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94 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

A evolução histórica da drenagem urbana:


da drenagem tradicional à sintonia com a
natureza
The historical evolution of urban drainage: from traditional
drainage to harmony with nature

Demetrios Christofidis1, Rafaela dos Santos Facchetti Vinhaes Assumpção2, Débora


Cynamon Kligerman2

DOI: 10.1590/0103-11042019S307

RESUMO No Brasil, mais de 80% da população brasileira vive em cidades. Como consequência
desse crescimento populacional, há impermeabilização do solo, ocupação das faixas marginais
de proteção dos rios, desmatamentos, canalização de rios, quantidade crescente de resíduos
sólidos que são jogados nesses corpos hídricos, dentre outras. Quando ocorre grande precipi-
tação pluvial, os corpos hídricos transbordam provocando inundações com danos materiais,
humanos, ambientais que impactam a saúde da população. No mundo, 20 milhões de pessoas
sofrem anualmente com enchentes. O Brasil ocupa a 11ª colocação no ranking com 270 mil
pessoas atingidas pelas inundações. Este artigo, pesquisa histórica, descritiva com pesquisa
bibliográfica e documental, faz uma reflexão da evolução do processo de manejo de águas pluviais
urbanas desde a fase da drenagem tradicional, com a implantação de medidas estruturais e não
estruturais com o propósito de afastar as águas, passando pela drenagem sustentável, quando,
com intuito de retardar o fluxo das águas são construídos reservatórios subterrâneos até a fase
atual quando são propostas soluções baseadas ou em sintonia com a natureza, com estruturas
cinzas e verdes. Deseja-se contribuir para a sensibilização de gestores e da população para
que cada um cumpra o seu papel no consciente manejo adequado das águas pluviais urbanas.

PALAVRAS-CHAVE Manejo de águas pluviais. Controle de cheias. História. Tendências. Impactos


na saúde.

ABSTRACT In Brazil, over 80% of the Brazilian population live in cities. As a consequence of that
population growth, there is waterproofing of the soil, occupation of marginal river protection strips,
1 Universidade de Brasília deforestation, river channeling, increasing amount of solid waste that is thrown into these wa-
(UnB) – Brasília (DF), ter bodies, among others. When great rainfall occurs, water bodies overflow and cause flooding
Brasil.
with material, human and environmental damage impacting the health of the population. In the
2 Fundação Oswaldo
world, 20 million people suffer annually from floods. Brazil occupies the 11th place in the rank-
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde ing with 270 thousand people being affected by the floods. This article, therefore, makes a criti-
Pública Sergio Arouca cal analysis of the evolution of the process of urban rainwater management from the tradition-
(Ensp), Departamento
de Saneamento e Saúde al drainage phase, with the implementation of structural and non-structural measures with the
Ambiental (DSSA) – Rio de purpose of repelling water, including the use of sustainable drainage, with the purpose of delay-
Janeiro (RJ), Brasil.
kliger@ensp.fiocruz.br ing the flow of water by constructing underground reservoirs, to the present phase when solutions

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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are proposed based on or in harmony with nature, with gray and green structures. We hope to
contribute to raising the awareness of managers and of the population so that each one fulfills
their role in the appropriate and conscious management of urban rainwater.

KEYWORDS Stormwater management. Flood control. History. Tendency. Impacts on health.

Introdução condições naturais do ciclo hídrico, reduzindo


picos de cheias. Com isso, postergar o momento
A contextualização da gestão da drenagem da ocorrência do pico, de modo a minimizar
urbana, conhecida como manejo das águas os impactos aos ambientes aquáticos e meios
pluviais urbanas, considerou o ciclo das águas urbanos e circunvizinhos; e ainda, oferecer,
na porção terrestre do planeta e os avanços maior atenção, condições e espaço para as
das formas de atuação técnica decorrentes. Os ações associadas ao modo desenvolvimento
avanços técnicos foram associados à evolução sustentável serem praticadas em ampla escala.
da dinâmica da percepção hídrica. Ponderou- A terceira fase representa um salto a uma
se, então, sobre três dimensões reflexivas que nova dimensão, um nível de realidade na
consideram a percepção humana sobre as evolução humana, no qual passou a existir
águas pluviais. Essas dimensões estão vincu- uma consciência ampliada no conhecer e no
ladas aos atributos e culturas. cuidar das águas, reconhecida como proposta
A primeira fase, conhecida como drenagem de Soluções baseadas na Natureza (SbN) para
urbana tradicional, quando o propósito era de a gestão da água1,3. A atuação humana passa
controle das águas para reduzir o impacto das a ser centrada em perenes diálogos com os
cheias, período em que predominou a adoção ecossistemas hídricos, o conversar com a água
de medidas estruturais e não estruturais, e ouvir a voz da água2,4.
caracterizou-se por um modo antropocen- A gestão das águas em sintonia com a na-
trista, insuficiente para superar os problemas tureza eleva o patamar da existência humana
de águas urbanas, pela visão predominante ser pela admiração e contemplação das águas,
localizada e focada na coleta e no afastamento dimensão que se denominou por hidrossu-
imediato das águas pluviais, considerando as peração e hidromaturidade2,5.
águas em excesso, por perceber a água pluvial O modo ampliado de compreender às águas
como sendo água inconveniente, inadequada, ocorre com a combinação da experiência
indesejada, prejudicial e danosa. Uma cultura adquirida nas práticas convencionais da en-
na qual a água, como atributo pluvial, era inde- genharia, passando para o entendimento do
sejada, um problema e deveria ser eliminada conceito do desenvolvimento sustentável e nas
o mais imediato possível1,2. preocupações atuais das mudanças climáticas
Na segunda fase, denominada por drena- causadas, em tese, pela ocupação agressiva
gem urbana sustentável, houve uma evolu- humana no planeta; ressignificando em um
ção nos paradigmas associados aos modos de despertar para a importância de aprimorar as
gestão e de manejo das águas pluviais urbanas. realizações das atividades e empreendimen-
Adicionou-se o controle das águas das chuvas tos em ambientes e ecossistemas hídricos,
na fonte e a indução à infiltração e à reten- cooperando e dialogando com seus compo-
ção das águas, como opções de recompor as nentes, dedicando à harmonização com os

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ciclos da natureza1 e das águas, próprias dos drenagem urbana, em todas as fases, desde
conceitos de hidrocidadania, hidrofraterni- a drenagem tradicional (1850 até década de
dade, hidrocooperação, hidrossuperação e de 1970), drenagem sustentável (a partir de 1970)
hidroética2,3,5,6. e as SbN (a partir de 2018).
Realiza-se, assim, a evolução, ou melhor, a
re-Visão paradigmática, surgindo um modo O ciclo das águas
de ver, de sentir e de dialogar com a natureza,
sintonizar e reconhecer a natureza hídrica. Para iniciar esse processo de sensibilização
O conversar com as águas e o ouvir a voz das sobre gestão das águas e como se deve tratá-las
águas aprimoram a base dos propósitos, os no meio urbano e em todas as fases de seu
modos de atuar do ser humano que serve à ciclo, é importante compreendê-lo em todas
preservação da vida, aprimorando em sintonia as suas etapas.
com a natureza a sensibilidade hídrica. A oferta de água renovável anual no planeta
Esse modo aperfeiçoa a gestão ambiental e é constituída de sua precipitação nos oceanos
das águas realizando atividades compatíveis e de outra porção de sua precipitação sobre a
com propósitos respeitosos com a natureza, superfície terrestre7. Essa contribuição hídrica
propondo uma evolução paradigmática que anual, à parte terrestre do planeta, correspon-
adote alternativas em drenagem urbana, com de 111.000 km3, sendo de duas origens: das
as águas pluviais, que abandonem os precon- chuvas (98.500 km³) e das neves (12.500 km³).
ceitos e que sejam efetivamente concebidas Os profissionais dedicados à gestão das
em sintonia com a natureza, em parceria, em águas, didaticamente, descrevem a água pre-
diálogo com as águas. Essa composição possi- cipitada à superfície do planeta em duas parce-
bilita uma conveniência pacífica e harmoniosa las: a primeira foi nominada como água azul e
com a natureza. corresponde à oferta anual de água renovável,
Nessa dimensão, o ambiente saudável, da ordem de 45.500 km3 (41%), constituída do
por sua natureza, acolhe todos os reinos, Escoamento Superficial (ES) (15.300 km³/ano)
cobrindo-os com o padrão da saúde em e do Escoamento Subsuperficial (ESS) (30.200
plenitude. km³/ano). Esses dois escoamentos (ES+ESS)
alimentam os cursos de água e proporcionam a
recarga dos aquíferos, suprindo os mananciais
Metodologia de Água Subterrânea (AS)7.
A segunda parcela da precipitação de água
Este artigo foi elaborado com base em uma renovável, 65.500 km3 (59%), que ocorre anu-
pesquisa histórica e descritiva. Como método, almente na superfície terrestre, na vegeta-
empregou-se a pesquisa bibliográfica e docu- ção e nas camadas superiores dos solos, foi
mental. Foram utilizados artigos indexados, nominada por água verde, sendo a fonte de
livros e documentos na língua portugue- recursos básicos primários para os diversos
sa e inglesa que abordassem a temática da ecossistemas ( figura 1)7.

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Figura 1. Oferta anual de água renovável no planeta: água azul e verde

Considerando-se que houve alta taxa de Esses são os principais aspectos motiva-
urbanização em muitas regiões do Brasil, ela dores para a ampliação do estreito olhar de
passou de 82,5% em 2005, para 84,7% em 20158, controle de cheias que era típico dos gestores
os impactos das chuvas no meio urbano e nos das águas urbanas para ver a complexidade e
ecossistemas aquáticos ampliaram-se conside- múltiplos objetivos que ocorrem no lidar com
ravelmente, potencializando os desafios para essas águas, superando, de certa forma, o pre-
os gestores da drenagem, das áreas e das águas conceito, a ignorância e ampliando o respeito
urbanas. Os sistemas tradicionais de drenagem e o convívio para com as águas pluviais.
urbana mostraram-se ultrapassados; e suas falhas,
interferências negativas, intensas e amplas foram Os paradigmas da drenagem urbana
percebidas tanto nos componentes do ciclo hidro-
lógico urbano como na população, nos ambientes
urbanos e nas bacias hidrográficas1. A DRENAGEM URBANA TRADICIONAL: O
Os principais fatores causais são: o modo de PARADIGMA SUPERADO
aproveitamento aplicado aos solos, vegetação
e às águas; a atuação de forma setorial e frag- A drenagem urbana tradicional caracterizou-se
mentada; as interferências danosas pela falta no Brasil por uma abordagem denominada
de integração entre os agentes; a desconexão Higienista (Fase 1), que ocorreu no período
entre atividades/serviços das agências em entre 1850 e 1990, na qual havia a coleta e o
níveis distintos (federal, estadual, municipal afastamento imediato das águas pluviais para
e distrital) e em espaços ambientais e áreas jusante, causando a elevação do pico de cheias
físicas, culturais, comportamentais e de inte- nos cursos de água e a diminuição do tempo
resses amplos e com grande diversidade em de concentração, agravando a situação das
escala. Contribui, também, o modo preponde- cidades, dos cidadãos e das águas, pelas carac-
rantemente reativo do poder público à acele- terísticas das soluções parciais que resultam
rada forma que a urbanização foi concebida em inúmeros problemas intersetoriais.
e implantada sem consideração suficiente à No histórico da ocupação urbana no País,
dinâmica hídrica. podem-se citar casos de ocupações em áreas

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antes pantanosas e de baixada levando ao das diversidades urbanas, possibilitam ampliar


‘dessecamento’ de terras alagadiças e várzeas, a integração com os padrões de escoamento
aterros de áreas inundáveis e na limpeza de preexistentes na natureza.
alguns rios e retificação de outros, cujas con- Uma transição evolutiva aconteceu após 1990,
dições ambientais as tornavam vulneráveis às quando ocorreu um modo de atuar denominado
epidemias. A seguir, tem-se a prática de aterros Ambientalista (Fase 2), em que o manejo das
e as obras de redução das grandes superfícies águas pluviais urbanas adotou os princípios que
de água aparente que passam a ser largamente já vinham sendo aplicados em muitos países,
utilizadas para ganhar terras dos rios, que se que ampliavam o olhar para resgatar aspectos da
tornam bens de consumo vendidos em séries dinâmica das águas, em especial: a redução do ES
de lotes9. Seus atributos negativos levam a das águas pluviais; a indução à maior infiltração
drenagem tradicional a ser considerada como e percolação das águas nos solos com sentido de
sendo um paradigma superado, especialmente controle, manejo quantitativo, qualitativo e de
por causar impactos adversos nos aspectos regularização da oferta hídrica; e à adoção de
sociais, ambientais, técnicos e econômicos9. medidas de retenção de águas, incluindo obras
As entidades, os empreendedores e os assen- alternativas para redução do pico de cheias e da
tamentos humanos, que utilizam sistemas de velocidade das águas9.
drenagem urbana tradicional, são responsáveis
pela geração de situações que se caracterizam A DRENAGEM URBANA SUSTENTÁVEL: O
pelo que ficou conhecido por: privatização dos PARADIGMA DA SUSTENTABILIDADE NAS
benefícios e socialização dos custos. Isso ocorre ÁGUAS PLUVIAIS URBANAS
especialmente em decorrência da acumulação
sucessiva de vazões com a ampliação do porte Cabe, entretanto relembrar que, desde a
das estruturas e dos custos; por meio de medidas década de 1970, em diversos países, aconte-
estruturais em obras de engenharia civil, como ciam avanços no modo de manejar as águas
escavação, movimentação de solos, dragagens, ga- pluviais que apresentava uma constante evo-
lerias moldadas, tubulações, canalizações, caixas lução. Surgiram medidas, tais como; o controle
de captação, poços de visitas, sarjetas, diques e na fonte, a indução à infiltração e à retenção,
equipamentos; e a necessidade de manutenções ampliando perenemente a introdução de com-
frequentes e onerosas, de predominância das ponentes, de um modo de pensar da integração
medidas de comando e controle. das águas urbanas e de menor interferência ao
Nessa fase, em que houve intensa urbani- ciclo das águas9.
zação no Brasil, os rios transformaram-se em A descrição das inovações inseridas por essa
canalizações e/ou cederam espaços para as fase, suas características inovadoras e vantagens
vias de tráfego de veículos: ou seja, os rios se introduzidas ultrapassaram o modo tradicional
tornaram ruas; e a reação a isso é que as ruas de apenas coletar e conduzir as aguas pluviais,
apresentam altas possibilidades de se tornarem afastando o mais rápido possível as águas precipi-
rios nas ocasiões de chuvas intensas. tadas do ambiente urbano central para as perife-
Existem ocasiões e constituintes da drena- rias; e aliaram a essa percepção a geomorfologia,
gem tradicional que apresentam possibilidades os componentes estruturais e não estruturais
de otimizações, de aprimoramentos, denomi- (planejamentos, zoneamentos, medidas indu-
nados de retrofit. São as situações em que há toras à ocupação de áreas menos vulneráveis às
componentes e alternativas que se apresentam inundações, seguros contra inundações etc.). As
como oportunidades de aperfeiçoamento, es- medidas estruturais em conjunto com as medidas
pecialmente quando podem ser associadas a não estruturais ampliaram as possibilidades de
situações que, a depender da natureza dos indução a haver maior detenção, infiltração e
ecossistemas hídricos, das especificidades e percolação das águas, de modo a compensar as

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consequências negativas da drenagem tradicio- às particularidades e peculiaridades do meio


nal, passando a ser conhecida por drenagem ambiente e das características urbanas.
urbana sustentável. As novas soluções mostraram as vantagens em
Em decorrência disso, pode-se dizer que abandonar o modo aproveitamento, utilitarista
houve uma forma de ver as águas pluviais, e fragmentado de conceber os planejamentos
embora incipiente, com base nos conceitos urbanos e assentamentos humanos e dedicaram
de redução dos impactos ambientais. Essa valor ao respeito à diversidade de visões, às carac-
afirmação decorre de uma base concebida e terísticas e especificidades sociais e ambientais.
aplicada, incialmente nos anos 1970, denomi- Essas soluções influenciaram e originaram, na
nada por LID (Low Impact Development), década de 1990, na Austrália, o WSUD (Water
que foi ampliada nas duas décadas seguintes Sensitive Urban Design)12.
(1980 e 1990) e disseminada, especialmente WSUD constituiu-se em um modo de conceber
nos anos 2000 e 2010, a partir da inserção nas o urbanismo baseado no princípio da precaução13,
legislações do Canadá e dos EUA. no qual o planejamento proativo das cidades e
Na Nova Zelândia, esse novo paradigma em dos assentamentos humanos tivesse condições de
drenagem urbana expandiu-se e foi denomina- evitar ou minimizar os impactos hidrológicos da
do por LIUDD (Low Impact Urban Design and urbanização nos ambientes hídricos. Ao mesmo
Development)10, com os principais propósitos tempo, proporcionou opções e facilidades para
de restabelecer ou de manter as águas urbanas a concepção dos sistemas de drenagem urbana
por meio de soluções locais e pontuais, integra- expandindo o alcance dos sistemas de drenagem
das em uma paisagem funcional hidrológica, por considerar uma forma de gestão que ampliava
para proporcionarem o balanço hidrológico os olhares além do simples controle das cheias,
que existia na fase de pré-ocupação antrópica. da indução à infiltração e a detenção das águas
Uma segunda alternativa paradigmática de de chuva. Passou-se, então, a se constituir em
drenagem urbana sustentável surgiu, conco- um conjunto de oportunidades plurisetoriais e
mitantemente, nos anos 1980 e ampliou-se na multidisciplinares de olhar sinérgico. Expandiu,
década de 1990, conhecida pela sigla BMP (Best também, a unificação do manejo fluvial com o
Management Practices)11. O termo baseou-se em pluvial, com a qualidade das águas e seus regimes.
práticas agrícolas que se mostraram eficazes em Nesse sentido, um modelo integrado para
aspectos conservacionistas nas atividades rurais o planejamento sustentável de WSUD inte-
dos EUA, cujos componentes e conceitos mos- grando o gerenciamento do ciclo hidrológico
traram-se convincentes e foram adaptados para urbano foi proposto14; ressaltando-se que, a
atenderem às atividades de drenagem urbana e partir dos anos 1990, surgiram proposições
de controle da poluição ambiental na América de modelos que integraram a gestão dos ser-
do Norte (Canadá e EUA). viços de abastecimento d’água, tratamento de
Nesse período, diversos componentes e prá- esgotos e controle de inundações, levando em
ticas tiveram aperfeiçoamento; e seus atributos conta o balanço hídrico local.
e atitudes levaram a fazer parte do paradigma A sociedade, durante muito tempo, não
que foi associado aos conceitos de desenvol- valorizou os sistemas de infraestrutura de
vimento sustentável, da interdisciplinaridade drenagem. No entanto, atualmente, vem per-
e da multissetorialidade. cebendo a sua importância agregada em uma
As vantagens e as vulnerabilidades ob- gestão integrada das águas e do meio ambiente,
servadas ao longo da aplicação dessas novas a integração das dimensões da água potável
concepções direcionaram para aspectos de – serviço de abastecimento público, esgotos
otimização das soluções relacionadas com – coleta e tratamento e água pluviais – drena-
a gestão das águas pluviais urbanas e com a gem e controle de inundações. Essa concepção
concepção de aprimoramentos vinculadores WSUD pode ser visualizada na figura 214,15.

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Figura 2. Water Sensitive Urban Design (WSUD)

Water Sensitive Urban Design

Princípios Chaves da WSUD


Água Águas
Potável Residuais Proteção do sistema natural
Proteção Proteção da qualidade de água
dos Recursos Restaurar o balanço hídrico
Resiliência Minimizar a demanda de água potável
Integrar o tratamento das águas
pluviais à paisagem
Reduzir as hidro-modificações
Minimizar custos
Águas
Pluviais

O despertar dos agentes e tomadores de Vale lembrar que, em 1997, foi criada a
decisão decorrentes de uma busca por aper- Lei nº 9.433, mais conhecida como Lei das
feiçoamentos foram se sucedendo. Os países Águas, que instituiu a Política Nacional de
constituintes do Reino Unido, nos anos 2000, Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional
adotaram os Suds (Sustainable Urban Drainage de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Entre
Systems)16, decorrentes de modos de conceber outros benefícios da Lei das Águas, está a de-
sistemas que compatibilizam diversas tecno- finição das bacias hidrográficas como unida-
logias para comporem as diversas técnicas de des de planejamento para a gestão das águas.
drenagem e atuarem em conjunto, atendendo Ou seja, a partir da formação dos Comitês de
aos conceitos associados aos modos sustentá- Bacias Hidrográficas, a gestão torna-se descen-
veis de lidar com as águas urbanas no contexto tralizada, sendo conduzida pelas prefeituras e
das bacias hidrográficas14. sociedade civil organizada, bem como outras
Recentemente, houve um paradigma avan- instâncias dos governos estadual e federal.
çado e mais apropriado ao estágio atual da A sustentabilidade como meta passou a
percepção das interrelações entre as medidas induzir a regras de uso e de ocupação dos
estruturais e os ecossistemas, denominado por solos de modo a preservar a natureza, assim,
SbN para a gestão da água, orientando para os sistemas podem receber o abastecimento de
que as concepções dos planejamentos urbanos água, o esgotamento sanitário, tratamento, a
sejam compatíveis com a capacidade do ser drenagem urbana e a coleta, o processamento
humano, em melhorar nos cuidados de seu e a reciclagem dos resíduos17,18.
modo de atuar no ambiente, com a ampliação
do olhar e da consciência para respeitar os Ao se ocupar o solo das cidades, a complexi-
ecossistemas e os ambientes hídricos4. dade ambiental não é considerada e, através
No Brasil, a visão da gestão integrada de dos tempos, o que se faz é ‘enxugar gelo’. Os
águas urbanas foi motivo de diversos debates planos diretores urbanos são executados após
mostrando que se as cidades fossem plane- os problemas já estarem instalados e conso-
jadas de forma integrada, reduzir-se-iam os lidados. Neste cenário, a drenagem natural é
problemas ocasionados por cheias14. destruída e o ciclo hidrológico sofre impactos,

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muitas vezes irremediáveis, pelo alto custo de em sintonia com os solos, com o relevo, com
se renaturalizar o ambiente14(111). a fauna e com flora, com os ciclos das águas,
com a dinâmica hídrica, associando as infra-
Ainda, é necessário entender as correla- estruturas cinzas (obras e equipamentos) às
ções entre os sistemas para poder fazer um infraestruturas verdes5, realizando o respeito à
projeto de gestão integrada de águas urbanas, dinâmica dos ambientes, aos percursos prepa-
o relacionamento desses sistemas com a água, rados pelo meio natural ao longo dos tempos,
destacando a ocupação do solo como principal que constituem os modos dos ecossistemas,
fonte de problemas17,18. em sua forma natural, realizarem a drenagem.
O manejo de águas pluviais urbanas em sin-
O que a proposta de Tucci traz de diferente tonia com os ecossistemas potencializa os prin-
das demais é a grande quantidade de deta- cipais atributos da gestão das águas com SbN5
lhes de como fazer a integração das diversas que são: a redução representativa dos custos e a
dimensões envolvidas14(111). ampliação contínua, durável e sustentável dos
benefícios ambientais, sociais e econômicos,
O Brasil, como país signatário da Organização ampliando o alcance de resultados da drenagem
das Nações Unidas (ONU), aderiu à campanha diante dos paradigmas do passado5.
da Estratégia Internacional de Redução de Esse novo paradigma e modo de atuar,
Desastres (Eird) ante as possíveis mudanças denominado gestão das águas em sintonia
climáticas. Com uma iniciativa da Secretaria com a natureza, está associado à dinâmica da
Nacional de Defesa Civil (Sedec) e do Ministério evolucão humana19 , superando o modo utili-
da Integração Nacional, foi lançada a campa- tarista e fragmentado de lidar com as águas,
nha: “Construindo Cidades Resilientes: Minha marcado pelo antropocentrismo, ampliando o
cidade está se preparando”18(2). Esta destina- olhar além dos atributos de forma, de objeto,
-se a “prefeitos, gestores públicos e outros de estruturas desassociadas do ambiental
atores”18(2), e objetiva informar “sobre o que e social, saindo do que foi denominado por
cada um pode fazer para tornar sua cidade mais hidroaproveitamento, hidrofragmentação, hi-
segura frente aos desastres”18(2). droacumulação e hidroabuso, devido a estarem
Cidade Resiliente é aquela capaz de “resis- desapercebidas as necessidades e as vantagens
tir, absorver e se recuperar, de forma eficien- do olhar sistêmico, integrado e amplo que deve
te, dos efeitos de um desastre e de maneira existir no lidar pelos gestores que evoluem em
organizada prevenir que vidas e bens sejam sua dinâmica de percepção hídrica.
perdidos”19(127). A busca pela resiliência ne- A dinâmica de percepção hídrica possibilita
cessariamente passa por uma opção de gestão evoluir para um olhar holístico, uma visão
que integre as águas urbanas e pela percepção ampla, possibilitando um movimento para
de uma nova ética para lidar com as águas e com as águas com atributos de consciência,
com a natureza, que reduza as condições de em níveis de consciência que valorizam a
risco à saúde das populações. educação, a informação, a comunicação e a
mobilização, e gerando, nesse novo nível de re-
A DRENAGEM URBANA EM SINTONIA COM A alidade, a movimentação, a integração e a sus-
NATUREZA: O PARADIGMA DA SUPERAÇÃO tentação necessárias para o despertar: de um
E RECONCILIAÇÃO COM OS ECOSSISTEMAS ser humano hidrossolidário; de uma sociedade
HÍDRICOS dedicada a cuidar das águas de modo plural;
da hidrocidadania; do homem hidrossolidário
Esse paradigma recente, percebido em 2018, e que proporciona hidrossustentabilidade e
incentiva o ser humano a cooperar com os hidrossegurança ao meios urbanos e às bacias
ecossistemas, a entender, a respeitar e a estar hidrográficas2,3,5,6,19,20.

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Assim, são as SbN que preconizam a in- da natureza hídrica, ultrapassando o modo
tegração entre as denominadas ‘infraestru- hidroaproveitamento, hidrofragmentado, hi-
turas cinzas’ e as ‘infraestruturas verdes’, droacumulativo, hidroabusivo que caracteri-
apresentando fundamentos em aspectos que zou o início da 2ª Fase da evolução humana,
internalizam um modo de pensar e de atuar a do ‘Saber que Sabemos’ para ampliar os
que inclui a diversidade humana e ambien- movimentos e adotar uma dinâmica de estar
tal, as coletividades, com repercussões ime- em harmonia com o ambiente natural, com
diatas na saúde dos ambientes e nos corpos as águas, em níveis de percepção e atri-
hídricos, em seus diversos ciclos. Dessa butos de conscientização, um ‘Conjunto-
forma, poderão ser propagadas melhores Ação’ que considera a ConscientizAÇÃO,
condições de saúde de forma generalizada, a InfiormAÇÃO e a ComunicaAÇÃO, que
proporcionando condições de ampliação aliando-se à EducAÇÃO, ao desenvol-
plena e generalizada na saúde ambiental vimento de CapacitAÇÃO, preparam os
e de modo considerável à saúde humana. caminhos para transição à 3ª Fase evo-
Incorpora-se o princípio da precaução, as lutiva, a da ‘Consciência Pós-reflexiva’
atitudes preventivas e de proteção. que se apoia na ParticipAÇÃO e na
Na situação em que se encontram os MobilizAÇÃO, gerando a IntegrAÇÃO ne-
corpos hídricos urbanos atualmente, devem- cessária ao despertar da consciência em
-se ampliar e agilizar o alcance dos propósi- acolher e cuidar das águas. Amplia, assim,
tos de reabilitação, restauração, despoluição, o comportamento de HidroCidadania, de
revisão, de renaturalização, revitalização, HidroSSolidariedade e do Ser, que propor-
remediação e de reconhecimento e reiden- cionam a HidroSSegurança5,6,20.
tificação de cursos de água que perderam
suas identidades e se tornaram verdadeiras A SINTONIA COM A NATUREZA DEDICA-
valas condutoras de resíduos2,5,6. SE A REALIZAR NOSSA SUPERAÇÃO E A
Orienta-se para atuação na diversidade de HUMANIZAÇÃO
desafios que apresentam os diversos corpos
hídricos e no aprimoramento da manutenção A sintonia com a natureza eleva o ser
da plenitude dos ambientes hídricos. Agindo humano a uma ‘nova idade’, ao patamar
de forma consciente, cooperativa, com inten- da ‘maturidade’, despertando valores em
ções dedicadas ao coletivo, ao entendimento aspectos que internalizam um modo de
e convivência com os outros seres, poder-se-á pensar e de atuar que incluem o considerar
alcançar um futuro de admiração da sinfonia ‘a diversidade na unidade e a unidade na
que a natureza nos apresenta e a contempla- diversidade’, o atuar a favor da coletividade,
ção da sinfonia das águas. com repercussões imediatas na saúde dos
A esse novo paradigma e modo de sentir ambientes e nos fluxos dos corpos hídricos
e atuar, denominado gestão das águas em e em seus diversos ciclos, propagando me-
sintonia com a natureza, estão associadas lhores condições de saúde de forma gene-
a dinâmica da percepção hídrica e a dinâ- ralizada, beneficiando os diversos reinos,
mica da evolução humana, ultrapassando proporcionando condições de ampliação
o modo utilitarista e fragmentado de lidar plena e generalizada na saúde ambiental
com a natureza e com as águas, marcado pelo e de modo considerável à saúde humana,
antropocentrismo; que dominou o mundo incorporando o princípio da precaução, as
desde a 1ª Fase da evolução humana, do atitudes preventivas e de proteção.
denominado ‘Conhecimento Pré-reflexivo’. A etapa final da 3ª Fase de evolução
Avança a novos níveis de realidade, evo- humana amplia a consciência hídrica em
luindo além da visão de usufruto unilateral direção à sabedoria humana, favorecendo,

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A evolução histórica da drenagem urbana: da drenagem tradicional à sintonia com a natureza 103

entre outros, a prática da interdisciplinari- evolução humana’2 inerentes ao amadureci-


dade, o exercício da a multissetorialidade, mento do ser humano em seu modo de con-
o diálogo, a cooperação e a fraternidade viver respeitoso e em sintonia com as águas:
hídrica, evoluindo para a ética com água, que por extensão na ‘dinâmica da percepção
denominada: hidroética2,5. hídrica’ denominada por HidroSSuperação,
A hidroética constitui-se em um portal HidroLucidez e HidroMaturidade da
de acesso aos três atributos da ‘dinâmica da espécie humana6,20.

Figura 3. Dinâmica da evolução da percepção hídrica

Dinâmica da Evolução da Percepção Hídrica


HIDROMATURIDADE
HIDROSUPERAÇÃO; HIDROLUCIDEZ
HidroADMIRAÇÃO; HidroCONTEMPLAÇÃO;
HidroRECONCILIAÇÃO; HidroFRATERNIDADE;
Fase da Evolução Humana

SABEDORIA
HidroÉTICA; HidroCONSCIÊNCIA;

3ª Fase: Consciência pós-reflexiva


Amadurecimento inicial como ESPÉCIE
CONSCIÊNCIA + InformAÇÃO +ComunicAÇÃO;
A Dinâmica da FORMA
2ª Fase: Consciência reflexiva - Saber que Sabemos

1ª Fase: Conhecimento Pré-reflexivo, da ‘Consciência Contraída’

Tempo

Impactos na saúde pela ausência de e Agência de Avaliação Ambiental dos Países


drenagem Baixos (PBL), foram identificados 164 países;
e entre esses, os 15 primeiros países abrigam
Milhares de pessoas são afetadas anualmen- 80% da população que é afetada anualmente
te com inundações decorrentes da falta de por enchente. Estimou-se que 20 milhões de
drenagem. Por meio da ferramenta Aqueduct pessoas sofrem anualmente com as inunda-
Global Flood Analyzer, desenvolvida por cinco ções. O Brasil ocupa a 11ª posição. Anualmente,
instituições: World Resource Intitute (WRI); 270 mil pessoas são afetadas com as enchentes
Deltares; Institutto de Estudos Ambientais da (gráfico 1)21.
VU University Amsterdam; Utrecht University

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104 Christofidis D, Assumpção RSFV, Kligerman DC

Gráfico 1. Os 15 países com população (milhões) afetadas com as inundações

Resto do Mundo 4,24


Cambodia 0,19
Iraque 0,19
Congo 0,24
Tailândia 0,25
Brasil 0,27
Nigeria 0,29
Países

Afeganistão 0,33
Nyanman 0,39
Egito 0,46
Indonesia 0,64
Paquistão 0,71
Vietnam 0,93
China 3,28
Bangladesh 3,48
India 4,84
0 1 2 3 4 5 6
População (milhões) afetada com as Inundações

No Brasil, o Sistema de Informações sobre municípios brasileiros), sendo 171 municípios


Desastres identificou, no período de 1º de na região Norte, 846 na região Nordeste, 757
janeiro de 2000 a 31 de julho de 2017, 6.164 na região Sudeste, 914 na região Sul e 184 na
situações de emergência (ocorrência de en- região Centro-Oeste22.
chentes) em 2.872 municípios (51,5% dos

Figura 4. Distribuição espacial de localidades em situação de emergência no Brasil devido a enchentes, período 1/1/2000
a 31/7/2017

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A evolução histórica da drenagem urbana: da drenagem tradicional à sintonia com a natureza 105

Alguns fatores considerados causadores Na maioria das enchentes, a maior demanda


das enchentes são: mudanças climáticas, pelos serviços de saúde ocorre nas primeiras
acúmulo de lixo, impermeabilização do solo, 24 horas a 48 horas. Após 72 horas, normal-
ocupação dos solos à beira dos rios e os sis- mente os atendimentos são pelo consumo de
temas de drenagem precários, superados ou água contaminada, aglomeração de pessoas,
inexistentes23,24. exposição climática e aumento de vetores23.
Como consequências das enchentes, há Há estudos que apontaram para aumento da
impactos diretos ou indiretos sobre a saúde, taxa de mortalidade nos 12 meses subsequen-
que podem ser de curto, médio e longo prazo. tes ao evento que causam, além da morte de
Há danos materiais como na infraestrutura humanos, a de animais26.
urbana, mas também traumas físicos e psicoló- A resposta do setor saúde dependerá do
gicos, óbitos e doenças por veiculação hídrica: conhecimento da região e da antecipação de
leptospirose, doenças diarreicas agudas, tétano ações de prevenção e preparação, já que as
acidental, acidente com animais peçonhentos, enchentes têm o potencial de causar surtos
dengue, como também choques elétricos, além de doenças infecciosas, de agravar doenças
de agravos à saúde como transtornos psicosso- crônicas como também de intensificar com-
ciais, estresse pós-transtorno, insônia, fobias portamentos de risco como abuso de álcool
e depressão. e de drogas. Portanto, além de conhecer o
Acrescentam-se efeitos aos determinantes perfil epidemiológico da região, é necessário
da saúde (produção de alimentos, qualidade da fazer o levantamento de ameaças e vulnera-
água, comportamento de vetores e de agentes bilidades e ter recursos para atuar em épocas
infecciosos) e efeitos sobre processos sociais emergenciais.
como migração de pessoas e redução da qua- As políticas e práticas de gestão de risco
lidade de vida25,26. de enchentes devem se basear no fato de que
Em relação às doenças, além das relaciona- a inundação não é um evento inesperado e
das com a falta de saneamento ambiental, há devem atuar no sentido de minimizar estes
também o aumento de bactérias e de fungos eventos com o planejamento das cidades e
que causam as doenças respiratórias. Estudo ações, como o manejo adequado e sustentável
também revelou laringites, pressão alta e infec- das águas urbanas.
ções renais. Foram ainda apontados aumento
de violência familiar, abuso no consumo de
álcool e medicamentos entre adultos e dis- Considerações finais
túrbios em jovens meninas devido a assédio
sexual em abrigos temporários19,25. As mudanças climáticas vêm intensificando as
A intensidade dos impactos sobre a saúde da chuvas, que, aliadas ao processo de urbaniza-
população depende da intensidade do evento ção sem planejamento, são identificadas como
e do grau de vulnerabilidade a que aquela po- as causas de enchentes frequentes e outros
pulação está sujeita. À medida que aumenta a desastres ocorridos no País. Por outro lado,
vulnerabilidade daquela população ou de seu os sistemas tradicionais de drenagem urbana
território, há tendência de alterar o perfil da mostram-se ineficientes para o transporte do
morbidade e mortalidade daquela popula- volume excedente de água; nem mesmo os sis-
ção, de aumentar a demanda pelos serviços de temas constituídos de reservatórios de amor-
saúde e de reduzir ou interromper a prestação tecimento aliviam os efeitos das chuvas de
de serviços (saneamento, transporte, comu- intensidades extremas. No entanto, acredita-se
nicação etc.); além de provocar ausência nos que as medidas preventivas aliadas à aplicação
locais de trabalho, levando a consequências de políticas públicas adequadas poderão levar
de ordem econômica23,24. a mudanças de comportamento da população,

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106 Christofidis D, Assumpção RSFV, Kligerman DC

as quais mais conscientes e éticos poderão quis-se, com este artigo, chamar a atenção
capacitar e estruturar as cidades à resiliência. para a importância da mudança de olhar e de
Aproxima-se a época em que a cultura retró- comportamento, em que a convivência com
grada de perceber as águas pluviais terá uma as águas com respeito, ética e maturidade
grande alteração. Essa superação levará a que poderá fazer toda a diferença para a saúde e
as águas encontrarão, em diversas etapas de para a sobrevivência humana no planeta para
seu ciclo, uma receptividade e um acolhimento as próximas gerações.
inerentes à grandeza da consciência humana.
Assim, as águas estarão presentes em quanti-
dade, qualidade, oportunidade, regularidade Colaboradores
na plenitude de seu dinamismo.
Perceber com base em um novo modo de Christofidis D (0000-0001-7815-1480)* parti-
sentir, de sintonizar-se com a água pluvial, aco- cipou substancialmente da concepção e pla-
lhida, respeitada e bem tratada, potencializa nejamento do artigo e da aprovação da versão
seus atributos a favor de servir à realização dos final do manuscrito. Assumpção RSFV (0000-
modos de ser de todos os reinos, do vir a ser 0001-8257-3950)* participou substancialmente
da vida saudável a todos os corpos no planeta. da revisão crítica do conteúdo e da comple-
Esse novo olhar para o ambiente integrado à mentação da crítica à drenagem tradicional e
vida humana com via de mão dupla será neces- do item drenagem sustentável e da aprovação
sário para passar-se pelas mudanças climáticas da versão final do manuscrito. Kligerman DC
com menos perdas de vidas e maior resistência (0000-0002-7455-7931)* participou signifi-
às doenças. Caso isso não aconteça, ter-se-ão cativamente da descrição da metodologia, da
cada vez mais estatísticas de desastres em que revisão crítica do conteúdo e complementação
a drenagem tradicional não funcionará, em da crítica da drenagem tradicional, dos itens
que as encostas deslizarão por falta de um drenagem sustentável e impactos na saúde da
sistema de geotecnia adequado para os pro- drenagem e da aprovação da versão final do
blemas de contenção e drenagem. Entretanto, manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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