Você está na página 1de 72

1

A única lei do mundo


Alexandre Nodari (UFPR/species/CNPq)

Nota prévia: O texto abaixo é uma versão ainda não totalmente acabada do primeiro de
quatro capítulos de um livro sobre a Antropofagia, intitulado O “meridiano da devoração”:
ensaios sobre a “hipótese antropofágica”, que pretendo finalizar até o fim do ano – os
demais capítulos se chamarão: “‘A transformação do Tabu em totem’: notas sobre (um)a
fórmula antropofágica”; “A questão (indígena) do Manifesto Antropófago”; e “A participação
canibal: sobre o interesse na Antropofagia”, além de uma introdução (“A terceira dentição”,
que situará o debate e as fontes) e anexos (um ensaio sobre Memórias sentimentais de João
Miramar – “‘Meu nome é Miramar’: vida e obra de um duplo” –, e uma seleção de textos do
movimento antropófago que foram publicados em periódicos outros que a Revista de
Antropofagia, descobertos e transcritos a partir de pesquisa na hemeroteca da Biblioteca
Nacional). Daí o uso constante de remissões (do tipo: cf. infra, cap. X ou Y). O capítulo foi
escrito a partir de variantes de artigos publicados sob o mesmo título (“A única lei do
mundo”), além de incorporar modificações substanciais e trechos de outros textos meus sobre
o assunto. Sua forma, que evita o uso de notas de rodapé (nada contra, muito pelo contrário),
é híbrida: há, por um lado, uma linha argumentativa mais reta e clara, nas seções numeradas
por algarismos, e, por outro, comentários laterais (ou mesmo desviantes) ou que adiantam
temas e questões que pretendo abordar nos outros três capítulos (ou seja, embora pareçam fios
soltos, fazem parte de uma linha subreptícia que se tecerá paulatinamente ao longo do livro),
demarcados pelo sinal gráfico de parágrafo (§) e também por uma fonte menor e margens
internas maiores. Cabe notar que, para evitar uma referenciação excessiva, nem sempre
aparecem mencionados os textos fontes e as edições das citações que provém da Revista de
Antropofagia. Fiz uso, no que diz respeito a elas (incluindo as do Manifesto Antropófago), da
edição fac-similar publicada em 1975, e atualizei sua ortografia. Uma versão digitalizada dos
originais da Revista (como também a chamarei de agora em diante) está disponível no site da
Brasiliana: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064. Por fim, agradeço as leituras
aguçadas que Rondinelly Gomes Medeiros, Felipe Vicari de Carli, Marcos Matos e Marília
Lourenço fizeram de um esboço anterior do capítulo, bem como a Guilherme Gontijo Flores,
que gentilmente traduziu do grego a meu pedido as passagens da Política de Aristóteles
citadas.

crônica

Era uma vez


O mundo

(Primeiro Caderno do Aluno


de Poesia Oswald de Andrade)
2

1. No início do Manifesto Antropófago, a Antropofagia é apresentada como uma lei –


ou melhor, como a “única lei do mundo”. Logo a seguir, em um gesto que lhe é
peculiar, Oswald de Andrade “reduz”, por assim dizer, todo o conteúdo desta lei a um
único preceito que mais parece a sanção legal do ilegal: “Só me interessa o que não é
meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. O “Direito Antropofágico” não só é
enunciado como a “única lei do mundo”, como também é enunciado por uma única lei;
uma única lei com um único artigo, que, além disso, se assemelha à fórmula do Maio
de 68: “É proibido proibir” (cf. cap. 2). Mas de que modo toda a lei do mundo pode
ser condensada em um só preceito? E ainda: como entender uma lei que, assim
reduzida, parece desativar a Lei?

§ O gesto oswaldiano de “redução” é interpretado, na maioria das vezes, como a


superioridade de sua capacidade intuitiva sobre a analítica, ainda que com
divergências quanto à sua valoração. Contudo, talvez fosse mais frutífero
perguntar se não estaríamos diante de uma opção metodológica imanente à
operação antropófaga. Não custa lembrar que o procedimento reaparecerá, sob
outra forma, na ideia de “redução sociológica” com a qual o sociólogo Alberto
Guerreiro Ramos (1996: 86) propôs nada menos do que a “assimilação crítica”
dos “produtos científicos importados”. A sintonia evidente com a interpretação
dominante da Antropofagia foi assinalada por Haroldo de Campos em “A poesia
concreta e a realidade nacional” e retomada em “Uma poética da radicalidade”,
onde o conceito de “redução sociológica” é resumido do seguinte modo:
“Forma-se em dadas circunstâncias uma ‘consciência crítica’, que já não mais se
satisfaz com a ‘importação de objetos culturais acabados’, mas cuida de
‘produzir outros objetos nas formas e com as funções adequadas às novas
exigências históricas’; essa produção não é apenas de ‘coisas’, mas ainda de
‘ideias’” (Campos, 1972: xxxiii-xxxiv). É provável que a “redução” forme com
a “Errática” (cf. Aguilar, 2010) os dois polos metodológicos (equivalentes, neste
sentido, ao “estilo telegráfico e a metáfora lancinante” que caracterizariam a
escrita de Oswald de Andrade [2004a: 70], segundo um de seus personagens)
sem os quais as proposições antropófagas não podem ser compreendidas em toda
sua amplitude.

2. O estatuto do Direito Antropofágico é tudo menos que claro. Trata-se de uma lei
universal (a “Lei do homem”) ou de uma lei particular (a “Lei do antropófago”)? Ou
ainda: é o homem que é subsumido no antropófago, já que este termo aparece depois
como que englobando o primeiro? Trata-se, como o Manifesto às vezes parece indicar,
de uma lei já em vigor, que rege a história humana (“Expressão mascarada de todos os
individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados
de paz”), ou, pelo contrário, como o texto também aponta, de uma norma
programática, de uma utopia a ser realizada contra o status quo: “Contra a realidade
social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem
loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”?
Trata-se de uma lei primitiva que cabe resgatar (“Antes dos portugueses descobrirem
o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”), ou de uma lei nova que, quando vier,
“O cinema americano informará”?

3. O Manifesto Antropófago, que, se poderia dizer, não passa de um longo comentário


ao direito que preceitua, parece ter sido redigido à sombra da duplicidade (de uma lei
que abole a Lei, do particular e do universal, do primitivo e do tecnológico, do ser e
do vir-a-ser). Deste modo, por um lado, há um acento no programa a ser cumprido,
nos “Roteiros”, que remetem não só aos itinerários pelos quais “caminhamos”, mas
3

também ao cinema, isto é, ao novo: “A idade de ouro anunciada pela América. A


idade de ouro. E todas as girls”; por outro, tal utopia parece sempre levar para trás,
para o passado, para o que “tínhamos”: “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a
língua surrealista. A idade de ouro”. Talvez não seja preciso ver aqui uma estrutura
paradoxal – ainda que a Antropofagia esteja repleta de paradoxos – nem a necessidade
de uma opção binária: “o senso do futuro”, afirma a respeito Benedito Nunes (1979:
23-24), “modifica o entendimento do passado”, tanto “um passado trans-histórico, que
confina com o futuro utópico, como aquele passado pré-cabralino a que,
paradoxalmente, a ‘antropofagia’ oswaldiana, em 1928, antepõe e pospõe ao presente,
e no qual o tempo sem memória de um mito mergulha no tempo esperançoso de uma
utopia a realizar”. A temporalidade que transparece no Manifesto é a de um “mundo
não datado”, o que não quer dizer sem história: melhor seria dizer que a Antropofagia
aparece na forma de uma história sem data.

§ A referência, escusado dizer, é ao livro de contos de Machado de Assis, mas


também à sua inversão, a “História com data” de Mário de Andrade (2013:
151-171). Repleto de pastiches, citações de jornais futuros e até de um suposto
plágio involuntário, o conto trata do transplante do cérebro intacto do operário
José (falecido e com o corpo destroçado) ao corpo intacto do também morto
piloto Alberto de Figueiredo Azoe (cujo cérebro foi atingido em um acidente de
avião), ou seja, aborda a apropriação em sua forma extrema: a do corpo. Portanto,
não foi à toa que Raúl Antelo (1988: 255) tenha visto, nesta ficção de 1921,
pautada pelo “transformismo”, “um laboratório ficcional da rapsódia escrita
cinco anos mais tarde”, ou seja, de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (o
que quer dizer também: o herói sem propriedades).

§ Talvez a melhor formulação da temporalidade que está em jogo no Manifesto


Antropófago seja a canção “Um índio”, de Caetano Veloso:

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante


De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico


Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
4

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos


Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

4. Se estamos corretos, então o recurso ao passado é sempre também uma redefinição


do presente, e na definição do que seja um particular, coloca-se em jogo o universal.
Isso explica a aparente inversão que Oswald faz (quando enuncia o preceito único da
“única lei do mundo”) ao subsumir não o antropófago (particular) ao homem
(universal), mas o homem ao antropófago (“Lei do homem. Lei do antropófago”). É a
própria estrutura da subsunção, essencial na aplicação jurídica de uma norma, que é
colocada em questão, o que fica mais claro quando o exemplo de Direito
Antropofágico evocado no passado não aparece sob a forma de um direito positivo,
mas sim na de um “direito sonâmbulo”: “Nunca fomos catequizados. Vivemos através
de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”.
Ou seja, aquilo que Oswald vê no passado – e advoga para o presente – não são outros
preceitos, não é uma lei com outros conteúdos, mas uma lei com outra aplicabilidade,
ou melhor, ausente de aplicação: uma outra juridicidade, distinta daquela do direito
legislado, em que uma norma se aplica por meio da sanção da autoridade estatal, um
direito diferente daquele que está sempre em estado de vigília e que precisa ser
aplicado ainda que esteja vendado (basta lembrar-se da imagem ocidental da “Justiça”,
e também de um dos princípios basilares do direito moderno, o de que o juiz não pode
deixar de decidir, mesmo quando a lei for omissa). Assim, o aforismo de abertura do
Manifesto (“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente”) não enuncia necessariamente uma ambiguidade não resolvida do
estatuto do Direito Antropofágico, entre pano de fundo sempre presente da
humanidade e/ou uma utopia a ser realizada. Antes, ele pode ser lido como a
enunciação de uma lei que já rege na medida em que a Lei não é cumprida. Se é
verdade que “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos
do homem”, ou seja, que a Antropofagia parece reger até mesmo a história da Lei,
também é verdade que tal declaração é pobre, isto é, insuficiente. Pois não se pode
perder de vista que os chamados “direitos humanos” contidos na Declaração de 1789,
como bem sabem os juristas, são, principalmente, “direitos negativos”, “garantias” do
indivíduo diante do Estado-Nação, do qual, segundo a própria Declaração, emana a
Lei – ou seja, eles dão o direito a não aplicabilidade subsuntiva do Direito, eles
garantem que nem toda lei emanada pelo Estado seja aplicada. Nesse sentido, a
declaração não seria “pobre” por lhe faltar preceitos a serem aplicados, mas por deter
só pontualmente a aplicação da Lei.

§ A subsunção, o ato de incluir uma coisa em algo maior, constitui uma


operação jurídica fundamental: por meio dela, o fato (concreto) é incluído na
norma, ou tipo legal (abstrato), de modo a permitir a aplicação do Direito à vida.
Também usado no jargão filosófico para indicar quando um objeto recai no
5

âmbito de (ou se adequa a) um conceito, ou de modo mais geral, para situar a


parte sob a égide do Todo, o termo, ao menos segundo o étimo, significa “tomar
o lugar de”: “subsumere”, lembra João Paulo Arrosi (2020: 43), “cujo sentido
literal é ‘apropriar-se’, derivado de sumere ‘tomar, roubar’”. A subsunção,
poderíamos dizer, é uma tomada, um roubo no qual o particular, o concreto, a
vida, a parte, são apropriados pelo geral, pelo abstrato, pelo Direito, pelo Todo, e
se tornam propriedade desses.

5. Segundo a pseudoetimologia de galimatias, palavra usada para se referir a um


discurso confuso, ausente de nexo, o termo derivaria do erro de um padre em uma
pregação (ou, em uma variante, de um advogado no tribunal), que, de tanto repetir o
“galo de Mateus”, gallus matthiae, acabou se confundindo e dizendo “Matheus, (d)o
galo”, galli mathias. É em referência a esta anedota que se dará a única definição do
Direito que aparece no Manifesto: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele
me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem
chamava-se Galli Mathias. Comi-o”. Nesta passagem, o Direito não só é definido
através de um galimatias, como também pelo Galli Mathias, isto é, pelo erro, pelo ato
falho – por uma “traição da memória”, para usar a expressão com que Gilda de Mello
e Souza (2003) caracterizou um dos recursos da poética de Mário de Andrade. A
repetição não impede a diferença: a subsunção mais mecânica pode falhar.
E mais: o galimatias pelo qual Galli Mathias define o Direito revela que a
subsunção, a aplicabilidade da lei, é tudo menos que garantida – o que o Direito
garante é apenas um exercício da possibilidade. Isso quer dizer que o Direito
Antropofágico é uma potência inscrita no próprio Direito, a possibilidade da não
aplicação do direito. Ou seja, isso explica por que a Antropofagia é uma “expressão
mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos”, já existente, que
precisa, porém, se voltar “contra a realidade social, vestida e opressora”: a “Lei do
antropófago” que está, desde sempre, inscrita em todas as leis (por isso, constitui a
“Lei do homem”), é a possibilidade de que estas não se cumpram – possibilidade,
contudo, que precisa ser atualizada. Em outras palavras: seria preciso aplicar a não
aplicabilidade do Direito (e que é interna a ele).

§ O Direito ocidental conhece uma série de institutos que permitem a não


aplicação de uma norma. Um deles é o desuso, a revogação de fato, quando uma
lei, embora vigente, perdeu eficácia porque os costumes mudaram (era o caso do
adultério na legislação brasileira, considerado crime até 2005, mas que, há muito,
não era punido). Contudo, trata-se de um desuso passivo e pontual (uma norma,
consensualmente e sem conflito direto, vai aos poucos deixando de ser aplicada).
O que os antropófagos parecem postular, por outro lado, é um desuso ativo, usar
o desuso, fazer uso dele, e convertê-lo em juridicidade, em lógica jurídica: não
deixar uma lei cair em desuso, não desusar (um)a lei, mas desusar a Lei (a
juridicidade do Direito ocidental legislado), de modo a abrir espaço para outras
juridicidades e relações.

6. A bem da verdade, a expressão “Direito Antropofágico” não comparece no


Manifesto. Entretanto, na Revista de Antropofagia, ela aparecerá seguidamente. Que
não se tratasse apenas de uma metáfora e/ou analogia jurídica, fica claro em uma nota
não assinada, da edição de 4 de julho de 1929 da 2ª dentição (fase) da Revista, que
tem como título justamente “Direito Antropofágico”: acompanhada de desenho de
Cícero Dias, ela noticiava que “O ‘Estado do Pará’ publica um tópico informando que
o jurisconsulto Pontes de Miranda, tomando a frente dos pioneiros da Escola
Antropofágica, lançará, dentro de pouco tempo, as bases para a reforma dos códigos
6

que nos regem atualmente, substituindo-os pelo direito biológico, que admite a lei
emergindo da terra, à semelhança das plantas”. Ora, Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda foi nada menos que um dos maiores juristas brasileiros do século XX: “o
homem de maior cultura jurídica do país”, dirá Bopp (1972: 23) a seu respeito. À
época, ele estava claramente alinhado com as teses antropofágicas: autor de uma curta
citação, de forte teor devorador, incluída na Revista em 26 de junho do mesmo ano
(“a dúvida entristece. E é preciso matar a dúvida”), ele aparecerá, em notícia do
número seguinte do periódico, na lista dos que participariam na elaboração da
maquete do “Primeiro Congresso Brasileiro de Antropofagia” (“Do seu talento e da
sua cultura a Antropofagia espera muito”, afirmou Oswald de Andrade [2009: 85] em
entrevista de agosto de 1929). O Congresso discutiria uma série de teses (um
“decálogo” composto por nove propostas, as quais, avisa a nota, “não representam,
porém, senão um aspecto do pensamento antropofágico”), que seriam debatidas e
convertidas “em mensagem ao Senado e à Câmara, solicitando algumas reformas da
nossa legislação civil e penal e na nossa organização político-social”, a ser redigida,
provavelmente, por Pontes de Miranda:

I – Divórcio.
II – Maternidade consciente.
III – Impunidade do homicídio piedoso.
IV – Sentença indeterminada. Adaptação da pena ao delinqüente.
V – Abolição do titulo morto.
VI – Organização tribal do Estado. Representação por classes.
Divisão do país em populações técnicas. Substituição do Senado e
Câmara por um Conselho Técnico de Consulta do Poder Executivo.
VII – Arbitramento individual em todas as questões de direito
privado.
VIII – Nacionalização da imprensa.
IX – Supressão das academias e sua substituição por laboratórios de
pesquisas.
(Outras teses serão posteriormente incluídas)

A atualidade de muitas das teses – legalização da eutanásia, do aborto, a reforma


agrária (a abolição do título morto), a instituição da mediação e da arbitragem – fica
evidente (e a legalização do divórcio só viria a acontecer em 1977), assim como o
caráter de “direitos negativos” de várias delas traz à luz mais uma vez aquele nexo
entre Antropofagia e não aplicação subsuntiva do Direito: o Direito Antropofágico
pretende que o Direito estatal se retire, cada vez mais, da esfera da vida — e esta
defesa da “redução” do Estado (a sua abolição, ou ao menos a tendência em direção à
sua minimalização) não é sem ligação com a poesia mínima de Oswald de Andrade,
como argutamente percebeu Raúl Antelo (2006: 27). Como se sabe, o Congresso,
previsto primeiro para acontecer no Rio de Janeiro, e, depois, em Vitória, não se
realizou — devido não só ao “changé des dames geral” mencionado por Raul Bopp
(2009: 78), mas também à radicalização dos antropófagos, já prenunciada pela
mudança de postura na 2ª dentição da Revista, que levou à adesão de muitos deles ao
comunismo: a reforma já não bastava, era preciso a revolução; para alcançar o
mínimo, era agora preciso o máximo. É um Oswald já comunista que definirá, em um
manuscrito que Maria Eugênia Boaventura nomeou de Dicionário de bolso, o antigo
aliado Pontes de Miranda como o “Pinguelo literário por onde os ‘tenentes da direita’
pretendem alcançar a margem esquerda da revolução” (Andrade, 1990: 105).
7

§ Por intermédio de Garcia de Rezende, assessor do então secretário de Instrução


do Espírito Santo, Atílio Vivacqua, e que colaborou na Revista (sugerindo,
inclusive, em um de seus textos, o “ensino antropofágico”), tendo também
publicado material do movimento no Diário da Manhã, o “Primeiro Congresso
Brasileiro de Antropofagia” passou a ter a chancela e o apoio do governo
capixaba, mudando também o seu nome para “Congresso Mundial de
Antropofagia”, e a data de sua realização: 11 de outubro, “o último dia da
América livre” (Bopp, 2009: 65). Segundo Bopp, houve uma série de reuniões
preparatórias, que se iniciaram com o estudo dos “Clássicos da Antropofagia”
(Jean de Léry, Hans Staden, Claude D’Abbeville, Koch-Grünberg, von Martius,
entre outros, culminando em Montaigne e Rosseau), nos quais se buscava
subsídio doutrinário para os debates do Congresso. No seu relato (Bopp, 2009:
44-52), não encontramos as teses arroladas na Revista, em sua totalidade de feitio
jurídico-político; o máximo neste sentido é a menção a uma “Suma
Antropofágica”, a ser elaborada por Oswald, e que “[c]onsistiria em uma série de
notas e advertências que formariam um Tratado de Governo, isto é, como seria,
no Brasil, um governo de formação antropofágica” (Bopp, 2009: 46). Outros
projetos, porém, aparecem, como a publicação de uma “Bibliotequinha
Antropofágica”, um estudo sobre a “Sub-religião” do Brasil, a redação de uma
“Subgramática”, visando recuperar a simplicidade poética do idioma, a
instituição do berro como “sistema de medida de superfícies”, etc. “Os volumes
da ‘Bibliotequinha Antropofágica’”, diz Bopp (1956: 9),

seriam distribuídos a especialistas em diferentes assuntos brasileiros, que


obedeceriam mais ou menos à seguinte ordem: 1) Sambaqui (restos de cozinha).
Coleção de artigos publicados na Revista de Antropofagia, 1ª e 2ª dentição.
Moquens e pontas-de-flecha (Osvaldo Costa, Geraldo Ferraz, etc.). Manifesto de
Oswald Andrade. Ilustrações de Tarsila. 2) Macunaíma, de Mário de Andrade. 3)
Cobra Norato. 4) Brasil-Freud. Ensaios e compilações, por Flávio de Carvalho. 5)
Os Clássicos da Antropofagia. Livro de introdução ao pensamento antropofágico,
documentação e interpretação de alguns autores (Montaigne, d’Abbeville, Yves
d’Evreux, Koster, Koch-Grünberg, etc.). 6) Livro do Nenê Antropofágico.
Coleção de cantigas de ninar, embalos de rede e “cata-piolhos”, seguindo-se um
estudo sobre a formação da inteligência do nenê. O sapo, o bicho do fundo, etc.).
7) Escola Brasileira. Bases para uma re-educação, no sentido antropofágico.
Revisão dos programas de ensino (coisas desnecessárias). Ensaios de alegria
nacional. 8) Estudos da Lingüinha Nacional, por Aníbal Machado, e uma
Sub-gramática minha, com algumas notas sobre variantes regionais, leis de
gravidade do idioma. 9) Sorumbá. Selecionado de poesia nova, de sabor brasileiro.
10) Ensaios sobre a Novela brasileira. Características dominantes. Notícia do
material usado. Regiões de romance, por José de Queiroz Lima. 11) Coisas de
Música. Ensaios sobre formações rítmicas. Psicologia do índio e do negro. 12)
Danças Regionais.Notas sobre tipos rurais brasileiros. Características do andar do
negro. Mecânica dos movimentos e sua formação rítmica. Expressões ignoradas
do sexo. Sexo cifrado. 13) Livro de Festas e Folguedos. 14) Estudos de uma
Sub-religião no Brasil. 15) Marajó. Notas sobre artes plásticas indígenas. Estudos
de linha e de cor. Simplificação dos motivos ornamentais. A casa brasileira. Sala
de ser e sala de estar. 16) Mombéu. Fabulário Nacional. Livro de lendas. Capítulos
sobre a jurisprudência indígena (proteção à caça parida, época das desovas, etc).
O Malasarte. Bases históricas do ‘grilo’. A posse contra a propriedade.
O ultimo livro da Bibliotequinha seria a Suma Antropofágica, com
compilações sobre problemas do ser e acrescido de capítulos avulsos sobre o
nascimento, fuga, rapto e reaparecimento de Macunaíma. Sermões aos novos.
Imitação. Livro de meditações.

§ Outro tema que os antropófagos pioneiramente abordavam já na década de


1920 era a biomassa. Em uma carta a Joaquim Inojosa (1968: 405), datada de 21
8

de junho de 1929, o integrante da Antropofagia Clóvis de Gusmão enumera


alguns elementos da “Força solidificadora da idéia central do movimento
[antropofágico]”, entre as quais encontramos a proposta de uma economia
antropofágica, anti-malthusiana:

– Nova engenharia. O homem se aproveitando do material fornecido pelo


ambiente e elevando com ele a sua civilização. E é esse o erro básico da economia
brasileira que só a antropofagia econômica corrigirá. Se nós não temos ferro,
devemos criar a nossa engenharia de país que não tem ferro. Se nós não temos
petróleo devemos incentivar a existência de sucedâneos do petróleo. Devemos
criar a nossa química industrial. Com feição própria. É preciso que nos libertemos
dos banqueiros de Wall-Street mais ainda do que da literatura francesa.
– Temos o “imamoim” que dá 100% de gasolina vegetal. Temos o babaçu
que resolve o problema de nossa siderurgia. Tudo isso inexplorado. É a
mentalidade rotineira atuando no subconsciente dos nossos capitalistas que os
impede de ver o ‘lucro máximo e novo’ que valorizaria um novo produto de
exportação. Taxas e sobretaxas em todo capital inerte.

§ As propostas de “[o]rganização tribal do Estado. Representação por classes” e


de supressão do Congresso podem soar contraditórias às demais — e talvez, de
fato, o sejam, ecoando o fascismo que, à época, estava em ascensão. Na edição
do dia 17 de março de 1929, a Revista trazia um texto assinado por Freuderico,
em que os antropófagos se diziam “contra os fascistas de qualquer espécie”, com
a ressalva de que “O que nessas realidades políticas houver de favorável ao
homem biológico, consideraremos bom. E nosso”. Deste modo, algo de “bom”
era extraído do fascismo: o “congresso corporativo. Evolução da divisão do
trabalho social (social não, tribal) pelos grupos totêmicos”. Além disso, uma
espécie de tecnofilia teleológica acompanhará Oswald até o fim de sua vida.
Assim, a proposta de “Substituição do Senado e Câmara por um Conselho
Técnico de Consulta do Poder Executivo” será ecoado na 12a das 13 teses que
encerram A crise da filosofia messiânica: “Que A revolução dos gerentes, de
James Burnham, lembrando a gerontocracia da tribo, oferece o melhor esquema
para uma sociedade controlada que suprima pouco a pouco o Estado, a
propriedade privada e a família indissolúvel, ou seja, as formas essenciais do
Patriarcado” (Andrade, 2011a: 205). Todavia, seria muito redutor não ver as
propostas em conjunto com as demais e com o ideário antropófago mais em geral,
afinal, lemos na Revista de Antropofagia que “Nós acreditaríamos num
progresso humano se a criança nascesse alfabetizada. Mas enquanto ela aparecer
no mundo, como nesses últimos quarenta séculos de crônica conhecida, nasce
naturalmente na idade da pedra. E aí ficaria, primitiva e nambikwara, se não a
deformasse imediatamente. Não há motivos para se ter saudades das idades
líticas. Todos os dias nascem milhões de homens pré-históricos”. Por exemplo,
podemos, tendo em vista essa inusitada aproximação vocabular entre um
governo de gerentes e um governo tribal de anciões (gerontocracia), pensar em
uma simples adesão oswaldiana à administração burocrático-gerencial, ou o que
ele tem em mente não consiste numa versão transformada da técnica moderna
pela técnica “primitiva”? São os gerentes de Wall Street ou os anciões da taba
que fornecem o modelo? Como entender o paralelismo que está em jogo quando
Oswald diz que “Trata-se de procurar soluções paralelas ao primitivismo como
n’A revolução dos gerentes, de James Burnham” (Andrade, 2011a: 203)? De
novo, “passado” e “futuro” entram em uma relação não-linear. Por isso, não
podemos deixar de identificar o eixo da crítica canibal: o modelo da
representação liberal, meramente quantitativo, que subsume numa pretensa
igualdade numérica as diferenças e desigualdades qualitativas. Um bom
entendedor entenderia: o que a Antropofagia pretendia atacar em seu Congresso
era a combinação de liberal-conservadorismo (o conservadorismo na organização
9

social e nos costumes, o liberalismo no discurso e modelos institucionais) que


caracteriza o país (o que a historiografia e a tradição de ensaísmo de
interpretação nacional não cessam de dizer).

7. Como vimos, uma das teses do decálogo propunha a “Abolição do título morto”.
Além de uma defesa da reforma agrária (o título morto é aquele de uma propriedade
que não se usa, uma propriedade em desuso), ela se referia ao centro nevrálgico do
Direito Antropofágico, ou melhor, à “pedra do Direito Antropofágico” tal como foi
repetidas vezes definida na Revista: a teoria da “posse contra a propriedade”. De fato,
excetuada a referência ao “direito biológico” a ser elaborado por Pontes de Miranda,
todas as demais vezes em que a expressão “Direito Antropofágico” comparece na
Revista é associada a esta teoria, que se pretendia uma “resposta a outras teorias”.
Mas, em lugar da “Abolição do título morto” que seria defendida no Congresso,
encontramos, no mais das vezes, a ideia do “contato com o título morto”, ou seja, o
“grilo”. Como se sabe, a grilagem é uma operação que consiste em forjar títulos de
propriedade, e seu nome remete à prática de colocar os documentos falsificados em
gavetas junto a grilos para que adquiram aparência envelhecida, uma aparência
“autêntica”. A defesa da grilagem, além do mais, amparava-se em um exemplo
histórico incontestável: “Não fosse o Brasil o maior grilo da história constatada!”. Na
teoria da posse contra a propriedade parecem se condensar, assim, os elementos do
Direito Antropofágico que até aqui apenas esboçamos. Em primeiro lugar, ao
contestar a propriedade (o direito de propriedade era garantido, nunca é demais
lembrar, pela “pobre declaração dos direitos do homem”), ela remete à “única lei do
mundo” enunciada no Manifesto: “Só me interessa o que não é meu”. Além disso, ao
não defender exatamente a “abolição do título morto”, mas o contato com ele, a teoria
antropófaga do Direito visa minar a estrutura de subsunção que garante o nexo entre a
lei e a sua aplicação: falsificando os títulos, dando vida ao que é morto, ela não
advoga somente a correta aplicação da lei, um uso mais justo do título, mas a
desativação da ideia de autenticidade e, portanto, da possibilidade de subsunção. Por
fim, a possibilidade de não aplicação do Direito é encontrada na própria história deste:
o Direito Antropofágico é, ao mesmo tempo, utopia (futuro) e sempre presente
(passado).

8. Provavelmente a formulação mais detalhada do Direito Antropofágico esteja no


“Esquema ao Tristão de Ataíde”, de autoria de Oswald:

Saberá você que, pelo desenvolvimento lógico de minha pesquisa, o


Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em
Tordesilhas (…).
O fato do grilo histórico (donde sairá, revendo-se o nomadismo
anterior, a verídica legislação pátria) afirma como pedra do direito
antropofágico o seguinte: A POSSE CONTRA A PROPRIEDADE.

Ou seja, como vimos, o Direito Antropofágico teria como principal “instituto” a


grilagem, uma (suposta) transgressão às normas de propriedade. Contudo, não se trata
simplesmente disso, afinal, o grilo estaria sancionado pela própria prática histórica
daqueles que deveriam condená-la, daqueles que deveriam seguir “a lei das doze
tábuas” que trouxeram em suas caravelas, conforme lemos no mesmo texto. Aqui, o
“instinto antropofágico” informa uma “consciência jurídica nativa”: a de que a lei, o
título, se funda sobre uma facticidade para além do direito (um puro apossamento), e
de que toda autenticidade se funda sobre o inautêntico. Sem a facticidade, a lei não
10

passa de letra morta. O que então (e ainda hoje) aparecia como crime, o grilo –
ocupação e falsificação de título de propriedade –, era apresentado justamente como a
origem da ordenação que o proíbe. É evidente o teor crítico da teoria (em que trata-se
de subverter a subsunção), pois segundo ela, a lei busca converter, ad hoc, em título
de propriedade, algo (a posse) que não pode ser subsumido a ela. Assim, lemos numa
entrevista de Oswald:

O direito antropofágico tem as suas raízes nas leis cósmicas que nos
condicionam.
A lei da gravidade nos garante a posse de um pedaço do
planeta, enquanto vivermos.
Disso à noção de propriedade, de título morto, de latifúndio e
de herança, nunca! Somos contra tudo isso. Mas a posse é
respeitável, garantida pelo valor de quem possui e pela vitalidade de
quem sabe guardar.
Não fosse o Brasil o maior grilo da história – um grilo de
milhões de quilômetros talhados no título morto, de Tordesilhas
(Andrade, 2009: 83-4; grifos nossos).

É na crítica ao modo como a posse se transforma em propriedade, ou melhor, é na


crítica à própria transformação da posse em propriedade que se assenta a raiz, a
radicalidade, do Direito Antropofágico.

§ A “posse de um território” garantida pela lei da gravidade, conforme aponta


Beatriz Azevedo (2016: 122), é necessariamente “transitória, nômade, diga-se, já
que ao nos movimentarmos essa ‘lei’ irá conosco”, não se enrijecendo no direito
de propriedade, pelo contrário, garantindo a posse contra um título morto.

9. O “Esquema” retoma, citando explicitamente, uma carta de Raul Bopp ao psiquiatra


Jurandyr Manfredini, que a publicou na última de uma série de crônicas antropófagas,
em 2 de setembro de 1928 na Gazeta do Povo, de Curitiba (a carta se encontra
transcrita nos Anexos a este livro). Antes da passagem citada por Oswald, Bopp
apresentava o “clube de Antropofagia”, que também chama de “movimento
antropofágico”, e a “revista grossa!”, conclamando Manfredini a participar desta “fase
de construção”, que, frisava, era “coisa séria.” Era preciso “levar a sério esse estudo”,
que consistiria em
Uma revisão cultural (nada de “blague”), estudar a precariedade do
direito manuelino, etc. em face da antropofagia – o grilo –, isto é, a
posse contra a propriedade. Isso que é a verdade… O grilo contra a
herança dos latifúndios. “Uti possedetis” contra a bula “inter
coetera” e o Tratado de Tordesilhas.
O Brasil é um grilo. O papa dividiu o mundo em 2 fatias com a
linha das Tordesilhas.
Comemos o resto do Território. Aí está a lição do nosso direito.
Devemos nos plasmar nessas origens históricas.

A seriedade da teoria, portanto, não pode ser menosprezada. Tampouco a importância


do Direito Antropofágico para a compreensão da Antropofagia. Como sublinharia mais
tarde o mesmo Bopp (2009: 66), foi a partir da teoria da posse contra a propriedade
que se iniciou a chamada terceira dentição da Antropofagia, os preparativos para o
Congresso:
11

Procurou-se, de início, firmar o conceito antropofágico de nosso


País. “O Brasil era um grilo.”
A ideia de posse contra a propriedade veio tomando evidências
de lei. Podia-se fazer a prova dos nove com a nossa História: as
demarcações do Tratado de Tordesilhas nunca foram observadas. O
loteamento do Brasil, em capitanias hereditárias, não assegurou o
registro de propriedade aos respectivos donatários. O estatuto do uti
possidetis tinha mais força que documentos pontifícios e outras
legitimações de propriedade.

Ao fim e ao cabo, a grilagem definiria a história nacional: uma grilagem dupla, aliás,
na medida em que, por um lado, o próprio Tratado de Tordesilhas era um título
grilado, pelo qual os reinos da península ibérica forjavam a autenticidade da sua
propriedade sobre a terra dos autóctones; e que, por outro, Portugal ocupara o que
deveria ser, pelo Tratado, território espanhol. O intrigante é que a argumentação de
Bopp, como a de Oswald no “Esquema”, não contraria o Direito posto, mas o
confirma: o Tratado de Tordesilhas não contraria as ordenações manuelinas, mas as
fundamenta. De fato, o “estatuto do uti possidetis” evocado por Bopp é um princípio
do direito romano segundo o qual quem ocupa continuará ocupando (o que significa:
quem ocupa de fato ocupa de direito): uti possidetis, ita possideatis. Além disso, foi o
princípio evocado constantemente pelas potências europeias colonizadoras nas
disputas que travavam entre si pela propriedade das terras do chamado Novo Mundo:
com base nele, desde logo, a posse portuguesa foi contestada pela França, e Portugal,
por sua vez, invocaria o mesmo adágio para reivindicar a mudança das fronteiras
traçadas pelo Tratado de Tordesilhas – o que resultou no Tratado de Madri de 1750 (a
segunda grilagem de Portugal), consagrando o diplomata barroco Alexandre de
Gusmão. As diversas cerimônias de posse, culturalmente diferenciadas entre si, que
aparentemente davam legitimidade interna à ação das nações apossadoras (Seed,
1999), fornecendo-lhes um título, serviam, na verdade, para tomar dos indígenas o
direito de se opor ao Direito. As cerimônias davam aos colonizadores o monopólio de
tal direito, a saber, o direito a usar a facticidade contra o direito alheio. Que o
apossamento do Novo Mundo não tenha por si só fundamento jurídico algum se
revela na mais rigorosa obra jurídica que propôs tratar o Direito Público Europeu
nascido com a conquista, O nomos da Terra, de Carl Schmitt. Ali, além de ancorar
toda ordem jurídica em uma “tomada da terra”, o jurista justifica a apropriação do
Novo Mundo por uma vaga e suspeita “superioridade espiritual” (a “prova” desta é
que ameríndios não poderiam ter descoberto a Europa, não tinham ciência e
cartografia que lhes conferissem uma visão global da terra): “A superioridade
espiritual se encontrava plenamente do lado europeu, e de um modo tão radical que o
Novo Mundo pôde ser simplesmente ‘tomado’” (Schmitt, 2005: 124). No prototexto
de O nomos da Terra, intitulado Terra e mar – uma reflexão sobre a história
universal, contada à filha de Schmitt, Anima, nos deparamos com outra tradução para
essa “superioridade espiritual”. Nas disputas pelas terras do Novo Mundo, relata
Schmitt, as potências europeias recrutavam indígenas, muçulmanos, matavam
mulheres e crianças, acusavam-se mutuamente de criminosos e assassinos para
justificar as hostilidades. Todavia, essa disputa não impedia que houvesse um limite,
segundo a narrativa schmittiana: “Somente uma ofensa omitiam entre si, uma ofensa
que era empregada com singular predileção contra os índios: os europeus cristãos não
acusavam uns aos outros de praticar a antropofagia” (2007: 60).
12

§ Segundo Schmitt, a ordenação que regia a Europa medieval não era um


autêntico Nomos da Terra, pois lhe faltava o caráter universal: a Respublica
Christiana se limitava a dispor a partir de e para o território europeu. Um
verdadeiro Nomos abarcando o “mundo” todo, a formação, pela primeira vez na
história da “humanidade”, de um Direito Internacional Global, só teria se
instaurado a partir da tomada do “Novo Mundo” pelas potências européias em
seu projeto colonialista, fundando o Jus publicum europaeum que vigorará pelo
menos até o século XIX. A globalização, enquanto fechamento do mundo em um
globo, implicou, portanto, a periferização. Porém, mais do que isso, a inclusão
do mundo não-europeu se deu pela não aplicabilidade da lei ali, ou seja, o Novo
Mundo foi incluído no Direito Público Europeu – de cuja tradição Schmitt se
considera o último herdeiro – como área, junto com o mar, onde não vigora esse
próprio Direito, ou seja, como “‘tomada do fora’, exceção (Ausnahme)”, nas
palavras de Agamben (2002: 27): traça-se uma linha, antes da qual a guerra é
mitigada e sujeita ao ius in bellum (Europa) e depois da qual o confronto não tem
a menor restrição (os oceanos e o “Novo Mundo”) “um espaço delimitado, livre
e vazio” (Schmitt, 2005: 83). Sendo gentios, os povos indígenas da América
estavam excluído do direito das gentes (ius gentium), outro nome do direito
inter-nacional: “Daqui destas bandas do Mar-oceano só mandaram perguntar
uma vez se o ‘Gentio’ também era gente…”, dirá Bopp em “Brasil, choca o teu o
ovo… – Excerto dos ‘Trezentos versículos antropofágicos’”, publicado no
Diário da Manhã de 18 de agosto de 1929. Por isso, o título que, para Schmitt,
fundamentou a tomada colonialista não era nem mesmo a ocupattio, mas o
“descobrimento”, baseado na referida “superioridade espiritual” dos europeus.
Mas, oswaldianamente, se poderia dizer que sem nós, a Europa não teria sequer
seu pobre Direito Internacional Público. Pobre porque a posse, a tomada,
regia-se pela lógica da propriedade, do colonialismo. Pobre porque mesquinha,
porque a não-aplicação da Lei era restrita ao mar e ao Novo mundo, legitimando
o genocídio americano: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de
exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história
que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real
estado de exceção” (Benjamin in Löwy, 2005: 83). E aqui, outro sentido do
aforismo do Manifesto que parafraseamos vem à luz: sem o nosso sangue (o
sangue indígena), a Europa não teria sequer sua pobre “mansão das liberdades
modernas” (para fazer uso da expressão de Chakrabarty [2013: 11]: “A mansão
das liberdades modernas repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis
em permanente expansão”). Pobre porque amparada na colonização de gentes e
gentios, terras e espécies, (derramamento de) sangue e (destruição de) solo,
geno- e ecocídio, na devastação sócio-ambiental de mundos, na conversão do
Novo mundo em um mundo “fora da ordem mundial”, no qual, como dirá
Caetano Veloso retomando os Tristes Trópicos de Lévi-Strauss, “tudo parece /
que era ainda construção / e já é ruína”.

§ O relato de Schmitt citado acima é, evidentemente, parcial – sem deixar, por


isso, de ser didático (lembremos que se trata de um texto escrito para sua filha).
Nas guerras civis religiosas, bem como em suas disputas pelas terras americanas,
os europeus não cessaram de acusar uns aos outros de canibalismo. Contudo,
isso não quer dizer que a prática da antropofagia entre os ameríndios não tenha
sido um forte mote que justificou a empreitada colonizadora, o “argumento
principal da apologia histórica, jurídica e filosófica da Conquista”, nas palavras
de Carlos Jáuregui (apud Amorim Izabel, 2019: 12). Talvez se possa afirmar que
as construções doutrinárias religiosas e laicas – que duraram pelo menos até o
começo do século XX – a respeito da falta de alma, da incapacidade civil e da
falta de organização política dos indígenas, serviram para evitar que a ausência
de um fundamento ao sistema da propriedade colonizadora viesse à tona,
13

deixando imaculada uma linha temporal da propriedade: não sendo sujeitos (de
direito), os indígenas não poderiam jamais ter sido donos daquelas terras que
cabiam, então, a quem primeiro as ocupasse.

10. A prática do canibalismo entre povos ameríndios, mesmo quando inexistente,


servia, no projeto colonial, para tendencialmente excluí-los da humanidade (europeia),
afinal, que homem come outro?; uma exclusão, ademais, tomada como auto-exclusão:
os índios não reconheceriam nem sua humanidade comum, comendo-se uns aos
outros. A cena paradigmática dessa atitude encontra-se no diálogo entre Hans Staden
e o chefe guerreiro Cunhambebe. No relato do viajante, o índio oferece uma perna
humana que está mastigando ao viajante alemão, e este, horrorizado, retruca: “Um
animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro
homem?” (Staden, 1974: 132). E o diálogo se converte em disputa pelo sentido
mesmo do que se deve entender por “humanidade” quando Cunhambebe desloca a sua
própria posição: “Jauára ichê (Eu [sou um] jaguar [onça])”, ou seja, não sou um
homem (comendo um semelhante), não sou um canibal, embora seja um antropófago.
A antropofagia ritual não consistia, portanto, em negar a condição humana do
devorado, mas em estranhar a sua própria (do devorador), ou melhor, em situar a
humanidade como atributo não substantivo, mas perspectivo. “O chefe Tupinambá”,
comenta Eduardo Viveiros de Castro (1986: 621, 625, 626; grifos no original),

não disse que aquilo que comia não era humano, que era uma coisa,
um outro que ele, um animal. Não; ele disse: eu não sou “Humano”
(…). Falando do que comia, falando do que fazia, o guerreiro
canibal Tupinambá determinou a sua perspectiva, o lado em que
estava, a direção para a qual se deslocava: ele era um jaguar, porque
seu alimento era um homem (…). O “modo de falar” de
Cunhambebe determinava seu modo de comer, que era modo de
pensar (…). De resto, Cunhambebe não disse ser um jaguar, visto
que em sua língua o verbo “ser” não funciona como cópula
proposicional; propôs apenas: jauára ichê, jaguar eu.

Desse modo, podemos entender melhor como o jogo entre particular e universal é
transversalizado pelo par homem-antropófago no Manifesto. Em primeiro lugar, se
nele o antropófago aparece como termo mais abrangente, “universal”, é porque a
(in-)humanidade negada dos índios canibais aparece como abrangendo a humanidade
dos que a negaram: foram os europeus que não reconheceram o antropófago em si, e
não os antropófagos que não reconheceram o homem no outro – eis uma das lições de
Montaigne. “Todo mundo sabe”, dirá Oswald, “o conceito deprimente de que se
utilizaram os europeus para fins colonizadores”: “um conceito cristão de vida que
reservava para o branco o privilégio de ter alma” (Andrade, 2011b: 372). Lembremos,
a propósito, a famosa “anedota das Antilhas”, de que Lévi-Strauss (2013: 364) lançou
mão em Raça e história (e também nos Tristes trópicos): “Nas Antilhas, alguns anos
após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis despachavam comissões de
inquérito para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes tratavam de
submergir prisioneiros brancos, para verificar, com base numa longa e cuidadosa
observação, se seus cadáveres apodreciam ou não”. Ou seja, “os europeus nunca
duvidaram de que os índios tivessem corpo (os animais também os têm); os índios
nunca duvidaram de que os europeus tivessem alma (os animais e os espectros dos
mortos também as têm)” (Viveiros de Castro, 2015: 37; cf. Valentim, 2018).
Segundo, o termo “antropófago” designa aquele ser que come homens, seja ele
14

humano ou não, de modo que a “Lei do antropófago” é mais ampla que a do


“homem”. Por fim, como argumenta Beatriz Azevedo (2016: 112), a forma mimetiza
o conteúdo, pois “o termo antropófago já contém em si o homem (antropos)” – até
morfologicamente, o antrpófago devora o homem… Em resumo, trata-se de contrapor
a noção ocidental de humanidade por outra, inspirada na cosmologia antropófaga
ameríndia: “O canibalismo é uma crítica animal da Sociedade” (Viveiros de Castro,
1986: 696). Daí que o Manifesto proponha um deslocamento, um deslocamento do
que é o sujeito, que se manifesta no deslocamento de quem é o sujeito de enunciação
do próprio Manifesto: não o “homem”, mas, como apontou Gonzalo Aguilar (2010:
45), aquilo que “chama de ‘o vivente’”, o antropófago, aquele que devora a
(concepção da) “humanidade” europeia.

§ O relato de Staden servirá de bordão e borduna ao movimento antropófago,


que chegou, em “Brasil, choca o teu o ovo…”, a alcunhar o Brasil de “a terra de
Cunhambebe”. Tendo sido mobilizado por Oswald mesmo antes da Antropofagia
(cf. Azevedo, 2016: 36 e ss), ele estará presente já no brainstorm, “o jogo
divertido de idéias” que a originou no “Restaurante das rãs”, segundo Bopp
(2009: 58): “Citou-se logo o velho Hans Staden e outros estudiosos da
antropofagia: ‘Lá vem a nossa comida pulando!’”. A famosa frase, que teria sido
dita pelos cativadores de Staden quando da chegada de um prisioneiro que seria
devorado, aparece já na primeira página do número inaugural da Revista, como
se fosse seu slogan, seu grito de guerra: “Ali vem a nossa comida pulando”.
Além disso, parece formar um par com Cunhambebe, a figura invertida do Bispo
Sardinha, cuja deglutição pelos Caeté constitui o marco zero da datação
antropófaga instituída pelo Manifesto:

O dia em que os aimorés [sic] comeram o bispo Sardinha deve constituir, para nós,
a grande data. Data americana, está claro. Nós não somos, nem queremos ser,
brasileiros, nesse sentido político-internacional: brasileiros-portugueses, aqui
nascidos, e que, um dia, se insurgiram contra seus próprios pais. Não. Nós somos
americanos; filhos do continente América; carne e inteligência a serviço da gleba.
O fim que reservamos a Pero Vaz Sardinha [sic] tem uma dupla interpretação: era,
a um tempo, a admiração nossa por ele (representante de um povo que se
esforçara por derrubar aquele presente utópico, que foi dado ao Homem ao nascer,
e que se chama Felicidade) e a nossa vingança. Porque, que eles viessem aqui nos
visitar, está bem, vá lá; mas que eles, hóspedes, nos quisessem impingir seus
deuses, seus hábitos, sua língua… isso não! Devoramo-lo. Não tínhamos, de resto,
nada mais a fazer (Andrade, 2009: 66-67).

Se, por um lado, o chefe indígena enquanto devorador afirma sua animalidade
(seu devir-onça), por outro, o sobrenome do primeiro bispo do Brasil também
remete, agora enquanto devorado, à esfera animal: “com este nome, Sardinha,
mas o que é que você queria?!”, comenta Beatriz Azevedo (2016: 183),
sublinhando a “afirmação do humor oswaldiano” (ironicamente, o bispo que
substituiria Sardinha se chamará Dom Pedro Leitão). A diferença, equivalente
àquela entre matador e cativo, não é, assim, substantiva (humano / animal), mas
posicional e, portanto, reversível: predador (onça) \ presa (peixe) – sobre a barra
invertida, cf. mais abaixo. Isso fica claro na exegese oswaldiana recém-citada, a
sua dupla interpretação da cena inaugural, em que a vingança caeté inverte a
posição superior dos invasores sem negar a “admiração”. O contraste com a
versão portuguesa não poderia ser maior, mesmo que os termos da animalidade e
da vingança também apareçam nela, embora sobrecodificadas de modo muito
distinto. Na sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil e do que
obraram seus filhos nesta parte do novo mundo, de 1663, Simão de Vasconcelos
15

(1865: XLVIII) se refere por duas vezes à captura e destino de Sardinha. Na


primeira, o ato é caracterizado como desumano:

Em uma enseada, junto a este rio, alguns anos depois, sucedeu o triste desastre do
naufrágio do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando
n’ela à costa, foi cativo dos Índios Caetés, cruel, e desumanos, que conforme o
rito de sua gentilidade, sacrificaram à gula, e fizeram pasto de seus ventres, não só
aquele santo varão, mas também a cento e tantas pessoas, gente de conta, a mais
d’ela nobre, que lhe faziam companhia voltando ao Reino de Portugal.

Na segunda, mais detalhada, mas que só pode ser lida a partir da anterior,
aparece o par preadador/presa, na forma lobo/ovelha:

Não posso deixar de contar aqui (suposto que repugne a pena) o sucesso mais
triste, que até estes tempos viram as partes do Brasil, e choraram os Portugueses
d’elle. Foi este o naufrágio, e morte cruel de D. Pedro Fernandes Sardinha, Bispo
primeiro d’este Estado, e dos que com ele navegavam. Chegara este grande
Prelado à Bahia de Todos o Santos, cabeça de sua diocese, no princípio do ano de
1552, e procedera com o zelo, e aceitação que n’aquele ano tocamos: até que no
presente em que imos (não sei se chamado do Céu, se do Rei: dizem alguns, que
da melhoria das almas) se embarcou pera Portugal em companhia de Antonio
Cardoso de Barros, Provedor-mor que fora do Estado, e de outras pessoas nobres,
que levavam famílias de mulheres, e filhos. Deram à vela nos primeiros de Junho;
e havendo navegado quatorze dias, armou-se contra eles o horizonte com fera
tempestade de ventos de travessia envoltos em escuridão, trovões, e relâmpagos;
tão furiosa, que logo se deram por perdidos; porque distava perto a terra, e não
podia contrastar a nau a fúria dos mares. Mandou ferrar o piloto o pano; e quando
quiseram lançar ferro ao mar (remédio único de suas esperanças) tendo a amarra
entre mãos, lavou o convés tal pancada de mar, que levou consigo âncoras, e
amarras, e faltou pouco que não levasse os pobres navegantes. A tudo se achava
presente o santo Prelado, e vendo as poucas esperanças que restavam de vida
(porque já iam avistando as praias, e para elas levavam a nau como conjurados
águas, ventos, e mares, que batiam furiosamente o costado) posto de joelhos,
depois de exclamar ao Céu, começou uma prática aos companheiros, porém não
acabou; porque foi atalhada com confusão de vozes, e alaridos dos tristes
navegantes, que viam a nau ir descaindo sobre um disforme penedo que por entre
as nuvens, e relâmpagos então mal divisavam, mas logo conheceram às claras,
indo dar obre ele, e fazendo miserável naufrágio, no baixos chamados de D.
Francisco (…). Porém aqui (oh fereza de corações humanos!) quando os ventos,
mares, e penedos deram como perdão aos afligidos naufragantes, saindo a terra,
uns a nado, outros em o batel, todos debilitados, quase no último alento, a mãos
de selvagens chamados Caetés, que naquela paragem habitavam, acabaram as
vidas com naufrágio muito mais desumano. Em vendo estes o destroço da nau do
alto de suas serranias, desceram às praias, a aguardando ali fingiram-se amigos,
mostrando compadecer-se de seu estado; levaram-nos a hospedar as sua pequenas
choupanas, fizeram fogo, trouxeram mantimento, alentaram os corpos debilitados;
mas com cautela atraiçoada, porque fizeram no mesmo tempo aviso a seus
circunvizinhos para o que haviam de obrar, e veremos logo. O coração do homem
é leal, e mais em ocasiões de tanto aperto. Nunca se deram por seguros os pobres
Portugueses: olhavam para os hóspedes, pareciam-lhes feras tragadoras; para os
quintais de suas pousadas, viam rumas de ossos, e caveiras de mortos, sinais dos
muitos que tinham comido, insígnias prezadas de seu esforço, e valentia. Eles em
quantidade inumeráveis, os nossos poucos, o mais mulheres, e meninos,
desarmados, e alguns sem camisa, assim como o mar os deixara. Faziam da
necessidade virtude, cariciavam os que conheciam por mortais inimigos,
mostravam-lhes sinais de agradecimento debaixo de tão fundados arreceios.
Despediram-se ultimamente de seus hóspedes, e foram seguindo o caminho
que eles lhes mostraram a fim de seu engano. Eis que chegando ao descoberto das
praias, junto a um rio, que de força haviam de passar, saem de emboscada
16

chusmas de ferozes selvagens, atroando aquelas enseadas com seus costumados


alaridos (menos bastava para um exército tão fraco.) Caíram logo desmaiadas
mulheres, e crianças com vista tão terrível. Dos homens poucos podiam ter-se em
pé: fizeram aquela gente fera dos peitos imóveis alvo de suas flechas, e das
cabeças prova de suas maças, sem resistência alguma. Iam matando uns, e outros
carregando, qual caça do mato, para fazer banquetes a toda a sua gente. Oh tigres
hircanos! Que crueldade vossas não viram hoje estas avaras praias? Nem choros
das crianças, nem abraços das mães, nem despedidas tristes dos desposados, pais,
e filhos, comoviam aqueles peitos duros (…).
Resta porém o caso mais triste. Tinha passado o rio em balsa o Prelado, e
estava vendo da outra parte toda esta tragédia sanguinolenta, ouvindo os alaridos
dos lobos feros, e os balidos das ovelhas mansas, que a seus dentes acabaram, e
padecia outra tantas lançadas em seu coração: quando pregado com os olhos no
Céu, e consultando o que faria, saíram do mar às ribeiras do rio multidão dos
mesmos selvagens nadadores, que em busca d’ele, e dos que o levaram, tinham
passado. Significaram-lhe estes por acenos, que era aquele o grande Prelado dos
Portugueses, Sacerdote consagrado a Deus, que havia tomar vingança de seus
excessos. Não penetrava porém coisa alguma tão duros corações: deram com uma
maça no santo Prelado, abriram-lhe a cabeça pelo meio. O mesmo fizeram aos
companheiros, e levaram-nos para pasto prezado de seus ventres, e seus ossos por
insígnia de tão grande façanha. E este foi o fim do primeiro Bispo do Brasil D.
Pedro Fernandes Sardinha (ibid.: 123-125).

Aqui, o devir-onça (“Oh tigres hircanos!”) serve para desumanizar o outro: a


ferocidade, primeiro atribuída ao desastre natural (“fera tempestade”), logo
passa a caracterizar os Caeté (“ferozes selvagens”, “gente fera”), comparação
feita em prejuízo desses (seres de “peitos duros”, “duros corações”, incapazes de
se comover), que produzem um “naufrágio muito mais desumano” que aquele
literal provocado pelo temporal. São feras inumanas que abatem e devoram as
ovelhas humanas (esses pobres conquistadores catequistas…). Que a ameaça da
vingança divina não tenha vingado, mas provavelmente produzido o efeito
contrário de estimular a consumação canibal (verdadeiro “erro de português”)
não deveria surpreender o jesuíta, que em passagem anterior da mesma crônica já
observara como era a própria lógica da vingança infinda – e recíproca – que
guiava a antropofagia:

O que eu tenho para mim é, que cresce neles este grande desejo de pequenos, à
medida do que tem de vingar-se de seus inimigos: e como é o sumo da vingança
comer-lhe as carnes, daqui vem que à medida do gosto da vingança nasce com
eles o da comida. (…) a mor glória a que pode chegar nesta vida um homem
valeroso, é cativar vivo na guerra um contrário seu, trazê-lo preso, matá-lo, e
comê-lo depois em terreiro, com aquelas suas gentílicas cerimônias de que usam,
de metê-lo em ceva, entregá-lo a velhas que o engordem, sinalar-lhe dia solene,
convidar parentes, e amigos, vestir-se das galas mais finas de suas penas, sair com
ele a terreiro, jugar-lhe as feridas, e deixá-lo morto no campo a som de aplausos, e
vivas (…). E nesta ação tem para si consiste o mor grau de nobreza de suas casas,
e famílias; tanto mais excelente, quantos mais foram os cativos, mortos, e
comidos, na forma referida (ibid.: 33).

11. Quando se iniciou aquilo que Pierre Clastres (1982) chamou de “mau encontro”,
a descoberta/conquista, a primeira (e/ou principal) coisa observada pelos europeus a
respeito dos povos do Novo Mundo foi a falta, sintetizada pela ausência de
reconhecimento da condição humana pela prática canibal: os índios apareciam, aos
olhos dos invasores, como um reflexo, em negativo, da civilização ocidental. Seja na
longuíssima lista do famoso ensaio de Montaigne, à qual voltaremos, seja na sintética
e lapidar formulação de Gabriel Soares de Sousa, que a reduz a uma questão
17

gramatical, quase sempre o ameríndio (e o) canibal figura(m) como o europeu


desnudado, o europeu menos a série de adições que caracterizaria a civilização (a
começar pela roupa: “mas, que diabo, essa gente não usa calças!” [Montaigne, 1961, I:
269]), incluindo as palavras que as nomeariam:

Têm muita graça quando falam, [relata Gabriel Soares sobre os


Tupinambá], mormente as mulheres; são mui compendiosas na
forma da linguagem, e muito copiosos no seu orar; mas faltam-lhes
três letras das do ABC, que são F, L, R (…), coisa muito para se
notar; porque, se não têm F, é porque não têm fé em nenhuma coisa
que adorem; nem os nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos
padres da Companhia têm fé em Deus Cristo Nosso Senhor, não têm
verdade, nem lealdade a nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se
não tem L na sua pronunciação, é porque não têm lei alguma que
guardar, nem preceitos para se governarem; e cada um faz a lei a
seu modo, e ao som da sua vontade; sem haver entre eles leis com
que se governem, nem têm leis uns com os outros. E se não tem R
na sua pronunciação, é porque não têm rei que os reja, e a quem
obedeçam, nem obedecem a ninguém, nem o pai ao filho, nem o
filho ao pai, e cada um vive ao som da sua vontade (Sousa, 2010:
293).

Modos de vida totalmente outros foram vistos como uma imagem invertida no
espelho – o artefato ontológico por excelência do Ocidente (cf. cap. 2, infra). O
antropófago era o homem sem qualidades, sem propriedades: “Entre selvagens”,
escreve Adam Smith (apud Landucci, 1972: 421), “a propriedade começa e termina
na posse”. E, sem nada de próprio (material e espiritualmente), “sua inconstância (...)
é proverbial”, como dirá Melville séculos depois a respeito de outros outros, os do
Novíssimo Mundo. E a ausência de propriedade, de estabilidade, ligava-se a outra
falta, a da autoridade, a do Estado, pois, afirma Daniel Defoe (apud Schmidgen, 2004:
50), “A propriedade é o fundamento do poder”. Diante dessa concepção que
(auto-)autorizava os europeus a simplesmente “tomarem” a terra, já que ela era sem
dono, o gesto de Oswald e seus companheiros, análogo ao de Cunhambebe, consistirá
em converter essa negatividade, na forma de uma ausência, em uma subtratividade,
na forma de uma retirada ativa, em converter uma posse sem propriedade em uma
posse contra a propriedade.

§ As definições negativas dos ameríndios não deixarão de comparecer nas


elaborações da vanguarda canibal. Contudo, a inversão ou subversão do sentido
das ausências fica patente quando são retomadas e reviradas, especialmente em
um dos textos capitais da Revista de Antropofagia, assinado por Marxillar e
intitulado “Porque como”:

(O índio é que era são. O índio é que era homem. O índio é que é o nosso
modelo).
O índio não tinha polícia, não tinha recalcamentos, nem moléstias nervosas,
nem delegacia de ordem social, nem vergonha de ficar pelado, nem luta de classes,
nem tráfico de brancas, nem Rui Barbosa, nem voto secreto, nem se ufanava do
Brasil, nem era aristocrata, nem burguês, nem classe baixa.
Porque será?
O índio não era monógamo, nem queria saber quais eram seus filhos
legítimos, nem achava que a família era a pedra angular da sociedade.
Porque será?
*
18

Depois que veio a gente de fora (porque?)[,] gente tão diferente (porque
será?)[,] tudo mudou, tudo ficou estragado. Não tanto no começo, mas foi ficando,
foi ficando. Agora é que está pior.
*
Então chegou a vez da “descida antropofágica”.
Vamos comer tudo de novo.

A resposta à pergunta repetida retoricamente quase como um mantra e de forma


debochada (a ironia está em apontar que a resposta, no fundo, é óbvia), “Por que
será?” (por que será que os índios não tinham nada disso?), está no próprio título:
é porque comiam, porque devoravam a polícia, o falso moralismo, a
estratificação em classes, etc. (não tinham porque o comiam, e não porque
faltava), ou seja, é porque a Antropofagia, enquanto cosmopolítica e
cosmopráxis, impedia a formação do Estado, se dava como uma operação ativa
contra a instituição disso que foi fazendo tudo ficar “estragado”. Daí a
necessidade de “comer tudo de novo”: como porque não quero ter mais isso,
como porque a Antropofagia é o modo de se livrar disso. Como aponta Gonzalo
Aguilar (2010: 16-17; grifos no original),

Oswald utilizou o índio (a figura do índio) para fazer a crítica do Estado (…). A
separação fundamental de Oswald com relação ao romantismo não está tanto na
mudança do signo usado para a valoração do índio (do bom selvagem ao mau
selvagem), mas em separar o índio do Estado. Na realidade, mais que separá-los,
os opõem: o índio surge, assim, como a garantia anti-estatal da política (…).
Trata-se, então, de passar violentamente de um paradigma a outro e daí a
necessidade do ato vanguardista: do índio que está subordinado ao Estado-Pai,
forjado durante o reinado de Dom Pedro, ao índio que mobiliza a sociedade
contra o Estado (ideia que Pierre Clastres enunciou posteriormente, mas que
ilustra perfeitamente a operação antropofágica).

E, de fato, como veremos ao longo deste livro, a Antropofagia não deixa de ser
uma teoria clastreana antes de Clastres, do que é índice não só o uso recorrente
de “Contra” no Manifesto (“Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos
Gracos”; “A reação contra o homem vestido”; “Contra as elites vegetais”, etc.),
mas também outras formulações, como essa de Raul Bopp (2009: 73-74), citando
o relato de um indigenista, sobre a “Índole Pacífica do Gentio”, prática que ficou
conhecida como votar com os pés:

O chefe de uma tribo, por atributos sobrenaturais, tinha poderes soberanos,


marcadamente legítimos dentro de uma determinada área (por exemplo, a situada
entre dois rios confluentes). No momento, porém, que o grupo ficava desgostoso
com o chefe (por uma conduta tirânica ou por não haver cumprido o que prometeu)
os componentes do clã não iam tramar uma revolução ou sublevação para
usurparem o poder. Nada disso. Toda a tribo, simplesmente, se deslocava para
outro lugar, fora dos limites de sua jurisdição, e deixava o chefe sozinho.

Quase meio século depois, o que era uma intuição dos antropófagos a ser
aprofundada em estudos que acabaram não sendo levados a cabo, constituirá o
ponto de partida da “antropologia política” de Pierre Clastres (2003: 172; grifos
no original): não só o chefe pode ser abandonado, como a própria instituição da
chefia indígena é ausente de qualquer coercitividade: “O chefe bastante louco
para cogitar não tanto no abuso de um poder que ele não possui, quanto no
próprio uso do poder, o chefe que quer bancar o chefe, é abandonado: a
sociedade primitiva é o lugar da recusa de um poder separado, porque ela própria,
e não o chefe, é o lugar real do poder”. Talvez aqui encontramos um direito
invertido, que não está no proprietário, mas naquilo/naqueles que ele possui (um
contra-direito, uma recipropriedade): um desuso, o direito de (ativamente)
19

desusar o uso/usufruto do proprietário. Afinal, o chefe não manda porque o uso


da chefia é desusado pelos chefiados.

§ Por outro lado, o Manifesto não cessa de apontar o que “Já tínhamos” (“nós da
América – nós, o autóctone: o aborígene” [Andrade, 2009: 66]) antes da
Conquista: o “comunismo”, a “língua surrealista”, “A idade de ouro”, “a relação
e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários”,
“adivinhação”, “a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da
Magia”, “Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário”,
etc. Os antropófagos pareciam, assim, saber que “[q]uando o espelho não nos
devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar”
(Clastres, 2003: 35). Devorar o padrão ocidental tornava possível, assim, ver
uma multiplicidade onde antes se via apenas a si mesmo em negativo: “Estamos
recrutando fatores postos à margem. Forças escondidas. Mal apalpadas. Que
ainda não couberam no sistema métrico ocidental. Índio” (Bopp, 2009: 108).

§ A relação entre ausências (gramaticais e institucionais), ou melhor, o “jogo de


correspondências fônico-morais” (Alcides, 2009: 39) traçada por Soares
(retomada por Oswald em conferência sobre “A sátira na literatura brasileira”,
proferida em 1945 [Andrade, 2011b: 104]) e que teria ainda uma larga fortuna,
provém, ao que tudo indica, de Gândavo (2008: 134): “A língua de que usam”,
diz ele, “carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R,
cousa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, e desta
maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta, nem peso, nem
medida”. E também ela sofrerá uma reviravolta na boca dos antropófagos. Assim,
a ausência gramatical que Oswald mobiliza não é fônica, mas sintática: a
ausência do verbo ser, ao menos como cópula proposicional, nas línguas
tupi-guarani. “O índio”, lemos na Revista, “não tinha o verbo ser. Daí ter
escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do homem paleolítico um
cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal moralizado.
Um sabiozinho carregado de doenças”. Em uma entrevista, a mesma ideia
reaparece, agora associada à ausência de gramática (diz o Manifesto que “nunca
tivemos gramáticas”, ma que “sabíamos transpor o mistério e a morte com o
auxílio de algumas formas gramaticais”, apontando que o problema está no
caráter normativo, na pretensão de legislar sobre a língua que subsume a
multiplicidade de usos a um só): “A gramática é que ensina a conjugar o verbo
ser e a metafísica nasce daí, de uma profunda conjugação desse verbinho. Não se
sabendo gramática...” (Andrade, 2009: 287). Não é um acaso, portanto, como
nota Gonzalo Aguilar (2010: 20), que, “Suprimido o verbo ser, começam a
pulular no manifesto uma série de verbos (ou mesmo de construções nominais),
tais como ‘interessar’, ‘unir’, ‘fazer’, ‘amar: uma dinâmica do desejo que
substitui a posse pela posição, a posse do ser e das coisas pelo interesse pelo que
não se tem, as definições metafísicas pelas relacionais, as identidades fixas pela
metamorfose” (escusado dizer que, no contexto da citação, “posse” equivale à
propriedade). Como no texto de Marxillar, a “ausência” (aqui, do verbo ser) é
subvertida num mecanismo que ativamente impede a formação do que
supostamente “falta”. E mais: a questão social se torna imediatamente ontológica
(o que esmiuçaremos nos capítulos subsequentes). É como se Oswald tivesse, de
forma sintética, visto uma relação, que só meio século depois a etnologia
americanista estabeleceria de forma mais robusta, entre a (“des”-)organização
política anti-estatal de povos indígenas e uma ontologia em que “o devir e a
relação prevaleciam sobre o ser e a substância” (Viveiros de Castro, 2002: 221).
Formulado de outra maneira, a Antropofagia oswaldiana parece postular duas
coisas conexas. Primeiro: que o Estado, antes de ser uma formação social, é um
problema ontológico, a conversão do “estar” em “ser”, a cristalização de uma
20

forma, a estabilização sobrecodificada de um fluxo, a normatização de uma força,


o gesto, como dirá em sua tese A crise da filosofia messiânica, de “arrancar o ser
do fluir” (Andrade, 2011a: 172), de modo que aquilo “que é apenas coordenada,
momento estável de uma simples relação de movimento, passa a ser
transfigurado em motor imóvel” (ibid.:197), em suma, que todos os problemas
políticos são problemas ontológicos politicizados, e vice-versa (“A Metafísica
está nas fábricas. Eis a exata posição ideológica da URSS [ibid.: 196]). Citando
uma passagem do famoso jurista Hans Kelsen sobre Aristóteles, Oswald como
que aponta que o Ser é a forma-Estado na ontologia:

“A teoria metafísica do Ser que pretende ser uma ontologia, constitui na realidade
uma axiologia, uma teoria do valor absoluto e portanto, uma teologia, pois a
perfeição ou bondade corresponde à essência do real e por isso, todo real é em
certo grau bom; isto verifica-se com especial acuidade nestas palavras: ‘o Ser não
podia ser mal administrado. A salvação não está no comando de muitos, um só
domine!’” (ibid.: 165).

Assim, a teoria aristotélica afirmaria o “absolutismo inamovível – o primeiro


motor” (ibid.: 167), e haveria uma relação de espelhismo entre o céu (metafísica)
e a terra (política): por um lado, o “motor imóvel (…) [é] espelho no céu dos
tiranos coroados” (ibid.: 168), por outro, e vice-versa, o “senhor da terra (…) era
o espelho do Senhor do céu”, justificando “a obediência do homem escravo”
(ibid.: 166). Segundo: como consequência, à “ausência” de Estado corresponde
uma ontologia em que “falta” o Ser, ou melhor, a um modo de organização
sócio-política que se coloca contra a formação estatal, corresponde uma
cosmpolítica, uma ontologia que impede a fixação do Ser, o advento do ser em si,
da essência, que impede que reine “o Ser como tal em seu trono absolutista”, “o
grande impostor da velha Metafísica” (ibid.: 197; grifo nosso). “Enquanto na sua
escala axiológica fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias do seu
conhecimento até Deus, supremo bem, o primitivo instituiu a sua escala de
valores até Deus, supremo mal. Há nisso uma radical oposição de conceitos que
dá uma radical oposição de conduta” (ibid.: 139). Deus, aqui, e o contexto deixa
isso claro, é uma questão ao mesmo tempo cosmológica, ontológica e política: o
“motor imóvel”, o Um estável (a divindade suprema, o Ser como tal, o Estado)
que não se submete ao movimento, à “devoração universal” (Andrade apud
Candido, 2004a: 46). Enquanto “supremo” bem, é o horizonte a ser atingido;
enquanto “supremo mal”, constitui aquilo contra o qual se deve incessantemente,
e em todas as frentes, lutar. Daí o rechaço oswaldiano à metafísica entendida
como aquilo que está além da física, o que, porém, não implica um materialismo
desencantado (Oswald falará de uma “metafísica do ócio” [Andrade, 2011a: 145],
ainda que em minúscula, para diferenciar da “velha Metafísica”, em maiúscula),
mas antes uma “meta\física”, como sugeriu de forma magistral Castro-Klarén
(2000: 315): “Utilizo a barra no sentido contrário ao de seu uso habitual que
denota oposição – dia/noite, sol/lua, pai/mãe –, de modo a indicar o
posicionamento duplo de ambos os termos. Assim, meta\física ressalta a
presença dobrada [dupla, duplicada: doubled presence] de ambos”. De forma
sintética (com especial atenção ao pronome reflexivo): “O espírito recusa-se a
conceber o espírito sem o corpo”. Prevalência do corpo (já que sem ele o espírito
não pode se conceber, e já que estamos falando de concepção, numa clara
referência à fecundação de Maria pelo Espírito Santo, o qual só pode conceber
um espírito, ou O Espírito – Cristo –, por meio de um corpo)? Ou do espírito (já
que é ele quem se recusa, e já que que estamos falando de conceituar)? Double
bind. Meta\física. “Nada existe fora da Devoração. O ser é a Devoração pura e
eterna. // O homem nu compreenderá. De volta das viagens ao país do Absoluto,
ao país do Tabu. Platão. Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Hegel” (Andrade,
21

2011b: 449). Nessa definição, extraída da Mensagem ao antropófago


desconhecido, de 1946, que Raul Antelo considera o segundo Manifesto
Antropófago e que marca o retorno de fato de Oswald à Antropofagia após o
interregno comunista, com a retomada de uma série de aforismos do (primeiro)
Manifesto, situando-os diante do debate filosófico da época, não estamos diante
de mais uma definição do ser, mas de sua deglutição enquanto motor imóvel,
isento (separado, no país do Absoluto) da devoração, que o precede, inclusive
proposicionalmente (o trecho se inicia: “Nada existe fora da Devoração”, e o ser,
em minúscula, só aparece depois da Devoração, em maiúscula). Nada existe fora
da Devoração, porque a devoração designa a relação cosmológica e ontológica
fundamental: a Antropofagia é uma ontologia que explica o funcionamento do
cosmos e de todos os seres, não se restringindo a uma práxis humana (também os
seres inumanos a praticam e são produzidos por ela, dado que é a relação
universal). Trata-se de uma inflexão (dobra) física da metafísica: alçar a um
status metafísico a máxima de que na natureza nada se cria, nada se destrói, tudo
se transforma, ou melhor, se devora. Não é um acaso que mesmo a entropia
cósmica seja descrita em termos canibais, como a “devoração do planeta pelo
imperativo do seu destino cósmico” (Andrade, 2011a: 146). Por isso o Manifesto
irá afirmar que a Antropofagia é a “Única lei do mundo”, do cosmos, uma lei (da)
física, ou melhor, (da) meta\física, e por isso também Oswald dirá que “A
fenomenologia do espírito só pode se realizar na História pela Antropofagia”
(Andrade, 1974a: 203). O ser é a Devoração pura e eterna: não se trata de mais
uma “exaltação do conceito de Ser”, afinal, Oswald não afirma que “o ser é
devoração”, mas que “o ser é a Devoração”, que o ser é a própria relação de
devoração. A categoria ou posição fundamental da ontologia (aquilo que
fundamenta a ontologia), nomeado no Ocidente como “ser”, não é aqui o Ser
como tal, em si e para si, absoluto, mas a relação, a Devoração, a relação de
devoração. Ao definir o ser, Oswald devora o Ser. O que é fixo (eterno), o que
precede (o que recebe em “nossa” ontologia o nome de ser e ocupa a posição no
“trono absolutista”), o que é, para ele, é o movimento, a Devoração. A
devoração é, o “Ser” só vem depois, como sua resultante, e sempre precária,
“apenas coordenada, momento estável de uma simples relação de movimento”.
Meta\física. Equivocação canibal. Subversão da subsunção.

§ Em 1950, Antonio Candido tenta demover Oswald de prestar o concurso para a


cadeira de Filosofia da Universidade de São Paulo, concurso para o qual este
elaborara A crise da filosofia messiânica. O argumento é de que seu interlocutor
não tinha conhecimento do vocabulário técnico da filosofia da época. Instado a
fazer uma pergunta “cabeluda”, recebe uma resposta a ela que revela que
devemos levar a sério não só o humor oswaldiano, mas também a profundidade
de sua meta\física: “Em nossa era de devoração universal a problemática não é
ontológica, é odontológica” (Andrade apud Candido, 2004a: 46). Afinal, a
correlação entre política e ontologia, permeada pela gramática (pela língua, pela
linguagem, pelos modos de dizer e lidar com os vocabulários) se deixa ver
também pelo fato mesmo de que as ausências indígenas foram descritas como
ausências de propriedade – o que é ressaltado por Marxillar no seu uso do verbo
ter (“o índio não tinha…”) e explicado também por ele através da ideia implícita
de que não tinham porque não queriam ter. Ora, as propriedades ou qualidades,
ao menos na ontologia clássica, são concebidas como acidentais e não
substanciais, ou seja, no limite, acessórias ao ser que as tem. Todavia, na
ontologia canibal (sem o verbo ser, com o ser subsumido, numa inversão, à
devoração), não estamos mais diante de um ser com (que tem) propriedades.
Demovido o ser de seu “trono absolutista”, pode-se travar uma outra relação (que
não de propriedade) com aquilo que se tinha e que, agora, deixa de ser próprio,
um acessório do ser, para se tornar outra coisa (material e ontologicamente). Daí
22

talvez a atração de Oswald por Alexius Meinong, timidamente expressa em


“antropofagia e cultura”, quando o antropófago fala da “revisão já clássica de
Brentano que nos legou (...) a orientação para o Objeto. Meinong. Um passo”.
Afinal, em sua Teoria dos objetos, Meinong (2008) usa, numa inversão
semelhante à que Oswald realizará, o termo “subsistência” (que comparece no
Manifesto), que etimologicamente indica o que se suporta por si, o que perdura,
mas o faz não para designar, como na ontologia clássica, o que existe como
substância, e sim para nomear um campo ontológico expandido (abarcando o
Quasisein [quase-ser] ou o Aussersein [ser-fora], que engloba todos os objetos,
possíveis e impossíveis) em que as propriedades ou qualidades possuem a
mesma consistência existencial (o mesmo estatuto de dignidade) do ser e da
substância. Sujeito, substância, subsistência, ser: o que, para “nossa” ontologia,
está na base (sub-), o que fundamenta, tem seu sentido e estatuto completamente
metamorfoseados quando transpostos (quando as posições atravessam regimes
ontológicos distintos) para a meta\física oswaldiana.

12. Qualquer tentativa hipotética de remontar à origem da propriedade, à sua base


última, chegará a um gesto de pura apropriação inicial – no limite, a um roubo que,
contudo, não é ainda roubo, pois só pode haver o crime de roubo havendo o direito de
propriedade. Por isso, quando Proudhon (1988) afirma que a “propriedade é um roubo”,
ele está correto na medida em que se equivoca. A origem da propriedade estaria em um
puro ato, a posse. No direito romano arcaico, lembra Roberto Esposito (2005: 44-45),
não se conhecia “a figura da transmissão de propriedade (…). A propriedade não pode
ser derivada. É originária, porque por detrás dela não há nada a não ser um violento ato
de apropriação, o ato com que os romanos conquistaram, através das espadas, as suas
mulheres, arrancando-as de outro povo”. Foi, portanto, o saque, o famoso Rapto das
Sabinas, que fundou a propriedade; “foi a violência e o crime”, para usar as palavras
do escritor e jurista José de Alencar (2004: 8), “que puseram os fundamentos da
poderosa organização civil, que tem sido durante dois mil anos e em todas as rudes
comoções da humanidade o mais forte esteio da ordem e da liberdade”. O direito de
propriedade (e o crime de roubo) nasce, assim, para impedir que aquilo que os
apossadores apropriaram seja apropriado por outros, e a apropriação dá lugar à traditio,
i.e., à tradição, termo que designa o instituto jurídico da transmissão da propriedade, e,
num sentido mais amplo, a transmissão estável e pacífica do mesmo, a continuidade
sem rupturas em que a identidade se mantém: quem herda, não herda (só) um objeto,
herda o poder sobre ele, e sobre a sua história. Se não é possível datar com precisão
quando o direito de propriedade se separa do puro ato de apropriação, quando a tomada
cede lugar à tradição, não se pode por isso menosprezar a importância de tal separação,
“desse postulado da propriedade privada transmissível ao filho pelo direito paterno”
(Andrade, 2011b: 167). Para Alencar (2004: 16, 21), a “gestação da lei civil” (ou seja,
do direito privado) foi regida pelo princípio da propriedade: “A ocupação deve ter sido
o primeiro símbolo e a primeira consciência do direito”. E Adorno (1993: 68) chega a
inferir a instituição do tempo cronológico a partir da necessidade da regulação da
propriedade: “Historicamente, o próprio conceito de tempo formou-se tendo por base a
ordenação da propriedade”, criando, assim, a perniciosa capilaridade do “privilégio do
mais antigo” (que é, sempre, o mais antigo datado, ou seja, de que se tem registro).

13. Talvez agora estejamos em posição de começar a entender por que os antropófagos
escolheram como “pedra do Direito Antropofágico” um pseudoinstituto, ou melhor,
uma verdadeira contravenção que, segundo diziam, fundava justamente o direito do
23

colonizador (a “lei das doze tábuas” e o “direito manuelino”). Em primeiro lugar, é


preciso destacar que, apesar de encontrarmos referências que parecem remeter a um
direito legislado de cunho antropofágico (no “grilo histórico” estaria “a lição do nosso
direito”, e dele sairia, “revendo-se o nomadismo anterior, a verídica legislação pátria”),
em geral, quando a teoria da posse contra a propriedade é mencionada, vem
acompanhada de forte negação de sua positivação jurídica. Assim, por exemplo, no
texto em que Oswald advoga “o contato com o título morto”, também adverte que
“toda legislação é perigosa”. Do mesmo modo, no “de antropofagia” (espécie de
editorial da Revista), assinado por Oswaldo Costa em 15 de maio de 1929, algo
parecido é explicitado: “A posse contra a propriedade. / Nenhuma convenção social”.
Novamente, é no “Esquema” que encontramos a elaboração mais nítida desta crítica:
“Ora, o que para mim estraga o Ocidente é a placenta jurídica em que se envolve o
homem desde o ato de amor que, aliás, nada tem que ver com a concepção”. A
dualidade, ou contradição, talvez possa ser explicada. Não é o direito em si, entendido
como juridicidade, que é atacado, mas o Direito, enquanto normatividade – o problema
não são as leis, mas a Lei. Desse modo, é O Direito, o direito legislado do Ocidente
que é concebido como um envoltório, uma aura, uma placenta que codifica todo ato da
vida:

Aqui [dirá Bopp em “Brasil, choca o teu ovo…”] nestes lados a cruz ditou bases à
nossa organização. Apoderou-se das oportunidades com o instinto das
conveniências. Intolerante e exclusiva. Sem consultas às latitudes. Desatendendo
a terra.
Transplantou para cá os mesmos preceitos que amarravam o ocidente cristão.
A mesma moral de uso obrigatório.
Leis foram confeccionadas no outro lado. In abstracto. Mal desencaroçadas
do latim. Mas sempre com o devido respeito às vírgulas das bulas papais.
E foram nos mandando as forais. As regras de abstinência e de bem viver.
Trechos do liber sextus decretalium. E a Casa de Suplicação, no fundo vinham
ainda as capitulares. Pedaços do Fuero Juzgo. A lex Wisigothorum e Las Siete
Partidas, Glosas de Bartolo e de Cujácio. Com um cheirinho de placenta canônica.
Mais tarde ensalsichadas nas Ordenações.

Daí Clóvis de Gusmão, nos “4 pedaços do tenupá oikó” publicados no Diário da


Manhã de 21 de julho de 1929, postular uma contraposição: “Contra a moral –
convenção, a dignidade humana e descodificada do índio”; e daí os antropófagos se
declararem “solidários com todos os movimentos de anticodificação” (Andrade, 2009:
84). Além disso, como aponta Oswald em uma entrevista, “o direito atual” é um “tabu
prolongado de Kant”, tendo uma “vida extra-humana” (ibid.: 84), ou seja, o direito
moderno, assentado na hipóstase do modelo romano, tem a forma fixa (de que os
códigos são o índice) do imperativo categórico (cf. cap.2, infra). O que está em jogo,
assim, é um embate entre formas jurídicas, juridicidades: o Direito se apresenta como a
sobrecodificação das juridicidades, o Direito estatal constitui a subsunção dos outros
direitos e relações, e a Lei se revela como a relação de fato universal do Ocidente – o
Direito como a forma genérica da relação social, como Viveiros de Castro formulou,
relação de subsunção. Dito de outro modo, trata-se de disputar qual a relação
transcendental, se a Lei, o Direito, ou a “devoração universal”: “O sentido devorativo
do sistema. A única realidade tão grande que é transcendental, que é lógica
transcendental… Que se torna dialética… dialeticamente…”, dirá um personagem no
segundo volume e último volume publicado do romance cíclico Marco Zero, intitulado
Chão (Andrade, 1974a: 203). Assim, Oswald e seus companheiros não postulavam
uma ausência completa e absoluta (e, por isso, idealizante) de direito, mas uma
24

juridicidade que não se sublima ou ampara num Direito fixo e legislado, que não
transcende, pela subsunção à Lei, a “prática culta da vida”, variável local e
historicamente. Afinal, a Antropofagia é apresentada como uma lei (a única do mundo,
inclusive), os integrantes advogavam um “Direito Antropofágico” e falavam de uma
“consciência jurídica nativa”, que motivava a necessidade, segundo o “Esquema”, de
“rever tudo – o idioma [a legislação sobre a língua], o direito de propriedade, a família,
a necessidade do divórcio”. A “única lei do mundo”, ao desativar a Lei, abre campo
para a multiplicidade de relações e juridicidades.
Além disso, a posse talvez seja o instituto jurídico mais difícil de definir (se é que
realmente se trata de um instituto jurídico): nas palavras de José de Alencar (2004:
157), é “no seio deste labirinto” que a “metafísica sutil da jurisprudência ostenta-se em
toda a sua confusão”. Definir juridicamente a posse implica distinguir o momento em
que o direito toca a vida: daí a interminável discussão jurídica em torno do seu estatuto
(se é fato ou se é direito), e a respeito de como uma apropriação física produz
consequências legais e gera direitos (e, por contrapartida, quando é um mero fato),
discussão que rendeu diversas soluções legislativas e uma proliferação de
parainstitutos jurídicos (detenção – nuda detentio –, posse ficta – ficta possessio –,
posse indireta, etc.), discussão em que, não por acaso, se envolveram dois dos maiores
romanistas (isto é, especialistas justamente na “origem” do direito ocidental) do século
XIX, Savigny e Ihering. Tal discussão é, na verdade, um debate metodológico sobre o
direito, ou melhor, um debate ontológico em que se trata de definir a relação entre a
esfera jurídica e a vida. A posse é a última fronteira do direito, ali onde ele ameaça se
confundir com a vida. “No assunto da posse”, escreve Pontes de Miranda (1955: 5), “a
diferença entre o mundo fático e o mundo jurídico passa a ser da máxima importância.
É o clímax da discussão, porque em nenhuma outra matéria se torna mais nítida a
coloração de parte do mundo fático, que do resto dele se separa, fazendo o mundo
jurídico”. A metáfora artística invocada pelo jurista (a “coloração de parte do mundo
fático”) não é sem consequências: se expurgássemos a posse da “milenar infiltração
metafísica”, continua Pontes de Miranda (1955: 6, 7, grifos no original), veríamos que
ela não é um direito, mas “rigorosamente (…) o estado de fato de quem se acha na
possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse proprietário ou tivesse,
sem ser proprietário, poder que sói ser incluso no direito de propriedade (usus, fructus,
abusus)”. Aqui, há que se salientar duas coisas: 1) “A posse é estado de fato, em que
acontece poder, e não necessariamente ato de poder (…). A posse é poder,
pot-sedere, possibilidade concreta de exercitar algum poder inerente ao domínio ou à
propriedade”; 2) contudo, este poder, sendo um “estado de fato”, não derivaria
diretamente do direito: “Não é o poder inerente ao domínio ou à propriedade; nem,
tampouco, o exercício desse poder”. Aquele que tem posse estaria num “estado de
fato”, não jurídico, em que teria o poder de agir como se fosse proprietário. Para definir
a posse, Pontes de Miranda não tem outra opção a não ser enquadrá-la como um estado
de fato cujas características remetem ao direito. A posse é um fato, mas um fato
particular, já que só pode ser definida a partir de um direito: “um poder como o que
exerceria quem fosse proprietário”, ou seja, uma ficção, uma ficção jurídica. O fato só
pode ser definido a partir de uma analogia com o jurídico. Tudo se complica ainda
mais na medida em que podem se encontrar no “estado de fato” que constitui a posse
tanto o legítimo proprietário quanto alguém sem título algum, sem direito algum.
Como dissemos, a metáfora artística e visual da coloração não é casual. O já
mencionado Ihering (2004: 24), ao buscar uma definição simplificada da posse, a
caracteriza como a “exterioridade, a visibilidade da propriedade”. É preciso repetir,
porém, que tal visibilidade, tal coloração, pode ou não responder a um estado jurídico.
25

A ficção pode ser verdadeira, como também pode ser falsa; a visibilidade da
propriedade pode não passar de uma ilusão. O fato da posse se caracteriza a partir de
um instituto jurídico (a propriedade) que pode não estar em ato, que é potencial,
podendo inclusive estar ausente. Ao fim e ao cabo, a posse é a aparência de um direito,
é uma propriedade ficcional que só é, de fato, um direito na presença de um título, o
título de propriedade, ou seja, na medida em que se aceita a ficção como verdadeira, ou
melhor, na medida em que seja uma ficção autorizada. Para o direito, não há dicotomia
entre verdade e ficção, mas entre ficção autorizada e ficção não autorizada. E os títulos
grilados comprovam que não há subsunção mecânica possível, que na raiz dessa
distinção está o arbítrio.

14. Se a pura força – a ocupação, a detenção – funda a propriedade, em um passo


ulterior (que não é necessariamente cronológico), ela se sublima, juridificando-se: a
posse convertida em direito de propriedade se torna uma arma contra outras futuras
ocupações. O apossamento não terá validade per se, se a ocupação não se converter em
fato jurídico mediante um ritual de sublimação, materializado na cerca, no
estabelecimento de fronteiras e no título de propriedade, mesmo que “falso”, “forjado”.
A “metafísica sutil” consiste em decidir quando a ocupação, a detenção, a apropriação,
ou de que outro modo se queira chamar a posse, se convertem em propriedade – e a
insolubilidade da discussão revela que só por meio de uma ficção (a ficção jurídica, a
ficção do Direito) é possível esse trânsito. Toda propriedade não passa de um grilo. No
entanto, na base dessa ficção está justamente a negação de uma experiência singular e
específica com as pessoas e coisas, ao sobrecodificá-la na relação entre
proprietário-sujeito e propriedade-objeto. É isto que a cerca, o limite, a fronteira, o
título fazem: ao instituir a exclusividade e converter a posse em propriedade,
transformam o outro em próprio, incorporando-o ao patrimônio, negando a sua
alteridade enquanto ente singular. Pois o direito de propriedade, enquanto domínio
sobre a coisa, consiste no direito de usar e abusar dela, isto é, utilizá-la, mas também
destruí-la, vendê-la, aliená-la: “Interrogai a legislação civil ou a ciência para saber o
que é domínio ou propriedade plena, e ela vos responderá invariavelmente: é o direito
de usar, gozar e dispor de uma coisa”, dirá Alencar (2004: 45), para depois completar
que “A relação que se estabelece entre a personalidade humana e a natureza bruta, a
soma de gozo que o objeto pode prestar realmente ou que dele se espera apenas, é sem
contestação a lei fundamental da propriedade. Valor, eis a essência filosófica, a alma
da coisa; eis em resumo a coisa econômica e jurídica, a única real propriedade” (ibid.:
54; grifo no original). Desse modo, a transformação que a marca produz no que é
possuído equivale, como alertou Adorno (1993: 68), à negação dele:

A vontade de possuir reflete o tempo como angústia diante da perda,


diante do irrecuperável. Fazemos a experiência do que é em relação
à possibilidade de seu não-ser. Com isso, é aí que ele se torna
mesmo uma posse, e é precisamente nessa rigidez que se torna algo
funcional, passível de ser trocado por outra posse equivalente.

Aquilo que se torna próprio, no ato mesmo de se tornar próprio, já não existe mais
enquanto singularidade, com ele não é mais possível travar uma experiência única. Mas
não haveria outra forma de se relacionar com os espaços, coisas e seres que são o
mundo? Afinal, a teoria da posse contra a propriedade apresentava uma outra
juridicidade, um outro modelo de ocupação, alheio àquele que funda o que é próprio,
26

seja juridicamente no plano civil, seja politicamente no plano da identidade e território


nacionais.

§ O canibalismo, na história do pensamento ocidental, seguidamente apareceu


como uma dificuldade para o estabelecimento de individuações rígidas (de
corpos, sujeitos, almas). Assim, por exemplo, a antropofagia colocou uma série
de dificuldades especulativas para a doutrina da ressurreição da carne: a carne de
alguém, comida e digerida por um canibal, tornaria àquele no Reino dos Céus,
ou se incorporaria à deste? Nesse sentido, a prática (ritual) antropofágica parece
ser um índice de outra concepção de sujeito, de outros modos de relação, de
outra ontologia, de outra juridicidade. Em um debate sobre sua tese de doutorado,
João Paulo Arrosi comentou que, a seu ver, a negação da existência de
juridicidade entre os povos ameríndios se amparava em outra mais profunda: os
europeus não viam nos índios sujeitos próprios, sujeitos de direitos, sui iuris,
capazes de se apropriarem de si mesmos e se individuarem enquanto tais, em
suma, de terem uma concepção do que é próprio na esfera interna a si (ausência
de apropriação de si, de propriedade subjetiva, que a ausência de propriedade
objetiva – e o canibalismo – evidenciariam): não é que não tinham, aos olhos dos
colonizadores, alma, ou melhor, é que não tinham alma como uma propriedade,
não conseguiam conceber (em todos os sentidos) a sua alma. Oswald, como se
depreende da citação que faz em 1950 de The Mothers: A Study of the Origins of
Sentiments and Institutions, de Robert Briffault, uma das fontes de sua
concepção do Matriarcado, possivelmente coadunaria com essa ideia: “‘O
sentimento da individualidade que forma o centro dos juízos e das apreciações
do homem moderno, desenvolveu-se à medida que crescia o fato da propriedade
individual (…). O desenvolvimento dos interesses pessoais só se deu quando o
indivíduo teve uma propriedade fora do grupo e se sentiu dele separado
econômica e psicologicamente’” (Andrade, 2011a: 218). Assim, nas palavras de
Arrosi, é como se aos índios (segundo os conquistadores, é claro) não
conseguissem praticar o que os estóicos chamavam de oikeiosis, termo
geralmente traduzido como “apropriação” (de si). Todavia, nesse desencontro
americano, o que se revela, visto de outra perspectiva, não é uma ausência, mas
uma diferença, uma outra forma de estoicismo e de oikeiosis. Por um lado, a
aproximação dos modos de vida indígenas com uma conduta estoica foi
constante desde o empreendimento colonial, seja de forma indireta, como na
descrição dos comportamentos dos cativos na cerimônia de sua execução ou, de
modo mais geral, na suposta impassibilidade ameríndia diante do sofrimento,
tradição que chegará até Sarmiento, seja de forma direta, como quando
Montaigne (1961, I: 265), que também pinta o prisioneiro ritual tupinambá com
traços estoicizantes, justifica a antropofagia americana recorrendo ao precedente
da doutrina do estoicismo: “Crisipo e Zenão, chefes da escola estóica, admitiam
não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se necessário, nem mesmo
em nos alimentarmos deles como o fizeram nossos antepassados”. Daí Oswald
dizer que “Montaigne (…) foi o primeiro que viu o caminho novo, o dado pela
revolta e pelo estoicismo do índio” (Andrade, 2009: 369), e insistir nessa
“concepção estoica do primitivo ante a morte, considerada ato de devoração pura,
natural e necessário” (Andrade, 2011a: 203). Contudo, o estoicismo que tem em
mente ao abordar a Weltanschauung (visão de mundo, perspectiva) antropofágica,
como gostava de chamar, difere daquele apropriado pelo cristianismo, ou melhor,
constitui um estoicismo contra o cristianismo:

Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia que chamo de filosofia da
devoração. A vida é devoração pura e só há uma conduta a seguir: o estoicismo. É
verdade que outro conceito da existência divide a humanidade. É o conceito
messiânico e salvacionista. Os que se enfileiram debaixo dessa bandeira são os
27

que acreditam que há qualquer coisa a salvar dentro deste mundo ou fora dele. O
primeiro pensamento é que presidiu a vida das sociedades primitivas tão
superiores às sociedades civilizadas. Estas servem-se do messianismo para criar as
servidões do corpo e do espírito e as ilusões de toda a espécie (Andrade, 2009:
364; grifo nosso).

Nessa passagem, em que, ademais, inverte o sentido de “primitivo” no gesto


mesmo de usar o termo (“sociedades primitivas tão superiores às sociedades
civilizadas”), Oswald parece postular um estoicismo peculiar, e talvez muito
mais próximo do epicurismo, já que a ideia de Providência ou Destino é
completamente rechaçada e atribuída ao messianismo em oposição ao estoicismo.
De fato, ele caracterizará como “O achado de Vespúcio”, citando uma passagem
do Mundus Novus, a concepção de que os índios “têm ‘una scelerata libertá di
vivere, la quale piu tosto se conviene agli Epicuri che alle Stolci [uma celerada
liberdade de viver, a qual convém mais aos epicuristas que aos estoicos]”, para
concluir: “[Vespúcio] Estava revelando que, na realidade e na prática, era
possível viver-se em estado epicúreo. E isso jogava por terra todas as longas e
tremendas asceses que tinham presidido à construção do mundo medieval”
(Andrade, 2011a: 317).
Por outro lado, a oikeiosis, substantivo “derivado de um verbo na voz média
ou passiva: oikeiousthai” (Heller Roazen, 2009: 106), cuja tradução mais literal
seria domesticar-se, familiarizar-se, a “familiarização de si a si”, já que “oikeios
vem de oikos, a casa ou família” (Agamben, 2014: 78), também pode ser outra
em terras e entre gente outras, também poderia sofrer um deslocamento por meio
de uma leitura canibal. Segundo a doutrina estoica de Crisipo e Zenão, a natureza
faz com que todo animal ou vivente (e não só o homem) seja, de nascença,
familiar a si mesmo, processo de familiarização ou de se relacionar (já que o
termo tinha a acepção de afinidade, atração, afeição) a si mesmo que começa
pela própria constituição (systasis em grego, constitutio em latim), suas partes, e
pela senciência (synaisthesis, sensus), garante a auto-conservação (ou
preservação) e gera o “cuidado de si”, por meio da familiarização, durante o
resto da vida, daquilo que faz bem a elas e a si. Que se tenha tomado a oikeiosis
como um tornar próprio, converter em próprio, parece implicar uma concepção
de família (oikos, domus), cuja relação se dá na forma da propriedade dos
familiares (e bens) por um pater familias, modelo patriarcal. Agora, se a natureza
não estranha o animal de si mesmo, por outro lado, ela não o constitui como
idêntico a si, e sim, como próximo a si, familiar a si, de modo que se há
apropriação, relação de familiarização e não identidade ou igualdade, então há
diferença, diferença de si, diferença imanente a si. Isso quer dizer que se a
oikeiosis constitui um aquisição de propriedade, a formação de um conjunto de
propriedades, então, para citar Ana Cristina César (2013: 82), “a subjetividade se
parece com um roubo inicial”: ela nega essa diferença interna, aquilo que não se
é, mas que é mais familiar, o nega enquanto tal (enquanto não idêntico a si) para
torná-lo próprio (negação da negação hegeliana, se poderia dizer ironicamente...),
rouba-se (de si mesmo, e dos outros) a alteridade constitutiva. Contudo, e se a
apropriação que estiver em jogo for uma posse contra a propriedade? E se a
familiarização importar uma outra forma de parentesco e de “cuidado de si”? E
se as partes do vivente não forem subsumidas a um Todo, i.e., se o sujeito for
“partes sem um todo”, para usar a definição de natureza de Alberto Caeiro? E se
a domesticação não for um apagamento da diferença interna, mas a sua
potencialização por meio da constituição do sujeito enquanto uma rede de
parentescos (como sói acontecer dentre povos indígenas), o sujeito como uma
teia de relações com a diferença? A ênfase oswaldiana – presente já na Revista,
mas acentuada na retomada filosófica da Antropofagia – na diferença de formas
de parentesco ou de regime familiar (o que ele chama de Patriarcado e
28

Matriarcado), como diferença infra-estrutural deve ser assim tomada em sua


máxima expressão, como diferença não só de organização doméstica e social,
mas de intra-estrutura ontológica, de Weltanschauung como gostava de dizer.
Assim, “o divórcio, em marcha nas legislações civilizadas, abre depois o
caminho para um novo progresso, que é o direito materno, naturalmente ligado à
socialização lenta ou revolucionária dos meios de produção” (Andrade, 2009:
204), ou seja, mudanças no direito de família estão coligadas a mudanças nos
meios de produção, como se Oswald apontasse que questões de gênero (e de
relações entre gênero) precedessem (no sentido ontológico) às de classe, que
questões de gênero são já de classe, questões em que a classe pode ser colocada
em questão. Mas, além disso, a própria formação da psique, da subjetividade, se
revela outra no Matriarcado pensado por Oswald, com a postulação, como
veremos no capítulo seguinte, do “consciente antropofágico” formado pelo sexo
e estômago, e do “Superego tribal”, entre outros. Portanto, quando a “família” é
outra, o sentido da familiarização, da oikeiosis também o é. Apropriar-se de si,
aqui, é deixar de ser apenas um ego para se tornar um oikos, a casa de uma
multiplicidade – tal fractalidade, em que o sujeito não só está em uma casa como
é ele mesmo uma, aparece constantemente nas etnografias de povos ameríndios
(um caso emblemático é o dos Marubo, na descrição de Cesarino [2011,
especialmente a Parte I]). Processo de mão dupla, em que o sujeito se constitui a
partir da diferença (de si), partindo dela, mas também é constituído
(domesticado, em outro sentido que o nosso, convertido em casa, também em
outro sentido) por (e para) ela: oikeiosis recíproca, co-oikeiosis, co-domesticação,
apropriação recíproca, recipropriedade. Se, na práxis e concepção ocidentais da
oikeiosis há “transcendência do perigo”, do perigo que toda relação com a
diferença comporta, transcendência que se dá pela sua conversão em identidade,
individualidade, sui iuris, nessa outra possível, há a “imanência do perigo”
(Andrade, 2011a: 219). Como dirá Marília Lourenço (2016) sobre os Kaingang,
“Tantos tipos de gente são apropriados para os Kaingang produzirem
pessoas-relações, justamente, apropriadas. Tantos riscos de se transformar o
legítimo em estranho.” O cuidado de si também é cuidado com si – afinal, nunca
se sabe o que pode habitar a casa que também somos, aqueles que nos habitam,
aqueles de que nós nos apropriamos e se apropriam de nós, não cessando de nos
constituir e transformar.

§ A questão poderia ser colocada ainda de outra maneira: e se a relação que a


oikeiosis designa não for entre um sujeito que se apropria e um objeto que é
apropriado, mas uma relação entre sujeitos? Ao situar a devoração, ou mais
especificamente, a Antropofagia, como relação universal, Oswald aponta para
essa direção, afinal trata-se da devoração de um homem por outro. Aqui, vale
retomar a tecnofilia teleológica oswaldiana e citar a passagem de sua tese para o
concurso de filosofia da Universidade de São Paulo em que ela atinge seu ápice:

No fundo de todas as religiões como de todas as demagogias, está o ócio. O


homem aceita o trabalho para conquistar o ócio. E hoje, quando, pela técnica e
pelo progresso social e político, atingimos a era em que, no dizer de Aristóteles,
“os fusos trabalham sozinhos”, o homem deixa a sua condição de escravo e
penetra de novo no limiar da Idade do Ócio. É um outro Matriarcado que se
anuncia (Andrade, 2011a: 145).

A referência é a um dos trechos iniciais da Política aristotélica, que cito na


tradução de Guilherme Gontijo Flores:

Então já que a propriedade é parte da casa [oikía] e que a apropriação é parte da


administração da casa [oikonomía] (porque sem o necessário é impossível viver e
29

viver bem), e já que seria necessário existirem instrumentos caseiros [oikeîa] para
as artes específicas, se quisermos terminar o trabalho, também deveria haver
instrumentos animados e inanimados para o administrador da casa [oinonomikós]
(assim como para o timoneiro o leme é inanimado, e o marujo animado, pois que,
nas artes, um assistente está na classe dos instrumentos); também o objeto
apropriado é um instrumento para a vida, e a propriedade é um aglomerado de
instrumentos, e o escravo é um objeto apropriado animado, e assim como o
assistente é um instrumento que serve por instrumentos. Pois se cada instrumento
pudesse cumprir ou completar antecipadamente seu trabalho, tal como falam das
estátuas de Dédalo ou das trípodes de Hefesto, que o poeta afirma serem capazes
de entrar autômatas na assembleia divina, se assim também os teares tecessem e
os plectros tocassem cítaras por si próprios, os chefes-de-obra não precisariam de
assistentes, nem os mestres de escravos. (1253b)

Aristóteles joga, na passagem, com palavras de mesma raiz – ktesis


(propriedade), ktetike (o ato de se apropriar), ktema (o que foi apropriado) – para
caracterizar o poder doméstico, para, poderíamos dizer, caracterizar a oikeiosis
no primeiro sentido (proprietarial) que vimos. A apropriação que forma a casa
submetida a seu chefe não se restringe, como se vê, à de objetos inanimados,
incorporando também instrumentos humanos, o escravo, “objeto apropriado
animado”. Trata-se de um autêntico processo de subsunção, pelo qual partes
(animadas e inanimadas) se submetem ao Todo:

Designa-se o apropriado tal como a parte. Pois a parte não é só parte de outro,
mas também completamente do outro, do mesmo modo é o apropriado. Donde o
senhor é apenas senhor do escravo, mas não é dele; por outro lado, o escravo não
é só escravo do senhor, mas é completamente dele. Assim é a natureza e a
potência do escravo, como fica claro. Pois o humano que por natureza é de outro,
por natureza é escravo, e o humano é de outro sendo apropriado ou humano, e o
apropriado é um instrumento prático e separável.

A utopia oswaldiana, de libertação do trabalho pela automatização das máquinas,


não deixa assim, de conter um viés animista: se os instrumentos inanimados
trabalhassem sozinhos, i.e., se fossem animados, o trabalho não seria necessário.
Mas seriam ainda instrumentos? Ou já sujeitos? Mais do que isso, porém, o que
os antropófagos parecem postular é a desarticulação desse tipo de oikeiosis, de
tal esquema familiar, em que a apropriação é unilateral, e muitos servem a Um,
servem a um Todo, como suas partes, tornadas sua propriedade. Assim, “A
descida antropofágica”, publicado em 18 de agosto de 1929 no Diário da Manhã,
se encerra do seguinte modo:

Os antropófagos não querem mais a cultura falsa do ocidente, e os seus dogmas


mais errados ainda. Também não querem Rousseau. Aceitam o homem natural
como um símbolo duplo da potencialidade geográfica e do indivíduo sem
preconceitos, humano, apto por isso mesmo a aprender uma verdadeira fórmula de
felicidade coletiva. Sem essa nova feição de desequilíbrio de classes com que o
comunismo se apresenta. Sem a nobreza. Nem o predomínio do clero. Antes pela
reabilitação de todos [os] indivíduos e pela extinção desse grupo de
“homens-coisa” de que fala Pontes de Miranda, que não têm capacidade para
possuir e só sabem ser possuídos.

15. A posse parece ser um estágio intermediário entre fato e direito, entre “detenção”
(ou “tença”, os nomes técnicos para uma mera posse de fato) e propriedade, um
dispositivo jurídico pelo qual se torna possível a passagem da vida para o direito e, do
mesmo modo, do direito para a vida: aquilo que parecia ser propriedade pode se
revelar nuda detentio, da mesma maneira que uma nuda detentio pode se converter em
30

propriedade. O que possibilita esta passagem? A “metafísica sutil da jurisprudência”


oferece uma infinidade de respostas. Em todas elas, porém, está implícita uma noção
de “título”, não apenas no sentido de papel oficial, e sim no mais amplo de um registro,
de uma marca, de algo que se pode reconhecer. É o caso do instituto jurídico do
usucapião, uma forma de aquisição de propriedade, uma posse que se converte em
propriedade na medida em que o antigo proprietário não se opõe a ela, ou seja, na
medida em que ele a legitima, mesmo que tacitamente, pelo desuso passivo de sua
parte que autoriza o uso ativo alheio (por isso, Silviano Santiago [1989], no que talvez
seja o melhor texto sobre o Direito Antropofágico, se equivoca ao caracterizar a teoria
da posse contra a propriedade como uma “estética do usucapião”). Aqui, é interessante
invocar um caso paradigmático: o das disputas por terras entre indígenas e brancos que
se seguiram (e continuam seguindo) ao “descobrimento”. Apesar das terras do Novo
Mundo, depois das cerimônias de apossamento pelas nações colonizadoras, não mais
pertencerem aos povos autóctones enquanto entes públicos soberanos, isto não
significava que eles não ocupassem terras e bens. A questão era saber se tal posse
originava um direito de propriedade ou não. Em comentários recentes à decisão da
Suprema Corte norte-americana a respeito da disputa entre Johnson e McIntosh de
1823, a jurista Carol Rose (1995: 188) sumarizou o argumento jurídico, de longa data e
larga fortuna, que resolveu a lide em detrimento dos inferiores espiritualmente, os
antropófagos, poderíamos dizer de modo irônico e retomando o relato de Schmitt:

Ao menos alguns indígenas manifestavam estranhamento


[bewilderment] à ideia de propriedade da terra. De fato, eles se
orgulhavam não de marcar a terra, mas ao contrário, de se
movimentar suavemente por ela, vivendo com a terra e com suas
criaturas como membros da mesma família, e não como estranhos
[strangers] que apareciam apenas para conquistar os objetos da
natureza. A doutrina da primeira posse, muito ao contrário, reflete a
posição de que os seres humanos são exteriores [outsiders] à
natureza. Ela concede a terra e suas criaturas àqueles que as marcam
de modo tão claro que as transformam [mark them so clearly as to
transform them], para que, assim, ninguém as tome por natureza não
subjugada.
O que não se pode perder de vista aqui é, para retomar Ihering, a ausência de
exteriorização, a ausência de sinais exteriores que marcam de modo claro aquilo que se
possuiria. Tal ausência revela, porém, não tanto uma contiguidade familiar harmoniosa
com a natureza por parte dos ameríndios, mas uma outra forma de relação com ela que
não a da objetivação. Ou melhor, esse estranhamento com respeito à noção ocidental
de propriedade e suas cercas, mais do que apontar para uma harmonia com o mundo,
revela que a relação em jogo não é a da subjugação de um objeto por um sujeito, e sim
uma relação inter-subjetiva com animais, plantas, espíritos, lugares, os quais se situam
em uma mesma família ontológica que os homens, com os quais estes possuem
parentesco existencial (o que, evidentemente, não quer dizer ausência de conflito:
família não é sinônimo de paz). A relação, portanto, não é de propriedade: os índios
não são donos da terra como um latifundiário é dono de seus hectares e seus animais,
cujo solo ele destrói pela monocultura de soja e cujos animais ele abate para vender
aos grandes frigoríficos. Pois falta-lhes a possibilidade de destruir, vender, alienar (o
direito de abuso), não só de um ponto de vista jurídico, como também por uma escolha
de ordem político-ontológica: a falta, como diria Pierre Clastres (2003), é acima de
tudo uma recusa – não uma posse sem propriedade, mas uma posse contra a
propriedade.
31

§ “Ocupação tradicional” é o nome dado à relação que os povos originários –


justamente aqueles que tiveram suas terras ocupadas para a constituição colonial
e da Nação – mantêm com o território que habitam e seu ambiente, bem como
com os seres que os compõem. Aqui, todavia, a posse ou ocupação não deriva
em propriedade, não só porque o Estado assim o determina, mas também porque
a própria concepção dos povos originários parece apontar para uma relação de
outro tipo. Na ocupação dos povos originários se afigura, para usar a expressão
de Gabriel Tarde (2007: 112), algo como uma “possessão recíproca, (...) de todos
por cada um”, uma recipropriedade entre sujeito e “objeto”, ou melhor, entre
sujeitos. Se, como afirma Eduardo Viveiros de Castro (2017: 8), “os índios são
parte do corpo da Terra”, participam do corpo da terra, é por isso também que
eles têm o direito de ocupá-la, sem constituí-la em propriedade. Pois a relação
que está em jogo, antes de ser de domínio, talvez seja de cuidado, no sentido
ambivalente contido em uma afirmação recente de Ailton Krenak sobre a
necessidade de se ter um “cuidado com o mundo”: precisamos ter cuidado com o
mundo porque ele é frágil e podemos destruí-lo, mas também e ao mesmo tempo,
precisamos ter cuidado com o mundo porque ele é perigoso e pode se vingar das
nossas ações. Tal ambivalência do cuidado parece ser uma possível expressão da
relação de muitos povos indígenas com os seres, as coisas, os espaços: é preciso
cuidar deles e tomar cuidado com eles, pois, não sendo totalmente estranhos nem
totalmente próprios, são tão frágeis quanto perigosos.
Em sentido contrário, a ocupação que caracterizou e caracteriza a Conquista
do Novo e Novíssimo Mundo (numa invasão que continua pela expansão da
fronteira agrícola, a mineração e barragem de rios em terras indígenas), na
medida em que converte em propriedade e opera por meio do limite (as cercas,
muros, as marcas a ferro no gado, que servem para demarcar o que é próprio de
cada um), visa também cindir o cuidado. Do que nos é próprio, nós cuidamos,
porque é frágil; por outro lado, devemos ter cuidado com o que é dos outros,
estranho, porque é perigoso – pular o muro de uma casa alheia pode nos
eletrocutar.

§ Para fundamentar o Dirieto Antropofágico, o movimento recorria ao que Bopp


(2009: 82) chamava de “jurisprudência indígena” (embora em referência à
debates do círculo que frequentou durante a sua estada na Amazônia no começo
dos anos 1920, a formulação germinará posteriormente na Antropofagia):
“Descobriram-se, no fundo de cada lenda, aspectos de jurisprudência indígena,
sobre a caça parida, a época das desovas etc.” Nos “4 pedaços do tenupá oikó”,
tanto os seus fundamentos quanto os seus três eixos (a saber, a negação do
direito paterno, o comunismo “primitivo” e a reciprocidade na duplicidade
vingança/hospitalidade) são sumarizados:

– Da legislação cósmica em que as potências teogônicas atuam sobre os


incendiários de mato ou os matadores de caça-parida, passamos à legislação
vida-e-sexo. Sem Freud. Nem organização soviética. Antes de Viena e Moscou, a
inteligência que sobe do mato.
– Pela legitimidade dos filhos do boto. E contra a hereditariedade princípio
selecionador.
– Diante do imperialismo papal, o comunismo sadio dos morubixabas
selvagens. A lei de Jurupary.
– A reciprocidade do braço. Dentro das revelações recíprocas de
hospitalidade.

Além de outro conteúdo (a jurisprudência indígena), nos deparamos com outra


forma (a juridicidade nativa), a ancoragem desse direito na cosmologia. E aqui,
32

vale retomar uma outra imagem ligada à maternidade que os antropófagos


reivindicavam, ao caracterizar, no “de antropofagia” de 7 de abril de 1929, o
“índio despido” como “fisionomia que se caracteriza por si mesma. Agressiva.
Bárbara. Como a própria terra”, com a ressalva: “Mas a terra boiando nas lendas
da cobra grande e ainda com aquele imaginário fio umbelical que prendia ao
yperungaua que é o princípio mais longe de todas as coisas” (grifo nosso). O que
está em jogo aqui nesse “imaginário fio umbelical”, e como ele se contraporia à
“placenta jurídica”?
Ypyrungaua é um marcador mítico tupi que pode ser traduzido como “no
princípio”, “na origem”, “no começo dos tempos” e geralmente serve para iniciar
narrativas de um passado primordial mitológico em que todas as coisas falavam,
em que tudo era sujeito. Num texto publicado na Revista de Antropofagia, Raul
Bopp reescreve um mito coletado por Couto de Magalhães, dando a ele o título
justamente de “Yperungaua”. Neste tempo mítico, segundo a descrição feita por
Bopp na Revista de Antropofagia, “só existia o sol e a Cobra Grande”, Sol e
Cobra Grande que aparecem também emparelhados num aforismo do Manifesto:
“Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a
hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país
da cobra grande”. Por todo o Manifesto, pululam referências ao tempo mítico,
como na reivindicação do “mundo não-datado”. E como se sabe, uma das
características comuns à grande maioria dos mitos ameríndios é que eles tratam
de um tempo em que tudo era humano, ou em que tudo era sujeito. Não é um
acaso assim, que o mito fonte de Bopp, tal como transcrito por Couto de
Magalhães (1975: 172), comece justamente afirmando isso: “No princípio
[Yperungaua] não havia noite – dia somente havia em todo tempo. A noite
estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais [ou seja, tudo ainda
era humano]; todas as coisas falavam [tudo era sujeito]”. O contato com a terra
apregoado pelos antropófagos, seja no Manifesto (“Em comunicação com o
solo”), seja em outros lugares, como em “Brasil, choca o teu ovo…”, em que
encontramos uma formulação semelhante à da passagem sobre o fio umbilical
(“Índio. Raça-alicerce. A qual está em contato com a terra. Subjacente. Mas
determinando as linhas do edifício”), era uma tentativa de ativar essa dimensão
(e lembremos que, grosso modo, nas ontologias ameríndias, o tempo mítico
permanece como uma virtualidade, informando a condição subjetiva comum de
todos os seres, e sendo de certa forma “acessível” pelo xamanismo). Ou seja, em
jogo, estava travar uma outra relação com a terra (e com o mundo, e com os seres
que a co-habitam), que não fosse da ordem da propriedade, que não fosse aquela
entre um sujeito e um objeto: não se trata da mera apropriação soberana da terra
pelo sujeito (já que ela seria “Agressiva. Bárbara”), mas uma via de mão dupla,
já que o toque, o contato, talvez seja o sentido mais recíproco, na medida em que
é impossível distinguir nele quem toca de quem é tocado, quem é sujeito de
quem é objeto do toque. A diferença, portanto, entre a “placenta jurídica (…) que
(…) envolve o homem” e o “fio umbilical” que liga a terra ao tempo do mito
(diferença entre duas linhas da maternidade: entre a “mãe dos Gracos” e o
“Matriarcado de Pindorama”, pra usar os termos do Manifesto – cf. cap. 2), é
entre uma juridicidade que separa e isola, como uma roupa, um invólucro, e
outra que, como um fio (ligado à cosmologia, ao mito), conecta, possibilita o
contato de mão dupla (pois entre sujeitos). É nesse sentido que podemos
entender melhor o “comunismo sadio dos morubixabas selvagens” evocado por
Clóvis de Gusmão, o comunismo que, segundo o Manifesto, “já tínhamos”.
Amparado nas fontes coloniais sobre os povos indígenas, apontava para uma
outra relação, distinta do modelo ocidental. Tomemos um relato sintético, a
observação de primeira hora (1549) do padre jesuíta Manoel da Nóbrega:
“Nenhuma coisa própria têm que não seja comum, o que um tem reparte com os
outros, principalmente se são coisas de comer, das quais nada guardam para o
33

outro dia, nem curam de entesourar riquezas” (in Hue, 2006: 39; grifo nosso).
Para além da ausência de acumulação, chama atenção não exatamente a ausência
plena de propriedade, mas um regime completamente diverso de apropriação,
uma propriedade outra que não a privada nem a comum (como veremos no cap.
4, desde o direito romano, uma e outra se definem conjuntamente, por oposição).
Mesmo levando em consideração a sintaxe da época e a poética das formulações
jesuítas, parece haver algo de paradoxal na frase grifada, afinal, por um lado, é
dito que os Tupinambá “nenhuma coisa própria têm”, mas por outro, a exceção
que se abre a seguir (“que não seja comum”), se parece confirmar a ausência de
propriedade, também aponta para uma concepção e prática do que é próprio
umiblicalmente ligada ao comum (e vice-versa), a qual, porém, não se confunde
com essa. Trata-se, antes, de uma propriedade que não é nem privada, nem
comum (e, como veremos no cap. 4, desde o direito romano, uma e outra se
definem conjuntamente, por oposição). Um (im)próprio que já é ao mesmo
tempo comum, ou um (in)comum que já é próprio. Nada é próprio, tudo é
recipróprio: eis o regime do que estamos chamando de recipropriedade, que se
abre quando a posse se coloca contra a propriedade (privada e/ou comum).

§ Mais tarde, na leitura de Bachofen, Oswald também encontrará respaldo para a


teoria da posse contra a propriedade, e sua generalização da jurisprudência e
juridicidades indígenas naquelas amplas do Matriarcado. Afinal, dizia o jurista
suíço que “na vida jurídica, nenhuma outra era defendeu tão consistentemente
(…) o princípio da posse de fato” (Bachofen, 1992: 92).

16. Agora, a crítica dos antropófagos ao “título morto” fica mais clara: todo título é
morto porque mortifica, porque só pode se relacionar com a vida negando-a. A
irrupção daquela violência que funda o direito, a apropriação, precisa ser capturada em
uma esfera separada. Esta esfera é a posse. Nela, reaparece o gesto que funda a Lei: o
uti possidetis invocado pelas potências europeias nas suas disputas entre si pelas terras
do Novo Mundo é a emergência do fato que funda o direito. O título é aquilo que
intervém para estabilizar a relação entre fato e direito, para alocar a apropriação em um
estado já ultrapassado, convertendo-a em propriedade (ou punindo-a como roubo). Mas,
mesmo assim, toda posse pode ser uma posse contra a propriedade (o Direito
Antropofágico está inscrito no direito corrente): é esse o sentido da invocação, pelos
antropófagos, da ocupação portuguesa, que afirmava sua posse contra a propriedade
espanhola. Porém, no mesmo gesto, eles negavam a passagem dessa posse ao estatuto
de propriedade, caracterizando o Tratado de Tordesilhas (e o de Madri) como um
“grilo”, uma falsificação. Nesse sentido, o que o “grilo histórico” demonstra é que, na
própria história do direito, “as escrituras falsas são”, como escreveu Silviano Santiago
(1989). Determinar quando um fato se converte em direito não é possível a partir de
uma lógica de subsunção. Ou melhor, ao fim e ao cabo, a subsunção exige um gesto
nominalista, uma decisão que converte em legítimo um título que só o é em aparência
(a autenticação é sempre um gesto de autoridade). Não há como diferenciar,
objetivamente, entre a verdadeira ficção, a posse que corresponde a uma propriedade, e
a falsa ficção, aquela que é só aparência. E, além disso, as escrituras de posse ou de
propriedade falsificam a facticidade que as fundamenta, ao aplacar a violência em um
título. Não pode haver um título autêntico porque a passagem do fato ao Direito nega
sua origem: por isso, todo título é grilado, todo título só pode parecer autêntico. Se a
posse é o dispositivo que permite fazer passar do “estado de fato” ao “estado jurídico”
(e vice-versa), e se o instrumento dessa passagem é o título, a derrogação deste (a
impossibilidade de determinar quando é autêntico) equivale a liberar o fato capturado
pelo Direito, e possibilitar outras relaçõs. Daí o “contato com o título morto”: é preciso
34

despertar a vida, o fato que está por trás do Direito, mas que este aprisiona. É na posse,
ali onde o fato se toca com o Direito, que este pode ser confrontado, que ele pode ser
desativado, e dar lugar a outra juridicidade. Por isso, os antropófagos optarão por esse
campo de batalha, radicalizando a posse na figura do “direito soberano de posse”,
mencionado em uma referência a Pascal, no “de antropofagia” da edição de 24 de
março de 1929 da Revista. Como poderia um fato, uma mera aparência de direito, ser
já direito, e um direito soberano em face aos outros direitos? A “soberania” da posse só
pode ser, nesse contexto, soberania em relação à propriedade, em relação ao título. A
soberania da posse contra a propriedade. Trata-se de impedir que o ato, o fato se
subsuma no Direito, e se negue na forma da exclusividade. O “direito soberano de
posse” é a soberania de um ato que não pode ser próprio, que pode, em última instância,
ser devorado por qualquer um.

§ O “direito soberano de posse” pode ser remetido às Investigações filosóficas


sobre o direito de propriedade, atribuídas ao girondino Jacques Pierre Brissot, o
Brissot de Warville (na folha de rosto da obra, somos informados apenas que a
obra foi composta por “um jovem filósofo”), e que operam uma das críticas mais
violentas e bem formuladas à forma jurídica da propriedade. Segundo Marx, é
dessa obra que Proudhon extrai (rouba?) sua famosa formulação – “a
propriedade é um roubo” –, embora aqui ela apareça de forma levemente
diferente: a “propriedade exclusiva é um verdadeiro crime na natureza” (Brissot:
2015: 31; grifo nosso). Essa diferença mínima, contudo, tem o máximo efeito,
pois o “crime” para Brissot não é a propriedade em si, mas o caráter de
exclusividade (de exclusão dos demais como proprietários) que a acompanha na
“sociedade”. Desse modo, em um paradoxo só aparente, o que ele advoga para
evitar tal crime é a universalização do direito de propriedade: “O direito de
propriedade que a natureza concede ao homem não é restringido por nenhum
outro limite que o da necessidade satisfeita, ele se estende sobre tudo e a todos os
seres. Esse direito não é exclusivo, é universal. Um francês tem na natureza tanto
direito sobre o palácio do Mogol, sobre o serralho do Sultão, que o Mogol e o
Sultão mesmos” (ibid.: 49). Como se vê, universal não deve ser confundido com
absoluto – a propriedade tem um limite: a satisfação da necessidade (que é, para
o autor, variável). Aqui, a aparência de paradoxo se desfaz, dando lugar a um
princípio vital da teoria de Brissot: na natureza (as condições ideais de
temperatura e pressão desse livro), “a necessidade é o único título de
propriedade”, assim como a “sua satisfação é seu único termo” (ibid.: 49). Para o
autor, a propriedade é tão universal quanto efêmera; abarca a tudo e a todos, mas
está limitada temporalmente pela necessidade e sua satisfação. Dito de outro
modo: a propriedade natural não é um estado, é uma situação. E por isso, nada,
ninguém, nenhum ente externo, nenhum Estado pode garanti-la.
É patente aqui que, embora Brissot fale em “propriedade”, está se referindo
a algo muito próximo do que os antropófagos chamam de posse contra a
propriedade, afinal, ela não pode ser exclusiva. A “natureza” (o “direito de
propriedade considerado na natureza”, como lemos no subtítulo) que evoca é tão
ficcional quanto sua referencialidade é concreta e heteróclita, como sói acontecer
com todas as variantes dessa figura na filosofia política moderna, de Hobbes a
Rousseau: os nativos da América, mas também os da África, do Taiti, etc.,
aproximados, além disso, aos “Autóctones” da Grécia. Mas ao contrário do
Leviatã, as Investigações não tomam a “natureza” como algo sobre o qual o
Estado deve se fundar (ou seja, algo que o Estado deve afundar), mas a
mobilizam justamente para, numa comparação centrípeta, deslocar o Estado
(atual), mostrar a sua contingência (e a da história). E não é só pelas referências
positivas ao “selvagem” como modelo em relação ao qual o homem da
35

“sociedade” se empalidece (ainda mais) que faz lembrar o clássico ensaio de


Montaigne; é também, e especialmente, pela defesa do canibalismo. Pois o
selvagem de Brissot não é o “bom selvagem” de Rousseau; sem título algum que
lhe autorize, ele se apropria do que necessita, até mesmo do corpo de seus
inimigos: “Esses selvagens creem ter tanto direito sobre os cadáveres de seus
inimigos quanto os corvos ou os vermes”, afirma o autor, que logo assevera a
legitimidade de tal pretensão: “por que não se alimentariam disso? (...) Os
indivíduos de cada espécie podem (...) exercer seu apetite sobre os indivíduos de
sua espécie, pela mesma razão que podem fazê-lo sobre indivíduos estranhos à
sua classe” (ibid.: 45-6). E como era de se esperar, sem Rei, nem Lei, o selvagem
canibal de Brissot tampouco tem Fé: “Ele não precisa de sacerdotes para atar
seus laços, de templo para consagrá-los. Sua necessidade, eis aí seu título; o céu
é a testemunha de seu amor, a natureza é seu templo” (ibid.: 27). Desse modo, a
comparação entre “natureza” e “sociedade” permite às Investigações traçar uma
relação inesperada (e totalmente inversa ao teorema hobbesiano) entre o caráter
universal da propriedade e a ausência da forma-Estado em todas as suas
manifestações (da soberania ao sacerdócio, passando pelos títulos legais de
patrimônio): é só quando todos têm direito a tudo (no “estado de natureza”) que
se pode falar propriamente de direito de propriedade.
Mas a natureza considerada por Brissot vai mais longe, não se restringindo à
natureza humana. A propriedade universal das Investigações não é humanamente
universal, é universalmente universal: não só também os animais, mas até
mesmo as plantas (sobre as quais Brissot não está convencido de que não sintam
ou gozem) têm direito de propriedade. Universal, a propriedade é extensível a
todos os seres, e extensível nos dois sentidos: todos podem ser sujeitos
proprietários e também objetos da propriedade alheia. Por isso, os animais
podem legitimamente ser proprietários de (nosso) corpo humano, e consumi-lo:
são antropófagos de (e com) pleno direito. A argumentação de Brissot parece
girar sempre em torno da alimentação, a ponto de, em uma variante da
formulação já citada, ele afirmar que “O amor é o único título do gozo, como a
fome é o da propriedade” (ibid,: 27; grifo nosso). Na natureza, tudo é devoração:
a alimentação (canibal, pois, segundo o autor, ela é o consumo das mesmas
partículas de que somos feitos) seria algo assim como a expressão da
termodinâmica, e o direito de propriedade natural, as leis desta. Curiosamente,
Brissot, fazendo uso da propriedade universal que a natureza lhe concede,
aparece nesse livro ele próprio como um antropófago, ainda que em outro
sentido, na medida em que se apropria de trechos de diversos autores, às vezes
sem nomeá-los (o caso mais emblemático talvez sejam as passagens extraídas –
copiadas – do clássico ateísta Système de la nature, do Barão d’Holbach).
Como toda teoria que nega o exclusivismo (humano) da propriedade, a de
Brissot constitui, portanto, uma crítica ao antropocentrismo e mesmo à noção
moderna de sujeito, advogando um monismo (ou algo como um materialismo
selvagem e/ou sensível). Por isso, sua obra não versa apenas sobre o direito de
propriedade, nem mesmo só sobre o direito natural: é um tratado sobre a matéria,
a natureza, a vida e, especialmente, o sensível, incluindo uma bela teoria
(provavelmente de inspiração aristotélica) sobre o tato como único sentido. Se
“Todos os corpos têm a (...) qualidade (...) de abalar e ser abalado
alternadamente”, e “o tato não é mais do que a aplicação de um corpo sobre
outro”, então ele “é a única maneira de sentir que temos. Mas há diferentes
maneiras de exercê-lo, de acordo com as diferentes qualidades dos corpos que
causam e recebem esses abalos” (ibid.: 38). Poderíamos arriscar dizer, assim, que
a universalização do direito de propriedade – ao colocar abaixo “essas fossas,
esses muros” que cercam “parques imensos”, “essas barreiras” que proíbem “o
acesso” de “patrimônios”, prova de “tirania” e não de “propriedade” (ibid.: 29) –
é uma universalização da possibilidade do contato. Possuir seria, se estamos
36

corretos, fazer contato, afetar e ser afetado: ser proprietário é abrir-se ao toque
daquilo que se possui, e não negá-lo (objetificá-lo). No limite, a universalização
proposta por Brissot implicaria a impossibilidade de discernir quem é sujeito e
quem é objeto na relação de propriedade, ou melhor, de se definir a estabilidade
(a estatalidade) dessas posições: sendo uma situação, e não um estado, a
propriedade é sempre instável.

17. A equação muito comum que confunde canibalismo e capitalismo, antropofagia e


liberalismo, confusão da qual não estava isento o movimento antropófago, deriva do
estatuto ambíguo da própria posse, entre o fato e o direito: o apossamento, a todo
tempo, pode se converter em propriedade, acumulação, tradição. Além disso, ela se
enraíza na não-diferenciação de duas dimensões distintas da teoria antropófaga. Pois,
por um lado, a Antropofagia é uma explicação do funcionamento do cosmos, uma lei
(a única) do mundo: toda cultura, todo artista, todo ser se constitui se apropriando de
outros e sendo apropriado por eles. Mas, por outro, ela é também, a partir dessa
explicação que engloba o funcionamento do capitalismo, um programa, demandando
uma ética e uma política: como lidar com essa lei? E já de saída, no Manifesto, essa
outra dimensão a Antropofagia oswaldiana, o modo de lidar advogado pelo movimento,
revela-se contra o Patriarcado (incluindo aí o capitalismo, o laissez faire generalizado
e o fascismo): “A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja,
a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é
contra ela que estamos agindo. Antropófagos” (grifo nosso). Do mesmo modo,
seguidamente, Oswald insistiu que ela não justificaria o fascismo. Assim, se uma
personagem sua afirma que “A antropofagia, sim, a Antropofagia só podia ter uma
solução – Hitler” (Andrade, 1974a: 202), no ano anterior, em entrevista que concede a
Edgard Cavalheiro e chama de “Meu testamento”, a proximidade é reduzida a um
problema de (má) interpretação: “Mas se bem que eu dê à Antropofagia os foros de
uma autêntica Weltanschauung, creio que só um espírito reacionário e obtuso poderia
tirar partido disso para justificar a devoração pela devoração. Melhor seria vestir logo
uma camisola verde” (Andrade, 2011a: 82). A diferença da Antropofagia apregoada
pelo movimento com o que se poderia chamar de canibalismo capitalista (de que o
liberalismo e o fascismo são epígonos), ou mais em geral, do Patriarcado, a sociedade
de classes (e a primeira classe para Oswald é a sacerdotal), será sumarizada em “Novas
dimensões da poesia” (datiloscrito datado de 1949) pela “ruptura assinalada por Engels,
em que o homem deixa de devorar o prisioneiro de guerra para fazê-lo seu escravo”,
ruptura que criaria “uma divisão nítida do mundo histórico” entre “uma cultura
matriarcal, onde os homens, sem nenhum deus partidário, lutam e se entredevoram, e
uma era em que Deus surge como salvador e messias, numa sociedade escravocrata”
(Andrade, 2011b: 167; grifo nosso). Ou seja, não é que o Patriarcado não seja canibal,
ou que seja canibal demais: antes, ele é pouco canibal, pois, nele, a apropriação se
converte em propriedade privada e a devoração se torna unilateral (das mulheres e
crianças pelo Pai, do escravo pelo senhor, do trabalhador pelo capitalista) –
canibalismo vampiresco –, enquanto no Matriarcado (na Antropofagia defendida pelo
movimento), ela é recíproca (entre-devoração), e a apropriação impede a formação da
propriedade – antropofagia ritual.

§ A distinção entre a dimensão cosmológica e a ético-política da Antropofagia


atravessou a trajetória de Oswald e seus companheiros. Assim, Oswald não
cessou de caracterizar o capitalismo como canibal: “O primeiro comércio
moderno foi o de carne humana”, lemos no manuscrito “O antropófago”
37

(Andrade, 2011b: 426). Contudo, por isso mesmo, porque tudo é devoração, é
que nem toda devoração encontra-se justificada enquanto programa de ação. Pelo
contrário: não comer também pode ser Antropofagia. É o que, em 1947, Flávio
de Carvalho vê em povos indígenas no Peru (uma minoria política que forma a
maioria da população local), conscientes de que o seu estômago constitui o front
decisivo, a última fronteira na batalha contra o branco. Se o embate direto do
tempo da Conquista – a “deglutição do Bispo Sardinha”, por assim dizer – não é
mais possível, resta ainda “A resistência passiva no Altiplano”, como Flávio
intitula seu texto (ecoando a “Índole Pacífica do Gentio” de que falava Bopp):
“O estômago torna-se o ponto forte da resistência passiva. Homem, mulher,
criança, velho, ninguém come. Não comendo, não terão de entregar ao branco o
pouco que ganham com o labor de bestas de carga exercido do raiar do dia ao pôr
do sol. ‘Não comprar nada ao branco’ é a palavra de ordem” (Carvalho, 2010:
1-2). Aqui, a recusa de comer (os produtos vendidos pelos brancos) constitui um
gesto contra a propriedade, contra o sistema de devoração unilateral.

§ A antropofagia ritual tupinambá foi, por vezes, caracterizada


colonialisticamente como um sistema de engorda e abate de “carne humana”. Por
exemplo, Manuel da Nóbrega: “Quando cativam algum, trazem-no com muita
festa, com uma soga [corda] ao pescoço, (…) e põem-no a cevar como porco, até
que o hão de matar” (in Hue, 2006: 38). Contudo, o testemunho (mesmo que
indireto) das vítimas do verdadeiro “comércio de carne humana”, a escravização
da população negra da África que origina o capitalismo moderno, deixa claro
onde de fato vigia esse sistema de devoração de mão única que dependia da
desumanização (animalização) do outro, mas não de si. Refiro-me ao que
podemos ler em Cinqüenta dias a bordo de um Navio Negreiro, relato de Pascoe
Grenfell Hill de 1842. Parte de uma comitiva que captura uma embarcação de
tráfico de escravos, cujo nome, sintomaticamente, é Progresso, Hill (2006: 106)
se espanta com a apatia daqueles que libertou, não conseguindo “encontrar um
olhar de prazer em algum deles”, mas somente “poucos sinais de alegria na
ocasião [do desembarque]. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes
pareciam aqueles das vítimas condenadas”: “A primeira impressão deles no
começo”, lemos ao final do relato, “foi a de que iam ser devorados pelos homens
brancos e relutavam em comer achando que estavam sendo engordados para
aquela finalidade” (ibid.: 107). Que a antropofagia ritual não importasse uma
desumanização tendencialmente completa do outro, como na escravidão e no
capitalismo, i.e., como no Patriarcado, pode se ver na continuação da carta de
Nóbrega, em que na cerimônia canibal não há uma redução da carne humana à
carne humana:

um dia antes que o matem, lavam-no todo, e no dia seguinte tiram-no para um
terreiro, atado pela cintura com uma corda, e vem um deles mui bem ataviado, e
lhe faz uma prática sobre seus antepassados; e, acabada, o que está para morrer
lhe responde dizendo que é dos valentes não temer a morte, e que ele mesmo
matara muitos dos seus, e que aqui ficavam seus parentes, que o vingariam, e
outras coisas semelhantes (in Hue, 2006: 38).

§ Um paralelo que pode esclarecer melhor a diferença entre as duas dimensões


da “hipótese antropofágica” é a teoria, formulada alguns anos depois daquela
oswaldiana, da “economia geral” com princípio no “gasto improdutivo”, gestada
na revista Acéphale por Georges Bataille (2013). Generalizando a economia da
dádiva ou do dom descrita por Marcel Mauss (2003: 183-314) no fenômeno
físico da entropia, Bataille identifica no dispêndio um princípio cosmológico (a
“única lei do mundo”, se poderia dizer) que regeria também todas as sociedades
e economias humanas: a acumulação não anula o gasto (inútil), mas serve a ele, e
38

isso mesmo quando parece negá-lo, como no caso-limite acumulativo do


capitalismo, em que o gasto improdutivo negado volta como recalcado, na forma
de guerras cada vez mais avassaladoras e destrutivas. A saída, assim, seria, um
modo de lidar com esse princípio último que evitasse a industrialização do
dispêndio, um modo de lidar cujos exemplos são dados por sociedades ditas
“primitivas”. As semelhanças com a Antropofagia, tirando aquelas que são
evidentes per se, são inúmeras. A começar por um corte transversal (e ao mesmo
tempo concomitante) à leitura marxista que divide as sociedades não baseado no
capitalismo, mas naquele entre economias “do ser” (dádiva) e do “haver”
(propriedade privada), como veremos no cap. 4, e passando pela ênfase no gasto:
“O que interessa ao homem não é a produção e sim o consumo”, dirá Oswald,
elencando o primeiro dos quatro “erros de Marx” (ibid.: 81) e aproximando a
luta de classes à gastrontologia (consumir é gastar, mas também comer – a
entropia é uma forma de devoração, como vimos). E o retorno do recalcado (do
gasto improdutivo, da devoração) aparece para a Antropofagia não só no
capitalismo e sua indústria de guerra, mas também na religião, como apontava
Bataille:

Porque o sentimento órfico é, evidentemente, a dimensão louca do homem, sem a


qual ele não vive e não se refaz dos golpes duríssimos do dia-a-dia. Se esse fluxo
de sentimento animal não se gastar em arte, em política, ou em esporte, terá, sem
dúvida, que adotar o equívoco de uma religião confessional. É essa a chave do
poderio do sacerdócio ao longo da história (Andrade, 2011b: 394-395).

18. Na Revista, pululam formulações ambíguas e um leitor desatento ao que está em


jogo se assustaria com alguns dos autores citados, das citações feitas, e/ou dos
comentários sobre elas. Todavia, não importa tanto o que é dito, quem é comido
(citado), mas como se diz e como se cita, a saber, a lente (a perspectiva) pela qual isso
se dá: parafraseando a formulação de Viveiros de Castro sobre Cunhambebe, o modo
de falar dos antropófagos determina seu modo de comer, que é seu modo de pensar.
Tomemos a citação de Pascal, que embasa a postulação de um “direito soberano de
posse”:

“Ce chien est à moi, disaient ces pauvres enfants; c’est là ma place
au soleil. Voilà le commencement et l’image de l’usurpation sur la
terre.”
Como se vê, Pascal não contestava o direito soberano da posse.
E até reconhecia, embora com uma amargura besta, que “on a fait
qu’il soit juste d’obéir à la force”. Ara, ara, ara.

Os trechos referidos provêm dos Pensamentos de Pascal (2005: 25, 29; grifos
correspondentes às citações): “Meu, teu. // Este cachorro é meu, diziam aquelas pobres
crianças. Este é o meu lugar ao sol. Aí está o começo e a imagem da usurpação de
toda a terra (…). Não podendo fazer com que fosse forçoso obedecer à justiça, fez-se
com que fosse justo obedecer à força” (os trechos grifados são os citados por
Japy-Mirim). A ironia canibal (“Ara, ara, ara”), o modo de falar sobre a “amargura
besta” com que Pascal luda com o fato da justiça se reduzir à força, só pode ser
plenamente compreendida se levamos em consideração o trecho seguinte, em que dois
modelos de justiça se contrapõem: “Portanto, nem a justiça racionalista de Rousseau,
nem a santa justiça de Catarina de Siena, como querem os católicos franceses. Mas
justiça do tacape. Pau na cabeça. Você comeu meu irmão, agora quem te come sou eu.
E a alegria de constatar: Lá vem a minha comida pulando!” De um lado, a justiça
39

abstrata (“a justiça racionalista”, a “santa justiça”, a sobrecodificação e


transcendentalização da Lei como forma de relação, a Justiça, com maiúscula), de
outro, a “justiça do tacape”, numa alusão ao que os cronistas e Montaigne (1961, I: 264)
já apontavam, a saber, que a antropofagia se realiza “em sinal de vingança”, alusão
visível pela referência final ao relato de Staden, mas também pelo “pau na cabeça” (o
gesto de rachar o crânio do inimigo prisioneiro com o tacape), e pelo “Você comeu
meu irmão, agora quem te come sou eu”. “Tínhamos a justiça codificação da
vingança”, lemos no Manifesto em referência à “reciprocidade do braço” de que falava
Clóvis de Gusmão. Em jogo, nessa postulação de uma juridicidade outra (pois se trata
de uma justiça), está a contestação do esquema evolucionista do direito, segundo o
qual haveria uma sequência que começa na vingança “privada”, passa pela vingança
estatal e estatizada (a Lei do Talião), e chega finalmente na pena estatal desligada da
vingança e no direito escrito (legislado). No lugar de uma evolução da justiça “factual”
à “abstrata”, do fato ao direito, os antropófagos apresentam uma oposição, uma
heterogeneidade normativa pela qual aquela já é uma justiça de pleno direito,
poderíamos dizer, e se opõe a essa. E, de fato, a estrutura da lex talionis, suposto
instrumento da passagem da vingança ao direito estatal, constitui uma norma de
equivalência (a pena é tal qual o crime [Agamben, 2002: 33]), criando uma identidade
entre dois atos distintos por meio de uma economia: um olho e outro olho (a
transgressão e a punição, crime e castigo) tornam-se olho por olho. Essa aparente
repetição, que Alvin Gouldner (1960: 172) chamou de “reciprocidade negativa” ou
“reciprocidade homeomórfica”, constitui, na verdade, um cessar da repetição, por meio
da instituição de um (terceiro) termo que leva a sucessão de acontecimentos singulares
(a vingança) a seu termo (a retaliação legal), i.e, por meio do estabelecimento de uma
medida, uma métrica: não por acaso, o famoso adágio não é olho por olho por olho por
olho..., mas olho por olho, dente por dente – não uma série infinita de atos ou fatos
diferentes, mas uma série finita de equivalências. Ou seja, se as leis talionárias
precisam enunciar legalmente a relação de equivalência entre um e outro “olho”, é
porque ela não existe per se, sendo estabelecida judicialmente. Todavia, a equivalência
material se ampara, para produzir seu efeito de cessação, numa ambivalência formal: o
mesmo ato aparece, de um lado, como o injusto (a transgressão), e, de outro, como o
pleno de justiça (a pena). Desse modo, o talião é análogo à instituição da traditio e do
título, em que a apropriação que funda a propriedade é aplacada, sublimada e passa a
ser considerada roubo. A afirmação antropófaga da vingança como uma forma de
justiça vai, assim, no sentido de postular uma juridicidade que nega o seu aplacamento
e substituição por um “contrato social”, que nega uma suposta equivalência criada pelo
aparato estatal (a justiça “racionalista”), afinal, na antropofagia ritual tupinambá que
lhe serve de inspiração, “não se tratava de haver vingança porque as pessoas morrem e
precisam ser resgatadas do fluxo destruidor do devir; tratava-se de morrer (em mãos
inimigas de preferência) para haver vingança, e assim haver futuro” (Viveiros de
Castro, 2002: 240; grifos no original). É neste sentido que se deve entender a recusa
em comer os covardes: um inimigo fraco não se vingará. “(Só comiam os fortes). Hans
Staden salvou-se porque chorou”, lemos no “Esquema a Tristão de Ataíde”; “Não se
comia um covarde” dirá Darcy Ribeiro (1995: 35) na sua versão épica do mesmo relato.
A radicalidade do gesto canibal consiste, assim, não na simples oposição entre fato e
direito (em que se fundamenta o próprio direito estatal), mas na postulação,
aparentemente paradoxal, de uma juridicidade outra (a “justiça do tacape”), em que o
fato não pode ser subsumido, resolvido, estabilizado, no direito legislado, em que não
há um terceiro termo que decida o conflito (“a justiça racionalista”, a “santa justiça”,
40

o aparato judiciário, o Estado). A ironia com Pascal, assim, aprofunda o que este diz: a
“usurpação”, o apossamento, jamais deve ser sublimado. Se a posse é soberana, ela
jamais se converte em propriedade, i.e., em justiça, jamais se sobrecodifica na
linguagem da Lei e do Direito.
Antes, no mesmo texto, lemos uma enumeração da história (da decadência)
europeia, contraposta, ao final, com a postura indígena:

O desespero europeu, lutas de classes. A exacerbação cristã da idéia


antropofágica. Os homens se comendo em série.
__

Non sunt privatae leges. Nulle terre sans seignuer. A igualdade


política. A igualdade econômica. O império, o feudalismo, a
abolição dos privilégios, a produção como finalidade. Longas
batalhas seculares de que o ocidental saiu mais miserável, roendo as
unhas, pecando. Com o estômago cheio de idéias vazias.
Enquanto isso, o índio fez a taba. Muito cauim. Muita flauta de
canela de prisioneiro. E nenhum gatuno.

Aqui, o relato padrão da escalada da conquista dos direitos é reduzido ao direito de


propriedade, num gesto análogo ao que vimos operar no aforismo “Lei do homem. Lei
do antropófago”: “Non sunt privatae leges. Nulle terre sans seignuer”, Nenhuma lei
privada, nenhuma terra sem senhor. Trocando em miúdos, não há juridicidades
(múltiplas) porque só há propriedade (o próprio Direito é algo que se tem): o
monopólio da juridicidade, a conversão das juridicidades múltiplas no Direito positivo
do Estado se dá porque a posse é convertida em título, propriedade, exclusividade,
porque todo direito é convertido em direito estatal, instrumento fundamental na
formação do capitalismo (o cercamento de terras: não há terra sem senhor) e na
acumulação (“a produção como finalidade”) – comum e privado são pólos da mesma
juridicidade ocidental moderna. A multiplicidade de “direitos reais” (literalmente:
direito das coisas, ligados às coisas, res) da medievalidade, em que sobre uma mesma
coisa poderiam recair direitos múltiplos, divergentes e conflitivos (uso, usufruto, posse,
direito de passagem, de servidão – daí o nome de certas ruelas: servidões de passagem),
vai dando lugar ao domínio moderno que subsume (ou seja, integra como partes de um
Todo) esses múltiplos direitos outros das coisas ao direito de propriedade:

A jurisprudência entendeu sempre deste as Institutas até o código


Napoleão que o domínio sobrepujava os outros direitos reais; e por
conseguinte onde quer que se achasse a mais tênue parcela desse
direito rei, expressão da soberania individual, império do homem
sobre a coisa, aí residia a propriedade, pois aí estava a essência dela
(…), ela representava a fonte exausta de onde os outros direitos
fluiriam (Alencar, 2004: 96; grifo nosso).

Do mesmo modo, o sujeito de direito se constituirá como sujeito que tem direitos, que
tem sobre si domínio (termo que vem de domus, equivalente romano ao oikos grego), é
um sujeito proprietário, sujeito próprio, que se apropria de si, dos outros e das coisas,
tornando-os sua propriedade. Mas, “enquanto isso, o índio fez a taba”, e eis a “lição do
nosso direito”: se a terra é sem senhor, há juridicidades outras, e outros direitos das
coisas, inclusive direitos que as próprias coisas têm… O direito soberano de posse é
uma soberania contra a “soberania individual” da propriedade, contra o “império do
41

homem sobre a coisa”. A posse contra o domínio, contra o domus entendido como
dominação (domesticação unilateral) do pater familias sobre tudo e todos (todos
objetos), contra o sujeito constituído pelo domínio de si.

§ Os mesmos antropófagos que liam Pascal também conheciam Hobbes e suas


formulações sobre o estado de natureza. No Leviatã, ao afirmar que “há muitos
lugares onde atualmente se vive assim”, no “estado de natureza”, como entre os
“povos selvagens de muitos lugares da América”, ele caracterizará essa
“miserável condição” como aquela em que “não há propriedade, nem domínio,
nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é
capaz de conseguir, e apensar enquanto for capaz de o conservar” (Hobbes, 2003:
110, 111). E, no De cive, insistirá que a não divisão entre o próprio (suam) e o
alheio (alienam), causa a guerra constante, cabendo à implementação do Estado
fixar, estabilizar, essa distinção (fazer com que, para retomar Adam Smith, a
propriedade deixe de terminar na pura posse):

quando dediquei minhas reflexões à investigação da justiça natural, prontamente


me vi prevenido pela própria palavra justiça (que significa uma firme vontade de
dar a cada um o que é seu) de que minha primeira pergunta tinha de ser esta: a que
se devia que um homem pudesse chamar algo de seu, em vez de dizer que
pertencesse a outro. E quando constatei que isto se devia não à natureza, mas ao
consentimento (pois aquilo que a natureza primeiro pôs em comum os homens
depois distribuíram sob várias apropriações), fui então levado a outra pergunta, a
saber: para que fim, e sob que impulsos, quando tudo era igualmente de todos em
comum, os homens consideraram mais adequado que cada homem tivesse o seu
bem? E descobri que a razão foi que, se os bens forem comuns a todos,
necessariamente haverão de brotar controvérsias sobre quem mais gozará de tais
bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá todo tipo de calamidades,
as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar. (…). A
natureza deu a cada um um direito a tudo; isso quer dizer que, num estado
puramente natural, ou seja, antes que os homens se comprometessem por meio de
convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem
julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou
pudesse obter (…). E é este o significado daquele dito comum, “a natureza deu
tudo a todos”, do qual portanto entendemos que, no estado de natureza, a medida
do direito está na vantagem que for obtida (…). Mas foi pequeno benefício para
os homens assim terem um comum direito a todas as coisas; pois os efeitos desse
direito são os mesmos, quase, que se não houvesse direito algum. Pois, embora
qualquer homem possa dizer, de qualquer coisa, “isto é meu”, não poderá porém
desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender
que é dele essa mesma coisa (Hobbes, 2002: 7, 32, 33; grifos no original).

Ao contrário de Pascal, em Hobbes, não é a “usurpação”, o “meu” e o “seu”, que


fundam, pela força, a “justiça”, mas, ao contrário, é a “justiça”, a convenção que
torna possíveis o “meu” e o “seu”. Contra ambos, a defesa da “justiça do tacape”,
de um direito soberano de posse consiste na defesa de uma justiça contra o
estado, contra a estabilização da posse (o “meu”, o “seu”) em propriedade.

§ “Nós somos da fuzarca. Aceitamos a guerra. Queremos a guerra”, lemos num


texto assinado por Japy-Mirim e intitulado justamente “guerra”. Mais tarde,
quando Oswald retoma suas formulações em chave filosófica, caracterizará
positivamente o direito dos povos matriarcais como o “direito da guerra”
(Andrade, 2011b: 386). Essa assunção da guerra selvagem, a partir da guerra de
vingança dos povos ameríndios, não se confunde, porém, com o elogio das
guerras entre Estados modernos, nem com o das guerras civis religiosas que
estão na base da fundação do Estado moderno (“Na teoria, na prática, o Estado
42

moderno nasce para por fim à guerra civil, à época chamada [guerra] de religião.
É, portanto, historicamente e auto-assumidamente, posterior à guerra civil (…).
O Estado moderno, que pretende terminar com a guerra civil, é na verdade sua
continuação por outros meios”, uma guerra preventiva à guerra civil, como
lemos na Introdução à guerra civil, do Tiqqun). Trata-se, antes, de um
dispositivo contra a formação estatal, como viu Clastres (2003, 2011), e que
forma com a (des)chefia uma “dupla relação inibitória: uma inibição interna ou
intracomunitária, a chefia sem poder, e outra externa ou intercomunitária, o
dispositivo centrífugo da guerra” (Viveiros de Castro, 2011: 328). Que Oswald
tivesse em mente a concepção de uma guerra como mecanismo centrífugo que
impede a estabilidade/estatalidade pode se entrever nesse elogio a Proudhon, que
contém, ademais, novamente uma relação entre política e ontologia:

Foi ele [Proudhon] quem afirmou que “a guerra é uma categoria do ser”, sorrindo
ante a ideia mistificadora e que centraliza o messianismo marxista – a de uma
apaziguada sesta para que caminha dialeticamente a humanidade. Contra a
dialética com que Marx procura justificar e vencer as contradições da luta social,
Proudhon (…) [afirma] que a vida se compõe de antinomias contemporâneas e
vigentes (Andrade, 2011b: 366).

Algo semelhante aparece na décima-terceira e última hipótese que encerra A


crise da filosofia messiânica (do mesmo ano do datiloscrito sobre Proudhon),
contrariando a teleologia baseada na dialética hegeliana que guiara a tese: “Que o
homem, como o vírus, o gen, a parcela mínima da vida, se realiza numa
duplicidade antagônica – benéfica, maléfica –, que traz em si o seu caráter
conflitual com o mundo” (Andrade, 2011a: 205).

19. O questionamento da “autenticação”, da lógica do título de propriedade,


transparece nas duas poéticas mais associadas à Antropofagia: a paródia e a
“deglutição” cultural. Em ambas, o valor do autêntico (a subsunção da cópia ao
original) é questionado, mas não em nome de uma (nova) identidade mestiça (formada
a partir da mistura), como muitas vezes se fez crer. O apossamento não
necessariamente visa uma propriedade, podendo se voltar contra ela. Aquilo que é
próprio de alguma coisa (de um autor, de uma cultura), e que assim lhe seria exclusivo,
pode aparecer de outra forma, apossado por outro, sem que, por isso, constitua uma
propriedade deste. Tal questionamento também explica por que Oswald, depois de
fundamentar a teoria da posse contra a propriedade na grilagem de terras por Portugal,
cite como exemplo Rudolph Valentino:

O fato do grilo histórico, (donde sairá, revendo-se o nomadismo


anterior, a verídica legislação pátria) afirma como pedra do direito
antropofágico o seguinte: A POSSE CONTRA A PROPRIEDADE (…).
Isso nos Estados Unidos foi significado ainda ultimamente pela
defesa de Rodolfo Valentino, produzido pela gravidade de
Mencken.

O ator hollywoodiano, um dos primeiros superstars, encarnava um tipo de arte na qual,


como sabemos desde Walter Benjamin (2014), o original está de todo ausente, uma
arte composta de cópias sem original. Acusado por um jornalista do Chicago Tribune
de contribuir para a “efeminação do homem americano” (Mencken, 2009: 114) através
de filmes como O Sheik, Valentino o desafiou a um duelo, atraindo ainda mais galhofa
para si: “E, assim, Nova York riu de Valentino. Mais ainda, atribuiu sua irritação a
43

uma mera busca de publicidade, como a de um canastrão vulgar querendo aparecer”


(ibid.: 115; grifo nosso). Procurou, enfim, o famoso jornalista H.L. Mencken, que,
mesmo sendo um ardoroso crítico da indústria cultural (chegou a chamar Hollywood
de “Moronia”), aceitou o encontro, alguns dias antes do ator adoecer e, em seguida,
morrer. No dia 30 de agosto de 1926, uma semana depois do falecimento de Valentino,
Mencken escrevia no Baltimore Sun um texto cujo título era o sobrenome do ator. E ao
defendê-lo dos ataques ferinos, Mencken não deixa de ressaltar, por um lado, a falta de
talento de Valentino, o fato deste ser pura imagem, pura ficção, e, por outro, que,
mesmo que o tivesse, teria se deparado com a artificialidade também da posição de
artista, de criador:

Inclino-me a pensar que os deuses inescrutáveis, ao levá-lo tão cedo


e num momento de furiosa revolta, foram até gentis com ele. Se
ainda vivo, tentaria inevitavelmente mudar sua fama – se se pode
chamá-la assim – para algo mais perto do desejo de seu coração.
Isto é, ele teria trilhado o caminho de muitos outros atores – da
crescente pretensão, da solene seriedade, do vazio blá-blá-blá, que
só enganaria a si mesmo. Acredito que teria fracassado, por exibir
poucos sinais de um autêntico artista. Era essencialmente um jovem
muito respeitável, daquela espécie que nunca se metarmofoseia num
artista. Mas, suponhamos que ele conseguisse? Então sua tragédia
teria se tornado mais irritante e intolerável. Porque ele teria
descoberto, depois de tanto esforço e ansiedade, que o que tinha
conseguido era indistinguível do que tinha deixado para trás (ibid.:
116-117).

No fundo, assim (e eis o ponto que interessa a Oswald), o inautêntico é


“indistinguível” do autêntico. O corolário oswaldiano consiste em deslocar a
importância da autenticidade para os efeitos que a arte produz. O “Esquema” continua:
“Tinha muito mais razão de ganhar dinheiro do que os sábios que vivem analisando
escarros e tirando botões dos narizes dos bebês. Muito mais! Porque afinal é preciso
pesar a onda de gozo romântico que ele despejou sobre os milhões de vidas das
senhoras dos caixas e dos burocratas. Isso é que é importante”. Valentino, e a defesa
que dele faz Mencken, aparecem como exemplo da teoria do grilo na medida em que
salientam a posse em detrimento da propriedade (tradição): é preciso haver “contato
com o título morto”. A escritura de propriedade (o talento, a obra), o título de
autenticidade, não tem valia per se; afastada do contato, por assim dizer, se limita a
amenidades sem sentido (a análise de escarros) ou ilusionismo bobo (tirar botões de
nariz de crianças). Valentino tinha muito mais razão de ganhar dinheiro, mesmo que
fosse um impostor, um grileiro. Para retomar Benjamin, a aura que envolve a obra dá
lugar aos efeitos que produz no público reunido que o assiste – o “gozo romântico” que
teria provocado nas mulheres de classe média. A posse defendida pelo “direito
antropofágico” não remete à cópia ou a aparência falsificada da propriedade (a
apropriação); ao contrário, visa combater a noção mesma de propriedade. Daí que
cinema e nudez apareçam aliados no Manifesto Antropófago: a propriedade, a
autenticidade, não passa de uma vestimenta, uma ficção (da tradição), e é isto que “o
cinema americano informará”. E daí também o duplo sentido da palavra de ordem do
Manifesto: “Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas” (grifo
nosso).
44

§ Em uma crônica que apareceu na edição paulista do Jornal do Comércio em 28


de outubro de 1926, Oswald narra um inusitado episódio, naquela que é, segundo
meu conhecimento, a primeira aparição do ator em sua obra e que, em certo
sentido, já condensa o argumento do “Esquema”. No início de “O sucessor de
Rodolfo Valentino”, somos apresentados a Champoglione Vespa, tintureiro (e
picareta) de profissão, além de pão-duro e, mais importante do que isso,
“Parecidíssimo com o filho do Sheik, a família do Sheik. Parente na certa”
(Andrade, 1974b: 19). A outra personagem é Miss Barbara Battlefield, neta
norte-americana do “Rei do Óleo de Fígado de Bacalhau” e que “nascera torta”.
O cerne do relato se passa em um vaporeto que rumava a Capri:

Súbito[, Miss Barbara] teve um enjôo e deu de cara, no banco fronteiro com
Rodolfo Valentino.
O enjôo passara, mas vinha de novo. Rodolfo Valentino fitava-a. Aquele olhar
fixo de Sheik, debaixo da cartolinha arrepiada. Ela estava pálida, transfigurada.
Era ele! Não morrera. Revirou os olhos. Ia desfalecendo em cima de uma inglesa
de óculos e chapéu de palha. Rodolfo levantou-se, amparou-a.
Quando Miss Barbara Battlefield abriu os olhos de novo, estava deitada de
comprido num banco da popa.
Ao seu lado, só, de cartolinha, Rodolfo Valentino (ibid.: 22).

A isso, se segue um diálogo em que Valentino/Vespa se limita a responder “–


Chi! lo sá?” e que culmina no casamento da dupla: “E foi assim que
Champoglione Vespa conquistou num tiro a alma, o corpo e a fortuna da neta do
Rei do Óleo de Fígado de Bacalhau” (ibid.: 23). Como Valentino, aquele de que
é uma grilagem, Vespa é um grileiro, e, nele o autêntico se torna indistinguível
do inautêntico.

20. A terceira, e possivelmente última, aparição de Valentino na obra de Oswald se dá


por meio de uma aproximação do ator com Bilac (retratado no Manifesto da Poesia
Pau-Brasil justamente como mero autômato: “Só não se inventou uma máquina de
fazer versos – já havia o poeta parnasiano”), na “Carta aos editores americanos”,
publicado em 22 de julho de 1943 n’O Estado de S. Paulo: “Alguns dos nossos
parnasianos e simbolistas não deixarão de ter um grande público entre as mandas
ingênuas dos vossos leitores. Mais de cem mil datilógrafas de Nova York hão de
gostar de ‘ouvir estrelas’. Não foram elas que fizeram a fortuna de Valentino?”
(Andrade, 2004b: 90). A referência às copistas, que reproduzem originais, não pode
ser tomada casualmente. Como estamos vendo, uma “poética do grilo” se armava
contra as figuras do Autor e da Obra (enfim, do proprietário e do título de
propriedade), e, neste sentido, pode-se ver como seu índice o projeto do balé “História
da Filha do Rei”, que, segundo os manuscritos depositados no CEDAE, teve três
versões: uma dos anos 1920, em parceria com Tarsila e Villa-Lobos, e duas dos anos
1940, com Nonê (seu filho, Oswald de Andrade Filho) e Mignoni (cf. Andrade, 2003a:
264). A “filha do rei”, ali, trabalha em um escritório de advocacia (espaço da
conversão da escrita em escritura, da autenticação jurídica dos fatos da vida) como
datilógrafa, e só tem “uma amiga: é sua máquina de escrever” (Andrade, 2003a: 269),
ou seja, é justamente uma copista. Nas poucas linhas do manuscrito, a “máquina de
escrever” aparece constantemente e, assim, por exemplo, na “Dança dos objetos”, que
Oswald caracteriza como “sem anedota”, ela figura ao lado de outros objetos que
remetem ao sistema da escrita, incluindo o dinheiro: “O cofre, o mata-borrão,
máquina de escrever, a folhinha, etc.” (ibid.: 267). Faz par com a datilógrafa / filha do
rei, o personagem “autor”, um escritor-jornalista – ao entrar em cena, vem a “Dança
45

reportagem” (ibid.: 267). No terceiro ato, após o suicídio do advogado, os dois


protagonistas estão em uma aldeia; entram no palco camelôs, “um italiano, um negro,
um sírio” (ibid.: 269). Neste espaço-tempo confuso (há a “Dança do passado” e a
“Dança do presente” [ibid.: 269]), o “autor” “manda abrir a cortina do fundo da cena”,
o que é feito, dançando, pelo “maquinista” “a fim de ser explicado o sentido
miraculoso da vida”. O anti-ilusionismo, porém, é um “jogo proibido” e o “autor” é
preso pela polícia (ibid.: 269). Talvez se possa dizer que o “sentido miraculoso da
vida” consiste em revelar que não há nada por trás das cortinas, das roupas, que sem o
maquinista, não há balé, e sem a datilógrafa, não há escritura, não há autoridade – ela
é a filha do rei. A cópia é o original, o original é a cópia; a vida é o balé, e o balé é a
vida. “As escrituras falsas são”. A cena final que consta no último dos três
manuscritos da peça, inicia-se com “Personagens mortos vivos” e “o autor dentro da
grande cadeia”, e culmina na anulação mútua dos efeitos da vida e da morte:

O autor se livra da jaula para correr para a filha do rei (...). Aparece
a morte; dança da Vida e da Morte, a vida com a morte e os mortos
ressuscitam. Dança dos ressuscitados. A luz vai enfraquecendo até
apagar completamente e quando volta a acender é uma luz azul com
um cenário de madrugada. Bananeiras, palmeiras e outras árvores
passam em cortejo fúnebre carregando o autor e a filha do rei. O
cortejo é encabeçado pela vida natural. Mulher de maiô (nua). No
fundo do cenário, pedaços de máquinas de escrever e objetos de
escritório. O cortejo passa lento. Dança do cortejo.

PANO (Andrade, 2003a: 271).

Não é nem no sol tropical, nem na noite trevosa, mas no limiar entre os dois, na
madrugada, depois da reconciliação entre Vida e Morte, quando passado e presente se
tocam, que o original e a cópia, o autor e a datilógrafa (que é também filha do rei) se
unem em um gesto de amor (que é também a sua morte enquanto sujeitos) e aquilo
que os separava ao criar entre ambos uma relação de autoridade, a máquina de
escrever (e também a roupa – em dois desenhos de Tarsila da década de 1940,
intitulados “Datilógrafa” e provavelmente relacionadas à retomada da peça, vemos
uma mulher sobreposta por máquinas de escrever, como se fossem a sua roupa), o
signo da propriedade, aparece destruída, relegada ao fundo do cenário. Ela já não tem
mais importância enquanto engrenagem de separação entre o escritor e o copista. No
cortejo do autor e da datilógrafa, na morte, anuncia-se uma nova escrita, uma nova
vida, omitida pelo sistema da autoridade, e que possui um único mandamento: “Só me
interessa o que não é meu”.

21. Provavelmente só na esteira do Direito Antropofágico se possa compreender


também a nota (paródica aos avisos de copyright que acompanham os livros) que
antecede Serafim Ponte-Grande: “Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas”. Não só a cópia, mas também a falsa cópia, a falsificação, é
autorizada. Toda experiência com o livro é autorizada, inclusive a grilagem: a
“licença” oswaldiana, para assim chamá-la, libera, para o usuário, o leitor, o posseiro,
o uso, o usufruto e o abuso (usus, fructus, abusus) – as três facetas do direito de
propriedade. O fato de a nota aparecer no mesmo livro em que Oswald afirma ter
tomado a “vacina” comunista contra o “sarampão antropofágico” revela que a adesão
do autor ao comunismo não representou uma ruptura total no itinerário do autor:
46

Antropofagia e comunismo se tocam na crítica à propriedade; a “radicalização” de


alguns modernistas brasileiros já estava em curso havia tempos.

§ Uma espécie de neutralização da disposição antiautoral presente em Serafim


Ponte Grande se tornou tradição nas edições posteriores do romance. Assim, na
última publicada, em 2007, pela editora Globo, a nota se tornou parte da ficção,
só aparecendo na página 54, depois de todos os prefácios e antecedido por uma
folha de rosto que demarca o início do romance. Confinada no território ficcional
do romance, o dispositivo não possui validade jurídica alguma. Isso fica ainda
mais claro quando encontramos, junto à ficha catalográfica, a nota de direito
autoral padrão, no babelismo que caracteriza essas notas, que parecem ser
paródias de si mesmas:

Copyright 2000 by Espólio de Oswald de Andrade. Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer
meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. – nem
apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa
autorização da editora.

Tal neutralização se ampara, de algum modo, em certa interpretação da biografia


oswaldiana. De um lado, a nota estaria ligada à sua militância comunista. Na
década de 1930, o escritor – junto a outros companheiros do movimento da
Antropofagia – ingressa nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro, deixando-o
na década de 1940. Durante essa militância, Oswald foi preso, visitou Luis
Carlos Prestes na prisão (aliás, a sua relação com Prestes é uma sucessão de idas
e vindas, o que talvez ateste o comunismo heterodoxo que professou), e editou,
junto com Pagu, o jornal O Homem do Povo, que acabou sendo empastelado por
estudantes de Direito do Largo São Francisco, em reação à publicação de uma
série de artigos criticando a defesa tradicionalista do direito burguês praticada
em São Paulo. O “marco” da adesão de Oswald ao comunismo é justamente o
prefácio a Serafim Ponte Grande. Nele, como se sabe o escritor renega o
movimento modernista como uma operação imperialista produzida pela alta do
café e esgotada com a crise de 1929. Assim, além da nota e do prefácio, o livro
saiu com uma lista de “Obras renegadas” “Do autor”, em que sua produção
literária anterior era descartada. Cansado de ser, como ele mesmo afirma,
“palhaço da burguesia”, a nota antiautoral poderia ser lida, dentro desse contexto,
como um documento de sua época de “casaca de ferro da revolução proletária”,
isto é, como um retrato de sua adesão ao ideário comunista de socialização dos
bens. O problema dessa explicação é que ela supõe um corte abrupto na biografia
de Oswald entre seu período vanguardista e aquele comunista (quando talvez o
corte se situe alhures e não seja tão absoluto, como veremos). Todavia, apesar de
ter parado de militar no PCB, continuou criticando o Direito patriarcal burguês, a
herança, a propriedade etc., e defendendo uma sociedade sem classes – e sem
trabalho. Além disso, a própria adesão de Oswald ao Partidão talvez não possa
ser encarada como uma mudança radical, mas, como sugerimos, algo que se
tornara uma possibilidade desde que começou a adotar uma postura firme contra
a propriedade.
De outro lado, a nota poderia se conectar tanto com a imagem de bonachão,
de eterno piadista, que se criou de Oswald, quanto com os procedimentos
artísticos de apropriação de que ele fez uso sucessivamente: a paródia, o pastiche,
a colagem, a cópia descontextualizada etc. Nesse sentido, ela seria apenas uma
paródia às notas de direito autoral que conhecemos. O problema é que, no
mesmo gesto de afirmar o quão longe Oswald ia com a técnica da paródia,
empurrando a arte além de seus limites textuais, ao encarar a nota antiautoral
como um gesto “puramente” estético, de certa forma se anula o seu caráter de
47

disposição de vontade, o seu caráter político. Vista como uma forma de derrisão,
o máximo que ela pode provocar é nosso riso, e não nosso cumprimento. Se a
apropriação como procedimento artístico visa justamente criticar os limites
impostos à arte, a sua reinserção dentro destes limites retira toda sua força.

22. A relação da Antropofagia com a cópia é em muito distinta daquela do movimento


anterior capitaneado por Oswald de Andrade. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil
colocava-se “contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (Andrade, 2011a: 63;
grifos no original). O que nele é reivindicado sob o nome de “invenção”, porém, não é
uma creatio ex nihilo; não se trata de contrapor uma criação original à mera repetição.
Mais uma vez, a terminologia jurídica utilizada revela-se essencial para compreender o
que está em jogo. Etimologicamente, “invenção” deriva de in-venire, encontrar,
deparar-se com – e é este também o seu sentido jurídico: “invenção” é o termo técnico
do direito para indicar a aquisição de propriedade de um objeto achado, sem dono,
encontrado (em outras palavras, uma posse cuja aparência de propriedade, por não
conflitar com nenhuma outra, é reconhecida como legítima, e pode ser marcada). A
“invenção”, portanto, é um dos modos pelos quais se juridifica uma vida “virgem”,
pelos quais um fato se torna direito, pelos quais uma posse se converte em propriedade,
pelos quais um material prévio se torna autoral. É neste sentido que, em uma entrevista,
Oswald diz que o material da Poesia Pau-Brasil é encontrado e inventariado:
Pau-Brasil são os primeiros cronistas, os santeiros de Minas e da
Bahia, os políticos do Império, o romantismo de sobrecasaca da
República e em geral todos os violeiros. Pau-Brasil era o pintor
Benedito Calixto antes de desaprender na Europa. Pau-Brasil é o sr.
Catulo, quando se lembra do Ceará, e o meu amigo Menotti quando
canta o Braz.
Foi Colombo que descobriu a América e Vespúcio quem lhe
deu o nome. “A Poesia Pau Brasil”, saída das mãos marujas do
escrivão Caminha, sempre andou por aí, mas encafifada como uma
flor do caminho. Era oportuno identificá-la, salvá-la (Andrade, 2009:
45).
Na poesia Pau-Brasil não nos vemos diante de criações do nada, e sim de apropriações
de materiais que já estavam aí, mas que não estavam marcados, cujo sentido não estava
estabelecido. Ao contrário do que a frase inicial do Manifesto parece indicar (“A
poesia existe nos fatos”), na Poesia Pau-Brasil não há uma contraposição entre fato e
direito: através da “invenção”, os fatos devêm, imediatamente, propriedade nacional.

§ A bem da verdade, também a Antropofagia chegou a ser caracterizada, pelos


seus próprios integrantes, como uma “descoberta” no mesmo sentido. Assim,
lemos num “de antropofagia” que o movimento “Não foi inventado. Nem
importado. Foi descoberto, aqui mesmo, por Oswald de Andrade, que encontrou
a sua expressão vocabular na pintura bárbara e inteiramente nova de Tarsila do
Amaral”.

§ Possivelmente, o melhor exemplo de invenção seja dado pelo duplo de Oswald,


em uma resposta em forma de carta aberta a Raimundo Moraes, publicada no
Diário Nacional de São Paulo a 20 de setembro de 1931. Ali, Mário de Andrade
(1988: 426) reconhece que Macunaíma não passaria de uma sucessão de
materiais alheios, a não ser por um detalhe na capa:

Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade,
é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia
48

a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o sr., na cena da Boiúna. Confesso


que copiei, copiei às vezes até textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os
etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases
inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais,
devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua
Portuguesa. Isso era inevitável pois que o meu... isto é, o herói de Koch-Grünberg,
estava com pretensões a escrever um português de lei. O sr. poderá me contradizer
afirmando que no estudo etnográfico do alemão, Macunaíma jamais teria
pretensões a escrever um português de lei. Concordo, mas nem isso é invenção
minha pois que é uma pretensão copiada de 99 por cento dos brasileiros! Dos
brasileiros alfabetizados.
Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao
menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele
mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem desde Gregório de
Matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em
provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence
a Portugal. Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar.

Não é o material, o conteúdo – totalmente pilhado, como admite seu autor – que
torna Macunaíma um objeto próprio. É um nome na capa – um título de
propriedade, o que se torna evidente na comparação com a descoberta e
pertencimento do Brasil por e a Portugal, tão pouco casual quanto a invenção
marioandradiana. Os antropófagos, com seu poder de síntese e sua ironia mordaz,
já o haviam notado e dito num pequeno box simulando anúncio publicado na
edição de 12 de junho de 1929:

brevemente:
2a edição de
MACUNAÍMA
lendas indígenas
com capa de
Mário de Andrade

§ É interessante, nesse sentido, pensar o gesto de apropriação de Macunaíma


pelos antropófagos como um gesto de posse contra a propriedade, contra a
assinatura-título (que era encarada como uma falsificação: nesse caso, uma
grilagem das “lendas indígenas”). De fato, em um “Moquém” assinado por
Tamandaré e voltado contra o modernismo (num indício claro de que os
antropófagos se situavam mais na década de 1930 que na de 1920), a obra é
reivindicada como a única produção do modernismo, que, porém, cede à
aproximação da Antropofagia:

Mas o movimento modernista produziu coisa alguma? Produziu. Produziu


“MACUNAÍMA”, que o sr. Mário de Andrade teve a ideia genial de transpor das
lendas amazônicas coligidas por Amorim e outros, copiando-lhes mesmo a
adorável linguagem poética, o que torna o seu trabalho verdadeiramente homérico,
no bom sentido. “MACUNAÍMA” é o nosso livro cíclico, a nossa Odisseia. Mas
ele já cede á aproximação da “descida antropofágica”. – “MACUNAÍMA” pois,
os antropófagos a reivindicam para si. O cristianismo, que nós combatemos com
tanta coragem, encontra nele a primeira tacapada séria que na sua cabeça já se deu
após os festins de Cunhambebe e outros heróis de bastante caráter (grifo no
original).

Por outro lado, como se sabe, embora tenha publicado a entrada da rapsódia no
número inicial da Revista e colaborado nas duas dentições, Mário se sentia
altamente desconfortável com a sua associação à Antropofagia. Assim, por
exemplo, em carta a Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Ataíde) de 19 de maio
49

de 1928, ele se queixa disso (e em cartas subsequentes, não cessa de sublinhar,


em sentido contrário ao “Moquém”, certo simbolismo cristão na ascensão de
Macunaíma aos céus):

E vai também a Antropofagia [refere-se a um exemplar da Revista de


Antropofagia] que não sei como é que o Alcântara [Machado] não mandou pra
você. Sobre ela tínhamos muito que falar... Antes de mais nada: não tenho nada
com ela, mas já estou querendo bem ela por causa de ser feita por amigos. Só
colaboro (...). Mas a respeito de manifestos do Osvaldo eu tenho uma infelicidade
toda particular com eles. Saem sempre no momento em que fico malgré moi
incorporado neles (...). O Osvaldo vem da Europa, se pau-brasilisa, e eu
publicando só então o meu Losango cáqui porque antes os cobres faltavam, virei
pau-brasil pra todos os efeitos. Tanto assim que com certa amargura irônica botei
aquele “possivelmente pau-brasil” que vem no prefacinho do livro. Quê que havia
de fazer!... (...). Macunaíma vai sair, escrito em dezembro de 1926, inteirinho em
seis dias, correto e aumentado em janeiro de 1927, e vai parecer inteiramente
antropófago… Lamento um bocado essas coincidências todas, palavra.
Principalmente porque Macunaíma já é uma tentativa tão audaciosa e tão única
(não pretendo voltar ao gênero absolutamente), os problemas dele são tão
complexos apesar de ele ser um puro divertimento (foi escrito em férias e como
férias) que complicá-lo ainda com a tal de antropofagia me prejudica bem o livro
(Andrade e Amoroso Lima, 2018: 115-116).

Mais curioso ainda é constatar que, a rigor, o movimento antropófago não


produziu nenhuma obra. Aquelas comumente associadas à Antropofagia, tais
como os quadros de Tarsila da época, Serafim Ponte Grande ou então Cobra
Norato, de Raul Bopp, foram, assim como a rapsódia de Mário, iniciados antes
da Revista e seu Manifesto – e no caso dos quadros da Tarsila, esses foram mais
o ponto de partida e inspiração constante da vanguarda canibal que seu produto:
assim, segundo um dos dois mitos de origem da Antropofagia (ao lado do
episódio do “Restaurante das Rãs”), Bopp, diante do Abaporu, teria sugerido
“fazer um movimento em torno deste quadro”, sugestão que, aponta Gonzalo
Aguilar (2010: 35), “adquiriu um caráter literal quando, pouco depois,
publicaram um manifesto na Revista de Antropofagia: uma versão desenhada do
quadro é rodeada pelos postulados escritos por Oswald de Andrade”. Some-se a
isso o fato de que, ao fim e ao cabo, nenhum dos livros projetados tenha sido
publicado (tanto os que constam na Bibliotequinha referida por Bopp, quanto os
mencionados por Oswald em entrevistas, como “Hipótese Antropofágica”, de
sua autoria, “Iurupary”, “condensação da política e sociologia”, que Oswaldo
Costa estaria “compondo com a sua força estupenda”, “Tenupá-Oikó”, “estudo
sociológico (…), ensaio sobre a filosofia do ‘Deixa está!’”, o qual estaria sendo
preparado por Clóvis de Gusmão, etc. [Andrade, 2009: 85]). E, por fim, a
circunstância sintomática de que o próprio movimento se desfaria com a
“conversão” da maioria de seus integrantes – Oswald de Andrade, Pagu,
Oswaldo Costa, Geraldo Ferraz, Jayme Adour da Câmara – ao comunismo.
Nenhuma obra, nenhum original. Mas múltiplas aproximações e apropriações. A
Antropofagia não é um modo de produção de obras. É um modo de consumo (e
mesmo de consumação) delas: um gesto de leitura mais que de escritura, um
gesto de leitura à contra-pelo, à contra-assinatura, que traz à tona a ausência de
legitimidade e autoridade da escritura. Posse sem propriedade. Posse contra a
propriedade.

§ A ideia da invenção como encontro/descoberta que se torna propriedade terá


larga fortuna. Assim, não só o próprio Oswald utilizará a alcunha “invenção”
para caracterizar os romances Miramar e Serafim, o que impactará os poetas
concretos, quanto estes publicarão nos anos 1960 uma revista chamada
50

exatamente de Invenção. Mas talvez mais significativo para a tradição da


invenção seja o Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa (e lembremos que o
“manifesto” concreto se chamará plano-piloto para poesia concreta, em alusão à
construção da capital). Segundo o urbanista, o projeto “nasceu do gesto primário
de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em
ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. É significativo que, ao usar o termo
“posse”, o arquiteto e urbanista tente atar com uma suposta “tradição colonial”,
também invocada por Oswald quando da descrição da poesia Pau-Brasil:
“Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda
desbravador, nos moldes da tradição colonial”. Certamente, o que tinha em
mente eram os gestos colonialistas de tomada da terra, gestos de apropriação
que fundariam o direito, o nomos, em um território anômico. E não é um acaso,
assim, que esse “ato deliberado de posse” tenha reproduzido o mesmo processo
excludente que seu paradigma colonial: para não falar da operação estratégica de
distanciar a capital das grandes manifestações e protestos (e o ideal de
construção de uma capital no centro geográfico do país data de pelo menos o
século XIX), é necessário lembrar que foram excluídos do Plano Piloto
justamente aqueles que traçaram a cruz, em decorrência da especulação
imobiliária, os operários-construtores da capital não o ocuparam, tendo sido
empurrados para zonas afastadas, onde se formaram as cidades-satélites. Desse
modo, comenta Geraldo Ferraz (1983: 159-160), um antigo integrante da
Antropofagia:

Nem no memorial do Plano Piloto se colocou a questão essencial contra a


exploração imobiliária, a saber, de que o solo urbano pertence à municipalidade e
não pode ser vendido, mas arrendado, para os usos estabelecidos no zoneamento
(...). Quatro projetos enviados pelos arquitetos de São Paulo, para o concurso,
faziam praça dessa condição, para que Brasília não fosse uma venda de terrenos.
Mas para Juscelino e a turma da Novacap, o que interessava, mesmo, era o lucro
que aquela artificial criação urbana poderia dar.
Assim se fez Brasília (...). E como não houve o planejamento regional para
nele se inserir Brasília, ali se deu o fenômeno mais virulento da proliferação da
favela.

23. Também no sentido da viagem, os dois movimentos se diferenciam. No prefácio a


Pau Brasil, Paulo Prado (2003: 89) vê na viagem uma forma de encontrar a própria
identidade: “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place
Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”. De todo
diverso é o sentido da exterioridade para a viagem antropófaga, a que foi dada o nome
de exogamia (e que corresponderia no Direito Antropofágico, poderíamos dizer
parodicamente, ao direito de família):
Exogamia é a aventura exterior. O homem-tempo depois de Einstein
é feito de momentos que são sínteses biológicas. Para a formação de
cada um desses momentos ele arrisca o pelo numa aventura
exogâmica. Realizada a síntese, ele a integra, como a ameba integra
o alimento e busca outra aventura exogâmica.
A exogamia aqui não visa manter uma estabilidade (como no esquema freudiano da
proibição do incesto, instituído de modo a evitar a guerra fratricida, que abordaremos
no próximo capítulo), mas a coloca em perigo (“arrisca o pelo”). “Isto que o novo
credo da antropofagia”, lemos na “Apresentação de Raul Bopp” feita por Oswald de
Andrade (in Bopp, 1998: 37), “determinou como ‘exogamia’, essência do homem na
busca da aventura exterior que é toda a vida – Raul Bopp o fez procurando o Brasil,
seu ambiente, por todos os caminhos da fome emotiva”. O exemplo de Bopp, que
51

Murilo Mendes definiu como “viajante por excelência” (in Bopp, 1988: 42), é
instrutivo para contrapormos a exogamia à viagem identitária de Pau Brasil (e
Oswald mesmo o faz, considerando Cobra Norato “diverso do Pau Brasil litorâneo”
[Andrade, 2011b: 64]): tendo cursado cada ano da graduação em Direito em uma
cidade diferente, dado várias voltas ao mundo e feito carreira como embaixador, foi
um verdadeiro globe-trotter antropófago que varou o mundo à procura de seu país, e
encontrou nele o mundo (subversão da subsunção, da relação entre parte e Todo): “a
maior volta ao mundo que eu dei foi na Amazônia”. E é seguindo o “exemplo de Raul
Bopp” e o “incitamento de Oswald às grandes e perigosas aventuras” que Jayme
Adour da Câmara (s/d: 13) decide fazer sua viagem antropófaga pela Europa, que
resultará no “documentário de viagem” Oropa, França e Bahia (do qual grande parte
é dedicada aos prenúncios da Segunda Guerra Mundial, em especial ao “problema
judeu” e ao “corredor polonês”, feridas abertas da Primeira, e cujo título, além de se
referir a um dote que Macunaíma receberia na rapsódia de Mário, foi apropriado de
uma obra projetada por Oswald em 1926: Oropa, França e Bahia e outros estados
poéticos, cujo estudo de capa conta no arquivo de Tarsila). É preciso, porém, não
sobrevalorizar a viagem em si, como o fez Antonio Candido (2004b: 100; cf. também,
do mesmo autor, 2004a; 1992), para quem a Antropofagia culminaria na “utopia da
viagem permanente e redentora, pela busca da plenitude através da mobilidade”. O
próprio Oswald advertia que “viajar não era nada”, isto é, não era garantia: “Ronald
de Carvalho viajou muito, mas nunca passou daquelas coisas sentimentais e irônicas”
(Andrade, 2009: 348). Em uma carta a Oswald, datada de 9 de agosto de 1929 (e
transcrita nos anexos), Jayme Adour diferencia o simples “cosmopolitismo de cais de
porto” (a viagem pela viagem), o turismo, da descoberta exogâmica: “Mas o cerne,
como sempre, fica escondido. É preciso perfurar para se chegar até lá. E eu cheguei.
Descobri”. E aquilo que descobre é justamente a Antropofagia:
Sem dar muita valia a essas coisas, o finlandês se salva pelo seu
próprio instinto antropofágico. É a maior gente que já encontrei pelo
meu caminho, aqui por esses lados da Europa. Já vi oito nações de
gente. Todas grafadas de mentira e de pecado original. O finlandês,
não. Nasceu sem pecado. Antropofagicamente.
Aqui, novamente, a Antropofagia é definida pela não-aplicação da Lei (a ausência de
culpa), mas, num gesto aparentemente inusitado, é vislumbrada não (só) no ameríndio,
mas (também) no europeu.

§ A imagem da “utopia da viagem permanente e libertadora” evocada por


Candido refere-se, evidentemente, à cena da tomada do navio El Durazno e a
instituição de uma “ditadura” nudista a bordo, relatada em “Os antropófagos”,
que encerra Serafim Ponte Grande. Que o capítulo final do romance buscasse
transpor para a narrativa o ideário antropófago, fica patente não só pelo título ou
pela utilização, como epígrafe, de trecho de uma crônica de Montoya, bem ao
sabor dos encontrados na Revista de Antropofagia, mas ainda pelo fato de que a
tomada do navio e a revolução moral só se efetivam quando do contato com
águas do Novo Mundo: “na quitância da Europa, foi-lhes impossível qualquer
composição de ditadura natural a bordo”, e o golpe de estado arquitetado por
Pinto Calçudo só se torna realidade “quando reunida (...) a marinhagem em
pelotão freudiano no balão largado das auroras americanas” (Andrade, 2007:
206). E também pelas anotações que cobrem a contracapa de um dos manuscritos
de Serafim, nas quais, segundo Maria Augusta Fonseca (2006: 209), “procura
soluções que atará no capítulo”: “economia / prazer desprazer / céu inferno /
Antropofagia / O roubo / exogamia e posse / a compreensão da electroética /
52

Lenine / Torquemada”. Todavia, a leitura de Candido parece obviamente


induzida pelo prefácio oswaldiano, o qual, não custa repetir, satiriza a vanguarda
modernista, a própria obra e especialmente o capítulo em questão:

A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau-Brasil também.


Isso tinha que ruir com as cornetas da crise. Como ruiu quase toda a literatura
brasileira ‘de vanguarda’, provinciana e suspeita, quando não extremamente
esgotada e reacionária. Ficou da minha este livro. Um documento. Um gráfico. O
brasileiro à-toa na maré alta da última etapa do capitalismo. Fanchono.
Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual. Casado na polícia. Passando de
pequeno-burguês e funcionário climático a dançarino e turista. Como solução o
nudismo transatlântico. No apogeu histórico da fortuna burguesa. Da fortuna
mal-adquirida (Andrade, 2007: 57; grifo nosso).

Ou seja, poderíamos tomar como verdade sobre a solução canibal a palavra de


alguém que diz ter tomado a vacina comunista contra o sarampão antropofágico?
Em certo sentido, a viagem permanente se fecha ao encontro, logo, à alteridade,
logo, à Antropofagia: El Durazno transforma a mobilidade total em seu oposto, o
fechamento em um espaço restrito e enclausurado, um pedaço de terra,
imobilizado no seu movimento. Isto fica claro na “Ordine di tutti i giorni”
afixada no “Purser’s Office” do navio, que marca o início da utopia sexual: “Qui
non c’è minga morale, / É un’isola” (ibid.: 205). Estamos, assim, diante de uma
ditadura, implementada por Pinto Calçudo após este ter comprado os marinheiros,
e todo “princípio de infecção moral” ser punido jogando os responsáveis ao mar.
A vigilância e punição implacáveis talvez expliquem porque Torquemada, um
dos maiores nomes da Inquisição, apareça nas anotações do manuscrito
referentes ao capítulo; também a Revista de Antropofagia possuía, em sua
segunda dentição, uma seção intitulada “Santo Ofício Antropofágico”. Ou seja, a
Antropofagia não deixou de fornecer elementos para tal leitura: “Contra o
homem econômico de Marx – a realidade opõe o antropófago turista, o homem
perdulário” (Andrade, 2009: 83; grifo nosso), dirá Oswald em uma entrevista.
Contudo, como mostrou Pascoal Farinaccio (2001), a insuficiência dessa solução
transparece na própria estrutura do texto de Serafim, independente da intenção do
autor, e ficaria nítida com os “contra-movimentos” da narrativa que seguem os
gestos de liberação puramente pessoal. No caso mais específico do El Durazno, a
centralidade da conjunção adversativa numa das frases iniciais do capítulo faz tal
papel de contra-movimento: “Estavam em pleno oceano mas tratava-se de uma
revolução puramente moral”. Explica Farinaccio (2001: 100-101): esse ‘mas’
central, por um lado, evidencia o limite da revolução alcançada, ‘puramente
moral’, por outro, sugere um horizonte revolucionário mais perfeito, a que o
‘mundo sem calças’ de El Durazno contemplaria apenas parcialmente”. Além
disso, devemos atentar para o fato de a tomada do navio não ser levada a cabo
por Serafim, já morto, mas por Pinto Calçudo, que o protagonista já havia
expulsado do romance. Some-se a isso o penúltimo capítulo, “Errata”, que tem
por epígrafe a “frase feita” “Os mortos governam os vivos” e narra a confecção
do retrato de Serafim. O pintor contratado para realizá-lo termina “louco como
um silogismo”, inaugurando “as celas de luxo do Asilo Serafim”, tamanhas as
exigências contraditórias da família quanto à verossimilhança do retrato:

O pintor trabalhou pacientemente, honestamente, furiosamente. Mas o retrato não


saiu parecido. Dona Lalá achava-o magro, a Beatriz gordo e o Pombinho era da
filial opinião de que ele tinha as sobrancelhas carregadas de chumbo explosivo.
O pintor refez o trabalho. Mas Celestino notou que faltava um detalhe. Ele
mexia a pontinha do nariz quando falava (Andrade, 2007: 199).
53

El Durazno pode ser lido, então, como a tentativa, por parte de Pinto Calçudo (e,
portanto, sujeita a sua perspectiva), de construir o legado de Serafim, o seu
retrato, a sua tradição, a tentativa de criar um local onde o espírito do
antropófago sobreviveria à sua própria morte. Em outras palavras: “Os
Antropófagos” constitui uma parábola, avant la lettre, tanto da ambigüidade da
estratégia apropriativa que sempre pode resvalar na estratégia identitária
consubstanciada na invenção (a conversão da posse em propriedade), quanto da
própria institucionalização do modernismo, cujos apogeus são a já referida
construção de Brasília (sintomaticamente, uma exposição de 2002-2003 se
intitulava Da Antropofagia à Brasília), e a II Bienal de Arte Moderna de 1954 –
sabemos, pelo relato de seu filho Rudá, o quanto Oswald se emocionou com ela
(Candido, 2004a: 66; cf. Andrade, 2009: 355-6).

24. A possibilidade de ver o finlandês como antropófago não é uma projeção da


identidade no outro. Antes, implica uma não essencialização da Antropofagia: “não se
deve confundir volta ao estado natural (o que se quer) com volta ao estado primitivo (o
que não interessa)”, escreve Oswaldo Costa logo no primeiro número lançado da
Revista. Em “uma adesão que não nos interessa”, texto publicado na edição de 12 de
junho de 1929 e dedicado a marcar as diferenças com o verdeamarelismo (cujos
integrantes “querem o gibão e a escravatura moral, a colonização do europeu arrogante
e idiota e no meio disso tudo o guarani de Alencar dançando valsa”), Poronominare
esclarece que não se trata de um retorno a um estágio anterior, mas de uma “descida
antropófaga”: “Antropofagia é simplesmente a ida (não o regresso) ao homem natural
(…). O homem natural que nós queremos pode tranquilamente ser branco, andar de
casaca e de avião. Como também pode ser preto e até índio. Por isso o chamamos de
‘antropófago’ e não tolamente de ‘tupi’ ou ‘pareci’ (…), pois o antropófago não é índio
de rótulo de garrafa. Evitemos essa confusão de uma vez para sempre! Queremos o
antropófago de Knicker-bockers e não o índio de ópera”. Do mesmo modo, Clóvis de
Gusmão irá dizer, em carta a Garcia de Rezende, parcialmente publicada por este como
“Nota ligeira” no Diário da Manhã de Vitória em 17 de maio de 1929 (e que
transcrevemos nos anexos): “Para a antropofagia o índio não é o único símbolo. Mas o
maior, o mais forte dos símbolos, o símbolo-terra. Na antropofagia cabe o negro, o luso
sadio, o cigano do nordeste”. É este deslocamento exogâmico da identidade (o
descentramento da essência) que explica por que Oswald, ao tentar dar cidadania
filosófica à Antropofagia em A crise da filosofia messiânica, optou por igualá-la ao
Matriarcado e buscar seus rastros não só na história ameríndia, mas na experiência
“ocidental”. Se o antropófago não pode ser igualado ao ameríndio, isto é, se não pode
ser identificado exclusivamente nele, se, ao contrário, como vimos, a Antropofagia é a
“única lei do mundo”, a “expressão mascarada de todos os individualismos, de todos
os coletivismos”, então ela está inscrita, ao menos potencialmente, em toda a história e
povos humanos. O problema, contudo, é que ela não se dá a ver explicitamente no
tempo cronológico da propriedade que rege o que costumamos, ingenuamente, chamar
de história (ou, menos ingenuamente, de “história oficial”). Antes, constituindo um
“mundo não datado, não rubricado”, ela transparece só na forma de vestígios, de
rastros, que se inscrevem na história como potências de subverter a própria
temporalidade da história: uma história sem data. Oswald estava consciente deste
problema, e propôs, como método de investigação destes rastros, a “Errática, uma
ciência do vestígio errático, para se reconstituir essa vaga Idade de Ouro, onde fulge o
tema central do Matriarcado” (Andrade, 2011a: 152).
54

§ Se não compreendermos a Errática (que guarda íntima conexão com métodos


de investigação historiográficos que só foram enunciados tempos depois, tais
como o “paradigma indiciário”, de Carlo Ginzburg [1989], e o conceito mais
recente de “assinatura”, de Giorgio Agamben [2008]), ou seja, se não
compreendermos o deslocamento exogâmico efetuado por Oswald nas teses e
ensaios que passa a escrever na década de 1940, não poderemos entender a
aparente dualidade do Direito Antropofágico (e da Antropofagia como um todo).
Daí a importância fundamental do recente livro de Gonzalo Aguilar (2010), que
cumpre com maestria a tarefa de reabilitar e elucidar o sentido da “ciência do
vestígio errático”: os “sinais” de que fala o Manifesto são, contemporaneamente,
rastros do passado e roteiros a cumprir, itinerários do “espaço do porvir”. Se o
tempo cronológico é o tempo do “irrecuperável”, o tempo da Antropofagia e do
Matriarcado, por sua vez, é um tempo (em) que não (se) pode se perder, porque é
um tempo (em) que não se pode ter. Por mais “morto” que o título seja, é
possível fazer contato com ele. Erraticamente, seguir os vestígios do passado é
criar um roteiro para o presente.

§ Ainda está para ser escrita uma história que explique como e quando a
Antropofagia passou a ser interpretada como um programa nacionalista, portanto,
identitário, no qual se trataria de “devorar” e internalizar aquilo de “bom” que as
outras nações possuem, ou seja, de tornar próprio o alheio, de fortalecer (e
enriquecer) o próprio. É evidente que, por mais que certas passagens dos
antropófagos apoiem essa leitura, ela não se sustenta em uma análise mais detida
e sistemática de seus textos, especialmente do Manifesto Antropófago, como tem
insistido Eduardo Sterzi. A meu ver, na base de tal interpretação está o gesto de
traçar uma continuidade sem rupturas entre o Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
esse sim de viés mais nacionalista e identitário, e o Manifesto Antropófago,
lendo este pelos termos daquele. É no Manifesto da Poesia Pau-Brasil que
encontramos o vocabulário não só da “invenção” enquanto conversão da posse
em propriedade, como também aquele da “balança comercial” (“poesia de
importação”, “poesia de exportação”), ou, se preferirem, do “comércio das
Nações” (“Acertar o relógio império da literatura nacional”). É nele também que
encontramos afirmações decididamente identitárias e nacionalistas, como
“Apenas brasileiros de nossa época”. Todavia, o Manifesto Antropófago não
opõe o brasileiro ao estrangeiro (sequer menciona o “Brasil” ou o “brasileiro” de
forma substancialista – cf. cap. 3), não fala em importação ou exportação (a não
ser, de forma irônica, ao episódio envolvendo Vieira e o açúcar, numa alusão à
desigualdade colonialista nas trocas comerciais). O canibalismo ritual é toda uma
outra relação entre o próprio e o outro, na qual, ao contrário da visão comum, o
objetivo não é incorporar a alteridade na mesmidade, o alheio na identidade, mas
outrar-se, ver a si mesmo sob a perspectiva do outro.

25. Encontramos uma tentativa avant la lettre de uso da Errática na edição de 7 de


abril de 1929 da Revista. Ali, Jayme Adour da Câmara apresenta uma inusitada
“História do Brasil em 10 Tomos”, que não passam de dez curtos parágrafos, alguns
de apenas uma frase (outra “redução”), dedicados a Rocha Pombo, um dos
representantes do que chamamos de “história oficial”. A “história do brasil” que
expunha, porém, era, inusitadamente, a da relação do ameríndio com a França. E não
é exatamente a história no sentido de um processo que ele nos conta, mas a história de
vestígios de contato deixados. Na sumarização que Adour apresenta, o desleixo da
colonização portuguesa é oposto à descoberta do país, a “segunda vez pelos
franceses” (IV), que, ao contrário dos lusos, entenderam “a significação do novo país”
(VIII): “Enquanto Portugal nos enviava os seus colonos, da França vinham até nós os
55

seus melhores cavalheiros (…). E das brumas da nova terra foi surgindo a França
Antártica” (VII). A força deste marco inaugural teria sido tamanha que, mesmo depois
da expulsão dos franceses (“Dolorosa foi essa separação. Separação vital, tremenda!”
– VIII), se manteve uma “ligação filosófica da França eterna ao Brasil novo e
misterioso” (X), que vai de Montaigne até o surrealismo, passando por Rousseau: “A
América revelou à Europa o homem simples, o homem natural, integrado na sua
máxima expressão de liberdade” (X). Aquilo que o Brasil apresentava à França
carregada de “história” (e esta ligação é o último “tomo” de nossa história) não era
um estágio pré-histórico a ser restituído (o “primitivo”), mas “o homem natural,
integrado na sua máxima expressão de liberdade”, isto é, a possibilidade de fazer
história: “E aqueles homens simples mandados do Brasil à corte de França, na
coroação do Rei, estranharam que se dignificasse o homem fraco e mirrado, deixando
a seu lado o homem forte que tudo pode. E esse reflexo do homem forte e simples
impressionou o espírito dos filósofos. Montaigne. E o que era uma mera sugestão,
mais tarde se positivou numa campanha reivindicadora”, ou seja, na Revolução
Francesa. Para além da evidente francofilia (que talvez adquira outro sentido a partir
do que Beatriz Perrone-Moisés [2008] tem chamado de “coletivo franco-indígena”), o
que está em jogo é uma inversão do sentido (em todos os sentidos) da história. Anos
depois, ao escrever A marcha das utopias, Oswald de Andrade (2011a: 225) faria uma
comparação semelhante, ao situar a “geografia das Utopias (…) na América”:

As Utopias são (…) uma consequência da descoberta do novo


homem, do homem diferente encontrado nas terras da América (…).
A descoberta do Novo Mundo veio trazer ao panorama da cultura
europeia um desmentido paradisíaco. O ecumênico cristão caía de
um golpe. Do outro lado da terra – que era redonda e não chata e
parada, com o céu em cima e inferno embaixo – havia gente e gente
que escapava por completo ao esquema valetudinário da Idade
Média, o qual fazia desta vida um simples trânsito (ibid.: 224,
277-278).

Mas o que é este “novo homem”, este “homem diferente”, de que fala Oswald, ou este
“homem simples”, este “homem natural” de que fala Jayme Adour? Por que o
encontro com ele gera uma utopia, no fundo da qual “não há somente um sonho, [mas]
há também um protesto” (ibid.: 284)?

§ Aqui nos reencontramos com a afirmação do Manifesto, segundo a qual “sem


nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”.
Ainda que Silviano Santiago (2006: 143) afirme que, apesar de não estar “de
todo incorreto”, “Oswald de Andrade terá certamente exagerado”, é preciso
lembrar de O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos, que,
nas palavras de Oswald, “estudou, escudado por uma ótima documentação, as
influências do nosso selvagem sobre a eclosão do mundo moderno que teve seu
ponto alto na Revolução Francesa. Trata-se de uma transmutação de valores,
lenta, árdua e vitoriosa” (Andrade, 2011a: 316). Além disso, em seu livro sobre a
Antropofagia, Federico Pensado (2003: 37) lembra a importância da obra do Inca
Garcilaso, Comentarios reales, publicada em Lisboa em 1609, para o debate que
dará na Revolução Francesa:

No calor da Revolução Francesa, a Academia de Lyon organizou um concurso de


ensaios com o tema ‘A influência do descobrimento na felicidade do gênero
humano’. O trabalho vencedor foi o do abade Genty, o qual revelava que os
ensinamentos do Inca Garcilaso [de La Vega] integraram o contexto do debate
56

que provocou a Revolução Francesa e que posteriormente se cristalizariam na


Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A obra de Garcilaso, diz ainda Pensado,

escrita com o propósito de “declarar e ampliar muitas coisas que eles [os cronistas
espanhóis] apareceram para dizer mas deixaram imperfeitas” e de demonstrar que
os Incas “eram gentis e não bárbaros”, despertou um grande interesse entre os
círculos europeus. A ideia de uma sociedade igualitária, com participação do
Estado, inspirou os utopistas e reformistas dos séculos XVII e XVIII. A marca de
Garcilaso pode ser encontrada em Campanella, Bacon, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau, etc. (ibid.).

26. O célebre episódio dos três ameríndios (levados exoticamente, não custa dizer)
diante da corte francesa a que Jayme Adour se refere foi narrado por Montaigne (1961,
I: 268-269) no ensaio que dedica aos “Canibais”:
Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número
de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que
se achavam junto do rei (provavelmente se referia aos suíços da
guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais
natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar
observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as
comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos,
esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua
linguagem metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham
extraordinário que essas metades de homens suportem tanta
injustiça sem se revoltarem e incendiarem a casa dos demais.
O discurso (do) canibal (e de Montaigne) aparece como um ponto de vista que
questiona a necessidade (a transcendentalização) das conformações (convenções)
sociais e das ações humanas, revelando sua contingência. Neste sentido, é importante
notar que a descrição das sociedades ameríndias por Montaigne é, grosso modo, feita
de forma negativa:

um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer


natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece
sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política,
nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão,
partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da
ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos;
o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não
usam nem vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a
mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o
perdão, só excepcionalmente se ouvem (ibid.: 262).
A ironia que encerra o ensaio (“Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo,
essa gente não usa calças!” [ibid.: 269]) participa também desta estratégia, na qual,
porém, o que está em jogo não é o espelhismo que vimos operar nas fontes coloniais,
nem se reduz a um processo de relativização cultural (os bárbaros são sempre os
outros), mas o esvaziamento do parâmetro (a desativação da Lei). O ponto de vista
reproduzido por Montaigne não é (somente) o ponto de vista do indígena, e sim um
ponto de vista nu, que nasce da retirada da roupagem do Velho Mundo quando de
seu contato com o Novo Mundo e torna possível a abertura a múltiplos pontos de vista.
O canibal não é um novo parâmetro (roupa): sua utilização por Montaigne é um gesto
57

que aponta não para a nudez do rei, mas para a artificialidade de suas vestes, de toda
veste.

27. Frank Lestringant viu no clássico ensaio de Montaigne não só o protótipo do


indígena guerreiro e nobre, mas também a figura do “canibal que cospe” na cara do
inimigo que irá lhe comer. “Mais do que comer, ele fala. Mais do que ingerir, ele
profere”, diz Lestringant (1997: 158-159):

Eles [os canibais de Montaigne] se escandalizam também com o


espetáculo da desigualdade exposto nas ruas. É o momento em que
têm dúvidas – ou desejam, não sabemos bem – que os mendigos e
necessitados, que se arrastam à porta dos ricos, “desencarnados de
fome e pobreza”, “os esganem ou ponham fogo às suas casas”. Da
“derrota triunfante”, do canibal agonizante cercado por seus
inimigos, que ele domina do alto de sua coragem e desprezo, à
profecia incendiária que um de seus irmãos de sangue endereça, do
meio de uma das mais belas cidades, aos europeus curiosos e
intrigados, é sempre a mesma palavra vingativa e devastadora que
reflui, empurrada da vítima para o verdugo real ou simplesmente
potencial. O vencedor da história bem poderia ser o grande vencido.
Assim é o europeu, cuja sociedade civil, dominada pelo
antagonismo entre pobres e ricos, é ameaçada de explosão.

O sentido da proposta de Oswald de “reabilitação do primitivo” a partir de Montaigne


(Andrade, 2011b: 372-373) aqui se torna mais claro: o antropófago é aquele que, no
mesmo gesto em que apropria, desapropria, tornando impróprio o próprio –
vomitando impropérios e revelando possibilidades outras para o que parecia
determinado.

28. É chegada a hora de tentar elucidar porque o canibalismo ritual tupinambá pôde ser
traduzido na fórmula da “posse contra a propriedade”, o que implica também buscar
desfazer o nó entre a Antropofagia e a ideia de uma devoração ou deglutição do que
vem de fora para construir ou fortalecer o que é próprio, a saber, a ideia corrente do
movimento antropófago como aquele que postula a incorporação de qualidades,
propriedades exógenas para uso interno: o canibal como aquele incorpora
propriedades do outro para seu próprio ser. Muitas vezes, foi o próprio movimento
que postulou essa concepção: assim, lemos no “de antropofagia” do quarto número da
segunda dentição: “A antropofagia, corrigiu a impossibilidade do fechamento dos
portos pelo mais ingênuo e brasileiro processo nacionalizador que é esse da
assimilação das qualidades. Só a comunhão antropofágica resolverá o problema da
formação da língua brasileira e do Brasil brasileiro. Sem roupagens. Sem artifícios.
Cheio de arestas e de personalidade”. Como apontoui Oscar Calavia Sáez (1998: 83,
87), essa concepção se embasa “crença bem ocidental de que comendo algo se
absorvem seus caracteres ou seus poderes”, quando o escopo do canibalismo ameríndio
não seria o de “acumular vidas”, mas sim o de “[t]rocar uma vida por outra (…); devir
outro e não defender uma identidade”:
Há poucas ideias mais ocidentais e menos canibais que a
mestiçagem. É o sólido conceito de identidade do velho mundo que
permite pensar em seres mistos em que os componentes ainda
persistem. As mitologias europeias estão povoadas de seres
compostos: centauros, sereias, marxismo-leninismo, cultos
58

afro-brasileiros; as mitologias ameríndias tratam de seres que se


transformam. Há uma troca e não uma acumulação de imagens. O
canibalismo não é sincrético nem barroco.

Se a antropologia tem infirmado com veemência tal concepção incorporativa do


canibalismo, é preciso notar também que o próprio Oswald seguidamente insistiu que a
antropofagia ritual não era movida por questões de “substância”: não se comia o
inimigo “por gula ou por fome”. Antes, interessava seu caráter “mágico”, “religioso”,
ou “simbólico”, que “dá a idéia de exprimir um modo de pensar, uma visão de mundo”
(Andrade, 2011a: 138). Some-se a isso o fato de que, poucas vezes, ao contrário do que
o senso comum apregoa, ele relacionou o canibalismo à absorção de qualidades do
devorado. Afinal, nas cerimônias antropofágicas tupi, “a ingestão da carne da vítima,
em termos quantitativos, era insignificante; ademais, são muito raras e inconclusivas as
evidências de quaisquer virtudes bromatológicas atribuídas ao corpo dos inimigos”
(Viveiros de Castro, 2002: 462), para além do fato de ao matador em si ser vedado
tomar parte da devoração: o devorador por excelência, aquele que matava o prisioneiro
a ser devorado pela aldeia, não devorava carne, devorava outra coisa. O canibalismo
ritual é o “contrário da sucção narcísica da identificação: quem come é que (se) altera”
(Viveiros de Castro, 1986: 669). Isso se dá não só por tal “princípio analógico da teoria
alimentar” (ibid.: 669), mas pela própria estrutura do ritual. Pois ali, aponta Oswald, se,
por um lado, tratava-se de devorar “o inimigo sagrado que é necessário transformar em
amigo”, por outro, “O ser comido batizava o que comia. O índio adotava o nome
daquele que comera” (Andrade, 2009: 73, 66). Trata-se de tornar o outro amigo para
tornar-se inimigo (de si mesmo). Apropriar-se do outro para deixar de ser próprio. O
processo descrito sinteticamente por Oswald encontra respaldo nos relatos coloniais
sobre o canibalismo tupinambá. Assim, em um primeiro momento do processo ritual,
se convertia o inimigo em amigo. “Os Tupinambá parecem ter desenvolvido uma
técnica de ‘domesticação’ dos inimigos”, diz Viveiros de Castro (1986: 663), que, em
outro lugar, complementa:

vários aspectos do cativeiro e execução dos inimigos atestam um


esforço de transformação do prisioneiro em um ser à imagem dos
Tupinambá, se já não o era: os europeus eram depilados e pintados à
moda da casa (caso de Hans Staden); os cativos deviam dançar,
comer e beber com seus captores, eventualmente acompanhá-los à
guerra; e a entrega de uma mulher ao cativo, sua transformação em
um cunhado, parece-me dever ser interpretada neste sentido, como
uma empresa de socialização do inimigo. Os Tupinambá queriam
estar certos de que aquele outro que iriam matar e comer fosse
integralmente determinado como um homem, que entendesse e
desejasse o que estava acontecendo consigo (Viveiros de Castro
2002: 232).

Depois, à execução do prisioneiro, se seguia a adoção de um novo nome pelo matador.


Embora os relatos sobre a antropofagia tupinambá sejam contraditórios, em sua
maioria encontramos uma relação entre a devoração do inimigo (ou ao menos, o ato
de rachar o crânio do inimigo a ele coligado, relação que não passou desapercebia
pelos antropófagos: “O nosso troféu clássico: o crânio do inimigo”, lemos num texto
da Revista) e a modificação (ou multiplicação) de nome por parte do
devorador/matador (se o inimigo não fornecia o próprio nome, a sua morte ou
devoração era, enquanto rito de passagem, condição de possibilidade de adquirir um
59

novo nome). Daí que a “domestição” (a oikeiosis) do inimigo atingisse “o requinte de


uma autêntica husbandry pois o cativo produzia filhos com a mulher cedida, os quais
seriam mortos e sobre eles novos nomes tomados” (Viveiros de Castro, 1986: 663).
Passo indispensável para que um homem pudesse se casar, rito de passagem à
plenitude da vida adulta, à formação integral de um guerreiro, aprisionar, matar e
tomar um nome do inimigo revela-se, desse modo, um curioso procedimento de
inversão: o matador “adorna” o prisioneiro como um semelhante, o “traveste” de
amigo apenas para, ao final, trocar a própria “roupa”, pois, após sua morte, “o inimigo
iria adornar seu matador” (ibid.: 662) com um novo nome. Como com Cunhambebe,
não se trata de rechaçar a semelhança do outro, mas de estranhar a própria – o outro
se torna amigo (próprio), e eu me torno outro (inimigo). E também como com o
famoso chefe guerreiro, importa acima de tudo o modo de falar. Afinal, entre uma
coisa e outra, entre a domesticação do inimigo e a adoção de um novo nome pelo
matador (transformação de si, rito de passagem para a sua transfiguração), há a cena
principal, o diálogo entre ambos, em “que mais parecia ele que estava para matar os
outros que para ser morto” (Anchieta apud Viveiros de Castro, 2002: 237), em que
um e outro pareciam

permutar suas posições – o cativo justificava sua morte, afirmando


sua condição de matador; caucionava a devoração que ia sofrer,
evocando os inimigos que comera; legitimava o nome que seu
executor iria tomar, lembrando o nome que deixaria; pedia a
vingança que o escolhera como vítima, porque só ela permitiria que
ele próprio fosse vingado: seu presente seria o futuro de seu
matador, seu passado foi o de um matador (Viveiros de Castro,
1986: 675; grifo no original).

Na Revista, são várias as remissões a esses diálogos, a começar por uma de Bopp
citada por Oswald no “Esquema”: “Veja só que vigor: – Lá vem a minha comida
pulando! E a ‘comida’ dizia: come essa carne porque vai sentir nela o gosto dos teus
antepassados.” Depois, um box no segundo número da segunda dentição apresentava
um “canto antropofágico dos tupiniquins”, em tupi e português, na versão de
Theodoro Sampaio extraído do mesmo Staden referido por Bopp:

A ti suceda, minha comida, coisa má


Tua cabeça quero cortar já
Meus parentes vingar aqui eu estou
Tua carne moquearei de certo depois do sol posto.

E duas semanas depois, aparece um “canto do prisioneiro que vai ser comido” (o
outro lado do diálogo), sem indicação da fonte, a não ser que provém “Dos
Tupinambás”): “Eu não me lamento. Os verdadeiros bravos morrem no país de seus
inimigos. O meu país é grande e os meus saberão vingar-me de vós”. O prisioneiro,
portanto, se dizia já vingado (pela certeza de que seus parentes o fariam), se
vangloriava de já ter matado ou comido muitos da aldeia de seus captores, insistia, pra
retomar o “canto de um desses prisioneiros” citado no relato de Montaigne (1961, I:
267) de que estávamos tratando, que a carne que estes comeriam tinha um sabor
familiar:

“Que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-lo;


em o fazendo comerão seus pais e seus avós que já serviram de
60

alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu. Estes


músculos, esta carne, estas veias, diz-lhes, são vossas, pobres loucos.
Não reconheceis a substância dos membros de vossos antepassados
que no entanto ainda se encontram em mim? Saboreai-os
atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne.”

Essa versão é especialmente instrutiva. Em primeiro lugar, porque deixa claro que
aquilo que era apropriado do outro pela devoração não era da ordem da substância
física, já que a carne do devorado, segundo este mesmo dizia, era composta pela carne
dos parentes dos devoradores, encarnando, assim, a domesticação “cultural” de que
fora objeto. Em segundo, porque torna patente que não se trata de uma assimilação de
qualidades, pois, ao afirmar a sua constituição corpórea como sendo a de seu grupo
captor (ou seja, que não há nada de diferente a ser incorporado), ele parece também
postular que – e esse é o ponto – em o comendo (em comendo alguém que foi
aparentado ao próprio grupo e que é composto biologicamente pela carne deste), seus
devoradores, no ato de o devorarem, deixarão de ser o que são e passarão a ser o que
ele é: um inimigo. Comer com a boca o corpo dessa boca que fala que sua carne é a
mesma daquela que come. Comer um outro tornado semelhante significa tomar a
posição do outro diante do semelhante:

a definição ou produção ritual do inimigo como sujeito, o processo


de subjetivação do outro necessário à sua assimilação pelo mesmo,
contém em si, eu diria mesmo como sua condição, o momento
inverso: a objetivação do matador, sua alteração pela vítima – sua
identificação ao inimigo como inimigo. (…). o que exatamente é
assimilado, quando se assimila o inimigo? (…) o quê, do inimigo,
era realmente devorado? Se não era sua substância (…), só podia,
então, ser sua posição, isto é, sua relação ao devorador, e, portanto,
sua condição de inimigo (…), onde o devorador assume o ponto de
vista do devorado, e o devorado, o do devorador: onde o “eu” se
determina como “outro” pelo ato mesmo de incorporar este outro,
que por sua vez se torna um “eu” (Viveiros de Castro, 2002: 289,
290, 462; grifos no original).

A “identificação” (termo chave aos antropófagos, como veremos no próximo capítulo)


“ao inimigo como inimigo”, ou a “identidade ao contrário (incorporando a acepção
quinhentista de ‘contrário’ = inimigo)” (Viveiros de Castro, 1986: 120): a inversão
posicional (enunciativa ou perspectiva) do diálogo cerimonial tupinambá sintetiza que
a antropofagia ritual consiste não numa apropriação que leva à propriedade, à
incorporação na identidade de uma característica alheia, à assimilação de um outro no
próprio, mas, numa posse contra a propriedade, um apossamento que torna o
impróprio próprio, apenas para transformar o próprio em impróprio – e fazer com que
seja indecidível autenticar, seja pela substância, seja pelos signos exteriores
(“culturais”), o que é próprio e o que é impróprio, e no qual o “eu” deixa de ter valor
prévio e próprio de identidade, e passa a se constituir, num processo interminável,
como o outro do outro.

§ Talvez tenha sido Caetano Veloso, em Verdade tropical, o primeiro a, com


rigor e vigor, ver de modo positivo a Antropofagia (e, em sua esteira, a
Tropicália) como “uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas
quanto para brasileiros”, ou seja, de estranhamento de si mais que de
incorporação do outro ao mesmo. Comentando essa passagem, Felipe Vicari de
61

Carli (2016: 293), dirá que “a antropofagia é mesmo uma maquinaria de


exotização, mais do que fetichização, do outro, e, este é o ponto, de si mesmo”.

§ Nesta perspectiva, é interessante atentar ao papel que os restos


desempenhavam no ritual antropofágico tupi, a começar pelos insultos que o
cativo cuspia na cara de seu devorador: “Os que lhes descrevem os suplícios e os
representam no momento em que são esbordoados, pintam-nos cuspindo no rosto
em meio a caretas. E, com efeito, até exalarem o último suspiro, não param de
desafiar os inimigos”, lemos em Montaigne (1961, I: 267), que, logo depois,
como vimos, percebe o mesmo movimento em outra cena, a cena colonialista de
Rouen (e daí a importância dos Ensaios para a elaboração da Antropofagia como
movimento anti-colonial). Mas o próprio corpo devorado não deixa de ser um
dejeto. “Tornado carne [ou bife, ou carne de gado: “res”, no original em
espanhol], o corpo humano re-emerge como um complexo de signos e valores
antes não detectados” pelo “critério universalizador do empreendimento
europeu”, diz Sara Castro-Klarén (1997: 197), para, a seguir, argumentar que a

cena canibal também coloca um desafio às taxonomias europeias amparadas na


lógica das oposições e exclusões. Os corpos humanos sem vida são, dentro dessa
lógica cultural, classificadas na categoria de ex-crementos e dejetos do processo
da vida e do ego. A lassidão e a nudez da morte é o abjeto, aquilo diante do qual
desviamos nosso olhar. Entre a vida e a morte há uma ruptura irreparável que não
permite nenhum outro uso do corpo humano. Em contraste, na cena canibal, em
que tanto os mortos como os vivos estão nus, e, portanto, indiciam uma
similaridade entre as partes, se produz uma perversão das diferenças e
similaridades apontadas acima. Se marca aqui uma continuidade por metonímia
entre a morte e a vida que desloca a categoria extra-ordinária conferida ao corpo
humano sem vida, pois que, ao ser consumido, deixa de ser o abjeto e se converte
em matéria vivificadora (ibid.: 198).

Aos impropérios e ao corpo convertido em resto, em res, coisa, carne, se soma,


no festim canibal, o cauim, bebida alcóolica produzida a partir da mandioca,
mastigada e cuspida para catalisar a fermentação. O antropófago se expele antes
de incorporar o outro. E é somente este ser desalojado de uma identidade Toda,
deste ser que deixou uma parte de si nas raízes, que teve outra parte de si
arrancada pelos insultos, que está com parte do outro, o cuspe do outro na sua
cara, a carne (o resto) do outro em seu corpo, é somente este ser que não é mais
que um resto de si que devora o outro. O ritual não vem a fortalecer ou
engrandecer uma identidade estabelecida. O outro não é devorado por um Todo
próprio (e nem é mais um Todo próprio em si mesmo) mas por um resto
impropriado. Eis a “identidade” do antropófago: resto + outro. Ou melhor, outra.
Continua Castro-Klarén: “talvez o mais importante do conjunto de fatores
determinantes associados à construção do complexo canibal é o tema ao mesmo
tempo manifesto e encoberto do corpo feminino enquanto elemento central na
constituição da economia material e sagrada das culturas tupi” (ibid.: 201). A
versão de “Montaigne assimila tudo que pode ser assimilado a um código de
vingança cristão, masculino e patriarcal e deixa de fora um resto – a presença
feminina no ritual – como matéria descartável e indigerível” (Castro-Klarén,
2000: 303). Afinal, na fonte do célebre ensaio sobre os canibais, e na maioria das
formulações das quais ele deriva e derivam dele, estão uma série de relatos e
gravuras, entre as quais as de Théodore de Bry, que se consagraram no relato de
Jean de Léry, e em que aparecem:

mulheres nuas, jovens e belas; (…) as amantes dos cativos, as quais (…) dão o
sangue das vítimas às suas crianças de colo e infantes; (…) mulheres que
preparam os órgãos pro cozimento; (…) as mulheres que supervisionam o
62

cozimento de cortes humanos no moquém; (…) as mulheres em menopausa com


seios caídos que lambem os dedos do repasto do festim (…). Nessa cena de
repasto, as mães devoram os filhos, as esposas comem a carne de seu marido, e os
bebês de colo alternam em suas bocas o sangue do corpo de seu pai e o leite do
peito de sua mãe (ibid.: 302).

As referências são, por um lado, ao costume do cativo se casar (e mesmo ter


filhos) com mulheres da aldeia daqueles que o aprisionam antes de ser morto por
eles, e, por outro – conforme dizem os cronistas e viajantes –, à avidez de
mulheres mais velhas pelo sangue e carne dos devorados, e isso para não falar da
mastigação do cauim, ao que se sabe, uma atividade eminentemente feminina.
Mesmo que a veracidade de partes dos relatos e representações seja contestável,
permanece o fato de que, nas suas entrelinhas, além da fascinação com o corpo
feminino pelos viajantes homens, transparece “o temor ao desejo sexual
feminino junto ao medo da morte nas mãos da mãe” (Castro-Klarén, 1997: 201).
Léry, missionário calvinista especialmente interessado em atacar a eucaristia
cristã e o suposto laço que o canibalismo tupi mantinha com ela, e grande
responsável pela disseminação das representações aludidas, não deixa, assim, de

intuir que o suposto repasto tupi implicaria uma referência a uma ordem
matriarcal em que a energia sexual seria gasta sem as distinções e regulações
impostas pela ordem patriarcal, que apropria o desejo sexual feminino sob a égide
da lei do pai. Na cena de Léry, o desejo feminino por satisfações corpóreas devora
o corpo do guerreiro. O desejo quebra todas as amarras e distinções impostas pela
ordem patriarcal (ibid.: 305).

O devir-matriarcal da Antropofagia oswaldiana, a própria associação entre


Antropofagia e matriarcado, tem aqui sua cena originária, a saber, a tentativa de
“restaurar a figura da mulher-mãe, em todos os seus estágios sexuais, ao centro
da cena antropofágica, com uma atenção especial ao corpo como um lugar para o
pensamento Tupi” (ibid.: 305).

29. Um dos poemas mais famosos de Oswald de Andrade (1972: 115) é o “erro de
português”, datado de 1925, que aponta para a possibilidade outra enunciada pelos
Tupinambá parafraseados por Montaigne:

Quando o português chegou


Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português

Condensando a oposição entre duas ações, vestir e despir, colonizar e descolonizar,


que se tornaria um mote pro movimento antropófago, o poema, além disso, parece
capturar uma estratégia do Ocidente, que, diante da série de “faltas”, da nudez canibal,
“vestiu o selvagem”, como lemos em “A descida antropófaga”, de Oswaldo Costa, i.e.,
passou a conceber essas mesmas ausências como hábitos, costumes. Em jogo, estava a
absolutização metafísica do princípio jurídico segundo o qual não se pode alegar
desconhecimento da Lei, que não é apenas uma regra penal, mas o fundamento
totalizante do Direito (da transcendentalização do Direito e da lógica da subsunção
como formas genéricas da relação social): nenhum homem, nenhum povo pode
desconhecer o Direito, pode viver sem a sua existência. Por isso, ao dividir a
63

humanidade em raças em seu Systema Naturae, Lineu irá desmembrar também os


elementos da Lei, atribuindo a cada uma delas um destes elementos como seu
princípio reitor: aos asiáticos, a opinião; aos africanos, o arbítrio; aos europeus, como
não poderia deixar de ser, a retidão, i.e., a moral; e aos americanos, o costume. “Homo
sapiens americanus (...) regitur consuetudine”, o homem americano se rege pelos
costumes. Porém, como entender que, por um lado, “[e]sses povos não possuem nem
Rei nem Príncipe absoluto, mas certos como que chefes de república que nós
chamamos Capitães (...) [e que] não possuem vim coactivam, a qual nem os próprios
pais exercem sobre os filhos” (Bressani apud Landucci, 1972: 106, n. 38), mas, por
outro, estejam submetidos ao costume, que constitui, segundo La Boétie (1982: 24),
“a primeira razão da servidão voluntária”? Como compreender que o homem nu se
caracterize pelos costumes e hábitos, isto é, roupas, uniformes (disto que Oswald não
cessou de caracterizar como impeditivo do contato, da transfiguração, metáfora física
da Lei, de que a gramática é a metáfora nos usos da língua)? Trata-se, evidentemente,
de uma definição inteiramente falsa, a ponto de Hocart (1927: 220) poder demolir
essa idéia de que os “selvagens são (...) os escravos do costume, em um grau muito
maior que o homem branco, que, por contraste, aparece como filhos da razão”, em um
artigo de poucos parágrafos: “Se há algo”, diz ele,

que uma longa estada no Pacífico e troca cotidiana com seu povo,
especialmente as crianças, me impressionou, foi a pouca espessura
de sua vida habitual comparada com a extraordinária complexidade
e onipresença da nossa. Não se poderia jamais descrever todos
nossos costumes em um livro, ou mesmo em dois, mas o deles, sim.
Se pensamos que o selvagem é mais escravo do costume do que nós
é porque vemos o cisco no olhar de outro homem, mas não a trave
no nosso.

Assim, entre os ditos “primitivos”, o caráter artificial e construído das poucas práticas
que podemos aproximar aos costumes transparece nitidamente, de modo que o
“costume não é tanto uma segunda natureza como é para nós” – isto é, para o homem
branco, caracterizado, ao contrário, “pelo gigantesco fardo de costumes que é capaz
de suportar quase sem se dar conta” (ibid.: 221).
A estratégia de vestir o canibal consistia, portanto, em converter aquilo que antes
aparecia como uma anomia em uma camisa-de-força ainda mais rígida (a visão
espelhada, mais umas vez), pois os costumes são a fonte do Direito, tanto no sentido
de origem (histórica pressuposta) das leis, quanto no de suplementação de lacunas
legais. Ao canibal era atribuída “a grande norma com que”, segundo Nietzsche (2004:
23), “tem início a civilização”, a saber, a de que “qualquer costume é melhor do que
nenhum costume.” O costume, retomando a formulação de Hocart, consiste em uma
“segunda natureza”, o “fundamento místico da autoridade” nas palavras de Pascal:
obedecidos “pela simples e única razão de serem recebidos”. E, mais do que isso, a
naturalização da lei, na forma dos costumes, implica a artificialização normativa da
natureza. “Que são os nossos princípios naturais senão os nossos princípios
costumeiros?”, se pergunta Pascal (2005: 22): “O costume é uma segunda natureza
que destrói a primeira. Mas o que é natureza? Por que o costume não é natural? Temo
muito que a própria natureza não passe de um primeiro costume, como o costume é
uma segunda natureza” (ibid.: 43). Eis o estado de natureza: a conversão da
exterioridade do Estado em sua proto-figura, a projeção do dentro no fora – a
conversão do outro em uma imagem em negativo do próprio.
64

30. No “Esquema”, ao elucidar o sentido da “lição do nosso direito”, Oswald afirma


que só no Brasil “chegamos a maravilha de criar o direito costumeiro antitradicional”
(grifo nosso). Se, conforme aponta Nietzsche (2004: 17, 18; grifos no original), os
“costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar”, e a tradição, “[u]ma autoridade
superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas porque ordena”,
como podemos pensar em costumes dissociados da tradição, e, ainda mais, que
conflitam com ela quando os costumes jurídicos são justamente práticas consagradas,
inscritas no aparato da tradição, transmissíveis, transmitidas e (sobre-)codificadas? No
que consistiria um “direito costumeiro antitradicional”? Mais uma vez, é o estatuto da
subsunção, da aplicabilidade do direito que parece ser colocado em questão. Pois ele é
exemplificado da seguinte maneira:
E quando a gente fala que o divórcio existe em Portugal desde 1919,
respondem: – aqui não é preciso tratar dessas cogitações porque tem
um juiz em Piracicapiassú que anula tudo quanto é casamento ruim.
É só ir lá. Ou então, o Uruguai! Pronto! A Rússia pode ter
equiparado a família natural à legal e suprimido a herança. Nós já
fizemos tudo isso. Filho de padre só tem dado sorte entre nós. E
quanto à herança, os filhos põem mesmo fora!
Ou seja, a “verídica legislação pátria” não parece ser um novo conjunto de normas, ou
antigas normas a serem resgatadas, mas, novamente, a não aplicação da norma, ou
melhor, uma relação com as práticas da vida que não passe pela
normatização/normalização, que subsume cada conduta a um preceito. Remetendo ao
“direito sonâmbulo” de que fala o Manifesto, o “direito costumeiro antitradicional”
parece consistir numa forma ativa de desuso, um desusar a Lei: não deixar de usar,
mas ativamente impedir a Lei (enquanto forma única de relação das práticas) de ser
usada, a ponto de tal desuso se tornar costumeiro, se tornar um direito, uma
juridicidade.
Nesse sentido, é interessante ver como o “fundamento místico da autoridade”,
que Pascal atribui aos costumes, situa-se para Montaigne (1961, III: 327; tradução
modificada), na esfera não do hábito, mas na da lei: obedece-se a elas, diz ele, não por
“serem justas e sim por serem leis”. O que se desloca aqui é, acima de tudo, o estatuto
dos costumes, a saber, se devemos concebê-los como leis ou não: uma coisa é tomar o
costume como norma, outro é ver a norma como sobrecodificação do costume por
meio da tradição, da traditio, que cria um fundamento místico pra autoridade:
obedece-se às leis, ou aos costumes tomados como leis, porque são (tomados como)
leis, mas não por algo intrínseco. A estratégia antropófaga, portanto, não consiste em
positivar a negatividade atribuída aos ameríndios, postulando a nudez como uma
essência, mas, ao contrário, em concebê-la como algo ativo, como uma subtratividade,
como o ato de despir (de desusar a Lei) que torna possível experimentar outras
possibilidades, trocar de roupa: “Contra a Memória fonte do costume. A experiência
pessoal renovada”, lemos no Manifesto, como a reivindicação de um modo de lidar
com os costumes e as experiências que não sigam a tradição, não sigam uma
transmissão estável e normativa, não sigam uma Memória com maiúscula, tal como
grafada por Oswald. “Contra o homem artificial – burro e cacete – o homem natural.
Contra o animal que se veste, o animal que se enfeita”, lemos em um texto da Revista
assinado por Tamandaré. Ao invés de vestir os costumes, as práticas, fazendo-as
aderir como um uniforme, o homem “natural” dos antropófagos não é aquele que não
se veste, mas o que não cessa de se travestir, de se enfeitar. Coube a “Gilberto Gil
psicografado por Rogério Duarte”, isto é, à retomada tropicalista da Antropofagia,
65

formular melhor essa máxima, a saber, que a nudez canibal não é ausência, mas a
abertura à multiplicidade:

Eu sempre estive nu. Na Academia de Acordeão Regina tocando La


Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado
ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta,
pirata, guerrilheiro. E eu, do mais pobre da minha nudez, queria
vestir todas. Todas, para não trair minha nudez. Mas eles gostam de
uniformes, admitiriam até a minha nudez, contanto que depois
pudessem me esfolar e estender a minha pele no meio da praça
como se fosse uma bandeira, um guarda-chuva contra o amor,
contra os Beatles, contra os Mutantes. Não há guarda-chuva contra
Caetano Veloso, Guilherme Araújo, Rogério Duarte, Rogério
Duprat, Dirceu, Torquato Neto, Gilberto Gil, contra o câncer, contra
a nudez. Eu sempre estive nu. Minha nudez Raios X varava os
zuartes, as camisas listradas. E esta vida não está sopa e eu pergunto:
com que roupa eu vou pro samba que você me convidou? Qual a
fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo
nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as
cores. A nudez é a soma de todas as roupas.

§ Metafisicamente falando, a operação colonial consiste em desnudar o índio,


transformando-o em homem nu, convertendo o outro em primitivo, europeu in
nuce, ao qual caberia, posteriormente, vestir pelo empreendimento civilizador. A
Antropofagia reverte, inverte ou subverte esse ato de despir: é o índio que despe
o Ocidente, é este que, no contato com a alteridade, é desnudado, e sua nudez
(seu desnudamento), nesse gesto, torna possível outra coisa, todo um horizonte
outro de possibilidades, de modos outros de lidar com as roupas, com o próprio
ato de se vestir. Aqui, o vetor não só faz, como é toda a diferença. Pois em um
caso se trata de desnudar para vestir, e, em outro, de desnudar para (se) travestir:
ver o outro como passado (primitivo) ou ver o outro como possibilidade outra de
si mesmo, como possibilidade de outrar a si mesmo. Tudo depende do que é
(tomado como) dado (seja como essência, seja como culminação dela): a roupa
ou a nudez. Para os portugueses, os índios eram súditos ainda-não-vestidos. Para
os índios, os portugueses usavam roupas apertadas demais, fechando o corpo ao
contato. Mas isso não quer dizer que aqueles não quisessem se enfeitar com as
vestes destes, se travestir a partir delas: “os Tupi desejaram os europeus em sua
alteridade plena, que lhes apareceu como uma possibilidade de
autotransfiguração” (Viveiros de Castro, 2002: 206). A Antropofagia, até hoje, é
a teoria mais radical da assunção não da outridade em si, mas dos efeitos do
contato com ela.

31. A Revista de Antropofagia está repleta de referências ao “homem simples”, ao


“homem natural” e ao “homem nu”. De fato, na mesma edição em que encontramos a
“História” de Jayme Adour, lemos em outro texto que “[o] que se quer é a
simplicidade e não um novo código de simplicidade. Naturalidade. Não manuais de
bons tons”. Assim, a simplicidade e a naturalidade são definidas não através de uma
essência, e sim de modo subtrativo, como a retirada ativa de normas de conduta, ou
seja, a deposição do Direito (enquanto meta-forma de usar as “roupas”). Deste modo,
resta claro por que os antropófagos podiam associar a liberdade (em relação às regras
sociais) à nudez, ou melhor, à nudificação, tal como aparece na ideia da “cidade do
homem nu”, exposta por Flávio de Carvalho (1982: 100, 101), na condição de
66

“delegado antropófago” do IV Congresso Panamericano de Arquitetos no Rio de


Janeiro em 1930: “O homem antropofágico, quando despido de seus tabus,
assemelha-se ao homem nu (…) o homem futuro, sem deus, sem propriedade, e sem
matrimonio”. Daí também a equação antropófaga entre homem natural e homem nu,
entre simplicidade e nudez: “o índio despido [grifo nosso: observe-se a ambivalência:
o índio está nu, mas também foi despido] é a imagem decisiva do ingênuo, do sincero,
do realmente justo. É a expulsão de todos os adornos que sobravam. E que, por isso
mesmo, não fazem falta. É a fisionomia que se caracteriza por si mesma”. “Toda
legislação é perigosa” porque adere como uma roupa, impedindo o acesso ao natural;
por sua vez, o homem nu não conheceria “Nenhuma convenção social”. Na
“Mensagem ao antropófago desconhecido”, Oswald definiria a roupa, além do mais,
como aquilo que metaforicamente impede o acesso à verdade. Escrevendo justamente
“Da França Antártica” mencionada por Jayme Adour, Oswald conclama “Um passo
além de Sartre e de Camus”, isto é, argumenta que o existencialismo francês deveria
olhar para trás para melhor seguir em frente, pois “as filosofias do homem vestido nas
horas do abraço ao desespero roçaram a verdade. Mas entre elas e a verdade havia a
roupa (…). É preciso ouvir o homem nu”. Mas o que diz o homem nu? “Nada existe
fora da Devoração. O ser é a Devoração pura e eterna” (Andrade, 2011b: 449). No
encontro entre a mais avançada filosofia da época e o mais “primitivo”, o antropófago,
o que se dá a ver não é um Ser definido de maneira nova, mas um Ser que se
caracteriza pelo contato e pela mudança, um ser “desconhecido”. A Antropofagia não
se mostra como uma essência, ou uma verdade oculta por trás da roupa, mas como o
gesto que revela a impropriedade daquilo que parece mais próprio — a roupa, a
identidade, o caráter, a qualidade, o Direito, as instituições, ou o próprio Ser. Ou seja,
usando as palavras de Araripe Jr., verdadeiro precursor dos antropófagos (cf. infra,
cap. 4), a Antropofagia se mostra como um gesto que revela “que são de pedra os
monstros, que fazem esgares das torres da velha catedral e não obstante assustam os
desprecavidos que ali penetram”. Este gesto, porém, depende do outro, esta “verdade”
só é acessível através do contato, da “Devoração”. Aquilo que Jayme Adour viu no
encontro entre o índio e o francês não foi, portanto, a assimilação de um por outro,
mas um espaço entre ambos, o do homem “natural”, “simples”, nu, um “homem” que
não pode ser definido pelo que lhe é próprio (uma qualidade, uma propriedade), ou
pela falta de propriedade, mas tão somente por aquilo que se dá entre ele e os demais:
a própria impropriedade. Ameríndio, francês ou finlandês, nu ou “de casaca”, o
antropófago é o homem “sem caráter”, “o homem sem qualidades” – ou mesmo,
como o próprio Oswald (Andrade, 2002), “um homem sem profissão”. Talvez agora
estejamos em condições de responder à questão inicial, a saber, a do sentido da
redução de toda lei a uma “única lei do mundo”, dotada de um único preceito, o de
que “só me interessa o que não é meu”. É só aquilo que não sou, que não me é
próprio, que produz meu inter-esse com o outro, e é este interesse que constitui o
nosso ser-entre, nosso mundo. Só com o que não nos é próprio, com o que não nos é
exclusivo, ou seja, só nos despojando das “roupas”, só naquele contato com o outro
que não leva a uma nova propriedade, é que podemos produzir um espaço-tempo do
inter-esse, aquilo que se costumava chamar de utopia. Como bem sabia Oswald de
Andrade, “Só a Antropofagia nos une”. A “Idade de Ouro”, o “matriarcado de
Pindorama” está aí, diante de nós, dentro de nós, como vestígio de nossa existência e
roteiro do nosso porvir. Resta apenas saber se vamos seguir a lição do Manifesto, isto
é, se vamos aprender a “Acreditar nos sinais”.
67

Referências bibliográficas
Obs.: Algumas referências estão incompletas (sem indicação de tradutor ou número de edição,
etc.), o que será corrigido até a publicação em livro.

Adorno, Theodor. (1993). Minima Moralia. 2. ed. São Paulo: Ática.

Adour da Câmara, Jayme. (s/d). Oropa, França e Bahia. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.

Agamben, Giorgio. (2002). Homo sacer I: o poder soberano e a vida nua. Belo
Horizonte: Editora da UFMG.
___. (2014). L’uso dei corpi. Homo sacer, IV, 2. Vicenza: Neri Pozza.
___. (2008). Signatura rerum: sul metodo. Turim: Bollati Boringhieri.

Aguilar, Gonzalo. (2010). Por una ciência del vestigio errático. Seguido de La única
ley del mundo (de Alexandre Nodari). Buenos Aires: Grumo.

Alcides, Sérgio. (2009). “F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização”. Escritos, 3:


39-53.

Alencar, José de. (2004). A propriedade. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal;
Superior Tribunal de Justiça.

Amorim Izabel, Tomaz. (2019). Oswald, Bachofen, Benjamin: crítica modernista da


Modernidade. Projeto de Pós-Doutorado em desenvolvimento no Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas.

Andrade, Mário de. (2013). Obra imatura. Estabelecimento de texto de Aline


Nogueira Marques. Coordenação da edição de Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
___. (1988). Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Edição crítica coordenada por
Telê Porto Ancona Lopez. Coleção Arquivos UNESCO.

___. e Amoroso Lima, Alceu. (2018). Correspondência Mário de Andrade & Alceu
Amoroso Lima. Organização, introdução e notas de Leandro Garcia Rodrigues. São
Paulo: EdUSP; Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio.

Andrade, Oswald de. (2004a). Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo:
Globo.
___. (2009). Os dentes do dragão: entrevistas. 2. ed., revista e ampliada. Organização,
introdução e notas de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo.
___. (1990). Dicionário de bolso. São Paulo: Globo; Secretaria da Cultura do Estado
de São Paulo.
___. (2011a). A utopia antropofágica. 4.ed. São Paulo: Globo.
___. (2011b). Estética e política. 2. ed. rev. e ampl. Organização de Maria Eugenia
Boaventura. São Paulo: Globo.
___. (1974a). Marco Zero 2 – Chão. (Obras completas, v. IV). 2.ed Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
68

___. (1974b). Telefonema. (Obras completas, v. X). Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira.
___. (2004b). Ponta de Lança. 5. ed. São Paulo: Globo.
___. (2003a). Mon coeur balance/ Leur âme/ Histoire de la fille du roi. São Paulo:
Globo.
___. (2007). Serafim Ponte Grande. 9. ed. Estabelecimento de texto de Maria Augusta
Fonseca. São Paulo: Globo.
___. (1972). Poesias reunidas. (Obras completas, v. VII). 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, INL.
___. (2002). Um homem sem profissão.Memórias e confissões. Sob as ordens da
mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo.

Antelo, Raúl. (1988). “Macunaíma: apropriação e originalidade”. In Andrade, Mário


de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Edição crítica coordenada por Telê
Porto Ancona Lopez. Coleção Arquivos Unesco.
___. (2006). “Quadro e caderno”. In Andrade, Oswald de. Primeiro caderno do aluno
de poesia Oswald de Andrade. 4. ed. rev. São Paulo: Globo. pp. 25-35.

Arrosi, João Paulo. (2020). A emergência da necessidade: fragmentos de uma história


das formas jurídicas. Relatório de qualificação de doutorado apresentado ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.

Azevedo, Beatriz. (2016). Antropofagia – Palimpsesto selvagem. São Paulo: Cosac


Naify.

Bachofen, Johann Jakob. (1992). Myth, Religion and Mother Right: selected writings
of J. J. Bachofen. Tradução ao inglês de Ralph Manheim. Princeton: Princeton
University.

Bataille, Georges. (2013). A parte maldita - Precedida de “A noção de dispêndio”.


Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica.

Benjamin, Walter. (2014). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.


Tradução de Gabriel Valladão Silva. Organização de Márcio Seligmann-Silva. Porto
Alegre: L&PM.

Boétie, Étienne de La. (1982). Discurso da servidão voluntária. Edição bilíngüe, com
comentários de Claude Lefort, Pierre Clastres e Marilena Chauí. Tradução de Laymert
Garcia dos Santos. São Paulo: Brasiliense.

Bopp, Raul. (1972). “Bopp passado-a-limpo” por ele mesmo. Rio de Janeiro: Tupy.
___. (2009). Vida e morte da Antropofagia. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio.
___. (1956). Cobra Norato e outros poemas. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José.
___. (1998). Poesia completa. Organização, preparação de texto e comentários por
Augusto Massi. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: EdUSP.

Brissot, Jacques Pierre. (2015). Investigações filosóficas sobre o direito de


propriedade considerado na natureza, para servir de primeiro capitulo à Teoria das
Leis, de M. Linguet, por um jovem filósofo. Tradução de Felipe Vicari de Carli.
Desterro: Cultura e Barbárie.
69

Campos, Haroldo de. (1972). “Uma poética da radicalidade”. In Andrade, Oswald de.
Poesias reunidas. Obras completas, v. VII. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; INL.

Candido, Antonio. (2004a). “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. In


Vários escritos. 4.ed., reorganizada pelo autor. São Paulo; Rio de Janeiro: Duas
Cidades; Ouro sobre Azul. pp. 33-67.
___. (2004b) “Oswald viajante”. In O observador literário. 3. ed., rev. ampl. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul.
___. (1992). “Estouro e libertação”. In Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo:
Editora UNESP.

Carvalho, Flávio de. (2010). “A resistência passiva no altiplano”. Sopro, 24: 1-4.

Castro-Klarén, Sara. (2000). A Genealogy for the “Manifesto Antropófago”, or the


Struggle between Socrates and the Caraibe. Nepantla: Views from South, 1(2):
295-322.
___. (1997). Corpo-rización tupi: Léry y el “Manifesto Antropófago”. Revista de
Crítica Literaria Latinoamericana, 23(45): 193-210.

Cesar, Ana Cristina. (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras.

Cesarino, Pedro de Niemeyer. (2011). Oniska - poética do xamanismo na amazônia.


São Paulo: FAPESP; Perspectiva.

Chakrabarty, Dipesh. (2013). “O clima da história: quatro teses”. Tradução


coordenada por Idelber Avelar. Sopro, 91. Disponível em:
http://culturaebarbarie.org/sopro/n91.html

Clastres, Pierre. (1982). “Liberdade, Mau Encontro, Inominável”. In Boétie, Etienne


de la. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense. pp. 109-123.
___. A sociedade contra o Estado - pesquisas de antropologia política. Tradução de
Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify.

Couto de Magalhães, José Vieira de. (1975). O selvagem. Edição comemorativa. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP.

Esposito, Roberto. (2005). Immunitas: protección y negación de la vida. Buenos


Aires: Amorrortu.

Farinaccio, Pascoal. (2001). Serafim Ponte Grande e as dificuldades da crítica


literária. São Paulo: Ateliê; FAPESP.

Ferraz, Geraldo. (1983). Depois de tudo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Fonseca, Maria Augusta. (2006). Dois livros interessantíssimos: Memórias


sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande – Edições críticas e ensaios.
Trabalho de livre-docência apresentado ao Departamento de Teoria Literária e
70

Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da


Universidade de São Paulo.

Gandavo, Pero de Magalhães. (2008). Tratado da Terra do Brasil. História da


província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal.

Ginzburg, Carlo. (1989). “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In Mitos,


emblemas, sinais - morfologia e história. Tradução de Federico Carotii. São Paulo:
Companhia das Letras. pp. 143-179.

Gouldner, Alvin. (1960). “The Norm of Reciprocity: A Preliminary Statement”.


American Sociological Review, 25(2).

Guerreiro Ramos, Alberto (1996). A redução sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro:


Editora UFRJ.

Heller-Roazen, Daniel. (2009). The inner touch: archaeology of a sensation. Nova


Iorque: Zone Books.

Hill, Pascoe Grenfell. (2006). Cinqüenta dias a bordo de um Navio Negreiro.


Tradução de Marisa Murray. Rio de Janeiro: José Olympio.

Hobbes, Thomas. (2003). Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro et al. São Paulo:
Martins Fontes.
___. (2002). Do cidadão. 3. ed. Tradução, apresentação e notas de Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes.

Hocart, A. M. (1927). “Are Savages Custom-bound?” Man, 27: 220-221.

Hue, Sheila Moura. (org). (2006). Primeiras cartas do Brasil (1551-1555). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.

Ihering, Rudolf Von. (2004). Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder.

Inojosa, Joaquim. (1968). O movimento modernista em Pernambuco. Vol. 2. Rio de


Janeiro: Tupy.

Landucci, Sergio. (1972). I filosofi e i selvaggi: 1580-1780. Roma; Bari: Laterza.

Lestringant, Frank. (1997). O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary


Murray Del Priore. Brasília: Editora UNB.

Lévi-Strauss, Claude. (2013). “Raça e história”. In Antropologia estrutural dois.


Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify. p. 357-369.

Lourenço, Marília Sene de. (2016). “Existem grupos sociais no oeste paulista?” In
Danaga, Amanda Cristina; Peggion, Edmundo Antonio. (orgs.). Povos indígenas em
São Paulo : novos olhares. São Carlos: EdUFSCAR. pp. 249-268.
71

Löwy, Michael. (2005). Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses
“Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo.

Mauss, Marcel. (2003). Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo Neves São


Paulo: Cosac Naify.

Meinong, Alexius. (2008). Teoría del objeto y Presentación personal. Estudo


introdutório de Emanuele Coccia. Buenos Aires: Miño y Dávila.

Mello e Souza, Gilda de. (2003). O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma.
2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.

Mencken, H.L. (2009). “Valentino”. In O livro dos insultos. Seleção e tradução de


Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 113-117.

Montaigne, Michel de. (1961). Ensaios. Livros I e III. Tradução, prefácio e notas
lingüísticas e interpretativas de Sérgio Milliet. Porto Alegre: Editora Globo.

Nietzsche, Friedrich. (2004). Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais.


Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras.

Nunes, Benedito. (1979). Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva.


Pascal, Blaise. (2005). Pensamentos. Tradução de Mário Laranjeira. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes.
Pensado, Federico. (2003). Antropofagia y otros ensayos. Buenos Aires: Altamira.

Perrone-Moisés, Beatriz. (2008). “Um coletivo franco-indígena”. Comunicação


apresentada no 32º Encontro da Anpocs. Caxambu, out. 2008. Manuscrito.

Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. (1955). Tratado de direito privado, tomo X:


posse. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi.

Prado, Paulo. (2003). “Poesia Pau-Brasil”. In Andrade, Oswald de. Pau-Brasil. 2. ed.
São Paulo: Globo.

Proudhon, Pierre-Joseph. (1988). O que é a propriedade. Tradução de Gilson Cesar


Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes.

Revista de Antropofagia: 1ª e 2ª dentições (fac-símile). (1975). São Paulo: Abril;


Metal Leve.

Ribeiro, Darcy. (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São


Paulo: Companhia das Letras.

Rose, Carol. (1995). “Possession as the origin of property”. In Ellickson, Robert;


Rose, Carol; Ackerman, Susan Rose. Perspectives on property law. 2. ed. Aspen:
Aspen.
72

Sáez, Oscar Calavia. (1998). “Antropofagias comparadas”. Travessia — Revista de


Literatura, 37.

Santiago, Silviano. (1989). “As escrituras falsas são”. Revista 34 Letras, 5/6. São
Paulo, Editora 34.
___. (2006). Ora (direis) puxar conversa. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Schmitt, Carl. (2005). El nomos de la Tierra: en el derecho de gentes del “jus


publicum europaeum”. Buenos Aires: Struhart & Cia.
___. (2007). Tierra y mar: una reflexión sobre la historia universal. Madri: Trotta.

Schmidgen, Wolfram. (2004). “Terra nullius, cannibalism, and the natural law of
appropriation in Robinson Crusoe”. In Eighteen-century fiction and the law of
property. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 32-62.

Seed, Patrícia. (1999). Cerimônias de posse na conquista europeia do novo mundo


(1492-1640). São Paulo: Editora Unesp; Cambridge University Press.

Sousa, Gabriel Soares de (2010). Tratado descritivo do Brasil em 1587. Organização


de Fernanda Trindade Luciani. São Paulo: Hedra.

Staden, Hans. (1974). Duas viagens ao Brasil. Tradução de Guiomar de Carvalho


Franco. Belo Horizonte: Itatiaia.

Tarde, Gabriel. (2007). Monadologia e sociologia e outros ensaios. São Paulo: Cosac
Naify.

Valentim, Marco Antonio. (2018). “Antropologia & Xenologia”. ECO-Pós, 21 (2):


343-363.

Vasconcelos, Simão de. (1865). Chronica da Companhia de Jesus do estado do Brasil,


v. I. Lisboa: A.J. Fernandes Lopes.

Vicari de Carli, Felipe. (2016). O Matriarcado no programa antropofágico: Oswald


de Andrade, leitor de Bachofen. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.

Viveiros de Castro, Eduardo. (1986). Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro:


Zahar/Anpocs.
___. (2015) Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural.
São Paulo: Cosac Naify.
___. (2002). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São
Paulo: Cosac Naify.
___. (2017). “Os Involuntários da Pátria: elogio do subdesenvolvimento”. Caderno de
leituras, 65. Edições Chão da Feira.
___. (2011). “O intempestivo, ainda”. In Clastres, Pierre. Arqueologia da violência:
pesquisa de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify. pp. 297-356.

Você também pode gostar