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[1] Carta a um amigo, na qual sugiro a leitura de meu poeta preferido1

F. W. Nietzsche
[tradução: Fabiano Lemos – UERJ]

19.10.61.

Caro amigo.

Algumas manifestações da tua última carta a respeito de Hölderlin me


surpreenderam muito, e me senti movido a, contra ti, colocar as coisas em seu devido
lugar quanto a este meu poeta preferido. Colocarei diante de teus olhos tuas palavras
duras, mesmo injustas; talvez já nutras agora uma outra opinião: “Como pode Hölderlin
ser teu poeta preferido é para mim algo que não posso de modo algum esclarecer. Sobre
mim, ao menos, estes sons indistintos e meio insanos [verschwommenen,
halbwahnsinnigen Laute] de um ânimo destruído, [2] quebrado, só causaram uma
impressão triste, ocasionalmente repulsiva. Colapsam entre si a fala obscura [Unklares
Gerede], ocasionais pensamentos de manicômio [Tollhäuslergedenken], severos
rompantes contra a Alemanha, divinização do mundo pagão, ora naturalismo, ora
politeísmo – sua poesia está impregnada de tudo isso, certamente em bem sucedida
métrica grega”. Em bem sucedida métrica grega! Meu Deus! Esse é todo teu louvor?
Esses versos (para falar apenas da forma exterior), jorrados do ânimo mais puro, mais
suave, esses versos, em sua naturalidade e ancestralidade [Ursprünglichkeit], que
eclipsa a arte e o uso da forma em Platen 2, esses versos, ora ondulando na mais sublime
oscilação da ode, ora perdidos nos mais doces sons da melancolia, esses versos tu não
podes louvar com nenhuma outra palavra senão com o raso e cotidiano “bem
sucedido”? E esta certamente não é a maior injustiça. Fala obscura e ocasionais
pensamentos de manicômio! Dessas desdenhosas palavras se esclarece para mim, em
primeiro lugar, em que medida estás influenciado por um preconceito vulgar contra
Hölderlin, e, em segundo lugar, acima de tudo, que as próprias obras não te são senão
obscuras imagens [Einbildungen] porque não lestes nem suas poesias, nem o resto de
sua produção. Pareces afinal permanecer na crença de que ele só escrevera poesias.
Assim, não conheces, então, o Empédocles3, este fragmento dramático tão significativo,
em cujos penosos tons reverbera o futuro do infeliz poeta, o túmulo de uma loucura que
durou anos, mas não, como pensas, em fala obscura, mas, antes, na língua mais pura,
mais sofocleana, e em plenitude infinita de pensamentos profundos. Também não
conheces o Hyperion4, que no movimento harmonioso de sua prosa, na sublimidade e na
beleza das formas [Gestalten] que aí emergem, sobre mim causam a impressão
semelhante à do bater das ondas do mar agitado. [3] Enfim, essa prosa é música, suave
ressoar melífluo, que rompeu de dolorosas dissonâncias, finalmente expiradas em
lúgubres, inquietantes canções fúnebres. – Mas o que foi dito dizia respeito
primeiramente apenas à forma exterior; permita-me, então, acrescentar ainda algumas
palavras sobre a plenitude do pensamento de Hölderlin, que tu pareces considerar como
confusão e obscuridade. Se tua reprovação efetivamente se dirige, além disso, a algumas
poesias do tempo de seu devaneio – e mesmo se, nas mais antigas, às vezes a
1
Brief an meinen Freund, in dem ich ihm meinen Lieblingsdichter empfehle In: NIETZSCHE,
F., Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke. Band 2: Jugenschriften. Herausgegeben von Joachim
Mette. München: dtv, 1994, pp. 1-5. A paginação original encontra-se entre colchetes.
2
August von Platen-Hallermünde (1796-1835), poeta e dramaturgo alemão.
3
Empedokles, peça inacabada de Hölderlin.
4
Romance epistolar publicado por Hölderlin em 1797.
profundidade disputa com a invasora noite da loucura –, então a grande maioria dessas
são pérolas puras, preciosas, de toda nossa arte poética. Remeto-te apenas a poesias
como “Retorno à pátria [Rückkehr in die Heimat]”, “a corrente encadeada [der
gefesselte Strom]”, “Queda do sol [Sonnenuntergang]”, “o cantor cego [der blinde
Sänger]”, e dirijo-te mesmo as últimas estrofes de “Fantasia vespertina
[Abendphantasie]”, na qual se manifesta com quietude a mais profunda melancolia e
nostalgia.

– No céu da tarde floresce uma primavera;


Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo brilha
O mundo dourado; ó até aí levai-me,
Púrpuras nuvens! e alto possa

Na luz e no ar dissolver-me o amor e o sofrimento! –


Contudo, como que banido por tolos pedidos, escapa
O mágico. Escurece, e solitário
Sob o céu, como sempre, estou.

Venha agora, gentil dormidor! Tanto deseja


O coração, mas, enfim, tu perdes a juventude!
Tu, inquieto, sonhador!
Pacífica e serena é, então, minha era.5

Em outras poesias, como, especialmente, em “Recordação [Andenken]” e


“Peregrinação [Wanderung]”, eleva-nos o poeta à máxima identidade, e sentimos com
ele que este era o seu [4] elemento pátrio. Finalmente, há de se notar toda uma série de
poesias nas quais ele diz aos alemães verdades amargas, que, infelizmente, muitas vezes
são demasiadamente fundamentadas. Também em Hyperion, ele lança palavras afiadas
e cortantes contra a “barbárie” dos alemães. Por isso, esta repulsa da realidade pode ser
unida ao maior amor pátrio, que Hölderlin também efetivamente possuía em alto grau.
Mas ele odiava nos alemães o mero especialista, o filisteu. –
No drama trágico [Trauerspiel] não terminado “Empédocles” desdobra-nos o
poeta sua natureza própria. A morte de Empédocles é uma morte por orgulho divino,
por desprezo dos homens, pela saturação do terreno e por panteísmo. Ao lê-la, toda a
obra me comoveu de modo completamente particular; vive nesse Empédocles uma
grandeza divina. Em Hyperion, ao contrário, se ele parece inicialmente inundar com
brilho irradiante, tudo está insatisfeito e incompleto; as formas que o poeta conjura são
“imagens feitas de ar, que nos enleva em tonalidades que suscitam a dor pátria
[Heimweh], repercutem ao nosso redor, mas também despertam insatisfeita nostalgia”.
Em nenhum lugar, contudo, a nostalgia da Grécia se revela, além disso, em ressoar mais
puro que aqui; em nenhum lugar encontra mais claramente a afinidade de alma de
Hölderlin com Schiller e Hegel, seu amigo íntimo.

5
Tradução literal dos seguintes versos de “Abendphantasie” de Hölderlin: “Am Abendhimmel blühet ein
Frühling auf;//Unzählig blühn die Rosen, und ruhig scheint/ Die goldne Welt; o dorthin nehmt mich,/
Purpurne Wolken! und mögen droben// In Licht und Luft zerrinnen mir Lieb und Leid! – / Doch, wie
verscheucht von törichter Bitte, flieht / Der Zauber. Dunkel wird's, und einsam / Unter dem Himmel, wie
immer, bin ich. // Komm du nun, sanfter Schlummer! Zu viel begehrt / Das Herz, doch endlich, Jugend,
verglühst du ja! / Du ruhelose, träumerische! / Friedlich und heiter ist dann mein Alter”.
Pude apenas tocar, até aqui, em pouca coisa, mas tenho de deixar a ti, caro
amigo, compor, a partir dos traços indicados, uma imagem do infeliz poeta. Que eu não
contradiga as acusações que tu lhe fazes em função de sua perspectiva religiosa
contraditória, tu tens de atribuir ao meu conhecimento de filosofia demasiadamente
parco, que, em grande medida, necessita de uma consideração mais detida deste
fenômeno. Talvez tu empreendas a tarefa, um dia, de adentrar este ponto mais
detidamente, e, através de seu esclarecimento, jogar alguma luz sobre as causas de sua
ruína espiritual [Geisteszerrüttung], [5] que, é claro, dificilmente tem aqui suas únicas
raízes.
Certamente me perdoas se em meu entusiasmo às vezes empreguei contra ti
palavras duras; apenas desejaria – e considera isto a finalidade de minha carta – que
fosses movido, através delas, a uma aquisição de conhecimento e a uma apreciação livre
de preconceitos desse poeta, que a maioria de seu povo conhece quase que só de nome.

Teu amigo
FWNietzsche’

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