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Não Quero Saber Nada!

Vinham ambos de famílias conservadoras. Nados e criados em ambiente rural e controlado.


E isso nã o impediu que lhes sucedesse a eles o que a seguir se vai contar. Nã o julgue, o
leitor, com pensamento veloz e cortante, enquanto nã o souber tudo o que a vida tem
reservado para si. Podia até ser uma histó ria câ ndida e previsível nã o fosse dar-se o caso de
se ter instalado o tédio lá em casa.

***

A mã e dela chamava-se Maria da Gló ria e costurava para fora no tempo em que isso foi
profissã o para mulheres de militares e outros funcioná rios pú blicos. Maria da Gló ria tinha a
língua afiada para humedecer a linha e a vista aguçada para a enfiar na agulha. Nã o lhe
serviam só para isso, nem a língua, nem a vista. Zurzia na vida alheia como quem ceifa em
seara farta. Carla cresceu com as fantá sticas histó rias das vidas dos outros a preencherem-
lhe as fantasias, os sonhos e os medos. E deixou-se embalar pela tentaçã o da variedade, do
incomum. Além da mã e e do pai, Joã o de Aristides, nã o conhecia mais ninguém que tivesse
uma vida normal. Nã o deu muito para a escola. Lá fez o que conseguiu fazer e cedo se
mudou para a sala de costura da mã e a que chamou de ateliê, com salinha de espera,
revistas de moda e um chazinho fumegante. Ao contrá rio de Maria da Gló ria, Carla nã o
copiava muito dos figurinos. Ouvia os desejos das clientes, percebia-lhes as intençõ es e
desenhava ela mesma os modelos que depois costurava. A inovaçã o e a originalidade
agradaram e o negó cio floresceu.

***
Artur Baptista, o pai, foi toda a vida agricultor. Nã o se lembra de ter trabalhado outra coisa
que nã o fosse a terra, nã o conhece outro sol que nã o seja o do campo e quando Artur
Baptista, o filho, nasceu, o pai ensinou-lhe o que sabia. E o rapaz aprendeu com genuíno
gosto e confessado prazer. Conhecia o cantar de todos os pá ssaros, o percurso de todos os
só is, o florir das flores, o frutificar dos frutos. Falava com as plantas e com as á rvores. Nã o
se deu com a escola. Tinha pouco para ensinar-lhe. O que ele sabia, já sabia e na escola
ninguém parecia interessar-se muito por isso. O que ele nã o sabia, ninguém, na escola,
parecia querer ensinar-lhe. Exceto Carla. A ú nica flor que floriu, o ú nico fruto que frutificou
e a ú nica verdadeira professora, nã o diplomada, entenda-se, que a escola lhe proporcionou.
Andou lá pouco. O suficiente para conhecê-la e fugir com ela nas tardes quentes de maio
para o celeiro e encostá -la aos fardos de palha e desabotoar-lhe a blusa como quem afasta a
folhagem para encontrar o fruto fresco e rosado a cheirar a juventude e a incendiar desejo.
Ela percorria-lhe o corpo musculado e retesado pelo labor á rduo do campo e desenhava-lhe
linhas de seduçã o com a língua em fogo e as pontas dos dedos suaves a desvendarem
segmentos de recta. Foram dias de insaciá vel erotismo, fugidio e escondido, que é como
atiça mais o desejo, e quando vieram a casar, como toda a aldeia esperava, já as mã os dele a
conheciam melhor do que ao cabo da enxada, já a língua dela o conhecia melhor do que à
linha humedecida e condenada a bailar com a agulha.
***
Os anos foram passando. Nem Carla, nem Artur Baptista, o filho, pareciam cansar-se um do
outro. Haveriam de entregar-se como ele viu na revista para homens e, quando chegou o
VHS, descobriram as maravilhas da pornografia, compraram o “Kama Sutra” e tentaram as
posiçõ es todas. De quando em vez, ela comprava uma lingerie provocante ou ele roubava-a
à rotina e levava-a, no trator, ao fim da tarde, até à beira rio e faziam amor sob os choupos,
à sombra fresca da imaginaçã o. Vieram os filhos. Avolumaram-se as obrigaçõ es, instalaram-
se as rotinas, chegaram as zangas e as discussõ es sérias e depois aquelas que surgem por
tudo e por nada e chegou o dia fatídico em que a vida dos outros lhes pareceu melhor do
que a sua. O tédio nã o bateu à porta, entrou sem anunciar-se, tomou conta dos aposentos,
dos gestos e das palavras. Artur Baptista, o filho, passa agora mais tempo no café do que em
casa. Carla lê romances como aquele que viveu um dia. Os seus modelos tornaram-se
menos criativos. Aquela vida a dois deixou de fazer sentido, de ter qualquer interesse. Até
que ela entrou nas suas vidas. Chamava-se Internet e tinha vindo para ficar.

***

Carla chegou ao quarto pouco depois das três da manhã . Vinha quase nua. Vestia apenas as
cuecas. E trazia o sexo humedecido e quente das palavras deles e das carícias que ela se
fizera a seu mando. Eles sã o Saul e Cristina. Marido e mulher. Um casal a viver uma relaçã o
aberta e sem preconceitos. Tinha sido a forma que encontraram de a preservar. À relaçã o.
As imagens íntimas que trocavam com Carla e as palavras que escolhiam para as
acompanhar desenhavam desejos na sua alma, semeavam fantasias no seu corpo. Puxou a
roupa da cama para trá s num gesto brusco, saltou para cima de Artur Baptista, o filho,
rodeou-lhe a cintura com as suas coxas e, arrepelando-lhe os cabelos do peito, ordenou:
– Anda! Vem foder-me!
Artur Baptista, o filho, lavrador de profissã o, filho de Artur Baptista, o pai, de quem herdara
o talento e o mester, nã o chegou a perceber se estava a sonhar ou mal acordado, de modo
que nã o foi capaz de mais do que balbuciar um Hã!? interrogativo e admirado como
atestam os sinais de pontuaçã o que aí escrevemos. Mas Carla tinha instruçõ es precisas
sobre o que havia de fazer e estava determinada no propó sito de, como lhe disseram,
acordar aquela relaçã o:
– Anda! Vem comer o cuzinho da tua mulherzinha! Hoje é todo teu.
Neste ponto, Artur Baptista, o filho, teve a certeza de que estava a sonhar. Nã o só aquele
palavreado jamais passara entre os lá bios de sua esposa, nem mesmo nos momentos mais
despudorados, como a oferta que tivera a sensaçã o de ouvir fora sempre terreno proibido
naquela relaçã o, terra do nunca, galá xia inexplorada e a inexplorar. E estranhou, por isso,
que as mã os dela seguissem as palavras e segurassem as suas e lhas encaminhassem para
as ná degas. Carla voltou a ordenar. Artur Baptista, o filho, agora mais acordado, cumpriu as
ordens todas. A gosto!

***

Duas semanas volvidas, andava Artur Baptista, o filho, sorrindo de satisfaçã o e inusitado


prazer, acreditando que o sexo no casamento era como as colheitas, tinha anos melhores e
anos piores, e quis saber que adubo estava na origem de tã o fértil sementeira:
– Porque mudaste? Como te lembraste de mudar assim?
– Nã o me lembrei, lembraram-me.
E contou-lhe tudo. O que era a Internet, como as pessoas conversavam nela, como trocavam
imagens, como criavam grupos de interesses, como conhecera Saul e Cristina e se excitara
com eles e como eles a tinham aconselhado a provocá -lo. Que eram boas pessoas, pelo
menos pareciam, e até já tinham falado em se encontrarem os quatro.
– Para quê?
– Ora, para o que der e vier! Jantar num restaurante chique, dançar um pouco, ir até casa
deles e ver no que dá …
Artur Baptista, o filho, estava perplexo, boquiaberto, e quando mexeu a boca para articular
uns sons, as palavras que lhe saíram podem ser risíveis, mas foram essas que lhe saíram
pelo que nã o as trocaremos por outras:
– E isso é legal?
– Nã o sejas tonto! Olha que pergunta. O que acontece entre adultos dentro de quatro
paredes nã o é da conta de ninguém.
– Eu e tu à frente deles?
– E eles à nossa frente, e tu com ela, e eu com ele…
– Mas assim nã o fico corno?
– Deixa-te de parvoíces! Como é que isso é possível se tu sabes?
– Pois, mas o marido da Albertina Bruxa também sabe e nã o é menos corno por isso!
– Ó Artur, deixa-te disso! Sã o uns amigos com quem vamos jantar e depois vamos beber um
copo a casa deles e a seguir só acontece o que nó s quisermos e o que acontecer ficará entre
nó s.
– Pois, amor, mas eu nu no mesmo quarto que outro homem nu, só no balneá rio do Clube
Desportivo e, mesmo assim, ninguém tira os olhos do chã o.
Carla nã o soube porque Artur Baptista, o filho, nã o lhe disse, mas nã o foi a nudez junto de
outro homem nu o que mais o assustou. Foi um aperto no peito, uma negaçã o e uma
contrariedade, quando pensou em entregar voluntariamente a sua mulher a outro homem.
Rejeitou a proposta. Aguentou até o tédio se instalar de novo lá em casa e a cama de ambos
perder o desejo, o fulgor e o cheiro a sexo.
– Telefona lá aos teus amigos.

***

Foi em Lisboa. Jantaram num local requintado e muitíssimo confortá vel, na marginal, e, por
isso, com vista para o bailado da lua no espelho do mar. Carla sorvia cada segundo com
curiosidade e entusiasmo. Tudo aquilo a surpreendia, a fazia sentir-se excitada e feliz. Artur
Baptista, o filho, pensava em Artur Baptista, o pai, e em como fora possível nunca lhe ter
falado do reflexo da lua no mar. Já no restaurante, nã o via grande interesse. Tudo aquilo
eram luzes a mais para ele. Nã o conseguia deixar de reparar no contraste das suas mã os
rudes com o aprumo de tudo o que o rodeava. Sentia-se só , perdido e oprimido. Saul e
Cristina apresentaram-se elegantes, mas nã o muito formais e, fizeram questã o, nada
provocantes ou exibicionistas. Eram um casal cosmopolita, mas discreto e dirigiram a
conversa entre os quatro por assuntos inó cuos e com extrema educaçã o. Toda a gente sabia
o que havia para saber. Nã o era necessá rio que alguém referisse o ó bvio. De resto, o jantar
servia para um primeiro contacto, uma aproximaçã o, e nã o para discutir o que se iria
passar a seguir. Essa moderaçã o surpreendeu Carla um pouco pela negativa uma vez que
estava ansiosa por explorar e ser explorada. Já  Artur Baptista, o filho, apreciou aquela
discriçã o e aquele tato. Por ele, de resto, findo o jantar, despedir-se-ia das pessoas,
agradeceria a companhia, meter-se-ia na pick-up e rumaria à tranquilidade e ao recato de
sua casa. Nã o era isso, contudo, o que estava combinado, nem o que esperavam de si.

***

Era uma casa pequenina, de aspeto acolhedor, com um breve relvado na frente. Era uma
rua estreita, de sentido ú nico, muito arborizada. Era um bairro distinto e pacato. Por
dentro, a casa mostrava-se maior do que parecia por fora. Estava decorada com requinte,
num estilo moderno de linhas direitas e estéreis, de contraste entre pretos e brancos, inox
escovado e profusos espelhos a ampliar o espaço e a sugerir indiscriçõ es privadas. Quando
entraram, Saul e Crinstina colocaram uma mú sica suave, convidaram-nos a servirem-se de
uma bebida e a estarem à vontade e desapareceram sob pretexto de trocarem de roupa
para ficarem mais confortá veis. Quando regressaram, Saul vinha dentro de um roupã o de
quarto em seda escura estampada de ramagens orientais e Cristina trazia uma tú nica
transparente e um casaquinho do mesmo tecido sobre os ombros. Artur Baptista, o filho,
via perfeitamente a lingerie sensual e ousada que ela trazia por baixo, e reparou nos laços,
lacinhos e laçarotes e nas fitinhas e deu consigo a pensar se seria capaz de desatar aquilo
tudo. Em sua modesta opiniã o, tratava-se de embarcaçã o com demasiado cordame para os
seus parcos conhecimentos daquele marear. E foi ela, Cristina, quem falou primeiro.
Estendeu-lhe um roupã o ainda dobrado, semelhante ao de Saul:
– Tome, a casa de banho é ali. Liberte-se das amarras da roupa e ponha-se à vontade. E
beijou-o suavemente na face. Saul estendeu um conjunto de tú nica e lingerie a Carla e foi
mais parco nas palavras:
– Acho que sabe o que fazer com isto.
Ela sorriu. Ele fez-lhe uma festa na face, depois no cabelo, deixou a mã o deslizar para as
costas dela e depois escorregar por elas até à s ná degas firmes de Carla que acariciou
suavemente antes de pousar-lhe um breve beijo nos lá bios. Artur Baptista, o filho, nã o
suportou a situaçã o. Ele sabia que sabia o que estava a passar-se, sabia, até, que todos ali
sabiam o que estava a passar-se, mas havia algo em tudo o que sabia que nã o compreendia.
Pousou o roupã o que tinha na mã o numa cadeira e saiu da sala, da casa, fechou-se no carro
e esperou. Toda a noite.

***

Carla ficou. Foi viver todas as promessas eró ticas que lhe tinham feito por escrito através
da Internet, foi realizar em três dimensõ es as promessas que lhe tinham feito através de
fotografias da intimidade revelada. Entregou-se com avidez, satisfez o corpo e aplacou o
desejo. E descobriu. Artur Baptista, o filho, viveu uma noite de horrores. Indeciso entre
voltar lá para dentro e ficar ali à espera. Deu murros de raiva no tabliê da pick-up,
cabeçadas de desespero no vidro da janela, revoltou-se no banco, saiu à rua, voltou a
entrar, mergulhou num choro convulsivo e adormeceu exausto no banco do condutor com
cabeça em cima do volante. A madrugada despontava fresca quando Carla bateu com os nó s
dos dedos no vidro da carrinha. Ele destrancou as portas. Ela entrou. Ninguém disse nada.
Ele ligou o carro. Iniciou a marcha e conduziu durante duzentos e cinquenta quiló metros
sem pronunciar uma palavra. Abateu-se sobre eles um silêncio fundo de digerir efeitos e
consequências. Ela tentou começar uma conversa vá rias vezes, mas nunca acertou nas
palavras certas para tal começo. Talvez nã o as houvesse. Talvez o silêncio fosse a ú nica
conversa possível. Ele esperou uma palavra. Nem sabia como reagir a essa palavra, mas
esperou-a. A palavra nã o veio. Debateu-se com a incompreensã o daquilo tudo. Nã o sabia se
tinha feito bem ou mal. Nã o sabia, sequer, porque tinha ido ao jantar e, tendo ido, nã o
percebia porque tinha desistido. Nã o sabia o que se tinha passado naquela noite enquanto
se revirava no carro, e nã o conseguiu expressar nada do que sentia. Nem uma palavra.
Quando chegaram, parou a carrinha à frente da casa, desligou a igniçã o, Carla virou-se para
ele como quem vai dizer algo, Artur Baptista, o filho, impediu-a. Levantou uma mã o
pedindo-lhe que nã o falasse, nã o olhou para ela, fixou o olhar no conta quiló metros e disse:
– Nã o quero saber nada!
Um Olhar
Ele trabalhava ali há algum tempo, já . Ela chegara de novo.
Ele tinha luz e promessas no olhar, na voz e na forma doce como se movimentava.
Ela era silenciosa e observadora.
Quando começaram a cruzar-se, repararam um no outro, mas nada mais do que um Bom
Dia, Boa Tarde, foi alguma vez arriscado. Queriam preservar-se.
Ela tinha um olhar fundo e um andar pequenino. As formas comedidas do corpo eram, no
entanto, definidas com clareza e graça feminina.
Os dias passaram e continuaram a trocar palavras de circunstâ ncia, por vezes uns
documentos, outras vezes algumas opiniõ es acerca do trabalho.
Um dia, ao passar-lhe uma pasta, ele tocou ao de leve a mã o dela que, nã o se tendo
oferecido, também nã o recuou.
O tempo passou e as pessoas que eram habituaram-se à presença suave e discreta do outro.
Notada, sem ser imposta. Sentida, sem ser absolutamente necessá ria.
Um dia amanheceu de sol e frio. Os casacos e os cachecó is tomaram conta dos corpos. O
trabalho desenrolou-se com naturalidade. Ao fim da tarde, quando todos abandonavam o
local, ele veio despedir-se deles. Era um ritual. Apertava-lhes a mã o e desejava-lhes um
bom resto de dia. Chegou a vez dela e todo o seu relacionamento se alterou num par de
segundos. Nã o se aperceberam, entã o. Só mais tarde. Ele estendeu-lhe a mã o, ela aceitou-a
e trocaram um olhar demorado. No dela havia um convite quase sú plica, Toma-me! No dele
havia um vigor quase invasã o, Quero-te!
Nã o sabem as pessoas como percebem o que percebem. Sabem só que percebem. E estes
dois perceberam. Poderiam ter continuado as suas vidas, poderiam ter pensado que tudo
aquilo fora uma ilusã o, um mero olhar trocado com um pouco mais de demora, mas
qualquer um deles sabia que aquela troca de olhares fora uma conversa.
Ela saiu. Ele seguiu-a. Ela entrou no seu carro e ele no dele. Desconheciam-se. Nã o sabiam
ao que iam, nã o sabiam, sequer, um do outro, se seriam comprometidos ou nã o.
Simplesmente fizeram o que fizeram. Ela percorreu algumas ruas da cidade. Ele seguiu-a.
Ela estacionou numa zona habitacional tranquila. Ele estacionou ao lado dela. Ela dirigiu-se
para um prédio. Ele seguiu-a. Ela entrou e nã o fechou a porta. Ele entrou e fechou-a. Ela
dirigiu-se à aparelhagem para colocar a Dulce Pontes a entoar a Cançã o do Mar. Ele
aproximou-se dela por trá s, tomou-lhe o sexo na mã o, sentiu-o latejante e hú mido e beijou-
a com demora.
Nã o devassemos mais a sua privacidade. O que se seguiu foi a sinfonia das carícias, a troca
das emoçõ es, o bailado dos corpos na entrega e na dá diva dos gestos incendiá rios. Quando
terminaram, trocaram poucas palavras. Ela começou:
– Fica dentro de mim!
– Ficarei.
– Como é que soubeste?
– Pelo olhar. 
Eduardo
Há quem defenda, e eu aceito, pelo menos em parte, a teoria de que o erotismo e o sexo
estã o, antes de mais, na cabeça.
A histó ria que vai contar-se nã o pretende provar a teoria, será tã o-só um reflexo dela.
Quanto ao resto, caberá a cada um de vó s fazer as projeçõ es, regressivas ou progressivas,
consoante os casos.
O casal é jovem. Sendo jovem, nã o é recém-casado. Sã o pessoas nos seus trinta e poucos
anos que levam sete de casamento. Eu nã o acredito na teoria da crise dos sete anos pelo
que, infiro, será coincidência o facto de viver este casal uma profunda crise de cansaço
matrimonial. Deixaram de sair juntos, deixaram de tolerar-se as pequenas falhas, discutem
exaltados com frequência desaconselhá vel e, nã o menos importante que tudo isto, nã o
fazem amor. E quando fazem, é maquinal, como quem cumpre um ritual que outrora foi um
jogo de seduçã o e desejo.
Quando o dia nasceu, ele jamais imaginara o que iria passar-se num período tã o curto de
tempo. Um simples dia. Tinha agendada uma reuniã o que duraria exatamente um dia de
trabalho. E durou. E foi cansativa. E houve momentos que lhe correram bem e outros houve
de que nã o gostou tanto. Trocou palavras de circunstâ ncia ao almoço, apresentou projetos,
debateu, discutiu, concluiu e, quando tudo terminou, quando já só se ouviam as vozes
espaçadas dos ú ltimos a abandonar a sala, ela aproximou-se. Era uma mulher baixa, de
olhar azul e brilhante a enfeitar a face redonda. Tinha o cabelo farto e encaracolado e a
passada pequena, mas determinada. Estava habituado ao cará ter resoluto dela, mas
também à distâ ncia que, até entã o, tinham mantido sem saberem porquê. E, talvez por isso,
as palavras dela surpreenderam-no:
– Ouve lá , tu nã o achas que um tipo inteligente como tu merece ir para a cama com uma
mulher bem resolvida como eu?
– Nã o sei… nã o te estará s a precipitar?
– Porquê? Vais terminar o dia voltando para a tua mulherzinha?
– É uma opçã o. Tu nã o vais voltar para o teu maridinho?
– Depende de ti!
Irrompem pelo quarto do hotel com gestos sô fregos e apressados. Mais tarde nem sequer
saberã o como é que o sutiã dela ficou pendurado no candeeiro e as cuecas dele foram parar
acima da televisã o. É como uma batalha. Os corpos entregam-se e exigem-se. Ele abre-lhe a
blusa e mergulha nos seios dela. Ela desaperta-lhe o cinto das calças. Ele enfia-lhe uma mã o
por baixo da saia, percebe que ela usa uma lingerie diminuta, dá -lhe um puxã o, mas as
cuecas nã o cedem, ela diz, És um maricas!, ele puxa de novo e fica com elas na mã o, projeta-
a para cima da cama e invade-lhe o sexo com a boca á vida, ela empurra-lhe a cabeça como
se quisesse devorá -lo por ali, ele percorre-lhe o corpo com a língua até lhe beijar a boca
ansiosa e nesse momento penetra-a com vigor, ela crava-lhe as unhas nas ná degas e
arranha-o, ele grita num misto de dor e prazer. A batalha das carícias sensuais continua até
tombarem exaustos para o lado:
-Gostaste?
– Está s louca? Foi a foda do século!
José Carlos entra em casa e tenta fazê-lo com a maior naturalidade possível. Ao sair do
hotel, tentou desligar da mente aquele fim de tarde tó rrido e estonteante para assumir de
novo o papel do marido tranquilo e previsível. Entrou. Beijou a esposa, como sempre, de
forma fria e rotineira, dirigiu-se à casa-de-banho, lavou-se e preparou-se para o jantar.
Quando chegou à sala, as luzes estavam apagadas, havia velas espalhadas pelos mó veis
projetando sombras trémulas, a mesa tinha dois pratos, dois copos de champanhe e uma
garrafa num balde de gelo. A sua mulher tinha um avental de empregada que mal escondia
a lingerie sexy:
– Hoje quero dar ao meu maridinho tudo o que ele merece… tudinho…
Vá rios pensamentos lhe ocorreram, vá rias hipó teses de atuaçã o, uma delas, a mais viá vel,
seria mostrar-se surpreendido, dizer que estava cansado e recusar o que lhe parecia ser um
convite. Nã o é que estivesse descansado, pelo contrá rio, tinha o corpo exausto do trabalho
e do sexo ardente com a colega, mas naquele momento dois pensamentos lhe assaltaram a
mente. Em primeiro lugar, sabia que sentiria a consciência pesada se negasse à sua pró pria
mulher o que acabara de dar a uma colega de trabalho para com quem nã o tinha qualquer
obrigaçã o. O que quer que fizesse fora de casa, fossem quais fossem os seus pecados e as
suas sacanices, eles nã o podiam refletir-se em casa. Era uma regra que tinha para si e há
muito respeitava. Em segundo lugar, acabara de fazer com a colega umas coisas inusitadas
que nã o se importaria de repetir com a mulher, quem sabe se ela até alinharia nos jogos.
Afinal de contas, toda esta encenaçã o do jantar româ ntico era tã o imprová vel e inesperada,
porque nã o tentar ir um pouco mais longe?
Coloca-lhe as mã os sob o avental, segura-lhe as ná degas, senta-a na mesa, derrubam os
copos, mas essa loiça, hoje, era mesmo para partir!
Os dias e as semanas têm corrido bem a José Carlos. Sã o um caos total, mas entusiasmante.
Divide as forças entre o trabalho, os encontros fortuitos com a amante e o surpreendente e
efusivo sexo com a sua mulher. Nem parece a mesma. Ele começa a acreditar naquela teoria
marialva de que um caso extra-conjugal pode apimentar ou mesmo ressuscitar um
casamento desinteressante e condenado. Está convencido de que as suas escapadelas
trazem outra vida à cama conjugal e isso, por sua vez, se reflete no quotidiano. Ele anda
mais meigo com a mulher e ela com ele, retomaram certas carícias e atenciosidades, há um
novo carinho e uma harmonia reconquistada.
José Carlos está certo no seu raciocínio. Só ainda nã o viu o quadro todo, mas vai vê-lo em
breve.
Chega a casa. A mulher espera-o no quarto com uma tú nica branca semi-transparente e
roupa interior rendada e da mesma cor. Põ e-lhe as mã os no peito e beija-o demoradamente
enquanto lhe desaperta as calças. Quando elas caem, também ela desce para o acariciar
com os lá bios humedecidos, depois volta a pô r-se de pé e beija-o de novo. Pouco depois
estã o em perfeito frenesim entregando-se com sensualidade um ao outro. Satisfazem os
corpos e ficam deitados e enroscados por longos minutos. Ele levanta-se, nu, para ir à casa-
de-banho, dá dois passos e ouve a voz dela em tom admirado:
– Que arranhõ es sã o esses no rabo, José Carlos?
Ele gelou. Agora que as coisas estavam a correr tã o bem, um pormenor iria deitar tudo a
perder. Sabia que nã o havia resposta que a satisfizesse, nã o havia mentira credível para
aquela situaçã o, ela iria sentir-se enganada, zangar-se, gritar, iniciar uma discussã o violenta
e tudo voltaria ao inferno de uns meses atrá s. Virou-se lentamente para ela e foi
surpreendido porque ela já nã o estava na cama. Estava mesmo junto a ele. Quando o
apanhou virado para si, segurou-lhe o sexo com a mã o esquerda e começou a massajar-lho
enquanto, com a direita, lhe percorria os arranhõ es nas ná degas:
– Com que entã o o meu maridinho gosta de ser arranhado?! Sussurrou-lhe ao ouvido.
Segura-lhe o pénis com mais firmeza, puxa-o para si, dá dois passos para trá s na direçã o da
cama enquanto o beija e o deixa tombar sobre si. As mã os dele procuram-lhe os seios e
acariciam-lhos, cai sobre ela e beija-lhe os mamilos, ela coloca-lhe as mã os na nuca e pede,
Vem! Faz-me tua! ele penetra-a com ternura e inicia um movimento ritmado e certo, beija-a
no pescoço, ficam entregando-se mutuamente, a excitaçã o cresce e quando estã o perto do
êxtase, ela crava-lhe as unhas no rabo, arranha-o e diz com excitaçã o, perdendo o controlo
dos gestos e das palavras na loucura do momento:
– Vem, meu amor, faz-me tua! Vem, Eduardo, vem! Possui-me, meu amor, sim… sim… sim…
Ele espeta os olhos arregalados na parede e pensa:
– Eu nã o me chamo Eduardo, porra!
O Corpo da Ideia
Caras leitoras,
Este, é um homem de que nã o ides gostar. Quero dizer, talvez nã o vos importá sseis de amá -
lo por uma tarde, uma noite, um dia, um fim-de-semana, mas esse conceito de um amar
efémero e carnal nã o é para vó s o conceito de amar, pelo menos, aquele que acarinhais
mais e melhor. Nã o quero com isto dizer que sejais contrá rias à ideia dos prazeres do
corpo. Nã o. De todo. Acontece que, para vó s, mulheres, os prazeres do corpo sã o uma
extensã o de outro amor. O amor alicerçado na dedicaçã o, no carinho, no compromisso e na
felicidade. E é quando uma tal sintonia no plano afetivo se atinge que a vossa mente e o
vosso corpo despertam para os prazeres da carne. E é por isso que nã o ides gostar deste
homem. É que, para ele, a carne vem primeiro. Acontece que, no seu caso, há uma arte, uma
generosidade, uma envolvência e uma cortesia que mulher alguma pode ignorar. E caímos,
assim, num paradoxo. Querei-lo, mas querei-lo só para vó s. Para cada uma de vó s. E isso é
contra a sua natureza pois há muito que se assumiu como sendo de todas vó s. Ao mesmo
tempo!
Caros leitores,
Esta, é uma mulher de que nã o ides gostar. Quero dizer, talvez nã o vos importá sseis de
amá -la por uma tarde, uma noite, um dia, um fim-de-semana, mas esse conceito de amor
nã o é para ela aceitá vel. Possuí-la pela carne implica um caminho de provaçõ es e
compromissos que, na maioria dos casos, nã o estais prontos para aceitar. De resto,
respondeis a um impulso bá sico e primá rio de cobriçã o em que amor e sexo se confundem
e onde o primeiro pontua sempre desde que aconteça o segundo. É para vó s o amor algo de
imediato e jactante e, em abono da verdade, diverso e mú ltiplo. Podeis bem amar uma
mulher, dedicar-lhe uma vida inteira, sem que isso vos impeça de ter outras em vosso leito.
Tendes um coraçã o largo, generoso e espaçoso onde todas caberã o e onde cada uma terá
seu quartinho para nã o misturar-se com as outras. Ora, isso é contra a natureza desta
mulher que aceitará em si um só homem. Aquele que provar merecê-la. Sempre. Ú nica e
exclusivamente.
Vai ele chamar-se Carlos que outro nome nã o pode ter um tal coraçã o. E foi com ele que a
desposou. E quando o Padre lhe perguntou se era de sua livre vontade que a aceitava em
matrimó nio, ele respondeu Sim. E estava a ser honesto. Aquela era a mulher da sua vida. A
primeira nas suas prioridades. Aquela a quem amava. Descobriria mais tarde que era capaz
de amar outras, mas isso teve de esperar. Seis anos se passaram. De felicidade. De sintonia
e genuína exclusividade. Carlos tinha os olhos fechados para o Mundo e as mulheres nele.
No decurso desse sexto ano, contudo, coisas houve que o fizeram mudar de perspetiva.
Olhar o Universo com os olhos abertos. Ver e observar as coisas, os acontecimentos e as
pessoas à sua volta. E amou. Amou outra mulher. Uma paixã o tó rrida e consumidora que
escondeu a custo da sua pró pria mulher. Quis dizer-lhe, mas conteve-se. Preferiu esperar.
Ser prudente. E, menos de um ano volvido, começava a encontrar as falhas nesta mulher
perfeita que aparecera na sua vida. E fechou esse capítulo. Tentou esquecê-lo. Nunca
conseguiu. Por fim, decidiu guardá -lo como uma memó ria grata. Só isso. Tudo isso. E
refugiou-se de novo no seu porto seguro, no seu lar, na sua amada de todos os momentos.
Aquela que escolhera para casar e viver a vida inteira. Viu um documentá rio na TV sobre as
crises matrimoniais onde se falava insistentemente no fenó meno da crise dos sete anos.
Atribuiu o que acontecera a isso e fechou sobre o seu peito esse capítulo entusiasmante e
efémero da sua vida. Durante três anos voltou a ser o Carlos que sempre fora. Quando
perfez dez anos de casamento, voltou a sentir-se atraído por outra mulher. Desta vez estava
preparado para o evento e sabia como resistir-lhe. Nã o resistiu. E nã o resistiu ao seguinte e
ao outro e ao pró ximo que seria o ú ltimo e ao que veio depois dele e ainda a mais uns
quantos de circunstâ ncia. Hoje, está casado há dezasseis anos, tem um historial de relaçõ es
extra-conjugais paralelas a um casamento feliz. Quase sempre. Já se percebeu. Já aprendeu
a conhecer-se. E, o mais difícil de tudo, já aprendeu a aceitar-se como é. Mantém-se fiel ao
seu amor primeiro, fiel aos sentimentos que nutre pela sua mulher, tem com ela uma
relaçã o está vel e bonita e, contudo, decidiu deixar de fingir que nã o gosta da atraçã o inicial,
do enamoramento, da seduçã o e depois da entrega total, do sexo sem complexos e, por
vezes, sem sexo. Percebeu que na vida há pouco mais do que aquilo que sentimos e
experienciamos e percebeu, também, que há muito pouca coisa de real e verdadeiro
interesse em todo o espectro do Universo conhecido para além das pessoas. As pessoas sã o
o verdadeiro milagre da vida e as mulheres sã o as melhores das pessoas. A graça e a
graciosidade, a elegâ ncia e a sensibilidade, as formas, o espírito, a amplitude do seu olhar,
as suas inseguranças e as forças, a generosidade e a compreensã o, fazem deste complexo
ser, na opiniã o de Carlos, a mais extraordiná ria das criaçõ es de Deus e da Natureza que é
Deus junto dos homens. É um hotel concebido para receber os amantes do sexo. Cama
redonda, varã o de inox, luzes néon encarnadas, muitos espelhos e uns desenhos alusivos à s
prá ticas que aí se espera aconteçam. Carlos está de joelhos ao centro da cama, à sua frente
uma mulher está de quatro oferecendo-lhe o sexo e as ná degas. É generosa nas formas,
libidinosa nos gestos e insaciá vel no desejo. Carlos incita-a com palmadas que lhe
desenham as mã os na carne alva das ná degas, ambos gemem em sintonia e quando se dá a
explosã o das explosõ es, os dois estã o preparados para mais. Ele vira-a e tomba sobre ela.
Ela abraça-o, aceita-o em si e crava-lhe as unhas nas costas. Nã o foi propositado. Foi um
impulso. Deixou uma marca. E a marca originou uma conversa.
– É s um canalha, Carlos, um canalha sem vergonha! O que eu te amei, meu Deus!
– Tem calma.
– Calma? Como podes pedir-me calma? Tu destruíste as nossas vidas. Eu nunca te pedi
nada, Carlos, nunca! A nã o ser que me amasses…
– E amo!
– Mentiroso! É s um mentiroso sem emenda!
– Sim, sou. Nã o nego. Mas nã o quanto a amar-te…
– Como podes amar-me Carlos? Como pode isso ser verdade? Acabaste de assumir que
dormiste com essa galdéria.
– Por isso mesmo. Porque assumi. Ela nã o significou nada…
– Quantas foram? Diz-me! Quem mente uma vez…
– Isso nã o é importante.
– Como nã o? Claro que é importante.
– Nã o é nã o. Nã o interessa quantas foram, interessa que nã o significaram nada. Tenta
compreender-me. Eu vivi até aos dez anos do nosso casamento sem que nada disto
acontecesse e nessa altura percebi a efemeridade da vida, percebi que eram importantes
para mim os prazeres da carne… e essas mulheres, as diversas mulheres com quem me
deitei, foram só isso, prazeres do corpo. Mas foste tu a ideia. A ideia do amor. Sim, eram os
corpos delas, a sua graça, a sua variedade, mas foi sempre a tua ideia. Tu foste uma ideia em
muitos corpos.
– Sai daqui Carlos, sai! Sai! Metes-me nojo! É s asqueroso! É s a negaçã o de tudo o que eu
pensava que éramos um para o outro. Sai daqui…
– Tem calma. Eu sei o que sentes…
– Nã o sabes, nã o. Nã o sabes, Carlos… mas… sabes que mais? Vais saber!
Vai ela chamar-se Joana, Joaninha entre as amigas, que outro nome nã o pode ter uma tal
capacidade de amar, uma tal dedicaçã o. E foi com ele que o desposou. E quando o ouviu
dizer Sim ao Padre, seu coraçã o tremeu e precipitou-se empurrando o seu Sim nã o fosse o
momento perder-se. Aquele era o homem da sua vida. O primeiro nas suas prioridades. O
escolhido. Aquele que quer para as manhã s de Primavera, as tardes de Verã o e as noites de
Inverno até que cheguem ambos ao Outono da vida. Será este o homem das suas alegrias,
das suas tristezas e dos seus prazeres íntimos. Os mesmos que farã o dele o pai de seus
filhos. Dedicou-lhe o seu coraçã o, dedicou-lhe a sua mente, dedicou-lhe a sua atençã o e o
seu tempo e teve dele os filhos que só dele queria. E sorveu-o para si. Acompanhou-o para
todo o lado, sofreu com as dores dele, alegrou-se com as alegrias dele, ajudou-o no trabalho,
poupou-o à s preocupaçõ es que poderia ter partilhado. Fez do seu casamento a sua obra de
arte e colocou-o a ele e aos filhos no centro dela. E confiou. Por volta dos seis anos de
casamento sentiu-o mais distante, menos entusiasmado com a sua vida a dois. Organizou
umas férias, tentou percebê-lo, nã o foi capaz. O homem era um bloco granítico. Nã o se
revelava. Deu-lhe tempo. Refugiou-se na leitura. Gostava de ler, mas, desde que se casara,
colocara esse há bito de parte como tanta coisa na sua vida. Agora voltava a ele. Lia os
romances, uns atrá s dos outros, os franceses, os ingleses, os alemã es, os portugueses e os
russos. Adorava os russos. Mergulhava naquela dor e esquecia a sua. Lia clá ssicos e
contemporâ neos com a mesma avidez. Sofria com eles. Entusiasmava-se com eles. Deixava-
se abraçar e beijar e possuir pelos seus encantos. Quando Carlos acordou do desinteresse
em que mergulhara, Joaninha continuou a ler, mas percebeu a sua mudança e deu-lhe
atençã o e a sua relaçã o viu de novo nascer dias de luz e alegria. Ela nunca deixou de ler e,
três anos mais tarde, quando ele voltou a emigrar para a indiferença, ela soube de novo
onde refugiar-se. Cuidava dos filhos, cuidava dele, amava-o quando ele lhe pedia, mas quase
sem sair do universo que os livros lhe criavam. As escapadelas começaram por ser para as
pá ginas impressas e terminaram sendo das pá ginas impressas. O tempo foi passando e
Joaninha sofria porque nã o fora aquela a vida com que sonhara, mas nã o se sentia com
forças para suportar o fardo do casamento sozinha. E assim coabitavam, quase cordiais,
quase indiferentes. Até ao dia em que ele saiu do banho, estava sozinho e nã o contava que
ela entrasse, mas ela entrou como tanta vez fizera na intimidade do casal, e surpreendeu-
lhe as costas marcadas pelas unhas de outra que as suas nã o haviam desenhado aquele
êxtase. E aconteceu a conversa que ouvimos há pouco e agora se retoma.
– Tem calma. Eu sei o que sentes…
– Nã o sabes, nã o. Nã o sabes, Carlos… mas… sabes que mais? Vais saber!
– Acho que sei, Joana.
– Nã o sabes, nã o. Há coisas que nã o imaginas. Sabes, há pouco disseste, tentando ser
agradá vel no meio de toda a trapalhada que fizeste, que eu fora uma ideia em muitos
corpos… e foi essa frase tua que me provocou. Eu vou dizer-te a verdade…
– Qual verdade, Joana?
– A verdade, Carlos, é que eu te traio há muitos anos, com muitos homens. Diferentes nos
seus corpos e nos seus desejos e uníssonos num só facto. Todos queriam possuir-me. E eu
deixei. Mais do que isso, gozei os prazeres da carne com cada um deles.
– Mas que raio dizes tu, Joana? Há anos que nã o sais de dentro desses livros.
– Saio. Saio, Carlos… saio de dentro dos livros para trair-te com o teu pró prio corpo. Há
muitos anos, Carlos, que nã o faço amor contigo. Há muitos anos que nã o me entrego a ti. Tu,
pobre Carlos, nã o foste mais do que um corpo para muitas ideias.
ErotiKa – O Beato
Sua mulher, Maria do Amparo, costumava contar em surdina à mã e que ele sempre a
procurara pouco na cama para as funçõ es do prazer. Apó s o casamento, com alguma
frequência, era lá uma ou duas vezes por mês, costumava ajoelhar-se junto à cama com o
terço entre as mã os em posiçã o de oraçã o, purificava-se pelas palavras dirigidas ao Senhor
e depois suava e urrava em cima dela durante três eternos minutos. Ela nã o chegava a
saber se gostava ou nã o. Aquilo era um fogo fá tuo, um lume ardente, mas brevemente
extinto em suor. Sempre sob os lençó is. Sempre de luz apagada. E ela nã o estranhara uma
coisa nem outra pois que em termos “daquilo” a experiência que tinha era tanta como
nenhuma. Mas sempre perguntava à mã e se era normal aquela ausência dele na cama dela.
E a mã e, em reaçã o surpreendente, lhe foi dizendo, É uma bênçã o, minha filha, é uma
bênçã o, nã o dar uma dessas ao teu pai é que é pena. E como Maria do Amparo quisesse
desconfiar daquela falta de fogo, a mã e rematou contudente:
-Ele costuma faltar ao trabalho?
-Nã o
-Ele falta-te com alguma coisa em casa?
-Nã o.
-Bebe até cair para o lado?
-Nã o.
-Bate-te?
-Nã o.
-Entã o agradece ao Senhor a sorte que tiveste.
E com aquela se ficou e nã o tocou mais no assunto. E veio o primeiro filho, uma menina, por
sinal, e pensou ela que ele se entusiasmaria com o facto, mas o certo é que o seu fervor
religioso aumentou, a moral tornou-se mais rígida por via do exemplo que era necessá rio
constituir para a criança e as visitas na cama, já de si escassas, tornaram-se quase
inexistentes. Foi isto há dezanove anos completos. E sã o dezanove anos que a menina faz
esta semana. Na altura, dois anos volvidos, três ou quatro có pulas de pouco investimento e,
mesmo assim, quis o Senhor que duma delas nascesse segundo rebento. Um rapaz. E,
indicou ele, que a sua funçã o enquanto casal estava cumprida no que dizia respeito à
procriaçã o. Existiriam agora para os filhos, para os educar no respeito e no temor a Deus,
com vida austera de bens mas rica de oraçõ es. E se a ela lhe acometesse alguma vontade da
carne, que rezasse um Pai Nosso e duas Avé Marias e tomasse um duche frio que a carne,
por fraca ser, haveria de ceder. Que se dedicasse ao croché ou visse televisã o e orasse,
orasse muito pela bênçã o de ter uma família bonita e sem faltas de maior. E ela, sem outra
soluçã o nem amparo além do que tinha no nome, resignou-se.
Jacinto Bento, mais tarde conhecido como o beato era um homem atarracado e musculado
com o cabelo ruivo e um farto bigode no meio da cara. Andava regularmente com uma
bibliazinha na mã o e um caderninho preto para tomar notas. Cresceu num ambiente
doméstico conturbado. O pai estava dias, semanas inteiras sem vir a casa e quando vinha
trazia muitas falas e poucas novidades. Podre de bêbado procurava uma cama para dormir,
uma mulher para plantar um filho mais e muita sorte tinha ela se ele nã o lhe exigisse as
economias que entretanto juntara. À s vezes, o vinho dava-lhe para a violência e a mã e dizia
à rebanhada de filhos para fugirem e eles desarvoravam de casa. Ora, Jacinto, o mais novito,
ficava. Ela tinha-lhe dado instruçõ es para se esconder dentro de uma mala de guardar
mantas e levar com ele a bíblia e rezar aos santinhos que o protegessem. E quando o pai
saía de novo ela mostrava-lhe os postalinhos com os santinhos que o tinham protegido e
que o senhor prior distribuía todas as Pá scoas à saída da missa. E o rapaz enfiou-se na
igreja e na sacristia e nunca mais de lá saiu. Foi à catequese, fez a primeira comunhã o e o
Crisma, foi acó lito e chegou a ministro da fé. Sentia-se um servo digno do Senhor quando
ajudava à distribuiçã o da hó stia na missa dominical. O prior faleceu, veio outro e foi Jacinto
que lhe deu a conhecer o rebanho que ele haveria de apascentar. Os mais virtuosos, os
cumpridores, os ritualistas e os ausentes. E contava-lhe as histó rias deles no espaço
circunscrito da vila. Nã o se estranhou, por isso, quando o senhor prior delegou em Jacinto
Bento a organizaçã o das procissõ es, do coro da igreja, e até a pró pria agenda do padre.
-Ó Jacinto, se calhar estou a pedir-te de mais… tu tens o teu trabalho e a tua família…
-É com prazer que ajudo, senhor prior, com prazer e devoçã o. E a minha família, os
sacrifícios que faz por mim, fá -los por Ele também.
E lançava os olhos à cruz onde Cristo escorria sangue de braços abertos. Jacinto atendia à
missa de domingo e, durante a semana, todos os dias, pelas sete da tarde, ajudava à missa
vespertina. Depois, seguia para casa e jantava com a família. O ritual era certinho e sem
falhas, exceto à quinta feira, dia em que ficava noite dentro, com o senhor prior a planear os
muitos serviços que a paró quia tinha de prestar aos seus fiéis. Quem havia a batizar, quem
havia a casar, quando se ia ler o evangelho segundo Sã o Lucas, quando se lia um excerto da
epístola de Sã o Paulo aos coríntios, quais os temas do sermã o, quando e como realizar as
procissõ es e como orientar os serviços da catequese e as festas de Nossa Senhora da
Piedade, padroeira local. Naturalmente que, com tantas e tã o grandes responsabilidades, a
sua família teve de constituir sempre exemplo ímpar de devoçã o e fervor religioso. E por
isso comparecia na igreja todos os domingos, sem falhar um que fosse, e orava-se à s
refeiçõ es  e colaborava-se nos eventos religiosos promovidos pela paró quia. E havia um
rigor extremado na conduta que lhes era exigida. Os seus filhos nã o diziam um palavrã o,
citavam a bíblia, a rapariga estava proibida de conhecer rapazes antes do casamentos e se
um dia quisesse namorar haveria de apresentar o pretendente ao pai que indagaria da sua
fé e devoçã o e o rapaz estava proibido de tocar-se e se o desejo apertasse, tinha
encomendadas oraçõ es e estavam prometidos castigos e infernos aos que prevaricassem.
Ela deserdada seria se conhecesse homem antes do tempo e sem aprovaçã o. E ele sofreria
na carne as puniçõ es que a disciplina e o respeito exigiam.
O que mais impressionava Aparecida Bento, aos dezanove anos, era nunca ter visto um
gesto de afeto entre os pais, um beijo, uma carícia, nada… uma secura emocional, uma terra
á rida e infértil. Chegava a ser agressivo. E, contudo, todo um respeito, toda uma aparência.
E a igreja sempre por perto. O senhor prior isto, o senhor prior aquilo, a missa vai ser
bonita, a missa foi bonita.  Esta manhã , Jacinto Bento, saiu um pouco apressado. Ia à frente,
bíblia na mã o, caderninho preto, calças de fazenda, camisa e uma camisola de malha.
Aparecida ia atrá s dele. Deslizou um papel do caderninho e caiu ao chã o sem o pai ver. Era
uma receita. Aparecida apanhou-a e leu por instinto. E quando leu, estremeceu como nunca
se lembrara de ter estremecido antes. Só tinha um medicamento inscrito: viagra. Dobrou o
papel num repente e chamou:
-Papá …
-Sim, minha filha.
-Deixaste cair isto.
-Obrigado.
Recolheu o papel e foi à sua vida.
Aparecida andou em transe durante uns dias. Se nã o havia afetos, para que queria ele um
medicamento daqueles?  Investigou na Internet o propó sito do medicamento, mas só
parecia ter um, fez perguntas indiretas à mã e sobre a vida afetuosa dos dois, mas foi pesca
sem pescado. Nã o havia nada nem ninguém a que pudesse recorrer. Era impensá vel falar
com o pai. Cair-lhe-ia, literalmente, o Carmo e a Trindade em cima. Sofreria retaliaçõ es só
pela ousadia e pensou que o melhor seria esquecer o sucedido. Provavelmente era para
outra pessoa. Acontece que, quando a inquietude entra no espírito é difícil de serenar.
Decidiu segui-lo. Nos primeiros dias, pela manhã , até ao trabalho. Nada. O mesmo Jacinto de
sempre. Depois, ao final da tarde, do trabalho para casa. Nada. O mesmo Jacinto de sempre.
De casa para a igreja. Foi à segunda, nada. Foi à terça, nada. À quarta, nada. À quinta, nada, à
sexta, nada. E estava já há vá rias semanas nisto quando resolveu esperar por ele depois da
missa das sete a que ia com religiosa frequência quotidiana. Saía de casa depois dele e
esperava por ele do outro lado da rua num banco de jardim, enfiada em camisolas e
casacos. A primeira vez que foi, sofreu um percalço. Para o seguir teve de ir atrá s dele o que
fez com que o pai entrasse em casa primeiro. Breve daria pela sua falta porque, assim que
chegava, queria cumprimentar toda a família. Correu para a porta, enfiou a chave e, naquele
momento em que ele chegava à cozinha e saudava a mã e, Boas noites, Boas noites,
respondia ela, Aparecida deslocou-se como se viesse do seu quarto. Na terça já nã o foi. O
risco era demasiado. Nessa quinta feira, contudo, por andar desperta para os movimentos
de seu pai Jacinto, Aparecida que já costumava estar deitada quando ele chegava, esperou
por ele com a mã e, na sala de estar, e reparou em ligeira diferença no seu ritual de chegada.
Em vez de dirigir-se, de imediato, para a sala de estar onde sabia que encontraria a senhora
sua esposa a fim de a saudar, foi à casa de banho primeiro. Aparecida nã o conseguiu
reprimir a ideia que lhe veio à mente, Custe o que custar tenho de saber de onde vem ele à
quinta feira. Nova quinta feira se apresentou no calendá rio. E Aparecida seguiu-o. Nã o
entrou na igreja. Esperou no banco de jardim do outro lado da rua. E viu as pessoas saírem
da casa do Senhor no final do serviço religioso e viu a porta fechar-se. Nas traseiras da
igreja havia uma janela alta protegida por grades trabalhadas, tinha um parapeito inclinado
para fora e por dentro tinha a sacristia. Aparecida nã o lhe chegava. Olhou em volta. Era
noite. Havia pouca luz. Só a que sobrava da iluminaçã o de rua. Procurou algo que lhe desse
altura. Um bloco de cimento e um pedregulho era tudo o que havia por perto. Colocou o
bloco de cimento por baixo da janela e o pedregulho em cima dele. Subiu para cima do
conjunto de equilíbrio precá rio. Nã o chegava à janela, mas podia tentar deitar as mã os à s
grades com um impulso. Respirou fundo saltou e agarrou uma grade de ferro com a mã o
direita, depois a esquerda, os pés ajudaram a trepar, ergueu-se, ao dobrar os braços
conseguiu chegar com a face ao vidro da janela procurando respostas. Nã o as encontrou. À
luz amarelecida de um candeeiro antigo, Jacinto Bento e o padre jantavam, sentados à
mesa, e conversavam.  Era uma sala pequena. Uma mesa ao centro de madeira muito
escura, um aparador com umas gavetinhas e um espelho por cima e dois cabides de pé com
paramentos sobre eles em dois dos cantos. Faltou-lhe a força, esticou os braços lentamente
e escorregou pela parede tateando com os pés à procura do pedregulho em cima do bloco.
Encontrou-os. Desceu. Sentou-se no chã o olhando a janela e a luz amarela projetada na
parede e sentiu-se ridícula. O seu pai era um bloco granítico de virtude, um homem
impenetrá vel. Havia sido uma parvoíce admitir a hipó tese de o encontrar em falta. O mais
certo era ter-se oferecido para comprar os comprimidos a alguém que precisava deles, mas
nã o tinha a coragem suficiente para os comprar. Preconceitos. Feitios. De certa forma,
preferia que nã o tivesse havido qualquer surpresa. Por momentos, imaginara encontrá -lo
em encontros furtivos com uma beata da paró quia, expressando com ela o que nã o revelava
à mulher, fingindo que os encontros com o prior eram demorados, mas escapando-se deles
a coberto da noite para se entregar nos braços de outra, alguma que lhe despertasse a
libido como a mã e parecia nã o ser capaz. Ia levantar-se para se ir embora, estava já
limpando as mã os à ganga das calças e viu sombras bailando na parede interior da sacristia.
Havia movimento. Decidiu trepar uma ú ltima vez. Nã o sabia, ainda,  mas a sua vida estava
prestes a mudar. Subiu para cima do pedregulho, saltou e agarrou a grade, ergueu-se
ajudando com os pés e dobrando os braços, encostou a face ao vidro e viu. E assim que viu
percebeu que preferia nã o ter visto. O padre estava encostado ao aparador e falava. Seu pai
estava a dois passos dele e foi para ele que avançou, segurou-lhe a nuca e beijou-o lenta e
apaixonadamente. Aparecida largou-se e caiu. Ficou em choque. Esperaria tudo menos
aquilo. De certo era um equívoco. Voltou a trepar e o mundo pesou-lhe mais do que nunca.
Seu pai, Jacinto Bento, o beato, estava nu, de pé encostado à mesa e à sua frente, de joelhos,
o prior dava asas à luxú ria do desejo em carícias tã o devotas quanto proibidas. Aparecida
saltou, aleijou-se porque ao cair assentou mal um pé, correu pelas ruas derramando
lá grimas de incompreensã o. Tudo o que sofrera nas mã os daquele homem fazia sentido
porque ele era o primeiro a submeter-se aos seus pró prios princípios e exigências. Desta
forma, nada fazia sentido, nenhum caminho parecia certo, a vida desmoronava-se. Entrou
em casa, a mã e chamou por ela, mas Aparecida nã o respondeu. Fechou-se no quarto,
enterrou-se na cama, encolheu o corpo o mais que pô de e deu consigo a rezar baixinho com
a bíblia apertada entre as mã os.
Londres
O dia amanhecera fresco. Ela vestiu-se e agasalhou-se. Roupa interior confortá vel, uma T-
shirt e uma camisola de lã de gola larga por cima. Um casaco comprido de fazenda beige. O
cabelo solto. Sem jó ias. Com o brilho no olhar. Sentia-se bem. Nã o estava em si, neste dia
solarengo e frio, um espírito e uma sensaçã o de sensualidade, a libido nã o tinha acordado
ainda, mas sentia-se confortá vel. Pronta para a vida. Apanhou o Underground em King’s
Cross.
Ele sente-se o rei o Universo. A reuniã o do dia anterior foi fantá stica. Agora é só orientar a
equipa. Veste um fato azul-escuro com uma pequena e ténue linha fantasia. Coloca o
reló gio, perfuma-se, a barba está impecavelmente feita. A mala com o PC, os cadernos de
apontamentos e as folhas com os grá ficos impressos espera no chã o. Camisa branca,
gravata azul-celeste. Sai de casa. Nã o pensa em mulheres, hoje. A libido ainda nã o
conseguiu acordar. Está afogada no sucesso do dia anterior. Entrou no Underground em
Russel Square.
Quando ele entrou na mesma carruagem em que ela seguia, nunca se tinham visto e nada
fazia prever o que iria passar-se a seguir. Ela estava de pé junto à porta. Ele sentou-se a
meio da carruagem. A distâ ncia era considerá vel, mas conseguiam ver-se perfeitamente.
Ela olhou-o e, com naturalidade e porque se sentia bem, sorriu. Ele nã o percebeu se o
sorriso era consigo e por isso nã o sorriu de volta. Os dois desviaram o olhar e quando
voltaram a olhar um para o outro foi exatamente ao mesmo tempo e entã o, por via dessa
sintonia, os dois sorriram. E voltaram a desolhar-se e a reolhar-se e voltou a acontecer a
coincidência como se ambos tivessem um reló gio interior de olhar o outro. E desta vez
sorriram primeiro e ficaram mais sérios depois, mas nunca se desolharam. Fixos nas
emoçõ es e nas possibilidades.
Quando o Underground parou, começou o mais estranho dos bailados, a mais fantá stica das
danças e aquilo que acontecera com o olhar veio a suceder-se com todo o movimento dos
seus corpos, como se entre eles houvesse um estranho e poderoso magnetismo. Ela estava
mais perto da porta de saída, acontece que algumas pessoas se precipitaram à sua frente e
isso permitiu-lhe a ele percorrer a meia carruagem que os separava. Quando saíram,
estavam lado a lado. Pressentiam e sentiam a presença um do outro, mas nunca se olharam.
Mantiveram-se caminhando, olhando em frente. Quando, no atropelo da saída da
carruagem, algumas pessoas os tocaram, passaram entre eles, adiantaram ou atrasaram o
passo junto a eles, sem qualquer combinaçã o, mantiveram-se lado a lado. Ao longo dos
cinquenta metros da plataforma, diversas foram as pessoas que passaram entre eles, que se
cruzaram com eles, mas o seu ritmo estava numa inexplicá vel e indestrutível sintonia.
Mantiveram-se caminhando lado a lado, sentindo a presença mú tua. Só isso. Sem se
olharem. Contudo, à medida que os segundos passavam e aquela proximidade nã o
combinada se mantinha e o ritmo da passada se acertava por instinto, foi crescendo certa
cumplicidade. Sentida por cada um deles. Nunca partilhada. E chegaram à s escadas a subir,
e aos controladores de bilhete. Nesse momento pensaram que iriam separar-se. Por
estranha coincidência, entraram em controladores paralelos, livres ao mesmo tempo, e
quando surgiram do outro lado, como que por milagre, estavam lado a lado. Continuaram
caminhando e agora interrogavam-se se os olhares trocados e os sorrisos atirados um ao
outro na carruagem teriam sido os causadores daquela coincidência de proximidade,
daquele ritmo síncrono de vencer o espaço. E continuaram.
Já perto da saída da estaçã o de Picadilly Circus, com a luz do dia brilhando lá fora, e antes de
mergulhar nela e na imensa multidã o da urbe londrina, ela percebeu que seria impossível
manter-se a coincidência, ele percebeu que seria impossível manter-se a coincidência. E
continuaram, passada certa, caminhando lado a lado e, mesmo antes da luz do dia, do
banho de cor e som que Picadilly Square lhes tinha reservado, ele encostou a sua mã o
esquerda à mã o direita dela. Ela sentiu e nã o retirou a sua mã o. Os quatro passos que ainda
tinham para dar foram percorridos com o calor de uma mã o na outra.
Ele sentiu o sexo entumescido e ruborizou. Ela sentiu-se invadida por um calor hú mido e
reconfortante onde começa a vida das pessoas todas.
Quando saíram para a luz do dia, ele tomou a direita, ela tomou a esquerda. Nunca mais se
viram, nem nunca mais se esqueceram um do outro.
A Outra Vez
Ele está sentado de frente para o computador, a secretá ria está desarrumada, ou melhor, há
muito que a tentativa de a arrumar deixou de ser viá vel. Ele olha o monitor com atençã o e
vai fazendo pequenos e sucessivos cliques na folha de cá lculo. Nã o está neste mundo. Nem
se apercebe de que os três colegas da sala já chegaram, já se levantaram para vá rios cafés e
voltaram a chegar. Coabitam um espaço amplo e cada um deles tem umas paredes portá teis
à volta da secretá ria sobre as quais costumam espreitar. É uma forma de ter privacidade
nã o a tendo. Trabalham com ele um colega e duas colegas. Uma delas, a mais introvertida,
moça sossegada e envergonhada, de nã o dirigir a palavra a ninguém a menos que lha
peçam, de ruborizar à menor brincadeira, chegou-se ao pé dele, por trá s, colocou-lhe as
mã os nos ombros e iniciou uma massagem. Ele começou por sobressaltar-se, mas de
imediato lhe reconheceu o perfume e o odor da pele. Deixou-se ficar. Mas soube que algo
diferente estava para acontecer. Ela nã o era aquele tipo de pessoa, a rapariga que massaja
os ombros dos colegas. Nos pró ximos minutos, ele teria uma confirmaçã o e uma surpresa. A
confirmaçã o de que seria um dia diferente. A surpresa total em relaçã o a uma mulher que
ele nã o sabia que habitava na mente e no corpo daquela colega. Ela continuou a massagem
por uns segundos. Depois, deixou escorregar uma mã o pelo corpo dele e só a parou entre as
pernas. Segurou com firmeza o que havia para segurar e perguntou:
– Vamos fazer meninos?
—————
Nem conseguiu reagir. Nã o sabia como. Foi conservador:
– Sabes que sou casado…
– A maioria dos homens que me satisfez era-no!
– E porquê eu?
– Porque passei a vida a ouvir dizer que a dos pretos é maior e nunca pude confirmar
pessoalmente.
– Uma correçã o e um mito. Correçã o: talvez queiras dizer negros. Mito: Nã o a maior. Talvez
nó s sejamos mais generosos, nã o sei, nunca comparei, mas, em todo o caso, nã o achas que
te está s a precipitar?
– Em que mundo vives tu? Trabalhamos juntos há dois anos e nunca te tinha… feito uma
massagem.
– Nã o estava a falar do tempo que passá mos no escritó rio…
– Sim, pá , eu sei do que estavas a falar… a abordagem assustou o menino. Olha, desculpa e
esquece que aconteceu…
– OK… mas, diz-me, tu tinhas ao menos um plano?
– Tá s parvo? A vida está cheia de grelhas e mapas e exceis como esse que tens na frente… ia
só seguir o curso natural do desejo e improvisar.
E quando percebera que era tempo de retirar, a vida trouxe-lhe, a ela, uma surpresa. Já se
afastava dele e ouviu a sua voz quente e modulada:
– Almoçamos?
– Almoçamos!
—————
O almoço foi tenso. Percebia-se, entre ambos, que nã o era o almoço que interessava, era
aquilo em que ele poderia resultar. Percebia-se a antecipaçã o nos seus olhares, o peso do
silêncio e a incerteza nas palavras proferidas. Era um homem alto, face serena e um olhar
tranquilo. Trazia na pele o tom dos antepassados africanos, deslocava-se em passadas
largas e determinadas. Ela, por sua vez, era alva, ruiva, com os braços fininhos como varas,
o olhar tímido e simultaneamente á vido. Os lá bios finos, bem desenhados, num rosto
elegante. Fazia gestos pequenos e pressurosos. Corava com facilidade e tinha uma voz
quase aguda que contrastava com a gravidade do tom dele. Ela dava-lhe pouco mais do que
pela cintura e, contudo, lado a lado, ficam desiguais mas harmoniosos.
– Vamos ali ao Centro Comercial. Há lá uma loja de roupas onde está uma peça que nã o
posso deixar escapar…
– Vocês, mulheres! Nã o quero parecer machista, mas nã o era melhor descansares na hora
de almoço? Tens mesmo de ir à s compras?
– Nã o sã o compras. É compra. Só uma.
Caminharam. Ela tinha de dar dois passos por cada passada dele e faziam um efeito
esquisito. Ele ia tranquilo, ela ia quase a correr, mas mantinham-se lado a lado. Entraram.
Passaram a secçã o dos perfumes, subiram as escadas rolantes e, no piso de roupa para
senhora, ela pegou numa peça perfeitamente ao acaso, quase nã o olhou para ela, agarrou-
lhe numa mã o, Anda, vamos, e entrou num provador, puxou-o também para dentro, fechou
a porta e pendurou-se-lhe no pescoço.
—————
– Tu, hoje, está s irreconhecível… apressada, enérgica, resoluta… nem pareces tu!
– Como posso estar irreconhecível se nã o me conheces?
– Safada!
– Safado!
E beijou-o longamente esticada para ele que se curvou para lhe devolver o beijo. E
estiveram entregando-se à quela inusitada carícia enquanto a emoçã o cresceu, as libidos
despertaram todas, o entusiasmo manifestou-se e as mã os dela voaram para o cinto dele, o
fecho e para o botã o das calças até estas caírem a seus pés. E as mã os dele procuraram-na
por baixo do vestidinho de alças, curto, que trazia e viu-a toda de olhos fechados e ela
deixou-se ver enquanto o consumia, até que decidiu oferecer-lhe um outro tipo de beijo.
Desceu pelo corpo dele até ficar ajoelhada à sua frente. Segurou-lhos com as mã os  e
acariciou-os e beijou-os e percorreu depois o corpo do sexo dele com os lá bios quentes e a
língua queimando e quando lho tomou na boca, já ele estava enlouquecendo. Enlouquecido.
E fazia movimentos de vai-e-vem muito lentos para que ele sentisse os seus lá bios
cercando-lhe o sexo, arrastando-se nele. Ele rendeu-se. Encostou-se para trá s, à parede do
provador, segurou-lhe as faces com as mã os e acompanhou-a nos movimentos como que
lhe amparando a cabeça. Ela sentiu-o descontrolar-se, o corpo dele entrando em frémito e
convulsã o, o momento dos momentos aproximava-se e estava ele no auge do prazer,
esperando a qualquer momento a explosã o das explosõ es, quando ela o soltou, levantou-se
e disse:
– Huuummm, quase perfeito!
– Espera, onde vais? Nã o vais interromper isto agora! Nã o me vais deixar aqui, assim!
– Vou, vou. Fica para a outra…
– Qual outra?
– A outra vez!
O feliz dia cinzento!

Olá mana!
Esfuma-se-me nos horizontes da memó ria o dia em que, pela primeira vez, fui ao cinema.
Era uma tarde de Domingo na minha infâ ncia. Duma infâ ncia a que tu ainda nã o pertencias.
Os cartazes, de nomenclatura ainda nã o ofendida pelo anacronismo que hoje sã o, eram
mesmo de cartã o e ostentavam num colorido preto e branco o nome que a pequenada
queria ouvir: Trinitá . Nã o interessava se os actores eram bons ou maus, de facto, os actores
nã o interessavam para nada. Aliá s, se bem me lembro, à altura, nã o havia actores! Nem
passava pela cabeça de ninguém perguntar se o filme era bom. Trinitá , o nome, bastava.
Era, por si só , garantia de emoçõ es fortes, aventuras inigualá veis, tarde bem passada,
semente de brincadeiras emocionantes e ruidosas. Os adultos nã o podiam entrar e a
pequenada enchia a sala de gritos de incentivo: “dá -lhe, dá -lhe, Trinitá !” ou, voluntariosa,
prestava ajuda ao heró i. Aquela ajuda que mais tarde se reconheceria fundamental:
“Cuidado, Trinitá , ele está atrá s de ti!”. O filme desenrolava-se na tela e para cá dela, saltos
nos assentos irrequietos, correrias abaixo e acima ao longo das filas de cadeiras, tiros de
indicador em riste e polegar dobrado a disparar. No final perguntaram-me cá fora quantos
tinham morrido e a resposta surgiu esclarecedora: “Deles, muitos. De nó s, nenhum!”. Por
essa altura todas as coisas me surpreendiam e a minha vida nã o tinha personagens-tipo
mesmo que o fossem. O meu quotidiano era marcado pela singularidade de cada gesto, cada
palavra e tudo o que presenciava era um milagre original da vida. Talvez tivesse nascido
comigo uma crença natural no mundo que me rodeia, um optimismo inquebrantá vel de
português que olha o mar e acredita que Á frica é já ali, a América um pouco mais adiante e
a distante e inalcançá vel Índia dos outros logo ao virar de uma esquina, de um cabo, de uma
nau, de uma vontade. Contudo, tal como a Índia aos olhos dos portugueses, também o meu
sonho de mundo viria a crescer, a amadurecer, a moldar-se por outros olhos que,
entretanto, nasceram em mim. E veio a faculdade, a descoberta de coisas maravilhosas,
caminhos inexplorados do pensamento. Ideias fenomenais de homens e mulheres mais
fenomenais ainda. Pensar tornou-se concreto, palpá vel como a terra, moldá vel como o
barro e, por vezes, esguio como a areia por entre os dedos. E deixei-me perder por entre
milhares de pá ginas de descoberta, milhares de horas de aventura no papel original ou
fotocó pia, milhares de olhares no vazio à procura das respostas e das perguntas para elas e
das respostas para as perguntas delas… pouco depois na vida julguei ter muito na mã o. E
tinha. Tinha um homem em vez de uma criança. Tinha as reflexõ es acerca dos ambientes,
das personagens, dos tempos, das acçõ es, dos autores se os houvesse porque entretanto
morreram e viveram de novo. Tinha, na mã o aberta, uma rede de pensamentos e magia a
que chamam conhecimento. Parei um instante e perguntei-me: “a que preço?”. O preço fora
a morte do meu Trinitá genuíno. O preço fora o reconhecimento de uma personagem-tipo,
sem vida pró pria, com nome de actor por trá s. E tive de viver com estes estereó tipos como
tive de viver com outros que o estudo foi consagrando. O encarnado prenunciando
desgraça, a noite anunciando morte, e o dia cinzento anunciando infelicidade peripatética.
E foi aqui que quis chegar. O dia está cinzento. Uma cinza que nã o permite o brilho do astro
que nos anima o espírito. Abafado, como se sufocá ssemos mesmo antes de tentarmos
respirar. Nas pá ginas de um romance este seria o dia ideal para a infelicidade. Este seria o
dia das má s notícias e das desgraças anunciadas. Mas o meu Trinitá antigo, o genuíno
“cobó i” que chega em cima da hora rebrilhando metais nas botas chegou no sorriso da
médica que estava lá dentro com a nossa mã e e veio trazer-nos um feliz dia cinzento: “a
senhora pode deitar um foguete”, disse. E eu sorri contigo e com ela e fomos almoçar sob o
alegre cinzento daquela manhã de Junho.

Beijo.
Mano.
O Perfume e os Espinhos
Era ainda cedo na madrugada. Estava escuro, mas já nã o era aquele breu cerrado de nã o
conseguir ver-se nada. No céu, ao longe, anunciava-se uma ténue claridade como se alguém
no outro lado do mundo tivesse deixado uma luz de candeeiro acesa. Ele virou-se na cama e
ao virar-se a mã o dele tocou a perna dela, ali junto à coxa, e sentiu-lhe a suavidade da pele e
o calor dos quarenta. Foi o suficiente para nã o conseguir dormir mais. Como seria possível
estarem a viver uma crise tã o profunda? A verdade é que amava aquela mulher em todas as
suas facetas. O sorriso, o tom de voz, a doçura no olhar e  o perfume da pele. Cheirava a
rosas mesmo sem colocar qualquer á gua-de-coló nia, ou creme ou o que quer que fosse.
Sempre tinha sido assim. E apesar de já ter entrado nos quarenta, mantinha certa frescura e
alguma energia. Contudo, tirando o sexo, que era formidá vel, nos ú ltimos dois anos
pareciam o cã o e o gato. Ralhavam um com o outro, estavam sempre em desacordo, ainda
um nã o tinha falado, já o outro estava a contrariá -lo, havia mesmo momentos em que se
desprezavam. Sofriam ambos. Por se quererem e nã o saberem como. Por se amarem e se
desprezarem. Como chegaram à quilo? A ver o que acontecia, deixou ficar a mã o na perna
dela. Ela virou-se para ele, segurou-lhe a mã o, levou-a ao pú bis, depois um pouco mais
abaixo até terrenos visivelmente hú midos e disse-lhe, Está aqui o que queres. Vem
buscar! E ele foi. Beijou-lhe os seios enquanto as suas mã os iam em busca do prometido,
depois queimou-lhe o ventre com a língua e por fim bebeu-a até que ela perdesse a noçã o
de onde estava e se esvaísse em gritos despudorados e excitantes como tantas vezes
acontecia, Vem malandro, come-me toda, vem fazer-me tua, vem, quero vir-me na tua boca.
Excitado e incitado, ele foi e cumpriu as ordens dela e quando a sentiu saciada, mudou o
jogo sú bito e sem aviso, Agora é a minha vez, acaricia-te, prepara-te para mim… ela
preparou e aconteceu o que tinha de acontecer e adormeceram profundamente até que a
luz ténue venceu completamente o manto negro e começaram a fazer pequenos gestos,
viraram-se na cama, afastaram-se, ela levantou-se e foi para a casa-de-banho. Ele ficou um
pouco mais e depois levantou-se também e seguiu-a e ao aproximar-se da casa-de-banho
veio-lhe aquele aroma a rosas que ela sempre exalara e o deixava inebriado, mesmo
quando sofria. Entrou e antes que pudesse dizer alguma coisa, ela atalhou:
– O que aconteceu esta noite foi um engano, ouviste?
– Nã o parecias enganada. Bem pelo contrá rio.
– Mas estava. De resto, já tivemos esta conversa montes de vezes. O sexo é ó timo, nó s é que
nã o nos entendemos.
– Bom dia!
– Bom dia! E vê se deixas a tampa da sanita em baixo.
– Foda-se, tu nã o pá ras. Nã o me dá s um minuto de paz…
– Paz? Atreves-te a falar-me de paz? Eu dei-te a minha vida e tu transformaste-a num
inferno…
– Como? diz-me ao menos como? O que foi que eu te fiz?
– Tudo. Basta que sejas tu!
– Nã o dá , sabes, nã o dá para suportar mais essa agressividade gratuita. Para mim acabou.
Vou fazer uns telefonemas, vou pedir o dia e vou-me embora. Esta noite já cá nã o fico.
– Boa viagem! Já devias ter ido há mais tempo. Há vinte anos, sua besta!
Saiu de casa exasperado. Telefonou para o trabalho. Explicou que ia separar-se e precisava
de um dia. Deram-lhe autorizaçã o para usar mais dias. Esses processos sã o complicados.
Resolva as suas coisas e venha quando estiver concentrado. Vencido este obstá culo,
telefonou a um amigo, Olha lá pá , tu emprestas-me o teu carro por hoje, é que como tens
um mono-volume dava-me jeito para tirar a minha tralha lá de casa! Eh pá , eu empresto-te,
mas isso é mesmo a sério? Nã o tem emenda? Vocês já falaram um com o outro? O
problema, pá , foi termos falado um com o outro. É mesmo a sério.
Por fim, lembrou-se de certa oferta que lhe fizeram há um par de meses atrá s e telefonou-
lhe:
– ‘Tou, Jú lia…
– Sim, Miguel, já vi que és tu… que é feito de ti? Nã o te vejo há quase uma semana…
– Lembras-te da oferta que me fizeste há dois meses…
– Lembro… oh se lembro… fazer-te essa oferta foi uma das decisõ es mais difíceis da minha
vida, nã o teres aceitado foi um golpe duro…
– Sim, mas eu aceito agora se ainda estiver de pé…
– Assim? De repente? Miguel, havia uma condiçã o…
– A minha mulher já nã o é um problema. Acabá mos tudo hoje!
– Hoje? E isso é a sério ou logo à noite vais voltar para ela a correr? Nã o achas demasiado
fresco para te mudares já cá para casa?
– Tenho as minhas coisas no carro do Artur. O gajo foi um porreiraço e emprestou-me o
mono-volume. E como nã o tenho mesmo para onde ir, e também já nã o tenho a minha
mulher, que era a tua condiçã o, pensei, Porque fazer duas mudanças se posso fazer só uma?
– Eh pá … isso é repentino… mas olha, a oferta está de pé, porque nã o?! Eu saio à s 18,
aparece à s 18:30. Dá s-me tempo de chegar a casa…
– Ok. Obrigadã o.
– Nã o te preocupes, vais pagar com o corpinho!
Quando acabou de tirar as coisas de casa e entrou para o carro atafulhado reparou com
saudade que o perfume de rosas bailava no ar. Ainda nã o eram 18, mas nã o tinha mesmo
para onde ir. Estacionou em frente ao prédio de Jú lia, do outro lado da rua, e esperou. À s 18
viu-a chegar abraçada a um tipo novo, alto, boa compleiçã o física e um ar tã o saudá vel
quanto parvo. Junto à porta do prédio, ela esticou-se, pendurou-se no pescoço dele e
beijou-o longamente e com avidez. Percebeu que trocaram algumas palavras e o tipo foi-se
embora.
Deu à chave do carro, meteu a primeira e arrancou para a vida…
Sementeira

No início, era um quase sorriso,


Um esgar.
Um olhar tímido e indeciso,
Um choro contido,
A preocupar.
Depois desse tempo inicial,
Em que nã o me vias
Ainda,
Chegou a coisa mais linda.
Uma esperança.
Um gesto de confiança,
As tuas mã os mais perto,
Um sorriso aberto.
Foi tempo de me falares
Com emoçã o,
De me olhares como quem pede,
De me estenderes palavras
À passagem,
De fazermos a viagem
Dos riscos
E do prazer.
E chegou, por fim, o infinito.
O lâ nguido e ocioso grito
Durante e depois do sexo.
Veio o tempo do cô ncavo
E do convexo.
Veio o tempo de me incendiares
A carne
Com a saliva do teu desejo,
Uma gula voraz,
Em sentido e profundo beijo.
E tuas mã os tomaram conta de mim,
Novos gritos e urros
E carícias sem fim…
E houve a descoberta!
Nã o está mais deserta
A planície do teu corpo.
Está semeada de mim!
jpv

Imagem daqui.
           
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