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COLEÇÃO
BIBLIOTECA
INDISPENSÁVEL

ESTES SÃO LIVROS QUE NÃO PASSAM.

CLÁSSICOS DO ESPÍRITO CRISTÃO,

OU SIMPLESMENTE DO ESPÍRITO,

REUNIDOS AGORA NUMA COLEÇÃO

QUE PRETENDE TESTEMUNHAR

A VITALIDADE, A DIVERSIDADE E A

SURPRESA DA EXPERIÊNCIA DE DEUS.

CADA UM DESTES VOLUMES É UM

PEQUENO GRÃO ONDE A ESPERANÇA

INTEIRA CINTILA. Ü RESULTADO


É NÃO SÓ UMA BIBLIOTECA

INDISPENSÁVEL, QUE O PASSADO DO

CRISTIANISMO E DA CULTURA LEGAM

AO PRESENTE, MAS UM TESOURO

QUE O NOSSO PRESENTE É CHAMADO

A REENCONTRAR APAIXONADAMENTE

E A TRANSMITIR AO FUTURO.
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IMITAÇÃO DE CRISTO
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Tradução de
MARIA ISABEL BÉNARD DA COSTA E PEDRO TAMEN

Prefácio de
MIGUEL TAMEN
Coordenação da coleção José Tolentino Mendonça

Título original De Imitatione Christi


(1418-1427)
Tradução © Paulinas Editora
Tradutores Maria Isabel Bénard da Costa e Pedro Tamen
Capa Gito Lima
Pré-impressão Paulinas Editora - Prior Velho
Impressão e acabamentos Artipol - Artes Tipográficas, Lda. - Águeda
Depósito legal 389 250115
ISBN 978-989-673-437-4

© Março 2015, Inst. Miss. Filhas de São Paulo


Rua Francisco Salgado Zenha, 11
2685-332 Prior Velho
Te!. 219 405 640 - Fax 219 405 649
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www.paulinas.pt
PREFÁCIO

imitação de Cristo causou e ainda causa nervosismo em


A não-cristãos e cristãos. Muitos não-cristãos lamenta­
ram a maneira ríspida como Tomás de Kempis trata os
nossos desej os, as nossas sensações e a nossa ciência. O livro
seria um bom exemplo daquilo a que Friedrich Nietzsche fa­
mosamente chamou o ideal ascético, e que acusou de arrui­
nar a nossa saúde. Muitos teólogos cristãos só conseguem
hoje admirar relutantemente o livro que, no entanto, muitos
milhares de outros cristãos quase imediatamente leram e
a dmiraram. Queixaram-se da versão minimal do cristia­
nismo que ele apresenta : um cristianismo que desconfia das
relações humanas ( « caridade, não familiaridade » , 1, VIII, 2 ) ,
de onde estão quase ausentes a s outras pessoas, m a s a que
Tomás chamou o cristianismo de um « espírito livre que não
está preso a nenhuma desordenada afeição das criaturas »
( III, XXVI, 1 ) ; e em qualquer caso um cristianismo de onde
parece ter sido erradicada a filosofia, que brilhantemente e
l aboriosamente se tinha pouco a pouco tornado a aliada
mais importante do Cristianismo ocidental durante a Idade
Média.
Estas queixas sugerem uma versão da Imitação Cristo
de
que é ela própria uma versão empobrecida . Com efeito, a
Imitação Cristo
de está saturada de filosofia; não tanto de
teorias filosóficas sobre o conhecimento, a mente, ou a ação

[5
humana, mas de uma teoria sobre aquilo que a filosofia não
pode ou não consegue fazer, e nomeadamente de uma teoria
sobre os limites da linguagem filosófica . Essa teoria será pes­
simista, mas não é menos filosófica por isso. Tomás de
Kempis chama repetidamente a atenção para o problema do
uso da filosofia na reflexão teológica; nisso se aproxima sur­
preendentemente de Nietzsche. Aconselha-nos a moderar o
« excessivo desej o de saber » (1, II, 2 ) ; observa que « vale bem
mais sentir arrependimento do que saber a sua definição »
(1, 1, 2 ) ; o seu propósito metodológico, como também diz, é
o de « evitar as palavras a mais » (1, x). O grande historiador
holandês Johan Huizinga falou, a este respeito, de Tomás
como alguém « calado, introvertido, cheio de ternura pelo
milagre da Missa e com uma perceção muito limitada da
ajuda divina » . Enquanto muitos dos seus contemporâneos,
igualmente ou menos notáveis, tentaram corrigir diretamen­
te «a administração da Igrej a e a vida secular » , Tomás nunca
manifestou grande interesse por esses assuntos.
É o lado taciturno de Tomás, daquilo a que também Hui­
zinga chamou «O ritmo monótono das frases que torna a
Im itação parecida com o mar numa tarde de chuva » , que
nos permite perceber mais exatamente o que quer, para ele,
dizer « imitação de Cristo » . Aristóteles acreditava que as pes­
soas aprendem a agir corretamente por imitação. Muitos
cristãos, porventura a maioria, entendem nesse espírito que
a imitação de Cristo deve ser imitação das ações de Cristo,
por exemplo, como descritas nos Evangelhos. Não é o caso
de Tomás. A ideia de imitar as ações de Cristo parece-lhe
suspeita, e a possi bilidade de o fazer irrazoável. Em vez
disso, a imagem que dá de imitação de Cristo é a de uma ati­
vidade silenciosa, conduzida a sós, numa espécie de colóquio

6]
mental com o próprio Cristo. De tal colóquio são exemplo
principal os dois últimos livros da Imitação.
Nesse colóquio mental com Cristo, no entanto, as per­
guntas que se fazem não servem para saber coisas. « Filho » ,
observa Cristo secamente, « não sej as curioso » ( III, XXIV, 1 ) .
O s obj etivos da imitação não são imediatos e não propor­
cionam c onhecimento : « Tu pedirás e nada obterá s » (Ili,
xux, 4 ) . Ao contrário de outras tradições de exercícios espi­
rituais em que é possível verificar os progressos, por exem­
plo os progressos cognitivos, que fizemos, muito pouco,
para Tomás, depende daquilo que fizermos; e em qualquer
caso tudo depende de Cristo.
Este modelo de instrução, de consolação e de exercício
está profundamente ligado a uma invenção quase contem­
porânea deste livro. Trata-se da invenção da tipografia. A
Im itação de Cristo terá sido escrita na segunda ou na ter­
ceira década do século XV, e terá primeiro circulado em
cópias manuscritas; porém, a partir de 1471 , sucederam-se
as versões impressas. Antes do fim do século tinha sido tra­
duzida para quatro línguas e tinha tido mais de cem edições.
Hoj e tem mais de duas mil. O seu êxito esteve sempre, por
isso, ligado à tipografia e à possibilidade de um grande nú­
mero de pessoas poderem comprar e ler livros . O facto está
longe de ser trivial. Com efeito, existe uma relação profunda
entre aquilo que para Tomás de Kempis é a imitação de
Cristo - uma atividade silenciosa conduzida a sós - e a pos­
sibilidade e a ideia de leitura que tornou necessária a inven­
ção da tipografia.
Os espíritos livres de fins do século X V eram também espí­
ritos taciturnos e solitário s . Na Europa, as pessoas habi­
tuaram-se gradualmente a falar a sós com os livros; e ha-

[7
bituaram-se a ver essa atividade solitária como uma aprendi­
zagem que afetava outros hábitos que tivessem. «Ü hábito » ,
como disse Tomás, « vence-se pelo hábito » (I, XXI, 2 ) ; esse é,
para ele, o princípio fundamental da imitação. Devemos a
Tomás a ideia de que a possibilidade da leitura generalizada,
mais que um modo de instrução, e mais que um modo de
acesso direto à verdade da letra, é uma atividade que, na
maneira como se desenrola, retrata a possibilidade de uma
imitação de Cristo: em silêncio, em paz, e sem esperar res­
postas. Ao ler este livro, cada leitor vai assim, independente­
mente da sua vontade, encontrar-se na p osição de que
Tomás tanto fala, e na posição em que Tomás o quis colocar.

MIGUEL TAMEN

8]
LIVRO PRIMEIRO

Conselhos úteis à vida espiritual


1

Da imitação de Cristo
e do desprezo de todas as vaidades do mundo

1.
Aquele que me segue não anda nas trevas, diz o Senhor
(Jo 8 , 1 2 ) .
S ã o estas a s palavras de Cristo, que n o s incitam a que
imitemos a sua vida e costumes, se quisermos ser verdadei­
ramente iluminados e libertos de toda a cegueira de coração.
Sej a, pois, nosso fito principal meditar a vida de Jesus
Cristo .
A doutrina de Cristo excede todas as doutrinas dos
santos, e quem nela tenha o seu espírito, aí encontrará o
maná escondido.
Acontece, porém, que muitos, porque não têm o espírito
de Cristo, embora ouçam frequentemente o Evangelho,
sentem pouco desej o dele.
Mas quem quiser compreender e saborear plenamente as
palavras Cristo, terá de se esforçar por moldar em Cristo
toda a sua vida .

2.
Que te aproveitará discorrer sobre a Trindade, se, por
não teres humildade, lhe desagradas?
Não são, na verdade, as grandes palavras que fazem o
santo e o j usto, pois é a vida virtuosa que tornam o homem
querido de Deus.

[ 11
Vale bem mais sentir arrependimento do que saber a sua
definição.
De que te serviria saber de cor toda a Bíblia e todos os es­
critos dos filósofos, sem a graça e o amor de Deus?
Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade ( Ecl 1 ,2 ) , fora
amar a Deus e só a Ele servir.
Esta é a suprema sabedoria: caminhar para o Reino de
Deus pelo desprezo do mundo.

3.
É , portanto, vaidade ambicionar riquezas perecíveis e es­
perar nelas .
Vaidade, também, procurar a s honras e p o r elas se elevar.
É vaidade seguir os desej os da carne e desej ar aquilo por
que havemos de ser duramente castigados.
Vaidade é desej ar uma vida longa, não olhando a que
sej a boa.
Vaidade é esperar somente nesta vida, e não pôr os olhos
no que há de vir.
Vaidade é amar o que depressa passa, e não correr ao
lugar da alegria que não passa .

4.
Lembra-te muitas vezes do provérbio que diz: aos olhos
não chega ver, nem aos ouvidos ouvir ( Ecl 1 , 8 ) .
Procura, pois, afastar o teu coração das coisas visíveis e
transferi-lo para as que não se veem.
Na verdade, os que seguem os sentidos mancham a cons­
ciência e perdem a graça de Deus.

12 ]
II

Do humilde sentimento de si próprio

1.
Todo o homem desej a naturalmente conhecer, mas que
importa a ciência sem o temor de Deus ?
É certamente melhor o humilde camponês que serve a
Deus, do que o soberbo filósofo que, não se tomando em
conta, observa o movimento do céu.
Quem se conhece bem a si próprio, a si próprio despreza,
e não se deleita nos louvores humanos.
Se souber todas as coisas do mundo e não tiver caridade,
de que me aproveitará isso perante Deus, que me j ulgará
pelo fiz ?

2.
Modera o teu excessivo desej o de saber, porque ele só te
ilude e te dispersa .
Os sábios gostam d e ser vistos e j ulgados como sábios.
Muitas são as coisas cuj a ciência pouco ou nada apro­
veita à alma, e louco é o que atende àquelas de que não de­
pende a sua salvação.
Muitas palavras não saciam a alma, mas uma vida boa
faz fresco o espírito, e a pura consciência dá grande con­
fiança ao pé de Deus.

[ 13
3.
Quanto mais e melhor souberes, tanto mais duramente
serás julgado, se não viveres também mais santamente.
Não te orgulhes, pois, da arte ou da ciência, e antes teme
o que delas sabes.
Se te parece que conheces e compreendes bem muitas
coisas, sabe que muitas mais são as que não conheces.
Não te orgulhes ( Rm 1 1 ,2 0 ) , e confessa antes a tua igno­
rância .
Porque te pretendes maior do que os outros, quando há
tantos mais sábios e doutos que tu na lei de Deus ?
Se queres saber e aprender alguma coisa com proveito,
desej a que não te conheçam nem considerem.

4.
Eis a maior e mais útil lição: o conhecimento e o desprezo
de si próprio.
Ter-se a si por nada e pensar bem dos outros é a grande
ciência e perfeição.
Se vires alguém pecar a bertamente ou cometer faltas
graves, não te deves, por isso, considerar melhor, pois não
sabes até quando te manterás no bem.
Todos somos fracos, mas não consideres ninguém mais
fraco do que tu.

14 ]
III

Da doutrina da verdade

1.
Feliz aquele a quem a própria verdade ensina, não por
imagens e palavras que passam, mas tal como é.
O nosso j uízo e os nossos sentidos muitas vezes nos enga­
nam e pouco alcançam.
De que serve grande subtileza em coisas ocultas e
obscuras, por cuj a ignorância não seremos j ulgados no dia
do Juízo ?
Grande loucura é abandonarmos as coisas úteis e neces­
sárias, para nos interessarmos com curiosidade pelas que
nos prej udicam.
Tendo olhos, não vemos; porque nos ocupamos dos géne­
ros e das espécies ?
Aquele a quem o Verbo eterno fala é libertado d e muitos
falsos pensamentos.
De um só Verbo, todas as coisas, e todas dele nos falam:
e é este o Princíp io que nos fala (Jo 8 ,25 ) .
Ninguém compreende o u j ulga retamente sem Ele .
Aquele para quem tudo é um, q u e tudo a um refere e que
tudo vê uno, esse pode ter o coração em paz e descansar em
Deus.
Ó Deus de Verdade, faz-me um contigo no amor eterno !
Aborrece-me muitas vezes ler e ouvir muita coisa, porque
em ti está tudo quanto quero e desej o.

[ 15
Calem-se os doutores, e toda a criatura fique muda na
tua presença: fala-me Tu só.

2.
Quanto mais uno e interiormente simples for alguém, tan­
to melhor compreenderá sem esforço as mais diversas e ele­
vadas coisas, pois que lhe vem do alto a luz da inteligência.
O espírito puro, simples e firme não se dissipa nas coisas
que faz, porque todas são feitas em honra de Deus, e pro­
cura libertar-se da contemplação de si próprio .
Q u e mais t e tolhe e t e faz m a l q u e as afeições q u e não
mortificas ?
O homem bom e piedoso pensa primeiro no que deve
fazer.
Assim, as suas obras não o arrastam para maus desej os,
mas antes se submetem à reta razão.
Que maior combate do que pela vitória de si mesmo ?
Esta deveria ser a nossa ocupação: vencermo-nos a nós
mesmos, e todos os dias mais fortes e melhores em algo nos
tornarmos.

3.
Toda a perfeição nesta vida tem em si qualquer imperfei­
ção; e nada vemos sem uma certa obscuridade.
O humilde conhecimento de ti é um caminho mais certo
para Deus do que as profundas investigações da ciência.
Não que se deva culpar a ciência ou o simples conheci­
mento das coisas, pois ela é boa em si e querida por Deus;
mas deve preferir-se-lhe sempre uma consciência pura e uma
vida santa.
Pouco ou nenhum fruto conseguem, e muitas vezes
erram, os que preferem a ciência à vida santa.

16 ]
4.
Oh, se empregassem tanto esforço em extirpar vícios e
cultivar virtudes como o que despendem nessas questões vãs,
não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta
dissolução nos conventos !
Com certeza que, no dia do Juízo, não nos perguntarão o
que lemos, mas o que fizemos; não se falámos bem, mas se
vivemos bem.
Diz-me : onde estão todos aqueles senhores e mestres
que tão bem conheceste enquanto viviam e brilhavam nos
estudos ?
Já outros agora ocupam os seus lugares , e não sei se
ainda são lembrados.
Em vida, pareciam ser alguém, e agora já não se fala
deles.

5.
Oh, como passa depressa a glória do mundo !
Prouvera a Deus que a sua vida estivesse de acordo com a
sua ciência ! Teriam então estudado e lido bem.
Quantos se perdem pela vã ciência do mundo e pelo
pouco serviço de Deus !
Porque se julgaram maiores do que os humildes, perde­
ram-se em seus pensamentos.
Na verdade, é grande aquele que tem maior amor.
Grande, o que se j ulga pequeno e considera como nada a
maior honra.
É, na verdade, sensato aquele que, para ganhar a Cristo,
tem como lama todas as coisas da Terra.
E é, na verdade, sábio o que faz a vontade de Deus e
renuncia à sua.

[ 17
IV

Da previdência nas ações

1.
Não se deve crer em toda a palavra ou instinto, mas exa­
minar longa e cuidadosamente as coisas, segundo Deus.
Mas, ai, muitas vezes acreditamos e dizemos mais facil­
mente mal dos outros do que bem, pois somos fracos.
Mas os homens perfeitos não creem facilmente em tudo o
que ouvem, pois sabem que a fraqueza humana é inclinada
ao mal e leviana em suas palavras.

2.
Grande sabedoria é a de não ser precipitado nas obras,
nem obstinado nas próprias opiniões; e também não acredi­
tar em todas as palavras dos homens, nem dizer logo aos
outros o que se ouviu ou j ulgou.
Aconselha-te com o homem sábio e sensato e prefere
aprender de alguém melhor que tu a seguires os teus pensa­
mentos.
A vida santa faz sábio o homem segundo Deus e experi­
mentado em muitas coisas.
Quanto mais humilde e submisso a Deus, tanto mais
sábio e cheio de paz.

18 ]
V

Da leitura das Sagradas Escrituras

1.
As Sagradas Escrituras se deve ir buscar a verdade, e não
a eloquência.
Toda a Escritura deve ser lida com o espírito com que foi
feita .
Devemos procurar mais a utilidade nas Escrituras do que
a subtileza das frases.
Assim, tanto devemos ler os livros simples e piedosos,
como os elevados e profundos.
Não tomes em conta a autoridade do que escreve, se para
tal tem pouca ou muita ciência; que só o amor da verdade
pura te leve a ler.
Não procures quem disse as coisas; atende mais ao que é dito.
Os homens passam, mas a verdade de Deus permanece
eternamente (Sl 1 1 7[ 1 1 6] , 2 ) .

2.
De muitos modos nos fala Deus, sem atender a pessoas.
Muitas vezes a nossa curiosidade nos perturba ao lermos
as Escrituras, por querermos perceber e discutir o que com
simplicidade deveria ser transposto.
Se queres tirar proveito, lê humilde, simples e fielmente;
não queiras para ti nome de sábio.
Interroga de boa vontade e, em silêncio, ouve as palavras
dos santos; que as parábolas dos antigos te não desagradem,
pois que não são ditas sem razão.

[ 19
VI

Das afeições desordenadas

1.
Assim que o homem desej a desordenadamente qualquer
coisa, logo se torna inquieto.
O soberbo e o avaro nunca descansam, mas o pobre e o
humilde de espírito vivem com abundância de paz.
O homem que nunca morreu para si perfeitamente, facil­
mente é tentado e sucumbe em coisas pequenas e desprezí­
veis.
O fraco de espírito, carnal e ainda inclinado para os sen­
tidos, dificilmente pode abstrair de todo dos desej os terre­
nos; e por isso se sente muitas vezes triste quando se lhes
subtrai, e facilmente irritado se alguém o contradiz.
Mas se, porém, consegue o seu desej o, logo lhe vem o
remorso, por ter seguido a paixão, de que lhe não vem a paz
que quena.
Por isso, é resistindo às paixões que se encontra a verda­
deira paz do coração, e não servindo-as.
Não há, na verdade, paz no coração do homem carnal,
nem no que é dado às coisas exteriores, mas sim no fervo­
roso e dado ao espírito.

20 ]
VII

De como fugir da esperança vã e do orgulho

1.
Vão é aquele que põe a sua esperança nos homens ou nas
outras criaturas.
Não te envergonhes de servir os outros por amor de Jesus
Cristo e de parecer pobre neste mundo.
Não te apoies em ti, mas põe a tua esperança em Deus.
Faz o que puderes, que Deus ajudará a tua boa vontade.
Não confies na tua ciência ou na astúcia de nenhum ho-
mem, mas sim na graça de Deus, que ajuda os humildes e
abate os orgulhosos.

2.
Não te vanglories nas riquezas, se as tens, nem nos ami­
gos por serem poderosos; mas em Deus que tudo dá e que,
sobretudo, se quer dar.
Não te envaideças da força ou da beleza do corpo, que
uma pequena doença corrompe e destrói.
Não te orgulhes da tua habilidade ou do teu espírito,
para que não desagrades a Deus, de quem é tudo o que pos­
suis de bom.

3.
Não te j ulgues melhor que os outros, para que Deus te
não j ulgue pior, Ele que sabe o que há no homem.
Não te orgulhes das boas obras, pois outros são para

[ 21
Deus os j uízos dos homens, e muitas vezes lhe não agrada o
que aos homens apraz.
Se tiveres algo de bom, acredita-o melhor nos outros,
para que conserves a humildade.
Não te prej udicas se te considerares abaixo de todos;
muito mais te prej udicará colocares-te acima de um só.
O humilde goza de contínua paz; mas no coração d o
soberbo reina a invej a e é frequente a indignação.

22 ]
VIII

De como evitar a muita familiaridade

1.
Não abras o teu coração a qualquer pessoa ( Sir 8 , 1 9 ) ,
mas apenas a o sábio e temente a Deus .
Fala pouco com j ovens e com estranhos.
Guarda-te de agradar aos ricos e não gostes de aparecer
aos poderosos.
Antes procura os humildes e os simples, os piedosos e os
de bons costumes, e fala-lhes das coisas que edificam.
Não tenhas familiaridade com qualquer mulher, mas
recomenda a Deus as virtuosas.
Não queiras ser familiar senão com Deus e os seus anj os;
evita a fama dos homens.

2.
Deve ter-se com todos caridade, não familiaridade.
Às vezes estima-se uma pessoa pelo que dela se sabe, mas
é a sua presença que destrói esse j uízo.
Julgamos agradar aos outros com a nossa assiduidade, e
então, por nossos defeitos, bem mais lhes desagradamos.

[ 23
IX

Da obediência e da submissão

1.
Grande coisa é viver na obediência, sujeito a um superior,
e não depender de si próprio.
É muito mais fácil obedecer do que mandar.
Muitos obedecem mais por necessidade do que por amor,
sofrem por isso, e murmuram; mas não adquirirão liberdade
de espírito enquanto se não submeterem de todo o coração
por amor de Deus.
Por mais que corras, não acharás repouso senão na
humilde submissão a um superior.
Muitos são enganados pela ideia de que se melhora ao
mudar de lugar.

2.
É verdade que todos preferem agir segundo o seu espírito,
e se inclinam mais para os que consigo concordam.
Mas, se Deus está entre nós, é, por vezes, preciso aban­
donar a nossa opinião, pelo bem da paz.
Quem é sábio a ponto de poder conhecer todas as coisas ?
Por isso, não queiras confiar demasiadamente na tua opi­
nião, e antes ouve de boa vontade a dos outros.
Se o teu parecer é bom, mas segues o de outros por amor
de Deus, tanto mais lucrarás .
Sempre ouvi dizer que é mais seguro ouvir e receber con­
selho do que dá-lo.
Pode uma opinião ser boa, mas é, sinal de orgulho e tei­
mosia não querer concordar com os outros quando a oca­
sião e a razão o pedem.

24 ]
X

De como evitar as palavras a mais

1.
Foge quanto puderes do tumulto dos homens, que só te
embaraçam as coisas do mundo, e mesmo se feitas com reta
intenção.
Cedo nos mancha a vaidade, depressa ela nos prende.
Tantas vezes me quisera ter calado, e não ter estado entre
os homens.
Porque falamos e conversamos tão facilmente uns com os
outros, e tão raro regressamos ao silêncio sem uma cons­
ciência ferida ?
Falamos assim porque nos q ueremos consolar com
muitas palavras e animar o nosso espírito que muitos pensa­
mentos já cansaram.
E ainda mais gostamos de falar e de pensar naquilo que
nós queremos ou amamos e no que nos é contrário; mas, ai,
é muita vez em vão, pois isto que exteriormente nos consola
não raro é obstáculo à divina e interior consolação.

2.
Por isso, vigiemos e oremos, para que não passe ocioso o
tempo.
E se falar é lícito e preciso, fala do que edifica.
Os maus costumes e o não cuidarmos da nossa perfeição
tornam difícil calar a nossa boca.
Muito nos ajuda a progredir a piedosa conversa sobre
coisas da alma, e mais entre pessoas que num mesmo espí­
rito se unem em Deus.

[ 25
XI

De como alcançar a paz e · progredir na virtude

1.
Grande paz poderíamos alcançar, se nos não quiséssemos
ocupar das palavras e atos alheios e do que não nos diz
respeito.
Como poderá permanecer em paz aquele que interfere
nos problemas dos outros, que busca o que é exterior e
pouco ou muito raro se recolhe ?
Felizes os simples, porque terão grande paz.

2.
Por que razão qualquer dos santos foi tão perfeito e con­
templativo ?
Porque a todo o momento eles matavam em si os desej os
do mundo, de todo o coração pertenciam a Deus e então li­
vremente se ocupavam de si.
Mas nós ocupamo-nos muito das nossas paixões e da­
quilo que passa .
Raramente vencemos por completo um defeito, e não
conseguimos um progresso diário: assim nos mantemos tão
frios e mornos.

3.
Se estivéssemos completamente mortos para nós próprios
e mais livres por dentro, então saberíamos o gosto do divino
e alguma coisa da contemplação do Céu.

26 ]
O nosso maior e único obstáculo é não estarmos livres de
paixões e desej os e não nos esforçarmos por entrar na per­
feita via dos santos.
Quando nos sucede qualquer adversidade, imediatamente
desanimamos e voltamos às consolações humanas.

4.
Se nos mantivermos quais homens fortes no combate,
depressa veremos sobre nós o auxílio de Deus.
Na verdade, Ele está pronto a aj udar os que combatem e
esperam na sua graça; pois é quem nos favorece as ocasiões
de lutar, para que vençamos.
Se unicamente pomos o progresso da religião em obser­
vâncias exteriores, depressa a nossa devoção acabará .
Cortemos, pois, o mal pela raiz, para que, libertos das
paixões, venha a ser nosso um espírito de paz.

5.
Se em cada ano nos libertássemos de um vício, depressa
seríamos perfeitos.
Mas, pelo contrário, sentimos muitas vezes que éramos
melhores e mais puros quando nos convertemos do que
depois de há tantos anos termos professado.
O fervor e o progresso deveriam crescer todos os dias,
mas hoj e achamos que é j á muito conservar uma parte do
antigo fervor.
Se a princípio fizermos um pouco de violência, tudo fare­
mos depois com facilidade e alegria.

6.
Custa deixar os hábitos, mas custa mais ainda ir contra a
própria vontade.

[ 27
E, se não vences as coisas pequenas e fáceis, como vence­
rás as mais difíceis ?
Resiste desde o princípio à tua inclinação e abandona os
maus hábitos, para que lentamente te não conduzam a maio­
res dificuldades.
Oh, soubesses tu quanta paz para ti e alegria para os
outros a tua vida santa causari a , e j ulgo que teria s mais
ardor no teu progresso espiritual !

28 ]
XII

Das vantagens da adversidade

1.
Bom é para nós ter, de quando em quando, alguns desgos­
tos e contrariedades; porque, muitas vezes, recolhem o ho­
mem em si próprio para que se lembre de que está em exílio
e não ponha a sua esperança em nenhuma coisa do mundo.
Bom é que, de vez em quando, soframos contradições e
que pensem mal e inj ustamente de nós, mesmo quando
agimos bem e tivemos reta intenção.
Muitas vezes isto ajuda-nos na humildade e defende-nos
da glória vã; pois procuramos mais a Deus como testemunha
interior quando somos desprezados pelos homens e mal
vistos por eles.

2.
Assim se deveria o homem firmar em Deus, para que não
precisasse de procurar consolações humanas .
Quando o homem d e b o a vontade está atribulado ou ten­
tado, ou é afligido por maus pensamentos, percebe melhor
como Deus lhe é necessário e que, sem Ele, nada de bom
conseguirá.
Então se entristece e geme e reza, por causa das misérias
que sofre; então aborrece viver mais e desej a a morte, para
que possa, livre das suas cadeias, estar com Cristo ( Fl 1 ,23 ) .
S ó então compreende inteiramente que no mundo não
pode haver segurança perfeita nem plena paz.

[ 29
XIII

De como resistir às tentações

1.
Enquanto neste mundo vivermos, não nos poderemos li­
bertar do sofrimento e da tentação.
Por isso está escrito no livro de Job: tentação é a vida hu­
mana sobre a terra (Jb 7, 1 ) .
Assim, todo o homem deveria estar em guarda contra as
tentações e vigiar na oração, para que o demónio não encon­
trasse maneira de o enganar, ele que nunca dorme, mas anda
em redor buscando a quem devorar ( 1 Pe 5 , 8 ) .
Ninguém é tão perfeito e tão santo que não tenha por
vezes tentações; elas nunca nos deixam.

2.
Contudo, as tentações são muitas vezes úteis, ainda que
importunas e pesadas, porque por elas é humilhado o ho­
mem, por elas se purifica e aperfeiçoa.
Todos os santos passaram por muitas tribulações e tenta­
ções, e por elas progrediram; mas os que não quiseram resis­
tir-lhes foram condenados e desfaleceram.
Não existe ordem tão santa ou lugar tão escondido em
que não haja tentações e adversidades.

3.
Nunca o homem estará totalmente livre das tentações en­
quanto viver, porque em nós próprios está a origem da ten­
tação pela concupiscência em que nascemos.

30 ]
Mal uma tentação ou tribulação recua, logo outra avan­
ça, e sempre teremos algo que sofrer, porque perdemos o
bem da nossa felicidade.
Muitos querem fugir à s tentações e caem mais grave­
mente nelas.
Não podemos vencer unicamente pela fuga; mas pela pa­
ciência e pela verdadeira humildade tornamo-nos mais fortes
que todos os inimigos.

4.
Aquele que evita apenas exteriormente o mal e não arran­
ca a raiz, pouco progride; mais depressa as tentações volta­
rão e pior se sentirá.
Mais conseguirás, vagarosamente, pela paciência e pela
resignação, com a aj uda de Deus, do que com a tua dureza e
a tua insistência.
Aconselha-te mais frequentemente na tentação, e não
trates duramente o que é tentado, mas consola-o como gos­
tarias que te fizessem.

5.
A origem de todas as más tentações é a inconstância do
espírito e a pouca confiança em Deus; porque, tal como o
barco sem governo é impelido aqui e ali pelas ondas, assim o
homem negligente e que a bandona a sua resolução é de
várias maneiras tentado.
O fogo prova o ferro, e a tentação o justo.
Desconhecemos muitas vezes as nossas forças, mas a ten­
tação mostra-nos o que somos.
É necessário, contudo, vigiar, sobretudo no início da ten­
tação, pois o inimigo é mais facilmente vencido quando não
o deixamos transpor a porta da alma, mas, logo que bate,
lhe é impedida a entrada .

[ 31
Na verdade, j á alguém disse: resiste logo ao princípio,
pois o remédio chega tarde, quando o mal já aumentou com
a longa demora ( Ovídio ) .
Assim, primeiro ocorre a o espírito u m simples pensa­
mento, depois, já uma forte imaginação, e, finalmente, o
prazer, o movimento perverso e o consentimento.
Assim avança o inimigo maligno em toda a alma, se não
lhe resistimos de princípio.
E quanto mais indolente se é a resistir-lhe, mais fraco se
torna o homem e mais poderoso contra ele o inimigo.

6.
Uns sofrem mais fortes tentações no início da sua conver­
são, outros no fim.
Uns padecem durante toda a vida; outros são tentados
levemente, segundo a sabedoria e a j ustiça da ordem divina,
que considera a situação e os méritos dos homens e tudo
determina para a salvação dos seus eleitos.

7.
Não devemos, portanto, desesperar ao sermos tentados,
mas orar ainda mais fervorosamente a Deus para que se
digne ajudar-nos em toda a tribulação; pois que, como diz
Paulo, Ele nos dará proveito com a própria tentação, de
molde a podermos suportá-la ( 1 Cor 1 0, 1 3).
Humilhemos, pois, as nossas almas sob a mão de Deus
em toda a tentação e tribulação, pois que Ele salvará e exal­
tará os humildes em espírito.

8.
É nas tentações e tribulações que se pode ver o progresso
do homem; aí é maior o mérito e a virtude.
Pouco valor tem ser-se devoto e fervoroso sem experi-

32 ]
mentar nada de difícil; mas, se em tempo de adversidade se
aguenta com paciência, haverá esperança de um grande
avanço.
Alguns resistem às grandes tentações e são vencidos
todos os dias nas pequenas, a fim de que, humilhados,
nunca confiem em si nas grandes, pois, que nas pequenas
não resistem.

[ 33
XIV

De como evitar os juízos temerários

1.
Põe os olhos em ti e evita j ulgar as ações dos outros.
Julgando os outros, o homem trabalha inutilmente, erra
a maior parte das vezes e peca com facilidade; mas j ulgando­
-se e examinando-se a si próprio, age sempre com proveito.
As coisas são, para nós, o que delas o nosso coração
sente, e assim as j ulgamos muitas vezes, pois alteramos o
verdadeiro juízo com o nosso amor-próprio.
Se Deus fosse sempre a pura intenção do nosso desej o,
não nos perturbaríamos tão facilmente com a resistência ao
nosso sentimento .
Mas é vulgar que qualquer coisa, ou dentro ou fora de
nós, de igual modo nos arraste.

2.
Muitos se procuram inconscientemente a si próprios nas
coisas que fazem, e não o sabem.
Parecem, na verdade, estar em paz quando as coisas de­
correm como q uerem ou sentem; mas se sucedem doutro
modo, depressa são abalados e se fazem tristes.
Pela diversidade de sentimentos e de opiniões nascem
muito frequentemente dissensões entre amigos e cidadãos,
entre religiosos e pessoas devotas .

34 ]
3.
Dificilmente se abandona um velho hábito, e ninguém é
levado de boa vontade para além da sua própria visão.
Se te fiares mais na tua inteligência e habilidade do que
na virtude de sujeição de Jesus Cristo, pouco e tarde serás
um homem esclarecido; pois Deus quer-nos perfeitamen­
te submetidos a si, transcendendo a razão por um amor
ardente.

[ 35
XV

Das obras feitas por caridade

1.
Por nenhuma coisa do mundo ou por amor de nenhum
homem se deve fazer qualquer mal; contudo, em proveito do
necessitado, pode às vezes adiar-se uma boa ação ou mudá­
-la noutra melhor.
Assim, a boa obra não é destruída, mas melhorada.
Sem amor a ação externa de nada aproveita ; todavia
alguém age pela caridade, ainda que sej a humilde e despre­
zado, tudo fará com fruto.
Pois que Deus considera mais o motivo por que se age do
que a própria ação.

2.
Faz muito, quem muito ama; faz muito, quem faz bem
aquilo que faz; faz bem, quem serve a comunidade mais que
a sua vontade.
Muitas vezes é carnalidade o que parece caridade, pois
raramente estão a usentes a inclinação natural, a vontade
própria, a esperança da retribuição e o amor do bem-estar.

3.
Aquele que tem a verdadeira e a perfeita caridade em ne­
nhuma coisa se procura, mas apenas desej a em tudo a glória
de Deus.
Não invej a ninguém, porque não ama nenhum prazer

36 ]
próprio; e não se quer alegrar em si mesmo, mas, sim, ale­
grar-se em Deus, acima de todos os bens.
Não atribui nenhum bem a nenhuma pessoa, mas total­
mente tudo refere a Deus, donde procedem todas as coisas e
em quem descansam com proveito todos os santos.
Oh, quem tivera uma centelha da verdadeira caridade, e
todas as coisas terrenas lhe pareceriam vãs !

[ 37
XVI

Da aceitação dos defeitos alheios

1.
O homem deve aguentar pacientemente as coisas que não
consegue emendar em si e nos outros até que Deus diversa­
mente o ordene.
Pensa que assim é talvez melhor, para experimentar a tua
paciência, sem a qual os teus méritos não serão de grande
peso.
Contudo, deves orar por tais contrariedades, para que
Deus se digne aj udar-te e possas sofrê-las com paciência.

2.
Se alguém, uma ou duas vezes admoestado, não se sub­
meter, não discutas com ele, mas entrega tudo a Deus, para
que se faça a sua vontade e honra em todos os seus servos,
pois Ele sabe bem converter as coisas más em boas.
Procura ser paciente em tolerar os defeitos e quaisquer
fraquezas dos outros, pois também tu tens muitas coisas que
os outros têm de suportar.
Se não te podes fazer como te queres, como poderás
transformar um outro à tua vontade ?
Facilmente fazemos os outros perfeitos e, contudo, não
nos emendamos a nós próprios.

3.
Queremos que os outros sej am corrigidos rigorosamente,
mas nós não queremos corrigir-nos.

38 ]
Desagrada-nos a sua demasiada liberdade, mas não que­
remos recusar-nos o que desej amos.
Queremos restringir os outros por meio de regras, mas
não permitimos de forma alguma que nos privem de qual­
quer c01sa.
Assim se vê como é raro que j ulguemos os outros à nossa
medida .
Se todos fossem perfeitos, que teríamos de sofrer com os
outros, por Deus ?

4.
Mas Deus assim ordenou, para que aprendamos a levar
os fardos uns dos outros ( Gl 6,2 ) , porque não há ninguém
sem defeito, ninguém que não tenha fardo, ninguém que se
baste a si próprio, ninguém suficientemente sábio; mas cum­
pre levarmo-nos uns aos outros, uns aos outros nos conso­
larmos, e, igualmente, aj udarmo-nos, instruirmo-nos e acon­
selharmo-nos.
Quanto maior virtude alguém tiver, tanto mais o mos­
trará na adversidade.
As ocasiões não fazem o homem fraco, mas mostram o
que ele é.

[ 39
XVII

Da vida monástica

1.
É necessário que aprendas a quebrar-te em muitas coisas,
se quiseres manter com os outros a paz e a concórdia.
Não é pouco habitar num mosteiro ou congregação, aí
viver sem queixas e perseverar fielmente até à morte.
Bem-aventurado o que aí viver santamente e felizmente
morrer.
Se queres permanecer firme e progredir, tem-te como
degredado e peregrino na terra.
É necessário que te faças louco por Cristo, se queres levar
vida de religioso.

2.
O hábito e a tonsura trazem pouca coisa; mas a modifi­
cação dos costumes e a inteira mortificação das paixões
fazem o verdadeiro homem de religião.
Aquele que procura outra coisa além de Deus e da salva­
ção da sua alma, só encontrará tribulação e dor.
Na verdade, não pode permanecer em paz por muito
tempo aquele que se não esforça por ser o mais pequeno e
submisso a todos.
Vieste para servir, não para governar.
Conhece-te como chamado ao sofrimento e ao trabalho,
e não ao descanso ou à tagarelice.
Aqui se experimenta o homem, tal como o ouro na fornalha.
Ninguém cá pode ficar, se não quiser de todo o coração
humilhar-se por Deus.

40 ]
XVIII

Do exemplo dos santos Padres

1.
Contempla os exemplos vivos dos santos Padres, nos
quais resplandece a verdadeira perfeição e religião, e verás
como é pequeno ou quase nulo o que fazemos .
Infelizmente, o q u e é a nossa vida comparada à deles ?
Os santos e amigos de Cristo serviram o Senhor na fome
e na sede, no frio e na nudez, no trabalho e no cansaço, nas
vigílias e j ej uns, nas orações e santas meditações, nas perse­
guições e nos muitos opróbrios.

2.
Oh, quantas e quão pesadas tribulações sofreram os
Apóstolos, os mártires, os confessores, as virgens e todos os
outros que quiseram seguir os passos se Cristo !
Na verdade, odiaram as suas almas neste mundo para
que as possuíssem na vida eterna (Jo 1 2,25 ) .
Oh, que vida tão dura e despegada levaram o s santos
Padres no deserto ! Que longas e pesadas tentações sofreram,
quantas vezes os atormentou o inimigo ! Quão frequentes e
fervorosas orações ergueram a Deus, que duras abstinências
suportaram !
Que grande zelo e fervor mostraram n o progresso espiri­
tual. Que forte guerra não travaram para dominar os vícios !
Que pura e reta intenção conservaram para Deus !

[ 41
3.
Trabalhavam de dia e, durante as noites, faziam prolon­
gadas orações; e, mesmo trabalhando, raramente abandona­
vam a oração mental.
Gastavam utilmente todo o seu tempo; todas as horas
para se ocuparem de Deus lhe pareciam breves, e tão grande
era a doçura da contemplação, que se esqueciam do que o
corpo precisava .
Renunciavam a todas as riquezas, dignidades, honras ,
amigos e parentes; nada desej avam possuir d o mundo; mal
tomavam o que era necessário à vida; custava-lhes atender
ao corpo, mesmo na necessidade.
Assim, eram pobres para as coisas da terra , mas bem
ricos em graça e virtudes.
Por fora tudo lhes faltava, mas por dentro eram recon­
fortados com a graça e a consolação divina.
Eram estranhos ao mundo, mas próximos e amigos ínti­
mos de Deus.
Tinham-se para si como nada e eram desprezados neste
mundo; mas, aos olhos de Deus, eram preciosos e queridos.
Mantinham-se na verdadeira humildade, viviam na sim­
ples obediência.
Caminhavam na caridade e na paciência, e por isso pro­
grediam em espírito, todos os dias e obtinham grande graça
j unto de Deus .
Foram dados como exemplo a todos os religiosos e
devem-nos arrastar mais no caminho do bem do que todos
os medíocres no da mediocridade.

4.
Oh, que grande foi o fervor de todos os religiosos n o
princípio da s u a santa instituição !
Que piedade na oração, que zelo na virtude ! Que forte

42 ]
disciplina se observou, que respeito e obediência pela regra
do fundador floresceu em todos !
São ainda testemunhos os vestígios que deixaram de
terem sido, na verdade, homens santos e perfeitos, esses sol­
dados corajosos que calcaram a seus pés o mundo.
Hoj e j á é tido como grande o que não transgride a regra
e aceita com paciência o que escolheu.

5.
Oh, mediocridade e negligência do nosso estado ! Tão
depressa caímos do primitivo fervor, que já nos aborrece
viver, tal é o nosso cansaço e mediocridade.
Queira Deus que não adormeça em ti inteiramente o pro­
gresso das virtudes, depois de teres visto tantos exemplos de
homens piedosos.

[ 43
XIX

Dos exercícios de um bom religioso

1.
A vida do bom religioso deve ser cheia de todas as virtu­
des, de modo a que seja por dentro aquilo que por fora pa­
rece ser.
E deve ter muito mais valor interiormente do que exte­
riormente, pois Deus é aquele que nos olha, a quem devemos
venerar onde quer que estej amos, caminhando na sua pre­
sença como os an1 os.
Todos os dias devemos renovar o nosso propósito e exci­
tar-nos ao fervor, como se hoj e mesmo tivéssemos chegado
pela primeira vez à conversão, e dizer: aj uda-me, Senhor
Deus, no bom propósito e em teu santo serviço, e faz que eu
comece hoj e em perfeição, pois nada é o que fiz até agora.

2.
Tal o nosso propósito, assim o nosso progresso: e é neces­
sária muita diligência àquele que quer avançar.
Pois que se o que tem propósitos firmes desfalece muita
vez, o que será do que raro e pouco se propõe a alguma coisa ?
Contudo, de várias maneiras se abandona a nossa resolu­
ção e raramente uma leve omissão dos nossos exercícios se
passa sem algo de mais grave.
O propósito dos j ustos depende mais da graça de Deus do
que da sua sabedoria, pois que nele sempre confiam no que
quer que façam.

44 ]
Na verdade, o homem põe e Deus dispõe, e não está na
mão do homem o seu caminh o (Pr 1 6,9 e Jr 1 0,23 ) .

3.
Se, por razões de piedade ou pelo bem dos outros, omiti­
mos, de vez em quando, um costumado exercício, será fácil
recuperar depois.
Mas, se é por aborrecimento do espírito ou negligência
que o abandonamos facilmente, então somos culpados dum
pecado que nos será funesto.
Esforcemo-nos o mais que pudermos e, mesmo assim,
cairemos facilmente em muitas coisas.
Todavia, sempre devemos ter como propósito algo de
certo, sobretudo contra aquilo que mais nos prende.
Devemos observar e ordenar tanto o nosso exterior como
o interior, pois que ambos contam para o nosso progresso.

4.
Se não te podes recolher continuamente, fá-lo de tempos
a tempos e, pelo menos, uma vez por dia, de manhã ou à
noite.
Pela manhã, faz o teu propósito; à noite, examina os teus
hábitos e vê como foste durante o dia em pensamentos, pala­
vras e obras, pois com certeza neles ofendeste muitas vezes a
Deus e ao teu próximo.
Arma-te, como um homem forte, contra as malícias do
demónio; domina a gula e dominarás mais facilmente todo
o desej o da carne.
Nunca estej a s completamente desocupado, mas lê, ou
escreve, ou reza, ou medita, ou faz qualquer coisa de útil
para a comunidade.
Contudo, os exercícios corporais devem ser feitos com
cuidado e não igualmente por todos.

[ 45
5.
Aqueles exercícios que não são feitos em comum não se
devem mostrar cá fora, pois é mais seguro fazer secreta­
mente os de prática privada.
Teme, contudo, seres mais pronto nos exercícios privados
do que nos comuns; mas, cumpridos íntegra e fielmente os
preceitos, se te resta tempo, reserva-te para ti, como a tua
devoção o quiser.
Não podem todos ter um mesmo exercício, mas para uns
é mais adequado isto, para outros aquilo.
Na verdade, os exercícios agradam segundo os tempos:
uns nos dias de festa, outros nos comuns.
Necessitamos de uns na altura da tentação, de outros em
tempo de paz e de repouso.
Gostamos de pensar numas coisas quando estamos tristes
e noutras quando estamos alegres no Senhor.

6.
Perto das grandes festas, devemos renovar os bons exer­
cícios e implorar fervorosamente os sufrágios dos santos.
Devemos viver de festa em festa como se houvéssemos de
sair deste mundo e entrar na Festa eterna.
Para isso devemo-nos preparar nestes tempos santos e
mais santamente nos comportarmos, guardando com maior
severidade toda a regra, como se fôssemos receber em breve
de Deus o prémio do nosso trabalho.

7.
E se ele demorar, não nos j ulguemos bem preparados,
mas sim indignos de tanta glória que nos será revelada no
tempo oportuno; e procuremos preparar-nos melhor para
essa passagem.
Feliz o servo, diz o evangelista Lucas, que o Senhor, quan­
do vier, encontrar vigilante. Em verdade vos digo que o esta­
belecerá sobre todo s os seu s bens ( Lc 1 2,43-44 ) .

46 ]
XX

Do amor da solidão e do silêncio

1.
Busca um tempo próprio para te ocupares de ti, e medita
frequentemente nas dádivas de Deus.
Deixa as coisas curiosas e ocupa-te daqueles assuntos que
aproveitam mais à compunção que à ocupação.
Se te afastares das palavras supérfluas e das voltas inúteis,
tal como das novidades e rumores, acharás tempo suficiente
e próprio para boas meditações.
Os maiores santos evitavam, sempre que podiam, as com­
panhias humanas, e preferiam servir a Deus em segredo.

2.
Disse alguém: quanto mais vivi entre os homens, menos
homem me tornei ( Séneca ).
É isto o que experimentamos muitas vezes, quando con­
versamos por muito tempo.
É mais fácil calarmo-nos inteiramente do que não falar­
mos demais.
Mais fácil é ficar em casa, do que conseguir guardar-se
fora dela.
Portanto, aquele que pretende chegar às coisas interiores
e espirituais, terá de abandonar, com Jesus, a multidão.
Só aparece com segurança aquele que livremente se
esconde.
Só com segurança fala o que voluntariamente se cala.

[ 47
Só está seguramente à frente aquele que de livre vontade
se submete.
Ninguém manda com segurança senão o que aprendeu a
bem obedecer.
Ninguém se alegra seguramente sem ter em si o testemu­
nho duma boa consciência .

3.
Contudo, a segurança dos santos sempre foi cheia do
temor de Deus, e quanto mais brilharam em grandes virtu­
des e em graça, tanto mais solícitos e interiormente humildes
foram.
Mas a segurança dos maus nasce da soberba e da presun­
ção e, no fim, transforma-se na deceção de si próprios.
Nunca contes com segurança nesta vida, ainda que pare­
ças um bom religioso ou um devoto eremita.

4.
Muitas vezes os melhores na opinião dos homens são os
que mais gravemente caem, pela demasiada confiança em si
próprios.
Por isso, é mais útil a muitos que não careçam totalmente
de tentações, mas que muitas vezes por elas sej am atacados,
para que, demasiadamente seguros de si próprios, não se
envaideçam, nem caiam de bom grado em consolações exte­
riores.
Oh, quem se podasse de todo o vão cuidado e somente
pensasse em coisas salutares e divinas, colocando a sua espe­
rança toda em Deus, que grande paz e que repouso não teria !

5.
Ninguém é digno da consolação celeste, senão aquele que
diligentemente se exercita na santa compunção.

48 ]
Se queres manter a compunção da alma, entra na tua cela
e foge ao tumulto do mundo; tal como está escrito: arrepen­
dei-vos nos vossos leitos ( Sl 4,5 ) .
Encontrarás n a tua cela o que a maior parte das vezes
perdes lá fora.
O retiro contínuo torna-se grato, mas, mal guardado,
gera o aborrecimento.
Se desde o princípio da tua conversão bem habitares e
guardares a tua cela, ela será depois para ti uma amiga que­
rida e uma grata consolação.

6.
No silêncio e no repouso progride a alma devota e apren­
de os segredos das Escrituras; aí encontra rios de lágrimas
com que todas as noites se lava e purifica; para que se torne
tanto mais unida ao seu Criador, quanto mais longe vive de
todo o tumulto do mundo.
Aquele que se a fasta de amigos e conhecidos, Deus se
aproximará dele com os seus anj os santos.
É melhor esconder-se e cuidar de si do que, abandonan­
do-se a si próprio, fazer milagres.
É louvável para o homem religioso sair raramente e fugir
de ser visto e de ver os homens.

7.
Por que é que queres ver aquilo que não podes possuir ?
Passa o mundo e o seu desejo ( 1Jo 2, 1 7 ) .
Os desej os dos sentidos arrastam para u m e outro lado;
mas, quando o momento passa, o que conservas, senão o
peso da consciência e a dispersão do coração ?
A partida alegre prepara muitas vezes u m triste regresso,
e a vigília alegre faz uma triste manhã.

[ 49
Assim todo o prazer carnal se introduz brandamente,
mas, no fim, morde e mata.
Que podes ver em qualquer outro sítio que aqui não
vej as ?
Eis o Céu e a Terra e todos os elementos : na verdade,
todas as coisas são feitas deles.

8.
Que podes ver em alguma parte que se possa manter por
longo tempo ?
Julgas, talvez, saciar-te, mas nunca o conseguirás.
Se visses todas as coisas ao mesmo tempo, que seria isso,
mais do que uma vã visão ?
Ergue os teus olhos para Deus, lá no alto, e reza por
causa dos teus pecados e negligências .
Deixa aos homens vãos as coisas vãs: tu, porém, ouve as
que Deus te ordena.
Fecha atrás de ti a tua porta e chama para ti Jesus, o teu
amado.
Permanece com Ele na cela, pois que em nenhum lado
encontrarás tanta paz.
Se nunca saísses nem ouvisses quaisquer rumores, melhor
permanecenas em paz.
Mas, porque de vez em quando te dá prazer ouvir coisas
novas, terás de suportar a perturbação do teu espírito.

50 ]
XXI

Da compunção do coração

1.
Se queres progredir em alguma coisa , mantém-te no
temor de Deus e não queiras ser demasiado livre, mas refreia
sob a disciplina todos os teus sentidos, e não te abandones à
louca alegria.
Dá-te à compunção, e acharás fervor.
A compunção abre caminho a muitos bens que a dissolu­
ção costuma perder rapidamente.
É de admirar que o homem se possa alegrar completa­
mente nesta vida, quando considere e pense no seu exílio e
nos tão grandes perigos da sua alma.

2.
Por causa da leviandade do nosso coração e da negligên­
cia nos nossos defeitos, não sentimos as dores da nossa alma
e, muitas vezes, rimos loucamente quando deveríamos
chorar.
Não há verdadeira liberdade nem santa alegria senão no
temor de Deus e na boa consciência.
Feliz o que pode desprezar tudo o que o distrai e recolher­
-se à unidade da santa compunção.
Feliz o que a bdica de si mesmo e de tudo o que possa
manchar ou pesar à sua consciência.
Combate virilmente: o hábito vence-se pelo hábito.

[ 51
Se sabes abandonar os homens, também eles te deixarão
fazer o que quiseres.

3.
Não chames a ti as coisas dos outros, nem te mistures nos
problemas dos grandes.
Tem sempre os olhos abertos primeiro sobre ti próprio e
censura-te antes de censurares todos os teus amigos.
Se não tens o favor dos homens, não te entristeças com
isso; entristece-te, sim, se não viveres bem e vigilantemente,
como convém a um servo de Deus e a um devoto religioso .
É muitas vezes mais útil e seguro que o homem n ã o tenha
muitas consolações nesta vida, principalmente segundo a
carne.
Porém, quando não temos ou raramente sentimos as con­
solações divinas, somos culpados, pois não procuramos a
compunção do coração nem afastamos totalmente as coisas
vãs e exteriores.

4.
Considera-te indigno da consolação divina e apenas
digno de muita tribulação.
Quando o homem está perfeitamente compungido, então
todo o mundo lhe parece pesado e amargo.
O homem santo encontra suficiente motivo de sofrer e de
chorar.
Quer se considere a si próprio, quer pense no próximo,
sabe que ninguém aqui vive sem tribulação.
E quanto mais atentamente se observa, mais se dói.
Os nossos pecados e vícios são motivos de j usta dor e de
compunção íntima, pois por eles somos envolvidos e rara­
mente conseguimos contemplar as coisas do Céu.

5 2]
5.
Se pensasses mais frequentemente na tua morte do que no
comprimento da vida, não haveria dúvidas de que te emen­
darias com mais fervor.
Se meditasses seriamente nas futuras penas do Inferno ou
do Purgatório, creio que aguentarias de bom ânimo o traba­
lho e o sofrimento e não temerias qualquer dureza.
Mas porque tais coisas não nos entram no coração e
amamos ainda o que nos lisonj eia, permanecemos frios e
pregmçosos.

6.
Muitas vezes há pobreza de espírito onde tão facilmente
se queixa o nosso corpo.
Por isso reza humildemente ao Senhor para que te dê
compunção de espírito, e diz com o profeta: alimenta-me,
Senhor, com o pão das lágrimas e dá-me de beber com lágri­
mas abundantes ( SI 8 0 [79],6 ) .

[ 53
XXII

Da consideração da miséria humana

1.
Serás infeliz onde quer que estej as e para onde quer que
te voltes, se não te virares para Deus.
Porque te perturbas por não te acontecer o que queres e
desej as ?
Qual é o que tudo tem conforme a sua vontade ?
Nem eu, nem tu, nem qualquer dos homens sobre a terra.
Ninguém vive no mundo sem qualquer tribulação ou
angústia, mesmo que sej a rei ou papa.
Quem terá, então, melhor sorte ?
Só o que quer sofrer alguma coisa por Deus.

2.
Dizem muitos, idiotas e fracos: « Vede que boa vida tem
aquele homem: que rico, que poderoso, que elevado ! »
Mas olha para os bens do Céu e verás que todas estas
coisas temporais nada são; incertas e pesadas, nunca se pos­
suem sem cuidado ou sem temor.
A felicidade do homem não está em possuir bens deste
mundo em abundância: a mediania basta-lhe.
Grande miséria é viver sobre a Terra.
Quanto mais dado ao espírito quiser ser o homem, tanto
mais esta vida presente se lhe tornará amarga, pois que
sente melhor e vê mais claramente a fraqueza da corrupção
humana.

54 ]
Na verdade, comer, beber, velar, dormir, repousar, traba­
lhar e atender às outras necessidades da natureza é grande
desgraça e aflição para o homem piedoso, que queria des­
prender-se e ser livre de todo o pecado.

3.
Porque, na verdade, o homem interior é arrastado pelas
necessidades corporais neste mundo.
Por isso pede o profeta devotamente, até que sej a liber­
tado delas, dizendo: Senhor, liberta-me das minhas necessi­
dades ( SI 25 [24] , 1 7) .
Mas, ai dos que não conhecem a sua miséria e , sobre­
tudo, dos que amam esta miséria e esta vida corruptível !
Pois alguns se a braçam de tal modo a ela, ainda que
apenas tenham o necessário trabalhando ou pedindo, que se
aqui pudessem viver sempre, nunca se ocupariam do Reino
de Deus.

4.
Oh, loucos e infiéis de coração, que tão profundamente
j azem nas coisas terrenas que só o que é da carne saboreiam !
Mas, infelizes, perceberão mais duramente no fim como
era vão e vil aquilo que amavam.
Os santos de Deus, porém, e todos os verdadeiros amigos
de Cristo, não se ocuparam com o que agradava à carne,
nem com o que florescia neste mundo, mas toda a sua espe­
rança e pensamento ansiava pelos bens eternos.
Todo o seu desej o era levado para o alto, para o que per­
manece e se não vê, a fim de que, pelo amor das coisas visí­
veis, não fossem arrastados para as que não impo �tam.
Não queiras, irmão, perder a confiança em progredir nas
coisas do espírito, pois que ainda estás a tempo e horas.

[ 55
5.
Porque adias a tua resolução ?
Ergue-te e começa j á, e diz: agora é tempo de agir, agora
é tempo de lutar, agora é o tempo oportuno de emendar.
Quando sofres e estás em tribulação, então é tempo de
merecer.
Cumpre-te passar pelo fogo e pela água até que chegues
ao lugar da frescura { Sl 66 [65], 1 2 ) .
S e não te fizeres violência, não vencerás o vício.
Enquanto tivermos este frágil corpo, não poderemos
estar sem pecado, nem viver sem aborrecimento e sem dor.
De boa vontade gozaríamos de um repouso isento de
toda a miséria, mas, porque pelo pecado perdemos a inocên­
cia, perdemos também a verdadeira felicidade.
Assim, é necessário termos paciência e esperarmos na
misericórdia de Deus; até que passe esta iniquidade e a
morte seja absorvida pela vida {Sl 6 7[66],2; 2Cor 5,4 ) .

6.
Oh, como é grande a fragilidade humana, sempre incli­
nada ao mal !
Hoj e confessas os teus pecados e, amanhã, os farás de
novo.
Agora decides ter cuidado e, passada uma hora, fazes
como se nada tivesses decidido.
Com razão nos podemos humilhar e nunca nos sentir­
mos grandes em qualquer coisa, pois que somos tão frágeis e
instáveis.
Depressa se pode perder pela negligência o que talvez
com muito trabalho pela graça se alcançou.

56 ]
7.
Que será de nós no fim, se j á tão no princípio arrefece­
mos ?
Ai de nós, se assim queremos repousar, como se j á hou­
vesse paz e segurança, embora não apareça ainda em nossa
vida vestígio de verdadeira santidade.
Bom seria que de novo fôssemos instruídos, tal como
bons noviços, nos hábitos do bem, a ver se haveria em nós
esperança de futura emenda e de maior progresso.

[ 57
XXIII

Da meditação da morte

1.
Bem depressa acabarás: por isso, vê como vives.
Hoj e ainda existe o homem e amanha j á se foi.
E logo que desapareça dos nossos olhos, depressa desa­
parecerá dos espíritos.
Oh, estupidez e dureza do coração humano, que só con­
sidera o presente em vez de antever o futuro !
Assim, deverias comportar-te em todas as ações e pensa­
mentos como se houvesses de morrer hoj e.
Se tiveres a consciência limpa, não temerás muito a
morte.
Antes temer pecados do que fugir à morte.
Se não estás hoj e preparado, como o estarás amanhã ?
Amanhã é dia incerto; e, até, como sabes que terás um
amanhã ?

2.
De que nos serve viver muito tempo, quando tão pouco
nos emendamos ?
Ah, nem sempre uma vida longa emenda, mas, muitas
vezes, aumenta mais a culpa!
Oxalá tivéssemos vivido bem neste mundo durante um só
dia !
Muitos contam os anos da sua conversão, mas, muitas
vezes, é pequeno o fruto da sua emenda.

58 ]
E se é terrível morrer, talvez que sej a ainda mais perigoso
viver mais tempo.
Feliz o que tem sempre ante os seus olhos a hora da sua
morte, e que todos os dias está disposto para morrer.
Se algum dia viste morrer um homem, pensa que também
tu seguirás esse caminho.

3.
Quando amanhecer, imagina que não hás de chegar à
tarde.
E ao anoitecer, não ouses afirmar que verás a madrugada.
Portanto, está sempre preparado, e vive de tal modo que
nunca a morte te encontre desprevenido.
Muitos morrem súbita e inesperadamente: na verdade, na
hora em que não julgais, virá o Filho do Homem ( Lc 1 2,40 ) .
Quando chegar essa última hora, começarás a ver dife­
rente a tua vida passada, e muito te arrependerás de teres
sido tão fraco e negligente.

4.
Como é feliz e prudente aquele que procura viver agora
tal como desej a ser encontrado na morte !
Dar-lhe-á, na verdade, grande confiança de morrer em
paz o completo desprezo do mundo, o desej o ardente de
progredir nas virtudes, o amor da disciplina, o esforço da
penitência, a prontidão da obediência, a negação de si pró­
prio e o suportar de qualquer adversidade por amor de
Cristo.
Podes fazer muitas coisas boas enquanto tens saúde, mas,
doente, não sei do que serás capaz.
Poucos progridem pela doença, tal como poucos se santi­
ficam pelas peregrinações.

[ 59
5.
Não queiras confiar nos teus amigos e parentes nem adies
a tua salvação para o futuro, pois mais depressa do que
j ulgas esquecerão os homens.
Mais vale prevenir a tempo e fazer-se preceder de alguma
coisa de bem, do que esperar pelo auxílio dos outros.
Se não te ocupas de ti próprio, quem se ocupará de ti no
futuro ?
Agora é tempo precioso; agora os dias de salvação, o
tempo favorável (2Cor 6,2 ) .
Mas, ai, não aproveitas utilmente aquilo por que pode­
rias viver na eternidade !
Tempo virá em que hás de desej ar um só dia ou uma só
hora para te emendares, e não sei se a conseguirás .

6.
O h , amigo, d e quanto perigo t e poderias livrar, d e quanto
temor fugir, se sempre temesses a morte e dela desconfiasses !
Procura, pois, viver agora de tal modo que, à hora da
morte, mais possas alegrar-te que temer.
Aprende agora a morrer no mundo, para que comeces a
viver com Cristo.
Aprende a desprezar todas a s coisas agora, para que
possas depois caminhar livremente para Cristo.
Castiga agora o teu corpo pela penitência , para que
possas mais tarde ter segura confiança .

7.
Ah, louco, porque pensas viver, muito tempo, se nenhum
dia tens de certo ?
Quantos têm sido enganados e inesperadamente arranca­
dos do corpo!
Quantas vezes ouviste dizer que este morreu pela espada,

60 ]
que outro se afogou, que aquele, ao cair, partiu a cabeça,
que este morreu a comer, outro ainda a j ogar, um pelo fogo,
outro pelo ferro, um pela peste, outro assassinado: e assim a
morte é o fim de todos, e a vida do homem, como a sombra,
passa de repente.

8.
Quem se lembrará de ti depois da morte, e quem rezará
por ti ?
Trabalha agora, irmão, trabalha enquanto podes, porque
não sabes quando morrerás nem o que para ti se seguirá à
morte.
Enquanto tens tempo, j unta os tesouros imortais.
Não penses em mais nada, além da tua salvação : trata
apenas das coisas de Deus .
Arranja agora amigos, venerando os santos de Deus e
imitando as suas ações, para que, quando desfaleceres nesta
vida, eles te recebam nos tabernáculos eternos ( Lc 1 6,9 ) .

9.
Considera-te peregrino e hóspede neste mundo, a quem
nada interessa das coisas terrenas.
Conserva um coração livre e erguido ao alto, para Deus,
pois que não é aqui a cidade do repouso.
Para lá dirige em cada dia as preces, os clamores e as lá­
grimas, para que, após a morte, o teu espírito mereça passar
a Deus com alegria.
Ámen.

[ 61
XXIV

Do juízo e das penas ·dos pecadores

1.
Em todas as coisas olha para o fim e lembra-te de como
estarás diante do severo Juiz para quem nada é oculto, a
quem os presentes não aplacam, que não atende a desculpas,
mas que j ulgará o que é j usto.
Miserável e louco pecador, que responderás a Deus, que
conhece todos os teus pecados, tu que tantas vezes temes o
rosto do homem irado ?
Porque não te imaginas no dia do Juízo, quando ninguém
poderá ser desculpado ou defendido, mas cada um será para
si próprio suficiente peso ?
Agora é o teu trabalho proveitoso, aceitável o teu choro,
ouvido o teu gemido, a tua dor satisfatória e purificadora.

2.
Tem grande e salutar purgatório o homem paciente que,
recebendo ofensas, se condói mais com a maldade dos outros
do que com a sua ofensa; que reza de boa vontade pelos
quais o contrariam e perdoa de todo o coração as culpas
alheias; aquele que não demora em pedir é mais fácil compa­
decer-se do que irar-se, que muitas vezes se violenta a si pró­
prio e em tudo se esforça por submeter a carne ao espírito.
É melhor pagar agora os pecados e refrear os vícios, do
que guardar-se para os expiar depois.
Na verdade, enganamo-nos a nós próprios pelo desorde­
nado amor que temos à carne.

62 ]
3.
Que outra coisa aquele fogo devorará, senão os teus
pecados ?
Quanto mais agora te poupas e segues a carne, mais
pagarás depois e mais lenha j untarás para queimar.
Naquilo em que o homem pecou, nisso será duramente
punido.
Aí os indolentes serão impelidos por aguilhões de fogo e
os que pecaram por gula atormentados pela fome e pela
sede.
Lá os luxuriosos e os que amavam o prazer serão banha­
dos em pez ardente e fétido enxofre; e, como cães raivosos,
os invej osos uivarão de dor.

4.
Nenhum vício haverá que não tenha o seu tormento pró­
prio.
Aí os orgulhosos serão cheios de toda confusão e os ava­
rentos reduzidos à maior pobreza.
Aí será mais dura uma hora de pena do que aqui cem
anos de duríssima penitência .
Lá não há qualquer repouso, qualquer consolação aos
condenados; cá, porém, cessam por vezes os tra balhos e
goza-se das consolações dos amigos.
Está, pois, atento e arrependido das tuas faltas, para que,
no dia do Juízo, estej as seguro com os bem-aventurados.

5.
Então, na verdade, os justos p ermanecerão em grande
segurança diante daqueles que os angustiaram e deprimiram
(Sb 5 , 1 ) .
Então s e erguerá, para j ulgar, aquele que hoj e s e submete
humildemente aos j uízos dos homens.

[ 63
Então grande confiança terá o pobre e o humilde, e o
orgulhoso se apavorará por toda a parte.
Então se verá ter sido sábio neste mundo aquele que, por
Cristo, aprendeu a ser louco e desprezado.
Então agradará toda a tribulação sofrida com paciência,
e toda a iniquidade fechará a sua boca ( SI 1 07[ 1 06] ,42 ) .
Então s e alegrará todo o j usto, e todo o ímpio se an­
gustiará.
Então mais exultará a carne sofredora do que se sempre
houvera sido alimentada em delícias.
Então resplandecerá o pano pobre, e as vestes finas per­
derão seu brilho.
Então será mais gabada a casa humilde do que o palácio
de oiro.
Então aj udará mais uma paciência constante do que todo
o poder do mundo.
Então será mais exaltada a simples obediência do que
toda a astúcia do século.
Então mais se alegrará a pura e reta consciência do que a
sábia filosofia.
Então mais pesará o desprezo das riquezas que todo o
tesouro dos filhos da Terra .
Então serás mais consolado pela piedosa oração do que
por uma refeição esmerada.
Então mais te alegrarás com o silêncio guardado do que
com o longo discurso.
Então mais valerão as ações santas do que muitas pala­
vras belas.
Então mais agradará a vida severa e a dura penitência do
que todo o humano deleite.

64 ]
6.
Aprende agora a sofrer um pouco, para que te possas
livrar de coisas mais duras.
Experimenta agora o que poderás depois .
Se agora consegues suportar tão pouco, como poderás
aguentar os tormentos eternos ?
Se agora um pequeno sofrimento causa tanta impaciên­
cia, que te fará o Inferno ?
Eis que, na verdade, não podes ter as duas alegrias: delei­
tar-te neste mundo e reinar depois com Cristo.

7.
Se até ao dia de hoj e sempre tivesses vivido nas honras e
nos prazeres, de que te serviria tudo isso se tivesses de
morrer de repente ?
Tudo é vaidade, além de amar a Deus e só a Ele servir.
Aquele que, na verdade, ama a Deus de todo o seu cora­
ção, não teme a morte, nem o suplício, nem o j uízo, nem o
Inferno; pois que o amor perfeito talha um caminho certo
para Deus.
Mas aquele que ainda ama o pecado, não admira que
tema a morte e o j uízo.
Contudo é bom que, se o amor ainda te não afasta do
mal, ao menos que o temor do Inferno to impeça.
Aquele que, na verdade, despreza o temor de Deus, não
conseguirá perseverar por muito tempo no bem; mas de­
pressa cairá nas armadilhas do demónio.

[ 65
XXV

Da fervorosa emenda de toda a nossa vida

1.
Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pensa muitas
vezes ao que vieste e por que deixaste o mundo.
Não foi para viveres para Deus e te tornares um homem
espiritual ?
Portanto, ferve no desej o de avançar: porque em breve
rece berás o prémio dos teus esforços e não mais haverá
temor ou dor para ti.
Tra balharás agora um pouco, mas acharás um grande
repouso, e até uma alegria eterna.
Se permaneceres fiel e fervoroso nas tuas ações, Deus,
sem dúvida, será fiel e abundante na recompensa.
Deves conservar uma boa e firme esperança de que che­
garás à glória, mas não deves entregar-te a uma segurança
demasiada, tal que caias no torpor ou na presunção.

2.
Como certo homem, ansioso, vogasse muitas vezes entre
o medo e a esperança, e, nesse dilema, atormentado pela
tristeza, se tivesse curvado em oração na igrej a, diante de um
altar, pensou dentro de si todas estas coisas, dizendo: oh, se
eu soubesse que haveria de perseverar !
No mesmo instante ouviu dentro de si a resposta divina:
« Se soubesses isso, o que farias ? Faz agora o que quere­
rias fazer então, e serás seguro. »

66 ]
E, depressa consolado e reconfortado, se entregou à von­
tade divina e cessou aquela ansiosa alternativa.
Já não quis investigar com curiosidade para saber as
coisas que lhe haviam de suceder, mas procurou antes conhe­
cer qual seria a vontade de Deus, agradável e perfeita ( Rm
1 2,2 ) , para começar e completar toda a boa obra.

3.
Espera no Senhor e faz o bem, diz o profeta, e hab ita a
terra: e serás apascentado nas suas riquezas ( SI 3 7[3 6 ] , 3 ) .
Uma só coisa a fasta muitos d o progresso e d a fervo­
rosa emenda: o horror da dificuldade, ou sej a, o esforço do
combate.
Mas, na verdade, progridem muito mais que os outros
em virtudes aqueles que se esforçam por vencer coraj osa­
mente aquelas coisas que lhes são mais duras e contrárias.
Na verdade, o homem avança mais e merece maior graça
onde mais se vence a si próprio e mortifica em espírito.

4.
Mas nem todos têm de combater igualmente para se
vencer e mortificar.
Contudo, o homem que é animado de zelo será mais
coraj oso, ainda que tenha muitas paixões, do que outro mais
moderado, mas menos fervoroso em virtudes.
Duas coisas aj udam especialmente para a verdadeira
emenda: subtrair-se violentamente daquilo para que a natu­
reza viciosamente se inclina e teimar continuadamente para
alcançar a virtude de que mais se necessita.
Procura, assim, temer e vencer aquelas coisas que mais
frequentemente te desagradam nos outros.

[ 67
5.
Aproveita tudo para o teu progresso: para que, se vires
ou ouvires bons exemplos, te animes a imitá-los.
Se, porém, vires qualquer coisa de condenável, acautela­
-te, para que a não faças.
E, se alguma vez a fizeste, procura emendar-te o mais
depressa possível.
Tal como os teus olhos observam os outros , assim
também és notado por eles.
Como é consolador e alegre ver irmãos fervorosos e
devotos, obedientes e disciplinados !
Mas como é triste e duro ver os que andam desordenada­
mente e que não cumprem aquilo para que foram chamados !
Como prej udica desprezar o intento da sua vocação e
inclinar o coração para o que não interessa !

6.
Lembra-te dos propósitos tomados e conserva para tua
imagem Jesus crucificado.
Bem podes envergonhar-te, pondo os olhos na vida de
Jesus Cristo, pois que não procuraste conformar-te a Ele,
embora há muito estivesses no caminho de Deus.
O religioso que se exercita cuidadosa e devotamente na
santíssima vida e paixão do Senhor, aí encontrará em abun­
dância todas as coisas que lhe são úteis e necessárias, e não
precisa de procurar outra coisa de melhor além de Jesus.
Oh, como seríamos depressa e suficientemente instruídos,
se Jesus crucificado viesse ao nosso coração !

7.
O religioso devoto suporta e recebe bem todas as coisas
que lhe são ordenadas.
O religioso negligente e medíocre tem tribulação após tri-

68 ]
bulação e de toda a parte sofre angústia; pois que carece de
consolação interior e é impedido de procurar a exterior.
O religioso que vive à margem da disciplina expõe-se a
uma grave queda.
Aquele que procura coisas mais brandas e menos severas
estará sempre em angústia, pois qualquer coisa que tenha lhe
desagradará.

8.
Como fazem tantos outros religiosos que tão apertados
estão sob a disciplina monástica ?
Raramente saem, vivem retirados, comem muito pouco,
vestem-se grosseiramente, trabalham muito, falam pouco,
velam longas horas, levantam-se cedo, fazem prolongadas
orações, leem muito e guardam-se em toda a disciplina.
Olha para os Cartuxos, para os Cistercienses e para os
monges e monj as de diversas ordens: vê como toda a noite
estão levantados para cantar ao Senhor.
Seria bem vergonhos o que tivesses preguiça naquele
tempo santo em que tamanha multidão de religiosos começa
a louvar a Deus.

9.
Oh, se não necessitássemos de fazer mais nada, a não ser
louvar o Senhor, nosso Deus, de todo o coração e boca !
Oh, se nunca precisasses de comer e beber, nem de dor­
mir, mas pudesses sempre louvar a Deus e ocupar-te unica­
mente de coisas espirituais ! Serias, então, bem mais feliz do
que agora, que és escravo da carne em toda a espécie de
necessidades.
Oxalá tais necessidades não existissem, mas apenas hou­
vesse para a alma as refeições do espírito que, infelizmente,
tão raras vezes saboreamos.

[ 69
1 0.
Quando o homem chega a este ponto de não buscar a sua
consolação em nenhuma criatura·, só então começa a com­
preender Deus, e então tirará contentamento de tudo o que
acontece.
Então não se alegrará com o muito, nem se entristecerá
com o pouco; entregar-se-á inteira e fielmente a Deus, que é
para si tudo em tudo, para quem nada perece ou morre, mas
para quem tudo vive e a cuj o aceno tudo obedece sem
demora.

1 1.
Lembra-te sempre do fim, e de que o tempo perdido não
volta .
Sem solicitude e sem esforço nunca conseguirás virtudes.
Se começas a esfriar, começarás a andar mal.
Mas se te deres à devoção, acharás grande paz; e senti­
rás o trabalho mais leve, pela graça de Deus e pelo amor da
virtude.
O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo.
Maior esforço é resistir aos vícios e paixões, do que suar
com os trabalhos do corpo.
Quem não ev ita os defeitos pequenos, cairá p o u co a
pouco nos maiores ( Sir 1 9, 1 ; Lc 1 6, 1 0 ) .
Alegrar-te-ás sempre à noite, s e passaste u m dia pro­
veitoso .
Vigia-te a ti próprio, incita-te, castiga-te; e, o que quer
que suceda aos outros, não te deixes cair na indiferença .
Tanto mais progredirás, quanto mais te violentares .
Ámen.

70 ]
LIVRO SEGUNDO

Conselhos para o progresso


na vida interior
1

Da conversão interior

1.
O Reino de D eus está dentro de vós ( Lc 1 7,2 1 ) , diz o
Senhor.
Volta-te com todo o teu coração para o Senhor e deixa
este mundo miserável: e a tua alma achará o repouso.
Aprende a desprezar as coisas exteriores e a entregar-te às
interiores, e verás chegar para ti o Reino de Deus.
Na verdade, o Reino de Deus é a paz e a alegria no Espí­
rito Santo ( Rm 1 4 , 1 7) , que não é dado aos ímpios . Cristo
virá j unto de ti, mostrando-te a sua consolação, se lhe tiveres
preparado interiormente uma morada digna.
Toda a sua glória e beleza são de dentro e é aí que se
compraz.
Ele visita frequentemente o homem recolhido, e a sua
conversa é doce, a sua consolação agradável, a sua paz
imensa, o seu convívio admirável.

2.
Vai, alma fiel, prepara o teu coração para este Esposo,
para que se digne vir a ti e em ti habitar.
Na verdade, Ele diz assim: se alguém me ama, ouvirá a
m inha palavra; e viremos a ele e nele faremos morada (Jo
1 4,23 ) .
Dá, pois, lugar a Cristo e nega entrada a todos o s outros.
Quando possuíres Cristo, serás rico e Ele te bastará.

[ 73
Ele será o teu guia e o que cuidará de ti, fielmente, em to­
das as coisas, para que não necessites de esperar nos homens .
Na verdade, os homens depressa mudam e faltam; mas
Cristo permanece eternamente, e com firmeza acompanha
até ao fim.
Não se deve colocar grande confiança no homem frágil e
mortal, ainda que sej a útil e amado; nem nos devemos
entristecer se às vezes nos trair ou contradizer.
Aqueles que hoj e estão contigo podem ser-te contrários
amanhã, e vice-versa: mudam muitas vezes como a brisa.

3.
Põe toda a tua confiança em Deus, e que Ele sej a teu
temor e teu amor.
Ele por ti responderá e fará como for melhor.
Não tens aqui cidade de repouso, e onde quer que estej as
és estranho e peregrino; e nunca terás repouso, a não ser
quando estiveres intimamente unido a Cristo.

4.
Que procuras à tua volta, se este não é o lugar do teu
descanso ?
A tua morada deve ser no Céu, e tudo na terra deve ser
visto como de passagem.
Todas as coisas passam, e tu com elas.
Toma cuidado, não te apegues, para que não sej as apa­
nhado por elas e pereças .
Que o teu pensamento estej a j unto d o Altíssimo, e a tua
súplica se dirij a sem cessar a Cristo.
Se não consegues contemplar as coisas elevadas e celestes,
descansa na paixão de Cristo, e habita alegremente nas suas
santas chagas.
Se assim te refugiares com devoção nas chagas e nos pre-

74 ]
ciosos estigmas de Jesus, sentirás grande conforto na tribu­
lação, não te importarás muito com as traições dos homens
e facilmente suportarás as palavras malévolas .

5.
Também Cristo foi desprezado no mundo pelos homens,
e abandonado, na maior necessidade, pelos conhecidos e
amigos no meio das afrontas .
Cristo quis sofrer e ser desprezado, e tu ousas queixar-te
de alguma coisa ?
Cristo teve inimigos e adversários, e tu queres que todos
sejam teus amigos e benfeitores ?
Onde será coroada a tua paciência, se nada tiveres de
adverso ?
Se não queres sofrer nada de penoso, como queres ser
amigo de Cristo ?
Mantém-te com Cristo e por Cristo, se queres reinar com
Cristo.

6.
Se uma única vez conseguisses entrar perfeitamente no
coração de Jesus, e conhecesses um pouco do seu amor
ardente, não te importarias com o que te é agradável ou
desagradável, mas alegrar-te-ias de cada ofensa sofrida, pois
que o amor de Jesus faz o homem desprezar-se a si próprio.
Aquele que ama Jesus e a verdade, que é verdadeiro, inte­
rior e livre de afeições desordenadas, pode voltar-se facil­
mente para Deus, elevar-se em espírito acima de si próprio e
descansar com proveito.

7.
Aquele para quem as coisas valem segundo o que são, e
não segundo o que se diz ou pensa, esse é o verdadeiro
sábio, e mais instruído por Deus do que pelos homens.

[ 75
Aquele que sabe caminhar interiormente e pouco se im­
porta com as coisas exteriores, não exige lugares nem espera
ocasiões para se dedicar aos exercícios de piedade.
O homem interior depressa se recolhe, pois que nunca se
dispersa totalmente nas coisas exteriores.
O trabalho exterior não o prej udica, nem a ocupação por
vezes necessária; mas, tal como sucedem as coisas, assim a
elas se acomoda.
Aquele que é bem formado e ordenado interiormente não
se importa com as ações admiráveis ou perversas dos
homens.
Tanto mais se embaraça o homem e se distrai, quanto
mais a si atrai as coisas.

8.
Se fosses como devias, e perfeitamente purificado, tudo se
te converteria em bem e em progresso.
Mas muitas coisas te desagradam e frequentemente per­
turbam, porque ainda não morreste completamente para ti
próprio nem te separaste de tudo o que é da terra.
Nada mancha e compromete o coração do homem como
um impuro amor das criaturas.
Se renuncias às consolações exteriores, poderás contem­
plar as coisas do Céu e alegrar-te frequentemente em teu
coração.

76 ]
II

Da humilde submissão

1.
Não te preocupes muito se alguém é por ti ou contra ti,
mas procede e ocupa-te de modo a que Deus estej a contigo
em tudo quanto faças.
Consegue uma consciência pura, que Deus te defenderá
bem.
Aquele a quem Deus quer ajudar, não pode prej udicar a
maldade de ninguém.
Se sabes calar-te e sofrer, verás sem dúvida o auxílio do
Senhor.
Ele conhece o tempo e o modo de te libertar: e por isso a
Ele te deves submeter.
É próprio de Deus aj udar e libertar de toda a confusão.
Muitas vezes é mais útil para a conservação da nossa
humildade que os outros conheçam os nossos defeitos e os
censurem.

2.
Quando um homem se humilha por causa dos seus defei­
tos, acalma os outros facilmente e satisfaz sem custo os que
consigo se iravam.
. .

Deus protege e liberta o humilde, ama-o e consola-o.


Inclina-se para ele e dá-lhe grande graça: e, depois do seu
abatimento, eleva-o à glória.

[ 77
Revela os seus segredos ao humilde, arrasta-o e convida­
-o docemente para si.
E ele mesmo na confusão vive em paz, porque se firma
em Deus e não no mundo.
Não j ulgues ter adiantado em qualquer coisa se não te
sentires inferior a todos .

78 ]
III

Do homem bom e pacífico

1.
Mantém-te tu em paz; e só então poderás pacificar os
outros.
O homem pacífico é mais útil do que o muito instruído.
O apaixonado, porém, converte o bem em mal e acredita
facilmente neste.
O homem bom e pacífico converte todas as coisas em
bem.
Aquele que está verdadeiramente em paz não suspeita
mal de ninguém.
Mas o que é descontente e inquieto é agitado por várias
suspeitas.
Nem descansa, nem deixa descansar os outros.
Diz muitas vezes o que não devia dizer, e omite fazer o
que devia.
Preocupa-se com o que os outros têm de fazer, mas des­
leixa o que lhe compete.
Tem, antes de tudo, cuidado contigo, e poderás então
zelar pelo teu próximo.

2.
Sabes bem desculpar e colorir as tuas ações, mas não
queres atender às desculpas dos outros.
Seria mais j usto que te acusasses e desculpasses o teu
irmao.

[ 79
Se queres ser suportado, suporta tu os outros.
Vê quão longe estás ainda da verdadeira caridade e humil­
dade, que só sabe indignar-se e irritar-se contra si própria.
Não tem valor conviver com os que são bons e pacientes:
pois isto agrada naturalmente a todos; qualquer pessoa quer
de boa vontade a paz, e gosta mais dos que pensam como
ela.
Mas poder viver em paz com os duros e os maus, com os
indisciplinados, com os que se nos opõem, é grande graça e
ação digna de louvor e coraj osa.

3.
Há quem tenha paz consigo e com os outros, e há os que
nem têm paz, nem deixam em paz os outros .
Desagradáveis para os outros, ainda o s ã o mais para si
próprios.
E há aqueles que se conservam em paz e que a ela pro­
curam trazer os outros.
Contudo, toda a nossa paz, nesta pobre vida, se deve
colocar mais no sofrimento humilde do que na ausência do
sofrimento.
Aquele que melhor sabe sofrer, maior paz conseguirá.
Este é o que se vence a si próprio e o senhor do mundo, o
amigo de Cristo e o herdeiro do Céu.

80 ]
IV

Do espírito puro e da reta intenção

1.
O homem eleva-se da terra com duas asas: a simplicidade
e a pureza.
A simplicidade deve estar na intenção, a pureza na afeição.
A simplicidade procura Deus; a pureza toma dele posse e
nele se compraz.
Nenhuma boa ação te custará, se estiveres interiormente
livre de afeições desregradas.
Se nada procurares ou quiseres, além da vontade de Deus
e da utilidade do próximo, gozarás de liberdade interior.
Se o teu coração for reto, então toda a criatura te será
espelho de vida e livro de santa doutrina.
Não há criatura, por mais pequena e desprezível, que não
sej a imagem da bondade de Deus.

2.
Se fosses interiormente bom e puro, verias todas as coisas
sem obstáculo e facilmente as entenderias.
Um coração puro atravessa o Céu e o Inferno.
Toda a pessoa j ulga as coisas cá de fora de acordo com o
que é por dentro.
Se há alegria no mundo, o homem de coração puro
possm-a.
E se em qualquer lugar existe tribulação e angústia, a má
consciência as conhece.

[ 81
Tal como o ferro lançado ao fogo se torna rubro e todo
incandescente, assim o homem que inteiramente se volta
para Deus é sacudido do torpor e feito num homem novo.

3.
Quando o homem começa a arrefecer, teme o esforço
pequeno e aceita de boa vontade a consolação exterior.
Mas quando começa a vencer-se perfeitamente e a cami­
nhar com firmeza na via de Deus, então j ulga sem importân­
cia o que antes lhe parecia mais duro.

82 ]
V

Da consideração de si próprio

1.
Não podemos contar demasiadamente com nós próprios,
pois que, muitas vezes, nos falta a graça e o bom senso.
Pouca luz existe em nós e, mesmo essa, depressa a perde­
mos por negligência.
Muitas vezes não nos damos conta de como somos inte­
riormente cegos.
Muitas vezes agimos mal e desculpamo-nos pior.
Às vezes somos movidos pela paixão e j ulgamos ser por
zelo.
Repreendemos coisas pequenas nos outros e passamos
sobre as nossas, bem maiores.
Depressa sentimos e pesamos o que aguentamos dos
outros, mas não nos damos conta de quanto eles sofrem por
nós.
Aquele que pesasse bem e retamente as suas ações, não
haveria nada que j ulgasse duramente nos outros .

2.
O homem que vive pelo espírito prefere o cuidado de si
próprio a todos os cuidados; e quem se vigia atentamente
facilmente se cala sobre os outros.
Nunca serás interior e piedoso se não te calares sobre os
outros e olhares especialmente para ti.

[ 83
Se procurares inteiramente cuidar de ti e de Deus, pouco
te perturbará o que observares cá fora.
Onde estás, quando não estás presente a ti próprio ?
E, quando percorreste todas as coisas, o que aproveitaste,
se te descuraste ?
Se desej as paz e verdadeira união, é necessário que
ponhas tudo para trás e que só tenhas olhos para ti.

3.
Por isso, muito progredirás se te conservares livre de toda
a preocupação temporal.
Mas cedo desfalecerás, se tiveres em apreço qualquer
coisa da terra .
Que nada sej a para ti grande, elevado, grato ou aceite,
senão Deus ou o que dele sej a.
Considera vã toda a consolação que provenha das cria­
turas.
A alma que ama a Deus despreza todas as coisas que lhe
estão abaixo.
Só Deus eterno e imenso, enchendo tudo, é consolação da
alma e verdadeira alegria do coração.

84 ]
VI

Da alegria da boa consciência

1.
A glória do homem de bem é testemunho da boa cons­
ciência (2Cor 1 , 1 2 ) .
Possui uma boa consciência e terás sempre alegria.
A boa consciência pode suportar muitas coisas, e está
alegre na adversidade.
A má consciência está sempre temerosa e inquieta.
Repousarás calmamente, se o teu coração de nada te
acusar.
Não te alegres, senão quando fizeres o bem.
Os maus nunca têm verdadeira alegria, nem experimen­
tam paz interior: porque não há paz para os pecadores, diz o
Senhor (Is 4 8 ,22 ) .
E s e disserem « estamos e m paz, o s males não cairão sobre
nós, quem nos ousará prej udicar ? » , não os acredites; pois
que de repente se erguerá a ira de Deus e as suas ações serão
feitas em nada, e perecerão os seus pensamentos .

2.
Glorificar-se na tribulação não é difícil a quem ama : por-
que glorificar-se assim é glorificar-se na Cruz do Senhor.
Breve é a glória que é dada e recebida dos homens.
A tristeza acompanha sempre a glória do mundo.
A glória dos bons está nas suas consciências e não na
boca dos homens.

[ 85
A alegria dos j ustos é de Deus e em Deus, e o seu gozo,
da verdade.
Aquele que desej a a verdadeira e eterna glória não se
preocupa com o mundo.
E o que procura a glória da terra, ou a não despreza de
todo o coração, mostra amar pouco a do Céu.
Grande tranquilidade de coração tem aquele que não se
importa nem com louvores, nem com inj úrias.

3.
Facilmente estará contente e em paz aquele cuja cons­
ciência está limpa.
Não és mais santo porque te louvam, nem mais pecador
porque te inj uriam.
És aquilo que és: e tudo o que disserem de ti não te fará
maior do que és aos olhos de Deus.
Se atenderes ao que és interiormente, não te preocuparás
com o que os homens dirão de ti.
O homem vê a cara, mas Deus o coração ( 1 Sm 1 6, 7 ) .
O homem tem e m conta a s ações; mas Deus considera as
intenções.
É indício duma alma humilde agir sempre retamente e
não se ter em muita conta .
Não querer ser consolado por nenhuma criatura é sinal
de grande pureza e confiança interior.

4.
Aquele que não procura de fora qualquer testemunho em
seu favor, mostra claramente que se entrega inteiro a Deus.
Pois não é o que se recomenda a si próprio que é aprovado,
diz São Paulo, mas aquele que Deus recomenda (2Cor 1 0, 1 8 ) .
Caminhar com Deus dentro d e s i e não contar com ne­
nhuma afeição de fora, tal é o estado do homem interior.

86 ]
VII

Do amor a Jesus sobre todas as coisas

1.
Feliz o que percebe o que é amar a Jesus e desprezar-se a
si próprio por causa dele: é preciso abandonar o que ama­
mos por Aquele que nos ama, pois que Jesus quer ser só Ele
amado, acima de todas as coisas.
O amor das criaturas é mentiroso e instável; o amor de
Jesus é fiel e perseverante.
Aquele que se apega às criaturas cairá facilmente; o que
se abraça a Jesus estará firme para sempre.
Ama e conserva como amigo Aquele que, fugindo todos,
te não abandonará, nem te deixará perecer.
Terás de te afastar um dia de todos, quer queiras, quer
não queiras.

2.
Na vida ou na morte, conserva-te junto de Jesus e confia
na fidelidade do único que, quando todos te faltarem, te
poderá aj udar.
Tal é a natureza daquele que assim te ama, que não quer
a dmitir mais ninguém e quer possuir só o teu coração e
sentar-se, como rei, no seu trono.
Se souberes libertar-te bem de todas as criaturas , Jesus
virá habitar de boa vontade contigo.
Verás que quase tudo o que j ogaste nos homens, fora de
Jesus, é perdido.

[ 87
Não confies nem te apoies sobre uma cana agitada pelo
vento: porque toda a carne é como a erva, e toda a sua glória
como a flor da erva cairá ( Is 40,6) .

3.
Muitas vezes te enganarás, se apenas olhares para a apa­
rência exterior dos homens.
Se procurares nos outros consolação e lucro, experimen­
tarás a maior parte das vezes apenas danos.
Se procurares Jesus em tudo, em tudo o encontrarás.
Mas se te procurares a ti próprio, a ti te encontrarás, mas
para teu mal.
Pois que o homem, se não procura Jesus, é mais nocivo a
si próprio do que todo o mundo e todos os seus inimigos.

88 ]
VIII

Da amizade familiar a Jesus

1.
Quando Jesus está presente, tudo é bom e nada parece
difícil.
Mas quando Jesus não está presente, tudo é duro.
Quando Jesus não fala dentro de nós, qualquer consola­
ção é má.
Mas se Jesus diz uma só palavra, é grande a consolação.
Não se ergueu logo Maria Madalena do lugar onde cho­
rava, quando Marta lhe disse: o Mestre chegou e chama-te ?
(Jo 1 1 ,2 8 ) .
Feliz a hora em que Jesus chama das lágrimas para a ale­
gria do espírito !
Como és seco e duro sem Jesus !
Como és insensato e vão, se alguma coisa desej as fora
dele !
Não é isto uma maior perda do que se perdesses todo o
mundo ?

2.
Que pode o mundo trazer-te sem Jesus ?
Viver sem Jesus é pesado inferno: e estar com Jesus, doce
p araíso.
Se Jesus estivesse contigo, nenhum inimigo te poderia
fazer mal.

[ 89
Quem encontra Jesus encontra um bom tesouro, bom
acima de todo o bem.
E quem perde Jesus perde muito, e mais do que todo o
mundo.
Pobríssimo é o que vive sem Jesus, e bem rico o que está
com Jesus.

3.
É uma grande arte saber conviver com Jesus, e grande
prudência é saber retê-lo.
Sê humilde e pacífico: e Jesus estará contigo.
Sê piedoso e tranquilo: e Jesus permanecerá a teu lado.
Depressa podes afastar Jesus e perder a sua graça, se qui-
seres inclinar-te para as coisas do mundo.
E se o afastares e perderes, em quem te refugiarás, que
amigo arranj arás ?
Sem amizade não podes viver bem, e se Jesus não for para
ti o amigo entre todos, ficarás triste e desolado.
Por isso ages loucamente se confias ou te alegras em qual­
quer outro.
Deve preferir-se ter todo o mundo contra nós a ofender
Jesus.
Assim, que, entre tudo o que amas, sej a Jesus o mais
amado.

4.
Que todos sej am amados por Jesus, mas que Jesus o sej a
por s1 mesmo.
Só Jesus Cristo deve ser amado de um modo particular,
pois que, mais que todos os amigos, Ele é bom e fiel.
Por causa dele e nele, que tanto os amigos como os inimi­
gos te sej am queridos; deves pedir-lhe por todos, para que
todos o conheçam e o amem.

90 ]
Nunca desejes ser louvado ou amado dum modo especial:
pois que isso só pertence a Deus, que não tem ninguém
semelhante a si.
Nem queiras que alguém te tenha em seu coração, ou tu
tenhas o teu ocupado pelo amor de alguém; mas que Jesus
estej a em ti e em todo o homem bom.

5.
Sê puro e livre por dentro, sem enredo de qualquer cria­
tura .
Importa que estej as nu e ofereças a Deus um coração
puro, se queres estar livre e ver quão suave é o Senhor.
E é bem verdade que não chegarás a isto, se não fores
amparado e arrastado pela sua graça; para que, excluídas e
afastadas todas as coisas, tu só com Ele só te unas.
Pois quando a graça de Deus vem ao homem, ele torna-se
capaz de tudo.
E, quando recua, ficará pobre e doente e como que aban­
donado aos sofrimentos.
Mas nem nestes ele deve sentir-se abatido ou desesperar,
mas antes manter-se imperturbável diante da vontade de
Deus, e sofrer tudo o que aconteça para louvor de Jesus
Cristo; porque depois do inverno vem o verão, depois da
noite, o dia, e, depois do temporal, a grande serenidade.

[ 91
IX

Da falta de toda a consolação

1.
Não é difícil desprezar a consolação humana quando a
divina nos aj uda .
Mas é admirável, realmente admirável, poder carecer de
consolação, humana e divina, e querer suportar livremente o
exílio do coração, não se procurar em nada e não olhar para
o próprio mérito, em honra de Deus.
Que há de especial em seres alegre e piedoso quando a
graça te ajuda ?
Hora desej ável para todos !
Caminha suavemente aquele a quem a graça de Deus
conduz.
E que admira se não sente a carga quem é levado pelo
Omnipotente e conduzido pelo supremo guia ?

2.
De boa vontade procuramos alguma coisa que nos con­
sole e dificilmente se liberta o homem de si próprio.
O mártir São Lourenço venceu o mundo, fiel ao seu
bispo, pois desprezou tudo o que na terra era agradável e,
por amor de Cristo, suportou pacientemente ser separado de
Sixto, o Papa, que ele muito amava.
Superou o amor ao homem pelo amor ao Criador e pre­
feriu o que agradava a Deus, à consolação humana.
Assim, aprende também tu a deixar o que te é necessário

92 ]
e o que te é querido pelo amor de Deus, e não te perturbes
quando fores abandonado por um amigo, pois sabes que é
inevitável que todos nos separemos uns dos outros.

3.
Muito e muito tempo tem o homem de combater em si
mesmo, antes que aprenda a vencer-se plenamente e a enca­
minhar todo o seu afeto para Deus.
Quando o homem se apoia em si próprio, facilmente cai
nas consolações humanas.
Mas o que verdadeiramente ama a Cristo e procura inces­
santemente as virtudes, não cai nessas consolações, nem pro­
cura tais doçuras dos sentidos; mas prefere aguentar por
Cristo duros exercícios e pesados trabalhos .

4.
Portanto, quando a consolação espiritual é dada por
Deus, recebe-a com ação de graças : mas percebe que ela é
um dom de Deus, e não mérito teu.
Não te orgulhes , não te a legres demais, não tenhas vã
presunção; mas sê mais humilde por este dom, mais caute­
loso e prudente em todas as tuas ações, porque essa hora
passará e virá a tentação.
Quando a consolação desaparecer, não desesperes logo;
mas espera com humildade e paciência a visita do Céu, pois
que poderoso é Deus para te voltar a dar consolação ainda
maior.
Isto não é novo nem estranho para os que têm experiên­
cia dos caminhos de Deus, pois que nos grandes santos e nos
profetas antigos houve muitas vezes esta espécie de altos e
baixos.

[ 93
5.
Assim, um deles, quando a graça estava presente, dizia:
eu disse em m inha abundân cia: não serei derru bado para
sempre ( Sl 3 0 [29] ,7) .
Mas quando a graça se afastou, acrescentava: afastaste de
m im a tua face e fiquei cheio de aflição ( ibid. , 8 ) .
Contudo, enquanto lhe sucediam estas coisas, não deses­
perava, mas rogava a Deus mais insistentemente e dizia: a ti,
Senho r, clamarei e ao meu Deus rogarei ( ibid. , 9 ) .
Finalmente, recolhe o fruto d a sua oração e d á testemu­
nho de que foi ouvido, dizendo: o Senhor ouviu-me e com­
padeceu-se de m im. O Senh or tornou- se a m inha ajuda
( ibid. , 1 1 ) .
Mas como ?
Converteste, diz, o meu pranto em gozo, e rodea ste-me
de alegria ( ibid. , 1 2 ) .
S e assim agiu para com o s grandes santos, não devemos
desesperar, nós, fracos e pobres, se umas vezes temos fervor
e outras frieza, porque o Espírito vem e afasta-se, segundo o
agrado da sua vontade.
Por isso diz o bem-aventurado Job: Tu o visita s de ma­
nhãzinha e de súbito o experimentas (Jb 7, 1 8 ) .

6.
Por isso, em quem posso esperar ou em quem devo con­
fiar, se não somente na grande misericórdia de Deus e na
esperança da graça do Céu ?
Pois que, estej a eu com homens de bem, piedosos irmãos
ou amigos fiéis, quer tenha santos livros, ou belos tratados,
ou doces cânticos e hinos : tudo isto pouco ajuda e a pouco
sabe, quando estou longe da graça e abandonado à minha
pobreza .

94 ]
Então não existe remédio melhor do que a minha paciên­
cia e abandono à vontade de Deus.

7.
Nunca encontrei ninguém, por mais religioso e devoto,
que não tivesse tido, por vezes, certa privação da graça ou
não sentisse diminuição de fervor.
Nenhum santo foi tão altamente arrebatado e iluminado,
que, antes ou depois, não tivesse tido tentações .
Na verdade, não é digno da alta contemplação de Deus
aquele que, por Ele, se não experimentou em qualquer tri­
bulação.
A tentação costuma ser sinal da consolação que a segue.
Assim, é prometida a consolação do Céu aos que são
experimentados pelas tentações.
À quele que vencer, diz, dar-lhe-ei a comer da árvore da
vida (Ap 2,7).

8.
Porém, é dada ao homem a consolação divina para que
sej a mais forte para aguentar as adversidades.
E segue-se a tentação, para que ele se não orgulhe do
bem.
O demónio não dorme, e a carne ainda não está morta :
por isso, não cesses de preparar-te para o combate, pois que,
à direita e à esquerda, estão inimigos que nunca descansam.

[ 95
X

Da gratidão pela graça de Deus

1.
Porque procuras repouso, se nasceste para o trabalho ?
Dispõe-te à paciência mais do que às consolações, e mais
ao fardo da cruz do que à alegria.
Que pessoa do mundo, na verdade, não receberia de boa
vontade a consolação e a alegria espiritual, se sempre as
pudesse obter ? As consolações espirituais ultrapassam, real­
mente, todas as delícias do mundo e todos os prazeres da
carne.
Pois que todas as delícias do mundo, ou são vãs, ou são
indignas.
Mas as espirituais são só castas e alegres, nascidas das
virtudes e infusas por Deus nas mentes puras.
Mas ninguém consegue gozar sempre destas consolações
divinas a seu gosto, porque a tentação não cessa por muito
tempo.

2.
A falsa liberdade de espírito e a muita confiança em si são
grande impedimento à visita do Alto.
Deus faz bem dando a graça da consolação; mas o homem
age mal não retribuindo tudo a Deus com ação de graças .
E p o r isso os dons da graça não podem correr em nós,
porque somos ingratos para com o seu Autor e não atribuí­
mos tudo à primeira origem.

96 ]
Pois a graça é sempre devida ao que dignamente sabe dar
graças, e tira ao soberbo o que costuma dar ao humilde.

3.
Não quero a consolação que me afasta o arrependimento,
nem a contemplação que conduz ao orgulho.
Pois nem tudo o que é elevado é santo; nem tudo o que é
doce, bom; nem todo o desej o, puro; nem tudo o que é que­
rido ao homem, grato a Deus.
Aceito de boa vontade a graça que me torne sempre mais
humilde, e prudente, e mais pronto a renunciar a mim pró­
prio.
Aquele que é sábio pelo dom da graça e instruído pelo
açoite da sua privação não ousará atribuir-se qualquer bem,
e confessar-se-á ainda mais pobre e nu.
Dá a Deus o que é de Deus, e reserva para ti o que é teu:
isto é, dá graças a Deus pela graça e reconhece que só o pe­
cado é teu e que apenas te é devida a j usta pena da culpa.

4.
Coloca-te sempre no mais baixo lugar, e ser-te-á dado o
mais alto, pois que o mais alto se não aguenta sem o mais
baixo.
Os maiores santos para Deus são os que a seus próprios
olhos são menores.
E quanto mais gloriosos, tanto mais humildes.
Cheios de verdade e da glória do Céu, não são ávidos de
vanglória.
Fundados e confirmados em Deus, de modo nenhum
podem ser orgulhosos.
E aqueles que atribuem tudo o que de bom receberam a
Deus não procuram a glória uns dos outros; mas querem a
glória que só vem de Deus, e desej am que Deus sej a louvado

[ 97
em si e em todos os santos sobre todas as coisas, e sempre
para isso tendem.

5.
Por isso sê agradecido pelas mais pequenas coisas: e serás
digno de receber as maiores.
Que para ti o mínimo sej a recebido como máximo, e o
mais desprezível como um dom especial.
Se se considera a dignidade daquele que dá, nenhuma
dádiva parecerá pequena ou vil.
Não é, na verdade, pequeno, o que é dado pelo imenso
Deus.
Assim, se te enviar sofrimentos e castigos, deverás ser
grato; pois que é para nossa salvação que faz ou permite que
nos suceda qualquer coisa.
Aquele que desej a conservar a graça de Deus, sej a agra­
decido pela graça dada e paciente pela que lhe é tirada .
Reze para que ela volte; sej a cauteloso e humilde, não vá
perdê-la.

98 ]
XI

Do pequeno número dos que amam a cruz de Jesus

1.
Jesus tem agora muitos que amam o seu Reino, mas
poucos que gostem de carregar a sua cruz.
Tem muitos que desej am consolação, mas poucos, tri­
bulação.
Encontra bastantes companheiros de mesa, mas poucos
de abstinência.
Todos desej am alegrar-se com Ele; mas poucos querem
suportar por Ele alguma coisa .
Muitos seguem Jesus até à fração do pão, mas poucos até
ao beber do cálice da paixão.
Muitos veneram os seus milagres, mas poucos seguem a
ignomínia da cruz.
Muitos amam a Jesus, enquanto as adversidades não os
tocam.
Muitos o louvam e bendizem, enquanto dele recebem
quaisquer consolações.
Mas se Jesus se esconder e os abandonar um pouco, caem
nos queixumes ou em grande abatimento.

2.
Aqueles, porém, que amam Jesus por Jesus, e não por si
próprios, bendizem-no em toda a tribulação e angústia, tal
como na maior consolação.
E ainda que Ele nunca lhes quisesse dar consolação,
louvá-lo-iam sempre e sempre lhe quereriam dar graças.

[ 99
Oh, quanto pode o puro amor a Jesus, não misturado a
nenhuma comodidade pessoal ou amor-próprio !
Não são, na verdade, mercenários o s que procuram
sempre consolações ?
Não provam gostar mais de si próprios que de Cristo
aqueles que pensam sempre nos seus interesses e lucros ?
Onde se encontrará quem queira servir a Deus sem re­
compensa ?

3.
Raramente se encontra alguém tão só do espírito que
estej a despoj ado de tudo.
Quem encontrará o verdadeiro pobre em espírito, nu de
toda a criatura ?
Longe e nos confins do mundo se achará o seu valor (Pr
31,10).
Se o homem desse toda a sua riqueza ( Ct 8,7), isso ainda
nada seria; e se fizesse grande penitência, seria pouco; e se
apreendesse toda a ciência, ainda estaria longe; e se pos­
suísse grande virtude e ardente devoção, muito lhe faltaria
ainda: qualquer coisa que, mais que tudo, lhe é necessária.
O quê, entã o ?
Que, deixadas todas as coisas, se deixe a s i próprio e d e s i
próprio saia totalmente, e q u e nada retenha do amor d e si.
E que, depois de ter feito tudo o que saiba dever fazer,
sinta que nada fez; que não j ulgue grande aquilo que possa
ser j ulgado grande; mas que se confesse servidor inútil,
segundo a palavra da Verdade: quando tiverdes feito tudo o
que vos foi mandado, dizei: somos servos inúteis ( Lc 1 7, 1 0 ) .
S ó então poderá ser verdadeiramente despido e pobre em
espírito, e dizer com o profeta: porque estou sozinho e pobre
( Sl 25 [24] , 1 6 ) .
Contudo, ninguém é mais rico, mais poderoso e mais
livre do que aquele que sabe abandonar-se a si próprio e a
tudo, e colocar-se no último lugar.

1 00 ]
XII

Do régio caminho da santa Cruz

1.
A muitos parece dura esta palavra : renega-te a ti próprio,
toma a tua cruz e segue jesus ( Lc 9,23 ) .
Mas muito mais duro será ouvir aquela última palavra :
afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,4 1 ) .
Assim, aqueles que d e boa vontade ouvem e seguem a
palavra da cruz não temerão ouvir a condenação eterna.
Estará no céu este sinal da cruz, quando Deus vier para
julgar (Mt 24,3 0 ) .
Então, todos o s servidores d a Cruz, que s e conformaram
em vida com o crucificado, se aproximarão de Cristo Juiz,
com grande confiança.

2.
Porque temes, pois, levar a cruz pela qual se vai ao Reino ?
Na cruz está a salvação, na cruz, a vida, na cruz, a prote-
ção dos inimigos; da cruz se derrama toda a suavidade do
Alto, na cruz, a força do espírito, na cruz, a alegria da alma,
na cruz, a suprema virtude, na cruz, a perfeição da santidade.
Não há salvação da alma nem esperança de vida eterna
senão na cruz.
Pega, pois, na tua cruz e segue-o : caminharás para a vida
eterna.
Ele te precedeu, carregando às costas a cruz, e na cruz
morreu por ti: para que também tu leves a tua e nela queiras
morrer.

[ 1 01
Porque, se morreres com Ele, também com Ele viverás
( Rm 6,8 ) .
E s e fores seu companheiro n o sofrimento, também o
serás na glória.

3.
Eis que tudo consiste na Cruz e tudo repousa na morte; e
não há outro caminho para a vida e para a verdadeira paz
interior, senão o da santa Cruz e da mortificação de todos os
dias.
Anda por onde quiseres, procura o que desej ares, e não
encontrarás mais elevado caminho no alto, nem mais seguro
cá em baixo, do que o caminho da santa Cruz.
Dispõe e ordena tudo segundo o que queres ou vês: e não
encontrarás nada onde não haj a que sofrer, voluntária ou
necessariamente, e assim sempre encontrarás a cruz.
Ou sofrerás dores no corpo, ou aguentarás tribulação na
alma.

4.
Umas vezes serás abandonado por Deus, outras serás afli­
gido pelo próximo, e, o que ainda é mais, muitas vezes pesa­
rás a ti mesmo; contudo, não poderás ser libertado ou ali­
viado com qualquer remédio ou consolação, mas, até que
Deus o queira, terás de aguentar.
Deus quer que aprendas a suportar o sofrimento sem
consolação e que te submetas a Ele totalmente e te tornes
mais humilde pela tribulação.
Na verdade, ninguém sente de todo o coração a paixão
de Cristo como aquele que sofreu algo de semelhante.
A cruz está, portanto, sempre preparada e espera-te por
toda a parte.
Não podes fugir, para onde quer que corras; pois que,

1 02 ]
para onde quer que vás, levas-te contigo e sempre te hás de
encontrar.
Olha para cima, para baixo, para fora ou para dentro de
ti, e em tudo isto encontrarás a cruz; e é necessário que por
toda a parte tenhas paciência, se queres possuir a paz inte­
rior e merecer a coroa imortal.

5.
Se levas a cruz de boa vontade, ela te levará e conduzirá
ao fim desej ado, onde será o fim do sofrimento; mas não
será neste mundo.
Se a levas de má vontade, fazes dela um fardo e te pesará;
e, contudo, terás de a suportar.
Se foges a uma cruz, encontrarás sem dúvida outra, e
talvez ainda mais pesada .

6.
Julgas fugir àquilo de que nenhum dos mortais se pôde
livrar ?
Qual dos santos viveu neste mundo sem cruz e sem tribu­
lação ?
Nem mesmo Jesus Cristo, Nosso Senhor, passou uma só
hora sem a dor da paixão, enquanto viveu.
Era necessário, diz, que Cristo sofresse e ressuscitasse
dos mortos ( Lc 24,46 ) , e que assim entrasse na sua glória
( ibid. , 2 6 ) .
E como procuras t u outro, além desse régio caminho que
é o da santa Cruz ?

7.
Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio : e tu procuras
para ti descanso e alegria ?
Erras, erras se procuras outra coisa além de sofrer tribu-

[ 1 03
lações; porque toda esta vida mortal está cheia de misérias e
rodeada de cruzes .
E quanto mais alto em espírito alguém caminhar, tanto
mais pesadas cruzes encontrará, porque a dor do seu exílio
crescerá com o amor.

8.
Contudo, este que assim é afligido de tanta maneira, não
está sem o alívio da consolação, porque sente crescer em si o
maior fruto pelo sofrimento da sua cruz.
Assim, enquanto a ela se submete de livre vontade, todo o
peso da tribulação se converte em confiança de consolação
divina .
E quanto mais a carne é humilhada pelo sofrimento,
tanto mais o espírito se fortalece pela graça interior.
E às vezes é de tal modo confortado pelo desej o da tribu­
lação e da adversidade, pelo amor de conformidade à cruz
de Cristo, que não quer viver sem dor e sem tribulação;
porque se j ulga tanto mais agradável a Deus, quanto mais e
mais duras coisas puder suportar por Ele.
Isto não é virtude do homem, mas graça de Cristo, que
pode tais coisas e age na frágil carne de tal modo que tudo
aquilo a que ela naturalmente sempre foge e a borrece é
empreendido e amado por este fervor do espírito.

9.
Não é próprio d o homem levar a cruz, amar a cruz, cas­
tigar o corpo e submeter-se à servidão, fugir das honras,
suportar de bom ânimo as inj úrias, desprezar-se a si próprio
e querer ser desprezado, sofrer adversidades e perdas e nada
de próspero desej ar neste mundo.
Se olhas só para ti, nada de tudo isto conseguirás.

1 04 ]
Mas se confias no Senhor, ser-te-á dada a força do Céu, e
ao teu mando se submeterão o mundo e a carne.
E nem temerás o inimigo, se estiveres armado de fé e mar­
cado com a Cruz de Cristo.

1 0.
Decide-te, pois, como servo bom e fiel de Cristo, a levar
com coragem a Cruz do teu Senhor, por teu amor cruci­
ficado.
Prepara-te para teres de suportar muitas adversidades e
transtornos vários nesta vida miserável; pois isso haverá
para ti, onde quer que estej as, e isso encontrarás, onde quer
que te escondas.
Assim tem de ser: e não há outro remédio para fugir da
tribulação dos sofrimentos e da dor, do que suportares-te a ti
mesmo.
Bebe amorosamente o cálice do Senhor, se queres ser seu
amigo e ter com Ele parte.
Entrega a Deus as consolações : que Ele faça com elas o
que melhor lhe aprouver.
E tu, dispõe-te a suportar os sofrimentos e olha-os como
as maiores consolações : porque os sofrimentos do temp o
presente não são comparáveis com a glória futura ( Rm
8 , 1 8 ) , e não a merecerias, ainda que sozinho os pudesses
suportar a todos.

11.
Quando chegares àquele ponto em que a tribulação te
pareça doce e te agrade por Cristo, então julga-te feliz, pois
encontraste o paraíso na Terra.
Enquanto sofrer te é duro e procuras fugir, não esta­
rás em paz e a tribulação seguir-te-á para onde quer que
fuj as.

[ 1 05
1 2.
Se te esforçares por ser aquilo que deves, ou sej a , por
sofrer e por morrer, logo tudo melhorará e encontrarás a
paz.
Ainda que sej as arre batado ao terceiro céu, como São
Paulo, não estás livre de sofrer qualquer contrariedade.
Eu, diz Jesus, lhe mostrarei o que importa que ele sofra
pelo meu nome ( At 9, 1 6 ) .
Resta-te, portanto, sofrer, se queres amar Jesus e servi-lo
continuamente.

1 3.
Oxalá foras digno de sofrer qualquer coisa pelo nome de
Jesus ! Que grande glória te caberia ! Quanta alegria em
todos os santos de Deus ! Quanta edificação para o próximo !
Na verdade, todos recomendam paciência , embora
poucos queiram sofrer.
Com razão deverias sofrer a legremente um pouco
por Cristo, quando muitos sofrem coisas mais duras pelo
mundo.

1 4.
Tem como certo que te é necessário levar vida semelhante
a uma morte e que, quanto mais alguém morre para si, tanto
mais começa a viver para Deus .
Ninguém está apto a compreender as coisas do Céu,
senão resignando-se, por Cristo, a carregar as adversidades .
Nada mais aceitável a Deus, nada mais salutar neste
mundo, do que sofrer de bom ânimo por Cristo.
E se tivesses de escolher, deverias preferir sofrer as adver­
sidades por Cristo a alegrar-te com muitas consolações:
porque serias mais semelhante a Cristo e mais conforme a
todos os santos.

1 06 ]
Na verdade, o nosso merecimento e o adiantamento do
nosso estado não residem nas muitas doçuras e consolações;
mas mais no suportar de grandes dores e sofrimentos .

1 5.
Se alguma coisa fosse melhor e mais útil à salvação dos
homens do que sofrer, Cristo tê-lo-ia mostrado pela sua
palavra e pelo seu exemplo.
Mas Ele exorta todos os discípulos que o seguem e todos
os que o desej am seguir a levar a cruz, e diz: se alguém quer
vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga ­

-me (Mt 1 6,24 ) .


Portanto, lidas e estudadas todas as coisas, sej a esta a
conclusão final: que por muitas tribulações nos é necessário
entrar no Reino de Deus ( At 1 4 , 22 ) .

[ 1 07
LIVRO TERCEIRO

Da consolação interior
1

Da conversação interior de Cristo com a alma fiel

1.
Ouvirei aquilo que o Senhor D eus diz em mim ( S l 8 5
[ 84] , 9 ) .
Feliz a alma que ouve o Senhor falar e m s i e recebe da
sua boca a palavra de consolação.
Felizes os ouvidos que acolhem o sopro divino e não
atendem aos murmúrios do mundo.
Felizes, sem dúvida, os ouvidos que não escutam a voz
que soa fora, mas sim a verdade que ensina por dentro.
Felizes os olhos que, fechados para as coisas exteriores,
estão atentos às interiores.
Felizes os que penetram as coisas escondidas e que pro­
curam todos os dias preparar-se cada vez mais para perceber
os mistérios do Céu.
Felizes os que se alegram por se ocuparem de Deus e se
libertam de todo o embaraço do mundo.
Considera isto, ó minha alma, e fecha as portas dos teus
sentidos , para que possas o uvir a quilo que em ti diz o
Senhor teu Deus.

2.
Isto diz o teu Amado: sou a tua salvação, a tua paz e a
tua vida .
Conserva-te j unto de mim: e acharás a paz.
Abandona tudo o que passa e procura o que é eterno.

[ 111
Que são todas as coisas temporais além de seduções ?
E que aj udam todas as criaturas, se o Criador te aban­
donar ?
Largadas todas as coisas, torna-te agradável e fiel ao teu
Criador, para que consigas alcançar a verdadeira felicidade.

112]
II

Que a verdade fala dentro de nós sem ruído de palavras

1.
Fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm 3 , 1 0 ) .
Eu s o u o teu servidor: dá-me inteligência, para que
conheça os teus testemunhos ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 1 25 ) .
Inclina o meu coração às palavras da tua boca ( ibid. , 3 6 ) ;
que elas s e derramem como o orvalho ( D t 32,2 ) .
Diziam outrora o s filhos d e Israel a Moisés: fala-nos tu, e
ouviremos; mas que nos não fale o Senhor, não aconteça que
morramos ( Ex 20, 1 9 ) .
Não é assim, Senhor, n ã o é assim que peço : mas rogo
antes como o profeta Samuel, humildemente, desej osamente:
fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm 3 , 1 0 ) .
Que não me fale Moisés nem qualquer dos profetas: mas
fala-me Tu, Senhor Deus, inspirador e luz de todos os profe­
tas, porque só Tu, sem eles, me podes penetrar completa­
mente; mas eles, sem ti, nada conseguem.

2.
Podem dizer palavras, mas não conferem espírito.
Podem dizê-las bem, mas, se te calas, não ateiam o coração.
Expõem as letras, mas Tu descobres-lhes o sentido.
Publicam os mistérios, mas Tu explicas a ideia dos que os
selaram.
Ordenam os preceitos, mas Tu aj udas a que se cumpram.
Mostram o caminho, mas Tu amparas a marcha .

[ 1 13
Eles agem por fora, mas Tu ensinas e iluminas os corações.
Eles regam à superfície, mas Tu dás a fecundidade.
Eles clamam com palavras, mas Tu dás inteligência ao
ouvido.

3.
Portanto, que me não fale Moisés, mas Tu, Senhor meu
Deus, Verdade eterna: não vá morrer sem dar fruto, ensi­
nado por fora, mas não ateado por dentro; para que não sej a
j ulgado pela palavra ouvida e não cumprida, conhecida e
não amada, crida e não observada .
Portanto, fala, Senhor, porque o teu servo escuta ( 1 Sm
3 , 1 0 ) : pois tens palavras de vida eterna (Jo 6 ,6 8 ) .
Fala-me para consolação d a minha alma e para a emenda
de toda a minha vida; e para teu louvor, glória e eterna
honra.

1 14 ]
III

Que as palavras de Deus devem ser ouvidas com humildade,


e que muitos as não pesam

1.
CRISTO - Ouve, filho, as minhas palavras, palavras tão
doces que excedem toda a sabedoria dos filósofos e sábios
deste mundo.
As minhas palavras são espírito e vida (Jo 6,63 ), e não
devem ser pensadas segundo o sentido humano.
Não se deve tirar delas uma vã complacência; mas devem
ser escutadas em silêncio e recebidas com toda a humildade
e com um grande amor.
DISCÍPULO - E eu disse: feliz aquele a quem Tu ensinas,
Senhor, e a quem instruis com a tua lei, para o poupares de
dias maus (Sl 94 [9 3 ] , 1 2- 1 3 ) e não ser abandonado na Terra.

2.
CRISTO - Eu, diz o Senhor, ensinei o s profetas desde o
início e até agora não cesso de falar a todos; mas muitos são
surdos e duros à minha Palavra.
A maior parte ouve de melhor vontade o mundo do que
Deus, segue mais facilmente o desej o da sua carne do que a
vontade de Deus.
O mundo promete coisas pequenas e que passam, e ser­
vem-no com grande ardor; Eu prometo coisas imensas e eter­
nas, e os corações dos homens entorpecem.

[ 115
Quem me serve e obedece em tudo com tanto cuidado
como serve o mundo e os seus senhores ?
Cora, Sídon, diz o mar (Is 23,4 ) .
E se queres saber a razão, ouve-a.

3.
Para conseguir coisas pequenas, percorre-se longo cami­
nho; para a vida eterna, muitos mal erguem um pé do chão.
Procura-se um ganho vil : por uma só moeda discute-se
vergonhosamente muito tempo, por uma coisa vã e uma pe­
quena promessa não se teme a fadiga de dia e de noite, mas,
oh ! vergonha, pelo bem insubstituível, pelo prémio sem
preço, pela maior honra e pela glória sem fim tem-se pre­
guiça de tentar o mínimo esforço.
Por isso, cora, servo indolente e queixoso, porque há pes­
soas mais prontas para a sua perda do que tu para a vida.
Esses se alegram mais pela vaidade do que tu pela
verdade.
Contudo, muitas vezes são enganados na sua esperança;
mas a minha promessa não falta a ninguém, nem deixa de
mãos vazias o que confia em mim.
Darei aquilo que prometi, cumprirei o que disse: mas só
para quem permanecer fiel ao meu amor até ao fim.
Eu sou o remunerador de todos os bens, aquele que expe­
rimenta todos os fiéis.

4.
Grava as minhas palavras no teu coração e considera-as
diligentemente: serão, na verdade, bem necessárias na hora
da tentação.
O que não compreendes, quando lês, conhecê-lo-ás no
dia da minha visita .

116 ]
Costumo visitar os meus escolhidos de duas formas: na
tentação e na consolação.
E dou-lhes todos os dias duas lições: uma, repreendendo
os seus vícios; outra, exortando-os a crescerem em virtudes.
O que possui a minha palavra e a despreza, terá quem o
julgue no último dia (]o 1 2,47-4 8 ) .

5.

Oração para implorar a graça da devoção.

DISCÍPULO - Senhor, meu Deus, Tu és todo o meu bem.


Deus, Tu és todo o meu bem.
E quem sou eu para que ouse falar-te ?
Sou o mais pobre dos teus servos, e um abj eto verme da
terra, muito mais pobre e desprezível do que me sei ou ouso
dizer.
Contudo, lembra-te, meu Deus, de que nada sou, nada
tenho e nada posso.
Só Tu és bom, j usto e santo; só Tu podes tudo, tudo dás e
tudo cumpres, e só o pecador deixas vazio.
Lembra-te das tuas misericórdias ( Sl 25 [24] , 6 ) e enche o
meu coração com a tua graça, Tu que não queres que as tuas
obras sej am ocas.
Como me poderei aguentar nesta pobre vida, se me não
confortares com a tua misericórdia e a tua graça ?
Não afastes de mim a tua face (Sl 27[26] , 9 ) , não adies a
tua visita, não a fastes a tua consolação : para que s e não
torne a minha alma como a terra sem água ( Sl 1 43 [ 1 42] , 6 ) .
Senhor, ensina-me a fazer a tua vontade ( ibid. , 1 0 ) , en­
sina-me a manter-me diante de ti de modo digno e humilde:
porque Tu és a minha sabedoria, Tu me conheces verdadei­
ramente e sempre me conheceste, antes que o mundo exis­
tisse e que eu existisse no mundo.

[ 117
IV

Que se deve viver diante de Deus na verdade e na humildade

1.
CRISTO - Filho, caminha diante de mim na Verdade e
procura-me sempre na simplicidade do teu coração.
Aquele que caminha diante de mim na Verdade será se­
guro de quaisquer ataques, e a verdade o libertará das sedu­
ções e das calúnias dos maus.
Se a Verdade te libertar, serás verdadeiramente livre, e
não te interessarão as vãs palavras dos homens.
DISCÍPULO - Senhor, é verdade.
Como dizes, que assim se faça comigo.
Que a tua verdade me ensine, que ela me guarde e me
mantenha até à salvação final.
Que ela me liberte de toda a má afeição ou desordenado
amor: e caminharei contigo com grande liberdade de coração.

2.
CRISTO - E u t e ensinarei, diz a Verdade, aquilo que é
reto e que me agrada.
Pensa nos teus pecados com grande desagrado e tristeza,
e nunca te j ulgues grande por causa das tuas boas obras .
Pois que, na verdade, és pecador, suj eito a muitas paixões
e enredado nelas.
Por ti só, sempre tendes para o nada : depressa cais,
depressa és vencido, depressa te perturbas e desanimas.
Não tens nada de que te possas glorificar, mas muito por
que te deves desprezar: porque és muito mais fraco do que
consegues perceber.

118 ]
3.
Portanto, que nada te pareça grande de tudo q uanto
fazes. Que nada te pareça grande, nada precioso e admirá­
vel, nada digno de louvor, nada elevado, nada verdadeira­
mente louvável e desej ável, a não ser o que é eterno.
Que te agrade, acima de tudo, a Verdade eterna; e que
sempre te desagrade a tua extrema baixeza.
Nada temas, nada censures e fuj as mais que os teus vícios
e pecados, que te devem desagradar acima de todos os danos
do mundo.
Há quem não caminhe diante de mim com sinceridade;
mas, levados pela curiosidade e pelo orgulho, querem conhe­
cer os meus segredos e compreender as coisas elevadas de
Deus, desprezando-se a si e à sua salvação.
Estes caem muitas vezes em grandes tentações e pecados
pela sua soberba e curiosidade, pois que Eu me afasto deles.

4.
Teme os j uízos de Deus, treme da ira do Omnipotente.
Não queiras examinar as obras do Altíssimo, mas sim
perscrutar as tuas iniquidades: em quantas coisas pecaste,
quantos bens desprezaste.
Muitos põem toda a sua devoção nos livros, outros nas
imagens, outros ainda nas figuras e sinais exteriores.
Muitos têm-me na boca, mas pouco no coração.
Outros há que, iluminados no seu espírito e purificados
no seu coração, desej am sempre as coisas eternas, escutam
com pesar as deste mundo, e cuidam das necessidades da sua
natureza de mau grado: e estes sentem que o Espírito de ver­
dade fala neles; pois que os ensina a desprezar as coisas ter­
renas e a amar as do Céu, a abandonar o mundo e a desej ar
o Céu dia e noite.

[ 119
V

Do admirável efeito do amor divino

1.
DISCÍPULO - Eu te bendigo, Pai do Céu, Pai do meu
Senhor Jesus Cristo: porque te dignaste lembrar de mim, que
sou pobre.
Pai das misericórdias, Deus de toda a consolação (2Cor
1 , 3 ) , eu te dou graças, porque por vezes me alegras com
a tua consolação, a mim, que sou indigno de toda a con­
solação.
Eu te bendigo sempre e te glorifico, com o teu Filho uni­
génito e o Espírito Santo Paráclito, pelos séculos dos séculos.
Oh, Senhor meu Deus, meu santo amor, quando vieres ao
meu coração, todo o meu ser exultará.
Tu és a minha glória ( Sl 3 ,4 ) e a alegria do meu coração
( Sl 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 1 1 ) .
Tu és a minha esperança e o meu refúgio no dia da minha
tribulação (Sl 5 9 [5 8 ] , 1 7) .

2.
Mas, porque ainda sou fraco n o amor e imperfeito n a vir­
tude, preciso de ser confortado e consolado por ti.
Assim, visita-me mais vezes e instrui-me com santas disci­
plinas, liberta-me das más paixões e cura o meu coração de
todas as a feições desregradas; para que, curado interior­
mente e purificado, me tome apto para amar, forte para
sofrer, seguro para perseverar.

1 20 ]
3.
Grande coisa é o amor, bem acima de todos os outros
bens, que só por si torna leve tudo o que é pesado e suporta
com igualdade toda a desigualdade.
Carrega o peso sem peso e torna tudo o que é amargo em
doce e saboroso.
O nobre amor de Jesus impele para as grandes obras e
excita para os desej os sempre mais perfeitos.
O amor quer estar no alto e não ser retido por quaisquer
coisas inferiores.
O amor quer ser livre e alheio a toda a afeição humana :
para que não sej a impedido o seu olhar interior, nem sej a
sustido por quaisquer embaraços do mundo ou derrotado
pelas dificuldades.
Nada é mais doce que o amor, nada mais forte, mais ele­
vado, mais amplo, mais alegre, mais pleno e melhor no Céu
e na Terra: porque o amor nasceu de Deus e não pode, a não
ser em Deus, repousar sobre todas as criaturas.

4.
Aquele que ama, voa, corre e alegra-se, é livre e não está
preso.
Dá tudo por tudo e tem tudo em tudo: porque repousa na
coisa que é elevada entre todas, da qual se derrama e pro­
cede o bem.
Não olha ao que é dado, mas, acima de todo o bem, olha
aquele que dá.
O amor não conhece medida, mas, fervendo, ultrapassa
toda a medida.
O amor sente a carga, não calcula os esforços, tenta mais
d o que pode, não se prende com a s dificuldades: porque
tudo lhe parece possível e permitido.

[ 1 21
E, por isso, pode tudo e empreende muitas coisas, conse­
gue onde o que não ama perde as forças e sucumbe.

5.
O amor vigia e, dormindo, não adormece, fatigado, não
se cansa, apertado, não se prende, atemorizado, não se per­
turba: mas, tal como a chama viva e o facho ardente, rompe
para o alto e tudo atravessa com segurança.
Se alguém ama, conhece este grito.
Grande é o clamor aos ouvidos de Deus da alma que,
abrasada de amor, diz: ó meu Deus e meu amor ! És todo
meu e eu todo teu !

6.
Dilata-me no amor, para que a boca do meu coração
prove como é doce amar, e fundir-se, e perder-se no amor.
Que o amor me prenda, me erga acima de mim próprio
pelo assombro da sua força . Que eu cante um cântico de
amor, que eu te siga, ó meu Amado, nas alturas; que a minha
alma, ao louvar-te, desfaleça, rej ubilando de amor.
Que te ame mais que a mim próprio, e só a mim por ti, e
em ti a todos os que verdadeiramente te amam, como manda
a lei de amor que de ti brilha.

7.
O amor é rápido, sincero, piedoso, alegre e ameno, forte,
paciente, fiel, prudente, constante, coraj oso, e nunca se pro­
cura a si próprio.
Pois quando alguém se procura a si próprio, decai no
amor.
O amor é discreto, humilde e reto; não procura as coisas
brandas, ligeiras e vãs; é sóbrio, puro, estável, tranquilo e
pronto a guardar todos os sentidos.

1 22 ]
O amor é submisso e obediente aos superiores, para si vil
e desprezível, mas dedicado a Deus e agradecido, confiante e
sempre nele esperando, mesmo quando não o sente; porque
não se vive no amor sem sofrimento.

8.
Quem não está preparado para sofrer tudo e para se
abandonar à vontade do seu Amado, não é digno de ser cha­
mado amigo.
É preciso que aquele que ama a brace de boa vontade,
pelo seu amor, tudo o que é duro e amargo, e que nem a
adversidade o possa separar dele.

[ 1 23
VI

Da prova do verdadeiro amigo

1.
CRISTO - Filho, não és ainda um amigo firme e prudente.
DISCÍPULO - Porquê, Senhor ?
CRISTO - Porque, por qualquer pequena contrariedade,
desistes do que começaste e procuras consolação com avidez.
O amigo firme aguenta-se nas tentações e não crê nas
doces persuasões do inimigo,
Tal como lhe agrado nos dias bons, também lhe não desa­
grado nos maus.

2.
O de amor prudente n ã o s e importa tanto com o dom
como com o amor do que dá.
A afeição comove-o mais do que o tributo, e põe todas as
dádivas abaixo do Amado.
O que ama com nobreza não fica na dádiva, mas em
mim, acima de toda a dádiva.
Mas nem tudo está perdido se, às vezes, me tens menos
amor, a mim ou aos meus santos, do que quererias.
Aquele bom e doce afeto que às vezes sentes é o efeito da
presença da graça e como que um antegosto da pátria do Céu.
Não te deves apoiar muito nele, porque vai e vem.
Mas combater os movimentos desordenados do espírito e
desprezar as solicitações do demónio é sinal de virtude e de
grande mérito.

1 24 ]
3.
Que não te perturbem, pois, estranhas fantasias de qual­
quer espécie que sej am.
Mantém um firme propósito e uma reta intenção para
com Deus.
Não é ilusão se, de vez em quando, és subitamente arre­
batado em êxtase e voltas de repente às habituais loucuras
do coração.
Na verdade, és mais obj eto delas que suj eito, e enquanto
te desagradam e lhes resistes tens mérito, e não perdição.

4.
Sabe que o velho inimigo se esforça unicamente por im­
pedir o teu desej o do bem e por te afastar de qualquer exer­
cício piedoso: do culto dos santos, da piedosa lembrança da
minha paixão, da útil recordação dos teus pecados, da
guarda do teu próprio coração e do firme propósito de avan­
çar na virtude.
Introduz-te muitos pensamentos maus para te causar
tédio e horror, para te afastar da oração e da leitura sagrada.
Desagrada-lhe a confissão humilde; e, se o conseguisse,
afastar-te-ia até da comunhão .
Não o creias nem lhe dês ouvidos, ainda que muitas vezes
te estenda laços enganadores.
Atribui-lhe todos os maus e impuros pensamentos.
Diz-lhe: vai-te, espírito imundo, cora, miserável; és real­
mente imundo para que tais coisas digas aos meus ouvidos.
Afasta-te de mim, terrível sedutor: não terás em mim
parte alguma; mas Jesus estará comigo, como um guerreiro
forte, e tu serás confundido.
Antes morrer e suportar todo o sofrimento, do que con­
sentir em ti.

[ 1 25
Cala -te e emudece : não mais te ouvirei , ainda que me
importunes .
O Senhor é a m inha l u z e a minha salvação: a quem
temerei?
Se os exércitos se formarem contra mim, não temerá o
meu coração ( Sl 2 7[26] , 1 -3 ) .
O Senhor é o meu auxílio e o meu redentor (Sl 1 9 [ 1 8] , 1 5 ) .

5.
Combate como um bom soldado: e se alguma vez caíres,
por tua fraqueza, j unta todas as tuas forças e confia ainda
mais na minha graça, e teme a vã complacência e a soberba.
Por isso muitos são levados ao erro e caem por vezes
numa cegueira quase incurável.
Que esta ruína dos soberbos que loucamente presumem
de si te sej a causa de cuidado e de permanente humildade.

126 ]
VII

De como se deve ocultar a graça à guarda da humildade

1.
CRISTO Filho, é-te mais útil e mais seguro esconderes a
-

graça da devoção, não te elevares, não falares muito nisso e


não a considerares demasiado, mas antes desprezares-te
ainda mais, e temeres um dom de que és indigno.
Não nos devemos apegar fortemente a esta afeição, que
bem depressa se pode transformar noutra contrária.
Pensa, quando estiveres em graça, como és infeliz e fraco
sem ela .
O progresso da vida espiritual não está tanto em sentires
a consolação da graça, mas em sofreres humilde, abnegada e
pacientemente a sua ausência : para que não ponhas de lado
o esforço da oração, nem te dissipes, abandonando os traba­
lhos que tens ha bitualmente de fazer; mas, como melhor
puderes e compreenderes , faz de boa vontade tudo o que
conseguires, e não te descures inteiramente por causa da
aridez ou da ansiedade de espírito que sentes.

2.
Há, n a verdade, muitos que, quando a s coisas lhes não
correm bem, logo se tornam impacientes e preguiçosos.
Porém, nem sempre o caminho do homem está no seu
poder (Jr 1 0,23 ) , mas a Deus pertence dar e consolar, quan­
do quer, quanto quer e a quem quer, tal como lhe agrada, e
nada mais.

[ 1 27
Alguns imprudentes se perderam pela própria graça da
devoção : pois que quiseram fazer mais do que puderam, não
atentos à sua pequenez, mas seguindo mais o seu desej o do
que o j uízo da razão.
E porque aspiraram mais do que aquilo que a Deus agra­
dou, por isso mesmo depressa perderam a graça.
Tornaram-se fracos e pobres abandonados, que fizeram o
seu ninho no céu; para que, humilhados e empobrecidos,
aprendam a não querer voar pelas suas próprias asas, mas a
pôr a sua esperança ao abrigo das minhas.
Aqueles que ainda são novos e inexperientes no caminho
do Senhor, e se não regulam pelo conselho dos prudentes,
facilmente podem ser enganados e quebrados.

3.
Pois que, s e querem seguir mais a sua opinião d o que
acreditar nos que têm mais experiência, o resultado ser-lhes­
-á perigoso, se não quiserem abdicar do seu próprio pen­
samento .
Raramente os que são sábios aos seus próprios olhos se
deixam conduzir humildemente pelos outros. É melhor saber
pouco com humildade e pequena inteligência, do que pos­
suir os grandes tesouros das ciências e deleitar-se consigo.
É melhor para ti teres pouco, do que muito de que te
possas orgulhar.
Não age com muito acerto aquele que se entrega todo à
alegria, esquecendo-se da sua antiga fraqueza e do puro
temor de Deus que receia perder a graça concedida.
E também não é muito virtuoso o que desespera no
tempo da adversidade e do sofrimento, e não tem em mim a
confiança que deveria ter.

128 ]
4.
Aquele que quer estar bem seguro em tempo de paz, en­
contra-se, muitas vezes, em tempo de guerra bem abatido e
cobarde.
Se soubesses manter-te humilde e modesto, moderar e
governar bem o teu espírito, não cairias tão depressa no
perigo e no pecado.
É um bom princípio que, enquanto sentes fervor de espí­
rito, medites no que acontecerá quando a luz se esconder.
Assim, quando ela se for, pensa que a luz pode voltar de
novo e que só ta tirei durante um tempo para minha glória e
para tua prudência.

5.
À s vezes é mais útil tal provação do que se tudo corresse
à tua vontade.
Pois que os méritos não devem ser avaliados por quem
tenha maior número de visões ou de consolações, ou por
quem sej a perito nas Escrituras, ou colocado em mais ele­
vada posição, mas sim em quem for firmado na verdadeira
humildade e cheio de caridade divina, se procurar sempre
com pureza e lealdade honrar a Deus, se se tiver a si próprio
como nada e se em verdade se desprezar, alegando-se em ser
desprezado e humilhado pelos outros, mais do que em ser
honrado.

[ 1 29
VIII

Da pouca estima de si na presença de Deus

1.
DISCÍPULO Falarei ao meu Senhor, embora não seja
-

mais que pó e cinza ( Gn 1 8 ,27).


Se me j ulgar alguma coisa mais, eis que te ergues contra
mim e que as minhas iniquidades dão um testemunho verda­
deiro que não posso contradizer.
Se, porém, me tiver por nada e a nada me reduzir, se me
despoj ar de toda a estima por mim próprio e, tal como sou,
me reduzir a pó, será em mim propícia a tua graça e a tua
luz próxima ao meu coração; então toda a estima por mim
próprio, por mais pequena que sej a, submergirá no abismo
do meu nada e desaparecerá para sempre.
Aí me mostras o que sou, o que fui e donde vim: porque
não sou nada, e não o sabia .
Se me abandono a mim próprio, eis que nada sou, senão
fraqueza.
Mas se, de súbito, me olhares, logo me tornarei forte e
encherei de nova alegria.
E enche-me de espanto ser de repente por ti assim elevado
e abraçado, eu, que sempre sou arrastado pelo meu próprio
peso para os lugares mais baixos.

2.
É o teu amor que faz isto, que gratuitamente m e acode e
me ajuda em tantas necessidades, que me guarda de grandes
perigos e que me arranca, na verdade, a inumeráveis males.

130 ]
Pois que, amando-me mal, me perdi; procurando-te a ti
somente e amando-te, te encontrei e me encontrei, e, por esse
amor, mais profundamente me reduzi ao nada que sou.
Porque Tu, ó doce Senhor, me fazes bem mais do que eu
mereço, e mais do que eu ousaria esperar ou pedir.

3.
Bendito sej as, meu Deus, porque, embora sej a indigno de
todos os bens, a tua nobreza e infinita bondade nunca
cessam de fazer bem aos ingratos e aos que se afastaram
para longe de ti.
Conduz-nos para ti, para que sejamos agradecidos, hu­
mildes e piedosos: porque Tu és a nossa salvação, nossa vir­
tude e fortaleza.

[ 131
IX

Que se devem atribuir a Deus,


como fim último, todas as coisas

1.
CRISTO - Filho, Eu devo ser o teu fim supremo e último,
se verdadeiramente desej as ser feliz.
Nesta intenção se purificará o teu afeto, mais frequente­
mente inclinado para si próprio e para as criaturas .
N a verdade, se t e procuras em qualquer coisa, depressa
secas e te desencoraj as.
Atribui, pois, principalmente a mim todas a s coisas,
porque Eu sou quem tudo deu.
Considera cada coisa como derivada do sumo bem: por
isso é a mim, como sua origem, que tudo deve remontar.

2.
D e mim, o pequeno e o grande, o pobre e o rico, como da
fonte viva, tiram a água viva : e os que livre e voluntaria­
mente me servem recebem graça por graça.
Mas o que quiser ser glorificado sem mim, ou deleitar-se
em qualquer bem pessoal, não será firmado na verdadeira
alegria , nem dilatado em seu coração, mas por muitas
formas será embaraçado e apertado.
Portanto, não deves referir a ti próprio nada de bom, nem
atribuas a nenhum homem a sua virtude; mas tudo dá a
Deus, sem o qual o homem nada tem.

1 32 ]
Eu dei tudo: quero, pois, tudo reaver, e exijo com grande
rigor ações de graças.

3.
É esta a verdade, pela qual é dissipada a vaidade da
glória.
Se a graça do Céu e a verdadeira caridade estiverem pre­
sentes, não haverá lugar para qualquer invej a ou estreiteza
de coração, e o amor-próprio não existirá.
A caridade divina vence tudo e dilata todas as forças da
alma.
Se és reto, só em mim te alegrarás, só em mim esperarás:
pois não há ninguém bom senão D eus ( Lc 1 8 , 1 9 ) , o qual
deve ser louvado sobre todas as coisas e em todas bendito.

[ 1 33
X

Que é doce servir a Deus, desprezando o mundo

1.
DISCÍPULO - Agora falarei de novo, Senhor, e não me
calarei: direi aos ouvidos do meu Deus, do meu Senhor e
meu Rei que está nos Céus: oh, como é grande a abundância
da tua doçura, Senhor, que escondeste para os que te temem!
( SI 3 1 [ 3 0 ] ,20 ) .
O que Tu é s para o s que te amam, para o s que te servem
de todo o coração !
É, na verdade, inefável a doçura da tua contemplação,
que aos que te amam dás.
Mais do que em tudo o resto, me mostraste a doçura do
teu amor por me teres criado, quando não existia, por me
teres atraído a ti para que te servisse, quando longe de ti
vagueava, e por me teres ordenado que te amasse.

2.
Ó fonte d o amor eterno !
Que direi de ti ?
Como te poderei esquecer, a ti, que te dignaste recordar
de mim, enfraquecido e morto ?
Usaste, para além de toda a esperança, de misericórdia
para com o teu servo, e, para além de todo o merecimento,
mostraste graça e amizade.
Que te retribuirei por esta graça ?
Na verdade, nem a todos é dado que, abandonadas todas
as coisas, renunciem ao mundo e professem a vida monástica.

1 34 ]
Acaso é muito que eu te sirva, a ti, a quem toda a criatura
deve servir ?
Não deve parecer-me grande servir-te, mas muito maior e
mais admirável me parece que te dignes receber um servidor
tão pobre e indigno e j untá-lo aos servidores que amas.

3.
Eis que é teu tudo quanto tenho e em que te posso servir.
Contudo, ao contrário, Tu me serves mais a mim do que
eu a ti.
Eis que o Céu e a Terra, que criaste em serviço do
homem, estão presentes, e todos os dias cumprem o que lhes
mandaste.
E ainda isto é pouco: porque até mesmo os anjos prepa­
raste em serviço dos homens.
Ultrapassa, porém, isto tudo que Tu próprio te dignasses
servir o homem e tivesses prometido entregar-te a ele.

4.
Que te darei em troca destes milhares de bens ?
Oxalá pudesse servir-te em todos os dias da minha vida !
Oxalá pudesse servir-te dignamente num só dia !
Tu és verdadeiramente digno de todo o serviço, de toda a
honra e de louvor eterno.
Tu és verdadeiramente o meu Senhor, e eu o teu pobre
servo, que te deve servir com todas as forças e nunca se
cansar de publicar os teus louvores.
Assim quero, assim desej o; e que te dignes, Tu, remediar
a tudo o que me falta .

5.
Grande honra, grande glória é servir-te e tudo desprezar
por ti.

[ 1 35
Grande graça possuirão os que, de sua livre vontade, se
submeterem à tua santíssima servidão.
Encontrarão a tão suave consolação do Espírito Santo
aqueles que, por teu amor, deixarem todo o prazer da carne.
Conseguirão grande liberdade de espírito aqueles que,
pelo teu nome, entrarem no caminho estreito e abandona­
rem toda a preocupação humana.

6.
Oh, grata e alegre servidão de Deus, que verdadeiramente
torna o homem livre e santo !
Oh, sagrado estado do religioso, que torna o homem
igual aos anj os, agradável a Deus, temível aos demónios,
louvável para todos os fiéis !
Oh, ocupação digna de ser abraçada e sempre preferida,
porque merece o supremo bem e alcança a alegria que há de
durar para sempre !

136 ]
XI

Que se devem examinar e moderar os desejos do coração

1.
CRISTO - Filho, tens ainda muito que aprender, muito
que ainda não sabes bem.
DISCÍPULO - O quê, Senhor ?
CRISTO - A pôr o teu desej o inteiramente conforme ao
que me agrada, e a não gostar tanto de ti próprio; mas, sim,
a desej ar ardentemente a minha vontade.
Muitas vezes ardem em ti os desej os e empurram-te com
força : mas pensa se és movido mais pela minha honra, se
pela tua comodidade.
Se sou Eu a causa, estarás sempre satisfeito, sej a o que for
que Eu te ordene.
Mas se se esconde em ti qualquer busca de ti próprio, isso
é o que te embaraça e te pesa.

2.
Teme, pois, apoiar-te demasiadamente sobre qualquer
desej o preconcebido, sem me consultares: não vás depois
arrepender-te ou aborrecer-te do que primeiro te agradou e
tiveste como melhor.
Na verdade, nem toda a afeição que parece boa deve ser
imediatamente seguida; tal como se não deve fugir logo de
início a toda a afeição que nos repugne.
Convém, por vezes, ser moderado, até nos bons interes­
ses e desej os, para que, por indiscrição, não incorras na dis-

[ 137
tração do teu espírito, nem dês, por indisciplina, escândalo
aos outros; ou, então, para que, pela oposição dos outros,
não te perturbes nem abatas de repente

3.
Convém, assim, usar de violência e contrariar coraj osa­
mente o desej o dos sentidos, não se preocupando com o que
quer ou não quer a carne, mas procurando antes que,
mesmo contra vontade, ela se submeta ao espírito.
E deve ser castigada e obrigada a submeter-se à servidão
até que estej a preparada para tudo, que aprenda a conten­
tar-se com pouco e a deleitar-se com coisas simples, e ainda
a não murmurar por qualquer contrariedade.

138 ]
XII

Da prática da paciência e da luta contra os maus desejos

1.
DISCÍPULO - Senhor Deus, como vej o , a paciência
é-me muito necessária; pois que nesta vida há muitas con­
trariedades.
Na verdade, por mais que eu disponha as coisas para
conseguir a paz, a minha vida não pode ser sem luta, e sem
dor.

2.
CRISTO - Assim é , filho.
Mas sou Eu que quero que tu não procures essa paz
isenta de tentações ou de contrariedades, mas sim que só
j ulgues ter encontrado a paz depois de teres sido experi­
mentado por várias tentações e provado em muitas con­
trariedades .
Se disseres que não podes sofrer tanto, como suportarás
então o fogo do Purgatório ?
De dois males, deve escolher-se sempre o menor.
Assim, para poderes fugir dos futuros suplícios eternos,
procura suportar de bom ânimo, por Deus, os males presen­
tes. Acaso j ulgas que os homens do mundo têm pouco ou
nada que sofrer ?
Tal não encontrarás, nem mesmo nos que te parecerem
especialmente protegidos.

[ 1 39
3.
Mas esses têm, dirás tu, muitos prazeres e seguem as suas
vontades: por isso pouco lhes pesam as tribulações.

4.
Está bem que assim sej a : têm aquilo que querem. Mas
quanto tempo j ulgas que isso durará ?
Eis que os ricos deste mundo se desvanecerão como o
fumo ( Sl 3 7 [ 3 6 ] , 2 0 ) e não ficará qualquer lembrança das
suas alegrias passadas.
Mas, mesmo enquanto vivem, não repousam sem amar­
gura, sem tédio ou sem temor.
E assim, onde imaginavam ter prazer, frequentemente
encontram o castigo do sofrimento.
E é j usto, visto que procuram e seguem os prazeres desor­
denadamente, que não os s atisfaçam sem humilhação e
amargura.
Oh, como esses prazeres são breves, falsos, desregrados e
vis ! Contudo, pela sua embriaguez e cegueira, não o com­
preen dem, mas, como mudos animais, causam a morte da
alma por um pequeno deleite duma vida que acaba.
Por isso tu, filho, não vás atrás das tuas concupiscências e
liberta-te da tua vontade ( Sir 1 8 ,30) .
Deleita-te no Senhor: e Ele dar-te-á o que o teu coração
lhe pedir ( Sl 3 7 [ 3 6] ,4 ) .

5.
Mas, se realmente quiseres ser alegrado e abundante­
mente consolado por mim, eis que no desprezo de todas as
coisas do mundo e no corte de todas as más paixões estará a
tua bênção e a tua grande consolação.
E quanto mais te subtraíres a qualquer consolação das
criaturas, tanto mais suaves e fortes consolações encontrarás.

1 40 ]
Mas não as alcançarás, de princípio, sem alguma tristeza
e esforço de combate.
Se um mau hábito te resistir, com um outro melhor o
vencerás.
Se a carne se queixar, o fervor do espírito a dominará.
Se a antiga serpente te instigar e te provocar, a oração a
afastará e, além disso, entregando-te a um trabalho útil lhe
impedirás a passagem.

[ 1 41
XIII

Da obediência do humilde, a exemplo de Jesus Cristo

1.
CRISTO - Filho, quem procura subtrair-se à obediência,
logo se subtrai à graça.
E quem quer possuir sozinho qualquer coisa, perde o que
é comum a todos.
O que não se submete livremente e por sua própria von­
tade ao seu superior, é porque a sua carne ainda lhe não obe­
dece perfeitamente, e recalcitra e murmura muitas vezes.
Aprende, pois, a submeter-te prontamente ao teu supe­
rior, se pretendes dominar a tua carne.
Pois que o inimigo exterior é vencido mais depressa se o
homem não estiver interiormente dividido.
Não há mais prejudicial nem pior inimigo da alma do que
tu próprio, se não estás bem conforme ao teu espírito.
É preciso que por todas as formas te revistas do verda­
deiro desprezo de ti mesmo, se queres prevalecer contra a
carne e o sangue.
É porque ainda te amas desordenadamente que tens
medo de te resignar plenamente à vontade dos outros.

2.
Mas que há d e especial e m que tu, que é s p ó e nada, por
Deus te submetas ao homem, quando Eu, Omnipotente e
Altíssimo, que tudo criei do nada, me submeti ao homem,
humildemente, por ti ?

1 42 ]
Fiz-me o mais humilde e pequeno de todos, para que ven­
cesses o teu orgulho pela minha humildade.
Aprende a obedecer, tu, que és pó: aprende a humilhar­
-te, terra e lodo, e a curvar-te sob os pés de todos.
Aprende a quebrar a tua vontade e a entregar-te a toda a
su1 e1çao.

3.
Inflama-te contra ti, não deixes que em ti viva o orgulho;
mas mostra-te humilde e pequeno para que todos possam
caminhar sobre ti e pisar-te como à lama dos caminhos ( Sl
1 8 [ 1 7] ,43 ) .
D e que tens d e te queixar, homem sem nada ?
Que tens, vil pecador, a retorquir aos que te censuram, tu,
que tantas vezes ofendeste a Deus e outras tantas mereceste
o Inferno ?
Mas o meu olhar perdoou-te, porque a tua alma foi pre­
ciosa diante de mim; para que conhecesses o meu amor e
fosses sempre agradecido pelo bem que te fiz, para que te
entregasses à verdadeira suj eição e humildade e sofresses
com paciência o desprezo de ti próprio.

[ 1 43
XIV

Do dever de considerar os juízos ocultos de Deus


e de não nos orgulharmos do bem que fizemos

1.
DISCÍPULO - Trovej as sobre mim, Senhor, os teus j uízos,
abalas os meus ossos com temor e tremor, e a minha alma se
apavora.
Atónito, considero que os céus não são puros na tua pre­
sença (Jb 1 5 , 1 5 ) .
Se até nos anjos encontraste maldade (Jb 4, 1 8 ) e não lhes
perdoaste, que será de mim ?
Caíram as estrelas do céu (Ap 6 , 1 3 ) : e eu, que sou pó, o
que espero ?
Aqueles cuj as obras pareciam louváveis caíram ao mais
baixo, e vi os que comiam o pão dos anj o s deleitarem-se
com a comida dos porcos.

2.
Não há, pois, santidade, se retiras, Senhor, a tua mão; de
nada serve qualquer sabedoria, se deixas de a dirigir;
nenhuma fortaleza aj uda, se cessas de a aguentar; nenhuma
pureza é firme, se a não proteges; de nada serve guardarmo­
-nos sem a tua sagrada vigilância.
Abandonados, afundamo-nos e perecemos; mas, quando
nos visitas, erguemo-nos e temos vida.
Pois, se somos instáveis, por ti nos seguramos; e, se arre­
fecemos, és Tu que nos inflamas.

1 44 ]
3.
Oh, como me devo sentir humilde e abjeto !
Como devo j ulgar nada aquilo que em mim parece bom !
Oh, Senhor, como me devo submeter profundamente aos
teus j uízos impenetráveis, onde vej o bem que sou nada, nada
e só nada !
Oh, peso imenso ! Oh, mar intransponível onde me perco
de mim, como o nada no meio do todo !
Onde se esconde, então, a glóri a ? Onde a confiança na
virtude ?
Toda a vã glória é absorvida na profundidade dos j uízos
que fazes sobre mim.

4.
Que é toda a carne na tua presença ?
Acaso s e elevará o lodo contra aquele que o formou? ( Is
1 0, 1 5; 29, 1 6 ) .
Como se poderá erguer com vãs palavras aquele cuj o
coração está verdadeiramente sujeito a Deus ?
Nem o mundo inteiro conseguirá erguer aquele a quem a
verdade subj ugou; não será abalado pela boca de todos os
que o louvam aquele que firmou em Deus a sua esperança.
Pois os que falam nada são: sumir-se-ão com o som das
suas palavras; mas a verdade de D eus permanece eterna­
mente ( Sl 1 1 7[ 1 1 6] , 2 ) .

[ 1 45
XV

De como devemos falar e comportar-nos


em tudo o que desej armos

1.
CRISTO - Filho, em todas as coisas diz assim:
« Senhor, se te agradar, que isto se faça.
Senhor, se for para tua honra, que isto se faça em teu
nome.
Senhor, se achas que isto é para meu bem e que me é útil,
concede-me que o use para tua glória.
Mas se souberes que me há de ser nocivo e que me não
aproveitará à salvação da alma, então afasta de mim esse
desej o . »
Na verdade, nem todo o desej o que parece ao homem
reto e bom é desej o do Espírito Santo.
É difícil j ulgar com certeza se é um bom ou um mau espí­
rito que te impele a desej ar isto ou aquilo, ou mesmo se és
impelido pelo teu próprio espírito.
Muitos que se j ulgavam conduzidos por um bom espírito
acabaram por ser enganados.

2.
Por isso, deve-se desej ar e pedir sempre, com temor de
Deus e humildade de coração, qualquer coisa de desej ável
que venha ao espírito, e, sobretudo, pondo de lado a von­
tade, entregar-me tudo e dizer:

1 46 ]
« Senhor, Tu sabes o que é melhor: faça-se isto ou aquilo
conforme quiseres.
Dá o que queres, quanto queres, quando queres.
Faça-se comigo como achares e como mais te agradar, e
como for para tua maior honra .
Coloca-me onde quiseres e faz em mim em tudo a tua
vontade.
Estou nas tuas mãos: vira-me dum e doutro lado.
Eis que sou o teu servo, preparado para tudo, porque não
desej o viver para mim, mas para ti; oxalá o pudesse fazer
digna e perfeitamente. »

3.

Oração para cumprir a vontade de Deus.

DISCÍPULO - Concede-me, ó bom Jesus, a tua graça,


que ela esteja comigo e me trabalhe (Sb 9, 1 0 ) e que comigo
se mantenha até ao fim.
Faz com que sempre desej e e queira o que for da tua von­
tade e mais te agrade.
Que a tua vontade sej a a minha, e que a minha sempre
siga e se conforme à tua.
Que o meu querer e não querer sej am os teus, e que não
possa querer ou não querer alguma coisa, senão o que Tu
queres ou não queres.
Concede-me que morra para tudo o que é do mundo e
que, por teu amor, sej a desprezado e desconhecido na Terra.
Faz com que o meu maior desej o sej a descansar em ti e
em ti pacificar o meu coração.
Só Tu és a paz do coração; só Tu és o descanso: fora de ti
tudo é duro e inquieto.
Nesta paz - ou sej a, em ti, único Bem, supremo, eterno -
dormirei e terei o meu descanso (Sl 4,9 ) . Ámen.

[ 1 47
XVI

Que só em Deus se deve buscar a verdadeira consolação

1.
DISCÍPULO - Tudo o que posso desej ar ou pensar para
minha consolação, não o espero aqui, mas no futuro.
Porque, se possuísse, sozinho, todas as consolações do
mundo e pudesse gozar de todas as delícias, certo é que não
poderiam durar muito.
Por isso não poderás, ó minha alma, ser inteiramente
consolada, nem totalmente alegrada, senão em Deus, conso­
lador dos pobres e acolhedor dos humildes.
Espera um pouco, ó minha alma, espera a promessa di­
vina: e terás no Céu abundância de todos os bens .
Se avidamente desej as os bens presentes, perderás os bens
eternos, os do Céu.
Usa as coisas da Terra, mas desej a só as eternas.
Não podes saciar-te com qualquer bem temporal, pois
não foste criada para eles.

2.
Assim, s e possuísses todos o s bens criados, não poderias
ser feliz e bem-aventurada; mas toda a tua bem-aventurança
e felicidade consiste em Deus, que tudo criou, não como a
veem e louvam os loucos que amam o mundo, mas como a
esperam os bons fiéis de Cristo e a antegozam por vezes as
almas espirituais e puras, cuja vida está nos Céus (Fl 3 ,20 ) .
Toda a consolação humana é v ã e breve.

1 48 ]
Feliz e certa é a que a Verdade faz sentir interiormente.
O homem piedoso, para onde quer que vá, leva consigo
o seu consolador, Jesus, e diz-lhe:
« Sê comigo, Senhor Jesus, em todos os lugares e tempos.
Isto me sej a consolação: livremente, não querer qualquer
consolação humana.
E, se até a tua consolação me faltar, que a tua vontade e
essa j usta prova sej am a minha suprema consolação.
Porque não estarás irado para sempre, nem ameaçarás
eternamente ( SI 1 03 [ 1 02 ] ,9 ) . »

[ 1 49
XVII

Que se deve entregar a Deus todo o cuidado

1.
CRISTO - Filho, deixa-me fazer de ti aquilo que quero,
pois Eu sei o que te convém.
Tu pensas como homem e sentes muitas coisas segundo o
afeto humano.
DISCÍPULO - Senhor, é verdade o que dizes.
É maior o teu cuidado do que toda a preocupação que eu
possa ter por mim próprio.
Bem pouco firme está, pois, aquele que a ti não entrega
todo o seu cuidado.
Senhor, contanto que a minha vontade se mantenha reta e
firme em ti, faz de mim o que mais te agradar.
Porque não pode existir qualquer bem, além do que me
fizeres.
Se queres que eu este j a nas trevas, sê bendito; e se me
queres na luz, bendito sej as, Senhor.
Se te dignares consolar-me, sê bendito; mas se me queres
a sofrer, bendito sej as para sempre.

2.
CRISTO - Filho, assim t e deves manter, s e desej as cami­
nhar comigo.
Tão pronto para sofrer como para ter alegria; tão livre
em ser fraco e pobre como rico e cheio de abundância.

1 50 ]
DISCÍPULO - Senhor, sofrerei de boa vontade por ti o
que quiseres que sobre mim desça.
Quero, indiferentemente, da tua mão, receber o bom e o
mau, o doce e o amargo, o alegre e o triste, e dar-te graças
por tudo o que me aconteça.
Guarda-me de todo o pecado, e não temerei a morte nem
o Inferno.
Conquanto não me queiras repelir para sempre ( Sl 77
[76] , 8 ) , nem risques o meu nome do livro da vida ( Ap 3 , 5 ) ,
nenhuma tribulação m e prej udicará.

[ 1 51
XVIII

Que se devem suportar de boa vontade


todos os males deste mundo,
a exemplo de Cristo

1.
CRISTO - Filho, Eu desci do Céu para tua salvação, car­
reguei todas as tuas misérias, não por necessidade, mas por
caridade, para que aprendesses a paciência e soubesses
suportar todos os males deste mundo.
Na verdade, desde a hora em que nasci até à morte na
cruz, nunca a dor me abandonou.
Sofri toda a falta das coisas deste mundo; ouvi muitos
que se queixavam de mim; suportei de bom ânimo as humi­
lhações e as infâmias; pagaram-me com ingratidão o bem
que fiz, com blasfémias, os milagres, com inj úrias, a dou­
trina .

2.
DISCÍPULO - Senhor, porque foste paciente em tua vida,
cumprindo nisto, perfeitamente, o que teu Pai te pedia, é
j usto que eu, miserável pecador, me aguente com paciência,
segundo a tua vontade, e que, enquanto o quiseres, carregue,
para minha salvação, o peso da vida corruptível.
Pois, ainda que se ache pesada a vida presente, ela
tornou-se, contudo, por tua graça, bem cheia de merecimen­
tos e, pelo teu exemplo e o dos teus santos, tolerável e pre­
ciosa; além disso, ela é ainda bem mais cheia de consolações

1 52 ]
do que o fora na antiga Lei: pois que a porta do Céu estava
fechada e o caminho para lá era mais escuro; poucos se
preocupavam em alcançar o Reino dos Céus, e nem os que
eram j ustos e se deviam salvar lá podiam entrar antes da tua
paixão e do tributo da tua santa morte.

3.
Oh, quantas graças te devo dar, por te teres dignado mos­
trar, a mim e a todos os fiéis, o caminho direito e bom para
o teu eterno Reino !
Pois que a tua vida é nossa via e, pela santa paciência,
para ti, nossa coroa, caminhamos.
Se não nos tivesses precedido e ensinado, quem pensaria
em seguir-te ?
Ah, quantos ficariam para trás, se não olhassem os teus
admiráveis exemplos !
Mesmo agora, com todos os teus sinais e doutrinas;
somos mornos; que seria de nós, se não tivéssemos tanta luz
para te seguir ?

[ 1 53
XIX

Como tolerar as injúrias e · conhecer aquele


que tem a verdadeira paciência

1.
CRISTO Que palavras são essas, filho ? Deixa de te
-

queixar, depois de olhares a minha paixão e a dos outros


santos .
Ainda não resististe até ao sangue ( Heb 1 2,4 ) .
O que sofres é pouco em comparação com aqueles que
tanto sofreram, que tão fortemente foram tentados, tão
duramente atribulados, de tantos modos provados e experi­
mentados.
Precisas, por isso, de ter presentes os maiores sofrimentos
dos outros para melhor suportares os teus, tão pequenos.
E se não te parecem pequenos, pensa se a causa não
estará na tua impaciência.
Mas, grandes ou pequenos, procura suportá-los paciente­
mente.

2.
Quanto melhor te dispões a sofrer, tanto mais sabiamente
ages e mais mereces, e também suportas melhor os sofri­
mentos, visto que a coragem e o hábito a isso te ajudam.
Não digas: « Não consigo suportar tais coisas de tal ho­
mem; não as posso aguentar porque me fez uma grave ofen­
sa e me censura de coisas que nunca pensei; mas, doutro,
sofrê-las-ei de boa vontade, como acho dever sofrê-las . »

1 54 ]
É louco tal pensamento, pois não considera a virtude da
paciência, nem como ela há de ser recompensada, mas, pelo
contrário, tem em conta as pessoas e as ofensas feitas .

3.
Não é verdadeiramente p aciente o que não quer sofrer
senão o que lhe agrada e de quem lhe agrada .
O que tem real paciência n ã o olha a quem o faz sofrer, se
é seu superior, se é igual a si ou seu inferior, se é bom e santo,
ou se é mau e indigno; mas aceita indiferentemente tudo de
qualquer criatura todas as vezes que lhe sucede algo de mal,
e tudo recebe reconhecidamente da mão de Deus, tendo-o
como grande bem; porque, para Deus, qualquer coisa,
mesmo pequena, por amor dele sofrida, não pode deixar de
ter merecimento.

4.
Sê, pois, pronto para a luta, se queres conseguir vitória.
Não podes, sem combate, alcançar a coroa da paciência .
Se não queres sofrer, recusas-te a ganhar.
Mas, se queres ganhar, combate coraj osamente e aguenta
com paciência.
Não se alcança o repouso sem trabalho, nem sem luta se
chega à vitória.

5.
DISCÍPULO - Faça-se, Senhor, possível pela graça o que
impossível me parece pela natureza.
Sabes o pouco que posso sofrer e quão depressa desa­
nimo à mais pequena adversidade.
Faz com que eu ame e deseje qualquer sofrimento pelo
teu nome: pois sofrer e ser humilhado por amor de ti é bem
salutar à minha alma .

[ 1 55
XX

Da confissão da própria fraqueza,


e das misérias desta vida

1.
DISCÍPULO Confessarei contra mim a minha injustiça
-

( Sl 32 [3 1 ] , 5 ) , confessar-te-ei, Senhor, a minha fraqueza.


Muitas vezes, por pouca coisa me abato e torno triste.
Prometo portar-me com mais coragem, mas, assim que vem
a tentação, faz-se grande a minha angústia.
E, por vezes, é bem desprezível a coisa de que me vem a
grande tentação.
Quando me j ulgo de certo modo seguro, quando nada
sinto, dou comigo às vezes quase vencido por um ligeiro sopro.

2.
Vê, pois, Senhor, a minha pequenez e a minha fraqueza,
que em tudo encontras; tem misericórdia de mim, e arranca­
-me do lodo para que não me atole ( Sl 6 9 [ 6 8 ] , 1 5 ) e não
fique caído para sempre.
O que tantas vezes me dói e me envergonha diante de ti é
a facilidade com que caio e a minha fraqueza em resistir às
paixões.
E, embora não consinta inteiramente nelas, é-me molesto
o seu ataque, e aborreço-me de viver sempre lutando.
Por aqui bem vej o a minha fraqueza, visto que essas
loucas fantasias entram bem mais facilmente em meu espí­
rito do que dele saem.

1 56 ]
3.
Oxalá, ó forte Deus d e Israel, zelador das almas fiéis,
olhes para o sofrimento e para a dor do teu servo, e que o
assistas em todas as coisas, em tudo o que empreender.
Enche-me com a fortaleza do Céu, para que o homem
velho, a mísera carne, ainda não totalmente submetida ao
espírito, e contra a qual teremos de combater enquanto res­
pirarmos nesta triste vida, não consiga dominar.
Ah, que vida esta, onde não faltam tribulações e misérias
e onde tudo é cheio de ciladas e de inimigos ! Na verdade,
mal uma tribulação ou tentação se afasta, logo outra chega,
e está-se ainda em luta com a primeira e outras vêm, inespe­
radamente.

4.
Como se pode amar esta vida, que tantas amarguras tem,
toda suj eita a calamidades e misérias ?
Como s e lhe pode chamar vida, sendo fonte d e tantas
mortes e doenças ?
E, no entanto, ela é amada, e muitos são os que procuram
deleitar-se nela.
Censura-se frequentemente ao mundo o ser mentiroso e
vão, mas nem por isso o deixamos mais facilmente, pois
somos dominados pelo desej o da carne.
Umas coisas levam-nos a amá-lo, outras a desprezá-lo.
A amá-lo, o desejo da carne, o desejo dos olhos e o orgu­
lho da vida ( 1Jo 2, 1 6 ) ; a odiá-lo e a aborrecê-lo, as penas e
misérias que j ustamente os seguem.

5.
Mas, oh, desgosto, o mau prazer vence a alma entregue
ao mundo, e tem-se por delícia o estar sujeito aos sentidos

[ 1 57
(Jb 30, 7), pois que ela não vê nem saboreia a suavidade de
Deus e o encanto interior da virtude.
Mas os que desprezam completamente o mundo e pro­
curam viver para Deus, n a santa disciplina, não igno­
ram esta divina doçura prometida à verdadeira renúncia, e
veem claramente como erra gravemente o mundo e como é
iludido.

1 58 ]
XXI

Que se deve descansar em Deus,


mais do que em todos os bens e em todos os dons

1.
DISCÍPULO - Acima de tudo e em tudo descansarás, ó
minha alma, no Senhor, pois é Ele o repouso eterno dos
santos.
Concede-me, doce e amado Jesus, que em ti descanse
mais do que em toda a criatura; mais que na saúde e na be­
leza, que em toda a honra e glória, que em todo o poder e
dignidade; mais que em toda a ciência e subtileza, que em
todas as artes e riquezas, que em toda a alegria e j úbilo; mais
que em toda a fama e louvor, que em toda a suavidade e
consolação, que em toda a esperança e toda a promessa;
mais que em todo o merecimento ou desej o, que em todos os
bens e tributos que podes dar e derramar, que em todo o
gáudio e exultação que o espírito pode experimentar e
sentir; e mais, finalmente, do que nos anj os e arcanj os e todo
o exército do Céu, mais que em todas as coisas visíveis e in­
visíveis, mais que em tudo o que não és Tu, ó meu Deus.

2.
Porque Tu és, Senhor meu Deus, o melhor entre todas as
coisas : só Tu altíssimo, só Tu todo-poderoso, só Tu sufi­
ciente e pleno, só Tu suavidade e consolação, só Tu beleza e
amor, só Tu nobreza e glória sobre todas as coisas, em quem

[ 1 59
estão, sempre estiveram e estarão todos os bens, simultânea
e perfeitamente.
Por isso me não chega tudo o que me dás fora de ti ou o
que de ti me revelas ou prometes, se te não vej o e não possuo
plenamente.
Porque não pode o meu coração descansar verdadeira­
mente, nem totalmente ser feliz, se em ti não descansar e não
ultrapassar todos os dons e toda a criatura.

3.
Ó meu Esposo amado! Jesus Cristo, puro Amor, Senhor
de toda a criatura ! Quem me dará as asas da verdadeira
liberdade para voar e repousar em ti ?
Quando me será dado estar vazio deste mundo e ver
como és suave, Senhor meu Deus ?
Quando me refugiarei em ti plenamente até que, por teu
amor, me não sinta a mim, mas só a ti, além de todo o sen­
tido ou medida, de modo não de todos conhecido ?
Agora choro continuamente e levo com dor a minha infe­
licidade.
Porque muitos males sucedem neste vale de lágrimas, e
eles me perturbam, entristecem e toldam; muitas vezes me
entravam e distraem, me atraem e enredam, impedindo-me
de me aproximar livremente de ti e de gozar dos felizes
amplexos sempre preparados para os bem-aventurados.

4.
Comovam-te os meus suspiros e a múltipla desolação
deste mundo, ó Jesus, esplendor da eterna glória, consolação
da alma peregrina !
Diante de ti está muda a minha boca, e o meu silêncio
fala-te.
Até quando tardará o meu Senhor ?

1 60 ]
Que Ele se aproxime do seu pobre e que o alegre; que
imponha a sua mão e o arranque de toda a angústia. Vem,
vem ! Porque, sem ti, não haverá hora ou dia alegre - Tu és a
minha alegria -, e sem ti está vazia a minha mesa.
Sou infeliz, qual prisioneiro carregado de correntes, até
que me reanimes com a luz da tua presença, me dês a liber­
dade e mostres a tua face amiga.
Procuram outros, em vez de ti, algo que lhes agrade; mas
a mim nada agrada, nem agradará, senão Tu, ó meu Deus,
minha esperança, eterna salvação.
Não me calarei, nem cessarei de pedir, até que volte a tua
graça e fales à minha alma.
CRISTO - Eis que aqui estou, eis que venho até ti porque
me invocaste ( 1 Sm 3 , 9 ) .
A s tuas lágrimas e o desej o d a tua alma, a tua humilha­
ção e dor vergaram-me e trouxeram-me até ti.

5.
DISCÍPULO - E eu disse: Senhor, chamei-te e desej ei
gozar de ti, pronto a tudo desprezar por ti.
Mas Tu, primeiro, me levaste a que te procurasse.
Sê, pois, bendito, Senhor, porque tiveste tal bondade com
o teu servo, segundo a grandeza da tua m isericórdia ( Sl
1 1 9 [ 1 1 8 ] ,65; 5 1 [50],3 ) .
Que mais terá a dizer diante de t i o teu servo, senão hu­
milhar-se, lembrando sempre a sua iniquidade e vileza ?
Nada existe, na verdade, de semelhante a ti em todas as
maravilhas do Céu e da Terra.
Todas as tuas obras são boas; todos os teus j uízos, verda­
deiros; e a tua providência regula o Universo.
Louvor a ti e glória, ó Sabedoria do Pai ! A ti te louve e
bendiga a minha boca, a minha alma e toda a criatura !

[ 1 61
XXII

Da recordação dos muitos benefícios de Deus

1.
DISCÍPULO - Abre, Senhor, o meu coração à tua lei e
ensina-me a caminhar nos teus preceitos.
Faz-me compreender a tua vontade e recordar com gran­
de respeito e consideração os teus benefícios, tanto em geral
como em particular, para que por eles te consiga dar graças
de maneira digna.
Mas reconheço e confesso que nem a mais pequena das
tuas graças posso agradecer devidamente.
Sou menos que qualquer dos bens que me deste, e quando
considero a tua generosidade, o meu espírito perde-se nessa
grandeza.

2.
Tudo o que temos na alma ou no corpo, exterior ou inte­
riormente, tudo o que possuímos de natural ou de sobrena­
tural são benefícios teus, e isso te declara benfeitor, piedoso
e bom, a ti; de quem nos vêm todos os bens.
E se um recebe mais e outro menos, tudo é, contudo, teu :
e sem ti nem a mínima coisa se pode possuir.
O que recebe mais não pode glorificar-se do seu mereci­
mento nem elevar-se acima dos outros ou insultar o que tem
menos; porque maior e melhor é o que menos se considera, e
mais humilde e devoto se mostra ao agradecer.
Aquele que se j ulga pior que todos e, entre todos, o mais

1 62 ]
indigno, é quem melhor está preparado para receber dons
maiores .

3.
Mas o que tem menos coisas não se deve entristecer, nem
portar indignamente ou invej ar o mais rico; mas amar-te
ainda mais e louvar a tua bondade, pois que com tanta
abundância, tão bondosa e livremente, sem aceção de pes­
soas, distribuis os teus dons .
Tudo vem de ti, e por isso deves ser louvado em tudo.
Tu sabes o que convém dar a cada um e porque este tem
menos e aquele mais; não nos pertence a nós decidir isso, mas
a ti, diante de quem são contados os méritos de cada um.

4.
Por isso, Senhor Deus, tenho por grande bem não possuir
muita coisa, donde nascesse, de fora e segundo os homens,
louvor e glória; de modo a que, considerando alguém a sua
pobreza e a sua abj eção, não sinta desgosto ou tristeza ou
desânimo por isso, mas antes consolação e grande alegria,
porque Tu, meu Deus, escolheste os pobres, os humildes e os
desprezados neste mundo para teus parentes e amigos .
Os teus próprios Apóstolos s ã o testemunhas disso, eles
a quem constituíste príncipes sobre toda a Terra ( Sl 45
[44] , 1 7) .
Mas eles viveram n o mundo sem queixumes, tão humil­
des e simples, sem qualquer malícia, e engano, que se alegra­
vam em sofrer injúrias pelo teu nome (At 5,4 1 ) , e abraçavam
com amor tudo o que o mundo aborrece.

5.
Portanto, o que te ama e conhece os teus benefícios de
nada se deve alegrar tanto como da tua vontade e do cum-

[ 1 63
primento dos teus desígnios acerca dele, com os quais se
deverá contentar e consolar de tal modo que de tão boa von­
tade queira ser o mais pequeno, como um outro quereria ser
o maior; tão pacífico e contente no último, como no pri­
meiro lugar; e de tão boa vontade desprezível, abjeto e sem
qualquer nome ou fama, como outros quereriam ser os mais
honrados e os maiores neste mundo.
Assim, a tua vontade e o amor da tua honra devem exce­
der tudo, e consolá-lo e agradar-lhe mais do que todos os
benefícios dados ou prometidos por ti.

1 64 ]
XXIII

Das quatro coisas indispensáveis à paz

1.
CRISTO - Filho, ensinar-te-ei agora o caminho da paz e
da verdadeira liberdade.
DISCÍPULO - Faz como dizes, Senhor, porque me é grato
ouvir.
CRISTO - Procura, filho, fazer mais a vontade dos
outros do que a tua .
Prefere sempre ter menos do que mais.
Procura o pior lugar e submete-te a todos.
Desej a sempre e reza para que a vontade de Deus se
cumpra em ti inteiramente. Deste modo, caminha o homem
nas regiões da paz e do repouso.

2.
DISCÍPULO - Senhor, apesar d e breves, a s tuas palavras
contêm grande parte da perfeição.
Pequeno é o discurso, mas cheio de sentido e de fruto.
Pois, se o pudesse guardar com fidelidade, não me per­
turbaria tão facilmente.
Porque sempre que me sinto impaciente e atormentado,
vej o que me afastei de tal doutrina.
Mas Tu, que tudo podes e sempre desej as o progresso da
alma, aumenta a tua graça para que possa cumprir as tuas
palavras e completar a minha salvação.

[ 1 65
3.

Oração contra o s maus pensamentos.

Senhor meu Deus, não te afastes de mim ( SI 7 1 [70] , 1 2 ) ;


Deus meu, vem e m meu auxílio, porque e m mim s e ergue­
ram pensamentos vários e grandes temores que afligem a
minha alma.
Como os passarei ileso ?
Como os esmagarei ?
Eu, disse o Senhor, irei à tua frente e humilharei os pode­
rosos da Terra (Is 45,2 ) . Abrirei as portas do cárcere e mos­
trar-te-ei o mistério dos segredos.
Faça-se, Senhor, como Tu dizes : e fuj am da tua face todos
os maus pensamentos.
Esta é minha esperança e única consolação: refugiar-me
em ti em toda a tribulação, em ti confiar, invocar-te do fun­
do do meu ser e esperar com paciência a tua consolação.

4.

Oração pela luz do espírito .

Alumia-me, bom Jesus, com a claridade da luz interior, e


afasta da cela do meu coração todas as trevas .
Impede as muitas divagações do meu espírito e suprime
as tentações que me violentam. Luta com força por mim,
expulsa os animais ferozes, esses desej os atraentes, para que
encontre a paz na tua força ( SI 1 22 [ 1 2 1 ] ,7) e a abundância
dos teus louvores ressoe sem cessar na tua santa casa, isto é,
na consciência pura.
Ordena aos ventos e às tempestades; diz ao mar: «acalma»,
e ao Aquilão: «não sopres»; e haverá grande paz (Me 4,3 9 ) .
Envia a tua luz e a tua verdade (SI 43 [42] ,3 ) para que bri-

1 66 ]
lhem sobre a terra; pois terra sou, pobre e vazia, até que me
ilumines.
Espalha a tua graça lá do alto, derrama no meu coração o
orvalho do Céu; com a água da devoção rega a face desta
terra, para que dê um fruto bom e excelente.
Eleva o espírito abatido pelo peso dos pecados, e o meu
desej o, suspende-o das coisas do Céu, para que, provando
da doçura da eterna felicidade, me canse de pensar no que é
da Terra .
Livra-me e liberta-me de toda a consolação humana que
não dura : pois que nenhuma coisa criada pode dar ao meu
desej o repouso e consolação.
Liga-me a ti pelo laço indissolúvel do amor: pois que só
Tu bastas a quem ama, e, fora de ti, todas as coisas são vãs.

[ 1 67
XXIV

De como evitar a curiosidade pela vida dos outros

1.
CRISTO - Filho, não sej as curioso, nem tenhas cuidados
vãos.
Que te importa isto ou aquilo ? Segue-me (Jo 2 1 ,22 ) . Que
te importa, na verdade, se este é desta ou daquela maneira,
ou se aquele diz isto ou faz aquilo ?
Não tens de responder pelos outros, mas só de ti próprio
darás contas.
Porque te intrometes, então ?
Eis que sou Eu que a todos conheço, que vej o tudo o que
sucede sob o sol, que sei como cada qual é, e o que pensa, e
o que quer, e qual o fim da sua intenção.
Por isso, a mim se devem entregar todas as coisas; mas tu
conserva-te em paz, e deixa que o que se agita se agite
quanto quiser.
Sobre ele recairá tudo o que fizer ou disser, porque me
não pode enganar.

2.
Não procures a sombra d e um grande nome, nem queiras
possuir intimidade com muitos, ou a estima especial dos
homens.
Porque tais coisas causam distrações e grandes obscuri­
dades no espírito.
Dir-te-ei de boa vontade a minha palavra e revelar-te-ei
coisas escondidas, se estiveres sempre atento à minha vinda e
me abrires a porta do coração.
Sê prudente, vigia na oração e humilha-te em tudo.

1 68 ]
XXV

Em que consiste a firme paz do coração


e o verdadeiro progresso

1.
CRISTO - Filho, fui Eu quem disse: deixo-vos a minha
paz, dou-vos a minha paz; não como o mundo a dá vo-la
dou (Jo 1 4,27 ) .
Todos desejam paz, mas poucos s ã o os que se preocupam
com os meios de alcançar a verdadeira paz.
A minha paz é com os humildes e mansos de coração .
A tua p a z estará n a muita paciência.
S e me ouvires e seguires a s minhas palavras, poderás
então gozar de grande paz.

2.
DISCÍPULO - Que farei, então?
CRISTO - Em tudo, vê o que fazes e o que dizes: põe o
teu fito apenas em agradar-me e, fora de mim, nada desej es
ou procures .
Não j ulgues temerariamente as palavras ou as ações dos
outros, nem te metas no que te não diz respeito; e assim po­
derá acontecer que poucas ou raras vezes sej as perturbado.
Nunca sentir, porém, qualquer perturbação, nem sofrer
qualquer doença do espírito ou do corpo, não é para este
tempo, mas estado de eterno repouso.
Não j ulgues, pois, ter encontrado a verdadeira paz por
não sentires qualquer contrariedade, ou que tudo está bem

[ 1 69
se ninguém te contradiz, ou que tudo é perfeito se te corre
segundo o teu desej o; nem te consideres algo de grande ou te
penses especialmente amado, se sentires grande devoção ou
consolação.
Pois não é nisto que se conhece aquele que verdadeira­
mente ama a virtude, nem nisto consiste o progresso e a per­
feição do homem.

3.
DISCÍPULO - Em quê, então, Senhor ?
CRISTO - Em ofereceres-te de todo o teu coração à von­
tade divina : não procurando o que é teu em coisa pequena
ou grande, no mundo ou na eternidade; para que, com a
mesma cara dês graças pelo bem e pelo mal, pesando tudo
na mesma balança.
Se és tão forte e perseverante na esperança que, privado
de consolação interior, preparas o teu coração para suportar
ainda coisas maiores, sem te j ustificares pensando não deve­
res suportar tanto, mas a mim me j ustificando em tudo e me
dando louvor, então caminhas no verdadeiro e reto caminho
da paz; e terás segura esperança de haver de ver, com alegria,
a minha face.
Porque, se chegares ao completo desprezo de ti mesmo,
sabe que gozarás então da abundância de paz que é possível
nesta tua morada.

1 70 ]
XXVI

Da grandeza do espírito livre,


que mais se adquire pela oração que pela leitura

1.
DISCÍPULO - Senhor, pertence ao homem perfeito nunca
deixar de aplicar o espírito às coisas do Céu e, entre muitos
cuidados, passar quase sem cuidado, não por preguiça, mas
pela virtude dum espírito livre, que não está preso a ne­
nhuma desordenada afeição das criaturas.

2.
E u te suplico, ó meu bom Deus, que me preserves dos cui­
dados desta vida, para que me não enrede muito; das muitas
necessidades do corpo, para que me não seduza o prazer; de
todos os obstáculos da alma, para que não me despedacem.
Não falo dessas coisas que a vaidade do mundo procura
com ardor, mas daquelas misérias que atrasam e pesam na
alma do teu servo, afligido pela comum maldição da morte,
e que o impedem de possuir a liberdade de espírito, sempre
que o quereria.

3.
Ó meu Deus, doçura inefável, converte-me em amargura
toda a consolação da carne que me afasta do amor das
coisas eternas e que me atrai maliciosamente para si pela
visão de qualquer agradável bem presente.
Que me não vençam, meu Deus, que me não vençam a

[ 1 71
carne e o sangue; que não me engane o mundo e a sua breve
glória; que não sucumba ao demónio e à sua astúcia .
Dá-me a força para resistir, a paciência para suportar, a
constância para perseverar. Concede-me, em vez de todas as
consolações do mundo, a suave unção do teu espírito, e em
vez do amor carnal, o amor do teu nome.

4.
Eis que a comida, a bebida, o vestuário, tudo o que é feito
para sustentar o corpo pesa ao espírito fervoroso.
Faz que eu use com temperança de tais consolações, para
que não me enrede nos excessivos desej os.
Não se pode pôr tudo isto de parte, pois há que sustentar
a natureza. Mas a tua santa Lei proíbe que se procure o su­
pérfluo e o que mais deleita, para que a carne não se levante
contra o espírito.
Que em tudo isto, peço-te, me dirij a e ensine a tua mão, a
fim de que não caia nos excessos.

1 72 ]
XXVII

Que o amor de si próprio muito impede o sumo bem

1.
CRISTO - Filho, tens de dar tudo pelo tudo; que nada
em ti te pertença.
Sabe que o amor de ti próprio te prej udica mais que qual­
quer outra coisa do mundo.
Conforme o amor e o afeto que lhe tens, assim te apegas
mais ou menos a uma c01sa.
. .

Se o teu amor for puro, simples e ordenado, não serás


prisioneiro das coisas.
Não desej es o que não te é lícito possuir.
Não possuas o que te pode embaraçar e privar da liber­
dade interior.
É de admirar que não te abandones a mim do fundo do
teu coração, com tudo o que possas desejar ou ter.

2.
Porque te consomes em vãs tristezas ? Porque te fatigas
com vãos cuidados ?
Mantém-te na minha vontade e não sofrerás qualquer dano.
Se queres isto ou aquilo, e queres estar aqui ou ali, para
tua comodidade e por tua vontade, nunca estarás em paz
nem livre de cuidados; porque em tudo haverá qualquer
defeito e em toda a parte alguém teu inimigo.

3.
Não aj uda, pois, possuir visivelmente muitas coisas, mas
sim desprezá-las e desenraizá-las do coração.

[ 1 73
E não só entendas isto acerca do dinheiro ou das rique­
zas, mas das honras e do desej o do vão louvor: pois tudo
passa com o mundo.
Pouco importa o lugar, se falta o espírito de fervor.
Não durará muito aquela paz buscada no exterior, se
falta ao coração o verdadeiro apoio.
Assim é: se em mim te não firmares, poderás mudar, mas
não melhorarás.
Pois, nascida e aceite a ocasião, encontrarás aquilo de que
fugiste, e ainda mais.

4.

Oração para purificar o coração e obter a sabedoria do Céu.

DISCÍPULO - Confirma-me, ó Deus, pela graça do Es­


pírito Santo.
Dá-me a força que fortifica interiormente o homem e que
liberta o meu coração da angústia e de todo o cuidado inútil,
para que não sej a arrastado aos vários desej os do que quer
que sej a, vil ou precioso, mas que tudo possa olhar como
coisas que passam e a mim como quem com elas passa:
porque nada há de permanente sob o sol, onde tudo é vai­
dade e aflição de espírito ( Ecl 2 , 1 1 ; 1 , 1 4 ) .
Oh, como é sábio quem tal pensa !
Concede-me, Senhor, a sabedoria do Céu, para que
aprenda a procurar-te acima de tudo e a encontrar-te, a dese­
j ar-te e a amar-te sobre todas as coisas, a compreender tudo
o resto como é, segundo a ordem da tua sabedoria .
Faz como que me afaste com prudência do que me lison­
jeia, e que suporte com paciência o que contra mim se levan­
ta; porque esta é a grande sabedoria: não se agitar a todo o
vento de palavras nem prestar ouvidos às pérfidas lisonj as da
sereia; assim continuará com segurança o caminho começado.

1 74 ]
XXVIII

Contra as línguas dos maldizentes

1.
CRISTO - Filho, não te irrites se alguém disser ou pro­
nunciar coisas que não gostas de ouvir.
Tu ainda deves pensar pior de ti próprio e não j ulgar nin­
guém mais fraco do que tu.
Se caminhas dentro de ti, não te importarão muito as pa­
lavras que voam.
Não é pequena prudência calar-se no mau tempo, con­
verter-se interiormente a mim e não se perturbar com o j uízo
humano.

2.
Que a tua paz não estej a n a boca dos homens.
Porque, quer j ulguem bem, quer mal, não és por isso
outro homem.
Onde está a verdadeira paz e a verdadeira glória ?
Não é em mim ?
E aquele que não procura agradar aos homens nem teme
desagradar-lhes, gozará de muita paz.
Do amor desordenado e do medo vão nasce toda a in­
quietação do espírito e a distração dos sentidos.

[ 1 75
XXIX

Como se deve, na tribulação, invocar e bendizer a Deus

1.
DISCÍPULO - Que teu nome, Senhor, sej a bendito pelos
séculos, que quiseste que esta tentação e tribulação descesse
sobre mim.
Não posso fugir dela, mas preciso de me refugiar em ti,
para que me aj udes e ma convertas em bem.
Senhor, estou em grande tribulação e para mim não há
bem; muito me atormenta a paixão desta hora.
E que direi agora, Pai amado ?
Rodeiam-me as angústias.
Livra-me desta hora!
Mas eu vim nesta h o ra para que sejas glorificado (Jo
1 2 ,27-2 8 ) , quando, estando eu na humilhação, for libertado
por ti.
Digna-te, Senhor, livrar-me; pois eu, que sou pobre, que
posso fazer ? E onde irei sem ti ?
Dá-me paciência, Senhor, ainda desta vez.
Aj uda-me, meu Deus, e não temerei, por mais atormen­
tado que sej a .

2.
E agora, entre tais coisas, que direi ?
Senhor, faça-se a tua vontade (Mt 6, 1 0 ) : bem mereci eu
ser atribulado e atormentado.

1 76 ]
Importa, assim, que o suporte, e oxalá com paciência, até
que passe a tempestade e venha a bonança.
Mas a tua mão omnipotente pode afastar de mim esta
tentação e abrandar-lhe a força, como tantas vezes me fizes­
te, Deus meu, minha misericórdia, para que não sucumba.
E quanto mais difícil me for, tanto mais fácil te é esta
mudança da direita do Altíssimo ( Sl 77(76) , 1 1 ) .

[ 1 77
XXX

De como se deve pedir ó auxílio de Deus


e confiar na recuperação da graça

1.
CRISTO - Filho, Eu sou o Senhor; sou Eu que conforta
no dia da tribulação (Na 1 ,7 ) .
Vem até mim quando algo t e correr mal.
Eis o que, mais que tudo, te dificulta a consolação do
Céu: tão tarde te entregares à oração.
Na verdade, antes de me rezares com todo o teu coração,
procuras muitas outras consolações e confortas-te com as
coisas exteriores.
Por isso sucede que todas essas coisas de pouco valem,
até que, por fim, percebes que sou Eu que liberto aqueles
que esperam em mim, e que, além de mim, não há auxílio
conselho útil ou remédio duradouro.
Mas, acalmado o espírito depois da tempestade, conva­
lesce na luz das minhas misericórdias; pois que Eu estou
perto, diz o Senhor, para tudo restaurar, não só completa­
mente, mas com abundância e até à saciedade.

2.
Acaso alguma coisa m e é difícil (Jr 32,27) ?
Ou serei como aquele que promete e que não faz ?
Onde está a tua fé ?
Mantém-te firme e perseverante.

1 78 ]
Sê constante, sê forte, que a consolação a seu tempo
chegará.
Espera por mim, espera-me: virei e curar-te-ei (Mt 8 , 7 ) .
É tentação o que t e aflige, e medo vão o que t e apavora.
Que te traz o cuidado das incertezas do futuro, senão tris-
teza sobre tristeza ?
Que a cada dia baste o seu próprio mal (Mt 6,34).
É vão e inútil sofrer ou alegrar-se com o que há de acon­
tecer, porque talvez nunca aconteça.

3.
Mas é humano ser deste modo iludido pela imaginação;
e é sinal dum espírito ainda fraco ser tão facilmente arras­
tado pela sugestão do inimigo.
Na verdade, a ele é indiferente iludir ou enganar com
coisas verdadeiras ou falsas, com o amor das presentes ou o
medo das futuras .
Não se perturbe, pois, o teu coração, nem tema (]o 14,27).
Crê em mim ( ibid. , 1 ) , e na minha misericórdia tem con­
fiança (Mt 1 4,27).
É quando te j ulgas afastado de mim que, muitas vezes,
estou mais perto .
É quando pensas que quase tudo está perdido que, muitas
vezes, tens ocasião de maior mérito .
Não está tudo perdido quando as coisas são adversas.
Não deves j ulgar as coisas segundo o que agora pensas
delas, nem entregar-te a qualquer sofrimento, donde quer
que venha, e aceitá-lo como se não existisse nenhuma espe­
rança de sair dele.

4.
Não te j ulgues totalmente abandonado quando te ator­
mento com qualquer tribulação ou te tiro a consolação que
desej as.

[ 1 79
Assim, na verdade, se encaminha para o Reino dos Céus.
E sem dúvida a ti e aos meus outros servidores mais
convém que sej am experimentados nas adversidades, do que
tudo tenham como querem.
Eu conheço os pensamentos escondidos e sei que é muito
melhor para a tua salvação que por vezes te abandone des­
consolado, para que não te orgulhes no teu êxito nem quei­
ras comprazer-te naquilo que não és.
O que dei, posso tirá-lo e voltar a concedê-lo quando me
aprouver.

5.
Quando o der é meu; quando o tirar, não to roubo: porque
minha é toda a dádiva boa e todo o dom perfeito (Tg 1 , 1 7) .
S e t e enviar sofrimento o u qualquer contrariedade, não te
indignes, nem sucumba o teu coração; pois depressa posso
erguer, e transformar todo o fardo em alegria .
Por isso sou justo e digno d e louvor quando tal t e faço.

6.
Se j ulgas as coisas com j ustiça e as olhas segundo a ver­
dade, nunca deverás entristecer-te assim com o que te é
adverso, mas antes alegrar-te e agradecer e mesmo conside­
rar tua única alegria que, afligindo-te com dores, Eu te não
poupo (Jb 6,9- 1 0 ) .
Tal como meu Pai m e amou, assim também E u vos amo,
disse Eu aos meus discípulos amados (Jo 1 5, 9 ) ; não os enviei
para os prazeres do mundo, mas para grandes lutas; não
para as honras, mas para o desprezo; não para o ócio, mas
para os trabalhos; não para o repouso, mas para que dessem
muito fruto pela paciência.
Lembra-te, meu filho, destas palavras.

1 80 ]
XXXI

Do abandono de toda a criatura


para se poder encontrar o Criador

1.
DISCÍPULO - Senhor, como preciso ainda de maior
graça, se tenho de chegar onde ninguém nem nada me possa
embaraçar !
Pois quando alguma coisa me retém, não posso voar
livremente para ti.
Bem desej ava voar aquele que dizia: quem me dará asas
como à pomba? Voarei, então, e descansarei ( Sl 55 [54] ,7) .
Que há de mais pacífico que o homem de olhos simples?
E que há de mais livre que o que nada desej a neste
mundo ?
É, por isso, preciso passar além de tudo o que é criado,
desprezar-se completamente a si próprio, permanecer em
arrebatamento do espírito e reconhecer que Tu, Criador de
todas as coisas, em nada és semelhante às criaturas.
E só quem se libertar de todas as criaturas poderá ocupar­
-se livremente das coisas divinas.
Por isso poucos chegam a ser contemplativos, porque
p o ucos se sabem separar completamente das criaturas e
daquilo que perece.

2.
Para tal s e requer grande graça, que eleve a alma e a arre­
bate para além de si própria .

[ 1 81
E, se o homem não for elevado no espírito, liberto de
todas as criaturas e totalmente unido a Deus, não é de
grande peso tudo o que saiba e o que tenha.
Sempre será pequeno e se manterá em nível inferior o que
j ulga haver algo de grande além do bem eterno, imenso e
uno.
Tudo o que não é Deus nada é, e como tal se deve ter.
Há grande diferença entre a sabedoria dos homens ilumi­
nados e piedosos e a ciência dos literatos e eruditos.
Muito mais alta é a doutrina que provém, lá do alto, da
influência de Deus, do que a que o engenho humano labo­
riosamente consegue.

3.
Muitos há que desej am a contemplação, mas não pro­
curam realizar o que a ela conduz.
Grande obstáculo é manter-se nos sinais e nas coisas sen­
síveis e não ter perfeita mortificação.
Não sei o que é, por que espírito somos conduzidos e o
que pretendemos, nós a quem chamam homens espirituais,
que tanto esforço e solicitude temos por coisas desprezíveis e
transitórias e que tão raro pensamos recolhidamente no
nosso mundo interior.

4.
Mas, ai ! , logo depois de um pequeno recolhimento nos
apressamos a sair, e nunca ponderamos num rigoroso exame
as nossas ações.
Não vemos onde j azem os nossos afetos nem deploramos
que tudo sej a impuro.
Na verdade, toda a carne tinha corrompido o seu cami­
nho ( Gn 6 , 1 2 ) , e por isso se seguiu o grande dilúvio.
Portanto, como o nosso afeto está corrompido, é forçoso

1 82 ]
que a ação que se lhe segue, índice da falta de força interior,
sej a também corrompida.
Do coração puro procede o fruto duma boa vida .

5.
Preocupamo-nos com a quantidade de coisas que alguém
faz, mas não se pensa tão atentamente na sua virtude.
Procura-se saber se é forte, rico, belo, hábil, ou bom es­
critor, bom cantor, bom trabalhador; mas geralmente não se
diz se é pobre em espírito, se é paciente e manso, se é pie­
doso e interior.
A natureza só olha o que é exterior no homem; a graça
volta-se para o interior.
Uma engana-se frequentemente; mas a outra espera em
Deus, para que não se iluda.

[ 1 83
XXXII

Da negação de si próprio
e da renúncia a todo o desejo

1.
CRISTO - Filho, não podes possuir a perfeita liberdade
se não te negares totalmente a ti próprio.
Presos estão todos os que possuem coisas, todos os que se
amam a si próprios, os que são ambiciosos, curiosos, inquie­
tos, que sempre procuram o mais fácil e não o que é de Jesus
Cristo, os que muitas vezes se iludem e se ligam ao que não
permanecerá .
Mas tudo o que não nasceu de Deus, perecerá.
Conserva estas breves mas perfeitas palavras: deixa tudo
e tudo encontrarás, deixa toda a cobiça e acharás a paz.
Medita nisto, e, quando o tiveres cumprido, perceberás
tudo.
DISCÍPULO - Senhor, isso não é trabalho de um só dia,
nem brinquedo de meninos; pelo contrário, em tão breves
palavras se contém toda a perfeição dos religiosos.

2.
CRISTO - Filho, não te deves afastar nem logo desistir
ao ouvires falar do caminho dos justos, mas antes mais te
deves excitar ao que é mais sublime, ou, pelo menos, a isso
aspirar com todo o teu desej o .
Oxalá que assim s e passasse contigo, e que chegasses ao
ponto de não gostares de ti próprio, mas de te cingires sim-

1 84 ]
plesmente à minha vontade e à do superior que te concedi:
então me conseguirias agradar, e passarias toda a tua vida na
alegria e na paz.
Ainda tens de abandonar muitas coisas, e só a bando­
nando-as totalmente por mim conseguirás o que procuras.
A conselho-te a que me compres ouro passado pelo fogo,
para te tornares rico (Ap 3 , 1 8 ) , ou sej a, a sabedoria do Céu
que pisa tudo o que é inferior.
Submete-lhe toda a sabedoria da Terra, toda a compla­
cência nos homens e em ti próprio.

3.
Eu o disse: nas coisas humanas, prefere as desprezíveis às
que são grandes e preciosas; porque como coisa desprezível,
pequena e quase esquecida se vê a verdadeira sabedoria do
Céu, que não se orgulha da sua grandeza nem procura ele­
var-se no mundo, que é pregada de boca por muitos que a
desmentem com a sua vida; ela é, contudo, a pérola preciosa
( Mt 1 3 ,4 6 ) escondida aos olhos de tantos.

[ 1 85
XXXIII

Da inconstância do coração
e do dever de tudo orientar para Deus

1.
CRISTO Filho, não creias na tua disposição, que existe
-

agora, mas que depressa se trocará por outra.


Enquanto viveres estás suj eito à mudança, mesmo que o
não queiras: umas vezes alegre, outras triste; umas pronto,
outras perturbado; ora piedoso, ora impiedoso; aplicado ou
desanimado; preocupado ou não.
Mas sobre todas estas mudanças se mantém aquele que é
sábio e bem instruído pelo espírito, que não olha ao que em
si sente, nem de que parte sopra o vento da instabilidade,
mas sim a que toda a sua intenção de espírito se encaminhe
para o verdadeiro e ambicionado fim.
Assim poderá permanecer um e o mesmo, imperturbável:
simples na intenção por entre os vários acontecimentos, per­
manentemente a mim dirigido.

2.
Quanto mais puro de intenção for o olhar, tanto mais fir­
memente caminhará entre as procelas.
Mas em muitos se tolda o olhar da pura intenção e
depressa se fixa em algo de agradável que suceda; e, assim, é
raro aquele que se encontra totalmente livre da mancha da
procura de si mesmo .
Assim tinham vindo dantes os j udeus a Betânia, a casa de

1 86 ]
Marta e de Maria, não tanto por causa de Jesus, mas para
verem Lázaro (Jo 1 2 , 9 ) .
Portanto, deve-se purificar a intenção, para que sej a sim­
ples e reta, e dirigi-la a mim, para além de tudo o que se
interpõe.

[ 1 87
XXXIV

Aquele que ama saboreia Deus mais que tudo e em tudo

1.
DISCÍPULO - Eis o meu Deus e o meu tudo !
Que mais quero ? E que posso desej ar de melhor ?
Oh, gostosa e doce palavra, mas só para aquele que a
ama, e não ao mundo nem a nenhuma das coisas que estão
no mundo !
Meu Deus e meu tudo !
Para o que somente entende, basta dizê-lo uma vez; mas
para o que ama, é grato repeti-lo.
Quanto Tu estás presente, tudo é agradável; mas, se estás
ausente, já tudo aborrece.
Tu fazes tranquilo o coração e dás grande paz e festiva
alegria.
Tu fazes-nos pensar bem de todas as coisas e em todas as
coisas te louvar, e, sem ti, nada pode agradar por muito tem­
po; pois que, se algo é grato e sabe bem, tem de ser presente
a tua graça e de ser temperado com o sal da tua sabedoria.

2.
Àquele a quem Tu agradas, o que não lhe agradará ?
E àquele a quem não agradas, que lhe pode dar alegria ?
Carecem da tua sabedoria os sábios do mundo e aqueles
a quem a carne agrada, porque no mundo se encontra gran­
de vaidade, e na carne, a morte.
Mas os que te seguem, pelo desprezo das coisas do mun-

1 88 ]
d o e pela mortificação da carne, mostram-se verdadeira­
mente sábios, porque passaram da vaidade para a verdade e
da carne para o espírito.
Tais pessoas saboreiam Deus; e o que de bom se encontra
nas criaturas, tudo ordenam ao louvor do Criador.
Diferente, contudo, muito diferente mesmo, é o gosto do
Criador e o da criatura, da eternidade e do tempo, da luz
incriada e da luz refletida.

3.
Oh, luz eterna , que ultrapassas todas a s luzes criadas,
despede lá do alto um raio que penetre até ao mais íntimo
do meu coração !
Purifica, alegra, aclara e dá vida ao meu espírito e às suas
faculdades, para que a ti se abrace em alegres transportes.
Oh, quando virá essa feliz e desej ável hora em que me
saciarás com a tua presença e me serás tudo em tudo ?
Enquanto não existir tal dom, não haverá plena alegria.
Ai, ainda que existe em mim o homem velho, não está
todo crucificado nem totalmente morto, ainda desej a com
força coisas contra o espírito e move guerras interiores, não
sofrendo que a alma reine em paz.

4.
Mas, Tu, que submetes o poder do mar e abrandas o mo­
vimento das suas ondas, ergue-te e ajuda-me ( Sl 8 9 [ 8 8 ] , 1 0;
44 [43],27) .
Dispersa as nações que desejam as guerras ( Sl 6 8 [67] ,3 1 ) ,
e contém-nas pela tua força; mostra, eu te rogo, as tuas ma­
ravilhas, e que seja glorificada a tua mão direita ( Sir 1 7, 8 ;
3 6 , 7); porque não existe para mim outra esperança ou refú­
gio senão em ti, Senhor meu Deus.

[ 1 89
XXXV

Que nesta vida não se está seguro da tentação

1.
CRISTO - Filho, nunca estarás seguro nesta vida; en­
quanto viveres, sempre te serão precisas as armas espirituais.
Se, portanto, não usares por toda a parte do escudo da
paciência, não estarás muito tempo sem qualquer ferida.
E se, além disso, não puseres o teu coração bem fixo em
mim, com grande vontade de tudo por mim sofreres, não
poderás aguentar tal ardor, nem chegar à palma dos bem­
-aventurados.
Tens, pois, de passar tudo com coragem e usar mão pode­
rosa contra todo o obstáculo.
Pois o maná é dado ao vencedor (Ap 2 , 1 7), e ao indolente
está reservada muita miséria.

2.
Se procuras rep ouso nesta vida, como alcançarás o
repouso eterno ?
Não te prepares para um grande descanso, mas sim para
uma grande paciência.
Procura a verdadeira paz, não na Terra, mas nos Céus;
não nos homens nem nas outras criaturas, mas somente em
Deus.
Por amor de Deus deves suportar tudo de boa vontade -
trabalhos e dores, tentações, tormentos, ansiedades, necessi-

1 90 ]
dades, doenças, inj úrias, maledicências, repreensões, humi­
lhações, confusões, correções e desprezos.
Tudo isto ajuda na virtude, tudo isto põe à prova o sol­
dado de Cristo e prepara a coroa celeste.
Eu darei o prémio eterno em troca dum breve trabalho, e
uma glória infinita por uma humilhação que passa.

3.
Julgas que terá sempre à tua vontade consolações espiri­
tuais ?
Nem sempre os meus santos as tiveram, mas sim muitos
sofrimentos, tentações de toda a espécie e grandes desolações.
Mas pacientemente se aguentaram no meio de tudo, mais
confiando em Deus do que em si, pois sabiam que os sofri­
mentos do tempo presente não têm proporção com a glória
futura ( Rm 8 , 1 8 ) que merecem.
Queres obter imediatamente o que muitos apenas obtive­
ram depois de tantas lágrimas e grandes trabalhos ?
Espera o Senhor, tem coragem ( Sl 27[26) , 1 4 ) e anima-te,
não percas a fé, não te afastes; mas expõe continuamente
corpo e alma pela glória de Deus.
Eu retribuirei abundantemente (Mt 1 6,27) . Eu serei con­
tigo em toda a tribulação ( Sl 9 1 [90) , 1 5 ) .

[ 1 91
XXXVI

Contra os vãos juízos dos homens

1.
CRISTO - Lança com firmeza o teu coração no Senhor,
meu filho, e não temas os j uízos humanos quando em tua
consciência tiveres sido piedoso e inocente.
É bom e feliz sofrer assim, nem isto será duro para o de cora­
ção humilde, que mais confia em Deus do que em si próprio.
Muitas pessoas falam tanto que nos devemos fiar pouco
no que dizem.
Além disso, não é possível satisfazer a todos.
E se Paulo procurou agradar a todos no Senhor e tudo fez
a todos, pouco lhe importou, contudo, ser julgado à luz dos
homens ( 1 Cor 4,3 ) .
Fez, pela edificação e salvação dos outros, tudo quanto
podia e sabia, mas não pôde evitar ser, por vezes, j ulgado e
desprezado por eles.
Por isso, pôs tudo nas mãos de Deus, que tudo sabia, e,
pela paciência e pela humildade, se defendeu contra as lín­
guas dos que falavam mal, dos que pensavam coisas vãs e
mentirosas e dos que se erguiam segundo as suas paixões.
No entanto, respondeu de vez em quando, para que do
seu silêncio não nascesse qualquer escândalo para os fracos.

2.
Quem és tu para temer o h omem m ortal (Is 5 1 , 1 2 ) ?
Existe hoj e e amanhã j á desapareceu.

1 92 ]
Teme a Deus e não te aterrorizarás com o medo dos
homens.
Que pode contra ti alguém com quaisquer palavras e
inj úrias ?
Mais a si se prejudica do que a ti, porque, quem quer que
sej a, não poderá fugir ao j uízo de Deus.
Mantém os teus olhos em Deus e não te importes com
palavras de queixa.
E se te parecer que agora sucumbes e que não mereceste
sofrer tal humilhação, não te indignes por isso, nem, por tua
impaciência, diminuas o teu prémio; mas fita ainda mais os
teus olhos no Céu, em mim, que sou poderoso para libertar
de toda a confusão e inj úria e dar a cada um segundo as suas
obras ( Rm 2,6 ) .

[ 1 93
XXXVII

Da pura e inteira renúncia de si mesmo


para obter a liberdade de coração

1.
CRISTO - Filho, abandona-te e encontrar-me-ás.
Mantém-te sem preferências e sem nada de teu e lucrarás
sempre.
Pois que possuirás maior graça quando renunciares a ti e
não voltares atrás .

2.
DISCÍPULO - Senhor, quantas vezes terei d e me resignar,
e em que me hei de pôr de lado ?
CRISTO - Sempre e a toda a hora, tanto nas coisas gran­
des como nas pequenas.
Nada excetuo, mas em tudo te quero achar despido.
Como poderias, doutra forma, ser meu e Eu ser teu, se
não fosses arrancado por dentro e por fora a toda a vontade
própria ?
Quanto mais depressa fizeres isto, tanto melhor será para
ti e, quanto mais plena e sinceramente, tanto mais me agra­
darás e maior será o teu ganho.

3.
Alguns há que renunciam a si, mas com alguma reserva:
como não confiam inteiramente em Deus, agitam-se a provi­
denciar nos seus assuntos.

1 94 ]
Outros, a princípio, oferecem tudo, mas depois, forçados
pela tentação, voltam às suas coisas, e por isso pouco adian­
tam na virtude.
Estes não chegam à verdadeira liberdade do coração puro
e à graça duma alegre intimidade comigo, se não conse­
guiram uma inteira renúncia e uma imolação de todos os
dias, sem a qual não existe, nem existirá, uma união com
proveito.

4.
Já muitas vezes te disse e repito-o de novo: abandona-te,
anula-te, e gozarás de grande paz interior.
Dá tudo por tudo, nada busques, nada exij as, mantém-te
pura e firmemente em mim, e ter-me-ás.
Terás um coração livre e não serás esmagado pelas trevas.
Isto desej a, isto pede, isto procura: poderes libertar-te de
tudo o que possuis e nu seguires Jesus nu, morreres para ti e
viveres eternamente para mim.
Então se acabarão todas as fantasias vãs, todas as más
perturbações e cuidados supérfluos.
Então se afastará o grande medo e morrerá o amor desor­
denado.

[ 1 95
XXXVIII

De como nos regermos bem nas coisas exteriores


e recorrermos a Deus nos perigos

1.
CRISTO - Filho, deves tender com toda a tua diligência
para que, em todo o sítio e em toda a ação ou ocupação ex­
terior, sej as interiormente livre e tenhas mão em ti, para que
tudo te estej a submetido, e não tu submetido a tudo, para
que sej as dono e senhor das tuas ações, e não seu servo ou
escravo: e antes, como um verdadeiro hebreu, sê livre, com­
partilhando da liberdade dos filhos de Deus que, embora
estej am no mundo, olham para o que é eterno; que simulta­
neamente veem o que passa e o que é do Céu; que não são
arrastados a possuir os bens temporais, mas que, pelo con­
trário, os utilizam para servir, tal como foram pensados por
Deus e criados pelo sumo Artífice, que nada deixou desor­
denado em suas criaturas.

2.
Se, porém, em tudo o que acontece te não ficas na apa­
rência exterior, nem olhas com os olhos da carne o que vês e
ouves, mas, em qualquer assunto, entras como Moisés no
tabernáculo para consultar o Senhor, ouvirás muitas vezes a
resposta divina e voltarás instruído de muitas coisas presen­
tes e futuras.
Na verdade, Moisés sempre recorreu ao tabernáculo em
dúvidas e questões a resolver, e sempre se refugiou no auxí-

1 96 ]
lio da oração para se proteger dos perigos e maldades dos
homens.
Assim também tu te deves refugiar no mais secreto do teu
coração, implorando com maior insistência o socorro de
Deus.
Por isso Josué e os filhos de Israel foram enganados pelos
Gabaonitas, porque não interrogaram primeiro a boca do
Senhor (Js 9 , 1 4 ) , mas, acreditando em doces palavras, foram
iludidos por uma falsa piedade.

[ 1 97
XXXIX

Que o homem não deve ser apressado nos seus afazeres

1.
CRISTO - Filho, entrega-me sempre a tua causa e Eu a
disporei bem a seu tempo.
Espera pelo que Eu ordenar, e sentir-lhe-ás o proveito.

2.
DISCÍPULO - Senhor, d e boa vontade te entrego todas as
coisas, porque bem pouco adianta o que eu penso.
Oxalá nunca me apegue ao que me há de suceder e me
entregue incondicionalmente à tua vontade !

3.
CRISTO - Filho, muitas vezes se agita o homem forte­
mente por uma coisa que desej a e, quando o consegue, muda
de opinião a seu respeito; porque as afeições sobre uma
coisa não se mantêm, mas impelem o homem de um objeto
para o outro.
Portanto, não é pouco renunciar a si próprio, mesmo no
que é pouco .

4.
O verdadeiro progresso do homem é a negação de si próprio.
Aquele que se nega está livre e está seguro.
Mas o velho inimigo, oposto a todo o bem, não cessa de
nos tentar e dia e noite prepara armadilhas, em cuj os laços
se possa precipitar o incauto.
Vigiai e orai, diz o Senhor, para que não entreis em tenta­
ção (Mt 26,4 1 ) .

1 98 ]
XL

Que o homem, por si, nada tem de bom,


e de nada se pode orgulhar

1.
DISCÍPULO - Senhor, que é o h omem para que te lem­
bres dele, e o filho do homem para que o visites ? ( SI 8 ,5 ) .
Que mereceu o homem, para que lhe desses a tua graça ?
Senhor, de que me posso queixar, se me abandonas ? Ou
que j usta razão posso dar, se não fazes o que eu peço ?
Em verdade, só posso pensar e dizer: Senhor, nada sou,
nada posso, por mim nada tenho de bom, mas em tudo des­
faleço e para o nada tendo sempre.
E, a não ser por ti ajudado e formado interiormente, logo
me torno morno e lasso.

2.
Mas Tu, Senhor, és sempre o mesmo ( S I 1 02 [ 1 0 1 ] ,2 8 ) e
eternamente permaneces, sempre bom, j usto e santo, tudo
fazendo bem, j usta e santamente, e tudo dispondo em sabe­
doria; mas eu, sempre mais propenso ao regresso que ao
progresso, não me fico muito tempo num só estado, porque
sete tempos passaram sobre mim (Dn 4, 1 3 ) .
No entanto, logo tudo s e torna melhor quando te agrada
e me estendes o auxílio da tua mão, pois só Tu podes aj udar
sem a ajuda de ninguém e de tal modo me confirmar que o
meu rosto não mais mude, mas antes para ti o meu coração
se converta e ache a paz.

[ 1 99
3.
Por isso, se souber passar-me d e toda a consolação
humana, quer para conseguir a devoção, quer pela própria
necessidade que me obriga a procurar-te - pois não há
homem que me console -, terei então razão de esperar na tua
graça e alegrar-me com o dom duma nova consolação.

4.
Graças te sej am dadas, a ti donde tudo vem, de cada vez
que algo de bom me acontece .
E u , porém, diante de ti sou vaidade e sou nada, um
homem inconstante e fraco.
De que me posso, pois, orgulhar ? Ou porque desej o que
me considerem ?
Do nada ?
Como isto é vão !
Na verdade, grande mal é a vã glória, vaidade máxima
que afasta da verdadeira glória e rouba a graça do Céu.
Pois que, enquanto o homem a si próprio agrada, a ti
desagrada, e enquanto anseia pelos louvores humanos priva­
-se das verdadeiras virtudes.

5.
Verdadeira glória e santa exultação é, porém, glorificar­
-se em ti e não em si próprio, alegrar-se no teu nome e não
na própria virtude, em nada se deleitar senão por teu amor.
Que o teu nome, e não o meu, sej a louvado. Sej a exaltada
a tua obra, e não a minha. Bendito o teu santo nome, e que
nada me caiba nos louvores dos homens.
Tu és a minha glória. Tu, a alegria do meu coração ( Sl
3,4; 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 1 1 1 ) , em ti me glorificarei e exultarei todo o
dia, mas em m im de nada m e glorificarei, a não ser das
minhas fraquezas (2Cor 12,5 ) .

200 ]
Que procurem os Judeus a glória que lhes vem uns dos
outros, mas que eu procure a que é só de Deus (Jo 5,44 ) .
N a verdade, toda a glória humana, toda a honra tempo­
ral, toda a elevação do mundo comparada com a tua eterna
glória é vaidade e loucura .
Ó minha verdade e minha misericórdia, meu Deus,
Trindade bendita, só a ti louvor, honra, virtude e glória pelos
séculos dos séculos sem fim.

[ 201
XLI

Do desprezo de toda a honra do mundo

1.
CRISTO - Não te pese, filho, se vês os outros serem hon­
rados e elevados, e tu abandonado e humilhado.
Ergue até mim, para o Céu, o teu coração, e j á te não en­
tristecerá o desprezo dos homens na Terra.

2.
DISCÍPULO - Senhor, nós estamos cegos e depressa a
vaidade nos seduz.
Se me observo com j ustiça, vej o que nunca me foi feita
inj úria por qualquer criatura e que assim nada de j usto
tenho por que de ti me queixe.
Mas, porque contra ti pequei tanto e tão gravemente, é
com razão que contra mim se ergue toda a criatura .
Justo é, por isso, que a mim sej a atribuída a confusão e o
desprezo, e a ti o louvor, a honra e a glória .
E s e n ã o m e dispuser a querer de boa vontade ser despre­
zado e abandonado por toda a criatura e tido como nada,
não poderei ter paz e firmeza interior, nem ser iluminado
espiritualmente e plenamente unido a ti.

202 ]
XLII

Que a paz não deve depender dos homens

1.
CRISTO - Filho, se fizeres depender a tua paz de qual­
quer pessoa, pelos gostos comuns ou pela convivência,
nunca estarás seguro nem livre.
Mas se recorreres à verdade imutável e sempre viva, não
te entristecerá o amigo que se afasta ou que morre.
Toda a amizade deve ser fundada em mim, e em razão de
mim deves amar alguém que te pareça bom ou te sej a muito
querido nesta vida .
Sem mim, nenhuma amizade tem valor ou duração, nem
há amor verdadeiro e puro de que Eu não sej a o laço .
Assim, deves estar morto para esses afetos pelas pessoas
amadas a ponto de, tanto quanto de ti depende, desej ares
manter-te sem qualquer relação humana.
Quando mais o homem se aproxima de Deus, tanto mais
se afasta de toda a consolação terrena.
Tanto mais sobre para Deus, quanto mais profundamente
em si desce e se despreza.

2.
Mas aquele que a s i próprio se atribui algo d e bom, im­
pede que a ele venha a graça de Deus, porque a graça do Es­
pírito Santo procura sempre o coração humilde.
Se soubesses anular-te perfeitamente e esvaziar-te de todo

[ 203
o amor criado, então Eu te inundaria com grande abundân­
cia de graça.
Quando o teu interesse está nas criaturas, é-te negada a
visão do Criador.
Aprende a vencer-te em tudo pelo Criador, e assim conse­
guirás chegar ao conhecimento divino.
Por mais pequeno que sej a, o que se ama ou desej a desor­
denadamente vicia e atrasa a posse do supremo bem.

204 ]
XLIII

Contra a ciência vã deste mundo

1.
CRISTO - Filho, que não te perturbem as belas e subtis
palavras dos homens.
Na verdade, não está o Reino de Deus na palavra, mas na
virtude ( 1 Cor 4,20 ) .
Atende à s minhas palavras que incendeiam o s corações e
iluminam o espírito, que trazem a compunção e derramam
toda a espécie de consolações .
Nunca leias nada com o fim de te mostrares mais douto
ou sábio.
Dá-te antes à mortificação dos vícios, porque isso te será
mais útil do que o conhecimento de muitas questões difíceis.

2.
Depois d e teres lido e conhecido muita coisa, é sempre
necessário que voltes ao único princípio.
Eu sou o que ensino a ciência ao homem e que dou maior
inteligência aos pequeninos ( Sl 94 [93] , 1 0; 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 3 0 ) do
que a que pode ser ensinada pelo homem.
Aquele a quem Eu falo, depressa será sábio e muito pro­
gredirá em espírito.
Mas ai daqueles que procuram dos homens muitas curio­
sidades e se preocupam pouco com o caminho para me
servirem.
Virá o tempo em que aparecerá Cristo, o Mestre dos mes-

[ 205
tres, o Senhor dos anj os, para a todos pedir contas do que
sabem, isto é, para examinar a consciência de cada um; e
então Jerusalém será perscrutada com lanternas, e as coisas
escondidas nas trevas serão manifestadas ( Sf 1 , 12; 1 Cor 4,5 )
e calar-se-ão os argumentos das línguas.

3.
Eu sou aquele que, num só momento, eleva o espírito hu­
milde, para que compreenda mais coisas da verdade eterna
do que se tivesse estudado durante dez anos nas escolas.
Eu ensino sem ruído de palavras, sem confusão de opi­
niões, sem a altivez da honra, sem a luta dos argumentos.
Eu sou o que ensina a desprezar as coisas terrenas, a
aborrecer as presentes, a procurar e saborear as eternas, a
fugir às honras, a suportar os escândalos, a colocar em mim
toda a esperança, a nada desej ar além de mim e a amar-me
com ardor acima de todas as coisas.

4.
Na verdade, um, que me amava intimamente, aprendeu
as coisas divinas e delas falava de modo admirável.
Mais adiantou abandonando tudo do que estudando sub­
tilezas.
Mas a uns digo coisas gerais, a outros especiais; a uns
apareço docemente em sinais e em figuras, a outros revelo
com muita luz os mistérios.
Os livros dizem todos os mesmo, mas nem em todos pro­
duzem os mesmos efeitos; porque Eu sou o que ensina inte­
riormente a verdade, o que perscruta o coração, o que per­
cebe os pensamentos, o que move as ações, distribuindo a
cada qual o que acho j usto .

206 ]
XLIV

De como não se enredar nas coisas exteriores

1.
CRISTO - Filho, de muitas coisas é necessário que te
mantenhas ignorante, e que te j ulgues como um morto sobre
a terra e para quem todo o mundo está crucificado ( Cl 3 , 3 ;
Gl 6,14).
É também preciso que feches o s ouvidos ao passares por
muita coisa, e que penses antes no que importa à tua paz.
Mais vale afastar os olhos das coisas que nos desagradam
e deixar cada um com a sua opinião, do que intervir com
palavras de contenda .
Se permaneceres bem com Deus e atenderes ao seu j uízo,
mais facilmente aceitarás ser vencido.

2.
DISCÍPULO - Oh, Senhor, ao que chegámos !
Eis que choramos uma perda temporal, eis que trabalha­
mos e corremos por uma questão sem importância, mas es­
quecemos o prej uízo espiritual ou apenas tarde nos lembra­
mos dele.
Atende-se ao que de pouco ou nada serve, mas passa-se
com negligência sobre o que é mais necessário; pois que todo
o homem se derrama nas coisas exteriores e, se não logo em
si, nelas permanece de bom ânimo.

[ 207
XLV

Que não se deve acreditar em todos,


e do fácil erro das palavras

1.
DIS CÍPULO - Dá-me, Senhor, auxílio na tribulação,
porque vã é a salvação que vem do homem ( SI 60[59] , 1 3 ) .
Quantas vezes e u não encontrei fidelidade onde j ulgava
achá-la ?
E quantas vezes a encontrei onde menos pensava ?
É pois vã a esperança nos homens, e a salvação dos j ustos
só em ti está, ó Deus.
Bendito sej as, ó Senhor meu Deus, em tudo o que nos
sucede.
Somos inconstantes e fracos, facilmente nos enganamos e
mudamos.

2.
Qual é o homem que consegue manter-se tão cautelosa e
prudentemente em tudo que nunca tenha qualquer deceção
ou dúvida ?
Mas o que em ti, Senhor, confia e o que te procura com
um coração simples não cai tão facilmente.
E se lhe sobrevier qualquer tribulação, por mais enredado
que nela estej a, depressa dela será arrancado por ti ou con­
solado; porque não abandonas para sempre aquele que em
ti espera .

208 ]
É raro o amigo fiel que como tal se mantém em todas as
desgraças do seu amigo.
Só Tu, Senhor, és fiel em todas as coisas, e depois de ti
não há mais ninguém.

3.
Oh, como o experimentou bem aquela santa alma que
disse: o meu espírito está s oldado e firmado em Cristo
( «Vida de Santa Ágata » ) .
S e assim s e passasse comigo, não m e agitaria tão facil­
mente o medo dos homens, nem me moveriam os ataques
das suas palavras.
Quem consegue prever tudo ou precaver-se dos males
futuros ?
Se aqueles que se preveem, muitas vezes, nos ferem, o que
não será dos que nos vêm sem esperarmos !
Mas porquê, infeliz d e mim, não m e acautelei melhor ?
Porque acreditei tão facilmente nos outros ?
Somos homens e nada mais que homens fracos, mesmo
que muitos nos j ulguem ou chamem anj os.
Em quem acreditarei, Senhor ?
Em quem, senão em ti ?
Tu és a Verdade, que não podes enganar nem podes ser
enganado.
Mas, pelo contrário, todo o homem é mentiroso (SI 1 1 6
[ 1 1 4 - 1 1 5 ] , 1 1 ) , fraco, inconstante e falível, sobretudo nas
suas palavras, de tal modo que nem se deve acreditar ime­
diatamente naquilo que nos parece verdadeiro.

4.
Com que prudência nos aconselhaste a temer os homens,
porque os inimigos do homem são os da sua p rópria casa

[ 209
(Mt 1 0, 3 6 ) , e não se deve acreditar se alguém disser: eis que
Ele está aqui, ou ali (Mt 24,23 ) !
Aprendi à minha custa, oxalá que para ter maior cuidado
e não menor sabedoria!
Tem cuidado, diz um, tem cuidado, guarda para ti o que
te digo.
E enquanto me calo e j ulgo guardar um segredo, ele não
pode guardar segredo do que me pediu que guardasse, mas
logo me trai e se trai, e vai-se.
De tais mentiras e de tais homens imprudentes, protege­
-me, Senhor, para que não caia nas suas mãos, nem nunca
faça tais coisas.
Dá à minha boca uma palavra firme e afasta de mim a
linguagem de artifício.
Que eu fuj a de todas as maneiras daquilo que não quero
suportar.

5.
Oh, como é bom, como dá paz não falar dos outros e não
acreditar indiferentemente em tudo nem repeti-lo com le­
viandade, abrir-se com poucos, procurar-te sempre como
testemunha do coração e não ser arrastado por todo o vento
de palavras; mas desej ar fazer tudo o que é íntimo ou exte­
rior segundo o agrado da tua vontade!
Como é seguro para conservar a graça do Céu fugir às
aparências humanas e não desej ar as coisas que suscitam a
admiração dos outros, mas seguir com toda a diligência
aquilo que dá a emenda da vida e o fervor !
A quantos prej udicou a virtude conhecida e louvada com
precipitação ! E quantos, pelo contrário, aproveitaram da
graça conservada em silêncio durante esta vida frágil, que é
toda tentação e combate !

210 ]
XLVI

Da confiança que se deve ter em Deus


quando somos atacados por palavras

1.
CRISTO - Filho, aguenta-te com firmeza e espera em
mim.
Que outra coisa são as palavras, se não palavras ?
Pelo ar voam, mas não fendem a pedra.
Se és culpado, pensa que te deves querer emendar de boa
vontade.
Mas, se de nada te acusas, pensa que deves querer supor­
tar tudo isso por amor de Deus.
É bastante pouco que de vez em quando suportes algu­
mas palavras, tu que ainda não consegues aguentar golpes
ma10res.
E porque é que coisas tão pequenas te ferem, senão porque
ainda és carnal e atendes mais do que deves aos homens ?
Como temes ser desprezado, não queres ser repreendido
pelos teus excessos e procuras a sombra das desculpas.

2.
Mas examina-te melhor e perceberás que vive ainda e m ti
o mundo e o vão desej o de agradar aos homens.
Pois, ao evitares ser humilhado e confundido pelos teus
defeitos, provas que ainda não és verdadeiramente humilde,
nem inteiramente morto para o mundo, nem o mundo para
ti crucificado ( Gl 6, 1 4 ) .

[ 21 1
Mas ouve a minha palavra, e não te importarás com mil
palavras dos homens.
Mesmo que contra ti dissesse·m tudo o que a pior mal­
dade pudesse inventar, o que é que isso te prej udicaria, se
tudo deixasses passar e não lhe desses maior peso que a uma
palha ?
Acaso te poderiam arrancar um só cabelo ?

3.
Aquele que não tem u m coração recolhido, nem Deus
diante dos seus olhos, facilmente se abala com a palavra de
injúria.
Mas o que confia em mim e não se compraz na sua opi­
nião, será livre do medo dos homens.
Na verdade, Eu sou j uiz e conhecedor de todos os segre­
dos: Eu sei de que modo as coisas se passaram, conheço o
que fez a inj úria e o que a sofreu.
De mim saiu tal palavra, fui Eu quem permitiu que tal
sucedesse, para que fossem revelados os p ensamentos de
muitos corações ( Lc 2,35 ) .
E u j ulgarei o inocente e o culpado, mas, antes, por um
j uízo oculto, quis experimentar a um e a outro.

4.
O testemunho dos homens engana muitas vezes; mas o
meu j uízo é verdadeiro: manter-se-á e nunca será mudado.
A maior parte das vezes ele esconde-se, e só a poucos se
descobre; porém, nunca erra, nem pode errar, ainda que não
pareça j usto aos olhos dos insensatos.
A mim, pois, se deve recorrer em todo o j uízo , e não
apoiar-se na própria decisão.
Pois o justo não será perturbado com o que quer que lhe
suceda (Pr 1 2 ,2 1 ) que lhe venha de Deus.

212 ]
E assim, mesmo que algo de injusto se propague contra
ele, não se importará muito.
Mas também não se alegrará loucamente se outros o des­
culparem com razão.
Pois ele atenta em que Eu sou o que perscruta os corações
e os rins ( Ap 2,23 ) . Aquele que não j ulga segundo o aspeto e
as aparências humanas.
Na verdade, muitas vezes, a meus olhos é tido como cul­
pado o que ao julgamento dos homens parece louvável.

5.
DISCÍPULO - Senhor Deus, j usto j uiz, forte e paciente,
que conheces a fragilidade e a maldade dos homens, sê a
minha força e toda a minha confiança, pois que a minha
consciência me não basta .
Tu conheces o que eu não conheço, e, por isso, em toda a
repreensão me tive de humilhar e aguentar com docilidade.
Perdoa-me também por todas as vezes que tal não fiz, e
concede-me a graça de uma maior paciência.
Porque me é melhor para obter o perdão a tua grande
misericórdia, do que a minha suposta justiça para defesa da
minha obscura consciência.
Embora de nada me acuse, nem por isso me posso ter por
justificado ( 1 Cor 4,4 ) ; porque, posta de parte a tua miseri­
córdia, nenhum ser vivo é justificado a teus olh os ( SI 1 4 3
[ 1 42 ] ,2 ) .

[ 213
XLVII

Que pela vida eterna


se devem suportar todos os males

1.
CRISTO - Filho, que não te quebrem os trabalhos que
por minha causa assumiste, nem te abatam de todo as tribu­
lações; mas que a minha promessa te fortaleça e console em
tudo o que te suceda .
Eu tenho poder para retri buir além de todo o modo e
medida .
Não sofrerás aqui por muito tempo, bem para sempre
serás atormentado pelas dores.
Espera um pouco e verás o rápido fim dos males.
Virá a hora em que cessará todo o trabalho e o tumulto.
É pequeno e breve tudo o que passa com o tempo.

2.
Faz o que fazes, trabalha fielmente na minha vinha: Eu
serei a tua recompensa ( Gn 1 5 , 1 ) .
Escreve, lê, canta, geme, cala-te, reza, suporta com
paciência as adversidades: a vida eterna é digna de todos
estes e até de maiores combates.
A paz virá num dia conhecido do Senhor e não haverá
mais dia nem noite, como neste mundo, mas uma luz eterna,
uma claridade infinita, uma paz firme e um seguro descanso.
Não dirás então: quem me libertará deste corpo de morte?
( Rm 7,24 ) , nem clamarás: ai de mim, porque o meu exílio se

214 ]
prolongou! ( Sl 1 2 0 [ 1 1 9] ,5-6 ) , pois a morte será destruída
(Is 25, 8 ) e a salvação será indestrutível; não haverá qualquer
ansiedade, mas alegria feliz, bela e doce companhia.

3.
Oh, se tivesses visto do Céu as coroas eternas dos santos
e com quanta glória exultam aqueles que neste mundo eram
j ulgados desprezíveis e quase indignos de viver, depressa te
curvarias até ao chão, preferindo estar suj eito a todos a
mandar num só, e não desej arias os alegres dias desta vida;
mas, antes, te alegrarias de sofrer por Deus e chegarias ao
ponto de ter como o maior bem ser contado como nada
entre os homens.

4.
Oh, se estas coisas tivessem sabor para ti e penetrassem
profundamente no teu coração ! Como ousarias queixar-te
mesmo uma só vez ?
Acaso não merece a vida eterna que se suporte tudo o que
custa ?
Não é pouca coisa perder ou ganhar o Reino de Deus.
Ergue, pois, a tua face para o Céu; e eis-me, e a todos os
meus santos comigo, aqueles que grande luta travaram neste
mundo.
Muito se alegram, muito são consolados, estão bem segu­
ros e muito descansam, e permanecerão comigo sem fim no
Reino do meu Pai.

[ 215
XLVIII

Do dia da eternidade e das angústias desta vida

1.
DIS CÍPULO -Ó mansão bem-aventurada da cidade
suprema !
Ó claríssimo dia da eternidade que a noite não obscurece,
mas onde sempre irradia a suma verdade ! Dia sempre alegre,
sempre seguro, e que nunca muda !
Oh, oxalá resplandecesse esse dia e todas estas coisas
temporais tivessem o seu fim !
Resplandece ele, e m verdade, para o s santos, c o m uma
claridade eterna, mas só de longe e como num espelho para
os peregrinos na Terra.

2.
Sa bem o s habitantes do Céu como esse dia é alegre;
gemem os degredados filhos de Eva porque o seu dia é de
amargura e de tédio.
Os dias deste tempo são curtos e maus ( Gn 47,9 ) , cheios
de dores e de angústias; neles o homem é infetado por muitos
pecados, enredado em muitas paixões, tolhido por muitos
medos, aberto a muitos cuidados, distraído com muitas curio­
sidades, envolvido em muitas vaidades, rodeado por muitos
erros, gasto por muitos trabalhos, curvado pelas tentações,
amolecido pelo prazeres, atormentado pela pobreza.

3.
Oh, quando virá o fim destes males ? Quando me liberta­
rei da triste servidão dos pecados ?

216 ]
Quando me lembrarei, Senhor, só de ti ? Quando me ale­
grarei plenamente em ti ?
Quando me encontrarei sem qualquer entrave na verda­
deira liberdade, sem peso de alma ou de corpo ?
Quando haverá paz segura, imperturbável e certa, paz
por dentro e paz por fora, paz firme por toda a parte ?
Bom Jesus, quando estarei a ver-te, quando contemplarei a
glória do teu Reino ? Quando serás para mim tudo em tudo ?
Oh, quando estarei eu contigo no teu Reino, que desde
sempre preparaste para os que amas ? (Mt 25,34 ) .
Fui abandonado pobre e degredado numa terra hostil,
onde em cada dia há lutas e as maiores desgraças.

4.
Consola o meu exílio, mitiga a minha dor, porque por ti
suspira todo o meu desej o.
Tudo o que este mundo me oferece por consolo é para
mim um fardo.
Quero fruir de ti intimamente, e não consigo alcançar-te.
Quero apegar-me às coisas do Céu, mas deprimem-me as
deste mundo e as paixões não mortificadas.
Quero elevar-me pelo espírito acima de todas as coisas,
mas eis que a carne me obriga a suj eitar-me a elas.
E assim, homem infeliz, comigo mesmo luto e me torno
pesado a mim próprio, pois que enquanto o espírito procura
o Alto, a carne quer estar em baixo.

5.
Oh, como sofro interiormente quando o meu espírito se
ocupa das coisas do Céu e, ao rezar, sou assaltado pela mul­
tidão das coisas de Terra !
Meu Deus, não te afastes de mim, nem na tua ira aban­
dones o teu servo (SI 7 1 [70] , 1 2; 27[2 6] , 9 ) .

[ 21 7
Faz brilhar o teu raio e dissipa as trevas; lança as tuas setas
(Sl 1 44 [ 143],6) e confundam-se os fantasmas do inimigo.
Recolhe em ti os meus sentidos; faz-me esquecer todas as
coisas do mundo; concede-me que fuj a e despreze os fantas­
mas dos vícios.
Socorre-me, ó eterna Verdade, e nenhuma vaidade me
abalará ! Vem, Suavidade do Céu, e que toda a impureza fuj a
da tua face !
Perdoa-me e tem de mim misericórdia todas as vezes que,
na oração, te esqueço por outras coisas.
Pois, na verdade, eu confesso que me distraio muitas vezes.
Frequentemente não estou onde o meu corpo se encontra
de pé ou sentado, mas sim onde me leva o pensamento.
Estou onde está o meu pensamento, e o meu pensamento
está geralmente onde está aquilo que eu amo.
E ocorre-me mais depressa o que por natureza ou hábito
me agrada.

6.
Por isso, Tu, a Verdade, disseste claramente: onde está o
teu tesouro, aí está o teu coração ( Mt 6,2 1 ) .
S e amo o Céu, d e boa vontade penso nas coisas d o Céu.
Se amo o mundo, alegro-me com as felicidades do mundo
e entristeço-me com os seus males.
Se amo a carne, muitas vezes penso no que lhe pertence.
Se amo o espírito, gosto de pensar nas coisas espirituais.
Falo e dou ouvidos às coisas que amo, e delas são as ima-
gens que trago para casa.
Mas feliz o homem que por ti, Senhor, se liberta de todas
as criaturas, que faz violência à natureza e crucifica os dese­
j o s da carne com o fervor do espírito; a fim de que, acal­
mada a sua consciência, te ofereça uma oração pura e se
torne digno, a bandonando as coisas do mundo fora ou
dentro de si, de se j untar aos coros dos anj os.

218 ]
XLIX

Do desejo da vida eterna,


e de quão grandes são os bens prometidos aos que lutam

1.
CRISTO - Filho, quando sentires descer sobre ti, do Alto,
o anseio da felicidade eterna, e desej ares sair da tenda do
corpo para poderes contemplar a minha luz sem a sombra
daquilo que passa, alarga o teu coração e acolhe esta santa
inspiração com todo o teu amor.
Dá muitas graças à suprema Bondade que assim se digna
agir contigo, que te visita com doçura, que te excita com
ardor, que te eleva com força, para que não caias pelo t,.e u
peso nas coisas do mundo.
Não consideres isso como pensamento ou esforço teus,
mas sim como puro favor da suprema graça e do olhar de
Deus, para que progridas em virtudes e numa maior humil­
dade, e te prepares para os combates futuros; para que pro­
cures unir-te a mim como todo o amor do teu coração e
servir-me com uma vontade fervorosa.

2.
Filho, muitas vezes arde o fogo, mas sem fumo a chama
não se eleva .
Assim também aspiram os desej os de alguns para a s
coisas d o Céu, e contudo n ã o s e encontram livres d a tenta­
ção do amor carnal.

[ 21 9
E por isso não fazem só para glória de Deus o que tão
insistentemente lhe pedem.
Assim é, muitas vezes, o teu desej o, que talvez tão impor­
tunamente insinuaste.
Pois nada do que é misturado ao amor-próprio é puro e é
perfeito.

3.
Pede, não o que te é agradável e cómodo, mas o que me é
aceitável e me honra; porque, se agires com j ustiça, deves
preferir e seguir a minha vontade e não o teu desej o ou qual­
quer desej o.
Conheço o teu desej o e ouvi as tuas contínuas queixas.
Quererias j á estar na liberdade da glória dos filhos de
Deus; já suspiras pela morada eterna e pela pátria do Céu
cheia de alegria; mas ainda não chegou essa hora, e estás
ainda noutro tempo, tempo de guerra, de trabalho e de pro­
vação .
Queres encher-te com o supremo bem, mas ainda não o
podes conseguir.
Sou Eu: espera-me, diz o Senhor, até que venha o Reino
de Deus ( Lc 22, 1 8 )

4.
Tens de ser ainda experimentado na Terra e exercitado
em muitas coisas .
De vez e m quando, é-te dada a consolação, mas n ã o t e é
concedida uma total plenitude.
Portanto, anima-te e sê forte (Js 1 ,7), tanto a fazer como
a sofrer as coisas adversas à natureza.
Importa que te revistas do homem novo ( Ef 4,24 ) ; e que
te mudes num outro homem ( 1 Sm 1 0,6-9 ) .

220 ]
É -te necessário muitas vezes fazer o que não queres e
abandonar o que desej as.
O que agrada aos outros seguirá o seu caminho, mas o
que te agrada não avançará .
O que os outros dizem será ouvido; o que tu dizes, tido
como nada.
Outros pedirão e receberão; tu pedirás e nada obterás.
Outros serão grandes na boca dos homens; mas de ti não
se falará.
A outros se confiará isto ou aquilo; mas tu para nada
serás j ulgado útil.
Por tudo isto a natureza se entristecerá de vez em
quando: e isso terá muito valor, se o suportares em silêncio.

5.
Nestas e em muitas outras coisas semelhantes costuma
ser experimentado o fiel servo de Deus, para ver se é capaz
de se negar e se quebrar em todas as coisas.
Quase nada há que tanto te prove que precisas de ser
mortificado como veres e sofreres o que é contrário à tua
vontade, sobretudo quando te ordenam coisas desproposita­
das ou que te não pareçam úteis.
E como não ousas resistir ao poder do superior a que
estás subordinado, parece-te duro caminhar à vontade de
outro e não ter em conta a tua opinião pessoal.

6.
Mas pensa, filho, no fruto destes trabalhos, no fim que não
demora e no tão grande prémio; e não sentirás desgosto por
isso, mas sim grandíssima consolação para a tua paciência.
Na verdade, por esta pequena vontade que abandonas
agora porque queres, farás certamente a tua vontade nos
Céus.

[ 221
Aí encontrarás certamente tudo o que quiseres, tudo o
que possas desej ar; aí todo o bem te será presente, sem medo
de o perderes.
Aí, a tua vontade, sempre uma comigo, nada desej ará de
exterior ou de particular.
Aí, ninguém te resistirá, ninguém se queixará de ti, nin­
guém te entravará, ninguém te contrariará, mas tudo o que
desej aste estará presente e confortará o teu coração e o
encherá até ao cimo.
Aí darei a glória em paga da inj úria que sofreste; o manto
do louvor, pela tristeza; pelo último lugar, um trono no
Reino para sempre.
Aí se mostrará o fruto d a obediência, aí se alegrará o
esforço da penitência e será coroada com glória a humilde
submissão.

7.
Por isso, verga-te agora humildemente às mãos de todos e
não te preocupes com quem é que disse ou ordenou isto ou
aquilo; mas esforça-te sinceramente, se um teu superior, ou
inferior, ou igual, te reclamar ou ordenar qualquer coisa, por
o acolheres de bom ânimo e procurares satisfazê-lo com ver­
dadeira boa vontade.
Que um procura isto e outro aquilo, que aquele se glori­
fique daquilo e este disto, e que sej a louvado mil e mil vezes;
mas tu, nem nisto nem naquilo, mas alegra-te sim no des­
prezo de ti próprio, só na minha vontade e glória.
Deves desej ar isto: que, quer pela vida, quer pela morte,
Deus seja em ti glorificado ( Fl 1 ,20 ) .

222 ]
L

De como o homem desolado


se deve entregar nas mãos de Deus

1.
DISCÍPULO - Senhor Deus, Pai santo, sê bendito agora
e para sempre porque, tal como queres, assim se fez, e tudo
o que fazes é bom.
Que em ti se alegre o teu servo, e não em si próprio ou em
qualquer outro ; pois que só Tu és a verdadeira alegria , a
minha esperança e a minha coroa, a minha felicidade e a
minha glória, Senhor.
Que tem o teu servo senão o que de ti recebeu ? ( 1 Cor
4,7), e até isso sem que o tenha merecido ?
É teu tudo o que deste e fizeste.
Estou pobre e em trabalh os desde a minha juventude (SI
8 8 [ 8 7] , 1 6 ) , e a minha alma entristece-se por vezes até às
l ágrima s , e, outras vezes, perturba-se em si mesma pelas
grandes paixões.

2.
Desej o a alegria d a paz: clamo pela paz dos filhos que por
ti são apascentados na luz da consolação.
Se concedes a paz, se infundes santa alegria, a alma do teu
servo ficará cheia de harmonia e fervorosa em teu louvor.
Mas se te afastares, como o costumas tantas vezes, não
poderá correr na via dos teus mandamentos ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8 ] ,
3 2 ) ; mas mais s e dobrarão o s seus j oelhos a o bater n o peito:

[ 22 3
porque para ele já não é como ontem e antes de ontem
( Gn 3 1 , 5 ), quando a tua luz brilhava por sobre a sua cabeça
(Jb 29,3 ) , e à sombra das tuas asas era protegido das tenta­
ções que o assaltavam.

3.
Pai j usto e sempre digno de louvor, aproxima-se a hora
em que será j ulgado o teu servo.
Pai a quem devemos amar, é justo que, nesta hora, o teu
servo por ti sofra qualquer coisa.
Pai eternamente digno de veneração, vem a hora que
desde sempre sabias haver de vir, em que por pouco tempo o
teu servo sucumbe cá fora, embora por dentro viva sempre
j unto de ti.
Por algum tempo é preciso que sej a desprezado, que sej a
humilhado e desfaleça diante dos homens, esmagado pelas
paixões e pelos desfalecimentos, para que de novo ressurj a
contigo na aurora duma nova luz e sej a engrandecido no
Céu.
Pai santo, Tu assim dispuseste e assim quiseste: e assim se
fez o que Tu próprio ordenaste.

4.
É esta a graça que concedes ao que é teu amigo: sofrer e
ser atormentado no mundo por teu amor, sempre que o per­
mites e através de quem o permites.
Sem o teu conselho e a tua providência, e sem uma causa,
nada se faz na Terra.
É para mim um bem, Senhor, que me tenhas humilhado,
para que eu conheça os caminhos da tua justiça ( SI 1 1 9
[ 1 1 8 ] , 7 1 ) , e afaste todos os orgulhos do coração e as pre­
sunções. É-me útil que a confusão tivesse coberto a minha

224 ]
face ( Sl 6 9 [ 6 8 ] , 8 ) , para que procure a tua consolação, mais
do que a dos homens.
Aprendi ainda a temer os teus inescrutáveis j uízos, Tu que
tanto afliges o j usto como o pecador, mas não sem equidade
e sem justiça.

5.
Graças te dou porque me não poupaste a sofrimentos,
mas me gastaste com duros golpes, infligindo-me dores e
metendo-me em angústias fora e dentro de mim.
Não há quem me console de tudo o que existe no mundo
senão Tu, Senhor meu Deus, divino médico das almas: que
feres e que curas, que conduzes e retiras dos infernos ( 1 Sm
2,6; Tb 1 3 ,2 ) .
A tua disciplina está sobre mim: e a tua própria vara me
ensinará ( Sl 1 8 [ 1 7] , 3 6 ) .

6.
Eis, amado Pai, que estou nas tuas mãos e me inclino sob
a vara da tua correção; fere-me as costas e o pescoço, para
que endireite segundo a tua vontade o que em mim há de
torto.
Torna-me um discípulo fervoroso e humilde, como tão
bem o sabes, para que caminhe ao sabor da tua vontade.
Entrego-me, e a tudo o que é meu, para que o emendes,
pois é melhor ser emendado neste mundo do que no que há
de vir.
Tu conheces todas as coisas e cada uma delas, e nada se te
esconde na consciência humana.
Antes que suceda, Tu sabes o que há de vir, e não precisas
de ninguém que te ensine ou aconselhe sobre o que se passa
na Terra

[ 22 5
Tu sabes o que convém ao meu progresso e de quanto
serve a tribulação para limpar a ferrugem dos vícios.
Faça-se em mim segundo a tua vontade adorável, e não
abandones a minha vida de pecado, de ninguém melhor e
mais claramente conhecida que de ti.

7.
Concede-me, Senhor, que eu conheça o que deve ser
conhecido, que eu ame o que se deve amar, que eu louve o
que mais te agrada, que eu estime o que te é precioso, que eu
censure o que a teus olhos é vil .
Não permitas que eu julgue segundo o que meus olhos
veem, nem me pronuncie segundo o que oiço dos homens
insensatos (Is 1 1 , 3 ) , mas, sim, que eu distinga com verda­
deiro j uízo as coisas visíveis e as espirituais e que sempre
procure acima de tudo a tua vontade.

8.
Muitas vezes se enganam, ao j ulgar, os sentidos dos ho­
mens, e enganam-se também os que gostam do mundo ao
amarem somente as coisas que se veem.
Em que se torna melhor aquele que pelo homem é tido
por maior ?
Ao exaltá-lo, é um mentiroso que engana um mentiroso,
Um vaidoso que engana outro vaidoso, um cego que engana
um cego, um fraco que engana outro fraco; e, quando o
louva sem razão, verdadeiramente mais o confunde.
Pois aquilo que alguém é a teus olhos, isso é, e nada mais,
diz o humilde São Francisco ( São Boaventura na sua Vida de
São Francisco de Assis, cap . 6 ) .

226 ]
LI

Como nos devemos ocupar de trabalhos humildes


quando desfalecemos nos mais altos

1.
CRISTO - Filho, não consegues manter-te sempre no
mais fervoroso desej o das virtudes, nem deter-te no mais alto
grau de contemplação, mas tens necessariamente, de tempos
a tempos, por causa da tua corrupção original, que descer a
coisas mais baixas e levar, ainda que à força e com tédio, o
fardo da vida corruptível.
Enquanto tiveres um corpo mortal, sentirás o tédio e o
peso de coração.
É, pois, necessário, enquanto se vive na carne, gemer com
o peso da carne e por não poderes continuamente abraçar­
-te às coisas do espírito e à contemplação divina.

2.
Por isso te convém refugiares-te nos trabalhos humildes e
exteriores e recreares-te nas boas obras, esperar a minha
chegada e a suprema visita com firme confiança, aguentar o
teu exílio e a aridez do espírito com paciência, até que de
novo sej as por mim visitado e liberto de todas as ansiedades.
Então te farei esquecer os sofrimentos e gozar de paz inte­
rior: diante de ti estenderei os prados das Escrituras para
que, de coração dilatado, comeces a correr na via dos meus
mandamentos (SI 1 1 9 [ 1 1 8 ] , 3 2 ) .
E dirás: os sofrimentos d o tempo presente não estão em
p roporção com a glória futura, que em nós será revelada
( Rm 8 , 1 8 ) .

[ 22 7
UI

Que o homem se não j ulgue digno de consolação,


mas antes réu de castigos

1.
DISCÍPULO - Senhor, eu não sou digno da tua consola­
ção nem de qualquer visita ao meu espírito.
Por isso ages com j ustiça para comigo, quando me deixas
pobre e desolado.
Ainda que chorasse um mar de lágrimas, não seria digno
da tua consolação.
Na verdade, apenas sou digno de ser atormentado e
punido, porque muitas vezes te ofendi gravemente e inúme­
ras vezes pequei.
Por isso, pensando bem, não sou digno da menor conso­
lação.
Mas Tu, ó Deus clemente e misericordioso, que não que­
res que as tuas obras tenham fim, para mostrares as rique­
zas da tua bondade em vasos de misericórdia ( Rm 9 , 2 3 ) ,
sem qualquer mérito dele, dignas-te consolar o teu servo
dum modo tão superior ao dos homens .
N a verdade, as tuas consolações não s ã o como as pala­
vras humanas.

2.
Que fiz eu, Senhor, para que me desses qualquer consola­
ção do Céu ?
Não me recordo de ter feito nada de bom, mas sim de

228 ]
sempre ter sido inclinado aos vícios e preguiçoso em emen­
dar-me.
É verdade, e não o posso negar.
Se outra coisa dissesse, Tu te erguerias contra mim e não
haveria quem me defendesse.
Que mereci pelos meus pecados, senão o Inferno e o fogo
que não finda ?
Em verdade, confesso que sou digno de toda a troça e
desprezo, e não mereço ser contado entre os teus fiéis.
E, embora me custe ouvir tal coisa, confessarei contra
mim mesmo e por amor da verdade os meus pecados, para
merecer alcançar mais facilmente a tua misericórdia.

3.
Que direi eu, culpado e cheio d e toda a confusão ?
Não tenho boca para falar, senão estas palavras: pequei,
Senhor, pequei. Tem misericórdia de mim e perdoa-me.
Deixa-me um pouco, para que chore a minha dor, antes
que vá para a terra tenebrosa, coberta pela sombra da morte
(Jb 1 0,20-2 1 ) .
Que pedes a um tão grande culpado, a um infeliz peca­
dor, senão que se abata e humilhe pelos seus crimes ?
No verdadeiro arrependimento e humildade de coração
nasce a esperança de se ser perdoado, reconcilia-se a cons­
ciência inquieta, recupera-se a graça perdida, defende-se o
homem da ira futura e encontram-se, num beij o santo, Deus
e a alma penitente.

4.
A humilde contrição dos pecados é para ti, Senhor, um
sacrifício aceitável, incomparavelmente mais perfumado na
tua presença do que o incenso ardente.
Ela é o bálsamo que te agrada e que quiseste fosse derra-

[ 229
mado nos teus pés sagrados, porque nunca desprezaste o
coração contrito e humilhado (SI 5 1 [5 0] , 1 9 ) .
A í é o lugar d e refúgio contra a ira do inimigo, aí se
emenda e purifica o que em outros· lados se manchou e con­
taminou.

230 ]
LIII

Que a graça de Deus se não liga


aos que saboreiam as coisas da Terra

1.
CRISTO - Filho, preciosa é a minha graça e não sofre
ser misturada com coisas estranhas ou com consolações
terrenas.
É necessário, por isso, a fastar todos os obstáculos à
graça, se queres por ela ser banhado.
Procura um lugar escondido, tem gosto em estares só
contigo, não busques a conversação de ninguém; mas eleva
antes a Deus uma fervorosa prece, para que obtenhas um
espírito contrito e uma consciência pura.
Tem todo o mundo por nada e prefere a todas as coisas
exteriores o tempo para te ocupares de Deus.
Na verdade, não te podes ocupar de mim e ao mesmo
tempo deleitares-te naquilo que passa.
Precisas de te a fastar dos teus conhecidos e amigos e
manter o espírito separado de toda a consolação temporal.
Assim insiste o bem-aventurado apóstolo Pedro, que os
fiéis de Cristo se mantenham tal como estrangeiros e pere­
grinos neste mundo ( 1 Pe 2 , 1 1 ) .

2.
Oh, quanta confiança haverá para o que vai morrer e que
o amor de coisa alguma apega ao mundo !
Mas o espírito ainda doente não compreende que se

[ 23 1
tenha um coração assim separado de tudo, e o homem
carnal não conhece a liberdade do homem interior.
Contudo, se verdadeiramente quer ser espiritual, precisa
de renunciar tanto aos estranhos como aos próximos, e a
ninguém temer mais que a si próprio.
Se te venceres completamente, tudo o resto vencerás com
maior facilidade.
A vitória perfeita é triunfar de si próprio.
Na verdade, aquele que se domina de tal modo que os
seus sentidos estão submetidos à razão, e a razão em todas
as coisas me obedece, esse é verdadeiramente o vencedor de
si e o senhor do mundo.

3.
Se desej as subir a esta altura, tens de começar com cora­
gem e pôr o machado na raiz, para que arranques e destruas
a oculta e desregrada inclinação para ti próprio e para todos
os bens pessoais e materiais.
Deste vício, que é o amor desordenado do homem por si
mesmo, depende quase tudo o que radicalmente deve ser
vencido.
Vencido e submetido esse mal, logo haverá grande paz e
tranquilidade.
Mas porque poucos se esforçam por morrer perfeita­
mente para si próprios, ou de si próprios sair plenamente,
por isso permanecem enredados em si e acima de si nunca se
podem elevar em espírito.
Mas àquele que desej a de boa vontade caminhar comigo,
preciso é que se mortifique de todas as suas afeições más e
desregradas e que se não apegue cobiçosamente a nenhuma
criatura com um amor egoísta.

232 ]
LIV

Dos movimentos diversos na natureza e da graça

1.
CRISTO Filho, repara atentamente nos movimentos da
-

natureza e da graça, pois que são bem contrários e subtis e


mal se podem distinguir, a não ser pelo homem espiritual e
interiormente iluminado.
Na verdade, todos desej am o bem e pretendem algo de
bom com o que dizem ou fazem: por isso muitos se enganam
sob esta aparência de bem.

2.
A natureza é astuta, arrasta, enreda e engana a muitos, e
tem-se sempre a si própria como fim; mas a graça caminha
com simplicidade, evita toda a aparência de mal, não tende
para a mentira e tudo faz puramente por Deus, em quem,
sendo seu fim, descansa.

3.
A natureza só à força quer ser mortificada, humilhada ou
vencida e nunca se submete ou subj uga de bom ânimo; mas
a graça esforça-se pela sua própria mortificação, resiste à
sensualidade, procura submeter-se, gosta de ser vencida, não
quer gozar da sua liberdade; ama a disciplina, não pretende
dominar ninguém, mas sim viver, manter-se e estar sob a
vontade de Deus, e por amor de Deus estar preparada a in­
clinar-se humildemente a toda a criatura humana ( 1 Pe 2, 1 3 ) .

[ 233
4.
A natureza trabalha para o seu próprio bem-estar, e pro­
cura tudo o que dos outros lhe venha como lucro; a graça,
porém, não considera o que lhe possa ser útil ou cómodo,
mas o que aproveita a muitos.
A natureza aceita de boa vontade a honra e o respeito; a
graça atribui fielmente a Deus toda a honra e toda a glória.
A natureza teme a humilhação e o desprezo; a graça
alegra-se em sofrer injúrias pelo nome de Jesus (At 5 ,4 1 ) .
A natureza ama a ociosidade e o repouso do corpo; a
graça não pode estar parada, mas abraça todo o trabalho de
bom ânimo.

5.
A natureza procura ter o que é curioso ou belo e odeia
tudo o que é vil e grosseiro; a graça deleita-se nas coisas sim­
ples e humildes, não trata com rudeza o que é rude, não foge
a cobrir-se com andraj os.
A natureza olha para o que é da Terra, alegra-se com os
ganhos deste mundo, entristece-se com as perdas, irrita-se
com a mais leve ofensa; mas a graça atende ao que é eterno,
não se apega às coisas temporais, não se perturba com a
perda delas nem se exalta com as mais duras palavras,
porque coloca o seu tesouro e alegria no Céu, onde nada
morre.

6.
A natureza é ambiciosa e gosta mais de receber do que
de dar, ama as coisas próprias e privadas; a graça, porém,
é piedosa e tudo põe em comum, evita o que é particular,
contenta-se com pouco, tem por mais feliz dar que receber
( At 20,3 5 ) .
A natureza inclina-se para a s criaturas, para a própria

234 ]
carne, para as vaidades e para a dispersão; mas a graça leva
a Deus e às virtudes, renuncia às criaturas, foge do mundo,
odeia os desejos da carne, limita as divagações, cora de apa­
recer em público.
A natureza aceita de boa vontade qualquer consolação
exterior na qual se deleite a seu gosto; mas a graça só em
Deus procura ser consolada e deleitar-se no supremo bem
acima de todas as coisas visíveis.

7.
A natureza tudo faz por lucro e por sua própria comodi­
dade, e nada pode fazer sem paga, mas espera conseguir
coisa igual, ou melhor, ou louvor, ou favor pelos bens que
fez, desej a que sej am exaltados os seus gestos e os seus dons;
porém, a graça nada de temporal procura, não pede outro
prémio além de Deus por sua recompensa, nem desej a das
coisas necessárias deste mundo senão'as que lhe servem para
alcançar as eternas.

8.
A natureza alegra-se com os muitos amigos e parentes,
orgulha-se com a nobreza da sua posição ou com a origem
da sua raça, sorri aos poderosos, lisonjeia os ricos, aplaude
os que lhe são semelhantes; mas a graça ama também os ini­
migos, não se orgulha com o número dos amigos, não consi­
dera a situação ou o nascimento senão onde a virtude for
maior, favorece os pobres mais que os ricos, compadece-se
dos inocentes mais que dos poderosos, alegra-se com os que
são verdadeiros e não com os que mentem, exorta sempre os
bons a esforçarem-se pelos melhores dons ( 1 Cor 12,3 1 ) e a
assemelharem-se, em suas virtudes, ao Filho de Deus.

[ 235
9.
A natureza depressa s e queixa d o que lhe falta, o u da
doença; a graça suporta a fraqueza com constância.
A natureza tudo orienta para si, por si combate e discute;
a graça, porém, tudo reconduz a Deus, donde tudo emana
na origem, nada de bom se atribui, não presume com arro­
gância, não discute, não prefere a sua opinião à dos outros,
mas em todo o sentimento ou ideia se submete à eterna sabe­
doria e ao divino exame.
A natureza gosta de saber segredos e ouvir novidades,
quer parecer exteriormente e experimentar muitas sensações,
desej a ser conhecida e fazer aquilo de que provém o louvor e
a admiração; mas a graça não se importa com o que é novo
ou curioso, porque tudo isto nasce da antiga corrupção, e
nada de novo e duradouro existe sobre a Terra.

1 0.
Assim ela ensina a refrear os sentidos, a evitar a vã com­
placência e ostentação, a esconder humildemente o que deve
ser louvado e admirado e a procurar em toda a coisa e em
toda a ciência o fruto da utilidade e o louvor e glória de
Deus.
Não quer que se faça alarde de si, nem das suas obras,
mas prefere que Deus sej a bendito nos seus dons, Ele que
tudo concede por pura caridade.
Esta graça sobrenatural é uma luz e um dom especial de
Deus, sinal próprio dos eleitos e penhor da salvação eterna,
ela que arrebata o homem das coisas da terra para o amor
das do Céu, e que torna espiritual o que é carnal.
Por isso, quanto mais a natureza é abatida e vencida,
tanto mais graça se derrama e, todos os dias, com novas visi­
tas, o homem interior se remodela segundo a imagem de
Deus.

236 ]
LV

Da corrupção da natureza e da eficácia da graça divina

1.
DISCÍPULO - Senhor meu Deus, que me criaste à tua ima­
gem e semelhança, concede-me esta graça que mostraste ser
tão grande e necessária à salvação, para que eu vença a minha
tão má natureza que me arrasta ao pecado e à perdição.
Na verdade, sinto em minha carne a lei do pecado que
contradiz a lei do meu espírito ( Rm 7,23 ) , e sinto-me como
cativo levado a obedecer em muitas coisas aos sentidos; nem
mesmo posso resistir às suas paixões, se a tua santa graça,
difundida ardentemente em meu coração, me não assistir.

2.
É necessária a tua graça e uma grande graça para que sej a
vencida a natureza, sempre inclinada ao mal desde a sua
adolescência ( Gn 8 ,2 1 ) .
Pois, manchada e viciada de pecado por Adão, o primeiro
homem, o castigo dessa mancha desceu a todos os homens,
de tal modo que a própria natureza, que por ti foi criada boa
e reta, está disposta ao vício e à fraqueza da natureza cor­
rompida e, assim, o seu movimento, abandonado a si mes­
mo, arrasta para o que é baixo e mau.
Na verdade, a pequena força que ficou é como uma cen­
telha escondida sob a cinza .
Esta é a própria razão natural que, embora rodeada por
muita obscuridade, ainda possui o j uízo do bem e do mal, a

[ 23 7
distinção do verdadeiro e do falso, ainda que j á não possa
cumprir tudo o que aprova e não possua já a plena luz da
verdade, nem a pureza das suas afeições.

3.
Daqui vem, meu Deus, que eu me deleite na tua lei se­
gundo o homem interior ( Rm 7,22 ) , sabendo que o teu man­
damento é bom, justo e santo ( ibid. , 1 2 ) , acusando todo o
mal e fugindo ao pecado; porém, pela carne sirvo a lei do pe­
cado ( ibid. , 2 5 ) , ao obedecer mais à sensibilidade que à
razão.
Daí, que eu seja capaz de desejar o bem, mas não consiga
fazê-lo ( ibid. , 1 8 ) .
Daí, que me decida, muitas vezes, a muitas coisas boas,
mas, porque me falta a graça para aj udar a minha fraqueza,
ao mais pequeno obstáculo recue e caia.
Daí vem que eu conheça o caminho da perfeição e vej a
bem claramente o que devo fazer, mas, oprimido pelo peso da
própria corrupção, me não erga para o que é mais perfeito.

4.
Oh, quanto me é necessária, Senhor, a tua graça para
começar, continuar e conseguir o bem, pois que, se sem ela
nada posso fazer ! Tudo, porém, posso em ti, com a ajuda da
graça ( Fl 4, 1 3 ) .
Oh, verdadeira graça d o Céu, sem a qual são nulos todos
os méritos próprios e de pouco valor os dons da natureza !
Sem a graça, Senhor, j unto de ti de nada servem as artes,
as riquezas, a beleza ou a força, nem o engenho ou a elo­
quência.
Pois que os dons da natureza são comuns aos bons e aos
maus, mas o dom próprio dos eleitos é a graça ou amor, com
a qual os que são marcados se tornam dignos da vida eterna.

238 ]
Tão elevada é esta graça que nem o dom da profecia, nem
a virtude dos milagres, nem a mais alta especulação serão
j ulgados alguma coisa sem ela.
Mas nem a fé nem a esperança nem quaisquer outras vir­
tudes te são aceites sem a caridade e a graça.

5.
Ó, bem-aventurada graça, que tornas o pobre em espírito
rico de virtudes e fazes o que é rico em muitos bens humilde
de coração, vem, desce até mim, enche-me logo de manhã
com a tua consolação, para que a minha alma não desfaleça
do cansaço e de secura do espírito.
Eu te rogo, Senhor, para que ache graça ante o s teus
olhos, pois que a m im basta-me a tua graça ( 2 Cor 1 2, 9 ) ,
mesmo que não obtenha o que a natureza desej a.
Se for tentado e atormentado por muitas tri bulações,
nada temerei, enquanto comigo tiver a tua graça.
Ela é a minha fortaleza; ela me dá conselho e auxílio.
É mais poderosa que todos os inimigos e mais sábia que
todos os sábios.

6.
Ela é mestra da verdade, doutora da disciplina, luz do
coração, consolo das angústias, afastadora da tristeza, dissi­
padora do medo, alimento da devoção, fonte de lágrimas .
Que sou eu sem ela, senão um tronco seco, um ramo
inútil e bom para deitar fora ?
Por isso, Senhor, que a tua graça me previna e siga sem­
pre, que ela me ajude a estar continuamente atento às boas
obras, por Jesus Cristo, teu Filho ( 1 6.º Domingo depois do
Pentecostes ) . Ámen.

[ 23 9
LVI

Como nos devemos negar a nós próprios


e imitar a Cristo pela Cruz

1.
CRISTO - Filho, quanto mais conseguires sair de ti pró­
prio, tanto melhor poderás caminhar para mim.
Tal como não desejar nada cá fora produz a paz interior,
assim o abandonar-se interiormente une a Deus.
Quero ensinar-te a perfeita negação de ti próprio na
minha vontade, sem contradição e sem queixa .
Segue-me (Mt 8 ,22; Me 2 , 1 4 ) .
E u sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 1 4,6 ) .
Sem caminho, não s e vai; sem verdade, não s e conhece;
sem vida, não se vive.
Eu sou o caminho que deves seguir, a verdade em que
deves crer, a vida que deves esperar.
Eu sou o caminho seguro, a verdade infalível, a vida
interminável.
Eu sou o caminho reto, a suprema verdade, a verdadeira
vida, a vida feliz, a vida incriada.
Se permaneceres no meu caminho, conhecerás a verdade,
e a verdade te libertará e alcançarás a vida eterna (Jo 8 ,32;
1 Tm 6, 1 2 ) .

2.
S e queres entrar na vida, cumpre o s mandamentos ( Mt
1 9 , 1 7) .

240 ]
Se queres conhecer a verdade, crê em mim.
Se queres ser perfeito, vende tudo ( ibid., 2 1 ) .
S e queres ser meu discíp u lo, nega-te a ti p róprio ( Mt
1 6,24 ) .
S e queres possuir a vida d a bem-aventurança, despreza a
vida presente.
Se queres ser exaltado no Céu, humilha-te neste mundo.
Se queres reinar comigo, leva a minha cruz.
Na verdade, só os servidores da Cruz encontram a vida
da felicidade e da luz verdadeira.

3.
DISCÍPULO - Senhor Jesus, porque a tua vida era dura e
desprezada pelo mundo, faz com que te imite no desprezo
do mundo.
Na verdade, não é maior o servo que o seu senhor, nem o
discípulo está acima do mestre (Mt 1 0,24 ) .
Que o teu servo s e exercite n a tua vida, pois que nela está
a minha salvação e a verdadeira santidade.
Que tudo quanto eu leia ou ouça fora dela me não alegre
nem deleite plenamente.

4.
CRISTO - Filho, porque sabes tudo isto e tudo leste,
bem-aventurado serás, se o cumprires (Jo 1 3 , 1 7) .
O que possui os meus mandamentos e os cumpre, esse é
aquele que me ama . . .
E E u o amarei e a ele m e manifestarei (Jo 1 4,2 1 ) e fá-lo­
-ei sentar-se comigo (Ap 3 ,2 1 ) no Reino de meu Pai.

5.
DISCÍPULO - Senhor Jesus, tal como disseste e prome­
teste, assim se faça e assim eu consiga merecê-lo.

[ 241
Recebi, recebi da tua mão a cruz; levei-a e levá-la-ei até à
morte, como me mandaste.
Na verdade, é cruz a vida do bom monge, mas conduz ao
Paraíso.
Já se começou: não se pode andar para trás nem desertar.

6.
Vamos, irmão s , prossigamos j untos: Jesus estará con­
nosco.
Por amor de Cristo, aceitámos esta cruz; por Cristo, per­
severemos nela.
Ele será o nosso auxílio, aquele que nos conduz e nos
precede.
Eis que diante de nós caminha o nosso Rei, que por nós
lutará.
Sigamo-lo com ânimo: ninguém tema terrores; estej amos
prontos para morrer corajosamente na guerra, e não faça­
mos injúria à nossa glória, fugindo ( 1 Mac 9, 1 0 ) da cruz.

242 ]
LVII

Que o homem não deve desanimar demasiadamente


quando cai nalguma falta

1.
CRISTO - Filho, mais me agradam a paciência e a humil­
dade no tempo adverso, que a muita consolação e devoção
na prosperidade.
Porque te entristece uma pequena coisa dita contra ti ?
Nem que fosse maior te deverias perturbar.
Mas agora, passa por cima dela .
Não é coisa nova, não é a primeira, nem será a última, se
viveres muito tempo.
És bastante forte quando nada te é adverso.
Aconselhas bem os outros e sabes dar-lhes força com as
tuas palavras, mas quando à tua porta bate de repente qual­
quer tribulação, falhas no conselho e na força.
Considera a tua grande fraqueza, que tantas vezes experi­
mentas nas mais pequenas coisas.
Contudo, isto sucede para tua salvação, quando estas
coisas e outras semelhantes te acontecem.

2.
Põe-nas, como melhor souberes, para fora d o coração: e,
se te tocam, que ele não desfaleça nem se enrede por muito
tempo.
Aguenta, ao menos com paciência, se o não podes fazer
com alegria.

[ 243
Assim, se ouvires algo que te agrade menos e te sentires
indignado, reprime-te, para que não deixes sair qualquer
coisa desregrada da tua boca, que vá escandalizar os mais
pequenos.
Depressa se acalmará a emoção provocada e a mágoa
interior será adoçada com o regresso da graça .
Assim, se ouvires algo que te agrade menos e te sentires
indignado, reprime-te, para que não deixes sair qualquer
coisa desregrada da tua boca, que vá escandalizar os mais
pequenos.
Depressa se acalmará a emoção provocada e a mágoa
interior será adoçada com o regresso da graça.
Eu vivo ainda, diz o Senhor, pronto para te aj udar, e
sempre te costumo consolar, se em mim confiares e me invo­
cares com devoção.

3.
Sê constante ( Sir 2,2 ) e prepara-te para aguentares ainda
mais.
Nem tudo está perdido, se muitas vezes te encontras ator-
mentado ou em grave tentação.
És homem, e não Deus.
És carne, e não anj o.
Como poderias permanecer sempre em igual estado de
virtude, se isso faltou ao anj o no Céu e ao primeiro homem
no Paraíso ?
Eu sou o que elevo os tristes à segurança e ergo à minha
divindade os que conhecem a sua fraqueza.

4.
DISCÍPULO - Senhor, bendita sej a a tua palavra, mais
doce do que o mel e do que o favo de mel para a minha boca
( SI 1 9 [ 1 8] , 1 1 ) .

244 ]
Que faria em tantas tribulações e angústias, se me não
confortasses com as tuas santas palavras ?
Desde que chegue ao porto de salvação, que me importa
o que sofri e quanto sofri ?
Dá-me um bom fim, dá-me uma feliz passagem deste
mundo.
Lembra-te de mim, meu Deus, e dirige-me em reto cami­
nho para o teu Reino.
Ámen.

[ 245
LVIII

Que se não devem perscrutar as


coisas altas e os j uízos ocultos de Deus

1.
CRISTO - Filho, teme discorrer sobre os altos assuntos e
sobre os ocultos j uízos de Deus: porque é que um é assim
abandonado e o outro consegue tanta graça, porque é este
tão afligido e aquele tão grandemente exaltado.
Estas coisas ultrapassam todas as possibilidades humanas
e, para investigar o j uízo de Deus, nenhuma razão ou dis­
cussão prevalecem.
Por isso, quando o inimigo te sugerir tais coisas ou quan­
do homens curiosos te interrogarem, responde como o pro­
feta: justo és, Senhor, e reto o teu juízo ( SI 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 3 7 ) .
Ou então : verdadeiros são o s juízos d o Senhor e e m s i
próprios justificados ( SI 1 9 [ 1 8 ] , 1 0 ) .
O s meus j uízos devem ser temidos, e não discutidos, pois
são incompreensíveis para a inteligência humana .

2.
Não queiras também investigar ou discutir o s méritos dos
santos : qual será o mais s anto ou o maior no Reino dos
Céus.
Tais coisas geram, as mais das vezes, discussões e alterca­
ções inúteis, e alimentam o orgulho e a vã glória, donde nas­
cem invej as e dissensões, pois que um teima orgulhosamente
em preferir este santo e outro aquele.

246 ]
Querer saber e investigar tais coisas não traz qualquer
proveito, mas antes desagrada aos santos; porque não sou o
Deus da discussão, mas sim da paz ( 1 Cor 1 4 ,3 3 ) , paz que é
mais verdadeira humildade do que exaltação de si próprio.

3.
Alguns são atraídos pelo zelo d o amor para estes ou
aqueles com um maior afeto, mas este afeto é mais humano
que divino.
Eu sou o que criei todos os santos: Eu dei a graça, Eu ofe­
reci a glória.
Eu conheço os merecimentos de cada um, Eu os preveni
com as bênçãos da minha doçura ( Sl 2 1 [20] ,4 ) , Eu conheci
os que amo antes de todos os séculos.
Eu escolhi-os do mundo (Jo 1 5 , 1 9 ) , não foram eles que
me escolheram; Eu chamei por meio da graça e atraí pela
misericórdia.
Eu os conduzi através de várias tentações, Eu lhes con­
cedi enorme consolação, Eu dei perseverança e recompensei
a sua paciência .

4.
Eu conheço o primeiro e o último, e a todos envolvo no
meu amor sem medida.
Devo ser louvado em todos os meus santos, bendito sobre
todas as coisas e honrado em cada um deles, pois que tão
gloriosamente os elevei e predestinei sem quaisquer anterio­
res méritos seus.
Por isso, aquele que desprezar o mais pequeno dos meus
não honra o que é maior: pois Eu fiz o grande e o pequeno
(Sb 6,7) .
E quem diminui alguns dos santos, diminui-me a mim e a
todos os outros no Reino dos Céus.

[ 2 47
Todos são um s ó pelo vínculo da caridade: sentem o
mesmo, querem o mesmo, e todos se amam na unidade.

5.
E ainda - o que é bem maior - amam-me a mim mais que
a si próprios ou aos seus méritos.
Na verdade, arrebatados acima de si �esmos e arrastados
para fora do seu próprio amor, caminham todos no meu
amor e aí descansam com proveito .
Nada há que os possa afastar ou deprimir, pois, cheios da
verdade eterna, ardem no fogo da eterna caridade.
Cessem, pois, os homens carnais e animais de discutir o
estado dos santos, eles que só sabem amar os seus próprios
prazeres.
Tiram e acrescentam segundo o que lhes agrada, e não
segundo o que apraz à eterna verdade.

6.
Em muitos há ignorância, sobretudo naqueles que, pouco
iluminados, nunca são capazes de amar ninguém com verda­
deiro amor espiritual.
São sobretudo atraídos para estes ou a queles por um
afeto natural e uma amizade humana, e tal como se com­
portam com as coisas de Terra assim imaginam as do Céu.
Mas há uma incomparável distância entre as coisas que
os homens imperfeitos pensam e as que meditam os que são
iluminados por uma revelação superior.

7.
Teme, pois, meu filho, ocupar-te com curiosidade destas
coisas que ultrapassam a tua ciência, mas inquieta-te antes e
esforça-te por poderes encontrar um lugar, ainda que o mais
pequeno, no Reino de Deus.

248 ]
E ainda que alguém soubesse qual era o mais santo ou o
maior no Reino dos Céus, de que lhe serviria tal conheci­
mento, senão para se humilhar por isso diante de mim e dar
ainda maior louvor ao meu nome ?
Muito mais aceitável se torna para Deus aquele que
pensa na grandeza dos seus pecados, na pequenez das suas
virtudes e em como está longe da perfeição dos santos, do
que o que discute a grandeza deles ou a sua pequenez.
É melhor orar aos santos com fervorosas orações e lágri­
mas e implorar humildemente os seus gloriosos sufrágios,
que perscrutar-lhes os segredos com vã curiosidade.

8.
Bem se contentariam eles, e plenamente, se os homens se
soubessem contentar e moderar as suas vãs palavras.
Não se orgulham dos seus próprios méritos , pois que
nada de bom se atribuem, mas tudo a mim, porque tudo lhes
dei com a minha infinita caridade.
Estão de tal modo cheios com o imenso amor da divin­
dade e com a alegria superabundante, que nada lhes falta
para a glória, nada lhes pode faltar à felicidade.
Todos os santos, tanto mais altos são na glória, quando
mais humildes são em si próprios, e mais perto de mim
vivem e mais me são queridos.
Por isso está escrito: que depunham as suas coroas diante
de Deus e caíam com o rosto em terra diante do Cordeiro, e
adoravam o que vive pelos séculos dos séculos ( Ap 4 , 1 0 ;
5,14).

9.
Muitos procuram saber qual será o maior n o Reino de
Deus (Mt 1 8 , 1 ) , eles que ignoram se serão dignos de ser con­
tados entre os mais pequenos.

[ 249
É j á grande ser o mais pequeno no Céu, onde todos são
grandes, porque todos serão chamados filhos de Deus (Mt
5 , 9 ) , e o serão.
O mais pequeno estará lá entre mil, e o pecador de cem
anos morrerá (Is 60,22; 65,2 0 ) .
N a verdade, como o s discípulos perguntassem qual seria
maior no Reino dos Céus, ouviram esta resposta:
Se vos não converterdes e tornardes como meninos, não
entrareis no Reino dos Céus.
Assim, o que se fizer como esta criança, esse será o maior
no Reino dos Céus (Mt 1 8 ,3-4 ) .

1 0.
Ai daqueles que não se querem humilhar de sua livre von­
tade como os pequeninos, porque a humilde porta do Reino
dos Céus os não deixará entrar.
Ai, também, dos ricos que têm aqui as suas consolações
( Lc 6,24 ) , porque, ao entrarem os pobres no Reino de Deus,
eles ficarão de fora a chorar.
Alegrai-vos, humildes, e exultai, ó pobres, porque vosso
é o Reino de Deus ( ibid. , 2 0 ) , se caminhardes na verdade.

250 ]
LIX

Que só em Deus se deve fixar toda a esperança e confiança

1.
DISCÍPULO - Senhor, qual é a minha confiança nesta
vida, qual a minha maior consolação entre tudo o que existe
sob os céus ?
Não és Tu, Senhor meu Deus, cuj a misericórdia não tem
medida ?
Ou quando pôde existir mal, estando Tu presente ?
Antes quero ser pobre por ti, que rico sem ti.
Prefiro andar contigo como peregrino na Terra, a possuir
sem ti o Céu.
Onde Tu, aí o Céu, e só morte e inferno onde não estás.
Tu és todo o meu desej o: por isso é necessário que gema,
clame e reze por ti.
Em nada posso confiar plenamente e finalmente, e que
melhor me aj ude nas necessidades, do que em ti, meu único
Deus.
Tu és a minha esperança, a minha confiança; Tu, o meu
consolador e o mais fiel em tudo.

2.
Todos procuram o que é seu ( Fl 2,2 1 ) ; mas Tu só preten­
des a minha salvação e o meu progresso, e tudo me conver­
tes em bem.
Assim, se me expões a diversas tentações e adversidades,
é porque tudo ordenas para minha utilidade, pois costumas
experimentar de mil maneiras aqueles que amas.

[ 251
E nessa provação não deves ser menos amado e louvado
do que ao encheres-me das consolações do Céu.

3.
Por isso, e m ti, Senhor Deus, e u ponho toda a minha
esperança e meu refúgio, a ti entrego toda a minha tribula­
ção e angústia; porque, do que fora de ti vej o, tudo acho
fraco e instável.
Na verdade, de nada servirão muitos amigos; nem fortes
auxiliares poderão aj udar, nem prudentes conselheiros dar
uma útil resposta, nem consolar os livros dos doutores, nem
qualquer preciosa substância libertar, nem qualquer lugar
secreto e ameno dar segurança, se Tu próprio não assistires,
aj udares, confortares, consolares, instruíres e guardares .

4.
Assim, todas a s coisas que parecem ser para a paz ou
para conseguir a felicidade, sem ti nada são, e verdadeira­
mente nada dão da felicidade.
Tu és, pois, o fim de todos os bens, a altitude da vida e a
profundidade das palavras, e em ti, sobre todas as coisas,
deve esperar a mais forte consolação dos teus servos.
Em ti estão postos os meus olhos ( Sl 1 4 1 [ 1 40] , 8 ) ; em ti
confio, meu Deus, Pai das misericórdias.
Abençoa e santifica a minha alma com a bênção do Céu,
para que se torne em tua santa casa e em sede da tua eterna
glória, e para que nada sej a encontrado no templo da tua
dignidade que ofenda o olhar da tua majestade.
Olha para mim segundo a grandeza da tua bondade e a
multidão das tuas misericórdias, e ouve a oração do teu pobre
servo, degredado para longe, na região da sombra da morte.
Protege e guarda a alma do teu pequeno servo, no medo de
todos os perigos da vida corruptível; e, com a tua graça, dirige­
-a pelo caminho da paz para a pátria da eterna claridade.
Ámen.

252 ]
LIVRO QUARTO

Do Santíssimo Sacramento
Exortação piedosa à Sagrada Comunhão

VOZ DE CRISTO Vinde a mim, todos os que traba­


-

lhais e estais sobrecarregados, e Eu vos aliviarei, diz o Se­


nhor (Mt 1 1 ,2 8 ) .
O pão q u e E u darei é a m inha Carne, para a vida do
mundo (Jo 6,5 1 ) .
Tomai e comei: isto é o meu Corpo, que será entregue por
vós. Fazei isto em memória de mim ( Lc 22, 1 9; l Cor 1 1 ,24 ) .
O que come a minha Carne e bebe o meu Sangue perma­
nece em mim, e Eu nele (Jo 6,5 6 ) .
As palavras q u e Eu vos disse s ã o espírito e são vida
( ibid. , 63 ) .

[ 255
1

Com que grande respeito se .deve receber Cristo

1.
VOZ DO DISCÍPULO - São estas as tuas palavras,
Cristo, Verdade eterna, embora não ditas na mesma altura,
nem escritas num só lugar.
Como, pois, são tuas e são verdadeiras, a todas devo acei­
tar com gratidão e com fidelidade.
Tuas são, Tu as proferiste; mas são também minhas por­
que para minha salvação as disseste.
De boa vontade as recebo da tua boca, para que mais es­
treitamente se gravem no meu coração.
Animam-me essas palavras de tanta piedade, cheias de
doçura e de amor.
Mas assustam-me os meus próprios pecados, e a minha
consciência impura afasta-me de receber tão grandes misté­
nos.
Atrai-me a doçura das tuas palavras, mas pesa-me a mul­
tidão dos meus vícios.

2.
Ordenas que d e ti me aproxime com confiança, s e quiser
ter parte contigo, e que receba o alimento da imortalidade,
se desej ar obter a vida eterna e a glória.
Vinde, dizes, a té mim todos os que trabalhais e estais
sobrecarregados, e Eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) .
Oh, palavra doce e amiga a o ouvido d o pecador ! Con-

256 ]
vidares Tu, Senhor meu Deus, o fraco e o pobre à comunhão
do teu santíssimo Corpo!
Mas quem sou eu, Senhor, para que ouse aproximar-me
de ti ?
Eis que os céus dos céus te não contêm ( 1 Rs 8,27), e Tu
dizes: vinde a mim, todos!

3.
Que quer dizer favor tão misericordios o , tão amigo
convite ?
Como ousarei aproximar-me, eu que não tenho consciên­
cia de nada de bom de que me possa orgulhar ?
Como te introduzirei em minha casa, eu que as mais das
vezes ofendi a tua tão benigna face ?
Adoram os anj os e arcanj os, temem os santos e os j ustos,
e Tu dizes: vinde a mim, todos!
Se não foras Tu a dizê-lo, quem o acreditaria ?
E se não o ordenaras, quem ousaria aproximar-se ?

4.
Eis que Noé, homem justo, trabalhou cem anos na cons­
trução da arca, para que fosse salvo com poucos mais: e
como poderei eu numa hora preparar-me para receber com
respeito o construtor do mundo ?
Moisés, o teu grande servo, o teu especial amigo, fez a
arca de madeiras que não apodreciam e revestiu-a de ouro
puríssimo, para nela guardar as tábuas da Lei; e eu, criatura
de podridão, ousarei receber-te tão facilmente a ti, Criador
da Lei e dador da vida ?
Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, construiu duran­
te sete anos um templo magnífico em louvor do teu nome, e
durante oito dias celebrou a festa da sua dedicação, ofereceu
mil hóstias pacíficas e colocou solenemente a arca da alian-

[ 257
ça, entre a alegria e o clamor das trombetas, no lugar para
ela preparado; e eu, infeliz, o mais pobre dos homens, como
te introduzirei em minha casa, eu- que soube talvez apenas
passar com devoção uma meia hora, e oxalá que uma vez só
dignamente o conseguisse ?

5.
Oh, meu Deus, o que não procuraram esses fazer para te
agradar !
Ai, mas como é pouco o que eu faç o ! Que pouco é o
tempo em que me preparo para comungar !
Raras vezes me recolho totalmente, e mais raramente
ainda estou puro de qualquer distração.
E, certamente, na tua salutar presença de Divindade, não
deveria ocorrer-me qualquer pensamento inconveniente,
nem ocupar-me qualquer criatura, porque vou receber como
hóspede, não um anj o, mas o Senhor dos anj os.

6.
E, contudo, há uma bem grande distância entre a arca da
aliança, com as suas relíquias, e o teu puríssimo Corpo, com
as suas inefáveis virtudes; entre esses sacrifícios da Lei prefi­
guradores dos que haviam de vir, e a verdadeira hóstia do
teu Corpo, em que se consumam todos os antigos sacrifícios.

7.
Por isso, porque me não abraso mais com a tua venerável
presença, porque me não preparo com mais cuidado para te
receber, quando esses antigos santos patriarcas e profetas, e
também reis e príncipes com todo o povo, tamanho afeto de
devoção demonstraram ao culto divino ?

258 ]
8.
Dançou o piedoso rei David diante da arca de Deus com
todo o ardor, lembrando-se dos benefícios outrora concedi­
dos a seus antepassados; fez instrumentos de diversas espé­
cies, compôs salmos e ordenou que se cantasse com alegria,
e ele próprio cantou frequentemente ao som da cítara, inspi­
rado pela graça do Espírito Santo . Ensinou o povo de Israel
a glorificar Deus de todo o coração e a bendizê-lo e louvá-lo
em coro todos os dias.
Se então havia tamanha devoção e existia a recordação
do louvor divino diante da arca do Testamento, que grande
respeito e devoção não devo eu ter e todo o povo cristão na
presença do Sacramento, na receção do tão excelente Corpo
de Cristo !

9.
Muitos correm a diversos lugares para visitar a s relíquias
dos santos, admiram, depois de ouvirem os seus feitos, os
amplos edifícios dos templos, fitam e beij am os seus sagra­
dos ossos envoltos em sedas e em ouro; e eis que Tu aqui
estás presente, j unto de mim, no altar, Deus meu, Santo dos
santos, Criador dos homens e Senhor dos anj os !
Muitas vezes é-se levado a ver tais coisas pela curiosidade
dos homens e pela novidade das coisas nunca vistas, e traz­
-se pouco fruto de emenda, sobretudo quando se partiu de
ânimo tão leve, sem verdadeira contrição.
Porém, aqui, no Sacramento do Altar, estás todo presen­
te, meu Deus, homem Cristo Jesus, onde se recebe o abun­
dante fruto da salvação eterna, todas as vezes que és digna e
piedosamente recebido.
Mas para isto não arrasta qualquer leviandade, curiosi­
dade ou sensualidade, mas uma fé firme, uma piedosa espe­
rança e uma sincera caridade.

[ 2 59
1 0.
Ó invisível Criador do mundo, ó Deus, como é maravi­
lhosa a tua ação j unto de nós ! Com que graça e suavidade
lidas com a queles que escolheste, aos quais Tu mesmo te
entregas para seres recebido em sacramento !
Na verdade, isto ultrapassa toda a inteligência, isto
arrasta dum modo especial os corações dos fiéis e ateia o
amor.
Assim, os teus verdadeiros fiéis, que tratam toda a sua
vida de emendar-se, recebem muitas vezes deste tão digno
sacramento a grande graça da devoção e o amor da virtude.

11.
Oh, escondida e admirável graça do Sacramento, que os
fiéis de Cristo tão bem conhecem, mas que não podem expe­
rimentar os infiéis e os que servem o pecado!
Neste sacramento se confere a graça espiritual, se recobra
na alma a força perdida e se restaura a beleza deformada
pelo pecado.
E, por vezes, tamanha é esta graça que, da plenitude da
devoção conferida, não só o espírito, mas também o fraco
corpo sente que maiores forças lhe são dadas.

1 2.
É muito para chorar e lamentar a nossa mediocridade e
negligência, por não sermos arrastados por um maior amor
a recebermos Cristo, no qual reside toda a esperança e
mérito dos que se hão de salvar.
Ele próprio é a nossa santificação e redenção, Ele é a con­
solação dos caminhantes e o eterno gozo dos santos.
E também é grande motivo de dor que tantos tão pouco
se voltem para este mistério de salvação, que alegra o Céu e
que mantém todo o mundo.

260 ]
Oh, cegueira e dureza d o coração humano, que não
atende a tão inefável dom e que, pelo hábito de todos os
dias, chega a cair na indiferença !

1 3.
Se, porém, este Santíssimo Sacramento fosse celebrado
num só lugar e consagrado por um único s acerdote no
mundo, imagina com que desej o acorreriam os homens
àquele local e a esse sacerdote de Deus para verem celebrar
os mistérios divinos!
Porém, agora, muitos são os sacerdotes e em muitos luga­
res é oferecido Cristo, para que tanto mais se mostre a graça
e o amor de Deus para com os homens, quanto mais larga­
mente pelo mundo é espalhada a sagrada Comunhão.
Graças te sej am dadas, bom Jesus, Pastor eterno, que te
dignaste reconfortar-nos, a nós pobres e degredados, com o
teu precioso Corpo e Sangue, e nos convidaste pelas palavras
da tua própria boca a receber tais mistérios, dizendo: vinde a
mim, todos os que trabalhais e estais sobrecarregados, e Eu
vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) .

[ 261
II

Que a grande bondade e. o amor de Deus


se manifestam ao homem neste sacramento

1.
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor, confiante na tua bon­
dade e na tua grande misericórdia, doente me aproximo do
Salvador, esfomeado e sequioso, da fonte da vida, pobre, do
Rei do Céu, servo, do Senhor, criatura, do Criador, deso­
lado, do meu compassivo consolador.
Mas como é possível que venhas até mim ? Quem sou eu,
para que a mim te dês ?
Como ousa aparecer diante de ti o pecador, e como te
dignas Tu vir até ele ?
Tu conheces o teu servo e sabes que nada de bom tem em
si para que tal lhe concedas.
Por isso, confesso a minha baixeza, reconheço a tua bon­
dade, louvo a tua misericórdia e dou graças por tanta caridade.
Fazes isso por ti próprio e não por meus méritos, para
que a tua bondade sej a por mim mais bem conhecida, para
que o teu amor mais se enraíze e a tua humildade mais per­
feitamente sej a amada.
Porque assim te agrada e Tu assim o mandaste, que
também a mim me agrade tal favor, e oxalá o meu pecado o
não impeça!

2.
Ó doce e bondoso Jesus ! Que grande respeito e ação de
graças, juntos a um eterno louvor, são devidos pela comu-

262 ]
nhão do teu sagrado Corpo, dignidade que nenhum homem
é capaz de explicar!
Mas que pensarei nesta Comunhão, ao aproximar-me do
meu Senhor, que não sei venerar como devia, mas que, no
entanto, desej o ardentemente receber ?
Que melhor e mais salutar pensamento, senão o de me
humilhar totalmente diante de ti e exaltar a tua infinita
bondade ?
Eu te louvo, meu Deus, e te exalto para sempre, eu me
desprezo e a ti me submeto, do mais profundo da minha
baixeza.

3.
Eis-te, ó Santo dos santos: e eu, o mais imundo dos pe­
cadores.
Eis que te inclinas para mim, que nem sou digno de te
olhar.
Eis que vens até mim, que queres estar comigo, que me
convidas para o teu banquete.
Tu queres dar-me a comer a comida do Céu, o Pão dos
anjos ( Sl 78 [77] ,25 ) .
Verdadeiramente, Tu próprio o és, Pão vivo que desceste
do Céu e dás a vida ao mundo (Jo 6,32-5 1 ) .

4.
Eis donde procede todo o amor; como brilha a tua miseri­
córdia, que ações de graças e louvores por tal te são devidos !
Que salutar e útil providência , quando instituíste este
sacramento, que suave e alegre banquete, quando a ti pró­
prio te deste por comida !
Que admirável, Senhor, a tua obra, que poderosa força,
que infalível a tua verdade !
Disseste, e tudo foi feito: e fez-se o que ordenaste.

[ 263
5.
Coisa admirável, digna de fé e que vence a inteligência
humana, que Tu, Senhor meu Deus, verdadeiro Deus e ver­
dadeiro homem, possas estar todo contido sob as espécies do
pão e do vinho e seres tomado pelo que te recebe, sem que
sejas consumido.
Tu, Senhor de todas as coisas, que de ninguém precisas,
quiseste pelo teu sacramento habitar em nós (2Mac 1 4 , 3 5 ) ;
conserva imaculados o meu coração e o meu corpo, para
que possa mais vezes celebrar, com uma consciência alegre e
pura, e receber, para minha eterna salvação, os teus misté­
rios, que estabeleceste e instituíste sobretudo para tua honra
e eterna memória.

6.
Alegra-te, ó minha alma, e dá graças a Deus por tão
nobre presente, por consolação tão singular, a ti deixada
neste vale de lágrimas.
Na verdade, todas as vezes que celebras este mistério e
recebes o Corpo de Cristo, trabalhas para a tua redenção e
tornas-te participante de todos os merecimentos de Cristo.
Pois que a caridade de Cristo nunca diminui, e nunca se
esgota a grandeza do seu sacrifício .
Por isso t e deves preparar para este ato com u m espírito
sempre renovado e meditar atentamente no grande mistério
da salvação .
Assim, quando celebras ou assistes à Missa, isso dever-te­
-ia parecer coisa tão grande, nova e alegre, como se nesse
mesmo dia Cristo tivesse descido pela primeira vez ao seio
da Virgem e se tornasse homem, ou, pendente da cruz, so­
fresse e morresse pela salvação dos homens.

2 64 ]
III

De como é útil comungar muitas vezes

1.
VOZ D O DISCÍPULO - Eis que a ti venho, Senhor, para
beneficiar da tua dádiva e me alegrar em teu santo banquete,
que preparaste para o pobre, meu Deus, com a tua ternura
(Sl 6 8 [67] , 1 1 ) .
Eis que em ti está tudo o que posso e devo desej ar; Tu és
a minha salvação e redenção, a minha esperança e fortaleza,
a minha honra e a minha glória.
A legra, pois, hoje, a alma do teu servo, p orque a ti,
Senhor Jesus, ergui a minha alma ( Sl 8 6 [ 8 5 ] ,4 ) .
Desej o agora receber-te com devoção e respeito, quero
introduzir-te em minha casa, e merecer, como Zaqueu, que
me abençoes e me contes entre os filhos de Abraão.
A minha alma desej a o teu Corpo, o meu coração desej a
unir-se a ti.

2.
Entrega-te a mim, e isso basta, porque Tu és a única con­
solação.
Não posso estar sem ti e não consigo viver sem a tua
visita.
Por isso, é necessário que me aproxime de ti muitas vezes
e te receba como remédio de minha salvação, não vá desfa­
lecer pelo caminho, se for privado do alimento do Céu.
Assim, Tu, Jesus misericordioso, um dia em que pregavas

[ 265
ao povo e curavas várias doenças, disseste: não quero man­
dá-los para casa em jejum, não vão desfalecer pelo caminho
( Mt 1 5,32 ) .
Por isso, trata-me também assim, Tu que te deixaste neste
sacramento para consolação dos fiéis.
Na verdade, Tu és a suave refeição da alma, e aquele que
te receber dignamente será participante e herdeiro da eterna
glória.
É-me, pois, necessário, a mim que tantas vezes caio e
peco e tão depressa arrefeço e desfaleço, que por frequentes
orações e confissões e pela receção do teu sagrado Corpo,
me renove, me purifique e me inflame, para que, abstendo­
-me por muito tempo, me não afaste desse santo propósito.

3.
Na verdade, o s sentidos d o homem estão inclinados a o
m a l desde a s u a adolescência ( Gn 8 ,2 1 ) , e , se o remédio
divino o não socorrer, cairá nas piores coisas.
Assim, a sagrada Comunhão afasta do mal e fortalece no
bem.
E se sou tantas vezes negligente e medíocre, mesmo
quando comungo ou celebro, o que seria se não recebesse tal
remédio nem procurasse tão grande aj uda ?
E embora em nenhum dia estej a disposto ou bem prepa­
rado para celebrar, não deixarei contudo, de, nas devidas
alturas, receberas mistérios divinos e me tornar participante
de tamanha graça .
Pois que é esta a principal consolação da alma fiel en­
quanto caminha longe de ti num corpo mortal (2Cor 5 , 6 ) ,
q u e , lembrando-se m a i s vezes do seu D e u s , receba o seu
Amado com espírito fervoroso.

266 ]
4.
Oh, como é admirável o favor da tua piedade para con­
nosco, que Tu, Senhor Deus, Criador e vida de todos os
Espíritos, te dignes baixar a uma pobre alma e matar a sua
fome com toda a tua divindade e humanidade !
Oh, feliz espírito e bem-aventurada alma que te merece
receber com devoção, a ti, Senhor seu Deus, e encher-se com
a alegria espiritual de te ter recebido !
Oh, como é grande o Senhor que recebe ! Que amado o
hóspede que acolhe ! Que alegre companheiro abriga ! Que
fiel amigo aceita ! Que belo e nobre esposo abraça, que deve
ser amado acima de tudo o que é amado e desej ado !
Calem-se na tua presença, ó meu doce Amado, o Céu, a
Terra e todas as suas belezas, porque tudo o que têm de admi­
rável e belo lhes vem do teu favor, e nunca chegarão à beleza
do teu Nome, cuja sabedoria é sem medida (SI 147[146] , 5 ) .

[ 267
IV

Que muitos bens são çlispensados


aos que comungam com devoção

1.
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor meu Deus, conforta o
teu servo com as bênçãos da tua doçura (Sl 2 1 [20] ,4 ) , para
que digna e devotamente mereça aproximar-se do teu subli­
me sacramento.
Chama para ti o meu coração e sacode-me deste pesado
torpor.
Visita-me na tua salvação, para que eu saboreie em espí­
rito a tua suavidade que, neste sacramento, como numa
fonte, tão plenamente está escondida.
Ilumina também os meus olhos, para que contemplem
um tão grande mistério, e fortalece-me com uma fé inabalá­
vel, para que nele creia.
Pois que é pertença tua, e não poder humano; tua santa
instituição, e não invenção do homem.
Na verdade, ninguém se encontra por si só apto a aceitar
e a perceber tais coisas, que transcendem a própria subtileza
dos anjos.
Como poderei, pois, eu, pecador indigno, terra e cinza,
descobrir e entender segredo tão alto e tão sagrado ?

2.
Senhor, na simplicidade d o meu coração, n a fé b o a e
firme, e como Tu mandaste, aproximo-me de ti com espe-

268 ]
rança e com respeito, e verdadeiramente creio que estás aqui
presente, Deus e homem, neste sacramento.
Queres, pois, que te receba e a ti me una no amor. Por­
tanto, peço a tua clemência, e para isso rogo que me sej a
dada uma graça especial, a fim de que todo em ti me funda,
em teu amor me afogue e não deixe que em mim entre qual­
quer outra consolação .
Com efeito, este t ã o alto e digno sacramento é a saúde da
alma e do corpo, o remédio de toda a doença espiritual, pelo
qual se curam os meus vícios, se refreiam as paixões, se
vencem ou diminuem as tentações, se infunde maior graça,
se aumenta a virtude começada, se firma a fé, se fortalece a
esperança e se ateia e dilata a caridade.

3.
Na verdade, muitos bens dispensaste e ainda dispensas
muitas vezes neste sacramento àqueles que amas e que
comungam com devoção, meu Deus, firmeza da minha
alma, reparador da fraqueza humana e fonte de toda a con­
solação interior.
Pois lhes infundes muita consolação contra as diversas
tribulações, os ergues da sua própria miséria à esperança da
tua proteção e, com uma graça nova, os animas e iluminas
interiormente, de tal modo que os que se tinham sentido a
princípio ansiosos e sem fervor antes da Comunhão, se
sentem transformados, depois de refeitos com essa comida e
bebida do Céu.
E assim és generoso para com os que te amam, para que
verdadeiramente conheçam e claramente experimentem
quanto têm de fraqueza e quanto conseguem da tua bondade
e graça, pois que, sendo por si próprios frios, duros e pouco
fervorosos, merecem por ti ser piedosos, alegres e devotos .
Quem, com efeito, s e aproxima humildemente d a fonte de
suavidade, que não traga também um pouco de suavidade ?

[ 269
Ou quem, estando perto de uma grande fogueira, não
sentirá um pouco de calor ?
E Tu és fonte sempre cheia e superabundante, fogo conti­
nuamente aceso e que nunca se apaga .

4.
Portanto, se não me é permitido tirar água da plenitude
da fonte, nem beber até me saciar, que, ao menos, eu chegue
a minha boca à boca do canal que vem do Céu, para que
consiga qualquer gota para acalmar a minha sede e não
morrer à míngua de água.
E se não posso ser todo do Céu, todo de fogo, como um
querubim ou um serafim, esforçar-me-ei, contudo, por insis­
tir na devoção e preparar o meu espírito para que consiga
uma pequena chama do fogo divino, pela receção humilde
deste sacramento de vida.
E tudo o que me falta, bom Jesus, santo Salvador, supre-o
Tu por mim com bondade e com graça, Tu que te dignaste
chamar todos a ti, dizendo: vinde a mim, todos os que traba­
lhais e estais sobrecarregados, e Eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,2 8 ) .

5.
Pois que, na verdade, eu tra balho com o suor do meu
rosto, o meu coração é atormentado pela dor, estou carre­
gado de pecados, inquieto com tentações, enredado e esma­
gado por muitas paixões más; e não há quem me ajude, não
há quem me liberte e me salve, senão Tu, Senhor Deus, meu
Salvador, a quem me entrego e a tudo o que é meu, para que
me guardes e conduzas à vida eterna .
Acolhe-me no louvor e glória do teu nome, Tu que me
preparaste o teu Corpo e Sangue por comida e por bebida.
Concede-me, Senhor Deus, minha salvação, que, frequen­
tando este teu mistério, em mim cresça o amor da devoção .

2 70 ]
V

Da dignidade do sacramento e do estado sacerdotal

1.
VOZ D O AMADO - Nem que tivesses a pureza dos
anj os e a santidade de São João Batista serias digno de rece­
ber este sacramento, ou de o tocar.
Na verdade, não se deve aos méritos dos homens que o
homem consagre e administre o Sacramento de Cristo e
tome por comida o Pão dos anj os.
Grande ministério e grande dignidade a dos sacerdotes,
aos quais é dado o que nem aos anj os foi concedido !
Com efeito, só os sacerdotes ordenados segundo o rito da
Igrej a têm o poder de celebrar e de consagrar o Corpo de
Cristo.
O sacerdote é verdadeiramente um ministro de Deus, que
usa a sua palavra por sua ordem e instituição.
Porém, aqui, o principal autor e a causa invisível é Deus, a
cuja vontade tudo se submete e a cuj a ordem tudo obedece.

2.
Mais deves, portanto, acreditar e m Deus omnipotente
neste tão alto sacramento, que nos teus próprios sentidos ou
em qualquer sinal visível.
Por isso nos devemos aproximar dele com temor e reve­
rência .
Olha para t i e v ê d e quem é o ministério q u e a t i t e foi en­
tregue por imposição das mãos do Bispo.

[ 2 71
Eis que foste feito sacerdote e consagrado para celebrar.
Vela, pois, agora, por que a seu tempo ofereças fiel e fervo­
rosamente um sacrifício a Deus, e te mostres irrepreensível.
Não aliviaste a tua carga, mas foste ligado pelo laço mais
apertado da disciplina, para conseguires uma maior perfei­
ção de santidade.
O sacerdote deve ser ornado de todas as virtudes e dar
aos outros o exemplo duma vida santa.
A sua vida não está nos vulgares e comuns caminhos dos
homens, mas sim com os anjos no Céu ou com os homens
perfeitos na Terra .

3.
O sacerdote, revestido das sagradas vestes, faz a s vezes de
Cristo, para, suplicante e humildemente, implorar Deus para
si e para todo o povo.
Tem no peito e nas costas a imagem da Cruz do Senhor,
para que continuamente se lembre da paixão de Cristo.
Tem, à frente, uma cruz na casula, para que considere
com diligência os passos de Cristo e os procure seguir fervo­
rosamente.
E também atrás é assinalado com a cruz, para que tolere,
com clemência e por amor de Deus, quaisquer adversidades
que dos outros lhe venham.
Leva a cruz à sua frente, para que se entristeça pelos seus
pecados, e atrás, para que chore também, por compaixão os
cometidos pelos outros, e para que, sabendo ter sido feito
medianeiro entre Deus e o pecador, não arrefeça na oração e
no santo Sacrifício, até que mereça alcançar graça e mi­
sericórdia .
Quando o sacerdote celebra, honra a D e u s , alegra o s
anjos, edifica a Igreja, ajuda o s vivos, dá repouso aos mortos
e torna-se participante de todos os bens.

2 72 ]
VI

Interrogação sobre os exercícios antes da Comunhão

1.
VOZ D O DISCÍPULO - Quando penso, Senhor, na
tua dignidade e na minha baixeza, encho-me de temor e de
confusão.
Porque se não me aproximo, fuj o da vida, e, se me apre­
sento indignamente, incorro em pecado.
Que farei, pois, meu Deus, meu auxílio e meu conselheiro
nas necessidades ?
Ensina-me Tu o caminho reto, ensina-me qualquer breve
exercício para a sagrada Comunhão.
Porque é útil que eu saiba como te hei de preparar, com
devoção e respeito, o meu coração, para receber com pro­
veito o teu sacramento ou para celebrar tão grande e divino
sacrifício.

[ 2 73
VII

Do exame de consciência e do -propósito de emenda

1.
VOZ D O AMAD O - Acima de tudo, é com a maior
humildade de coração, com um suplicante respeito, com
uma fé firme e uma fervorosa intenção de honrar a Deus que
o sacerdote se deve aproximar para celebrar este sacra­
mento, para o administrar ou para o receber.
Examina cuidadosamente a tua consciência e , tanto
quanto te for possível, torna-a pura e clara com um verda­
deiro arrependimento e uma humilde confissão, de modo a
que nada de grave tenhas ou saibas ter, de que sintas remor­
sos e que te impeça de te aproximares livremente.
Detesta todos os pecados em geral, mas sobretudo la­
menta e chora as tuas faltas de todos os dias.
E, se tiveres tempo, confessa a Deus, no segredo do cora­
ção, todas as misérias das tuas paixões.

2.
Geme e chora porque ainda pertences à carne e ao mun­
do, por seres tão pouco mortificado nas paixões, tão cheio
de movimentos do desej o, tão pouco resguardado nos senti­
dos exteriores, tão enredado muitas vezes em tantas vãs fan­
tasias, tão inclinado para as coisas de fora e tão pouco aten­
to para as interiores, tão fácil no riso e na negligência, tão
duro no choro e na compunção, tão pronto para o que é
fácil e cómodo para o corpo, tão preguiçoso no rigor e no

2 74 ]
fervor, tão curioso em ouvir novidades ou ver coisas belas,
tão negligente em abraçar o que é humilde e desprezado, tão
desej oso de possuir muita coisa, tão parco a dar, tão tenaz a
reter, tão leviano a falar, tão inconstante em calar, tão desre­
grado nos costumes, tão importuno nas ações, tão entregue
à comida, tão surdo à Palavra de Deus, tão rápido no des­
canso, tão tardo para o trabalho, tão atento às conversas,
tão sonolento nas sagradas vigílias, tão rápido a ir ao fim,
tão vago na atenção, tão negligente no cumprimento das
Horas, tão morno a celebrar, tão seco a comungar, tão
depressa distraído, tão raramente em ti recolhido, tão subi­
tamente irado, tão fácil em desagradar aos outros, tão incli­
nado a j ulgar, tão rígido a discutir, tão alegre na prosperi­
dade, mas tão fraco nas tribulações, tantas vezes resolvido
ao bem, mas tão pouco bem fazendo.

3.
Confessados e chorados estes e outros pecados teus, dor e
grande desagrado da tua própria fraqueza, faz um propósito
de emendar a tua vida e de melhor progredir.
Depois, com plena resignação e inteira vontade, oferece­
-te em honra do meu Nome, no altar do teu coração, como
holocausto eterno, entregando-me fielmente o teu corpo e a
tua alma, para que assim mereças aproximar-ta para ofere­
cer a Deus o Sacrifício e receber com proveito o sacramento
do meu Corpo.

4.
Não há, na verdade, oblação mais digna e satisfação
maior para apagar os pecados, do que oferecer-se pura e in­
teiramente a Deus, com a oblação do Corpo de Cristo, na
Missa e na Comunhão.
Se o homem fizer tudo o que puder e se arrepender ver-

[ 2 75
<ladeiramente de todas as vezes que de mim se aproximar
para o perdão e para a graça, Eu vivo, diz o Senhor, Eu que
não quero a morte do pecador, mas antes que se converta e
que viva; p orque não mais me lembrarei dos seus pecados
( Ez 3 3, 1 1 ; 1 8,22 ) , mas todos lhe serão perdoados.

2 76 ]
VIII

Da oblação de Cristo na cruz e do sacrifício de si próprio

1.
VOZ D O AMADO - Tal como Eu próprio de livre von­
tade me ofereci a Deus Pai pelos teus pecados, com as mãos
estendidas na cruz e o corpo nu, de modo a que nada res­
tasse de mim que não passasse totalmente ao sacrifício de re­
conciliação com Deus, assim também tu te deves oferecer a
mim voluntariamente, em a blação pura e santa, todos os
dias, na Missa, com todas as tuas forças e com todo o amor
que interiormente conseguires.
Que outra coisa quero de ti, senão que procures doar-te
inteiramente a mim ?
De nada me interessa o que me dás, que não sej as tu; por­
que não procuro a tua dádiva, quero-te a ti.

2.
Tal como não te chegaria possuíres todas a s coisas sem
mim, assim também me não pode agradar o que quer que
dês, se te não deres.
Oferece-te a mim e dá-te todo por amor de Deus: e será
aceite a ablação.
Eis que Eu totalmente me entreguei por ti ao Pai; dei todo
o meu Corpo e o meu Sangue por alimento, para que Eu
fosse todo teu e tu ficasses a ser meu.
Se, porém, te fechares em ti e te não entregares livremente

[ 2 77
à minha vontade, não haverá ablação plena, nem será total a
união entre nós.
Por isso, a ablação espontânea de ti próprio nas mãos de
Deus deve preceder todas as tuas obras, se queres alcançar a
liberdade e a graça .
S e tão poucos s ã o iluminados e se tornam interiormente
livres, é porque se não sabem renegar totalmente.
É clara a minha palavra : quem não renuncia a tudo não
pode ser meu discípulo ( Lc 1 4 , 3 3 ) .
Portanto, tu, se queres s e r meu discípulo, oferece-te a
mim com todo o teu amor.

2 78 ]
IX

Que nos devemos oferecer a Deus


com tudo o que é nosso e pedir por todos

1.
VOZ DO DISCÍPULO - Senhor, tudo é teu: o que há no
Céu e o que há a Terra.
Desej o oferecer-me a ti em ablação espontânea e teu per­
manecer para sempre.
Senhor, na simplicidade do meu coração, ofereço-me a ti,
hoj e, como teu servo para sempre, em homenagem e em
sacrifício de louvor eterno.
Recebe-me com esta santa ablação do teu Corpo precioso
que hoj e te ofereço na presença dos anj os, invisivelmente
assistentes, para que sej a para minha salvação e para a de
todo o teu povo.

2.
Senhor, aqui te ofereço sobre o teu altar d e propiciação
todos os meus pecados e delitos, que cometi diante de ti e
dos teus santos anj os desde o dia em que, pela primeira vez,
pude pecar até a este momento; para que a todos incendeies
e queimes igualmente com o fogo da tua caridade, para que
apagues todas as manchas dos meus pecados, tornes a minha
consciência pura de toda a falta e me restituas a tua graça,
que perdi, pecando, perdoando-me tudo inteiramente e
admitindo-me, pela tua misericórdia, ao beij o da paz.

[ 2 79
3.
Que posso fazer pelos meus pecados, senão confessá-los
e chorá-los com humildade, pedindo incessantemente a tua
misericórdia ?
Eu te suplico, atende-me, propício, enquanto estou diante
de ti, meu Deus.
A todos os meus pecados detesto : não quero voltar a
cometê-los, mas por eles choro e chorarei enquanto viver,
pronto a fazer penitência e a pagá-los tanto quando puder.
Perdoa-me, meu Deus, perdoa-me os meus pecados pelo
teu santo Nome; salva a minha alma, que pelo teu precioso
sangue redimiste.
Eis que todo me entrego à tua misericórdia, que me aban­
dono nas tuas mãos: age para comigo segundo a tua bon­
dade, e não segundo a minha malícia e iniquidade.

4.
Ofereço-te também tudo o que em mim há de bom, em­
bora sej a pouco e imperfeito, para que o emendes e santifi­
ques, para que te sej a grato e se te torne aceitável e para que
o tornes sempre melhor; e ainda para que me conduzas a um
fim feliz e glorioso, a mim, pobre homem preguiçoso e inútil.

5.
Ofereço-te também todos os fervorosos desej os dos fiéis;
a s necessidades dos parentes, dos amigos , dos irmãos e
irmãs, de todos os que me são queridos, daqueles que a mim
ou a outros fizeram bem por amor de ti e dos que desej aram
e me pediram que dissesse orações e Missas por si e todos os
seus, quer estej am vivos segundo a carne, quer já tenham
deixado este mundo, para que todos sintam chegar para si o
auxílio da tua graça, o efeito da consolação, a proteção dos

280 ]
perigos, a libertação das penas; e para que, livres de todos os
males, alegres te deem muitas graças .

6.
Ofereço-te ainda as minhas orações e hóstias de propicia­
ção especialmente pelos que em alguma coisa me lesaram,
me entristeceram ou inj uriaram, ou me fizeram qualquer
dano ou ofensa; e também por todos aqueles que algum dia
contristei, envergonhei, ofendi ou escandalizei, por palavras
ou ações, consciente ou inconscientemente: para que a todos
nós de igual modo perdoes os pecados e as ofensas mútuas.
Afasta, Senhor, dos nossos corações toda a desconfiança,
indignação, ira e discussão, e tudo o que possa ferir a cari­
dade e diminuir o amor fraternal.
Compadece-te, compadece-te, Senhor, dos que suplicam a
tua misericórdia, dá graça aos que precisam dela e faz-nos
viver de modo a que sej amos dignos de gozar da tua graça e
de alcançarmos a vida eterni
Ámen.

[ 281
X

Que não se deve abandonar por qualquer motivo leve


a sagrada Comunhão

1.
VOZ D O AMAD O - D eves recorrer frequentemente à
fonte da graça e da divina misericórdia, à fonte da bondade
e de toda a pureza, para que consigas curar-te de todas as
tuas paixões e vícios e mereças tornar-te mais forte e vigi­
lante contra todas as tentações e mentiras do demónio.
O inimigo, sabendo que proveito, que eficaz remédio se
encontra na sagrada Comunhão, esforça-se quanto pode, de
toda a maneira e em toda a ocasião, por dela afastar e des­
viar as pessoas fiéis e piedosas.

2.
É , pois, quando s e preparam para a sagrada Comunhão
que alguns sofrem as piores tentações de Satanás.
O próprio espírito maligno, tal como em Job está escrito,
vem para o meio dos filhos de Deus ( 1 ,7) para os perturbar
com a sua costumada maldade ou para os tornar demasia­
damente tímidos e escrupulosos, para que diminua o seu afe­
to ou lhes roube a sua fé, a fim de que abandonem, talvez de
todo, a Comunhão, ou dela se aproximem sem entusiasmo.
Mas não há que preocupar-se com as suas astúcias e fan­
tasias, por mais horríveis ou baixas, mas antes se lhe devem
devolver todos esses fantasmas.
Deve ser desprezado e troçado, o miserável, e por causa

282 ]
dos seus insultos e das perturbações que suscita não se deve
abandonar a sagrada Comunhão.

3.
À s vezes, também, torna-se obstáculo a demasiada preo­
cupação do fervor e uma certa ansiedade pela confissão a
fazer.
Age segundo o conselho dos sábios e põe de parte a ansie­
dade e o escrúpulo que obsta à graça de Deus e destrói a de­
voção do espírito.
Não abandones a sagrada Comunhão por qualquer pe­
quena perturbação ou falta, mas vai ainda mais depressa
confessar-te e perdoa de boa vontade aos outros todas as
ofensas.
Mas, se ofendeste alguém, pede humildemente perdão, e
Deus de boa vontade te desculpará.

4.
Que adianta tardares em confessar-te ou adiar a sagrada
Comunhão ?
Antes de mais nada, purifica-te, expele depressa o ve­
neno, recebe rapidamente o remédio; e sentir-te-ás melhor
do que se demorasses mais tempo.
Se hoj e deixas de ir por isto, talvez que amanhã suceda
algo de mais grave e , assim, possas ser impedido durante
mais tempo da Comunhão e menos preparado fiques.
Logo que possas sacode o teu peso e a tua preguiça de
agora, porque para nada serve andar mais tempo inquieto,
passar mais tempo perturbado e separar-se das coisas de
Deus pelos obstáculos de todos os dias.
Pelo contrário, muito prej udica adiar por muito tempo a
Comunhão, pois que isso costuma trazer um pesado torpor.
Mas, ai, alguns há, tão mornos e negligentes que acolhem

[ 2 83
de bom ânimo todas as demoras em se confessar e desej am
também adiar a sagrada Comunhão, para não terem de se
v1g1ar mais a si próprios.

5.
Ah, que pouco amor e fraca piedade têm os que tão facil­
mente adiam a sagrada Comunhão !
Como é feliz e aceitável a Deus o que vive d e tal modo e
guarda a sua consciência em tal pureza, que todos os dias
estaria bem preparado e disposto para comungar, se tal lhe
fosse possível e o pudesse fazer sem se tornar notado !
Se alguém, de vez em quando, se abstém por humildade
ou por qualquer causa legítima que o impeça, deve ser lou­
vado por esse respeito.
Mas, se é o torpor que se insinua, deve sacudir-se e fazer
tudo o que está ao seu alcance; e o Senhor aumentará o seu
desejo, vendo essa boa vontade, a que olha especialmente.

6.
Mas quando estiver legitimamente impedido, deverá
guardar sempre boa vontade e a piedosa intenção de comun­
gar, e assim não lhe faltará o fruto do sacramento.
Na verdade, qualquer pessoa piedosa pode aproximar-se
com proveito e sem proibição, todos os dias e a todas as
horas, da Comunhão espiritual de Cristo, mas, contudo,
deve receber sacramentalmente, com afetuoso respeito, o
Corpo do seu Redentor em certos dias e em alturas determi­
nadas, e ter mais em vista o louvor e a honra de Deus do que
a sua própria consolação.
Com efeito, comunga espiritualmente e refaz-se invisivel­
mente todas as vezes que medita fervorosamente no mistério
da encarnação de Cristo, e na sua paixão, e se ateia no seu
amor.

284 ]
O que se não prepara senão na altura duma festa, ou
levado pelo hábito, estará, na maior parte das vezes, mal
preparado.

7.
Feliz o que se oferece ao Senhor em holocausto de todas
as vezes que celebra ou que comunga.
Não sej as demasiado lento nem demasiado rápido a cele­
brar, mas guarda a justa medida comum àqueles com quem
vives.
Não deves causar enfado e tédio a ninguém, mas seguir o
caminho comum, conforme foi traçado pelos nossos maio­
res e servir mais a utilidade dos outros que o teu próprio
afeto ou devoção.

[ 2 85
XI

Que o Corpo de Cristo e a Sagrada Escritura


são muito necessários à alma fiel

1.
VOZ DO DISCÍPULO Ó tão doce Senhor Jesus, que
-

grande é, para a alma piedosa, a doçura de participar no


banquete, onde se lhe não apresenta nada para comer além
de ti, seu único amor, desej ável acima de todos os desej os do
seu coração !
Também a mim, me seria doce derramar lágrimas de ín­
timo amor na tua presença e , como a piedosa Madalena,
banhar com lágrimas os teus pés !
Mas onde está tal devoção ? Onde o copioso derramar de
santas lágrimas ?
Decerto que, em tua presença e na dos teus santos anj os,
todo o meu coração deveria arder e chorar de alegria.
Pois tenho-te verdadeiramente presente no Sacramento,
embora oculto sob uma outra espécie.

2.
Na verdade, o s meus olhos não suportariam olhar-te na
tua própria e divina luz, nem o mundo inteiro resistiria ao
brilho de glória da tua maj estade.
Atendes, pois, à minha fraqueza, ao esconderes-te no
Sacramento.
Verdadeiramente, eu possuo e adoro aquele que os anj os

286 ]
adoram no Céu, mas eu ainda pela fé, e eles face a face e sem
véus.
Devo alegrar-me na luz da verdadeira fé e nela caminhar,
até que nasça o dia da eterna claridade e se esfumem as som­
bras das figuras ( Ct 2, 1 7) .
Quando, porém, vier o que é perfeito ( 1 Cor 1 3 , 1 0 ) , ces­
sará o uso dos sacramentos, porque os bem-aventurados não
necessitam, na glória do Céu, do remédio sacramental: pois
alegram-se sem fim na presença de Deus, fitando face a face
a sua glória e, de claridade em claridade, transformados nos
abismos divinos, saboreiam o Verbo de Deus feito carne, tal
como foi no princípio e permanece para sempre.

3.
A o lembrar-me destas maravilhas, até mesmo a consola­
ção espiritual se me torna pesado tédio: porque, enquanto
não vej o meu Senhor abertamente, na sua glória, tenho por
nada tudo que no mundo vej o e ouço.
Tu me és testemunha, ó Deus, de que nenhuma coisa me
pode consolar, nenhuma criatura dar repouso, senão Tu,
meu Deus, a quem desej o contemplar eternamente.
Mas tal não é possível enquanto eu viver neste estado
mortal, e por isso é necessário que me disponha a uma gran­
de paciência e a ti me submeta em todos os meus desej os.
Também os teus santos, Senhor, que contigo se alegram já
no Reino dos Céus, enquanto viviam, com fé e grande pa­
ciência esperavam a chegada da tua glória.
O que eles acreditaram, acredito; o que esperaram, espe­
ro; aonde chegaram, pela tua graça, confio chegar também.
Até lá, caminharei na fé, confortado com os exemplos
dos santos, terei ainda os livros sagrados por consolação e
espelho de vida, e sobre tudo isto, o teu santíssimo Corpo
por único refúgio e remédio.

[ 287
4.
E, na verdade, sinto que duas coisas me são sobretudo ne­
cessárias neste mundo, sem as quais esta vida miserável se
me tornaria impossível.
Prisioneiro no cárcere deste corpo, confesso faltarem-me
duas coisas: alimento e luz.
E assim me deste, a mim, fraco, o teu sagrado Corpo,
para refeição do espírito e do corpo, e colocaste uma can­
deia, a tua palavra, diante dos meus pés ( Sl 1 1 9 [ 1 1 8] , 1 05 ) .
Sem estas duas coisas, não poderia viver bem: a Palavra
de Deus, luz da minha alma, e o teu S acramento, pão da
vida .
Ambos se podem comparar também a duas mesas, postas
dum e doutro lado do tesouro da santa Igrej a .
Uma das mesas é a d o altar sagrado, que tem o Pão santo,
ou sej a, o precioso Corpo de Cristo; a outra é a da lei divina,
que contém a doutrina santa, instruindo na verdadeira fé e
conduzindo com firmeza para além do último véu, onde está
o Santo dos santos .

5.
Graças te sej am dadas, Senhor Jesus, Luz da luz eterna,
pela mesa da sagrada doutrina que nos ensinaste pelos teus
servos, os profetas, os Apóstolos e os outros doutores.
Graças a ti, Criador e Redentor dos homens, que, para
mostrar a todo o mundo a tua caridade, preparaste a grande
Ceia, na qual ofereceste para comer, não o cordeiro simbó­
lico, mas o teu santíssimo Corpo e Sangue, e alegras todos
os fiéis com o sagrado banquete, inebriando-os com o cálice
da salvação, onde se encontram todas as delícias do Paraíso
e no qual participam connosco os santos anj os, embora com
mais feliz suavidade.

288 ]
6.
Oh, como é grande e honroso o ministério dos sacerdo­
tes, aos quais é dado consagrar com santas palavras o
Senhor de Maj estade, bendizê-lo com os lábios, tomá-lo nas
mãos, recebê-lo na própria boca e dá-lo aos outros !
Oh, como devem ser puras essas mãos, que pura a boca,
que santo o corpo, que imaculado o coração do sacerdote,
ao qual desce tantas vezes o Autor da pureza !
Da boca do sacerdote, que tantas vezes recebe o Sacra­
mento de Cristo, só devem sair palavras santas, honestas e
úteis.
Os seus olhos devem ser simples e modestos, eles que cos­
tumam olhar o Corpo de Cristo.
E as suas mãos, puras e erguidas ao céu, pois costumam
tocar o Cuador do Céu e da Terra.
Na Lei é dito especialmente aos sacerdotes: sede santos:
porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo ( Lv 1 9,2; 20,7) .

7.
Que nos aj ude a tua graça, Deus omnipotente, para que
nós, que recebemos o ministério sacerdotal, consigamos
servir-te, digna e piedosamente, com toda a pureza e boa
consciência .
E, se não podemos viver c o m tanta inocência de vida
como devemos, concede-nos, no entanto, que choremos con­
dignamente os males que fizermos e que, em espírito de
humildade e em propósito de boa vontade, te sirvamos, de
hoj e em diante, com maior fervor.

[ 289
XII

Que deve preparar-se com grande cuidado


aquele que vai receber a Cristo

1.
VOZ DO AMADO - Eu sou Aquele que ama a pureza e
que dá toda a santidade.
Eu procuro um coração puro, e aí é o lugar do meu
repouso.
Arranja-me um cenáculo grande, preparado: e farei em
tua casa a Páscoa, com os meus discípulos ( Lc 22, 1 2 ) .
S e queres que a t i venha e que j unto d e t i permaneça,
purifica-te do velho fermento e limpa a casa do teu coração.
Expulsa de lá o mundo e todo o tumulto dos vícios, poisa
como o pardal solitário no telhado, e medita nas tuas faltas
na amargura da tua alma ( Sl 1 02 [ 1 0 1 ] , 8; Is 3 8 , 1 4 ) .
N a verdade, todo aquele que a m a prepara o melhor e
mais belo lugar para o seu amado; nisso se conhece o afeto
de quem recebe aquele a quem ama .

2.
Sabe, porém, que não podes satisfazer nesta preparação
por teu próprio mérito, ainda que te preparasses durante um
ano inteiro e não pensasses em mais nada.
Mas só por minha misericórdia e graça te será permitido
aproximar da minha mesa, tal como ao mendigo, chamado
ao banquete do rico e que nada tem para retribuir a sua bon­
dade, só resta humilhar-se e agradecer.

290 ]
Faz tudo o que puderes e fá-lo com cuidado, não por
hábito, não por necessidade; mas com temor, com respeito e
com afeto recebe o Corpo do amado Senhor teu Deus, que a
ti se dignou vir.
Fui Eu que chamei, fui Eu que o ordenei, Eu te darei o
que te falta : vem e recebe-me.

3.
Quando Eu dou a graça da devoção, dá tu graças ao teu
Deus, não por seres digno, mas porque me compadeci de ti.
Se não consegues, se te sentes seco, insiste na oração,
geme e bate à porta; e não desistas até mereceres receber
uma migalha ou uma gota da graça da salvação.
Tu precisas de mim, não sou Eu que preciso de ti.
Não és tu que me vens santificar, mas Eu é que venho
santificar-te e melhorar-te.
Tu vens para que por mim sej as santificado e a mim te
unas, para que recebas uma graça nova e de novo te animes
a emendar-te.
Não queiras perder tal graça, mas prepara com toda a
diligência o teu coração e recebe em ti o teu Amado .

4.
Importa , porém, que te não prepares somente para a
Comunhão, mas que na devoção te conserves com solicitude
depois de receberes o Sacramento .
Não se exige menos cuidado depois, do que uma fervo­
rosa preparação antes.
Na verdade, uma boa vigilância depois é uma ótima pre­
paração para conseguir uma maior graça.
Por isso, muito pouco preparado se torna aquele que ime­
diatamente se dispersa nas consolações exteriores.

[ 291
Teme as muitas palavras, permanece escondido e goza do
teu Deus.
Na verdade, possuis aquele que nem todo o mundo
poderá de ti afastar.
Eu sou aquele a quem te deves entregar todo, para que j á
não e m ti, mas e m mim, vivas, longe d e todo o cuidado.

292 ]
XIII

Que a alma fervorosa deve aspirar de todo o coração


a unir-se a Cristo no Sacramento

1.
VOZ D O DISCÍPULO - Quem me dera, Senhor, encon­
trar-te a ti e só abrir-te todo o meu coração para de ti viver,
como desej a a minha alma; quem me dera que j á ninguém
me desprezasse, nem qualquer criatura me perturbasse ou
olhasse, mas que só Tu me falasses e eu a ti, tal como o que
ama fala com quem ama e o amigo se senta à mesa com o
amigo.
Isto peço, isto desej o: que todo a ti me una, que afaste o
meu coração de todas as coisas criadas e aprenda a saborear
mais as coisas eternas e do Céu pela sagrada Comunhão e
pela celebração frequente.
Ah, Senhor Deus, quando estarei contigo, todo unido e
absorvido, esquecido totalmente de mim ?
Tu em mim, e eu em ti ! Concede que assim permaneça­
mos um só.

2.
Tu és, n a verdade, o meu Amado, escolhido entre mil ( Ct
5 , 1 0 ) , no qual a minha alma se agradou de habitar em todos
os dias da sua vida.
Tu és, na verdade, o que me dá a paz, em quem existe o
repouso e o verdadeiro descanso, sem o qual só há trabalho,
dor e miséria infinita .

[ 293
Tu és verdadeiramente o Deus escondido (Is 45 , 1 5 ) e o
teu conselho não está com os ímpios; mas sim a tua palavra
com os humildes e com os simples (Pr 3,32 ) .
Oh, como é suave, Senhor, o teu Espírito, Tu que, para
mostrares a tua doçura aos filhos, os dignaste reconfortar
com o pão suavíssimo, descido do Céu (ant. do Sacram. ) .
Na verdade, não existe outra nação tão grande que tenha
deuses que dela se aproximem, tal como Tu, nosso Deus,
estás junto (Dt 4 , 7 ) de todos os teus fiéis, aos quais, para
consolação de todos os dias e para lhes elevares o coração ao
Céu, te dás por comida e por consolo.

3.
Que outro povo existe tão glorioso como o povo cristão ?
O u que criatura, debaixo do céu, tão amada como a alma
piedosa, j unto da qual Deus vem para a apascentar com a
sua gloriosa carne ?
Oh, graça inefável ! Oh, admirável favor ! Oh, amor
imenso singularmente dado ao homem !
Mas que retribuirei ao Senhor por esta graça, por tão
grande caridade ?
Nada há que eu possa dar de melhor do que entregar o
meu coração inteiro ao meu Deus e a Ele me unir intima­
mente .
Então exultarão todas as minhas entranhas, quando a
minha alma estiver perfeitamente unida a Deus.
Então me dirá: se queres estar comigo, Eu quero estar
contigo.
E eu lhe responderei: digna-te, Senhor, permanecer
comigo; pois que eu de boa vontade quero estar contigo.
Tal é todo o meu desej o : que o meu coração estej a unido
ao teu.

2 94 ]
XIV

Do ardente desejo de algumas almas piedosas


pelo Corpo de Cristo

1.
VOZ DO DISCÍPULO - Oh, como é grande a abundân­
cia da tua doçura, Senh or, que guardaste para os que te
temem! ( Sl 3 1 [30] ,20 ) .
Quando recordo como algumas almas piedosas s e apro­
ximam do teu Sacramento, Senhor, com a maior devoção e
afeto, então me sinto confundido e coro, porque tão morna
e friamente me aproximo da mesa da sagrada Comunhão;
porque assim permaneço seco e sem amor no coração; por­
que me não inflamo totalmente diante de ti, meu Deus, nem
sou assim atraído com força e transportado de amor, como
muitos homens fervorosos o foram, os quais não podiam
conter o choro, tal era o seu desej o de comungar e o seu sen­
sível amor de coração, e te desej avam igualmente, Deus e
fonte viva, com a boca do coração e com a do corpo, não
conseguindo acalmar nem saciar-se de outra forma, se não
tivessem recebido o teu Corpo com toda a alegria e fome
espiritual.

2.
Oh, fé verdadeira e ardente desses, que tal prova dá da
tua sagrada presença !
Estes reconhecem, na verdade, o seu Senhor na fração do

[ 295
pão ( Lc 24,3 5 ) , tão intensamente arde o seu coração quando
Jesus com eles caminha.
Bem longe de mim está, muitas vezes, tal afeto e devoção,
amor e fogo tão fortes .
Sê-me propício, b o m Jesus, doce e benigno, e concede a o
teu pobre mendigo, ao menos d e vez e m quando, que sinta
na sagrada Comunhão um pouco do íntimo afeto do teu
amor, para que a minha fé mais se anime, para que aumente
a esperança na tua bondade e para que a caridade, uma vez
perfeitamente inflamada e ateada com o maná do Céu não
desfaleça nunca .
Poderosa é, porém, a tua misericórdia, para me conceder
a graça desej ada e, em espírito de fervor, quando vier o dia
da tua vontade, me visitar com clemência.
Porque, embora não arda no grande desej o dos que por ti
têm tão especial fervor, tenho, contudo, o desej o de, com a
tua graça, possuir esse grande e abrasador desej o, pedindo e
desejando tornar-me participante de todos esses fervorosos
amigos teus, e ser contado na sua santa companhia.

296 ]
XV

Que a graça da vocação se adquire


pela humildade e negação de si próprio

1.
VOZ D O AMAD O É necessário procurar instante­
-

mente a graça da devoção, pedi-la com desejo, esperá-la com


paciência e confiança, recebê-la com gratidão, conservá-la
com humildade, esforçar-se por colaborar com ela e entregar
a Deus, até que venha, o fim e o modo dessa visita do alto.
Deves, sobretudo, humilhar-te, quando sentes pouca ou
nenhuma devoção interior, mas não desfalecer demasiado ou
entristecer-te desordenadamente.
Deus concede muitas vezes num breve momento o que
negou durante largo tempo.
Dá, por vezes, no fim o que demorou a dar no princípio
da oração.

2.
S e a graça fosse sempre concedida logo e aparecesse con­
forme é desejada, isso não seria suportável para o homem fraco.
Por isso se deve esperar a graça da devoção com firme
esperança e humilde paciência.
Contudo, quando não te é dada ou te é misteriosamente
retirada, atribui-o a ti próprio e aos teus pecados.
É, por vezes, pouca coisa o que impede e esconde a graça,
se se chamar pouca coisa e não grande ao que de tamanho
bem nos priva.

[ 297
E se afastares e venceres completamente essa pequena ou
grande coisa, far-se-á como pediste.

3.
N a verdade, assim q u e t e entregares a Deus d e todo o
coração e deixares de querer isto ou aquilo segundo a tua
vontade, mas inteiramente a Ele te confiares, achar-te-ás
unido e pacificado, pois nada te saberá tão bem e tanto te
agradará como o que agrada à vontade divina.
Aquele, pois, que erguer a Deus com simplicidade de
coração as suas intenções e se libertar de todo o desregrado
amor de si ou da aversão por qualquer coisa criada, estará
bem preparado para receber a graça e digno do dom da
devoção.
Porque Deus dá a sua bênção lá onde encontra vasos
vazios.
E quanto mais perfeitamente alguém renuncia às coisas
inferiores e mais se mortifica pelo desprezo de si próprio,
tanto mais depressa vem a graça, entra mais abundante­
mente e a mais alto eleva o coração livre.

4.
Então verá e terá abundância, e se admirará e se dilatará
o seu coração (Is 60,5 ) dentro de si, porque a mão do Senhor
está com ele, que para sempre e totalmente se abandonou
em suas mãos.
Eis que assim será abençoado o homem que procura
Deus de todo o seu coração, e que não recebeu em vão a sua
alma ( Sl 24 [2 3 ] ,4 ) .
Este, recebendo a sagrada Eucaristia, merece a grande
graça da união com Deus, porque não olhou à sua própria
devoção e consolação, mas, acima de toda a devoção e con­
solação, à glória e honra de Deus.

298 ]
XVI

Que devemos descobrir a Cristo


as nossas necessidades e pedir a sua graça

1.
VOZ D O DISCÍPULO Ó doce e amado Senhor, que
-

agora desej o receber fervorosamente, Tu conheces a minha


fraqueza e a necessidade que padeço, em quantos males e
vícios estou caído, quantas vezes sou atormentado, tentado,
perturbado e manchado.
De ti me aproximo como de meu remédio; a ti clamo
como consolação e alívio.
Falo àquele que tudo sabe, a quem é patente tudo o que
está dentro de mim e que, só Ele, me pode consolar e aj udar
perfeitamente.
Tu sabes de que bens eu mais careço e como sou pobre
em virtudes.

2.
Eis que estou diante d e ti, pobre e nu, pedindo graça e im­
plorando misericórdia.
Refaz o teu esfomeado mendigo; aquece o frio que eu sou
com o fogo do teu amor; ilumina a minha cegueira com a
claridade da tua presença.
Torna para mim em amargura todas as coisas da Terra;
tudo o que me é duro e contrário, em paciência; tudo o que
é inferior e criado, em desprezo e esquecimento.

[ 299
Ergue o meu coração para ti no Céu, e não deixes que
vagueie sobre a Terra .
Que, de hoj e em diante e para sempre, s ó Tu me sej as
doce, pois és a minha única comida e bebida, o meu amor e
a minha alegria, a minha doçura e todo o meu bem.
Inflama-me totalmente com a tua presença, queima-me e
transforma-me em ti, e que eu contigo me torne num só espí­
rito pela graça da união interior e pela fus ã o dum amor
ardente !
Não deixes que de ti me afaste seco e em j ej um, mas usa
comigo de misericórdia, tal como tantas vezes fizeste tão
maravilhosamente com os teus santos.
Que há de admirar, se por ti todo me inflamo e em mim
desfaleço, se Tu és o fogo sempre ardente e que nunca se
apaga, o amor que purifica os corações e que ilumina a in­
teligência ?

3 00 ]
XVII

Do amor ardente e do grande desejo


com que se deve receber Cristo

1.
VOZ DO DISCÍPULO - Com a maior devoção e o mais
ardente amor, com todo o a feto e fervor do coração, te
desej o receber, Senhor, tal como, comungando, te desej aram
muitos santos e almas piedosas, que tanto te agradaram pela
santidade de vida e tão ardente devoção tiveram.
Ó meu Deus, amor eterno, todo o meu bem, felicidade
sem fim, desej o receber-te com o maior desej o, com o maior
respeito que algum dia pôde ter ou sentir qualquer dos
santos!

2.
E , embora sej a indigno d e possuir todos esses sentimen­
tos de devoção, ofereço-te, contudo, todo o a feto do meu
coração, como se eu sozinho tivesse todos esses gratos dese­
j os ardentes.
E tudo o que um espírito piedoso pode conceber e desej ar,
tudo te apresento e ofereço, com grande veneração e íntimo
fervor.
Nada quero reservar para mim, mas sim imolar-me e a
tudo o que é meu, a ti, voluntária e livremente.
Senhor meu Deus, meu Criador e Redentor, desej o rece­
ber-te hoje com tal afeto, respeito, louvor e honra, com tal
gratidão, dignidade e amor, com tal fé, esperança e caridade,

[ 3 01
como te recebeu e desej ou a tua santíssima Mãe, a gloriosa
Virgem Maria, quando, com humildade e devoção, respon­
deu ao anj o que lhe anunciava o mistério da encarnação : eis
a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra
( Lc 1 , 3 8 ) .

3.
E , tal como o teu bem-aventurado precursor, o mais alto
dos santos, João Batista, alegre exultou em tua presença com
a alegria do Espírito Santo, enquanto estava ainda encerrado
no ventre de sua mãe, e, mais tarde, distinguindo Jesus, que
caminhava entre os homens, se humilhou e disse com amor:
mas o amigo do esposo, que permanece junto dele e o ouve,
com alegria se alegra por causa da voz do esposo (Jo 3,29) -
assim também eu desej o ser abrasado por grandes e sagrados
desej os, e diante de ti me apresentar com todo o coração.
Por isso te ofereço e apresento a s alegrias de todos os
corações devotos, os amores ardentes, os êxtases do espírito,
as luzes sobrenaturais e as visões do Céu, j untamente com
todas as virtudes e louvores celebrados por toda a criatura
no Céu ou na Terra, por mim e todos os que recomendo na
oração, para que por todos sej as dignamente louvado e para
sempre glorificado .

4.
Aceita, Senhor meu Deus, os meus votos e os desej os de
infinito louvor e imensa bênção , que te são devidos por
direito segundo a imensidade da tua indizível grandeza.
Isto te entrego e desej o entregar em cada dia e em cada
momento, e convido e exorto, com orações e desej os, todos
os espíritos do Céu e todos os teus fiéis a que comigo te
deem graças e louvores.

3 02 ]
5.
Que todos os povos, tribos e línguas te louvem, e glorifi­
quem o teu santo e doce Nome, com a maior alegria e a mais
ardente devoção.
E que todos os que celebram com respeito e devoção o
teu altíssimo Sacramento, e o recebem com plena fé, mere­
çam achar graça e misericórdia j unto de ti, e por mim, peca­
dor, suplicantemente peçam.
E que, ao deixarem a santa mesa do Céu, fortalecidos por
esta devoção e por esta união proveitosa, totalmente conso­
lados e maravilhosamente refeitos , se dignem lembrar da
minha pobreza.

[ 303
XVIII

Que o homem não perscrute


com curiosidade este sacramento,
mas imite humildemente a Cristo,
submetendo a sua opinião à sagrada fé

1.
VOZ D O AMADO - Deves temer dar-te a uma curiosa e
inútil investigação deste profundíssimo sacramento, se não
queres cair nas profundezas da dúvida.
O que perscruta a Majestade, será oprimido pela glória
( Pr 25,27 ) .
Mais pode Deus fazer que o homem compreender.
Só se tolera uma piedosa e humilde busca da verdade, se
ela está sempre pronta a ser guiada e a procurar caminhar
segundo a sã doutrina dos Padres.

2.
Feliz a simplicidade que deixa os difíceis caminhos das
perguntas e caminha pelas sendas planas e firmes dos man­
damentos de Deus.
Muitos perderam a devoção quando quiseram perscrutar
coisas mais altas.
Exige-se de ti a fé e uma vida sincera, e não a elevação da
inteligência ou a sabedoria dos profundos mistérios de Deus.
Se não percebes nem apreendes o que te é inferior, como
compreenderás o que te está acima ?

3 04 ]
Submete-te a Deus e humilha o teu parecer à fé; e ser-te-á
dada a luz da ciência, conforme te for útil ou necessário.

3.
Alguns são duramente tentados na fé ou na Eucaristia;
isso, porém, não se deve atribuir a eles, mas sim ao inimigo.
Não te importes, não discutas com os teus próprios pen­
samentos, nem respondas às dúvidas insinuadas pelo demó­
nio, mas crê nas palavras de Deus, crê nos seus santos e pro­
fetas e de ti fugirá o inimigo.
Muita s vezes de muito serve que tais coisas suporte o
servo de Deus.
Pois que o demónio não tenta os infiéis e pecadores, que
já possui com certeza, mas sim os fiéis devotos, que tenta e
humilha de diversos modos.

4.
Caminha, portanto, com uma fé simples e certa, e apro­
xima-te do Sacramento com suplicante respeito; e o que não
consigas perceber, entrega com confiança a Deus omnipo­
tente.
Deus não te engana; mas engana-se aquele que em si pró­
prio crê demais.
Caminha Deus com os simples, revela-se aos humildes, dá
inteligência aos pequenos, abre os sentidos aos de espírito
puro e esconde a graça dos curiosos e soberbos.
A razão humana é fraca e pode errar; mas não a verda­
deira fé.

5.
Todo o raciocínio e investigação natural deve seguir a fé,
não precedê-la ou infringi-la.
Na verdade, é aí que brilham sobretudo a fé e o amor, e

[ 305
nesse santíssimo e tão excelente sacramento operam de
maneira oculta.
Deus eterno e imenso, de poder infinito, faz coisas gran­
des e inescrutáveis no Céu e na Terra, e não há investigação
possível das suas maravilhas.
Se as obras de Deus fossem tais que facilmente se apreen­
dessem pela razão humana, não deveriam chamar-se admi­
ráveis nem inefáveis.

3 06 ]
ÍNDICE

Prefácio 5

Livro Primeiro
Conselhos úteis à vida espiritual
I- Da imitação de Cristo e do desprezo de todas as vai-
dades do mundo 11
II - Do humilde sentimento de si próprio 13
III - Da doutrina da verdade 15
IV - Da previdência nas ações 18
V- Da leitura das Sagradas Escrituras 19
VI - Das afeições desordenadas 20
VII - De como fugir da esperança vã e do orgulho 21
VIII - De como evitar a muita familiaridade 23
IX - Da obediência e da submissão 24
X- De como evitar as palavras a mais 25
XI - De como alcançar a paz e progredir na virtude 26
XII - Das vantagens da adversidade 29
XIII - De como resistir às tentações 30
XIV - De como evitar os j u ízos temerários 34
XV - Das obras feitas por caridade 36
XVI - Da aceitação dos defeitos alheios 38
XVII - A vida monástica 40
XVIII - Do exemplo dos santos Padres 41
XIX - Dos exercícios de um bom religioso 44
XX - Do amor da solidão e do silêncio 47
XXI - Da compunção do coração 51
XXII - Da consideração da miséria humana 54
XXIII - Da meditação da morte 58
XXIV - Do juízo e das penas dos pecadores 62
XXV - Da fervorosa emenda de toda a nossa vida 66

[ 3 07
Livro Segundo
Conselhos para o progresso na vida interior
I - Da conversão interior 73
II - Da humilde submissão 77
III - Do homem bom e pacífico 79
IV - Do espírito puro e da reta intenção 81
V - D a consideração de si próprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
VI - D a alegria da boa consciência 85
VII - Do amor a Jesus sobre todas as coisas 87
VIII - Da amizade familiar a Jesus 89
IX - Da falta d e toda a consolação 92
X - Da gratidão pela graça de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
XI - D o pequeno número dos que amam a cruz de Jesus 99
XII - Do régio caminho da santa Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 0 1

Livro Terceiro
Da consolação interior
I - Da conversação interior de Cristo com a alma fiel 111
II - Que a verdade fala dentro de nós sem ruído de pa-
lavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 3
III - Que as palavras de Deus devem ser ouvidas com hu-
mildade, e que muitos as não pesam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 5
IV - Que s e deve viver diante d e Deus na verdade e na
humildade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . 1 1 8
V - D o admirável efeito d o amor divino 120
VI - Da prova do verdadeiro amigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 24
VII - De como se deve ocultar a graça à guarda da humil-
dade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
VIII - Da pouca estima d e si na presença d e Deus . . . . . . . . . . . . 1 3 0
IX - Q u e s e devem atribuir a Deus, como fim último, to-
das as coisas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32
X - Que é doce servir a Deus, desprezando o mundo . . 1 34 .

XI - Q u e se devem examinar e moderar os desejos d o


coração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 7
XII - D a prática da paciência e da luta contra os maus
desejos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 9
XIII - D a obediência d o humilde, a exemplo d e Jesus
Cristo 1 42

3 08 ]
XIV - Do dever de considerar os j uízos ocultos de Deus
e de não nos orgulharmos do bem que fizemos . 1 44 ..

XV - De como devemos falar e comportar-nos em tudo


o que desej armos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... .
. . . . 146
XVI - Que só em Deus se deve buscar a verdadeira con-
solação . . . .. .. .. .. . . . . . . . . .. .. .. .. . . . . . . . .. .. .. .. . . . . .. . . . . . . .. .. . . . . . . 1 4 8
XVII -Que d e deve entregar a Deus todo o cuidado 150
XVIII - Que s e devem suportar de b o a vontade todos o s
males deste mundo, a exemplo d e Cristo 1 52
XIX - Como tolerar as inj úrias e conhecer aquele que tem
a verdadeira paciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 54
XX - Da confissão da própria fraqueza, e das misérias
desta vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . 156
XXI - Que s e deve descansar e m Deus, mais do que e m
todos o s bens e e m todos os dons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
XXII - D a recordação dos muitos benefícios d e Deus . . . . . 1 62
XXIIII - Das quatro coisas indispensáveis à paz 1 65
XXIV - De como evitar a curiosidade pela vida dos outros 1 6 8
XXV - Em que consiste a firme paz d o coração e o verda-
deiro progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 69
XXVI - Da grandeza do espírito livre, que mais se adquire
pela oração que pela leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 71
XXVII - Que o amor de si próprio muito impede o sumo
bem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 73
XXVIII - Contra as línguas dos maldizentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 75
XXIX - Como se deve, na tribulação, invocar e bendizer a
Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 76
XXX - De como se deve pedir o auxílio de Deus e con-
fiar na recuperação da graça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 78
.

XXXI - Do abandono de toda a criatura para se poder en-


contrar o Criador 181
XXXII - D a negação de s i próprio e d a renúncia a todo o
desej o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 84
XXXIII - Da inconstância do coração e do dever de tudo
orientar para Deus 186
XXXIV - Aquele que ama s a b oreia Deus mais que tudo e
em tudo 188
XXXV Que nesta vida não s e está seguro d a tentação
- 1 90
XXXVI - Contra os vãos j uízos dos homens 1 92

[ 309
XXXVII - Da pura e inteira renúncia de si mesmo para obter
a liberdade de coração 1 94
XXXVIII - De como nos regermos bem nas coisas exteriores
e recorrermos a Deus nos perigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
XXXIX - Que o homem não deve ser apressado nos seus
afazeres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198
XL - Que o homem, por sim, nada tem de bom, e de
nada se pode orgulhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 99
XLI ­ Do desprezo de toda a honra do mundo 202
XLII ­ Que a paz não deve depender dos homens 203
XLIII ­ Contra a ciência vã deste mundo 205
XLIV ­ De como não se enredar nas coisas exteriores . . . 207
XLV - Que não se deve acreditar em todos, e do fácil
erro das palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
XLVI - D a confiança que se deve ter em Deus quando
somos atacados por palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
XLVII - Que pela vida eterna se devem suportar todos
os males . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 214
XLVIII ­ D o dia d a eternidade e das angústias desta vida 216
XLIX - D o desej o d a vida eterna, e d e quão grandes são
os bens prometidos aos que lutam 219
L - D e como o homem desolado s e deve entregar nas
mãos de Deus .. .. . .. . . .. .. .. .. . . . . .. . . .. .. .. .. . . . . . .. .. .. .. .. . . . . 223
LI - Como nos devemos ocupar de trabalhos humil-
des quando desfalecemos nos mais altos . . . . . . . . . . . 227
LII - Que o homem se não julgue digno de consolação,
mas antes réu de castigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
LIII - Que a graça de Deus se não liga aos que sabo-
reiam as coisas da Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 1
LIV ­ Dos movimentos diversos na natureza e da graça 233
LV - Da corrupção d a natureza e da eficácia da graça
divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
LVI - Como nos devemos negar a nós próprios e imitar
a Cristo pela Cruz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240
LVII - Que o homem não deve desanimar demasiada-
mente quando cai nalguma falta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
LVIII Que se não devem perscrutar as coisas altas e os
-

j uízos ocultos de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246


LIX - Que só em Deus se deve fixar toda a esperança e
confiança 25 1

31 0 ]
L ivro Quarto
Do Santíssimo Sacramento

Exortação piedosa à Sagrada Comunhão 255

I - Com que grande respeito se deve receber Cristo 256


II - Que a grande bondade e o a m o r de D e u s se mani-
festam ao homem neste sacramento 262
III - De como é útil comungar muitas vezes 265
IV - Que muitos bens são dispensados aos que comun-
gam com devoção 268
V - Da dignidade d o sacramento e d o estado sacerdotal 2 7 1
VI - Interrogação sobre os exercícios antes da comunhão 273
VII - Do exame de consciência e do propósito de emenda 2 74
VIII - Da oblação de Cristo na cruz e do sacrifício de si
próprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
IX - Que nos devemos oferecer a Deus com tudo o que é
nosso e pedir por todos 2 79
X - Que não se deve a b a ndonar por qualquer motivo
leve a sagrada Comunhão 282
XI - Que o C o r p o de Cristo e a Sagrada Escritura são
muito necessários à alma fiel 286
X I I - Q u e deve preparar-se com grande cuidado aquele
que vai receber a Cristo 290
XIII - Que a alma fervorosa deve aspirar de todo o cora-
ção a unir-se a Cristo no Sacramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
XIV - Do ardente desej o de algumas almas piedosas pelo
Corpo de Cristo 29 5
XV - Que a graça da devoção se adquire pela humildade
e negação de si próprio 297
XVI - Q u e devemos descobrir a Cristo as nossas necessi-
dades e pedir a sua graça 299
XVII - Do amor ardente e do grande desej o com que se deve
receber Cristo 301
XVIII - Que o homem não perscrute com curiosidade este
sacramento, mas imite humildemente a Cristo, sub-
metendo a sua opinião à sagrada fé 3 04

[ 31 1
TOMÁS DE KEMPIS - ou Thomas Hremerken von
Kempen - foi um monge e escritor alemão, e um dos
expoentes da chamada « devoção moderna » . Nasceu
em Kempen (Alemanha ) , em 1 3 8 0 . Com apenas 1 2
anos acompanhou o seu irmão João a Deventer, dio­
cese de Utrecht, onde conheceu a comunidade dos
Irmãos da Vida Comum (presidida então por Florên­
cio Radewijn, seu fundador) , e na qual pôde exercer
o seu talento de copista. Em 1 3 9 9 , o seu irmão tor­
nou-se prior do convento agostinho de Agnetenberg
(Monte de Santa Inês ) , e Tomás j untou-se a ele. Seria
aí ordenado sacerdote, em 1 4 1 3 , e, posteriormente,
nomeado subprior, em 1 42 9 . Isto aconteceu todavia
em pleno « cisma de Utrecht » , numa altura em que a
vida da comunid a d e fo i seriamente afetada e os
monges tiveram de exilar-se. Tomás refugiou-se em
Arnheim, onde permaneceu até 1432. De regresso a
Agneten berg, voltaria a ser reeleito s u bprior em
1 4 4 8 , permanecendo nessas funções até à morte, em
1 4 7 1 . Durante muito tempo, Tomás teve a seu cargo
a instrução dos noviços . Foi provavelmente este o
contexto em que foram escritos os quatro livros que
vieram a formar a Imitação de Cristo (título dado ao
primeiro livro da coletânea ) .

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