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Nota prévia: O texto abaixo é uma versão ainda não totalmente acabada do primeiro de
quatro capítulos de um livro sobre a Antropofagia, intitulado O “meridiano da devoração”:
ensaios sobre a “hipótese antropofágica”, que pretendo finalizar até o fim do ano – os
demais capítulos se chamarão: “‘A transformação do Tabu em totem’: notas sobre (um)a
fórmula antropofágica”; “A questão (indígena) do Manifesto Antropófago”; e “A participação
canibal: sobre o interesse na Antropofagia”, além de uma introdução (“A terceira dentição”,
que situará o debate e as fontes) e anexos (um ensaio sobre Memórias sentimentais de João
Miramar – “‘Meu nome é Miramar’: vida e obra de um duplo” –, e uma seleção de textos do
movimento antropófago que foram publicados em periódicos outros que a Revista de
Antropofagia, descobertos e transcritos a partir de pesquisa na hemeroteca da Biblioteca
Nacional). Daí o uso constante de remissões (do tipo: cf. infra, cap. X ou Y). O capítulo foi
escrito a partir de variantes de artigos publicados sob o mesmo título (“A única lei do
mundo”), além de incorporar modificações substanciais e trechos de outros textos meus sobre
o assunto. Sua forma, que evita o uso de notas de rodapé (nada contra, muito pelo contrário),
é híbrida: há, por um lado, uma linha argumentativa mais reta e clara, nas seções numeradas
por algarismos, e, por outro, comentários laterais (ou mesmo desviantes) ou que adiantam
temas e questões que pretendo abordar nos outros três capítulos (ou seja, embora pareçam fios
soltos, fazem parte de uma linha subreptícia que se tecerá paulatinamente ao longo do livro),
demarcados pelo sinal gráfico de parágrafo (§) e também por uma fonte menor e margens
internas maiores. Cabe notar que, para evitar uma referenciação excessiva, nem sempre
aparecem mencionados os textos fontes e as edições das citações que provém da Revista de
Antropofagia. Fiz uso, no que diz respeito a elas (incluindo as do Manifesto Antropófago), da
edição fac-similar publicada em 1975, e atualizei sua ortografia. Uma versão digitalizada dos
originais da Revista (como também a chamarei de agora em diante) está disponível no site da
Brasiliana: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064. Por fim, agradeço as leituras
aguçadas que Rondinelly Gomes Medeiros, Felipe Vicari de Carli, Marcos Matos e Marília
Lourenço fizeram de um esboço anterior do capítulo, bem como a Guilherme Gontijo Flores,
que gentilmente traduziu do grego a meu pedido as passagens da Política de Aristóteles
citadas.
crônica
2. O estatuto do Direito Antropofágico é tudo menos que claro. Trata-se de uma lei
universal (a “Lei do homem”) ou de uma lei particular (a “Lei do antropófago”)? Ou
ainda: é o homem que é subsumido no antropófago, já que este termo aparece depois
como que englobando o primeiro? Trata-se, como o Manifesto às vezes parece indicar,
de uma lei já em vigor, que rege a história humana (“Expressão mascarada de todos os
individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados
de paz”), ou, pelo contrário, como o texto também aponta, de uma norma
programática, de uma utopia a ser realizada contra o status quo: “Contra a realidade
social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem
loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”?
Trata-se de uma lei primitiva que cabe resgatar (“Antes dos portugueses descobrirem
o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”), ou de uma lei nova que, quando vier,
“O cinema americano informará”?
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
que nos regem atualmente, substituindo-os pelo direito biológico, que admite a lei
emergindo da terra, à semelhança das plantas”. Ora, Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda foi nada menos que um dos maiores juristas brasileiros do século XX: “o
homem de maior cultura jurídica do país”, dirá Bopp (1972: 23) a seu respeito. À
época, ele estava claramente alinhado com as teses antropofágicas: autor de uma curta
citação, de forte teor devorador, incluída na Revista em 26 de junho do mesmo ano
(“a dúvida entristece. E é preciso matar a dúvida”), ele aparecerá, em notícia do
número seguinte do periódico, na lista dos que participariam na elaboração da
maquete do “Primeiro Congresso Brasileiro de Antropofagia” (“Do seu talento e da
sua cultura a Antropofagia espera muito”, afirmou Oswald de Andrade [2009: 85] em
entrevista de agosto de 1929). O Congresso discutiria uma série de teses (um
“decálogo” composto por nove propostas, as quais, avisa a nota, “não representam,
porém, senão um aspecto do pensamento antropofágico”), que seriam debatidas e
convertidas “em mensagem ao Senado e à Câmara, solicitando algumas reformas da
nossa legislação civil e penal e na nossa organização político-social”, a ser redigida,
provavelmente, por Pontes de Miranda:
I – Divórcio.
II – Maternidade consciente.
III – Impunidade do homicídio piedoso.
IV – Sentença indeterminada. Adaptação da pena ao delinqüente.
V – Abolição do titulo morto.
VI – Organização tribal do Estado. Representação por classes.
Divisão do país em populações técnicas. Substituição do Senado e
Câmara por um Conselho Técnico de Consulta do Poder Executivo.
VII – Arbitramento individual em todas as questões de direito
privado.
VIII – Nacionalização da imprensa.
IX – Supressão das academias e sua substituição por laboratórios de
pesquisas.
(Outras teses serão posteriormente incluídas)
7. Como vimos, uma das teses do decálogo propunha a “Abolição do título morto”.
Além de uma defesa da reforma agrária (o título morto é aquele de uma propriedade
que não se usa, uma propriedade em desuso), ela se referia ao centro nevrálgico do
Direito Antropofágico, ou melhor, à “pedra do Direito Antropofágico” tal como foi
repetidas vezes definida na Revista: a teoria da “posse contra a propriedade”. De fato,
excetuada a referência ao “direito biológico” a ser elaborado por Pontes de Miranda,
todas as demais vezes em que a expressão “Direito Antropofágico” comparece na
Revista é associada a esta teoria, que se pretendia uma “resposta a outras teorias”.
Mas, em lugar da “Abolição do título morto” que seria defendida no Congresso,
encontramos, no mais das vezes, a ideia do “contato com o título morto”, ou seja, o
“grilo”. Como se sabe, a grilagem é uma operação que consiste em forjar títulos de
propriedade, e seu nome remete à prática de colocar os documentos falsificados em
gavetas junto a grilos para que adquiram aparência envelhecida, uma aparência
“autêntica”. A defesa da grilagem, além do mais, amparava-se em um exemplo
histórico incontestável: “Não fosse o Brasil o maior grilo da história constatada!”. Na
teoria da posse contra a propriedade parecem se condensar, assim, os elementos do
Direito Antropofágico que até aqui apenas esboçamos. Em primeiro lugar, ao
contestar a propriedade (o direito de propriedade era garantido, nunca é demais
lembrar, pela “pobre declaração dos direitos do homem”), ela remete à “única lei do
mundo” enunciada no Manifesto: “Só me interessa o que não é meu”. Além disso, ao
não defender exatamente a “abolição do título morto”, mas o contato com ele, a teoria
antropófaga do Direito visa minar a estrutura de subsunção que garante o nexo entre a
lei e a sua aplicação: falsificando os títulos, dando vida ao que é morto, ela não
advoga somente a correta aplicação da lei, um uso mais justo do título, mas a
desativação da ideia de autenticidade e, portanto, da possibilidade de subsunção. Por
fim, a possibilidade de não aplicação do Direito é encontrada na própria história deste:
o Direito Antropofágico é, ao mesmo tempo, utopia (futuro) e sempre presente
(passado).
passa de letra morta. O que então (e ainda hoje) aparecia como crime, o grilo –
ocupação e falsificação de título de propriedade –, era apresentado justamente como a
origem da ordenação que o proíbe. É evidente o teor crítico da teoria (em que trata-se
de subverter a subsunção), pois segundo ela, a lei busca converter, ad hoc, em título
de propriedade, algo (a posse) que não pode ser subsumido a ela. Assim, lemos numa
entrevista de Oswald:
O direito antropofágico tem as suas raízes nas leis cósmicas que nos
condicionam.
A lei da gravidade nos garante a posse de um pedaço do
planeta, enquanto vivermos.
Disso à noção de propriedade, de título morto, de latifúndio e
de herança, nunca! Somos contra tudo isso. Mas a posse é
respeitável, garantida pelo valor de quem possui e pela vitalidade de
quem sabe guardar.
Não fosse o Brasil o maior grilo da história – um grilo de
milhões de quilômetros talhados no título morto, de Tordesilhas
(Andrade, 2009: 83-4; grifos nossos).
Ao fim e ao cabo, a grilagem definiria a história nacional: uma grilagem dupla, aliás,
na medida em que, por um lado, o próprio Tratado de Tordesilhas era um título
grilado, pelo qual os reinos da península ibérica forjavam a autenticidade da sua
propriedade sobre a terra dos autóctones; e que, por outro, Portugal ocupara o que
deveria ser, pelo Tratado, território espanhol. O intrigante é que a argumentação de
Bopp, como a de Oswald no “Esquema”, não contraria o Direito posto, mas o
confirma: o Tratado de Tordesilhas não contraria as ordenações manuelinas, mas as
fundamenta. De fato, o “estatuto do uti possidetis” evocado por Bopp é um princípio
do direito romano segundo o qual quem ocupa continuará ocupando (o que significa:
quem ocupa de fato ocupa de direito): uti possidetis, ita possideatis. Além disso, foi o
princípio evocado constantemente pelas potências europeias colonizadoras nas
disputas que travavam entre si pela propriedade das terras do chamado Novo Mundo:
com base nele, desde logo, a posse portuguesa foi contestada pela França, e Portugal,
por sua vez, invocaria o mesmo adágio para reivindicar a mudança das fronteiras
traçadas pelo Tratado de Tordesilhas – o que resultou no Tratado de Madri de 1750 (a
segunda grilagem de Portugal), consagrando o diplomata barroco Alexandre de
Gusmão. As diversas cerimônias de posse, culturalmente diferenciadas entre si, que
aparentemente davam legitimidade interna à ação das nações apossadoras (Seed,
1999), fornecendo-lhes um título, serviam, na verdade, para tomar dos indígenas o
direito de se opor ao Direito. As cerimônias davam aos colonizadores o monopólio de
tal direito, a saber, o direito a usar a facticidade contra o direito alheio. Que o
apossamento do Novo Mundo não tenha por si só fundamento jurídico algum se
revela na mais rigorosa obra jurídica que propôs tratar o Direito Público Europeu
nascido com a conquista, O nomos da Terra, de Carl Schmitt. Ali, além de ancorar
toda ordem jurídica em uma “tomada da terra”, o jurista justifica a apropriação do
Novo Mundo por uma vaga e suspeita “superioridade espiritual” (a “prova” desta é
que ameríndios não poderiam ter descoberto a Europa, não tinham ciência e
cartografia que lhes conferissem uma visão global da terra): “A superioridade
espiritual se encontrava plenamente do lado europeu, e de um modo tão radical que o
Novo Mundo pôde ser simplesmente ‘tomado’” (Schmitt, 2005: 124). No prototexto
de O nomos da Terra, intitulado Terra e mar – uma reflexão sobre a história
universal, contada à filha de Schmitt, Anima, nos deparamos com outra tradução para
essa “superioridade espiritual”. Nas disputas pelas terras do Novo Mundo, relata
Schmitt, as potências europeias recrutavam indígenas, muçulmanos, matavam
mulheres e crianças, acusavam-se mutuamente de criminosos e assassinos para
justificar as hostilidades. Todavia, essa disputa não impedia que houvesse um limite,
segundo a narrativa schmittiana: “Somente uma ofensa omitiam entre si, uma ofensa
que era empregada com singular predileção contra os índios: os europeus cristãos não
acusavam uns aos outros de praticar a antropofagia” (2007: 60).
12
deixando imaculada uma linha temporal da propriedade: não sendo sujeitos (de
direito), os indígenas não poderiam jamais ter sido donos daquelas terras que
cabiam, então, a quem primeiro as ocupasse.
não disse que aquilo que comia não era humano, que era uma coisa,
um outro que ele, um animal. Não; ele disse: eu não sou “Humano”
(…). Falando do que comia, falando do que fazia, o guerreiro
canibal Tupinambá determinou a sua perspectiva, o lado em que
estava, a direção para a qual se deslocava: ele era um jaguar, porque
seu alimento era um homem (…). O “modo de falar” de
Cunhambebe determinava seu modo de comer, que era modo de
pensar (…). De resto, Cunhambebe não disse ser um jaguar, visto
que em sua língua o verbo “ser” não funciona como cópula
proposicional; propôs apenas: jauára ichê, jaguar eu.
Desse modo, podemos entender melhor como o jogo entre particular e universal é
transversalizado pelo par homem-antropófago no Manifesto. Em primeiro lugar, se
nele o antropófago aparece como termo mais abrangente, “universal”, é porque a
(in-)humanidade negada dos índios canibais aparece como abrangendo a humanidade
dos que a negaram: foram os europeus que não reconheceram o antropófago em si, e
não os antropófagos que não reconheceram o homem no outro – eis uma das lições de
Montaigne. “Todo mundo sabe”, dirá Oswald, “o conceito deprimente de que se
utilizaram os europeus para fins colonizadores”: “um conceito cristão de vida que
reservava para o branco o privilégio de ter alma” (Andrade, 2011b: 372). Lembremos,
a propósito, a famosa “anedota das Antilhas”, de que Lévi-Strauss (2013: 364) lançou
mão em Raça e história (e também nos Tristes trópicos): “Nas Antilhas, alguns anos
após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis despachavam comissões de
inquérito para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes tratavam de
submergir prisioneiros brancos, para verificar, com base numa longa e cuidadosa
observação, se seus cadáveres apodreciam ou não”. Ou seja, “os europeus nunca
duvidaram de que os índios tivessem corpo (os animais também os têm); os índios
nunca duvidaram de que os europeus tivessem alma (os animais e os espectros dos
mortos também as têm)” (Viveiros de Castro, 2015: 37; cf. Valentim, 2018).
Segundo, o termo “antropófago” designa aquele ser que come homens, seja ele
14
O dia em que os aimorés [sic] comeram o bispo Sardinha deve constituir, para nós,
a grande data. Data americana, está claro. Nós não somos, nem queremos ser,
brasileiros, nesse sentido político-internacional: brasileiros-portugueses, aqui
nascidos, e que, um dia, se insurgiram contra seus próprios pais. Não. Nós somos
americanos; filhos do continente América; carne e inteligência a serviço da gleba.
O fim que reservamos a Pero Vaz Sardinha [sic] tem uma dupla interpretação: era,
a um tempo, a admiração nossa por ele (representante de um povo que se
esforçara por derrubar aquele presente utópico, que foi dado ao Homem ao nascer,
e que se chama Felicidade) e a nossa vingança. Porque, que eles viessem aqui nos
visitar, está bem, vá lá; mas que eles, hóspedes, nos quisessem impingir seus
deuses, seus hábitos, sua língua… isso não! Devoramo-lo. Não tínhamos, de resto,
nada mais a fazer (Andrade, 2009: 66-67).
Se, por um lado, o chefe indígena enquanto devorador afirma sua animalidade
(seu devir-onça), por outro, o sobrenome do primeiro bispo do Brasil também
remete, agora enquanto devorado, à esfera animal: “com este nome, Sardinha,
mas o que é que você queria?!”, comenta Beatriz Azevedo (2016: 183),
sublinhando a “afirmação do humor oswaldiano” (ironicamente, o bispo que
substituiria Sardinha se chamará Dom Pedro Leitão). A diferença, equivalente
àquela entre matador e cativo, não é, assim, substantiva (humano / animal), mas
posicional e, portanto, reversível: predador (onça) \ presa (peixe) – sobre a barra
invertida, cf. mais abaixo. Isso fica claro na exegese oswaldiana recém-citada, a
sua dupla interpretação da cena inaugural, em que a vingança caeté inverte a
posição superior dos invasores sem negar a “admiração”. O contraste com a
versão portuguesa não poderia ser maior, mesmo que os termos da animalidade e
da vingança também apareçam nela, embora sobrecodificadas de modo muito
distinto. Na sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil e do que
obraram seus filhos nesta parte do novo mundo, de 1663, Simão de Vasconcelos
15
Em uma enseada, junto a este rio, alguns anos depois, sucedeu o triste desastre do
naufrágio do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando
n’ela à costa, foi cativo dos Índios Caetés, cruel, e desumanos, que conforme o
rito de sua gentilidade, sacrificaram à gula, e fizeram pasto de seus ventres, não só
aquele santo varão, mas também a cento e tantas pessoas, gente de conta, a mais
d’ela nobre, que lhe faziam companhia voltando ao Reino de Portugal.
Na segunda, mais detalhada, mas que só pode ser lida a partir da anterior,
aparece o par preadador/presa, na forma lobo/ovelha:
Não posso deixar de contar aqui (suposto que repugne a pena) o sucesso mais
triste, que até estes tempos viram as partes do Brasil, e choraram os Portugueses
d’elle. Foi este o naufrágio, e morte cruel de D. Pedro Fernandes Sardinha, Bispo
primeiro d’este Estado, e dos que com ele navegavam. Chegara este grande
Prelado à Bahia de Todos o Santos, cabeça de sua diocese, no princípio do ano de
1552, e procedera com o zelo, e aceitação que n’aquele ano tocamos: até que no
presente em que imos (não sei se chamado do Céu, se do Rei: dizem alguns, que
da melhoria das almas) se embarcou pera Portugal em companhia de Antonio
Cardoso de Barros, Provedor-mor que fora do Estado, e de outras pessoas nobres,
que levavam famílias de mulheres, e filhos. Deram à vela nos primeiros de Junho;
e havendo navegado quatorze dias, armou-se contra eles o horizonte com fera
tempestade de ventos de travessia envoltos em escuridão, trovões, e relâmpagos;
tão furiosa, que logo se deram por perdidos; porque distava perto a terra, e não
podia contrastar a nau a fúria dos mares. Mandou ferrar o piloto o pano; e quando
quiseram lançar ferro ao mar (remédio único de suas esperanças) tendo a amarra
entre mãos, lavou o convés tal pancada de mar, que levou consigo âncoras, e
amarras, e faltou pouco que não levasse os pobres navegantes. A tudo se achava
presente o santo Prelado, e vendo as poucas esperanças que restavam de vida
(porque já iam avistando as praias, e para elas levavam a nau como conjurados
águas, ventos, e mares, que batiam furiosamente o costado) posto de joelhos,
depois de exclamar ao Céu, começou uma prática aos companheiros, porém não
acabou; porque foi atalhada com confusão de vozes, e alaridos dos tristes
navegantes, que viam a nau ir descaindo sobre um disforme penedo que por entre
as nuvens, e relâmpagos então mal divisavam, mas logo conheceram às claras,
indo dar obre ele, e fazendo miserável naufrágio, no baixos chamados de D.
Francisco (…). Porém aqui (oh fereza de corações humanos!) quando os ventos,
mares, e penedos deram como perdão aos afligidos naufragantes, saindo a terra,
uns a nado, outros em o batel, todos debilitados, quase no último alento, a mãos
de selvagens chamados Caetés, que naquela paragem habitavam, acabaram as
vidas com naufrágio muito mais desumano. Em vendo estes o destroço da nau do
alto de suas serranias, desceram às praias, a aguardando ali fingiram-se amigos,
mostrando compadecer-se de seu estado; levaram-nos a hospedar as sua pequenas
choupanas, fizeram fogo, trouxeram mantimento, alentaram os corpos debilitados;
mas com cautela atraiçoada, porque fizeram no mesmo tempo aviso a seus
circunvizinhos para o que haviam de obrar, e veremos logo. O coração do homem
é leal, e mais em ocasiões de tanto aperto. Nunca se deram por seguros os pobres
Portugueses: olhavam para os hóspedes, pareciam-lhes feras tragadoras; para os
quintais de suas pousadas, viam rumas de ossos, e caveiras de mortos, sinais dos
muitos que tinham comido, insígnias prezadas de seu esforço, e valentia. Eles em
quantidade inumeráveis, os nossos poucos, o mais mulheres, e meninos,
desarmados, e alguns sem camisa, assim como o mar os deixara. Faziam da
necessidade virtude, cariciavam os que conheciam por mortais inimigos,
mostravam-lhes sinais de agradecimento debaixo de tão fundados arreceios.
Despediram-se ultimamente de seus hóspedes, e foram seguindo o caminho
que eles lhes mostraram a fim de seu engano. Eis que chegando ao descoberto das
praias, junto a um rio, que de força haviam de passar, saem de emboscada
16
O que eu tenho para mim é, que cresce neles este grande desejo de pequenos, à
medida do que tem de vingar-se de seus inimigos: e como é o sumo da vingança
comer-lhe as carnes, daqui vem que à medida do gosto da vingança nasce com
eles o da comida. (…) a mor glória a que pode chegar nesta vida um homem
valeroso, é cativar vivo na guerra um contrário seu, trazê-lo preso, matá-lo, e
comê-lo depois em terreiro, com aquelas suas gentílicas cerimônias de que usam,
de metê-lo em ceva, entregá-lo a velhas que o engordem, sinalar-lhe dia solene,
convidar parentes, e amigos, vestir-se das galas mais finas de suas penas, sair com
ele a terreiro, jugar-lhe as feridas, e deixá-lo morto no campo a som de aplausos, e
vivas (…). E nesta ação tem para si consiste o mor grau de nobreza de suas casas,
e famílias; tanto mais excelente, quantos mais foram os cativos, mortos, e
comidos, na forma referida (ibid.: 33).
11. Quando se iniciou aquilo que Pierre Clastres (1982) chamou de “mau encontro”,
a descoberta/conquista, a primeira (e/ou principal) coisa observada pelos europeus a
respeito dos povos do Novo Mundo foi a falta, sintetizada pela ausência de
reconhecimento da condição humana pela prática canibal: os índios apareciam, aos
olhos dos invasores, como um reflexo, em negativo, da civilização ocidental. Seja na
longuíssima lista do famoso ensaio de Montaigne, à qual voltaremos, seja na sintética
e lapidar formulação de Gabriel Soares de Sousa, que a reduz a uma questão
17
Modos de vida totalmente outros foram vistos como uma imagem invertida no
espelho – o artefato ontológico por excelência do Ocidente (cf. cap. 2, infra). O
antropófago era o homem sem qualidades, sem propriedades: “Entre selvagens”,
escreve Adam Smith (apud Landucci, 1972: 421), “a propriedade começa e termina
na posse”. E, sem nada de próprio (material e espiritualmente), “sua inconstância (...)
é proverbial”, como dirá Melville séculos depois a respeito de outros outros, os do
Novíssimo Mundo. E a ausência de propriedade, de estabilidade, ligava-se a outra
falta, a da autoridade, a do Estado, pois, afirma Daniel Defoe (apud Schmidgen, 2004:
50), “A propriedade é o fundamento do poder”. Diante dessa concepção que
(auto-)autorizava os europeus a simplesmente “tomarem” a terra, já que ela era sem
dono, o gesto de Oswald e seus companheiros, análogo ao de Cunhambebe, consistirá
em converter essa negatividade, na forma de uma ausência, em uma subtratividade,
na forma de uma retirada ativa, em converter uma posse sem propriedade em uma
posse contra a propriedade.
(O índio é que era são. O índio é que era homem. O índio é que é o nosso
modelo).
O índio não tinha polícia, não tinha recalcamentos, nem moléstias nervosas,
nem delegacia de ordem social, nem vergonha de ficar pelado, nem luta de classes,
nem tráfico de brancas, nem Rui Barbosa, nem voto secreto, nem se ufanava do
Brasil, nem era aristocrata, nem burguês, nem classe baixa.
Porque será?
O índio não era monógamo, nem queria saber quais eram seus filhos
legítimos, nem achava que a família era a pedra angular da sociedade.
Porque será?
*
18
Depois que veio a gente de fora (porque?)[,] gente tão diferente (porque
será?)[,] tudo mudou, tudo ficou estragado. Não tanto no começo, mas foi ficando,
foi ficando. Agora é que está pior.
*
Então chegou a vez da “descida antropofágica”.
Vamos comer tudo de novo.
Oswald utilizou o índio (a figura do índio) para fazer a crítica do Estado (…). A
separação fundamental de Oswald com relação ao romantismo não está tanto na
mudança do signo usado para a valoração do índio (do bom selvagem ao mau
selvagem), mas em separar o índio do Estado. Na realidade, mais que separá-los,
os opõem: o índio surge, assim, como a garantia anti-estatal da política (…).
Trata-se, então, de passar violentamente de um paradigma a outro e daí a
necessidade do ato vanguardista: do índio que está subordinado ao Estado-Pai,
forjado durante o reinado de Dom Pedro, ao índio que mobiliza a sociedade
contra o Estado (ideia que Pierre Clastres enunciou posteriormente, mas que
ilustra perfeitamente a operação antropofágica).
E, de fato, como veremos ao longo deste livro, a Antropofagia não deixa de ser
uma teoria clastreana antes de Clastres, do que é índice não só o uso recorrente
de “Contra” no Manifesto (“Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos
Gracos”; “A reação contra o homem vestido”; “Contra as elites vegetais”, etc.),
mas também outras formulações, como essa de Raul Bopp (2009: 73-74), citando
o relato de um indigenista, sobre a “Índole Pacífica do Gentio”, prática que ficou
conhecida como votar com os pés:
Quase meio século depois, o que era uma intuição dos antropófagos a ser
aprofundada em estudos que acabaram não sendo levados a cabo, constituirá o
ponto de partida da “antropologia política” de Pierre Clastres (2003: 172; grifos
no original): não só o chefe pode ser abandonado, como a própria instituição da
chefia indígena é ausente de qualquer coercitividade: “O chefe bastante louco
para cogitar não tanto no abuso de um poder que ele não possui, quanto no
próprio uso do poder, o chefe que quer bancar o chefe, é abandonado: a
sociedade primitiva é o lugar da recusa de um poder separado, porque ela própria,
e não o chefe, é o lugar real do poder”. Talvez aqui encontramos um direito
invertido, que não está no proprietário, mas naquilo/naqueles que ele possui (um
contra-direito, uma recipropriedade): um desuso, o direito de (ativamente)
19
§ Por outro lado, o Manifesto não cessa de apontar o que “Já tínhamos” (“nós da
América – nós, o autóctone: o aborígene” [Andrade, 2009: 66]) antes da
Conquista: o “comunismo”, a “língua surrealista”, “A idade de ouro”, “a relação
e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários”,
“adivinhação”, “a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da
Magia”, “Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário”,
etc. Os antropófagos pareciam, assim, saber que “[q]uando o espelho não nos
devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar”
(Clastres, 2003: 35). Devorar o padrão ocidental tornava possível, assim, ver
uma multiplicidade onde antes se via apenas a si mesmo em negativo: “Estamos
recrutando fatores postos à margem. Forças escondidas. Mal apalpadas. Que
ainda não couberam no sistema métrico ocidental. Índio” (Bopp, 2009: 108).
“A teoria metafísica do Ser que pretende ser uma ontologia, constitui na realidade
uma axiologia, uma teoria do valor absoluto e portanto, uma teologia, pois a
perfeição ou bondade corresponde à essência do real e por isso, todo real é em
certo grau bom; isto verifica-se com especial acuidade nestas palavras: ‘o Ser não
podia ser mal administrado. A salvação não está no comando de muitos, um só
domine!’” (ibid.: 165).
13. Talvez agora estejamos em posição de começar a entender por que os antropófagos
escolheram como “pedra do Direito Antropofágico” um pseudoinstituto, ou melhor,
uma verdadeira contravenção que, segundo diziam, fundava justamente o direito do
23
Aqui [dirá Bopp em “Brasil, choca o teu ovo…”] nestes lados a cruz ditou bases à
nossa organização. Apoderou-se das oportunidades com o instinto das
conveniências. Intolerante e exclusiva. Sem consultas às latitudes. Desatendendo
a terra.
Transplantou para cá os mesmos preceitos que amarravam o ocidente cristão.
A mesma moral de uso obrigatório.
Leis foram confeccionadas no outro lado. In abstracto. Mal desencaroçadas
do latim. Mas sempre com o devido respeito às vírgulas das bulas papais.
E foram nos mandando as forais. As regras de abstinência e de bem viver.
Trechos do liber sextus decretalium. E a Casa de Suplicação, no fundo vinham
ainda as capitulares. Pedaços do Fuero Juzgo. A lex Wisigothorum e Las Siete
Partidas, Glosas de Bartolo e de Cujácio. Com um cheirinho de placenta canônica.
Mais tarde ensalsichadas nas Ordenações.
juridicidade que não se sublima ou ampara num Direito fixo e legislado, que não
transcende, pela subsunção à Lei, a “prática culta da vida”, variável local e
historicamente. Afinal, a Antropofagia é apresentada como uma lei (a única do mundo,
inclusive), os integrantes advogavam um “Direito Antropofágico” e falavam de uma
“consciência jurídica nativa”, que motivava a necessidade, segundo o “Esquema”, de
“rever tudo – o idioma [a legislação sobre a língua], o direito de propriedade, a família,
a necessidade do divórcio”. A “única lei do mundo”, ao desativar a Lei, abre campo
para a multiplicidade de relações e juridicidades.
Além disso, a posse talvez seja o instituto jurídico mais difícil de definir (se é que
realmente se trata de um instituto jurídico): nas palavras de José de Alencar (2004:
157), é “no seio deste labirinto” que a “metafísica sutil da jurisprudência ostenta-se em
toda a sua confusão”. Definir juridicamente a posse implica distinguir o momento em
que o direito toca a vida: daí a interminável discussão jurídica em torno do seu estatuto
(se é fato ou se é direito), e a respeito de como uma apropriação física produz
consequências legais e gera direitos (e, por contrapartida, quando é um mero fato),
discussão que rendeu diversas soluções legislativas e uma proliferação de
parainstitutos jurídicos (detenção – nuda detentio –, posse ficta – ficta possessio –,
posse indireta, etc.), discussão em que, não por acaso, se envolveram dois dos maiores
romanistas (isto é, especialistas justamente na “origem” do direito ocidental) do século
XIX, Savigny e Ihering. Tal discussão é, na verdade, um debate metodológico sobre o
direito, ou melhor, um debate ontológico em que se trata de definir a relação entre a
esfera jurídica e a vida. A posse é a última fronteira do direito, ali onde ele ameaça se
confundir com a vida. “No assunto da posse”, escreve Pontes de Miranda (1955: 5), “a
diferença entre o mundo fático e o mundo jurídico passa a ser da máxima importância.
É o clímax da discussão, porque em nenhuma outra matéria se torna mais nítida a
coloração de parte do mundo fático, que do resto dele se separa, fazendo o mundo
jurídico”. A metáfora artística invocada pelo jurista (a “coloração de parte do mundo
fático”) não é sem consequências: se expurgássemos a posse da “milenar infiltração
metafísica”, continua Pontes de Miranda (1955: 6, 7, grifos no original), veríamos que
ela não é um direito, mas “rigorosamente (…) o estado de fato de quem se acha na
possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse proprietário ou tivesse,
sem ser proprietário, poder que sói ser incluso no direito de propriedade (usus, fructus,
abusus)”. Aqui, há que se salientar duas coisas: 1) “A posse é estado de fato, em que
acontece poder, e não necessariamente ato de poder (…). A posse é poder,
pot-sedere, possibilidade concreta de exercitar algum poder inerente ao domínio ou à
propriedade”; 2) contudo, este poder, sendo um “estado de fato”, não derivaria
diretamente do direito: “Não é o poder inerente ao domínio ou à propriedade; nem,
tampouco, o exercício desse poder”. Aquele que tem posse estaria num “estado de
fato”, não jurídico, em que teria o poder de agir como se fosse proprietário. Para definir
a posse, Pontes de Miranda não tem outra opção a não ser enquadrá-la como um estado
de fato cujas características remetem ao direito. A posse é um fato, mas um fato
particular, já que só pode ser definida a partir de um direito: “um poder como o que
exerceria quem fosse proprietário”, ou seja, uma ficção, uma ficção jurídica. O fato só
pode ser definido a partir de uma analogia com o jurídico. Tudo se complica ainda
mais na medida em que podem se encontrar no “estado de fato” que constitui a posse
tanto o legítimo proprietário quanto alguém sem título algum, sem direito algum.
Como dissemos, a metáfora artística e visual da coloração não é casual. O já
mencionado Ihering (2004: 24), ao buscar uma definição simplificada da posse, a
caracteriza como a “exterioridade, a visibilidade da propriedade”. É preciso repetir,
porém, que tal visibilidade, tal coloração, pode ou não responder a um estado jurídico.
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A ficção pode ser verdadeira, como também pode ser falsa; a visibilidade da
propriedade pode não passar de uma ilusão. O fato da posse se caracteriza a partir de
um instituto jurídico (a propriedade) que pode não estar em ato, que é potencial,
podendo inclusive estar ausente. Ao fim e ao cabo, a posse é a aparência de um direito,
é uma propriedade ficcional que só é, de fato, um direito na presença de um título, o
título de propriedade, ou seja, na medida em que se aceita a ficção como verdadeira, ou
melhor, na medida em que seja uma ficção autorizada. Para o direito, não há dicotomia
entre verdade e ficção, mas entre ficção autorizada e ficção não autorizada. E os títulos
grilados comprovam que não há subsunção mecânica possível, que na raiz dessa
distinção está o arbítrio.
Aquilo que se torna próprio, no ato mesmo de se tornar próprio, já não existe mais
enquanto singularidade, com ele não é mais possível travar uma experiência única. Mas
não haveria outra forma de se relacionar com os espaços, coisas e seres que são o
mundo? Afinal, a teoria da posse contra a propriedade apresentava uma outra
juridicidade, um outro modelo de ocupação, alheio àquele que funda o que é próprio,
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Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia que chamo de filosofia da
devoração. A vida é devoração pura e só há uma conduta a seguir: o estoicismo. É
verdade que outro conceito da existência divide a humanidade. É o conceito
messiânico e salvacionista. Os que se enfileiram debaixo dessa bandeira são os
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que acreditam que há qualquer coisa a salvar dentro deste mundo ou fora dele. O
primeiro pensamento é que presidiu a vida das sociedades primitivas tão
superiores às sociedades civilizadas. Estas servem-se do messianismo para criar as
servidões do corpo e do espírito e as ilusões de toda a espécie (Andrade, 2009:
364; grifo nosso).
viver bem), e já que seria necessário existirem instrumentos caseiros [oikeîa] para
as artes específicas, se quisermos terminar o trabalho, também deveria haver
instrumentos animados e inanimados para o administrador da casa [oinonomikós]
(assim como para o timoneiro o leme é inanimado, e o marujo animado, pois que,
nas artes, um assistente está na classe dos instrumentos); também o objeto
apropriado é um instrumento para a vida, e a propriedade é um aglomerado de
instrumentos, e o escravo é um objeto apropriado animado, e assim como o
assistente é um instrumento que serve por instrumentos. Pois se cada instrumento
pudesse cumprir ou completar antecipadamente seu trabalho, tal como falam das
estátuas de Dédalo ou das trípodes de Hefesto, que o poeta afirma serem capazes
de entrar autômatas na assembleia divina, se assim também os teares tecessem e
os plectros tocassem cítaras por si próprios, os chefes-de-obra não precisariam de
assistentes, nem os mestres de escravos. (1253b)
Designa-se o apropriado tal como a parte. Pois a parte não é só parte de outro,
mas também completamente do outro, do mesmo modo é o apropriado. Donde o
senhor é apenas senhor do escravo, mas não é dele; por outro lado, o escravo não
é só escravo do senhor, mas é completamente dele. Assim é a natureza e a
potência do escravo, como fica claro. Pois o humano que por natureza é de outro,
por natureza é escravo, e o humano é de outro sendo apropriado ou humano, e o
apropriado é um instrumento prático e separável.
15. A posse parece ser um estágio intermediário entre fato e direito, entre “detenção”
(ou “tença”, os nomes técnicos para uma mera posse de fato) e propriedade, um
dispositivo jurídico pelo qual se torna possível a passagem da vida para o direito e, do
mesmo modo, do direito para a vida: aquilo que parecia ser propriedade pode se
revelar nuda detentio, da mesma maneira que uma nuda detentio pode se converter em
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outro dia, nem curam de entesourar riquezas” (in Hue, 2006: 39; grifo nosso).
Para além da ausência de acumulação, chama atenção não exatamente a ausência
plena de propriedade, mas um regime completamente diverso de apropriação,
uma propriedade outra que não a privada nem a comum (como veremos no cap.
4, desde o direito romano, uma e outra se definem conjuntamente, por oposição).
Mesmo levando em consideração a sintaxe da época e a poética das formulações
jesuítas, parece haver algo de paradoxal na frase grifada, afinal, por um lado, é
dito que os Tupinambá “nenhuma coisa própria têm”, mas por outro, a exceção
que se abre a seguir (“que não seja comum”), se parece confirmar a ausência de
propriedade, também aponta para uma concepção e prática do que é próprio
umiblicalmente ligada ao comum (e vice-versa), a qual, porém, não se confunde
com essa. Trata-se, antes, de uma propriedade que não é nem privada, nem
comum (e, como veremos no cap. 4, desde o direito romano, uma e outra se
definem conjuntamente, por oposição). Um (im)próprio que já é ao mesmo
tempo comum, ou um (in)comum que já é próprio. Nada é próprio, tudo é
recipróprio: eis o regime do que estamos chamando de recipropriedade, que se
abre quando a posse se coloca contra a propriedade (privada e/ou comum).
16. Agora, a crítica dos antropófagos ao “título morto” fica mais clara: todo título é
morto porque mortifica, porque só pode se relacionar com a vida negando-a. A
irrupção daquela violência que funda o direito, a apropriação, precisa ser capturada em
uma esfera separada. Esta esfera é a posse. Nela, reaparece o gesto que funda a Lei: o
uti possidetis invocado pelas potências europeias nas suas disputas entre si pelas terras
do Novo Mundo é a emergência do fato que funda o direito. O título é aquilo que
intervém para estabilizar a relação entre fato e direito, para alocar a apropriação em um
estado já ultrapassado, convertendo-a em propriedade (ou punindo-a como roubo). Mas,
mesmo assim, toda posse pode ser uma posse contra a propriedade (o Direito
Antropofágico está inscrito no direito corrente): é esse o sentido da invocação, pelos
antropófagos, da ocupação portuguesa, que afirmava sua posse contra a propriedade
espanhola. Porém, no mesmo gesto, eles negavam a passagem dessa posse ao estatuto
de propriedade, caracterizando o Tratado de Tordesilhas (e o de Madri) como um
“grilo”, uma falsificação. Nesse sentido, o que o “grilo histórico” demonstra é que, na
própria história do direito, “as escrituras falsas são”, como escreveu Silviano Santiago
(1989). Determinar quando um fato se converte em direito não é possível a partir de
uma lógica de subsunção. Ou melhor, ao fim e ao cabo, a subsunção exige um gesto
nominalista, uma decisão que converte em legítimo um título que só o é em aparência
(a autenticação é sempre um gesto de autoridade). Não há como diferenciar,
objetivamente, entre a verdadeira ficção, a posse que corresponde a uma propriedade, e
a falsa ficção, aquela que é só aparência. E, além disso, as escrituras de posse ou de
propriedade falsificam a facticidade que as fundamenta, ao aplacar a violência em um
título. Não pode haver um título autêntico porque a passagem do fato ao Direito nega
sua origem: por isso, todo título é grilado, todo título só pode parecer autêntico. Se a
posse é o dispositivo que permite fazer passar do “estado de fato” ao “estado jurídico”
(e vice-versa), e se o instrumento dessa passagem é o título, a derrogação deste (a
impossibilidade de determinar quando é autêntico) equivale a liberar o fato capturado
pelo Direito, e possibilitar outras relaçõs. Daí o “contato com o título morto”: é preciso
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despertar a vida, o fato que está por trás do Direito, mas que este aprisiona. É na posse,
ali onde o fato se toca com o Direito, que este pode ser confrontado, que ele pode ser
desativado, e dar lugar a outra juridicidade. Por isso, os antropófagos optarão por esse
campo de batalha, radicalizando a posse na figura do “direito soberano de posse”,
mencionado em uma referência a Pascal, no “de antropofagia” da edição de 24 de
março de 1929 da Revista. Como poderia um fato, uma mera aparência de direito, ser
já direito, e um direito soberano em face aos outros direitos? A “soberania” da posse só
pode ser, nesse contexto, soberania em relação à propriedade, em relação ao título. A
soberania da posse contra a propriedade. Trata-se de impedir que o ato, o fato se
subsuma no Direito, e se negue na forma da exclusividade. O “direito soberano de
posse” é a soberania de um ato que não pode ser próprio, que pode, em última instância,
ser devorado por qualquer um.
corretos, fazer contato, afetar e ser afetado: ser proprietário é abrir-se ao toque
daquilo que se possui, e não negá-lo (objetificá-lo). No limite, a universalização
proposta por Brissot implicaria a impossibilidade de discernir quem é sujeito e
quem é objeto na relação de propriedade, ou melhor, de se definir a estabilidade
(a estatalidade) dessas posições: sendo uma situação, e não um estado, a
propriedade é sempre instável.
(Andrade, 2011b: 426). Contudo, por isso mesmo, porque tudo é devoração, é
que nem toda devoração encontra-se justificada enquanto programa de ação. Pelo
contrário: não comer também pode ser Antropofagia. É o que, em 1947, Flávio
de Carvalho vê em povos indígenas no Peru (uma minoria política que forma a
maioria da população local), conscientes de que o seu estômago constitui o front
decisivo, a última fronteira na batalha contra o branco. Se o embate direto do
tempo da Conquista – a “deglutição do Bispo Sardinha”, por assim dizer – não é
mais possível, resta ainda “A resistência passiva no Altiplano”, como Flávio
intitula seu texto (ecoando a “Índole Pacífica do Gentio” de que falava Bopp):
“O estômago torna-se o ponto forte da resistência passiva. Homem, mulher,
criança, velho, ninguém come. Não comendo, não terão de entregar ao branco o
pouco que ganham com o labor de bestas de carga exercido do raiar do dia ao pôr
do sol. ‘Não comprar nada ao branco’ é a palavra de ordem” (Carvalho, 2010:
1-2). Aqui, a recusa de comer (os produtos vendidos pelos brancos) constitui um
gesto contra a propriedade, contra o sistema de devoração unilateral.
um dia antes que o matem, lavam-no todo, e no dia seguinte tiram-no para um
terreiro, atado pela cintura com uma corda, e vem um deles mui bem ataviado, e
lhe faz uma prática sobre seus antepassados; e, acabada, o que está para morrer
lhe responde dizendo que é dos valentes não temer a morte, e que ele mesmo
matara muitos dos seus, e que aqui ficavam seus parentes, que o vingariam, e
outras coisas semelhantes (in Hue, 2006: 38).
“Ce chien est à moi, disaient ces pauvres enfants; c’est là ma place
au soleil. Voilà le commencement et l’image de l’usurpation sur la
terre.”
Como se vê, Pascal não contestava o direito soberano da posse.
E até reconhecia, embora com uma amargura besta, que “on a fait
qu’il soit juste d’obéir à la force”. Ara, ara, ara.
Os trechos referidos provêm dos Pensamentos de Pascal (2005: 25, 29; grifos
correspondentes às citações): “Meu, teu. // Este cachorro é meu, diziam aquelas pobres
crianças. Este é o meu lugar ao sol. Aí está o começo e a imagem da usurpação de
toda a terra (…). Não podendo fazer com que fosse forçoso obedecer à justiça, fez-se
com que fosse justo obedecer à força” (os trechos grifados são os citados por
Japy-Mirim). A ironia canibal (“Ara, ara, ara”), o modo de falar sobre a “amargura
besta” com que Pascal luda com o fato da justiça se reduzir à força, só pode ser
plenamente compreendida se levamos em consideração o trecho seguinte, em que dois
modelos de justiça se contrapõem: “Portanto, nem a justiça racionalista de Rousseau,
nem a santa justiça de Catarina de Siena, como querem os católicos franceses. Mas
justiça do tacape. Pau na cabeça. Você comeu meu irmão, agora quem te come sou eu.
E a alegria de constatar: Lá vem a minha comida pulando!” De um lado, a justiça
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o aparato judiciário, o Estado). A ironia com Pascal, assim, aprofunda o que este diz: a
“usurpação”, o apossamento, jamais deve ser sublimado. Se a posse é soberana, ela
jamais se converte em propriedade, i.e., em justiça, jamais se sobrecodifica na
linguagem da Lei e do Direito.
Antes, no mesmo texto, lemos uma enumeração da história (da decadência)
europeia, contraposta, ao final, com a postura indígena:
Do mesmo modo, o sujeito de direito se constituirá como sujeito que tem direitos, que
tem sobre si domínio (termo que vem de domus, equivalente romano ao oikos grego), é
um sujeito proprietário, sujeito próprio, que se apropria de si, dos outros e das coisas,
tornando-os sua propriedade. Mas, “enquanto isso, o índio fez a taba”, e eis a “lição do
nosso direito”: se a terra é sem senhor, há juridicidades outras, e outros direitos das
coisas, inclusive direitos que as próprias coisas têm… O direito soberano de posse é
uma soberania contra a “soberania individual” da propriedade, contra o “império do
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homem sobre a coisa”. A posse contra o domínio, contra o domus entendido como
dominação (domesticação unilateral) do pater familias sobre tudo e todos (todos
objetos), contra o sujeito constituído pelo domínio de si.
moderno nasce para por fim à guerra civil, à época chamada [guerra] de religião.
É, portanto, historicamente e auto-assumidamente, posterior à guerra civil (…).
O Estado moderno, que pretende terminar com a guerra civil, é na verdade sua
continuação por outros meios”, uma guerra preventiva à guerra civil, como
lemos na Introdução à guerra civil, do Tiqqun). Trata-se, antes, de um
dispositivo contra a formação estatal, como viu Clastres (2003, 2011), e que
forma com a (des)chefia uma “dupla relação inibitória: uma inibição interna ou
intracomunitária, a chefia sem poder, e outra externa ou intercomunitária, o
dispositivo centrífugo da guerra” (Viveiros de Castro, 2011: 328). Que Oswald
tivesse em mente a concepção de uma guerra como mecanismo centrífugo que
impede a estabilidade/estatalidade pode se entrever nesse elogio a Proudhon, que
contém, ademais, novamente uma relação entre política e ontologia:
Foi ele [Proudhon] quem afirmou que “a guerra é uma categoria do ser”, sorrindo
ante a ideia mistificadora e que centraliza o messianismo marxista – a de uma
apaziguada sesta para que caminha dialeticamente a humanidade. Contra a
dialética com que Marx procura justificar e vencer as contradições da luta social,
Proudhon (…) [afirma] que a vida se compõe de antinomias contemporâneas e
vigentes (Andrade, 2011b: 366).
Súbito[, Miss Barbara] teve um enjôo e deu de cara, no banco fronteiro com
Rodolfo Valentino.
O enjôo passara, mas vinha de novo. Rodolfo Valentino fitava-a. Aquele olhar
fixo de Sheik, debaixo da cartolinha arrepiada. Ela estava pálida, transfigurada.
Era ele! Não morrera. Revirou os olhos. Ia desfalecendo em cima de uma inglesa
de óculos e chapéu de palha. Rodolfo levantou-se, amparou-a.
Quando Miss Barbara Battlefield abriu os olhos de novo, estava deitada de
comprido num banco da popa.
Ao seu lado, só, de cartolinha, Rodolfo Valentino (ibid.: 22).
O autor se livra da jaula para correr para a filha do rei (...). Aparece
a morte; dança da Vida e da Morte, a vida com a morte e os mortos
ressuscitam. Dança dos ressuscitados. A luz vai enfraquecendo até
apagar completamente e quando volta a acender é uma luz azul com
um cenário de madrugada. Bananeiras, palmeiras e outras árvores
passam em cortejo fúnebre carregando o autor e a filha do rei. O
cortejo é encabeçado pela vida natural. Mulher de maiô (nua). No
fundo do cenário, pedaços de máquinas de escrever e objetos de
escritório. O cortejo passa lento. Dança do cortejo.
Não é nem no sol tropical, nem na noite trevosa, mas no limiar entre os dois, na
madrugada, depois da reconciliação entre Vida e Morte, quando passado e presente se
tocam, que o original e a cópia, o autor e a datilógrafa (que é também filha do rei) se
unem em um gesto de amor (que é também a sua morte enquanto sujeitos) e aquilo
que os separava ao criar entre ambos uma relação de autoridade, a máquina de
escrever (e também a roupa – em dois desenhos de Tarsila da década de 1940,
intitulados “Datilógrafa” e provavelmente relacionadas à retomada da peça, vemos
uma mulher sobreposta por máquinas de escrever, como se fossem a sua roupa), o
signo da propriedade, aparece destruída, relegada ao fundo do cenário. Ela já não tem
mais importância enquanto engrenagem de separação entre o escritor e o copista. No
cortejo do autor e da datilógrafa, na morte, anuncia-se uma nova escrita, uma nova
vida, omitida pelo sistema da autoridade, e que possui um único mandamento: “Só me
interessa o que não é meu”.
disposição de vontade, o seu caráter político. Vista como uma forma de derrisão,
o máximo que ela pode provocar é nosso riso, e não nosso cumprimento. Se a
apropriação como procedimento artístico visa justamente criticar os limites
impostos à arte, a sua reinserção dentro destes limites retira toda sua força.
Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade,
é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia
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Não é o material, o conteúdo – totalmente pilhado, como admite seu autor – que
torna Macunaíma um objeto próprio. É um nome na capa – um título de
propriedade, o que se torna evidente na comparação com a descoberta e
pertencimento do Brasil por e a Portugal, tão pouco casual quanto a invenção
marioandradiana. Os antropófagos, com seu poder de síntese e sua ironia mordaz,
já o haviam notado e dito num pequeno box simulando anúncio publicado na
edição de 12 de junho de 1929:
brevemente:
2a edição de
MACUNAÍMA
lendas indígenas
com capa de
Mário de Andrade
Por outro lado, como se sabe, embora tenha publicado a entrada da rapsódia no
número inicial da Revista e colaborado nas duas dentições, Mário se sentia
altamente desconfortável com a sua associação à Antropofagia. Assim, por
exemplo, em carta a Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Ataíde) de 19 de maio
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Murilo Mendes definiu como “viajante por excelência” (in Bopp, 1988: 42), é
instrutivo para contrapormos a exogamia à viagem identitária de Pau Brasil (e
Oswald mesmo o faz, considerando Cobra Norato “diverso do Pau Brasil litorâneo”
[Andrade, 2011b: 64]): tendo cursado cada ano da graduação em Direito em uma
cidade diferente, dado várias voltas ao mundo e feito carreira como embaixador, foi
um verdadeiro globe-trotter antropófago que varou o mundo à procura de seu país, e
encontrou nele o mundo (subversão da subsunção, da relação entre parte e Todo): “a
maior volta ao mundo que eu dei foi na Amazônia”. E é seguindo o “exemplo de Raul
Bopp” e o “incitamento de Oswald às grandes e perigosas aventuras” que Jayme
Adour da Câmara (s/d: 13) decide fazer sua viagem antropófaga pela Europa, que
resultará no “documentário de viagem” Oropa, França e Bahia (do qual grande parte
é dedicada aos prenúncios da Segunda Guerra Mundial, em especial ao “problema
judeu” e ao “corredor polonês”, feridas abertas da Primeira, e cujo título, além de se
referir a um dote que Macunaíma receberia na rapsódia de Mário, foi apropriado de
uma obra projetada por Oswald em 1926: Oropa, França e Bahia e outros estados
poéticos, cujo estudo de capa conta no arquivo de Tarsila). É preciso, porém, não
sobrevalorizar a viagem em si, como o fez Antonio Candido (2004b: 100; cf. também,
do mesmo autor, 2004a; 1992), para quem a Antropofagia culminaria na “utopia da
viagem permanente e redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade”. O
próprio Oswald advertia que “viajar não era nada”, isto é, não era garantia: “Ronald
de Carvalho viajou muito, mas nunca passou daquelas coisas sentimentais e irônicas”
(Andrade, 2009: 348). Em uma carta a Oswald, datada de 9 de agosto de 1929 (e
transcrita nos anexos), Jayme Adour diferencia o simples “cosmopolitismo de cais de
porto” (a viagem pela viagem), o turismo, da descoberta exogâmica: “Mas o cerne,
como sempre, fica escondido. É preciso perfurar para se chegar até lá. E eu cheguei.
Descobri”. E aquilo que descobre é justamente a Antropofagia:
Sem dar muita valia a essas coisas, o finlandês se salva pelo seu
próprio instinto antropofágico. É a maior gente que já encontrei pelo
meu caminho, aqui por esses lados da Europa. Já vi oito nações de
gente. Todas grafadas de mentira e de pecado original. O finlandês,
não. Nasceu sem pecado. Antropofagicamente.
Aqui, novamente, a Antropofagia é definida pela não-aplicação da Lei (a ausência de
culpa), mas, num gesto aparentemente inusitado, é vislumbrada não (só) no ameríndio,
mas (também) no europeu.
El Durazno pode ser lido, então, como a tentativa, por parte de Pinto Calçudo (e,
portanto, sujeita a sua perspectiva), de construir o legado de Serafim, o seu
retrato, a sua tradição, a tentativa de criar um local onde o espírito do
antropófago sobreviveria à sua própria morte. Em outras palavras: “Os
Antropófagos” constitui uma parábola, avant la lettre, tanto da ambigüidade da
estratégia apropriativa que sempre pode resvalar na estratégia identitária
consubstanciada na invenção (a conversão da posse em propriedade), quanto da
própria institucionalização do modernismo, cujos apogeus são a já referida
construção de Brasília (sintomaticamente, uma exposição de 2002-2003 se
intitulava Da Antropofagia à Brasília), e a II Bienal de Arte Moderna de 1954 –
sabemos, pelo relato de seu filho Rudá, o quanto Oswald se emocionou com ela
(Candido, 2004a: 66; cf. Andrade, 2009: 355-6).
§ Ainda está para ser escrita uma história que explique como e quando a
Antropofagia passou a ser interpretada como um programa nacionalista, portanto,
identitário, no qual se trataria de “devorar” e internalizar aquilo de “bom” que as
outras nações possuem, ou seja, de tornar próprio o alheio, de fortalecer (e
enriquecer) o próprio. É evidente que, por mais que certas passagens dos
antropófagos apoiem essa leitura, ela não se sustenta em uma análise mais detida
e sistemática de seus textos, especialmente do Manifesto Antropófago, como tem
insistido Eduardo Sterzi. A meu ver, na base de tal interpretação está o gesto de
traçar uma continuidade sem rupturas entre o Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
esse sim de viés mais nacionalista e identitário, e o Manifesto Antropófago,
lendo este pelos termos daquele. É no Manifesto da Poesia Pau-Brasil que
encontramos o vocabulário não só da “invenção” enquanto conversão da posse
em propriedade, como também aquele da “balança comercial” (“poesia de
importação”, “poesia de exportação”), ou, se preferirem, do “comércio das
Nações” (“Acertar o relógio império da literatura nacional”). É nele também que
encontramos afirmações decididamente identitárias e nacionalistas, como
“Apenas brasileiros de nossa época”. Todavia, o Manifesto Antropófago não
opõe o brasileiro ao estrangeiro (sequer menciona o “Brasil” ou o “brasileiro” de
forma substancialista – cf. cap. 3), não fala em importação ou exportação (a não
ser, de forma irônica, ao episódio envolvendo Vieira e o açúcar, numa alusão à
desigualdade colonialista nas trocas comerciais). O canibalismo ritual é toda uma
outra relação entre o próprio e o outro, na qual, ao contrário da visão comum, o
objetivo não é incorporar a alteridade na mesmidade, o alheio na identidade, mas
outrar-se, ver a si mesmo sob a perspectiva do outro.
seus melhores cavalheiros (…). E das brumas da nova terra foi surgindo a França
Antártica” (VII). A força deste marco inaugural teria sido tamanha que, mesmo depois
da expulsão dos franceses (“Dolorosa foi essa separação. Separação vital, tremenda!”
– VIII), se manteve uma “ligação filosófica da França eterna ao Brasil novo e
misterioso” (X), que vai de Montaigne até o surrealismo, passando por Rousseau: “A
América revelou à Europa o homem simples, o homem natural, integrado na sua
máxima expressão de liberdade” (X). Aquilo que o Brasil apresentava à França
carregada de “história” (e esta ligação é o último “tomo” de nossa história) não era
um estágio pré-histórico a ser restituído (o “primitivo”), mas “o homem natural,
integrado na sua máxima expressão de liberdade”, isto é, a possibilidade de fazer
história: “E aqueles homens simples mandados do Brasil à corte de França, na
coroação do Rei, estranharam que se dignificasse o homem fraco e mirrado, deixando
a seu lado o homem forte que tudo pode. E esse reflexo do homem forte e simples
impressionou o espírito dos filósofos. Montaigne. E o que era uma mera sugestão,
mais tarde se positivou numa campanha reivindicadora”, ou seja, na Revolução
Francesa. Para além da evidente francofilia (que talvez adquira outro sentido a partir
do que Beatriz Perrone-Moisés [2008] tem chamado de “coletivo franco-indígena”), o
que está em jogo é uma inversão do sentido (em todos os sentidos) da história. Anos
depois, ao escrever A marcha das utopias, Oswald de Andrade (2011a: 225) faria uma
comparação semelhante, ao situar a “geografia das Utopias (…) na América”:
Mas o que é este “novo homem”, este “homem diferente”, de que fala Oswald, ou este
“homem simples”, este “homem natural” de que fala Jayme Adour? Por que o
encontro com ele gera uma utopia, no fundo da qual “não há somente um sonho, [mas]
há também um protesto” (ibid.: 284)?
escrita com o propósito de “declarar e ampliar muitas coisas que eles [os cronistas
espanhóis] apareceram para dizer mas deixaram imperfeitas” e de demonstrar que
os Incas “eram gentis e não bárbaros”, despertou um grande interesse entre os
círculos europeus. A ideia de uma sociedade igualitária, com participação do
Estado, inspirou os utopistas e reformistas dos séculos XVII e XVIII. A marca de
Garcilaso pode ser encontrada em Campanella, Bacon, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau, etc. (ibid.).
26. O célebre episódio dos três ameríndios (levados exoticamente, não custa dizer)
diante da corte francesa a que Jayme Adour se refere foi narrado por Montaigne (1961,
I: 268-269) no ensaio que dedica aos “Canibais”:
Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número
de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que
se achavam junto do rei (provavelmente se referia aos suíços da
guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais
natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar
observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as
comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos,
esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua
linguagem metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham
extraordinário que essas metades de homens suportem tanta
injustiça sem se revoltarem e incendiarem a casa dos demais.
O discurso (do) canibal (e de Montaigne) aparece como um ponto de vista que
questiona a necessidade (a transcendentalização) das conformações (convenções)
sociais e das ações humanas, revelando sua contingência. Neste sentido, é importante
notar que a descrição das sociedades ameríndias por Montaigne é, grosso modo, feita
de forma negativa:
que aponta não para a nudez do rei, mas para a artificialidade de suas vestes, de toda
veste.
28. É chegada a hora de tentar elucidar porque o canibalismo ritual tupinambá pôde ser
traduzido na fórmula da “posse contra a propriedade”, o que implica também buscar
desfazer o nó entre a Antropofagia e a ideia de uma devoração ou deglutição do que
vem de fora para construir ou fortalecer o que é próprio, a saber, a ideia corrente do
movimento antropófago como aquele que postula a incorporação de qualidades,
propriedades exógenas para uso interno: o canibal como aquele incorpora
propriedades do outro para seu próprio ser. Muitas vezes, foi o próprio movimento
que postulou essa concepção: assim, lemos no “de antropofagia” do quarto número da
segunda dentição: “A antropofagia, corrigiu a impossibilidade do fechamento dos
portos pelo mais ingênuo e brasileiro processo nacionalizador que é esse da
assimilação das qualidades. Só a comunhão antropofágica resolverá o problema da
formação da língua brasileira e do Brasil brasileiro. Sem roupagens. Sem artifícios.
Cheio de arestas e de personalidade”. Como apontoui Oscar Calavia Sáez (1998: 83,
87), essa concepção se embasa “crença bem ocidental de que comendo algo se
absorvem seus caracteres ou seus poderes”, quando o escopo do canibalismo ameríndio
não seria o de “acumular vidas”, mas sim o de “[t]rocar uma vida por outra (…); devir
outro e não defender uma identidade”:
Há poucas ideias mais ocidentais e menos canibais que a
mestiçagem. É o sólido conceito de identidade do velho mundo que
permite pensar em seres mistos em que os componentes ainda
persistem. As mitologias europeias estão povoadas de seres
compostos: centauros, sereias, marxismo-leninismo, cultos
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Na Revista, são várias as remissões a esses diálogos, a começar por uma de Bopp
citada por Oswald no “Esquema”: “Veja só que vigor: – Lá vem a minha comida
pulando! E a ‘comida’ dizia: come essa carne porque vai sentir nela o gosto dos teus
antepassados.” Depois, um box no segundo número da segunda dentição apresentava
um “canto antropofágico dos tupiniquins”, em tupi e português, na versão de
Theodoro Sampaio extraído do mesmo Staden referido por Bopp:
E duas semanas depois, aparece um “canto do prisioneiro que vai ser comido” (o
outro lado do diálogo), sem indicação da fonte, a não ser que provém “Dos
Tupinambás”): “Eu não me lamento. Os verdadeiros bravos morrem no país de seus
inimigos. O meu país é grande e os meus saberão vingar-me de vós”. O prisioneiro,
portanto, se dizia já vingado (pela certeza de que seus parentes o fariam), se
vangloriava de já ter matado ou comido muitos da aldeia de seus captores, insistia, pra
retomar o “canto de um desses prisioneiros” citado no relato de Montaigne (1961, I:
267) de que estávamos tratando, que a carne que estes comeriam tinha um sabor
familiar:
Essa versão é especialmente instrutiva. Em primeiro lugar, porque deixa claro que
aquilo que era apropriado do outro pela devoração não era da ordem da substância
física, já que a carne do devorado, segundo este mesmo dizia, era composta pela carne
dos parentes dos devoradores, encarnando, assim, a domesticação “cultural” de que
fora objeto. Em segundo, porque torna patente que não se trata de uma assimilação de
qualidades, pois, ao afirmar a sua constituição corpórea como sendo a de seu grupo
captor (ou seja, que não há nada de diferente a ser incorporado), ele parece também
postular que – e esse é o ponto – em o comendo (em comendo alguém que foi
aparentado ao próprio grupo e que é composto biologicamente pela carne deste), seus
devoradores, no ato de o devorarem, deixarão de ser o que são e passarão a ser o que
ele é: um inimigo. Comer com a boca o corpo dessa boca que fala que sua carne é a
mesma daquela que come. Comer um outro tornado semelhante significa tomar a
posição do outro diante do semelhante:
mulheres nuas, jovens e belas; (…) as amantes dos cativos, as quais (…) dão o
sangue das vítimas às suas crianças de colo e infantes; (…) mulheres que
preparam os órgãos pro cozimento; (…) as mulheres que supervisionam o
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intuir que o suposto repasto tupi implicaria uma referência a uma ordem
matriarcal em que a energia sexual seria gasta sem as distinções e regulações
impostas pela ordem patriarcal, que apropria o desejo sexual feminino sob a égide
da lei do pai. Na cena de Léry, o desejo feminino por satisfações corpóreas devora
o corpo do guerreiro. O desejo quebra todas as amarras e distinções impostas pela
ordem patriarcal (ibid.: 305).
29. Um dos poemas mais famosos de Oswald de Andrade (1972: 115) é o “erro de
português”, datado de 1925, que aponta para a possibilidade outra enunciada pelos
Tupinambá parafraseados por Montaigne:
que uma longa estada no Pacífico e troca cotidiana com seu povo,
especialmente as crianças, me impressionou, foi a pouca espessura
de sua vida habitual comparada com a extraordinária complexidade
e onipresença da nossa. Não se poderia jamais descrever todos
nossos costumes em um livro, ou mesmo em dois, mas o deles, sim.
Se pensamos que o selvagem é mais escravo do costume do que nós
é porque vemos o cisco no olhar de outro homem, mas não a trave
no nosso.
Assim, entre os ditos “primitivos”, o caráter artificial e construído das poucas práticas
que podemos aproximar aos costumes transparece nitidamente, de modo que o
“costume não é tanto uma segunda natureza como é para nós” – isto é, para o homem
branco, caracterizado, ao contrário, “pelo gigantesco fardo de costumes que é capaz
de suportar quase sem se dar conta” (ibid.: 221).
A estratégia de vestir o canibal consistia, portanto, em converter aquilo que antes
aparecia como uma anomia em uma camisa-de-força ainda mais rígida (a visão
espelhada, mais umas vez), pois os costumes são a fonte do Direito, tanto no sentido
de origem (histórica pressuposta) das leis, quanto no de suplementação de lacunas
legais. Ao canibal era atribuída “a grande norma com que”, segundo Nietzsche (2004:
23), “tem início a civilização”, a saber, a de que “qualquer costume é melhor do que
nenhum costume.” O costume, retomando a formulação de Hocart, consiste em uma
“segunda natureza”, o “fundamento místico da autoridade” nas palavras de Pascal:
obedecidos “pela simples e única razão de serem recebidos”. E, mais do que isso, a
naturalização da lei, na forma dos costumes, implica a artificialização normativa da
natureza. “Que são os nossos princípios naturais senão os nossos princípios
costumeiros?”, se pergunta Pascal (2005: 22): “O costume é uma segunda natureza
que destrói a primeira. Mas o que é natureza? Por que o costume não é natural? Temo
muito que a própria natureza não passe de um primeiro costume, como o costume é
uma segunda natureza” (ibid.: 43). Eis o estado de natureza: a conversão da
exterioridade do Estado em sua proto-figura, a projeção do dentro no fora – a
conversão do outro em uma imagem em negativo do próprio.
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formular melhor essa máxima, a saber, que a nudez canibal não é ausência, mas a
abertura à multiplicidade:
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Obs.: Algumas referências estão incompletas (sem indicação de tradutor ou número de edição,
etc.), o que será corrigido até a publicação em livro.
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