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Belterra. Assim foi chamada a cidade americana que representou o império de Ford
na Amazônia, junto com Fordlândia. Localiza-se em um dos trechos mais amplos e
profundos do rio Tapajós pontilhado por ilhas paradisíacas e com uma fauna
diversificada de peixes, na mesorregião do Baixo Amazonas. Além da geografia,
cabe situar a cidade no contexto sócio-histórico que a explica como objeto de
desejo, tensão e conflito nas duas décadas que ensejaram a presença do capital
americano na região.
A empresa Ford Motor Company administrou de 1928 até 1945 o projeto que tinha
como objetivo implantar o maior dos seringais cultivados, que pudesse suprir as
necessidades da recente indústria americana, líder no setor automobilístico. De
1938 a 1940, Belterra viveu o seu período áureo e foi considerada a maior produtora
individual de seringa do mundo. Porém varios fatores contribuiram para a
desativação do projeto, como o final da 2ª Guerra Mundial e uma nova reordenação
política e econônica no mundo - que implicava em redimensionamento do comércio
e produção do látex, a grande incidência de doenças nos seringais a mazônicos, a
descoberta da borracha sintética e para culminar, a morte do filho de Henry Ford.
Em 1945 reconhecendo o fracasso da experiência, a empresa Companhia Ford
Industrial do Brasil,vendeu suas concessões ao governo brasileiro por 250 mil
dólares. Segundo Secreto (SECRETO MV, 2007), o montante que devia aos
trabalhadores pelo aviso prévio, o que estava muito distante do que foi investido ao
longo dos quase 20 anos nas duas plantações, Fordlândia e Belterra, cujos cálculos
mais pessimistas indicam 20 milhões de dólares. Por cinqüenta anos este território
ficou sob a jurisdição do Ministério da Agricultura como Estabelecimento Rural do
Tapajós (ERT), até que em 1997, os moradores de Belterra conseguiram torná-lo
município. Este ainda hoje, preserva na sua paisagem urbana as características de
cidade americana dos anos 30, tão diversa de outras cidades amazônicas de beira
de rio.
A Amazônia nas três últimas décadas do século XIX e na primeira década do séc. XX
conheceu um período de riqueza proporcionado pela exploração intensiva do látex,
o que refletiu no desenho urbano de suas principais cidades, Belém e Manaus, que
se modernizaram no ritmo desenfreado da exploração do produto, que em alguns
momentos superou o café - produto rei, na pauta de exportação da economia
nacional.
A borracha alimentou necessidades do mercado internacional e se consolidou
enquanto economia através do aviamento, sistema de endividamento em cadeia,
cujo elo mais frágil e explorado era sem dúvida o seringueiro, na maior parte
nordestinos que emigraram para os seringais premidos pelas sucessivas secas, na
esperança de construírem um futuro melhor. Por outro lado, este produto ensejou
rápido enriquecimento de uma elite de seringalistas e comerciantes na região, que
experimentou um período de significativa, porém efêmera prosperidade econômica.
Em 1876 Henry Wickham procedeu à coleta de 70.000 sementes na região situada
entre o Tapajós e Madeira, contrabandeando-as para os viveiros ingleses, daí
resultando 7.000 mudas de qualidade, depois transportadas para o Ceilão.
Demonstrando ser a espécie adaptável no regime de cultura, a Inglaterra começou a
plantação ordenada da Hevea brasiliensis no Oriente, em 1895 e a partir de 1900
passou a produzir 70% da produção consumida pelas indústrias automobilísticas,
mantendo assim os ingleses o monopólio da produção do látex. O Sudeste asiático
foi o lócus desta pujança, com as possessões inglesas situadas no Ceilão, Malásia,
India e Bornéo, as holandesas nas Indias holandesas e as plantações francesas na
Cochinchina.
Celso Furtado aponta duas etapas na produção da borracha. A primeira, no interior
da Amazônia, representou uma solução de emergência para o problema da oferta,
fase que se caracterizou pelos preços crescentes chegando até a média de 512
libras a tonelada. A segunda teve como lócus a plantação no Oriente, organizada em
bases racionais, que introduziu o produto no mercado a partir da primeira Guerra
Mundial, reduzindo-se os preços a algo inferior a 100 libras a tonelada. Esta etapa
caracterizou a decadência da produção amazônica sem condições de competir com
a borracha inglesa, descartada do cenário internacional enquanto principal
exportadora do látex.
Com o final da I Guerra Mundial, porém, uma nova conjuntura econômica faz da
Amazônia novamente pólo de atração para o capital internacional, em especial o
norte americano. A Inglaterra decidiu restringir a produção da borracha a fim de
aumentar o preço do produto, diante de sua desvalorização no mercado,
conseqüência do aumento de sua oferta. O Plano Stevenson norteou a política de
valorização da borracha inglesa, o que penalizou em particular os americanos, cuja
indústria automobilística teria que competir no mercado com preços maiores,
devido o encarecimento de sua principal matéria prima. Procuram-se então
alternativas para escapar dos altos preços ditados pelo monopólio inglês e o mais
razoável era a busca da auto-suficiência através da produção da própria borracha.
Inicialmente o Peru foi cogitado como alternativa para abrigar o plantio de
seringueiras, junto com a intensificação da pesquisa pela borracha sintética.
Esta nova conjuntura projeta expectativas para a região amazônica, em especial
para o Estado do Pará. O governo paraense diante da situação de decadência
econômica que enfrentava a região buscou atrair o capital americano para a região,
oferecendo-lhe condições vantajosas para aí se estabelecer. Um milhão de hectares
na região do Tapajós, no Baixo Amazonas, com direito da empresa fazer uso e gozo
das terras, explorar os seringais e utilização das matérias primas, pesquisar
minérios, explorar a madeira e principalmente, exercer sua própria política sem
nada submeter à aprovação das autoridades brasileiras. Tudo isto com isenção de
todos os impostos e taxas de contribuição por um prazo de 50 anos. A política
externa do Brasil através do cônsul em Nona Iorque J. C. Alves de Lima e o governo
do Pará convenceram Ford e os interesses americanos da viabilidade do negócio, ou
seja, os capitais externos de risco (autônomos) seriam compensados por uma liberal
política de terras e favores fiscais.
Estas condições e mais o parecer favorável sobre a mão de obra local por parte de
membros da Rubber Mission, que em missão de reconhecimento, chegaram a
Belém em agosto de 1823, foram itens decisivos para a opção americana pela
Amazônia – terra, isenção de impostos e mão de obra. Os trabalhadores das terras
amazônicas são de bom físico, acostumados a expor-se ao tempo e sob adequados
incentivos, capazes de longos e continuados esforços, enfatizou o documento citado
por Costa (COSTA, 1993: 30). A expectativa do governo federal brasileiro era de que
um futuro radioso chegaria à Amazônia com os capitais americanos.
Em 1927 o decreto 4374 transferiu a concessão de 1.000.000 de hectares de terras
devolutas no Tapajós para o capital americano, tendo Henry Ford declarado que
esperava produzir 300.000 toneladas de borracha, através de 200.000 hectares de
seringueiras, com rendimento médio de 1.500 quilos de borracha por hectare.
A concessão inicial da Ford ficava à margem direita do rio Cupary, 115 milhas de
Santarém, entre os municípios de Aveiro e Itaituba, na localidade conhecida como
Boa Vista. Daí se originou Fordlândia. A vila teria toda a infra-estruturar de uma
cidade moderna made in EUA. Fordlândia, no entanto, demonstrou não ser área
propícia para ser base de implantação do projeto, devido grandes distâncias a
enfrentar para o escoamento do produto no porto de Santarém, prejuízos na
comunicação e no abastecimento, problemas na seletividade das mudas e sementes
de seringueiras, conjugada à acidentada topografia do local.
Em 1934 através de um termo aditivo ao contrato, a Companhia Ford Industrial do
Brasil trocou então uma área da primeira concessão por outra da mesma extensão,
situada numa planicie elevada, situada às margens do Rio Tapajós coberta por
densa floresta. A essa área Ford chamou de 'Bela Terra', que depois passou a ser
chamada de 'Belterra'. A partir daí, o projeto começava a se tornar realidade, e
Belterra ficou conhecida como "a cidade americana no coração da Amazônia".
A proximidade de Santarém tenderia a favorecer o movimento comercial, além de
que em Belterra procura-se evitar erros anteriores, selecionando mudas e sementes,
cultivando-as junto com outras espécies, como algodão, timbó, tunga, que produzia
sementes de óleo para vernizes e tintas e ainda a teca, madeira de primeira
qualidade. No campo do trabalho e da vida social foi revista a hierarquia rígida que
criava guetos em Forlândia. A demonstração de riqueza e importância através das
habitações luxuosas e espaços exclusivos para o staff americano em Forlândia
sofreu mudanças em Belterra, onde as casas mantiveram o mesmo padrão de
higienização e conforto, variando de acordo com o lugar do morador no quadro
funcional. No ritmo de abertura das estradas, o projeto foi se consolidando em
Belterra. Foram desmatados 8.000 hectares, plantadas 3,2 milhões de pés de
seringueiras, construídas mais de 300 casas, hospital, oficinas, escolas, serviço de
água e de luz, esgoto, clubes, cinema, creche, instalações industriais, a fim de
garantir a infra estrutura necessária à consolidação do projeto.
Existem muitas formas de ler uma cidade. Belterra sob a vigência do projeto Ford, é
lida pelo viés da modernidade, do progresso, da civilização. MAIA, citado por Costa
(COSTA F, 1993: 37), refere-se ao americano “enquanto raça superior (...). que
ensinará a gente a ter higiene, a querer, a fazer economia e erguerá núcleos
modeladores de atividade, aproveitando os recursos da natureza que serão
transformados em cidades amanhã”. Completa afirmando a superioridade
americana que é “mais forte pela raça e pelo dinheiro, com direitos incontestáveis
de senhor, explorará o mais fraco.” Enfatiza o lado benéfico para o seringueiro, que
desta forma verá a civilização penetrar no Amazonas, mesmo que por meio de
processos singulares.
Este tipo de análise por certo atribuirá aos trabalhadores o fracasso da experiência,
sem considerar os diversos fatores envolvidos neste processo. Ao mesmo tempo em
que a empresa precisava de trabalhadores para tocar a produção, implantava uma
política férrea de controle e disciplinarização, o que provocou em vários momentos
a evasão da mão de obra necessária para viabilizar o projeto Ford na Amazônia.
As normas de convívio eram severas. Os casados para terem direito de morar com a
família no Projeto tinham que apresentar a certidão de casamento. Os fiscais eram
exigentes em relação ao cumprimento do regulamento: obrigação de conservar os
quintais limpos, evitar brigas ou arruaças, proibição de usar armas ou ingerir bebida
alcoólica. Os solteiros para se divertirem tinham que ir à distante Ilha dos Inocentes,
pois eram proibidas festas dançantes, bebidas alcoólicas e até mulheres que não as
residentes, no espaço do projeto. Os que não mantinham as normas de “civilidade”
impostas pela Companhia, eram punidos ou com a perda do direito de morar na vila,
tendo que morar nos acampamentos, ou com penas de suspensão ou mesmo de
demissão, dependendo da gravidade ou da reincidência dos “infratores”.
A imposição de padrões culturais alienígenas, rejeitados pela cultura nativa,
provocaram reações dos trabalhadores que não suportavam o rígido sistema de
disciplina e vigilância americano, necessário para que o projeto funcionasse
segundo sua lógica de implantação.
Assim, no limite, o Movimento de Quebra Panelas, ocorrido em Fordlândia em 1930
foi o termômetro da insatisfação nativa, provocando pânico à administração da
Companhia, dado sua radicalidade. Funcionários quebraram o refeitório em protesto
aos bandejões e ao cardápio americano à base de espinafre, pão e verduras, no
lugar do açaí, farinha e peixe, abundantes na região, o que aliado ao calor intenso
que marca o início das tardes amazônicas, convidam ao repouso depois do almoço,
algo incompatível com o capital e o ritmo do trabalho e produção. O sistema intenso
de trabalho de 48 horas semanais sem repouso remunerado, o horário d 7 às 17 h
com intervalo de uma hora para o almoço, o relógio do ponto, a rígida vigilância dos
capatazes e apontadores sobre a produção, tudo isto vinha de encontro aos hábitos
e cultura dos amazônicos, cujo ritmo se aproximava mais dos fenômenos cíclicos da
natureza que a do capital. Não se pode pensar em modernidade para a Amazônia
sem levar em consideração os povos que vivem nessa região, a floresta e a relação
que se estabelece entre homem e natureza.
As proibições pertinentes ao consumo de bebidas, a festas dançantes, a mudanças
de seus hábitos alimentares por uma alimentação à base de verduras e pão e outros
alimentos ricos em proteínas, que tornariam o trabalhador com maior disposição
física, estes elementos contribuíram para a crescente insatisfação do trabalhador,
que recusando o sistema de bandejão imposto pela Companhia, fez eclodir o
movimento que resultou na destruição do restaurante, em máquinas danificadas,
edifícios depredados, mantimentos jogados no rio. “Numa noite os dirigentes do
projeto da Ford Motor Company aprenderam mais sociologia do que em anos de
Universidade”, afirmou Vianna Moog, citado por Secreto(SECRETO MV, 1007: 69).
Este movimento ao mesmo tempo em que provocou a prisão de seus líderes em
Belém e a paralisação dos trabalhos por algum tempo, incluiu mudanças na política
alimentar da empresa que passou a considerar a produção local de alimentos e
iniciou um processo de concessão para restaurantes, comerciantes, mercearias,
açougues, se instalarem na sede do projeto.
Gastão Cruls no artigo intitulado “Impressões de uma visita à Companhia Ford
Industrial do Brasil” na revista Amazônia Brasileira em 1944, divulga a viagem que
efetuou ao projeto em 1938. Sua impressão foi elogiosa ao empreendimento e
relata a conversa com o gerente da Companhia, senhor A. Johnston sobre o principal
problema da região- a insuficiência de mão de obra. Cita o maior número de homens
para o ano de 1931, que contou com 3.100 seringueiros. Nos anos seguintes este
índice só fez diminuir, em 1938 eram apenas 1700. Johnston atribuía este fato a
falta de costume do caboclo com o trabalho metódico e com a fixação a terra.