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IVAN ÂNGELO

A FESTA
ROMANCE : CONTOS

8ª edição
INÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO.

A FESTA
Copyright © 1976 by Ivan Ângelo

8ª edição – Agosto de 1995


Tiragem – 3.000 exemplares

Editor: Luís Fernando

Capa: Hélio de Almeida


Ilustração: laura Beatriz

Diagramação e Editoração Eletrônica: Alan Cesar Sales Maia

Revisão: Cecília Beatriz Alves Teixeira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ângelo, Ivan
A Festa / Ivan Ângelo – 8ª ED - São Paulo:
Geração Editorial, 1995

1 Romance brasileiro I. Título.

95 2993

CDD-869.935

índices para catálogo sistemático:

1. Romances : Século 20 : Literatura brasileira

869.935
2. Século 20 : Romances : Literatura brasileira

869.935
Todos os Direitos Reservados.
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Brasil
Tel (011) 872-0984 - Fax (011)62-9031

1995

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
DOCUMENTÁRIO
(sertão e cidade, 1970)

BODAS DE PÉROLA
(amor dos anos 30)

ANDREA
(garota dos anos 50)

CORRUPÇÃO
(triângulo nos anos 40)

O REFÚGIO
(insegurança, 1970)

LUTA DE CLASSES
(vidinha, 1970)

PREOCUPAÇÕES
(angústias, 1968)

ANTES DA FESTA
(vítimas dos anos 60)

DEPOIS DA FESTA
(índice dos destinos)
AGRADECIMENTOS

A Fernando Gabeira — por umas conversas em Roma, que


botaram este livro em movimento.
A Fernando Mitre — por uma leitura atenta, e questionamentos.
A Wladyr Nader — que ousou editar, quando havia risco.
A alguns amigos, conhecidos e inimigos, por se intrometerem
em alguns personagens.
Introdução

Relendo A Festa, a gente se pergunta: Por que este romance


não foi proibido nos anos 70? Burrice da censura? Escapou pela
tangente? Não entenderam? Não foi denunciado por ninguém? Quem
viveu naquele tempo e esteve envolvido com atividades criadoras
sabe que foi uma época complexa, desafiadora. Era preciso driblar a
censura, mão direita do poder ditatorial, ser ágil para escapar dos
atrabiliários. Armando Falcão ou Alfredo Buzaid, os piores em matéria
de sufoco à manifestação artística, arrocho da mídia, violentação da
liberdade. Para quem não viveu, e principalmente para as novas
gerações mal informadas que transitam nesta democracia ainda mal
formulada e cheia de vícios, (muitos vindos da ditadura), não custam
pequenas informações. Uma lei obrigava editoras a enviar originais
ao Ministério da Justiça, a fim de serem lidos, julgados e aprovados.
Os “justos” do ministério julgavam a nação inteira incompetente para
escolher o que ler, ouvir, ver. Era a censura prévia que manteve
filmes nas prateleiras, truncou a encenação de peças, retirou músicas
de circulação e complicou a vida da imprensa. Felizmente, houve
resistência e, com raríssimas exceções, os editores se recusaram a
enviar originais. Publicavam e esperavam. Vinham as proibições.
Entre 500 e 600 livros tiveram o carimbo vetado. A justificativa:
atentatórios à moral e aos bons costumes. Na história da literatura a
questão da moralidade gera um processo que se arrasta, longo,
complicado e cheio de nuances.
A Festa, de Ivan Ângelo, tinha tudo para ser proibido. Dizia-se,
na época, que muitas denúncias vinham das mesas de biriba das
mulheres dos generais em Brasília: Leu aquele livro pornográfico?
Aquela ameaça ao regime? Havia também zelosas e atentas
instituições religiosas, cônscias da tradição, família e propriedade,
atentas, prontas a disparar alegremente seus canhões contra
escritores terroristas que perturbavam a paz. Ivan Ângelo teve sorte,
passou impune. Mas pelos cânones de tempos obscuros, bem
“merecia” uma proibição. Porque tem tudo o que fazia o pavor dos
defensores da lei e da ordem. Este é , felizmente, um livro sbversivo,
no sentido de que mostrou o que não podia ser mostrado. A injustiça,
o cinismo e a mentira, o esmagamento do homem, a repreensão, a
ausência de liberdade, os gestos viados o homem comum envolvido
no caos e desordem. Este é um romance que subverte a narrativa
tradicional, estoura as normas convencionais e documenta a violencia
de um tempo que existiu. Parece inacreditável, vivemos nele e
sobrevivemos. Nem sabemos como. O mais político e violento dos
livros publicados nos anos 70. Sem ser panfletário ideológico,
engajado.Sem essas chatices, Deslumbrantes em sua ousadia, sua
velocidade, cortes rápidos, Ivan usa recursos que conheceríamos
vinte anos mais tarde do vídeo – clips do zapping. Ler A Festa é
como ter o controle remoto nas mãos e acioná-lo para montar nosso
próprio livro. Todos os recursos de que Ivan dispunha aqui estão ,
narrativa normal, flash-backs, fragmentos do cotidiano, notícias de
jornal, revista,imagens de cinema, televisão, diálogos teatrais,
fotografias, interrogatórios policiais, citações de livros, fluxo do
inconsciente. De uma manifestação popular numa praça um Belo
Horizonte, ele nos conduz a uma festa, nos leva aos recônditos dos
personagens, revela como jovens estudantes e jornalistas se
envolveram na luta pela liberdade. Permeando tudo, uma história de
amor. E a emoção. Livro clássico é o que podemos ler em qualquer
época, qualquer tempo, não importa há quantos anos foi publicado. A
Festa se inclui entre os belos clássico, implacáveis e impiedoso, que
documentaram o estupro praticado contra o Brasil. Romance para se
ler, se comover, se indignar. E constatar. Gente! Nada mudou .
Violência havia , violência há , em escala . E quem se importa?
“O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente ”
(Carlos Drummond de Andrade – “Mãos Dadas”)

“Não deve, portanto, importar ao príncipe a qualificação de cruel para


manter os seus súditos unidos e com fé, porque, com raras exceções,
é ele mais piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam
acontecer desordens, das quais podem nascer assassínios ou
rapinagem.”
(Maquiavel – “’O Príncipe”)

“Tentei tudo. Proibi a renda de cristais e de tábuas de sinais


cabalísticos. Baixei de surpresa um pesado imposto sobre cartas de
baralho; os tribunais têm poder para sentenciar os alquimistas ao
trabalho forçado nas minas; é ofensa ao estado levitar mesas ou
receber espíritos. Mas nada é realmente eficaz. Como posso esperar
que as massas sejam sensatas quando, por exemplo, tenho certeza,
o capitão da minha própria guarda usa um amuleto contra o Mau-
Olhado e o mercador mais rico da cidade consulta um médium antes
de qualquer transação importante?”
(W. H. Auden – “Herodes”)

“Olha a voz que me resta


olha a veia que salta
olha a gota que falta
pró desfecho da festa.”
(Chico Buarque de Holanda-“Gota Dágua”)
DOCUMENTÁRIO

“Quem estivesse na praça da Estação na madrugada de hoje


veria um nordestino moreno, de 53 anos, entrar com uns oitocentos
flagelados no trem de madeira que os levaria de volta para o
Nordeste. Veria os guardas, soldados e investigadores tangendo-os
com energia mas sem violência para dentro dos vagões. E veria que
em pouco mais de quarenta minutos estavam todos guardados dentro
do trem, esperando apenas ordem de partida.
E, a menos que estivesse comprometido com os
acontecimentos, não compreenderia como o fogo começou em quatro
vagões ao mesmo tempo. Apenas veria que o fogo surgiu do lado de
fora dos vagões, já forte, certamente provocado.
O grande tumulto estourou à 1h45m, com o grito de “fogo!”. Os
retirantes saíram do trem correndo e gritando, carregando seus filhos,
arrastando os velhos. Os policiais, atônitos, não sabiam se agarravam
os nordestinos que fugiam ou se tomavam providências contra o
incêndio. Dividiram-se nessas tarefas, gritando, esbarrando-se,
empurrando, batendo. Um carro brucutu, que ali estava para conter a
multidão se necessário, atacou o incêndio que comia rapidamente o
trem de madeira. Policiais a cavalo corriam atrás dos retirantes que
debandavam.
Quem estivesse no hotel Itatiaia, de frente para a Estação, veria
avançar para a direita o único grupo que mantinha uma espécie de
organização, em formato de cunha. À frente estavam aquele
nordestino de 53 anos, mais tarde identificado como Marcionílio de
Mattos, e o repórter Samuel Aparecido Fereszin, de um matutino
desta Capital. Mulheres, crianças e velhos estavam no meio da cunha
que avançava, protegidos nos flancos pelos homens, alguns armados
de porretes, alguns de peixeiras, Marcionílio de facão, a grande
maioria desarmada.
Os policiais que perceberam aquele grupo organizado no meio
do tumulto tentavam reunir companheiros para impedir a fuga. A
surpresa do ataque favorecia os nordestinos, pois foi impossível
reunir mais do que oito ou nove soldados. Tentaram conter os
flagelados com ordens (eles avançavam); depois com tiros para o alto
(avançavam); depois com tiros diretos e cassetetes, e foram
envolvidos pela multidão, pisados, batidos.
Os nordestinos saíram da praça e dispersaram-se em pequenos
grupos de cinco/seis pessoas em cada esquina. Quando os reforços
policiais os alcançaram, restavam pouco mais de vinte pessoas das
quase trezentas que formavam a cunha, uns vinte velhos e mulheres
que Marcionílio tentava conduzir para algum lugar. O jornalista
Samuel Aparecido Fereszin não estava mais lá.
O trem queimou-se até às quatro da manhã.”
(Trecho da reportagem que o diário “A Tarde” suprimiu da
cobertura aos acontecimentos da praça da Estação, na sua edição do
dia 31 de março de 1970, atendendo solicitação da Polícia Federal,
que alegou motivos de segurança nacional.)

FLASH-BACK

“Não creio, não creio absolutamente que, sem o trabalho


escravo, esses grandes canaviais dum só senhor possam ser
cultivados; não creio absolutamente que o trabalho livre se adapte ao
atual sistema de trabalho agrícola. (...); o trabalho livre em pequenos
lotes de terra próprios poderá também, na Província da Bahia,
derribar o capital e o trabalho escravo e levantar, sobre os restos dum
deplorável e ignominioso feudalismo negro, uma vida em aldeias
livres e pequenas colônias independentes.”

(Robert Avê-Lallemant, médico alemão, em “Viagem pelo Norte


do Brasil no Ano de 1859”, pág. 39, edição do Instituto Nacional do
Livro.)

“Nas terras dos grandes proprietários, eles não gozam de direito


algum político, porque não têm opinião livre; para eles, o grande
proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra,
tudo; e afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte
desses infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média.”
(Colaborador anônimo do “Diário de Pernambuco”, publicado em
meados do século XIX, cit. por Gilberto Freire em “Nordeste”.)

“A constituição de nossa propriedade territorial, enfeudando


vastas fazendas nas mãos dos privilegiados da fortuna, só por
exceção permite ao pobre a posse e domínio de alguns palmos de
terra. Em regra ele é um rendeiro, agregado, camarada ou que quer
que seja; e então sua sorte é quase a do antigo servo da gleba.”
(Domingos Velho Cavalcanti de Albuquerque, presidente de
Pernambuco na década de 1870, cit. por Paulo Cavalcanti em “Eça
de Queirós, agitador no Brasil”.)

“Apareceu no sertão do norte um indivíduo que se diz chamar


Antônio Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das
classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes
ascéticos, com que se impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou
crescer a barba e os cabelos, veste uma túnica de algodão e
alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de
duas professas, vive a rezar terços e a pregar e a dar conselhos às
multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo
sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu
gosto. Revela ser homem inteligente mas sem cultura.”
(Folhinha Laemmert, de 1877, publicada no Rio de Janeiro vinte
anos antes da campanha de Canudos, cit. por Euclides da Cunha em
“Os Sertões”.)

“Quanta desgraça, quanta barbárie naqueles sertões, santo


Deus!” (Teodoro Sampaio em “O Rio São Francisco e a Chapada
Diamantina”, após viagem realizada ao Nordeste em 1879.)

“... sertanejos fanáticos pelo interesse, que para ali se dirigiam


acreditando na idéia do comunismo, tão apregoada pelo Conselheiro.
(...) Sobe a sessenta o número de fazendas tomadas pelos
conselheiristas em toda a região.”
(Despacho de Salvador para o jornal “O País”, do Rio de
Janeiro, dando testemunho de um “respeitável cavalheiro vindo das
regiões de Canudos”, publicado em 30 de janeiro de 1897.)
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história,
resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na
precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando
caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro
apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”
(Euclides da Cunha em “Os Sertões”, 1902.)

“Em 1900, abandonam o Ceará 40.000 vítimas da seca. Ainda


em
1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de
Fortaleza, enquanto 8.500 tomam o destino do Sul, 30 mil se dirigem
pelo caminho habitual, o do Norte...”
(Rui Facó em “Cangaceiros e Fanáticos”.)

“E, em 1917, ingressou Virgulino na vida guerrilheira,


tornandose, em pouco tempo, espantalho dos sertões.”
(Optato Gueiros em “Lampião — Memórias de um oficial ex-
comandante de forças volantes”.)

“Certifico que a fls. 43 do Livro nº 2 do registro de nascimento foi


feito hoje o assento de Marcionílio de Mattos, nascido aos 9 de
agosto de 1917, às seis horas, no distrito de Traíras, neste município,
à rua —, do sexo masculino, de cor parda, filho legítimo de Divino de
Mattos e de dona Maria Leontina Albuquerque de Mattos, sendo avós
paternos desconhecidos e maternos Tenório Albuquerque de Mattos
e dona Antoninha Leontina de Mattos.

Foi declarante o pai do registrado.


Almas, 19 de setembro de 1917.
Francisco Gudin Velho — Oficial do Registro Civil.
(Registro de nascimento encontrado pela polícia na praça da
Estação em Belo Horizonte, no dia seguinte aos acontecimentos da
noite de 30 de março de 1970, Há uma frase escrita a lápis na
margem do documento, ao lado da data, em letra que a polícia
reconheceu como de Marcionílio: “Ano que Lampião entrô nu
Cangaço”.)

FIM DO FLASH-BACK

“que seu pai, Divino de Mattos, era capanga do coronel Horácio


Mattos, homem forte da República no sertão da Bahia, respeitado por
Lampião; que o mesmo tomou parte nas guerras do coronel contra a
Coluna Prestes nos lugares Olho d’Água, Riacho d’Areia, Roça de
Dentro, Maxixe e Pedrinhas; que seu pai sempre amaldiçoou esses
revoltosos porque queimaram a vila de Roça de Dentro depois de a
vencerem; que não é admirador de Prestes, homem que põe fogo em
cidade; que desde menino até hoje o homem que mais admirou foi o
chefe jagunço do coronel Horácio Mattos, de nome João Duque; que
o mesmo João Duque brigou de machado contra mais de dez (10)
homens armados de fuzil da Coluna Prestes; que não sabe dizer se
Prestes já era comunista mas sabe que hoje ele é comunista; que por
isso não gosta dos comunistas; que tinha nove (9) anos quando Roça
de Dentro foi”
(Do depoimento do retirante Marcionílio de Mattos no dia lº de
abril de 1970, na Delegacia de Ordem Política e Social de Belo
Horizonte, após os graves distúrbios que agitaram a praça da Estação
na noite de 30 e madrugada de 31 de março de 1970.)
“Arrojou-se sozinho, de machado em punho, sobre a tropa que
avançava contra a trincheira, inteiramente exposto, numa atitude de
heróica beleza. Os soldados suspenderam o avanço e deram-lhe uma
descarga a pouca distância, que o não atingiu. O jagunço girou então
o seu terrível machado, com as duas mãos, em torno da cabeça e o
arremessou violentamente sobre os nossos, num último gesto de
energia.
A arma formidável rodopiou no espaço e foi cair a poucos
passos da nossa linha, sem a alcançar.
Houve uma descarga e o herói abateu-se morto no chão, como
um gigante fulminado por um raio.
O QG acampou junto a um olho d’água existente numa pequena
praça.”
(Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna Prestes, em “A
Coluna Prestes — Marchas e Combates”, trecho que narra a
campanha dos revoltosos em Roça de Dentro, no interior da Bahia.)
“Perguntei-lhe, então, por que não fez fogo nos revoltosos.
— Ha menino! disse, isso aqui é meio de vida. Se eu fosse atirar
em todos os macacos que eu vejo, já teria desaparecido.”
(Lampião explicando ao rastejador Miguel Francelino que não
atacara a Coluna Prestes porque cangaço “é meio de vida”. Lampião
fora contratado pelo chefe político Floro Bartolomeu e pelo padre
Cícero Romão para combater a Coluna, recebendo para isso armas e
dinheiro. Contado por Optato Gueiros em “Lampião — Memórias de
um oficial ex-comandante de forças volantes”.)
“que se mudaram para Alagoas em virtude de desentendimento
entre seu pai e o coronel Horácio; que passaram a servir ao coronel
Joaquim Resende, dono da Fazenda Pão de Açúcar; que o dito
coronel era amigo pessoal do cangaceiro Lampião; que Lampião
esteve lá várias vezes; que data daí sua amizade pelo citado
cangaceiro; que Lampião não era bandido inteiro, era um homem
bravo que queria recompor o sertão; que ele, depoente, nessa época
contava quinze (15) anos e tinha conhecimento para saber muito bem
quem era Lampião; que se tivesse de escolher entre Prestes e
Lampião como chefe escolheria o último, porque Lampião queria
apenas consertar o sertão e não fazer política; que entendia consertar
o sertão como acabar com os coronéis e dar terra, trabalho e justiça
aos pobres;”
(Do depoimento de Marcionílio de Mattos no dia 1º de abril de
1970 no DOPS de Belo Horizonte, sobre os distúrbios em que
morreram quatro pessoas na praça da Estação.)

“Mais do que meio de vida, meio de prover a subsistência, o


cangaceirismo prolifera no Nordeste sobretudo nas épocas das
grandes secas. Formando-se então os bandos, em geral pequenos,
de 3 a 10 homens no máximo. A maioria deles desaparece, uma vez
passada a calamidade climática.”
(Rui Facó, em “Cangaceiros e Fanáticos”,)
“justiça aos pobres; que entende por justiça é não deixar
ninguém morrer de fome, não ter que vender filha, poder cobrar crime
de gente poderosa, receber a ajuda que governo manda nas secas e
que os ladrões roubam dos pobres; que ele, depoente, se tivesse a
coragem de João Duque e a esperteza de Virgulino Lampião era isso
que faria, dar justiça, terra e trabalho; que isso pensava fazer com
muita paz quando trouxe para o Sul aqueles pobrezinhos do Norte;
que não é culpa sua se a paz virou guerra; que não vieram armados
procurando briga; que peixeira todo mundo usa, igual chapéu, é
vestimenta; que não é verdade que tivessem data marcada para
chegar a Belo Horizonte na véspera do aniversário da revolução; que
saíram fugindo da seca; que estão viajando com muito esforço e
dificuldade já faz mais de 20 (vinte) dias, sem saber que dia é na
folhinha; que não conhecia anteriormente o estudante Carlos Bicalho,
da Faculdade de Ciências Econômicas; que não conhecia o jornalista
Samuel Aparecido Fereszin; que não sabe dizer se os dois”
(Do depoimento de Marcionílio de Mattos no DOPS de Belo
Horizonte, no processo sobre o incidente da praça da Estação, em
que morreram quatro pessoas, foram feitas 216 prisões e atendidos
17 feridos no Pronto Socorro.)

“Inté mesmo a asa branca


Bateu asas do sertão
Entonce eu disse, adeus Rosinha,
Guarda contigo meu coração.

Hoje longe muitas léguas


Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortá pró meu sertão.

Quando o verde dos teus óio


Se espaiá na prantação
Eu te asseguro, num chore não, viu?
Que eu vortarei, viu, meu coração.”
(Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, baião “Asa Branca”, 1952.)
“Agora, mesmo, estão chegando notícias da invasão de vários
lugares do interior por levas de mendigos com saco às costas,
reclamando alimentos. Por ora estas invasões são pacíficas mas não
tarda o momento em que os comunistas se aproveitarão da situação
para incitar o povo à violência.”
(Juvenal Lamartine, ex-governador do Rio Grande do Norte, em
carta à “Tribuna da Imprensa”, do Rio de Janeiro, em 12 de março de
1953.)

“Dos 3 mil populares que invadiram e saquearam o mercado de


Arapiraca, dois terços eram realmente flagelados e famintos. Os
outros se prevaleceram da situação de motim que se criou, guiados
por agitadores e subversivos que pretendiam aproveitar a fase difícil
decorrente da seca e promover agitações e atos de revolta.
Os retirantes do sertão, segundo veio apurar a polícia alagoana,
estavam liderados por Marcionílio de Mattos, ex-capanga do coronel
Joaquim Resende, de Pão de Açúcar. Marcionílio é devedor de um
crime de morte na pessoa do administrador desse fazendeiro, e
participante dos últimos grupos de cangaço nos anos 38 e 39. Foi ele
o chefe das desordens, o responsável pela invasão, e está mantido
encarcerado, sob forte guarda armada, na cadeia pública de
Arapiraca.”
(Jornal “O Palmeirense”, de Palmeira dos índios, Alagoas, em
15 de março de 1958.)

“ O flagelado

... Por onde passamos encontramo-lo faminto, maltrapilho,


esquelético, olhar triste em busca do auxílio que não vem. Já sem fé,
porque sua única ambição é um pouco de farinha para matar a fome
que lhe mina dia a dia o organismo e o mínimo de comiseração que
merece um ser humano. (...) Aqui mesmo no Brasil, de que nos
orgulhamos, sobre o qual proclamamos loas e queremos que se situe
no concerto das nações como possuidor de elevado estágio de
civilização, há no momento uma população estimada em mais de dois
milhões que vegeta no mais baixo padrão de subnutrição em que um
povo pode viver. (...) A miséria continua, o homem é explorado pelo
homem, o dinheiro desperdiçado e as autoridades omissas ou
conviventes com esse problema; o problema da seca só é lembrado
na época em que o mal se apresenta;”
(Coronel Orlando Gomes Ramagem, subchefe do Gabinete
militar da Presidência da República, observador pessoal do então
presidente Juscelino Kubitschek da seca de 1958. Seu relatório foi
escamoteado durante esse governo e só divulgado no governo
seguinte, de Jânio Quadros, 1961.)
“que não conhecia anteriormente o estudante Carlos Bicalho, da
Faculdade de Ciências Econômicas; que não conhecia o jornalista
Samuel Aparecido Fereszin; que não sabe dizer se os dois se
conheciam; que não é verdade que tenha vindo para o Sul com seus
retirantes a chamado dos supracitados; que não recebeu dinheiro de
quem quer que seja para esse fim;”
(Do depoimento de Marcionílio de Mattos, após os dramáticos
acontecimentos da praça da Estação de Belo Horizonte, quando
foram apreendidas pela polícia 183 peixeiras, 31 canivetes, 2
garruchas,5 bordões e um sabre militar que estavam em poder dos
amotinados.)
“As primeiras levas de retirantes chegaram às capitais do
Nordeste, com a repetição dos tristes fatos que marcam a seca. No
Mercado de João Pessoa, uma mulher oferecia, domingo, os filhos a
quem os quisesse levar.”
(Jornal “O Estado de S. Paulo”, em 25 de março de 1958.)

“Todas as classes já se organizaram nesse País, com exceção


dos camponeses. O operário tem o seu sindicato, o estudante, a sua
união, o militar o seu clube, o comerciante, o jornalista ou o
funcionário público a sua associação, o industrial, o seu centro.
Somente o camponês ainda não se uniu em um órgão de classe
capaz de defendê-lo. Esse seu justo anseio é sufocado com violência.
É crime falar em sindicato para o camponês.”
(Francisco Julião, deputado, no jornal “O Estado de S. Paulo”,
em 15 de dezembro de 1959.)

“Liberdade para Marcionílio!


Povo do Nordeste:
Há dois anos o governo dos usineiros e donos de gado mantém
preso sem julgamento o líder camponês nosso irmão Marcionílio de
Mattos.
Esse homem, que a imprensa dos latifundiários apresenta como
um bandido e assassino, é um revolucionário autêntico do Nordeste.
Foi cangaceiro, sim, quando ser cangaceiro era o único meio de
sobreviver nas terras secas do sertão alagoano. Como cangaceiro,
nunca tirou dos pobres. Tirava de quem tinha o que ser tirado.
O jornal dos latifundiários diz que ele matou o administrador do
fazendeiro que lhe deu abrigo. Matou em legítima defesa da honra e
teve de fugir para não cair no júri arranjado do coronel Joaquim
Rezende. O seu caso não é o primeiro nem será o último do sertão.
Seu último crime: retirar da situação de penúria em que se
achavam as vítimas da seca e do latifúndio, traze-las em marcha
heróica até a cidade de Arapiraca, onde tentou por todos os meios
assistência do governo e no fim, para dar de comer às mil e duzentas
almas pelas quais se sentia responsável, comandou o ataque
ao mercado central de Arapiraca, durante o qual, infelizmente, morreu
um comerciante.
É esse o homem que o governo de Alagoas mantém preso em
Arapiraca.
Qual o seu crime? Tentar ajudar os pobres.
Povo do Nordeste:
Chega de esperar pela Justiça! Vamos todos à praça da cadeia
de Arapiraca no dia 1º de fevereiro exigir

Liberdade para Marcionílio!

Liga dos Trabalhadores Rurais do Sul de Alagoas.”


(Manifesto distribuído nas principais cidades do Sul de Alagoas
em janeiro de 1960.)
“O delegado Humberto Levita, do DOPS, calcula que deverá
concluir dentro de três meses o inquérito sobre os distúrbios do último
dia 31, na praça Ruy Barbosa. Qualquer previsão para antes disso
será otimista demais. Adiantou que já foram tomados sessenta e três
depoimentos, incluindo retirantes, parentes dos mortos, detidos,
testemunhas, policiais de serviço no local dos acontecimentos e dois
secretários de Estado.
O principal problema agora enfrentado pelo governo é a
situação de mais de quatrocentos retirantes, origem do conflito. Cerca
de 160 dos detidos na madrugada de 31 de março são flagelados;
numerosos deles, arrimo de família. Seus dependentes se recusam a
viajar de volta para o Nordeste sem o parente, e este não pode viajar
de volta porque o processo ainda está em andamento. Em
conseqüência, mais quatrocentas vítimas da seca, além das que se
dispersaram na noite da revolta, vagam pela cidade pedindo comida
de casa em casa. Calcula-se em mais de oitocentos o número de
novos mendingos na cidade.
— O que as autoridades procuraram evitar na noite de 31
tornou-se um problema até pior, em conseqüência da ação dessas
mesmas autoridades. São ironias do destino — comentou o delegado
Levita.”
(Jornal “O Estado de Minas Gerais”, em 12 de abril de 1970.)

“Dia 7 — 1.500 camponeses armados sitiam e ocupam o


Engenho “Coqueiro”, do sr. Constâncio Maranhão, Vitória de Santo
Antão. Retiram gêneros alimentícios, matam bois, estão munidos de
armas longas. (...) Os ocupantes são divididos em grupos,
entrincheiram-se, rastejam e utilizam evidentes táticas de guerrilhas.”
(Do relatório do Sindicato da Indústria do Açúcar do Estado de
Pernambuco sobre as Ligas Camponesas, entregue ao presidente
João Goulart em 22 de outubro de 1963.)

“que não recebeu dinheiro de quem quer que seja para esse fim;
que sempre procurou ajudar os retirantes na época da seca porque é
uma desgraça enorme; que é verdade que tomam comida quando
não têm dinheiro para comprar; que é a primeira vez que ele,
depoente, vem para o Sul; que é verdade que pertenceu às Ligas
Camponesas de Pernambuco; que teve de mudar-se de Alagoas
porque foi retirado sem júri da cadeia de Arapiraca, Alagoas, em
1960; que foi libertado pelas Ligas Camponesas de Alagoas mas teve
de fugir para Pernambuco; que em 1963 seu processo foi arquivado
porque nenhuma culpa foi apurada contra ele na morte de um
comerciante de Arapiraca, durante a invasão do mercado local por
retirantes; que nesse mesmo ano de 1960 voltou a Alagoas para
buscar sua mulher e filha, na cidade de Pombal; que lá encontrou sua
mulher amasiada com outro homem, porque o julgava morto; que
voltou então para Pernambuco sem a mulher e a filha; que não sabe
mais onde se encontram; que em Pernambuco trabalhava na lavoura
de cana; que não conhecia pessoalmente o deputado Francisco
Julião, das Ligas; que Julião era comunista e político; que de 1960 a
1964 encontrou trabalho mesmo durante as estiagens, por influência
das ligas; que participou de ocupação de engenhos em Pernambuco;
que não sabe dizer se Francisco Julião explorava a ignorância do
povo; que nunca mais ouviu falar do ex-deputado Francisco Julião;
que ele, depoente, foi preso juntamente com outros lavradores,
interrogado e solto na Revolução de”
(Do depoimento do subversivo Marcionílio de Mattos,
enquadrado, por incitação à revolta, na Lei de Segurança Nacional e,
pela morte de um policial, acusado de homicídio doloso, no processo
do DOPS de Belo Horizonte sobre a revolta popular da madrugada
de31 de março na Praça da Estação.)

“Ontem, no aeroporto de Congonhas, estavam vários deles (ex-


cangaceiros), esperando os outros. Estava Marinheiro, um ano de
cangaço, hoje funcionário da Caixa Estadual; estava Pitombeira, 3
anos de bando, entrou para não ser morto pela Polícia, hoje
funcionário da Prefeitura. Estava também Criança, 7 anos de lutas, a
glória de enfrentar sozinho, por duas horas, a Volante, para deixar o
bando escapar. Criança, hoje, vende tomate como ambulante.”
(Jornal “O Estado de S. Paulo”, em 18 de outubro de 1969.
Reportagem sobre o encontro de ex-cangaceiros em São Paulo, para
lançamento do livro “As Táticas de Guerra dos Cangaceiros”.)

“...segundo o delegado Humberto Levita, apontam como


principais responsáveis pelo conflito o ex-cangaceiro Marcionílio de
Mattos e o jornalista Samuel Aparecido Fereszin. Sabe-se já que
Marcionílio, preso incomunicável no DOPS, é subversivo e participou
das Ligas Camponesas do ex-deputado Francisco Julião. O jornalista,
como se sabe, trabalhava nesta folha e”
(Jornal “Correio de Minas Gerais”, em 13 de abril de 1970.)

Gravatá, Cotuzumba, Avenca, Pajeú, Itapeti, São José do Egito,


Saque, Quixadá, Brejo da Cruz, São Bento, Pedra Nova, Corunas,
Jacaré dos Homens, Cacimbinhas, Boqueirão, Crateús, Currais
Novos, Novas Russas, Limoeiro do Norte, Jaguaruana, Crato,
Mombaça, Senador Pompeu, Canindé, Granja, Sobral, São Luís do
Curu, Tauá, Quixeramobim, Orós, Ipaumirim, Juazeiro do Norte,
Asaré, Cedo, Jucás, Mauriti, Brejo Santo, Aracati, Maranguape,
Copiara, Acarapé, Icó, Baturité, Cariré...
(São nomes de lugares secos, pedindo ajuda ao governo em
1970.)

“Aqui vim para ver, com os olhos da minha sensibilidade, a seca


deste ano, e vi todo o drama do Nordeste. Vim ver a seca de 70 e vi o
sofrimento e miséria de sempre.”
(Emílio Garrastazu Médici, presidente da República, em 6 de
junho de 1970.)

“Líder camponês morto em tentativa de fuga”


(Título de notícia da oitava página do jornal “O Estado Minas
Gerais”, em 7 de junho de 1970.)

“Vi a paisagem árida, as plantações perdidas, os lugarejos


mortos. Vi a poeira, o sol, o calor, a inclemência dos homens e do
tempo, a desolação.”
(Emílio Garrastazu Médici, presidente da República, em 6 de
junho de 1970.)

“Segundo informações dos órgãos de segurança, o líder


camponês e ex-cangaceiro Marcionílio de Mattos foi morto ontem em
tiroteio com agentes de segurança, após empreender espetacular
fuga do”
(Notícia publicada em duas colunas, no pé da oitava página do
jornal “O Estado de Minas Gerais”, em 7 de junho de 1970.)

“O quadro que nós vimos não é o quadro que devemos ver,


quaisquer que sejam as desventuras, as calamidades e inclemências
da natureza. Forçoso é que nenhum de nós se conforme com essa
triste realidade.”
(Emílio Garrastazu Médici, presidente da República, em 6 de
junho de 1970.)

“após empreender espetacular fuga do xadrez do DOPS.


Marcionílio, o frustrado líder camponês que há três meses
tentou trazer a subversão do campo para a cidade, chefiando um
verdadeiro regimento de famintos, em conexão com extremistas da
capital, arrebatou a arma de um policial, imobilizou a guarda, ganhou
o saguão do DOPS e correu pela avenida Afonso Pena abaixo,
atirando em seus perseguidores. Um tiro de um dos agentes que
corriam em sua perseguição atingiu Marcionílio na cabeça, que caiu
já sem vida.”
(Notícia publicada em uma coluna, na décima segunda página
do jornal “Correio de Minas Gerais”, em de junho de 1970.)
BODAS DE PÉROLA

MARIDO

— Tenho tanta coisa para fazer amanhã.


De uns tempos para cá ela começou a fazer planos para
amanhã. Mas amanhã ela vai morrer.
— Amanhã, sem falta.
e foi tão maravilhosa aquela primeira vez, com juventude e o
sentimento de pecado — havia deus naquela época — que ficamos
horas abraçados, mortos, como mortos mesmo, assustados diante de
tanto prazer eu pensei que ia morrer e você
eu também
eu podia morrer agora
eu também
eu quero morrer quando não for mais assim
eu também
eu quero morrer junto com você
eu também
jura
juro
antes de ficarmos feios e velhos
é
também se um de nós ficar doente sem cura
também
vamos morrer juntos
hum-hum
abraçados
vamos
estou falando de verdade
eu também
jura por deus
juro juro por deus
quem vai escolher o dia
nós o pressentiremos
E durante os primeiros anos vivemos a mágica daquele pacto,
era nossa defesa e superioridade, a coisa maior que conseguimos
naqueles anos, nascendo de nós e ficando maior do que nós, como
um deus mesmo, de onde nos vinha uma força que escandalizava as
pessoas
— Amanhã
A puta velha pensa que me engana. Hoje ela já falou amanhã
seis vezes. E amanhã estará menos parecida com a fotografia, a bela
moça da fotografia. Ela aprendeu com as outras putas velhas a
suportar um olhar sem interesse, a ficar esquecida numa festa com
uma aparência de dignidade, a deitar-se com um homem sem ficar
nua, a tirar manchas da pele, a não se abalar quando um homem que
a desejava há alguns anos desvia agora os olhos, a gozar uma vez
por mês, a ir ao dentista escondida, a não rir da barriga do marido às
oito horas da manhã, a acreditar que mesmo assim vale a pena.
— Amanhã, não se esqueça, viu?
Eu a amava devagar e timidamente, num excesso de ternura
que também vinha dela. Beijava seus dedos (um cheiro doce de
esmalte fresco), beijava a palma da mão um pouco fechada em
concha, quentinha. Ai, como esquecer, como esquecer, se ao menos
eu pudesse esquecer como foi. Ela passava a outra mão atrás do
meu pescoço, um pouco tímidos em nossas carícias, como que nos
recusando. Eu sorria, ela sorria menos, a mão quentinha passeando
na nuca; por que é que você riu, nada, fala benzinho, é bobagem,
mas fala, estou pensando na primeira vez que te beijei, o que tem de
engraçado nisso, nada, fala pra mim, é que estou lembrando que
você não gostou, você achou, (um pouco ofendida) achei mas agora
não acho mais, (beijei-a na pontinha do nariz) ainda bem, boba não
precisa ficar com raiva; e segurei-a pelos ombros, firme, forte e
protetor; ela se entregava um pouco mais, era sempre assim, havia
sempre aquela espécie de timidez impedindo-nos, uma relutância
dela, ou muito escrúpulo meu, e ficávamos assim ternos e sem
intimidade, sofrimento da iminência de um pecado, e minha mão
direita — não a mão propriamente, os dedos — e meus dedos
acariciavam também o pescoço dela e ficávamos nos olhando,
sentindo uma quentura terna transformar aquele olhar numa coisa
insuportável; tínhamos medo daquele olhar e encostávamos face na
face, a mão dela descia um pouco e detinha-se nas minhas costas,
quase um abraço, sentíamos, e nos entregávamos um pouquinho
mais, rosto colado no rosto, enquanto minha mão acariciava a outra
face dela como quem diz eu te amo, o que ela compreendia e
respondia com palmadinhas leves nas minhas costas, eu agradecia
com um leve roçar de lábios na pontinha da orelha; era um diálogo,
dois corpos que podiam conversar: eu te amo dizia o meu corpo, sim
eu sei respondia o dela, e hesitava um pouco mas completava eu
também, depois sorríamos mais entregues (ela sempre desconfiava
um pouco), os corpos muito próximos, quase se _ tocando, bastava
um movimento qualquer, por exemplo, mudança de apoio do corpo do
pé direito para o esquerdo e pronto, os quadris estavam colados
suavemente, minha mão direita abandonava a nuca e espalmava-se
nas costas à altura da cintura, era um apoio, ah, era uma segurança,
e ela abandonava-se um pouco para trás, confiando, obrigando-me a
sustentá-la com a mão apoiada às costas, e a mão transmitia seu
calor através da fazenda fina da blusa; eu era terno e quente e jovem
e ela entregava-se um pouco mais, aproximava o corpo, apoiava a
cabecinha no meu ombro esquerdo, minha face esquerda comprimia
sua testa onde uma artéria transmitia em morse eu te amo, eu
também te amo menina, eu também te amo menininha, os corpos
conversando, eu girava um pouco a cabeça e dava um beijo na
fronte, descia os lábios numa carícia leve, os corpos tocando-se com
confiança, ela via o rosado moreno da minha boca e aguardava com
seus lábios sérios, eu os tocava de leve, tão leve!, juntos
entreabríamos sem pressa os lábios, ela prendia meu lábio inferior
entre os seus, eu prendia seu lábio superior entre os meus, e nos
provávamos com ternura, os corpos bem juntos num abraço leve, e
ela sentia minha ereção desde o princípio, sem medo, e me amava
por desejá-la, os corpos conversando amor e juventude, ela
apertando o abraço, eu introduzindo a língua em sua boca — seus
olhos assustados com a intromissão — ela aceitando minha língua,
provando, mordendo devagarinho, depois sugando com prazer,
mordendo; eu retirava a língua num gemido e mordiscava a parte
interna dos lábios dela, ela respirava mais rápido, ofegante, confiava
naquele abraço forte que a prendia e entregava o ventre ao contato
do meu desejo, era uma aflição, nossa virgindade era um desespero,
mas tínhamos medo; minha língua passeava em sua face até
alcançar a orelha e ela se arrepiava e contorcia, friccionando o sexo
apertado contra seu ventre; eu me inclinava um pouco sobre ela, ela
se inclinava um pouco para trás e abria as pernas, loucos, os dois
sexos fremiam, um de encontro ao outro, desejavam-se sob as
roupas e ainda tínhamos medo, era doloroso e excitante, e ela quase
gemia em suspiros, loucos aquele dia, dei a ela minha língua para
não ouvir, ela sugava-a com violência, era sempre assim antes de
termos coragem, era doloroso e excitante, apertávamos os sexos um
contra o outro e nos torcíamos nervosos, beijávamos de boca
inteiramente aberta, com fome, era doloroso e excitante, meu Deus
isso não pode continuar, era um desespero, as mãos passeavam
brutas pelos corpos, eu apertava o seio dela, seus olhos me
encorajavam, eu te amo, e era bom, eu era violento e bom, meu
Deus, alguma coisa vinha lá do fundo, uma dor, uma quentura,
sentíamos, e mais urgentes nos agitávamos e apertávamos quase
com raiva odiando odiando não não um calor palpitava nas minhas
virilhas ela era invadida por um desespero sem ar líquido água ai
esvaía-se ai inundava-se meu benzinho meu benzinho arrancava e
deixava escapar um ai lá no fundo do peito, um ai quente, soprado,
cheio de amor e obrigado.
— Amanhã temos uma peça ótima para ver.
Primeiro ato: A Fêmea Que Suspira. Ela tira a maquilagem da
noite, vestida num penhoar amarelo, de rendinhas, enquanto eu tomo
meu leite de magnésia e me deito; ela termina sem pudor a sua
limpeza de pele e passa um creme para dormir, enquanto eu apago a
luz de cabeceira; ela se deita ao meu lado, tenta conversar sobre o
dia, e eu murmuro fingindo quase sono; ela se cala e começa a
sessão de suspiros, que não levam a nenhum resultado prático; ela
pretende uma qualquer necessidade de iluminação e acende a luz de
cabeceira, que me incomoda a vista; ela tira as penas de sob a
coberta e finge procurar qualquer coisa, alisando-as, ainda sem
nenhum resultado prático; ela suspira, apaga a luz a pedido meu e
fica oferecendo-se no escuro, suspirando (sem resultados práticos);
durante muito tempo recorre aos tais suspiros sem resultados práticos
até que eu, meio adormecido, cuido ouvir um soluço abafado, que
fecha o primeiro ato.
Segundo ato: A Mulher Satisfeita da Vida. Acordando, já a
encontro frente ao espelho, retirando o creme para dormir de uma
cara desesperada; quando percebe que acordei, ela sorri e recorre a
gestos musicais; vou ao banheiro e, na volta, encontro-a passando o
creme para pele seca; espero-a para o café (meia hora), lendo os
jornais; vejo-a chegar respirando fundo o ar da manhã e abrir os
braços ao sol — bom dia, sol — como uma atriz de opereta; ouço
durante o café os aborrecidos casos sobre suas amigas, e ela entra
em detalhes quanto a Fulana, que arranjou um amante; saio para dar
minha aula na Faculdade e encerro o segundo ato.
Terceiro ato: A Madame Vai às Compras. (Este ela representa
sem mim, com eventuais encontros.) Começa aplicando no rosto a
maquilagem própria para a luz do dia; sai, com vestido apropriado;
olha vitrinas e apenas pergunta preços, uma vez que precisamente
nada lhe falta; troca beijinhos eventuais com amigas mais eventuais
ainda; olha insinuante para homens que não se insinuam, helás!;
entra numa perfumaria e compra potes de cremes ou latas de pós;
encontra uma velha amiga e procura parecer jovem, despedindo-se
com um aparece lá em casa; olha fazendas numa loja de
tecidos, onde um rapazinho sempre a atende de maneira excitante e
amável, mas não compra nada; volta para casa sentindo fome e
cansaço e insucesso, com um embrulhinho ridículo na mão.
Quarto ato: O Vazio em Petit Comitê. Começa com o jantar, em
que ela conta monótona sua excitante aventura da tarde; depois, tira
com um creme a maquilagem do dia e aplica maquilagem mais
pesada, para noite; veste-se de maneira apropriada se o programa
não é televisivo e sim social; recebemos ou visitamos; de um modo
ou de outro, sempre estamos com pessoas que nada têm a
acrescentar; ela senta-se empinadinha, olhando muito quem está
falando, com um leve sorriso de quem está compreendendo muito,
até piscando de tanta atenção; quando pedem sua opinião ela se
embaraça: não estava prestando atenção; dá um jeito de conversar
com a velha amiga e pede detalhes sobre o amante; chama-a de
doida, diz que jamais teria coragem de fazer uma coisa dessas
comigo; bebe moderadamente, caceteia moderadamente; nos
despedimos ou se despedem; no quarto, ela se veste o penhoar azul,
de rendinhas; tomo meu Sonrisal, enquanto ela tira com um creme a
maquilagem da noite, preparando-se outra vez para representar A
Fêmea Que Suspira.
— Vamos à festa amanhã?
Morre-se muito tarde. Sem nenhuma dignidade, o homem fica
esperando, adiando, envelhecendo. Não, ninguém vai decidir a hora
da minha morte, eu mesmo posso escolher, ainda tenho essa velha
consciência esperta. É verdade que não tenho estado atento: na
revolução procurei me esconder, tomo cuidado ao atravessar as ruas,
evito comer um camarão suspeito. Não posso mais cair nessas
distrações do instinto.
A puta velha pensa, acredita!, que seu prazer ainda é o mesmo
da juventude, com esses seios! Ela acredita que estou cada dia mais
acostumado — à velhice! Já não fica acordada de noite para evitar
uma armadilha. Já não se levanta sorrateiramente para verificar o
gás. Já não tem receio de comer o que lhe ofereço. Ela se acredita
em segurança, livre do pacto. É o melhor momento.

MULHER

— Amanhã, disse ela. — Você vai mesmo?, disse o rapaz. —


vou, disse ela, pode ter certeza que vou. — E o professor, disse o
rapaz, é preciso tomar cuidado. — Ele não liga, disse ela, depois te
conto como ele é. E pensou: eu tenho sempre de contar isso para os
homens. — Onde?, num hotel?, disse o rapaz. — Onde você quiser.
Eu vou aonde você quiser, disse ela. — De tarde?, disse o rapaz. —
É, disse ela, eu só posso de tarde. Como é seu nome mesmo?—
Carlos, disse o rapaz. — Então me dá seu telefone, disse ela.
Juliana chegou das compras, verificou se estava tudo bem na
cozinha, recomendou mais uma vez à empregada que pusesse pouco
sal na comida e sentou-se na poltrona da sala, esperando o marido.
Adormeceu, muito levemente. Acordou de repente, com o marido
olhando-a da outra poltrona. Teve a impressão de que ele estava
olhando há muito tempo e ruborizou-se toda, num súbito calor.
Calma, calma, calma. Juntou os pedaços de sua alma desmantelada,
reanimou-a, aprumou-se sorrindo e falou: — Que coisa, me deu um
sono. Quantas horas?
Ele não respondeu. Juliana limpou com um gesto de mão
alguma poeira que não havia no vestido, passou a mão pelo rosto e
começou a tentar outra coisa:
— Andei tanto, acho que foi por isso que me deu sono. Quem
sabe eu tomo um banho?
Não estava perguntando, e estava. Acostumada, já, com aquele
jeito de conversar não conversando. E continuando:
— Talvez seja tarde para tomar banho agora, o jantar já deve
estar pronto, quase. Se eu for agora vou atrasar tudo. Ele não ia
dizer: pode ir, eu espero; mas ela deixava o intervalo de uma
resposta, como se estivesse ensaiando sozinha uma cena de teatro.
E ainda:
— O melhor é ir ver como está o jantar. Quem sabe está
atrasado também?
Não se levantou logo. Ficou pensando se olhava bem para ele e
dizia diretamente: “Amanhã fazemos trinta anos de casados. Será
que podemos convidar uns amigos?” Pensou nisso muito pouquinho
tempo, absurda. Depois levantou-se para ir à cozinha e, como se
tivesse saltado várias falas na cena do ensaio, a de agora sem
ligação com a última, disse pensando em Carlos: — Tenho tanta
coisa para fazer amanhã.
— Vem, disse o rapaz. — Ainda não, disse ela, agora eu vou
explicar como é o Candinho. — O professor?, disse o rapaz. — É, o
meu marido, disse ela.
Hoje estamos fazendo trinta anos de casados. Ele quase não
fala mais comigo, tem uns três anos que não fazemos mais nada na
cama. Ninguém fica tanto tempo assim, sem, como se diz, sem fazer
nada. Quando isso começou, quando ele parou de me procurar —
não — quando ele passou a procurar menos, eu não prestei muita
atenção, não sei direito quando foi. Deve ter uns cinco anos. E um dia
eu falei com ele. Perguntei por que ele não estava querendo, que às
vezes passava mais de um mês, que eu é que tinha de procurar, o
que estava acontecendo. Aí ele me falou uma coisa estranha, eu
achei muito estranha. Falou assim: “Você não acha que chegou o
dia?” Era uma coisa de que eu deveria estar sabendo, pelo jeito como
ele falou, mas eu não sabia de nada, não me lembrava, e não disse
nada porque poderia ser alguma coisa que eu tinha esquecido e não
deveria esquecer. Sem saber que era, eu disse: ainda não — só para
adiar e tentar lembrar depois do que ele estava falando. Ele ficou
satisfeito, pensando que eu não tinha esquecido. Passamos bem
algum tempo, até o dia em que ele tentou botar fogo na casa. Eu
lembrei na mesma hora o que ele quis dizer com aquilo e gritei para
ele: “Ainda não, Candinho, espera um pouco mais, eu juro que te
aviso, Candinho, eu não esqueci.” Era uma coisa que nós tínhamos
combinado há muito tempo, eu era mocinha. Deveria ter — quantos?
— uns dezesseis anos. Juramento de meninos: nós tínhamos
combinado de morrer antes de ficarmos velhos. Naquele dia do fogo
eu compreendi que Candinho não estava bom da cabeça, posso dizer
mesmo que ele estava meio doido. Os médicos o levaram e trataram
no hospital. Depois daquele dia, nunca mais me procurou na cama.
Quer dizer, fora das crises ele é normal, não é nenhum louco, mas
mesmo assim não fazemos nada na cama. A gente nunca sabe
direito quando uma crise começa ou acaba. Eu só durmo depois que
ele dorme. Uma outra vez, mais recente, ele deixou abertas as
torneiras do gás e eu fiquei sentindo aquele cheiro até ele dormir.
Fiquei respirando através do lençol, escondida no escuro, e quando
ele dormiu, acho que meio tonto com o gás, eu levantei e fui lá fechar
o gás. Abri as janelas todas, ele nem viu. Agora Candinho quase não
conversa comigo. Fico falando sozinha na hora do jantar só para
distrair a cabeça dele, o médico disse que é bom. Eu nunca sei se ele
está entrando ou saindo de uma crise. O dia inteiro tomo cuidado, as
facas são trancadas a chave, todo dia olho se tem revólver escondido
nas gavetas, olho o gás. O médico diz que ele nunca vai fazer uma
violência física direta, só essas armadilhas, escondido, mas sei lá. O
médico diz que é com essas armadilhas que eu preciso tomar
cuidado. É também um pouco de loucura minha morar naquela casa,
posso morrer numa hora dessas, mas fico sempre esperando que ele
volte a ser o que era. Dr. Santoro disse que esse problema de
Candinho pode acabar completamente. Alguns homens ficam assim,
com a idade, depois passa. Durante vinte e cinco anos ele foi o
homem mais amigo, mais simpático, o melhor amante que já conheci.
O rapaz abriu seu vestido nas costas, desabotoou o sutiã, enfiou
a mão pelo decote. — Você acha que estou velha?, disse ela. — Que
é isso, disse o rapaz, você está enxuta. A outra mão erguia seu
vestido de leve e ela sentia na perna direita apalpitação do sexo dele.
— Eu não quero morrer, disse ela baixinho.
Tão de leve, na mão, no rosto, nos cabelos, um carinho gostoso
no pescoço, um olhando nos olhos do outro, eu ficava quente quente
com aquele olhar, e ele me abraçava e dizia eu te amo, beijando a
pontinha da orelha, eu encostava um pouquinho, ele encostava um
pouquinho, meu corpo colado no dele, ele vinha beijando meu rosto
de leve até chegar na boca, tão de leve, e depois não era mais de
leve, e eu sentia a coisa dele na minha barriga, me dobrava para trás
para sentir mais, em cima da minha coisinha, um abraço tão apertado
que meus seios doíam, aquilo nas minhas pernas, na minha barriga,
aaaaaaaaaaaa!.
— Eu sou uma mulher de quarenta e sete anos, disse ela, não
fica bem. — Que bobagem, hoje em dia todo mundo faz, disse o
rapaz. — Eu nunca fiz, disse ela. — Não vai doer nada, disse o rapaz.
Uma dor suportável, continuada, renovada; um prazer
pressentido. Depois uma coisa substituindo a outra (dor ou prazer?);
uma acabando, outra aumentando (prazer ou dor?). E depois era uma
coisa só (prazer? dor?), aumentando, aumentando.
— Aaaaaaaaaah! Candinho! Aaaaaaaah!
— Eu pensei que ia morrer. E você?
— Eu também.
— Eu podia morrer agora.
— Eu também.
— Eu quero morrer junto com você.
— Eu também.
— Jura?
— Juro.
— Antes de ficarmos feios e velhos.
— É.
— Também se um de nós ficar doente sem cura.
— Também.
— Vamos morrer juntos?
— Vamos.
— Abraçados.
— Hum-hum.
— Estou falando de verdade.
— Eu também.
— Jura por Deus.
— Juro.
— Quem vai escolher o dia?
— Nós saberemos, quando ele chegar.
Uma coisa tão bonita para se dizer naquela hora da nossa
primeira vez, como se fosse um livro. Ele tão sério, eu tão sincera
como se fosse um livro de amor.
Eu não quero morrer.
— Nós nos casamos muito cedo, disse ela. Eu tinha dezessete
anos, ele vinte e um. — Quer dizer que ele agora tem cinqüenta e
um?, disse o rapaz. — É, disse ela. — Parece muito mais velho, disse
o rapaz. Poxa, ele tem cara de sessenta. — Não é?, disse ela. Foi a
doença dele, depressão. — E você parece muito mais nova, disse o
rapaz. — É, todo mundo diz, disse ela. — Parece filha dele, disse o
rapaz. — Ah, isso também não, disse ela. — Verdade, disse o rapaz.
Eu, se fosse você, dava o fora nele e casava de novo, disse o rapaz.
— Cala a boca!, disse ela. Nunca mais fale dele assim, estou
avisando, nunca mais!— Que é isso? Uma bronca dessas por causa
de um maluco que quer matar você?, disse o rapaz. — Ele é o meu
primeiro amor, disse ela. E você, vocês todos, são lixo, lixo, lixo!
Juliana chegou das compras e foi tomar banho. Lavou tudo que
havia de Carlos no seu corpo e tornou-se outra vez uma mulher
limpa, casada. Quando voltou para o quarto deu um pequeno grito de
susto: lá, em cima da cama, um embrulho de presente. Seu primeiro
pensamento foi sair correndo, com o pressentimento de um perigo.
Calma, calma, calma. Em cima, meio enfiado na dobra do embrulho,
havia um pequeno envelope sobrescrito. Pensou em presente da
mãe, das cunhadas, de alguma amiga, pelas Bodas de Pérola. Pegou
o envelope com a mão trêmula, pensando e enganando-se: eu
conheço essa letra; enganando-se antes de ler e ter certeza: é de
Candinho! Novamente aquela sensação de perigo. Ficou com medo
de abrir o embrulho, uma bomba, a morte estava lá dentro. Pegou a
caixa com cuidado, balançou-a de leve. Nada suspeito, nenhum
ruído, nem o peso. Candinho entrou no quarto com uma outra cara, a
cara de alguns anos atrás, e disse rindo: — Abre. É para você.
Num rápido gesto suicida Juliana abriu o embrulho, a caixa. Um
lindo, precioso, maravilhoso colar de pérolas. Surpresa, confusa, ela
chorou para ganhar tempo, alisando o colar.
— E para mim, não tem presente?
Ela ficou calada, sentindo a alegria de tê-lo de volta e o medo de
voltar a perdê-lo. Insegura ainda naquela confiança que queria ter.
Falou meio chorando:
— Eu esqueci. Dou depois. Me desculpa, viu?
— Veste uma roupa bonita. Hoje temos um jantar especial.
Juliana entrou na sala e encontrou Candinho de pé esperando-a.
Observou tranqüilizada como o seu vestido combinava com a
sobriedade da roupa dele, paletó e gravata. Candinho a olhava
querendo perguntar alguma coisa, ou procurando, e ela tentou ver
depressa o que estava errado. Havia um bolo sobre o aparador e a
mesa estava posta para duas pessoas.
— Não gostou do colar?
Ela compreendeu o olhar, aliviada; e logo depois culpada,
mortificada:
— Oh, não, Candinho, adorei. É que eu esqueci, eu... estou
tão... eu vou buscar.
— Não, deixa.
— Mas eu adorei, achei lindo. De verdade.
Foi buscar o colar e voltou para entregar-se à confiança que
estava querendo ter. Sentaram-se; Juliana tocou a sineta chamando
a empregada para servir o jantar. A princípio teve dificuldade de falar,
ela que geralmente era a única a falar à mesa, apanhada numa
situação nova. Juliana percebeu nele uma tentativa de ajudá-la: —
com um pequeno esforço poderemos ter um dia perfeito. Ela foi
confiando e começando a falar, a princípio sobre coisas do jantar
mesmo, como: “Quer me servir o arroz, por favor?” e “bom, esse
vinho”; depois falando de coisas mais pessoais, como um filme que
tinha visto numa tarde dessas; e aos poucos tomava-a a alegria de
estar falando com ele novamente, de ouvir respostas claras, frases
completando frases dela, uma alegria que tinha esperado tanto
tempo, e o calor e o vinho e o jantar ajudavam aquela noite, eram
novamente Juliana e Candinho Contra o Resto; e ela falava de uma
viagem que gostaria de fazer, dos lugares que gostaria de conhecer,
“Japão é o que mais me atrai”, dizia ela, e de repente a mão dele
tocou sua mão!, a alegria crescendo, a vontade de telefonar para a
mãe dizendo: “Mamãe, como é que a senhora nem telefona no dia do
meu aniversário de casamento?”, mas não era preciso, estava um dia
perfeito, e quem sabe hoje ele a abraçaria
como antigamente, tudo esquecido; alisava o colar no peito,
conversava, bebia e de repente lá estava ele olhando o bolo e ela
teve certeza de que o veneno estava no bolo.
— O que foi, Juliana?
— Não sei. Eu... não sei.
— Você ficou séria.
Ela duvidou do que tinha descoberto:
— Não foi nada, já passou.
Ele segurou sua mão e disse que talvez pudessem ir ao Japão.
Tinham gasto tão pouco nos últimos anos que o dinheiro talvez desse
para a viagem. Ela já estava duvidando do que tinha visto, preferindo
acreditar naquele seu Candinho de antigamente, que saía da loucura
e falava na viagem.
— Vamos partir o bolo — disse ela resolvida. Queria acabar com
a dúvida, não queria que a dúvida estragasse o único dia perfeito
naqueles cinco anos. Ele disse calmo, sem pressa, sem nenhuma
insegurança na voz:
— Já? Não quer mais um pouco de vinho?
— Não, para mim chega.
— Está bem — disse ele, servindo-se do que restava da
segunda garrafa e bebendo de uma vez. — Esse vinho é meio forte,
não é?
— É — disse ela sorrindo, convencida de que se enganara. —
Ainda tem?
— Agora é tarde — disse ele tonto meio alegre. — Só se
abrirmos outra garrafa. Quer?
— Não — disse ela confiando. — Vamos partir o bolo.
— Assim não, assim não — disse ele interropendo a mão dela e
a faca. Juliana olhou não entendendo e ele: — Vamos partir da
maneira tradicional, nós dois segurando a faca, como se fosse uma
pose para fotografia.
Partiram o bolo, rindo; serviram-se. Ela comeu um pedaço. Já ia
dizendo: hum, está bom — e ao levantar os olhos viu Candinho
hesitando um brevíssimo instante antes de morder o primeiro pedaço.
Depois, vendo-se observado, ele fez uma cara satisfeita: — Está
bom, não?
Juliana fez que sim com a cabeça, comeu tudo e ficou esperando a
dor do veneno começar.
ANDRÉA
Biografia encontrada pelo autor entre
os papéis de uma personagem do livro,
que não sabe ainda se identificará
mais adiante.

1.
Ela era muito bonita. Talvez a única verdade de Andréa, base de
todas as posteriores mentiras, tenha sido essa: a beleza. As mulheres
bonitas demais são colocadas sempre na frente — de uma família, de
uma coroação de Nossa Senhora, de uma sala de aula, de um
colégio, de uma festa, de uma sociedade — e acabam assumindo a
responsabilidade de manter-se no centro o resto da vida, e essa
ilusão cansa e faz sofrer. Na adolescência, Andréa já estava perdida
no seu engano.
Queria amar — não pouco, muito, como as heroínas. Antes dos
quinze anos já amava violentamente, porque o beijo foi uma
descoberta pertubadora. O medo de estar pecando — católica, de
família classe média, nascida e criada na Tijuca — impediu que ela
conhecesse na época outras carícias. Ficou-lhe para sempre uma
sensação de leveza e perigo na hora de um beijo.
Um dia o pai descobriu e leu o diário de Andréa, falando em
beijo, demais. Enfurecido, mandou a filha para a casa de uma tia, em
Vassouras, onde ela terminou o curso Normal e adquiriu uma
inquietante ignorância, que conservou para sempre.
As pernas de Andréa aos dezessete anos provocavam brigas
nos bares de Vassouras. Um sujeito moreno arrebentou a cabeça de
um outro com um taco de sinuca por causa das pernas de Andréa.
Escondido da polícia, escreveu-lhe um bilhete — num português
horrível que ela teve a delicadeza de desculpar — dizendo que
brigara por sua causa. Ela amou durante muito tempo, sem nunca ter
visto, aquele homem sanguinário, capaz de matar. Em sonhos, era
vítima de violências dele. Guardou a carta.
Voltou para a Tijuca no fim do curso. Falou-se da sua beleza
naquele verão de 1951. Ficava alegremente emocionada sempre que
alguém se apaixonava por ela. Achava natural gostarem de uma
pessoa tão linda e era compreensiva com os rapazes. Os homens
rondavam, os meninos masturbavam-se. Naquele verão de dezoito
anos, Andréa apaixonou-se por um rapaz que estava iniciando uma
indústria de utensílios de plástico. Falavam em casar, quando o pai
dela teve de “aceitar” transferência para outro estado. Andréa quis —
romântica — fugir, mas o jovem industrial disse que não estava em
condições. Dele guardou uma fotografia 3x4.

2.
Começa aqui a fase de Andréa em Minas. As primas de Belo
Horizonte apresentaram a moça à boa gente mineira; gente delicada,
sentimental, vagarosa, prestativa, envolvente, mítica, organizada,
mesquinha, maldosa. Andréa entrou num círculo de gente rica demais
para ela, um grupo acostumado demais — e entrou desprevenida. As
pessoas se conheciam o bastante para não confiarem, seus contatos
eram cautelosos, jeitosos. Ela trazia o quê?: dois namorados quase
esquecidos, egocentrismo, beleza, uma fotografia 3x4, alguns beijos,
uma carta mal escrita, uma família em dificuldades. Era pouca coisa
para opor a um grupo acostumado, e deixar-se fascinar foi seu
primeiro erro.
Não entendeu nunca — em Minas, entender logo já é muito
tarde, o mais seguro é antecipar — que inverteu as posições pelo seu
defeito básico de percepção: acreditou que era o centro das
atenções, que a sociedade estava fascinada por ela, quando a
verdade é que estava sendo explorada, estavam tirando dela o que
não tinham mais: beleza e uma relativa inocência. Não o faziam como
manobra, nada era deliberado.
Uma das primeiras coisas que aprendeu na nova sociedade: a
necessidade de colorir, de parecer. Aquele primeiro namorado e a
transferência para Vassouras foram transformados por ela numa
espécie de pecado original e expulsão do paraíso. O homem que
andou fugido da polícia foi transformado num bandido com uma
paixão irrefreável. O namorado industrial ela disse que se arruinou
por causa dela. A vida social, uma loucura. Os provincianos ouviam,
comentavam cúmplices aquela vida de aventuras e a engoliam um
pouco mais.
Seu retrato começou a sair nos jornais, as colunas sociais
ocupavam-se dela (recortava e guardava as notas), era convidada
pelos clubes, dançava muito, inquietava o domingo nas piscinas. Saía
com rapazes, mas estava perdida demais em seu próprio fascínio
para ter tempo ou paciência de apaixonar-se: bastava-se, amorosa.
Um dos rapazes obteve uma espécie de vitória quando conseguiu
enfiar a mão sob suas saias e mantê-la ali alguns minutos. Depois
contou para quem quis ouvir e não a procurou mais.
Envolveram-na, atenciosos, numa trama de simpatia: ele não
presta mesmo, todo mundo sabe disso, um aproveitador, conta para
todo mundo as coisas que faz com as namoradas; obrigando-a a
passar à defesa: de mim ele não tem nada para contar, eu já estava
cansada da falta de classe dele, para mim foi até bom ele inventar
essa cafajestada; levando essa defesa aos ouvidos dele e recebendo
na volta: cansado dela estava eu, nunca vi pequena mais burra,
cabaço é, mas gosta duma sacanagem, não comi porque não quis;
contando isso ela e as outras pessoas, e recontando as
repercussões. Em poucos meses a tinham envolvida, cúmplice.
(Para quê? Para nada: para se sentirem irmanados, fortes,
capazes de impor uma regra ao jogo; para conversarem, passarem o
tempo, exercitarem-se, estarem em dia, informarem e serem
informados, participarem, absorverem uma coisa viva, entrarem num
movimento, esquecerem sua própria falta de sentido, alimentarem-se
(como uma ameba) do que está mais próximo, sobreviverem: Para
tudo.)

3.
Começaram, então, em 1953, o processo de Andréa. Não era
mais a fascinante moça carioca; era alguém de quem sabiam coisas
comprometedoras. Os depoimentos eram prestados ao ouvido, para
não se ofender a ré: delicadeza mineira.
Contra a acusação de desfrutável, passou a oferecer a todos um
corpo intocável. Jogo inquietante, para os dois lados. Tornou-se um
pouco exasperada, nervosa. Voltou a sonhar com o homem moreno,
o bandido, que a violentava. Entrou num estado de excitabilidade que
não compreendia. Coisas a que antes não dava importância — um
homem de tanga no cinema, Tarzan, uma palavra dúbia como gozar,
uma perna vizinha num ônibus, eram dados pertubadores.
Masturbou-se muito nessa época.
Nas suas manobras de defesa, criou outra ilusão: de eficiência.
Começou a trabalhar num banco, como recepcionista, no tempo em
que isso era até meio chique e as moças bonitas da sociedade não
sabiam fazer outra coisa. Séria, conseguiu testemunhos: Andréa é
muito eficiente. A acusação de burrice era a que a deixava em maior
insegurança. Então comparecia a concertos, vernissages, estréias
teatrais, informava-se nos jornais, lia os livros da moda (ah, que
perturbação o grande orgasmo de Lady Chartterley), decorou versos
do poeta da moda, frases inteiras do cronista da moda. Os resultados
tornaram esse ponto pelo menos polêmico: Andréa é muito
inteligente, não acho, pois eu acho.
Quando já não era muito difícil manter as posições
conquistadas, moça adulta de vinte e dois anos, orgulhosa de uma
ilusória independência, assunto principal das crônicas sociais e
mesmo de algumas literárias, vítima de dois ou três poemas, ela
conheceu o amor mais longo, mais integral, mais franco e mais carnal
de toda a sua vida.

4.
É possível — aqui, não ouso afirmar — é possível que o
começo de seu caso com o jovem pleibói estivesse ligado ao
processo, sem que tivessem consciência disso: ele pretendendo
conquistar a moça de que todos falavam, ela afirmando-se também
na conquista do homem difícil, batendo outro recorde. Nada era
deliberado.
O amor resultou da resistência mútua, um certo desafio, ambos
querendo manter a posição e a reputação. Precisavam daquela luta
senão teriam acabado logo. Precisavam tanto que se procuravam a
toda hora. Não tinham, muitas vezes, nada para dizer; havia apenas
aquela oposição unindo-os. O período de resistência foi sendo
vencido, eles se afastaram.
Um mês depois, todo mundo dizia que se amavam. Procuraram-
se devagar e submissos. Aceitavam-se agora amolecidos de amor.
Tinham tempo. Ela, finalmente, amava como uma heroína.
Dois anos de uma felicidade difusa chamada namoro. Quando
ele começou a negligenciar, ficou desnorteada. Sentiu-se infeliz, de
algum modo infeliz há muito tempo, desde mocinha. No esforço para
mantê-lo, e julgando completar a imagem de moça independente que
o atraíra, deixou-se possuir por ele em 1956. Não o ter feito de
maneira lúcida, mas um pouco embriagada, no banco traseiro do
automóvel, deixou-lhe uma sensação de frustração, engano e culpa.
(No rádio do carro, Nat King Cole cantava “cachito, cachito, cachito
mio, pedazo de cielo que Diós me dió”.) Discutiam e ele desaparecia
semanas, que ela atravessava miseravelmente. Na volta dele tentava
— não sabia por que — evitar sexo, sem conseguir. Insegura, porque
deixara de ser o centro; infeliz, porque não sendo o centro o sexo que
fazia não a satisfazia. E havia também uma confusa sensação de
pecado.
Ele andava com outras, soube; quando sumia, andava com
outras. Ela estava infeliz demais para ter cautela. Deixou-se envolver,
aceitou a solidariedade, chorou nos ombros das amigas, divulgou sua
infelicidade: afinal de contas, era seu grande amor. Ele voltava, ela
ria; ele sumia, ela chorava — tudo muito simples. Nos salões, nas
piscinas, nos cabeleireiros, nos bares, era oficialmente a bela moça
que sofria de amor, uma personagem de sucesso.
Nunca chegaram a terminar o caso, e durante muitos anos
acontecia receber visitas dele, com as mesmas conversas, o mesmo
sensualismo preguiçoso, às vezes um pouco saudoso do corpo dela.

5.
De vez em quando Andréa considerava sua situação com algum
desespero: vinte e cinco anos, mulher feita numa terra em que a
donzelice é virtude necessária, procurando culposamente manter isso
em segredo (se a família soubesse!), tratada com desinteresse por
um homem que ainda amava. Tinha crises de choro, ajudada por um
pilequezinho. Tomava comprimidos para dormir (lógico: todo mundo
sabe que a infelicidade tira o sono das pessoas), excitantes,
tranqüilizantes, alkaseltzers e outros produtos da química do drama.
Cada bula de remédio que lia reforçava sua certeza de que era
realmente infeliz.
Não seria errado datar dessa época — sem nenhuma rigidez,
claro — sua tendência para a confidencia, o álcool e o prazer de
presentear. Contava pequenos problemas pessoais, inventava
dramas pelo prazer de ter alguém ouvindo. (Soube-se, então, que
teria havido um caso de desfalque na sua família, o pai, parece.)
Dava muitos presentes — gostava —, escrevia nos embrulhinhos
dedicatórias começando com “ao meu amigo”, “à minha amiga”.
Geralmente eram lembrancinhas, chaveiros, canetas, anéis, brincos,
lenços, isqueiros, pentes — pequenos subomos inconscientes.
Naquele período em que se acomodava à sua infelicidade, ainda a
estranhando um pouco, recorria aos presentinhos temendo que a
abandonassem. Mantinha a ilusão de centro acreditando que sua
infelicidade comovia a todos.
Na tentativa de escapar, saiu do emprego, descansou, evitou
bebidas, reuniões, comprimidos, começou sua psicoterapia (estava
entrando na moda). Por cinco meses não se ouviu falar muito dela.
Viajou, parece que para Vassouras. Voltou melhor, morena, bonita,
com o crédito de alguns beijos e o débito de alguns presentes. Tratou
o pleibói friamente. De algum modo, desfizera-se o encanto.
Disse que gostaria de trabalhar e esperou uma oferta. O antigo
desejo que sentiam por ela ainda funcionava: ofereceram-lhe vários.
Aceitou jornalismo. A posição de cronista social deu-lhe ascendência
sobre o círculo que a julgava. Inocente, não se aproveitou disso:
adulou-o. Não por bondade, mas para ouvir: Andréa é muito
boazinha.
Pela mágica de pensamento de que sempre será capaz,
escamoteou-se o fato de que a convidavam para reuniões cada vez
mais fechadas por ser cronista social. Naqueles seis anos ela fora
para eles uma dessas pequenas cortesãs com quem seus filhos
brincavam antes de procurar alguém para casar. Agora convidavam-
na, precisavam dela, e ela não percebia que estava sendo usada
pelos pais depois de usada pelos filhos. Voltaram sua confiança e
alegria. Entre os jornalistas era também centro e agradável novidade.
Outro erro: deixou-se novamente fascinar.

6.
A atração que exercia sobre o grupo de jornalistas tinha alguma
coisa de distância, glamour e sex-appeal das estrelas de cinema; a
que sentia por eles vinha das coisas estranhas que sabiam. Parecia-
lhe incrível que alguém pudesse saber ao mesmo tempo o que se
passava no incompreensível reino dos Laos, nos bastidores da
prefeitura municipal, nomes e posições de tantos deputados,
informações confidenciais sobre o presidente JK, além de futilidades
artísticas e sociais. Tudo isso misturado com ironia, gargalhadas,
chope, má educação, maldade.
Nessa época, 58, começou a inventar, dar-se títulos, enumerar
seus feitos, reivindicar amizades com pessoas famosas ( “Fulano?, é
muito meu amigo”), posar, representar, atribuir-se uma importância na
sociedade. Foi muitas vezes indiscreta sobre: quem é amante de
quem, quem faz o quê com quem, quem gosta como onde e quando,
de onde veio o dinheiro de quem, o que se fala etc. Fulano?, é muito
meu amigo.
Diziam no jornal que ela era muito burra e não sabia escrever.
Andréa suspeitava do que falavam. O sintoma era quase físico:
sentia-se desnorteada ao entrar na redação. Buscou apoio contra a
insegurança apaixonando-se pelo chefe de reportagem, que a
chamava “a Vestal”. Paixão de outra maneira inexplicável por um
homem casado e feio que zombava dela.
Deitou-se com seu segundo homem querendo provar-lhe que
não era aquilo que ele estava pensando (o que será vestal?) e, mais
uma vez, não encontrou no sexo aquela satisfação das grandes
amorosas da literatura. Procurando experimentar o orgasmo
avassalador de Constance Chatterley, entregou-se em lugares
estranhos, como a torre do edifício Acaiaca, um love vago (barulhos
de passos ali perto!); a carroceria de um caminhão na madrugada. A
paixão se foi aos poucos, na mesa de chope.
Aos vinte e sete anos, cansada de rosto, bebendo, tomando
comprimidos, chegou ao fim da sua década de juventude e formação,
os anos 50, que deixaram nela para sempre a sua marca.

7.
Afastou-se também da turma do jornal, chocada com uma
espécie de torneio em que se pressentiu prêmio, um agora vamos ver
quem pega primeiro. Dedicou-se um pouco mais à coluna, conseguiu
publicar algumas notícias em primeira mão e esqueceu com os
elogios a sua nova infelicidade. Promoveu artistas, foi júri de glamour-
girl, de miss, organizou festas. Atarefada, não pensava em homens.
Saía com amigos, dançava, trabalhava, e nada de intimidades. Não
lhe custava muito porque não tivera ainda um orgasmo de ganir; tinha
achado delicioso ter um homem dentro, mas não conseguia ir adiante.
Durante mais de dois anos, antes de resolver ir embora de Minas,
tentou seu grande orgasmo só uma vez, com um desconhecido que
encontrou numa boate. Fracassou.
Trabalhando, foi envolvida pelos intelectuais jovens, envolveu-
os. Achou agradável a ronda discreta que lhefaziam, tímidos,
respeitosos. Gostava um pouco mais de um jovem escritor que
colaborava no suplemento do jornal. Contava-lhe tudo, talvez com
esperanças de personagem.
Compreendia pouca coisa do que eles discutiam. Palavras
desconhecidas, inquietantes, atravessavam a mesa do bar,
ricocheteavam nas garrafas e em Andréa: infra-estrutura, pop-art,
fenomenologia, estruturas bilaterais do verso decassílabo, ontológico,
estruturalista, transcendência, imanência. Falavam no fim do
parlamentarismo, nas reformas de base, nos centros populares de
cultura, teatro popular, poesia popular — e ela tentava aprender por
que o isso-que-está-aí não podia continuar. Uns dois da Polop (que
seria isso?) passavam palavras de ordem no meio da conversa de
botequim. Sentia-se perturbada e feliz no meio da revolução. Alguém
afirmava uma coisa, o escritor protestava, dizia que era ridículo, ela
não sabia exatamente o que era ridículo, concordava. Aprendia
também frases como: a mulher não pode ficar marginalizada. Em 62,
era uma das duas frases preferidas.
Estava sempre precisando do socorro dele, na sutileza. Se viam
um peça, por exemplo: ele ia dizendo o que achava bom ou ruim e
quando terminava o espetáculo ela já tinha uma opinião, estava salva,
segura, podia conversar tranqüila à saída do teatro. Um jogo sutil não
revelado; sabiam-se ajudador e ajudada sem o menor sinal exterior
de que o sabiam.
O Jovem Escritor é um dos mitos efêmeros da cidade. O
principal: ele é a Esperança. Os ex-jovens-escritores municipais que
não conseguiram ser federais têm inveja e Fé. Ali pode estar o novo
Carlos Drummond, o novo Guimarães Rosa, e eles não querem, mais
tarde, estar entre os fariseus, entre os que não acreditaram. Depois
de uns três anos de Fé, a cidade começa a cobrar milagres,
transformações de água em vinho, seqüência natural daquele
primeiro livro, a Anunciação. Um dois três anos de esquivas,
insinuações de Iluminação nos suplementos — mas nenhum milagre.
Começa o declínio da Fé, os velhos escritores e os de meia-idade já o
tratam com mais intimidade, daí a pouco vão abraçá-lo como a um
irmão da Congregação.
O jovem escritor de plantão naquele ano de 1963 fugiu da
cidade antes do abraço. (Acabava de desfazer-se, dispersa, mais
uma geração literária mineira.)
Andréa mudou-se para o Rio dois meses depois que ele saiu.
Durante quase seis anos, soube-se muito pouco sobre ela. Boatos.

8.
Voltou. Ah, como a cidade recebe de maneira aduladora e
irresistível os que voltam. Pequenas que tenham sido as aventuras de
Andréa no mundo, seria ali, só ali, entre os prisioneiros da montanha,
que teriam o dom de fascinar; lá, os moinhos de vento seriam
gigantes. Andréa e a cidade eram adequadas uma à outra.
Não se soube de muita coisa, mas... havia a história de um
conde meio bicha apaixonado por ela... um homem desmemoriado
quis casar com ela... Vinícius fez um samba para ela... a revista
Playboy ofereceu dois mil dólares... se Jango não tivesse caído ela
estaria em Roma... despedia-se de um rapaz na porta de casa
quando chegaram três pretos enormes... meio sócia de uma butique
em Copacabana... dizem que voltou porque teve uma experiência
homossexual com uma das dez mais elegantes do Rio e o marido
flagrou as duas...
Galopando com ela em suas aventuras, os da montanha a
reconquistaram. Encantaram-se — forma mineira muito branda de
domínio.
A fascinante aventureira, então considerada musa da geração
literária anterior a 64, aproximou-se dos novos intelectuais.
Recuperou, naquele ano da volta, 69, seu emprego no jornal.
Descansada, mulher de estilo carioca na cor, na fala e no vestir,
pouco usada sexualmente, Andréa era uma mocinha de trinta e sete
anos. Dizia que tinha trinta.
Passou a ser vista com o novo pintor jovem da cidade, premiado
na Bienal de São Paulo, figurinista e cenarista do grupo de teatro,
herdeiro rico de uma grande firma de importação e exportação. Ele
também estava perdido em seu próprio jogo de aparências, atarefado
com comportamentos que devia esconder ou convinha divulgar, em
gestos estudados: sensualmente, transmitir insegurança e esperança
aos dois sexos; socialmente, apenas à mulher. Alguns homens usam
a mulher como um patuá contra o mau-olhado. Homossexual? — ela
não acreditaria.

9.
Andréa o deixava alerta. Não queria perder nada daquilo que
chamava representação magistral de uma canastrona. Esperava um
colapso, o clímax do drama, o momento insuportável em que ela
interromperia a representação.
Julgavam alguns que ela representava para uma platéia, mas é
parcial verdade, e o jovem pintor penetrou mais fundo. Ela se sabia
medíocre e criara para sua própria admiração uma mulher
variavelmente fabulosa, linda, louca, heroína, inteligente, amada,
infeliz, livre, pura, dramática, inalcançavél, fascinante, sensual,
desejada, competente, devassa, viciada, boa, jovem. Naquele
prolongado delírio egocêntrico ela era incapaz de saber onde
começava ou acabaria a interpretação.
Depois de cinco meses de descobertas e masturbações e
frustrações mútuas, acreditaram-se casáveis. Foi idéia dele, que ela
aceitou surpresa, noiva, mocinha casadoura dos anos 50.
Descuidada, confiante, sentia-se protegida porque ele era muito
parecido com ela (como sempre, escamoteava-se o fato de que
aquilo era defesa), acreditava que o amava por causa disso —
“encontrei minha alma gêmea” — e bem escondida no seu íntimo
estava a segurança, porque ele não poderia feri-la sem ferir-se.
Perdida no seu amor pela mulher que inventou, acreditou que o
premiava, entregando-a a ele. Não a supôs (se supôs) oferta
recusável. Pior: não saiu de dentro de si mesma para conhecê-lo e
não sabia da crueldade, do assassino de mulheres que morava
dentro dele.
Ah, Andréa, Andréa. Deveriam poupar-lhe a verdade se não
quisessem vê-la realmente sofrer. Quem abrisse sua armadura e
não tivesse compaixão poderia feri-la de morte. Seu jovem pintor,
bonito, inseguro, falso, quis um dia destruir nela o que tinha de
beleza, insegurança, falsidade — e atacou-a com aquele prazer de
destruição e esgotamento de que é feita a força dos artistas.
Numa festa cheia de gente conhecida (inclusive seu antigo
jornalista) (lembra-se dela como um dos episódios mais tristes de sua
vida) (lá conheceu também aquele escritor comunista) (aniversário de
seu noivo, amigo dos jovens intelectuais) (no dia da invasão da
cidade por um bando de nordestinos) (depois dessa festa, Andréa
não pôde mais fingir que era outra e não conseguiu ser uma só) foi
massacrada por ele numa cena dolorosa e autodestrutiva de jogo da
verdade. Colocado inicialmente como uma brincadeira de nostalgia
dos anos 60, o jogo se transformou na faca de ponta que martirizou
Andréa. O noivo e a platéia se possuíram na volúpia de destrui-la.
Através dele, ficaram sabendo das coisas que ela guardava até de si
mesma: — Um casal perfeito: ela é fria e eu sou impotente.
— Claro que não. A gente se masturba.
— Ela tem medo da penetração. Eu também.
— O maior desejo dela é gozar. Chegou a trepar em love vago
para ver se gozava.
— Herança? Só se herdar dívidas.
— Sabe não. Quem escreve a coluna dela é o Jota Jota. Quer
dizer: reescreve tudo, de tanto erro que tem.
— Trinta porra nenhuma. Trinta e sete, já vi na carteira.
— Trepou sim. Não sei o nome dela, mas Andréa me disse que
já experimentou.
— Muita bolinha.
— Prefiro homem.
Andréa tomou um grande porre, oferecendo-se a todos os
homens em contatos crispados (chegava a marcá-los com as unhas!),
estabelecendo em sua volta um clima de desejos incontrolados
(campeões se ofereciam para quebrar seu gelo; alguém chegou a
levar a mão dela até lá, para que ela visse!), uma lésbica beijou-a
louca no banheiro (na boca!), e esse delírio salvou-a: era o centro
triunfante do desejo de todos.

10.
Nos longos dias de solidão e pileques daquele abril de 1970, ela
relia, às vezes chorando, as velhas cartas, os recortes, revia retratos,
desde aquele singelo 3x4, os presentes, crônicas, poemas. Um velho
general considerando suas medalhas: testemunho de que tudo foi
verdade.
A sociedade reabriu seu processo, agora com provas;
testemunhas segredavam depoimentos, intimidades era reveladas.
Dizia-se que um diário obsceno de um jornalista subversivo era
vendido às escondidas em cópias mimeografadas e que nele havia
detalhes incríveis sobre suas relações com Andréa; arrolavam tudo o
que o pintor disse na festa, com acréscimos que variavam de acordo
com o narrador — um modo de parecer mais informado, como se
houvesse uma disputa e alguns roubassem no jogo.
Agora, diante de tantas evidências, os filhos e filhas da
aparência não poderiam mais sair com Andréa, os leitores não
poderiam ficar ao alcance dos seus pecados. Condenada e incapaz
de recompor-se, Andréa saiu da cidade, sem olhar para trás.
Os prisioneiros de montanha respiraram aliviados. E nos anos
que se seguiram foram vagarosamente tomados por uma
inconfessável saudade.
CORRUPÇÃO

PAI. 1941.

Olhava a barriga da mulher: sexo, laboratório e ninho, capaz de


entregar, pronto, um menino chorando. Esse menino vai ter tudo que
eu não tive: carinho, pai em casa, brinquedos, conforto, segurança.
Um homem inseguro afirmando-se na paternidade.

MÃE. 1941.

O pior é de noite, com esse sono que eu tenho: ter de acordar


para dar de mamar. Ah não, gente, para que ter filho? Melhor adotar
um já grandinho.

FILHO. 1941.

(Assim:) uéh uéh uéh uéh (choro) chap-chap-chap-chap (vinha) mml-


mml-mml-mml (mama).

PAI. 1942.

Um ano. Já se tornava uma pessoa de quem não podiam


duvidar: um homem que tinha um filho. Contra essa pequena coisa
indefesa ele podia exercer a maldade/bondade de usar,
escapando àquela mulher que o cercava de duvidável proteção.
Navios brasileiros eram torpedeados na costa, nas ruas, o povo corria
com pedras na mão; Getúlio hesitava; as casas de alemães eram
quebradas, negócios arrasados, italianos ficavam sem farinha —
eram os bandidos da guerra. Isso nem de leve perturbava o pai,
autorizado a andar muito alto na rua fumando cigarro Adelphos com
uma pasta na mão: aquele homem está trabalhando para garantir o
futuro do filho. Havia gente no governo achando que os bandidos da
guerra eram outros; discursos do presidente Roosevelt eram
censurados, derrotas soviéticas aplaudidas. Se o filho precisava de
aplauso para uma palavra aprendida ou para o esforço cambaleante
de atravessar a sala sem cair, dava-o no momento preciso. Lenice
não, quase nunca estava olhando. Que coisa, parece até que se
nega! 37 navios brasileiros afundados, quase mil mortos; impossível
evitar a guerra, ir contra o povo. Góis Monteiro e os integralistas
resistiam, a quinta-coluna espionava, Lenice não prestava atenção e
afinal Getúlio foi forçado a declarar guerra aos alemães. Acabava-se
o sonho de um Brasil fascista. Aprendeu a compensar a deficiência
de Lenice interferindo a favor do menino — uma criatura que se pode
corromper — e por pura bondade/ maldade tornou-se barreira entre
elezinho e ela.

MÃE. 1942.

Estou perdendo, já perdi. Sabia que ia dar nisso, que ele ia se


meter entre nós dois. Eu, que gosto dele como ninguém gosta de um
filho, que protejo contra tudo, que lhe dei o amor de que ele precisava
para sobreviver, estou perdendo. Já perdi. Não sente falta de mim,
não tem desejo nenhum de voltar para dentro do meu corpo, aceita
meu carinho com frieza. Antes era tão bom. Ele ficava dentro de mim,
só meu, era o meu menino, que eu cuidava e protegia. Tão frágil, tão
bonito. Agora há esse filho entre nós dois.

FILHO. 1942.

— Me dá. (Ele dava.)


— Dada. (Davam-lhe.) (Aprendia.)
Mamãe xinga. Papai xinga não. (Por isso:) Mamãe feia. Papai
feio não.
Mamãe dá papá. (Por isso:) Mamãe boa. Papai brinca (Por
isso:) Papai meu. (Aprendia.)
PAI. 1943.

Um passeio. Olhava os cabelos do filho refletindo a luz da


manhã. Algumas pessoas passavam e diziam: que beleza de menino!
Pai e filho rolavam no verde do parque, às vezes corriam entre os
intervalos dos verdes, conversavam — o filho brincando de gente
grande, o pai brincando de gente pequena — sobre problemas
íntimos, tão íntimos como fazer xixi, que o pai resolvia de maneira
simples: faz ali. Olhou aquela boca e aquele queixo que reproduziam
os seus. Ele pode passar um dia inteiro comigo sem se aborrecer.
com Lenice ele se cansa logo. Também nunca vi mãe daquele jeito,
preguiçosa, de má vontade com o menino. Passou a mão pelos
cabelos louros do menino, num impulso de proteção, e ganhou um
sorriso. Mesmo se o Robertinho precisasse ela seria incapaz de ficar
com ele mais de meia hora. O filho corria incerto, o pai o seguia
atento. Observava o jeito abrutalhado do menino, uma coisa indo para
frente, sem rumo e equilíbrio. Vai ser durão quando crescer. Eu é que
nunca tive essa liberdade, essa segurança de pai junto, aquele
desatinado. O filho pedia atenção e picolé e uma volta de cavalinho e
um balão e laranja e de tampa não e uma descida no escorregador e
me carrega e quero descer e me dá água — o pai satisfazendo-se na
ação de fornecer, de estar à mão, de ser a única certeza numa
cabeça loura de vontades. Sempre, nessas manhãs, voltavam sujos,
vermelhos, cúmplices.

MÃE. 1943.

Não gosta mais de mim. Sinto que não gosta. Não tem
importância, eu me digo, não tem importância. Faço que não vejo.
Fico pensando que não vou sofrer por causa disso, não vou sofrer
nem um pouquinho, olha aí como não sofro. Mas todo dia cansa, de
uma hora para outra posso começar a sofrer, logo eu, que tenho tanta
preguiça. Sempre fui tão sozinha, engraçado. No primeiro ano de
casada não, só depois que o menino nasceu. Tem muito tempo que
ele não vai para a cama comigo, e eu penso: não tem importância, eu
posso passar sem isso. Mas posso? É Cléber que o separa de mim.

FILHO. 1943.

A mesa esconde (atrás) da cadeira, (aprendeu).


(Experimentando, levantando e abaixando o rosto no espaldar,
aprendeu surpreso que) a cadeira esconde (mas não acaba) a mesa.
(Uns objetos serviam para esconder outros, como) o caixote guarda
brinquedos.
Robertinho escondeu o carrinho (noutro lugar) para brincar
(quando quisesse).
Robertinho (também) pode (se) esconder.
(Na primeira tentativa, logo seguida de outras:) ela não viu
Robertinho.
(Fracassou quando) guardou Cléber para brincar (depois):
Cléber sumiu (não ficou lá).
(Por isso, nasceu nele a angústia de que) Cléber vai embora,
mamãe vai embora, Cló vai embora (as pessoas não ficam).
Meu carrinho é meu (consolou-se ao encontrá-lo no mesmo
lugar: as coisas mereciam confiança).
(Os objetos provocavam alegres surpresas:) Robertinho fez um
trenzinho, papai.
Achei isso aqui, papai (:atrás das coisas havia também alegres
surpresas).
(Procurava, não achava e chorava abandonado:) papai foi
embora de Robertinho.
(Um dia abriu uma porta e viu) Cléber abraçado com ela.
(Brigando?)
Papai foi embora pra mamãe (desconfiava angustiado quando
não o via).
Papai dorme com mamãe não (pedia enciumado’e enganado,
antes de adormecer).

PAI. 1944.
Enriquecia. com a pressa de quem já perdeu muito tempo,
assumiu o controle da firma Miranda, Oliveira, Martins & Cia. —
Importações e Exportações, que seu pai levara a concordata seis
anos atrás. Os russos, surpresa!, libertaram Leningrado do cerco
alemão, que já durava dois anos, e passaram ao ataque no Báltico e
na Ucrânia. Inglaterra e Estados Unidos, surpresos, apressavam os
planos de contra-ataque na Europa. Fora do trabalho dava-se ao filho,
embora às vezes uma Lenice noturna o prendesse entre pernas
ávidas. O Brasil, afinal, partia para a guerra, com acenar de lenços
brancos, v da vitória e lágrimas de mães. A cobra vai fumar. Nossa
vitória final é a glória do meu fuzil a ração do meu bomal água do meu
cantil por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá. A guerra comia açúcar, café, carne, algodão. E
ele comprou seu primeiro carro, baratinha Chevrolet 41, conversível.
Senta a pua.
Ela não gosta do Robertinho, agora eu sei. E quer me tomar
dele, para voltar ao antigamente. Recusava-se. Esmerava-se por ser
um bom pai aos seus próprios olhos, longinquamente pensando que
seu pai deveria vê-lo para saber que pai é isso. Corrigia, passava a
limpo o ofício de ser pai.

MÃE. 1944.

Os dois estão dissimulados contra mim. Agora passam sem me


olhar, até adivinho o que estão pensando: vou passar por ali e nem
olho para ela. Um estragou o outro. Cléber era tão carinhoso, tão meu
menino. Para que que eu queria outro filho? Esse menino afastado de
mim, dissimulado desse jeito. Quando o pai não está, fica escondido
num canto qualquer, com suas coisas — já falei com esse menino
para não mexer com tesoura — escondido de mim!, fazendo nada,
calado até Cléber chegar. É como se eu não existisse: sou a mulher
que prepara os dois para seus passeios. Um se gasta com o outro e
não me dão nada. Robertinho de dia, Cléber de noite. Todo mundo
diz que estou mais bonita depois de casada, igualzinho Maria Montez.
Eu acho que é mais a Dorothy Lamour, mas tem gente que fala que é
Maria Montez. Depois que fez esse filho Cléber acha que não tem
mais obrigação. Cada vez que me concedem uma coisa tenho
impressão de que ficam com raiva, como se um estivesse traindo o
outro.

FILHO. 1944.

A onça estava escondida atrás do morro. O menino vai com o


pai dele fugindo da mãe que não quer deixar o pai dele passear com
o menino. O menino não quer ir não porque está com medo da onça e
o pai dele fala que vai matar a onça. O menino não quer matar a onça
não porque a mãe vem atrás, deixa a onça comer ela. O pai do
menino chama ele para esconder dentro da manilhona porque já vem
a mãe e a onça. A mãe vai chegando, vai chegando, vai chegando e
fala ô menino, ô Cléber, sai daí que eu já vi ocês. Aí a onça escutou
ela gritando e veio e rhaaaaaaaaaa-ruaáááááááááááihnnnnn-
raaaaahummmmmmm.
— Me dá a tesoura, Robertinho.
A mãe atrapalhou (sempre). (De repente) não tem mais onça,
nem pai, nem menino, nem manilha, porque a mãe disse tesoura e
onça é a tesoura e (por isso) o pai é a caixa de fósforos o menino é o
fósforo a manilhona é a caixa de botão a mãe é o retalho de roupa.
(Mais tarde calçava o chinelo do pai e punha o cachimbo na
boca e dizia:)
— Ora, Lenice, o que é que tem o menino brincar com a
tesoura? (Até que a mãe vinha atrapalhar:)
— Vai botar esse cachimbo no lugar. Você ainda quebra isso,
menino.
(Muita coisa ele não podia, o difícil era saber o quê, em que
hora. Por isso) gostava mais quando podia ficar escondido, fazendo
tudo, barulho não senão ela vem.

PAI. 1945.

Nascia a UDN mineira e ele estava lá, ao lado dos liberais. A


cidade adulava-o. com 32 anos, cinco de casado e um filho de quatro,
conquistara o direito de aparecer, opinar, influir. A vitória na guerra
era certa, Getúlio era incerto, os presos políticos ganhavam anistia,
Getúlio tentava acomodar-se à mudança dos ventos, surgiam siglas,
PTB, PSD, o poder fugindo das mãos de Getúlio e ele não sabendo
ainda, ou sabendo e legalizando o PC. Cada vez mais seguro de si, o
pai discutia a estratégia da derrota alemã, o sentindo continuísta da
candidatura Dutra, falava nos interesses da sua classe, já-já falava
pela classe na Associação Comercial, seguro, ascendendo (algumas
mulheres o cercavam visivelmente desejando) e afirmava: ou
colocamos o Brigadeiro agora no palácio do Catete ou vamos ter
problemas mais tarde. Queremos Getúlio, gritavam nas ruas,
ameaçando as eleições. A bomba explode, o Japão desiste, Getúlio
não resiste.
Os jogos de Robertinho com os objetos e pessoas o deixavam
alerta. Fingia saber tudo, acompanhando com cautela a mágica das
suas invenções — não se podia nunca ter certeza de que uma caixa
era uma caixa — e maravilhava-se, contava para os amigos. Esse
menino vai ser artista. Considerava um privilégio Robertinho
esconder-se na casa até sua chegada, como Lenice veio reclamar.
Eu gostaria tanto de ter um pai como eu.

MÃE. 1945.

Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Seis horas. Cléber deve
estar saindo do trabalho. Ninguém telefonou hoje — será o que
houve? Os dias cada vez maiores — e esse calor! Antigamente, não
tem cinco anos, eu esperava Cléber — de tarde só fazia isso.
Primeiro organizava o jantar, depois tinha o banho, me perfumava, o
banho dele preparado, água de colônia Atkinsons. Mesmo quando
estava trabalhando ele era uma companhia para mim. Parece até que
foi ontem. Hoje fico aí esperando alguém telefonar, sozinha nessa
casa — podia chamar um homem aqui que ninguém ficava sabendo
— esperando chegar a tarde, esperando chegar a noite, esperando
chegar a manhã, olhando a luna que si quiebra sobre Las tenieblas
de mi soledad. O que foi que eu fiz? Onde é que eu perdi aquele
rapazinho que casou comigo mais virgem do que eu? Não foi com
esse homem que sabe tudo e discute política que eu casei — eu nem
sei o que esse Luís Carlos Prestes quer. A culpa não é do
Robertinho, agora é tarde. É culpa de Cléber mesmo, da cabeça lá
dele. Nunca mais vou gostar de ninguém como gostei dele — nem
dele mesmo, se tudo mudasse de repente e ele voltasse a precisar de
mim. Isso é que é triste. E ninguém vai gostar de mim como ele
gostou, será que vai? Robertinho. Um menino tão esquisito. Ele
quase não ri! Teimoso, calado, esquisito — meu Deus, que culpa
tenho eu nisso tudo? Me dê tempo, meu Deus, e força para fazer com
que Robertinho seja feliz.

FILHO. 1945.

(Muito complicado.) Olhava uma pessoa grande, o pai, depois a


mãe que era menor, depois ele que era menor, depois um
nenenzinho que era menor, depois (imaginava) algum nenenzinho
que fosse do tamanho de uma formiga — mas não compreendia:
quando é que uma pessoa começa a crescer, como é que. (O mais
fácil seria perguntar, mas ele se enganava fingindo que sabia muitas
coisas e só de vez em quando perguntava.) O pai não podia perceber
que ele não sabia. (Saber era para ele um modo de fascinar e de
imitar o pai: pai sempre sabe tudo.)
— Ô mamãe, como é que a gente começa a crescer?
— Uai, filhinho, que pergunta.
Ela quase nunca sabia da primeira vez. ( Não se podia gostar
dela sempre.) Perguntava outra hora. (Depois que escorregava numa
dificuldade tinha de ficar atento para não esbarrar de novo no
mistério, mas perdia-se facilmente.) — Ora, filhinho, depois que a
gente nasce vai crescendo até ficar grande.
Como é que nasce? (Um novo problema que ele guardou algum
tempo com a responsabilidade de resolver, até ser levado à pergunta
pela curiosidade). Como é que nasce?
— A mãe pede Papai do Céu e ele manda uma cegonha trazer
um menininho para ela. A cegonha vem voando com o menininho no
bico e entrega direitinho na casa da mãe.
O pai riu muito e contou diferente.
— A mãe tem um ovinho quase igual ao da galinha só que é
menor, mas não bota ele não, fica com ele lá dentro da barriga. Em
vez de nascer um pintinho de dentro do ovo nasce é um menininho,
que depois a mãe bota e aí ele cresce até ficar grande.
(Desconfiado, evitava perguntar outras coisas à mãe. Suas
certezas eram insegurança.)

PAI. 1946.

Quando apagou a luz, as pernas ávidas de Lenice o envolveram


e o som que ouviu parecia um rosnado. Tentou levemente
desprender-se, as pernas o apertaram mais inescapáveis. Relaxou,
preguiçoso, tentando outro jeito de fugir. Sentiu-a procurando seu pau
com a mão. Relaxando, persistia em sua fuga quando ouviu aquele
rosnar abafado pelo travesseiro: “Seja homem pelo menos”. Atingido,
colocado e colocando-se numa questão de brio, reorganizou-se para
atendê-la. Seu corpo não respondia à obrigação que ela impunha.
Deixara-se levar para aquela situação de provar que era homem,
estava tolamente envolvido, e faltava-lhe o principal: atração por ela,
desejo. “Não adianta, não adianta — ouviu de novo aquele rosnar
abafado, agora com ódio dela, desejo de atravessá-la com um pau-
espada, para que ela visse! Constatou, feroz, que a vontade de
esmagá-la funcionava de maneira desinibidora e rápida, o pau
crescendo de repente. Toma, toma!

MÃE. 1946

Não tenho mais nada para fazer nesta casa. O que, se ninguém
me quer? Fui uma boba de agüentar esse tempo todo. Agora até isso:
quando procuro, é com ódio que ele vem. Comigo não, violão.
Robertinho a mesma coisa. Quer mais esforço do que eu fiz durante
esse ano todo para ver se ele me ligava ao menos um pouquinho?
Até álbum de figurinha da guerra eu fiz com ele, só ficou faltando o
general Patton. Não adianta, cada carinho que eu faço ele se afasta
mais de mim. Nenhum dos dois me quer, não adianta esconder. Tem
qualquer coisa errada nisso, e nem quero pensar, Deus me livre. O
que é que eu tenho que eles não podem gostar de mim como uma
mãe ou uma mulher qualquer? Fui uma boba pensando esse tempo
todo que eu estava errada. Eles, eles é que são esquisitos com esse
amor deles, Deus me perdoe. Agora chega. Não adianta, eles não me
querem. Foi a última vez. Vou-me embora desta casa.

FILHO. 1946.

Algumas coisas Deus não conseguia impedir: que ele os


olhasse deitados, por exemplo. Deus vê tudo que a gente faz
escondido, prevenia a mãe. Sabia que Deus estava olhando e não
gostando, que corria algum risco quando saía de sua cama e ia olhar
o pai e a mãe dormindo. O perigo era confusamente o melhor. Nada
acontecia, dias e dias seguidos, só a expectativa de que alguma coisa
poderia acontecer. (Na memória, alguma coisa já havia acontecido e
ele não conseguia saber o que, onde.) Esperava, escondido, Deus
olhando-o no escuro, até vir a certeza de que estavam dormindo e só
quando estivessem acordados poderia acontecer o que aconteceria
um dia. Através da porta um pouco aberta ouvia a respiração do sono
deles fugindo fugindo fugindo fundindo sono.
Um dia aconteceu.
Quando o pai apagou a luz o escuro era igual, como se nada
fosse acontecer, e de repente ouviu a voz dela xingando:
— Seja homem pelo menos!
Esperou a reação do pai, mas não ouviu nada, tapa soco nada.
só aquele silêncio, não, não era silêncio, estavam brigando! Ouviu
(lembrança fugaz) aquela briga sem gritos, só força a respiração e
aperto, sabendo que não era briga e perguntando-se por que estavam
brigando. Ouviu a voz abafada da mãe sufocada morrendo no
travesseiro: — Não adianta! Não adianta!
Ele estava ganhando? (O que, se não era briga?) Os olhos não
se acostumavam ao escuro, mal podia ver uma sombra preta sobre
os lençóis.
— Toma! Toma!
Ele xingando! Batendo? — não ouvia tapa, só aquele cansaço
de briga. Escutou aflito aquele cansaço crescer e diminuir
(incompreensível), e quando pôde ver alguma coisa ele parecia que
estava abraçado com ela! (Aquilo já tinha acontecido (Quando?),
Cléber estava faltando com a palavra (tinha prometido o quê?) — e
não se lembrando direito Robertinho fazia o que podia para não
apanhá-lo na falta.) Começou a sentir medo do escuro Deus silêncio.
Adiava chamar o pai (esperando que o medo se tornasse
insuportável).
— Eu vou embora desta casa, Cléber.
A voz da mãe, naquele tom de que ia ser assim mesmo. O medo
acabou e Cléber era seu outra vez e Deus não tinha importância.
Encolhido no escuro, ouvia o silêncio de Cléber concordando.
Pensava na casa sem a mãe e via um espaço em branco em que
podia fazer tudo. Os brinquedos, Cléber, a casa — tudo. Lá fora foi
ficando cinzento, ouviu um galo cantando perto, o pai e a mãe
dormiam e ele foi para sua cama pensando que no dia seguinte
dormiria no lugar da mãe.
O REFÚGIO

DE JORGE PAULO DE FERNANDES, 31 ANOS,


ADVOGADO DE RÁPIDA CARREIRA, QUASE ESCRITOR
ATÉ OS 25 ANOS, QUANDO O DIPLOMA DE BACHAREL
DE DIREITO CORRIGIU COMPLETAMENTE ESSE
DESVIO, BEM RELACIONADO NA SOCIEDADE E
TOLERADO ENTRE OS INTELECTUAIS, AUTOR DE UM
CONTO REALMENTE BOM, PUBLICADO NO SUPLEMENTO
EM 1961, SOLTEIRO, RICO, FORTE CANDIDATO AO
TÍTULO DE UM DOS DEZ RAPAZES MAIS ELEGANTES
DE BELO HORIZONTE EM 1970.

Saiu do elevador em direção ao número 306, um pouco


depressa demais, um pouco ansioso demais, fugindo, escolheu uma
chave, abriu a porta, entrou ligeiro e fechou a porta de costas.
Salvo. Está escuro.
Trancou a porta a chave.
Não muito escuro.
Acendeu a luz.
Não adianta nada.
Apagou a luz.
— Diabo.
Acendeu a luz.
É. Melhor acesa.
Olhou o relógio.
Seis e cinco. Tenho muito tempo.
Foi até a mesa. Encontrou um bilhete e uma carta.
Letra de Maria.
Leu o bilhete.
“Dr. Jorge. O sr. Roberto Miranda telefonou lembrando da festa
na casa dele hoje. “É a segunda vez que me dão esse recado hoje.
Jogou a carta na mesa sem abrir.
Aviso de banco. Tem muito tempo que ninguém me escreve.
Deixou a pasta em cima da mesa. Foi ao quarto. Tirou o paletó.
Colocou-o na cama. Tirou a gravata, sem desfazer o nó. Colocou-
a na cama. Sentou-se na cama.
Depois vou descansar um pouco.
Tirou os sapatos. Mexeu os dedos, espreguiçou-se, gemendo.
Tirou as meias. Procurou.
Diabo. Já falei com Maria para não enfiar meu chinelo lá para
baixo da cama.
Apoiou-se na cama com o braço direito e tentou alcançar os
chinelos com a mão esquerda.
— Merda!
Levantou-se e olhou em volta, procurando.
Uma vassoura. — Ô Maria burra!
Saiu do quarto. Atravessou a sala, a cozinha.
Que chão frio.
Apanhou a vassoura na área de serviço. Atravessou a cozinha,
a sala. Entrou no quarto. Acendeu a luz. Abaixou-se frente à cama e
puxou os chinelos com a vassoura.
Largou-a no chão.
Maria que se foda.
Calçou os chinelos. Parou.
E agora? Mijar. Será que Maria preparou meu jantar direito?
Que hora eu vou à festa? Que que eu vou fazer até lá? Devia ter
comprado uma revista. Ah, o Globo. Na pasta.
Saiu do quarto. Foi até a mesa. Abriu a pasta e tirou o jornal.
Sentou-se na poltrona. Leu a última página.
Esqueci de mijar.
Leu as histórias em quadrinhos. Leu o editorial na primeira
página.
É isso mesmo-, ferro nesses comunistas. Só mijando.
Levantou-se, deixando o jornal na poltrona. Saiu da sala. Entrou
no banheiro. Olhou-se de passagem no espelho.
Estou bem.
Parou de urinar e balançou o pênis algumas vezes. Olhou-o.
Puxou o prepúcio e descobriu a glande.
— Êh bichão.
Sorriu. Guardou o pênis, recuando um pouco os quadris.
Cheirou a mão. Deu descarga com a outra mão. Voltou-se para o
espelho. Retirou a mão da frente do nariz quando se viu.
Porco.
Olhou-se, passando a outra mão pelo rosto. Acendeu a luz.
Levantou o queixo, esfregou o pescoço, as faces.
Está grande. Porra, fiz essa barba hoje de manhã.
Virou-se um pouco para a esquerda, buscando perfil. O mesmo
para a direita. Olhou os cabelos.
Estou ficando velho. Preciso casar.
Chegou a cara mais do espelho. Apalpou a pele de baixo dos
olhos. Esticou a pele da testa.
Nada. Até que estou muito bem.
Sorriu. Fixou o sorriso e ficou olhando os dentes.
Amarelos. Isso é cigarro.
Deixou o espelho. Lavou as mãos com cuidado. Enxugou-as.
Verificou sua limpeza olhando-as atentamente e esfregando os
dedos. Olhou-se de passagem no espelho. Saiu do banheiro.
Mudar essa roupa.
Viu o jornal. Hesitou um pouco. Entrou no quarto. Tirou a camisa
e deixou-a na cama. Tirou a calça e deixou-a na cama. Sentado,
olhou o fundo da cueca.
Sempre molha um pouco, não adianta balançar. Eu visto o quê?
Ah, nada. Está calor.
Olhou o relógio.
Dez para as sete. Ainda é cedo. Ler mais um pouco e depois
faço a barba.
Saiu do quarto. Sentou-se na poltrona.
Ia me esquecendo do jantar.
Ameaçou levantar-se. Desistiu.
Tem tempo.
Abriu o jornal. Leu a política nacional. Coçou o nariz. Interessou-
se por um pronunciamento de Filinto Müller. Coçou o nariz. Enfiou o
dedo indicador no nariz. Lia. O dedo descreveu um pequeno
movimento semicircular. Lia. com o polegar retirou de sob a unha o
material colhido no nariz. Lia. Deixou o braço cair ao lado da poltrona,
os dois dedos já no trabalho circular de secar a bolinha. Lia. Levantou
os olhos do jornal, olhou em volta, procurou um lugar e jogou a
bolinha sob a outra poltrona. Voltou a ler. Esfregou o nariz com as
costas do dedo indicador. Fungou, experimentando a narina.
Procurou outra notícia.
Porra, seis anos já. Parece que foi ontem.
Leu a notícia sobre a seca no Nordeste.
50 mil retirantes? Ah, isso é exagero de jornal. Meio Maracanã.
— Essa não.
Passou a página. Leu tudo sobre o Vietnã. Mudou de posição:
passou a perna direita sobre o braço da poltrona e o jornal para a
mão direita. Começou a ler a coluna social. A mão esquerda acariciou
um pouco a perna, depois penetrou na fenda da cueca e alcançou o
púbis. Coçou. Leu uma nota sobre a elegante Verinha Nabuco. A mão
distraía-se na abertura da cueca. Verinha Nabuco estava em tempo
de ficar doida com a organização da sua festa beneficente. A mão
coçava em volta do saco, do pênis, brincava. Mas a festa anual de
Verinha Nabuco, este ano em benefício da Mãe Solteira, será um
sucesso. Levou a mão esquerda ao nariz. Leu a coluna até o fim.
Cheirava. Abriu o jornal com as duas mãos e passou os olhos pela
página de polícia. Fechou o jornal e jogou-o sobre a mesinha.
E agora? Jantar.
Mudou de posição: tirou a perna direita do braço da poltrona,
estendeu as duas de comprido até alcançar a mesinha, colocou os
dois braços sobre os dois descansos da poltrona, espichou-se e
relaxou.
Para que essa cueca?
Olhou o corpo devagar.
vou continuar o regime, sabe? Não custa nada.
Olhou as unhas.
Perfeitas.
Afastou as mãos, para vê-las melhor.
Bonitas.
Olhou os pés.
Preciso cortar essas unhas. Depois.
Virou-se um pouco de lado e peidou.
Será que vai feder?
Nada. Também, com esse regime. Eliminar esse gás para
diminuir a barriga.
Peidou outra vez. Espreguiçou-se.
Descansar um pouco, senão não agüento essa festa.
Fechou os olhos.
Saindo lá pelas nove e meia está bom. Maria esqueceu de
anotar a hora, porra. Vai todo mundo lá, claro. Preciso pensar numas
coisas inteligentes para dizer, umas piadas também. Fazer uma
listinha daqui a pouco. Rodolfo e o filho da puta daquele manquinho
veado vão querer me gozar. Fazer uma listinha bem boa, bem
temperada, para tapar a boca deles. Elêusis deve ir também,
peitinhos maravilhosos sem sutiã. Ah, eu com uma mulher dessas.
Sorriu deleitando-se.
Todo mundo me invejando e eu ali, governador. Mônica.
Parou de sorrir.
Nem se compara. E ninguém trepa na inteligência, o que
interessa é o corpo, a tara. Mônica parece que tem vergonha de
gostar da gente. Quem vê pensa até que ela não gosta. Mas me
adora, sei que adora. Fica disfarçando porque está nessa onda de
mulher moderna. Hoje eu ensino a ela o que é mulher moderna. vou
pôr na minha listinha um negócio para ela. Aqui dentro, tudo bem: eu
em cima, ela em baixo, bem antigo. Lá fora vem o modernismo, ela
quer ficar por cima. Eu ensino a ela. Tem de ser como a Maria,
escrava e não esconde de ninguém. É lógico que crioula é diferente
mas, porra, ela é uma crioula bonita, podia até ser artista. Aqui Abriu
os olhos.
ela é minha escrava. Se arrasta no chão e não tem coragem
nem de ter ciúmes da Mônica. Leva café de manhã na cama para nós
e nem pisca. Medo de me perder. Quando eu chego, aqui mesmo
nessa cadeira ela tira meus sapatos, meu paletó, minha camisa,
minha calça, leva lá para dentro, prepara meu banho, ajoelha-se a
meus pés, aqui no meu chão e fica esperando meu pau desejá-la.
Escrava.
Fixou os olhos no cinzeiro, que o refletia de modo irregular.
Esta noite na festa vou fazer Mônica dizer na frente de todo mundo
que me adora.
Sorriu.
vou sim.
Olhou o relógio.
Mais de oito. É melhor comer alguma coisa agora. Será que vai
ter comida naquela festa?
Levantou-se. Entrou na cozinha. Acendeu a luz. Conferiu a
mesa. Abriu a geladeira.
Hum, que fome.
Tirou o prato.
Presunto, um ovo cozido, salada. Me adora.
Colocou o prato sobre o forro americano, entre os talheres.
Sentou-se. Olhou as mãos. Cheirou-as. Levantou-se. Foi ao banheiro.
Lavou as mãos. Voltou para a cozinha. Sentou-se.
Mônica. Hum. Tem até escrúpulo de apoiar o que eu digo. E não
é por discordar de mim, é para não pensarem que está me apoiando
porque gosta de mim. Tudo cautela. Mas eu vou acabar com essas
cautelas — ah, vou — esses luxos bobos. Aquele dia em que o
quem? sei lá falou que minha abotoadura era horrorosa — deve ter
sido aquele manquinho veado — por que ela não disse logo que foi
presente dela? Ficou naquela indecisão, estúpida, me obrigando a
explicar: foi Mônica quem me deu, para não pensarem que eu ia
comprar um negócio daquele. Não ajuda nunca, fora daqui.
Mastigava.
Tem vergonha de gostar da gente, que coisa, parece doença.
Egoísta, é isso. Incapaz de me chamar assim na frente dos outros:
meu bem, meu gostozinho, meu amor. Parece que faz de propósito.
Parou de mastigar, alarmado.
Será que alguém acha isso? Não, muito sutil para eles.
Voltou a mastigar.
Medo dessa turma, do pessoal zombar dela. Pensando bem,
isso é até mesquinho da parte dela. Eu queria que alguém ficasse
escondido lá no quarto, só para ver como que ela é comigo.
Parou de mastigar. Sorriu deleitando-se. Voltou a mastigar.
Queria ver a cara dela quando percebesse que tinha alguém
olhando.
Sorriu mastigando.
Ia ficar com ódio de mim!
Parou de mastigar.
Não, é claro que eu não ia fazer uma coisa dessas com ela.
Voltou a mastigar.
Bobagem. Ela só precisa acabar com esse fingimento na frente
dos outros.
Terminou o lanche. Levantou-se. Olhou o relógio.
Oito e meia. Melhor fazer a barba.
Saiu da cozinha. Entrou no banheiro. Olhou-se no espelho.
Levou a mão ao rosto, esfregando os dedos na barba.
Vai precisar de uma gilete nova. Barba curta é foda.
Abriu o armário. Tirou o creme de barbear. Molhou o rosto.
Aplicou o creme com a mão direita, frente ao espelho. Sorriu-se.
— Bonitão. Riu baixo.
— Bobo.
Lavou a mão. Abriu o armário. Tirou o aparelho e uma lâmina
nova. Trocou a lâmina do aparelho. Começou a barbear-se.
Hoje Mônica vai ver. Não sei como, mas vai. É claro que eu não
posso perguntar, no meio de todo mundo: Mônica, você me ama? Ou
posso?
Parou de fazer a barba.
— Mônica, você me ama?
Fez cara de quem não gostou
Não.
balançando a cabeça em negativa. Recomeçou a barba.
Assim não dá. É preciso clima, senão vão me gozar. Nem devo
ser eu quem vai fazer a pergunta. O Ruiter. Combino com ele. Não.
Melhor: uma pessoa que não gosta de mim: o Rodolfo! É isso. Ah,
filho da puta, vai ser ele mesmo quem vai fazer a pergunta, com
maldade: Mônica, você gosta mesmo do Jorge? E ela: mas é claro.
Sorriu deleitando-se. Voltou a fazer a barba. Parou. Riu.
— Dois coelhinhos no beleléu. Recomeçou a barba.
Tem de começar como uma brincadeira. Um jogo que todo
mundo leve a sério.
Parou de fazer a barba.
O jogo da verdade. Não. Vão me chamar de careta. Isso é coisa
de 1960. Só se... porra: nostalgia. É isso. Vamos brincar de 1960! É
lógico e é genial.
— Ge-ni-al.
Preciso anotar isso.
Colocou o aparelho de barbear no lavabo. Foi ao quarto,
apanhou a caneta e um bloco de anotações. Voltou para o banheiro.
Abaixou a tampa do vaso, agachou-se, colocou o bloco por cima e
anotou: “1960”, como um título. Embaixo de 1960 escreveu: “Música,
piadas, acontecimentos, filmes.”
Quem estava na festa do Roberto em 60?
Na outra linha: “Quem estava na festa em 60”.
Quem casou? Quem morreu? Quem mud
Na outra linha: “Quem casou, morreu, mudou, etc.”.
Que mais? Continuar essa barba, senão atrasa.
Levantou-se. Molhou o rosto e passou uma nova camada de
espuma. Continuou a escanhoar a face direita.
Rodolfo e Luís hoje estão fodidos comigo. Ninguém vai bolar
uma mais genial do que esta.
Esticou o queixo e começou a escanhoar o pescoço.
É precisa temperar bem o molho. Lembrar umas piadas de
1960. O puto não vai poder nem dizer que é velha. Usava contar
piada em 60. Aquela do sujeito que foi trepar no parque, aí quando a
mulher já está deitada atrás da moita e o cara de pau pra fora chega
o guarda e prende. O cara protesta: o que foi que eu fiz? O guarda:
está trepando aí. O cara: mas trepando com quem? O guarda aponta:
e essa mulher aí? O cara: mulher? Porra, seu guarda, se o senhor
não me avisa eu mijava nela.
Riu. Parou de fazer a barba. Abaixou-se e anotou: “Piada —
mijava nela”.
Levantou-se. Começou a escanhoar o lado esquerdo. Parou e
aproximou o rosto do espelho, entortando a boca e o queixo para o
lado direito.
Puta merda, será uma espinha? Que desgraça, meu Deus. Eu
hoje queria estar perfeito.
Espremeu.
Espinha não. Cabelo encravado.
Examinou o estrago.
‘Graças a Deus, um furinho à toa. Não vão poder dizer que é espinha,
punheta, essas brincadeiras bobas.
Recomeçou a barbear-se.
A gente tem sempre de se defender nessa turma, todo mundo a
fim de te foder. Mas hoje eu estou na minha. Antes de falar em jogo
da verdade é bom lançar outro jogo qualquer. Gente importante que
morreu, por exemplo, Camus, Kennedy, De Gaulle, Hemingway. Do
caralho. Pode-se fazer dois times ou mais e ver quem faz mais
pontos. Ou então assim: um grupo diz um nome da política brasileira
na década, alguém do outro tem de dizer qual foi o papel dele.
Brochado da Rocha. Auro Moura Andrade. Tancredo Neves. Ranieri
Mazzilli. Márcio Moreira Alves. Abelardo Jurema. vou engolir todo
mundo.
Sorriu. Parou de escanhoar. Abaixou-se e anotou: “Jogo da
memória — nomes da política bras.” Levantou-se. Começou a
escanhoar sobre os lábios.
Depois, é só ir com jeitinho nessa de recordar e propor o jogo da
verdade, no espírito dos anos 60. Perfeito. E Rodolfo não vai perder a
oportunidade, é claro, quando a Mônica estiver no meio.
Sorriu. Ficou sério.
E se Mônica disser que não, mesmo por brincadeira?
Parou de fazer a barba, aparelho suspenso no ar.
Ela pode não querer falar na frente dos outros. Será?
Ficou mais sério: apreensivo.
Será? Não, Mônica não é disso.
Relaxou.
Leva essas coisas a sério. Acredita em falar a verdade. Tem
perigo não.
Sorriu. Terminou a barba. Passou a mão pelo rosto.
Ótimo.
Olhou-se no espelho com atenção.
Estou muito bem. O melhor da festa.
Riu alto. Conferiu o furinho do cabelo encravado. Assentou as
sombracelhas. Alisou as faces com as duas mãos.
Perfeito. Agora um banhozinho.
Ligou o chuveiro em água morna. Tirou os chinelos. A cueca.
Deixar aqui para Maria botar na roupa suja. Ela gosta.
Tirou o relógio. Experimentou a temperatura da água. Entrou no
banho. Massageou o rosto sob uma ducha prolongada.
com que roupa que eu vou? O terno cinza-grafite, claro: fico
muito bem com ele.
Ensaboava-se.
Camisa azul clarinha, de cambraia. Gravata?: aquela Pierre
Cardin de desenhos cor de abóbora. Meia preta, sapatos pretos. Se
Maria não engraxou meus sapatos eu mato essa negra amanhã.
Abotoadura... a de couro preto, acho que fica bom. Perfeito.
Lavou amorosamente o sexo.
— É disso que ela gosta, aquela semvergonha.
Riu. Friccionou o pênis até a ereção.
— Que que está querendo, seu semvergonha. Não tem pra você
hoje não. Vai deitar, anda. Anda. Anda.
Dava tapinhas no pênis. Riu.
— Semvergonha. Enxaguou-o com cuidado. Sorriu.
— Eu sou é fogo. Ensaboou as pernas.
Preciso cortar as unhas dos pés. Ah, amanhã. Ninguém está
vendo.
Enxaguou-se. Enxugou-se. Saiu do boxe. Olhou-se no espelho.
Perfeito. Estou com uma cor ótima.
Olhou os dentes.
Amarelos. Isto é cigarro.
Escovou-se com dentifrício. Bochechou. Olhou-os no espelhos.
Cigarro.
Olhou o rosto.
Perfeito. — Bonitão.
Riu. Apanhou o relógio, colocou-o no pulso. Apanhou o bloco de
anotações e a caneta. Calçou os chinelos. Saiu do banheiro. Entrou
no quarto.
Só quero ver a cara de Mônica e Rodolfo.
Escreveu no bloco: “Jogo da verdade”. Penteou os cabelos.
Passou loção para após a barba. Tirou o terno cinza-grafite do
armário.
vou ficar o máximo.
Vestiu a calça. Passou a carteira do bolso da outra calça para a
que vestia. Calçou as meias. Apanhou os sapatos.
Ah, engraxou. Perfeito.
O telefone tocou.
— Que merda. Atendeu.
— Alô? É ele. Que Carlos? Sei, sei. Que que há? Preso por
quê? Amigo dele nada. Olha, quer saber de uma coisa?: foi até bom,
para a gente ficar livre dele um pouco. Esse cara torra o saco. Ah,
tenho tempo para mexer com isso não. Estou muito ocupado agora,
sabe? Amanhã eu vejo isso. Amanhã, meu amigo, deixa isso para
amanhã. Boa noite, viu?.
Desligou.
Ah, esses comunistas. — Fazem a bagunça deles e depois vêm
encher o saco. Que se fodam.
Sentou-se na cama. Calçou os sapatos.
A negra caprichou.
Passou uma água de colônia no peito, nos ombros, nos braços.
Vestiu a camisa. Colocou as abotoaduras. Verificou o efeito.
Perfeito.
Colocou a gravata. Olhou o relógio.
Nove e trinta e cinco.
Vestiu o paletó. Apanhou as chaves. Olhou-se de corpo inteiro
no espelho do armário.
— Splendid, George.
Penteou os cabelos novamente. Virou-se de um lado e do outro
frente ao espelho. Tirou uma poeirinha do terno com a escova.
Olhou-se. Sorriu.
— O melhor da festa.
Arrancou a folha do bloco de anotações.
— Minhas armas.
Colocou a folha no bolso do paletó. Olhou as roupas espalhadas
no quarto.
Que bagunça.
Sapatos, meias, paletó, camisa, vassoura, chinelos, calça.
Ah, Maria arruma. Ninguém está vendo.
Despediu-se do espelho. Saiu do quarto. Parou à porta da sala.
Segurou a maçaneta.
Esqueci alguma coisa?
Apalpou os bolsos. Olhou o apartamento.
Minhas coisas. Minha paz.
Ficou sério, um pouco alarmado na hora de abandonar seu
refúgio.
Deus me proteja me defenda me guarde.
Abriu a porta e saiu.
Logo depois, o olhar maravilhado do porteiro seguia Jorge
saindo da garagem, mais uma vez de maneira perfeita, à frente
daquele agradável aroma de colônia.
LUTA DE CLASSES

Ataíde saiu de casa às sete horas da manhã e preocupava-se


com a demora do ônibus.
Fernando saiu às onze e meia, chateado da vida, porque tinha
um título a pagar.
Ataíde tinha dado um bom beijo em sua mulher, Cremilda de
Tal, e prometido que viria direto para casa.
Fernando não beijava sempre sua mulher, era meio distraído.
Ataíde apurava uns três salários mínimos, mas achava que as
coisas iam melhorar.
Fernando dormia até às dez horas e estava ameaçando o
patrão: ou aumento ou então ciao.
Ataíde, de vez em quando, tinha uma dor de dente horrível.
Nesses dias era melhor não chegar perto dele.
Fernando costumava pedir à sua mulher que falasse menos.
Sem nenhuma esperança, sem nenhum resultado.
Ataíde não tinha filhos, mas estava providenciando.
Fernando tinha dois filhos, apesar de tomar todas as
providências.
Ataíde era mais novo.
Fernando tinha seus trinta e poucos.
Ataíde, de vez em quando, metia lá um sambinha.
Fernando, sem futebol no domingo, era uma pessoa intratável
na segunda-feira.
Ataíde procurava sua ótima Cremilda quatro, cinco vezes por
semana.
Fernando era semanal e sabatino.
Ataíde — quantas vezes, que nisso ele era bom — não levava
desaforo para casa, apesar de sua Cremilda recomendar sempre que
um homem não pode ter orgulho assim, ainda mais sendo pobre, que
um dia ele precisaria pedir e ia ser muito difícil. Ele respondia: eu vou
tratar do seu caso mas não é hoje não.
Fernando cedeu muitas vezes.
Ataíde era moreno meio escuro, de cabelo crespo.
Fernando já estava ficando com um pouco de barriga.
Ataíde, às onze e tanto, começava um joguinho de bola de meia,
para ajudar a digestão da carne de segunda, que estava sempre um
pouco dura, apesar dos cuidados da sua Cremilda.
Fernando resmungava dentro do Volks: hoje eu vou encher a
cara.
Ataíde considerava-se um artista: afastava-se um pouco da
parede que estava pintando, um pé atrás, a cabeça meio torta, mão
direita na cintura, apreciava o trabalho e dizia: eu sou fogo na
caiação.
Fernando, cada vez que Inês trazia um cheque de um freguês
para visar, tentava uma aproximação, porque Inês tinha pernas de
miss. Gostava muito de mulheres provisórias: comerciárias,
bancárias, secretárias.
Ataíde tinha planos de levar sua Cremilda ao cine Palladium no
próximo domingo para ver o filme de James Bond, se sobrasse algum
dinheiro.
Fernando leu tempo instável com chuvas no boletim
metereológico e calculou, contrariado, que isso ia estragar o futebol
no domingo.
Ataíde parou de trabalhar às seis horas da tarde e foi comprar
uma cocada preta para a sua Cremilda na praça da Estação.
Aproveitou para tomar umas duas cachacinhas.
Fernando saiu às cinco e meia do escritório, e estava bebendo
desde as vinte para as seis, ele que era bom para essas coisas,
quando implicou com um mulato que esbarrou no seu copo depois de
comprar uma cocada preta no balcão-, vê se toma cuidado, ô veado.
Ataíde não teve dúvidas e meteu o braço.
PREOCUPAÇÕES, 1968.

A) DE UMA SENHORA MÃE DE UM RAPAZ

Não o deixeis cair em tentação e livrai-o do mal amém.


Todo dia: vou pro DCE. Todo dia: não venho jantar, tem reunião
no DCE. Tem reunião no DA. O que será esse DA, meus Deus,
esqueci de perguntar ao Carlinhos. Alguma coisa eles estão
aprontando, com essas moças de minissaia.
Mãe não tem férias.
Ai, meu Deus, não o deixeis cair em tentação, mexer com
mulheres da rua nem com a filha de seu Nonato. É melhor ele casar
com essa moça da escola, pernas tão de fora, tão boazinha, parece
que não tem mãe para olhar, tão tarde na rua, melhor com ela.
Desde Ponte Nova seu Nonato avisou: não quero seu filho
andando com Cristina. Deus um dia há de castigar seu Nonato e eu
vou dizer: mande sua filha parar de procurar meu filho, aquela
semvergonha. Eu sabia que Carlinhos chorava de noite no quarto e
não podia dizer que sabia, eles ficam com raiva é da gente. Deus há
de castigar seu Nonato.
Uma filha moça seria mais fácil de acompanhar. Como é que eu
posso, viúva?
Nunca se sabe como eles voltarão para casa, podem apanhar,
levar um tiro, quebrar uma perna na correria dessas passetas. Não se
sabe nem se eles voltarão para casa. Nem posso pensar: preso,
morto. Livrai-o de todo o mal. Amém.
Quem sabe o que deu nesses meninos. Uma coisa tão
perigosa, sem quê nem pra quê. Cada vez que ele sai de casa é essa
aflição que me dá. Essas bombas de gás decerto que machucam,
não têm só gás. Na correria leva uma paulada na cabeça ou um
cavalo passa por cima, deus me livre, livre Carlinhos. Não falo mais
nada, não adianta, eles não aceitam a gente. Tratam como se
estivessem muito ocupados com alguma coisa, sem tempo. Eles não
têm tempo para a gente. O que será que estão fazendo de tão
importante?
Olha essa roupa, Carlinhos — eu digo. Umas calças meio
rasgadas, desbotadas. Se não fosse pobre, não tinha importância.
Pobre não pode andar rasgado. Agora nem peço mais para ele cortar
o cabelo, desisti. Fazer a barba. A senhora está por fora, mamãe.
Estou mesmo.
Não sei se ele tem escovado os dentes antes de deitar. Chega
tão tarde. Uns barulhos no banheiro, é ele se lavando, vai ver andou
com alguma mulher, não o deixeis cair em tentação.
Não esquecer de escovar os dentes antes de deitar.
Levantar e pisar no chão frio acaba dando reumatismo. Não
adianta colocar chinelas debaixo da cama que ele vem tomar café de
pé no chão.
A pior coisa que tem para os olhos é forçar a vista, ler com
pouca luz. Eu canso de avisar.
Comer sem mastigar faz mal.
Sair do banho quente e pegar corrente de ar faz um mal.
Picolé com garganta irritada, onde é que já se viu.
Fumar dá câncer, os jornais vivem avisando.
Não atravessar a rua fora da faixa.
Respeitar os mais velhos.
Não pisar na grama.
Não fumar no elevador.
Honrar pai e mãe.
Tomara que venha logo o dia em que alguém acabe com essa
confusão de estudantes para a mãe dormir tranqüila, com o filho em
casa.
Cabelo comprido e minissaia. Se tivéssemos proibido, se todas
as mães do mundo tivessem proibido essa liberdade quando
começou, protegido os corpos de nossos filhos, se nós tivéssemos
proibido que eles se juntassem para aquelas danças de uns anos
atrás eles não estariam assim, loucos, se nós todas tivéssemos
proibido a pílula, proibido que se falasse em pílula nos jornais, meu
Deus, se eu tivesse uma filha eu acho que morria de preocupação,
ficava doida, ter de olhar dentro da bolsa, ler as cartas escondida,
ouvir as conversas, proibir certas leituras, isso sim, se os jornais não
pudessem falar de sexo, se tivéssemos proibido que tirassem a roupa
nos teatros, nos cinemas, nas praias, esses hippies semvergonha
fumando maconha e fazendo sem-vergonhices pelados na frente dos
fotógrafos, isso deveria ser proibido publicar, é nossa obrigação
defender os olhos dos nossos filhos contra essas liberdades, a gente
deveria ter obrigado todos eles a cortar o cabelo, agora é tarde, estão
aí pelas ruas, correndo e gritando, brincando com fogo, fumando
maconha, Carlinhos não, Deus me livre, até se ofendeu quando eu
perguntei: “tá por fora, mãe, a minha é outra”, outra?, que linguagem
é essa?, você quer o que na vida?, “tudo”, disse ele, “nós queremos
tudo”, bobos, como se o poder andasse na rua, poder jovem, eles
mesmos mandando neles e nós velhos de fora, nada de leis, nada de
moral, moças mães-solteiras, cabeludos sem trabalho, música de
cabeludo insuportável, indecências nas revistas, é isso que eles
querem, e isso precisa ter um paradeiro, os presidentes se juntarem,
na França, aqui, Estados Unidos, México, todo lugar, e dar um jeito
de acabar com isso, porque mãe não pode agüentar tanta
preocupação, com pouco dinheiro, pensão de viúva e o pouco que
entra com a datilografia, pagando estudo para um filho que quer
mandar na gente, acabar com a gente, é isso mesmo, e nós temos os
presidentes é para isso, para tomar conta de nós, e eles estão
deixando fazerem isso, na França já se vai à praia sem sutiã, já
tomaram a escola dos professores e agora quem vai dar aula, quem
vai ensinar a esses meninos sem professores, se eles acham que
está tudo nos livros e que é só copiar, aí é que se enganam, eles são
o que nós somos, eles têm dentes porque aprenderam conosco a
escovar após as refeições, estão na faculdade porque nós ensinamos
as quatro operações, honrar pai e mãe, respeitar os direitos dos
outros, e agora eles querem fazer de conta que isso não presta, não
presta por quê?, é preciso alguém compreender nossa aflição e nos
salvar assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido e não
nos deixeis cair em tentação e livrai-nos do mal amém. O que seu
Nonato fez vai ter de pagar. Carlinhos ficou assim por causa da
Cristina, antes ia todo dia lá, eu sabia que era lá que ele estava de
noite, de dia, não tinha nada de vou pro DCE, nada de letra de
música, nada de passeata.
Agora até os padres estão na bagunça, não adianta pedir nada
a eles. Em vez de acalmar esses meninos, botam mais lenha na
fogueira. E as mães ficam em casa, nessa aflição, só Deus para
ajudar.
Mãe não tem férias.
Não se pode falar desse assunto com Carlinhos. A gente quer
fazer um bem, vira pecado mortal.
Cuidado com as más companhias.
Só os ricos podem aceitar quando alguém oferece uma coisa na
rua. Se uma pessoa como a gente aceita vão logo pensar que é
porque não tem nada para comer em casa.
Não fica dando conversa para qualquer pessoa na rua.
Eu li no jornal: tem gente aproveitando e dando papéis para as
pessoas assinarem na rua. Diz que não se deve assinar nada na rua.
Pastel na rua só de queijo ou palmito, nunca se sabe que carne
eles põem.
Cuidado com geléia da rua. Minha mãe sempre falou que os
leprosos fazem geléia e que a mãe dela encontrou um pedaço de
dedo um dia dentro de uma.
Poesia é bom para ler, mas escrever — já tem tanta. Quem
quer, quem gosta, lê as que já estão escritas. Eu gosto. Se uma
pessoa passasse a vida inteira lendo, não dava para ler nem as
poesias que já estão escritas.
É um perigo beber qualquer coisa em copo de botequim, eles
não esterilizam os copos.
Tanta coisa perigosa nas ruas, esses meninos tão confiantes.
Aonde vai levar toda essa confusão? Aonde é que isso vai
parar? O que eles querem? É preciso alguém compreender a aflição
das mães e parar com isso, parar de uma vez. Fazer nossos filhos
voltarem para as namoradas, para as mães, e aí a gente volta a ter
certeza das coisas, certeza de que eles estão quentinhos,
alimentados, e livrai-os senhor Deus de todo mal amém.

B) DE UM DELEGADO DE POLÍCIA SOCIAL

Ouço, a cada dia, crescerem as preces, os lamentos. Sei que


nos bairros da periferia grandes automóveis com choferes bem
vestidos descarregam senhoras carregadas de jóias nas portas de
macumbeiros e jogadores de búzios. Já há quem acredite mais nos
horóscopos do que nos médicos e nos corretores. O dia de lemanjá já
se transforma num rival do Ano Novo em cidades com o Rio de
Janeiro e Bahia. O Raciocínio é novamente ameaçado pelo Milagre.
Aumenta a venda de baralhos mas não surgem novos jogadores de
pôquer e há razões para suspeitar que a leitura das cartas voltou a
ser moda nas festinhas da classe média.
O povo não pode ser abandonado nesse momento à sua própria
perda. Muita coisa feita para tirá-lo daquele mundo mágico em que
vivia. Seus governantes não são mais escolhidos pela beleza, pelo
carisma, por um bigode, pelo sorriso de avô, por ter mãos pequenas.
O ensino da aritmética já não se faz pelo processo de adivinhação e
de tabuada, e os professores tiveram de aprender, a custo, a Teoria
dos Conjuntos. No estudo da Literatura, as palavras vão perdendo
sua antiga arrogância bárbara e nós estudamos a limpidez da sílaba,
da letra, do espaço branco. O pé-de-meia foi desmoralizado pela
Bolsa de Valores. A Igreja desmistificou alguns dos chamados santos,
o que leva o povo a desconfiar de toda a impalpável hierarquia. O
agricultor já acredita mais nos sais minerais do que na avemaria. Nós
vamos substituir o jogo-do-bicho pela Loteria Esportiva, controlada
por computadores. Isso acabará com a superstição e a interpretação
de sonhos, substituindo-os pelo grande prêmio computadorizado
semanal.
Depois de todo esse trabalho, não se pode permitir que
retornem as preces místicas. O progresso não pode ser entregue
novamente ao improviso dos talentos. Conseguimos organizar um
plano científico e criar uma elite de técnicos para conduzir a nação na
linha íngreme dos gráficos de produção. A nova elite que substituiu os
barões do gado, do café, os pelegos, os corruptos, os fanáticos, os
políticos, não pode ter seu trabalho prejudicado por essas crescentes
ilusões. Eu não posso permitir que isso aconteça.
Proibi a entrada de ciganos. Os filmes de terror são controlados.
Conversas ao pé do fogo são consideradas suspeitas. Os
espetáculos dos grandes mágicos dos circos são precedidos de uma
advertência ao público de que a apresentação consta de uma série de
truques, puro ilusionismo, tudo explicável. E o respeitável público tem
direito a uma explicação, se desejar. É o fim do grande segredo dos
mágicos, protestaram, ingenuamente não compreendendo que era
exatamente isso o que eu pretendia. O povo, agradecido, faz filas
após os espetáculos, buscando as explicações. O povo, ficou
demonstrado, é ávido de clareza, fascinado pela verdade, e está
ansioso para trocar sua ignorância pelo conhecimento. Nos circos, o
embuste foi substituído pela técnica, pelo fazer melhor. Em cada
ação, deve um príncipe trabalhar no sentido de conquistar fama de
grande homem.
Ninguém pode me acusar de parcial, ou venal, ou
desorganizado, ou cafajeste. Procuro tratar a todos com a mesma
justiça e força. Os homens hesitam menos em ofender aos que se
fazem amar do que aos que se fazem temer, ensina o mestre dos
príncipes. Eu não permito o suborno. Não há um só policial desonesto
sob as minhas ordens. Exijo unhas cortadas. Proibi alfinetes de
gravata. Há punições para o que coçar o sexo em público, tirar cera
do nariz ou usar brilhantina. O veto às manifestações públicas vale
igualmente para todos os fanáticos: cristãos, marxistas, umbandistas,
milagreiros, políticos, budistas, maconheiros. Fui acusado de
prepotente, nunca de injusto ou parcial. É meu dever velar por todos e
a todos proteger por igual contra si mesmos. Um príncipe sábio,
amando os homens como eles querem e sendo temido por eles como
ele quer, deve somente evitar ser odiado.
Do próprio seio do meu povo sinto elevar-se o apelo: protege-
nos, faz algo por nós para que termine essa nova angústia, esse novo
fanatismo, a loucura mística dos jovens. Estávamos tão confortáveis
com a Nova Ordem, tão seguros no nosso trabalho, certos da queda
da inflação, da alta da Bolsa, da vitória na Copa, do aumento da
renda per capita, do desenvolvimento do Nordeste — e vem essa
grande conspiração de fanáticos perturbar nossas certezas. Já não
podemos acordar às seis horas da manhã com a certeza de que
dormiremos após a novela das dez. Já não podemos ver televisão
sem que apareça um dos nossos filhos correndo nas ruas com
cartazes obscuros nas mãos, ou com olhares sampacus tocando
músicas lisérgicas. Não podemos apelar para a Igreja porque a voz
dos padres já não os alcança e são os padres que procuram seguir o
novo fanatismo, o novo bezerro de ouro. Não podemos apelar para as
leis, porque não há nada nas leis que nos proteja da nova ameaça.
Só o poder, só a autoridade pode nos salvar, apela meu povo. Ajuda-
nos, príncipe.
As conseqüências são claras: depois das concentrações de
hippies, das passeatas de estudantes e de padres, dos batuques nas
praias nas noites de lua cheia, o barbarismo crescerá em atos de
desobediência aberta. A falta de objetividade das discussões estéreis
ocupará o tempo dos executivos. Políticos adoradores de mitos
modernos se acharão no direito de questionar a autoridade no
Congresso, como já se vê fazer. Atos de falso heroísmo, como essas
explosões de bombas, se tornarão comuns para ocupar a ociosidade
dos novos fanáticos. E nas artes os mimetistas transporão esses atos
desordenados procurando dar-lhes um sistema, revivendo assim as
mortas ideologias. Os jornais se aproveitarão da fraqueza para exigir
a volta da velha democracia do Direito e para revolver a lama já seca
da corrupção. Em breve surgiriam líderes — e o caos. O príncipe
deve viver sempre com o povo e assim não precisará dos poderosos,
a quem poderá dar ou tirar influência à sua vontade. Mas não pode
nunca fiar-se nos líderes que saem do povo. O próprio povo os teme
porque sabe que com eles cavalga a perdição e a morte. Nem pode o
príncipe confiar nos juizes e na lei e entregar-lhes os assuntos de seu
povo, porque os cidadãos se acostumariam a obedecer aos
magistrados e, numa emergência, como nas questões de segurança,
não obedeceriam ao príncipe.
O meu povo tem razão nas suas queixas. Um medo novo ronda
os lares onde ainda não se acredita que o homem tenha realmente
contornado a Lua, onde não há médicos para atender todos os
partos, onde o chá de quebra-pedra é o melhor remédio para os rins,
onde os banhos de arruda tiram quebranto, onde o comigo-ninguém-
pode é sentinela na porta principal. Quem irá defendê-lo senão a
autoridade a quem foi confiado o poder de defendê-lo? Não posso
fugir dessa responsabilidade. Gostaria, mas não posso.
Hoje eu tenho de decidir. É o meu próprio povo que me pede.
Nós queremos dormir sem essas explosões na madrugada. Nós
queremos nossos filhos doutores sem esse estágio no ódio contra
nós. Nós queremos políticos preocupados com a nação e não com o
seu quarteirão. E a guerra o que exigem, com todas as suas
crueldades. Gostaria que me poupassem, eu sou um intelectual. Mas
não posso. E é hoje. Se ao menos se pudesse dar tempo. Meus
auxiliares vêm me dizer que já não podem agir sem poderes
especiais. Os escrivães se queixam de que os detidos sorriem e
apresentam raciocínios formais, alegando direitos, imunidades.
Investigadores tomam pedradas nas ruas. Aparecem macumbas nas
portas dos subdelegados nas noites das sextas-feiras. A cruz, um
signo permitido, é apresentada como um amuleto aos agentes que
batem nas portas dos conventos suspeitos. Hoje, eu devo dar-lhes os
meios de acabar com a desordem e o futuro me chamará de cruel.
Mas eu aprendi: não deve o príncipe importar-se com a pecha de
cruel se é para manter a união e a ordem; pelo contrário, ele é mais
piedoso do que aqueles que deixam acontecer desordens,
assassínios e rapinagem. Porque essas ações prejudicam todo o
povo, enquanto as execuções que provêm do príncipe ofendem
apenas um indivíduo.
Por que eu? Eu sou um intelectual. Leio Cícero no original. Leio
tratados e gramática com o prazer com que colegas menos rigorosos
lêem histórias de detetives. Fiz um estudo prospectivo do atraso
provocado nas ciências pela pressão do idealismo cristão sobre o
racionalismo grego. Por que eu, neste século? Por que não eu no
princípio, príncipe?
ANTES DA FESTA

(Anotação do escritor:
Escrever o quê nesta terra de merda? Tudo que eu começo a
escrever me parece um erro, como se estivesse fugindo do assunto.
Que assunto? Merda! E quem disse que isso é responsabilidade
minha? Por que não escrever um romance policial ou balé-revista
infantil?)

Redação do Correio de Minas Gerais


20h07m

Samuel ouve o barulho dos saltos de Andréa subindo a escada


e não consegue escrever mais nada. Repete-se a mesma cena que
viu nos últimos oito meses: ela chega olhando direto para a mesa do
secretário, talvez porque fosse mais seguro olhar para lá, dirige-se à
mesa abrindo a bolsa, tira dela suas quatro laudas datilografadas,
falam alguma coisa que não se consegue ouvir, riem. As pessoas da
redação aproveitam para olhar suas pernas e desejá-la um pouco.
(Todos sabem: depois ela se voltaria, sem olhar para ninguém,
cumprimentaria apenas quem estivesse no seu caminho, desceria as
escadas.) Ela se volta e, novidade: quando levanta os olhos para
deslumbrá-la-com uma cara até bonita, ela já está de costas, indo
embora.

Bar e Restaurante Lua Nova


19 horas

— Que tem uma coisa com a outra? Faz as duas coisas.


— O problema é tempo. Escritor que não faz full-time dá nisso
que está aí.
— Então decide, porra, uma coisa ou outra.
— Aí é que está o problema, entende? Chega Flávio:
— Deixa um pouco para o governo resolver.
Esquina da Livraria Rex
18 horas

— Você vai gostar da turma, Samuel. Muito artista, escritor,


mulheres ótimas, bichas, gente da esquerda, da direita. Olha, vai ser
uma festa do caralho.

(Anotação do escritor:
Todos os contos devem ter uma data, explícita ou implícita. O
ano da festa é 1970. O Roberto, que dá a festa, é de 41. Faz 29 anos
e é o mais velho dos novos artistas da cidade, que têm entre 22 e 26
anos em 1970.)

Restaurante Alpino
21h10m

A mulher, belíssima:
— Você gosta de mim?
O homem, bonito, meio feio:
— Lógico. Você sabe disso.
— Ah, você parece que não entende. Ou faz que não entende.
— É. São os recursos de um analista nada ortodoxo que tem
problemas com isso.
— Assim você está levando muita vantagem.
— Analista sempre leva vantagem.
Silêncio. Pensamentos, provavelmente. Ela:
— Você não sente tédio?
— Não, por quê? Aqui está tão bom.
— Não é isso não. É: nem às vezes?
— Não. Eu me ajeito.
— E quando tudo dá errado com a gente?
— Paciência.
— Tem gente que é feliz, não tem?
— Na minha profissão é difícil encontrar. Mas tem. E você logo
pensa: por que tanta gente é feliz e eu sou tão infeliz etc etc? Não é?
— Eu às vezes fico pensando.
— O quê?
— Que você gosta de mim.
— Bobagem sua.
— Gosta não?
— Não.
— Acho que estou sofrendo de carinho recolhido.
Ele sorriu meio embaraçado porque ela era belíssima.
— Vamos apanhar o Carlos? Está na hora da festa.

Redação do Correio de Minas Gerais


20h35m

Samuel entrega duas notícias.


— Só isso?
Começa a explicar o fracasso das outras matérias e o secretário
tapa os ouvidos com os dois dedos indicadores, olha-o como se fosse
Samuel o insuportável. O telefone toca, o secretário não atende, o
telefone tocando, o secretário não atende. Samuel tira o fone do
gancho. O secretário ri, atende, anota, desliga e: — Você, que só deu
focada hoje, vai ver esse negócio de estudante preso. Um tal de
Carlos, da Ciências Econômicas. Vai primeiro à casa dele, fala com a
mulher dele. Está aí o endereço. Depois apura o resto.

Redação do Correio de Minas Gerais


20h07m

Andréa entregou a crônica ao secretário, virou-se e enfrentou a


sala. Os repórteres e redatores continuavam trabalhando,
aparentemente desinteressados dela. Desde a sua volta a Belo
Horizonte, evitara o grupo dos jornalistas. Máguas passadas.
Estranhamente, parecia que o grupo antecipara-se, recusando-a;
sutilmente, fora tentada a fazer-se novamente aceita; e o grupo
vencia-a, fechando-se. Nada era deliberado. Mistério mineiro.
O que Andréa tentou dizer com aquele olhar foi que estava
pouco ligando para a recusa deles: ia casar com Roberto. Tinham
combinado: esta noite, na festa de aniversário dele, o casamento
seria anunciado. Sentia-se premiada quando saiu da redação, até
sorrindo um pouco. Uma pequena vitória, e eles nem sabiam.

(Anotação do escritor
Teatro.
Um homem sozinho. Gravadores, vozes, slides, cinema, discos,
jornais, televisão. Ele contracena com os meios de comunicação. É
ele quem constrói prédios, joga na bolsa, passa fome na rua, protesta
contra isso-que-está-aí, apoia isso-que-está-aí, denuncia os amigos,
faz arte, detesta arte, governa, é um simples funcionário de cartório,
ama escondido estrelas de cinema e de televisão. É um cara muito
pequeno (papel para um anão?) em comparação com o material em
cena. Obrigado a optar a todo instante, a partir dos dados dos meios
de comunicação, mas as informações não são nada seguras, são até
contraditórias.
Escrever até 30.1.69 e mandar para o concurso do Serviço
Nacional do Teatro.)

Bar e Restaurante Lua Nova


19h45m

— É sério, olha aqui: com um tema desses eu posso fazer um


corte crítico em trinta anos de vida brasileira.
— Corte crítico é muito bom, hem?
— Olha aqui: um cara acorda trinta anos depois, quer dizer,
passou trinta anos com amnésia, vivendo como se fosse outra
pessoa.
Quando ele acorda, volta a ser o que era trinta anos atrás. E o
romance é toda essa surpresa dele com os acontecimentos, está me
entendendo? É um negócio meio simbólico. Esse homem representa
todo o homem brasileiro. Amnésia é a alienação, porra. Eu já tenho
na cabeça até os capítulos. Os Mortos. O cara se espanta quando
dizem que Getúlio morreu. Góis Monteiro, Osvaldo Aranha, Heleno de
Freitas, José Lins do Rego. bom, aí eu analiso, dou um sentido a
essas mortes dentro do romance. Outro capítulo. A Gíria. O cara
quase não entende o que se fala hoje, de vez em quando tira uma
dessas: sossega leão, vou navegando, firme como o Pão de Açúcar,
o que é que há com o seu peru, umas coisas assim. Depois tem as
novas invenções — a televisão, já imaginou o espanto do cara com a
televisão? — o progresso tecnológico, os novos escritores, os golpes
militares. É um negócio bem de pé no chão, entende? Acho que dá
um negócio do rabo, assim na linha do Huxley.
— Por que você não escreve?

Rua Grão Mogol, 174, apartamento 11


20h52m

Samuel ouve a mulher grávida:


— Reviraram a casa toda, procurando não sei o quê. Nem jantar
ele veio, aposto que está com fome até agora. Eu não posso sair
daqui porque tenho essa menina para olhar — ela está doentinha
hoje, não sei o que é — e também não posso andar muito com essa
barriga, está para nascer de uma hora para outra. Não sei o que
Carlos tem de se meter nessas confusões. É como eu estou dizendo:
ele nunca fez nada, mas é muito esquentado, sabe? Mania de
discutir, de tomar as dores dos outros.
— Como é que a senhora soube da prisão?
— Pois não estou falando que veio polícia aqui e revirou a casa
toda? Essa gente não explica nada direito, diz que ele está
incomunicável. Foi alguma coisa lá na Estação, história de uns
retirantes que chegaram aí e deu uma confusão com a polícia. Ele
trabalha na Secretaria do Trabalho, sabe?, esse doutor Otávio Ernâni
é que arranjou para ele. Ele foi lá ver esse negócio dos retirantes;
telefonei para a Secretaria e me falaram isso. Aí, não sei por quê,
prenderam ele. O senhor podia até fazer o favor de saber o que é e
telefonar para o doutor Otávio Ernâni, se o senhor puder, para mim.

Bar e Restaurante Lua Nova


20h05m

— When you see beauty, look for a long time — diz o velho
versejador olhando o crítico de cinema lá na mesa dos jovens
intelectuais, onde acabou de sentar-se Esdras, o Hermético,
intelectual da geração intermediária. Os olhos de Esdras, duplicados
atrás de lentes muito grossas, parecem os de um homem apavorado.
Ele sempre ganhava as discussões, por causa dos olhos e de
algumas coisas que tinha guardadas.
(Eis um resumo do que falou naquela noite, com os moços:
“Vocês já repararam que ninguém mais canta no banheiro?
Conhece alguém que cante no banheiro? Conhece? Eu já procurei:
não existe. Não se canta mais em banheiro no Brasil.
“Literatura não é Economia. Vocês não podem estabelecer
prioridades nacionais de investimento literário, fazer um plano
qüinqüenal e determinar o que deve ser escrito nos próximos cinco
anos.
“Discutir a responsabilidade social do escritor é o mesmo que
discutir a responsabilidade social do cientista. No fim, a bomba
explode do mesmo jeito.
“Os nossos formalistas têm como objetivo literário a escrita
ideogramática chinesa e dizem que história, ideologia e semântica
não têm importância para a Literatura. Agora eu pergunto: qual é o
objetivo literário dos escritores chineses? E mais: qual seria o objetivo
dos formalistas chineses?
“Em Pirapora, um chofer de caminhão descobriu que sua mulher
estava enganando-o com o mágico do circo. Disse que ia viajar, coisa
natural em chofer de caminhão, e voltou de madrugada para
surpreender os dois, nus, na cama, acordando aos gritos,
assustadíssimos. Desvairado, porque honra se lava com sangue,
apanhou o revólver do mágico que estava na cadeira e atirou. Do
cano do revólver saíram bandeirolas coloridas. O marido sentou-se no
chão e chorou como uma criança.
“Cuidado com os tiros que vocês andam dando por aí.
Lembrem-se das bandeirolas coloridas.
”A vida literária não cria amigos, mas cúmplices. Isso é do
Drummond.
“bom, eu preciso ir andando.”)

(Anotação do escritor:
Penso na felicidade como uma satisfação dinâmica das
necessidades de uma pessoa. É uma tarefa. É realizando o trabalho
de amar que a pessoa ama e nesse movimento é feliz. Amor,
dinheiro, ideologia, isolamento, religião — o que o cara quiser
batalhar. E eu não tenho a menor chance, enquanto estiver
bloqueado por contradições.)

Farmácia e Drogaria Nossa Senhora do Carmo, rua Grão Mogol


21h03m

Samuel telefona para o doutor Otávio Ernâni:


— A mulher diz que ele não fez nada,
— Quem prendeu?
— Acho que foi o DOPS, ela não sabe direito. A dona, esqueci o
nome dela, ela é que me pediu para avisar ao senhor. Diz que o
senhor pode falar com os homens que ele não tem nada de
subversivo.
— bom, eu, pelo menos, nunca soube de nada.
— Ela está esperando menino, diz que não tem dinheiro
nenhum em casa, como é que vai arranjar. Uma confusão.
— Isso não. Pode falar com ela que não precisa se preocupar.
Nisso eu dou um jeito.
— E a prisão dele? Será que o senhor não pode tomar uma
providência?
— O que eu posso fazer? Isso é coisa da Segurança. Fale para
a dona lá que” ela pode ficar descansada: hospital a gente dá um
jeito.
— Ele foi preso como funcionário da Secretaria. É negócio de
uns retirantes que chegaram à Estação.
— O quê!
— O senhor não está sabendo?
— Não. Que aconteceu?
— Parece que houve uma briga dos retirantes com a polícia e
Carlos foi preso. O que eu sei é isso.
— Escuta: desliga aí que eu tenho de encontrar o doutor Otávio.
— Mas não é ele quem está falando?
— Não, desculpe. É um assessor. O senhor vai me desculpar
mas isso é normal. Estou aqui por causa de outra coisa, serviço
atrasado, e nem podia imaginar que. Alô?
— Alô.
— Vai me desculpar, hem? Sabe como é. É normal. Escuta: vou
quebrar o seu galho. O doutor Otávio vai hoje a uma festa nesse
telefone. Anota aí.
— Diz.
— 5-3747. Eu sei que ele vai para lá. Telefona mais tarde que
ele deve estar. Eu vou ver se encontro o homem antes disso.

(Anotação do escritor:
Pesquisa sobre o filho, Robertinbo.
1 ano— Repete feitos que foram sucesso. (A. Gesell). A mãe se
entedia com a repetição, o pai aplaude sempre. A criança está muito
atenta à reação dos pais, aprende palavras, repete, aprende o
sentido. Me dá, ela dá. Piaget: “na medida em que se opera esta
passagem do egocentrismo integral e incosciente dos primeiros
estágios à localização do próprio corpo num universo exterior, se
constituem os objetos.”
2 anos— Curiosidade de descobrir novos objetos e ambientes.
(Vai ao quarto dos pais e os encontra abraçados, cena que vai querer
reviver aos 5 / 6 anos e que fechará o conto.) Piaget: a construção
de um conjunto de relações entre os objetos, como a noção de atrás,
sobre, dentro, fora, diante. Piaget: “na criança, a aquisição da
linguagem, quer dizer, do sistema de signos coletivos, coincide com a
formação do símbolo, isto é, do sistema de significantes individuais.”
3 anos— Coisas que podia e coisas que não podia. O difícil era
saber o que, quando e como, decifrar os códigos dos pais. Recorre
então à simulação (M.yLopez), rebeldia, ao fazer-escondido. A mãe
começa a achar que ele é fingido. O pai acha que ele representa.
4 anos — os objetos são mais dóceis, permitem mais invenções
e jogos, adaptam-se melhora imaginação. As pessoas resistem ao
pensamento mágico. (Gesell, M. L.)
Em grifo ou parênteses virão os conceitos que não pertencem
ao seu campo intelectivo; no final, as palavras grifadas são um
mínimo, porque ele domina a linguagem.)

Rua Tupis, 488,14º andar


14h59m

— Boa tarde.
— Boa tarde. É o gelo.
— Que gelo?
— Ai ai ai. O senhor não encomendou gelo?
— Eu não.
— Roberto J. Miranda. Não é aqui?
— Não. É no apartamento de cima, na cobertura.
— Ah, desculpe. Muito obrigado. Desculpe o incômodo, hem?
— Ora, foi nada. (Merda! Lá vem mais festa!)

Bar e Restaurante Lua Nova


19h49m

— Por que você não escreve?


— Não dá. Agora não dá. Ando tão desanimado com tudo que
não sei. Será que é isso que nossa geração tem de fazer?: escrever
romance?
— Então, porra, pára de bolar romance.
O outro estranhou. Estavam acostumados àquele jogo, o jogo
do que é possível ou não é possível fazer neste país. O jogo dava-
lhes a ilusão de serem, ao mesmo tempo, participantes-do-problema-
social-brasileiro e/ou escritores-impedidos-de-escrever-porque-o-
Brasil-não-estava-precisando-disso-agora. Ficaram algum tempo
calados porque um deles tinha errado no jogo e era preciso
adaptarem-se uns aos outros novamente, esperar passar aquela
pequena dificuldade. Numa hora dessas, as pessoas tomam um gole
de chope, giram um pouquinho o copo e aguardam. Então já podem
falar: — E o Luís, hem gente?, que coisa estranha aquela relação
com o pai dele, não é? Acha não?
— Pô, se acho. Viu ontem?
— Aqui para nós: é uma sacanagem, não é?
— Não sei. É loucura. Vão acabar se matando.

Bar e Restaurante Lua Nova


22h32m

— 1980 vai julgar a gente! O que é que vocês fizeram? Nós


temos de prestar contas a 1980! Quede nossos livros, quede nossas
revoluções? O que é que nossa geração fez? Nós estamos aqui
julgando o Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos, a geração
Complemento, mas 1980 vai julgar a gente também.
— Está certo, Flávio. Paga logo a sua parte para a gente ir
embora. A festa já começou.

Bar e Restaurante Lua Nova


20hl2m

— Romance?
— Talvez. Talvez uma novela. A idéia eu acho que é boa, falta
desenvolver. É uma espécie de sátira ao racismo. O título, não é por
ser meu não, mas eu acho do caralho.
— Qual é?

(Anotação do escritor:
O Judeu Refratário. Escrever como se fosse um relatório de um
comandante de um campo de concentração, contando as tentativas
para eliminar um dos prisioneiros. Tenta gás, forno, nada dá certo.
Bota o judeu vivo dentro do crematório, junto com os outros, todos
mortos, e o judeu sai de lá de dentro com os mesmos olhos fixos,
alucinados. Mas não fala nada, não protesta. Tentam matá-lo a tiro;
ele sangra aos poucos, durante dias, sangra até as feridas
cicatrizarem — inclusive no coração — e não morre. com baioneta, a
mesma coisa. Mostrar o nazismo, a tortura, a opressão, a violência
física. O nazismo aí é como um símbolo, e o judeu refratário
representa aquilo que nenhuma opressão consegue destruir no
homem.)

Farmácia e Drogaria Nossa Senhora do Carmo, rua Grão


Mogol.
21h27m

— O doutor Jorge está?


— É ele.
— Ah. O senhor não me conhece. A mulher do Carlos é que
pediu para eu telefonar para o senhor.
— Que Carlos?
— Bicalho. A mulher diz que o senhor conhece.
— Sei, sei. Que que há?
— É que ele foi preso e o único advogado
— Preso por quê?
— Uma confusão lá na estação, negócio de uns nordestinos que
chegaram aí. Foi preso como agitador, parece que a situação dele
não é boa não. A mulher pensou no senhor, que é amigo dele, para
ver se — Amigo dele nada. Olha, quer saber de uma coisa?: foi até
bom para a gente ficar livre dele um pouco. Esse cara torra o saco.
— bom, ele pode ser chato, mas não fez nada e o senhor, como
advogado
— Ah, tenho tempo para mexer com isso não. Estou muito
ocupado agora, sabe? Amanhã eu vejo isso.
— É que a mulher
— Amanhã, meu amigo, deixa isso para amanhã. Boa noite,
viu?

Cama
I6h

Marília olha o relógio e pensa: está na hora do meu amor


telefonar.

Rua Grão Mogol, 174, apartamento 11


21h16m

Samuel, novamente em casa da mulher grávida, conversa com


um casal que procura por Carlos. A mulher é belíssima e o homem
tem teorias:
— É inegável que no campo administrativo eles têm feito alguma
coisa. Olha, acredito até que vai dar certo. O que não está certo é
essa euforia de
— O senhor não acha melhor ver se consegue soltar o seu
amigo?
O homem sorriu, quase pedindo desculpas, e a mulher
imediatamente não gostou de Samuel. A idéia dela:
— Tem um professor dele que é amigo do Secretário de
Segurança. É meio maluco, não sei se resolve.

Rua Itapeva, 840, Vila Concórdia


20h33m

— Que festa é essa?


•— Aniversário de um moço.
— Que moço?
— Não sei. Amigo do Marcelo.
— Não gosto desse Marcelo.
— Ih, mamãe.
— Ih o quê? Não gosto e está acabado.
— Mas eu gosto.
— Aurélia, Aurélia...
— Gosto e não é da conta de ninguém.
— Olha essa boca, olha essa boca!

Escritório da Corretora Dantas e Reis


16h19m

— Roberto? É o Marcelo. Tudo legal. vou, lógico. Aqui: será que


eu posso dar uma trepada aí no seu apartamento? Depois da festa, é
claro. Ahn-ahn. A gente combina aí, tá? Ciao.

Farmácia e Drogaria Nossa Senhora do Carmo, rua Grão


Mogol
21h26m

Samuel recebe o telefone das mãos do homem, que conta:


— Não falei?: o velho é maluco. Disse que isso não é hora de
incomodar um velho por causa de um aluno qualquer que foi preso.
Disse que não tem nada com isso e me mandou gozar a vida
enquanto é tempo.
A mulher belíssima sorriu, mas não gostava mesmo de Samuel.
•— É. É maluco mesmo.
Samuel não diz nada. Disca um numero e espera.
— O doutor Jorge está? — Ah. O senhor não me reconhece. A
mulher do Carlos é que pediu para eu telefonar para o senhor. —
Bicalho. A mulher diz que o senhor conhece. — É que ele foi preso e
o único advogado — Uma confusão lá na Estação, negócio de uns
nordestinos que chegaram aí. Foi preso como agitador, parece que a
situação dele não é boa não. A mulher pensou no senhor, que é
amigo dele, para ver se — bom, ele pode ser chato, mas não fez
nada e o senhor, como advogado — É que a mulher — Ô filho da
puta.

Rua Pernambuco, 1717, apartamento 306


20h30m

Esta noite na festa vou fazer Mônica dizer na frente de todo


mundo que me adora. Sorriu.
vou sim.

Praça Negrão de Lima, 36


13h05m

Puta merda. Fim do mês taí. Onde é que eu vou arranjar a


merda desse dinheiro? Bem que o Roberto podia ter arrumado, não
custava nada. Fresco. Mas hoje eu acerto ele.

(Anotação do escritor:
Incluir em Antes da Festa várias “anotações do escritor”
(inclusive esta). São projetos, frases, idéias para contos,
preocupações literárias, continbos relâmpagos, inquietações. Assim,
o escritor seria, junto com Samuel, personagem principal da história
que está escrevendo. Personagem involuntário, porque é “outro
autor” — ele mesmo, ou o homem que ele viria a ser, convivendo
artifi-ciosamente no tempo e no espaço com o homem que ele tinha
sido — é “outro autor” quem junta os pedaços desconexos de suas
anotações.)

Farmácia e Drogaria Nossa Senhora do Carmo, rua Grão


Mogol
21h30m

Samuel percebe que o homem quer escapar com a mulher


belíssima e deixa-lhe um peso:
— Olha, eu nem conheço o rapaz e tenho de ver esse negócio
para o jornal. O senhor é amigo dele, o senhor faz o que achar
melhor. Eu tenho de ir lá para a Estação.
— Mas o que que eu posso fazer?
— Ah, não sei. O senhor vê aí. Olha: o doutor Otávio Ernâni
estará nesse número hoje à noite. O senhor vê o que ele pode fazer.
Até logo, hem? Vai desculpar mas
Samuel se afasta com um gesto de ombros. O homem olha o
papel e:
— Uai, é o número do Roberto. Então o homem está é lá. Que
coincidência, menina.
A mulher belíssima aperta seu braço, sorrindo:
— Que bom. Então vamos para lá.

(Anotação do escritor:
Nas ações e observações de Samuel, o verbo deve estar
sempre no presente.)

Praça da Estação
21h46m

Samuel conta quatro rádio-patrulhas e anota o número de cada


uma. Conta quarenta homens da Polícia Militar e anota. Peruas com
chapas frias. Policiais à paisana. Um grupo de observação do
Exército, cinco homens. Os homens da Polícia Militar, de mãos
dadas, formaram um cercado e, lá dentro, calcula que há umas
seiscentas pessoas. Algumas crianças choram, outras dormem, ouve-
se um bzz-bzz de reza, uma mulher lamenta-se em voz alta, os
homens estão de cócoras, de pé, ou deitados. O cheiro não é nada
bom. Conversando com as pessoas, Samuel recolhe dados: tudo
estava mais ou menos tranqüilo, mas a confusão foi grande; no que
os retirantes chegaram, apareceu a polícia; a ordem era não deixar o
pessoal retirante espalhar-se pela cidade; quando começaram a
protestar, a polícia pediu reforços; fizeram esse cercado e não
deixaram ninguém sair até agora, nem para beber água; houve
pancadaria, acabou, prenderam uma porção de gente.

(Anotação do escritor:
O que eu faço com isso: um romance, um conto, uma crônica,
nada?:
Um filme mudo deficção-científica, feito em 1931, está sob
guarda e vigilância do FBI. Paralelamente, a organização realiza
investigações para descobrir seus realizadores: atores, fotógrafos,
produtor, diretor, roteirísta, cenógrafo. O filme, descoberto nos porões
de um cinema que fechou por falta de público na cidade de El
Dorado, Arkansas,foi uma incômoda herança do governo Johnson
para Nixon. Detalhe curioso: El Dorado fica a pouco mais de 400
quilômetros de Dallas, Texas.
O filme deve chamar-se “The Assassination of the President”,
conclusão a que chegaram os investigadores baseados na anotação
feita na primeira lata da pilha— “The Assas. Of the Pres.”—porque o
primeiro rolo, que conteria o nome completo do filme e talvez os
nomes da equipe de realizadores, não foi encontrado. O dono do
cinema, que o comprou do velho dono, não soube informar nada,
apenas comunicou às autoridades o seu achado; o velho e agora
cego antigo proprietário, o texano jerome Prescott, lembra-se
vagamente de ter guardadas algumas latas de alguns filmes
realizados por produtores independentes, que faziam sua própria
distribuição. Era um serviço mal organizado, de pequena empresa, e
acontecia freqüentemente sobrarem latas e até filmes inteiros
guardados muito tempo no cinema, à espera de que os homens
passassem para apanhá-los. Aquele filme, disso lembrava-se muito
bem, foi um dos maiores fracassos da história do seu velho cinema
em 1931, ou 2. Um filme sem galã, sem uma garota como Lilian Gisb
ou jean Harlow, com muita discussão política e uma história
antiamericana passada no futuro, só podia ser fracasso.
O filme conta, em minúcias que não se pode considerar
coincidência, o assassinato a tiros de um presidente K. nos Estados
Unidos, em Dallas, Texas, 1963. Somente esse dado seria suficiente
para justificar uma investigação rigorosa. Mas há coisa melhor: a
cena do crime coincide quase exatamente com a realidade, 32 anos
depois! Alguns detalhes, como frisos dos carros, tom das roupas e
placas das casas comerciais não são exatos, mas bastante
aproximados. Parece que há algumas divergências da história
conhecida, mas quanto a esse ponto surgiram apenas suposições,
porque somente pessoas importantíssimas viram o filme— e essas
não falam. Segundo se diz, aparece no filme mais um atirador e —
dizem — pertencia aos quadros secretos do FBI. Busca aflita nos
arquivos: o nome com o qual ele aparece no filme nunca constou das
listas dos agentes secretos. Nada disso tem muita importância.
Até agora, passados quase dez meses de investigações, não foi
possível localizar um só ator do filme. Cópias fotográficas de suas
caras foram distribuídas aos agentes, que procuram todos os velhos
atores das décadas de 20, 30 e 40. Ninguém se lembra daquelas
caras, em Hollywood ou Nova York. A investigação está agora
estendendo-se ao Canadá e Inglaterra. “Você conhece esse homem?
Ele era assim em 1930. Escreva-nos ou telefone e ganhe uma
geladeira se você acertar.”— diz a televisão em três países,
disfarçando a busca em concurso. Já há quem diga que o filme pode
ter sido feito em qualquer lugar do mundo. Nada impede que se
coloquem legendas em inglês num filme mudo argentino, por
exemplo. As hipóteses extra-terrenas estão afastadas, por enquanto.
A mais recente sugestão, que partiu do chefe da Divisão de
Cinema do FBI, é que o filme seja exibido, com grande promoção. Os
autores se apresentarão, diz ele, empurrados das sombras pela
vaidade— porque será sucesso, sem nenhuma dúvida.
O presidente Nixon hesita. com a exibição, o filme deixará de
ser apenas mais um mistério do FBI e o mundo já angustiado será
tocado por um mistério insolúvel, insuportável.)

Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social


18hl6m

. — É Marília?
— É.
— Oi. Tudo bom?
— Tudo bom. E aí?
— Tudo bem.
— Escuta: estou meio com pressa. É o seguinte: a festa do
Roberto. A gente vai?
— Ah vai, né? A que horas?
— À hora que você quiser.
— Cê passa aqui?
— Passo.
— A que horas?
— À hora que você quiser.
— Qualquer hora. Fico esperando.
— Perto das nove, está bom? Tenho um problema de uns
passes aqui para resolver. vou entregar para o Carlos Bicalho. É só o
tempo de ir até em casa, tomar banho, um repousozinho, e passo aí.
Tá?
— Eu espero. Um beijo.

Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social


19h01m

— Otávio está?
— É ele.
A voz não voltou, uma voz inesperadamente parecida com
alguma. Insistiu:
— Alô? Alô?
— É Lena.
Há mais de um ano esperava aquele telefonema, e tinha sempre
certeza de que seria uma coisa difícil. A voz falou outra vez, antes
que ele se recuperasse:
— Ontem esperei você chamar.
— Como? Eu nem sabia que você estava aqui.
Parecia que não tinham nada para conversar, as frases eram
separadas por grandes espaços brancos. Sempre soube que seria
um telefonema difícil.

(Anotação do escritor:
Por que sempre soube que seria um telefonema? Por que não
um encontro difícil, uma carta? Isso está me cheirando a literatice.)
Ela:
— Não recebeu minha carta?
— Carta? Recebi não.
Aquele velho amor complicado que sentia por ela estava
voltando. Ele:
— Você veio para ficar? (Não é hora de perguntar.)
Ela, um pouco surpresa com a coragem dele:
— Não sei. Não sei ainda.
(Vê se não faz nada errado desta vez. Já foi bastante duro
agüentar este ano.) Ele:
— Quando é que a gente se encontra?
— Não sei — começou ela, e lembrou-se logo:
— Você não vai à festa do Roberto? Ah, se não for eu não vou.
Percebeu saudoso a mesma Helena, à vontade preguiçosamente.
Ela:
— Vai?
— vou.
— Então passa aqui para me apanhar. O fusca ainda anda?
— Anda. A que horas você está pronta?
— Das nove em diante, está bom?
— Está.
Ficaram um momento em silêncio, não querendo desligar;
esperando uma gentileza, um abraço, uma saudade. Ela:
— Então até logo.
— Ciao.
Um abraço um abraço dou-te eu dou-te eu — pensou ele
enquanto desligava. E lembrou-se de repente:
— Puta merda, e Marília?

Bar e Restaurante Lua Nova


20h12m

— A idéia eu acho que é boa, falta desenvolver. É uma espécie


de sátira ao racismo. O título, não é por ser meu não, mas eu acho do
caralho.
— Qual é?
— O Judeu Refratário.
— bom.
— Mas tem um porém: não estou conseguindo escrever,
Esdras. Tem sentido a gente escrever esse negócio de judeu, hoje? E
quem é que vai escrever sobre os nossos problemas? Não vê os
intelectuais russos? Siniavski, Sakharov, Amalrik, Medveclev e outros
estão lá, batalhando os deles. Os americanos, franceses, peruanos,
mesma coisa. E aqui? Me diz aí: quem é que vai falar de nós, disso
aqui?
— Literatura não é Economia. Vocês não podem estabelecer
prioridades nacionais de investimento literário, fazer um plano
qüinqüenal e determinar o que deve ser escrito nos próximos cinco
anos.
— Não estou falando que é regulamento não, porra. Eu é que
não consigo escrever, é um problema meu. Tanta gente se
policiando, com medo de dizer as coisas. Tanta gente parando de
escrever e quem não tem nada a dizer começa a dizer. Será que não
tem mais gente sentindo o que eu sinto?
— Se tem, põe num livro.
— Ih, te fodeu.
— Fodeu porra nenhuma. Fodeu por quê? E quer saber de uma
coisa?: isso aqui é conversa particular. O que eu acho, Esdras, é que
há certos assuntos que não dá para o cara ir escrevendo, hoje. Hoje,
veja bem, 1970. Sabe lá se não vai encher o saco porque tem outras
inquietações, coisas mais próximas e que por isso mesmo tocam
mais, e parar no meio o outro assunto, como esse do judeu? Esse
negócio de judeu parece aquelas coisas do tempo do Sartre.
— Os latino-americanos estão escrevendo até sobre coisa
nenhuma, são homens do mundo, e vocês aqui, no Curral del Rey,
querendo explicar a situação brasileira. Ô saco.

Praça da Estação
21h45m

Samuel conversa com o investigador apelidado Frisante


Michelon, que participou da prisão de Carlos Bicalho.
— Olha, aquele rapaz vai entrar pelo cano, viu? Nosso pessoal
chegou aqui, já estava dono da situação, quando apareceu esse tal
de Carlos e começou a perturbar tudo. A ordem que a gente recebeu
foi segurar esses paus-de-arara aqui e embarcar tudo de volta no
primeiro trem. Eles nem estavam discutindo, são até gente boa. Aí
chegou esse cara, esse Carlos, chegou e disse que não estava
direito, que a Secretaria dele ia dar um jeito, e os mendigos foram na
onda dele, sabe como é? Acabou que o secretário do Trabalho não
resolveu porra nenhuma — eu, pra mim, esse cara não é da
Secretaria porra nenhuma — e o cara começou a levantar o povo
contra nós, fazendo comício, agitação. Coisa de comunista. Aí o pau
começou a quebrar, prendemos o cara e mais uns cinco ou seis
comunas. Foi ele que começou o negócio todo, pode escrever aí.

(Anotação do escritor:
O papel está na máquina há uma hora e meia, branco até eu
começar a escrever esta carta aberta a quem interessar possa —
porra, porra, porra. Eu pus o papel na máquina para começar
novamente a escrever O Judeu Refratário e não consigo tirar nada de
mim. Porra. Gostaria de dar uma porrada no meu superego. Preciso
entender direito o que é que me impede. Hipótese um: medo de
crítica e eu disfarço com escrúpulos de escrever um livro inútil.
Hipótese dois: o ambiente rarefeito de liberdade me inibe, inibe todo
mundo, e escrever virou uma bobagem sem importância. Hipótese
três: estou entre deus e o diabo na terra do sol, entre escrever para
exercer minha liberdade individual e escrever para exprimir minha
parte da angústia coletiva; imagino histórias que tenho vergonha de
escrever porque são circunstanciais. Hipótese quatro: sou consciente
de estar vivendo num momento de obscurantismo da Literatura, um
daqueles períodos estéreis de que a História não guarda nada e sei
que é inútil escrever qualquer coisa, participante ou não, que tudo
sairá uma bosta e se perderá na noite da História e é melhor não
desperdiçar meu tempo. Hipótese cinco: tem muita porra estéril
derramada por aí e eu não quero ser mais um punheteiro.
E o que é que eu faço com a minha porra? Hipótese um, vendo
para um escritor norte-americano de worst-sellers. Hipótese dois,
escrevo um livro chamado “Se Eu Quisesse Escrever um Livro”.
Porque uma hora qualquer essa porra vai explodir. As pessoas me
olham nas ruas como se eu fosse um tarado aponto de espirrar porra
por aí. Eu preciso descarregar, em poluções noturnas ou em canas
abertas a quem interessar possa. Ofereço a quem quiser algumas
idéias, tudo de graça senhores, porque o autor se sente incapaz de
resolver alguns problemas pessoais. Oferecimento ao senhor Glauber
Rocha: argumento para um grande filme épico alegórico em que os
personagens são um gladiador, Cristo, Billy the Kid, um astronauta,
um cangaceiro, um samurai, Tutmés, o faraó guerreiro. Senor Garcia
Mãrquez, interessa?: o trapezista de circo saltou e ficou parado no ar
uns cinco segundos, enquanto o trapézio ia e voltava e ia novamente,
até que o trapezista pegou-o na volta como quem pega um bonde
andando e aquilo foi apenas uma das coisas maravilhosas que ele fez
na cidade, sendo a última ter disvirginado a filha do retratista e
sumido (a moça jura que ele sumiu antes de dobrar a esquina, fez
puff e sumiu) para nunca mais voltar, e o filho deles dois nasceu de
14 meses e aprendeu a falar no meio da segunda semana de
nascido. E esta, quem aceita?: o sujeito que ia com o fetozinho de um
aborto numa caixa de sapatos, aborto natural da mulher dele, ia levar
para enterrar, e esqueceu no balcão da padaria e então— ah, grande
Borges, quem sabe esta lhe serve?: um agente funerário é chamado
a uma casa; chega lá, uma senhora o atende na porta e diz que
ninguém chamou; ele volta para agência, chamam de novo, ele vai ao
mesmo endereço, de novo a mesma senhora o recebe na porta e diz
que não foi de lá que chamaram; ele volta para a agência muito puto
da vida e então chamam de novo, ele diz que não vai, estão
pensando que ele ê algum palhaço?; então a pessoa que estava
telefonando vai até lá esclarecer a situação; o agente explica que
esteve na casa duas vezes, conferem o endereço, tudo certo; a
pessoa pede ao agente que descreva a mulher que o recebeu a
porta, o agente a descreve com minúcias, porque era um homem
muito observador, e a pessoa sai apavorada pelas ruas: era ela, a
morta, que recebia o agente! Puta merda, essa me dá até arrepio. E
esta aqui, algo para Hitchcock, talvez: o título poderia ser O Desafio.
Ou O Duelo. Um sujeito muito elegante, fino, coloca uma carta no
correio. Corta. Letreiros, música, a carta viajando através da
burocracia dos correios, até chegar às mãos do destinatário, o
chefe de polícia. Isso coincide com o fim dos letreiros. A carta,
anônima evidentemente, avisa ao chefe de polícia que seria morto
Fulano de Tal e desafia a polícia a impedir o crime. Daria dois dias
para a polícia pôr-se a campo e ele não “começar com muita
vantagem”. Good sport. Tenho aqui também, deixa-me ver, alguma
coisa que poderia servir eventualmente ao senhor Robbe-Gnllet,
não?: uma mesma cena é descrita repetidas vezes, com algumas
pequenas modificações. Essas modificações é que serão ao mesmo
tempo a ação e o assunto da obra, serão “o que se conta”. Como se
alguém, remoendo um fato na cabeça, tentasse lembrar-se de
detalhes; lembra-se de uns, esquece-se de outros; o conjunto
escapa-lhe sempre. Pode-se construir também como se fosse a
mesma coisa vista por vários observadores. Começar com um
período bem simples, como “o corpo caiu do 63º andar”. Outros
parágrafos, cada um valendo por si como um texto completo,
contarão exatamente o que aconteceu, embora o acontecimento seja
um mistério para a personagem, porque ela não vê o conjunto. Toim!)

Bar e Restaurante Lua Nova


20h58m

Luís, que morava na rua atrás da Estação, trouxe a notícia para


os do suplemento.
Eu não cheguei perto porque começou a sair tiro e eu nem
tenho perna para correr. Pelo que entendi, o governo ia empregar os
retirantes na lavoura de cana e feijão, lá para o Oeste de Minas. Não
sei por que, resolveram mandar os retirantes de volta, e aí começou o
quebra-pau. No meio deles tem um cara que já andou com Lampião,
era cangaceiro. Me disseram.
A turma do suplemento foi lá, ver.

Praça da Estação, Bar-Lanches Estação


21h56m

Samuel telefona para o redator-chefe do jornal, conta o que está


acontecendo e lembra:
— Olha, é preciso mandar fotógrafo, esqueci de falar com o
Ênio. Todo mundo tem fotógrafo aqui, menos nós. O Estado está com
dois repórteres. Já quebrou o maior pau.
— E agora, como é que está?
— Tranqüilo. Mas pode quebrar o pau de novo.
— Você já tem a história toda?
— Toda não, quase toda. Eu tenho o lado da polícia, agora vou
ouvir os nordestinos. Quer dizer, vou tentar ouvir.
— Certo. Mantenha-se em contato comigo. Mas olha a hora,
hem porra. Esse negócio tem de estar aqui até às onze, estourando.

Rua Tupis, 488


23h46m

Dois rapazes entram no elevador, depois de gentilmente


cederem a passagem a um jovem casal que perguntara ao porteiro se
era esse o endereço de Roberto J. Miranda; ela muito bonita, com os
seios quase visíveis, ele um tanto orgulhoso e feliz. Ela e um dos
rapazes avançam o braço para marcar o andar e quase! suas mãos
se tocam no caminho para o botão número 15. Um desses instantes
imprevisíveis e alegremente embaraçosos. Ela desiste, o rapaz
hesita, aperta o botão, sorri para o casal, o casal sorri, como vai ser
gostoso, pensava ela.

Praça da Estação
21h57m

Samuel atende o homem que o chama com tapinhas no braço.


O homem, mulato, olha para os lados, disfarçando, e chama-o para
um canto, com um sinal de mão.
— Você é repórter, não é? Eu te vi conversando com o
investigador ali e vim até aqui.
— Você viu o quebra-pau?
— Estou aqui desde cedo, perto de sete horas. Tenho
documento, olha aqui. Sou pintor. Olha aí meu nome, Ataíde
Pimenta.
— Certo, certo. Qual é o galho?
— Eu vi tudo, estou aqui desde cedo. Tenho mulher em casa
esperando, moro ali em cima, ó, ali na rua Januária e estou aqui para
ver o que vai dar. Vai na conversa daquele tira não.
Olha para os lados, cauteloso, e continua:
— Eles já chegaram aqui com estupidez. Eu estava passando,
passo aqui todo dia, voltando do serviço. Eles chegaram juntando os
flagelados num canto, de qualquer jeito, precisava ver a cara dos
coitados, não estavam entendendo nada. Falaram que eles não
podiam parar aqui, que tinham de voltar para a terra deles. Eles
explicaram que não tinham dinheiro para voltar e pediram para ficar
aqui mesmo. O tenente disse que tinha ordens e não deixou. Aí o
moço, deve ser esse Carlos que você estava falando com o
investigador, não sei como que apareceu. Conversou com o tenente,
saiu para falar com um secretário não-sei-que-lá, mas não arranjou
nada. Aí ele tentou como se diz explicar aos flagelados que eles
tinham de voltar, é um moço bom, viu?, mas acabou escutando tanta
miséria que pediu ao povo para ajudar os coitados. Nessas alturas já
tinha juntado uma porção de gente por aqui, gente voltando do
trabalho, pessoal que vai pegar o subúrbio. Bem, aí esse Carlos, deve
ser, explicava que aquele pessoal estava com fome e não podia sair
nem para arranjar comida. Estava falando verdade, eu vi tudo, mas o
tenente mandou ele calar a boca e aí o tempo fechou. Quiseram bater
no rapaz, o povo não deixou, aí o rapaz disse que também era
autoridade, que trabalhava no governo, pediu ajuda para os
nordestinos, aí o tenente mandou prender, aí ele reagiu, aí entraram
os baianos e foi porrada para todo lado, aí chegou mais polícia e
acalmou. Pode botar no jornal: o rapaz saiu daqui carregado. Agora
tem mais de uma hora que está aí esse cerco. A gente vê que não
está certo, mas vai fazer o quê? Eu tenho minha mulher para olhar,
não sou besta de entrar nisso aí. Mas raiva, dá.

Rua Januária, 28-Fundos


22h05m

Ô meu Deus, por que será que o Ataíde está demorando tanto?

Rua Tupis, 488, 15S andar


21h06m

Está chamando Está chamando, lúcio Anda Lúcio, atende,


atende, atende, não está não está aposto que não demora Por que
essa demora? alguém alguém tem alguém não! será que não tem
Não tem ninguém em casa? alguém lá com ele! não não! Nem a
empregada? tem alguém lá Será? com ele! Será que tem alguém lá
com ele não! e ele não quer atender? ai meu deus Não, isso não. Ai
meu Deus eu morro eu morro se isso acontecer no dia do meu
aniversário. Anda Lúcio, atende! Atende! errado número errado! Será
que disquei o número errado? isso É isso, deve ser isso! Ligar de
novo. o número o número ah Dois dois quatro sete sete seis.
chamando Está chamando. Certeza que está certo, negócio do
dinheiro quem sabe foi o negócio do dinheiro o dinheiro Ninguém em
casa, é isso. dinheiro Oh, Lúcio, por que foi me pedir dinheiro?
Dinheiro estraga tudo Lúcio, e estava tão bom, tão lindo, amor não
era hora de atenderam!’Alô. empregada irmã mãe — Alô. De onde
fala?
Dois dois quatro sete sete seis. irmã voz chata Deve ser a irmã.
o lúcio está?
— Por favor, o Lúcio está? está um moment
Quem quer falar com ele? ora quem quer chata falar
— É Roberto Miranda, chata
Uai, ele disse que ia para sua casa, aqui! que tinha uma festa. Ai
meu deus onde é que ele foi parar Não chegou aí não? lógico que
não sua burra
— Não, lógico que não. Por isso que eu estou telefonando, que
hora! Que hora que ele saiu?foi agorinha agorinha mesmo não tem
dez minutos agorinha
— Deixa eu ver. Mais ou menos... pera aí. Ô mãe. chata Maiê!
Que hora que o Lucin saiu? agorinha ainda agorinha Alô, Roberto.
— Sim?
A mãe diz que ele saiu faz uns dez vinte minutos ai! E foi para aí
mesmo, que que houve então que que houve que que houve nada
ai foi nada que que houve lúcio lúcio vai sacanear. Vai me sacanear
logo hoje? Algum lugar, sim é isso! passou antes, vai passar.
— Ele disse se ia passar nalgum lugar antes? ah é mesmo falou
sim Não. Falou não. Mas ele deve estar chegando, né?
— É. Deve ser isso. cigarro Vai ver parou para comprar cigarro,
claro uma coisa assim, obrigado Obrigado hem? Boa noite.
Boa noite. Clic. chata não simpática Foi até simpática, não tinha
obrigação de chamar a mãe nem nada, se interessou, ah ele vem ele
vem Claro que ele vem. Foi comprar cigarro, foi? conversar um pouco
com aqueles amigos da esquina. Fala de mim, não/mal de mim, não!
estou comendo uma bicha aí não não não não descolar alguma
grana, mentira mentira gostou de mim gosta gosta outra coisa
depressa grana não outra coisa meus deus meu deus antônio Ele
vem, lógico que vem. Fico tão nervoso em dia de festa, antônio Parar
de pensar nisso senão fico na fossa, antônio Será que está tudo em
ordem na copa? antônio — Antônio.
— Senhor.
— Tudo em ordem na copa?
— Sim senhor.
ótimo ótimo — Não falta nada?
— Não senhor.
perfeito bonito que olhos será que o pau nossa!— Muito bem.
Diz ao Joaquim para não deixar faltar bebida nem gelo para ninguém.
Qualquer problema, fale logo comigo. Entendeu? que olhos — Sim
senhor.
— Pode ir.
Hum... se não fosse garçom, não! lúcio Desculpe, Lúcio, foi sem
querer, a carne ai é fraca. Pensar noutra coisa, deixar de bobagem. a
festa a festa o que da festa: ‘Vai ser uma festa linda isso linda, linda.
Será que Andréa louca esqueceu de convidar alguém? ai não ai não
louca Acho que não esquece, esquece não Ela é louca louca mas
para essas coisas ela funciona, esqueceu ninguém não. Já pensou?
eu morro É tão desagradável explicar um esquecimento noivado
desses, não andrea ai meu deus o noivado Ela levou a sério
essa história de casar, fui eu fui eu fui eu não! não! outra coisa outra
coisa Pensar nisso agora não. ela vem aí É preciso, ela vem aí
como? como? como? Como que eu faço? Combinamos anunciar
esse não! casamento hoje. Que idéia, meu Deus, que idéia de Andréa
minha. e agora agora agora?Não posso, qual é essa de casar, gente?
Então ela não vê não vê que eu sou não sabe não sabe não fale!
homossexual? falar com ela Casar!? Falar com ela, explicar que eu
conheci um rapaz anteontem lúcio— Lúcio não chega, que demora é
essa? vem logo lúcio vem logo me ajudar Quem vai me ajudar a sair
dessa? lúcio conheci um rapaz como é que é mesmo ah conheci um
rapaz anteontem, uma pessoa maravilhosa, e estou completamente ê
isso? falô? apaixonado. Ai meu Deus, será que vou ter coragem?
coitadinha tadinha tadinha Andréa, tadinha. que que eu faço? que que
eu faço? Andréa, meu amor, deixa te contar: conheci isso um rapaz
vai anteontem isso isso vai e eu acho que não quero mais vai! vai!
casar com você. Tadinha, uma pessoa maravilhosa, gostosa, louca,
mas eu a festa — Espero que isso não estrague a minha festa.

Praça da Estação
22h10m

Samuel apura: a ordem (parece) partiu da Secretaria da


Segurança, entrosada com a do Interior e Palácio, porque, de uma
semana para cá, trens e caminhões despejaram uns cinco mil
retirantes em Minas, a maioria doente, todos sem emprego e com
fome; a medida visa impedir que isso continue; não há trabalho para
esse tipo de gente na cidade, era melhor que voltassem para o
campo; voltando, aqueles diriam aos outros que não descessem para
o Sul e em breve o êxodo terminaria; certos setores do governo
acreditam que é o único meio de impedir essa invasão da miséria
num Estado que, afinal de contas, não tem nada com isso; a
Secretaria daria quantos passes fossem necessários para a volta.
(São essas as informações que Samuel recebe de um assistente do
doutor Otávio Ernâni, da Secretaria do Trabalho, que estava na praça
representando-a naquele momento.)

Praça da Estação
21h40m

O retirante Viriato conta para a turma do Suplemento: vieram de


Curralinho, nas Alagoas, mas juntaram-se com gente de Iguatu,
Crato, Barbalho, Nazarezinho, do Ceará; gente da Paraíba, Rio
Grande do Norte, Pernambuco e Bahia; tudo seco; o que tinham,
venderam; o dinheiro acabou no caminho, comprando para comer;
ninguém ali tinha terra no Norte e a terra que havia o Capeta queimou
e tomou conta; agora, no Sul, não podiam nem sair da Estação; voltar
com quê, para onde e para quê?
A turma do Suplemento queria conhecer o homem que tinha
andado com Lampião.

(Anotação do escritor:
Epígrafe? “Verifica-se que l por cento da população brasileira
participa da renda nacional com uma renda bruta total que é superior
ao total da renda de 80 por cento de brasileiros; isto é, que quase
novecentos mil brasileiros ganharam em 1970 uma quantia maior do
que a que perceberam 72 milhões de brasileiros; portanto, a renda de
l por cento de brasileiros é maior do que a soma da renda de 80 por
cento.”)

Praça da Estação
22h34m

Samuel ouve a resposta do redator-chefe do jornal:


— Deixa isso para lá, rapaz. Amanhã o governo resolve o que
faz.
— Amanhã é tarde. A polícia vai embarcar todo mundo hoje à
noite. O jornal podia telefonar para o governador, pedindo uma
providência. Aposto que ele não sabe o que está acontecendo aqui.

— Claro que sabe. Olha aqui, vê se traz logo essa matéria que
está ficando tarde.
— O jornal não vai fazer nada?
— O jornal vai fazer o que jornal faz: publicar a matéria. Escuta,
o fotógrafo chegou aí?
— Não vi. Qual é o fotógrafo?
— O Messias. Espera aí. Foi o Messias, né Ênio? É, foi o
Messias. Chegou aí não?
— bom, eu não vi.
— Deve estar aí sim. Vem logo escrever essa porra.
— Tá.
Samuel desliga, desanimado. Pensa no estudante Carlos,
simpatizando com ele. Aquele homem da mulher belíssima e o tal de
doutor Otávio fariam alguma coisa por ele, ou tentariam, pelo menos?
Televisão Itacolomi
12h10m

— Tenho um pouco de medo de me pedirem para cantar. A


gente não pode ter um minuto de sossego.
— Se não quiser, não canta. Ninguém pode obrigar.
— Isso é. Em todo caso, leva o violão e deixa no carro. O
pessoal lá pode ser boa gente.

Avenida Olegário Maciel, 52, apartamento 26


21h03m

Envolvida pela água quente, que corta seus pequenos seios


pela metade — na superfície, dois botões marronzinhos e tesos —
Andréa se excita com as coisas que deveriam acontecer dentro de
poucas horas e com a agradável ousadia da água, possuindo-a
delicadamente. O complicado mecanismo de suas certezas — ela,
oferta irrecusável, prêmio, maravilha — já havia elaborado o papel
que passaria a representar: esposa. Ela, a fascinante e inalcansável
criação dos anos 50 concederia a um homem o privilégio de possuir
sua intimidade, seus medos mais secretos, aos 37 anos de
esquivanças.
Andréa amparava-se na semelhança entre eles, na timidez
sexual dele e nas tentativas que faziam juntos para superar o
problema de cada um. Ela sentia, nos toques dele, o amadurecimento
do seu grande orgasmo e pressentia que o alcançaria quando
conseguisse manter a ereção dele na hora de ser penetrada.
Era pouco para mudar uma vida, mas algumas vidas mudam
com o vento. No seu banho de noiva, Andréa embala-se ao vento.

Praça da Estação
22h54m

Samuel ouve o choro constante de uma criança dentro do


cercado. Não sabe por que está tão irritado agora e por que essa
irritação cresce com aquele choro. O pai do menino o acalma com um
tapa.
Samuel vai ao bar, compra um litro de leite, pão, biscoitos, volta
depressa ao cercado, chama o pai, a criança, a mãe, dá-lhes tudo.
Outros precisavam, pedem — pelo amor do Santíssimo, meu
senhorzinho — ele volta, compra mais, dá; as pessoas que olhavam
imitam Samuel, alegremente descobrindo para que estavam ali; o
homem do bar se espanta satisfeito com aquele movimento
inesperado; uma revolta cristã e irmanada que ninguém pode impedir,
todos despertos naquele apressado fazer o bem, solidários, salvos,
quem dá aos pobres empresta a Deus; Fé, Esperança e Caridade;
Deus te dê em dobro tudo o que me desejares.

(Anotação do escrito:-
Atravessamos o cordão de isolamento. A polícia nem ligou
porque Pena Forte e Valdiki estavam dando show de bicha e parecia
que aquele bando de veados não ia atrapalhar nada. Fomos falar com
o líder dos retirantes, Marcionílio. Para nós era folclore, um programa
nesta cidade de merda, porque o homem tinha o encanto de ter sido
cangaceiro. Marcionílio estava sendo entrevistado pelo Samuel
Fereszin, do Correio, conhecido nosso.
Ouvimos falar da fome (“Meu pai contou que na grande seca
de 87 foram mortos dois bandidos assaltantes e comidos pelo povo
em Jacaré dos Homens.”) da felicidade (“Aquela dona que ali está,
dona Lália, está feliz e aliviada porque vendeu a filha de 14 anos,
nessa viagem mesmo, a um fazendeiro do Sul da Bahia. A filha agora
tem onde comer e dormir, melhor do que nós.”) de revolta (“Quando o
vento sopra, o capim abaixa; quando o capim pega fogo, queima a
mata toda ”) do latifúndio (“Lá? Terra tem muita, dono mesmo tem
pouco. Quando ele vê que a chuva não vem, que não vai ter colheita,
manda todo empregado embora. E ele tá errado? Tá certo. Errado é
ele ser dono de tanta terra.”) de religião (“Deus? Eu nunca ouvi falar
de coisa boa que ele fez, garantindo que foi ele, a não ser muito
antigamente.”) de coragem (“Estou com muito medo, mas se não tiver
outro jeito eu misturo com um pouco de coragem.”) da morte (“Tem
gente que morre menos e gente que morre mais. Quem morre mais,
desaparece; quem morre menos, fica exemplo.”)
Redação do Correio de Minas Gerais
23h31m

— Como é, meu filho? Já estou indo.


— Espera, Haroldo, estamos fechando. Só falta a chamada dos
nordestinos.
— O Estado passou a matéria para nós?
— Passou. Também, com aquele choro.
— Notícia do Samuel?
— Nenhuma. Muito estranho, isso.
— Será que aconteceu alguma coisa mesmo? Vai ver, a
desculpa que a gente deu para o Estado passar a matéria para nós
acaba sendo verdade.
Ênio dá três pancadinhas na mesa.
— Sabe que eu estou mesmo ficando preocupado com o
garoto? Não, estou mesmo. Eu até já mandei o Euclides passar lá
depois que o jornal rodar. Aí ele telefona para a gente.
— É, faz isso. E vê se fecha, pô. Não gosto de chegar tarde em
festa. Acaba não sobrando mulher.

Dentro de um táxi
00h03m

Tanto de saber o que fazer ah mas não sei Jorge se estou certa
tentando fazer você ficar menos egoísta menos voltado para si
mesmo gostar um pouco mais dos outros de mim do que de você
mesmo ver se você ainda tem jeito salvação porque eu já estou me
cansando e o pessoal só te aceita ainda por minha causa não sei até
quando quanto vou agüentar já ando cansada de...

(Anotação do escritor:
Um desperdício deixar passar este momento sem tentar captar o
sentido dele, ao menos um esboço que mostre a alguém: era assim,
naquele tempo. Era assim que as pessoas se destruíam, que as
consciências aceitavam, que os homens se diluíam entre o medo e o
dever, que os escritores procuravam esquecer ou não conseguiriam
escrever nada.
Sim, eu creio que é isso e que é uma luz e que estou certo.
Algumas das minhas histórias podem esperar uma década para
serem escritas.)

Praça da Estação
01h12m

Samuel desiste de procurar ajuda. Pensa no jornal, na


reportagem, como obrigações de outra pessoa. Havia a festa, o
pessoal que deveria conhecer naquela noite — mas não se move,
comprometido com alguma coisa que teria de fazer por aquela gente.
Pensa em Carlos Bicalho dependendo daquele homem com mulher
belíssima, pensa na mulher grávida, em Andréa... preocupações de
outra pessoa.
Os soldados, cansados da tensão, largaram-se as mãos e
permanecem de pé, conversando relaxados entre si, fazendo
intervalo.
Os retirantes, também cansados, acomodam-se, fumam; as
crianças dormem, os estômagos estão mais calmos.
Na praça agora tranqüila e quase vazia de curiosos, um rapaz
de vinte e quatro anos, mais bonito que feio, mais sensível que
esperto, reserva-se ansioso para o seu compromisso, quando o trem
encostaria e ele teria de fazer alguma coisa.

Rua Tupis, 488,15º andar


21h18m

É ele é ele! A campainha. Lúcio,Deve ser Lúcio, deve ser ele.


antônio deixe
— Deixe que eu atendo, Antônio, é ele chegou chegou Estará
com raiva de mim? não lógico que não Claro que não, senão não
viria, oh! Marcelo.
— Olá Roberto.
— Opa! Olá. Como vai. Entre, entre, e o lúcio? cadê o lúcio?
— Antes de mais nada, um abraço.
— Obrigado, muito obrigado, bonitinha cafoninha E essa, é sua
namorada?
— É. Aquela que eu te falei, lembra? Te telefonei hoje à tarde.
Aurélia, esse é o Roberto.
— Muito prazer.
cafoninha mesmo — Encantado, Aurélia. Roberto Miranda.
Entrem, entrem. Sabe de uma coisa, Marcelo?
— O quê?
— Vocês foram os primeiros a chegar.
— É muito cedo?
— Não. A festa vai começar.
DEPOIS DA FESTA
Índice remissivo das personagens, por ordem de entrada ou de
referência, com informações (*) sobre o destino das que estavam
vivas durante os acontecimentos da noite de 30 de março.
Necessárias?
Surpreendentes?
Valiosas?
Complementares?
Desnecessárias?
Inúteis?

Nordestino moreno,
Marcionílio de Mattos.
Página 15.

Marcionílio esteve preso durante 68 dias. Pessoas que estavam


presas com ele contam que foi na noite do dia 5 para 6 de junho que
Marcionílio sumiu. Sabe-se, sobre ele, pouca coisa além do que
consta dos seus depoimentos. As declarações de um certo retirante
Viriato, identificando Marcionílio com o Demônio, não foram levadas
em consideração pela polícia, apesar de transmitirem um fabuloso
esboço do preso.
Marcionílio contou várias vezes a sua história aos interrogadores
até o quadragésimo segundo dia de prisão; a imprensa acompanhou
sua peripécias com enviados especiais ao Nordeste; durante os
primeiros 20 dias, tornou-se herói dos visionários, bandido das
pessoas respeitáveis, assunto de primeira página. Após 42 dias de
depoimentos, foi acusado oficialmente como principal responsável
pelo motim e ficou no DOPS aguardando o fim do inquérito. Não se
preocuparam mais com ele até a noite do sexagésimo oitavo dia,
quando o acordaram para novos interrogatórios.
Outros presos, também interrogados durante essa noite e o dia
seguinte, declararam que nunca ouviram Marcionílio fazer a menor
referência a um atentado que haveria no Nordeste nos primeiros dias
de junho. As mesmas pessoas nem sabiam que o presidente
da República estaria lá, nessa época, para ver de perto o problema
da seca. E Marcionílio sabia? Ninguém ouviu falar disso.

Samuel Aparecido Fereszin,


o repórter.
Página 15.

Na primeira semana de abril, a polícia já sabia quase tudo a


respeito de Samuel Aparecido Fereszin, 24 anos, solteiro, jornalista,
rua Hermílio Alves 333. Sabia principalmente da sua atuação na
praça da Estação naquela noite de 30 de março.
Havia nebulosas na sua vida particular, coisinhas que seria
preciso apurar embora quase nada acrescentassem ao fato principal:
o tumulto do dia 30. Por exemplo: ele conhecia ou não conhecia
intimamente Andréa de Almeida Laje, 37 anos, solteira, jornalista,
avenida Olegário Maciel 52, apartamento 26? Afirma-se que não.
Como então poderia saber que ela tem uma pinta no lado direito do
clitóris? Alguns cadernos encontrados no seu quarto são bastante
descritivos a esse respeito. Entretanto, seus colegas de jornal e a
própria moça afirmaram, após uma rápida sindicância policial, que
Samuel e Andréa mal se conheciam, encontravam-se ocasionalmente
na redação e às vezes no cafezinho da esquina. Parece até que
nunca se falaram. Ora, ora, como poderia então saber das
preferências dela pelo fellatio e cunnilingus, como está lá com todas
as letras, nos seus cadernos? Alguns repórteres contaram da grande
curiosidade da redação a respeito de Andréa e nisso Samuel não era
diferente da turma toda. A polícia chegou à conclusão de que seria
preciso ouvir Andréa na delegacia para esclarecer esse detalhe.
Apurou-se: Samuel foi sempre bom filho, estudioso, forte no
português. Comprava livros e consta que os lia. Trabalhava no jornal
há uns oito meses e não ia mal, apesar de algumas distrações.
Começava a andar com a turma de intelectuais da cidade.
Ultimamente tornara-se amigo de Roberto J. Miranda, 29 anos,
solteiro, artista plástico, rua Tupis 488, 15º andar, o pintor que deu a
festa, a suspeita festa do dia 30, e que tinha também qualquer coisa
com Andréa, a cronista. Andava superficialmente interessado em
política.
Quanto ao seu papel no tumulto da praça não há dúvidas, as
testemunhas foram bem claras. Ataíde Pimenta, 28 anos, pardo,
casado, pintor de paredes, rua Januária 28-Fundos, ficha limpa, disse
que Samuel chegou à praça mais ou menos às nove e meia. Viu-o
fazer algumas entrevistas. Ajudou-o a levar comida para os flagelados
famintos. Os retirantes Marcionílio, Natanael e Hildo Pessoa não
divergiram: foi Samuel quem teve a idéia de botar fogo no trem.
Combinou com os retirantes: todo mundo ia sair em pânico do trem,
na hora do fogo; depois, um grupo grande, forte, se organizaria à
esquerda da praça e se dispersaria pela cidade. Insistiu que todos
deveriam entrar no trem em paz e ficar quietinhos, até a hora do fogo.
Foi ele que buscou a gasolina. Silvestre Brasil de Almeida,
empregado do posto Shell, 37 anos, pardo, casado, rua Herval 1057,
ficha limpa, contou que aquele rapaz do retrato apareceu sim no
posto, dizendo que acabara a gasolina do seu carro ali perto, se não
podia vender um galão. Silvestre ainda se lembrou: o rapaz estava
muito calmo e queixara do marcador de gasolina, quebrado. Sabe-
se: Samuel deu a volta por trás da Estação, jogou gasolina em quatro
vagões e botou fogo.
E depois lá estava ele, esperando o grupo que deveria conduzir
pela cidade, dispersando aos quatro ou cinco pelas esquinas,
conforme o combinado, enquanto a polícia, tomada de susto e
preocupada com o incêndio, com salvar o trem, não se reorganizava.
O combinado: todos deveriam espalhar-se pela cidade, procurar
favelas, sítios, construções, feiras, sumir.
Samuel conduzia o grupo de umas trezentas pessoas na direção
do viaduto de Santa Teresa quando surgiram aqueles oito/nove
soldados, tiros, luta, e ele ficou caído na avenida dos Andradas,
morto.

Carlos Bicalho,
o estudante.
Página 21.

Carlos Bicalho, condenado a um ano de prisão (Artigo nº , § , da


Lei de Segurança Nacional), está voltando para casa. Seus planos:
estudar, trabalhar, cuidar da vida e da família, recuperar os dois anos
perdidos. Seus medos: poderia voltar para a faculdade?, seria
possível arranjar emprego com aquela ficha de ex-preso?, como
cuidar da sua vida e de mais duas, mulher e filha, se não resolvesse
os dois primeiros problemas?
Carlos Bicalho, no trem de Juiz de Fora para Belo Horizonte,
volta para casa com o medo que trazem os ex-prisioneiros.

Delegado Humberto Levita,


da Polícia Social.
Página 25.

Morreu de rir, literalmente, em 1982. A estranha doença,


certamente de origem nervosa, no mínimo psicológica, manifestou-se
pela primeira vez em 1978. Depois de rir durante três anos e seis
meses, de passar pelas maiores clínicas psiquiátricas do país (do
sono profundo da sonoterapia emergia um sorriso que monalisava o
rosto), ele morreu sem forças, magro porque ria do macarrão, do
arroz, do bife mal passado, do feijão, do purê, da sopa,
principalmente do macarrão, e não conseguia comer nada. Morreu
rindo fragilmente sua gargalhada terrível.

Candinho,
o marido de Juliana.
Página 33.

Terça-feira, 24/3/71 — Episódio da Rainha Midas.


Foi uma noite de solidão e tristeza e humilhação. Eu podia pre
ver que seria assim. Ora, velho filho da puta, pára de se enganar. A
velhice é que corrompe. Eu compreendi o olhar dela e podia ter ido
embora. Mas um homem se sente tão só, às vezes. Tão necessitado
de beleza, juventude, seios firmes — pelo menos para tocar! Aquele
estranho jeito de me chamar de paizinho. Tira a roupa, paizinho. E
você? Você primeiro, paizinho. Então vamos tirar juntos. Que
bobagem, paizinho. Foi a segunda bobagem: tirar a roupa na frente
daquele sorriso de deboche, daquela menina corrompida. Um velho
de 52 anos fazendo strip-tease para uma moça de vinte. Teria sido
melhor não hesitar tanto. Que calma, paizinho, parece que nem me
liga. Durante o tempo todo eu tive vontade de provar que ela não era
melhor do que eu. Tudo errado. Ela ria como se fosse minha primeira
vez, como se estivesse lidando com (riscado) ria talvez do meu
esforço para disfarçar a barriga. Um velho que não se responsabiliza
pela própria barriga pode esperar algum respeito nesse mundo? Um
velho nu. O que faz um velho nu num quarto onde há uma moça
vestida? Outro erro: ter deitado. Que é isso, paizinho, não vai me
ajudar a tirar a minha roupinha? Um velho nu andando num quarto
em direção a uma moça vestida rindo. É preciso dizer tudo isso?,
anotar tudo isso? Oh, me sinto tão só. Não, nada disso, não tenho
nenhum direito de reclamar, eu escolhi essa velhice. Agora, tudo
menos choro. Vamos velho filho da puta, conta tudo. Quando a tirei
de suas roupas ela era só beleza. Nossa, paizinho, que tesão, parece
um rapaz.Minha excitação fazia cócegas em sua nudez e ela me
puxou pelo sexo: vem pra cama, paizinho. Puxava como se fosse um
cabresto, como se dissesse: olha aqui o que que eu faço com a sua
tesão, velho. O efeito foi desastroso para mim, o humilhado, mas não
surpresa para ela: que é isso paizinho, me quer mais não? Havia riso
misturado na pergunta. Deitados. Meus beijos — na boca não,
paizinho — só faziam cócegas, por causa do bigode, e ela ria como
uma menina brincando. Tão distante de mim, do homem carinhoso e
respeitável que eu queria ser, tão excitante com aqueles seios! Ela
não quis, recusou de novo meu membro excitado, dirigindo minha
cabeça aos seios, oferecendo a barriga, séria agora, oferecendo, os
olhos semicerrando — eu podia ter adivinhado, desde o princípio,
desde aquele primeiro olhar, e agora ali deitados eu podia ter
adivinhado, antes mesmo que ela sussurrasse: beija aí, paizinho.
Velho serve é para isso. com humilhação e desespero escondi minha
cabeça entre suas coxas e a esgotei com ódio. Aceitei depois seu
cansaço e minha frustração: agora não, paizinho, estou morta. Nunca
mais, mãezinha.
Sei que não devo voltar lá. Penso todo dia nessa humilhação e
acho que acabarei por desgastá-la aos poucos, como fiz com minha
recusa da velhice, com meu amor por Juliana. Estranho masoquismo.
Voltarei lá porque tocar no ouro da sua juventude compensa toda a
humilhação, tristeza e solidão daquela noite.

Deus.
Página 33.

Espírito Perfeitíssimo Criador do Céu e da Terra.

Velha amiga
de Juliana.
Página 37.

Esta senhora surpreendeu o marido masturbando-se,


espreitando-a tomar banho. Ficou tão lisonjeada que parou de
procurar homens e apaixonou-se de novo por ele. Através da neblina
do box do banheiro, adinhava-o em sua febril ocupação, furtivo
caçador. A caça, ansiosa, oferecia o peito ao tiro.

Juliana.
Página 41.

Confidencia de Juliana a um rapaz:


— Eu preciso pensar nisso direito: se eu gostava mais como era
antes. Talvez aquela loucura dele, aquelas armadilhas para me
matar, fossem amor por mim. Porque... veja bem: agora ele sai às
tardes, catando menininhas com ar de devasso, nem sei como a
polícia não vê. Está ficando até alegre. Mas eu não participo disso,
entende? Antes, quando — quando ele queria matar a gente, era uma
ligação. Está me entendendo? É isso: naquela época eu acho que ele
me amava porque queria morrer junto comigo, não queria que eu
fosse uma velha fútil pegando rapazinhos nas lojas de tecidos. Eu
estava incluída no plano dele. Agora não. Agora é cada um na sua,
como vocês dizem. Envelhecer é isso, eu acho. Ele atravessou a
menopausa, saiu da crise. E se livrou de mim, entende?, se largou,
me entregou a mim mesma e agora não sei o que vai ser.
— Agora vem a sua menopausa, disse o rapaz com um sorriso.
Carlos,
o rapaz que possui Juliana.
Página 41.

— A sua única chance de voltar é fazer uma declaração pública


renegando o comunismo. O reitor não pretende impedir você de
estudar. Veja bem. O que ele não quer é que você seja um mau
exemplo para os outros alunos.
— Como é que eu vou renegar uma coisa que eu nunca fui?
Isso seria admitir uma coisa que eu tenho negado desde o princípio.
— A sua imagem é essa. A declaração atingiria apenas sua
imagem.
— E o senhor acha que eu teria algum ambiente para estudar
nesta escola se fizesse uma declaração dessas? Acha que os
colegas iam me aceitar?
— Por que não?
— Ora, o senhor conhece estudante.
— bom, está nas suas mãos.
— Eu não preciso de acordo com o reitor. Eu vou à Justiça.Se
não ganhar a reintegração, faço vestibular e começo no primeiro ano
outra vez.
— Ora, ora, senhor Carlos, perder quatro anos, fora esses dois
que o senhor já perdeu?
— Isso se eu não ganhar na Justiça.

157

— Olha, meu filho, eu vou ser franco: não adianta. Um reitor


naturalmente tem meios...você sabe... a qualquer momento ele pode
agir, no interesse da comunidade universitária.

A empregada
de Juliana.
Página 41.

Lady (pronuncia-se ladi, como o pó-de-arroz de antigamente), a


empregada, chamou o Pronto Socorro quando viu o doutor Candinho
e dona Juliana contorcendo-se e gemendo após o jantar. Que foi que
eu fiz, minha Nossa Senhora! — repetia desesperada, achando que
era alguma coisa que teriam comido no jantar.
Eles ficaram dois dias em perigo de vida no hospital e a
dedicação, lágrimas e desespero de Lady não impediram que a
polícia a considerasse suspeita número um: tinham encontrado
arsênico na farinha de trigo. Se os patrões morressem, ela entrava,
avisou a polícia.
— Ai meu Deus do céu — gemia Lady, preta, 38 anos, feia, sem
namorado.

Andréa,
a cronista social.
Página 51.

O escrivão pediu documento de identidade, colocou papel na


máquina e escreveu. Andréa, a melhor parte do processo, está
vestida para a estação: saia bem curta, a mais comprida que tinha em
casa, branca, de preguinhas; blusa de cambraia violeta, com o
primeiro botão aberto: camiseta decolada por baixo, sem sutiã. Cinco
homens olhavam para suas pernas.
— Estado civil?
Os cinco homens olharam para seu rosto. (Por que sorrindo?)
— Solteira.
— Há quanto tempo conhecia Samuel Aparecido Fereszin?
Os cinco homens aprovaram a pergunta fazendo caras atentas
para ela.
— Bem, eu... eu nem sei direito. Uns cinco meses, acho...
Os cinco homens gostaram da resposta e se olharam.
(Aprovando?) O escrivão insistiu.
— Cinco meses. Os homens olharam para ela, atentos. (Um
pouco tensos?)
— É... mais ou menos... cinco meses. Conheço do jornal, só. Os
cinco homens continuaram olhando-a. (Decepcionados?)
— A senhorita tinha ou teve relações íntimas com esse rapaz?
Dois homens olharam para o escrivão. (Surpresos?)
— Como assim?
Os dois homens olharam para ela. (Compreendendo seu
espanto?) Eram olhos curiosos, devassadores. (Me desejam.)
— Relações sexuais.
Quatro homens sorriam, um dos que estavam sentados
esfregou as mãos entre os joelhos. Ela demorou um pouco a
responder, surpresa, e o outro que estava sentado riu baixinho, de
boca fechada. O escrivão repreendeu-o com um olhar.
— Não. Nunca.
(Por que esse tipo de pergunta?) Os homens aguardavam o
próximo lance do escrivão. (Decepcionados?)
— A senhorita é comunista?
— Não.
— Conhecia as atividades políticas desse rapaz?
— Não.
(Os homens estavam desinteressados?)
— Sabe se ele era comunista?
— Não.
— Quer dizer que a senhorita não tinha intimidade nenhuma
com ele?
Os cinco homens prestaram atenção.
— Não.
O escrivão olhou para os lados e um homem sentado à direita
balançou a cabeça, autorizando alguma coisa. (Ou incentivando?) O
escrivão tirou um caderno de uma gaveta.
— A senhorita sabe da existência desse documento?
Ela fez um gesto de ombros, como quem não sabe. O escrivão
abriu o caderno numa determinada página e apontou para ela:
— Leia.
Ela ouviu respirações ofegantes, qual dos homens esfregou as
mãos?, um limpou a garganta. Leu: “principalmente numa situação de
perigo. Quando Andréa pegou meu pau e pôs na boca no terraço do
edifício Acaiaca, eu sabia que ia começar”. Parou de ler, vermelha,
trêmula.
— Continue.
Ela olhou para os homens, procurando apoio. Encontrou caras
de pessoas assistindo a um filme.
— Não, eu não.
— Por favor.
(Eles não podem me obrigar. Por que não vim com um
advogado?)
— Não. Ler isso para quê?
Os homens olhavam intensamente para ela. (Para o caderno?
Para as pernas?) Ajeitou-se na cadeira, tentando puxar a sainha para
baixo. O escrivão estendeu a mão.
— Eu posso ler para a senhorita. É preciso ficar claro se a
senhora, senhorita, conhece o documento ou não.
(Debochado?) Ela fez depressa um gesto de recuar a mão.
— Não. Eu leio.
— Os homens pareciam satisfeitos com a decisão do escrivão e
com o susto dela. Pareciam não se importar que ela lesse sozinha.
(Todos já leram?) Fingiu ler, cobriu o decote com a mão esquerda,
vislumbrava os vultos olhando-a. Passavam palavras do caderno
pelos seus olhos, palavras que ela recusava: “pequenos sei... cidade
lá em bai... alguém pod... ansiosa, respiração como um ataque de
asma, e a coisa” — um dos homens que estavam em pé veio sentar-
se no canto da mesa, para acompanhar a leitura com ela, entortando
o pescoço, e ela passou a página — “língua... tempo... vindo para
mim... cheiro dela ou das flores... psicológico, eu acho... tempo...” —
passou a página — “pinguço, coitada... não é culp... posar nua, pintei-
a toda em vez de... a tela... maravilha colorida no meu pau”. Parou de
ler. Ficou olhando o papel, ganhando tempo. O escrivão desconfiou
que ela terminara.
— A senhorita reconhece essa letra?
Olhou para o escrivão. Os cinco olhavam seu corpo, respirando
um pouco apressados.
— Não. Nunca a vi.
— Isso não é a narração das relações dele com a senhorita?
— Não.
— A senhorita conhece a letra dele?
— Não.
Os homens não pareciam muito interessados no diálogo.
— Nós temos três cadernos desses.
(Não, pelo amor de Deus.) O homem sentado na mesa
entortava o pescoço para ver seu decote.
— Precisamos esclarecer alguns detalhes para estabelecermos
exatamente quais eram as relações do rapaz com a senhorita.
— Mas eu não tinha nada com ele!
O homem entortou mais o pescoço. Ela colocou a mão no
decote. (Devo?) O homem sentado na cadeira ao lado do escrivão riu
de boca fechada, baixinho. O escrivão sorriu. (Atencioso? Fazendo
charme?) — As coisas que esse caderno diz, quando foi que
aconteceram? (Aconteceram?) Os homens se inquietavam.
—Já disse que não tinha nada com ele. Isso é uma violência,
vocês estão querendo me forçar. Eu não tinha nada com ele, mal
conhecia.
Falou alto, protestando. Os homens gostaram da reação dela.
(Excitados?) O homem da mesa sacudia a perna esquerda no ar, o
pé direito estava apoiado no chão.
— Nós temos meios de saber a verdade.
O escrivão falava sem abrir muito a boca, respirando diferente.
(Ameaçador?) Os outros se contraíam, tensos. A perna do homem
parou de bater no ar. (Vão me bater!)
— É a pura verdade. Nunca tive nada com ele. Perceberam o
medo na voz dela. Ninguém fumava.
— Está bem. Se é assim que a senhorita quer.
O escrivão disse isso mexendo na gaveta. (Procurando um
revólver?) Tirou um caderno parecido com o que estava na mão dela.
Ela quis colocar o caderno na mesa, recuou, com medo de esbarrar
na perna do homem que estava sentado nela. O homem tinha
chegado os quadris mais para a frente. (Querendo encostar?) O
escrivão procurou uma página, apontou e:
— Aqui diz que a senhorita tem uma pinta no lado direito do
clítoris.
Ela olhou com olhos indignados para todos eles, procurando
socorro. O sangue tingiu de vermelho todo seu rosto e pescoço. O
caderno tremia na sua mão. Ela tentou rasgá-lo depressa, com ódio.
O homem sentado na mesa avançou as mãos.
— Não faz isso.
Segurou seus dois pulsos, impedindo-a de mover as mãos e
prosseguir rasgando. Segurava a mão esquerda dela muito perto do
sexo dele. (Puxando-a mais para lá?) Ela abriu as mãos, soltou o
caderno, recuou com força a mão esquerda.
— Larga.
O homem largou-a na mesma hora. (Quem mandou?) Apanhou
o caderno e sentou-se novamente na mesa.
— É verdade ou é mentira?
O escrivão falara sorrindo (sensual?) como se fosse uma
intimidade entre eles dois. Ela estava de cabeça baixa e não
respondeu.
— Hem? O negócio da pinta, é verdade ou não?
Ela levantou o rosto e ainda tentou enfretá-los. Estava chorando.
— Não interessa! Não interessa!
Gritou. O escrivão, calmo, outra vez falando com a boca meio
fechada:
— Muito bem. Nós vamos fazer um exame pericial.
Alguns riram excitados, outros mexeram-se nas cadeiras, um
enfiou a mão esquerda no bolso, o que estava sentado na mesa
avançou um pouco mais os quadris. Ela chorava, apavorada.
— Não, pelo amor de Deus. É verdade, sim. Estava entregue,
dominada.
— E como o Samuel podia saber disso, sem examinar?
— Não sei. Chorava.
— O lado que ele escreveu está certo? É do lado direito
mesmo?
— É. Vencida.
— Lado direito seu ou de quem entra?
Risadas, farfalhar de roupas.
— Meu.
— Essas sacanagens que estão nos cadernos, você fez com
ele?
— Não.
— Você faz chupetinha? Faz? Está escrito aqui! Faz? Fez?
— Fiz.
— E sessenta e nove.
— É.
— Gostou?
— Pelo amor de
— Gostou, porra!?
Ela fez que sim com a cabeça.
— E como que ele sabia?
— Não sei.
— Fala!
— Não sei, não sei!
— As sacanagens do caderno, não aconteceram? Ela confirmou
com a cabeça.
— Então como
— com outras pessoas, foi com outra pessoa.
— Isso explica. Mas é verdade?
— É.
— Olha lá, hem?
— Verdade. Chorava. Só via vultos.
— Você fez aquilo tudo? Sempre faz? Faz?
— Por favor.
— Faz, porra?!
— Depende.
Humilhada, entregue, aberta
— Do comprimento ou da grossura?
Risos. Ela chorava. Ouviu uma espécie de gemido, perto.
— Fez com quem? Quem são as pessoas?
— Um rapaz do jornal.
— Quem?
— Há muito tempo.
— O nome dele.
— Haroldo.
— Quem é esse?
— Ele agora é o redator-chefe. Alguém acendeu um cigarro.
— E o sacana contou para o outro?
— É, deve ser.
— Que sacana, hem?
Não havia mais violência na voz do escrivão.
— Quem mais?
— Meu noivo. Ex-noivo.
— E como é que esse Samuel ia saber disso tudo?
— Não sei.
— Era amigo dos caras?
— Ultimamente tinha amizade com o Roberto, meu noivo.
— O cara da festa de outro dia.
— É.
— Mas ele não é veado?
Risinhos. Mais três homens acenderam cigarros, com baforadas
fundas. (Cansados?)
— Não sei. Isso é com ele.
O escrivão começou a escrever à máquina.
— Eles eram amigos, esse Haroldo e Samuel?
— Acho que não. Não sei.
— Como não sabe?
— Ultimamente não ando mais com ele. Isso é coisa antiga.
O escrivão batia à máquina. Os homens fumavam, amolecidos.
O choro dela diminuíra, era só umas lágrimas e um lenço.
Ofereceram-lhe cigarros, gentis. Um logo puxou fósforo. Ela não quis.
O escrivão parou de bater, puxou o papel, leu, entregou a ela.
— Leia e assine, por favor.
Abaixo do cabeçalho, data, nome, carteira cie identidade etc,
estavam escritas apenas umas cinco linhas, que ela mal leu: ”apenas
o conhecia superficialmente... não sabe explicar... nada mais
havendo...”. Assinou.
— Obrigado. A senhorita está dispensada. Quer que alguém a
leve em casa?
Ela procurava alguma coisa na bolsa. Encontrou: óculos
escuros.
— Não, obrigada. Posso ir?
— Lógico, lógico. Acompanhe a moça, Zé.
Ela colocou os óculos. O homem que estava sentado na quina
da mesa levantou-se, solícito. O que estava sentado à direita do
escrivão levantou-se, bateu nas costas dele, rindo. Ela passou pelo
homem que chamaram de Zé e parou à porta, fechada. O homem que
cumprimentava o escrivão falou: — Você foi perfeito, Maranhão. Só
errou numa coisa. Zé abriu a porta.
— No quê? Ela passou.
— Não é clítoris que se diz. É clitóris. Ela desapareceu.
O pai
de Andréa.
Página 51.

A família achava loucura as coisas que ele fazia: dormir com as


empregadas, xingar as visitas, gastar dinheiro à toa, beber demais,
desaparecer muitos dias sem dizer nada e de vez em quando bater
na mulher. Há muitos anos, ainda no Rio, houve aquela história do
desfalque. Deve ter sido o começo, o primeiro sinal da loucura,
pensavam.
Em abril, ouviu uma conversa no bar do Alpino: uma tal de
Andréa tinha feito as maiores sacanagens com aquele jornalista que
morreu na praça da Estação. O cara até escreveu um diário, coisas
de arrepiar. Certeza: é ela mesmo, cronista social do Correio. O velho
quebrou o bar, aos urros. Levado para casa, ficou um dia fechado no
quarto, jogando coisas em quem botava a cara na porta.
Lugar de doido é no hospício. Arrastado, gritando puta e filhos
da puta, ele foi. A mulher passou vários dias sem sair de casa, com
vergonha dos vizinhos. Depois de dois meses de tratamento, o doido
estava calmo, com uns olhos esquisitos. No dia de São Pedro ele saiu
do hospício sem ninguém perceber e nunca mais deu notícias.
Cinco anos depois, em 75, a família ouviu contar que um velho
estranho morava numa ilha do Araguaia amigado com uma mestiça.
A história saiu numa revista de caça e pesca e a mulher teve um
pressentimento: é ele. Olhos azuis, só pode ser ele.
O psiquiatra adotou uma posição estranha: se ele está feliz,
como diz o caçador da revista — se não é mentira de caçador — é
melhor ficar por lá. Andréa escreveu do Rio: ora, mamãe, se ele quer
ficar, que fique. A mãe não admitia: isso é falta de religião.
A mãe foi lá, com o cunhado, irmão do doido. Era ele, sim, o
doido, depois de nove dias de viagem. O irmão achou o lugar
belíssimo, ótimo para uma fazenda. O velho foi mostrar a cachoeira,
nadou nu — a mulher muito constrangida, perto do cunhado. A
mestiça não se mostrou, da chaminé saía uma fumacinha. Quando
chegou a hora de perguntar o que foi perguntado, o velho disse que
não voltava. Estava bem ali, queria morrer ali. Perguntou pelos
meninos, pelas meninas. Assis?: jornalista no Rio, bem colocado.
Ana?: boa, com os meninos dela; tem dois. Andréa?: no Rio, acho
que vai casar com o Murilão, do Fluminense. Quem disse que vai?
Me escreveu, falando. Ainda falam dela em Belo Horizonte? Só na
crônica social. Elogiando. O velho disse mais uma vez que era ali que
queria morrer, o irmão achou que estava bem, a velha concordou
chorando.
E chorou muitos anos, com saudade dele, aquele doido.

O jovem
pleibói.
Página 54.

O jovem pleibói fazia o que fazem os pleibóis nas manhãs de


abril quando telefonaram para dizer que Andréa fora presa, onde e
como. Vestiu-se apressado, a mulher disse como é que eu vou para
casa, ele disse se vire porra, saiu deixando a porta aberta e uma puta
xingando na cama, correu para o DOPS.
— Aquela, a, como é que chama, a cronista social? Já foi para
casa. Foi ontem.
Correu para a casa dela. Ontem? Porra, como é que não me
avisaram? A mãe e a irmã, aflitas: está lá, foi hoje de manhã, tem
duas horas que está lá. Correu para o DOPS, puto.
— A cronista? Acabou de sair.
— Quero falar com o delegado.
— Dr. Levita não está.
— Olha aqui. Meu tio é general da ID-4. Vai querer se foder?
Hesitação do policial. Devia ser verdade, o rapaz estava seguro
demais.
— Pode entrar e olhar, pergunte a qualquer um. Quer telefonar
para ela? Deve estar chegando em casa.
Dedo no nariz.
— Olha, eu vou lá. Se for mentira você vai se foder. Cadê o
veado que me atendeu aqui antes?
— Estou sabendo de nada.
— Um moreninho de bigode fino. Pode dizer pra ele que vou
fazer uma cama pra ele deitar.
Andréa estava em casa, chorando. Abraçou-o agradecida.
— Fizeram alguma coisa com você? Encostaram a mão?
— Não. É que — eu fiquei com tanto medo. Eles são horríveis.
— Fala. Se fizeram alguma sacanagem eu falo com meu tio.
— Não, fizeram não. É o ambiente, eles, tudo lá é horrível.
— Queriam saber o quê?
— Se eu conhecia o Samuel. Aquele que morreu na praça.
— Só isso?
- É. Queriam saber se eu tinha alguma coisa com ele.
- Tinha?
- Não, lógico que não.
- Então, por que apanharam logo você?
- Acho que ele era apaixonado por mim.

Haroldo, o segundo
amante de Andréa.
Página 58.

Procurado pelo investigador de apelido Bacalhau, o redator-


chefe do Correio de Minas Gerais ofereceu-lhe um uísque, falou de
jornal, da trabalheira que dá, do seu repórter Samuel Aparecido
Fereszin e, muito folgaz, explicou que contava ao rapaz seus
encontros com Andréa porque
— Eu sou daqueles que gozam duas vezes: quando comem e
quando contam.
Riram, riram. Bacalhau completou:
— E o outro era dos que gozam quando ouvem. Riram, riram.

O pintor jovem,
Roberto J. Miranda.
Página 60.

No dia seguinte à festa, Roberto acordou às quatro e meia da


tarde e encontrou a casa maravilhosamente em ordem. Reparando
bem: quase em ordem. Melhor: ai meu Deus! E afinal: uma dolorosa
tragédia. O veludo roxo do sofá, manchado de gordura, um círculo
enorme. Na poltrona, furo de cigarro Furos de cigarro no caipete.
Decapitada a Maria Antonieta de porcelana, século dezenove. Paté
nos discos.
Procurou aflito um livro na estante, apanhou um, abriu-o e
sentiu-se um pouco menos infeliz. Tirou um dos pacotinhos que
estavam no esconderijo do livro. Apanhou uma espátula e uma folha
branca. Derramou parte do pó do pacotinho na folha branca.
Amassou-o com a espátula cuidadosamente. Fez um rastilho de pó,
bem fininho. Dobrou uma parte da folha e cortou-a com a espátula.
Cortou o pedaço de folha branca ao meio. Enrolou uma das metades
do papel, fazendo um canudinho fino. Enfiou o canudinho na narina
esquerda, aproximou-o do rastilho de pó e aspirou com força.

Uma lésbica.
Página 62.

Depois daquele beijo na festa, Cora Adélia perseguiu Andréa


pelos bares, pelos jornais, telefonava, mandava flores. Tentou
comprar na polícia uma cópia do famoso diário do terrorista, em que
ele contava as coisas que fazia com Andréa. Um investigador quase
bateu nela, empurrou bastante. Um dia ele mesmo veio procurá-la e
vendeu uma cópia xerox por quinhentos cruzeiros. Cora Adélia deixou
crescer os bigodes em 1972.

A mãe,
Lenice.
Página 67.

Lenice disse ao coronel Bolívar, da Polícia Militar, pequeno herói


de 64, que era um absurdo o que o DOPS estava fazendo, tentando
envolver seu filho naquela confusão da praça da Estação. O coronel,
seu amante desde 1948, cauteloso e protetor: — O pessoal do DOPS
está passando um momento difícil, Lenice. Se o Robertinho conhecia
esse Samuel e se esse rapaz iria à casa dele, a polícia tem de
investigar, minha filha. É lógico que não vão fazer nada com ele,
porque eu já garanti ao Levita que o envolvimento de Robertinho é
circunstancial, que ele apenas conhece umas pessoas. Mas o
pessoal do Levita tem de investigar a infiltração comunista nessa
festa. Tem gente lá de cima achando até que as ordens para o
levante saíram da festa do Robertinho, que as instruções partiram de
lá, pelo telefone. Veja só as coincidências e se não é caso de uma
investigação minuciosa. Veja: o estudante Carlos, líder da primeira
parte da revolta dos retirantes, era um dos convidados. Um grupo de
intelectuais de esquerda esteve na praça antes da revolta, conversou
com Samuel e com o retirante Marcionilio e depois foi para a festa.
Isso é comprovado, absolutamente verdadeiro. Duas horas depois, o
tal Samuel pôs fogo no trem, começou o tumulto. Os intelectuais
podem ser um contato, não podem? O assistente do secretário do
Trabalho, o Otávio Ernâni, apesar de ser do governo, quer dizer: era,
porque já foi exonerado, era do governo e é meio esquerdinha.
Estava lá, na festa. Assunto de retirante era da pasta dele. Não dá
pra desconfiar, uai? E tem mais: foi ele quem arranjou o emprego
para esse estudante Carlos. Nas anotações do tal Samuel, estava o
telefone do Ernâni e da festa. Vai vendo só quanta coincidência. Essa
moça, Andréa, cronista sua amiga aí. Anda com os intelectuais que
estiveram lá na praça e parece que foi descoberto um diário do tal
Samuel contando coisas, minha filha, coisas do arco-da-velha entre
eles dois. Ela também estava lá, na festa. Está vendo, quanta
coincidência? É isso que épreciso investigar. Eu sei que o Robertinho
não tem nada com isso, expliquei como ele é. O Levita está sabendo,
fique tranqüila.

Filho,
Roberto J. Miranda.
Página 67.

Depois de cheirar o rastilho de pó branco, no dia seguinte à


festa do seu 29º aniversário, Roberto conferiu a ordem do banheiro,
da cozinha, do quarto grego e oh surpresa! um casal estava fazendo
sessenta e nove no quarto azul. Eram quase cinco horas da tarde.

Deus.
Página 77.

Não é o mesmo deus da página 33. É outro, terrível, que


apavora as crianças e que Roberto matou aos doze, treze anos.

Jorge Paulo
de Fernandes.
Página 81.

As coisas que Jorge contou à polícia:


a) havia tóxicos na casa, maconha e cocaína;
b) Roberto J. Miranda era viciado em cocaína;
c) a turma do suplemento esteve na praça da Estação antes da
festa;
d) dessa turma, Luís, o aleijado, era viciado em maconha e batia
no pai;
e) Jacob, Rodolfo e Fúlvio eram comunistas ou pelo menos
simpatizantes;
f) Yan tinha correspondência com alguém na China, parece que
um poeta que veio a Belo Horizonte com o Grupo Acrobático da
China;
g) Cláudia, socióloga e feminista, tinha trabalhado um dia inteiro
como puta para ver como era;
h) Flávio andava dizendo que a revolução matou a cultura no
Brasil, que tanto fazia morar aqui como no Burundi, na África;
i) Andréa estava apaixonada por Roberto Miranda e não por
Samuel Aparecido Fereszin, como diziam;
j) Samuel era um dos convidados para a festa;
1) Otávio Ernâni foi chamado ao telefone duas ou três vezes,
durante a festa, a respeito dos nordestinos e da prisão de Carlos
Bicalho, o estudante;
m) ele, Jorge, fora procurado por alguém para atuar como
advogado na prisão de Carlos Bicalho; alguém, uma voz ao telefone;
n) no quarto grego, uma bicha fez strip-tease;
o) conhecia Carlos Bicalho superficialmente, ele era amigo dos
escritores do suplemento, mas podia garantir que tinha tendências
comunistas;
p) os escritores e outros intelectuais do suplemento souberam
da prisão de Carlos Bicalho durante a festa e não na praça da
Estação, por intermédio de Samuel;
q) a reação deles na festa era de medo do que poderia
acontecer com eles agora;
r) Otávio Ernâni bebia muito;
s) Roberto Miranda tinha dois namorados na festa: Andréa e um
rapaz chamado Lúcio não-sei-de-quê;
t) a festa estava animadíssima;
u) para falar a verdade, ninguém na festa parecia muito
preocupado com o que estava acontecendo na praça da Estação, a
menos que falassem escondidos;
v) quem quisesse beijar Andréa na boca, beijava;
x) Samuel era muito pouco conhecido da turma, mais amigo de
Roberto Miranda, talvez por causa de Andréa ou talvez porque este
quisesse pegar Samuel;
z) o uísque era nacional.

Maria, Empregada
de Jorge.
Página 81.

Maria trabalhou para Jorge até o dia em que começou a ver


Nossa Senhora. Nesse dia, não anotado mas certamente de 1971, a
Mãe de Deus chamou-a para um particular, confidenciou um terrível
segredo sobre o fim do mundo e encarregou-a de salvar quantas
almas pudesse, até a data do Inevitável. Maria parou de trabalhar,
conseguiu reunir um grupo de beatas — inclusive a mãe de Mônica —
e partiu em Cruzada. (Mônica às vezes recebia do interior recados
sobre as maravilhas, como esse: “Olhe para o sol hoje ao meio-dia;
no sol, aparecerá um Sinal. “ Mônica, indignada, recusava a Graça.)

Filinto
Müller.
Página 83.
O cadáver podre de Antônio Conselheiro ainda assustava a
jovem República quando nasceu o filho do senhor Júlio Müller, no
primeiro ano do século; a viagem a Paris se fazia em dez horas de
jato quando ele morreu, no septuagésimo terceiro ano.
Filinto Müller viu tudo nesses 73 anos.
De que deus ouvia falar esse menino nascido em Cuiabá, Mato
Grosso? (Muitos anos mais tarde ele se diria agnóstico e revelaria
que apreciara mais a obra de São Paulo do que a vida de Cristo.)
Que brincadeiras brincava, além de faiscar cristais nas ruas e vender
ao pai como ouro? (Ouro! — a República ainda estava encantada
com as maravilhas do Império; havia, nas famílias, casos de avós
ricos da noite para o dia.) Que histórias aprendia na aula de História,
tudo tão por vir?
O que aprendia esse menino quando os camponeses de Santa
Catarina e Paraná fizeram a guerra do Contestado contra os
proprietários de terras, contra os imigrantes (primos seus, quem
sabe!) e contra o governo, durante quatro anos, de 12 a 16?
E em 14, o que fazia, o que aprendia, que mistérios o tocavam
quando o mundo começou sua primeira guerra e em Juazeiro, Ceará,
o padre Cícero e o deputado Floro Bartolomeu faziam também a sua
grande guerra de jagunços, capangas e cangaceiros contra o governo
estadual, incentivados pelo próprio governo federal?
Quem eram seus heróis, que faroestes galopavam com esse
menino, esse rapaz, que se preparava para a Escola Militar do
Realengo enquanto Virgulino Ferreira da Silva trocava Vila Bela, hoje
Serra Talhada, pela caatinga, em 1917?
Que napoleões o formaram tenente, em 22?
O segundo-tenente Müller estava no quartel da Vila Militar
quando o tenente Eduardo Gomes tornou-se herói nacional no Forte
de Copacabana, em 22, e um bando de artistas loucos iniciou uma
revolução nas artes no Teatro Municipal de São Paulo. Ele era um
dos tenentes que pressionavam Artur Bernardes, o novo presidente,
o difamado por documentos apócrifos contra os militares, o oligarca, o
mão de ferro.
Ele estava lá e viu tudo, em 24, quando os paulistas
(re)iniciaram a revolução: saiu de Quitaúna com seu batalhão de
artilheiros, juntou-se à revolução, viveu a derrota de Catanduvas,
irmanou-se com os paulistas à Coluna do capitão Luís Carlos Prestes,
que subia do Sul com a idéia de uma revolução em movimento, e
foram companheiros até o breve refúgio da Coluna no Paraguai — ele
estava lá, lutou, viu os homens lutando, conheceu seu futuro inimigo,
Prestes, aquele bandido, que ainda não via como bandido, ainda um
militar revolucionário como ele, o primeiro-tenente Müller. Por que
Müller não voltou ao Brasil com a Coluna, guerreando, e preferiu ser
exilado, chofer de táxi, quebra-galho, oh que saudades que eu tenho?
Voltou dois anos depois, já sem Bernardes, o mão de ferro, sem
Coluna, sem farda, no governo Washington Luís; preso, defendeu-se
solitariamente e a justiça aprovou sua revolução com a liberdade. Foi
trabalhar na Mesbla até a próxima revolução, a de 30, a dos lenços
vermelhos no pescoço, o nó em que se enforcaria a Aliança Liberal.
Esta sim, foi uma boa revolução para o reintegrado capitão
Müller, secretário do interventor em São Paulo em 32, diretor da
Guarda Civil no Rio em 32, delegado de Ordem Política e Social em
33, chefe de Polícia em 37. Durante dez anos ele foi o cérbero do
inferno de Getúlio. Ele viu, nas prisões, os homens sem testículos e
as mulheres rasgadas. Viu o terror na cara dos homens que eram
apanhados em suas casas para interrogatório, o terror dos
comunistas, dos integralistas, dos liberais e dos que simplesmente
não concordavam. Ele viu verdades históricas serem inoculadas em
corrente de 110 volts. Que cenas teria na memória ao lembrar-se,
entrevistado pela revista Veja, em 72?: “Foram 10 anos de trabalho
intenso e de dedicação ilimitada.”
(Ah, Filinto, Filinto, melhor fora que houvesse limites.) O velho
senador de 72 anos tem um certo orgulho da sua carreira, e mesmo
aqueles anos, olha, aqueles anos... “Houve casos de torturas. Que
posso fazer? Dizer que cumpria ordens superiores? Não. Isso é
deslealdade. Dizer que foram arbitrariedades? Também não. Seria
covardia. Eu fico com a responsabilidade, não a atiro para cima nem
para baixo.”
Em 45, quando derrubaram Getúlio Vargas, pai dos
trabalhadores, ditador, o coronel Müller já estava no Mato Grosso em
campanha eleitoral, águia, iniciando sua carreira mais duradoura, a
de senador. Nos seus 26 anos de senado, foi líder da maioria (PSD)
em 56 e, depois de apoiar a derrubada do presidente João Goulart
em
64 como “medida de salvação nacional”, tornou-se líder de outra
maioria em 68; foi do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (chora, musa), presidente da Aliança Renovadora Nacional,
presidente do Congresso (oh Lord!). Falou pouco nesses 26 anos,
raposa discreta. Mas falou em 72, autocrítico: “O mal das ditaduras é
que não são capazes de limitar-se no tempo. E mais: em torno delas
forma-se uma legião imensa de pessoas interessadas em sua
manutenção, dispostas a conservar o status quo, a todo preço. E
essas forças interessadas via de regra isolam o chefe do Governo,
mantendo-o fora do alcance da realidade do meio-ambiente. E a
ditadura, que geralmente é implantada com a melhor das intenções e
que produz resultados materiais benéficos num período relativamente
curto de sua atuação, logo se descaracteriza e passa a cuidar, quase
exclusivamente, da sua permanência.”
Ah, o velho senador estava presente, viu as revoltas populares,
viu os retirantes, viu Lampião, viu a revolução das artes, viu a crise do
café, viu as duas guerras, viu as revoluções e os golpes de 22, 24,
30, 32, 35, 38, 45, 55 e 64 — foi o revoltoso, o exilado, o policial, o
inquisidor, o simpatizante de Hitler, o general reformado, o senador, o
bom marido e pai, viu o choro e o riso do Brasil, até que morreu
silencioso, envenenado por um gás letal, na classe turista de um
Boeing 707 da Varig, no dia do seu 73º aniversário.

Verinha Nabuco,
a filantrôpega.
Página 84.

Ninguém se apiade de Verinha Nabuco: ela merece esse


sofrimento, essa angústia, essa felicidade, no dia 2 de abril de 1970.
O seu vestido Rudi Gernreich estará perfeito, absolutamente
perfeito? A renda da festa em benefício da Casa da Mãe Solteira será
razoável ou maravilhosamente fabulosa? Os artistas convidados a
25% da renda das mães solteiras ficarão ligados, absolutamente
ligados? O governador da Guanabara irá mesmo, como prometeu? O
serviço será perfeito, nãofaltanadamente perfeito? Ó, meu Deus,
verificar se aquele alucinado garçom do ano passado não está entre
os garçons contratados. A sua filha, a sua linda filhinha estará mesmo
viciada em drogas? Irá à festa, como prometeu? As mães solteiras
precisam demais, não têm ajuda da família, é comum matarem os
filhos, tanta desgraça, santo Deus! É preciso fazer alguma coisa para
ajudar os pobres do Rio, os velhinhos, as velhinhas, os artistas, os
favelados, os tuberculosos pobres, as mães solteiras, o menor
desamparado — tanta miséria, santo Deus! Verinha Nabuco sofre
anualmente com a pobreza brasileira. Ninguém se apiade dela no seu
grande dia de martírio. É também o seu dia de glória.

Rodolfo, que não


suporta Jorge.
Página 85.

Ameaçaram quebrar a corcunda de Rodolfo se ele não revelasse


quem dava as ordens, da casa de Roberto J. Miranda, para as
operações subversivas da praça da Estação. Quem comandava a
operação? — davam socos na corcunda. Quem comia quem? —
socos na corcunda. Ele foi interrogado três vezes no prazo de
dezesseis dias e solto sem explicação.

Mônica.
Página 85.

Mônica foi assassinada com dois tiros de revólver nas costas,


pelo marido, Jorge Paulo de Fernandes, no dia 28 de fevereiro
de 1971, quase sete meses após o casamento. A vizinha do
apartamento ouviu gritos, nitidamente as palavras como e dedo-duro,
três tiros — e chamou a polícia. Jorge foi preso em flagrante, saindo
da garagem.

Ruiter.
Página 87.
Doutor Ruiter, o advogado de defesa de Jorge, saiu na
primeira página, dos jornais quando anunciou que o crime tinha
relação com os acontecimentos da praça da Estação, de quase um
ano atrás. Um “trama diabólica” que ele só desenrolaria no dia do
julgamento.

Carlos,
o estudante.
Página 91.

Carlos Bicalho começou a vender livros. Era seguido pelo


investigador apelidado Pé-de-Mesa desde que saía de casa — não
mais um apartamento no Carmo dos remediados, agora um barracão
na Cachoeirinha dos modestíssimos. Levava uma pasta estourando
best-sellers de todos os tempos e gêneros, que comprava mais
barato nas editoras para vender pelo preço das livrarias.
Enquanto aguardava decisão judicial para reingressar na
Faculdade — seu caso, de recurso em recurso, chegara ao Superior
Tribunal Federal — tentara muitos empregos, provara algumas
esperanças e foi reconhecendo aos poucos seu lugar, até começar a
carregar aquela pasta pelas repartições, escritórios, redações de
jornais. Seus pedidos de emprego, seus concursos, esbarravam na
ficha do DOPS e as empresas o recusavam, temerosas de que ele
corrompesse seus filhos queridos.
Trabalhava das nove da manhã às dez da noite. Depois de dois
meses de pasta, andava meio de lado, mesmo quando não a
carregava. A mulher também começou a trabalhar. Sem preparo, o
melhor que conseguiu foi ser telefonista noturna. Quando Carlos
chegava, Ana saía, e
revezavam-se nos cuidados de Neusinha, a filha. De vez em quando
copulavam cansados, sem muito carinho. Logo eles, que tinham
casado porque queriam foder muito.

Deus.
Página 92.
O Espírito Santo.

Ataíde.
Página 95.

Quando soltaram Ataíde, um mês e dez dias após os


acontecimentos da praça da Estação, ele ficou sete horas e meia sem
coragem de voltar para casa. Andava, parava numa esquina,
hesitava, sentava num banco — sofria discretamente, parecia um
homem tomando sol. Tinha quatro medos: a) saber das desgraças
que certamente teriam acontecido a Cremilda, b) a mão esmagada,
inútil para o trabalho; c) o seu futuro, com aquela mão, ao lado de
Cremilda belíssima; d) o ódio.
A fome levou-o para casa. Ela ficou pálida e logo depois muito
vermelha quando o viu e gritou “Tide!” e o abraçou muito tempo,
chorando. Durante o abraço ele soube como ia ser: ouvia a voz e não
conseguia deixar de ver a cara do Punzinho dizendo: Estivemos lá na
sua casa, nós dois. Ele botou na frente e eu atrás.
Ela cozinhou para ele, chorando, cuidou da mão quebrada,
chorando e abraçando, perguntando e ouvindo depois eu conto,
depois, agora não, lavou-o, penteou-o, fez sua barba, escovou seus
dentes, beijou, vestiu-o, deitou-o, esperou que ele relaxasse daquele
sofrimento, que ele dormisse (ouvia vozes: Não fala não? Quer que a
gente volta lá para comer sua mulher? Quer que a gente traz ela aqui
para comer aqui na sua frente?), que o sono dele se tornasse mais
tranqüilo, e dormiu também, cansada de emoção.

Cremilda
de Tal.
Página 95.

No fim da primeira semana de desaparecimento de Ataíde,


chegaram dois homens querendo saber coisas estranhas sobre ele:
onde estavam as armas, os livros, quem eram os amigos deles, o que
ela fazia, se saía muito, com quem saíam. O espanto dela e as
respostas sem hesitação convenceram os homens de que ela não
sabia de nada. Não quiseram dizer, de maneira nenhuma, onde ele
estava.
Voltaram dois dias depois, perguntando as mesmas coisas, que
ela não sabia. Mesmo assim eles a sacudiram um pouco e chamaram
de puta semvergonha.
Sumiram três dias. Apareceram juntos novamente, disseram que
a tinham seguido para ver se falava a verdade. Que parasse de
procurar o homem, senão seria pior para ele. E para você também,
disse um deles, que estava meio de lado e quando se virou de frente
estava com o pau para fora, meio mole. Eles riram muito da
brincadeira, do susto dela, e saíram.
Voltaram no dia seguinte. Ela não estava. Esperaram, foram até
a casa do pai dela, obrigaram-na a acompanhá-los para
interrogatórios, disseram que se fizesse aquilo outra vez o Ataíde ia
pagar, que não saísse mais de casa sem a ordem deles. Aquele
mesmo do dia anterior tirou o pau duro para fora e disse: pega aqui.
Ela não quis, eles bateram nela de leve, palmadas na bunda e
tapinhas no rosto, durante uns cinco minutos, tapando-lhe a boca, e
foram embora apressados dizendo que estava na hora.
Voltaram no dia seguinte, muito satisfeitos com a obediência
dela. Disseram: se você for boazinha conosco, hoje não batemos
nele. Podemos fazer um trato. Só sacaneamos ele no dia que você
nos sacanear. Quer experimentar assim? Não deixamos ninguém
tocar nele lá dentro. Mas você tem de dar para nós dois, cada dia um.
Tem uma coisa: se a gente não fizer acordo, não sei não, ele vai
acabar capado. Ela deu.
Quando eles voltaram no dia seguinte, ela não quis dar. Chorou,
pediu, disse que queria ver Ataíde, ao menos isso, quem garantia que
ele estava lá vivo. Bateram nela de leve, tapando-lhe a boca.
Disseram que comer à força não tinha graça, mas voltariam e ela não
ia gostar. E não pensasse em fugir.
Os seqüestradores voltaram com um gravador. Ataíde gritava.
Eles falavam para Ataíde que tinham estado com ela, comido na
frente e atrás. Silêncio e depois gritos, sons mecânicos, gritos. Ela
cedeu. Cedeu todos os dias sem falar nada. Quando iam embora,
pedia que soltassem Ataíde, pelo amor de Deus. Eles diziam que ele
estava ótimo e que ia ser solto qualquer dia, dependia dela. Queriam
novas variações, ela obedecia. Vieram umas quinze vezes, depois
faltaram um dia, dois dias, ela angustiada e quase louca por Ataíde,
querendo mesmo que eles viessem e lhe metessem por todos os
lados, mas que Ataíde não sofresse, estava assim na angústia do
terceiro dia quando bateram na porta e ela foi atender e era Ataíde.

Senhora mãe
de umrapaz.
Página 101.

Dona Celma — Você me assusta, Ana. Aconteceu alguma coisa


com Carlinhos?
Ana— Não, nada disso. Eu nem tenho notícias dele.
Dona Celma — Isso não quer dizer nada. Ele nunca foi de
escrever mesmo. Lembra aquele tempo que ele estava em Juiz de
Fora? Só me escreveu duas cartas num ano. Para você também.
Ana — Não. Pra mim ele escreveu oito cartas. E por que a
senhora diz Juiz de Fora em vez de dizer: quando ele estava preso —
ah, deixa.
Dona Celma — Está nervosa, Ana. Que que você tem?
Ana — Dona Celma, a senhora sabe que eu sempre curti o
Carlos, sempre gostei dele.
Dona Celma— Sei minha filha, decerto.
Ana — Deixa eu falar. Nesse tempo todo, com esses problemas
todos, nunca descuidei da Neusinha, fiquei quieta em casa,
nunca tive problema na Telefônica nem nada. O Carlos dava pouca
notícia, mas dava.
Dona Celma — A vida não é fácil para ele.
Ana — Eu sei. Deixa eu falar primeiro, dona Celma. Espera um
pouco. Até um ano atrás, eu sabia que ele estava tentando arrumar
uma coisa pra nós, um emprego, porque aí eu e a Neusinha
podíamos ir pra São Paulo também. Ele mandava um dinheiro, pouco,
mas mandava. Esse dinheiro também tem mais de um ano que não
comparece. Lá em casa, papai não tem condições de dar muito
conforto, a senhora sabe não é, dona Celma?
Dona Celma — Sei, minha filha, mas com a ajuda de Deus
Ana — Deus não tem ajudado muito lá em casa não, Dona
Celma.
Dona Celma— Que é isso, minha filha, não fala uma coisa
dessas.
Ana— É isso mesmo, dona Celma. É isso mesmo. Se papai não
tem, muito menos eu, com aquela micharia da Telefônica. Quer dizer,
é uma situação muito difícil.
Dona Celma — Você sabe também como que eu vivo, minha
filha, mas se precisar, eu dobro na datilografia, ajudo um pouco.
Ana — Não é só problema de dinheiro não. Estou só contando
pra senhora como é que são as coisas.
Dona Celma — Sei, sei. Mas se precisar.
Ana— Primeiro deixa eu acabar de falar o que que eu vim falar.
É o seguinte: o Carlos me abandonou mais a Neusinha.
Dona Celma — Não é isso, minha filha.
Ana — Não, é isso sim. Há mais de um ano que eu não tenho
uma notícia, nem um tostão. Se tivesse sido preso de novo, podia
escrever. Se estivesse solto, trabalhando, podia escrever também e
mandar alguma coisa para a Neusinha. E se não faz é porque não
quer mais saber da gente. Ou então morreu.
Dona Celma— Deus me livre! Não fala, Ana, Deus me livre de
uma coisa dessas. Nossa Senhora.
Ana — Mas o que é que eu posso pensar, me diz dona Celma.
Eu vou pensar o quê?
Dona Celma— Naturalmente aconteceu alguma coisa com ele.
Ana — Deve ter acontecido mesmo, e não tem nada que ver
com a gente. E eu, pra falar a verdade, dona Celma, eu cansei. Já
chorei muito, já sofri demais com essa história de Carlinhos, mas
agora chega.
Dona Celma — O que é isso, Ana, pensa um pouco mais.
Procure primeiro saber o que aconteceu com ele.
Ana — A última carta quem escreveu fui eu. Isso já faz mais de
um ano. A senhora acha que eu sou boba? Das duas uma: morreu ou
arranjou outra mulher. De qualquer jeito, a senhora vai me desculpar
mas, de qualquer jeito, pra mim morreu.
Dona Celma — Não fala isso, menina.
Ana— Morreu! Morreu, dona Celma. Não quero mais saber e é
isso que tem mais de seis meses que eu estou querendo falar com a
senhora.
Dona Celma — Minha filha, pense com calma. Você não pode
fazer isso com Carlinhos.
Ana — E ele pode fazer comigo? Pode? Mãe desculpa tudo, a
nora nunca tem razão. Eu sou moça, tenho vinte e seis anos, dona
Celma. Neusinha vai fazer sete anos e tem dois anos que não vê o
pai. Isso é direito? Me fala se a senhora acha isso direito.
Dona Celma — Ninguém pode julgar sem saber ao certo o que
aconteceu.
Ana — Ahn, o que aconteceu. Mas a senhora não vê que tá na
cara?
Dona Celma — O papel de esposa é esperar. A mulher de
Ulisses esperou dez anos.
Ana — Não interessa o caso dela. Dez anos? Eu conheço ela?
Dona Celma — Ulisses, da guerra de Tróia.
Ana— bom, não interessa. Eu já resolvi: vou desquitar.
Dona Celma — Que loucura, Ana. Só a morte pode separar
marido e mulher.
Ana — Que morte nada, dona Celma. Eu preciso viver minha
vida.
Dona Celma — A pior desgraça numa família é o desquite.
Mulher sem marido, filhos sem pai.
Ana— É como eu estou agora.
Dona Celma— É diferente, minha filha. Casada, todo mundo
respeita. Mulher desquitada pode não fazer nada que todo mundo
fala. Pensa na Neusinha.
Ana — Tem seis meses que eu estou pensando. Eu vim aqui só
falar com a senhora, para a senhora não saber pelos outros. Eu quero
casar de novo, dona Celma.
Dona Celma — Casar! Você já é casada. Casada com meu filho!
A mulher tem de zelar pelo nome do marido, tem de respeitar a
ausência do marido. Não sei o que deu em vocês de hoje, que nada
vale mais nada. Casamento é só para dormir com o namorado,
depois acabou. E os filhos é que sofrem, eles é que pagam pela
cabeça de vocês. Eu bem que não queria que o Carlinhos casasse
moço daquele jeito, sem formar, sem ter experiência da vida. Ai, meu
Deus, eu bem que não queria e ele não entendeu nada, ficou falando
que eu não gostava da namorada dele, que era um absurdo uma
coisa daquelas, que a gente também era pobre. Vê se eu ia importar
porque seu Antônio era sapateiro, vê se era por isso que eu não
queria. Eu sou lá seu Nonato, que não quis namoro dele com Cristina
só porque a gente era pobre? Eu não queria é isso que está
acontecendo, Carlinhos sumido por aí, com problemas, e a mulher
procurando outro homem. Eu sabia que aquele namoro de vocês era
só isso, só sexo.
Ana — Dona Celma, não é nada disso. Veja a minha situação.
Dona Celma — Vai ver até já arranjou o noivo, não é?
Ana— É isso mesmo: arranjei e vou casar de novo e vim aqui só
para avisar e até logo.

Delegado de
Polícia Social.
Página 107.

É o mesmo da página 154.

Flávio Le Coq.
Página 116.

É absolutamente impossível rastrear, após a fuga do inquérito e


do país, a vida deste visionário, poeta, louco, que tentou ser
sociólogo, dramaturgo, cineasta, funcionário autárquico, editor,
jornalista, egiptólogo. Sabe-se (como se sabe?, quem veio contar
essa história extraordinária?, quem garante que a mulher não o
matou?) que estavam ele e a mulher no bar em frente às pirâmides
de Gizé; de repente, ele se levantou, apurando os ouvidos com as
mãos em concha como se ouvisse algo, foi andando com aquele seu
andar ortopedicamente inviável, andando sem ouvir os chamados
dela, entrou pelo deserto e nunca mais se soube dele.

A mulher belíssima,
Cristina.
Página 116.
Acompanhou com olhos a mão dela desorganizando o suor
gelado do copo.
— Estou pensando no Carlos.
— Hum-hum.
— Como eu fiquei louca naquela época.
— E agora?
— Sumiu da minha cabeça. Apagou. Sumiu.
Ele prestava muita atenção, porque o casamento seria amanhã.
— E comum isso?: paciente ficar louca contra o analista?
— Pode acontecer. Tudo pode acontecer.
— Eu queria sacudir você, tirar você da sua frieza, ou da minha
cabeça. Sei lá.
— Isso misturado com outras coisas. Pensou que ele estivesse
falando de amor.
— O bobo, eu não gostava de você naquela época.
— Sentimento de culpa, abandonismo, rejeição.
Desarmada meio sem jeito, pegou o copo e bebeu um pouco do
gim. Não gostou do sabor.
— Pede um chope para mim? Meu gim ficou horrível.
Ele esperou o garçom passar perto e pediu, sem pressa. Bebeu
um pouco de gim. Fez uma careta.
— Hum, horrível mesmo. Não sei como você agüentou até
agora.
— Amargo, não é? É do limão.
Ela passeou um pouco por 1970 e voltou:
— Se você tivesse gostado de mim naquela época eu não teria
dado tanto vexame.
— Sei lá.
— Por que você não queria nada comigo?
— Sei lá. Te achava feia.
Ela sorriu belíssima. Chegou o chope. Bebeu o primeiro gole
acariciando o frio do copo. Limpou com a língua o bigodinho de
espuma. Lembrava-se: 1970: o quartel de Juiz de Fora, a comida
para o preso, vitaminas, remédios, cálcio, ele precisa muito de cálcio
e vitaminas, sustagem, farinha láctea, leite condensado, frutas,
chocolate, germe de trigo, iogurte. A culpa de não ter feito o que a
mulher grávida pedira naquela noite, de não ter tomado providências
para tirar Carlos da prisão porque ia a uma festa. Os cuidados com a
mulher grávida para corrigir o erro de não ter ajudado antes; a
menininha que nasceu morta, recado, mensagem, que entendeu
como: mate-se. A loucura, Eduardo perdendo o controle da análise, a
procura de drogas para destruir-se culpada, e antes, antes, muito
antes, menina, a freira proibindo-a de cantar no coro da escola, e
mocinha, mocinha, virgem sem coragem e Carlinhos virgem
ameaçando começar com uma uma uma puta se ela não coisasse
com ele e nossa! como sofreu quando ele disse que já tinha feito,
perdeu aquilo para sempre, para sempre; e depois que mudaram de
Ponte Nova para Belo Horizonte quando o pai ganhou na loteria, o pai
não querendo mais que namorassem, que sofrimento; e Carlinhos
preso ainda em Belo queimado de cigarro explicando que não era
culpa dela, triste, perdido, perplexo, e ela querendo abraçá-lo,
carregá-lo, beijá-lo dali para fora, vitaminas, remédios, cálcio,
leite condensado, farinha láctea e a procura de homens, de um filho,
o filho que a mulher de Carlos perdeu, um pai que tinha perdido; e
aquele caos foi dificílimo de vencer, mesmo com a ajuda de um
homem que tinha amado ou ia amar qualquer dia, Eduardo,
atencioso, vigiando, protegendo-a, e ela se atirava certa de que seria
segura na queda, trapezista.
— Que loucura.
— O quê?
— Estava lembrando das coisas. Lembra que loucura?
— Hum-hum.
— Eu devia ser uma chata.
— Era.
— Eu também não gostava de mim naquela época. Acho que eu
fingia um pouco, também. Todo louco finge um pouco, não?
— É, finge. Mas não consegue parar de fingir.
Ficou quieta, pensando, um pouco menos bonita. Ele,
lembrando-se do paciente policiamento que se impôs para não amá-
la muito. Escondia-se na técnica, frágil proteção contra aquela beleza
desagregada. Estava gostando do silêncio dela. Seria capaz de saber
até as palavras que ela pensava. O rosto ia mudando outra vez para
o sorriso, um jeito muito dela de lembrar. Depois o rosto ficou sério,
ela o olhou de frente, decidida, bonita: — Sabe?: sempre gostei de
você. Desde o começo.
Ele sorriu meio embaraçado, bebeu um pouco de chope e
pensou na perfeição a que ela havia chegado, depois de tudo.

O homem, bonito, meio feio,


Eduardo Santoro.
Página 116.

O depoimento do famoso psiquiatra Eduardo Santoro não foi


muito proveitoso para a polícia. Conheceu Carlos Bicalho através de
uma cliente, conterrânea de Carlos, de Ponte Nova. Famílias amigas
há muitos anos. Não podia revelar o nome da cliente por razões
de ética profissional, mas responsabilizava-se por ela, no caso. Ela
não se interessava por política. Naquela noite da confusão tinham
marcado um encontro para irem juntos à festa, os três. Não conhecia
as pessoas da festa, era um meio-penetra, convidado de sua cliente.
Chegaram à casa de Carlos e encontraram um repórter, esse que
morreu, procurando saber da história da prisão dele, para o jornal.
Bem, ele disse que era para o jornal. Tentaram tomar alguma
providência para soltar o Carlinhos, mas nem sabiam direito o que ele
tinha feito. Falaram com o professor Cândido, professor dele, falaram
com um tal de Jorge, advogado que já andou na mesma turma que
ele, tentaram falar com o doutor Otávio Ernâni. O rapaz, o repórter,
disse que tinha de ir para a praça da Estação e deixou-o com a
história do Carlinhos na mão.
— Tinha de ir? Ele disse que tinha de ir?
Foi o que ele disse. Supunha que deveria ser coisa do jornal,
trabalho. Não simpatizaram muito com ele, na hora. Rapaz meio
ríspido. Não saberia dizer se Carlos conhecia outras pessoas que iam
à festa, a não ser, é lógico, o chefe dele, o Otávio Ernâni.
— O senhor sabia que o repórter também ia àquela festa?
— Ia?!
— Está vendo? O senhor lá, falando com ele, procurando três
pessoas que poderiam ajudar seu amigo e, dos cinco, cinco não, seis,
dos seis só o professor Cândido não ia àquela festa. Não é estranho,
muito estranho?
Escritor.
Página 116.

— Este livro (diz o escritor recebendo originais) é o resultado de


um fracasso. É o que eu consegui fazer de um projeto pretensioso
que tracei em linhas gerais há uns dez anos ou mais
(subtextualmente revelando que aquilo que vinham dizendo seus
inimigos era verdade) e no qual mexi apenas algumas vezes nesse
tempo todo, entravado pela falta de tempo, pelo lazer, pela preguiça,
pelo sei lá será que vale a pena e também por ser vencido cada vez
que metia a mão na massa (modestamente diminuindo-se ante o
projeto, que afinal era seu, e quantos arquitetos há por aí famosos só
pelos projetos não realizados?).
— Sei (diz o amigo). Estou entendendo o que você quer dizer. O
livro pode ser considerado ainda não acabado (observou que o
escritor reparava naquele não acabado e sabia que o assunto voltaria
sutilmente introduzido) ou acabado, tanto faz. Você poderia estender
infinitamente a segunda parte ou deixar como está. É isso.
— E não é. O fracasso que eu digo está no miolo, que não
existe. O livro se dividia originalmente em três livros separados: Antes
da Festa, A Festa e Depois da Festa. Acho que Leronimus Bosch tem
muito que ver com isso. (Sorriu porque tinha inventado aquilo na hora
e ficou parecendo que Bosch tinha sido o ponto de partida do trabalho
— uma mentira; mas verdade, se olhasse agora à distância seu
projeto.) Depois da Festa seria o inferno do tríptico. Mas então, como
eu ia dizendo: falta a festa.
— Sei, sei. É (considerou o amigo), como concepção fica mais
redondo.
— Eu cheguei à conclusão de que o livro existe sem a parte do
meio, mas isso não me impede de enxergar a fissura. É claro que eu
não vou deixar o leitor perceber isso. Mas me incomoda.
— E como seria essa parte (disse o amigo, descobrindo que o
escritor queria falar disso), A Festa?
— Nessa parte eu jogaria com todas as pessoas apresentadas
anteriormente e mais outras, muitas outras, durante a festa. Os
conflitos, as inquietações, a fofoca, a alegria, os jogos, as histórias, as
angústias (que é isso?, estou empolgado demais, pensou o escritor, e
moderou seu entusiasmo) — tudo que acontece numa festa
misturado à trama central do livro. O meu problema é de ordem
técnica; não haveria narração na terceira pessoa. Eu queria mostrar a
festa sendo, entende?, não narrada. (Levantando-se.) Eu tenho uns
rascunhos, vou te mostrar (abrindo a gaveta, retirando uma pasta,
escolhendo três laudas, sentando-se). Olha aí (entregando as laudas
ao amigo).
Ele lê:
vontade de acabar com esta festa, mandar todo mundo embora.
Ainda teve coragem de dizer que era a garota dele, desaforo. Ah,
Lúcio, que foi que eu fiz, vai embora, gente, vai embora, não posso
mais — Antônio, me traz um gim.
— Roberto!
— Anh?
— Onde foi que você arranjou essa maravilha de rapaz?
Meu Deus, meus Deus, agüentar tudo isso. — Mandei fazer,
Cora Adélia. Não agüento essas intimidades de homossexual fêmea.
— Beleza. Gastou a pedra toda? Não pinte esse rosto que eu
gosto e que é só meu, Marina você já é bonita com o que Deus lhe
deu. Será que Andréa não pára de dançar com aquele sujeito?
(— Casar mesmo, de véu e grínalda?
— O véu foi-se, mas grinalda a gente dá um jeito.
— E vocês têm trepado?
— Cafajeste.
— Que é isso, Andréa, logo comigo? E a nossa velha amizade?
Que que há? Está sentindo?
— Não encosta, não faz isso.)
— Quem é aquele sujeito que está dançando com Andréa,
Roberto?
— Haroldo. Conhece não?
— Não.
— Chefe dela no jornal.
— Cuidado senão ele te toma a noiva.
Ah meu saco, como é que eu vou sair dessa. Cansa essa
sapatona. — Um minutinho, Cora Adélia, que eu vou trocar o
disco. Maldade: vou fingir que não estou gostando nada dessa
relação entre Andréa e Haroldo. Botar uma música menos sugestiva,
não é? Ufa, até que enfim. Será que vai tudo bem na copa? Tenho
horror da irresponsabilidade dos garçons. É claro, a festa não é deles.
Only you, can make all this world seem right, only you can make the
darkness bright. Será que essa música não está muito lenta? Only
you, and you alone, can thrill me like you do and fill my — merda!:
Lúcio e a negrinha. Anh, cantora de televisão. Putinha, isso é que ela
é. Lúcio, que foi que eu fiz? Júlia está triste, não pode, ninguém pode
ficar triste. — Precisa de alguma coisa, Júlia?
— Não, obrigada, Roberto. Não falta nada.
Não consigo nunca me comunicar com Júlia. Fechada demais,
medida demais. Uma chata, isso é que é. O que fazer quando ela se
cala? — Onde está o Aníbal?
— Dançando com a Elêusis. Não se preocupe, Roberto, eu
estou bem. Aníbal está bem. Tudo, todos estão bem. A receita é
ótima. Misturar os ingredientes, bater alguns minutos, servir gelado.
Preciso de um pensamento inteligente para não ficar com cara de
tacho no meio dessa festa. Que olhar é esse de Aníbal em cima de
mim
(— Você não está achando a Júlia deprimida, Elêusis?
— Sempre foi.
— Me parece que ela agora está mais... mais concentrada.
— Se ela tivesse alguma coisa para contar, contaria a você,
não? (Contaria?) como se me visse agora, depois de muito tempo.
Sorrio para ele? Sorrio.
— De quem você está rindo?
— De quem não, para quem.
— Para quem, então?
— Meu marido, dá licença?
— Olha, que gracinha. Estão namorando?
— Não amola, Flávio. Pede uma bebida para mim? Um uísque.
— Garçom. Garçom! Aqui. Vê um uísque aqui para esta
senhora. com gelo, não é Júlia? com gelo.
— Certo. O senhor sabe quem é o doutor Otávio Ernâni?
Telefone para ele, urgente.
— Deixa que eu aviso. Busca o uísque. Foi ali naquele canto
que eu vi o Otávio agorinha mesmo.
— Um minutinho, Júlia, vou ali avisar o Otávio.
(— Então foi isso. Quando nós chegamos eu vi mesmo parada
aqui em frente uma ambulância. Pensei até que já era alguma coisa
que tinham aprontado aqui. Então o porteiro me contou que um casal
aqui do prédio passou mal depois do jantar, parece que foi
intoxicação violenta. bom, isso já faz o que?, umas duas horas, não é
Marília?
Entre lês deux mon coeur balance.
— Não é Marília?
— O que, gente?
— Que vimos a ambulância aqui na porta. Faz umas duas
horas, não?
— Não sei. Não foi comigo. Deve ter sido com outra pessoa.
Puta merda, foi com Lena que eu cheguei. Preciso parar de
beber ou beber muito mais. Otávio)
— Otávio.
— Oi. Salvo.
— Telefone para você. Urgente.
— Um minutinho, gente. Salvo pelo gongo. Pela campainha.
— É (disse o amigo) interessante. Tem mais?
— Tenho (disse o escritor). São fragmentos, tempo perdido. Os
truques que o projeto impunha eram o melhor da criação, um bom
desafio, mas por outro lado me traziam problemas que aos poucos fui
achando insolúveis. Primeiro, ficaria enorme, porque eu não poderia
cortar arbitrariamente no tempo como se faz numa narração na
terceira pessoa (desconfiou que estava ficando aborrecido e resolveu
resumir bem depressa), um corte por exemplo assim: passaram-se
duas horas, ou: duas horas mais tarde — entende? E depois eu
comecei a achar que ia ficar chato se ficasse grande e não achei jeito
de não ficar grande. Parei e o livro que eu fiz está aí como um pão
sem miolo. (Ultimamente sentia um certo prazer de diminuir-se e
diminuir o que fazia, observou-se o escritor, descobrindo aquelas
novas artimanhas de defesa.) — O livro realmente não parece
acabado (disse o amigo, surpreendendo-se um pouco que tivesse ele
mesmo voltado ao assunto), como eu disse antes. Você poderia
estender a segunda parte, pegando todas as personagens citadas na
primeira; poderia introduzir esse miolo de que você fala; poderia botar
mais dois ou três contos no princípio. É um livro que pode ter cem
páginas ou quinhentas.
— Certo. E a história? Preciso saber objetivamente o que você
achou da história e das histórias.
— História não. História não tem importância.
— É só não chamar de sintagmas e sobressintagma.
— Vamos tomar o livro pelas suas divisões e chamar de
episódios, então. Ou segmentos.
— Tá (disse o escritor sorrindo, porque ambos evitavam uma
discussão que já os cansara), episódios.
— bom. O Documentário eu acho que não deveria ser o primeiro
episódio. O leitor pensará que é um livro só político, e não é.
— Não é.
— Você deveria abrir com o casal de velhos, das Bodas, que é o
melhor conto, inclusive. Isoladamente.
— Exatamente onde eu não queria mexer é na primeira história
— perdão, estava pensando em inglês — no primeiro episódio.
É importante isso na estrutura do livro. Eu abro com os documentos e
vou até a fábula, no fim, quando a personagem se funde com o diabo
(disse o escritor, satisfeito com a oportunidade de explicar que havia
pouca coisa não intencional no livro).
— É (murmurou o amigo), aí... é. Outro probleminha que eu
achei foi no episódio de Andréa. Não sei, talvez você tenha suas
razões, mas há ali muita interferência sua, conceituando a
personagem, explicando, ou melhor, explicitando o que o leitor
descobriria se (um pouco delicado dizer isso) o conto estivesse mais
bem feito.
— Talvez você tenha razão (disse o escritor decepcionado por o
amigo não ter gostado justamente daquele conto), porque naquele
episódio eu fiquei meio amarrado pelo estilo, deliberadamente
Fitzgerald, quase uma homenagem aopoor Scott, digamos assim
(indicando que mesmo tendo havido um fracasso a intenção era
sofisticada), e também porque eu queria mostrar a personagem vista
através dos preconceitos da sociedade que a envolvia. Daí o estilo
Fitzgerald, a terceira pessoa, o comentário — como técnica. O autor
daquele conto é também uma das pessoas que julgam Andréa. Mas
ele gosta dela, apesar da ironia. Escrevi do ponto de vista de Samuel.
bom, eu acho que é um problema sem solução.
— E tem um negócio aqui (disse o amigo pegando os originais e
procurando a página, achando, apontando), aqui ó, que não dá mais
pé. (Lendo.) “Dele guardou ressentimento e uma fotografia 3x4”. Esse
tipo de enumeração até o Machado de Assis já esgotou: “O amor
durou nove meses e onze contos de réis”.
— Faz uma cruzinha aí. Isso. Que mais?
— Tem esse rapaz, o dedo-duro.
— Eu não gosto desse episódio (preveniu o escritor).
— Não é isso. Esse negócio de peidar é meio de mau gosto,
não? Podia tirar isso.
— Logo você vem me falar de bom gosto? Mas se eu estou
mostrando exatamente a grossura, o egoísmo, a vaidade tomando
conta do cara quando ele fica sozinho em casa, justamente quando
não tem de se policiar, de ser hipócrita. É ali que o cara relaxa,
porra, porque viver num fingimento como o dele não é moleza. O
peidinho ali acho até que entra bem.
— Continuo achando de mau gosto (disse o amigo, fazendo
depois um intervalo que foi ficando longo e daí a pouco poderia ficar
incômodo, lembrando-se de um deixado para depois, para talvez
agora, e murmurando num meio pigarro) não sei hrram (e retomando
a conversa). Você leu O Curral dos Enforcados, do Rui Mourão?
— Eu sabia (disse o escritor, sorrindo e não dizendo o que
sabia).
— Pois é (disse o amigo, não precisando de explicações), eu
acho que, de alguma forma, tem o que ver.
— Talvez. Tem o que duas retas de um ângulo têm em comum:
um ponto. No caso, os nordestinos. Quando eu estava escrevendo,
minha mulher me alertou para isso. Li o livro do Rui, vi que não tinha
nada que ver, e continuei. Acho até interessante a coincidência dos
nordestinos. Fica parecendo que aconteceu de verdade. Quanto ao
resto, direções divergentes, extensões, intenções, concepções,
gerações, situações, ações.
— Gerações principalmente (disse o amigo).
— Situações, principalmente (corrigiu o escritor). Mil novecentos
e setenta e todas as suas impossibilidades. Eu não estou nem um
pouco preocupado com geração. Em 70 minha geração não era mais
um grupo. Carlos, Samuel, o escritor, os intelectuais, são,
cronologicamente, figuras de outra geração, a geração pós-64, com
uma dramática disponibilidade ainda sem saída.
— Você quer esconder que o escritor é você? (disse o amigo,
até um pouco espantado).
— Não, que é isso. Pela idade e posição social, seriam da
minha geração um Otávio, um Jorge, uma Andréa, pessoas já
estabelecidas, com bons empregos. O escritor sou eu mesmo, claro,
como eu hoje, neste 74, acho que seria em 1970 aquele
intelectualzinho de 1960 (disse o escritor insistindo naquela
autodepreciação de ultimamente, e sorrindo disso e pensando: que
será que eu tenho contra o que eu fui, ou é contra o que sou hoje que
tenho alguma coisa, ou não é nada disso). Mas as figuras principais,
as que realmente agem, são de uma geração muito mais velha, como
Marcionílio, ou mais nova, como Samuel. Não é um livro sobre uma
geração, mas sobre várias gerações que um dia se encontram no
1970 brasileiro.
— Mas vocês, seu grupo, são o grupo do livro, não?
— Não (disse o escritor, pensando talvez uns segundos
demais). Aliás, todos os grupos se parecem em Belo (falando quem
sabe para si mesmo). De qualquer forma, o grupo, em si, não foi
minha preocupação. Eu queria falar especificamente de pessoas, com
suas histórias, envolvidas nos fatos e clima de 1970.

Mulher grávida.
Página 119.

Ana, a mulher de Carlos Bicalho, pariu na rádio-patrulha uma


menina enforcada no cordão umbilical. Um homem que passava pela
porta da casa, alarmado com os gritos de socorro e choro de criança
que vinham lá de dentro, chamou a polícia, por via das dúvidas. A
contragosto o sargento aceitou levar a mulher, já parindo, para o
hospital.

Doutor
Otávio Ernâni.
Página 120.

Naquele dia 31 de março de 1970, o economista Otávio Ernâni’


acordou desgraçado e não sabia.
Tomou Alka Seltzer, Engov, banho, Melhoral, tentando lembrar-
se que coisa ruim tinha lhe acontecido na festa. Telefonou para
pessoas que ainda dormiam, viu que tinha emudecido a campainha
do seu próprio telefone e saiu apressado para a Secretaria com duas
horas de atraso e a certeza de que alguma coisa não estava certa.
Quando bebia era assim: amnésia e dor de cabeça.
Otávio Ernâni tomou a primeira porrada daquele dia 31 de
março às 11 horas e 30 minutos da manhã, quando o secretário disse
que o governador exigia um responsável pelos distúrbios daquela
madrugada. E como era assunto do setor de Migração, deveria ser
ele o responsável. Estranhou a palavra “distúrbios”, mas pareceu-lhe
que o importante naquele momento era:
— Estamos apurando tudo. Pelo meu setor eu me
responsabilizo. Dentro de uma hora falo com o senhor.
Logo depois de sair do gabinete tomou a segunda porrada: ficou
sabendo pelo jornal “A Tarde” e por alguns funcionários que Carlos
Bicalho fora preso e que houve uma verdadeira revolução na
madrugada com aqueles nordestinos que mandara recambiar.
Enquanto queimava-se um trem, morriam quatro pessoas, centenas
de flagelados espalhavam-se pela cidade, dezenas de feridos eram
medicados nos hospitais e agitadores eram procurados, ele estava
bêbado numa festa escandalosa.
Chamou um assessor para receber a terceira porrada: não
poderia falar com Carlos Bicalho no DOPS porque ele estava preso
incomunicável; o secretário da Segurança pedira permissão ao
secretário do Trabalho para investigar todo o pessoal do setor de
Migração; ele, Otávio Ernâni, era suspeito de envolvimento com os
agitadores que organizaram a revolta; o secretário empenhara sua
confiança em Otávio perante o governador, apesar das suspeitas de
que ele fugira na madrugada após o malogro do plano.
— Puta merda. Mas esse povo está louco?
Ao meio-dia e meia comunicou ao secretário que seu cargo
estava à disposição. Não, não havia explicação possível para o que
acontecera. Não, absolutamente não acreditava numa conspiração.
Enquanto aconteciam aquelas coisas ele estava numa festa de
aniversário. Não, não fora avisado dos distúrbios. Não, não poderia
dizer nada sobre Carlos Bicalho se não pudesse falar com ele. Sim,
daria as explicações à imprensa, assumindo toda responsabilidade no
âmbito da Secretaria. Certo, entrevista coletiva às seis horas.
A dor de cabeça não passava. Não tinha comido nada. Pediu
uma água mineral. Tinha a impressão de estar exalando álcool no
suor. Certamente estava. Falava de longe com as pessoas.
O secretário da Segurança recusava informações. Otávio falou
pessoalmente com ele, explicou que tinha entrevista com a imprensa
às seis horas e precisava saber o que tinha acontecido e o
que estava acontecendo. A ironia da resposta (”Ora, você é capaz de
saber mais do que eu.”) irritou-o. Mas agüentou, político.
Às duas horas mandou vir um hambúrguer, leite e uma pastilha
para dor no estômago. Desconfiou que o expediente normal da
Migração não estava passando por ele. Melhor assim, por enquanto.
Conseguiu autorização do governador para obter informações
na Segurança. Jacques telefonou para comentar a festa e ele tomou
a quarta porrada do dia: numa situação de polida disputa entre Lena e
Marília — nem era ele exatamente o objeto do torneio, as duas
disputavam quem era mais invulnerável, quem menos se deixava
perturbar pela presença da outra com relação a Otávio ou aos
observadores — naquela situação discreta e delicada, ele, Otávio,
completamente bêbado, quebrou o cristal da conveniência
perguntando: “Por que a gente não faz um ménage a trois?”
— Puta merda, Jacques.
O assessor da Segurança mandou saber que tipo de informação
ele precisava. Fez um questionário escrito, com cópia. A mulher de
Carlos Bicalho chegou com a filha de dois anos e a barriga de oito
meses querendo saber qual era a situação do marido.
— vou dizer à senhora com franqueza: eu não sei nem de mim.
Parece que todo mundo ficou lógico. Entre hoje e amanhã eles
podem me pôr na rua e me prender. No mínimo me põem na rua.
Às quatro horas, disse que voltaria às cinco e meia e saiu.
comprou uma camisa, uma cueca, um par de meias e foi para a
sauna do Minas Tênis.
Na sauna, tomou coragem, ligou para a casa de Marília e tomou
a quinta porrada do dia: ela não tinha dormido em casa, não estava
com o senhor?, ai meu Deus, será o que aconteceu, liguei para a
casa do senhor e ninguém etcetc. Seria absolutamente impossível
que ela estivesse presa também. Tranqüilo a esse respeito.
Chegou à Secretaria às cinco e meia, cheirando a eucalipto,
sem dor de cabeça, leu duas vezes as informações da Segurança,
deu algumas checadas na Migração para completar informações e
ficou esperando a hora de atender os repórteres.
A imprensa queria saber como começou aquela história dos
nordestinos.
— Ontem de manhã, o secretário do governador da Bahia
enviou uma mensagem ao nosso secretário, informando que um trem
com mil e duzentos retirantes da seca dirigia-se para Belo Horizonte.
O procedimento foi o normal: consultas ao governador sobre o que
deveria ser feito, entendimento do governador com os secretários da
Segurança e do Trabalho e Bem-Estar Social. Somente às quatro
horas da tarde ficou resolvido que os retirantes deveriam ser
recambiados. Eu, como assistente geral do senhor secretário e diretor
do Departamento de Mão-de-Obra, ao qual está subordinada a seção
de Migração, fui encarregado desse expediente. Expedimos os
passes e solicitamos reforço policial para o recambiamento, tudo
dentro das normas. Os retirantes chegaram às seis e vinte da tarde.
Às seis horas a polícia já estava na praça da Estação.
Qual o papel de Carlos Bicalho nos acontecimentos?
— Esse rapaz é nosso oficial de gabinete. Como todos sabem,
ele está preso. Contou à polícia que estava saindo daqui, pouco
depois das sete horas da noite, quando chamaram um representante
da Secretaria do Trabalho para resolver o problema da alimentação
dos retirantes. Segundo ele disse à polícia, foi lá verificar a situação e
depois procuraria alguém competente para resolver o problema. O
resto, o que houve na praça entre ele, a polícia e os retirantes, ainda
não sabemos. A polícia está apurando.
Alguém da Secretaria sabia das atividades políticas de Carlos
Bicalho?
— Eu nunca soube que ele tivesse atividades políticas e
continuo não sabendo. Não pude conversar com ele depois do que
aconteceu. Se alguém mais saberia, não é do meu conhecimento.
Há quanto tempo ele trabalhava na Secretaria?
— Um ano e meio.
Quem arranjou o emprego para ele?
— Eu. Os oficiais de gabinete são dispensados de concurso. Por
que os nordestinos escolheram Belo Horizonte para emigrar?
— É impossível determinar uma coisa dessas. Os retirantes
não escolhem, vão para qualquer lugar. Eles querem é sair de lá, fugir
da seca. Minas, Rio, São Paulo, Paraná, Amazônia, tanto faz. Eles
querem é viver, só isso. E me parece uma pretensão justa.
É possível que alguém tenha tramado a vinda deles para Belo
Horizonte?
— Não acredito. Nosso mercado de trabalho não pode absorver mão-
de-obra não qualificada. Nenhuma indústria atrairia esse tipo de
trabalhador, atualmente.
Falando mais claro, doutor Otávio: é possível que Carlos Bicalho
os tenha atraído com fins políticos usando a Secretaria?
— Não acredito. Não tem lógica. Que intenção ele poderia ter,
se fosse o caso?
Agitação, claro.
— Isso não tem sentido. Veja bem. Para um plano desses dar
certo, ele teria de ter a colaboração do governo do Estado, que
decidiu recambiar os retirantes — porque sem recambiar não haveria
o problema; a colaboração da polícia, que não soube conduzir ou não
teve meios de controlar a situação na praça, e ainda contar com a
politização de uns pobres famintos — o que seria pedir demais. É
uma idéia absurda.
Quantos nordestinos chegam a Belo Horizonte por ano?
— Não temos elementos para esconder. Chegam
esparsamente, em pequenos grupos, e se dissolvem na cidade. O
Censo deste ano poderá responder à pergunta. O fenômeno da
migração nordestina em massa só ocorre na seca. O nordestino gosta
da sua terra e cerca de sessenta por cento dos migrantes voltam
quando começa a chover.
Afastando a hipótese de subversão, como o senhor explicaria os
acontecimentos desta madaigada?
— É simples: o burro manso de repente deu coice. E todo
mundo se espanta: ah, mas era um burro tão mansinho. Acontece
que esse burro veio sofrendo desde o Nordeste em dez quinze dias
de viagem miserável. Chega aqui não tem comida, não tem trabalho,
tem é de fazer o mesmo caminho de volta sem parar para beber
água. Natural que dê um coice. Coitado, agora já está arrependido do
coice. É o mesmo burro manso de antes, mas agora ninguém confia
nele, trata igual burro bravo.

Esdras,
o Hermético.
Página 120.

Esse tipo de intelectual, que pode ser encontrado em certas


épocas do ano no Centro e Sul do país, costuma sair à tardinha, na
primavera e no verão. Nas noites de inverno ele nunca sai, porque é
muito sensível ao frio. Nas noites de outono ele geralmente escreve
geralmente poesia geralmente hermética.
É um ser desiludido, intelectualmente rigoroso (o livro que ele
escreve e reescreve em segredo nunca o satisfaz, não alcança a
perfeição desejada — e não nasce), pessoa de um amigo só, amargo
quanto às mulheres, pois não saberia o que fazer com um seio na
mão, além de espremê-lo. Não acredita que arte tenha algum valor
hoje em dia, mas é a única coisa de que realmente gosta. Só a usa
em casa, como um agasalho velho, fora de moda.
Quando Esdras, o Hermético, morreu, em 1987, o amigo único
reuniu seus poemas e publicou um volume póstumo. Umas quinze
pessoas leram aquela pesada poesia. As únicas que poderiam
testemunhar que ele seria um marco na poesia, como Villon,
Petrarca, Mallarmé — e estas, por razões desconhecidas, calaram-
se. E a poesia de Esdras fechou-se sobre si mesma, perfeita.

O vizinho.
Página 123.

O vizinho de Roberto J. Miranda disse à polícia que todo dia 30


de março havia festa no apartamento 1501. O porteiro confirmou e
disse que as pessoas eram quase sempre as mesmas. Isso
desanimou um pouco o delegado Levita, que procurava uma ligação
entre a festa e a agitação. Mas logo recuperou o ânimo: o vizinho fora
getulista e o porteiro aceitava gorjetas. Duas pessoas suspeitáveis.

Luís.
1946/1972.
Página 124.

Esta pequena história deixou perplexos os moços do


suplemento:
Luís e o pai moravam sozinhos numa casa velha no bairro da
Floresta, atrás da Estação. Era um jovem brilhante, amargo, aleijado
das duas pernas por defeito congênito, muito bonito de rosto, erudito,
cruel, emocionalmente instável. Equilibrava-se por milagre em duas
pernas de gelatina e não conseguia escrever uma boa peça. O pai
era triste, 50 anos, funcionário público federal nível 14, autopunitivo.
Luís o destruía calculadamente. Os moços do suplemento
conheceram Luís na fase da bebida. Entregavam-no em casa de
madrugada, amolecido e escorregadio, e antes de se afastarem
ouviam os gritos: “Não reclama não. Você é que me fez assim!”
Viajou para a Europa e o velho teve de pagar em prestações a conta
assustadora. Virou homossexual para insultar o velho, levando
homens para casa. Fazia o pai pagar, quando era michê. “Olha essas
pernas, olha essas pernas, olha o que você fez, velho filho da puta!”
Quando a maconha entrou em moda, em 1969, e os que precisavam
sonhavam através dela, ele a usou como forma de agressão. Depois
veio a cocaína, em 72: ele preparava seu sniff na frente do pai,
olhando para ele, desafiando.
O pai sufocou-o até a morte com um travesseiro e suicidou-se
com um tiro no ouvido.

Doutor Jorge.
Jorge Paulo
de Fernandes.
Página 125.
Foi de Jorge ou do advogado Ruiter a idéia de colocar o
assassinato de Mônica como conseqüência dos acontecimentos da
praça da Estação?
A defesa baseou-se em duas teses: legítima defesa da honra,
argumentando que a esposa vinha mantendo conduta indigna com os
próprios amigos do réu; e coação irresistível diante da revelação, feita
pela própria mulher, de que o traía, senhores jurados, obedecendo a
um plano de vingança; e este homem, íntegro, respeitador das
tradições do país e dos costumes da generosa terra mineira, viu-se
envolvido numa trama diabólica, malha constrangedora que só
poderia ser manobrada por elementos afastados da fé cristã e da
moral da família brasileira. Estes elementos, juntamente com a vítima,
planejaram a conduta indigna da vítima, a conduta prostitucional da
vítima, para humilhar o réu aqui presente e puni-lo por sua atitude
patriótica durante a fase policial de apuração dos acontecimentos
ligados ao tumulto da praça da Estação há quase dois anos.
Testemunhou o réu, sob juramento, que não pôde resistir ao impulso
de matar quando a esposa revelou-lhe que o próprio casamento fazia
parte da vingança, que fora tudo planejado para que ele aprendesse a
não entregar os amigos, que os homens com os quais ela manteve
relações para humilhá-lo foram escolhidos dentro do plano
previamente traçado e friamente executado. Friamente, mas não sem
prazer carnal, acreditem. Cinicamente, ela revelou ao marido toda a
trama quando acabou de deitar-se com o último da lista e ainda trazia
dentro de si o esperma do opróbrio. Está lá, senhores jurados, está lá
no laudo do médico-legista!

Marília
Página 126.

Apanhados no mesmo susto, afastaram as bocas ao mesmo


tempo: ela do pênis dele, ele da vulva dela. A porta foi fechada
afobadamente pela pessoa que os assustou e que, por sua vez
assustada, retirou-se. Ela hesitou um breve instante, torceu a bunda
de excitação e voltou ao pênis dele; ele voltou imediatamente à vulva
dela.
A mulher
belíssima.
Página 126.

Quando procurou um psiquiatra, em 1968, Cristina estava em


pedaços. Pacientemente, Eduardo Santoro, 34 anos, solteiro,
analisado na Suíça, trabalhou aquele puzzle de 1.800 peças,
montando pedacinho por pedacinho, fascinado, até obter a mulher
perfeita com a qual se casou três anos depois daquela festa que a fez
desagregar-se novamente.

O homem que tinha


teorias.
Página 126.

Pacientemente, Eduardo Santoro, 34 anos, solteiro, analisado


na Suíça, trabalhou aquele puzzle de 1.800 peças, montando
pedacinho por pedacinho, fascinado, até obter a mulher perfeita com
a qual se casou três anos depois daquela maldita festa que a fez
desagregar-se novamente. Tiveram três filhos e foram todos felizes
ou infelizes nas épocas apropriadas.

Aurélia.
Página 126.

Aurélia, abandonada por Marcelo na festa, parou de sair com


rapazes ricos, arranjou namorado sério e ficou noiva. Uma noite, o
noivo estava na sala comendo broa de fubá com café, ouviu na
televisão um apelo da Santa Casa de Misericórdia aos doadores de
sangue tipo O-positivo, despediu-se da noiva e da futura sogra, foi,
doou, pegou um tétano inexplicável e morreu dois dias antes do
casamento. No sábado, Aurélia começou um corre-corre para
cabeleireiro, costureira, manicura, banheiro. A mãe mal atendia um ou
outro pedido de ajuda da filha, achando estranho ela arrumar
divertimento dois dias depois da morte do noivo, embora achasse
certo que ela não se fechasse, morta para o mundo. Levou um susto
enorme, sentou-se na cadeira e começou a chorar baixinho quando a
filha surgiu do quarto vestida de noiva às quatro horas da tarde.

Marcelo.
Página 126.

Apanhados no mesmo susto, afastaram as bocas ao mesmo


tempo: ele da vulva dela, ela do pênis dele. A porta foi fechada
afobadamente pela pessoa que os assustou e que, por sua vez
assustada, retirou-se. Ele voltou imediatamente à vulva dela; ela
hesitou um breve instante, torceu a bunda de excitação e voltou ao
pênis dele.

“O velho é maluco”.
Professor Cândido.
Página 127.

— Completamente improvável. Lady é da nossa inteira


confiança.
— Professor, professor. Alguém pôs o arsênico na lata de
farinha. Se não foi ela, quem foi? O senhor? Dona Juliana? Tem de
ser a empregada.
— Mas cui prodest? Cui? Ela sabe que não temos dinheiro. Ia
ficar é desempregada. Eu acho — não quero me meter no seu
trabalho, mas eu acho que se deveria investigar a origem da farinha,
a fábrica, todas as farinhas da cidade. E se alguém come um pão e
morre por aí?
— Fomos às seis fábricas que vendem naquele supermercado e
não encontramos nada. Putz, professor, que fria.
(O detetive Pé-na-Cova tem uma hipótese que vai investigar
sozinho: alguém, daquela festa do 15º andar, tinha interesse na morte
do velho. Ele talvez soubesse de coisas que poderiam comprometer o
grupo, alguma conversa ouvida...)

Doutor Jorge.
Página 127.
Jorge Paulo de Fernandes foi absolvido por sete a zero. Um
herói da família mineira.

Lúcio, praça Negrão


de Lima, 36.
Página 128.

Lúcio percebeu que Roberto estava com medo de ser preso, riu
muito e começou a pedir. Para não contar à polícia o que tinha
acontecido na festa, ele exigiu, de abril até agosto, quando Roberto
não suportou mais a chantagem e recorreu ao odiado coronel Bolívar:
500 cruzeiros
1 camisa azul de tela suíça
1 calça Lee importada
1 cinturão largo
1 sapato de salto alto
150 cruzeiros
1 colar de pedras coloridas do Saara
1 caneta esferográfica Cross
1 chute na bunda, na posição adequada: de quatro
1 viagem ao Rio, sozinho
Conta aberta na boate Around the Clock
3 camisetas estampadas italianas
0 direito de aplicar-lhe tapas na cara, inclusive em público 300
cruzeiros
1 calça branca de brim flanelado
1 toca-discos
1 amplificador de som, importado
2 caixas de som
10 discos, fora os que levou da casa de Roberto
1 motocicleta Yamaha, 350 cilindradas
Lúcio não ganhou sua moto. Apareceram dois homens na sua
casa, respeitosos, chamando sua mãe de minha senhora e pedindo
uma conversinha particular com Lúcio, não ia demorar nada, podia
ser no quarto mesmo. No quarto, um deles tirou um papel do bolso,
abriu o armário. Lúcio quis protestar, o que é isso, o que é isso, e
tomou um tapa seco, forte e curto na cara. Quis gritar, mamãe chama
a, e tomou outro tapa na cara. O outro homem olhava o papel,
procurava no armário, rasgava. Rasgaram a camisa azul, a calça Lee,
as camisetas estampadas, botaram o colar no bolso, tiraram o
dinheiro que encontraram, empilharam os discos. Não falavam nada,
apenas davam-lhe tapas na cara.
— Tira a calça e os sapatos.
Uma hesitação, um tapa. Tirou sem muito medo, entendendo
por quê. Rasgaram a calça, botaram fogo num pé do sapato,
cortaram o cinto com lâmina de barbear.
— E a caneta?
Lúcio não entendeu imediatamente, mas entendeu logo, com um
pequeno tapa no rosto. Um dos homens colocou a caneta no bolso;
carregaram o som e os discos, com a ajuda de Lúcio, de cueca, e
colocaram na parte de trás do carro, uma perua C-14.
A mãe, que estava lá dentro fazendo um café para as visitas,
veio ao portão reclamar que já se fossem tão cedo e ficou indignada
com Lúcio.
— Que vergonha, meu Deus! Vem pôr uma roupa. Lúcio.
Os dois homens forçaram Lúcio para dentro do carro, sem que
ela percebesse que o obrigavam, fortíssimos e desculpando-se:
— Não tem nada não, minha senhora. Ele tem roupa aqui. É a
pressa. Daqui a pouco ele está de volta.
Lúcio teve medo, pensou logo em Esquadrão da Morte. A
angústia durou treze minutos, da casa à boate Around the Clock.
Entraram os três. O porteiro teria barrado Lúcio se um dos homens
não o tivesse afastado de maneira delicada e irresistível, com a mão
no peito: “Não se mete não”. No balcão, chamaram o gerente.
— Esse pilantra não tem conta aqui mais.
Apesar do escurinho, muitos viam o rapaz de cueca e o
reconheciam. Um dos homens perguntou:
— Quantos tapas?
— Faltam dois.
Piá e piá dentro da boate.
Voltaram para a praça Negrão de Lima, Lúcio até pensou em
Deus, agradecido. A mãe e também uma moça vieram
correndo quando ouviram o barulho do carro. Os homens fizeram
Lúcio descer, consultaram a lista, cochichando um pouco
constrangidos pela presença das duas mulheres, a mãe começando a
acordar do choque, o homem resmungando fica de quatro, fica de
quatro cachorro, o outro forçando-o, a moça perguntando o que é isso
Lúcio, um chute na bunda e os gritos da mãe, e alto, no ouvido dele:
— Entendeu, pilantra?
— Fala!
— Entendi.
— Entendeu tudo mesmo?
— Entendi.
— Então desaparece, tá?
— Se você aparecer, nós temos ordem para te quebrar todinho,
osso por osso.

Otávio.
Página 128.

Otávio abriu a porta às nove horas da noite e, prejudicado por


uma pequena surpresa e gosto de ovo frito na boca, recebeu Lena de
maneira quase desajeitada. Marília chegou à casa dos pais às seis e
pouco com o pressentimento de que iria embora se houvesse uma
cena. Lena estranhou a hesitação de Otávio e disse logo, chocante:
— Estou atrapalhando? Marília está aí?
— Não. Verdade. Eu hoje estou na maior confusão. Entra. Entra.
— Esqueceu?
— O quê? Diz. Nós marcamos aqui, não é? Pois é: esqueci.
Hoje tudo é surpresa para mim.
— É. Eu li no jornal.
— Ah, foda-se. O pior foi o porre de ontem.
— É. Você deu um bom vexame.
— E você? Não me lembro de nada.
— bom, quer saber: eu também.
— Me conta depois. Você está querendo ficar, não é?
— É, pensei nisso. (Sorriu.) Quebrei a cara.
O pai de Marília queria saber onde ela esteve até aquela hora.
Otávio ficou tenso quando ouviu “quebrei a cara”, como se Lena já
tivesse decidido, desistido. Ela procurou apoio no sofá e afundou em
paz até a próxima palavra.
— Então você se demitiu.
— É. Me forçaram.
— Chato, hem? Vai fazer o quê, agora?
— Aaanh-hum. Não sei. Acho que volto para o cursinho. Sei lá.
(Sorriu.)
— Me arruma um uísque? Estou morta de ódio de você.

Marília.
Página 131.

Marília não sabia se aquele gosto de pênis estava mesmo na


sua boca ou na sua memória. Otávio serve o uísque, sem gelo, como
Lena gosta.
— Ódio por que, gente?
— Por eu me ter enganado. E porque fui muito boba. Mas já
está tudo bem. Quando eu digo as coisas é porque estou bem.
— Escuta, Lena. Você se lembra do telefonema de ontem, não
lembra?
— E daí?
— Você viu que eu fui sincero, eu disse na hora que queria você
de volta, nem me lembrei de Marília. Pois é isso: me dê tempo. Me
deixe sair dessa confusão primeiro. E esquece a festa, esquece.
Marília brigou com o pai, com a mãe, arrumou a mala, disse que
estava cheia daqueles dramas e saiu de casa, para não voltar, perto
das nove horas. Pouco antes das dez ela chegaria à casa de Otávio
procurando abrigo, estragando o reencontro dele com a mulher e
contribuindo de modo definitivo para a felicidade dos três.

Lena.
Página 132.

Lena bebeu de uma vez, como um homem que havia visto num
balcão.
— Sua amiga também estava alta ontem.
— E você, não?
— Não. Nessas horas eu me cuido.
— Como agora?
— Agora? (Sorriu.) Pode servir outro.
Otávio serviu uísque e serviu-se de cerveja. Marília chegou com
a mala, abriu a porta com sua chave, encontrou copos, bolsa, blusa,
cigarros fumados; suspeitou de uns ruídos no quarto. Indignou-se,
pegou a mala para ir embora, foi até a porta, voltou, apagou a luz,
deitou no sofá e dormiu para afinal descansar de seis orgasmos com
Marcelo e brigas com os pais. Lena bebeu de novo como o homem
no balcão enquanto Otávio olhava-a com desejo paciente.
— Sabe, Lena, estive pensando nesse dia de hoje, nessa
confusão toda. Para mim tem um sentido: é uma nova oportunidade,
sabe? Recomeçar com você — digamos, uma hipótese: recomeçar
com você, largar a Secretaria. Poxa, eu sei que recambiar retirante
não resolve o problema, mas expedi os passes, pedi policiamento.
Agora acabou.
— Alguém vai fazer isso no seu lugar.
— Vai, lógico que vai. Mas não serei eu. E vou poder dar minha
opinião quando acontecer uma coisa dessas, fazer um artigo.
— É. Vai.
Por que essa ironia?, pensou Otávio. Marília não acordou
quando Otávio, nu, acendeu a luz da sala, inclinou-se para apanhar
os cigarros no braço do sofá e a viu, aterrorizado, e viu sua nova vida
destruída no primeiro dia. Lena pediu mais um uísque e preveniu: —
Eu hoje vou pegar o porre que não peguei ontem.
— E outras coisas também que não fez ontem. Lena sorriu,
bebeu, ficou séria.
— Ela é mais bonita do que eu.
— De corpo, não.
— Mesmo?
— Você é mais durinha. Lena levantou-se decidida:
— Vamos para o quarto.

Carlos Bicalho.
Página 134.
31 de dezembro de 1979.
— Bonita?
— Tinha um corpo lindo. Deve ter, ainda. Porra, vamos falar de
outra coisa.
Pausa longa.
— Lembra do fim da década de 60?
— Pouco. Sei lá.
— Porra, aqui no Recife... Eu era menino ainda, estava no
CPOR. Fizemos uma farra, puta que o pariu. Política para mim nem
existia.
— Eu tinha umas inquietações, coisa de estudante. A barra do
pessoal naquele tempo era muito pesada. Assalto, guerra. Dou para
isso não.
— Já tinha casado?
— Tinha até filho. Quer dizer, filha. E estava esperando outra.
— Duas?
— Morreu. Nasceu morta. Eu estava preso em Juiz de Fora.
— Aquele negócio dos retirantes, não foi?
— É.
O mineiro, devagar, sondava a possibilidade de uma conversa
pessoal, sentimental, saudosista — e nem se importaria de chorar um
pouco. Por isso fez aquela pausa longa quando percebeu que
estavam começando a falar de política. Ficou pensando na família,
querendo que o pernambucano perguntasse: e a sua família? O
pernambucano bebeu um pouco de cerveja. O mineiro compreendeu
que do passado acabaria surgindo sua família e se sentaria com ele
ali naquela mesa de bar, no Recife. E continuou: — Foi comentado
aqui?
— Porra, se. Acho que no Nordeste inteiro. Eu me lembro, eu
era rapazinho e me lembro disso. Foi uma confusão federal.
— Foi.
O mineiro escapou novamente pelo passado. O que teria
acontecido com aquelas pessoas de 1970?
— Acho que naquela eu fui o único que se fodeu.
— Como único? Morreu gente, não morreu?
— Morreu está morto. Se fodeu que eu digo é com cadeia,
escola, família. Eu queria naquela época estudar Economia, trabalhar
em pesquisa. Me fodi.
— Sozinho.
— De certa forma foi. Eu fui o bode expiatório do meu grupo.
Quer dizer, muitos foram envolvidos no processo, levaram uma cana
de dois, três dias, nada se apurou contra eles e ficou por isso mesmo.
O meu grupo, quer dizer, o nosso grupo começou a se formar aí por
volta de 67 e se condensou em 68. Confusão pra burro naquele ano,
foi quando começou o negócio todo, aliás. Dos que estavam na
Faculdade, só eu tinha um certo envolvimento estudantil. Nada de
liderança ou uma coisa assim. Eu ia, sabe como é?, participava. Em
68, acho que estava no segundo ano, levei um mês de cana por
causa do congresso proibido da UNE, em São Paulo. Aí fiquei
marcado em Belo. Isso influiu muito no comportamento da polícia
comigo, em 70.
— Desse seu grupo, só você foi a esse congresso.
— Só. Hoje eu sei que era esse o meu papel no grupo. Tinha
gente que falava: aquele pessoal do suplemento é meio de esquerda,
quando na verdade o pessoal não transava absolutamente essa de
esquerda, era só porque eu tinha sido preso em Ibiúna, nesse
congresso, entende? O grupo incorporava aquele meu papel, em 68,
em 70 e no. intervalo. Tanto é que a produção literária da turma era
pesquisa de linguagem, abstrações e só. E de lá pra cá não produziu
grande coisa.
— E você?
— Eu? Eu fazia uma poesia toda errada. Coisa de outra
geração. A minha era uma geração formada nos anos cinqüenta.
Nesse ponto a cana deu certo: livrou o país de um mau poeta.
O mineiro ficou pensando naquela poesia e como ele gostava de
fazê-la. Rimas de pão com canhão, ilha com guerrilha, liberdade com
vontade. Bebeu cerveja, que estava ficando meio quente. Talvez
estivesse falando demais e chateando o companheiro pernambucano.
Pediram mais uma cerveja. Quase meia-noite, perto da passagem da
década, dos foguetes, da incômoda alegria alheia. O pernambucano:
— E o que aconteceu com aquele pessoal?
— Não sei. Perdi o contato. Está por aí, trabalhando. Sei lá,
perdi o contato. Quando saí da prisão não tinha mais nada a trocar
com eles, não procurei mais. Encontrei por acaso um ou outro. Já tem
uns seis anos que não vou a Belo.
— Terminou a Faculdade?
— Não deixaram. Decreto 477. Entrei na Justiça, claro. Ficou
aquele chove-não-molha uns dois anos, sabe como é esse negócio
de Justiça. bom, aí fui para São Paulo. Também não pude estudar,
não me deram transferência.
— A família junto.
— Não, lógico que não. Nem emprego eu tinha. A família em
Minas, com a sogra, esperando a situação melhorar. Eu vendia livros,
coleções, enciclopédias, mesma coisa que fazia em Belo Horizonte.
Andava até torto com a pasta, cheio de calos na mão. Depois entrei
numa meio besta de bebida, depois desbundei e andei por aí sem
trabalho, meio hippie. Foi a minha pior fase nesses dez anos,
incluindo a prisão. E foi aí que minha mulher, depois de agüentar
minha barra quase cinco anos, pediu desquite, arrumou outro cara,
tudo bem.
Resumiu tudo porque tinha desistido de chorar um pouco.
— Estava meio perdidão em São Paulo quando encontrei uns
antigos companheiros dos tempos de estudante e fui me ajustando,
compreendendo as coisas, deixando a revolta pessoal de lado,
analisando a situação mais em profundidade, me politizando. Me
arrumaram emprego e agora estou aí, quase cinco anos nesse
batidão político.
— Você vai gostar do Nordeste.
— Acho que vou sim. Também se não gostar...
— Isso é. Trabalho é trabalho.
Começaram a estourar os primeiros foguetes. O mineiro
levantou o copo, o pernambucano levantou o dele, tocaram-se em
tlin.
— Porra, tem tanto tempo que eu não vejo minha filha.
O mineiro estava-melancólico, com os olhos um pouco úmidos.

O redator-chefe,
Haroldo.
Página 137.
Quem espalhava a história do diário de Samuel sobre Andréa?
Como é que um fato, conhecido inteiro apenas pela polícia, por uma
mulher interessada em mantê-lo secreto e por um repórter morto
pode tornar-se assunto de bar, das redações, dos chás, das
masturbações? Como o pusilânime pode ser invejado? À proporção
que a história tornava-se conhecida, Haroldo, o homem que
descobrira a pinta no lado direito do clitóris de Andréa, era invejado,
odiado, procurado por insatisfeitas senhoras em conversas
telefônicas.

O homem, mulato.
Ataíde.
Página 138

Ataíde perdeu o primeiro dos seus quatro medos no dia seguinte


à sua volta da prisão. Cremilda desmentiu tudo, que investigador
nenhum tinha agarrado ela, deveria ser algum truque deles. Pois, ela
explicou, passou aqueles quarenta dias desesperada foi andando de
uns lugares para outros, para saber onde ele estava preso, que nem
isso tiveram a caridade de informar. Foi ao necrotério, ao Pronto
Socorro, a uma porção de hospitais, muitas delegacias, ao DOPS (ele
interrompia: que foi que eles falaram? Ela: que não, que ali não
estava, que você devia é ter fugido de casa, tem tanta mulher largada
de marido por aí, eles falavam era isso), aos quartéis, disse que foi a
todos os lugares onde havia gente presa ou ferida daquela confusão
da praça da Estação.
O segundo medo Ataíde custou a vencer. Os médicos disseram
que aquela mão não tinha mais jeito, com os ossos esmagados e
sedimentados naquela posição e os ligamentos partidos. O medo de
não poder trabalhar só foi vencido quando aprendeu a pintar com a
mão esquerda. Desesperava-se, urrava de ódio, chutava o rolo de
tinta mas acabou pintando quase tão rápido e tão bem quanto com a
direita.
O terceiro medo, ter relações aleijado com Cremilda belíssima,
nunca foi vencido. Nunca se acostumaram, os dois, àquela mão seca,
evitava tocar em Cremilda com aquela mão. Descobriu um truque:
enfiava a mão debaixo do travesseiro quando estava em cima dela.
Mas começar ficou difícil, abraçar, ajudar a tirar a calcinha — sempre
gostou de ajudar, gostava muito de ver aparecerem os cabelinhos.
Perdeu o gosto. Antes, tinham relações até cinco vezes por semana.
Agora, duas, uma.
O ódio, seu quarto medo, levou-o a planejar um crime com muito
cuidado: avisar a todos os amigos e vizinhos que ia mudar-se para
São Paulo; vender móveis, televisão, tudo, e viajar; voltar uns sete
meses depois, com a mulher, escondido, no ônibus que chega às
sete da manhã; procurar nos anúncios uma casa para alugar e
Cremilda pediria a chave para olhar se servia (não podia ser de uma
imobiliária porque exigiriam documentos para entregar a chave);
depois Cremilda atrairia o investigador Punzinho até a casa, onde ele
já estaria escondido, esperando; que eles fossem tirando a roupa pela
casa vazia, para ele deixar por lá o revólver; que ela deitasse com ele
no chão do quarto, como se fosse trepar; chegar pé ante pé,
descalço, encostar o revólver na cabeça dele; deixar que ele visse
quem ia matá-lo, entregar o revólver para a mulher e enfiar a faca no
homem quantas vezes fosse preciso; limpar as impressões digitais,
deixar lá só a calcinha para pensarem em crime por causa de mulher;
pegar o ônibus de volta para São Paulo, chegar pela manhã, trabalhar
normalmente, tentar esquecer tudo aquilo.
Perfeito. Mas por que Cremilda quis, ela mesma, dar as
facadas?

“está chamando”.
Roberto.
Página 140.

Somente quase um ano depois, Roberto esclareceu o mistério


do diário pornográfico de Samuel, havido, em 71, como um
subversivo de ocasião (pela polícia), um anormal sexual (pelas mães
de filhas possuíveis) e um herói incômodo (pelos jovens intelectuais
que o conheceram e o tratavam com condescendência).
Esses detalhes não surgiram antes porque, como se sabe,
Roberto não entrou no processo. Nas vésperas de uma nova festa, a
dos seus trinta anos, ele se sente feliz, folgaz, falaz — e
absolutamente incapaz de segurar uma palavra dentro da boca,
loquaz.
— Era um romance. Li uns pedaços, até bonitos. O Samuel
pretendia estender a experiência do cinema-verdade e a experiência
do Truman Capote com A Sangue Frio. Seria um romance-verdade.
Ele dizia que pretendia uma reportagem sobre uma pessoa com as
minúcias de um Michel Butor, usando mesmo algumas técnicas do
regard. No caso dele acho que era mais técnica do voyeur — sem
maldade, hem gente. Queria captar toda a vida da pessoa, detalhes,
aparências, intimidades, enganos, mentiras — toda a verdade.
Escolheu Andréa para personagem, escolha maravilhosa, lógico.
Melhor, só eu. Qualquer informação sobre Andréa era anotada,
checada, investigada. Se não morresse, ia ficar louco. Dava dinheiro
para o porteiro do prédio dela em troca de relatórios. Seguia-a na rua
sem ser visto. Eu mesmo contei muita coisa para ele, até as
intimidades. Fiz uma biografia dela para ele que daria um conto
maravilhoso. Maravilhoso. Ele anotava todas as roupas que ela
usava, como permutava as roupas nos dias da semana, as bijuterias.
Tal colar só usava com tal blusa, tal saia no dia que usava cabelo
para cima — coisas assim, minuciosas. Por isso que eu falei em
voyeur, foi sem maldade mesmo. Cada detalhe que obtinha,
aumentava o projeto: queria esgotar Andréa. Ela tem realmente
alguma coisa de personagem, se vê como numa tela iluminada de
cinema. Sabe que eu morro de saudade dela? E sabe que eu tive
coragem de telefonar para ela no Rio, convidando para a festa? Não
quis atender mas eu deixei recado. bom, voltando à história. Aí,
dentro desse esquema é que entra o Haroldo do Correio de Minas,
também um senhor personagem. Um calhorda, lógico. A parte que a
polícia pegou do trabalho de Samuel é a do depoimento de Haroldo,
na primeira pessoa. Acho que daí é que surgiu a confusão. Agora: eu
não sei é por que ele terá contado todas aquelas coisas para o
Samuel, se nem sabia que era um romance o que o outro estava
escrevendo. É, sei de gente que já perguntou isso a ele, se ele sabia
o que o Samuel queria fazer com aquele material e ele disse que não.
Acho que o filho da pé contava para se fazer invejado pelo rapaz.
Doença. Agora: não sei se são verdadeiros os detalhes íntimos da
história, o tal caso da pinta na xoxota. Se houve mentira foi de
Haroldo, porque Samuel não inventava nada, estava fazendo um
trabalho rigorosíssimo. O negócio estava meio parado porque chegou
a um ponto em que a colaboração de Andréa era imprescindível e
Samuel não tinha coragem de se aproximar. Aí eu acho que ele
estava apaixonado por ela.

O retirante
Viriato.
Página 143.

A partir de 1970, que ficou sendo o ano da desgraça, e muito


mais conhecido pelo apelido do que pelo nome verdadeiro de 1970,
os habitantes de Curralin’u, interior do sertão de Alagoas, não
emigraram mais para o Sul. Dezessete famílias de Curralin’u
emigraram em março daquele ano, chamado da desgraça, para Belo
Horizonte, Belerizonte na opinião da maioria. Voltaram sete famílias e
Viriato, em agosto; faltavam dez famílias inteiras e mais treze
pessoas das famílias que voltaram, incluindo a mulher de Viriato, o
contador da história da fuga, da desgraça e da volta; dos treze que
faltavam, nove eram crianças, uma velha de trinta anos, um
filho rapaz, dois pais de família.
A história de Viriato, repetida através dos anos, tornou-se a
única e incompreensível verdade em Curralin’u. Uns dez ou quinze
anos depoís, a história ficou incompreensível para o próprio Viriato,
que a contava agregando palavras desocupadas, ouvidas talvez de
outros participantes da viagem que não ousavam ou não tinham o
dom de historiar.
Se se tentasse dar uma ordem ao que Viriato contava em
Curralin’u, em 1985, a história seria mais ou menos esta:
“Deus tinha desistido de ajudar o sertanejo e o Capeta
aproveitava para secar com seu calor os lugares de que se apossava.
Depois de dois anos de morada em terra do Capeta, dezessete
famílias de Curralin’u decidiram desocupar, sem questão. Andaram
vários dias e por todo lugar encontraram a marca latifundiária do Não-
sei-que-diga. Em Cabrobó, encontraram trinta e duas famílias que iam
encontrar um homem chamado Marcionílio em Juazeiro. De lá,
provável que fossem para o Sul. Formaram quarenta e nove famílias.
Em Juazeiro encontraram Marcionílio, com carta de emprego para
lavradores em Minas Gerais, e já chefiando cento e cinqüenta e duas
famílias. Ninguém sabia até então que ele mesmo é que era o capeta
Diabo. Algumas vezes pode ser que o Capeta saísse dele para
espairecer e Deus tomava conta, porque ele fazia surgir carne e
farinha em bornal vazio, fazia aparecer leite em garrafa de água, fazia
menino quase morto andar. Ou pode ser que o Diabo também saiba
fazer milagres e Marcionílio fosse Capeta o tempo todo, sem
descanso.
“Todos pensavam que sabiam para onde o tinhoso levava o
êxodo, Belerizonte. Mas como que a viagem durou quase um mês,
até fim de março? Todo mundo sabe que de Juazeiro até Belerizonte
se gastam três dias; parando, uma semana. Trens e caminhões se
retardaram com duzentas e uma famílias até que se preparasse no
estrangeiro uma cidade igual a Belerizonte. O que deu mais trabalho
foi o Parque, mas isso o Capeta saiu de Marcionílio e foi lá resolver e
voltou, sem perder o lugar.
“Chegados, começou a desgraça. Foram cercados e surrados
pelos capangas de Marcionílio, diabos meganhas, soldadesca.
Depois ficaram lá cercados durante três dias, sem comida, esperando
o trem que os levaria vivos ao inferno. Vinha gente de longe ver os
nordestinos brasileiros encurralados, como feira de gado. Falavam a
língua brasileira como se tivessem passado muito tempo treinando,
mas se percebia a tramóia por algumas palavras diferentes e o
sotaque. Polícia chamava dópis. Meninos e velhos morreram ali, no
cerco. Eram gritos, lamentações, ladainhas, choro — e aquilo foi
fazendo um barulho tão grande que não deixava mais o povo do lugar
dormir. A dez léguas se ouvia o alarido. Então o governo, com os
ouvidos doendo, mandou acabar com aquilo e deixar a gente voltar
para o sertão, de trem. No trem, o Capeta dentro de Marcionílio ficou
tão quente de ódio que incendiou o banco em que estava sentado e
todos os lugares em que ele encostava pegavam fogo. Virou um
grande incêndio. Os retirantes saíram correndo do trem, dos tiros, dos
cavalos, dos carros, das sirenes. Muitos morreram nessa correria. Do
Curralin’u ficaram presas no dópis cinco famílias que tinham ficado
juntas no atropelo. Ali ficou confirmado que Marcionílio era o Demônio
comunista e os dópis procuravam os comparsas dele entre os presos.
Muitos apanharam, porque esses dópis são iguais à polícia mesmo, e
alguns até sumiram, mas comida era uma fartura, até duas vezes por
dia se comia. Entre outros presos que chegavam todos os dias,
chegaram mais duas famílias do Curralin’u, e foram esses todos os
que voltaram para o sertão. No mês de junho, faltando treze pessoas
das sete famílias do Curralin’u, foram levados a uma fazenda do
governo para colher milho e batata, vigiados com armas de fogo.
Assim se pagava a comida comida na prisão, muito justo.
Trabalharam na colheita até meio de agosto e foram postos no trem
de volta para o sertão, com ordens de nunca mais voltarem a Minas
Gerais. Marcionílio? Evaporou-se na prisão, como o Capeta mesmo.”

Andréa.
Página 144.

Andréa morreu de pneumonia em 1979, lamentando não realizar


seu grande sonho da velhice: ver a passagem do século. Apesar de
os epitáfios estarem completamente fora de moda, a sua exigência foi
cumprida. “Não se esqueçam de nós, do século XX.” — diz a
inscrição no seu túmulo.

Marcionílio
de Mattos.
Página 145.

“LÍDER CAMPONÊS MORTO


EM TENTATIVA DE FUGA

O líder camponês e ex-cangaceiro Marcionílio de Mattos foi


morto ontem em tiroteio com agentes de segurança, após
empreender espetacular fuga do xadrez do DOPS.
Marcionílio, o frustrado líder camponês que há três meses
tentou trazer a subversão do campo para a cidade, chefiando um
verdadeiro regimento de famintos, em conexão com extremistas da
Capital, arrebatou a arma de um policial, imobilizou a guarda, ganhou
o saguão do DOPS e correu pela avenida Afonso Pena abaixo,
atirando em seus perseguidores. Um tiro de um dos agentes que
corriam em sua perseguição atingiu o subversivo na cabeça, que caiu
já sem vida.”
Esta nota foi distribuída pela Polícia Federal a todos os jornais
da cidade e às sucursais dos jornais do Rio e de São Paulo, no dia 6
de junho de 1970, com a recomendação de não dar destaque na
publicação. “O Estado de Minas Gerais” fez uma pequena alteração
no princípio da nota, acrescentando: “Segundo informações dos
órgãos de segurança”. E o “Correio de Minas Gerais” substituiu, no
final, a expressão “o subversivo” pelo nome Marcionílio.

Roberto.
Página 148.

Um grupo de trinta rapazes armados com longos cacetes de


madeira invadiu a festa de aniversário de Roberto em 1971. A porta
foi aberta com estrondo de pontapé e os rapazes, de cabelos muito
curtos, civis, entraram correndo, atropelando, batendo, gritando.
Excitados pelo pânico que criaram, rasgaram a roupa de
várias mulheres, gritando puta, sua putona; invadiram os dois
banheiros da casa e num deles deixaram desmaiada uma mulher.
Quebraram o aparelho de som, televisão, discos, copos, espelhos,
esculturas, quadros, antigüidades, móveis, privadas, bidês, vidros de
perfume, garrafas de bebidas, bibelôs, pratos, cabeças, rasgaram
livros, vestidos, cortinas. Quem tentava fugir era espancado na porta
por um grupo que formava uma parede. Roberto apanhava,
sangrando, e ouvia: “Está pensando que pode debochar da gente e
ficar por isso mesmo, veado?” Veado, comunista e puta eram seus
gritos de guerra e excitação. Soou um apito e todos juntos largaram
suas vítimas e desapareceram pela porta, compactos, poderosos. Foi
a última festa.

FIM...
UM CLÁSSICO DOS
ANOS 70
A NARRATIVA COMO
CRIAÇÃO E RESISTÊNCIA:
A CUMPLICIDADE DA ESCRITURA
Betti Brait *

Eu escrevo para quê?: para contar histórias, aparecer,


ganhar dinheiro, passar tempo, cumprir uma missão
na terra? Nada disso. Eu escrevo para mexer um pouco
com a cabeça das pessoas, escrevo contra o tirano
e o opressor que está dentro das pessoas. E escrevo
também contra uma certa maneira de escrever.

Ivan Ângelo

Ivan Ângelo é um escritor bastante representativo de um


momento histórico brasileiro em que a narrativa funcionou como uma
das mais expressivas formas de resistência. Uma nova edição de sua
obra A Festa é um bom motivo para um olhar um pouco mais detido
sobre a produção desse escritor, de seu processo de criação, e da
importância, ainda hoje, de se ler esse romance (romance?).
Começo com um trecho da obra A Festa, datada de 1976,
justamente para destacar o momento em que o personagem-escritor
faz um desabafo, através de uma anotação, uma espécie de
marginália integrada à narrativa, e que tem como tema suas
angústias relacionadas ao processo de criação:
(Anotações do autor:
Escrever o que nesta terra de merda? Tudo que eu começo a
escrever me parece um erro, como se estivesse fugindo do assunto.
Que assunto? Merda! E quem disse que isso é responsabilidade
minha? Por que não escrever um romance policial ou um balé-revista
infantil?) (ÂNGELO, 1976, p. 167).

* Professora Livre-Docente da Universidade de São Paulo.

Esse trecho, considero como sendo profundamente coerente


com a angústia da criação literária vivida pelos, escritores, o que
talvez seja uma constante, mas que se colocava de maneira muito
particular naqueles difíceis anos 70. O que se percebe, nesse
desabafo, é a estreita relação existente entre História e escritura,
entre gênero literário e responsabilidade social, e, ao mesmo tempo,
as constantes dificuldade de um encontro harmonioso entre a escrita
e a assim chamada realidade. Tomo esse trecho, não por julgar a
personagem como espelho do autor da obra, mas porque esse
personagem-escritor, ou escritor-personagem, expressa, enquanto
marginália assumida graficamente pela narrativa, os dilemas vividos
pelos escritores que procuravam uma saída. E o que é muito
importante, uma saída que não dizia respeito apenas aos
acontecimentos políticos, mas também à condição literária, às formas
de narrar, à busca de novos caminhos.
Eram tempos de depoimentos dramáticos, realismos datados,
apressados, passageiros, mas também tempos de Rubem Fonseca,
Dalton Trevisan, Márcio Souza, de Galvez, o Imperador do Acre, e
Ivan Ângelo de A Festa e A Casa de Vidro (1979), para recortarmos
uma faixa em que a busca de saídas, ainda que literárias, podiam
custar, no mínimo a proibição da obra. Nesse sentido, do ponto de
vista de uma inovação literária articulada harmoniosamente com uma
temática crítico-social, Ivan Ângelo coloca-se, juntamente com Rubem
Fonseca, como um dos marcos significativos da literatura brasileira
dos anos 70.
Em seguida, e justamente pelas razões expostas acima, recorro
a palavras do próprio Ivan Ângelo, estampadas na quarta capa da
primeira edição de sua obra A Face Horrível, coletânea de contos
publicada em 1986, onde é possível encontrar, de forma explicitada, a
posição do escritor diante do mundo, o que inclui necessariamente a
literatura: “Eu escrevo para quê?: para contar histórias, aparecer,
ganhar dinheiro, passar tempo, cumprir uma missão na terra? Nada
disso. Eu escrevo para mexer um pouco com a cabeça das pessoas,
escrevo contra o tirano e o opressor que está dentro das pessoas. E
escrevo também contra uma certa maneira de escrever.” (ÂNGELO,
1986).

Ivan Ângelo, nesse sentido, é um escritor exemplar, não apenas


pelo livro A Festa, no qual me deterei com mais vagar, mas pelo
conjunto de sua obra que, mesmo não sendo vastíssima, demonstra
uma sintonia muito grande com o seu tempo. Essa característica se
materializa através de uma escritura elaborada em que um sofisticado
trabalho com a linguagem expõe o cotidiano, a memória, a História,
as agruras da escrita, matérias tecidas ao longo das horas que,
diariamente, o escritor rouba do jornalista, como afirma o próprio Ivan
numa entrevista: “O escritor tem uma existência constante na minha
vida (...) o que ele não tem é um exercício constante. Vivo voltado
para a literatura, seja como escritor, seja como leitor. Posso dizer que
escrevo todos os dias alguma coisa, nem que seja só na cabeça. vou
pensando num tema e às vezes isso passa para o papel em forma de
anotações, às vezes não.(...) A memória da criação é muito fugaz, é
um momento emocional que você grava ou não grava. Pode ser que
depois de ter anotado uma sacada, uma cena elaborada numa
viagem pelo trânsito de São Paulo, a emoção volte, se concretize em
texto. Mas pode ser que não. Mas de qualquer maneira, esse material
todo eu considero como atividade literária.” (BRAIT, 1986,
p.14) Desde Duas Faces, sua primeira obra, publicada em 1961, em
parceria com o crítico e escritor Silviano Santiago, até a coletânea de
contos O Ladrão de Sonhos e Outras Histórias, publicada
recentemente, a visão crítica da sociedade é traço marcante em sua
produção, bem como a perseguição de novas formas de narrar.
Nesse caminho, seu processo criador acaba muitas vezes incluindo
momentos de pesquisa e instauração de personagens e emoções
representativas das fatias sociais criticamente recortadas, como
afirma o próprio escritor, na mesma entrevista: “Gosto de trabalhar
com referências à história do país e para isso tenho um trabalho de
pesquisa muito grande, que efeito no tempo que me sobra. Apesar de
os livros saírem com um espaço de seis, sete (e até quinze) anos
entre um e outro, estou sempre trabalhando.” (BRAIT, 1986, p. 74).
Essa pesquisa inclui naturalmente, como o escritor já afirmou
várias vezes, um exercício refinado com a escrita, o que significa que
já nas anotações ele trabalha com o tipo de texto que vai ser usado
naquela passagem: “Se vou falar de televisão, por exemplo, quero
que o texto tenha uma linguagem relacionada com a influência da
linguagem da televisão dentro da vida da personagem. Se estou às
voltas com as peripécias de um detetive, o tom é o de um romance
policial. Penso que cada coisa deve encontrar a sua linguagem. ”
(BRAIT, 1986, p. 74).
O livro A Festa, um dos mais importantes no panorama da
literatura brasileira dos anos 70, é talvez o mais representativo da
síntese entre essa aguda percepção crítica da sociedade, que é
marca registrada de Ivan Ângelo, e o tratamento formal do texto,
bastante arrojado para a época e, eu diria, mesmo para os nossos
dias. Nessa obra, o autor testemunha e propõe uma visão dramática
do Brasil daquele momento. Dando voz a vários, momentos da
história brasileira, o autor possibilita a encenação de uma diversidade
de personagens, dramas e classes sociais, criando um caleidoscópio
onde as conflitos assumem tanto a humana dimensão individual e
psicológica, quanto a desoladora e letal confrontação com as forças
do poder.
A Festa, livro que mereceu elogiosas resenhas, não apenas na
imprensa brasileira, mas também na estrangeira, e que contou
também com a tradução para outras línguas, é um texto que provoca
a curiosidade e merece a atenção do leitor até mesmo do ponto de
vista gráfico. Embora a brochura de capa comum da primeira edição
não sugira nenhuma sofisticação, o requinte pode ser percebido já na
divisão do livro em páginas brancas e azuis, o que levou o leitor dos
anos 70 a, no mínimo, desconfiar das intenções de um autor que
programa, até mesmo, as cores das páginas em que sua narrativa
estará impressa.
O recurso visual, entretanto, não pára no detalhe das cores.
Espalha-se sob a forma de diferentes famílias de letras, diferentes
formas. Refiro-me aqui aos artigos de Albert Bensoussan, Alice
Raillard, Gérard de Cortanze, G.Charbit, Claude Feil vários outros
mas de utilização do espaço papel e, curiosamente, na utilização
significativa do espaço branco. Dito desta maneira, poderia parecer
que se trata de uma coletânea de poemas concretos, muito em voga
naquela década, e não de uma narrativa em prosa como é o caso
dessa obra. Os recursos gráficos, que não descartam a possibilidade
de uma exploração verbo-visual do texto, tem uma função inerente à
narrativa. Essa exploração do nível gráfico compatibiliza-se com
todos os outros níveis, no sentido de romper com a homogeneidade
de um único padrão narrativo. A estratégia gráfica pode ser
considerada como uma exigência da organização de uma
multiplicidade de conteúdos imbricados na narrativa, ainda que o
dado cor pudesse ser suprimido sem comprometimento do conjunto.*
Além disso, incorporando formas não nobres de narrar, como a
notícia, a manchete e o depoimento policial, por exemplo, A
Festa assume também os artifícios dessas outras táticas narrativas,
constituindo uma narrativa polifônica, mesmo antes de as teorias
bakbtineanas sobre o romance estarem em moda em nosso país.
No nível ainda da compatibilização gráfica, temática e
discursiva, é possível atentar para a ambigüidade sugerida já no
subtítulo Romance: contos. A narrativa é organizada em nove
fragmentos, que em princípio poderiam ser analisados como contos
independentes, mas que, na verdade, mantêm uma estreita relação
de solidariedade e comprometimento com o conjunto representado
pela narrativa como um todo,. Curiosamente, até mesmo o sumário, o
índice, mantém essa relação de relativa independência. Todos os
nove fragmentos, que compõem as três partes que constituem a obra,
estão registrados no índice com um complemento explicativo,
diferentemente do que aparece no início de cada trecho.
O primeiro bloco narrativo é composto de sete
fragmentos: Documentário, Bodas de Pérola, Andréa, Corrupção, O
Refúgio, Luta de Classes, Preocupações, 1968. Embora esses sejam
os títulos que antecedem os fragmentos-contos, no índice eles estão
complementados, * N. do E. — O editor e o autor decidiram não
utilizar o recurso das páginas em cor, a partir desta edição. O recurso
foi eliminado também nas edições estrangeiras. Entre parênteses, da
seguinte maneira. Documentário (sertão e cidade, 1970), Bodas de
Pérola (amor dos anos 30), Andréa (garota dos anos 50), Corrupção
(triângulo nos anos 40), O Refúgio (insegurança, 1970), Luta de
Classes (vidinha, 1970) e Preocupações (angústias, 1968). Como se
observa, a explicitação do índice funciona como uma forma didática
de apontar para um período histórico mais amplo que, centrado na
década de 70, amplia-se para seus antecedentes, cobrindo os anos
30, 40, 50 e 60.
O segundo bloco, intitulado Antes da Festa, e que o índice
desdobra em Antes da Festa (vítimas dos anos 60), organiza-se por
meio de fragmentos sintéticos, antecedidos de um título em negrito,
acompanhado da indicação de horas e minutos. Apenas os
fragmentos correspondentes à personagem-escritor não seguem esse
padrão, destacando-se dos demais por apresentarem-se entre
parênteses e em itálico.
A ordem do aparecimento desses fragmentos não obedece a
uma cronologia, no sentido em que o termo pode assumir numa
cronologia linear, mas apóia-se num tempo cronológico, ou seja, as
horas e os minutos que antecederam os dois grandes segmentos que
polarizam a narrativa: os distúrbios da praça da Estação e A
Festa. Os fragmentos alternam-se, reuperando e configurando
personagens dos contos da primeira parte. A questão do tempo
histórico e do tempo narrativo coloca-se como um dos aspectos
centrais, aparecendo de forma extremamente elaborada, não apenas
nesse bloco, mas também nos outros dois.
A terceira parte, intitulada Depois da Festa, e que, no índice
aparece como Depois da Festa (índice dos destinos),encarrega-se de
recuperar todas as personagens, articulando-se por meio de
fragmentos antecedidos do nome da personagem, de epítetos ou de
expressões que as caracterizam, e da página em que apareceram.
Essa indicação está destacada em negrito e pode variar mesmo
quando a personagem é retomada.
Portanto, o aspecto gráfico e as divisões a que a obra está
submetida podem dar uma primeira idéia dos níveis de manipulação
sofridos pelo discurso ao longo dessa obra de Ivan Ângelo e que
constituem uma novidade para o momento, em mais de um
sentido. Dentre esses sentidos, é preciso destacar de forma especial
a que diz respeito à construção dessa sedutora parafernália
estrutural, arquitetada como estratégia de exposição de dramas
individuais e coletivos de diferentes natureza e dimensões.
O requinte gráfico, a combinatória de gêneros, a distribuição das
partes, enfim a calculada organização do discurso, configuram essa
narrativa como uma colagem em que a aparência de desordem é uma
maneira de estabelecer uma inusitada ordem textual, compatível com
a complexidade histórica e discursiva característica dos momentos e
dos temas que constituem a narrativa.
A primeira parte da obra funciona como uma performance do
narrador-escritor-personagem, isto é, como o conjunto de seus
esforços e de sua capacidade e disponibilidade para criar uma obra
literária, representativa de sua época. O primeiro
fragmento, Documentário, vai mostrando um posicionamento básico
em relação ao que está sendo narrado: a realidade só toma forma, só
passa a ser comprendida a partir do momento em que se mostra
como linguagem. Talvez seja essa a razão de a linguagem da obra
não se apresentar como o discurso regular de um narrador onisciente,
mas como a manifestação diversificada de diversos narradores. A
polifonia das vozes, dos diferentes registros, dos diferentes gêneros,é
um recurso que domina a obra toda.
O entrecruzar de discursos das mais variadas origens permite
ao leitor surpreender o fato sob vários ângulos, sem ter, jamais, um
ângulo privilegiado, o que descarta a perspectiva documental, embora
os acontecimentos sejam inteiramente verossímeis do ponto de vista
da referência e de suas representações. Além disso há a forte figura
do escritor-personagem, o qual conduz a reflexibilidade crítica da
narrativa, a meta-enunciação que não dissocia o produto do processo
de criação, o enunciado de suas condições de enunciação. Expor a
realidade significa, em A Festa,recuperar as linguagens que a
constituem, que dela participam de diferentes maneiras, que a
caracterizam e a descaracterizam.
Dessa forma, Documentário diz respeito ao saber do narrador-
escritor. O que ele sabe vem de outros narradores. O jornal, a música
popular, a literatura, os depoimentos policiais, juntamente com
manifestos populares, textos históricos, sociológica dimensão
ideológica, se quisermos utilizar uma palavra bastante significativa
para aquele momento.
Do ponto de vista da estrutura narrativa, esses narradores,
essas diferentes perspectivas discursivas, colocam-se como aliados
ou opositores dos fatos e personagens que estão sendo instituídos.
Esse é o caso, por exemplo, da maneira como em Documentário vai
sendo composto o perfil do personagem Marcionílio Mattos,
protagonista de um dos pólos centrais da narrativa: os
acontecimentos da praça da Estação. Ele vai sendo construído pelos
diferentes narradores de forma a englobar traços que, traduzidos e
ordenados, poderiam sugerir o seguinte desenho; nordestino,
moreno, 53 anos, migrante, cor parda, filho de capanga de coronel,
admirador de Lampião, oposicionista à Coluna Prestes, consciente da
situação nordestina, desejoso de mudar o sertão, dentre outros
aspectos, conjunto que vai sendo disposto a partir de uma certidão de
nascimento, de notícias de jornal, de depoimentos policiais etc.
Esses traços, por sua vez, serão lidos, alinhados e articulados,
sob pontos de vista contraditórios, ao longo dos diferentes discursos
evocados. O resultado é a construção progressiva de uma espécie de
indivíduo-colagem que, no final, depois de ser considerado líder
camponês frustrado, cangaceiro, subversivo, é morto, vira notícia de
jornal, uma espécie de João Gostoso, de Manuel Bandeira, e é
perenizado como Diabo pelo discurso da literatura de cordel.
Na verdade, a instauração desses vários narradores e a
mobilização desses diferentes discursos, que vão tecendo os fatos,
impedem que os acontecimentos da praça da Estação, eixo sobre o
qual esta centrada a exposição do momento repressivo configurado
pelos anos 60 e 70, seja tido como um mero dado referencial. A
repetição do mesmo fato ao longo da narrativa e a multiplicação de
perspectivas aí configuradas, longe de apontar para um único
referente, encenam a heterogeneidade discursiva e, ao mesmo
tempo, expõem a força construtiva das linguagens, a produção de
sentido e de efeitos de sentido representados pela confluência dessas
múltiplas vozes.
As coisas não se passam de forma diferente no restante da
narrativa. O processo de instauração de múltiplos narradores, cuja
função é multiplicar e respaldar a voz narrativa, retomando
acontecimentos, insistindo sobre eles de forma opinativa, configura A
Festa como um espelhar de narrativas que, apontando umas para as
outras, parecem tentar dissuadir o leitor de existência homogênea dos
acontecimentos. Ao mesmo tempo, esses acontecimentos são
expostos de maneira profundamente dramática e atordoante, numa
total consonância com o momento histórico.
A linguagem, de uma certa forma, assume o papel de
protagonista e de cúmplice do escritor. Sendo seu único instrumento,
ela é dimensionada não como intermediária entre os fatos e sua
narração, mas como a matéria-prima metamorfoseada nos vários
níveis de sua interação social. Ao manifestar suas impossibilidades e
contradições, a linguagem, enquanto conjunto narrativo, expõe
também as possibilidades, as impossibilidades e as contradições que
caracterizam o universo aí recriado. É justamente na força dessa
confluência de discursos, de linguagens, que a obra encontra um
caminho original, quer enquanto possibilidade de desvendamento e
exposição crítica dos universos social e humano aí envolvidos, quer
do ponto de vista literário, enquanto saída inovadora.
O outro pólo da narrativa, intitulado A Festa, e que no nível do
discurso não existe como parte integrante da obra, tem sua existência
assegurada pelos mesmos processos discursivos, pelas estruturas
narrativas e pelo posicionamento dos diferentes narradores. A
Festa existe, em primeiro lugar, como um elemento aglutinador dos
vários personagens que, desvinculados dos acontecimentos da praça
da Estação ou ocasionalmente ligados a eles, pertencem ao que se
poderia chamar de diferentes camadas da burguesia. Assim, o
psiquiatra, homem que tinha teorias, a mulher belíssima, analisada e
angustiada, o pintor homossexual, os intelectuais, o egocêntrico
assassino, glorificado pela sociedade por sua conduta mantenedora
da moral, as mulheres tristes interessadas em experiências sexuais,
são personagens que poderiam perfeitamente reunirem-se, apesar
das diferenças que as separam, numa festa: espaço social em que o
parecer ser deixa fluir o ser de cada um.
Mas para que apresentar A Festa discursivamente se toda sua
carga de significação está dada em cada um dos personagens dos
blocos Antes da Festa e Depois da Festa? Acontece que o narrador-
escritor, embuído em fazer prevalecer a multiplicidade de narradores
e a multiplicidade de formas de narrar, é um enunciador que sintoniza
os diferentes discursos, configurando uma obra literária que retrata as
impossibilidades do momento. Dessa forma, ainda que concretizada
como elipse numa página em branco, A Festa aparece não apenas
como título, como metáfora irônica da matéria-prima que motiva o
autor, mas como realidade de determinados personagens.
Reaparecendo, em Depois da Festa (Escritor. Página 108,
p.167), enquanto personagem-escritor, ele se integra aos
acontecimentos e discute os resultados de seu trabalho:
- Este livro (diz o escritor recebendo os originais) é o resultado
de um fracasso. É o que eu consegui fazer de um projeto pretensioso
que tracei em linhas gerais há uns dez anos ou mais
(subtextualmente revelando que aquilo que vinham dizendo seus
inimigos era verdade) e no qual mexi apenas algumas vezes esse
tempo todo (...) (ÂNGELO, 1976, p. 167).
No momento de discutir os originais com um amigo, ele insere A
Festa no discurso. Lá estão quatro laudas que reproduzem
relacionamentos de atores durante A Festa:
Olha aí (entregando as laudas ao amigo).
Ele lê: vontade de acabar com essa festa, mandar todo mundo
embora. Ainda teve coragem de dizer que era a garota dele, desaforo.
Ah, Lúcio, que foi que eu fiz, vai embora, gente, vai embora, não
posso mais - Antônio, me traz um gim. (ÂNGELO, 1976, p.l67).
Novamente o jogo do ser e do parecer instaura as dicotomias do
símbolo de uma época: A Festa. E o narrador novamente
desmetaforíza o discurso, desmistificando todo o processo de criação,
superpondo camadas narrativas.
O engendramento narrativo, constituído pelo imbricar dos mais
diversos discursos que simulam o real, pode ser considerado, apesar
da constante interferência do narrador empenhado em desmetaforizá-
lo, uma bem construída metáfora.
Na dura luta que o homem trava com a realidade, procurando
constantemente dar-lhe uma significação, a metáfora oferece-se,
como se sabe, como uma das possibilidades de nomear o real e,
através desse processo, represá-lo. Descobrindo combinatórias
novas, instaurando uma nova ordem no caos, o escritor acaba por
nomear aspectos novos da realidade, ou pelo menos acaba
encontrando uma forma de fazer ver aos outros suas percepções.
Preso à necessidade de expressar o percebido e o vivido, o escritor
encontra na linguagem, no discurso, na narrativa, formas de
configurar e expressar aspectos novos a serem desvendados.
É somente sob esse ângulo que A Festa pode ser considerada
como uma metáfora de um momento brasileiro específico.
Fragmentando o discurso, instaurando narradores e compondo uma
colagem aparentemente caótica, o escritor mobiliza sua capacidade
criadora no sentido de reinstaurar o real, sem acobertar suas
intenções e suas dificuldades para construir uma obra crítica e auto-
reflexiva.
Sem entrar em detalhes sobre as demais obras de Ivan Ângelo,
que dentro de suas especificidades articulam esses dois pólos
narrativo-criativos, gostaria de finalizar reconhecendo que os dramas
humanos, seja qual for sua dimensão, encontram nas narrativas de
Ivan Ângelo a linguagem que os dimensiona com sensibilidde e
adequação.
BIBLIOGRAFIA
ÂNGELO, Ivan (1976) A Festa. São Paulo, Vertente Editora. (1979) A
Casa de Vidro. São Paulo, Livraria Cultura Editora. (1986) A Face
Horrível. Rio, Nova Fronteira. (1995) O Ladrão de Sonhos e Outras
Histórias. São Paulo, Ática.

BRAIT, Beth (1986) “Ivan Ângelo: vivo voltado para a literatura”. In:
Shopping News-City News, 25/5/86, p. 74.
A FESTA E A CRÍTICA

“A Festa é um livro que recusa o paternalismo de um narrador que


guia o olhar do leitor estático que recusa paternalizar tanto o leitor
quanto a dramática matéria que narra. Mas esta recusa não assume a
forma de um rompimento da linguagem discursiva, como em Joyce,
que fundiu a rebelião literária com uma rebelião no nível do discurso.
Nem se faz através de reflexões explícitas à moda de Machado de
Assis, que com um gesto irônico comenta a sua própria elocução. Em
Ivan Ângelo, a crítica as convenções do relato realista é feita no nível
da estrutura, através da dispersão do foco narrativo, o que resulta
num romance sem herói, sem centro e sem pai (Ana Cristina
César, Opinião, 22 10 1976).

A Festa é um dos livros mais importantes produzidos pela


geração de escritores que, surgida no início da década de 60, e
entregue nos anos seguintes mais ao ofício de sobreviver que ao
outro - ainda mais duro - de escrever, descobriu-se, repentinamente,
já no impasse dos anos 70 (Aguinaldo Silva, O Globo)

Livro escorregadio - romance político? drama psicológico?


crônica de uma geração sem saída? crítica de costumes? reflexão
sobre as contradições das pessoas? - ele enreda o leitor em suas
múltiplas teias, em uma espécie de labirinto que necessita ser
reiventado a toda hora para poder ser percorrido a cada nova leitura
entre a expectativa, o susto e o prazer (J. jota de Moraes, Jornal da
Tarde, 22-5-1976)

“Desde o romance nordestino das décadas de 30 a 50 e


desde Quarup, de Antônio Callado, na década de 60, não se via um
livro que refletisse de forma tão explícita, direta e digna a realidade
brasileira de nossos dias (Luiz Fernando Emediato, Jornal do
Brasil, 23-6-1976)

O novo livro de Ivan Ângelo é uma cacetada, como diria João


Antônio, uma obra rica de significado social e expressiva como
experiência estética. Em seu aspecto global (unidade, concepção), o
romance é perfeito (Assis Brasil,Última Hora, 3-9-1976)

“A Festa, como realização dos nossos dias, é livro que se insere


na tradição do humanismo clássico com marcas estilísticas
machadianas, passando por Fitzgerald e entrando na
contemporaneidade sem abandonar as remotas raízes da tradição
ocidental. Pensamos até mesmo em Montaigne, quando este
escreveu ‘É preciso tirar a máscara, tanto das cousas como das
pessoas’ (Ensaios, Livro I - Cap 20). O livro de Ivan Ângelo se propõe
a retirar a máscara, tanto das pessoas como das cousas, como das
ideologias, pois seu autor sabe que a realidade é uma realidade
traída, vale dizer ainda – camuflada.” (Fntz Teixeira de Salles, Estado
de Minas, 4-8-76)

“O esforço de Ivan Ângelo evoca o de Fitzgerald reconstruir a


experiência de uma geração ” (Italo Monconi Jr, Tribuna da
Imprensa, 17-10-1976)

“A linguagem de Ivan Ângelo é extremamente cuidada, limpa,


sintética, conseguindo conotações líricas, afetivas, eróticas e irônicas,
segundo exigência do conteúdo. É impressionante como os detalhes
e a ironia são valorizados de maneira inteligente, o que lembra a
ficção de um Machado de Assis (Elias José, Correio do Povo, 5-2-
1977)

“ Ce questionnement de 1’actualité et de la chose


contemporaine passe toujours par un traitement formel três achevé du
texte. (...) Cruelle, époustouflante, amère, tendue, naturaliste, cette
sombre forêt dantesque amazonienne avance, como celle de
Macbeth, au coeur d’une ville de bois ” (Gérard de
Cortanze, Magazine Littéraire, avril 1979, Paris)
“Ou souhaite à beaucoup de nos héros nationaux de mourir
dans un dénouement assut total. (...) saisissante photo de famille,
impitoyable radioscopie d’un pays malade de malentendu aigu ”
(Gérard Charbit, Les Nouvelles Littéraires,mars, 1979, Paris)

“...il superpose à une satire de moeurs de style burgeois un recit


socialement engagé” (Alice Raillard, Quinzaine Littéraire, 1-6-1979,
Paris)

“A partir d’üne trame fort simple, Ivan Ângelo construit un livre


éclaté et foisonnant. Nous écartons lá de la vision centripète du roman
traditionnel pour, sur la périphérie, embrasser la totalité, la globalité
d’une situation, admirablemente servie par une écriture de pleine
liberté et d’authentique subversion.” (Albert Bensoussan, romancista,
tradutor de Vargas Llosa e Cabrera Infante)

“Politically the most important novel to emerge from Brazil


since Zero, A Festa (The Celebration) is, of the two, the more carefully
articulated, with a mastery of its own elaboration that rivais the best of
recent Latin American narratives. And here I am thinking of the more
radically gifted experiments like Cortazar’s Hopscotch (Rayuela) and
Vargas Llosa’sConversation in the Cathedral. If Zero is an explosion,
a baroque display of pyrotechnics, A Festa proceeds with the certitude
of the assassin: calm as a razor blade, deceptive as a silencer,
accurate as mine field. It works like a night stalker turned loose on a
daytime reality: official reality.” (Thomas Colchie, tradutor norte-
americano)

“A Festa is fiction by the mirror: reflecting its own narrative


processes, the book draws the reader to examine not only the tale but
the telling as well.” (Ricardo Sternberg, University of Toronto)

“Ângelo covers familiar territory in his dignified and sometimes


self-conscious mosaic of Brazilian life, wich includes police brutality,
government suppression, and the seemingly concurrent need for
sexual experimentation. The writing is contemporary, urban, staccato,
elliptical yet precise Ângelo hás a flair for describing the ambiguities
inherent in the human conditions and at times suggests the
melancholic intelligence that characterizes Cortazar.” (Publisbers
Weekly,Nov 27, 1981)

“ The Celebration (A Festa), is a brilliant Brazilian example of the


concerns common to many Latin American writers, and of the dazzling
literary skills they often bring to their books. (...) But with ali the
experimenation, Angelo’s novel is solidly and consciously in the
mainstream of Brazilian literary concerns, one of wich hás always
been the great gap of incomprehension between the modern,
prosperous coast and the backlands of the northeast, the largest área
of absolute poverty in the Western Hemispher. I is the same the
Euclides da Cunha treated in 1902 in Rebellion in the Backlands (.Os
Sertões), generally recognized as Brazil’s greatest work of literature.”
(Patrick Breslin, The Washington Post) Brasil, anos 70. Jovens
estudantes e jornalistas lutam pela liberdade. Um conflito na praça,
uma festa entre quatro paredes, diálogos teatrais. Notícias de jornal,
cortes de cinema e vídeo-clip. Caos, desordem, mentira, sexo e dor.
Uma história de amor. Este é o mais violento, erótico e implacável
livro de Ivan Ângelo. Um romance cheio de emoção, deslumbrante
em sua ousadia. Um clássico da literatura brasileira traduzido em
vários idiomas que agora volta, em grande estilo, às livrarias do
Brasil, 20 anos depois de sua publicação.

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