdade para exercer o seu método. Para Bion, amor sem
ência de comunicação afe6va, de réverie para a nomeação e a discri- liidc não é mais do que paixão; no entanto, verdade sem amor é crueldade. A franqueza
minação de experiências, a intolerância à identificação projetiva afe- ••·1ilda à compaixão, à construção de um sentido de verdade, que é compartilhado, ajuda
11,il,sando a poder nomear angústias antes impensáveis. A réverie refere-se a um estado
tam a expansão da continência e o desenvolvimento do psiquismo. 111:il de abe1tura para sentir, imaginar, sonhar, com alguma tranqüilidade , sem uma
Como Nogueira (2002), entendo que o analista não sabe o que o , ,pit ação de intervenções.
uleta de desenvolvimento psíquico, pressuponho a capacidade de elaboração dos lutos.
analisando sente, pensa. A comunicação do analisando é interpreta- Ver, a esse respeito, Franco Filho (2000).
NhlJllll'lll escapa de si mesmo: Psicanálise com Hun.or 69
68 PAULINA CYMROT

rnalista podem estar mesmo insuficientes para atendê-lo), um outro


urna incorporação, de uma apropriação, está estreitamente ligada à iden-
111.disando pode constatar que os encon.ros analíticos ajudam-no a
tificação. 5 A internalização do vínculo com o objeto-continente permi-
ld k'tir, a conter, a evitar sofrimentos de:necessários, a instrumentá-
te a continência se expandir. O processo de internalização de um obje-
ln para viver. lsso depende de como caqa pessoa vive e significa a
to amado é freqüente nas relações humanas, as pessoas trazem dentro
'lll'1iência com o outro, das vicissitude~ desse contato, e o quedes-
de si os seres amados e mantêm um diálogo interno com eles. Julgo
' l'Xperiência cada um pode apreender I aprender.
que não é o objeto que é interiorizado, mas a qualidade emocional da
A presença do objeto-continente, a contingência são necessá-
relação com o mesmo. A meu ver, colocar no interior de si um "bom"
1111s, mas não são suficientes para a eJpansão de continência. O
objeto não é o mesmo que ser o objeto ou colocar-se no lugar do obje-
·onhecimento do objeto-continente Iode levar à introjeção do
to. A internalização é parte das transformações psíquicas do sujeito, de
nrnlo com o mesmo, à expansão de <ontinência, ou não. Supo-
sua criação, não se dá simplesmente com o objeto que se apresenta. O
nho que temos mais perguntas do que r:spostas para o que desen-
sujeito busca porque necessita a interiorização; trata-se de um proces-
ukia a transformação de uma vivênciaem expansão de continên-
so ativo, de um desejo de identificação, e isso difere de plasmar o eu
1a. embora algumas vicissitudes do ccntato analítico podem ser
frente ao objeto, ou imitá-lo.
h--..tacadas.
A meu ver, através da introjeção do continente, o sujeito procu-
As idéias aqui discutidas sugeremque parece ser permanen-
ra liberar uma potencialidade que se apresenta nele mesmo. Portan-
ll' no ser humano a busca de um continmte, e que é de importân-
to, a internalização pressupõe um processo de apropriação do pró-
lil primordial a introjeção da relação cem pais continentes (Bion,
prio ser, de transformação, de atribuição de sentido, de significação
1%2). O bebê chora, a mãe responde,e conforme o seu estado
acompanhado de vivacidade. O sujeito sofre influências do objeto-
111ocional apresenta-se sua condição }ara ter ressonância, para
continente, o qual é constituído conforme ele o percebe e o apreende;
1plar e transformar em sua mente e deVJlver ao bebê o incontido.
e o objeto se transforma através dessa interação. Na análise, há uma
o processo do desenvolvimento de un aparelho psíquico para
mútua interferência nas pessoas envolvidas. Se o objeto é experi-
1w11sar os pensamentos, não se negligtncia um terceiro, não se
mentado corno continente e esta relação é interiorizada, abre-se para
11altece uma relação simbiótica. A de:intoxicação por parte de
o analisando e para o analista a possibilidade de outras experiências
1111 continente (Bion, 1962; Caper, 199''a) consiste neste se dife-
de continência.
ll'lll'iar em relação ao projetado. Contineite = contido pode se trans-
Há pessoas que querem ter uma relação de confiabilidade, de
lonnar na direção do crescimento psíqui::o se a experiência de ser
proximidade, mas parece carecerem de um "registro" mais estável
ptnlominar sobre saber sobre si, ou seja, quando a
de um par construtivo, de qualidades psíquicas relacionadas à bon-
1111previsibilidade e a intensidade das e110ções podem ser tolera-
dade, à generosidade, à compaixão, que lhes possibilite contar com
.las e as emoções podem ser pensadas.
alguém, ou mesmo confiar em seus próprios recursos. Enquanto um
Apresento uma situação clínica, qu: me parece ilustrativa de
analisando registra uma situação analítica como aquela que intensifi-
11111njeção da relação com o objeto-conti~nte:
ca os seus sofrimentos e prejudica-o (e, por vezes, os recursos do

5. O termo interiorizaçiio é utilizado como equivalente de introjeção por Laplanche e


Pontal is ( 1977).
70 PAULINA CYMROT h11111(·m escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 71

5. Momento clínico: Patrick 11a1, confiante nele mesmo, para não temer tanto o que surgisse na
111 mente.
Patrick concordou com seus pais em vir conversar corrugo, pois A disposição do analisando e do analista para haver um campo
se sentia angustiado, assustado, com medo de dormir e de sonhar. e a pos-.1vel para a análise é criada e testada na sessão analítica, não é
insônia prejudicava-o para se concentrar nas tarefas escolares. Sua p1rdclerminada. Espera-se que se constitua um vínculo predominan-
aparência era a de uma criança amedrontada, parecia ter uma tristeza 1,·111l'llle de confiança, de intimidade, de sinceridade, de conhecimento
interior, escondida, e, de acordo com ele, não revelada para ninguém. 1qucle que for possível para o par, pois há limites em cada sujeito
Logo no início da análise, ele desenhou um monstro que podia atacar 1111 l'.xposição da intirrudade, no exercício de continência para a vida

e grades altas para ele não pular para fora. Associou esse desenho p-.1quica. Há situações de realidade que não são alteráveis; há carac-
com seus pesadelos com monstros horríveis. 11·11sticas do indivíduo que não estão contidas. A percepção disso
Disse-lhe que pensei que ele devia temer os seus sentimentos, pode levar à tolerância à dor, à frustração ou à experiência de ódio,
os seus pensan1entos, os seus sonhos, que, para ele, eram realidades, 11· decepção, de inconformismo, de ressentimento, de desespero. O

e não pensamentos, sentimentos, sonhos. E o assustavam, deixavam- 11jl'ilo experimenta sentimentos dolorosos ligados a temores, à avi-
no inseguro, desconfiado dele mesmo, de suas capacidades. Disse k1, à maldade, evacua esses "maus" objetos, desenvolve rituais e
que percebi a sua confiança em me contar o que se passava com ele, 11111ccdimentos para lidar com suas angústias, e, em suas tentativas
e que achei que ele queria a minha ajuda para não ficar tão assustado 11• rcificar poderes, cria imagens, objetos adorados, reverenciados,

com a sua imaginação, com as suas emoções, com os seus sonhos. 11·111idos. A mente parece transitar da magia à ciência, da concretude
Patrick respondeu-me que era isso mesmo. Após um breve sor- , n·presentação; conserva aspectos primitivos, dificuldade para estar
riso, que me pareceu afetivo, desenhou um menino magrinho e um huntc de fatos desconhecidos, para tolerar medos e angústias. Cada
outro forte e bem alto, ambos se olhando, e ao lado dos dois uma l'l'ssoa tem limites para se aproximar de si mesma, e para se aproxi-
moça bonita e legal. Nesse momento, olhou-me com inibição, com 11111r da interioridade do outro.
receio, mas também com curiosidade. Uma criança aprende a andar quando é colocada no chão, quan-
Comentei sobre a sua atitude de cooperar e de se relacionar 111 alguém antes estendeu-lhe a mão, não adianta dar-lhe instruções
comigo, de se aproximar de mim, com receio, e com curiosidade. p111a ela poder andar! Importa a experiência, e através dela aprender.
Perguntei o que ele achou do desenho que fez, e ele disse que se 11 sala de análise, é possível conversar sobre a experiência do par,
sentia inferiorizado perante os outros garotos da sua idade, queria ser p111a ir além do instituído, para ir além do dito, do ódio, da vingança,
mais forte, mais alto. Disse-lhe que não me pareceu que ele falou de 111 submetimento, do ressentimento, da queixa, do desaparecimento
seu sentimento, de sua fantasia de ser desvalorizado, inferiorizado, 111110 pessoa. Para se reconhecer e usar a própria potência. Se há

mas pareceu-me que ele acreditava nisso, que ele estava convencido 011tinência, metabolização, pode haver a reintrojeção enquanto sen-
disso. Ele confirmou a minha hipótese. t1111L'ntos de confiança, de generosidade, de tolerância. Nessa opera-
Disse-lhe que me pareceu que ele sentiu que podia confiar em ,111 cm que ocorre a função continente-contido, penso que se dá o
mim, mas como estávamos começando a nos conhecer, achei que ele p,·nsar. Creio que estar continente supõe um estado emocional
esperava confiar mais em mim, ser ajudado por rrum para se sentir pulsante, acompanhado de tolerância, de consciência da impossibili-
Nl111:uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 73
72 PAULINA CYMROT

Só assim podemos nos desapega,:


dade de prever, da expectativa de encontrar formas próprias de viver Mitch: Estou perdido.
e de se relacionar. Morrie: Se você bloquear suas emoções. Tome qualquer
Na literatura, encontrei um diálogo que me pareceu ser ilustrativo emoção: amor por uma mulher, svfrimento por um ente
do estado de continência. Em seu livro A última grande lição, Albom querido, ou isso pelo qual estou passando, medo e dor
(1998, p. 132-133) relata os encontros que teve com seu professor causados por uma doença mortal. se não se permitir ir
Morrie Schwartz, quando o visitou nos meses que antecederam a sua fundo nelas, nunca conseguirá se desapegar, estará
morte em decorrência de uma doença degenerativa: muito ocupado em ter medo. Teri medo da dor, medo
Quando Morrie estava com alguém, entregava-se por inteiro. Olha- do sofrimento. Terá medo da vulnerabilidade que o amor
va e a escutava como se ela fosse a única no mundo. Como seria me- traz com ele.
lhor se o primeiro encontro do dia fosse assim, e não como o resmungo Mas atirando-se a essas emoções, mergulhando nelas
de uma garçonete, de um motorista de ônibus ou de um chefe. até o fim, até se afogar nelas, você as experimenta em
Gosto de estar inteiramente presente - disse Morrie - Isto signifi- toda a plenitude, completamente. Saberá o que é dor.
ca estar de fato com a pessoa que está diante de nós. Quando converso Saberá o que é amor. Saberá o que é sofi·imento. Só
com você agora, Mitch, procuro me focalizar somente no que se passa então poderá dize,; "muito bem, ~perimentei essa emo-
entre nós. Não fico pensando no que vai acontecer na sexta-feira. Não ção. Eu a reconheço. Agora preciso me desapegar dela
fico pensando em outro programa que vou fazer com Koppel, nem nos por um momento". Morrie calou--se e olhou bem para
remédios que estou tomando. Estou conversando com você ... Tantas mim, talvez querendo se certificar de que eu estava en-
pessoas, com problemas bem menores, são tão autocentradas que fi- tendendo. Morri e falou sobre seus momentos mais apa-
cam com o olhar perdido se alguém fala com elas por mais de um vorantes, quando sentia o peito ()pressivo, ou quando
minuto. Elas já têm alguma outra coisa em mente - telefonar para um ficara sem saber de onde viria a respiração seguinte.
Foram momentos horripilantes, disse, e suas primeiras
antigo, mandar um fax, um amante em quem estão pensando. Só ficam
sensações eram de pavor e angústia. Mas quando reco-
atentas quando o outro acaba de falar, quando então murmuram "hã,
nheceu a natureza dessas emoções, a tessitura delas, o
hã, ou "é, tem razão" e fingem estar prestando atenção ...
frio, o arrepio na espinha, o lampejo de calor que per-
corre o cérebro - aí pôde dizer, "OK. isso é medo. Ajàs-
Morrie: Sabe o que dizem os budistas? Não se prenda
te-se dele. Afaste-se".
às coisas, porque tudo é transitório.
Mitch: Pensei nas muitas vezes em que essa atitude é
Mitch: Espere aí. Você sempre falou em experimentar a
necessária na vida diária. Como nos sentimos sozinhos,
vida. Todas as emoções boas, todas as más.
às vezes a ponto de chorar, mas não deixamos as lágri-
Morrie: Verdade.
mas saírem porque achamos que chorar não fica bem.
Mitch: Mas como jazer isso se desapegando?
Ou quando sentimos uma onda de amor por alguém,
Morrie: Ah ... Você está pensando, Mitch. Mas desapego
mas não a revelamos porque o medo do que a revelação
não significa impedir que a experiência nos penetre. Pelo
pode causar ao relacionamento nos paralisa. A visão
contrário, deixamos que ela nos penetre em plenitude.
74 PAULINA CYMROT h1N11~m escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 75

de Morrie era justamente o oposto. Abrir a torneira. pansão do estado de continência, a mudança psíquica. Pode haver
Banhar-se na emoção. Não faz nenhum mal. Só fará 1111ultficação da condição afetiva, da percepção de si e de mundo, da
bem. Se deixarmos o medo lá dentro, se o vestirmos como 1111111.ação da memória, da qualidade da própria existência e da quali-
quem veste uma camisa, podemos dizer, "muito bem, é 1,uk das relações. A meu ver, isso faz analisando e analista cresce-
só medo, não vou deixar que ele me domine. É só medo 11•111 . Proponho que a expansão do estado de continência seja um fun-
e nada mais." O medo se aplica à solidão. Abra-se, dei- l,1111ento da análise, enquanto favorece a oscilação PS = D e o víncu-
xe as lágrimas correrem, sinta a solidão em sua pleni- 111 l'lll direção ao desconhecido da vida psíquica, à verdade última e
tude, e chegará o momento de se poder dizer, "muito ,rn;ngnoscível (Bion, 1962).
bem, esse foi o meu momento de solidão, não tenho medo Quando uma pessoa se desenvolve psíquicamente, e penso que
de me sentir solitário, mas agora vou ajàstar essa soli- 1~1n depende do contato emocional com ela mesma, da elaboração do
dão do meu caminho e reconhecer que existem outras 11110, favorecidos pelo estado de continência através da relação com
emoções no mundo e que quero experimentá-las tam- 11111 outro continente, ela descobre que o terror, a dor, a compaixão, o
bém. 111.,urdo, o imprevisto, o sofrimento, a depressão, a perseguição, a
li\alidade, a destrutividade, a dependência, a continência = in-
Na análise, quando o analisando expressa sua desesperança, se 1111tinência integram o cotidiano e expõem a condição humana, pois
o analista está continente ele pode chamar sua atenção para a deses- 1rata de experiências emocionais, dinâmicas, que compõem o
perança compartilhada. Pode ocupar o lugar da esperança, da expec- p,11rimônio psíquico. Descobre que a compaixão, o pesar, a generosi-
tativa, desde que esse lugar lhe seja outorgado pelo analisando que, l111k, a gratidão não são dados, devem ser descobertos, desenvolvi-
naquele instante, percebe a possibilidade de dividir o desalento. O h•"· contidos. Descobre que a suportabilidade à dor de existir sepa-
analista se oferece para uma vivência com o analisando. Propicia um 111damente, de ser solitário, de sofrer perdas, de ter limitações e res-
can1po para que a experiência emocional seja compaitilhada, reco- p1111sabilidades, de não possuir o controle desejado das emoções e
nhecida, comentada. Minha hipótese é a de que o movimento de lm impulsos, não é algo simples! E se acompanha de dor.
retração=expansão do estado de continência para a vida psíquica O medo do descontrole emocional pode encontrar um conti-
seja condição para o desenvolvimento psíquico do analista e do ana- 11c11tl! que permite integrar o cindido e pensar, ter mais esperança,
lisando. Na análise, do impacto das emoções que surgem em ambos, ,pl'C.:tativa e confiança de não ser dominado pelas emoções e de se
do desconhecido da experiência para os dois, evolui uma experiên- t,1111iliarizar com estas, pois ninguém se desfaz da mente que tem,
cia, que não é memória saturada, mas que resulta da possibilidade de 11111guém se desfaz de si mesmo. Creio que uma pessoa pode separar-
ficar na eminência do naufrágio, de tolerar=não tolerar, conter=não de uma outra, mas ela não se desfaz de quem ela é. Minha hipótese
conter, elaborar=não elaborar. q111ia-se na importância de estar continente para os estados emocio-
Penso que contido=incontido, proximidade=distanciamento de 11,11.,, já que ninguém se desfaz daquele mbiimo irredutível incurável
si e do outro referem-se à experiências emocionais que se alternam. 111111tável que diferencia uma pessoa de outra, e, simultaneamente,
Nesse vaivém, pode haver afinidade, confiança e ressonância do par, 11pnnho que os estados mentais são dinâmicos, variáveis, pulsantes.
expressão de humor para o analista se fazer audível e estimular a 1 11tl'ndo a análise como um campo em pulsação, que revela a singu-
Nl11guém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 77
76
PAULINA CYMROT

laridade do analisando, do analista, e da relação entre ambos, a cada 111tolerável para o analisando. A maioria das pessoas se evade de sen-
sessão. 111 estados mentais dolorosos, e destrói a curiosidade pelo conheci-
111l'nto de si e do outro. Há uma enonne desproporção entre pessoas
As tentativas do analista, se ocorrem num clima de disponibili-
dade e de atenção para as angústias do analisando, levando em conta qu e se interessam por uma análise e aquelas que buscam a "pílula da
as diferenças individuais, facilitam a continuidade da análise. De kli cidade". As transformações que apontam para o desenvolvimento
minha perspectiva, não existem fórmulas para os relacionamentos, p~1quico nem sempre são possíveis ou toleráveis. Porém, nos mo-
ou para expandir o estado de continência para a vida psíquica. A 111cntos em que a dupla analítica está sintônica, se as duas pessoas
presença do analista é importante, mas não é suficiente para modifi- pndem se escutar e conversar, é criado o esJaço para o humor, para
car o clima persecutório presente na sessão. Sua continência pode , uportar a mudança catastrófica. Proponho que o estado mental do
favorecer na direção de uma transformação de estados emocionais .,nalista, enquanto continente, favorece a captação do fenômeno psí-
do analisando, para que as emoções primitivas, violentas e encerra- quico discriminado por ele; esse estado pode estar presente, ou não.
<'reio que quando o analista tolera a intens dade das próprias emo-
das dentro de um equivalente de um continente, rígido, de um
claustrum, comprimidas, e que periodicamente resultam em descon- ~·<ies, ele interfere menos na intimidade do par. E, quando o analisan-
trole emocional, sejam compartilhadas, verbalizadas, ao invés de se- do tolera suas emoções, concomitantemente pode ocorrer criatividade,
rem segregadas. Mas isso depende também da resposta emocional L'X pansão da capacidade do estado de continência, sustentação da
do analisando, de se u reconhecimento de que o objeto-continente dú vida, dos conflitos, indagação, tolerância à falta de respostas e de
pode ajudá-lo a liberar uma potencialidade que se apresenta nele rl's ultados.
mesmo, e que não é conhecida. Se o analista está investido de autorida:le, de superioridade, de
Na sessão de análise, há gente convivendo com gente, há pesso- on isciência - e, historicamente, a medicina nasceu paralelamente à
as interagindo, não há história passada ou futura. A história narrada 111agia, à religião - , a investigação analítica fica destruída. A minha
pelo analisando não deve ser transportada pelo analista para a sessão i.:xperiência clínica tem me mostrado que 1 ma conversa informal,
para ser confirmada. É necessária a disciplina do analista para que t~spontânea, sincera, facilita a liberação de certa condição emocio-
ele exerça a réverie, o estado de continência. E isso não depende de nal, que chamo de expansão de continência.
sua decisão, mas de uma condição momentânea, que pode ser expan- O analista é um novo objeto na vida jo analisando, mas não
dida com anos de análise e de treinamento contínuo, e, ainda assim, completamente novo enquanto continente. E se oferece para um tra-
sem haver garantias de que possa ser exercida no momento. Na aná- balho, e no exercício da fun ção de continênc a ele se toma um objeto
lise, acredito que, além da invariante do medo, da ansiedade, da frus- mais favorável à introjeção de uma qualidace de relação que facilita
tração, há a invariante da transformação psíquica, da condição emo- o estado de continência para a vida psíquica, quando as transforma-
cional, do vínculo presente que interfere no julgamento, na pesquisa. ções dos conteúdos se direcionam aos sentinentos ternos, ao apego,
Entendo que a réverie é facilitada pelo respeito ao método e aponta ao apreço, à estima, à gratidão, à curiosidade sobre a mente. Quando
para a área da intersubjetividade. o analista participa da experiência com o analisando com liberdade
Na análise, intuitivamente o analista pode oferecer matemagem, no exercício da sua função , e, concomitantemente, há alguma dispo-
em lugar de réverie, quando a intensidade do sofrimento parece-lhe sição do analisando para escutá-lo (não senco um conluio entre am-
78 PAULINA CYMROT Nl11i;uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Hu10r 79

bos), para se observar e para tolerar os estados mentais presentes na Considero que o estado de continêcia depende essencialmente
experiência que ocorre entre ambos, o vínculo de conhecimento com .ta dinâmica continente=conticlo do pa1Na análise, a disposição do
transformações para o infinito e a expansão de continência prevale- 11wito para conhecer só é bem-sucedid,Se encontrar a disposição do
cem. O antes intraduzível, sem sentido e sem nome, o impulsivo, o 1111tro para ser conhecido. O encontro d um ser com um outro pro-
recusado, o primitivo, ganha novas vivências, simbolizações, pensa- h11 estados de perseguição, depressão inveja, ódio, desencontros,
mentos, internalizações. Isso parece-me que é favorecido por um vín- v1vi:ncias de riscos, afinidades, compa1ções, aproximações. A ex-
culo de confiança e de franqueza, por uma conversa sentida pelo ana- pansão do estado de continência para sses estados, e para outros,
lisando como útil, nova, surpreendente; então, o analisando tem uma pl'nso ser fundamental para o desenvorimento da individualidade,
percepção antes não reconhecida ou não vivida de que deste encon- da autonomia, da noção ele alteridade. 1r a curiosidade para conhe-
tro ele aprende algo sobre suas emoções, sua vida. Estou convencida l'I, poder tolerar a ignorância e a frust1Ção é, a meu ver, condição

de que a análise produz modificações em ambos os participantes dessa qu~· e.lá suporte à continência e à continidade da análise.
experiência, e a iniciativa de continência, seja do analista ou do ana- Percebo que o interesse e a responabilidade pelo ser se desen-
lisando, resulta de uma criação a dois. volvem durante a análise, quando um ínculo de confiabilidade fa-
Ao oferecer uma conversa a menos autoritária e a menos mo- v,,recido pela continência para a vida píquica está mais estabeleci-
ralista possível, o analista pode estimular a internalização do vín- do. com uma concomitante diminuiçãole ansiedades persecutórias.
culo de conhecimento e a expansão da função de continência, que, C > analisando pode, então, utilizar-se do>bjeto-continente, da função

a meu ver, colaboram para o aumento de respeito ao próprio ser, ill· eontinência, para se perceber, para s:r. E isso se dá num vaivém
para a consideração dos limites e das potencialidades que se apre- dr retração=expansão do estado de con1nência. Suponho que a con-
sentam nele mesmo e em suas relações. A noção de introjeção do 1111i:ncia, enquanto uma qualidade mentJ, que retrai e expande, con-
continente torna-se essencial para a elaboração das ansiedades, 11-re suportabilidade para a turbulência!mocional, para a impotên-
do luto. Pressuponho a indissociabilidade da introjeção de um vín- da, para a frustração, para o desespero.para os estados amorosos e
culo continente para o sofrimento, para o amor, para a destrutivi- l111slis incontidos. Abre espaço para a cmensão do possível, para a
dade, e suas transformações, e a expansão do estado de continên- 1111oconfiança. Do analista espera-se algtma continência para as pró-
cia para a vida psíquica. A continência para o amor, para o ódio, prias emoções e para as emoções d< analisando, para haver o
para a agressividade, considero um pré-requisito para a elabora- urgimento de imagens, de sonhos, do frO selecionado (Bion, 1963).
ção psíquica e o desenvolvimento psíquico. Esse vínculo possibi- 1·-..pera-se que ele esteja despojado par. sentir, para pem1anecer na
lita o reconhecimento de necessidades e de qualidades psíquicas -..curidão, até que algo lhe pareça útilpara ser conversado com o
do sujeito e de seus objetos, favorecendo a reparação, ajudando a 111alisando.
evitar a vitimização, a idealização e o conluio narcisista. Penso
que as continências para a destrutividade e para o sofrimento psí-
quico sejam inseparáveis e integram a condição para o exercício
do amor, da piedade, da generosidade, e da consciência de
alteridade.
CAPÍTULO II
O difícil percuJso: do
desamparo~onipotência à compaixão
Dificuldades para estar continente

A inda é cedo amor, mal começastes a conhecer a vida


fl anuncias a hora da partida,
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Presta atenção querida, embot-O- eu saiba que estás resolvida
Em cada esJuina cai um pouco a tua vida
Em pouco iempo não serás mais o que és
Ouça-me bem amor, preste t,fenção o mundo é um moinho
Vai tritunJr teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção querida, de cacP amor herdarás só o cinismo
Quando notares, estás a beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés
Cartda, ln: O mundo é um moinho

Pessoas ligadas à área da música disseram-me que Cartola com-


pi>s essa canção para a sua filha que, d~ acordo com ele, precoce-
tllL'nte queria tomar-se independente, auto-suficiente. Pensando em
l .ui z, um analisando adolescente, lembrei-me dessa música. Apre-
,c ntarei duas experiências clínicas com J..,uiz.
82 PAULINA CYMROT
N1 11 ~11érn escapa de si mesmo: Psicanálise com Hunor 83

Vamos ver se consigo transmitir o clima fugaz, inefável, transi- Ao entrar na sala de análise, Luiz cumprimentou-me novamen-
tório, que constitui o setting analítico. Instiga-me a investigação da 11 • di zendo oi e sorriu. Notei que, dessa vez, ele estava penteado, com
sutileza na operacionalização da proposta psicanalítica em direção à .il1;as compridas, e não como habitualmente comparecia, de bermu-
expansão do estado de continência para a vida psíquica. Peço que o da L' boné. Seu humor rapidamente mudou e ele, zangado, queixou-
leitor prossiga comigo nessa empreitada. Muitas vezes o desejo de 1· do calor que fazia na rna, do início das aulas, de ter que acordar
comunicar uma experiência analítica é frustrado pelo esquecimento ,cdo para ir à escola, da chatice das pessoas de sua fan111ia, da falta
(possivelmente pela repressão ou pela ação de elementos contratrans- 1h- liberdade em sua casa, da sua falta de interesse nos estudos. Apre-
ferenciais?), pelas transfonnações da experiência, pela necessidade 1· 11to u-se como uma vítima, injustiçado, impedido em tudo,
de preservação do sigilo e ética profissional, e, certamente, por ou- 111 n Hnpreendido.
tros motivos, que a própria razão desconhece! Perguntei-lhe se ele podia também estar aborrecido e zangado
Selecionei duas experiências clínicas com Luiz, com a intenção dl'v ido à espera, e ele disse que não, mts que estranhou o fato de eu
de ilustrar algumas dificuldades vividas na prática psicanalítica para 11; 11> estar no horário. Notei que ele não percebera o seu engano quan-
abrigar a oscilação retração=expansão do continente. Pretendo, tam- h, ao horário, e comuniquei-lhe isso. Disse-lhe que não duvidei de
bém, apresentar ao leitor como o humor respeitoso e continente para 11as queixas, mas ele podia estar chateado por ter desejado estar co-
o sofrimento do analisando pode auxiliar a liberação da condição de 1111go antes. Agora estávamos juntos, tínhamos liberdade, e notei o
continência. Tenho como pressuposto que a experiência em curso na i.: u interesse para conversarmos.
sala de análise é dinâmica, evolui a cada momento, havendo um in- Luiz expressou perplexidade. Ficoo surpreso com o que ouviu.
tercâmbio de emoções no par. e ·onlirmou o dia e a hora, e ficou intrigado, indócil. Após um breve
1kncio, disse em tom provocativo:
Ah, não, sem essa! Ontem cheguei mais cedo, tudo bem, me
,·11ganei, mas hqje não! (Seu tom de voz me sugeriu certeza, ironia,
1. Experiência Clínica: Luiz - O coração tem
11pcrioridade). Se eu queria vir? Queria, sim! (O tom era de desafio,
razões que a própria razão desconhece ... ili- quem não gostou de ser revelado em sua necessidade afetiva, de
dl'pcndência). Exaltado, disse: Olha, Paulina, estou de saco cheio de
Chego no consultório e vejo Luiz, um adolescente, sair do edi- ,,., vigiado por aqueles dois lá em ccsa! Meus pais não aceitam
fício e aproximar-se em direção ao meu carro. Disse-me que me es- 11,·11s amigos, nem os conhecem! Mas nem posso convidá-los para ir
perava há 45 minutos. Iria embora, mas desistiu ao me ver chegar. l,i 1'm casa. Dá pra agüentar? Você acha isso certo?
Pensei que ele não percebera que se adiantou em uma hora do A cada pergunta ele esperou a rrinha resposta, ou melhor, a
horário combinado para a sessão. Como eu estava disponível, per- 111111ha concordância, e pareceu-me frustrado com o meu breve silên-
guntei-lhe se queria e se podia ser atendido. Ele sorriu, prontamente l 11> . E prosseguiu: Ontemfai obrigado a ir na casa da besta da mi-
concordou, pediu-me uns minutos para avisar sua mãe que o aguar- 11/w avó, ô velha chata! Queria ir numa boate, mas a regra é ir toda
dava e adiantou dizendo-me que ela poderia ir ao shopping e que não ,, /i1mília lá, toda semana! Quanto tempo vou agüentar esta prisão?
se incomodaria de ter que esperá-lo. I, 111 aprontar com meus pais, vou levar neus amigos lá em casa, nem
84 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com tt.Imor 85
PAULINA (YMROT

que seja para eu ser expulso pelo meu pai. Não tenho escolha, a l·in,ando, que você.fala mesmo, pra valer, mas fala de verdade, e
saída é aprontar, pôr merda, não agüento mais, não tolero mais. 11úo posso dizer que você fala boba&em. Sou provocativo e gosto
Minha paciência acabou! disto ...
Disse-lhe que achei que ele me escolheu, e escolheu sobre o Falei-lhe que ele devia ter suas nzões para isso. Ele disse que
que conversamos. Atendi-o antes do horário, não segui regras. E no- ugora que seus pais não sabiam que ele ia mal na escola, ia ser um
tei, e ele também podia ver, que hoje ele teve paciência para me espe- 111/erno, mas não ia se submeter. Vou aprontar com eles.
rar e para conversar comigo. Ficamos em silêncio por uns segundos e ele disse, de modo
Luiz: Graças a Deus que, apesar de meus pais escolherem você, pmvocativo: Você fica aí ouvindo, e néo fala nada? Você é comunis-
1,1 '.J Não parece, pelo seu carro, suas roupas ... Prosseguiu dizendo
eu também gostei de você, senão tinha que engolir o que eles esco-
lheram! que queria ficar rico, ter uma mansão, nem que fosse para se aprovei-
lar dos outros, mas não sabia o que queria ser, não gostava de estudar.
Respondi-lhe que ele atribuiu a Deus, mas uma outra possibilida-
<'ontou que os diretores de sua escola eram comunistas e que ele não
de além desta era ele se responsabilizar por me escolher e por me dar a
oportunidade de conversar com ele. E que pensei que tal escolha de- queria saber desta gente ignorante, pois gostava de grifes, queria
pendeu dos seus sentimentos, dos seus critérios, dos seus valores, da 111orar sozinho, mas não sabia como ºazer pois não ganhava nada.
sua preferência, da sua liberdade. Se ele gostava de estar comigo, e eu ld10 que não tem nada de errado em ,u pensar assim, em ser mate-
me interessava em conversar com ele, se tínhamos liberdade, se ele se riolista. Disse que às vezes tinha medo de perder o juízo, como acha-
sentia respeitado por mim, podíamos pensar juntos por que, ao encon- va que o perdeu em algumas ocasiõe,, temia que ocorresse nova-
trar comigo, ele trazia tanta gente e somente revolta. 111cnte sem ele poder se controlar. Ache que é maluquice minha, disse
O analisando falou que, de fato, sentia-se respeitado por mim, rl'voltado (Pausa). Você é casada? Temfilhos? Tem cara de ser casa-
que eu lhe falava com sinceridade, e ele confiava em mim. Logo, do e de ter filhos!
num tom provocativo, perguntou-me se eu era atéia. Pensei que Luiz teve pressa para o nosso encontro, mas também
Disse-lhe que me pareceu que ele não suportou a convivência 111cdo. Da dependência? De uma situacão amorosa? De se decepcio-
amorosa, e precisou me dar uma cutucada. nar por não ser atendido como quer? 01 liberdade? Da catástrofe que
Ocorreu-me a idéia de que ele carecia de contemplação huma- l'lc vive em sua mente?
na, do exercício do amor, e que essa forma provocativa pedia conti- Procurei evoluir do desencontro em busca do diálogo, e o infor-
nência. mei sobre o deslocamento de suas queixas. Ele deliberou ficar para
Quem eu?, falou ironicamente, e sorriu. l·mwersarmos, ali não havia proibiçõe: para ele se expressar. Ele me
Respondi-lhe que lhe ofereci a possibilidade de ele observar o l'~perou, colaborou, teve boa vontade. Não duvidei de suas queixas.
que experimentava, sem a intenção de desconsiderá-lo, mas verifi- <'oncluí que ele se encontrava comigo quase que diariamente e, da
quei que ele não sentiu isso como uma contribuição minha, que pre- 111inha perspectiva, entre nós havia lilxrdade, respeito.
cisou anular, "bateu-rebateu", não viu se serviu para ele. Na sessão, ele expressou um hábi:o mental de provocar. Para se
Luiz: Sei que às vezes sou provocativo mesmo ... (riu, expres- defender quando se sentia frustrado? Quando não encontra o aliado
sando um sorriso de quem foi revelado). Falei pro meu amigo, o desejado? Para se distanciar por tern:r a experiência amorosa e a
86 Ni111:11ém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 87
PAULINA CYMROT

dependência? Seus objetos são de uso, de dependência e esta é a sua 11111 auto-suficiência, com onipotência. Luiz acredita que a aparên-
possibilidade de vínculo? 1,1, o dinheiro equivalem à felicidade. Sonha em ser milionário, em
Não considera a inveja, a destrutividade, sua necessidade de 11.10 ser cobrado e não precisar de ninguém. E, paradoxalmente, ele
destruir um sistema diferente do seu? 1·111 encontrar-se quase diariamente comigo.

Quando há desrespeito, agressão, decepção, fica mais próximo Não dá para eu precisar quando e o quanto o analisando se sente
do que ele conhece, e então ele fica mais à vontade e com mais ins- q11dado por mim, o quanto ele se sente desconsiderado. Na sessão,
trumentos para operar? Encontra-se mais organizado, mais capacita- IL· me revelou o seu sistema: quando ele quer, tem que acontecer; ele
1 >laborou, se interessou, mostrou disposição para conversarmos.
do para a provocação, para a encrenca?
Ocorreu-me, também, que certa arrogância e provocação eram l ·.11tcndi que houve uma experiência correspondente ao que denomi-
comuns aos rapazes da sua idade. 1111 tle oscilação retração=expansão do estado de continência.
Na sessão, ele expressou sua convicção; ele não pode fazer nada Sua idéia é que há um deus que o fertiliza, que o inocula para ter
do que quer porque os outros o impedem. Se ele percebe seus afetos, 1111cresse, para escolher. Não tem a dimensão dos afetos que medei-
1111 as ligações? O "bom" objeto, o continente é vivido precariamen-
se ele se percebe apegado, isto implica reconhecer emoções, necessi-
dades, ligações, dependência? tr, pcrsecutoriamente?
Compreendo os mecanismos de defesa enquanto arranjos ne- Ele fica vivo, ativo quando não é aceito? Para provocar?
cessários e possíveis que o sujeito constrói em sua tentativa, por ve- Quando fica junto, sua possibilidade mais fácil é a de criar
zes desesperada, de sobrevivência psíquica, de existência. 11crenca? De se decepcionar?
Indaguei se ele temia a liberdade; se temia ser aceito e respeita- Não se reconhece em sua potencialidade afetiva?
do em função da desconfiança de ser amado, e ele confirmou isso. Não tem a expectativa de se identificar com um objeto potente?
Disse-lhe que me pareceu que ele se preocupou em saber se era nor- Sente que ninguém contribui para ele receber algo "bom"?
mal, ou se era louco; e em saber quem eu era, se éramos muito dife- Sente que a mãe descuidou dele, e por isso a despreza? Pelo
rentes, se ele podia conviver com alguém diferente dele. ll'ssentimento aos pais, cultiva fantasias onipotentes?
Luiz: Fico pensando se sou normal... apesar de ver que você Apesar do ódio, da hostilidade, ele manifesta curiosidade sobre si
não fica me avaliando ... Venho aqui quase todo dia, e é verdade que llll'Smo? É capaz de escutar e de utilizar algo oferecido pelo analista?
eu posso falar o que eu quero. Mas o resto é prisão, desrespeito. Molda-se ao que acha que esperam dele? Falta-lhe reconhecer
(Fica silencioso). Fui grosseiro hoje com você, mas tô gostando de lll'Cessidades genuínas do seu ser?
vir aqui... Quem sou para ele, nessa sessão? Sente-se ajudado? Como?
Pensei que o continente não cresce porque se deseja, depende São questões. Tenho mais perguntas do que respostas.
de experiências e através destas poder aprender. Vi que o contido lhe Agindo, reagindo, ele se mostra para mim. E tem a chance de
escapava: o ódio à filiação, ao casal parental, à impotência. A meu Vl'r como eu me relaciono com ele; vejo ele me testar, me examinar,
ver, na pressa para alcançar riqueza e independência, ele não com- l' comparar, se diferenciar, ficar perseguido. Enquanto analista, pro-
portou a idéia de que é possível viver a dependência com um pensa- uro observar como as nossas diferenças são experimentadas, que
mento independente. Pareceu-me que ele confundiu independência 11ansformações ocorrem quando um está na presença do outro.
Nl111:uém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 89
88 PAULINA CYMROT

11.10; se estou a serviço dele, ou de outros. Cabe-me sobreviver aos


O desejável é que a análise seja uma experiência genuína, plena 1•us hábitos mentais, às suas provocações; estar presente espontane-
de emoções, mas que estas não se intensifiquem para haver continên- 1111cnte, mas sem combater a sua natureza 011 a minha. Entendo que a
cia para a identificação projetiva, para que o vínculo de conhecimen- 111alise, enquanto uma vivência de dois, é t1ma oportunidade para o
to, em direção à verdade transitória e incognoscível, predomine. E 111alisando, através da relação com o anafüta, apresentar-se confor-
que o trabalho se faça num marco de colaboração mútua. Isso não é 111L' os seus recursos, se ver, rever algumas c0isas de si e de sua vida,
predeterminado, é dinâmico, marcado pela transitoriedade da expe- e não uma oportunidade para a anamnese, 1>ara a pesquisa dos trau-
riência emocional de ambos. 111as da infância. A metodologia de lhe prop0r uma convivência pra-
Com esse analisando, e outros, aprendi que não convém ao ana- l1L·amente diária para a análise não tem rela~ão com o meu interesse
lista antecipar-se enquanto objeto de continência, para que ele possa por um diagnóstico, ou devido à gravidade do caso; serve-me para
respeitar a necessidade do analisando. Como exemplo, por acreditar ,·~tabelecer condições mais favoráveis à análise, embora sabendo que
que o analisando necessita de continência, que ele não suporta a se- podem ser insuficientes para o exercício do método psicanalítico.
paração, o intervalo entre uma sessão e outra, o analista poderia se Tive poucos encontros com os pais dt- Luiz. Neles, aproveitei
antecipar na oferta de mais urna sessão justificando-a devido à proxi- para conhecer seus apelos, suas expectativa~, alguma condição emo-
midade das férias, às faltas (suas, ou do analisando), ou por ocasião 1·1onal dessas pessoas, suas versões sobre D sofrimento do filho, o
de algum feriado. Se ele não aposta na condição de continência do que esperavam do meu trabalho com ele. f.les confiaram na minha
analisando, pode vir a frustrá-lo, a itTitá-lo, por sentir que seu analis- proposta e, não sem relutar, concordaram com a freqüência elas ses-
ta desconfia de sua capacidade para suportar a solidão, a ausência. \1-ics que propus. O analisando aceitou comparecer a quatro sessões
Nessa sessão, o analisando depositou o problema e a iniciativa \l'manais.
no outro, e o acusou de infligir-lhe sofrimento. Expressou o desejo Luiz: Acho bom eu vir aqui porque muitas vezes eu faço coisas
de ficar sozinho e não depender de ninguém e, paradoxalmente, adi- ü'm pensar nas conseqüências, sou impulsivo e me arrependo de-
antou-se para essa sessão e para outras. O paradoxo é da natureza 11ois... Ás vezes, eu sinto um ódio tão grande ... Tenho medo de não
humana e o analisando pode=não pode se aproximar dele mesmo. me controlar e jàzer besteiras ... tenho medo de me perder, quero ter
Considerei que a sessão evoluiu para um vínculo de coopera- 1111/ra cabeça ...
ção; algumas transformações apontaram para a surpresa, para a per- Lembrei-me, também, que no início da análise o analisando
plexidade e para algum reconhecimento do que ele experimentou; a rnntou-me um sonho, que se repetiu, e que era mais ou menos assim:
meu ver, ele teve alguma condição emocional correspondente ao es- 1lavia um círculo, ele e eu estávamos dentre dele, eu a seu lado. Ele
tado de continência. Mas, avisou-me que só ali ele era tolerante, inte- .,~sustado e eu o acalmava. Em um outro sonho, eu estava dentro da
ressado. vabeça dele. Muitas vezes o analisando me constitui como um conti-
Acredito que a participação em uma experiência amorosa e de nente para as suas emoções e impulsos, e se mantém distante dele
intimidade emocional pode estimular o continente. Uma pessoa que 111esmo, esperando soluções, orientações, ali,mças contra aqueles que
experimenta intenso sofrimento busca um continente, segundo suas l'lc acredita que o impedem. Parece-me que ele acredita em algo ex-
possibilidades e necessidades. Nas sessões, até o presente, percebo tnno que o transforme em outra pessoa, quê- mude a sua cabeça.
que Luiz me testa, me examina se sou genuína ou não, confiável ou
l111:11l'm escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 91
90 PAULINA CYMR01

Entendo que a preservação do continente comporta a elabora- Numa atitude que me pareceu ser de desprezo, o analisando
ção da destrutividade; e que a confiança e a constância na relação ln.se: Essas conversas não servem pra nada, você só fala essas bes-
com o objeto continente, que supo1ta a agressão e aceita a reparação, iros.
sejam concomitantes à possibilidade de estar continente para a pró- Respondi que pensei que ele precisou se convencer de que eu
pria destrutividade, dependência, ignorância, solidão. Essas condi- pll"l·1sava mais dele do que ele de mim. Que eu percebi o seu deses-
ções permitem que a onisciência, o ressentimento, a melancolia, o pnll e a sua tentativa de escapar do mesmo.
apego ao masoquismo cedam lugar à compaixão direcionada para a Com violência, ele atirou no chão um livro que se encontrava
11,1 mi nha escrivaninha.
reparação, pois são ajudadas pela expansão da continência. O analis-
ta deve observar se o analisando suporta a relação amorosa, viva e Falei que embora ele tenha vindo se encontrar comigo, sentia-o
criativa que se articula à internalização mais estável de um vínculo p, ,m:o disposto para estarmos juntos. Quando o recebi, senti-me com
com objetos amorosos, complacentes. 11,posição para atendê-lo, mas agora estava ficando indisposta e pen-
111do que seria melhor encerrarmos a sessão.
O analisando recolheu o boné e o walkman que ele atirara no
h:10. Pareceu-me que ele ficou angustiado. Não quero ir embora, e
2. Outro momento clínico com Luiz llTllstou-se na poltrona.
Disse-lhe que agora via seu esforço para conversarmos, e per-
Luiz compareceu à sessão com o cigan-o aceso e soltando a fu- 1111tir que juntos pudéssemos pensar sobre o seu sofrimento, sobre a
maça na minha direção, parecendo-me ser esta uma atitude de desafio. l11 tl' nsidade da sua hostilidade.
Lembrei-o que, desde o nosso primeiro contato, pedi-lhe para não fu- Após uns minutos, com uma expressão mais deprimida, o ana-
mar na sala de análise. Contrariado com o que eu lhe falei, com expres- lisando disse que ele precisava de mim.
são hostil, ele apagou o cigan-o e sentou-se na poltrona ao lado do divã. Perguntei que ajuda ele queria que eu lhe desse. Contou-me que
Percebi-o olhando na minha direção, rnas seu olhar parecia me perpas- lil'hcu porque não suportou suas notas nas provas escolares e porque
sar, era vago, distante, distraído. Poucos minutos se passaram e ele, de li.t il conseguiu um encontro almejado. Percebeu o quanto precisou

maneira desafiadora, disse num tom pausado e monocórdio: Bebi cin- ti ngir não precisar de ninguém. Disse que a promessa feita aos pais,
co cervejas antes de vir para cá (e expressou um riso forçado). Com a ele mesmo, de não ser reprovado no colégio talvez não fosse
raiva, tirou o boné da cabeça e lançou-o na parede. Olhou-me e, triun- umprida, e se desesperou. Falou de sua carência sexual e do temor
fante, ligou o walkman que trazia à volta do pescoço. Permaneci em 1k se r ridicularizado pela sua inibição, pelas suas dificuldades para
silêncio. Fiquei receosa da sua agressividade, mas me contive e aguar- 11a 111orar. Disse, também, que não suportava a dependência econômi-
dei. Pouco depois, ele atirou o walkman no chão. ,1 cm relação aos pais, e o controle que eles exerciam em sua vida.

Disse-lhe que me pareceu que ele me testava para ver se podia Nao se sentia com liberdade para namorar e atribuiu aos pais essa
fazer o que queria, se podia "botar pra quebrar", testava-me para ver proibição. Reconheceu estar despreparado para acelerar a sua inde-
se eu agüentava tudo dele. Fiquei com a impressão de que ele preci- pl·11Jência e sentia-se atormentado por esses pensamentos e desejos.
sou me provocar, demonstrar-me que era poderoso, e não temia nada. 1>isse: Paulina, preciso de outra cabeça, não estou me suportando!
92 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 93

Falei que ele chegou e não pôde me considerar, mas que aos ,1.1 não me ajudam. Penso que meus pais vão "cair em cima de mim",
poucos pôde confiar, se aproximar de mjm, e me informar sobre as tfll<' não vou conseguir realizar nada na vida. A; quero beber para

suas preocupações, o seu sofrimento. Prometeu estudar, ser indepen- ,·,,111ecer por um tempo. Não quero ficar assim .... Encostou a cabeça
dente, namorar, e sentia-se frustrado por não realizar esses objetivos. 11a poltrona e, por instantes, ado1meceu. Acordou 1obressaltado quan-
Acreditava, então, que sua cabeça estava defejtuosa. do o avisei do ténnino da sessão. Decepcionado, perguntou se eu ia
Com um humor respeitoso, perguntei-lhe que tipo de cabeça ele 1ll'nder alguém depois dele, pois queria ficar ma:s.
procurava, que cabeça ele queria para ele. Disse-lhe que ia estar ocupada, e não era possível atender o seu
O analisando riu. Pareceu surpreendido com o que lhe falei. pnliJo. E despedimo-nos.
Essa formulação auxiliou para que ele conversasse comigo. Num tom Na sessão, fiz o que me foi possível, conforme os meus recur-
amistoso, ele disse: Não sei que cabeça eu quero! (ele achou engra- 1,s emocionais e os meus limites. Penso que nes,a experiência com
çado querer uma outra cabeça). Sempre penso que os outros não es- l .uiz, que não foi nada fácil para mim, contive s~us conteúdos, que
quentam, não se atormentam, não são rejeitados e não ficam assim 11ansbordavam e estouravam em ações violentas, e as minhas ansie-
frustrados como eu ... Chego perto do meu amigo, o J, ou do meu tio dades. Ele me contou que em outras situações de ;ua vida, em outros
N., e sinto que quero me transformar nestas pessoas, viver a história relacionamentos, ele ousa, provoca, desafia, agride, faz o que quer. E
deles. Acho que eles só são bem-sucedidos. Aí fico imaginando a 11, menos até o momento, os pais toleram sua violência e não se

vida deles, e já nem sei o que serve para mim, para a minha vida. E, ita:-.Lam dele. No início da sessão, ele pareceu não temer nada. Acre-
na verdade, eu nem sei o que eu quero! Aí eu penso que o melhor é eu ditou que podia fazer o que queria, que eu conteôa tudo? Penso que
me isolar, bebe,~ para nem pensar nisso, senão eu fico atormentado! 11n1a ação efetiva não é o mesmo que uma ação impensada. A meu
Disse-lhe que, por enquanto, nem ele e nem eu sabíamos qual é ver, conter não é aninhar, não é agüentar tudo. Quando não mais
a melhor cabeça para ele, e, então, tínhamos que ir vendo isso juntos. 11 ,lerei, dispus-me a encerrar a sessão.
Luiz me mostrava que quando ele se encontra em apuros, quando seu O que me pareceu que ele podia fazer quandc ficava frustrado era
objetivo não dá certo, o que ele consegue é ficar competente para, 1bvalorizar o outro, se desvalorizar, culpabilizar uutros, ou idealizar;
como nos primeiros momentos do nosso encontro, me denegrir, e queixar-se, acusar, se dividir, e não arcar com quem ele é. Sentia-se
agora para se denegrir. frustrado, desconsiderado, e sua possibilidade era demonstrar intensa
Ele falou que sua mãe sempre lhe diz que eu sou uma profissio- hostilidade em relação ao mundo externo e em re:ação a ele mesmo.
nal competente, das boas, eia me contou que você escreveu um li- Durante essa sessão, apesar do meu impacte>, dada a sua reação
vro ... Sobre o que você escreveu nesse livro? Quantos anos você tem? violenta, a sua atitude de desafio e de provocação, senti compaixão
Respondi que eu tinha idade suficiente para cuidar dele e para pl'lo analisando ao perceber sua falta de equipamento psíquico para
ajudá-lo. E que escrevi sobre pessoas como ele, que não se conhe- amar, estudar, planejar a sua vida, enfrentar as dificuldades vividas.
cem, que não encontram um sentido para as suas vidas, e que vão l<l'stava-lhe atacar ou se atacar. Pareceu-me que ele deseja ser bem-
descobrindo a importância de se conhecer melhor. 111..:cdido, mas sem enfrentar dificuldades, sem experimentar dor, li-
Luiz olhou-me intrigado, curioso, e disse: Quando eu fico de- 111ile, o que poderia levá-lo a um desenvolvimento, ao crescimento,
sesperado porque as coisas não dão certo, penso que estas conver- 1 aso tolerasse esses estados.
94 95
PAULINA CYMROT l\l lnguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humr

No início da sessão, senti que não tinha um interlocutor, al- Luiz percebe que o ódio, a intolerâncª à frustração que ele sen-
guém para dialogar. Ele se apresentou de uma maneira, comportou- 1,· são difíceis de ele conter. Quer a minh ajuda para suportar esses
se conforme os seus recursos emocionais e, da minha perspectiva, ,·,tados?
sem continência para certos sentimentos, percepções. Ter percepção, Não aprendeu a viver com O que O o'tro quer?
responsabilidades, reflexão, parecia-lhe uma sobrecarga. Mas demons- Ajudá-lo: Para ele é propiciar paraque ele viva como quer?
trou que queria ser ajudado.
l ':1ra eu eliminar seus estados emocionaisdesagradáveis?
Se permaneço serviçal, temerosa, imobilizada, o analisando não Penso que uma análise pode auxiliá-]) a se ver, a se disctiminar
se desenvolve. Fazendo do meu modo, inicialmente ele me denegriu, 111l'lhor em relação ao outro, a desenvolvf tolerância, a conter im-
disse que se sentiu incompreendido, injustiçado. Depois ele se apro- pulsos e emoções se ele tiver interesse e c:laborar para isso. E se eu
ximou de mim e dele mesmo, e se denegriu. Ele tem a noção de que puder aceitá-lo, contê-lo. Nas sessões corr ele, verifico que, por ve-
se ele se anestesia, que perde tempo na vida, que se atrapalha, que se L'S, isso se dá e outras vezes não. Devo e"tar educá-lo moralmente,
atrasa. Mas se ele não contém seus conteúdos, não é por falta de ,., itar interpretações pedagógicas, 0 que 11uitas vezes se torna difí-
vontade, mas porque não pode. Enquanto analista, devo aproveitar 1 il ; outras vezes, estas me parecem serem 1ecessárias, em se tratan-
cada movimento psíquico, cada momento da sessão, sem me ocupar do da análise desse adolescente. Se eu evitr o desejo de que ele seja
com diagnósticos ou prognósticos. Na sessão ora relatada, procurei 11111 outro, nesse sentido, penso que estou c1ntribuindo para ele, se eu
me impor ativamente para estabelecer alguma comunicação com Luiz. 11 ,io pretender a eliminação da sua violêncjl, da sua hostilidade, cui-
Tentei aproveitar os recursos dele, e os meus. Ele teve a percepção de d:1ndo para não transformá-lo num outro. r1tendo que a continência
que eu podia ajudá-lo, mas o quanto isso é possível, o quanto ele p;1ssa pelo respeito e tolerância às diferen<11s, para assim ajudá-lo a
permite, é testado a cada encontro. 1·,1ar continente para os seus estados emfionais. Penso, também,
Fico com o desafio de respeitá-lo em seus recursos, cuidando q11 ç o analista precisa experimentar liberdaie para exercer a sua ati -
para não pretender que ele seja um outro, que apresente outros recur- 1 idade, o seu método.
sos; e com a tarefa de falar com ele com liberdade e com sinceridade. Atividades mentais propícias para O fnsamento psicótico não
Para o analisando, apresenta-se o desafio: de poder aproveitar o que •'º exclusivas dos analisandos; atividades mentais propícias para o
ele dispõe, utilizar a experiência analítica, poder contê-la, ou não. pt·ns_amento ~ão psicótico estão disponívei: para o analista e para o
Os movimentos psíquicos decorrentes da interação analítica 111ahsando. E preciso que O setting seja pefllissivo para que o novo
passam pelo nem sempre visível, pela via dos afetos, e não só pela 1·.1 a observável e a inteligência não seja utüzada para destruir opor-
verbalização. O analista deve se abster de ter como meta prioritária a 11111idades.
obtenção de algum tipo de resultado, deve confiar em seu método, Ao chegar, Luiz me desafiou. Pensei nfma possível interrupção
envolver-se na relação, exercer sua atividade com a sinceridade pos- da sessão como expressão de continência e não como atuação da
sível, aliada a uma real compaixão pelo padecimento do outro. Algo 111111ha parte. Ação não é O mesmo que a;tação. A minha abertura
poderá se evidenciar para ele, ou não. Concordo com Bion (1963) para experimentar, me emocionar e transf01mar essas emoções para
em sua idéia de que o desenvolvimento não é objeto que se possa 11a11scendê-las, supõe a condição de contin~ncia, e ela mesma ctia
desejar, o crescimento não é percebido sem certa dificuldade. ·kmentos para que outras emoções sejam efperimentadas, contidas,
9(1 PAULINA (lMROI

transformadas e pensadas. Entendo que continência implica um esta-


do mental que permite experienciar com inteireza, observar mais,
tolerar mais, e aprender com a experiência. Esse estado propiciou
que o analisando pudesse conversar comigo.
Penso que o campo psicanalítico constitui-se como um campo
de expansão, de investigação, de indagação, e não um campo de pro-
vas. Serve para a pesquisa da singularidade que se apresenta na inter-
dependência. O analista lida com o fato psíquico, com o que ele pode CAPÍTULO III
observar e intuir, ou não, nesse campo. Sua responsabilidade - apoi- Reflexões sobre a experiência
ada numa ética, no seu treinamento - deve se antepor às regras, às
técnicas, aos rituais. E como parte dessa ética, ele deve evitar se en- de análise com Frederico
redar em anseios de franqueza, de compreensão, de tolerância, de Graça e pensamento
bondade, de transparência, de amor, de cura - penso que essas ex-
pectativas funcionam como "ganchos" que fisgam o analista o tempo
todo, e que a disciplina analítica, apoiada no estado de continência,
pode minimizá-las.

Só os profetas enxergam o óbvio, dizia Nelson Rodrigues a respeito de


certos fenômenos que, por estarem bem debaixo dos nossos narizes,
tornam-se invisíveis. O óbvio ulula para nós, chamando por
reconhecimento, e, apesar disso, passamos invictos por ele, com uma
superioridade imbecil e alvar. Um dia, finalmente alguém o enxerga e,
por enxergá-lo, torna-se um profeta ... Nelson, mais do que todos, foi uma
vítima do óbvio .... Moralistas de direita e de esquerda, sentados sobre os
próprios rabos, tachavam-no de imoral. Até os inteligentes - e que
gostavam dele, como o poeta Manuel Bandeira - às vezes o estranhavam:
"Nelson, por que você não escreve sobre pessoas normais?", perguntou
Bandeira. E Nelson, levantando as mãos ao céu: "Mas, meu querido
Bandeira, eu escrevo sobre pessoas como você ou eu!"
Ruy Castro, ln: Folha de S. Paulo, janeiro de 1994.

Neste capítulo, meu objetivo é refletir sobre alguns momentos


de uma experiência psicanalítica com Frederico, focalizando o vé11i-
ce da dinâmica continente=contido, de retração=expansão da con-
dição de continência. E refletir sobre o humor na análise. Estou cien-
98 PAULINA (YMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1)1)

te de que a escolha de um vértice não é indiferente ou inócua, em se til' prognósticos. Sirvo-me dos recursos disponíveis ao analisando, L'
tratando de uma pesquisa. Creio que toda produção humana é drn, meus, e que organizam a sua existência. Acredito que a intcnsi
permeada pela singularidade, pela ressonância das experiências, e d.ide do sofrimento de uma pessoa nem sempre é proporcional à se
suas transformações, no sujeito da mesma. Na escrita há também o , 1edade do transtorno mental. O grau, a extensão, o significado do
problema da transmissão da experiência psicanalítica, da transcrição •,ofrimento depende de sua relação com outros elementos, das teori-
da sutileza da mesma, com suas transformações, além da preserva- .,., do analisando e do analista. A evasão da dor pode se dar antes da
ção do sigilo profissional. Apresento as minhas transformações das 1ontinência para a mesma.
experiências que tive com o analisando que chamarei de Frederico. Entendo que o propósito de uma análise não seja a normatização,
Sirvo-me de momentos dessa análise para me aproximar dos pressu- .t classificação de uma pessoa em categorias psicopatológicas, mas a

postos expressos neste livro. Procuro examinar alguns fatores que .11 cnção à sua singularidade, às particularidades de seu relacionamento
suponho colaborar para a expansão do continente interno. l'Onsigo e com outros, à dinâmica das emoções presentes no campo
O relato que o ana]jsta (ou o analisando) faz da sessão pode ser p~icanalítico, para se evitarem as generalizações correspondentes às
tomado como "verdade", e não como expressão do recorte que decorre IL'orias. Privilegio a observação da interação analista-analisando en-
das transformações que operam em sua mente e que dependem da sua quanto ela é vivenciada, verificando a ressonância emocional do par,
condição emocional para captar a experiência. A meu ver, relatos de 11a sessão, tentando captar o novo, o sutil, o inusitado, o desconheci-
experiências, lembranças, problemas são manifestações de experiên- do da realidade psíquica que se apresenta na relação. Verifico que a
cias emocionais - e suas transformações - e dependem da tolerância proposta de participar ativamente de um encontro emocionalmente
às emoções e das relações com os objetos internos e externos. vivo, observá-lo e comentá-lo ajudou-me numa aproximação à expe-
Creio que, para o leitor, a apresentação de um histórico do ana- 1 iência emocional de Frederico, e ajudou-o a se interessar pelo seu

lisando se torna atraente para "situá-lo no acompanhamento do caso", -,cr. A apatia e o temor de um vazio existencial, expressos em pala-
como se costuma dizer em nosso meio profissional. Na leitura de vras e observados por mim em seu olhar e na tonalidade inexpressiva
alguns trabalhos sobre Psicanálise, verifico que a história relatada da fala monótona, deram lugar ao contato com a sua interioridade,
pelo analisando ao analista muitas vezes é tratada como um equiva- que ele se empenhava em evitar. e ao reconhecimento em si mesmo
lente de fatos, que exercem marcas na mente do analista, e é trans- de capacidades para a continência aos estados mentais temidos e
portada para a análise para ser confirmada. Penso que para o analista di ssociados. A meu ver, evitando o sofrimento e a dor, Frederico
seja útil verificar o uso que o analisando faz desses "fatos históri- impedia-se de experimentar com mais tranqüilidade uma vivência
cos", e através deles construir modelos que se prestam para uma apro- amorosa. Quando o analisando me procurou para a análise, ele des-
ximação emocional do analisando com ele mesmo. conhecia que o seu desejo onipotente de se evadir de uma apropria-
Procuro manter uma disciplina - que em alguns momentos ope- ção de si mesmo, de evitar a familiarização com o seu ser, alimentava
ra - que valoriza a atenção flutuante para observar a qualidade da formas psicóticas de existência, e que estas "caminhavam na contra-
interação que se estabelece a cada momento do encontro; evito ser mão da análise".
uma intérprete do comportamento do analisando, para explicar ou Durante alguns anos convivi com Frederico numa proposta de
confirmar o seu passado'; não me ocupo de diagnósticos, tampouco análise. Quando iniciamos o trabalho, eu era mais inexperiente e acre-
100 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 101

ditava que o analista era o porta-voz de uma realidade não deforma- Quando Frederico se apresentou para mim, ele parecia ancora-
da; supunha-o um ser consciente que interpretava o inconsciente do do numa queixa de solidão, de depressão, e denominava esses esta-
analisando, e, desse modo, reservava para este o lugar daquele que dos emocionais de meu problema; ele desejava entender por que se
alucinava, deformava, se enganava! Eu não tinha assimilado que a ,l'ntia assim, com a esperança de se compreender e se livrar desses
oscilação PS=D é contínua na mente de qualquer pessoa, não sendo t·,tados. Essa experiência psicanalítica - e outras - ensinou-me que
exclusiva de alguns! Hoje, verifico que, naquele tempo, por estar ,aber e explicar não é o mesmo que viverciar, conter, intuir, ser, se
mais preocupada com os aspectos psicopatológicos, e suas defesas, .,propriar; que o conhecimento de si advémdo aprendizado pela expe-
mais atenta às teorias do que às particularidades e ao sofrimento de 11Gncia emocional possibilitado pelo estado de continência para a vida
tal pessoa, não podia perceber quem se apresentou para mim: um psíquica. Ensinou-me que ser verdadeiro consigo, apropriar-se da
homem que sofria, a meu ver, por não se conhecer, não se conter, não própria individualidade, elaborar emoçõef, constitui um penoso ca-
abrigar o seu ser. 111i nho que comporta sofrimentos, retraçã::>=expansão do estado de
A experiência analítica com Frederico me possibilitou repensar l ontinência para a vida psíquica e percursos que não têm um ponto
a minha prática clínica, a concepção de ser humano e de desenvolvi- tk chegada. Assim compreendo a análise 1•
mento psíquico, bem como a finalidade da análise. Atualmente percebo que as experiên:::ias emocionais que expe-
A meu ver, se uma pessoa confia sua intimidade, seu sofrimen- 11 mentei intensamente no período inicial da análise com Frederico -
to ao analista, isto não deve ser usado para rotulá-lo, enquadrá-lo em de ignorância, onipotência, ho1Tor, perse.guição, compaixão - não
uma psicopatologia. puderam ser devidamente contidas e, portanto, não foram
Quando encontrei Frederico pela primeira vez, ele acreditava que uperacionalizadas em formulações mais efetivas. Como exemplo, no
havia algo errado nele, e isto não era concebido por ele como um primeiro encontro que tivemos, o analisando demonstrou sentimen-
sentimento, uma fantasia; ele não duvidava da "verdade" que ele era tos persecutórios quando me confidencicu a respeito de suas esco-
mesmo inferior, se comparado a outras pessoas. E, embora não sou- lhas amorosas. Acreditei que, para compreendê-lo, precisava estudar
besse expressar o que nele precisava ser corrigido, melhorado, espera- 1nais sobre perversões! E li um "tratado'' sobre esse tema, movida
va o meu parecer para saber como ele devia ser. Ele tinha estabelecido pela ilusão de que isso me capacitaria para atendê-lo! Felizmente,
uma equivalência entre angústias e .fraquezas, estava assustado com atho que ele captou o meu interesse para estar com ele e escutá-lo, o
emoções, pensamentos, e com algumas ações que denominava de lou- qual, aliado ao seu sofrimento, à idealização e a outros fatores desco-
cas. Temia a incontinência emocional, os impulsos. Disse que se nhecidos para nós dois, contribuiu para que o trabalho se iniciasse.
alcoolizava para evitar emoções dolorosas. Expressou-me o seu temor Conforme Frederico me contou, sua colega de trabalho, em quem
de dependência e de intrusividade em seus relacionamentos. Com a confio profissionalmente, indicou-me para atendê-lo e parece que,
nossa convivência durante o trabalho analítico, percebi que esse temor para ele, a opinião de tal pessoa era suficiente para ele me aceitar.
associava-se ao teffor de proximidade afetiva seguido de decepção; ele Disse que se sentia oprimido e exigido no exercício de sua profissão,
experimentava com medo e angústia os sentimentos de abandono, de mas procurava cumprir suas tarefas com seriedade. Relatou que ek
dependência, de rejeição, de desproteção, de desamparo, de solidão. mesmo se pressionava para ser compreensivo, controlado e respon-
Queria eliminar esses sentimentos e solicitava a minha ajuda.
/\ respeito dessas idéias, consulte Cymrot ( 1997 ).
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor I () '

102 PAULlNA CYMROT

quiatra, porque ele se alcoolizava - porque eu perco a cabeça, e oi c·11


sável, e que não costumava compartilhar os seus sentimentos, o seu h<'ho ... sei que não é de remédio que eu preciso, mas não sei o ((li<'
sofrimento com ninguém, esforçando-se para ocultá-los. Referiu-se 1; .. Ao falar, ele me informava sobre a insuficiente continência para a
a uma anterior e breve experiência de psicoterapia que qualificou de vida psíquica e a conseqüente falta de diálogo com o seu ser? Parc-
um placebo, uma espécie de aconselhamento, e expressou o desejo n:u-me que ele se justificava por esse comportamento e não queria
de uma análise - mas eu não tenho idéia do que é isto, completou. '-L'r culpabilizado ou responsabilizado por seus impulsos. E queria
Logo anunciou o que esperava encontrar: quero me sentir mais livre que eu compreendesse isso.
nas minhas escolhas, sem me sentir criticado, quero me livrar destes Com uma fina ironia, que durante a nossa convivência entendi
sentimentos insuportáveis de solidão e de esvaziamento ... Tenho medo '-L' tratar de uma defesa contra ansiedades persecutórias estimuladas
de perder o interesse pela vida ... E disse que queria ter relaciona- por um superego severo, e devido à incontinência para outros aspec-
mentos mais duradouros e mais íntimos. tos de sua vida psíquica, ele ridicularizava os seus sentimentos, ba-
Com humor, respondi-lhe: Vamos ver se nós dois teremos mais 11alizava-os, censurava-se por suas escolhas amorosas e antecipava-
sorte nisto! SL' em críticas, alimentando o desejo onipotente de se livrar de ansie-
Ele riu, e eu também ri. Senti que essa fala humorada e informal dades persecutórias. A meu ver, ele desconhecia a importância da
nos aproximou e possibilitou uma diminuição das ansiedades dor, do medo, da angústia, enquanto sinalizadores, vitalizadores e
persecutórias relativas ao que ele considerava serem suas dificuldades. protetores do seu self Parecia assustado com os sentimentos de de-
Com ressentimento, referiu-se às críticas dos familiares ao seu pendência, de solidão, e resignado em uma crença de existência infe-
estilo de vida, às suas escolhas amorosas e profissional, lamentando 11,, de incontinência pulsional e emocional na vida amorosa, sexual.
o distanciamento afetivo existente entre os membros de sua farru1ia. <)uando consegui escutá-lo, pude perceber e sensibilizar-me com o
Eles são afetivos, do jeito deles; meus pais me deram estudo, oportu- 1ksabrigo íntimo e a sua necessidade de um continente que acolhes-
nidades de viagens, cultura, mas não consigo fàlar com eles do que '-L' e respeitasse o seu desespero, a sua interioridade.
eu sinto, do que me angustia, me sinto cobrado, desvalorizado. Ape- Nos primeiros anos da análise, era freqüente o analisando apre-
sar das mágoas em relação aos pais, reconhecia ter recebido deles '-L'ntar uma atitude educada, de cortesia, que resultava em concor-
oportunidades de estudo e conforto na vida. di'tncia comigo, muitas vezes sugerindo-me que ele operava por
Quando seu irmão morreu, Frederico faltou à análise por duas l'livagem. Predominava, então, uma pseudocooperação que não ser-
semanas, e justificou a ausência pela minha responsabilidade de as- \ ia para ele experimentar continência e intimidade com o seu ser.
sistir a família, minha mãe, minha avó, meus irmãos, eles precisam Bleuler, conforme Laplanche e Pontalis (1977), utilizou o ter-
de mim. Sentia-se criticado pelos familiares, mas não só; sentia-se 1110 spaltung para designar o sintoma fundamental do grupo de
também responsável pelos sentimentos e pelo sofrimento dos mes- ,tl'ccções a que chamou de esquizofrenia. Freud não adotou a con-
mos. Sua falta de espontaneidade emocional e de vitalidade chamou n:pção de Bleuler, da clivagem do psiquismo explicável como um
a minha atenção nesse e em muitos dos nossos encontros; isso era .,grupamento secundário num mundo psíquico desagregado em vir-
expresso na voz monocórdia, sem modulação emocional. Frederico 111de de uma fraqueza associativa primária.
parecia desconhecer a liberdade, a autenticidade na expressão afetiva. Conforme Laplanche e Pontalis (1977), a clivagem do ego e
Disse-me que amigos recomendaram-lhe consultar-se com um psi-
104 PAULINA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 'º~
uma expressão usada por Freud para indicar um fenômeno particu- 11:10 oculta nenhum conflito isolado, mas divide a personalidade l"tn
lar, que ele entende que opera sobretudo no fetichismo e nas psico- partes alheias umas às outras; conseqüentemente, empobrecendo a.
ses: da coexistência, no ego, de duas tendências psíquicas para com a <> objetivo da análise não seria a reunificação, a unificação do S<'/f;
realidade exterior quando uma exigência pulsional é contrariada. Uma 111as promover a comunicação entre as partes separadas pela clivagem.
leva em conta a realidade; a outra nega a realidade em questão e A clivagem do objeto é um mecanismo descrito por Klein e considc·
constrói em seu lugar uma produção do desejo. São atitudes que per- 1ado como a defesa primitiva contra a angústia. O objeto das pulsões
sistem lado a lado, sem se influenciarem reciprocamente. eróticas e destrutivas cinde-se em um "bom" ou "mau" objeto, e es-
Inicialmente Freud apontou para a dissociação dos fenômenos lL'S terão destinos relativamente independentes na dinâmica das pro-

psicológicos, para a clivagem do conteúdo psíquico que resulta do 11:ções e introjeções. A clivagem é atuante na posição esquizo-
conflito entre o inconsciente e a consciência. Na elaboração de sua paranóicle incidindo sobre os objetos parciais. Na posição depressiva,
obra, e sem fazer da clivagem um conceito fundamental, ele utilizou 111cide sobre o objeto total. Para Klein (1991b), a clivagem dos obje-
o termo spaltung para designar o fato de o aparelho psíquico ser divi- 1os é simultânea à clivagem cio ego em "bom" ou "mau" , pois o ego
dido inicialmente em sistemas (inconsciente, pré-consciente, consci- l', para a escola kleiniana, constituído essencialmente pela introjeção

ente), e posteriormente em instâncias (id, ego, superego), ou ainda o dos objetos. A autora considera que a clivagem relaciona-se à intole-
desdobramento do ego em uma parte que observa e uma parte que é rância a uma percepção, defesa contra as ansiedade persecutórias e
observada. depressivas2, devido à dificuldade de integração de impulsos, objetos
A noção de clivagem cio ego foi retomada por Freud numa pers- l' partes do ego. Com a clivagem, o conhecimento fica dissociado dos

pectiva diferente ( 1927; 1938). Ele destacou as relações entre o ego e afetos.
a "realidade", definiu a recusa da castração. O ego pode desligar-se A falha na aquisição de um sentido do self pode ser real ou
da realidade, mas não totalmente; isso acontece raramente. Por um fantasiada. A teoria kleiniana da chvagem (após 1946) aplica-se aos
lado, uma percepção é recusada e tal recusa pode se traduzir na cria- objetos parciais e considera que há duas formas de clivagem, sendo
ção cio fetiche, de uma realidade delirante. Através da clivagem, co- uma favorável à integração e outra favorável à desintegração. Ambas
existem dois processos de defesa, um voltado para a realidade (recu- visam ao objeto e incidem sobre o ego. A clivagem das imagos faz
sa), outro para a pulsão, podendo redundar na formação de sintomas. parte do desenvolvimento emocional, possibilita à criança obter mais
A existência em um mesmo sujeito de duas atitudes psíquicas dife- lé e confiança em seus objetos reais e internalizados, permitindo que
rentes, opostas e independentes uma da outra, está na base da teoria o amor não seja perturbado pelo ódio. Trata-se de um mecanismo
psicanalítica do ser humano. Uma das particularidades desse proces- psíquico de adaptação e facilitador das relações objetais primárias, e
so é não levar à formação de compromisso entre as duas tendências, que pode abrir o caminho para que o sujeito restaure seus objetos.
mas mantê-las simultaneamente. Não operando excessivamente, pode estar a serviço da sobrevivência
O termo inglês spliting tem uma conotação mais kleiniana que de um sentido de self. Com os movimentos psíquicos em direção à
a clivagem freudiana, se bem que ambos derivem do mesmo spaltung. integração, os aspectos evitados se aproximam e podem originar no-
A clivagem é a principal defesa, não só da personalidade esquizóide,
mas de toda personalidade perturbada. Diferentemente da repressão, Em Inveja e gratidão , veja especialmente o capítulo VII, item 1 (Klein , 1991 h)
107
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Hunor
l06 PAULINA CYMKOT

inento e a ativação da identificação projrtiva, podendo ocoJTer o in-


vas organizações psíquicas, novas clivagens e outras organizações cremento de desconfiança no se/feno ob_eto, vivências de decepção,
com possibilidades de aproximação à realidade psíquica e externa, l'Stados de confusão entre intimidade füica e emocional; ataque ao
sem tanto ódio e persecutoriedade. Desse modo, os aspectos frus- pensamento seguido de ataque ao víncub, atuações, devido às ansi-
trantes do amor podem ser mais tolerados e experimentados sem tan- l'dades persecutórias que repercuten na escala de valores e
ta perseguição. Com o desenvolvimento psíquico, a clivagem tende a incrementam o superego sádico. A cliv,gem supõe um mecanismo
se tornar mais permeável deixando transparecer as contradições e os psíquico de adaptação e facilitador das relações objetais primárias, e
limites do sujeito e do objeto. que pode abrir o caminho para que o suj!ito restaure seus objetos.
Conforme Klein (1946), o ego não repara todos os objetos ata- Pergunto: É possível que um mecanismo seja defensivo e
cados, mas somente os que, após o ataque, ele percebe ainda como destrutivo?
"bons". O seio "bom" é introjetado em sua totalidade, enquanto o Podemos falar em experiências em~cionais concernentes à idéia
seio "mau" é introjetado em pa1tes, mas essas duas modalidades de de objeto total, de se/fintegrado? Existe um se(f verdadeiro? Único?
clivagem se superpõem. A introjeção do seio "bom" de modo total Ou se trata de uma coexistência de selVls conflitantes, convidados a
leva a autora a atribuir uma função primordial à PS, antes conferida à -.e tolerarem mutuamente?
D. Esse primeiro objeto "bom" interno deixa uma marca no psiquismo Freqüentemente, a unificação não seria alcançada ao preço de
que serve para conter os processos de clivagem e contribui para algu- uma clivagem do selj?
ma coesão do ego, equipando-o diante das adversidades da vida. Klein O objetivo da Psicanálise seria o de promover a comunicação
também observa que o sufocamento das emoções é uma defesa que entre as funções e os aspectos psíquicrn clivados?
se liga à clivagem do ego como um subproduto da clivagem do obje- A Psicanálise kleiniana pressupfü que a clivagem comporta
to. Essa divisão do ego tem como efeito uma dispersão da ansiedade graus; e que o predomínio do amor criaa condição para a aproxima-
(Petot, 1988). E impulsionada pela destrutividade, pode se manifes- 1,·ão dos aspectos clivados para a supo·tabilidade da ambivalência,
tar em tentativas do sujeito para se afastar dele mesmo, pois devido à para a integração, ao longo da posição depressiva infantil. Sucessi-
falta de coesão do ego, a tendência para integrar alterna-se com a vos movimentos de integração prepanm o ego para fazer uso do
tendência para desintegrar. Como a deflexão da agressividade se recalcamento, se a clivagem não for in:ensa, permitindo que aspec-
mantém, já que a ansiedade pressiona constantemente, há a necessi- tos do self estabeleçam comunicação com alguma porosidade. Do
dade de um trabalho psíquico contínuo para a manutenção da contrário, ele pode experimentar estados emocionais dolorosos que
clivagem, com um alto custo para o ego. Se apesar da deflexão e da colaboram para o aumento do desespero. Vale lembrar que estados
identificação projetiva o ego não consegue enfrentar a destrutivida- esquizo-paranóides oscilam com estai;os depressivos, e não eleve-
de, ele pode responder a essa ameaça, dividindo-se. mos exigir do ser humano além de sua, possibilidades emocionais.
A clivagem não é apenas um mecanismo defensivo contra a Penso que como temos experiências de frustração, os mecanis-
agressividade, é também infiltrada por esta, e a combate. A separa- mos defensivos são inevitáveis. Em certa medida, sempre há o ego
ção do amor e do ódio é necessária para que o "bom" objeto seja cindido, mesmo para indivíduos que acançaram algum grau maior
reconhecido como tal. Caso contrário, os sentimentos de proteção, de coesão egóica, algum equilíbrio p~íquico relativamente estável,
de confiança, ficam ameaçados e engendram a confusão de pensa-
J()IJ
108 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor

apesar da constante pressão dos estímulos internos e externos. tender, não é o mesmo que ter uma percepção emocional, a qual illl
Clivagem e identificação projetiva freqüentes são mecanismos psí- plica sentir, assimilar, introjetar, metabolizar. Manipular teorias, idéias,
quicos custosos, promovem a insensatez, fragilizam o ego. Supõem é diferente de experienciar e aprender pela experiência. De acordo
modos de funcionamento mental que atendem à necessidade de so- com o autor, há diferenças entre os indivíduos em termos de percep-
brevivência, mas atacam a condição de continência, o sentido da ex- ções e de tolerância a estas e às ansiedades a elas associadas. Há
periência, a apreensão do senso comum, o vínculo de conhecimento. diferenças de sensibilidade entre os analistas para se aproximar de
O sujeito pode ficar consciente de uma necessidade psíquica, mas seus analisandos.
pela influência do ódio invejoso, da insuficiência de continência para Estar continente para quem somos, para algo próprio e não va-
a vida mental, pode deslocá-la para coisas cujo alcance seja mais lorizado é difícil, e Bion alertou para a possibilidade da evacuação de
fácil ou psiquicamente suportável. ficando desprovido da consciên- conteúdos recusados. A condição de continência do analista, enquanto
cia de qualidades humanas. receptor dos efeitos da clivagem do analisando, da separação e da
Através da operacionalização do método psicanalítico, do exer- inclusão de aspectos do ego no objeto, estimula condições para o
cício da função analítica, entendo que o analista pode estimular o analisando se observar, observar a relação que ele estabelece com ele
analisando a se aproximar dos sentimentos que o aterrorizam e que mesmo e com o analista, e apropriar-se de si mesmo, se tolerar,
são evitados, ajudando-o para que o desespero se transforme em an- fl exibilizar as relações entre os elementos cindidos para expandir a
gústia sinalizadora, em consciência e compaixão úteis para a sua vida. vitalidade psíquica. Julgo que a inovação da experiência analítica
Penso que o vínculo de confiança do analisando na constância de consiste em o analisando, de maneira gradual oscilatória, perceber
uma relação, apoiado no exercício da continência, pode estimular a os seus próprios estados mentais, à medida que estes se expressam e
experiência de estar continente para os próprios conteúdos. E isso evoluem na relação analítica. Nessa experiência, o analisando pode
inclui a expectativa de que o amor não seja muito perturbado pelo exteriorizar suas diferentes facetas, pode se ver. A habilidade do ana-
ódio. 1ista consiste em se envolver sem interferir na lógica interior do ana-
Concordo com Nogueira (2002) que os termos "integração" e li sando, sendo esta uma tarefa delicada.
"pessoa total" são compreensíveis teoricamente, mas de difícil reali- De acordo com Petot (1988), no sistema kleiniano há uma
zação prática. A cisão constitui o ego, escreveu Freud. No processo clivagem do ego que é a defesa esquizóide por excelência e que diz
dissociativo, lembra-nos Nogueira, nem sempre é possível delimitar respeito à atitude de certos analisandos: sentem-se indiferentes, dis-
se a dissociação relaciona-se a uma defesa contra as ansiedades, ou tantes do analista. Acolhem as interpretações com cortesia perplexa
se resulta de uma limitação perceptiva. Sabemos que o ganho e distante. Revelam o temor de destrnição da análise e do analista, e
perceptivo implica tolerância às ansiedades depressivas, aos limites Klein aponta para a natureza depressiva desse fenômeno. A reação
e às responsabilidades pessoais, e que isso não é fácil de ser suporta- J o analisando consiste em clivar aspectos dele mesmo que sente se-
do, contido. As ansiedades depressivas e persecutórias não são conti- rem perigosos. A pulsão agressiva volta-se para o self, e a vivência é
das por aquele que quer, mas por aquele que pode suportá-las. No- de aniquilamento, tratando-se de uma destruição imaginária do se({
gueira aponta para a dissociação cognitivo-afetiva, para a diferença Temendo o risco da manifestação da incontinência da angústia e da
entre conhecimento e sabedoria; lembra-nos que compreender, en- agressividade, o sujeito procura neutralizar as emoções.
110 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 111
PAULINA CYMROT

Pensando em Frederico, em muitos momentos da análise teste- Paulina: Vejo que rapidamente você se conforma diante de uma
munhei suas tentativas de neutralização de emoções. Por exemplo, fre- impossibilidade, e fico com a impressão de que você tenta evitar
qüentemente ele dizia: tenho medo de me envolver para não me ma- <'moções, ou qualquer confronto entre nós. Parece-me que precisa
chucar, não ser agredido, e não pôr merda em meus relacionamentos. ficar em paz comigo, manter uma atitude de cortesia, fàzendo um
Temia a violência, sem perceber que ela já estava presente nes- esforço para se dar bem comigo, para não se frustrar.
se empenho para neutralizar suas emoções? 3 Em uma outra sessão, Frederico manifesta o temor de depen-
dência, pois teme a decepção e o submetimento, ao perceber que o
vínculo comigo ganha importância para ele. Após um breve silêncio,
diz que ele e os pais não se entendem, cada um fala uma língua, eles
1. Momento clínico fi cam como ilhas sem poder se entender; ele já não tem esperanças
de ser compreendido por eles; acha que os pais não valorizam o que
Frederico: Bom dia, Paulina. (Cumprimenta-me com um sorri- ele faz, criticam-no em seu modo de viver. Prossegue dizendo que
so cordial, que logo desaparece. Deita-se no divã. Sua voz é monóto- com o irmão e as irmãs ele pouco conversa, que o relacionamento
na, monocórdia.) Amanhã, tenho um compromisso logo cedo. Daria entre eles é difícil, pois estes são muito materialistas, e só o procu-
para começar a sessão dez minutos mais cedo? Ou você atende al- ram quando necessitam dele para resolver algum problema. Conti-
guém antes? Que horas você começa? nu a a relatar algumas situações vividas com essas pessoas, e diz:
O analisando costuma chegar antes do seu horário e tem aguar- Você acha que dá para conviver com estafàmília?
dado na sala de espera, pois atendo outra pessoa antes dele. Após uns De imediato, Frederico trata-me como uma aliada. Digo-lhe que
segundos, em que ambos permanecemos em silêncio, ele prosseguiu: o escuto e percebo-o frustrado, pois entende que os familiares fa-
Tudo bem, sem problema. lham com ele, afundam-no com críticas. Num tom humorado, digo-
Pareceu-me que ele rapidamente procurou se livrar da frustra- lhe que me parece que ele espera que eu não discorde dele, e não
ção devido ao meu silêncio. A tonalidade de sua narrativa estava apa- falhe com ele. E vejo que ele me põe como testemunha de uma situ-
rentemente desprovida de emoções; supus que na sala de análise ha- ação. e mesmo sem eu conhecer essas pessoas, ele acredita que eu e
via fortes emoções experimentadas por ele, além das minhas. ele estamos de acordo e temos a mesma opinião a respeito delas.
Relatou, então, que foi dormir à meia-noite e, para relaxar, as- Frederico riu espontaneamente. Disse que achou sincero o meu
sistiu a um filme na televisão. Começou a contar sobre o filme, e eu modo de posicionar. Não esperava por essa! Achei você sincera ... (Si-
o interrompi nesse momento. lêncio breve). Sinto mais confiança em vir aqui ... Sinto-me bem falan-
3. Para Klein (1934) , o desejo da criança de crescer não se explica somente pela
do com você... (Pausa). Mas isto não pode levar à dependência?
rivalidade , mas para superar deficiências em sua capacidade de dominar os "maus" objetos Em suas palavras, havia angústia. Surpreendi-me com sua
internos, controlá-los e se realizar. As crescentes capacidades da criança aumentam sua crença
nas tendências construtivas da realidade psíquica - sua capacidade para dominar os impulsos
receptividade à minha formulação. E com o rápido movimento apoi-
agressivos , o desenvolvimento da confiança em seu talento e em sua potência, o sentimento ado em ansiedades persecutórias.
de conquista e de despertar a atenção do outro para si. O indivíduo pode não desenvolver a
capacidade de se valorizar e de valorizar o objeto pelo predomínio do sentimento de vazio, Paulina: Noto que você está assustado com a verificação de que
da falta de valor, significado ou sentido. Busca um objeto ideal para poder desenvolver suas ganhei alguma importância para você; que é uma pessoa e pode
qualidades e evitar o caos mental, desenvolver compaixão pelos objetos feridos e poder reparar.
113
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor
112 PAULINA CYMHOl

escolher com quem quer compartilhar os seus sentimentos, as suas isso ocorrer na posição depressiva, que pressupõe outra qualidade de
necessidades. Dá-me a impressão de que, ao perceber que posso ter experiência emocional, apoiada em um desenvolvimento mental que
algo a lhe oferecer, você sente que é perigoso. inclui alguma continência para o reconhecimento e a tolerância da
Frederico: E não é? importância do cuidador. E a percepção de que este tem limites. Há a
(Desta vez, novamente percebi a angústia persecutória). <.:onsideração de que cuidar de si e do outro, ser cuidado pelo outro,
Frederico: Pareço os meus pais falando ... Nossa! Eles acham acompanha-se de dor, de frustração.
que não é para confiar as coisas pessoais a ninguém ... Fiquei confi1- Concordo com Klein ( 1946) em sua postulação de que a clivagem
so agora ... Meu pai, e minha mãe também, acha que a Psicanálise e a mania, e outras defesas esquizóides, são mecanismos psíquicos
cria dependência ... que produzem mudança psíquica fundamental. Mas entendo que isso
A resposta do analisando à minha formulação surpreendeu-me 11ão significa que produzam continência para a vida psíquica, cresci-
- ele captou algo da qualidade da relação e de uma qualidade psíqui- mento psíquico. Nessa direção, entendo que a confiança no objeto,
ca da analista, valorizada por ele. Penso que medos, ansiedades baseada em algum reconhecimento da qualidade psíquica deste, ali-
persecutórias e a insuficiente continência para esses estados limita- ada à crença na continuidade da existência do self através da relação
ram-no para poder usufruir mais dessa captação. De todo modo, en- <.:om este objeto, parece-me concomitante à liberação do estado de
tendi que existiu algum movimento no sentido de expansão de conti- <.:ontinência e à reparação. Quando isso é experimentado, sujeito e
nência. objeto não são mais os mesmos.
Para Frederico, ele e eu somos o mesmo, concordamos? Supus Supus que o analisando confundiu independência e autonomia,
estar presente sua dificuldade de discriminação entre o eu e o outro. mm auto-suficiência e onipotência. A meu ver, ele não demonstrou
Na sua decisão de iniciar a análise, pareceram-me predominar os humildade quando considerou ser perigoso precisar da ajuda de ou-
elementos esquizo-paranóides, e a insuficiência de continência para tra pessoa. A contenção conseqüente à verificação da necessidade de
os mesmos, que emprestam qualidades à relação analítica. dependência pareceu ficar limitada pelas ansiedades persecutórias
Observo-lhe que ele confunde dependência sem autonomia com apoiadas em defesas maníacas.
dependência acompanhada de respeito à individualidade. Verifico que, no princípio de uma análise, a idealização pode
Na teoria kleiniana sobre posição esquizo-paranóide, a bonda- rnmpensar, de algum modo, e desde que não seja estimulada pelo
de do objeto e a preservação da relação com o mesmo apóia-se em analista, a limitação do analisando para sonhar um mundo com mais
suas necessidades reasseguradoras e protetoras, e na crença de que o esperança, com mais expectativa, e a continência para os seus con-
ego tem semelhanças com esse objeto. Há dependência do ego em teúdos psíquicos dolorosos. Nesse sentido, pode favorecer um vín-
relação aos objetos amados, mas a frustração, a decepção o impulsi- culo de confiança. Especialmente nos primeiros tempos da análise,
onam a livrar-se deles. A mania não é uma defesa permanente e não Frederico operava mais freqüentemente pelo mecanismo de
só uma defesa contra a depressão; é um mecanismo psíquico que faz idealização, e penso que este era necessário para compensar a insuli-
parte do desenvolvimento. Pode favorecer a depressão quando odes- <.:iente continência para a sua persecutoriedade e desesperança. Ele
prezo e o triunfo, expressos no desejo onipotente de negar o signifi- precisava me investir de uma autoridade que o contivesse e o prote-
cado e a importância do objeto, não se sustentam. Diferentemente de gesse do desespero, de angústias ligadas ao desamparo, à solidão.
1[4 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 11 '1
PAULINA CYMROT

Certa vez, disse-me: Você parece uma bruxa que adivinha o que eu Frederico temia que se eu o decepcionasse, ele não supo1 taria

sinto e preciso, e pensei que aqui se mesclavam a idealização e a isso?


perseguição. Pensei também que o êxtase amoroso dedicado aos san- Onipotentemente, ele acreditava ser o responsável pelas minhas
tos pode se prestar à manutenção do distanciamento de um contato reações emocionais? Que estas dependiam dele?
do sujeito com ele mesmo, ao afastamento de uma relação mais hori- Suponho que a ansiedade desagregadora se intensifica quanto
zontal, com o predomínio da dispersão do self, da despersonalização, mais idealizada é a vinculação afetiva e a dependência com o objeto
da perda da noção de si, dada a carência de continência para o seu que gratifica ou que pune. Na experiência clínica com Frederico, a
ser. Na hipótese de que esses elementos operavam em sua mente, idealização, embora não só, deu sustentação ao vínculo analítico,
Frederico não podia verificar que me informava a seu respeito, que especialmente no princípio da análise, suporte para que um vínculo
ele se mostrava para mim e, portanto, ajudava-me numa aproxima- de confiança e de conhecimento se desenvolvesse. Sem desfazê-la,
ção à sua interioridade. Expressando-se com sinceridade, ele colabo- procurei respeitar sua condição emocional, mas cuidei para não
rava comigo, sem perceber que o fazia. estimulá-la4 •
Considerei a hipótese de que a idealização se apoiava na espe- Ao me propor a examinar alguns mecanismos psíquicos defen-
rança, aliada ao seu desejo onipotente de ser um homem livre de sivos que, a meu ver, operam com mais persistência na mente de
medos, ansiedades e ódio. Ele desconhecia que a destruição da agres- Frederico, tais como idealização, clivagem e identificação projetiva,
sividade e dos sentimentos implicava a destruição do amor e que isso não estou supondo uma Psicanálise baseada na análise dos mesmos.
o deixava vazio, sem vida? Esta parecia ser a imagem que ele cons- Aceito a idéia de que as invariantes na análise dependem das teorias
truía a seu respeito. do analista, e que estas se conjugam dinamicamente. Entendo que o
Muitas vezes, senti-me colocada num pedestal, sendo idealiza- previamente deduzido não ajuda na investigação psicanalítica. Acei-
da e temida. Cuidei para não me manter no altar, pois avaliei que to a idéia de que uma configuração, um padrão de funcionamento
poderia correr grande risco: pelo menos o de não poder falhar! mental, pode emergir a partir do fato selecionado. Sirvo-me da teoria
Em muitos momentos, o analisando me percebia como uma das transformações, de Bion, em sua proposta de uma disciplina ou
pessoa exigente, e ele temia ser avaliado e reprovado por mim, temia atitude psicanalítica para estar na experiência clínica sem muita me-
que eu me decepcionasse com ele. Receava que o julgasse um mória prévia e antecipatória, sem teoria e compreensão que antece-
psicótico, sem verificar que era com os seus próprios critérios que dem a experiência psicanalítica. Não tenho a ingenuidade de acredi-
ele se julgava e se angustiava.
Ele demonstrava que valorizava a minha sinceridade, mas não 4 Para Bion (1962), os vínculos A (Amor) e O (Ódio) podem estar relacionados com
podia valorizar a sua? Quando me revelava a sua intimidade, o seu C (Conhecimento), mas nenhum por si só conduz a C. O autor destaca a emoção enquanto o
l'lemento vivo na relação humana, o cerne da vida mental, o elo para o desenvolvimento~ dos
drama pessoal, suas mazelas humanas, ele esperava ser rotulado de pen samentos. Na relação analítica, o analista ocupa-se em conhecer o que é psíquicamente
psicótico? Dava-me o lugar do perseguidor? verdadeiro para o analisando. Isso é possível se o analisando encontra-se num estado
l'mocional de abertura para que algo desconhecido possa ser conhecido. Trata-se de uma
Se ele não dispunha da condição de continência para se aceitar relação, que depende de um poder conhecer e do outro permitir ser conhecido. Conhl"<"<'I" ,
para Bion, implica tolerar dor, frustração e outros sentimentos, sem precisar se evadir deles
como ser humano, eu não podia esperar que ele aceitasse a minha
Implica o exercício da continência para os conteúdos e a aquisição da consciência de q11l'
condição humana, que me percebesse como uma pessoa comum. 111uita coisa fica sem ser conhecida.
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1 1l
116 PAULINA CYMROT

tar que o analista observa uma experiência como uma "tela branca", tlgumas coisas da vida dele. (Pausa) Me senti sozinho, deprimido ,
sem o peso emocional da sua pessoa, de suas teorias. No entanto, perdi a cabeça e bebi. Perdi a hora, não ouvi o despertador ejàltc•t
entendo que uma memória onírica, associativa, difere de uma memó- Sinto vergonha de falar disso, mas não me controlo, e é com voc·c•
ria prévia, que aprisiona e restringe a observação da experiência, ou <fite posso falar dessas merdas que eu faço, bebi demais ... Com vocc;
que pretende ser reconstitutiva do passado. Penso que o observador dá para falar, você não fala comigo com moralismos.
dá a conotação à experiência e utiliza-se de modelos que a represen- Ele se apresentou como alguém de quem não era para eu esperar
tam; e verifica se estes atendem às particularidades do analisando, no nada? De modo masoquista se sujeitou à sua queixa, e sadicamente me
momento da experiência. Sendo que esses modelos são efêmeros. sujeitou à imobilização, cortando o contato com a analista viva e com
Um modo insistente do funcionamento psíquico de Frederico o que ele tem de vital? De antemão, privou-se do meu cuidado?
chamou a minha atenção - ele se apresentava para mim convencido Ele falou de uma passividade, mas ele me pareceu muito ativo
L'ITl não pensar. No momento, não estava disposto a se conscientizar
de sua incompetência para cuidar de si, pensar e se responsabilizar
por seus impulsos. Empenhava-se em me convencer de que ele não de que é sujeito e responsável pelos seus atos?
era responsável por alguns de seus comportamentos e escolhas, por Penso que, na análise, a atenção do psicanalista não deve foca-
seu movimentos para se anestesiar de emoções. Numa sessão, ele me 1izar o problema, tal qual é apresentado pelo analisando; não deve
disse: Bebo, ou uso droga, e perco a cabeça, não lembro o que faço, focar o que ele fez, mas o que ele faz ali, no encontro.
não me controlo. Para que ele me contou o que fez? Ele disse que o seu problema
Perguntei-me para que ele me contava isso, e surgiram-me hi- ,; a depressão. a solidão, a incompreensão. O que ele entende por
póteses: para me encarregar de cuidar dele, mantê-lo vivo, pensar woblema?
por ele, responsabilizar-me por seus atos? Como ele se apresentou para mim? Que relação ele pode esta-
Ele usou dessas memórias para se evadir de responsabilidades belecer comigo, e com ele mesmo, no presente momento?
pessoais? Frederico falou de um outro que é ele mesmo? Disse que há um
Para acalmar o seu desespero? Na falta de um continente, ser- necessitado da minha ajuda. Falando de outro, ele contou dele mes-
1110 e ofereceu indícios de como e em que ele necessita ser ajudado?
via-se de mim como objeto-continente? As duas últimas hipóteses
pareceram-me mais aceitáveis, e quando comuniquei-as ao analisan- Quem sou para ele nesse momento? Como ele me percebe?
do ele disse que se sentiu compreendido. Queixa-se de mim quando diz que não se conteve para fazer a
merda que fez?
Quer alguém para desabafar? Tem ojeriza do contato com a sua
rn ente?
2. Experiência clínica, conforme a transformei Escutando-o, supus haver clivagem, e não conflito psíquico.
l~stranheza de si, constrangimento. Observei o seu movimento ele
Frederico faltou à sessão anterior e não comunicou a falta. apaziguamento, sua antecipação em críticas. Temeu ser repreendi-
Frederico: Hoje falei com o B. (amigo). Ele se comprometeu a do? Vi Frederico tentando aplacar a persecutoriedade. Receou qu e cu
te procurar para marcar uma entrevista, ele quer se conscientizar de podia vir a sobreca1Tegá-lo com moralismos?
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Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 119
PAULINA CYMR01

Contou-me sobre o que fez para me responsabilizar pela quali- da analista são registradas pelo analisando, e tudo isso influi na ex-
dade da sua vida? periência, e em suas transformações. Contando, escutando, o anali-
Disse-lhe: Você me avisa que não é para eu vê-lo como ores- ,ando pode, ou não, se reconhecer no que faz, e possibilita que a
ponsável por seus sentimentos e seus atos, e que você não pode se ,lllalista o ajude a se observar mais, a conhecer capacidades e limites
conscientizar de nada. Avisa-me, ainda, que nem você, e nem eu, l'll1 si desconhecidos, a tolerá-los.
podemos fazer nada por você. Vejo um paradoxo: você diz que o Nessa sessão, supus que inicialmente Frederico careceu de
relacionamento comigo é aberto, é diferente, que é possível para 11m objeto "bom", cuidadoso e respeitoso, mas estabelecido, e que
você desabafar e falar sem moralismos comigo, que é possível para rnmpen sasse os seus movimentos destrutivos, a sua ansiedade
você contar comigo, mas diz que se sente só, descontrolado, pare- persecutória, o superego acusador. Ocorreu-me a hipótese de que
cendo resignado nesse destino que você crê ser o seu. Você parece ele possuía a crença de que existe um poderoso objeto "mau" nele
estar temeroso da minha reprovação em relação ao seu comporta- que pode se manifestar promovendo um distanciamento dos "bons"
mento. E me diz que é um outro, e não você, que precisa conversar ,ibjetos, a imobilização e a desvalorização destes. Verifiquei a mi-
comigo, pensar, se conscientizar. nha condição de continência, de receptividade ao que ele denomi-
Na sua decisão de iniciar a análise, pareceram-me predominar nou merdas, problema, e vi-me podendo estar continente para os
os elementos esquizo-paranóides e a insuficiência de continência para ~cus conteúdos; convidei-o para o exercício da continência para a
os mesmos, que emprestavam qualidades à relação analítica. ~ua vida psíquica.
Fiquei pensando por que os analisandos retornam durante Na sessão, percebi que não fui somente uma orelha para ele.
anos ao consultório do analista? Acho que são várias as razões, hle pode ter a percepção de alguma qualidade da nossa relação.
<)correu-me que o encontro teve algum valor para ele, notei seu
conscientes e inconscientes. Naquele instante, pensei que eu esta-
va presente com o peso da minha pessoa, da minha condição emo- l'SÍorço para se comunicar, apesar do medo de que eu me decepcio-
cional; e na relação comigo, Frederico transmitia-me que ele sen- nasse com ele.
tia medo, mas também se sentia respeitado. Ele expressava que Pacientemente, ofereci-me para tolerar o seu ritmo, para esta-
sentia que não havia autoritarismo, nem moralismo, e que isso belecer com ele uma relação, a qual pressupõe que cada um de nós
L' responsável por seus sentimentos, impulsos, pensamentos e atos,
não se experimenta em muitas relações. Com franqueza, relatou-
me o que se passou com ele, e, apesar de inicialmente estar teme- naquilo que nos compete; e na análise, ambos somos responsáveis
roso de ser reprovado, confiou em mim. Isso foi o que eu lhe co- pela qualidade da relação que estabelecemos. Percebi-me valori-
muniquei, que observei que ele se expressou com a sinceridade ando a confiança e a franqueza do analisando, não destaquei o que
que lhe foi possível, que pode me relatar o que se passou com ele, l'le fez ou deixou de fazer, mas o que ele pode fazer no nosso en-
e, embora temeroso de ser censurado, pareceu confiar em suas rnntro, conforme os seus recursos disponíveis, e os meus. E, ao
possibilidades e em mim. mesmo tempo, chamei sua atenção para a recusa da consciência de
A presença constante da analista, a confiança na relação com o que ele é uma pessoa e que não está dispensado de cuidar da quali-
mesmo, o sentimento de ser contido e respeitado ajudam Frederico a dade da sua existência.
comparecer à análise, e a falar. Além da presença, a voz e a postura
120 PAULINA CYMRO'I Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 121

3. Uma outra situação psicanalítica5 sou fazê-la, teve seus motivos, suas razões para isso; mas essa possi-
bilidade de ser, de agir e de se relacionar, ele não reconhecia como
O analisando não compareceu na véspera, justificando-se pela sua. Não por má vontade, mas de acordo com as suas possibilidades.
falta após o horário da sua sessão. Ele tem se comportado de um Frederico: É ... eu não suporto sentir nada desagradável, logo
modo mais imprevisível quanto à freqüência na análise; ora ele me quero me livrar do que eu sinto ... e estou vendo que não é por aí...
avisa sobre a falta, ora não faz menção a respeito da mesma. Na Mas não me controlo ...
sessão ora relatada, ele entrou e pareceu-me estar constrangido. Dis- Pareceu-me que, nesse momento, ele se aproximou dele; mas
se que não tinha vontade de falar de sua falta na sessão passada, mas na seqüência da sessão, observei pouca abertura do analisando para
queria se desculpar por não ter me avisado que não viria. uma investigação de si.
Respondi-lhe que não sabia do que ele se culpava, mas que pelo Na sessão, o que ele fazia? Desabafava?
seu constrangimento eu tinha uma impressão de não se tratar de algo Acusava-se e projetava em mim o superego cruel, reprovador?
"passado"; e, embora ele estivesse me dizendo que não desejava fa- Precisava dividir comigo o peso da culpa?
lar, parecia estar pressionado a contar. Precisava nos paralisar?
Ele confirmou que estava envergonhado dele mesmo, e com Do ângulo do analisando, pelo seu tom de ironia, supus que ele
vergonha de mim, já que eu não jària o que ele fez. Relatou que se acreditava ter cometido um deslize, uma travessura. Pareceu-me que
sentiu angustiado. deprimido, com um sentimento de vazio, e que ele tinha uma noção do que fez e conhecia as conseqüências do seu
bebeu para se aliviar - De novo, não sei o que fiz, não me controlei. ato de se embriagar. Na sessão, observei que ele estava irado,
Prosseguiu contando que se embriagou numa festa e teve que deixar inconformado, envergonhado.
o carro por lá, pois não conseguia dirigir para voltar para casa. Em Precisava se certificar e me fazer crer que o mundo está povoa-
seguida, recriminou-se pelo acontecido; isso foi dito com vergonha, do de más pessoas, e que merecem o seu ódio? Desse modo tentava
ódio, acompanhados de ironia e de auto-acusações. se livrar do auto-ódio?
Disse-lhe que não sabia por que ele me contou o que se passou Ele se moveu por uma alucinação, na direção de um prazer que
com ele; indaguei o que ele esperava ao me contar, o que ele queria o afastasse do vazio existencial?
de mim. Quer se desenvolver sem sofrer? Sem ter que experimentar com-
Ele se surpreendeu com o que lhe falei. Disse que estava enver- parações, ciúme, inveja?
gonhado e que pensou em dividir comigo o que aconteceu com ele. Procura uma análise, mas não quer ser incomodado em suas
Procurei ser solidária com as dificuldades que ele disse que vi- emoções?
veu e com o constrangimento ao contar-me o que se passou com ele. Na hipótese de que ele operou por clivagem e identificação
Falei também que fiquei com a impressão de que ele precisou se projetiva é mais difícil ele se observar?
apresentar para mim como uma pessoa irresponsável, que não sabe o Ódio, inveja, intolerância limitavam sua percepção de que viver
que faz. Mas, na minha maneira de ver, ele fez uma escolha, e preci- comporta limites e sofrimentos?
Pareceu-me que as experiências emocionais de solidão, de de-
5. No livro que escrevi , em 1997 , aproximo-me do tema da continência. Consulte
Cymrot (1997). pressão apresentavam-se para ele como ameaças à sua existência.
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 121
122 PAULINA CYMROT

Ele me relatava a respeito de sua busca desesperada por rl'la


Pensei que a incontinência a esses estados emocionais poderia servir
ções sexuais para fugir das noites vazias; e pela maneira como nana
às ameaças de interrupção do processo analítico de investigação, es-
va, parecia que ele forjava a alucinação de um prazer sexual i1rn:n:-.o,
tar a serviço da reação terapêutica negativa, ou de uma ruminação
o qual tentava alcançar. Pensei que a carência de uma apropriação de
masoquista que difere da compaixão por si mesmo.
si acentuava o vazio interior. Uma busca interior, de cuidado, era
Em suas palavras, percebi ironia e pouca abertura para a inda-
substituída por outra. Quem sabe por uma busca com o fim de
gação. Estes pareceram-me ser os seus recursos, naquele momento.
absolutiL:ar o prazer?
Ainda assim, supus que havia um pedido de um continente que abar-
O recurso do álcool, das drogas, servia-lhe de objeto onipotente
casse os conteúdos que ele não podia reconhecer ou conter.
e de controle para anestesiar-se de emoções e de angústias? Foram as
minhas conjeturas.
*** Em vários momentos da análise, fiquei com dúvidas se ele
Nos primeiros anos da análise, Frederico apresentou mais difi-
retornaria à sessão seguinte, e por vezes estas ganharam forma em
culdades para associar, reconhecer e conter sentimentos, e conferir
minha mente na imagem de uma "pisada de pé" na areia da praia,
um sentido próprio às suas experiências. Ele se interessava pela lite-
qu e logo desaparece com o movimento das ondas do mar. Muitas
ratura psicanalítica e com freqüência atribuía significados
vezes, percebi-me com o sentimento de que o vínculo de cooperação
preestabelecidos ou estereotipados para o que se passava com ele, os
c.:om Frederico era muito provisório, frágil, e procurei afastar meus
quais apenas reforçavam suas racionalizações. Eu tinha a impressão
desejos de durabilidade, de estabilidade e de continuidade da relação
de que ele necessitava sentir-se de posse de algum conhecimento
que atrapalham a proposta analítica.
teórico, mas este parecia-me desvinculado de suas experiências emo-
cionais. Sua narrativa comumente era intercalada por pausas, "silên-
cios", que me davam a impressão de serem vividos com ansiedades
persecutórias, e relativos à função superegóica. 4. Momento clínico
Frederico fez algumas ameaças de interrupção da análise. Con-
vivendo com ele, pensei em algumas hipóteses que poderiam estar No mês antecedente às minhas férias, Frederico freqüentou a
relacionadas com as mesmas: de que estas podiam relacionar-se com análise de modo mais irregular do que fazia habitualmente, faltou a
o seu temor de dependência, mas também ligadas à intolerância ao algumas sessões seguidas. Na data combinada para a retomada da
sentimento de falta de sentido na vida, ao seu temor de não amar e análise, ele não compareceu, faltou também a outras duas sessões
não me interessar por nada. Ele falava com horror de suas noites anteriores a esta que ora relato:
vazias. Cogitei que o vazio, ao qual ele se refe1ia, podia estar associ- Frederico entrou, olhou-me fugidiamente e se deitou no divã.
ado ao distanciamento de suas necessidades, ao empobrecimento da Começou a contar sobre uma viagem em que se encontrou com sua
vida imaginativa e, conseqüentemente, à perda da qualidade do vín- fa mília. Disse que os familiares se surpreenderam com a sua visita,
culo amoroso com seus semelhantes e do diálogo com ele mesmo. A pois prometia visitá-los, mas não realizava isso. Contou que se com-
instabilidade do vínculo de cooperação e de conhecimento comigo prometeu com eles para um novo encontro nos próximos meses, mas
pareciam pôr em risco a continuidade da análise. já não sabia se queria isso.
124 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 115
PAULINA CYMROI

Paulina: Hoje você veio. Mas cada vez que você vem, fico com ,·oz é calma e firme. Mas tem outras vezes que eu nem lembro clm1111
dúvida se você volta. <>ntem, quando me senti angustiado, eu acalmei quando lemhrei lflll'
(Silêncio breve). ,·11 podia vir aqui conversar com você.
Frederico: Na viagem, eu pensei: será que eu preciso de análi- Então, disse-lhe que achava que compreendia o que ele me e.li
se? Resolvi experimentar e não vir. Mas na noite passada fiquei an- ia, que me parecia que ele desejava não se sentir desprotegido, ma:-.
sioso, senti muita solidão. Bebi um pouco, mas fiquei quieto em casa. também não se sentir dependente, pois a percepção desse estado dci-
Vejo que os meus sentimentos me assustam, é muita ansiedade. Não .,ava-o ameaçado. Ele via que não controlava suas angústias corno
sei, às vezes tudo fica sem sentido para mim, dá um vazio ... estes ~ostaria de fazer, e estas o assustavam. Que notei que ele achou inte-
meus "demônios", meus "fantasmas" me assustam! Aí pensei em rl'ssante o que lhe falei, percebeu-me atenta a ele, riu, ficando-me a
você, nestas conversas, e resolvi vir. (Pausa). Achei melhor eu não impressão de que ele se sentiu mais próximo de mim, e desta vez
parar, pelo menos por enquanto. (Pausa). sem estar ameaçado.
Paulina: Está me contando que, quando você se sente sozinho, Frederico: Eu sinto isso que você me fala. Mas eu tenho medo
fica ameaçado e se entrega ao vício, para afastar esses demônios, d<' me apegar, de ficar muito dependente de você. (Silêncio). Não sei
fantasmas. Como este seu método não tem sido muito eficaz, pois me apegar... e não sei se consigo mudar, se posso me apegar. ..
você mesmo me falou que lhe traz conseqüências desagradáveis, pede Sua fala pareceu-me ser sentida e que houve a percepção, por
proteção a esta Santa! Diz-me que verificou que a nossa conversa parte dele, de que ele era agente, e não só vítima do seu desalento e
pode ajudá-lo, e que esta constatação o acalmou. Mas, também me da queixa de exclusão e solidão. Disse que me pareceu que havia
avisa que posso ser facilmente dispensada. Talvez você não saiba em nele o apego, o desejo e o movimento de apego, e um movimento
que mais eu posso lhe ajudar, como quer ser ajudado, como pode rnntrário de desapego. Ele me expressou sua dúvida, sua desconfian-
servir-se da minha ajuda. (E ocorreu-me, neste momento, que talvez ~-a para contar com os seus recursos para se relacionar, e para usu-
ele se lembrasse mais da sonoridade das minhas palavras do que de fruir da nossa relação. E, naquele momento, notei que ele apostou
algum conteúdo das nossas conversas.) mais em seu fracasso do que em suas capacidades para isso.
Ele riu e disse: Frederico: (Riu). Gostei do que você falou. (Riu, e pareceu-me
Você fala de um jeito simples ... Não me critica ... Não posso 1.•star mais próximo e vitalizado).
parar a análise agora. Sei que preciso levar a análise mais a sério. Frederico: Muitas vezes, eu não acredito em mim, tenho medo
Ao escutá-lo, veio à minha mente a imagem de um fiel rezando de gostar, de me apaixonar por alguém e depois me decepciona,; ou
numa igreja, para ver se fica mais possuído de fé! ser abandonado, perder, como foi com a A ... , e depois com a J. .. , me
Paulina: Eu ouvi que você falou que precisa levar a análise apeguei e sofri muito ...
mais a sério, mas não estou convencida da sinceridade de suas pala- Apontei o seu movimento de aproximação, e a necessidade de
vras. (E transmiti-lhe a imagem que me ocorreu.) guardar distância. Disse-lhe que não me lembrava de termos feito
Frederico: É... você não deixa escapar nada! (Ri). (Pausa). Meus promessa de fidelidade eterna, ou de casarmos e termos que ~iver
amigos ficam chateados, dizem que eu desapareço, que me distan- juntos "até que a morte nos separasse". Ele podia verificar se essas
cio ... Ontem, e na viagem também, pensei no que você mefala, sua conversas eram-lhe úteis ou não. Disse-lhe, também, que me parecia
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 127
126 PAULINA CYMROI

observar como o analisando se relaciona, sente, pensa e rcssignil"1c.1


que ele desejava ficar imune à decepção amorosa, à rejeição, ao aban-
.,~ suas experiências no encontro em que ambos os participantes se
dono, e apostava na análise para realizá-lo. E parecia assustado com
t·scutam e se expressam com a sinceridade que lhes é possível.
a verificação de que as nossas conversas - a nossa relação - tinham
Não combinamos que Frederico teria que ser pontual ou assí
algum valor para ele.
duo às sessões, pois penso que a proposta da análise pressupõe libcr
Entendo que a fommlação do analista deve acompanhar o trân-
dade para faltar e se atrasar no horário da sessão. No entanto, ocor-
sito dos afetos para a construção de um significado emocional parti-
ll' U-me que o analisando alimentava uma auto-imagem de um ho-
lhado no campo psicanalítico; isso auxilia a contenção do incontido
1ncm responsável, educado e gentil, sendo que esta não combinava
na medida em que torna mais tolerável a turbulência emocional
1 0111 sua atitude imprevisível em relação às faltas, com a falta de
desagregadora in status nascendi, ao vivo. Entendo que a responsa-
.iviso de que ele não retornaria às sessões na data combinada, com os
bilidade e a habilidade do analista estão em favorecer a delicada e
.11 rasos no pagamento das mesmas sem conversar previamente comi-
decisiva área entre o dito e o não-dito, o vivido e o pensado, o eu e o
vo sobre isso. Quando ele comparecia à análise, geralmente se rnos-
não-eu. Em observar se predomina o aprendizado pela experiência
1iava cortês, colaborador, comportamento este que era discrepante
emocional. Enquanto analista, não sabemos como se dá o processo
da maneira como se portava quando se ausentava.
do pensamento, sobre a natureza da saturação do mesmo, e tampouco
Cogitei que as faltas podiam servir para ele não se mostrar, ou
como ocorre no psiquismo a interferência de uma nova experiência e
para evadir-se de alguma insatisfação ou hostilidade, que incluía tam-
o grau de impregnação desta na mente. Julgo que o envolvimento
hlSm a relação comigo. Prestavam-se para ele manter a imagem do
emocional e a atribuição de sentido decorrem da dinâmica
111oço polido e educado?
continente=contido e são inseparáveis da continência e da função
Evitava apresentar-se quando se sentia impelido por impulsos e
analítica, num movimento dinâmico, oscilatório.
t· moções indesejáveis?
Ao narrar, ao se mostrar, o analisando revela para o analista
Seu comportamento em relação às faltas revelava aspectos dele
como ele se percebe, como ele se relaciona consigo e com os seus
que ele não dava conta de conter, de ocultar? São hipóteses!
objetos, quais são suas teorias a respeito do ambiente que o rodeia,
O vínculo analítico parecia-me frágil, embora também tenaz.
dos seus semelhantes, e dele mesmo. A cooperação ativa do anali-
Sentia-me deixada em suspenso, com dúvidas se ele retornaria na
sando e a receptividade ativa do analista auxiliam a condição de con-
próxima sessão. Oferecia-me para estar com ele, mas ele me avisava
tinência ao darem voz a uma verdade que pode ser, a cada vez, parti-
que facilmente poderia me substituir. A bebida alcoólica, e não eu,
lhada, pensada.
,111ipotentemente ele controlava?
A meu ver, o analisando não tem a obrigação de comparecer à
Procurei afastar-me dessas idéias e ater-me aos seus recursos,
sessão; ele freqüentará a análise como puder. Mas para observá-lo,
conversar e interagir com ele, inclusive sobre a sua ausência, a sua
.,o que ele podia ser e fazer quando nos encontrávamos. Se ele não
possuía uma percepção diferente da análise, não podia ser acusado
presença é necessária. A presença ou a ausência do analista interfe-
por isso.
rem no funcionamento mental do analisando, e vice-versa. Parado-
O que me parecia ser penoso para ele nessa sessão?
xalmente, a ausência do analisando é comentada na sua presença, o
Pensei que sua consciência de ser só e dependente era dolorosa
trabalho analítico faz-se no encontro, ao vivo, quando o analista pode
128 PAULINA CYMROI
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 12'l
e, pela dificuldade de ser contida, precisou ser evacuada, já que lhe
despertou angústias persecutórias. E que as suas fantasias de se fun - Nessa sessão, surgiu-me a palavra "disruptivo", experimentei
dir necessitam ser contidas para serem elaboradas. uma ansiedade relacionada à idéia de que tudo "podia ir por água
Percebi que ele estabeleceu comigo uma relação em que a apro- abaixo", e de que eu "pisava em ovos". Ele vinha e dizia que se de-
ximação se fazia com cautela, com temor de se apegar. Entrou, olhou- cepcionava facilmente e que se apegar é arriscado. Muitas vezes,
me fugidiamente - quem eu era para ele no momento? Percebia-me Frederico relatou-me que o contido escapou-lhe, transbordou, e que
como alguém que ia criticá-lo? Uma Santa afugentadora dos seus a impulsividade, a excitabilidade buscaram em um corpo anônimo
fantasmas? um continente para não haver transbordamento de angústias, para
Expressou que a dependência lhe era tão prejudicial. Seus pais evitar o desespero de se ver só e esvaziado por acreditar que ele não
faltaram com ele, e ele não podia perdoar? existia para ninguém, ou que nada lhe fazia sentido.
Ou o "bom" objeto não podia ser tão "bom" assim? A disponi- Buscava um continente para encontrar algo de si?
bilidade do objeto mobilizava nele sentimentos intoleráveis? Perguntei-me sobre as condições que tornam o campo bipessoal
Notei-o se aproximar e guardar distância. Perguntei-me se o J a análise apto para fazer brotar afetos, além de pensamentos até
que eu lhe oferecia atendia-o como ele necessitava. então nunca formados. As teorias psicanalíticas realçam alguns fato-
Na experiência ora relatada, percebi-me tentando aproximá-lo res que podem aproximar uma resposta a esta questão, são conjetu-
dos sentimentos que me pareciam estar clivados: o desamparo, a de- ras sobre a natureza do processo de como uma mente saturada sofre
pendência, a desproteção, o ódio. Observei que ele me acompanhou interferências a partir do estímulo de um novo objeto, de uma nova
nessa aproximação e que tal movimento se apoiou ora em ansiedades experiência.
depressivas, ora em ansiedades persecutórias. De todo modo, perce- Pensei que o analisando parecia acreditar ser possível ele ficar imune
bi que a conversa aproximou-o dele mesmo. Ele se deu conta de que à necessidade de um outro e à decepção amorosa, ficar livre do risco de
não controlava suas necessidades e seus sentimentos como desejava, gostar e perder, amar e se decepcionar, apegar-se e ser rejeitado.
com angústia pareceu reconhecer algo do mundo interno - que ele Na sessão, percebi que o meu desejo de que "tudo não viesse
não era somente a pessoa que acreditava ser. Mas isso não se acom- por água abaixo" dificultou o exercício da atenção flutuante e da
panhou de uma participação emocional efetiva, pois, salvo em al- !'unção analítica, e este desejo foi possivelmente reforçado devido à
guns momentos, ele apresentou o que me pareceu estar mais próxi- crença do analisando a respeito da qualidade da relação analítica que
mo de uma narrativa monocórdia do que de um depoimento vivo, justificasse um investimento na mesma. Eu não sentia o vínculo ana-
depressivo. lítico mais consolidado, mas esses eram os meus recursos, e os re-
Ele não se reconhecia em alguns aspectos, pois não tinha a idéia cursos dele, e não havia sentido em pressioná-lo. Todavia, verifiquei
de seu movimento destrutivo? Devia ser meu o esforço para ele se o seu esforço para manter algum vínculo comigo e para se sentir
aproximar de si mesmo? mais vivo. Ele me avisava que nele variava a importância dada à
Eximia-se do trabalho de análise, ou seja, da responsabilidade e continuidade das nossas conversas. Parecia-me que ele duvidava se o
da consciência da sua individualidade? Tinha a noção de que viver que eu lhe oferecia lhe fazia bem ou mal.
comporta o sofrer? Pensei na sua desconfiança, no seu temor de amar e se decepci -
onar como fatores que dificultavam sua curiosidade, sua aprenJiza
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1 11

130 PAULINA CYMROI


descontinuidade da relação com ele mesmo e que podiam estar ass< >< 1
gem a seu respeito e a respeito do outro, e o exercício da continência adas às angústias de solidão, de abandono; também relacionadas a a11
para a vida mental. Apesar das minhas ansiedades, percebi-me po gústia ligada ao desespero, à autodestrutividade, às mazelas humanas .
dendo investir no trabalho com ele, propus-lhe que experimentasse
comigo os sentimentos que o assustavam e que ele experimentava, e
evitava viver. E sempre desconhecendo o uso que ele e eu iríamos
fazer das conversas na evolução desse e do outros encontros. 5. Instantes de outro encontro psicanalítico
Nessa sessão, como também em outras, observei que o riso, o
humor, nos aproximou. E também nos distanciou, na medida em que O analisando chega no consultório no horário de sua sessão .
marcou as nossas diferenças. Quando Frederico riu, ele me pareceu Parece-me estar triste. E apressado para o encontro. Deita-se no divã
mais vitalizado e continente para os seus conteúdos. Acredito que a~ e permanece em silêncio por uns minutos. Digo o que vejo dele.
vivências buscam formas de expressão verbais e não-verbais, e aque- Paulina: Noto-o apressado para este encontro. E triste.
las que vitalizam nascem do movimento emocional, de compartilhar, Frederico mostra-se surpreso e diz:
o qual carrega em si o embrião da vida criativa. Nossa! A gente mal se olhou e você percebeu a minha tristeza!
Frederico temia amar, se envolver e se decepcionar? Ele recu- Parece deprimido; chora.
sava a consciência de que o amor liga-se à criatividade, à liberação Paulina:- Você está impressionado em como eu presto atenção
de potencialidades, ao engajamento para o vir-a-ser? Impedia-se de em você.
se sentir um ser vivente? Frederico: Fico sim, com sua captação tão imediata! Estou tris-
Entendo que amar supõe diferentes qualidades de experiências. te e você percebe. (Chora.) (Silêncio. Na seqüência, suas palavras
Na posição depressiva, inclui sensibilidade, reconhecimento de limi- surgem sem modulação afetiva.) Estou pensando agora nos meus
tes e de responsabilidades, gratidão, reparação, aquisição da noção mortos. O Natal vem aí e tudo fica sem sentido, fica uma merda.
de alteridade e possibilidades de inauguração de novas maneiras de (Pausa) Ontem tive um dia pesado. Quando saí daqui, soube da mor-
estar consigo e com o outro. Perguntei-me qual era a sua noção de te da irmã de uma amiga que trabalha comigo; ela estava doente, fiti
amor, de condição humana, o que para ele era fundamental em sua ao velório e de novo voltou a dor pela morte da D. (Amiga). Fiquei
existência. Ele percebia a importância do investimento amoroso e da surpreso quando soube que ela pediu para os médicos desligarem os
preservação de vínculos mais estáveis e construtivos? aparelhos que a mantinham viva. E daí para outros mortos... e têm
Podia se apropriar de sua condição de humano, de sua individu- os que estão doentes ... É isso aí!
alidade, para se sentir vivo? Sabia que a experiência do amor passa Paulina: Você está tendo comigo uma experiência de proximi-
pela experiência do ódio. da dor, do luto? dade, diz que se sente captado por mim. Fica emocionado, mas vejo
Temia que o contato com a alteridade fosse frustrante e queria que logo se desjàz desses sentimentos. Rapidamente se distancia das
evitar isso? emoções experimentadas e se ocupa com lembranças, com outras
Percebia ser fluida a fronteira entre o eu e o não-eu, e então pessoas, com os mortos, afastando-se dessa experiência vivida ago
temia não sobrar nada do eu ao se aproximar do outro? ra comigo. Talvez a minha atenção, o meu interesse assustem voe<;.
Supus que suas angústias relacionavam-se à continuidade/ deixam você atrapalhado.
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 11 i
112 PAULINA CYMROI

(Silêncio breve) de do momento? O cenário que ele imagina é de solidão, de in1h1


~·oes, e o seu movimento é o de sair da sala, ir para longe, para a
Frederico: Interessante você.falar disso ... quando me sinto aten-
dido, compreendido, eu não sei o que fazer! E isso é tão comum .. . Na hi stória, para o passado, para o futuro?
Aparentemente, a comunicação fica esvaziada de emoções , ele
casa dos meus amigos, fico mais observando e bebendo ... sentado ...
parece conter a angústia relacionada à intimidade, à proximidade na
(Pausa.) Tô lembrando agora de uma frase do meu pai: "valorize os
rdação. Se não há o ideal, se as expectativas não se realizam, o caos
estudos acima de tudo, senão vai acabar sendo um comerciário! "
Afeto explícito não havia na família, mas do jeito deles, calados, predomina?
Sua existência corresponde à merda ou à vida difícil?
reservados. Eu e a minha.família não compartilhamos o sofrimento,
Parece que ele experimenta angústias relativas à continuidade/
ou melhor, compartilhamos calados, cada um na sua. Para o meu
descontinuidade da relação, às possíveis perdas. O encontro deman-
pai, chorar era coisa de "babaca"; vejo como meus irmãos são ini-
bidos, secos. Na minha.família, um não sabe dos sentimentos do ou- da a elaboração do desencanto?
O analisando se lastima por sua história, por suas perdas. Sente
tro. Sinto seu interesse por mim.. . (Sua voz aqui é emocionada. Si-
qu e os parentes não o atenderam; parece viver uma tristeza
lêncio. Em seguida, a voz está monocórdia, ele fica mais distante,
indiferente.) .,prisionante que se acompanha de desalento, desencanto, desespe-
1ança, expressos no tom desbotado de suas palavras. Ele me apresen-
Frederico: Tenho me sentido sem forças. Posso vir aqui e desa-
la os seus objetos internalizados: pai pouco sensível, mãe e irmãos
bafar com você. Venho aqui há algum tempo, me sinto compreendi-
do. (Pausa.) A ... diz que está na hora de eu guardar dinheiro para ,ecos. Diz que não quer ser assim. Espera que eu não assuma ne-
viajarmos. Ás vezes, fico pensando se eu devia experimentar ficar nhum desses papéis?
O que ele faz com a mão que lhe estendo no momento? Precisa
sem conversar com você, ver se eu agüento; mas não quero ... (Pau-
rejeitar porque acredita num mundo despovoado? Aposta no "mun-
sa.) Ás vezes, eu acho que viver é dificil, que é uma merda ...
Paulina: Hoje você está tendo uma experiência de compreen- do-merda"? Estaria expressando angústias impensáveis?
são, de intimidade, de proximidade, que o deixa mais vivo. Mas você O ego não contém os "bons" objetos internalizados? Estes não
se desfaz desses sentimentos, se distancia, penso que teme que este l'~lão solidamente marcados nele? Voracidade, inveja dificultam esse
bom encontro vire merda. Se você se antecipa em viver a merda, l' nraizamento? Carece de capacidade amorosa para mitigar a destru-
então se impede de desfrutar mais este momento. ti vidade? Observo que ele se vincula com cautela, com medo de re-
Frederico: Você me surpreende... Me faz ver que eu fico como peli r frustrações, perdas. Onipotentemente acredita que pode se pre-
uma cobra mordendo o próprio rabo! ve nir, se imunizar da vivência de frustração?
Aqui a c0municação é sentida, o tom de sua voz é depressivo. Apresenta-se para mim como um "gato escaldado diante de água
Ele não está se referindo à minha astúcia, há uma verificação de que fri a". O risco de perda, de decepção, existe só para ele? Acredita que
ele ativamente se empenha em esvaziar a experiência. pode se vacinar contra o risco de amar e se frustrar?
Vejo que ele teme ter experiências amorosas, e vivê-las mais
Quer ter um vínculo amoroso, mas duvida de seus recursos para
a1n plamente. E precisa ser respeitado nesses limites. Parece-me que
isso?
l'le está convencido, que é fato - se ele amar, a catástrofe é certa. Por
O "bom" encontro é percebido, mas fica perdido na continuida-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 135
134 PAULINA CYMROT

ora, suponho que ele deseja e receia o investimento afetivo. No mo- isso for comparado aos primeiros anos da análise; associou as ima-
mento, percebo-o como alguém que se posiciona como uma mario- gens desse sonho com o seu mundo interior. Diferentemente, nos
nete nas mãos de imagos, do superego. primeiros anos da análise, os sonhos eram tratados pelo analisando
São as minhas conjeturas, no momento. cm sua concretude, enquanto imagens que não ganhavam represen-
Frederico aceita a formulação concernente ao seu movimento tações.
de anular a companhia que deseja, reconhecendo que ele se impede Podem-se atribuir muitos significados ao relato de um sonho.
de se atender melhor. Arrisco um meu, conforme experienciei o que escutei, como me to-
Prossigo relatando algumas experiências clínicas com Frederico, cou naquele momento.
conforme as apreendi e as transformei. Parece-me que essa experiência, chamada sonho, reflete a situ-
ação analítica, a história das relações do analisaudo com os seus ob-
jetos interiorizados. Frederico informa-me que ele não conversa so-
bre os seus sofrimentos com as pessoas de sua vida; estas apresen-
6. Momento clínico tam-se para ele como possuidoras de recursos materiais, mas ocul-
tam os afetos, não compartilham o luto.
Frederico: Acordei cedo, antes do despertador. Sabe, tive um Atento para a sua narrativa do sonho e de suas associações. No
sonho. Era um quarto em que dormíamos meu primo mais velho e conteúdo manifesto do sonho, ele quer matar os animais e o faz; não
eu. Acordei assustado porque do meu colchão saíam uns animais. se mostra disposto a se aproximar deles para ver o que os torna tão
Fiquei com medo e acordei-o, disse-lhe o que estava acontecendo, horríveis.
mas ele não ligou e voltou a dormir. Fiquei apavorado, eram uns Pensei que talvez ele buscasse um objeto que o atendesse e cui-
animais horríveis e os matei. (Silêncio.) Estive ontem com este meu dasse dele, mas sem incomodá-lo. Que desejasse que eu providenci-
primo. Ele e sua mulher são secos, sei lá, afetivos do jeito deles. asse para que nada o perturbasse? Se fosse assim, seus anseios e
como o restante da minha família. Ele me ofereceu um almoço, e sentimentos em relação a mim estariam representados na figura do
ofereceu com prazer. Mas não converso com ele do que eu sinto. primo, que não levava em conta o seu pedido de ajuda?
(Pausa.) Sabe, nestefim-de-semanafiquei mais em casa, só saí para Queria que o livrasse dos seus sentimentos dolorosos, sem que
almoçar na casa deles. Fiquei lendo, sozinho. Isso é novo ... ficar cu lhe pedisse ou esperasse nada dele?
sozinho sem ficar muito angustiado. Cozinhei para mim, há tempos Nessa direção, eu participaria de um conluio narcísico, na con-
que não fazia isto. (Pausa.) Vir aqui e poder falar com você dos meus dição de um objeto que o atendesse, na medida em que não o pertur-
.fantasmas, dos meus animais - que eu acho que são os meus senti- basse em suas emoções, não tocasse naquilo que seria fundamental?
mentos, os meus medos - tem feito eles ficarem mais suportáveis... No entanto, nas associações que o analisando fez, ele relacio-
Fiquei pintando e também me fez bem. Mas sem a preocupação de nou os animais aos seus medos e a outros sentimentos, e disse que já
representar alguma realidade, sem "cair na real", sem trabalhar não os temia como anteriormente; e que sentia que expressá-los, con-
muito a pintura, porque para isto é preciso ter paciência... versar sobre eles, ajudava-o. Em outras associações, referiu-se ao
Frederico recorda-se mais freqüentemente dos seus sonhos, se desejo de pintar, mas sem uma preocupação com a realidade, expres-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1i /
136 PAULINA CvMROI

sando que carecia de paciência para aquilo que exigisse trabalho e 11ência de si, que ele precisava negar? Através do sonho, ele expn:~~a
esforço. que não quer ser incomodado pelos animais, e que estes representam
Penso que a tolerância e a persistência aliada ao princípio de 11, sentimentos, os impulsos, os medos que ele teme; mas diz que ja
realidade são fatores constituintes da continência e favoráveis à re- 11s temeu mais. Sente que, embora eu não pertença à sua família ,
paração, à coesão do ego. O analisando avisa-me que não quer "cair posso ajudá-lo a criar alternativas para a sua vida, ajudá-lo a ficar só,
na real"? Deseja se relacionar, criar, sem experimentar frustração? ,c m ficar assustado?
Sem ter que tolerar? Penso que o sonho pode apontar para a destrutividade que é
Sabe que para elaborar os medos, o ódio, a agressividade, é projetada para fora dele. Ele parece querer se aproximar e se livrar de
preciso "cair na real"? aspectos de si mesmo, que teme perceber como seus. Isso foi dito a
Quer mexer no vespeiro sem que, no mínimo, o ódio e a culpa de e houve receptividade de sua parte para tal formulação.
sejam ventilados? Tem a dimensão do custo que tem para ele "matar Como comunicar algo ao analisando na tentativa de ajudá-lo a
a alma", manter o falso selj? ...c aproximar dele mesmo é uma tarefa que se apresenta para o ana-
Deseja transformar as emoções violentas e temidas, em emo- li sta.
ções vividas e elaboradas? Dispõe-se a ressignificar os seus objetos Ele desconhece que o exercício do amor depende de um traba-
porque sente que pode se utilizar dos sentimentos e das ansiedades lho mental, de elaboração dos lutos e dos aspectos destrutivos?
para estar mais vivo? Não sabe que é difícil separar amor, culpa, sofrimento?
Ocorreu-me uma outra hipótese: de que ele não me sentia dor- Frederico contou-me que ele procura, indiscriminadamente,
mindo, ao menos não o tempo todo, pois verificava que eu o escuto, pessoas para se relacionar e que ele não quer se envolver para não se
que conversamos sobre os seus sentimentos e que isso o ajuda. As- decepcionar. Essa memória ocorreu-me durante a sessão. Perguntei-
sim, ele "cai na real", dá-se conta de que expressar os sentimentos e me por que, para que ele me relatou esse sonho. Precisou se conven-
pensá-los ajuda-o a conter as suas angústias, os seus impulsos. Se o cer e me convencer de ser vítima da secura alheia, da maldade dos
sonho possibilita-lhe a percepção de que a continência da vida men- outros? Precisou manter a destrutividade projetada e ficar sem ares-
tal é útil para a sua vida, a meu ver, pode se tratar de um sonho ponsabilidade por si?
elaborati vo. Frederico diz que não teve e não tem com quem compartilhar
Pensei também numa hipótese: ele me relatou que desde que ,ofrimentos, que a assistência familiar foi frustrante. Sente a falta de
ele era um menino, esperava o interesse afetivo e explícito dos pais. "bons" objetos? Ou se sente esvaziado, pois com a força da inveja
Com mágoa, relatou que os parentes falharam com ele. Desconfiava ataca vínculos e a percepção da realidade psíquica?
dos próprios recursos para se atender melhor? Acreditava que só no O analisando verifica que ganhou algum grau de intimidade com
sonho ele contava com ele mesmo? ele mesmo e que consegue usufruir mais da própria companhia e da
Descobria com dor que ninguém podia substituir os pais, que minha. Porém, acredita que se ele se acolher, se gostar de conviver
ele necessitava se atender com os recursos de que dispõe, tendo que comigo, é perigoso? É catastrófico? É doloroso demais? É isso que a
encontrá-los e desenvolvê-los para utilizá-los para si? cxperiência da análise tem lhe mostrado? Pode aprender com essa
No sonho, ele mata os animais. Estes podem representar a cons- experiência?
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Hwnor 1,111
138 PAULINA CYMROT

Klein, Bion e outros psicanalistas - de ganho, perda, esvaziamento.


Acredita que a continência e a relação amorosa trazem somente
l'nriquecimento, separação, reunião, rivalidade, encontro, desencontro.
conseqüências difíceis de serem vividas, danos pessoais?
11ascimento e morte, que compõem a existência humana, os relacio-
Se ele consolidar vínculos amorosos, será angustiante cuidar
dos seus objetos? Sente ser custoso demais preservá-los? Está mais namentos.
Entendo que estar continente comporta a consciência da vida
habituado às relações com objetos de uso?
presente. Há pessoas que se atam somente em sonhos, em expectati-
Acredita poder exercer a destrutividade sem destruir os víncu-
vas. em regras instituídas; servem-se dos acontecimentos para justi-
los amorosos?
ficar o seu lugar no mundo, suas tragédias, e a qualidade da sua exis-
Suporta a consciência de que, para ser genuíno consigo mesmo,
tência. Se a pessoa pode tolerar-se, se observar no presente, ela abre
ele tem que levar em conta que amor e ódio são inseparáveis?
l'spaço para transcender a história, a memória, abrindo-se para algo
Suponho que, para esse analisando, sofrer é um bem, e, nessa
novo, para a esperança, para a expectativa, para a consciência do
direção, há um trabalho a ser feito: a reparação dele com ele mesmo,
l'luir da vida, da temporalidade, da finitude, da transformação das
e não só com seus objetos primários internalizados.
experiências e do significado de estar viva. Pode rever os seus crité-
Parto do pressuposto de que a reparação, a preservação do "bom"
rios, o seu vértice ao olhar para o mundo, as suas expectativas. Isso
objeto, comporta a continência para a elaboração da destrutividade, e
ocorre num movimento oscilatório de retração=expansão da conti-
isso implica alguma tolerância da ambivalência.
11ência para a vida mental.
Frederico expressa uma consciência de que a responsabilidade,
Não são somente as experiências de amor e de prazer que forta-
o dever e o esforço o movem no sentido de preservar suas relações.
kcem o psiquismo; vivências de desapontamento, de tristeza, de so-
Dá-se conta de que a relação analítica ganha importância para ele, de
frimento, de luto podem revelar ao sujeito a percepção de capacida-
que sente saudade, falta, e que estes sentimentos são novos para ele.
des para vivê-las e suportá-las, que antes eram desconhecidas para
Na análise, observo que ele manifesta sensibilidade para perce-
de mesmo. Não me refiro aqui à necessidade de sofrer ligada ao
ber sua necessidade de ser mais verdadeiro com ele mesmo. Perce-
masoquismo patológico, mas entendo que a capacidade de sofrer e a
bo-o continente para conteúdos antes evitados. Parece-me que o pen-
de se aproximar do sofrimento do outro, de ter compaixão por si e
samento mágico contido no desejo onipotente de não experimentar
por um outro dependem do estado de continência e da elaboração da
nada desagradável dá lugar a uma maior potência do eu, favorecida
destrutividade e do ódio, como condições para a vivência amorosa e
por um superego mais protetor e não predominantemente sádico, que
o desenvolvimento psíquico.
lhe possibilita conter e reavaliar seus ideais e limites pessoais.
Ter uma experiência analítica demanda coragem, ousadia liga-
A meu ver, dor, sofrimento, frustração e decepção integram a
da à prudência. Demanda alguma tolerância e interesse dos pattici-
experiência humana. Quando essas vivências podem ser transforma-
pantes da mesma para experimentar novas formas de se ver e de ver
das, contidas, nomeadas, elaboradas, permitem sentir liberdade inte-
o outro. Demanda alguma tolerância para a dor.
rior, autonomia, alegria, sabedoria, humildade, serenidade,
A Psicanálise supõe uma pluralidade de teorias. Pessoalmente
criatividade, dignidade, compaixão. Uma análise comporta um con-
não compactuo com a idéia de que na sala de análise um é o normal,
junto de experiências que estimulam o desenvolvimento da consci-
o superior, o que sabe e analisa a neurose, as defesas, a psicopatolo
ência do ritmo perene, transitório - tão bem destacado por Freud,
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor l<I 1
140 PAULINA CYMR01

gia, as incoerências do outro. Há duas pessoas, cada qual com o seu t' que ele seja outra? Na hipótese de ele não perceber as nossas d1k
modo de ver o mundo. Penso que nessa experiência com um outro n:nças, sente-me uma extensão dele?
continente é possível o exercício do estado de continência para a As minhas qualidades são as suas? Então, não são minhas? Ele
t' justo, se sou justa?
vida mental.
Ou sou justa, porque ele tem bondade e o dom de reconhecer
.tlguma qualidade em uma atitude minha?
Fiquei com a hipótese de que o mecanismo ele identificação
7. Momento clínico com Frederico projetiva operou expressando-se em fusão/confusão.
O compositor Caetano Veloso assim canta: é que Narciso acha
Inicio a sessão comunicando para Frederico sobre o reajuste do /é•io o que não é espelho ...
custo da análise. O analisando deseja ser eu? Tem o desejo de me imitar? Isso
Frederico: Já esperava por isso; acho bem razoável o que você pode estar relacionado com um princípio de introjeção? Sou uma
está me propondo, acho justo. Também estou querendo pedir um au- referência para ele? Somos um, sem diferenças?
mento de salário, estou precisando ganhar mais, as despesas au- Ele me conta que não se apropria do seu desejo. Carece da no-
mentaram. Fiquei aguardando você reajustar primeiro. (Pausa.) Você ~·ão de eu, e da experiência de casal, em que dois diferentes podem
acompanhou a inflação, dá para eu pagar, era o que eu esperava. rnnviver, se respeitar, sem se anular?
Paulina: Você precisa esperar que eu cuide do meu dinheiro No momento, ele parece necessitar de uma referência para po-
para você cuidar do seu. Achei que cada um de nós podia cuidar do der construir as próprias?
próprio interesse. (Talvez aqui tivesse sido mais apropriado ter con- Na sessão seguinte, percebi-o desanimado, apático. Quando ele
versado com o analisando sobre a sua necessidade de imitação, ou de me viu, seu primeiro comentário foi:
que ele acha que é certo o modo como eu me posiciono.) Frederico: Você está cansada hoje.
Frederico: É ... fico esperando para ver como você fàz, quanto E eu me percebi disposta para estar com ele. Nessa experiência,
vai reajustar, e só aí eu me defino ... ,upus que ele se utilizava do mecanismo de identificação projetiva;
(Percebo-o decepcionado com ele mesmo.) no entanto, não me pareceu que o fundamental fosse somente a ex-
Paulina: Está me contando que tem uma necessidade e que.fica pulsão de sentimentos e sensações intoleráveis em si, e a conseqi.ien-
passivo diante dela. Como é que isso se deu, de eu me tornar uma le projeção destes para dentro de mim. Entendi que ele necessitou
referência para as suas necessidades, para os seus desejos? explorar em mim e comigo, como eu podia conter estados mentais
Frederico: Não sei, é dificil eu me orientar sozinho ... não sei desprazerosos, e que necessitou de um continente para conter impul-
porque... ,os, sentimentos, sensações, já que ele pareceu não confiar nos seus
Paulina: Parece-me que a verificação de que você é uma pessoa recursos para filtrá-los, modulá-los. Conjeturei que a pressão para
e eu sou uma outra, separada de você, deixa-o aborrecido, decepci- , 1ue eu me sentisse desanimada podia estar relacionada a um pedido
onado com você. de continência para a projeção do "mau" objeto interno que necessí -
O analisando fusiona-se comigo e nega que eu seja uma pessoa lava ser integrado.
142 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1,11

Klein (1946) centraliza o conceito de identificação projetiva em husca afetiva. Minhas relações são mais instáveis, supe,jiciais. aJ)('
seu sistema teórico. Não considera que o analista seja um modelo de l'Or de que eu vivi com a A. por alguns anos .. . quero discutir, pensar
identificação e entende que a projeção se dê para dentro do objeto. \'Obre a minha questão afetiva.
Acentua a existência do mundo interno e de relações com os objetos. Paulina: Podemos conversar sobre os sentimentos que você está
Os indivíduos vivem no mundo interno e externo simultaneamente, e ,•tperimentando neste encontro. Imagino que não deixou os afetos
ambos são reais para ele, não há dicotomia entre interno e externo. O fora desta sala!
ideal do ego é projetado no analista, possibilitando que este seja ad- Ele acha graça e diz:
mirado por conter as partes "boas" do self. Como a autora, considero Frederico: Bem .. . você sabe que o meu afeto está implícito aqui,
que sendo receptor de projeções do analisando, espera-se que o ana- l'aulina!
lista exerça a função de continência para estas. Paulina: Na minha opinião, nesse relacionamento, não é para
Como Bion (1962), penso que a resposta emocional do analista deixar nada implícito! Você me propõe 'filosofar" sobre "busca
pode servir para uma aproximação do analisando com a realidade afetiva", e eu convido-o a viver esta relação "pra valer".
psíquica; trata-se de uma conjetura imaginativa que pode evoluir para Frederico ri, diz que tenho razão e que valoriza conviver comi-
uma conjetura racional. Penso que uma articulação dos conceitos de 'º· Diz:
identificação projetiva, réverie, continente=contido, pressupõe um As vezes eu me estranho, me sinto sem chão .. . Percebo que eu
objeto-continente, que seja modulador das experiências emocionais 1·alorizo a amizade, como esta nossa, valorizo a privacidade... Devo
do outro. 111uito a estas nossas conversas. (Pausa.) Me sinto angustiado agora,
God is a concept, by which we measure our pain ... 1'1110cionado, não sei, fiquei angustiado .. .
1 don 't believe in magic. l don 't believe in kings .. . Ele sente que teve pais solidários, mas não nos momentos em
I don 't be/ieve in Yoga ... I don 't believe in Beatles... que mais precisou?
l just be/ieve in me... Yoko and me... Teme a intensidade afetiva? Teme que o amor possa se espraiar?
That's reality, The dream is over, What can I say? Carece de continência para esses estados amorosos? Estes o
The dream is over yesterday... But now J'm John ... ,111gustiam?
John Lennon Frederico nota que já não é tão fugidio ao encontro comigo e
que o experimenta com angústia.
Proponho-me a nomear as vicissitudes do encontro com ele, em
vez de estimular a intelectualização ou de falar sobre a história pas-
8. Momento clínico ,ada conforme é narrada por ele. Ofereço continência para seus esta-
dl>S amorosos temidos. Ele parece que sente o amor com angústia,
Frederico inicia a sessão narrando pausadamente e de um modo
rnmo algo perigoso. Exerço a função de réverie ao acolher, nomear e
descritivo que a questão afetiva tem sido minha preocupação maior.
.qudá-lo a experimentar esses estados. Parece-me que ele relaciona a
Relata que na véspera se sentou numa mesa em um restaurante e
IIL'cessidade de amar ao medo de rejeição e de perda do objeto de
ficou observando alguns casais, experimentou muitas emoções e o lkpendência, de amor.
desejo de ter uma companhia - Quero conversar hoje sobre a minha
144 PAULINA CYMROI Ningu ém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor l <I~

Para ele, o seu problema é a afetividade. O que é isso para ele? inconseqüente; afinal, mal conheço uma pessoa, mal convivo e n111 o
E eu, como me aproximo ctisso? Enquanto sintoma? V. e, de repente, eu fico uma semana sem vir aqui ...
Opto por investigar com ele suas escolhas afetivas e se elas es- Com um humor afetuoso, digo-lhe: Imagino que não deva se·,
tão integradas ao seu ser? Se suas necessidades afetivas estão harmo- agradável para você acreditar que é isso que eu penso de voce. Mas
nizadas com o seu corpo? 1' muito cômodo você pensar isso de mim, me tornar essa pessoa
Opto por investigar com ele a perseguição? O medo do risco horrível, intolerante, uma juíza implacável!
impensado? Da satisfação do impulso sem consideração pelo senti Frederico: (Surpreso.) Como assim? (Silêncio.)
mento? Do prazer sem o afeto? Em um tom jocoso, informal, digo-lhe: Você decide, escolhe,
Penso que ele constrói mentalmente autoridades, para ser re /i,z o que deseja. E, além de não arcar com sua liberdade de escolha,
preendido e condenado por elas? nem me olha na cara porque conclui que eu estou pensando mal de
Procuro me ctisciplinar para me ater às suas possibilidades emo- ,·ocê!
cionais, na sessão; observo como ele se apresenta para mim e como Ele riu e disse que falei com ele de um jeito tão simples, que ele
interage comigo, como usa a nossa conversa, o que faz para evitar, apreciou, e que notava que se sentia perseguido em muitas situações
para estreitar, para expandir o contato com ele mesmo. de sua vida. E prosseguiu dizendo: Agora fiquei atrapalhado ... Gos-
tei do que você me falou ... Nunca podia ver as coisas por aí, do jeito
11ue você abordou!
Notei que ele enxugou lágrimas. Na seqüência, ele se lembrou
9. Experiência clínica que se sentia criticado pelos pais em sua escolha profissional e tam-
bém por não se casar. E disse que estava de saco cheio de ser critica-
Frederico avisou-me que faltaria à análise por uma semana, pois do, embora reconhecesse que ele mesmo se acusava (isso foi dito
decidira viajar para comemorar o início de um namoro. Compareceu com angústia) .
na data marcada para o seu retorno. Entrou e me cumprimentou sem Paulina: Você chegou aqui com a idéia de que eu fico aborreci-
me olhar. da e desconsiderada quando você se ausenta, se separa, e escolhe.
Frederico: Me sinto envergonhado ... Ontem à noite pensei, e ( 'hegou convicto de que eu ia criticá-lo, "pegar no seu pé". Eu me
agora também, que você vai me censurar por eu ter faltado na sema- 11proximei de você e vi que você gostou, que se comoveu com o que
na passada, a semana toda ... Você vai achar que dei mais importân- 1•11 lhe disse. Mas notei que precisou se servir de lembranças relaci-
cia para esta viagem ... rmadas a acusações contra você. Vejo que fica angustiado quando
Falava-me de alucinações que antecediam e revestiam essa ex- /}(Jrticipa de uma relação em que há consideração e respeito por
periência? Pensei na freqüência com que o analisando sente-se re- 1•ocê.
provado, censurado pelas suas escolhas, pelas faltas à análise. Ou ele idealiza, ou vive cercado de perseguidores?
Paulina: Penso que você sente que está nesta sala com um per- Ele me fala de sua inexperiência para vivenciar a discordância,
seguidor. a aproximação, a amizade, ou seja, para experimentar vários senti
Frederico: (Pausa.) Fico achando que você vai me achar um mcntos pe1tencentes à experiência de intimidade emocional, sem li
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1,1
146 PAULINA CYMROT

car muito ameaçado. Se há confiança, intimidade, ele não pode esco- desconsiderada quando ele se separa, se ausenta, escolhe. Se ck , 1.1
lher? ja, se diverte, o que me resta é ficar aborrecida?
Angústias persecutórias parece-me que estão projetadas na ana- Precisa acreditar que eu necessito dele mais do que ele de 111i1n
lista. Ele escolheu em função das configurações mentais dele, mas e, nesse sentido, haveria o triunfo?
acha que merece a condenação moral? O que atribui à analista? De- Suponho que a mente é complexa, é dinâmica, com ativiclac.lc:-,
lega-me uma função moral e não analítica, e, assim, procura fazer mentais psicóticas e não-psicóticas. Este é um pressuposto que con-
que eu não exerça a minha função? sidera que há particularidades e peculiaridades, a cada momentc do
Parece-me que ele descreve imagos que não torcem por ele, e encontro analítico.
fica angustiado. O analisando chegou e, a meu ver, expressou alucinose, o mun-
Veio à sessão, suponho que tenha intenções, anseios em relação do persecutório. A função analítica fez a oposição, o contraponto,
ao encontro. Precisa de autorização para ser? Necessita de concor- sem desfazer a impressão dele. Ao comparecer, o seu movimento foi
dância? De punição? o de me tratar como o perseguidor, fiquei com a impressão de que ele
Parece precisar fazer confissões. Disse que os pais cobravam o careceu da percepção de que os sentimentos eram dele, de que ele
seu discernimento. Não o cobrei, e ele se criticou. Necessita ator- não operou com a noção de subjetividade, de mundo mental, e estes
mentar-se? foram os seus recursos naquele momento. Movimentos psíquicos
Culpa-se por ter ficado feliz? Acusa-se pela sua individualida- ocorrem e evoluem na sessão, com suas transformações, algo novo
de? Pela sua liberdade? pode ser conhecido ou não, contido ou não.
Suponho que haja na dimensão do superego elementos de cru- Em diferentes momentos da análise, o analisando assim se ex-
eldade e de culpabilidade. A função analítica é a de observar os pos- pressou com relação às minhas férias:
No primeiro ano da análise, comuniquei-o da data das férias:
síveis significados do fenômeno mental que se expressa na relação
analítica, e, portanto, não é a função de julgamento moral. Sem per- Frederico: Você vai viajar?
Pausa. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele continuou:
ceber, Frederico tenta anular o exercício dessa função nele e na ana-
Perguntei só por perguntar, porque as pessoas costumam viajar
lista.
Não opto pelo reasseguramento, mas pelo exame do que ele faz nas ferias.
Investigamos sua fantasia de que eu poderia desaparecer, apa-
na sessão com ele mesmo, comigo, para que o faz, na tentativa de
gar na sua mente, e ele não querer retornar à análise; de ficarmos
aproximá-lo do que me parece ser desconhecido para ele em relação
distantes, de ele me esquecer e não precisar mais da minha ajuda.
à sua realidade psíquica.
Ocorreu-me que a ausência do objeto equiparava-se à perda do
Pensar diferentemente dele, para ele significa destruí-lo? Atacá-
,nesmo. Afetos, angústias relativas à dependência e à separação po-
lo? Precisamos coincidir no sentir e no pensar? A semelhança e a
diam estar negadas, ou quem sabe, nem consideradas. Pensei que eu
igualdade resolvem a angústia existencial? Para ele viver, um tem
l'ra alguém que ele usava quando precisava, quando se sentia caren-
que sentar no colo e o outro ninar? Os que pensam como ele são
te, e desaparecia de sua mente quando ele não precisava usar.
amigos, e os que discordam dele são inimigos, não o amam?
Frederico falava-me de suas decepções com pessoas, e agora
Parece-me que ele acredita que fico intolerante, desamparada,
148 PAULlNA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo; Psicanálise com Humor 1,111

me contava sobre a fragilidade do vínculo analítico. Perguntei-me o novo para ele - Sempre relutei, evitei gostar muito de alguc>m. 11111s i:
quê, quem eu era na vida dele. E veio à minha mente a imagem da o que eu mais valorizo! Relatou que uma amiga disse-lhe que jü era
"pisada de pé" na areia da praia, logo apagada pela onda do mar. tempo dele parar a análise para poupar dinheiro e comprar um apar
Cogitei uma outra possibilidade e diversa desta, relacionada ao seu lamento maior para morar, que ele precisava ter projetos de vida mais
temor de reconhecer que eu era uma pessoa separada dele e tinha concretos - Se fosse antes, pesaria como crítica, reprovação, mas
alguma importância na sua vida. Então, sentir a falta, a dependência, 11ejo que eu sou eu, não sou ela, e não posso abrir mão de uma refa-
poderia ser angustiante para ele, e havia a sua necessidade de retirai ~·ão importante para mim, do que eu tenho de bom. Eu sinto que
a importância da relação. O risco de interrupção da análise, que sem tenho mais dignidade, mais vontade própria.
pre existe, senti-o com mais força. Exponho minha idéia de que a interação viva, a disponibilidade
No quarto ano da análise, ele assim se manifestou quando o do analista para uma aproximação emocional no sentido de captar o
avisei das minhas férias: desconhecido da realidade psíquica, bem como a disposição do ana-
Frederico: Você vai sair de São Paulo, da cidade? lisando para receber o que lhe é oferecido, e sem precisar se desfazer
Dessa vez, pareceu-me que estava presente seu receio de ficar di sso rapidamente, contribuem para o exercício da continência para
só e muito angustiado, por eu não estar acessível para ele. a vida psíquica. Emoções habitam o espaço analítico e interferem na
Pareceu-me que havia uma discriminação entre o sentimento comunicação verbal, a relação continente=contido está susceptível
ligado à consciência de uma perda temporária e de uma perda defini- de ser impregnada pelas emoções presentes. Penso que estar conti-
tiva. No decorrer dessa mesma sessão, ele disse que percebia que eu nente refere-se a estar mais livre e estimulado para fantasiar, imagi-
confiava nele até mais do que ele confiava em si. E, nesse momento, nar, ter impressões, imagens, representar, pensar. Poder ter imagens
mostrou-se próximo, afetivo. Expressou o quanto se sentia respeita- que surgem como sonhos e se transformam e não tomadas enquanto
do e valorizado nessa relação, o que era algo novo em sua vida. fatos, podendo se transformar em pensamentos. Estar continente com-
Em outro momento da análise, comuruquei-o do período das porta a ousadia de viver os movimentos psíquicos muitas vezes indi-
minhas férias, que seria um pouco mais longo do que habitualmente, 1íveis, invisíveis, que ocorrem em uma atmosfera de intensas emo-
e o analisando falou que sabia que nessa época do ano eu tinha férias 1;ões. Supõe a sobrevivência da função analítica da personalidade.
e já esperava pelo aviso (geralmente, nossos períodos de férias ocor- Suponho que a internalização da função analítica com possibilidade
riam em épocas diferentes). Expressou o desejo egoísta de que eu de continência depende de muitos movimentos interpsíquicos e
não viajasse para muito longe; disse que tinha curiosidade sobre a intrapsíquicos de aproximação= afastamento da realidade psíquica,
minha vida - se eu viajaria, com quem, o que faria, para onde eu iria que o analista sozinho não pode apressar. Supõe a discriminação eu-
- imaginando que seria para a Europa e com a minha família. Disse, não eu, a aproximação viva e confiável consigo e com o outro.
também, que sabia que o nosso afastamento era temporário, mas que, Em minha experiência clínica, tenho observado que um encon-
dessa vez, ele sentia que podia contar mais com ele mesmo, sem tro animado, ativo, inteligente, surpreendente, com espaço para o
tanto medo dos meus medos. senso de humor, para a autenticidade, colabora para a expansão ela
Quando retomamos a análise, ele me contou que tinha experi- qualidade psíquica de continência. A vitalidade do analista, sua pai -
mentado a falta da sua companhia, saudade, e que sentir isso era xão pelo seu trabalho, sua confiança no método que emprega, seu
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 51
l50 PAULINA CYMROI

respeito à singularidade do analisando, e à sua, a capacidade para se nplicitando suas fantasias e angústias ligadas à clivagem, à identiti
sensibilizar e se deixar afetar pela experiência, sem sobrecarregar de rnção projetiva, e isso tem nos ajudado a diminuir a força da fusão,
exigências, sem querer mudar o outro, ou seja, sua possibilidade de do superego arcaico. Não me disponho a chamar a sua atenção para o
ser um participante ativo e não um aplicador de técnicas e teorias, quanto sou um "bom" objeto em sua vida. Observo que, quando cap-
isso tudo favorece a continuidade da análise, quando há parceria com to algo que acho que está se passando na experiência que estamos
o analisando. vivenciando e converso com ele sobre isso, tem sido proveitoso para
Pessoas procuram um analista para serem ajudadas, para dimi .11nbos, pois favorece o aprendizado pela experiência emocional.
nuir suas dores. Observo que dificilmente elas buscam a Psicanálise. Já mencionei neste livro um fator que tem nos ajudado na aná-
O analista dispõe-se a investigar, e a pessoa que o procura quer se li~e - o humor, o riso-, que nos diferencia, nos confronta, e também
curar, mudar, resolver seus problemas, mudar o outro. Na análise, há nos vincula, e possibilita o aprendizado pela experiência emocional.
o vértice do analisando, há o vértice do analista. Entendo que o vér- Discorro mais sobre o humor no capítulo seguinte.
tice do analista corresponde à observação da evolução, das mudan- A função analítica parece-me que seja a de promover e convi-
ças que ocorrem na interação durante a sessão analítica, das transfor- dar o analisando a viver uma experiência conjunta, e descrevê-la;
mações que se manifestam em associações, em formulações. A con- 111ostrando-lhe como ele se relaciona com ele mesmo e com um ou-
frontação é parte essencial da análise, e contra ela se mobilizam de- tro; como ele se comunica e se faz compreender, e isso depende de
fesas. A violência pode tornar impossível a confrontação, ou mesmo micromovimentos psíquicos, compartilhados, nomeado~ e
aniquilá-la. Na sala de análise, há dois diferentes, com visões separa- ressignificados, sem a invasividade do analista, com a colaboração
das, com perspectivas diferentes. No limite da distância entre ambos do analisando. Um caminho para a expansão da continência, para a
estão os "temperamentos incompatíveis"; pode haver também visões nomeação e a elaboração do que é vivido e não foi pensado resulta de
tão semelhantes e o risco da mente de um não estimular a mente do 11m trabalho contínuo, de invenção dos participantes da análise.
outro, ou visões separadas e o hiato entre elas ser transposto por algo Entendo que a percepção e a tolerância do analisando de que o
analista perdoa, eITa, não prevê, ousa apesar do medo, fica sereno,
linear, por explicações ou tentativas moralizantes. Diferente disso é
o hiato transposto pelo relacionamento continente=contido, no caso, ajudam-no para expandir a suportabilidade à dor, à angústia, ao ódio,
o relacionamento comensal (Bion, 1973), quando dois objetos parti- ;'\ frustração, alarga os limites da continência e da consciência; aju-
lham um terceiro, com crescimento para todos. dam-no a conter a consciência da solidão, da separação e da transito-
Quando o analisando colabora interessando-se pela proposta de riedade da emoção e da verdade. Uma questão que se coloca para o
investigação do desconhecido da realidade psíquica, o estado de con- analista é como favorecer isso para pessoas com uma história de di-
tinência se impõe, como demonstrei na experiência clínica com Patrick ficuldades para conter e pensar. O meu trabalho clínico tem me mos-
e também com Frederico. trado que isso não depende somente de formulações que pretendem
Voltando ao caso de Frederico, há momentos em que observo ~cr teoricamente procedentes, que estimulam o pensar. Depende de
que ele estabelece comigo uma relação na qual eu e ele somos o uma atitude mental do analista para estar na experiência e investigá-
mesmo, operando de modo a me transformar, ou a se transformar em la sem se aprisionar na história relatada pelo analisando, suspenden-
do a memória prévia, as teorias e as compreensões que antecedem
um acessório, sem existência própria. Procuro não censurá-lo,
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1.q
152 PAULINA CYMROI

essa experiência. Depende de uma atmosfera emocional criada no ,·onversados, avisa-me que não quer ser questionado. Qut (' para 1·11
campo analítico, na interação. pôr a atenção onde você qua
Minha experiência de vida tem me mostrado que nem todos o~ (Silêncio breve. Na seqüência, pelo tom de suas pal1vras pare
botões de flores abrem-se quando recebem sol, água, adubo, e que ccu-me que ele continuou se justificando).
alguns que pareciam duvidosos quanto ao desenvolvimento tomam- Frederico: Pensei se deveria ir antes, ou depois da sessão de
se belas flores. No exercício da Psicanálise, experimento a dificulda amanhã. Eles me telefonaram, estãó encrencados, nunca ,e entende
de em oferecer contato próximo a alguém que pode estar procurando ram bem, mas agora um fica culpando o outro pelos proplemas que
por isso, mesmo sem o saber, mas que encontra dificuldade para usu l'Stão vivendo. Vou lá dar uma força para eles, estou ber:i chateado
fruir disso. Ademais, há as minhas dificuldades para estar na sessão e l'Om isso. Eles ligaram, pediram para eu ir. .. Não tive conv recusa,: ..
poder observá-la, comentá-la, e que restringem a proximidade com a Paulina: Você continua se justificando, quer que eu eitenda que
realidade psíquica. Penso que uma análise pressupõe um trabalho o encontro com essas pessoas não é uma decisão sua. Tdvez receie
paciencioso, cuidadoso e não preconceituoso (ao menos, minima- c111e eu possa me aborrecer com a sua liberdade. Parece 1ue duvida
mente preconceituoso), no qual a pessoa do analista e o seu treina- que podemos conviver, formar um par sem comprometer a individu-
mento são fatores importantes, embora não suficientes, e se sornam à a/idade, e sem haver encrencas demais entre nós.
curiosidade, ao amor pela verdade emocional possibilitados pelo ana- Frederico: Eu acho que eu não sei o que é liberdad?... Experi-
lisando. mento a minha liberdade com muito medo. Eu me impres.:iono como
você fala comigo com espontaneidade, e com firmeza ... Eu vivo aqui
o que eu não estou acostumado a viver. .. Sabe, quando e.§es amigos
me ligaram, me veio a idéia de que "casamento" não é para mim,
10. Momento da análise com o tempo só sobra ódio, duas pessoas juntas por mu'to tempo é
11ma merda! (Pausa.) Mais uma das minhas "convicções", das mi-
Frederico entra, cumprimenta-me e se deita no divã. nhas regrinhas, que você me ajuda a ir desmontando, Paulina! Eu
Frederico: Amanhã eu não venho, vou viajar. Não é resistência! /(l/to aqui às vezes, de vez em quando tiro umas "férias', mas vejo
Paulina: Como é que você sabe que não é resistência? c1ue aqui eu vou pensando no que antes eu nem questionava, nem
Frederico fica surpreso. Diz: Agora você me pegou ... sonhava que existia. Eu não imaginava que eu podia sentir esse sen-
Parece-me que ele fala da minha astúcia, e que não sente como timento de amizade, que agora eu estou sentindo por vod. Você fala
um convite para uma investigação. para mim o que você pensa e, às vezes, é duro, mas eu sinto o seu
Frederico: É que eu vou visitar um casal de amigos que não carinho, o seu interesse, eu sinto que você me respeita.
vejo há meses; eles ligaram pedindo para eu passar o fim-de-sema- Percebi-me sensibilizada com essa comunicação do analisan-
na com eles. Precisam de mim lá. (Pausa.) do.
Paulina: Vejo que você precisa sejustificar pelajàlta na sessão A análise ocorre no setting, e este expressa a meDdologia, a
de amanhã, talvez receia ser censurado pela sua escolha. Vejo você ideologia, o vértice do analista. O analista observa por um vértice
empenhado em me dizer que alguns assuntos não são para serem que vai se transformando, aquele que lhe é mais acessív~I. Sua for-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 15
154 PAULINA CYMROI

mulação interfere na seqüência da conversa; a resposta do analisan 111arcas das suas relações, da ambivalência. Ele tem o p:ohlema de
do depende de como ele escutou e transformou a formulação do ana- rnmo viver o amor, o ódio, a decepção na relação com uma mcs111,1
lista, ou seja, de seu estado mental de abertura para conhecer. E a sua pl·ssoa? Acredita que a vivência do ódio, a da agressividade e a da
comunicação influi nos novos desdobramentos da experiência, e as- decepção matam a relação?
sim sucessivamente. Ele conta que se aproxima daqueles que sofrem, e reconhece que
Apreendi que, inicialmente, o analisando expressou o desejo de tt·m recursos para isso; diz que oferece assistência pressionado pelo
cumplicidade, de sermos concordantes; e um movimento de sedução 1kver, pela culpa. Relata que ultimamente percebe que sen-:e mais pra-
para não ser questionado; e pareceu-me que ele não assimilou a ex- l'r no convívio com algumas pessoas, verifica que sua ap1Dximação é
periência de que pode haver concessão ou discordância entre dua!-i 1111pulsionada pela compaixão, pela amizade, pela saudade. Percebo
pessoas, e isso se ocorrer com respeito à individualidade. A prevalência comigo um vínculo construtivo, de cooperação, mas taml>ém experi-
de identificação projetiva supõe algo diverso disto: confusão, contro- 111cntado com o medo da dependência, do meu julgament<>.
le, pressão, cerceamento, sedução, manipulação, tentativa de apazi- Há uma hipótese - de ele poder se aproximar dos qL1e sofrem e
guamento. Entendi que o analisando iniciou a sessão introduzindo de que isso seja menos angustiante para ele do que ele st: aproximar
uma restrição à investigação, um distanciamento entre nós. dele mesmo para reparar seus objetos internos. Sente-sr diminuído
Se para Freud a resistência é uma manifestação de processos rom a verificação da sua necessidade de ser assistido?
inconscientes, então dela o analisando não sabe. Sua fala inicial pa- Ao se dispor à experiência analítica, Frederico intuiu alguma
receu-me defensiva. Antecipadora de imagos temidas? Temeu co- necessidade de continência para se sentir mais verdadeiro?
branças? Temeu ser dominado? Em O ambiente e os processos de maturação, Winnicott (1990b)
Operou com fantasias de submissão, fóbicas? Foram hipóteses L'lltende que por dispor de um ego menos desenvolvido e mais pro-
que apontaram para as ansiedades persecutórias, para um funciona- penso à idealização, torna-se difícil para a criança perceber falhas e
mento superegóico restrito. limites no objeto. Ao ser introjetado, o objeto frustrador pode se trans-
No momento, ele me mostrou não ter a experiência de viver a formar no "mau" objeto. Partes do self então se identificam com os
dois sem se sentir submetido, atemorizado. A aproximação com li- "maus" objetos e constituem o self antilibidinal e sabotador do vín-
berdade pareceu-me que estimulou nele a perseguição. rnlo amoroso. Em conseqüência dessa introjeção, a agressividade e
O analisando tem expressado sua dúvida e a desconfiança de o ódio latentes ficam prontos para eclodir, e o distanciarr1ento apare-
ser capaz de estabelecer uma relação criativa, na qual dois indivídu- ce como uma defesa para a preservação da relação objetal.
os podem conviver, sem se anular, sem comprometer a individuali- Penso que certos indivíduos parecem ter uma prontidão para se
dade, sem haver muita encrenca, muito sofrimento. afastarem de outros em suas tentativas de se defenderern de decep-
Se há aproximação, há contaminação? Teme ser contaminado, 1,·11es, de sofrimentos. Mantendo uma distância para não liberarem o
caso o contato se estreite? aspecto "mau", também neutralizam o sentimento amoroso. O ana
A afetividade parece-lhe arriscada? Acredita que para ficarmos lista, com sua receptividade, sua tolerância, com a réverie, contribui
juntos temos que nos purificar? Tornarmo-nos um? para o favorecimento de novas introjeções atraindo ligações libidinais,
Suponho que a vida dele, como a de qualquer pessoa, tem as desde que o analisando libere sua potencialidade para isso, demons
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor I ~/
156 PAULINA CYMROI

tre disposição para se vincular e se conhecer. A introjeção da função dáveis. A proposta do analista para o exame da experiência cmoL H>
analítica serve como um potencial, um instrumental que possibilita o nal presente necessita da colaboração do analisando, e essa proposta
sujeito se ver, pensar a relação com ele mesmo e com seus semelhan pode desagradá-lo, despertar-lhe inseguranças.
tes. Uma interação emocionalmente viva, continente, favorece essa Como Bion, considero a importância do objeto continente,
introjeção, ajuda a construir, ao menos em alguma medida, funções pensante, capaz de manter uma distância sem invadir e sem ficar
psíquicas que não foram desenvolvidas. distante, de oferecer uma constância na relação e nomear sentimen-
Entendo que a função que interessa para a Psicanálise é a analí- tos para pensar os pensamentos. Penso no analista enquanto um ob-
tica, que se associa à investigação, à curiosidade pelo fenômeno men- jeto continente, ativo, afetivamente espontâneo, presente, verdadei-
tal, e passa pelo aprendizado através da experiência emocional que rn, estimulador da curiosidade para conhecer, e o menos moralista c
se apresenta no campo analítico. Supõe a necessidade de encontrar autoritário possível. Acredito que à força interior do sujeito se revela
um continente para a contenção de infinitos possíveis contidos. O na sua capacidade para ter experiências, senti-las e delas aprender, se
pensar desenvolve-se na experiência intersubjetiva, e esta comporta revela na sua capacidade para tolerar o ódio à frustração, sem preci-
continência, intuição. Uma pessoa pode se aproximar e descrever sar reagir imediatamente com inveja, avidez, podendo experimentar
algo da interioridade, do sofrimento de outra pessoa quando é afeta- ,entimentos desagradáveis. Penso, também, que as vivências da bon-
da pela experiência com esta. Como Bion, penso que, no psiquismo, dade, da tolerância às decepções na relação com o objeto amado, da
as possibilidades de alucinar, de projetar, sejam próprias da mente, e generosidade apoiada no sentimento de gratidão sejam expressões
as capacidades para tolerar, para pensar, desenvolvem-se através de da força do ego (Petot, 1988). Entendo que isso se relaciona com a
vínculos estimuladores de contato com a experiência emocional. E internalização e a relativa estabilidade da função analítica na mente,
mesmo havendo a disposição para esse contato, muito fica sem ser que se apóia no sucesso da introjeção do seio "bom" - protótipo da
conhecido, sem ser contido, sem representação mental. receptividade, da criatividade - num processo que é ativo e dinâmico
Entendo que a elaboração psíquica, inicialmente referida à idéia por parte do sujeito da experiência.
de eliminação de conteúdos mentais incontidos, de resolução de con- Na análise, o reconhecimento do objeto continente pode ajudar
flitos, comporta a internalização de uma contínua atitude para se ob- a expansão da continência para o incontido, e isso implica se apro-
servar e ver o que se passa a sua volta, para ser continente e pensar. priar da singularidade. Quando confiança, continência e reparação
Como Bion, entendo que o guia mais seguro do analista é a experiên- são experimentadas, sujeito e objeto não são mais os mesmos. Estar
cia analítica. A atmosfera é a de privação de desejos, de isolamento L'Ontinente comporta a elaboração da destrutividade, da dependên-
de cada um na íntima relação de análise, e de consciência de que cia, e alguma tolerância à ambivalência. Para ser genuíno consigo é
certas responsabilidades não podem ser compartilhadas. preciso tolerar que an1or e ódio são inseparáveis, como condição para
Enquanto analista, penso que a solidão e a separação costumam a vivência amorosa e de potência do se(f
se acompanhar de sentimentos dolorosos de abandono, de aniquila- Julgo que a confiança e a constância na relação com o objeto
mento, de incompreensão. Os estados mentais primitivos não inda- rnntinente, apoiadas na percepção da continência, sejam simultâne-
gam, e o convite à indagação, da parte do analista, por vezes pode a-. à possibilidade de estar continente para os próprios conteúdos. A
suscitar no analisando o sentimento de abandono, ou outros desagra- meu ver, estar continente supõe a tolerabilidade à experiência de se
158 PAULINA ClM ROI

paração, solidão, introspeção, ansiedade pelo contato com medos e


com outras emoções por vezes dolorosas, clivadas, desconhecidas,
impensadas.
Para finalizar este capítulo, escolhi uma citação contida no livro
Los casos de Sigmund Freud - E/ hombre de los lobos por e/ hombre
de los lobos (1971, p.159-177) que me parece expressiva das idéia~
que resultaram dessa minha experiência com Frederico:
CAPÍTULO IV
O aspecto de Freud era tal que ele ganhou imediata Perseguição<=>humor, humanidade,
mente minha corifiança ... ; o traço mais impressionanl<'
eram os inteligentes olhos escuros que me olhavam com humildade
penetração, mas sem provocar-me o mais leve sentimen-
to de incômodo ... E a segurança em si mesmo que ele
transmitia indicava seu amor pela ordem e sua segu-
rança interior. Toda a atitude de Freud e a forma que
me escutava o d[ferenciava ... , e depois das primeiras Nas vivências clínicas descritas anteriormente com Simone e
horas de tratamento com ele tive a sensação de que por com Melanie, o humor, enquanto instrumento para ajudar a expan-
fim havia encontrado o que havia buscado durante tan são do estado mental de continência, não operou. Suponho que an-
to tempo ... ; em minha análise com Freud eu não me sen- gústias arcaicas ligadas à simbiose, à indiscriminação, à fusão, além
tia tanto na condição de paciente como na de colabora- de outros fatores, como o desespero, a impaciência, a arrogância, a
dor, o camarada mais jovem de um explorador experi- insuficiência de solidariedade da analista para as angústias e os ape-
mentado que embarca no estudo de um território novo los das analisandas, possam ter interferido para isso.
e recém-descoberto ... Esta sensação de "trabalhar jun- Servi-me de situações clínicas (Paulina, Luiz, Frederico) para
tos" se intensificava pelo fato de que Freud reconhece-
apresentar ao leitor minha idéia sobre a importância do humor na
ra minha compreensão pela Psicanálise.
análise, como um elemento que pode auxiliar a expansão do estado
de continência para a vida psíquica. Neste capítulo, pretendo deter-
me nessa idéia. Tenho em mente que o humor respeitoso, acompa-
nhado de compaixão, pois considera o sofrimento, pode ajudar a
flexibilizar o superego, pode estimular a humildade e a continência
para a condição humana, e a mudança psíquica. Onde havia persc-
p.uição, intolerância de si e do outro, pode haver continência para si e
para o outro. Apresento algumas experiências clínicas com o intuito
de desenvolver essa idéia.
160 PAULINA CYMR()I if,I
Nin guém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor

1. Experiência clínica: Tereza - Tristeza não tem 2. Experiência clínica: Eva - O paraíso existe!
fim, felicidade sim ...
Eva começou a sessão dizendo que estava deprimida porque via
A analisanda solicitara-me uma troca de horário de sua sessão, que suas amigas eram mais felizes do que ela, mais animadas, mais
e pude atendê-la. Iniciou a sessão relatando-me alguns episódios realizadas. Elas nunca se abatem com as coisas delas. Contou que
frustradores para ela ocorridos na sua casa; queixou-se da falta de visitou uma amiga, com quem trabalha, que teve gêmeos, e viu-a feliz.
colaboração dos familiares nas tarefas cotidianas, falou de seu des m a tem marido.filhos, uma casa, uma família. Eva disse que ela mes-
gosto em morar numa casa, apesar de suas insatisfações quando resi ma se sentia uma encalhada. Relatou que a amiga não tem parentes na
dia num apartamento. Reclamou da incompetência da empregada para cidade, "vira-se" sozinha, não tem empregada para ajudá-la, mas ela é
servir o almoço pontualmente. Nesse momento, lembrou-se de que féliz! Chorou, dizendo que ela era uma solteirona, infeliz.
estava sendo atendida por mim, no horário conveniente para ela. Mas, A analisanda comunicou-me como ela viu a amiga, e como ela
logo prosseguiu queixando-se dos pedreiros que foram contratados se via. Propus-lhe investigarmos o que ela não viu. Pensei em sua
para um serviço e que quase danificaram um móvel, e isso irritou-a falta de um continente interno para abarcar e examinar seus estados
muito. Subitamente, perguntou-me: Onde você mora? A pergunta mentais, suas teorias que determinam seus critérios para julgar pes-
surpreendeu-me, e, recobrada da surpresa, com humor, respondi-lhe soas, situações, e para se julgar, os quais intensificam um sistema de
que eu morava em um palacete, num lugar maravilhoso e que, além entendimento próprio que se estende para as várias áreas da sua vida,
de um mordomo, que providenciava toda a manutenção do palacete, para o relacionamento com outras pessoas e com ela mesma.
eu tinha vários empregados, nenhuma preocupação, pois todos eram Noções básicas da vida não podiam operar com a vigência des-
muito competentes na prestação de serviços para mim. se sistema de pensamento. Como exemplo, apesar de a analisanda ter
Tereza gargalhou. Eu 1i também. Ela percebeu que eu a atendi uma formação profissional ligada às áreas da saúde e da educação,
conforme a conveniência dela, e num tom confessional e humorado, apesar de ter experiências de vida, ela não pode observar que a expe-
disse-me: Sempre imagino que você tem uma vida sempre harmonio- ri ência de maternagem é complexa, freqüentemente acompanhada
sa, que você "tira de letra os seus problemas". E riu. Indagou-se se ela de muitas angústias, de medos; que experiências relativas à materni-
era desafortunada, ou mais insatisfeita do que percebera até então. dade, ao casamento não equivalem a viver no paraíso, não são expe-
Nessa sessão, verifiquei que a formulação humorada, apoiada ri ências desacompanhadas de sofrimentos.
no vínculo de confiabilidade com essa pessoa, facilitou seu estado de Disse-lhe, com humor e informalidade, que eu não sabia que
continência para as suas frustrações, a sua inveja, a sua insatisfação. casar, ter filhos, e logo dois de uma vez, é o mesmo que viver no
Cada formulação analítica é uma aproximação precária, fugaz à paraíso, que é solução contra sofrimentos, angústias, medos. A res-
experiência emocional que se apresenta. A surpresa, o frescor, a no- posta da analisanda mostrou-me que ela atentou para o que eu lhe
vidade, o humor associados à condição emocional do par constituem di sse. Ela verificou a ingenuidade e a superficialidade do seu julga-
cada encontro como uma experiência propícia para descobertas, para mento, já que este estava atrelado a critérios moralistas e
a investigação da vida psíquica que se revela através da interação. preconceituosos, ao auto-ódio. Com a nossa conversa, a analisanda
reconheceu que o julgamento pelas aparências apóia-se c111

1
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor Ih \
162 PAULINA CYMROI

moralismos e não promove conhecimento do outro, da vida, de si rerestados de desânimo, abatimento, depressão, acompanhados dl'
mesma. Pôde experimentar na sessão sua concepção de ser humano dor, de agonia. Quando achamos que vamos sofrer, ficamos ansio
que, a meu ver, se aplicava melhor ao funcionamento de maquináJios. sos, atemorizados; se não temos nenhuma esperança de alívio, fica
que apresentam defeitos, problemas de funcionamento, mas que não mos desesperados.
Darwin (2000) descreveu que depois de fortes emoções pela
se prestavam para ela conhecer algo dela, da sua natureza: Ela acre-
ditava que havia algo errado nela, com ela, que ela tem defeitos e, exposição a um perigo, soldados gargalhavam pela menor piada.
Quando crianças choram, algo inesperado pode transformar subita
portanto, espera que eu os descubra e a conserte, a remodele. Penso
mente seu choro em riso, o que parece servir de descarga, alívio. Às
que essa concepção se baseia em sua crença de não ter atrativos, de
vezes, sofrendo por uma tristeza intensa, uma pessoa pode explodir
ser inferior, e de que permanecerá encalhada. Pareceu-me que essa
cm riso. Um fator comum parece ser alguma situação incongruente,
crença é alimentada pela analisanda como uma verdade
surpreendente ou inexplicável e, se o sujeito está com alguma dispo-
inquestionável, um destino funesto. Essa experiência analítica pro-
sição para o humor, pode provocar surpresa e predominar o riso, do
moveu a expansão da continência para o seu sofrimento, para as suas
mesmo modo como Freud expôs a respeito do chiste, quando algum
fantasias, estimulou-a a pensar os seus pensamentos e a ressignificar
pensamento ou evento inesperado aparece.
verdades estabelecidas, rever seus pensamentos antecipatórios.
Uma idéia ou um acontecimento podem ser cômicos se não fo-
A conceituação de humor é ampla, há diferentes definições en-
rem graves. Para a mente, o inesperado, uma idéia incongruente que
tre os autores que se ocuparam desse tema. Há autores que entendem
aparece em meio a uma cadeia habitual de pensamento parece ser
que é mais fácil dizer o que não é do que dizer o que é o humor. Em
um forte elemento do cômico, podendo servir de catarse para com
latim, refere-se a fluido, a vigor.
pensar o peso da vida, a rigidez de percepção e do pensamento. Ao
De acordo com Darwin (2000), muito já se escreveu a respeito
intensificar outros afetos, o humor cria espaço para a esperança, para
das causas do riso nos adultos, o tema é complexo; é gradual nos bebês
a compaixão de si ou de um outro, para a benevolência e o otimismo.
a aquisição do hábito de rir. Uma criança de quatro anos de idade defi-
Para Osvaldo Lopes do Amaral, psiquiatra, humor é a disposi
niu-lhe o que é estar de bom humor: É rir, conversar, beijar.
,;ão afetiva fundamental, que confere a cada um de nossos estados de
O riso provocado pelas cócegas resulta de uma ação reflexa,
únimo uma tonalidade. É resultante da interação das emoções e scn
mas é preciso estar em uma disposição para o prazer, pois se uma
1imentos que coexistem na consciência em um dado momento. O
pessoa estranha faz cócegas pode provocar medo. Apesar de
humor, ou estado de ânimo, é um processo complexo que representa
involuntário, o riso não é um movimento estritamente reflexo. Mui-
a síntese afetiva.
tas vezes é utilizado de maneira forçada para mascarar algum estado
Pirandello (1996) escreve que num livro antigo de medicina h;i
emocional, inclusive raiva, vergonha, timidez.
a menção a quatro humores que causam doenças: o sanguinário. o
Quando se faz uma ironia, o sorriso, a risada, sejam reais ou
colérico, o fleumático e o melancólico.
forçados, por vezes se mesclam com uma expressão característica de
Bergson (1987) estabelece uma equivalência entre humoris11H1
desprezo, que pode evoluir para irritação, desdém e, nesse caso, o
L' comicidade. Escreve que o humor possibilita elasticidade, fkxil11
significado do riso pode ser o de mostrar ao ofensor que ele só provo-
!idade onde há rigidez, fixidez psicológica, de máscaras. Enll'11d1
ca divertimento. Se a mente experimenta forte tristeza, podem ocor-
Nin guém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor Ih ~
164 PAULINA CYMIIOI

que o humor permite um conhecimento íntimo, vivo, útil, e concord(l humor. A piada é engraçada se o ouvinte "capta o desfecho ao ver 1111111
com essas idéias do autor. Há outros autores que estabelecem uma ,l'lance de insight uma interpretação completamente nova do 111c~1no
equivalência entre humor e grotesco, satírico, irônico, caricatural rnnjunto de fatos". Os bons comediantes aproveitam para aumentai a
Não é nesse sentido que utilizo o humor na análise, enquanto uma ll·nsão da trama, pois um desfecho prematuro mata o humor.
intervenção que estimula mudança psíquica através da expansão da Os autores definem a possibilidade do humor e do riso: quando
continência. um a pessoa percorre uma via ilusória de expectativas e há uma súbi-
Em Fantasmas do cérebro, Ramachandran e Blakeslee (2002) 1.1 mudança que acarreta uma completa reinterpretação dos mesmos

estudam as estruturas neurofisiológicas subjacentes ao riso. O décimo l.1tos e a nova interpretação não tem implicações aterrorizantes. Aí
\'L' ITI o riso. Ainda conforme Ramachandran e Blakeslee(2002), eles
capítulo desse livro, intitulado "A mulher que morreu de rir", diz res
peito a uma mulher que teve uma crise de riso inexplicável, espantosa. l' ntendem que, para Freud, a risada descarrega uma tensão interna
incongruente, cuja autópsia mostrou ser decorrente do rompimento de , qximida, e que essa idéia faz sentido com o recurso da forçada
um aneurisma de uma artéria na base do cérebro, que comprimiu parte 111ctáfora hidráulica - o acúmulo de pressão encontra uma saída no
do hipotálamo, corpos mamilares e outras estruturas de seu cérebro. ponto de menor resistência, tal como uma válvula de segurança que
Esse riso patológico é raro, a atividade anormal que faz as pessoas ~e abre quando se acumula uma pressão demasiada. A risada propor-
1irem é quase sempre localizada em partes do sistema límbico, um n onaria uma válvula de segurança semelhante para permitir o esca-
conjunto de estruturas que inclui o hipotálamo, corpos mamilares e o pa mento de energia psíquica (o que quer que isso possa significar).
giro cingulado que são envolvidos com emoções. Escrevem <>s autores examinam as bases neurofisiológicas que corresponderiam

Ramachandran e Blakeslee (2002): "Dada a complexidade do riso, das .ios mecanismos de defesa freudianos, comuns a todos nós, presentes
rH l cotidiano de nossas vidas. Entendem eles que o humor presta-se a
individualidades, e suas infinitas conotações culturais, acho intrigante
que um aglomerado relativamente pequeno de estruturas do cérebro esvaziar as tensões, funcionando como um antídoto eficaz para o
esteja por trás do fenômeno- uma espécie de circuito do riso", encon- absurdo da condição humana, até mais do que a arte. A capacidade
trado, segundo os autores, principalmente em partes do sistema límbico de reinterpretar fatos à luz de novas informações ajuda, de acordo
e seus alvos nos lobos frontais. Algumas partes desse circuito lidam com os autores, o indivíduo a ser mais criativo; ver idéias conh~cidas
com emoções, como a alegria que acompanha o riso. Mas identificar a a partir de novos ângulos é essencial, o humor é considerado um
localização de tal circuito, dizem os autores, não esclarece por que o .,ntídoto para o pensamento conservador, catalisador de criatividade.
riso existe ou qual pode ser sua função biológica. A maioria das piadas Ri so e humor, escrevem Ramachandran e Blakeslee (2002, p. 262),
e incidentes engraçados têm a seguinte estrutura lógica: o indivíduo 1al vez sejam um ensaio geral para a criatividade. Eles sugerem que
que conta ilude o ouvinte criando expectativas. E, por fim, introduz piadas, trocadilhos e outras fom1as de humor devessem ser introdu-
uma reviravolta inesperada. A interpretação que surge, inesperadamente, idos muito cedo nas escolas, como parte do currículo formal. Expli-
tem um sentido. Desse aspecto, as piadas têm muito em comum com a car a estrutura lógica do humor não explica por que ele é às vezes
criatividade científica, com o que Thomas Khun chama de "mudança usado como mecanismo de defesa psicológica. Os autores acreditam
de paradigma". Ramachandran e Blakeslee (2002, p. 259) têm obser- que não é por acaso que um número desproporcional de piadas lide
vado que muitos cientistas mais c1iativos possuem um grande senso de com tópicos potencialmente perturbadores, como morte ou sexo. Uma
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor Ir. /
166 p AULINA CYMROI

intelectuais, os preconceitos, os desprezos, as atividades lunativas


das possibilidades considera que as piadas sejam uma tentativa de
snvem para dar vazão ao componente hostil da dinâmica pulsion,tl .
banalizar experiências emocionais perturbadoras, desviando a aten
Em A vingança da esfinge, Mezan (1986) aponta para um dos
ção da angústia subjacente.
tipos típicos do folclore ídiche: O violinista no telhado, que foi rctra
Em Psicanálise, não há um conceito de humor. Em O chiste e sua
lado num belo quadro por Chagall, que figura na capa desse livro, é o
relação com o inconsciente, Freud (1905) escreve sobre o humor como
homem do ar, o luftmensch, que faz malabarismos para não sucumbir
defesa contra o sofrimento, redutor da força do conflito entre as instân
,1 fome. Ele está sempre esperançoso de que a sorte não o abandona-
cias psíquicas, ponte entre os processos p1imário e secundário. Em O
r,í, virá abençoá-lo, e que seu sonho de enriquecer se realizará. Equi -
humor (1927), escreve a respeito do prazer tanto daquele que ouve o
libra-se no telhado, tocando seu violino, numa posição instável, pre-
dito humorístico, quanto de quem tem a atitude humorística. A essên-
l'ária, podendo cair a todo instante, mas apresentando seu virtuosismo
cia do humor está na afirmação da invulnerabilidade do ego diante da!->
mu sical. Em Sigmund Freud - a conquista do proibido, Mezan (2000)
circunstâncias adversas, poupa o humorista do desprazer que elas pro-
escreve que Freud sentia-se intimamente vinculado à comunidade
vocam, ele se põe em superioridade às desgraças da sua existência.
judaica, e entendia que o representante típico dessa comunidade não
Nesse sentido, o superego é utilizado benignamente para tratar o ego,
l; nem o comerciante, nem o estudioso, mas um tipo humano, que é
tal como um adulto faz com uma criança quando está continente para
um personagem presente nas anedotas judaicas, que se caracteriza
suas preocupações, seus medos, seus ideais, seus receios, e tentando
por sua marginalidade e sua inventividade, pela tenacidade, pela as-
minimizar o peso dos sofrimentos que lhe parecem tão assustadores.
l1ícia, pela crença inabalável na vitória do intelecto sobre a força bru-
A ironia, o humor, witz (Freud, 1927), a possibilidade de rir de
ta, e na força obscura e calorosa da convivência grupal.
si, podem ser formas socialmente permitidas de expressão da agres-
Como Freud, Mezan entende que o judeu ri de si e, desse modo,
sividade, da benevolência do superego. São modos de mostrar as in-
busca tolerar as dificuldades da sua vida e as ambivalências com rela-
coerências, as ambivalências, as ambigi.iidades da vida 1• O humor
i,·ão à sua identidade. O simbolismo contido em O violinista no telhado
serve para minimizar o excesso de dor, de rigor consigo próprio e
mostra essa capacidade de rir de si diante da adversidade. Para isso, é
com o outro; o sujeito deixa de ser vítima da própria implacabilidade,
preci so uma condição pessoal, narcísica, alguma continência, para não
dos ideais, do narcisismo, das expectativas do ego. O humor presta-
se evadir na delinqüência, nas formas maníacas, na revolta, na psicose.
se a canalizar, inibir, controlar, conter o impulso agressivo e
() humor judaico é sarcástico, não poupa ninguém. Ele ironiza a tolice,
dimensionar as cobranças do superego; serve de escoadouro da agres-
a fal ta de modéstia, a arrogância, a falsa esperteza daqueles que bus-
sividade na economia emocional. Para Freud, a agressividade não é
l'am a vaidade, a ganância, e que pretendem ser mais do que são. Inten-
entendida como um fator isolado nessa economia, ela se articula à
sifica o prazer de ser como se é. Rir de si promove um bem-estar
sexualidade, ao sistema de ideais, à regulação narcísica, ao superego.
narcísico, reforça as identificações fundamentais, pelo ganho de pra-
A modificação na manifestação da agressividade, a vazão do compo-
1cr em uma existência mais autêntica. Em fnterfàces da Psicanálise,
nente hostil, agressivo, afeta esses componentes, em maior ou em
Mezan (2002) escreve que talvez a função primordial do humor judai-
menor grau. Assim como as atividades esportivas, as artísticas, as t·o já não seja, atualmente, a de propiciar canais para a liberação da
l. "Witz" não é uma piada, de acordo com Freud. Refere-se ao bumor verbal , à frase
rt:pressão, ou para a manifestação socialmente aceita da agressividadl' .
engraçada, porém concisa, ferina , à agres&ão transmitida de modo jocoso.
168 PAULINA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1,,,,

Tampouco o humor se apresentaria fundamentalmente contra a severi pressar com humor sem se menosprezar, apesar do horror vivido, da
dade do superego, ou contra a autoridade política, da religião. Para o revolta, da humilhação sofrida.
autor, a função primordial do humor estaria relacionada à questão Manifestou sua gratidão pelas manifestações afetivas rec.: bi -
identificatória; os judeus riem de si porque se reconhecem nas piadas, tlas, investiu afetivamente em outras relações, apesar das marcas das
há o plano do ego e dos ideais. Do ponto de vista psicanalítico, seria experiências de fome, de miséria, do risco constante da morte, das
justificado dizer que o humor judaico não atenderia as defesas e nem humilhações e das perdas sofridas. Sofia disse que, no presente, suas
corresponderia às sublimações, mas aos recursos identificatórios. A memórias do holocausto causavam-lhe muito sofrimento, sentia-se
destrutividade pode ser canalizada para o ritual, direcionada aos inimi- mal ao recordá-las, mas apesar da fé abalada, experimentava espe-
gos, sublimada. Pode ser contida, deslocada, sonhada. Reprimida pela rança, amor, solidariedade, gratidão por coisas boas tidas na vida e
amizade, pela solidariedade, pela identificação. Pode se expressar atra- pela família que constituiu.
vés do humor, reparando fissuras da auto-imagem, da auto-estima, di - Quando assisti a esse depoimento, chorei, ri. Sofia possui o raro
minuindo tensões. dom do humor. O tom cômico, que por vezes está em sua comunica-
Penso que não é porque o sujeito ri de si que ele é mais feliz , ção, não abranda nem desculpa o horror, a violência, o medo. Ela
porque não se nega constantemente o sofrimento, a frustração na busca demonstra sua revolta, seu inconformismo, mas também humanida-
de adaptação, o custo emocional da ambivalência, os sentimentos de de. E me fez pensar que o terror torna-se ainda mais condenável quan-
humilhação, de rejeição, de frustração que podem estar presentes. do suas vítimas têm um teimoso, persistente e indestrutível senso de
Os processos psíquicos são complexos. humor, amor à vida, alguma tolerância para a adversidade da vida e
O cineasta Spielberg registrou o depoimento de alguns sobreviven- para estados mentais difíceis, por vezes impossíveis, de serem conti-
tes do holocausto da Segunda Guerra Mundial, e assisti a alguns deles. dos, elaborados.
Selecionei este, que chamarei Sobre Sofia, por ter me tocado bastante: Lembram-se da tragédia Rei Lear, de Shakespeare?
Sofia, uma senhora de aproximadamente 80 anos de idade, so- O autor põe na fala do personagem Bobo verdades que só ele
breviveu ao assassinato de sua família quando da ocupação nazista, ousa dizer ao rei: Tu não devias ter.ficado velho antes de ter ficado
permaneceu prisioneira em campos de trabalho forçado durante a sábio, ele disse ao rei, referindo-se à autoridade e à dignidade do
Segunda Guerra Mundial. Em seu depoimento, contou que sua famí- soberano que foram perdidas por sua ingenuidade, inconsciência, falta
lia de origem não possuía riqueza material, e realçou as boas experi- de sabedoria. Falar a verdade é o seu ofício, a intimidade, a participa-
ências de sua infância: a árvore bonita perto de sua casa, o cheiro do ção nos infortúnios do rei conferem-lhe essa liberdade. Em seu
jasmim, os laços afetivos, os esforços de seus pais para darem opor- desvalimento, o rei conta com a companhia do Bobo, que, por meio
tunidade de estudo aos filhos e para que não lhes faltasse alimento. do humor, procura minimizar a mágoa do coração do rei.
Em seu relato, havia rica vida de fantasia, de sonhos, sua fala Para Shakespeare, Darwin, Freud, Bergson, Pirandello, Chagall,
era sentida, autêntica, apaixonada; a narrativa revelava vivacidade, Amaral, Mezan, Ramachandran e Blakeslee e para mim, o humor é
paixão, imensa dor, condição de amor e de humor que, a meu ver, fundamental na vida psíquica. Penso que favorece a flexibiliJade
davam supo1te e continência para seus estados mentais dolorosos. mental, a compaixão, a mudança psíquica, desde que haja continên
Sofia demonstrava capacidade para sentir prazer na vida, para se ex- L'ia. Entendo que, na situação analítica, o humor difere de ironizar, de
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor I "/ 1
170 PAULINA CYMR01

humilhar, de ridicularizar, de desvalorizar. Difere do cômico. Utili- sente. Introduz o inesperado. Todavia, não basta ser inesperado p,11 a
zo-o com o objetivo de aproximar o analisando de seu ser, de sua ser humorístico, pois é preciso que haja um continente interno, uI11
condição humana, para auxiliá-lo a humanizar o seu sofrimento, para sentido no presente. Quando escrevo a respeito do uso do humor na
ajudar na expansão do continente interno. Uso-o espontaneamente, análise, falo de uma formulação analítica que possibilita uma 11111
quando me é possível, no instante analítico. dança de forças psíquicas, que conjetura uma avaliação das condi
Na minha prática clínica, verifico que o humor ajuda a revelar o ções psicodinâmicas momentâneas que se revelam num instante
que somos e como gostaríamos de ser. Introduz a inventividade, esti- relacional, intersubjetivo, presente. Refiro-me à observação, pelo
mula a disponibilidade interna para perceber algo novo, desconheci- analista, de um outro ângulo.
do. Através da incongruência, da surpresa, da perplexidade, do de- Por exemplo, na situação clínica com Tereza, surgiu na
sarranjo do continente, o humor pode estimular a humildade, a com- analisanda a dúvida: Sou tão infeliz e azarada? Ou estou insatisfeita?
paixão por si e por um outro. Desse modo, auxilia a discriminar e a Entendo que a formulação humorada do analista pode aumen-
preservar as proporções, a relativizar, a olhar de ângulos diferentes, a tar a capacidade de continência para a vida psíquica, desde que haja
considerar a dimensão do possível. Ajuda a não superestimar uma receptividade do analisando para ela.
má experiência e desenvolver a simpatia pelo humano. Com o hu- A meu ver, há invariantes na análise: algum sofrimento impulsi-
mor, o que se experimenta não é uma realidade mais agradável, o que ona uma pessoa na busca de um outro, denominado analista; há amor,
se experimenta é a condição humana, que implica experimentar com- ódio, ciúme, inveja, rivalidade, sexualidade, violência. Inicialmente, a
paixão. O humor convida a uma associação por contrários, a trans- pessoa apresenta pouca consciência de que o desconhecimento de si
formar o absoluto em relativo, mostra que não há uma causa e uma colabora para o seu sofrimento. O vínculo analítico gradualmente é
verdade, convida a perceber as contradições. construído, a necessidade do encontro determina o tempo e a extensão
Penso que o humor desmascara as vaidades, as ilusões, as imi- <lo que pode ser conversado. Penso que a possibilidade de um indiví-
duo poder ouvir e se interessar em aprender sobre si, através da cons-
tações inconscientes. Possibilita uma maior tolerância aos opostos
trução de um vínculo de confiança com o outro, seja terapêutica.
em si, ao engano, ao desassossego. Evidencia as contradições entre o
Na sala de análise, procuro disciplinar-me para que a minha
ideal e o que é a vida, entre as aspirações e as misérias humanas. O
atenção não direcione para uma manifestação isolada, ou para a bio
humor desmonta e recompõe, e, nesse sentido, pode estimular o con-
grafia do analisando, que esteja flutuante e dirigida para o campo
tinente interno e a mudança psíquica. Mostra a natureza dividida do
psicanalítico, para a interação presente na sala, onde a unidade é o
homem, sua condição humana e o trágico desta condição.
par, e não o inconsciente do analisando. Concebo as memórias rela
Refiro-me a um particular estado psicológico, que depende da
tadas pelo analisando na sala de análise enquanto expressões de suas
qualidade de um vínculo consigo, e que na análise em alguns instan-
experiências emocionais, criações, invenções, que têm funçõc~, i11
tes relacionais opera e favorece a expansão do continente interno
tcnções, razões, motivações conscientes e inconscientes. O entendi
para a vida psíquica, favorece a discriminação eu-não eu. Ajuda para
mento, a investigação, varia de momento a momento, e dcpcndl'!lt
nos responsabilizarmos, naquilo que nos cabe, pelos nossos senti-
mentos, pensamentos e atos. das transformações dos dois envolvidos, podendo se dar na dirL\ºªº
da evasão ou de um enfrentamento da frustração. O impor1a11IL' t· 11
O humor desarranja um continente e recoloca-o na situação pre-
172 PAULINA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 17:1

estabelecimento de um diálogo informal que aponta para algo desco prios recursos disponíveis, para que, naquilo que lhe compete. cad:1
nhecido da vida psíquica. pessoa seja responsável por quem ela é. Pela associação de hu1111ll
Entendo que uma formulação analítica pode romper, ou não, 01-, com amor à verdade, de empatia com compaixão, creio ser pm,s1vcl
hábitos mentais, o estabelecido. Não sei, antecipadamente, se ela pro- ao psicanalista, quando ele se encontra flexível para acolher o que
picia uma mudança mental criativa ou destrutiva, porque isso depen- transborda violentamente nele, e no analisando, estimular a tolcrân
de do uso que o analisando faz daquilo que ele escuta. A formulação eia para a coexistência de amor=ódio, razão=desvario,
pode favorecer uma expansão do estado de continência, uma abertu- contido=incontido, enquanto vicissitudes humanas.
ra em relação ao antes já conhecido. Como Bion (1973), entendo que Bion apontou continente=contido como um elemento de Psica-
o objeto analítico é criado durante a análise, não é posse de nenhum nálise. Sem me contrapor à sua idéia, que me pai·ece útil à prática
dos participantes da experiência analítica. Concordo com o autor clínica, considero o movimento oscilatório de retração=expansão do
quando ele atribui um valor simbólico, em aberto, ao conceituar o estado de continência, tendo como elo dinâmico o vínculo de conhe-
continente e o contido. O setting leva à pesquisa, ao contato com cimento em direção a O, um fundamento da análise. Nessa dinâmica,
dimensões primárias impensadas, não domesticadas, quando os mo- estão presentes processos mentais desconhecidos, cisões, conflitos
mentos intuitivos podem ser suportados, quando as emoções e os psíquicos, estados mentais primitivos, que podem=não podem ser
impulsos não vazam. Acredito que é função do analista estimular abarcados. Para mim, a finalidade da análise é ter uma experiência
para associar, fantasiar, pensar, estar continente. E se ele encontrar a emocional compartilhada, para o sujeito sentir e ver o que ele experi-
mente do analisando, isso poderá resultar em uma experiência criati- menta na presença do outro, conhecer algo desconhecido de si, res-
va para ambos. A tonalidade afetiva, e não apenas o conteúdo do que peitar a própria individualidade e a individualidade do outro, e isso
é formulado, oferece confiança e agrega, contém as paites fragmen- não é simples e nem fácil de ser vivido.
tadas e incontidas que o analisando expulsa, esvazia de si. Isso acon- Entendo que estar continente pressupõe um estado para sentir e
tece em micromovimentos captados durante a sessão analítica. para tolerar o que sente. Um estado que permite ousar, indagar, su-
Na minha prática clínica, verifico que o humor respeitoso, liga- portar a insaturação de conteúdos, a falta de respostas, e investigar.
do à verdade com amor, à empatia pelo sofrimento do outro, Isso acontece em rnicromovimentos de retração=expansão do esta-
redimensiona a autodestrutividade, o exagero do ressentimento e da do de continência. Trata-se de uma disposição mental, que auxiliada
culpabilização, alivia o peso do superego sádico, põe leveza em uma pela intemalização de um vínculo de continência, possibilita acolhi-
nova percepção, quando a vida não consola. Como Bion, penso em mento, contenção, nomeação da projeção de aspectos amorosos e
um mínimo irredutível, imutável, incurável em cada pessoa, que a hostis para haver discriminação, metabolização, simbolização em
diferencia das outras, que configura o seu estilo, sua maneira habitu- direção ao crescimento. Supõe poder experienciar sem excessiva sa-
al de estar no mundo, aquilo que a distingue enquanto pessoa, que turação de pré-concepções, ele teorias e de compreensões, sem uma
tem continuidade na sua história de vida. Entendo que se trata de busca apressada de explicações para os acontecimentos, para o sujei-
aspectos que operam dinamicamente, podendo haver transformações to sentir e observar o que ele sente, o que ele pensa e o que ele intui
no medo e no estado de continência. Podendo haver nova compreen- da experiência. Trata-se de uma condição emocional para suportar a
são de si, novas alternativas com utilização mais satisfatória dos pró- dispersão, as incoerências, as loucuras cotidianas, a falta de um scn
174 PAULINA CYMROl
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor ,·,
tido perceptível. Enquanto um estado emocional, está fadado à lizmente não é freqüente no exercício da Psicanálise.
mutabilidade, à perda, ao movimento oscilatório PS= D , A narrativa do analisando pode cegar, confundir, enredar o ana -
continente=contido; inclui alguma paciência, uma relativa tranqüili- lista; mas este pode servir-se dela para observar os fatos presentes na
dade, humor, para suportar os estados de ignorância, de dúvida, de sessão, a situação emocional que se apresenta, como, e para que, o
incerteza, de dor, de sofrimento, de frustração, de felicidade, e a cons- analisando narra, qual é a função ele suas lembranças. Pode servir-se
ciência da efemeridade da experiência. Nesses termos, considera-se da narrativa para ver como ela é utilizada pelo analisando, se através
que a percepção, a memória, o pensamento, do analista e do anali- dela ele aprende algo de si, questiona-se, observa o que está à sua
sando, estão sujeitos ao impreciso, ao imprevisto, à oscilação volta. O analista presta atenção se o analisando implica-se na quali-
retração=expansão desse estado de continência. dade da sua existência, nas suas relações e na relação analítica. Se
Contando com a interdependência afetiva e a independência de de percebe o efeito de seus movimentos no outro. Se ele aceita a
pensamento, analista e analisando podem exercer a potencialidade inevitabilidade da temporalidade, da transitoriedade dos estados emo-
para o estado de continência que se apresenta neles mesmos. A fun - cionais . Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela, só
ção de continência, que ora se apresenta ao analista ora se apresenta Carolina não viu ... , canta Chico Buarque de Holanda.
ao analisando, a meu ver, possibilita a transformação de emoções em Entendo que o modo como o analisando se relaciona com ele
imagens, em sentidos, em pensamentos, em novas percepções. E pres- mesmo e com o analista, o que se passa entre eles quando se encon-
supõe uma demarcação de limite que organiza o espaço psíquico e o tram na sala de análise, seja o objeto de análise. Dessa perspectiva, a
discrimina do mundo exterior ao psiquismo. observação na situação analítica não produz casos comparáveis, nem
Procuro atentar se as minhas formulações favorecem a evolu- visa às estatísticas, ao coletivo. O campo analítico oferece dúvidas,
ção das emoções e o aprendizado através da experiência emocional investigação, diálogo, problematizações, para quem vem buscar apoio,
em curso. Às vezes, observo em mim, e no analisando, o movimento aliança, solução, confirmação para os mitos pessoais, para teorias,
retração=expansão do estado de continência. Verifico como o anali- para verdades inquestionáveis e para certezas. Penso que a atitude
sando me utiliza, as funções que ele me outorga, como se vincula analítica supõe estar continente para a idéia de que o conhecimento é
comigo, como explicita o continente interno para os seus conteúdos. interminável, a verdade é provisória e compartilhada. E que a análise
Se ele pode servir-se do continente que é estimulado. Procuro não desenvolve-se a dois, ocorre no presente, não é predeterminada.
perder a dimensão do que se passa na sala de análise, não reduzir a
pessoa a uma faceta para não aprisioná-la em estereótipos pois estou
convencida de que o ser está sempre pulsando e que os aspectos que 3. Experiência clínica: Paulo - "Tornei-me um
necessitam ser contidos e desenvolvidos são expressos nos movi -
mentos que o analisando exerce sobre o analista. Isso se acompanha
ébrio, na bebida busco esquecer..."
de ansiedades, de sentimentos de impotência, de aturdimento, decor-
rentes do contato com o inusitado, o desconhecido, o novo, e de na- Paulo contou-me que esperou com ansiedade pelo honírio de
tureza impalpável. Tenho a consciência de que uma formulação que nossa sessão; na véspera, ficou assustado, e ainda sentia-se assim .
abarca o objeto analítico, sua intencionalidade, sua intensidade, infe- l~stava em sua casa vendo um filme no vídeo com outros casais de
176 PAULINA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Hwnor 171

amigos e pensou como seria bom se tivesse uma amante. Imaginou- aprender algo sobre nós; ajudado pelo analista, o analisando podr
se tendo um caso amoroso com uma das amigas que ali se encontra- ver como sente e reage às suas emoções, em vez de somentL'
va. Disse que se excedeu na bebida, e que isso ocorria quando sentia descarregá-las ou de falar sobre elas. Acontecimentos são narrados
a necessidade de se descontrair em situações sociais, as mulheres o pelo analisando e servem de modelos para o analista compreender
perturbavam, estimulavam suas fantasias sexuais, não sabia como como ele pensa, sua visão de mundo e de si mesmo; servem para o
conversar com elas, sentia-se inibido. Temeu uma reprovação de sua analista ver se ele apreende algum sentido de suas experiências, se
mulher por ter bebido demais. Relatou que, quando se deitou, teve percebe sua capacidade de sonhar, se pensa em alternativas para situ-
uns pensamentos horríveis, um delírio, achou que sua mulher ia matá- ações frustradoras, ameaçadoras. A narrativa do analisando pode evo-
lo quando ela entrasse no quarto; ficou apavorado com essa idéia, e luir, ou não, para uma dimensão de pensamento derivado do contato
surpreso com a reação dela que notou que ele não estava bem, deu- com a experiência emocionalmente viva e compartilhada.
lhe um tranqüilizante, foi carinhosa com ele. Mostrou-se preocupa- Quando o componente moral do analista e do analisando dimi -
do com esse delírio. nui, ambos podem aproveitar para conhecer algo novo, a partfr da
Com espontaneidade e humor, falei-lhe que, naquele momento, experiência conjunta.
ele convivia comigo, e não me parecia que ele experimentava so- Saliento que a atenção e a memória são necessárias para a so-
mente medo, mas também intimidade, confiança, cumplicidade. Dis- brevivência pessoal, para o convívio social e a adequação pessoal.
se-lhe, também, que ele disse que podia ficar sossegado com seus Não me refiro à memó1ia obstrutiva, ruminante, mas aquela ligada à
bons pensamentos, mas assustado com os pensamentos horríveis. sabedoria de vida, ao aprendizado derivado do contato com a emo-
Ele se surpreendeu com essa formulação, riu e falou que pela ção. Quando a memória não está saturada de preconceitos, há espaço
primeira vez pensava nisso, que eram somente pensamentos, fossem para sentir e para conhecer. A meu ver, esse é o campo da análise, o
estes bons ou ruins; riu da nova idéia e reconheceu que, por ora, qual favorece o da vida.
estava sofrendo devido a algo inexistente, percebeu os sentimentos Voltando à experiência com Paulo: Na minha visão, na sessão
presentes que lhe apontei. Preocupou-se pelo fato de não ter diferen- l'le não experimentou só medo, pavor; a qualidade do vínculo comi-
ciado pensamento e acontecimento, e por verificar seu medo de ter go comportou confiança, cooperação, cumplicidade, intimidade, e
pensamentos. Paulo disse: São os meus pensamentos, não é? Dos L'Sses sentimentos favoreceram-me para escutá-lo e para ele me escu-
dois jeitos são só pensamentos! O medo dos pensamentos é que as- tar. A minha condição emocional, e a dele, ajudou-nos a examinar-
susta, naquela hora o medo é grande e a gente não pensa que são mos os sentimentos presentes, ajudou-o a estar mais continente para
pensamentos ... os seus pensamentos, para as suas fantasias, para o que ele denomi -
Pensei também que na sessão havia medo, dos dois, do analista, nou de delírio.
por não saber o quanto poderá contribuir com o analisando. Do ana- Numa sessão há evoluções, transformações, que podem = não
lisando, devido a suas fantasias, a seus temores de conviver, de con- podem ser elaboradas. Tive a impressão de que quando relatou os acon-
versar com uma mulher. Na sessão, os riscos e temores mencionados tecimentos de sua vida, Paulo não associou suas experiências de frus-
por ele estavam ausentes? tração, de carência, de medo, com sua necessidade de se anestesiar por
No setting analítico, ele e eu nos experimentamos e podemos nào contê-las e pensá-las. Na continuidade da sessão, Paulo expressou
178 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1 /')
PAULINA CYMROI

: sua preocupação com o relacionamento com as mulheres, disse sentir p.u·a essa condição, suspeito, a partir da minha experiência, qul' 1,11
;Se incompetente para corresponder e para conviver com elas. condição seja criada, ou não, na evolução da sessão.
Incompetente para corresponder, para conviver? A que isso Sl' Quando me refiro à utilização do humor, do riso na análise, asso
ifefere? l'ÍO-a à qualidade do vínculo com o analisando, à tonalidade da voz, ao
Disse-lhe que ele freqüentava a análise com regularidade, con vrnculo de conhecimento e à possibilidade de expansão de continên
--vivia comigo, uma mulher e compartilhava comigo suas experiênci eia. O humor é uma forma aceita da expressão da agressividade, esco-
~s, dispunha-se a me escutar, colaborava conforme as suas possibili .ttlouro desta na vida emocional, manifestação da benevolência do
dades. E, de modo humorado, disse-lhe que eu não me lembrava dl' ,uperego (Freud, 1905, 1927), expressa uma maneira de viver e de ver
(ter reclamado com ele da sua participação. Completei dizendo: Não n mundo. Tomo-o como um dom raro e precioso, relevante para a com-
.§OU tão exigente no relacionamento, no amor! preensão dos processos mentais, instrumento privilegiado para a in-
Paulo achou graça, riu, e reconheceu o quanto ele cobrava dek vestigação da dinâmica mental no setting analítico. Uma fonnulação
mesmo e em seus relacionamentos. A idéia dele é que ele não humorada, apoiada no vínculo de cooperação e de conhecimento, que
correspondia, por se sentir intelectualmente inferior, e que só se ek respeita o sofrimento do analisando, pode favorecer a reorganização
9e anestesiasse podia sentir-se mais desinibido com as mulheres. Mas psíquica na medida em que modifica a condição da identificação
i:::emia pelas suas fantasias sexuais. Ele receava exceder-se na bebida, projetiva, a severidade do superego; pode proporcionar uma
e acreditava ser este o seu problema. flexibilização de defesas, a modificação na qualidade emocional da
A bebida era a sua alternativa para se relacionar e ficar mais relação do sujeito com ele mesmo e com outros, favorecer a compai-
despreocupado quando não estava continente para a vida psíquica . xão, dada a expansão da continência para a vida psíquica.2
,Acreditava que não podia ter a liberdade de sentir, fantasiar. Não Como exemplo, o amor fica mais barato, pois se exige menos
i:,ercebia que nas sessões de análise ele o fazia, sem reconhecer. de si e do outro no funcionamento mental pressuposto na posição
Ele disse precisar da bebida para estar com as mulheres; entrc- depressiva.
t~nto, quando se encontrava comigo, não bebia, conversava, e podia Quanto ao uso do humor na investigação analítica, não me refi-
I'ensar no que sentia. Na evolução da sessão, ele se mostrou mais ro ao humor sarcástico, que não poupa, que se deleita com a ignorân-
e ontinente para quem ele é. <.:ia e a arrogância. Penso no humor que auxilia a liberação do conti-
A hipótese que apresento é que para ter existência, para encontrar nente para a pessoa se acolher, se humanizar, estar continente para o
algum sentido de existir, é preciso ter alguma continência. Na análise, que ela pode ser, para usufruir de uma existência mais autêntica com
o analista precisa estar continente para aquilo que o analisando sente, o seu ser, ter compaixão por si mesma e pelo outro. Apesar de saber-
vive, para ajudá-lo a liberar o continente interno. Ter desenvoltura para mos não ser possível uma pessoa ser o que ela não é, este saber nem
exercer o seu trabalho, abstendo-se de persuadir, de combater idéias sempre se acompanha de sentimentos correspondentes.
ct_jferentes das suas, de ter projetos predeterminados. Isso exige con- Acredito que o humor ajuda a diminuir o julgamento moral
tenção emocional, dos impulsos e da dimensão moral, para que o ana- acachapante, rigoroso, humilhante, acusador, reprovador. Auxilia a
lisando se aproxime dele mesmo. Quando penso em estar continente,
niio me refiro a uma pré-condição, a formas definidas ou permanentes 2. A respeito desse tema, consulte Mezan (]986; e Godoy Moreira ( I 992)
180 PAULINA CYMROI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1K1

refazer as fissuras da auto-imagem, a vivência de compaixão pelas do a experiência emocionalmente vivida, sentida. O uso de cita
próprias falhas e pelas falhas alheias, ultrapassa o sentido do trágico ções, de chistes, de analogias, de histórias facilita a comunkaçúo
proporcionando maior coesão do ser. Torna-se um recurso vantajoso do analista com o analisando e o exercício cio estado de continên
para o analista nos momentos em que a dor mental mobiliza resistên- eia, a elaboração psíquica.
cias e retração do continente interno.
A atitude humorada do analista não atende somente a resigna-
ção; ela é transgressiva, pois afirma a condição de suportabilidade do
sujeito diante de circunstâncias adversas de sua vida. O humor 4. Experiência analítica: Giovana - E cada qual
humaniza ao diminuir a perseguição, age sobre o ressentimento, so- no seu canto, em cada canto uma dor...
bre o inconformismo, denuncia a hipocrisia do código moral, intro-
duz o estado depressivo, a humildade, a esperança; possibilita mais Lembrei-me ele uma sessão com uma analisanda, Giovana, na
autonomia do sujeito diante das exigências superegóicas, menor su- qual ela se apresentou triste e desesperançada devido ao término de
jeição aos impulsos; e estimula a compaixão, a expectação, a conti- um namoro que, de acordo com ela, ocorreu contra a minha vontade.
nência para a dor, para a perda. Sinto que você compreende o que eu estou sentindo, mas você é ca-
Na análise, o vínculo de confiança, de cooperação, de conheci- sada, deve viver bem e não ter esses problemas de relacionamento,
mento pressupõe liberdade, disponibilidade para conhecer, curiosi- de frustração amorosa ...
dade. E ajuda para que o humor compartilhado colabore para haver Respondi, num tom humorado: Que maravilha de pessoa eu
alguma continência para o paradoxo, para o incongruente, para o sou para você!
unheimlich (estranho familiar, conforme Freud). Utilizado com pru- Ela riu, rimos juntas, e na continuidade da conversa ela pode
dência e com responsabilidade pelo analista, o humor é veículo para estar continente para a sua dor, para as ansiedades ligadas à solidão e
o fluxo emocional, ajuda a ampliar a tolerância para a natureza hu- para a consciência dos riscos que nenhum mortal está imune quando
mana, para a contenção e a tolerância para aquele mínimo incurável se relaciona.
e imutável que nos constitui. O humor auxilia na transformação da
idealização em percepção mais real da condição humana, serve de
amortecedor diante de realidades ou verdades penosas.
O humor compartilhado na sessão analítica ajuda a expandir o 5. Experiência psicanalítica: Caroline - Seja
respeito à individualidade, serve para humanizar, flexibilizar defe- você quem for, seja o que Deus quiser...
sas, o que não significa estar mais fraco de espírito, mas fazer o pos-
sível no momento e enfrentando as conseqüências. Tive poucos encontros com Caroline quando, numa sessão, ela
Penso que o humor utilizado com responsabilidade e com o expressou a sua convicção de haver algo errado com ela, alguma
amor à verdade psíquica aproxima analisando e analista. Ressalto neurose, algum defeito, e a certeza de que a infelicidade amorosa
aqui a importância da reação espontânea e sincera do analista, de estava reservada para ela. Pediu-me que a diagnosticasse, pois queria
sua possibilidade ele exercer o seu método com liberdade, facilitan- saber o grau da sua neurose, da sua anormalidade.
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1111
182 PAULINA CYMROl

desrespeitar, diz verdades. A graça toma-se um auxilio para a exp.111


Contei-lhe uma história: Uma mulher foi ao seu analista, como
são mental, para perceber as angústias, as fantasias, o~ mcdm,, us
fazia há dois anos. Tocou a campainha do consultório, no horário da
pensamentos produzidos por ela; pode ajudar a tra1sformar o sol11
sua sessão, e como o analista não respondeu, perguntou a um vizi-
mento, humanizando-o. A pessoa transforma-se através do humo1.
nho, que ali se encontrava, se ele sabia o que podia ter ocorrido com
com ele apren.de, aproxima-se de si mesma ao se sobrepor às ilusúc:-.,
o seu analista. O vizinho respondeu: "Foi internado. A senhora não
viu que ele está louco? Todos aqui na rua sabem disso, dona!" às racionalizações, às decepções, às alucinações.
Achar graça de si, sem se desvalorizar, aponta para um aspcclll
Num tom humorado, falei-lhe que ela me transformou num ser
criativo que permite ao indivíduo acolher aspectos de si mesmo, an
poderoso. Recém-chegada, iniciou um relacionamento comigo, tí-
tes não reconhecidos, não aceitos. Acredito que o humor comparti
nhamos pouca convivência, eu não sabia quase nada dela, e nem ela
lhado na análise introduz descontinuidade, desordem, e, simultanea
de mim. Achei interessante o fato de que, apesar de nos relacionar-
mente, estabelece uma reorganização, alguma integração. Ajuda a
mos tão pouco, ela me conferiu, a uma desconhecida, o poder de
construção de um sentido antes não criado. É ao não elaborado, ao
julgar o quanto ela era louca, ou não! E pareceu-me que o meu vere-
dissociado, ao reprimido, ao recusado, aos modos primitivos do fun-
dicto era inquestionável - a palavra divina! Disse que me parecia que
cionamento mental que o humor se dirige enquarrto expressão de
ela dividia as pessoas em as normais e as anormais. De maneira mui-
humanidade, de cumplicidade, de transgressão. Reações emocionai~
to humorada, perguntei-lhe qual tinha sido o tratado de Psicanálise
de perseguição, de depressão, de medo, de surpresa, de confusão
que ela consultou para chegar a esse raciocínio.
acompanham o riso, e são transformadas por ele. Há um trabalho
A analisanda riu muito dessa história e das minhas observa-
mental necessário para que novas experiências acomodem-se a pa-
ções. Percebeu a sua necessidade de me idealizar e de se submeter ao
drões mais estabelecidos de funcionamento mental. Elaboração psí-
meu julgamento. Percebeu que, apesar de me conhecer muito pouco.
quica, alívio, conhecimento decorrem do humor compartilhado na
ela não duvidou da minha competência, dos meus critérios, porque
análise, exigem um trabalho mental.
você é da Sociedade de Psicanálise! Notou que o seu critério de es-
Utilizo-me de formulações humoradas quando me é possível,
colha não era suficiente para eu ser útil para ela, ou ser uma autorida-
espontaneamente; e verifico que elas operam como moduladores da
de inquestionável em sua vida.
dor e da euforia, da defesa maníaca. Observo que o humor partilhado
Pudemos conversar sobre suas ansiedades e fantasias ligadas
serve de contensor da turbulência emocional e corrtribui para a ex-
aos seus ideais de equilíbrio, de perfeição; à idealização do analista,
pansão do estado de continência, possibilita a mudança catastrófica
à sua necessidade de constituir autoridades e se submeter a elas, com
(Bion, 1965) enquanto permite o vínculo de conhecimento em dirc
conseqüente perda de autonomia, de crítica, de opinião próp1ia.
ção à O. Contribui para a indagação, para o desenvolvimento psíqui
Disse-me Caroline: Quando eu cheguei aqui hoje, eu já tinha
co, para a elaboração dos lutos; permite a reintrojeção do projetado,
construído uma fortaleza, sem luz ou saída, um drama; e vejo que
o aumento da tolerância à frustração, o pensamento em lugar da emo
pode ser diferente, é como um caleidoscópio, se muda o meu estado,
ção impensada, da violência. Possibilita a percepção de que aqui lo
se posso ver com humor, muda o ponto de visão ...
que faz rir se, por um lado, parece absurdo, por outro, é familiar.
Creio que a formulação humorada deve se acompanhar de com-
Na análise, considero a experiência fértil do humor associada a
paixão. Trata-se de uma comunicação que, sem solenidade e sem
[84
PAU LIN A CYMROI

expansão do continente interno, à oscilação de estados mentais


primitivos=não primitivos, ao vínculo de conhecimento. Propicia ao
sujeito uma nova experiência consigo e com outros. Quando o conti-
nente se exerce, ajudado pelo humor, o desespero, o estranhamento, a
vivência de encurralamento, de desconfiança podem dar lugar à confi-
ança, à liberdade, à espontaneidade, à esperança, à expectação, à força
interior alcançada pelo aprendizado através da experiência emocional.
E nesses instantes, analisando e analista não são os mesmos, eles po- CAPÍTULO V
dem abarcar mais experiências emocionais, podem pensar. Inconclusão - O medo de Seu Medo
O continente toma-se receptivo quando a compaixão ocupa o
lugar da recriminação, e o contido fica mais tolerado 3 • A qualidade
da nova emoção que surge a partir do humor colore a relação e o
vínculo predominante. O vínculo de confiança, de respeito, de liber-
dade, favorecido pelo humor, possibilita que o analisando e o analis-
O medo de Seu Medo é o título do conto de autoria de Toledo
ta convivam sem um anular o outro, sem prejuízo para ambos.
Piza. Sirvo-me do mesmo pois, a meu ver, ele ilustra a minha idéia a
respeito do estado de continência para a vida psíquica enquanto um
fundamento da análise.

Não se sabe nem quando e nem por que os ataques co-


meçaram naquela pequena aldeia. Muitas histórias dife-
rentes eram contadas. E, às vezes, as diferenças eram
tantas quejá não se sabia o que de fato havia sido acres-
centado ou modificado nos relatos, com o passar dos anos.
As crianças escutavam muito atentas e com os olhos ar-
regalados a descrição do enorme dragão alado que so-
brevoava a aldeia queimando a plantação, afagentando
os animais aterrorizados até os seus antepassados mais
valentes. Cavaleiros de armaduras brilhantes e espadas
afiadas haviam partido com o firme propósito de matá
lo. Nunca retornaram. Contavam que suas cabeças havi
am sido cortadas por uma lâmina de jogo expelida pelos
ventas do dragão.
3. Consulte, a esse respeito, Cristóvão (1999).
Com o decorrer do tempo, ninguém mais se avenll11m·a"
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor IH
186 PAULINA CvMR01

sair a caçá-lo. Em vez disto, os aldeões se tranca.fiavam suas garras e ele mal sabe segurar uma espada ...
em suas casas, transformadas em verdadeiras fortale- Ulisses fingia não escutar. Afinal, o que perderia"! Suo
zas. Uma muralha de pedras contornava toda a aldeia, vida? Que vida? Já estavam todos enterrados vivos ,\"<'Ili
isolando-os. Nenhum forasteiro os visitava e assim dei- que se dessem conta.
Em uma manhã fria e enevoada, Ulisses partiu. Montava
xaram de receber notícias de aldeias distantes. Os cam-
seu cavalo branco que ia a passos lentos impostos pela
pos de trigo e cevada e os extensos vinhedos que subiam
idade avançada. O corpo franzino se mantinha ereto gra
as encostas da montanha se reduziram a uma pequena
ças à armadura que vestia e, na cintura, carregava a l'C' ·
plantação, nos arredores das casas. O rebanho de ca-
lha espada do seu avô.
bras e ovelhas diminuiu tanto que cabia no estábulo que
Depois de horas cavalgando, Ulisses acabou se distrain
outrora só abrigava os cavalos. Em quatro pontos da
do, encantado pela flora e fauna dos lugares. lnterrom
muralha construíram torres, onde sentinelas atentos se
pia a caminhada, em alguns momentos, apenas para ou-
postavam vigiando o céu. Quando o sol se escondia, tra-
vir a sinfonia das aves ou para extasiar-se com as cores
zendo antecipadamente a noite, e o vento zumbia abrin-
de uma flor aninhada nos galhos de um arbusto. Como
do as copas das árvores, arremessando galhos e arbus-
podiam abrir mão de tudo aquilo? - pensava. Como po-
tos para o alto, os sentinelas escorregavam pelos alça-
diam excluir de suas vidas o contato com tão exuberante
pões alardeando a aproximação do dragão. Tudo era ra-
natureza?
pidamente recolhido e portas e janelas trancadas com
Um barulho ensurdecedor o fez estremecer. Parou sobres-
travas de ferro. Ninguém se arriscava a olhar para fora.
saltado e tentou localizar a sua origem. Escutou galhos
Diziam que a luminosidade das labaredas de fogo cega-
se quebrando e ergueu os olhos para o céu. À sua frente,
va os mais curiosos. Aguardavam o dia voltar e o nddo,
apareceu um dragão gigantesco. Balançava a cabeça e a
daquilo que imaginavam ser o bater das asas, desapare-
cauda enorme varria o chão jogando para o alto tudo
cer para retomar o trabalho. Aí se deparavam com os
que encontrava em seu caminho. A sua figura envolta
estragos provocados pelo monstruoso dragão. Parecia
naquela nuvem de poeira era assustadora. Ulisses sentiu
que um furacão havia passado pelo lugar. Às vezes, até
um calafrio percorrer sua espinha. Começou a tremer e
pedaços da muralha eram arrancados. Demoravam dias
a suar. Sentia-se como um boneco de cera derretendo
para colocar ordem na bagunça.
diante do fogo que jorrava do focinho do animal. O dra-
Um certo dia, Ulisses se encheu de ficar preso entre mu-
gão rugia, sacudia-se todo, investia o pescoço para fren
ros e paredes e resolveu ir atrás do maldito animal. O
te e o arremessava em seguida para cima. Ulisses per
vento espalhou a notícia.
manecia paralisado. Quanto mais estardalhaço o dm
Ulisses vai atrás do dragão.
gão fazia, mais petrificado Ulisses ficava. Os minutos S< '
Quem? Ulisses?
passavam e a situação não mudava. Depois de uma hom.
Ah! Ah! Ah!
o dragão estava exausto. O rabo do bicho mal se le1•011
Ele está louco!
tava, as chamas se transformavam em fumaças e ''ª!'º
Os mais hábeis guerreiros não conseguiram escapar de
188 PAULINA (YMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 18'1

res e até a sua cor clareava como se ele estivesse prestes tro. A trégua não era muito confiável.
a desmaiar. Aí, ele não se conteve e disse: Depois de um certo tempo, o barulho da água cha111011 11
Desisto! Por que você não foge? atenção de Ulisses. Aguçou os ouvidos. Estava próximo
Ulisses, com cãibras no corpo, arregalou os olhos um Apesar do cansaço, a garganta seca determinou os 11w
pouco mais não acreditando no que ouvia. Ele falava ... vimentos. Levantou-se bem devagar, sem desgmdar os
Ele fàlava a sua língua. E esta mudança toda ... o que era olhos do dragão, e subiu na rocha. A pequena cachoeira
aquilo? Cadê aquela fúria que quase o matou de medo? de águas cristalinas era um convite irresistível. Escorre
Encenação? ... Enquanto os pensamentos o atropelavam, gou pela encosta lisa de pedra e caiu sentado na água. O
a palidez ia desaparecendo e a cor retornava a seu rosto. dragão, acompanhando-o de uma certa distância, repe-
Mas não só voltava. Intensificava-se. Cada vez mais. Até tia o que ele fàzia. No entanto, sua queda na água quase
ficar roxo de raiva. transformou a pequena lagoa em uma poça. Um véu de
Haaaaaaaaaaa! - gritou enfurecido. água levantou-se e encobriu tudo que estava ao seu re-
O dragão se assustou e, imediatamente, diminuiu de ta- dor: Ulisses gritou e o dragão cresceu de novo.
manho. Você me assustou outra vez! - disse Ulisses.
Ulisses esfregou os olhos e ao reabri-los constatava que É, eu senti. - respondeu o dragão.
de fato o gigantesco dragão não estava tão grande as- A voz mansa do dragão tranqüilizou-o. Refeito do susto,
sim. Desconcertado, gritou: Ulisses se debruçou para molhar a boca ressecada. Não
Como se atreve a ser tão assustador? E por que você satisfeito, mergulhou toda a cabeça dentro d'água. Com
está encolhendo? um pequeno movimento do pescoço, percebeu que o dra-
O dragão não respondeu. Apenas inclinou a cabeça e gão também estava com a cara enfiada na água. Ergue-
enterrou-a no pescoço, como se não soubesse explicar a ram-se simultaneamente.
metamorfose. Esse bicho está me imitando - pensou Ulisses.
Ulisses arjàva. Sem tirar os olhos do dragão, tentava se Tomou um pouco mais de água. O dragão também bebeu
controlar. Tudo aquilo era muito estranho. Esperava tra- mais água. Cada gesto que fazia o dragão reproduzia.
var uma luta feroz com um dragão e, quem sabe, levar Ulisses, intrigado, perguntou:
para a aldeia uma presa como prova de sua vitória ... E Por que você está me copiando?
agora? Aquele bicho era muito esquisito. Claro que ele O dragão deu de ombros sem responder.
era assustador. Mas, parecia que nem tanto. Ulisses saiu da água e foi sentar-se acompanhado de perto
Um pouco mais calmo, com o repentino encolhimento do por aquele que, agora, parecia ser a sua sombra.
dragão, resolveu tirar a armadura que parecia ter O tempo passava, enquanto Ulisses pensava no que iria
triplicado seu peso e descer do cavalo. As pernas ainda fazer. Cada vez que olhava para o dragão tinha a nítida
um pouco trêmulas não o levaram muito longe. Sentou- impressão que ele estava diminuindo de tamanho. Se con
se recostado em uma rocha. Estava muito cansado. O tinuar assim, daqui a pouco ele vai estar tão pequeno
dragão suspirou e sentou-se também. Um vigiava o ou- que mal poderei vê-lo - pensou.
190 Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1•11
PAULINA CYMROT

O dragão parecia quieto, aguardando. retornar para conhecer melhor aquele mágico l11J.!."'
O sol se despedindo arrancou Ulisses de seus devaneios. Mal havia dado alguns passos à frente , lembro11 •,\"<' i/('
Tenho que ir embora - disse. algo que o tempo todo lhe perturbava. Virou-se rapid"
Já? - perguntou o dragão. mente, mas o dragão já havia sumido.
Eu preciso voltar à aldeia. Como.fui me esquecer de perguntar sobre isto? ... - disse
Mas eu nem sei o seu nome!? em voz alta.
Ulisses. Seu Ulisses - completou, com ares cerimonio- Não importa. Acho que sei a resposta.
sos. Lembrava-se que, em sua aldeia, eram assim cha- Sorrindo, partiu. Agora entendia porque Seu Medo au-
mados aqueles que deveriam ser respeitados pela sua mentava e diminuía de tamanho.
sabedoria e coragem. E Ulisses cresceu um pouco mais.
E o seu nome, qual é? Angela M Sieiro de Toledo Piza
O dragão fez uma pausa, em seguida uma reverência e Fevereiro de 1999
respondeu: Seu Medo.
Meu medo? Como assim, meu medo? - -perguntou Ulisses, Dentre as possibilidades abomináveis, crescimento e
arqueando as sobrancelhas. E viu o dragão começar a maturação são freqüentemente temidos e detestados.
crescer. Essa hostilidade ao processo de maturação torna-se
Seu Medo - repetiu o dragão. mais marcada quando a maturação parece envolver a
Ah, sim! Seu Medo! Ufa! Que susto! Pensei que estivesse subordinação do Princípio do Prazer e o surgimento do
falando do meu - completou aliviado. Princípio de Realidade. Não se pode dizer que a mu-
E o dragão voltou a encolher. dança seja odiada devido a envolver perda e prazer
Agora preciso ir. Já está escurecendo e eu tenho uma porque a atividade do Princípio do Prazer significa ati-
longa caminhada pela frente. O pior é que ninguém vai vidade de dor.
acreditar que eu encontrei você e sobrevivi. Quanto mais a análise progride, mais o psicanalista e o
Por que não? analisando adquirem um estado em que ambos contem-
Porque acham que eu seria engolido pelo medo. Quer plam o mínimo irredutível que é o paciente. (Mínimo
dizer, por você. irredutível incurável, porque o que se vê é aquilo sem o
Ah, sei! Mas, com certeza você encontrará um jeito de que o paciente não seria o paciente.)
contar a sua história. W R. Bion, ln: Atenção e interpretação
É, pode ser - disse Ulisses não muito convicto. E você? (1973, p. 59-60 e 65)
Eu? Eu estarei por aí.
Sempre? Utilizo-me das idéias contidas no conto de Toledo Piza e das
E o dragão deu de ombros, novamente reticente. idéias de Bion para sintetizar e apresentar algumas considerações
Ulisses pegou a sua armadura e a sua espada; montou finais a respeito das hipóteses apresentadas neste trabalho.
no seu cavalo e despediu-se do dragão, prometendo Paulinho da Viola compôs a música Timoneiro, que começa as-
192 PAULINA CYMKOI Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 11)\

sim: Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar. .. Caeta- supõe que há a indissociabilidade de pensamento e emoçao, entrL'
no Veloso cantou que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é... processos conscientes e inconscientes. O coração tem razões que u
Julgo que somos o que o nosso desenvolvimento emocional nos per- própria razão desconhece, disse Pascal.
mite. Cada pessoa apresenta o seu estilo, as suas angústias funda - Podemos nos separar de outras pessoas, mas não podemos nos
mentais, os seus recursos e os seus limites, as suas improvisações desfazer de quem somos. Temos e não temos uma apreensão de quem
conscientes e inconscientes, os quais são testados a cada momento. somos, do que somos capazes e dos nossos limites, o registro incons-
Concordo com Paulinho da Viola na idéia de que não escolhe- ciente opera o tempo todo. Em lugar da manutenção da ilusão arro-
mos quem somos. Sem desmerecer essa primorosa música e, no exer- gante de que governamos o nosso ser, a análise pode favorecer o
cício da Psicanálise, sem deixar de oferecer-me como um continente estado de continência, pode aproximar o sujeito da sua singularida-
para o sofrimento do analisando, quando isso me é possível, penso de, auxiliando-o em alguma contenção e para uma utilização melhor
que é função do analista favorecer condições para o analisando per- da mesma. Suponho que temos na mente funções mais desenvolvi-
ceber: Que suas crenças no destino funesto (ou em outro), no fator das, outras menos. No psiquismo, o possível e o virtual estão cons-
constitucional, no erro do outro (sem se incluir como autor dos seus tantemente entrelaçados. Os valentes e os covardes, os discretos e os
sentimentos, dos seus sonhos, dos seus pensamentos, ou como parti- tolos, os perspicazes e os ingênuos, os hábeis e os ignorantes, os
cipante das suas relações), reforçam a vitimização, o apoio em fo1tes e os fracos têm a mesma afinidade e parentesco. Falo da condi-
concretudes, as tentativas de racionalizações, o incremento de senti- ção trágica do homem, de sua natureza dividida. Entendo que somos
mentos de injustiça, de ódio que colaboram para a evasão de respon- agidos por razões que desconhecemos, mas que sinalizam algo do
sabilidades pessoais, naquilo que compete ao sujeito; intensificam a nosso ser. Penso que os processos cognitivos são inseparáveis dos
adesão à versão persecutória, à versão melancólica, na tentativa de processos emocionais; quando racionalidade e emoção dissociam-
explicar o que se passa consigo. O analisando, então, não alcança, ou se, a pessoa perde o diálogo íntimo com ela mesma, não pode estar
repudia, a consciência de que os seus movimentos, as suas escolhas, continente para a realidade psíquica, para o selvagem, para o primiti-
o seu modo de existir, de sentir e de pensar, com suas transforma- vo que a constitui.
ções, interferem e constituem a qualidade da sua existência. Com a A meu ver, numa análise, no analista e no analisando há obstru-
certeza da vitimização, ele nega que há movimentos psíquicos que ção quanto à observação, à atenção, há depósitos de vivências. Bion
rejeitam conteúdos e afastam-no de seu universo mental; não perce- mostrou-nos como a mente sonha quando desperta, e não só durante
be que há esquecimentos, cisões do ego e do objeto, desejos incons- o sono. E como isso é fundamental para a atenção e a comunicação
cientes que têm efeitos psíquicos e que se ramificam em muitas co- do sujeito com ele mesmo e com outros. Os processos conscientes e
nexões, com ecos em suas relações, em suas ações. inconscientes se mesclam, a consciência desperta corresponderia ao
A teoria kleiniana supõe que as fantasias inconscientes afetam sonho, como a alguma percepção da realidade psíquica.
a percepção, constituem as relações com os objetos, as crenças, as A capacidade de criar imagens é, segundo Bion, apenas um fa-
convicções. Emoções, angústias constituem essas fantasias, e as mar- tor da função alfa, possibilita o armazenamento de elementos alfa,
cas que ficam das relações com os objetos primários dificultam o que corresponderiam aos pensamentos oníricos; e para que estes se-
abandono das mesmas. A teoria das transformações (Bion, 1984) pres- jam utilizáveis, é necessária a oscilação das posições PS = D, na di
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1•)~
194 PAULINA CYMR01

nârnica continente=contido. O fato selecionado seria o elemento tem- necessita de algum continente interno para suportar a realidade lJlll' l;
poral e espacialmente integrador. O drama psíquico apresenta-se no difícil mudar o mundo, os outros, os hábitos. Quando esse~ n.:cur:--o:--
palco analítico com acompanhamento de um analista ativo, vigilan- estão disponíveis, pode haver modificação na visão de mundo e de :--1
te, uma companhia viva. A oscilação das posições ocorre através da mesmo. Isso decorre de cada pessoa poder utilizar de alguma potên
percepção da experiência emocional que tem um sentido. eia interior de liberdade, de criatividade, de tolerância à depemlên
Como acontece em qualquer projeto de vida, a análise implica eia, de aceitação e de adaptação às suas possibilidades de vida.
riscos, envolvimentos, realizações, frustrações, que podem ser Entendo que uma tarefa do analista é apresentar o analisando
conscientizados e contidos, ou não. Observo que o movimento de para ele mesmo.
perdoar e de se perdoar pode se iniciar numa análise. Na análise, Estou de acordo com Mezan (1993), quando ele propõe que o
penso que estar continente depende de um estado emocional favore- ato de conscientizar-se não significa distanciar de si, desapaixonar-
cido pela qualidade da interação do analista e do analisando. Esse se, mas, pelo contrário, pressupõe conter-se, acolher-se, assimilar-
estado é concomitante ao reconhecimento da realidade de um relaci - se, adotar-se, fazer seu, assumir-se. Não se trata de saber, de consta-
onamento, da realidade do inesperado, dos riscos, da ignorância, da tar, de informar, mas de ser quem se é, mas poder abrigar algo de si
incerteza. Através da internalização da relação com um continente, o que já é seu, que é parte de si e que o constitui. Trata-se de aceitar-se,
sujeito pode expandir uma qualidade mental, um continente interno, de investir no trabalho do luto, de ter a coragem de ser e de acolher a
tornando-se mais capaz de suportar os movimentos de consciência de que viver com liberdade, conter a individualidade in-
retração=expansão para a intimidade com o seu ser e com o outro. cluem medo, perseguição, culpa, dor, perda, embora não só. Pressu-
Ao destacar o movimento de retração=expansão do estado de põe certa condição emocional para experimentar, para opinar, para
continência para a vida psíquica como um fundamento da análise, ousar, para se autorizar, para se arriscar, para escolher, naquilo que
tenho em mente uma teoria do desenvolvimento psíquico, o que o lhe compete.
dificulta, o que o favorece, tanto do lado do analista, quanto do lado Encontrei na escritora Lindbergh uma expressão poética do que
do analisando; suponho uma concepção de homem, de finalidade da procuro comunicar a respeito do estado de continência:
análise, modalidades de intervenções que podem interferir na interação
(..) Expostos, abertos, vazios como a praia, deixamos
psíquica que se apresenta; entendo que há uma mútua interferência
que as marés apaguem nossas marcas passadas.
de duas mentes, com suas dimensões dos sentidos, dos mitos e das
De repente, numa manhã qualquer da segunda semana,
paixões (Bion, 1973).
a mente desperta, renasce para a vida outra vez. Não
Quando considero o movimento de retração=expansão do esta-
no sentido "urbano", mas no sentido "marinho ··. Ela
do de continência fundamental para a existência da análise, não
começa então a flutuar, a se mexer, a fazer movimentos
desconsidero a implicação de outras condições fundamentais, o campo
suaves e negligentes, como as ondas preguiçosas que se
psicanalítico é complexo. Creio que cada pessoa necessita de certo
quebram na praia. Nunca se sabe que possíveis tesou-
continente para ajudá-la a conter o incontido e estabelecer relações ros essas ondas inconscientes vão lançar à areia bran-
com este. Para se situar no mundo, a pessoa precisa de atenção, de ca e suave do consciente. Talvez uma pedra redonda d<'
observação, de intuição, de paciência, de senso de temporalidade; formato pe1feito, ou uma concha rara do jimdo do mar:
l96 PAULINA CYMROl Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 11 1 /

talvez uma concha-pêra, uma concha-lua ou até mesmo preende seus hábitos científicos, sua formação, e esta faz-se cm mui
um argonauta. tos anos e, ainda assim, entendo que é infinita. Considero que é fun
Mas esses tesouros não devem ser procurados, muito <lamentai ao analista confiar na Psicanálise que pratica, estar dispo
menos desenterrados. Nada de escavar o jimdo do mar. nível para o outro e acreditar naquilo que lhe oferece, questionar o
Isso frustraria nosso objetivo. O mar não recompensa seu trabalho, como o pratica, além de questionar a sua capacitação
os que são por demais ansiosos, ávidos ou impacientes. para a finaLidade a qual se propõe. Penso que as incertezas, as angús-
Escavar tesouros mostra não só impaciência e avidez, tias e as dúvidas do analista são cotidianamente potencializadas pela
mas também falta de fe. Paciência, paciência e paciên-
presença ou pela ausência do analisando. Réverie, continência de-
cia é o que nos ensina o mar. Paciência e/é. Precisamos
pendem da dupla analítica.
nos deitar vazios, abertos e sem exigências, como a praia
O anaLista necessita de certa condição de continência, paciência e
- esperando por um presente do mar.
humildade genuínas para suportar os movimentos de retração=expansão
Anne Morrow Lindbergh, ln: Presente do Mar
do continente interno nele mesmo e no anaLisando. Ele não é sábio, nem
é autoridade, mas mero intérprete de fatos emocionais da maneira como
A meu ver, estar continente supõe a consciência da passagem
os percebe, sente. Necessita suportar o trânsito do campo clínico, da
do tempo, certa preservação da noção eu-sou, e da percepção de que
experiência para a teoria e desta para a experiência. Deve ficar atento
uma experiência emocional é seguida de outra. Implica alguma
para não tomar a teoria concreta, pois isso pode levá-lo a se confundir,
tolerabilidade para as vivências de solidão, de separação, de desam-
em vez de esclarecer. Se o anaLista pode tolerar a sua ansiedade e a ansi-
paro, de desproteção, de descontinuidade das relações e das emo-
edade do analisando, ele possibilita a oscilação PS= D,
ções. Implica certo estado emocional para observar, para indagar,
continente=contido e favorece a observação do singular, do pessoal, do
para acolher a violência, para a contenção da dúvida, do selvagem,
desconhecido de cada um. Creio que estar continente, sendo presença
do desespero, sem ficar muito ameaçado. Supõe uma condição para
benigna, requer do anaLista atenção ao vértice adotado e tolerância à dor,
a nomeação da realidade afetiva experimentada.
já que os estados primitivos=não primitivos da mente fazem-se freqüen-
Creio que é o analista quem "decide", a partir de seus referenciais
tes no cotidiano da prática clínica. Acredito que, mesmo sendo compe-
e de suas condições emocionais, se o que está acontecendo na sessão
tente e ativo, o objeto-continente não promove o desenvolvimento psí-
diz respeito a um fato, a um fenômeno alucinatório, ao contato com a
quico do outro, se este não se encontra receptivo para tal.
realidade psíquica. Entendo que a observação é mediada pelos esta-
Em um depoimento dado a Roazen (1999), Putnam, uma ex-
dos mentais do observador, e que estes são transitórios, a mente o
analisanda de Freud, relatou que se sentiu muito ajudada por este. Dis-
tempo todo é invadida pela solidão, pela violência, pela expectação,
se que Freud ficava sempre atento e interessado nela. Mas, nesse co-
pelo medo, pela ansiedade, pela frustração. Quando me refiro à ob-
mentário, ela não se incluiu, não mencionou o quanto a sua participa-
servação, suponho configurações psíquicas que surgem e evoluem a
ção na análise, sua sensibilidade, sua inteLigência e sua disponibilida-
cada momento, pressuponho a oscilação dos estados mentais
de estimulavam o anaLista para conviver e para se interessar por ela.
primitivos=não primitivos. Julgo que a análise ocone numa área de
Da minha perspectiva, a totalidade biopsicossocial do ser se
intersubjetividade. A interpretação do que se passa na sessão analíti-
apresenta em constante mudança, continuamente é modelada através
ca é dada pelo funcionamento mental do observador (analista), e com-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1•>•>
198 PAULINA CYMROT

sustentado pela ilusão de posse do conhecimento e da verdadl' . N,t


das experiências, das relações intrapsíquicas e interpsíquicas, e as
íntima relação analítica há solidão, isolamento de cada um. Não e
modela. E, ainda assim, constitui-se como uma entidade histótica,
possível o analista ensinar o analisando a tolerar, a ouvir, a observar,
estilística, com incessantes conflitos, com percepções presentes e com
a rir. No entanto, enquanto companhia viva, ele cria condições para o
mapeamentos passados. Cada indivíduo tem lembranças que não se
analisando se aproximar genuinamente de si mesmo. Oferecendo uma
apagam, sofrimentos, medos, preconceitos, disposições fisiológicas
convivência afetivamente sincera, humorada, estando continente, o
e psicológicas. O analista, assim como os pais e outros, representa
analista colabora para que gradualmente o vínculo analítico seja cons-
um fator que influi no desenvolvimento mental do analisando, mas
truído. Mas este resulta da disposição dos dois, de como um interfere
não é o determinante desse desenvolvimento, não é o responsável
no outro.
pela expansão do continente interno. Na análise, ele apresenta o seu
Entendo que estar continente (Bion, 1973) implica que as emo-
vértice, nomeia a situação que se apresenta para ele, com suas trans-
ções se transfonnem em imagens que sirvam para o pensar. A facul-
formações. Mas ele não pode sentir, pensar, aprender ou interpretar
dade do analista de observar e de participar ativamente da experiên-
pelo analisando.
cia analítica é essencial, supõe poder se observar, sentir em si a expe-
Uma das tarefas impossíveis, escreveu Freud, é ensinar Psica-
riência sem impedir a circulação de emoções, apesar de isso ser in-
nálise, pois não é possível fazer alguém ter empatia, ter ressonância,
quietante em virtude do desconhecido da experiência e das emoções
ter sensibilidade, ter intuição. Penso que não é possível ensinar al-
presentes que podem estar intensificadas, não inseridas numa rede
guém a sentir, a observar e a escutar algo do outro, pois isso acontece
de afetos e de significados familiares. Suportar as projeções do ana-
no plano da intimidade afetiva, da ressonância emocional, da intui-
lisando, suas pressões devido ao desespero, ter ressonância para o
ção, da experiência da compaixão. O ambiente facilitador é impor-
seu medo de existir, podendo permanecer numa experiência indefi-
tante; especialmente nos estágios iniciais da vida, espera-se que pro-
nida e sem estar muito contaminado por medos, memórias, desejos,
porcione mais oportunidades do que privações. Mas é preciso ver
sua habilidade para se expressar com liberdade, com coragem acom-
como cada indivíduo introjeta=projeta, como tolera=não tolera a
panhada de prudência e de compaixão. Espera-se sua habilidade para
natureza das suas defesas para sua sobrevivência, se estas estão mais
criar formulações surpreendentes, com humor respeitoso, que sejam
ou menos rígidas; interessa observar corno cada sujeito vivencia e
úteis para a vida do analisando. A comunicação humana contém
interpreta suas relações, como olha para si e para o mundo, o que
muitas dimensões, e é função do analisa transformar, de um modo
aprende de suas experiências.
simples, inteligível, sensível e comunicável para o analisando, a ex-
O estado de continência é exercido em situação dinâmico-
pe1iência vivida entre ambos. Sabemos que essa tarefa não é fácil de
evolutiva. Espera-se que o analista utilize-se de sua metodologia,
ser exercida.
sabendo que a função analítica se acompanha de constantes rupturas
A experiência psicanalítica pode evoluir para que os afetos e os
desse estado de continência. A análise se dá no duplo sentido: junta-
significados presentes, embora transitórios, tornem-se mais definíveis,
mente com o analisando, o analista experimenta emoções. Por vezes,
quando os protagonistas se dispõem a aprender algo dessa experiên-
ele se encontra na condição de um continente em busca de conteú-
cia. Durante a sessão analítica, a história narrada, com seus objetos
dos, condição esta que contrasta com os estados de impenetrabilidade,
internos e externos, pode, ou não, ganhar uma nova versão, uma outra
de restrição à investigação, do predomínio de um superego severo
200 PAULINA CYMROl Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor ' Ili

especificidade depois de ser experimentada no tecido relacional da Supõe o contato com a ignorância, com a cegueira, com a ilu-,,10,
dupla, quando surgem associações, modelos que se apresentam, se dis- com o humor, com a potencialidade amorosa e destrutiva.
solvem e são ressignificados, elaborados. No encontro de uma mente
com uma outra mente, as emoções podem ser conversadas, pensadas,
embora o aprendizado seja infinito, fluido, contínuo e muita coisa fica
incompreensível. Isso me faz lembrar o poeta Fernando Pessoa: 1. No cotidiano da clínica: Amália - Nunca vi
fazer tanta exigência, nem fazer o que você me
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
faz ...
Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Amália cumprimentou-me amistosamente. Pareceu-me saltitan-
Porque quem ama nunca sabe o que ama
te, qual uma bailarina com passos delicados. Seus movimentos, sua
Nem sabe por que ama, nem o que é amar.
amistosidade contrastaram com o conteúdo de triunfo de sua
verbalização, de seu relato, no qual se destacava o tom da superiori-
Na análise, a expansão do continente pode ser estimulada; toda-
dade arrogante. Foi o que notei quando nos encontramos na sessão
via, o analista não cria o continente, trata-se de uma possibilidade
que ora descrevo.
emocional que varia, e se transfonna, a cada momento. A meu ver, a
A analisanda contou-me, com uma expressão de triunfo, o que
expansão da função continente ocorre simultaneamente à
se passou com ela no edifício do meu consultório. Ao entrar no ele-
internalização de uma relação, que facilita a contenção do incontido;
vador, foi orientada pela ascensorista para se identificar na recepção.
ela permite o estabelecimento da correlação de experiências e o pen-
Disse que ficou possessa, indignada porque venho aqui há três anos,
sar advindo do contato com a experiência emocional, permite a osci-
e esta burra não sabe?
lação PS=D, a transformação em direção à fecundidade. Na análise,
Comentou que se lembrou que os funcionários do edifício eram
o contato com a interioridade ocorre na experiência de uma depen-
terceirizados e sujeitos a um rodízio, como ocorre no prédio onde ela
dência indulgente, com liberdade, e nesses momentos há continência
trabalha, com exceção do zelador que é sempre o mesmo. Mas, pare-
para aquele mínimo irredutível incurável que diferencia o indivíduo
ceu-me que ela não pôde se utilizar desse saber naquele contexto.
dos demais, para a manifestação da destrutividade inerente ao ser
Com raiva, disse que não atendeu ao pedido da ascensorista, empur-
humano. Nesses instantes, predomina alguma experiência de humil-
rou-a e entrou no elevador. Zangada, disse-lhe: Sou cliente da Dra.
dade, de humanidade, de coragem para olhar, tolerar, e conhecer.
Paulina e não preciso ser identificada, você ainda não sabe?
Na experiência analítica, a verdade absoluta não pode ser
Esperou que as pessoas presentes no elevador saíssem do mes-
alcançada, embora algo pode ser conhecido, reconhecido, sentido,
mo nos respectivos andares, e aproveitou-se do fato de estar só com a
armazenado, assimilado, elaborado. Penso que conhece-te a ti mes-
funcionária para lhe dizer: Você me destratou! Não obteve resposta e,
mo supõe alguma consciência da singularidade, da restrição à apro-
provocativamente, prosseguiu: Você não devia trabalhar com pesso
ximação de si, da violência. Essa aproximação de si mesmo é sempre
as. devia cuidar de porcos! Relatou que a ascensorista tentou con
insuficiente, imprecisa, parcial e, muitas vezes, incompreensível.
versar com ela, mas deixou-a falando sozinha.
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 1 () l
202
PAULINA CYMROT
Acreditava que em suas relações tudo estaria fadado ao tk~.,..,
Escutei-a com vários sentimentos. Com preocupação, pela in- tre, à destruição pela violência? Desacreditava em sua possibilidadr
tensidade de seu destempero, impactada pela violência, pela sua pos- de tolerar estados desagradáveis, de crescer, de amadurecer?
tura de triunfo e superioridade; percebi-me também compadecida pela Violentamente procurava impor as suas ilusões para não se de
sua carência de um continente para os seus impulsos, sua violência e frontar com a dor das ansiedades depressivas? Com a culpa?
emoções. Senti-me momentaneamente imobilizada. Permaneci em Pensava que convivia com pessoas sem qualidades e, então, não
silêncio.
tinha que se preocupar em preservai· as suas relações? Pensava que a
Ela continuou a sua nairativa, contou sobre um bate-boca, uma sua presença já era um presente para os outros?
briga com o porteiro do prédio onde mora recentemente; esqueceu- Sentia-se superior?
se de levar a chave do portão, e ele demorou para abri-lo por não tê- Odiava-se perceber-se dependente?
la reconhecido. De acordo com ela, tratou-a como uma estranha. Protestava contra a necessidade de amor e de dependência?
Pensei que ela não percebeu a violência que ela introduziu no Não suportava a experiência de um casal criativo?
consultório, na nossa relação. Procurava a minha ajuda porque a sua violência não podia ser
Recobrei-me do meu estado de imobilidade e, com humor e negada? Não podia mantê-la secreta? Carecia de um continente in-
tranqüilidade, disse-lhe: Ainda bem que quando você chegou aqui eu terno mais estável para abrigar os sentimentos de exclusão, de rejei-
imediatamente a reconheci, não pedi seus documentos, cumprimen- ção? Para abrigar a dor das ansiedades depressivas?
tei-a, considerei-a. Vejo que você comparece à sessão calçando as Poderosamente pressionava a analista para que esta fosse pro-
sapatilhas de balé, mas me conta que dessa porta para fora, com ou- dutiva? Ou improdutiva?
tras pessoas, você veste as luvas de boxe! Na relação comigo, predominava a idealização, estávamos li-
A minha formulação provocou-lhe o riso, e despertou-lhe an- vres dos riscos da destrutividade? Tentava formar comigo uma uni-
gústias depressivas. Com preocupação e tristeza, ela respondeu: Eu dade idealizada?
sei que eu piso sem dó nas pessoas, não me controlo, e isso me preo- Ela me reconhecia como um continente para a sua agressivida-
cupa, Paulina. Falou que, na véspera, brigara com o marido, pois de? Esperava que eu a controlasse, a transformasse em uma outra
achou que ele não lhe deu atenção; disse-lhe umas verdades que doem, pessoa?
gritei, peguei pesado nele, achei que ele precisou ouvir, mas depois Sentia-me uma pessoa de quem necessitava para poder pensar?
me arrependi. Relatou que o marido respondeu-lhe que estava cansa- Buscava a análise para crescer, para expandir o continente? Ou para
do da agressividade dela e pensava em se separar porque ela não ter mais controle sobre os objetos?
tinha dó de ninguém. Na sessão, ela se dispôs a uma troca de visões, a conversar ape-
Amália falou que não se controlava quando se sentia maltrata- sar das nossas diferenças. Mas, avisou-me que há a ameaça da into-
da. Após uma pausa, ponderou que talvez a funcionária estivesse lerância, do descontrole, de aniquilar a disparidade humana, a natu-
apenas cumprindo ordens. O problema é que me sinto desconsiderada reza do outro.
e fico tomada de ódio, e não me controlo! Vejo que, por vezes, conseguimos conversar; com essa
Pensei na possibilidade de ela não tolerar sentir-se excluída, analisanda, as formulações humoradas encontram receptividade,
rejeitada, e acreditar que deveria viver sem esses sentimentos.
204 PAULINA CYMROT
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor ' 05

provavelmente ajudadas pelo vínculo de confiabilidade (apoiado 2. Experiência clínica: Katia - Ser ou não ser,
também em idealização) existente entre nós. Notei que ela preser-
vou o nosso relacionamento de senlimentos hostis, de agressivi-
esta é a questão!
dade.
Kátia procurou-me para a análise queixando-se de constrangi-
Na sessão compareceu a bailarina, e a boxeadora ficou para fora
mentos pela sua cor, pela sua origem socioeconômica. Sentia-se cons-
do consultório. No mundo externo, ela investe violentamente contra
tantemente inferiorizada. Contou-me que não sofreu muitas priva-
suas ansiedades persecutórias incontidas? Desse modo tenta acalmar
o seu desespero? ções, teve oportunidades de estudo promovidas pela patroa de sua
mãe. Foi criada na casa onde a mãe trabalhava como empregada do-
Percebo que as formulações simples, informais, afetivamente
méstica. Essa moça desenvolveu-se intelectualmente, ascendeu soci-
humoradas e que apontam para as suas angústias fundamentais têm
nos ajudado a pensar sobre a sua fúria, por vezes têm ajudado-a a almente, tem uma profissão e um trabalho que lhe permite viver com
liberar o continente, a mente mais reflexiva com movimentos de re- conforto. No entanto, não estava podendo desfrutar desse desenvol-
paração amorosa. vimento, ter prazer em sua vida. Nos nossos encontros, procurei ob-
servar como ela usufruía das nossas conversas.
Ela espera que no encontro humano haja a ressonância, a
sintonia idealizada? O poeta Vinícius de Moraes escreveu que a Na sessão ora relatada, ao me pagar as sessões do mês, ela viu
vida é a arte do encontro, embora haja mais desencontros que en- um cheque dobrado na minha escrivaninha. Ela desconhecia a proce-
contros. Estando ressonante para as angústias fundamentais do ana- dência e o valor do mesmo, e comentou: O cliente que lhe pagou com
lisando, o analista pode auxiliá-lo a conter o reprimido, o cindido, esse cheque deve poder pagar mais do que eu. Sei que sou a menos
jàvorecida dos seus clientes. E prosseguiu falando do seu constran-
o desconhecido, o irruptivo. Creio que os pensamentos mais difí-
ceis de compreender ou de expressar são aqueles que reacendem na gimento devido à sua origem social, à cor, ao fato de sua mãe ter
mente as mais intensas negações e as intuições. Ajudando o anali- trabalhado como empregada doméstica, e o quanto isso pesava para
sando a contê-los, o analista pode estimular a potencialidade do ela. Disse também que não conseguia dizer não para as pessoas, não
analisando para a criação de mecanismos de defesa mais alternati- confrontava, não discordava delas porque se sentia inferiorizada.
vos, criativos. Na minha opinião, o analista está mais preparado Há analisandos que se sentem sem espaço, sem existência. An-
para o exercício de sua função quando ele contém a diversidade coram-se em uma versão da sua história de vida que lhes serve para
comprovarem para eles mesmos, e para convencer o analista, da rea-
humana, com seu amplo espectro de experiências emocionais, de
pensamentos, quando ele está continente para a identificação lidade dessa versão. Vejo que há uma tendência no ser humano para
projetiva. Mas a ressonância não é tão passível de modulações, como formar frases de um modo tendencioso e intencionalmente conscien-
é o desejo do analista. Falar de fatos, falar sobre as emoções não é te ou inconsciente, que indica ao receptor a resposta que gostaria de
o mesmo que sentir, imaginar, se mostrar, se ver, ressoar com os receber. A inflexão da voz, o tom é tendencioso para o alcance de um
sentidos e com os sentimentos, estar solitário para o desespero e aliado, de um apoio.
Torna-se difícil para o psicanalista avaliar o cuidado recebido
para as pressões que os estados mentais do analisando, e os estados
mentais do próprio analista, exercem. pelo analisando fora da sala de análise, no início e durante a sua vida.
E penso que não é essa a função analítica. A extensão da influência
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor ' ll]
206 PAULINA CYMROT

dades. Penso na experiência psicanalítica como uma op01tu1111lad··


do ambiente, da condição social, dos fatores psíquicos, do caráter
para se refletir sobre o que está sendo vivenciado, uma oportu111dadl·
dos responsáveis por essa pessoa, do grau de interferência das cir-
para viver, ser e se ver, para o acontecer humano propiciar 1mvo-.
cunstâncias adversas, é difícil estabelecer. Frustrações, privações,
sentidos à existência, propiciar a percepção de que o encontro c.:0111 <1
decepções podem engendrar no analisando uma visão hostil de si outro pode resultar em comparações, em estremecimento, l't11
mesmo, de mundo, mas isso não acontece automaticamente. A re- desencontro, em aprendizado, em crescimento. É um espaço para a
cepção do cuidado, a dinâmica continente=contido, PS=D, e suas expressão da singularidade do ser, que é inapreensível, não tem li111i
transformações, a meu ver, apontam para disposições complexas e te, é infinita quando não é saturada, mas deixa pegadas, deixa ra:-.1rn-.
variáveis. Depende da escuta do analista, do seu entendimento, o que no tempo e no espaço. Penso que o campo analítico possibilita al~•11
facilita ou atrapalha o crescimento psíquico, e isso depende das teo- ma intimidade com a singularidade do ser, e, através dela, algu111a
rias que nele ressoam, do seu treinamento, que se refletem em seu intimidade com o outro. Na análise, há o encontro de singularidadl''-
trabalho clínico. Penso que o campo de investigação do analista é A meu ver, o analista não deve perder a dimensão da pesso.1
essencialmente o setting analítico. para não reduzi-la a urna faceta. Nessa direção, os modelos teóriLw,
Winnicott (] 999) propõe pensar a natureza humana sem aprisi- que apontam para as estruturas ou para os padrões psicopatológini:-.
onar em psicopatologias. Concordo com o autor quando escreve que estabelecidos parecem-me aprisionantes, pois eles tornam conl1L·c1
o sentimento de desconsideração do self é terrível; cedo a criança do o desconhecido; podem se prestar para uma descrição de 11111
percebe situações de indignação, de degradação e de desrespeito, que paradigma, de um padrão mais freqüente de funcionamento mc111.tl
têm o valor de uma invasão. Junto com o leite está o holding, o cuida- mas não servem para uma proposta de análise. Entendo que o ser l''-l.t
do, a dignidade, a cultura, a ética. Penso que a sua idéia de mãe sufi- sempre pulsando, a experiência humana é complexa e dinâmica.
cientemente boa transcende a relação mãe-bebê, atravessa outras re- O predomínio dos estados de desesperança, de desamparo, <il'
lações e a questão cultural, as metabolizações, as soluções, as deci- hostilidade, de ressentimento pode substituir a capacidade par:, <,
sões, as ações, a maneira de organizar a experiência está em transfor- compadecimento. Há analisandos que se apavoram quando jK'n l '
mação. Como Winnicott, penso que é útil uma leitura estética do que bem a sua singularidade, se antecipam em reprovações dos seus prn
ocorre e é recriado na sessão analítica, o destaque para o desenvolvi- sarnentos, dos seus sentimentos, do seu estilo de ser; elegem rnlp.1
mento humano, para o enigma pessoal que se apresenta e que está dos para explicar os seus sentimentos, assustam-se quando 1101:1111
para ser compreendido, reconhecido, contido, e não para a psicopa- mudanças neles mesmos. Devido à intensidade do sofrimento tlll' tl
tologia. Para o autor, não é a história que define o lugar do indivíduo tal, do desespero, da dependência infantil, o analisando cobra do ,111,1
no mundo, no tempo; ele focaliza a importância de viver a vida pre- lista aquilo que ele sente que não lhe foi dado, do qual ele ro, p11v11
sente conforme o estilo de cada um, e não viver só de lembranças, de do, por não se sentir respeitado, inclusive pela sua solidão. C',tlH! ,,,,
expectativas, de sonhos ou de coisas preestabelecidas. Fala da neces- analista tolerar tais manifestações, oferecer anteparo, mas st:111
sidade do uso do objeto em seus pressupostos sobre a teoria do ama- antecipar enquanto um continente para o analisando não scnt 11· i;11 v11
durecimento. frustração, culpa, rejeição, poupando-o antes mesmo de wnfi<::t!'
Da minha perspectiva, o espaço analítico não é um espaço para são estes os seus sentimentos e se ele suporta-os. Se o ,111:tl1 s: 1111IP
o exercício de racionalizações, para definir causas e estabelecer ver-
Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor ' ()')
208 PAULINA CYMROT

sente que o analista não aposta nas suas capacidades, se sente que lhe ferência. Disse-lhe que ela repetia na nossa relação suas expcri0m:1a~
é oferecido um cuidado ansioso, isso pode causar-lhe irritação pela emocionais de indignidade, e recusava-se a ver que ela estava 11u1n
verificação de que o analista acredita mais em sua fragilidade do que outro tempo, num outro momento, que ela cresceu e se desenvolveu .
em sua capacidade de tolerância. Cabe ao analista ajudar o analisan- Perguntei-me se ela repetia os modelos de relacionamento co111
do a ser ele mesmo e a se diferenciar no mundo, de acordo com a sua os objetos internos e externos para poder ressignificar sua história.
singularidade. Nesse percurso, pode aparecer um padrão paranóide, Para ressignificar as experiências de exclusão? Na sessão, quem a
hesitações, pensamentos primitivos relativos às angústias quanto à excluía?
identidade. A compaixão por si, a qual implica cuidado e responsabi- Precisava se vitimar para justificar a hostilidade de si, projetada
lidade pessoal, pode se acompanhar de estados paranóides, em fun- no mundo? Para recusar a temporalidade? Para recusar a consciência
ção da presença de elementos persecutórios, de hostilidade. de si? Para se transformar no perseguidor?
É preciso haver uma força pessoal para uma pessoa se tolerar e Acredito que é importante ajudar o analisando a diferenciar a
confiar nela mesma, nos seus valores, nos seus critérios, na sua per- falha ambiental dos aspectos de sua subjetividade, de seu funciona-
cepção, no seu desenvolvimento, e para ela ter compaixão por si e mento mental, auxiliá-lo a se apropriar da sua vida.
pelo outro. Penso que a experiência da bondade atravessa a elabora- A analisanda queixou-se de não ter voz, o que para ela signifi-
ção da destrutividade; a consciência da necessidade da preservação cava não poder dizer não, não discordar, não confrontar. Quem criou
dos "bons" objetos passa pela percepção da sua destruição, passa essas proibições? Para ela, discordar é atacar?
pela compaixão. Na relação analítica, pode-se construir um círculo Disse-lhe que mais do que dizer não, é preciso ter uma opinião,
benigno entre estrago e reparação, evasão de responsabilidades pes- ter consciência da própria individualidade. Parecia-me que ela con-
soais e contato com alguma intimidade do ser, o qual é favorecido fundia oposição, frustração, com agressão.
por um vínculo mais estável de confiabilidade e pelo interesse na Opondo-se, discordando, frustrando, acreditava estar atacando?
análise. Esse vínculo ajuda a minimizar a submersão em culpas, em Quando discordam dela, sente-se agredida?
perseguições, em um autocontrole restritivo, no auto-ódio. O sujeito Desenvolve-se e não percebe?
precisa encontrar oportunidade para praticar o mal, para canalizar a Desconfia se a qualidade da análise que lhe ofereço é a mesma
hostilidade, para tolerar o sentimento que destrói e ter a oportunida- que ofereço a outros? Sente que recebe pouco leite? O leite que vem
de para reparar. Para haver contenção do impulso, da emoção, ele para ela é a sobra?
precisa reconhecê-los, nomeá-los. É necessária a relação com um O continente interno é capaz de abarcar emoções para serem
objeto-continente para a elaboração da destrutividade, da culpa, do nomeadas, discriminadas? Pode lhes dar contornos, pensamentos?
ódio; a reparação provém da tolerância aos impulsos agressivos diri- Aspectos éticos, étnicos, históricos atualizam-se na experiência
gidos aos objetos amorosos. analítica. Self e etnia se presentificam no setting. O psiquismo se
Com relação à Katia, pensei que, na sessão, cabia-me oferecer- encarna no tempo, no espaço, no outro, na cultura. Através da rela-
lhe um olhar que a ajudasse a instaurar alguma dignidade, que esti- ção com o analista, a analisanda pode=não pode liberar o continente
mulasse o continente interno para o seu ser. Porém, isso dependia de interno, pode = não pode aproximar-se e dialogar com o seu ser, com
ela registrar, reconhecer e aproveitar a experiência no setting, na trans- a auto-imagem denegrida, com a sua crueldade. Na sessão é possível
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PAULINA CYMROT

observar como ela existe, como imagina o seu corpo, o seu lugar no der dispor de um continente. Creio que o homem não suporta olhar o
mundo; suas imagens, suas lembranças, e o uso que ela pode fazer seu ser sem um véu, mas que é possível uma aproximação à real ida
das mesmas. de psíquica a partir da expansão do continente interno.
O analista utiliza-se de seu repertório de vida, de seu imaginá- Julgo que o continente interno possibilita segurar a situação no
rio, de seu treinamento para tentar ajudar o analisando a estar mais tempo, permite o desenvolvimento psíquico. Quando a responsabili-
continente para a pessoa que ele é; penso que a tendência para a dade de ser quem se é não é tolerada, quando a preocupação pelo que
compaixão, para a reparação, para a individuação constitui-se na ex- faz com o outro não é conquistada, a destrutividade não dá lugar à
periência com o outro. Se o indivíduo não desenvolve o sentimento reparação; podem ocorrer, então, os estados de depressão psicótica,
de ser, de "eu-sou", ele não reconhece a externalidade do objeto, pois de passividade, de submetimento, de imobilização aos estados fóbicos
esses processos ocorrem simultaneamente. Se ele aceita a e o comprometimento do self.
separabilidade, descobre que o mundo existe e continua a existir, e A função de réverie, de continência, auxilia o analista a obser-
que os sentimentos dão sentido às coisas. A construção do sentimen- var de que lugar o analisando vê o mundo e se observa. Ele precisa
to "eu-sou" não é vivida sem medo, sem angústias; é uma ousadia ser estar continente para o desencontro, a solidão, a violência, o desen-
"eu". Essa vivência pode se acompanhar de sonhos de ser invadido, canto, a despedida; para tolerar, juntamente com o analisando, que a
assaltado, roubado, não reconhecido, mas tais sonhos não têm um vida passa, não permanece, e nada regressa. A função de réverie, de
caráter terrificante ou desorganizador do self Eles podem ajudar a continência, possibilita a revitalização, a ligação da palavra com a
elaboração de experiências emocionais. emoção através da nomeação, a qual inclui intuição, envolvimento,
Ter concLições para lidar com o que aparece em si mesmo, cLispor suportabilidade para o incontido, atenção aos jogos perversos,
de um continente interno, expressa mais confiança e consistência para esquizóides, alucinatórios. Uma parceria criativa pode se desenvol-
contar consigo, ainda que nada esteja estabelecido definitivamente. ver, ela envolve a aproximação com a vida emocional, ressonância
Comporta alguma tolerância para os estados de não-integração, para emocional, pois sem isso o ser humano fica desprovido de pensa-
os medos, e estes se tomam menos assustadores; comporta a consci- mentos para se orientar, para se conhecer, para se poupar e não se
ência de que não há vacina contra os estados mentais dolorosos. sobrecarregar, para se adequar às suas possibilidades, para se respei-
As experiências emocionais ligadas ao compadecimento podem tar. No setting exercita--se o método analítico. Vejo vantagem em urna
estar mais constituídas quando há percepção e responsabilidade por convivência intensa e íntima com o analisando para o estabelecimen-
quem se é, e pelo que faz consigo e com o outro. Elas coexistem com to de nm campo emocional observável, no qual o que emerge e evo-
as experiências de vitimização, de ressentimentos, de agressividade lui pode ser conversado. Nesse campo, as presenças do analista e do
sem responsabilidade, de intolerância, de incontenção instintual, que analisando são o traço fundamental; através desse encontro pode ser
freqüentemente se sobrepõem às experiências depressivas. A preo- construído um sentido para a experiência.
cupação com o objeto amado parece-me ser simultânea à preocupa- Concordo com Eva (1999) quando ele propõe que participar da
ção com os próprios impulsos destrutivos, com a possibilidade de se experiência emocional em curso na sessão de análise torna-se o de-
reconhecer no passado, no presente e no futuro; ela envolve a consci- safio para o psicanalista, sua capacidade de continência é testada.
ência de constância do ser no tempo, de historicidade e implica po- Quando há possibilidade de troca de idéias entre dois indivíduos com
213
212 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor

capacidade, no momento, para pensar, representar, sonhar, comentar, estados precisam ser descobertos e desenvolvidos, assim como a com-
isso favorece o contato com a interioridade através do estado de con- paixão, a reparação, o pesar. Estar continente para os estados
tinência. Há momentos em que predomina a destruição da consciên- destrutivos e amorosos, para o sofrimento, para a interdependência,
cia para os pensamentos e a função analítica de réverie é necessária para a solidão, para o intolerável, depende da parceria analisando-
para diminuir o medo e a incontinência presentes. O analisando bus- analista, e não é simples devido à ameaça à integridade mental que a
ca alguém para ajudá-lo de várias maneiras. O analista freqüente- pressão e a intensidade elo desespero, da dor e do medo costumam
mente é pressionado pelas demandas do analisando e necessita con- exercer. A meu ver, o desastre psíquico relaciona-se à carência de um
fiar no método que utiliza, no trabalho que realiza, a fonte de pesqui- continente interno.
sa é o campo analítico, no qual ele pratica seus pressupostos, suas O continente interno expande-se na experiência com o objeto-
conjeturas, com suas conseqüências. continente. O analista não o inocula, mas pode estimulá-lo. Refere-
Na minha atividade clínica, verifico que a intolerância à depen- se a uma disposição ativa, a uma força interior, e não a algo mágico
dência e ao reconhecimento da individualidade do outro, a necessi- que se dá simplesmente com o objeto que se apresenta. Depende de
dade de constituir autoridades e de se submeter a elas, a hostilidade poder sentir compaixão, gratidão, paciência e, destes estados, sobre-
como resposta aos medos, à dor, a dificuldade para experimentar gra- porem-se à recusa daquele mínimo imutável incurável que caracteri-
tidão, compaixão e a recusa à consciência de que ninguém pode ino- za cada sujeito. Acredito que o continente interno dá sentido e ceita
cular felicidade, bem-estar, ou outros estados emocionais a uma pes- coesão ao self
soa, a não ser que ela mesma os experimente, dificultam a expansão Como Trinca (1997), considero que a constituição de um conti-
do continente interno. Se a vivência de intimidade é sentida predo- nente interno depende do contato com a vida emocional; a perda
minantemente como invasiva, se o conhecimento é experimentado desse contato atinge os referenciais, os valores, os interesses, e o
como perigoso, se a hostilidade predomina e o analisando não supor- sentido da existência fica perturbado. A falta de contenção emocio-
ta a contribuição do analista, pode haver impasse e interrupção da nal afeta o pensamento, o planejamento, a reflexão. Dissociações,
análise. É preciso que o analista observe se aquilo que o analisando aniquilamento dos pensamentos podem, então, predominar. Não há
experimenta na sala de análise lhe faz verdadeiramente algum senti- consciência da existência sem contenção e sem pensamento. Os es-
do, ou se há oposição à contenção, atração pelo ressentimento e pela tados de incontinência=continência para a vida psíquica oscilam. A
destrutividade, e aniquilação do pensamento. carência de um continente mais estável intensifica os sofrimentos
Dispor de alguma continência para a vida psíquica parece-me ligados à falta de autenticidade, de auto-estima, à desvalia, à carên-
ser fundamental para a continuidade dos encontros psicanalíticos; cia de potência e de liberdade interior. Prevalecem as vivências fóbicas
trata-se de um potencial que, para ser liberado e exercido, depende de esvaziamento, de desvitalização, de falta de autonomia, de
da possibilidade de o sujeito minimamente se tolerar e poder aceitar inadequação pessoal e social, de dúvidas quanto à percepção, quanto
a convivência e a contribuição do outro. Na análise, importa observar ao senso ele realidade. A carência elo continente interno pode
se há consideração para a dor, a destrutividade, o medo, a inveja, o incrementar experiências persecutórias, catastróficas, perdas de
ódio, a dependência, a intolerância, a gratidão, o amor, a culpa como referenciais próprios, medo ela intensidade elos medos e das angústi-
integrantes da existência, e não enquanto índices de patologia. Esses as, temor de insuportabilidade de emoções, estados confusionais,
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PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor 215

alucinatórios. Vivências de onipotência=impotência, preocupações Pra que somar se a gente pode dividir
excessivas, comportamentos de esquiva, autoconfiança descabida, Eu francamente já não quero nem saber,
dificuldade para avaliar os perigos. Tudo parece ser frágil, inconsis- De quem não vai porque tem medo de S(?frer
tente, sem sentido. Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdc7o
Com freqüência, situações concretas, objetos primários (e ou- Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada nl7o.
tros) são depositários da irracionalidade, da incontinência, do des-
controle emocional e dos impulsos. Emoções violentas, angústias Lembro-me de um analisando que me solicitou uma fórmula
impensáveis acompanham-se do medo de inexistência e de para não sentir ansiedade sem motivo. Ele quetia que a sua ansiedade
enlouquecimento, de não ter onde se apoiar, em quem confiar. A não ficasse aparente. Ao escutá-lo, pareceu-me que ele considerava
retração da continência dificulta o pensamento e a tolerância aos sua ansiedade como um vírus, do qual ele precisava se imunizar, o
movimentos próprios da vida emocional; acompanha-se de fantasias qual me encarregou de eliminar. Em conseqüência de um rígido con-
de estar aprisionado em um destino catastrófico, de afundar e não trole emocional, esse analisando parecia mais um personagem do
poder fazer nada, de não poder nutrir-se ou usufruir de algo, ou de que uma pessoa vitalizada, singular. Carências de amor-próprio, de
não poder enfrentar a vida, não ter defesas. Dependendo do ângulo autoconfiança, de discriminação do que é necessário para a sua vida
de visão, a pessoa sente-se incapacitada para reconhecer os recursos predominavam. Ele não podia valorizar o seu estilo, a sua história, a
de que dispõe, sente-se indefesa, desadaptada, imobilizada. Devido à sua individualidade, as suas possibilidades, os seus limites enquanto
incontinência, ela constitui autoridades, busca regras e fórmulas para pessoa. Sentindo-se sem qualidades, a evitação das emoções, de re-
viver, evita a proximidade consigo, com conseqüente superficialida- lacionamentos íntimos tomou-se o seu projeto de vida.
de na relação com ela mesma e com outros. Estabelece como o~jeti- As dificuldades para expandir o continente interno cegam a pes-
vo de vida a evitação do sofrimento. A idéia de que se há sofrimento soa para a percepção dos instrumentos de que ela dispõe para viver,
então não compensa, se há perda então não tem sentido, é predomi- para se adaptar. Ela acredita que é o outro quem lhe dará a força. a
nante. Nenhum investimento compensa. A esse respeito, os compo- felicidade, a tranqüilidade. Transforma o outro numa extensão cio
sitores Toquinho e Vinícius de Moraes cantam assim: seu ser, e espera dele o que lhe parece de direito. Quando o analisan-
do está impossibilitado do exercício da função continente, ele se per-
Quem já passou por esta vida e não viveu, turba por coisas insignificantes, atribui ao analista ilimitados pode-
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu res, acredita que este lhe proporcionará infinitas possibilidades, o
Porque a vida só se dá pra quem se deu, inoculará de sentimentos agradáveis, de motivações para a vida. Acre-
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu dita que da exterioridade virá a melhora ela sua existência, o analista
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ver nada não lhe indicará os caminhos seguros, garantidos, sem riscos, em direção
Não há mal pior do que a dispensa, mesmo amor que às suas realizações.
não compensa A carência de um continente interno mais estável pressiona o
É melhor que a solidão analisando para o conluio, para a manipulação, para a dispensa de
Abre os teus braços meu irmão deixa cair, responsabilidades pessoais e de ações efetivas. Pressiona-o para cvi
'I
216 PAULINA CYMROT Ninguém escapa de si mesmo: Psicanálise com Humor

tar a depressividade que constitui a condição humana. Ele não pode intensos sofrimentos , de reveses terríveis, há algo de curim,o, tk
se ver implicado nos próprios movimentos, nas relações estabelecidas, inspirador e de paradoxal nas pessoas: a dor intensa compele nos a
nos acontecimentos da sua vida. Como exemplo, um analisando con- descer às profundezas da amargura, da desesperança. Desses abis
tou-me sobre situações que ele considerou serem infernais em sua mos, podemos retornar renascidos, tendo trocado de casca. E junto
vida, sem perceber que os seus movimentos psíquicos, as suas ações, com isso, manifestarmos uma intensa alegria ingênua, infantil, ino-
a falta de um continente interno mais estável para as suas emoções e cente, embora estando também mais perspicazes do que jamais fôra-
impulsos, a sua intolerância contribuíam para esse inferno. mos. Sacks, esse notável neuro-fisiologista, aproxima-se de um im-
Há pessoas que necessitam de estímulos constantes para preen- portante pressuposto psicanalítico quando menciona que uma única
cher o sentimento de vazio existencial, apresentam dificuldades de relação positiva, construtiva, e que tenha sido internalizada de um
atenção, de notação, de concentração. Elas têm respostas para tudo, modo mais estável, é fundamental para nos sentirmos vivos. Consti-
mas não têm perguntas, carecem de um diálogo interior. Julgam rapi- tui-se como uma corda salva-vidas nas dificuldades e nos momentos
damente os outros, e se julgam muito lentamente, quando o fazem. de desespero, uma bússola num oceano de percalços.
Penso que cabe ao analista atentar para esses movimentos psíquicos, Julgo que é nas relações íntimas, confiáveis, mais estáveis e
pois a fragilidade do continente pode acarretar desfechos violentos, afetivamente verdadeiras que uma pessoa se desenvolve, que o con-
ruptura do vínculo analítico, descontroles, conluios, desejos imperi- tinente interno se expande. Muitas vezes, não só a formulação do
osos sem alguma discriminação entre o real e o possível, inveja atu- analista, mas principalmente a tonalidade afetiva da mesma, a
ada, que substituem a percepção de si e contribuem para a anulação entonação da voz, a melodia, que possibilitam o trabalho de introjeção
do pensar e de um vínculo apoiado em crescimento psíquico. Estan- e o estado de continência. O analista não cria o continente interno,
do continente, o analista pode acompanhar, nomear, ajudar a conter e mas pode ajudar a liberar a função continente para que o analisando
a pensar nesses movimentos psíquicos, e suas transformações. Isso se tolere, se oriente, se respeite, se discrimine, e tolere minimamente
não é o mesmo que consolar, reassegurar. Nomear, tolerar o trans- o outro. Penso que o analista pode ajudar quem quer e se dispõe a ser
bordamento, conter, suportar a identificação projetiva, dialogar aju- ajudado. Portanto, é preciso que o analisando perceba que alguém
dando a pensar nos temores, nas fantasias, nas teorias, a meu ver, lhe oferece um cuidado e se disponha a percebê-lo, a usá-lo. O esta-
auxiliam o desenvolvimento mental. do de continência se exerce apoiado na receptividade do par analíti-
Considero ser essencial a existência de alguma continência para co, quando a benevolência, a compaixão, a crítica, a reflexão se so-
as contradições, para os elementos reprimidos, cindidos que nos pa- brepõem ao rancor, ao ressentimento, aos estados narcisistas, à oni-
recem estranhos e que recusamos em nós. Eles são variáveis, e não potência.
são simples de serem vividos. Neste livro, aponto para a estreita rela- Acredito que o humor respeitoso do analista que protege, que
ção entre o estado de continência para a vida psíquica e a valorização consola, que considera o sofrimento do analisando, sem banalizá-lo,
do amor à verdade psíquica. Isso exige tolerância, também um parti- ajuda a humanizar e a pensar, colabora para a liberação do estado de
cular estado psicológico para o humor. Essas disposições não são continência ao estimular a compaixão, a flexibilidade mental, a mu
escolhidas, embora possam ser estimuladas, liberadas. dança psíquica. Isso depende de uma disposição psicológica,
Em Tempo de despertar, Oliver Sacks observou que, em face de favorecida pelo vínculo de confiabilidade, de amor à verdade, que
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PAULINA (YMROT

permite a investigação, a indagação e a expansão do continente inter-


no. Com a dependência indulgente, com a delicadeza e a firmeza na
utilização do método psicanalítico, com o humor respeitoso, julgo
que o analista pode ajudar a conter aquele mínimo incurável nele
mesmo e no analisando.
Tenho em mente que parar de escrever não é o mesmo que con-
cluir um trabalho. Com essas idéias, certamente inconclusivas, encer-
ro este livro, expressando a minha gratidão aos meus analisandos, aos
Bibliografia
meus alunos, aos meus mestres, aos meus amigos, à minha fanu1ia,
que me ajudam cotidianamente a vitalizar o meu potencial de atenção,
de tolerância, de afetividade, de pensamento. Penso que a Psicanálise ABRAHAM, N.; Torok, M. 1995 A casca e o núcleo. 1' ed., São Paulo,
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177. Av. Angélica, 672 - conj. 147 - Higienópolis - São Paulo, SP.
CEP: 01228-000 - Tel.: (0xx 11) 3666-8082 - FAX: (0xx 11 ) 3662-4274
e-mail: amapaula.fwb @ terra.com.br
e-mail : ~rot@terra.com.br

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