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Reforma do Ensino Médio


e a formação técnica e profissional
Evaldo Piolli
Mauro Sala
resumo abstract

Este trabalho analisa as implicações This work analyzes the implications of the
da reforma do Ensino Médio e seus High School reform and its consequences
desdobramentos nas mudanças in the curricular changes foreseen by
curriculares previstas com a introdução introducing the training itineraries,
dos itinerários formativos, em especial especially of technical and professional
de formação técnica e profissional. A formation. The centrality given in the reform
centralidade dada, na reforma, ao itinerário to the technical and professional training
de formação técnica e profissonal e sua itinerary and its implementation, as in the
implementação, como no caso da rede São Paulo state network, is an element that
estadual paulista, se apresenta como reproduces and deepens structural dualism,
um elemento que reproduz e aprofunda creating a duality within this duality
o dualismo estrutural, criando outra through the predominant offer of relaxed
dualidade dentro dessa dualidade através qualification courses.
da oferta predominante de modalidades
de cursos de qualificação aligeirados. Keywords: High School reform; structural
dualism; work and education.
Palavras-chave: reforma do Ensino
Médio; dualismo estrutural; trabalho e
educação.
Viperfzk/123RF
O
presente artigo tem como em situação de crise. Trata-se de uma
objetivo analisar algu- concepção de educação voltada para a
mas das implicações formação de capital humano que engen-
da reforma do Ensino dra a profissionalização e a flexibilização
Médio, mais especifi- crescente do currículo.
camente as que estão Como veremos, a implementação da
vinculadas às mudan- reforma se defronta tanto com questões
ças curriculares, com a de ordem prática, concernentes aos limi-
introdução dos itinerá- tes e possibilidades de escolha dos inti-
rios formativos e sua nerários por parte dos estudantes, como
articulação com a Base com questões mais amplas como a da
Nacional Comum Cur- reprodução do dualismo estrutural, a
ricular (BNCC). Parti- fragmentação, a segmentação e a preca-
mos do pressuposto de que a introdução rização da oferta do Ensino Médio no
do itinerário de formação técnica e pro- país. Para tanto, investigamos alguns dos
fissional tem centralidade na reforma e artigos da Lei 13.415/2017 e das Diretri-
que deve reproduzir o dualismo estrutural, zes Curriculares Nacionais para o Ensino
marcante na história da educação no país.
Nesse sentido, analisamos o contexto
da promulgação da reforma no país,
demarcado pelo golpe institucional de
EVALDO PIOLLI é professor da
2016, pelas reformas neoliberais e pela Faculdade de Educação da Unicamp
ascensão do setor empresarial, represen- e líder do Grupo de Estudos Trabalho,
Saúde e Subjetividade (NETSS/FE/Unicamp).
tado pelas suas fundações, ao comando da
agenda educacional. A reforma do Ensino MAURO SALA é professor de
Sociologia do Instituto Federal de
Médio é parte integrante de um projeto Educação, Ciência e Tecnologia de
amplo de vida e de sociedade do capital São Paulo (IFSP), campus de Hortolândia.

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Médio (Brasil; MEC; CNE, 2018a), espe- golpe institucional (MP 746/2016), sendo
cialmente os que tratam da organização depois aprovada no Congresso Nacional
dos itinerários formativos, dos arranjos (Lei nº 13.415/2017), na esteira de tantas
curriculares e do itinerário de formação outras reformas, como a Emenda Constitu-
técnica e profissional. A partir da análise cional 95, que congelou os gastos públicos
das leis e resoluções nacionais, buscamos diretos, a reforma trabalhista, a ampliação
apreender o processo de implementação da terceirização e a reforma da Previdên-
dessa reforma na rede estadual paulista. cia. Todas essas reformas fazem parte de
Por fim, apresentamos algumas refle- um único e mesmo processo: a tentativa
xões sobre o tema da qualificação e da de recuperação do ciclo de acumulação
profissionalização no currículo do Ensino capitalista, descarregando o peso da crise
Médio, impregnado pela supervalorização econômica nas costas dos trabalhadores
do empreendedorismo e da empregabili- e da juventude.
dade, apontando para os elementos que No fim das contas, o que esse conjunto
devem vir a contribuir para uma formação de reformas deixa claro é que a burguesia
desigual da força de trabalho e, conse- e seus representantes no Estado sempre
quentemente, para o aprofundamento da entenderam de maneira própria as rela-
dualidade estrutural. ções que educação e trabalho têm para a
reprodução do modo de produção capita-
REFORMA DO ENSINO MÉDIO, lista, onde a perda de direitos e o aumento
da exploração do trabalho precisam vir
GOLPE INSTITUCIONAL
acompanhados de uma rearticulação do
E OUTRAS REFORMAS processo de formação da força de traba-
lho, adaptando-o a essa “nova” realidade.
Como ação organizada do Estado, toda Portanto, é no quadro das saídas capi-
política educacional – de forma mais ou talistas para a crise que precisamos situar
menos direta e explícita – formaliza e a atual reforma do Ensino Médio, bus-
materializa uma determinada concepção cando apreender o conteúdo e a forma
de educação e de sociedade. A reforma de adaptação da educação ao processo
do Ensino Médio também tem a sua. de precarização geral do trabalho que
Essa reforma não é simplesmente o modo vivenciamos nas últimas décadas e que foi
mais eficaz de se organizar um Ensino intensificado pela crise capitalista e com
Médio em crise, como se ela fosse neu- as contrarreformas impostas pelo golpe
tra, racional ou simplesmente necessária. institucional e pelo governo Bolsonaro.
Ela é também um projeto de educação e Este projeto de educação e sociedade,
de sociedade que formaliza e materializa encabeçado pelo empresariado e pelo setor
interesses próprios: os interesses do capital privado da educação, no entanto, já guia
no momento de sua crise. Desse modo, não as políticas educacionais desde antes de
é casual que a reforma do Ensino Médio 2016. Entretanto, a partir de 2016, certos
tenha sido imposta por medida provisória reformadores empresariais, representados
menos de um mês após a consolidação do por diversas organizações sociais priva-

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das, e que desde antes já orbitavam o os países situados na periferia do capita-
MEC, aceleraram reformas que ampliaram lismo, a Organização para a Cooperação
as possibilidades de acesso aos fundos e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e
públicos pelo setor privado-mercantil, em os órgãos de financiamento internacional
plena sintonia com os princípios histo- como Bird e Banco Mundial1.
ricamente defendidos pela Organização
Mundial do Comércio (OMC). Essas forças A REFORMA DO ENSINO MÉDIO
do mercado, que se ocuparam da agenda
E A DUALIDADE ESTRUTURAL
educacional brasileira e vieram ganhando
força com as novas regulações e medidas
fixadas desde a década de 1990, dentro do A reforma do Ensino Médio, instituída
projeto de reforma do Estado conforme os primeiro por medida provisória e depois
critérios da Nova Gestão Pública, ganha- formalizada na Lei nº 13.415/2017, alte-
ram ainda mais protagonismo. rando dispositivos da Lei de Diretrizes e
Sob tais critérios, foi-se implementando Bases da Educação Nacional (LDBEN),
um novo marco regulatório que deu condi- estabeleceu a divisão do Ensino Médio
ções para a maior flexibilização das par- em duas partes: uma de formação geral e
cerias público-privadas e da privatização comum para todos os estudantes, regida
no âmbito das políticas públicas. Portanto, pela Base Nacional Comum Curricular
trata-se de um processo que antecede ao (BNCC), e outra referente aos chamados
ano de 2016 e que foi consolidando em itinerários formativos.
nosso país o projeto disseminado pelos orga- Segundo podemos ler na LDBEN refor-
nismos internacionais, cuja hegemonia se mada, “a carga horária destinada ao cum-
deu a partir do discurso do consenso, do primento da Base Nacional Comum Cur-
“interesse comum” e da “conciliação de ricular não poderá ser superior a mil e
classes” (Neves, 2005; Souza, 2020), mas oitocentas horas do total da carga horária
que sofreu um impulso ainda maior quando do Ensino Médio, de acordo com a defini-
essa conciliação se rompeu pela direita. ção dos sistemas de ensino” (Brasil, 1996,
Tal projeto tem como centro a melhoria Art. 35-A, § 5º). Ou seja, a formação geral
da qualidade e da gestão e uma concepção e comum para todos os estudantes será de,
de educação dirigida para a formação de no máximo, 1.800 horas, o que significa
capital humano, com a profissionalização e uma redução de carga horária da formação
flexibilização crescentes do currículo e seu básica, que antes da reforma deveria ter,
vínculo direto com as práticas de gestão no mínimo, 2.400 horas. Considerando que
centradas numa concepção de qualidade a LDBEN passa a estabelecer que o ano
a na melhoria de indicadores e posições letivo deverá atingir 1.000 horas anuais nos
em rankings, como o Programa Interna- próximos anos, podemos considerar que a
cional de Avaliação de Estudantes (Pisa).
Está vinculado ao Movimento Global da
Reforma Educacional (Sahlberg, 2016),
1 Para compreensão mais detalhada desse processo
tendo como centro difusor, sobretudo para recomendamos a leitura de Freitas (2018).

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formação geral e comum no Ensino Médio malmente todos os itinerários habilitem


será de, no máximo, 60% da sua carga todos os estudantes a prosseguirem seus
horária total. O restante da carga horária estudos na Educação Superior, devemos
do Ensino Médio será composto com os dizer que, a depender do itinerário cur-
chamados itinerários formativos. Assim: sado, esses estudantes não terão as mes-
mas possibilidades de ingresso nos cada
“O currículo do Ensino Médio será com- vez mais concorridos exames seletivos.
posto pela Base Nacional Comum Cur- Assim, os estudantes que cursarem o iti-
ricular e por itinerários formativos, que nerário de formação técnica e profissional
deverão ser organizados por meio da terão maiores dificuldades de acesso à
oferta de diferentes arranjos curricula- Educação Superior, visto que o processo
res, conforme a relevância para o contexto seletivo para o ingresso nos cursos de
local e a possibilidade dos sistemas de graduação “considerará as competências e
ensino” (Brasil, 1996, Art. 36). as habilidades definidas na Base Nacional
Comum Curricular” (Brasil, 1996, Art.
A Base Nacional Comum Curricular 44, § 3º), já que a carga horária desti-
“definirá direitos e objetivos de aprendi- nada a essas “habilidades e competências”
zagem do Ensino Médio, conforme dire- será limitada a, no máximo, 1.800 horas.
trizes do Conselho Nacional de Educação, Já os estudantes que seguirem os outros
nas seguintes áreas do conhecimento: “I itinerários terão uma carga horária supe-
- linguagens e suas tecnologias; II - mate- rior destinada às “habilidades e compe-
mática e suas tecnologias; III - ciências tências”, que serão exigidas nos exames
da natureza e suas tecnologias; IV - ciên- de ingresso à Educação Superior e que,
cias humanas e sociais aplicadas” (Bra- embora de maneira fragmentada, atingi-
sil, 1996, Art. 35-A). Já os itinerários rão todas as 3 mil horas da carga horária
formativos, “que deverão ser organizados mínima estabelecida para o Ensino Médio
por meio da oferta de diferentes arranjos nos próximos anos.
curriculares”, serão organizados em cinco A regulamentação da reforma do Ensino
áreas de especialização: “I - linguagens e Médio foi orientada pela Resolução CNE/
suas tecnologias; II - matemática e suas CEB nº 3, de 21/11/2018, que atualiza as
tecnologias; III - ciências da natureza e Diretrizes Curriculares Nacionais para o
suas tecnologias; IV - ciências humanas Ensino Médio, em conjunto com a Resolução
e sociais aplicadas; V - formação técnica CNE/CEB nº 4, de 17/12/2018, que institui a
e profissional” (Brasil, 1996, Art. 36). Base Nacional Comum Curricular na Etapa
É importante notar que quatro dos do Ensino Médio (BNCC-EM), formuladas
cinco itinerários formativos coincidem sob a batuta do setor empresarial.
com as áreas de conhecimento da BNCC. Se a Resolução CNE/CEB nº 4 define a
Apenas o itinerário de formação técnica BNCC do Ensino Médio como “o conjunto
e profissional não consta nas áreas que orgânico e progressivo de aprendizagens
definem os “direitos e objetivos de apren- essenciais como direito dos adolescentes,
dizagem do Ensino Médio”. Embora for- jovens e adultos no Ensino Médio” (Brasil;

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MEC; CNE, 2018b, Art. 1º, § 1º), o artigo escolarização voltada para “aprofunda-
6º da Resolução CNE/CEB nº 3 define os mento dos conhecimentos e preparação
itinerários formativos como para o prosseguimento dos estudos”,
com “aplicação de diferentes concei-
“cada conjunto de unidades curricula- tos em contextos sociais e de trabalho”,
res ofertadas pelas instituições e redes e uma outra formação voltada para a
de ensino que possibilitam ao estudante “qualificação profissional”, objetivando
aprofundar seus conhecimentos e se pre- a “habilitação profissional tanto para o
parar para o prosseguimento de estudos desenvolvimento de vida e carreira quanto
ou para o mundo do trabalho de forma a para adaptar-se às novas condições ocu-
contribuir para a construção de soluções pacionais e às exigências do mundo do
de problemas específicos da sociedade” trabalho contemporâneo e suas contínuas
(Brasil; MEC; CNE, 2018a, Art. 6º, III). transformações, em condições de com-
petitividade, produtividade e inovação”
Esse “ou” que aparece nessa definição (Brasil; MEC; CNE, 2018a, Art. 12, V).
não é casual. Ele expressa que a escolha
desse ou daquele itinerário não é apenas A REFORMA DO ENSINO MÉDIO,
uma opção entre caminhos formativos dis-
A FLEXIBILIZAÇÃO CURRICULAR
tintos, mas de destinos duais e excluden-
tes: ou para “aprofundar seus conhecimen- E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHA
tos e se preparar para o prosseguimento
de estudos ou para o mundo do trabalho”. Um dos princípios que regem essa
A definição que a Resolução CNE/CEB reforma é “fomentar alternativas de
nº 3 dá a cada itinerário deixa bastante diversificação e flexibilização curriculares,
clara essa distinção. Todos os quatro itine- pelas unidades escolares, que ampliem as
rários coincidentes com as áreas de conhe- opções de escolha pelos estudantes” (Bra-
cimento da BNCC são definidos como sil; MEC; CNE, 2018a, Art. 20, III). Por
“aprofundamento de conhecimentos estru- isso, teremos uma Base Nacional Comum
turantes” de cada área “para aplicação de Curricular, com no máximo 1.800 horas, a
diferentes conceitos em contextos sociais ser complementada por itinerários forma-
e de trabalho” (Brasil; MEC; CNE, 2018a, tivos diversificados nos quais, depois de
Art. 12, I a IV). Apenas na definição “atendidos todos os direitos e objetivos de
do itinerário de formação técnica e pro- aprendizagem instituídos na BNCC-EM, as
fissional essa formulação não aparece, instituições escolares, redes de escolas e
sendo substituída por “desenvolvimento seus respectivos sistemas de ensino poderão
de programas educacionais inovadores e adotar formas de organização e propostas
atualizados que promovam efetivamente de progressão que julgarem necessárias”
a qualificação profissional dos estudantes (Brasil; MEC; CNE, 2018b, Art. 1º, § 2º).
para o mundo do trabalho” (Art. 12, V). O total da carga horária do Ensino Médio
Desse modo, restabelece-se, de maneira (BNCC + itinerário formativo) deve atingir
explícita, a dualidade escolar, com uma 3 mil horas nos próximos anos. A reforma

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do Ensino Médio também prevê o aumento Devemos considerar que a flexibili-


da jornada anual para 1.400 horas, totali- dade e a possibilidade de escolha pelos
zando 4.200 horas, embora não tenha esta- estudantes também esbarram em dados da
belecido nenhum prazo para se concretizar realidade, que impõem limites à reforma
essa meta (Brasil, 1996, Art. 24, § 1º). e, ao mesmo tempo, podem aprofundar a
A diversificação e flexibilização cur- dualidade pela fragmentação e precariza-
ricular aparecem associadas à ampliação ção da oferta do Ensino Médio no país.
das opções de escolha pelos estudantes. Os dados do Censo Escolar de 2017 apon-
Entretanto, a oferta dos itinerários não tavam para o fato de 41,9% das escolas
está vinculada à demanda apresentada do Brasil trabalharem em turno triplo e
pelos jovens que frequentam a escola, mas 53% dos municípios do país possuírem
às “possibilidades estruturais e de recur- apenas uma escola de Ensino Médio regu-
sos das instituições ou redes de ensino” lar ou profissionalizante. Se contarmos
(Brasil; MEC; CNE, 2018a, Art. 12, § os municípios que só dispõem de uma
8º), onde “os sistemas de ensino devem escola de Ensino Médio regular, estamos
garantir a oferta de mais de um itinerário falando de 55% dos municípios brasileiros
formativo em cada município, em áreas (OESP, 2017). Diante de tal realidade, a
distintas, permitindo-lhes a escolha, dentre saída encontrada pelos propositores da
diferentes arranjos curriculares, atendendo reforma do Ensino Médio foi a parceria
assim à heterogeneidade e pluralidade de com instituições e empresas privadas e
condições, interesses e aspirações” (Art. a educação a distância (EaD).
12, § 6º). A Resolução CNE/CEB nº 3 estabelece
Desse modo, dos cinco itinerários já que, para “garantir a oferta de diferen-
apresentados no texto da reforma, cada tes itinerários formativos”, “podem ser
município é obrigado a oferecer apenas dois, estabelecidas parcerias entre diferentes
o que é um limitador objetivo no discurso instituições de ensino”, inclusive priva-
da escolha que fundamenta a proposta. Além das, desde que “previamente credencia-
disso, “os sistemas de ensino devem estabe- das pelos sistemas de ensino” (Brasil;
lecer o regramento do processo de escolha MEC; CNE, 2018a, Art. 12, § 9º). Mais
do itinerário formativo pelo estudante” (Art. adiante, no Artigo 17 da mesma resolu-
12, § 10º), o que significa que poderá haver ção, o Conselho Nacional de Educação
processos seletivos para o acesso a esse e a Câmara de Educação Básica situam
ou aquele itinerário, o que limita dupla- que parte das atividades a serem desen-
mente a escolha dos estudantes. No fim volvidas pelos estudantes pode ser rea-
das contas, o discurso da escolha escolar lizada a distância. Segundo a Resolução
corre um sério risco de se tornar uma CNE/CEB nº 3, 20% da carga horária
simples imposição das trajetórias disponí- total do Ensino Médio diurno e 30% do
veis, dependente muito mais da “relevância noturno podem ser dados em EaD (Art.
para o contexto local e a possibilidade dos 17, § 15º). Essas porcentagens em EaD
sistemas de ensino” (Art. 12, § 5º) do que podem incidir tanto na formação geral
do interesse dos estudantes. básica quanto nos itinerários formativos

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do currículo, embora a resolução diga que O ITINERÁRIO DE FORMAÇÃO
o EaD deve ser, preferencialmente, ofe-
TÉCNICA E PROFISSIONAL
recido no itinerário formativo (Art. 17, §
15º). Na modalidade Educação de Jovens e E A DUALIDADE DA DUALIDADE
Adultos (EJA), até 80% da carga total do
curso pode ser em EaD (Art. 17, § 5º). Se Se a distinção entre os quatro itinerá-
o EaD for adotado apenas na oferta dos rios das áreas da BNCC e o itinerário de
itinerários formativos, essa modalidade formação técnica e profissional expressa a
de educação poderá ocupar 600 horas no separação entre uma escolarização voltada
diurno e 900 horas no noturno, ou seja, para o “aprofundamento dos conhecimen-
de 50% a 75% da carga horária total, que tos e preparação para o prosseguimento dos
seria de cerca de 1.200 horas. Na EJA, o estudos”, visando à “aplicação de diferentes
ensino presencial pode se tornar mínimo conceitos em contextos sociais e de trabalho”,
ou quase inexistente. e uma outra voltada para a “qualificação
Além daqueles itinerários previstos, profissional”, objetivando uma “habilitação
a reforma do Ensino Médio abre a pos- profissional tanto para o desenvolvimento
sibilidade, “a critério dos sistemas de de vida e carreira quanto para adaptar-se às
ensino”, de criação de itinerários for- novas condições ocupacionais e às exigências
mativos integrados, “que se traduz na do mundo do trabalho contemporâneo e
composição de componentes curricula- suas contínuas transformações”, temos que
res da Base Nacional Comum Curricu- ter claro que a lógica da flexibilização e
lar (BNCC) e dos itinerários formati- diversificação também se reproduz no inte-
vos” (Brasil, 1996, Art. 36, § 3º). Desse rior desses caminhos formativos.
modo, os itinerários formativos inte- No caso do itinerário de formação téc-
grados “podem ser ofertados por meio nica e profissional, os “diferentes arranjos
de arranjos curriculares que combinem curriculares” acabam por desenhar um
mais de uma área de conhecimento e da subsistema de distinção, que podemos
formação técnica e profissional” (Bra- chamar de uma dualidade na dualidade.
sil; MEC; CNE, 2018a, Art. 12, § 3º). As Diretrizes Curriculares Nacionais para
Apesar de o texto da reforma abrir a o Ensino Médio estabelecem que:
possibilidade desse itinerário integrado,
ele não estabelece nenhum tipo de obri- “Na organização do itinerário de formação
gatoriedade no seu oferecimento. O que técnica e profissional podem ser ofer-
faz é garantir salvaguardas ao setor pri- tadas tanto a habilitação profissional
vado da educação e aos nichos de ensino técnica quanto a qualificação profissional,
destinados à classe média e à elite, já incluindo- se o programa de aprendiza-
que essas combinações e arranjos cur- gem profissional em ambas as ofertas”
riculares integrados poderão garantir a (BRASIL; MEC; CNE, 2018a, Art. 15).
oferta de um Ensino Médio mais próximo
do antigo propedêutico com uma carga Quando o texto da resolução diz que a
horária mais elevada. formação técnica e profissional pode ser

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“tanto a habilitação profissional quanto possibilitando a organização de itinerários


a qualificação profissional”, supõe-se que formativos com saídas intermediárias de
podem ser ofertadas duas formas distintas qualificação profissional técnica”.
de se cumprir esse itinerário formativo. E
de fato assim é. Habilitação profissional Então, habilitação profissional é o que
e qualificação profissional são duas for- tradicionalmente chamamos de “curso
mas diferentes de oferecimento de cursos técnico”, o qual, regido pelo Catálogo
profissionalizantes em nível médio. Nacional de Cursos Técnicos, tem uma
No site do MEC 2 podemos ler clara- carga horária entre 800 e 1.200 horas.
mente essa distinção, onde a habilitação Por outro lado, os cursos de qualificação
profissional técnica de nível médio é apre- profissional são definidos pelo MEC como
sentada da seguinte forma:
“cursos que se integram à organização
“Cursos que habilitam para o exercício curricular de uma Habilitação Profissional
profissional em função reconhecida pelo Técnica de Nível Médio (curso técnico),
mercado de trabalho (Classificação Bra- compondo o respectivo itinerário forma-
sileira de Ocupações – CBO), a partir tivo aprovado pelo sistema de ensino.
do desenvolvimento de saberes e compe- Também chamados de unidades ou módu-
tências profissionais fundamentados em los, correspondem a saídas intermediá-
bases científicas e tecnológicas. Promo- rias do plano curricular com carga horá-
vem o desenvolvimento da capacidade ria mínima de 20% do previsto para a
de aprender e empregar novas técnicas respectiva habilitação. São destinados a
e tecnologias no trabalho e compreender propiciar o desenvolvimento de compe-
os processos de melhoria contínua nos tências básicas ao exercício de uma ou
setores de produção e serviços. mais ocupações reconhecidas no mercado
Denominados de cursos técnicos, desti- de trabalho”.
nam-se a pessoas que tenham concluído
o Ensino Fundamental, estejam cursando A partir dessas definições, vemos que
ou tenham concluído o Ensino Médio. É a qualificação profissional é apresentada
importante ressaltar que para a obten- como uma “saída intermediária” aos cur-
ção do diploma de técnico é necessária sos de habilitação profissional, também
a conclusão do Ensino Médio. Com carga denominados de cursos técnicos e que
horária variando entre 800, 1.000 e 1.200 possuem como exigência 20% da carga
horas, dependendo da respectiva habilitação total de um curso técnico ou habilita-
profissional técnica, podem ser estrutura- ção profissional. Enquanto um curso
dos com diferentes arranjos curriculares, técnico tem de 800 a 1.200 horas, um
curso de qualificação profissional pode
ter apenas 160 ou 200 horas de formação.
Assim, fica claro que o próprio itinerário
2 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cursos-da-
de formação técnica e profissional terá,
-ept/cursos-da-educacao-profissional-tecnica-de-
-nivel-medio. Acesso em: 11/11/2020. pelo menos, dois caminhos que não são

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apenas distintos, mas hierarquicamente
Ilhar Leichonak/123RF

desiguais. Por isso o CNE e a CEB já


previram que esse “itinerário formativo
possibilita a concessão de certificados
intermediários de qualificação profissio-
nal técnica, desde que seja estruturado e
organizado em etapas com terminalidade,
segundo os interesses dos estudantes, as
possibilidades das instituições e redes de
ensino, as demandas do mundo do traba-
lho e a relevância para o contexto local”
(Brasil; MEC; CNE, 2018a, Art. 15, § 4º)
e que “os itinerários de formação técnica
e profissional podem compreender a oferta
de um ou mais cursos de qualificação
profissional, desde que articulados entre
si” (Art. 15, § 5º).
Temos que ter claro que o itinerário
técnico e profissional não se confunde
com o oferecimento de cursos técnicos,
ou de habilitação profissional técnica
de nível médio, mas que poderá ser ofe-
recido por diferentes arranjos e saídas
intermediárias que significarão um ali-
geiramento da formação profissional de
parte dos nossos jovens. Desse modo, os
estudantes poderão cumprir o itinerário de
formação técnica e profissional fazendo
vários pequenos cursos de qualificação
profissional que não busquem promover
“o desenvolvimento da capacidade de
aprender e empregar novas técnicas e
tecnologias no trabalho e compreender
os processos de melhoria contínua nos
setores de produção e serviços”, como
os cursos técnicos, mas que objetivem
apenas “propiciar o desenvolvimento de
competências básicas ao exercício de uma
ou mais ocupações reconhecidas no mer-
cado de trabalho” em cursos curtos de
qualificação profissional.

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dossiê ensino público

A IMPLEMENTAÇÃO DO sobretudo, os sistemas estaduais, que são


os principais responsáveis pelo ofereci-
ITINERÁRIO DE FORMAÇÃO
mento dessa etapa da Educação Básica.
TÉCNICA E PROFISSIONAL Nesse sentido, acompanhar os primeiros
NA REDE ESTADUAL PAULISTA passos da implementação da reforma é
fundamental para compreendermos as
Já é longa a trajetória da reforma do mudanças no Ensino Médio e como isso
Ensino Médio desde a apresentação da impacta na formação da juventude tra-
Medida Provisória nº 746, em setembro balhadora.
de 2016. De lá para cá, a reforma do Um dos estados que estão mais avan-
Ensino Médio foi aprovada no Congresso çados na regulamentação e implementação
Nacional, em fevereiro de 2017, e passou dos dispositivos da reforma do Ensino
por normatização do Conselho Nacional Médio em seu sistema próprio é São
de Educação e da Câmara de Educação Paulo. Por isso, mostraremos a seguir
Básica, em novembro e dezembro de 2018. os caminhos que os “diferentes arran-
Mas como a reforma estabelece a divisão jos curriculares” estão tomando para o
do Ensino Médio entre uma Base Nacio- oferecimento do itinerário de formação
nal Comum Curricular e os itinerários técnica e profissional na rede paulista.
formativos, sua implementação dependia O estado de São Paulo começou a
e estava condicionada à homologação da implementação do itinerário técnico e
BNCC pelo Ministério da Educação, o que profissional antes mesmo de ter fixado
também ocorreu em dezembro de 2018. as normas relativas ao currículo do Ensino
Desse modo, a Lei 13.415/2017 definiu que Médio de seu sistema de ensino no Con-
selho Estadual de Educação (CEE/SP),
“os sistemas de ensino deverão estabelecer que se deu em agosto de 2020 durante a
cronograma de implementação das alte- pandemia, ou seja, num momento em que
rações na Lei n o 9.394, de 20 de dezem- todas as escolas do estado de São Paulo se
bro de 1996 […], no primeiro ano letivo encontravam fechadas devido às medidas
subsequente à data de publicação da Base sanitárias. O governo paulista começou
Nacional Comum Curricular, e iniciar o a implementar o itinerário de formação
processo de implementação, conforme o técnica e profissional na rede estadual
referido cronograma, a partir do segundo antes mesmo de definir como seria a
ano letivo subsequente à data de homo- implementação da BNCC no estado3.
logação da Base Nacional Comum Cur- Assim, ainda no primeiro semestre de
ricular” (Brasil, 2017, Art. 12). 2019, o governo João Doria (PSDB) apre-

Mesmo que consideremos um certo


descompasso no ritmo de implementação 3 Após a entrega deste artigo, o governo paulista pu-
blicou a Resolução 85, de 19 de novembro de 2020,
da reforma, a aplicação da nova LDBEN que estabelece a organização curricular dos ensinos
alterada pela Lei 13.415/2017 deve acon- Fundamental e Médio, o que dá mais um passo na
implementação da reforma do Ensino Médio conforme
tecer nos próximos anos, o que impactará, estamos apontando.

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sentou um projeto chamado Novotec, com que notar que o governo paulista já se
“opções de cursos técnicos e profissiona- vale do disposto no texto da reforma do
lizantes aos estudantes do Ensino Médio Ensino Médio nacional, que permite que
das escolas estaduais paulistas”, segundo parte da formação seja dada a distân-
propaganda em seu site 4. Como consta cia (Brasil, 1996, Art. 36, §11, VI), pelo
nos materiais de divulgação do novo cur- Novotec Virtual.
rículo paulista, o Novotec representa a O governo iniciou seu programa em
implementação do itinerário técnico e pro- 2019 oferecendo “5,4 mil vagas do Ensino
fissional da reforma do Ensino Médio, Médio integrado com o Técnico em seis
dividindo-se em quatro modalidades: o aulas diárias”; 23 mil vagas em “cursos de
Novotec Integrado, com “curso técnico curta duração (200 horas) para qualifica-
integrado às suas aulas e disciplinas do ção profissional” pelo Novotec Expresso;
Ensino Médio, tudo no mesmo período que 1,5 mil vagas também em “cursos de curta
você estuda”; o Novotec Expresso, com duração (200 horas) para qualificação pro-
“cursos de 200 aulas realizados em um fissional” pelo Novotec Móvel; e 3 mil
semestre presencialmente, para jovens de vagas em cursos de 200 e 400 horas ofe-
todos os anos do Ensino Médio da rede recidos a distância pelo Novotec Virtual6.
estadual de São Paulo, regular ou EJA”; o Desse modo, vemos que no primeiro ano
Novotec Móvel, com “cursos [que] vão até de implementação do Novotec houve uma
você em unidades móveis, com duração clara predominância dos cursos curtos de
de até 100 horas realizados em até um qualificação profissional em detrimento
mês”; e o Novotec Virtual, onde a forma- da formação técnica. Temos que ter claro
ção “é realizada on-line, por uma plata- que essa disparidade não foi apenas a
forma moderna da Universidade Virtual dificuldade inerente à implementação de
do Estado de São Paulo. Com módulos um novo programa. Ela é a própria meta.
tutorados de 100 horas, nas modalidades Quando olhamos o Projeto de Plano
semipresencial e totalmente on-line”. Plurianual (2020-2023)7, enviado pelo
Dessas quatro modalidades, apenas o governador João Doria para a Assembleia
Novotec Integrado oferecerá cursos técni- Legislativa, percebemos claramente que a
cos, ou habilitação profissional técnica de finalidade do Novotec é o oferecimento
nível médio. Todas as outras três modali- em massa de cursos curtos de qualificação
dades oferecerão cursos curtos de quali- profissional, e não de cursos técnicos. Em
ficação profissional, com duração de 100 seu Projeto de Plano Plurianual (2020-
a 200 horas de formação5. Também temos 2023), o governo propôs oferecer 938 mil

4 Disponível em: http://www.novotec.sp.gov.br. Acesso 6 Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/


em: 7/11/2020. ultimas-noticias/governo-de-sp-lanca-programa-de-
-ensino-tecnico-profissionalizante-novotec/. Acesso
5 Vale notar que há algum tempo, quando escrevemos
em: 7/11/2020.
sobre o Novotec, os cursos de qualificação profissional
eram apresentados com carga horária entre 200 e 400 7 Disponível em: http://www.ppa.sp.gov.br/ppa2023/
horas. ProjetoLei. Acesso em: 11/11/2020.

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dossiê ensino público

vagas em cursos curtos de qualificação formação técnica e profissional dentro da


profissional e 23 mil em cursos técnicos estrutura da reforma, onde a formação
pelo Novotec. Enquanto uma habilitação geral, a parte destinada à BNCC, cede
profissional técnica de nível médio tem espaço para os itinerários formativos, que
entre 800 e 1.200 horas de formação, um nesse caso terão grande peso para os cur-
curso de qualificação profissional tem sos curtos de qualificação profissional em
exigência de 20% dessa carga horária, o detrimento de cursos técnicos.
que significará uma formação profissio- É importante dizer também que, além
nal aligeirada para a grande maioria dos da preferência pelos cursos curtos de
jovens que se formarem pelo programa 8. qualificação profissional e o recurso do
A meta do governo é ter 400 mil matrí- ensino a distância, o governo paulista tam-
culas por ano até 2022, ou cerca de 30% bém já inicia uma série de parcerias9 com
das matrículas do Ensino Médio da rede instituições privadas para o oferecimento
estadual paulista. de cursos pelo Novotec, o que demonstra
Com a aprovação do novo currículo que o governo Doria também não perdeu
paulista alinhado à BNCC, o Novotec tempo para seguir o caminho da privati-
vai valer como carga horária do Ensino zação aberto pela reforma (Brasil, 1996,
Médio. Art. 36, §11, III, V e VI).

“A partir de 2021, com a implementação ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


da Base Nacional Comum Curricular para
SOBRE A PROFISSIONALIZAÇÃO,
o Ensino Médio, os cursos de duração
mais curta poderão contar para a carga A QUALIFICAÇÃO E A IDEOLOGIA
horária desta etapa do ensino. Isso signi-
fica que ao fazer um curso do Novotec o O predomínio de cursos curtos de qua-
estudante poderá descontar a carga horária lificação profissional em detrimento de
do Ensino Médio Regular.” cursos técnicos na implementação do iti-
nerário de formação técnica e profissional
Desse modo, o governo paulista irá evidencia o sentido da profissionalização
implementar plenamente o itinerário de que a reforma do Ensino Médio vem a
promover: uma profissionalização rápida
para a realização de trabalhos simples e
cada vez mais precários.
8 Numa consulta recente ao site do programa, notamos
que a carga horária de várias modalidades apareceram Além disso, também temos de notar
alteradas em relação a outras consultas feitas anterior-
que os conteúdos dessas qualificações são
mente. Não sabemos se essa alteração passará a ser a
nova conformação do programa ou se são mudanças bastante discutíveis. Assim, com a proposta
conjunturais devido à pandemia. De qualquer modo,
vale marcar que, no site do programa, o Novotec Ex- de haver “diferentes formatos de oferta de
presso passou a oferecer “cursos semipresenciais com
duração de 90 horas”; o Novotec Móvel, “cursos inten-
sivos, de até 100 horas, oferecidos em até 30 dias”; e
o Novotec Virtual, “cursos de qualificação profissional
de 80 h”. Disponível em: http://www.novotec.sp.gov. 9 Disponível em: http://www.novotec.sp.gov.br/parce-
br/Modalidades#Movel. Acesso em: 7/11/2020. rias. Acesso em: 11/11/2020.

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cursos de nível médio, garantindo qualifi- tos se articulam na formação proposta e
cação e habilitação profissional aos jovens, como isso indica as reais necessidades
com vistas à empregabilidade, emancipação do mercado de trabalho. Entretanto, não
financeira e empreendedorismo”10, no site podemos entender a articulação desses
do programa estão atualmente disponíveis elementos como um todo homogêneo. O
nove cursos técnicos pelo Novotec Inte- que se desenha é um processo de for-
grado e 11 cursos curtos de qualificação mação desigual e combinada da força de
profissional pelo Novotec Expresso. Des- trabalho para um mercado de trabalho
tes, seis cursos do Novotec Integrado e heterogêneo que, como aponta Ricardo
seis do Novotec Expresso estão concen- Antunes (2000, p. 62), “ao mesmo tempo
trados no eixo tecnológico de “Gestão e em que se visualiza uma tendência para
Negócios”. Os outros cursos se dividem a qualificação do trabalho, desenvolve-se
entre os eixos de “Economia Criativa”, também intensamente um nítido processo
“Informação e Comunicação” e “Produção de desqualificação dos trabalhadores, que
Cultural e Design”. acaba configurando um processo contradi-
Se lembrarmos que tanto a Resolução tório que superqualifica em vários ramos
CNE/CEB nº 3 (Brasil; MEC; CNE, 2018a, produtivos e desqualifica em outros”.
Art. 12, §2º, IV) quanto a Deliberação O que se expressa, segundo Acácia
CEE/SP 186/2020 (São Paulo; Seduc; CEE/ Kuenzer (2005), é uma “polarização das
SP, 2020, Art. 11, IV) estabeleceram o competências”. Por isso a reforma do
empreendedorismo como um dos “eixos Ensino Médio tem seu eixo na “distri-
estruturantes” dos itinerários formativos, buição desigual e diferenciada, tanto da
podemos ver o peso que esse ideário da educação escolar quanto da formação pro-
gestão, negócios e empreendedorismo fissional, para atender às demandas de um
assume na realização do itinerário de novo regime de acumulação” (Kuenzer,
formação técnica e profissional. 2017, p. 339). Para a autora, numa socie-
Seguindo a indicação de István Mészá- dade atravessada pela microeletrônica e
ros (2002, p. 263) de que, “além da repro- por outras tecnologias, há maior exigên-
dução, em escala ampliada, das múltiplas cia da capacidade de trabalhar intelec-
habilidades sem as quais a atividade pro- tualmente, o que demanda a expansão
dutiva não poderia ser levada a cabo, o da escolarização, tanto em nível básico
complexo sistema educacional da socie- quanto superior, “acompanhada da capa-
dade é também responsável pela produção citação contínua para atender às novas
e reprodução da estrutura de valores no demandas do mercado de trabalho”. A
interior da qual os indivíduos definem questão a ser discutida é saber “para quem
seus próprios objetivos e fins específicos”, e com que qualidade essa expansão deve
podemos pensar como esses dois elemen- se dar” (p. 339).
Desse modo, “se há combinação entre
trabalhos desiguais e diferenciados ao
10 Disponível em: http://www.novotec.sp.gov.br/
longo das cadeias produtivas, há também
Modalidades#Movel. Acesso em: 11/11/2020. demandas diferenciadas (e desiguais) de

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dossiê ensino público

qualificação dos trabalhadores” (Kuen- desvalorização e desqualificação do tra-


zer, 2017, p. 340). A “diversificação e balho, passa também a exigir certa des-
flexibilização” da formação proposta pela valorização e desqualificação da educa-
reforma do Ensino Médio vêm a coincidir ção; desvalorização e desqualificação que
com “a necessidade de ter disponível para políticas como a reforma trabalhista, a
consumo, nas cadeias produtivas, força ampliação da terceirização e a reforma
de trabalho com qualificações desiguais da Previdência, por um lado, e a emenda
e diferenciadas” (p. 340), desmascarando constitucional e a reforma do Ensino
o discurso que apontaria para a neces- Médio, por outro, tendem a agravar.
sidade geral de elevação dos níveis de Por outro lado, a desvalorização do
conhecimento e da capacidade de traba- conteúdo do trabalho acaba por deman-
lhar intelectualmente. Assim, a reforma dar uma supervalorização dos elementos
do Ensino Médio, “ao flexibilizar os per- ideológicos na formação da juventude
cursos, institucionaliza o acesso desigual trabalhadora, como vimos pelo exemplo
e diferenciado ao conhecimento” (p. 341). do Novotec. Essa supervalorização do
A questão é perceber que no quadro empreendedorismo, da formação voltada
dessa distribuição “desigual e diferenciada” para gestão e negócios, para a emprega-
predomina na relação trabalho-educação, bilidade, desvela um novo sentido para a
não o exercício de “trabalho intelectual profissionalização, onde “importa menos
integrado às atividades práticas, a par- a qualificação prévia do que a adaptabi-
tir de extensa e qualificada trajetória de lidade” (Kuenzer, 2017, p. 341), ou, para
escolarização”, mas sim o uso de “conhe- dialogar com Christian Laval, o sentido
cimentos tácitos pouco sofisticados, em da profissionalização se transforma, não
atividades laborais de natureza simples e estando mais vinculado apenas a uma
desqualificada, e [que] são precariamente especialização articulada a um posto de
qualificados por processos rápidos de trei- trabalho, “mas a ‘atitudes’ e a ‘sociali-
namento” (Kuenzer, 2017, p. 341). Quando zação’ na empresa” (Laval, 2004, p. 79).
olhamos o grande predomínio da oferta de Desse modo, e por fim, expressa na
cursos curtos de qualificação profissional, “diferenciação e flexibilização curricular”
em detrimento tanto da formação geral e na lógica da “polarização das compe-
quanto da formação técnica, percebemos cla- tências”, a articulação educação e traba-
ramente como a reforma do Ensino Médio lho como prevista na reforma do Ensino
responde à predominância desses trabalhos Médio acaba por oferecer, para a maioria
de “natureza simples e desqualificada”. da juventude trabalhadora, apenas uma
É nesse sentido que o mercado de tra- formação rápida, superficial e, acima de
balho, que caminha principalmente para a tudo, precária.

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