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A Festa - Ivan Angelo
A Festa - Ivan Angelo
A FESTA
ROMANCE : CONTOS
8ª edição
INÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO.
A FESTA
Copyright © 1976 by Ivan Ângelo
Ângelo, Ivan
A Festa / Ivan Ângelo – 8ª ED - São Paulo:
Geração Editorial, 1995
95 2993
CDD-869.935
869.935
2. Século 20 : Romances : Literatura brasileira
869.935
Todos os Direitos Reservados.
GERAÇÃO DE COMUNICAÇÃO INTEGRADA COMERCIAL LTDA.
Rua Cardoso de Almeida 2188 - CEP 01251-000 - São Paulo - SP -
Brasil
Tel (011) 872-0984 - Fax (011)62-9031
1995
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
DOCUMENTÁRIO
(sertão e cidade, 1970)
BODAS DE PÉROLA
(amor dos anos 30)
ANDREA
(garota dos anos 50)
CORRUPÇÃO
(triângulo nos anos 40)
O REFÚGIO
(insegurança, 1970)
LUTA DE CLASSES
(vidinha, 1970)
PREOCUPAÇÕES
(angústias, 1968)
ANTES DA FESTA
(vítimas dos anos 60)
DEPOIS DA FESTA
(índice dos destinos)
AGRADECIMENTOS
FLASH-BACK
FIM DO FLASH-BACK
“ O flagelado
“que não recebeu dinheiro de quem quer que seja para esse fim;
que sempre procurou ajudar os retirantes na época da seca porque é
uma desgraça enorme; que é verdade que tomam comida quando
não têm dinheiro para comprar; que é a primeira vez que ele,
depoente, vem para o Sul; que é verdade que pertenceu às Ligas
Camponesas de Pernambuco; que teve de mudar-se de Alagoas
porque foi retirado sem júri da cadeia de Arapiraca, Alagoas, em
1960; que foi libertado pelas Ligas Camponesas de Alagoas mas teve
de fugir para Pernambuco; que em 1963 seu processo foi arquivado
porque nenhuma culpa foi apurada contra ele na morte de um
comerciante de Arapiraca, durante a invasão do mercado local por
retirantes; que nesse mesmo ano de 1960 voltou a Alagoas para
buscar sua mulher e filha, na cidade de Pombal; que lá encontrou sua
mulher amasiada com outro homem, porque o julgava morto; que
voltou então para Pernambuco sem a mulher e a filha; que não sabe
mais onde se encontram; que em Pernambuco trabalhava na lavoura
de cana; que não conhecia pessoalmente o deputado Francisco
Julião, das Ligas; que Julião era comunista e político; que de 1960 a
1964 encontrou trabalho mesmo durante as estiagens, por influência
das ligas; que participou de ocupação de engenhos em Pernambuco;
que não sabe dizer se Francisco Julião explorava a ignorância do
povo; que nunca mais ouviu falar do ex-deputado Francisco Julião;
que ele, depoente, foi preso juntamente com outros lavradores,
interrogado e solto na Revolução de”
(Do depoimento do subversivo Marcionílio de Mattos,
enquadrado, por incitação à revolta, na Lei de Segurança Nacional e,
pela morte de um policial, acusado de homicídio doloso, no processo
do DOPS de Belo Horizonte sobre a revolta popular da madrugada
de31 de março na Praça da Estação.)
MARIDO
MULHER
1.
Ela era muito bonita. Talvez a única verdade de Andréa, base de
todas as posteriores mentiras, tenha sido essa: a beleza. As mulheres
bonitas demais são colocadas sempre na frente — de uma família, de
uma coroação de Nossa Senhora, de uma sala de aula, de um
colégio, de uma festa, de uma sociedade — e acabam assumindo a
responsabilidade de manter-se no centro o resto da vida, e essa
ilusão cansa e faz sofrer. Na adolescência, Andréa já estava perdida
no seu engano.
Queria amar — não pouco, muito, como as heroínas. Antes dos
quinze anos já amava violentamente, porque o beijo foi uma
descoberta pertubadora. O medo de estar pecando — católica, de
família classe média, nascida e criada na Tijuca — impediu que ela
conhecesse na época outras carícias. Ficou-lhe para sempre uma
sensação de leveza e perigo na hora de um beijo.
Um dia o pai descobriu e leu o diário de Andréa, falando em
beijo, demais. Enfurecido, mandou a filha para a casa de uma tia, em
Vassouras, onde ela terminou o curso Normal e adquiriu uma
inquietante ignorância, que conservou para sempre.
As pernas de Andréa aos dezessete anos provocavam brigas
nos bares de Vassouras. Um sujeito moreno arrebentou a cabeça de
um outro com um taco de sinuca por causa das pernas de Andréa.
Escondido da polícia, escreveu-lhe um bilhete — num português
horrível que ela teve a delicadeza de desculpar — dizendo que
brigara por sua causa. Ela amou durante muito tempo, sem nunca ter
visto, aquele homem sanguinário, capaz de matar. Em sonhos, era
vítima de violências dele. Guardou a carta.
Voltou para a Tijuca no fim do curso. Falou-se da sua beleza
naquele verão de 1951. Ficava alegremente emocionada sempre que
alguém se apaixonava por ela. Achava natural gostarem de uma
pessoa tão linda e era compreensiva com os rapazes. Os homens
rondavam, os meninos masturbavam-se. Naquele verão de dezoito
anos, Andréa apaixonou-se por um rapaz que estava iniciando uma
indústria de utensílios de plástico. Falavam em casar, quando o pai
dela teve de “aceitar” transferência para outro estado. Andréa quis —
romântica — fugir, mas o jovem industrial disse que não estava em
condições. Dele guardou uma fotografia 3x4.
2.
Começa aqui a fase de Andréa em Minas. As primas de Belo
Horizonte apresentaram a moça à boa gente mineira; gente delicada,
sentimental, vagarosa, prestativa, envolvente, mítica, organizada,
mesquinha, maldosa. Andréa entrou num círculo de gente rica demais
para ela, um grupo acostumado demais — e entrou desprevenida. As
pessoas se conheciam o bastante para não confiarem, seus contatos
eram cautelosos, jeitosos. Ela trazia o quê?: dois namorados quase
esquecidos, egocentrismo, beleza, uma fotografia 3x4, alguns beijos,
uma carta mal escrita, uma família em dificuldades. Era pouca coisa
para opor a um grupo acostumado, e deixar-se fascinar foi seu
primeiro erro.
Não entendeu nunca — em Minas, entender logo já é muito
tarde, o mais seguro é antecipar — que inverteu as posições pelo seu
defeito básico de percepção: acreditou que era o centro das
atenções, que a sociedade estava fascinada por ela, quando a
verdade é que estava sendo explorada, estavam tirando dela o que
não tinham mais: beleza e uma relativa inocência. Não o faziam como
manobra, nada era deliberado.
Uma das primeiras coisas que aprendeu na nova sociedade: a
necessidade de colorir, de parecer. Aquele primeiro namorado e a
transferência para Vassouras foram transformados por ela numa
espécie de pecado original e expulsão do paraíso. O homem que
andou fugido da polícia foi transformado num bandido com uma
paixão irrefreável. O namorado industrial ela disse que se arruinou
por causa dela. A vida social, uma loucura. Os provincianos ouviam,
comentavam cúmplices aquela vida de aventuras e a engoliam um
pouco mais.
Seu retrato começou a sair nos jornais, as colunas sociais
ocupavam-se dela (recortava e guardava as notas), era convidada
pelos clubes, dançava muito, inquietava o domingo nas piscinas. Saía
com rapazes, mas estava perdida demais em seu próprio fascínio
para ter tempo ou paciência de apaixonar-se: bastava-se, amorosa.
Um dos rapazes obteve uma espécie de vitória quando conseguiu
enfiar a mão sob suas saias e mantê-la ali alguns minutos. Depois
contou para quem quis ouvir e não a procurou mais.
Envolveram-na, atenciosos, numa trama de simpatia: ele não
presta mesmo, todo mundo sabe disso, um aproveitador, conta para
todo mundo as coisas que faz com as namoradas; obrigando-a a
passar à defesa: de mim ele não tem nada para contar, eu já estava
cansada da falta de classe dele, para mim foi até bom ele inventar
essa cafajestada; levando essa defesa aos ouvidos dele e recebendo
na volta: cansado dela estava eu, nunca vi pequena mais burra,
cabaço é, mas gosta duma sacanagem, não comi porque não quis;
contando isso ela e as outras pessoas, e recontando as
repercussões. Em poucos meses a tinham envolvida, cúmplice.
(Para quê? Para nada: para se sentirem irmanados, fortes,
capazes de impor uma regra ao jogo; para conversarem, passarem o
tempo, exercitarem-se, estarem em dia, informarem e serem
informados, participarem, absorverem uma coisa viva, entrarem num
movimento, esquecerem sua própria falta de sentido, alimentarem-se
(como uma ameba) do que está mais próximo, sobreviverem: Para
tudo.)
3.
Começaram, então, em 1953, o processo de Andréa. Não era
mais a fascinante moça carioca; era alguém de quem sabiam coisas
comprometedoras. Os depoimentos eram prestados ao ouvido, para
não se ofender a ré: delicadeza mineira.
Contra a acusação de desfrutável, passou a oferecer a todos um
corpo intocável. Jogo inquietante, para os dois lados. Tornou-se um
pouco exasperada, nervosa. Voltou a sonhar com o homem moreno,
o bandido, que a violentava. Entrou num estado de excitabilidade que
não compreendia. Coisas a que antes não dava importância — um
homem de tanga no cinema, Tarzan, uma palavra dúbia como gozar,
uma perna vizinha num ônibus, eram dados pertubadores.
Masturbou-se muito nessa época.
Nas suas manobras de defesa, criou outra ilusão: de eficiência.
Começou a trabalhar num banco, como recepcionista, no tempo em
que isso era até meio chique e as moças bonitas da sociedade não
sabiam fazer outra coisa. Séria, conseguiu testemunhos: Andréa é
muito eficiente. A acusação de burrice era a que a deixava em maior
insegurança. Então comparecia a concertos, vernissages, estréias
teatrais, informava-se nos jornais, lia os livros da moda (ah, que
perturbação o grande orgasmo de Lady Chartterley), decorou versos
do poeta da moda, frases inteiras do cronista da moda. Os resultados
tornaram esse ponto pelo menos polêmico: Andréa é muito
inteligente, não acho, pois eu acho.
Quando já não era muito difícil manter as posições
conquistadas, moça adulta de vinte e dois anos, orgulhosa de uma
ilusória independência, assunto principal das crônicas sociais e
mesmo de algumas literárias, vítima de dois ou três poemas, ela
conheceu o amor mais longo, mais integral, mais franco e mais carnal
de toda a sua vida.
4.
É possível — aqui, não ouso afirmar — é possível que o
começo de seu caso com o jovem pleibói estivesse ligado ao
processo, sem que tivessem consciência disso: ele pretendendo
conquistar a moça de que todos falavam, ela afirmando-se também
na conquista do homem difícil, batendo outro recorde. Nada era
deliberado.
O amor resultou da resistência mútua, um certo desafio, ambos
querendo manter a posição e a reputação. Precisavam daquela luta
senão teriam acabado logo. Precisavam tanto que se procuravam a
toda hora. Não tinham, muitas vezes, nada para dizer; havia apenas
aquela oposição unindo-os. O período de resistência foi sendo
vencido, eles se afastaram.
Um mês depois, todo mundo dizia que se amavam. Procuraram-
se devagar e submissos. Aceitavam-se agora amolecidos de amor.
Tinham tempo. Ela, finalmente, amava como uma heroína.
Dois anos de uma felicidade difusa chamada namoro. Quando
ele começou a negligenciar, ficou desnorteada. Sentiu-se infeliz, de
algum modo infeliz há muito tempo, desde mocinha. No esforço para
mantê-lo, e julgando completar a imagem de moça independente que
o atraíra, deixou-se possuir por ele em 1956. Não o ter feito de
maneira lúcida, mas um pouco embriagada, no banco traseiro do
automóvel, deixou-lhe uma sensação de frustração, engano e culpa.
(No rádio do carro, Nat King Cole cantava “cachito, cachito, cachito
mio, pedazo de cielo que Diós me dió”.) Discutiam e ele desaparecia
semanas, que ela atravessava miseravelmente. Na volta dele tentava
— não sabia por que — evitar sexo, sem conseguir. Insegura, porque
deixara de ser o centro; infeliz, porque não sendo o centro o sexo que
fazia não a satisfazia. E havia também uma confusa sensação de
pecado.
Ele andava com outras, soube; quando sumia, andava com
outras. Ela estava infeliz demais para ter cautela. Deixou-se envolver,
aceitou a solidariedade, chorou nos ombros das amigas, divulgou sua
infelicidade: afinal de contas, era seu grande amor. Ele voltava, ela
ria; ele sumia, ela chorava — tudo muito simples. Nos salões, nas
piscinas, nos cabeleireiros, nos bares, era oficialmente a bela moça
que sofria de amor, uma personagem de sucesso.
Nunca chegaram a terminar o caso, e durante muitos anos
acontecia receber visitas dele, com as mesmas conversas, o mesmo
sensualismo preguiçoso, às vezes um pouco saudoso do corpo dela.
5.
De vez em quando Andréa considerava sua situação com algum
desespero: vinte e cinco anos, mulher feita numa terra em que a
donzelice é virtude necessária, procurando culposamente manter isso
em segredo (se a família soubesse!), tratada com desinteresse por
um homem que ainda amava. Tinha crises de choro, ajudada por um
pilequezinho. Tomava comprimidos para dormir (lógico: todo mundo
sabe que a infelicidade tira o sono das pessoas), excitantes,
tranqüilizantes, alkaseltzers e outros produtos da química do drama.
Cada bula de remédio que lia reforçava sua certeza de que era
realmente infeliz.
Não seria errado datar dessa época — sem nenhuma rigidez,
claro — sua tendência para a confidencia, o álcool e o prazer de
presentear. Contava pequenos problemas pessoais, inventava
dramas pelo prazer de ter alguém ouvindo. (Soube-se, então, que
teria havido um caso de desfalque na sua família, o pai, parece.)
Dava muitos presentes — gostava —, escrevia nos embrulhinhos
dedicatórias começando com “ao meu amigo”, “à minha amiga”.
Geralmente eram lembrancinhas, chaveiros, canetas, anéis, brincos,
lenços, isqueiros, pentes — pequenos subomos inconscientes.
Naquele período em que se acomodava à sua infelicidade, ainda a
estranhando um pouco, recorria aos presentinhos temendo que a
abandonassem. Mantinha a ilusão de centro acreditando que sua
infelicidade comovia a todos.
Na tentativa de escapar, saiu do emprego, descansou, evitou
bebidas, reuniões, comprimidos, começou sua psicoterapia (estava
entrando na moda). Por cinco meses não se ouviu falar muito dela.
Viajou, parece que para Vassouras. Voltou melhor, morena, bonita,
com o crédito de alguns beijos e o débito de alguns presentes. Tratou
o pleibói friamente. De algum modo, desfizera-se o encanto.
Disse que gostaria de trabalhar e esperou uma oferta. O antigo
desejo que sentiam por ela ainda funcionava: ofereceram-lhe vários.
Aceitou jornalismo. A posição de cronista social deu-lhe ascendência
sobre o círculo que a julgava. Inocente, não se aproveitou disso:
adulou-o. Não por bondade, mas para ouvir: Andréa é muito
boazinha.
Pela mágica de pensamento de que sempre será capaz,
escamoteou-se o fato de que a convidavam para reuniões cada vez
mais fechadas por ser cronista social. Naqueles seis anos ela fora
para eles uma dessas pequenas cortesãs com quem seus filhos
brincavam antes de procurar alguém para casar. Agora convidavam-
na, precisavam dela, e ela não percebia que estava sendo usada
pelos pais depois de usada pelos filhos. Voltaram sua confiança e
alegria. Entre os jornalistas era também centro e agradável novidade.
Outro erro: deixou-se novamente fascinar.
6.
A atração que exercia sobre o grupo de jornalistas tinha alguma
coisa de distância, glamour e sex-appeal das estrelas de cinema; a
que sentia por eles vinha das coisas estranhas que sabiam. Parecia-
lhe incrível que alguém pudesse saber ao mesmo tempo o que se
passava no incompreensível reino dos Laos, nos bastidores da
prefeitura municipal, nomes e posições de tantos deputados,
informações confidenciais sobre o presidente JK, além de futilidades
artísticas e sociais. Tudo isso misturado com ironia, gargalhadas,
chope, má educação, maldade.
Nessa época, 58, começou a inventar, dar-se títulos, enumerar
seus feitos, reivindicar amizades com pessoas famosas ( “Fulano?, é
muito meu amigo”), posar, representar, atribuir-se uma importância na
sociedade. Foi muitas vezes indiscreta sobre: quem é amante de
quem, quem faz o quê com quem, quem gosta como onde e quando,
de onde veio o dinheiro de quem, o que se fala etc. Fulano?, é muito
meu amigo.
Diziam no jornal que ela era muito burra e não sabia escrever.
Andréa suspeitava do que falavam. O sintoma era quase físico:
sentia-se desnorteada ao entrar na redação. Buscou apoio contra a
insegurança apaixonando-se pelo chefe de reportagem, que a
chamava “a Vestal”. Paixão de outra maneira inexplicável por um
homem casado e feio que zombava dela.
Deitou-se com seu segundo homem querendo provar-lhe que
não era aquilo que ele estava pensando (o que será vestal?) e, mais
uma vez, não encontrou no sexo aquela satisfação das grandes
amorosas da literatura. Procurando experimentar o orgasmo
avassalador de Constance Chatterley, entregou-se em lugares
estranhos, como a torre do edifício Acaiaca, um love vago (barulhos
de passos ali perto!); a carroceria de um caminhão na madrugada. A
paixão se foi aos poucos, na mesa de chope.
Aos vinte e sete anos, cansada de rosto, bebendo, tomando
comprimidos, chegou ao fim da sua década de juventude e formação,
os anos 50, que deixaram nela para sempre a sua marca.
7.
Afastou-se também da turma do jornal, chocada com uma
espécie de torneio em que se pressentiu prêmio, um agora vamos ver
quem pega primeiro. Dedicou-se um pouco mais à coluna, conseguiu
publicar algumas notícias em primeira mão e esqueceu com os
elogios a sua nova infelicidade. Promoveu artistas, foi júri de glamour-
girl, de miss, organizou festas. Atarefada, não pensava em homens.
Saía com amigos, dançava, trabalhava, e nada de intimidades. Não
lhe custava muito porque não tivera ainda um orgasmo de ganir; tinha
achado delicioso ter um homem dentro, mas não conseguia ir adiante.
Durante mais de dois anos, antes de resolver ir embora de Minas,
tentou seu grande orgasmo só uma vez, com um desconhecido que
encontrou numa boate. Fracassou.
Trabalhando, foi envolvida pelos intelectuais jovens, envolveu-
os. Achou agradável a ronda discreta que lhefaziam, tímidos,
respeitosos. Gostava um pouco mais de um jovem escritor que
colaborava no suplemento do jornal. Contava-lhe tudo, talvez com
esperanças de personagem.
Compreendia pouca coisa do que eles discutiam. Palavras
desconhecidas, inquietantes, atravessavam a mesa do bar,
ricocheteavam nas garrafas e em Andréa: infra-estrutura, pop-art,
fenomenologia, estruturas bilaterais do verso decassílabo, ontológico,
estruturalista, transcendência, imanência. Falavam no fim do
parlamentarismo, nas reformas de base, nos centros populares de
cultura, teatro popular, poesia popular — e ela tentava aprender por
que o isso-que-está-aí não podia continuar. Uns dois da Polop (que
seria isso?) passavam palavras de ordem no meio da conversa de
botequim. Sentia-se perturbada e feliz no meio da revolução. Alguém
afirmava uma coisa, o escritor protestava, dizia que era ridículo, ela
não sabia exatamente o que era ridículo, concordava. Aprendia
também frases como: a mulher não pode ficar marginalizada. Em 62,
era uma das duas frases preferidas.
Estava sempre precisando do socorro dele, na sutileza. Se viam
um peça, por exemplo: ele ia dizendo o que achava bom ou ruim e
quando terminava o espetáculo ela já tinha uma opinião, estava salva,
segura, podia conversar tranqüila à saída do teatro. Um jogo sutil não
revelado; sabiam-se ajudador e ajudada sem o menor sinal exterior
de que o sabiam.
O Jovem Escritor é um dos mitos efêmeros da cidade. O
principal: ele é a Esperança. Os ex-jovens-escritores municipais que
não conseguiram ser federais têm inveja e Fé. Ali pode estar o novo
Carlos Drummond, o novo Guimarães Rosa, e eles não querem, mais
tarde, estar entre os fariseus, entre os que não acreditaram. Depois
de uns três anos de Fé, a cidade começa a cobrar milagres,
transformações de água em vinho, seqüência natural daquele
primeiro livro, a Anunciação. Um dois três anos de esquivas,
insinuações de Iluminação nos suplementos — mas nenhum milagre.
Começa o declínio da Fé, os velhos escritores e os de meia-idade já o
tratam com mais intimidade, daí a pouco vão abraçá-lo como a um
irmão da Congregação.
O jovem escritor de plantão naquele ano de 1963 fugiu da
cidade antes do abraço. (Acabava de desfazer-se, dispersa, mais
uma geração literária mineira.)
Andréa mudou-se para o Rio dois meses depois que ele saiu.
Durante quase seis anos, soube-se muito pouco sobre ela. Boatos.
8.
Voltou. Ah, como a cidade recebe de maneira aduladora e
irresistível os que voltam. Pequenas que tenham sido as aventuras de
Andréa no mundo, seria ali, só ali, entre os prisioneiros da montanha,
que teriam o dom de fascinar; lá, os moinhos de vento seriam
gigantes. Andréa e a cidade eram adequadas uma à outra.
Não se soube de muita coisa, mas... havia a história de um
conde meio bicha apaixonado por ela... um homem desmemoriado
quis casar com ela... Vinícius fez um samba para ela... a revista
Playboy ofereceu dois mil dólares... se Jango não tivesse caído ela
estaria em Roma... despedia-se de um rapaz na porta de casa
quando chegaram três pretos enormes... meio sócia de uma butique
em Copacabana... dizem que voltou porque teve uma experiência
homossexual com uma das dez mais elegantes do Rio e o marido
flagrou as duas...
Galopando com ela em suas aventuras, os da montanha a
reconquistaram. Encantaram-se — forma mineira muito branda de
domínio.
A fascinante aventureira, então considerada musa da geração
literária anterior a 64, aproximou-se dos novos intelectuais.
Recuperou, naquele ano da volta, 69, seu emprego no jornal.
Descansada, mulher de estilo carioca na cor, na fala e no vestir,
pouco usada sexualmente, Andréa era uma mocinha de trinta e sete
anos. Dizia que tinha trinta.
Passou a ser vista com o novo pintor jovem da cidade, premiado
na Bienal de São Paulo, figurinista e cenarista do grupo de teatro,
herdeiro rico de uma grande firma de importação e exportação. Ele
também estava perdido em seu próprio jogo de aparências, atarefado
com comportamentos que devia esconder ou convinha divulgar, em
gestos estudados: sensualmente, transmitir insegurança e esperança
aos dois sexos; socialmente, apenas à mulher. Alguns homens usam
a mulher como um patuá contra o mau-olhado. Homossexual? — ela
não acreditaria.
9.
Andréa o deixava alerta. Não queria perder nada daquilo que
chamava representação magistral de uma canastrona. Esperava um
colapso, o clímax do drama, o momento insuportável em que ela
interromperia a representação.
Julgavam alguns que ela representava para uma platéia, mas é
parcial verdade, e o jovem pintor penetrou mais fundo. Ela se sabia
medíocre e criara para sua própria admiração uma mulher
variavelmente fabulosa, linda, louca, heroína, inteligente, amada,
infeliz, livre, pura, dramática, inalcançavél, fascinante, sensual,
desejada, competente, devassa, viciada, boa, jovem. Naquele
prolongado delírio egocêntrico ela era incapaz de saber onde
começava ou acabaria a interpretação.
Depois de cinco meses de descobertas e masturbações e
frustrações mútuas, acreditaram-se casáveis. Foi idéia dele, que ela
aceitou surpresa, noiva, mocinha casadoura dos anos 50.
Descuidada, confiante, sentia-se protegida porque ele era muito
parecido com ela (como sempre, escamoteava-se o fato de que
aquilo era defesa), acreditava que o amava por causa disso —
“encontrei minha alma gêmea” — e bem escondida no seu íntimo
estava a segurança, porque ele não poderia feri-la sem ferir-se.
Perdida no seu amor pela mulher que inventou, acreditou que o
premiava, entregando-a a ele. Não a supôs (se supôs) oferta
recusável. Pior: não saiu de dentro de si mesma para conhecê-lo e
não sabia da crueldade, do assassino de mulheres que morava
dentro dele.
Ah, Andréa, Andréa. Deveriam poupar-lhe a verdade se não
quisessem vê-la realmente sofrer. Quem abrisse sua armadura e
não tivesse compaixão poderia feri-la de morte. Seu jovem pintor,
bonito, inseguro, falso, quis um dia destruir nela o que tinha de
beleza, insegurança, falsidade — e atacou-a com aquele prazer de
destruição e esgotamento de que é feita a força dos artistas.
Numa festa cheia de gente conhecida (inclusive seu antigo
jornalista) (lembra-se dela como um dos episódios mais tristes de sua
vida) (lá conheceu também aquele escritor comunista) (aniversário de
seu noivo, amigo dos jovens intelectuais) (no dia da invasão da
cidade por um bando de nordestinos) (depois dessa festa, Andréa
não pôde mais fingir que era outra e não conseguiu ser uma só) foi
massacrada por ele numa cena dolorosa e autodestrutiva de jogo da
verdade. Colocado inicialmente como uma brincadeira de nostalgia
dos anos 60, o jogo se transformou na faca de ponta que martirizou
Andréa. O noivo e a platéia se possuíram na volúpia de destrui-la.
Através dele, ficaram sabendo das coisas que ela guardava até de si
mesma: — Um casal perfeito: ela é fria e eu sou impotente.
— Claro que não. A gente se masturba.
— Ela tem medo da penetração. Eu também.
— O maior desejo dela é gozar. Chegou a trepar em love vago
para ver se gozava.
— Herança? Só se herdar dívidas.
— Sabe não. Quem escreve a coluna dela é o Jota Jota. Quer
dizer: reescreve tudo, de tanto erro que tem.
— Trinta porra nenhuma. Trinta e sete, já vi na carteira.
— Trepou sim. Não sei o nome dela, mas Andréa me disse que
já experimentou.
— Muita bolinha.
— Prefiro homem.
Andréa tomou um grande porre, oferecendo-se a todos os
homens em contatos crispados (chegava a marcá-los com as unhas!),
estabelecendo em sua volta um clima de desejos incontrolados
(campeões se ofereciam para quebrar seu gelo; alguém chegou a
levar a mão dela até lá, para que ela visse!), uma lésbica beijou-a
louca no banheiro (na boca!), e esse delírio salvou-a: era o centro
triunfante do desejo de todos.
10.
Nos longos dias de solidão e pileques daquele abril de 1970, ela
relia, às vezes chorando, as velhas cartas, os recortes, revia retratos,
desde aquele singelo 3x4, os presentes, crônicas, poemas. Um velho
general considerando suas medalhas: testemunho de que tudo foi
verdade.
A sociedade reabriu seu processo, agora com provas;
testemunhas segredavam depoimentos, intimidades era reveladas.
Dizia-se que um diário obsceno de um jornalista subversivo era
vendido às escondidas em cópias mimeografadas e que nele havia
detalhes incríveis sobre suas relações com Andréa; arrolavam tudo o
que o pintor disse na festa, com acréscimos que variavam de acordo
com o narrador — um modo de parecer mais informado, como se
houvesse uma disputa e alguns roubassem no jogo.
Agora, diante de tantas evidências, os filhos e filhas da
aparência não poderiam mais sair com Andréa, os leitores não
poderiam ficar ao alcance dos seus pecados. Condenada e incapaz
de recompor-se, Andréa saiu da cidade, sem olhar para trás.
Os prisioneiros de montanha respiraram aliviados. E nos anos
que se seguiram foram vagarosamente tomados por uma
inconfessável saudade.
CORRUPÇÃO
PAI. 1941.
MÃE. 1941.
FILHO. 1941.
PAI. 1942.
MÃE. 1942.
FILHO. 1942.
MÃE. 1943.
Não gosta mais de mim. Sinto que não gosta. Não tem
importância, eu me digo, não tem importância. Faço que não vejo.
Fico pensando que não vou sofrer por causa disso, não vou sofrer
nem um pouquinho, olha aí como não sofro. Mas todo dia cansa, de
uma hora para outra posso começar a sofrer, logo eu, que tenho tanta
preguiça. Sempre fui tão sozinha, engraçado. No primeiro ano de
casada não, só depois que o menino nasceu. Tem muito tempo que
ele não vai para a cama comigo, e eu penso: não tem importância, eu
posso passar sem isso. Mas posso? É Cléber que o separa de mim.
FILHO. 1943.
PAI. 1944.
Enriquecia. com a pressa de quem já perdeu muito tempo,
assumiu o controle da firma Miranda, Oliveira, Martins & Cia. —
Importações e Exportações, que seu pai levara a concordata seis
anos atrás. Os russos, surpresa!, libertaram Leningrado do cerco
alemão, que já durava dois anos, e passaram ao ataque no Báltico e
na Ucrânia. Inglaterra e Estados Unidos, surpresos, apressavam os
planos de contra-ataque na Europa. Fora do trabalho dava-se ao filho,
embora às vezes uma Lenice noturna o prendesse entre pernas
ávidas. O Brasil, afinal, partia para a guerra, com acenar de lenços
brancos, v da vitória e lágrimas de mães. A cobra vai fumar. Nossa
vitória final é a glória do meu fuzil a ração do meu bomal água do meu
cantil por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá. A guerra comia açúcar, café, carne, algodão. E
ele comprou seu primeiro carro, baratinha Chevrolet 41, conversível.
Senta a pua.
Ela não gosta do Robertinho, agora eu sei. E quer me tomar
dele, para voltar ao antigamente. Recusava-se. Esmerava-se por ser
um bom pai aos seus próprios olhos, longinquamente pensando que
seu pai deveria vê-lo para saber que pai é isso. Corrigia, passava a
limpo o ofício de ser pai.
MÃE. 1944.
FILHO. 1944.
PAI. 1945.
MÃE. 1945.
Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Seis horas. Cléber deve
estar saindo do trabalho. Ninguém telefonou hoje — será o que
houve? Os dias cada vez maiores — e esse calor! Antigamente, não
tem cinco anos, eu esperava Cléber — de tarde só fazia isso.
Primeiro organizava o jantar, depois tinha o banho, me perfumava, o
banho dele preparado, água de colônia Atkinsons. Mesmo quando
estava trabalhando ele era uma companhia para mim. Parece até que
foi ontem. Hoje fico aí esperando alguém telefonar, sozinha nessa
casa — podia chamar um homem aqui que ninguém ficava sabendo
— esperando chegar a tarde, esperando chegar a noite, esperando
chegar a manhã, olhando a luna que si quiebra sobre Las tenieblas
de mi soledad. O que foi que eu fiz? Onde é que eu perdi aquele
rapazinho que casou comigo mais virgem do que eu? Não foi com
esse homem que sabe tudo e discute política que eu casei — eu nem
sei o que esse Luís Carlos Prestes quer. A culpa não é do
Robertinho, agora é tarde. É culpa de Cléber mesmo, da cabeça lá
dele. Nunca mais vou gostar de ninguém como gostei dele — nem
dele mesmo, se tudo mudasse de repente e ele voltasse a precisar de
mim. Isso é que é triste. E ninguém vai gostar de mim como ele
gostou, será que vai? Robertinho. Um menino tão esquisito. Ele
quase não ri! Teimoso, calado, esquisito — meu Deus, que culpa
tenho eu nisso tudo? Me dê tempo, meu Deus, e força para fazer com
que Robertinho seja feliz.
FILHO. 1945.
PAI. 1946.
MÃE. 1946
Não tenho mais nada para fazer nesta casa. O que, se ninguém
me quer? Fui uma boba de agüentar esse tempo todo. Agora até isso:
quando procuro, é com ódio que ele vem. Comigo não, violão.
Robertinho a mesma coisa. Quer mais esforço do que eu fiz durante
esse ano todo para ver se ele me ligava ao menos um pouquinho?
Até álbum de figurinha da guerra eu fiz com ele, só ficou faltando o
general Patton. Não adianta, cada carinho que eu faço ele se afasta
mais de mim. Nenhum dos dois me quer, não adianta esconder. Tem
qualquer coisa errada nisso, e nem quero pensar, Deus me livre. O
que é que eu tenho que eles não podem gostar de mim como uma
mãe ou uma mulher qualquer? Fui uma boba pensando esse tempo
todo que eu estava errada. Eles, eles é que são esquisitos com esse
amor deles, Deus me perdoe. Agora chega. Não adianta, eles não me
querem. Foi a última vez. Vou-me embora desta casa.
FILHO. 1946.
(Anotação do escritor:
Escrever o quê nesta terra de merda? Tudo que eu começo a
escrever me parece um erro, como se estivesse fugindo do assunto.
Que assunto? Merda! E quem disse que isso é responsabilidade
minha? Por que não escrever um romance policial ou balé-revista
infantil?)
(Anotação do escritor:
Todos os contos devem ter uma data, explícita ou implícita. O
ano da festa é 1970. O Roberto, que dá a festa, é de 41. Faz 29 anos
e é o mais velho dos novos artistas da cidade, que têm entre 22 e 26
anos em 1970.)
Restaurante Alpino
21h10m
A mulher, belíssima:
— Você gosta de mim?
O homem, bonito, meio feio:
— Lógico. Você sabe disso.
— Ah, você parece que não entende. Ou faz que não entende.
— É. São os recursos de um analista nada ortodoxo que tem
problemas com isso.
— Assim você está levando muita vantagem.
— Analista sempre leva vantagem.
Silêncio. Pensamentos, provavelmente. Ela:
— Você não sente tédio?
— Não, por quê? Aqui está tão bom.
— Não é isso não. É: nem às vezes?
— Não. Eu me ajeito.
— E quando tudo dá errado com a gente?
— Paciência.
— Tem gente que é feliz, não tem?
— Na minha profissão é difícil encontrar. Mas tem. E você logo
pensa: por que tanta gente é feliz e eu sou tão infeliz etc etc? Não é?
— Eu às vezes fico pensando.
— O quê?
— Que você gosta de mim.
— Bobagem sua.
— Gosta não?
— Não.
— Acho que estou sofrendo de carinho recolhido.
Ele sorriu meio embaraçado porque ela era belíssima.
— Vamos apanhar o Carlos? Está na hora da festa.
(Anotação do escritor
Teatro.
Um homem sozinho. Gravadores, vozes, slides, cinema, discos,
jornais, televisão. Ele contracena com os meios de comunicação. É
ele quem constrói prédios, joga na bolsa, passa fome na rua, protesta
contra isso-que-está-aí, apoia isso-que-está-aí, denuncia os amigos,
faz arte, detesta arte, governa, é um simples funcionário de cartório,
ama escondido estrelas de cinema e de televisão. É um cara muito
pequeno (papel para um anão?) em comparação com o material em
cena. Obrigado a optar a todo instante, a partir dos dados dos meios
de comunicação, mas as informações não são nada seguras, são até
contraditórias.
Escrever até 30.1.69 e mandar para o concurso do Serviço
Nacional do Teatro.)
— When you see beauty, look for a long time — diz o velho
versejador olhando o crítico de cinema lá na mesa dos jovens
intelectuais, onde acabou de sentar-se Esdras, o Hermético,
intelectual da geração intermediária. Os olhos de Esdras, duplicados
atrás de lentes muito grossas, parecem os de um homem apavorado.
Ele sempre ganhava as discussões, por causa dos olhos e de
algumas coisas que tinha guardadas.
(Eis um resumo do que falou naquela noite, com os moços:
“Vocês já repararam que ninguém mais canta no banheiro?
Conhece alguém que cante no banheiro? Conhece? Eu já procurei:
não existe. Não se canta mais em banheiro no Brasil.
“Literatura não é Economia. Vocês não podem estabelecer
prioridades nacionais de investimento literário, fazer um plano
qüinqüenal e determinar o que deve ser escrito nos próximos cinco
anos.
“Discutir a responsabilidade social do escritor é o mesmo que
discutir a responsabilidade social do cientista. No fim, a bomba
explode do mesmo jeito.
“Os nossos formalistas têm como objetivo literário a escrita
ideogramática chinesa e dizem que história, ideologia e semântica
não têm importância para a Literatura. Agora eu pergunto: qual é o
objetivo literário dos escritores chineses? E mais: qual seria o objetivo
dos formalistas chineses?
“Em Pirapora, um chofer de caminhão descobriu que sua mulher
estava enganando-o com o mágico do circo. Disse que ia viajar, coisa
natural em chofer de caminhão, e voltou de madrugada para
surpreender os dois, nus, na cama, acordando aos gritos,
assustadíssimos. Desvairado, porque honra se lava com sangue,
apanhou o revólver do mágico que estava na cadeira e atirou. Do
cano do revólver saíram bandeirolas coloridas. O marido sentou-se no
chão e chorou como uma criança.
“Cuidado com os tiros que vocês andam dando por aí.
Lembrem-se das bandeirolas coloridas.
”A vida literária não cria amigos, mas cúmplices. Isso é do
Drummond.
“bom, eu preciso ir andando.”)
(Anotação do escritor:
Penso na felicidade como uma satisfação dinâmica das
necessidades de uma pessoa. É uma tarefa. É realizando o trabalho
de amar que a pessoa ama e nesse movimento é feliz. Amor,
dinheiro, ideologia, isolamento, religião — o que o cara quiser
batalhar. E eu não tenho a menor chance, enquanto estiver
bloqueado por contradições.)
(Anotação do escritor:
Pesquisa sobre o filho, Robertinbo.
1 ano— Repete feitos que foram sucesso. (A. Gesell). A mãe se
entedia com a repetição, o pai aplaude sempre. A criança está muito
atenta à reação dos pais, aprende palavras, repete, aprende o
sentido. Me dá, ela dá. Piaget: “na medida em que se opera esta
passagem do egocentrismo integral e incosciente dos primeiros
estágios à localização do próprio corpo num universo exterior, se
constituem os objetos.”
2 anos— Curiosidade de descobrir novos objetos e ambientes.
(Vai ao quarto dos pais e os encontra abraçados, cena que vai querer
reviver aos 5 / 6 anos e que fechará o conto.) Piaget: a construção
de um conjunto de relações entre os objetos, como a noção de atrás,
sobre, dentro, fora, diante. Piaget: “na criança, a aquisição da
linguagem, quer dizer, do sistema de signos coletivos, coincide com a
formação do símbolo, isto é, do sistema de significantes individuais.”
3 anos— Coisas que podia e coisas que não podia. O difícil era
saber o que, quando e como, decifrar os códigos dos pais. Recorre
então à simulação (M.yLopez), rebeldia, ao fazer-escondido. A mãe
começa a achar que ele é fingido. O pai acha que ele representa.
4 anos — os objetos são mais dóceis, permitem mais invenções
e jogos, adaptam-se melhora imaginação. As pessoas resistem ao
pensamento mágico. (Gesell, M. L.)
Em grifo ou parênteses virão os conceitos que não pertencem
ao seu campo intelectivo; no final, as palavras grifadas são um
mínimo, porque ele domina a linguagem.)
— Boa tarde.
— Boa tarde. É o gelo.
— Que gelo?
— Ai ai ai. O senhor não encomendou gelo?
— Eu não.
— Roberto J. Miranda. Não é aqui?
— Não. É no apartamento de cima, na cobertura.
— Ah, desculpe. Muito obrigado. Desculpe o incômodo, hem?
— Ora, foi nada. (Merda! Lá vem mais festa!)
— Romance?
— Talvez. Talvez uma novela. A idéia eu acho que é boa, falta
desenvolver. É uma espécie de sátira ao racismo. O título, não é por
ser meu não, mas eu acho do caralho.
— Qual é?
(Anotação do escritor:
O Judeu Refratário. Escrever como se fosse um relatório de um
comandante de um campo de concentração, contando as tentativas
para eliminar um dos prisioneiros. Tenta gás, forno, nada dá certo.
Bota o judeu vivo dentro do crematório, junto com os outros, todos
mortos, e o judeu sai de lá de dentro com os mesmos olhos fixos,
alucinados. Mas não fala nada, não protesta. Tentam matá-lo a tiro;
ele sangra aos poucos, durante dias, sangra até as feridas
cicatrizarem — inclusive no coração — e não morre. com baioneta, a
mesma coisa. Mostrar o nazismo, a tortura, a opressão, a violência
física. O nazismo aí é como um símbolo, e o judeu refratário
representa aquilo que nenhuma opressão consegue destruir no
homem.)
Cama
I6h
(Anotação do escritor:
Incluir em Antes da Festa várias “anotações do escritor”
(inclusive esta). São projetos, frases, idéias para contos,
preocupações literárias, continbos relâmpagos, inquietações. Assim,
o escritor seria, junto com Samuel, personagem principal da história
que está escrevendo. Personagem involuntário, porque é “outro
autor” — ele mesmo, ou o homem que ele viria a ser, convivendo
artifi-ciosamente no tempo e no espaço com o homem que ele tinha
sido — é “outro autor” quem junta os pedaços desconexos de suas
anotações.)
(Anotação do escritor:
Nas ações e observações de Samuel, o verbo deve estar
sempre no presente.)
Praça da Estação
21h46m
(Anotação do escritor:
O que eu faço com isso: um romance, um conto, uma crônica,
nada?:
Um filme mudo deficção-científica, feito em 1931, está sob
guarda e vigilância do FBI. Paralelamente, a organização realiza
investigações para descobrir seus realizadores: atores, fotógrafos,
produtor, diretor, roteirísta, cenógrafo. O filme, descoberto nos porões
de um cinema que fechou por falta de público na cidade de El
Dorado, Arkansas,foi uma incômoda herança do governo Johnson
para Nixon. Detalhe curioso: El Dorado fica a pouco mais de 400
quilômetros de Dallas, Texas.
O filme deve chamar-se “The Assassination of the President”,
conclusão a que chegaram os investigadores baseados na anotação
feita na primeira lata da pilha— “The Assas. Of the Pres.”—porque o
primeiro rolo, que conteria o nome completo do filme e talvez os
nomes da equipe de realizadores, não foi encontrado. O dono do
cinema, que o comprou do velho dono, não soube informar nada,
apenas comunicou às autoridades o seu achado; o velho e agora
cego antigo proprietário, o texano jerome Prescott, lembra-se
vagamente de ter guardadas algumas latas de alguns filmes
realizados por produtores independentes, que faziam sua própria
distribuição. Era um serviço mal organizado, de pequena empresa, e
acontecia freqüentemente sobrarem latas e até filmes inteiros
guardados muito tempo no cinema, à espera de que os homens
passassem para apanhá-los. Aquele filme, disso lembrava-se muito
bem, foi um dos maiores fracassos da história do seu velho cinema
em 1931, ou 2. Um filme sem galã, sem uma garota como Lilian Gisb
ou jean Harlow, com muita discussão política e uma história
antiamericana passada no futuro, só podia ser fracasso.
O filme conta, em minúcias que não se pode considerar
coincidência, o assassinato a tiros de um presidente K. nos Estados
Unidos, em Dallas, Texas, 1963. Somente esse dado seria suficiente
para justificar uma investigação rigorosa. Mas há coisa melhor: a
cena do crime coincide quase exatamente com a realidade, 32 anos
depois! Alguns detalhes, como frisos dos carros, tom das roupas e
placas das casas comerciais não são exatos, mas bastante
aproximados. Parece que há algumas divergências da história
conhecida, mas quanto a esse ponto surgiram apenas suposições,
porque somente pessoas importantíssimas viram o filme— e essas
não falam. Segundo se diz, aparece no filme mais um atirador e —
dizem — pertencia aos quadros secretos do FBI. Busca aflita nos
arquivos: o nome com o qual ele aparece no filme nunca constou das
listas dos agentes secretos. Nada disso tem muita importância.
Até agora, passados quase dez meses de investigações, não foi
possível localizar um só ator do filme. Cópias fotográficas de suas
caras foram distribuídas aos agentes, que procuram todos os velhos
atores das décadas de 20, 30 e 40. Ninguém se lembra daquelas
caras, em Hollywood ou Nova York. A investigação está agora
estendendo-se ao Canadá e Inglaterra. “Você conhece esse homem?
Ele era assim em 1930. Escreva-nos ou telefone e ganhe uma
geladeira se você acertar.”— diz a televisão em três países,
disfarçando a busca em concurso. Já há quem diga que o filme pode
ter sido feito em qualquer lugar do mundo. Nada impede que se
coloquem legendas em inglês num filme mudo argentino, por
exemplo. As hipóteses extra-terrenas estão afastadas, por enquanto.
A mais recente sugestão, que partiu do chefe da Divisão de
Cinema do FBI, é que o filme seja exibido, com grande promoção. Os
autores se apresentarão, diz ele, empurrados das sombras pela
vaidade— porque será sucesso, sem nenhuma dúvida.
O presidente Nixon hesita. com a exibição, o filme deixará de
ser apenas mais um mistério do FBI e o mundo já angustiado será
tocado por um mistério insolúvel, insuportável.)
. — É Marília?
— É.
— Oi. Tudo bom?
— Tudo bom. E aí?
— Tudo bem.
— Escuta: estou meio com pressa. É o seguinte: a festa do
Roberto. A gente vai?
— Ah vai, né? A que horas?
— À hora que você quiser.
— Cê passa aqui?
— Passo.
— A que horas?
— À hora que você quiser.
— Qualquer hora. Fico esperando.
— Perto das nove, está bom? Tenho um problema de uns
passes aqui para resolver. vou entregar para o Carlos Bicalho. É só o
tempo de ir até em casa, tomar banho, um repousozinho, e passo aí.
Tá?
— Eu espero. Um beijo.
— Otávio está?
— É ele.
A voz não voltou, uma voz inesperadamente parecida com
alguma. Insistiu:
— Alô? Alô?
— É Lena.
Há mais de um ano esperava aquele telefonema, e tinha sempre
certeza de que seria uma coisa difícil. A voz falou outra vez, antes
que ele se recuperasse:
— Ontem esperei você chamar.
— Como? Eu nem sabia que você estava aqui.
Parecia que não tinham nada para conversar, as frases eram
separadas por grandes espaços brancos. Sempre soube que seria
um telefonema difícil.
(Anotação do escritor:
Por que sempre soube que seria um telefonema? Por que não
um encontro difícil, uma carta? Isso está me cheirando a literatice.)
Ela:
— Não recebeu minha carta?
— Carta? Recebi não.
Aquele velho amor complicado que sentia por ela estava
voltando. Ele:
— Você veio para ficar? (Não é hora de perguntar.)
Ela, um pouco surpresa com a coragem dele:
— Não sei. Não sei ainda.
(Vê se não faz nada errado desta vez. Já foi bastante duro
agüentar este ano.) Ele:
— Quando é que a gente se encontra?
— Não sei — começou ela, e lembrou-se logo:
— Você não vai à festa do Roberto? Ah, se não for eu não vou.
Percebeu saudoso a mesma Helena, à vontade preguiçosamente.
Ela:
— Vai?
— vou.
— Então passa aqui para me apanhar. O fusca ainda anda?
— Anda. A que horas você está pronta?
— Das nove em diante, está bom?
— Está.
Ficaram um momento em silêncio, não querendo desligar;
esperando uma gentileza, um abraço, uma saudade. Ela:
— Então até logo.
— Ciao.
Um abraço um abraço dou-te eu dou-te eu — pensou ele
enquanto desligava. E lembrou-se de repente:
— Puta merda, e Marília?
Praça da Estação
21h45m
(Anotação do escritor:
O papel está na máquina há uma hora e meia, branco até eu
começar a escrever esta carta aberta a quem interessar possa —
porra, porra, porra. Eu pus o papel na máquina para começar
novamente a escrever O Judeu Refratário e não consigo tirar nada de
mim. Porra. Gostaria de dar uma porrada no meu superego. Preciso
entender direito o que é que me impede. Hipótese um: medo de
crítica e eu disfarço com escrúpulos de escrever um livro inútil.
Hipótese dois: o ambiente rarefeito de liberdade me inibe, inibe todo
mundo, e escrever virou uma bobagem sem importância. Hipótese
três: estou entre deus e o diabo na terra do sol, entre escrever para
exercer minha liberdade individual e escrever para exprimir minha
parte da angústia coletiva; imagino histórias que tenho vergonha de
escrever porque são circunstanciais. Hipótese quatro: sou consciente
de estar vivendo num momento de obscurantismo da Literatura, um
daqueles períodos estéreis de que a História não guarda nada e sei
que é inútil escrever qualquer coisa, participante ou não, que tudo
sairá uma bosta e se perderá na noite da História e é melhor não
desperdiçar meu tempo. Hipótese cinco: tem muita porra estéril
derramada por aí e eu não quero ser mais um punheteiro.
E o que é que eu faço com a minha porra? Hipótese um, vendo
para um escritor norte-americano de worst-sellers. Hipótese dois,
escrevo um livro chamado “Se Eu Quisesse Escrever um Livro”.
Porque uma hora qualquer essa porra vai explodir. As pessoas me
olham nas ruas como se eu fosse um tarado aponto de espirrar porra
por aí. Eu preciso descarregar, em poluções noturnas ou em canas
abertas a quem interessar possa. Ofereço a quem quiser algumas
idéias, tudo de graça senhores, porque o autor se sente incapaz de
resolver alguns problemas pessoais. Oferecimento ao senhor Glauber
Rocha: argumento para um grande filme épico alegórico em que os
personagens são um gladiador, Cristo, Billy the Kid, um astronauta,
um cangaceiro, um samurai, Tutmés, o faraó guerreiro. Senor Garcia
Mãrquez, interessa?: o trapezista de circo saltou e ficou parado no ar
uns cinco segundos, enquanto o trapézio ia e voltava e ia novamente,
até que o trapezista pegou-o na volta como quem pega um bonde
andando e aquilo foi apenas uma das coisas maravilhosas que ele fez
na cidade, sendo a última ter disvirginado a filha do retratista e
sumido (a moça jura que ele sumiu antes de dobrar a esquina, fez
puff e sumiu) para nunca mais voltar, e o filho deles dois nasceu de
14 meses e aprendeu a falar no meio da segunda semana de
nascido. E esta, quem aceita?: o sujeito que ia com o fetozinho de um
aborto numa caixa de sapatos, aborto natural da mulher dele, ia levar
para enterrar, e esqueceu no balcão da padaria e então— ah, grande
Borges, quem sabe esta lhe serve?: um agente funerário é chamado
a uma casa; chega lá, uma senhora o atende na porta e diz que
ninguém chamou; ele volta para agência, chamam de novo, ele vai ao
mesmo endereço, de novo a mesma senhora o recebe na porta e diz
que não foi de lá que chamaram; ele volta para a agência muito puto
da vida e então chamam de novo, ele diz que não vai, estão
pensando que ele ê algum palhaço?; então a pessoa que estava
telefonando vai até lá esclarecer a situação; o agente explica que
esteve na casa duas vezes, conferem o endereço, tudo certo; a
pessoa pede ao agente que descreva a mulher que o recebeu a
porta, o agente a descreve com minúcias, porque era um homem
muito observador, e a pessoa sai apavorada pelas ruas: era ela, a
morta, que recebia o agente! Puta merda, essa me dá até arrepio. E
esta aqui, algo para Hitchcock, talvez: o título poderia ser O Desafio.
Ou O Duelo. Um sujeito muito elegante, fino, coloca uma carta no
correio. Corta. Letreiros, música, a carta viajando através da
burocracia dos correios, até chegar às mãos do destinatário, o
chefe de polícia. Isso coincide com o fim dos letreiros. A carta,
anônima evidentemente, avisa ao chefe de polícia que seria morto
Fulano de Tal e desafia a polícia a impedir o crime. Daria dois dias
para a polícia pôr-se a campo e ele não “começar com muita
vantagem”. Good sport. Tenho aqui também, deixa-me ver, alguma
coisa que poderia servir eventualmente ao senhor Robbe-Gnllet,
não?: uma mesma cena é descrita repetidas vezes, com algumas
pequenas modificações. Essas modificações é que serão ao mesmo
tempo a ação e o assunto da obra, serão “o que se conta”. Como se
alguém, remoendo um fato na cabeça, tentasse lembrar-se de
detalhes; lembra-se de uns, esquece-se de outros; o conjunto
escapa-lhe sempre. Pode-se construir também como se fosse a
mesma coisa vista por vários observadores. Começar com um
período bem simples, como “o corpo caiu do 63º andar”. Outros
parágrafos, cada um valendo por si como um texto completo,
contarão exatamente o que aconteceu, embora o acontecimento seja
um mistério para a personagem, porque ela não vê o conjunto. Toim!)
Praça da Estação
21h57m
Ô meu Deus, por que será que o Ataíde está demorando tanto?
Praça da Estação
22h10m
Praça da Estação
21h40m
(Anotação do escritor:
Epígrafe? “Verifica-se que l por cento da população brasileira
participa da renda nacional com uma renda bruta total que é superior
ao total da renda de 80 por cento de brasileiros; isto é, que quase
novecentos mil brasileiros ganharam em 1970 uma quantia maior do
que a que perceberam 72 milhões de brasileiros; portanto, a renda de
l por cento de brasileiros é maior do que a soma da renda de 80 por
cento.”)
Praça da Estação
22h34m
— Claro que sabe. Olha aqui, vê se traz logo essa matéria que
está ficando tarde.
— O jornal não vai fazer nada?
— O jornal vai fazer o que jornal faz: publicar a matéria. Escuta,
o fotógrafo chegou aí?
— Não vi. Qual é o fotógrafo?
— O Messias. Espera aí. Foi o Messias, né Ênio? É, foi o
Messias. Chegou aí não?
— bom, eu não vi.
— Deve estar aí sim. Vem logo escrever essa porra.
— Tá.
Samuel desliga, desanimado. Pensa no estudante Carlos,
simpatizando com ele. Aquele homem da mulher belíssima e o tal de
doutor Otávio fariam alguma coisa por ele, ou tentariam, pelo menos?
Televisão Itacolomi
12h10m
Praça da Estação
22h54m
(Anotação do escrito:-
Atravessamos o cordão de isolamento. A polícia nem ligou
porque Pena Forte e Valdiki estavam dando show de bicha e parecia
que aquele bando de veados não ia atrapalhar nada. Fomos falar com
o líder dos retirantes, Marcionílio. Para nós era folclore, um programa
nesta cidade de merda, porque o homem tinha o encanto de ter sido
cangaceiro. Marcionílio estava sendo entrevistado pelo Samuel
Fereszin, do Correio, conhecido nosso.
Ouvimos falar da fome (“Meu pai contou que na grande seca
de 87 foram mortos dois bandidos assaltantes e comidos pelo povo
em Jacaré dos Homens.”) da felicidade (“Aquela dona que ali está,
dona Lália, está feliz e aliviada porque vendeu a filha de 14 anos,
nessa viagem mesmo, a um fazendeiro do Sul da Bahia. A filha agora
tem onde comer e dormir, melhor do que nós.”) de revolta (“Quando o
vento sopra, o capim abaixa; quando o capim pega fogo, queima a
mata toda ”) do latifúndio (“Lá? Terra tem muita, dono mesmo tem
pouco. Quando ele vê que a chuva não vem, que não vai ter colheita,
manda todo empregado embora. E ele tá errado? Tá certo. Errado é
ele ser dono de tanta terra.”) de religião (“Deus? Eu nunca ouvi falar
de coisa boa que ele fez, garantindo que foi ele, a não ser muito
antigamente.”) de coragem (“Estou com muito medo, mas se não tiver
outro jeito eu misturo com um pouco de coragem.”) da morte (“Tem
gente que morre menos e gente que morre mais. Quem morre mais,
desaparece; quem morre menos, fica exemplo.”)
Redação do Correio de Minas Gerais
23h31m
Dentro de um táxi
00h03m
Tanto de saber o que fazer ah mas não sei Jorge se estou certa
tentando fazer você ficar menos egoísta menos voltado para si
mesmo gostar um pouco mais dos outros de mim do que de você
mesmo ver se você ainda tem jeito salvação porque eu já estou me
cansando e o pessoal só te aceita ainda por minha causa não sei até
quando quanto vou agüentar já ando cansada de...
(Anotação do escritor:
Um desperdício deixar passar este momento sem tentar captar o
sentido dele, ao menos um esboço que mostre a alguém: era assim,
naquele tempo. Era assim que as pessoas se destruíam, que as
consciências aceitavam, que os homens se diluíam entre o medo e o
dever, que os escritores procuravam esquecer ou não conseguiriam
escrever nada.
Sim, eu creio que é isso e que é uma luz e que estou certo.
Algumas das minhas histórias podem esperar uma década para
serem escritas.)
Praça da Estação
01h12m
Nordestino moreno,
Marcionílio de Mattos.
Página 15.
Carlos Bicalho,
o estudante.
Página 21.
Candinho,
o marido de Juliana.
Página 33.
Deus.
Página 33.
Velha amiga
de Juliana.
Página 37.
Juliana.
Página 41.
157
A empregada
de Juliana.
Página 41.
Andréa,
a cronista social.
Página 51.
O jovem
pleibói.
Página 54.
Haroldo, o segundo
amante de Andréa.
Página 58.
O pintor jovem,
Roberto J. Miranda.
Página 60.
Uma lésbica.
Página 62.
A mãe,
Lenice.
Página 67.
Filho,
Roberto J. Miranda.
Página 67.
Deus.
Página 77.
Jorge Paulo
de Fernandes.
Página 81.
Maria, Empregada
de Jorge.
Página 81.
Filinto
Müller.
Página 83.
O cadáver podre de Antônio Conselheiro ainda assustava a
jovem República quando nasceu o filho do senhor Júlio Müller, no
primeiro ano do século; a viagem a Paris se fazia em dez horas de
jato quando ele morreu, no septuagésimo terceiro ano.
Filinto Müller viu tudo nesses 73 anos.
De que deus ouvia falar esse menino nascido em Cuiabá, Mato
Grosso? (Muitos anos mais tarde ele se diria agnóstico e revelaria
que apreciara mais a obra de São Paulo do que a vida de Cristo.)
Que brincadeiras brincava, além de faiscar cristais nas ruas e vender
ao pai como ouro? (Ouro! — a República ainda estava encantada
com as maravilhas do Império; havia, nas famílias, casos de avós
ricos da noite para o dia.) Que histórias aprendia na aula de História,
tudo tão por vir?
O que aprendia esse menino quando os camponeses de Santa
Catarina e Paraná fizeram a guerra do Contestado contra os
proprietários de terras, contra os imigrantes (primos seus, quem
sabe!) e contra o governo, durante quatro anos, de 12 a 16?
E em 14, o que fazia, o que aprendia, que mistérios o tocavam
quando o mundo começou sua primeira guerra e em Juazeiro, Ceará,
o padre Cícero e o deputado Floro Bartolomeu faziam também a sua
grande guerra de jagunços, capangas e cangaceiros contra o governo
estadual, incentivados pelo próprio governo federal?
Quem eram seus heróis, que faroestes galopavam com esse
menino, esse rapaz, que se preparava para a Escola Militar do
Realengo enquanto Virgulino Ferreira da Silva trocava Vila Bela, hoje
Serra Talhada, pela caatinga, em 1917?
Que napoleões o formaram tenente, em 22?
O segundo-tenente Müller estava no quartel da Vila Militar
quando o tenente Eduardo Gomes tornou-se herói nacional no Forte
de Copacabana, em 22, e um bando de artistas loucos iniciou uma
revolução nas artes no Teatro Municipal de São Paulo. Ele era um
dos tenentes que pressionavam Artur Bernardes, o novo presidente,
o difamado por documentos apócrifos contra os militares, o oligarca, o
mão de ferro.
Ele estava lá e viu tudo, em 24, quando os paulistas
(re)iniciaram a revolução: saiu de Quitaúna com seu batalhão de
artilheiros, juntou-se à revolução, viveu a derrota de Catanduvas,
irmanou-se com os paulistas à Coluna do capitão Luís Carlos Prestes,
que subia do Sul com a idéia de uma revolução em movimento, e
foram companheiros até o breve refúgio da Coluna no Paraguai — ele
estava lá, lutou, viu os homens lutando, conheceu seu futuro inimigo,
Prestes, aquele bandido, que ainda não via como bandido, ainda um
militar revolucionário como ele, o primeiro-tenente Müller. Por que
Müller não voltou ao Brasil com a Coluna, guerreando, e preferiu ser
exilado, chofer de táxi, quebra-galho, oh que saudades que eu tenho?
Voltou dois anos depois, já sem Bernardes, o mão de ferro, sem
Coluna, sem farda, no governo Washington Luís; preso, defendeu-se
solitariamente e a justiça aprovou sua revolução com a liberdade. Foi
trabalhar na Mesbla até a próxima revolução, a de 30, a dos lenços
vermelhos no pescoço, o nó em que se enforcaria a Aliança Liberal.
Esta sim, foi uma boa revolução para o reintegrado capitão
Müller, secretário do interventor em São Paulo em 32, diretor da
Guarda Civil no Rio em 32, delegado de Ordem Política e Social em
33, chefe de Polícia em 37. Durante dez anos ele foi o cérbero do
inferno de Getúlio. Ele viu, nas prisões, os homens sem testículos e
as mulheres rasgadas. Viu o terror na cara dos homens que eram
apanhados em suas casas para interrogatório, o terror dos
comunistas, dos integralistas, dos liberais e dos que simplesmente
não concordavam. Ele viu verdades históricas serem inoculadas em
corrente de 110 volts. Que cenas teria na memória ao lembrar-se,
entrevistado pela revista Veja, em 72?: “Foram 10 anos de trabalho
intenso e de dedicação ilimitada.”
(Ah, Filinto, Filinto, melhor fora que houvesse limites.) O velho
senador de 72 anos tem um certo orgulho da sua carreira, e mesmo
aqueles anos, olha, aqueles anos... “Houve casos de torturas. Que
posso fazer? Dizer que cumpria ordens superiores? Não. Isso é
deslealdade. Dizer que foram arbitrariedades? Também não. Seria
covardia. Eu fico com a responsabilidade, não a atiro para cima nem
para baixo.”
Em 45, quando derrubaram Getúlio Vargas, pai dos
trabalhadores, ditador, o coronel Müller já estava no Mato Grosso em
campanha eleitoral, águia, iniciando sua carreira mais duradoura, a
de senador. Nos seus 26 anos de senado, foi líder da maioria (PSD)
em 56 e, depois de apoiar a derrubada do presidente João Goulart
em
64 como “medida de salvação nacional”, tornou-se líder de outra
maioria em 68; foi do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (chora, musa), presidente da Aliança Renovadora Nacional,
presidente do Congresso (oh Lord!). Falou pouco nesses 26 anos,
raposa discreta. Mas falou em 72, autocrítico: “O mal das ditaduras é
que não são capazes de limitar-se no tempo. E mais: em torno delas
forma-se uma legião imensa de pessoas interessadas em sua
manutenção, dispostas a conservar o status quo, a todo preço. E
essas forças interessadas via de regra isolam o chefe do Governo,
mantendo-o fora do alcance da realidade do meio-ambiente. E a
ditadura, que geralmente é implantada com a melhor das intenções e
que produz resultados materiais benéficos num período relativamente
curto de sua atuação, logo se descaracteriza e passa a cuidar, quase
exclusivamente, da sua permanência.”
Ah, o velho senador estava presente, viu as revoltas populares,
viu os retirantes, viu Lampião, viu a revolução das artes, viu a crise do
café, viu as duas guerras, viu as revoluções e os golpes de 22, 24,
30, 32, 35, 38, 45, 55 e 64 — foi o revoltoso, o exilado, o policial, o
inquisidor, o simpatizante de Hitler, o general reformado, o senador, o
bom marido e pai, viu o choro e o riso do Brasil, até que morreu
silencioso, envenenado por um gás letal, na classe turista de um
Boeing 707 da Varig, no dia do seu 73º aniversário.
Verinha Nabuco,
a filantrôpega.
Página 84.
Mônica.
Página 85.
Ruiter.
Página 87.
Doutor Ruiter, o advogado de defesa de Jorge, saiu na
primeira página, dos jornais quando anunciou que o crime tinha
relação com os acontecimentos da praça da Estação, de quase um
ano atrás. Um “trama diabólica” que ele só desenrolaria no dia do
julgamento.
Carlos,
o estudante.
Página 91.
Deus.
Página 92.
O Espírito Santo.
Ataíde.
Página 95.
Cremilda
de Tal.
Página 95.
Senhora mãe
de umrapaz.
Página 101.
Delegado de
Polícia Social.
Página 107.
Flávio Le Coq.
Página 116.
A mulher belíssima,
Cristina.
Página 116.
Acompanhou com olhos a mão dela desorganizando o suor
gelado do copo.
— Estou pensando no Carlos.
— Hum-hum.
— Como eu fiquei louca naquela época.
— E agora?
— Sumiu da minha cabeça. Apagou. Sumiu.
Ele prestava muita atenção, porque o casamento seria amanhã.
— E comum isso?: paciente ficar louca contra o analista?
— Pode acontecer. Tudo pode acontecer.
— Eu queria sacudir você, tirar você da sua frieza, ou da minha
cabeça. Sei lá.
— Isso misturado com outras coisas. Pensou que ele estivesse
falando de amor.
— O bobo, eu não gostava de você naquela época.
— Sentimento de culpa, abandonismo, rejeição.
Desarmada meio sem jeito, pegou o copo e bebeu um pouco do
gim. Não gostou do sabor.
— Pede um chope para mim? Meu gim ficou horrível.
Ele esperou o garçom passar perto e pediu, sem pressa. Bebeu
um pouco de gim. Fez uma careta.
— Hum, horrível mesmo. Não sei como você agüentou até
agora.
— Amargo, não é? É do limão.
Ela passeou um pouco por 1970 e voltou:
— Se você tivesse gostado de mim naquela época eu não teria
dado tanto vexame.
— Sei lá.
— Por que você não queria nada comigo?
— Sei lá. Te achava feia.
Ela sorriu belíssima. Chegou o chope. Bebeu o primeiro gole
acariciando o frio do copo. Limpou com a língua o bigodinho de
espuma. Lembrava-se: 1970: o quartel de Juiz de Fora, a comida
para o preso, vitaminas, remédios, cálcio, ele precisa muito de cálcio
e vitaminas, sustagem, farinha láctea, leite condensado, frutas,
chocolate, germe de trigo, iogurte. A culpa de não ter feito o que a
mulher grávida pedira naquela noite, de não ter tomado providências
para tirar Carlos da prisão porque ia a uma festa. Os cuidados com a
mulher grávida para corrigir o erro de não ter ajudado antes; a
menininha que nasceu morta, recado, mensagem, que entendeu
como: mate-se. A loucura, Eduardo perdendo o controle da análise, a
procura de drogas para destruir-se culpada, e antes, antes, muito
antes, menina, a freira proibindo-a de cantar no coro da escola, e
mocinha, mocinha, virgem sem coragem e Carlinhos virgem
ameaçando começar com uma uma uma puta se ela não coisasse
com ele e nossa! como sofreu quando ele disse que já tinha feito,
perdeu aquilo para sempre, para sempre; e depois que mudaram de
Ponte Nova para Belo Horizonte quando o pai ganhou na loteria, o pai
não querendo mais que namorassem, que sofrimento; e Carlinhos
preso ainda em Belo queimado de cigarro explicando que não era
culpa dela, triste, perdido, perplexo, e ela querendo abraçá-lo,
carregá-lo, beijá-lo dali para fora, vitaminas, remédios, cálcio,
leite condensado, farinha láctea e a procura de homens, de um filho,
o filho que a mulher de Carlos perdeu, um pai que tinha perdido; e
aquele caos foi dificílimo de vencer, mesmo com a ajuda de um
homem que tinha amado ou ia amar qualquer dia, Eduardo,
atencioso, vigiando, protegendo-a, e ela se atirava certa de que seria
segura na queda, trapezista.
— Que loucura.
— O quê?
— Estava lembrando das coisas. Lembra que loucura?
— Hum-hum.
— Eu devia ser uma chata.
— Era.
— Eu também não gostava de mim naquela época. Acho que eu
fingia um pouco, também. Todo louco finge um pouco, não?
— É, finge. Mas não consegue parar de fingir.
Ficou quieta, pensando, um pouco menos bonita. Ele,
lembrando-se do paciente policiamento que se impôs para não amá-
la muito. Escondia-se na técnica, frágil proteção contra aquela beleza
desagregada. Estava gostando do silêncio dela. Seria capaz de saber
até as palavras que ela pensava. O rosto ia mudando outra vez para
o sorriso, um jeito muito dela de lembrar. Depois o rosto ficou sério,
ela o olhou de frente, decidida, bonita: — Sabe?: sempre gostei de
você. Desde o começo.
Ele sorriu meio embaraçado, bebeu um pouco de chope e
pensou na perfeição a que ela havia chegado, depois de tudo.
Mulher grávida.
Página 119.
Doutor
Otávio Ernâni.
Página 120.
Esdras,
o Hermético.
Página 120.
O vizinho.
Página 123.
Luís.
1946/1972.
Página 124.
Doutor Jorge.
Jorge Paulo
de Fernandes.
Página 125.
Foi de Jorge ou do advogado Ruiter a idéia de colocar o
assassinato de Mônica como conseqüência dos acontecimentos da
praça da Estação?
A defesa baseou-se em duas teses: legítima defesa da honra,
argumentando que a esposa vinha mantendo conduta indigna com os
próprios amigos do réu; e coação irresistível diante da revelação, feita
pela própria mulher, de que o traía, senhores jurados, obedecendo a
um plano de vingança; e este homem, íntegro, respeitador das
tradições do país e dos costumes da generosa terra mineira, viu-se
envolvido numa trama diabólica, malha constrangedora que só
poderia ser manobrada por elementos afastados da fé cristã e da
moral da família brasileira. Estes elementos, juntamente com a vítima,
planejaram a conduta indigna da vítima, a conduta prostitucional da
vítima, para humilhar o réu aqui presente e puni-lo por sua atitude
patriótica durante a fase policial de apuração dos acontecimentos
ligados ao tumulto da praça da Estação há quase dois anos.
Testemunhou o réu, sob juramento, que não pôde resistir ao impulso
de matar quando a esposa revelou-lhe que o próprio casamento fazia
parte da vingança, que fora tudo planejado para que ele aprendesse a
não entregar os amigos, que os homens com os quais ela manteve
relações para humilhá-lo foram escolhidos dentro do plano
previamente traçado e friamente executado. Friamente, mas não sem
prazer carnal, acreditem. Cinicamente, ela revelou ao marido toda a
trama quando acabou de deitar-se com o último da lista e ainda trazia
dentro de si o esperma do opróbrio. Está lá, senhores jurados, está lá
no laudo do médico-legista!
Marília
Página 126.
Aurélia.
Página 126.
Marcelo.
Página 126.
“O velho é maluco”.
Professor Cândido.
Página 127.
Doutor Jorge.
Página 127.
Jorge Paulo de Fernandes foi absolvido por sete a zero. Um
herói da família mineira.
Lúcio percebeu que Roberto estava com medo de ser preso, riu
muito e começou a pedir. Para não contar à polícia o que tinha
acontecido na festa, ele exigiu, de abril até agosto, quando Roberto
não suportou mais a chantagem e recorreu ao odiado coronel Bolívar:
500 cruzeiros
1 camisa azul de tela suíça
1 calça Lee importada
1 cinturão largo
1 sapato de salto alto
150 cruzeiros
1 colar de pedras coloridas do Saara
1 caneta esferográfica Cross
1 chute na bunda, na posição adequada: de quatro
1 viagem ao Rio, sozinho
Conta aberta na boate Around the Clock
3 camisetas estampadas italianas
0 direito de aplicar-lhe tapas na cara, inclusive em público 300
cruzeiros
1 calça branca de brim flanelado
1 toca-discos
1 amplificador de som, importado
2 caixas de som
10 discos, fora os que levou da casa de Roberto
1 motocicleta Yamaha, 350 cilindradas
Lúcio não ganhou sua moto. Apareceram dois homens na sua
casa, respeitosos, chamando sua mãe de minha senhora e pedindo
uma conversinha particular com Lúcio, não ia demorar nada, podia
ser no quarto mesmo. No quarto, um deles tirou um papel do bolso,
abriu o armário. Lúcio quis protestar, o que é isso, o que é isso, e
tomou um tapa seco, forte e curto na cara. Quis gritar, mamãe chama
a, e tomou outro tapa na cara. O outro homem olhava o papel,
procurava no armário, rasgava. Rasgaram a camisa azul, a calça Lee,
as camisetas estampadas, botaram o colar no bolso, tiraram o
dinheiro que encontraram, empilharam os discos. Não falavam nada,
apenas davam-lhe tapas na cara.
— Tira a calça e os sapatos.
Uma hesitação, um tapa. Tirou sem muito medo, entendendo
por quê. Rasgaram a calça, botaram fogo num pé do sapato,
cortaram o cinto com lâmina de barbear.
— E a caneta?
Lúcio não entendeu imediatamente, mas entendeu logo, com um
pequeno tapa no rosto. Um dos homens colocou a caneta no bolso;
carregaram o som e os discos, com a ajuda de Lúcio, de cueca, e
colocaram na parte de trás do carro, uma perua C-14.
A mãe, que estava lá dentro fazendo um café para as visitas,
veio ao portão reclamar que já se fossem tão cedo e ficou indignada
com Lúcio.
— Que vergonha, meu Deus! Vem pôr uma roupa. Lúcio.
Os dois homens forçaram Lúcio para dentro do carro, sem que
ela percebesse que o obrigavam, fortíssimos e desculpando-se:
— Não tem nada não, minha senhora. Ele tem roupa aqui. É a
pressa. Daqui a pouco ele está de volta.
Lúcio teve medo, pensou logo em Esquadrão da Morte. A
angústia durou treze minutos, da casa à boate Around the Clock.
Entraram os três. O porteiro teria barrado Lúcio se um dos homens
não o tivesse afastado de maneira delicada e irresistível, com a mão
no peito: “Não se mete não”. No balcão, chamaram o gerente.
— Esse pilantra não tem conta aqui mais.
Apesar do escurinho, muitos viam o rapaz de cueca e o
reconheciam. Um dos homens perguntou:
— Quantos tapas?
— Faltam dois.
Piá e piá dentro da boate.
Voltaram para a praça Negrão de Lima, Lúcio até pensou em
Deus, agradecido. A mãe e também uma moça vieram
correndo quando ouviram o barulho do carro. Os homens fizeram
Lúcio descer, consultaram a lista, cochichando um pouco
constrangidos pela presença das duas mulheres, a mãe começando a
acordar do choque, o homem resmungando fica de quatro, fica de
quatro cachorro, o outro forçando-o, a moça perguntando o que é isso
Lúcio, um chute na bunda e os gritos da mãe, e alto, no ouvido dele:
— Entendeu, pilantra?
— Fala!
— Entendi.
— Entendeu tudo mesmo?
— Entendi.
— Então desaparece, tá?
— Se você aparecer, nós temos ordem para te quebrar todinho,
osso por osso.
Otávio.
Página 128.
Marília.
Página 131.
Lena.
Página 132.
Lena bebeu de uma vez, como um homem que havia visto num
balcão.
— Sua amiga também estava alta ontem.
— E você, não?
— Não. Nessas horas eu me cuido.
— Como agora?
— Agora? (Sorriu.) Pode servir outro.
Otávio serviu uísque e serviu-se de cerveja. Marília chegou com
a mala, abriu a porta com sua chave, encontrou copos, bolsa, blusa,
cigarros fumados; suspeitou de uns ruídos no quarto. Indignou-se,
pegou a mala para ir embora, foi até a porta, voltou, apagou a luz,
deitou no sofá e dormiu para afinal descansar de seis orgasmos com
Marcelo e brigas com os pais. Lena bebeu de novo como o homem
no balcão enquanto Otávio olhava-a com desejo paciente.
— Sabe, Lena, estive pensando nesse dia de hoje, nessa
confusão toda. Para mim tem um sentido: é uma nova oportunidade,
sabe? Recomeçar com você — digamos, uma hipótese: recomeçar
com você, largar a Secretaria. Poxa, eu sei que recambiar retirante
não resolve o problema, mas expedi os passes, pedi policiamento.
Agora acabou.
— Alguém vai fazer isso no seu lugar.
— Vai, lógico que vai. Mas não serei eu. E vou poder dar minha
opinião quando acontecer uma coisa dessas, fazer um artigo.
— É. Vai.
Por que essa ironia?, pensou Otávio. Marília não acordou
quando Otávio, nu, acendeu a luz da sala, inclinou-se para apanhar
os cigarros no braço do sofá e a viu, aterrorizado, e viu sua nova vida
destruída no primeiro dia. Lena pediu mais um uísque e preveniu: —
Eu hoje vou pegar o porre que não peguei ontem.
— E outras coisas também que não fez ontem. Lena sorriu,
bebeu, ficou séria.
— Ela é mais bonita do que eu.
— De corpo, não.
— Mesmo?
— Você é mais durinha. Lena levantou-se decidida:
— Vamos para o quarto.
Carlos Bicalho.
Página 134.
31 de dezembro de 1979.
— Bonita?
— Tinha um corpo lindo. Deve ter, ainda. Porra, vamos falar de
outra coisa.
Pausa longa.
— Lembra do fim da década de 60?
— Pouco. Sei lá.
— Porra, aqui no Recife... Eu era menino ainda, estava no
CPOR. Fizemos uma farra, puta que o pariu. Política para mim nem
existia.
— Eu tinha umas inquietações, coisa de estudante. A barra do
pessoal naquele tempo era muito pesada. Assalto, guerra. Dou para
isso não.
— Já tinha casado?
— Tinha até filho. Quer dizer, filha. E estava esperando outra.
— Duas?
— Morreu. Nasceu morta. Eu estava preso em Juiz de Fora.
— Aquele negócio dos retirantes, não foi?
— É.
O mineiro, devagar, sondava a possibilidade de uma conversa
pessoal, sentimental, saudosista — e nem se importaria de chorar um
pouco. Por isso fez aquela pausa longa quando percebeu que
estavam começando a falar de política. Ficou pensando na família,
querendo que o pernambucano perguntasse: e a sua família? O
pernambucano bebeu um pouco de cerveja. O mineiro compreendeu
que do passado acabaria surgindo sua família e se sentaria com ele
ali naquela mesa de bar, no Recife. E continuou: — Foi comentado
aqui?
— Porra, se. Acho que no Nordeste inteiro. Eu me lembro, eu
era rapazinho e me lembro disso. Foi uma confusão federal.
— Foi.
O mineiro escapou novamente pelo passado. O que teria
acontecido com aquelas pessoas de 1970?
— Acho que naquela eu fui o único que se fodeu.
— Como único? Morreu gente, não morreu?
— Morreu está morto. Se fodeu que eu digo é com cadeia,
escola, família. Eu queria naquela época estudar Economia, trabalhar
em pesquisa. Me fodi.
— Sozinho.
— De certa forma foi. Eu fui o bode expiatório do meu grupo.
Quer dizer, muitos foram envolvidos no processo, levaram uma cana
de dois, três dias, nada se apurou contra eles e ficou por isso mesmo.
O meu grupo, quer dizer, o nosso grupo começou a se formar aí por
volta de 67 e se condensou em 68. Confusão pra burro naquele ano,
foi quando começou o negócio todo, aliás. Dos que estavam na
Faculdade, só eu tinha um certo envolvimento estudantil. Nada de
liderança ou uma coisa assim. Eu ia, sabe como é?, participava. Em
68, acho que estava no segundo ano, levei um mês de cana por
causa do congresso proibido da UNE, em São Paulo. Aí fiquei
marcado em Belo. Isso influiu muito no comportamento da polícia
comigo, em 70.
— Desse seu grupo, só você foi a esse congresso.
— Só. Hoje eu sei que era esse o meu papel no grupo. Tinha
gente que falava: aquele pessoal do suplemento é meio de esquerda,
quando na verdade o pessoal não transava absolutamente essa de
esquerda, era só porque eu tinha sido preso em Ibiúna, nesse
congresso, entende? O grupo incorporava aquele meu papel, em 68,
em 70 e no. intervalo. Tanto é que a produção literária da turma era
pesquisa de linguagem, abstrações e só. E de lá pra cá não produziu
grande coisa.
— E você?
— Eu? Eu fazia uma poesia toda errada. Coisa de outra
geração. A minha era uma geração formada nos anos cinqüenta.
Nesse ponto a cana deu certo: livrou o país de um mau poeta.
O mineiro ficou pensando naquela poesia e como ele gostava de
fazê-la. Rimas de pão com canhão, ilha com guerrilha, liberdade com
vontade. Bebeu cerveja, que estava ficando meio quente. Talvez
estivesse falando demais e chateando o companheiro pernambucano.
Pediram mais uma cerveja. Quase meia-noite, perto da passagem da
década, dos foguetes, da incômoda alegria alheia. O pernambucano:
— E o que aconteceu com aquele pessoal?
— Não sei. Perdi o contato. Está por aí, trabalhando. Sei lá,
perdi o contato. Quando saí da prisão não tinha mais nada a trocar
com eles, não procurei mais. Encontrei por acaso um ou outro. Já tem
uns seis anos que não vou a Belo.
— Terminou a Faculdade?
— Não deixaram. Decreto 477. Entrei na Justiça, claro. Ficou
aquele chove-não-molha uns dois anos, sabe como é esse negócio
de Justiça. bom, aí fui para São Paulo. Também não pude estudar,
não me deram transferência.
— A família junto.
— Não, lógico que não. Nem emprego eu tinha. A família em
Minas, com a sogra, esperando a situação melhorar. Eu vendia livros,
coleções, enciclopédias, mesma coisa que fazia em Belo Horizonte.
Andava até torto com a pasta, cheio de calos na mão. Depois entrei
numa meio besta de bebida, depois desbundei e andei por aí sem
trabalho, meio hippie. Foi a minha pior fase nesses dez anos,
incluindo a prisão. E foi aí que minha mulher, depois de agüentar
minha barra quase cinco anos, pediu desquite, arrumou outro cara,
tudo bem.
Resumiu tudo porque tinha desistido de chorar um pouco.
— Estava meio perdidão em São Paulo quando encontrei uns
antigos companheiros dos tempos de estudante e fui me ajustando,
compreendendo as coisas, deixando a revolta pessoal de lado,
analisando a situação mais em profundidade, me politizando. Me
arrumaram emprego e agora estou aí, quase cinco anos nesse
batidão político.
— Você vai gostar do Nordeste.
— Acho que vou sim. Também se não gostar...
— Isso é. Trabalho é trabalho.
Começaram a estourar os primeiros foguetes. O mineiro
levantou o copo, o pernambucano levantou o dele, tocaram-se em
tlin.
— Porra, tem tanto tempo que eu não vejo minha filha.
O mineiro estava-melancólico, com os olhos um pouco úmidos.
O redator-chefe,
Haroldo.
Página 137.
Quem espalhava a história do diário de Samuel sobre Andréa?
Como é que um fato, conhecido inteiro apenas pela polícia, por uma
mulher interessada em mantê-lo secreto e por um repórter morto
pode tornar-se assunto de bar, das redações, dos chás, das
masturbações? Como o pusilânime pode ser invejado? À proporção
que a história tornava-se conhecida, Haroldo, o homem que
descobrira a pinta no lado direito do clitóris de Andréa, era invejado,
odiado, procurado por insatisfeitas senhoras em conversas
telefônicas.
O homem, mulato.
Ataíde.
Página 138
“está chamando”.
Roberto.
Página 140.
O retirante
Viriato.
Página 143.
Andréa.
Página 144.
Marcionílio
de Mattos.
Página 145.
Roberto.
Página 148.
FIM...
UM CLÁSSICO DOS
ANOS 70
A NARRATIVA COMO
CRIAÇÃO E RESISTÊNCIA:
A CUMPLICIDADE DA ESCRITURA
Betti Brait *
Ivan Ângelo
BRAIT, Beth (1986) “Ivan Ângelo: vivo voltado para a literatura”. In:
Shopping News-City News, 25/5/86, p. 74.
A FESTA E A CRÍTICA