Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Uma Introdução Antroposófica À Constituição Humana
Uma Introdução Antroposófica À Constituição Humana
Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Abril de 2000; versão 4.1 de 8/9/06; see also the English version
Introdução
Este texto foi elaborado para servir de referência às primeiras palestras de um curso de introdução à
Antroposofia que temos dado há muitos anos com nossa esposa Sonia A. Lanz Setzer. Contrariamente à
maneira usual de se começar um tal curso com a constituição quadrimembrada do ser humano, temo-lo
iniciado com a organização trimembrada. A primeira é a maneira usada por Rudolf Steiner, o fundador da
Antroposofia, em seu livro fundamental A Ciência Oculta (São Paulo: Editora Antroposófica, 1998) – cujo
nome colocaríamos como mais adequado na forma 'A Ciência do Oculto'. Esse livro, cuja primeira edição data
de dezembro de 1909, foi precedido em 1904 por outro, também fundamental, Teosofia (S.Paulo: Ed.
Antroposófica, 1994). Neste último, Steiner inicia com o ser humano 'trimembrado'. Cremos que essa maneira
tem algumas vantagens em um curso introdutório, pois pode-se partir de expressões já conhecidas (corpo,
alma e espírito), podendo-se motivar a sua introdução por meio de uma observação prática, como fazemos no
texto. Assim, logo de início mostra-se como a Antroposofia conceitua, de maneira original, expressões que se
tornaram nebulosas no decorrer da história, e como esses conceitos ajudam a compreender o ser humano.
Inovamos neste texto também na tentativa de motivar o uso dos conceitos emitidos, mostrando como se pode
aplicá-los na compreensão de fenômenos simples, vivenciados no dia-a-dia. Para isso, entremeamos os
conceitos com citações de algumas aplicações.
Um texto introdutório recomendado é o de Rudolf Lanz, Noções Básicas de Antroposofia (S.Paulo:
Antroposófica, 1983;), que cobre muito mais assuntos do que este texto – mas quem sabe conseguiremos
completá-lo a fim de se tornar um novo livro introdutório.
Gostaríamos de chamar a atenção para os que se interessarem por Antroposofia de que o seu estudo
passa necessariamente pela leitura e releitura atenta dos dois livros fundamentais de Steiner citados acima.
Não são textos fáceis e, segundo o próprio Steiner, seu estudo aprofundado produz no leitor uma transformação
interior. Eles devem ser complementados com o estudo do livro de Steiner Filosofia da Liberdade (S.Paulo:
Antroposófica, 1988). Esses três aprofundam muitos dos conceitos que exporemos aqui.
Agradecemos à Dra. Sonia Setzer por frutíferas discussões e sugestões.
1.1 Corpo
Suponhamos que nos defrontemos com um vaso no qual há uma planta em flor. O que vemos?
É muito importante notar que não vemos nem um vaso, nem uma planta e nem uma flor. O que vemos,
isto é, o que nos dá a nossa percepção sensorial da visão, são diferentes tonalidades de cores. Mas, atenção,
também não vemos o 'vermelho' do vaso, o 'verde' das folhas, etc., como ficará claro mais adiante. O que
ocorre é a simples percepção dos impulsos luminosos dessas cores.
No processo de vermos o vaso e a planta, nosso corpo entra em atividade, por meio de nossos olhos.
Se tocarmos o vaso, nosso corpo estará participando de um processo por meio de nossos dedos. Se pegarmos
o vaso com os braços estendidos, teremos que fazer um esforço para segurá-lo, feito pelo corpo através dos
braços.
Todos esses processos são físicos. Com nosso corpo físico entramos em contato fisicamente com o
mundo físico ao nosso redor, participando dele. Num primeiro momento, vamos restringir a noção de 'corpo'
somente ao nosso corpo físico, isto é, aquele que é material, tem uma forma física, uma composição química
e no qual se passam processos químicos e físicos. Posteriormente, ampliaremos a noção de 'corpo' para
abranger outros aspectos.
1.2 Alma
Voltemos ao vaso. Ao vermos a flor do vaso, com suas cores e formas, ocorre um processo dentro de
nós: elas fazem-nos reagir interiormente, causando-nos inicialmente sensações. O verde das folhas nos dá uma
certa sensação, o vermelho das pétalas, sua forma, o peso do vaso, também nos produzem sensações. Junto
com essas sensações temos outro tipo de reação interior imediata, que são os sentimentos como, por exemplo,
o de que a flor é bela e nos produz um prazer. Cheirando a flor, temos a sensação do odor, mas imediatamente
reagimos com nossos sentimentos, achando que o cheiro é agradável ou não. Um outro exemplo pode ajudar
a caracterizar melhor a diferença entre sensações e sentimentos: suponha que uma pessoa chupe um limão. As
sensações envolvidas são o gosto particular daquele tipo de limão and sua acidez. Em seguida vêm os
sentimentos: aquela pessoa gosta ou não do gosto daquele limão (ou de limões em geral).
É interessante refletir sobre quais são os sentimentos mais básicos. Certamente simpatia e antipatia são
sentimentos bem básicos. Mas há outros ainda mais básicos: atração e repulsa. Se há atração por alguma coisa,
há simpatia para com ela; se há repulsa, há antipatia.
Vamos formular a hipótese de que as sensações e sentimentos não provêm de nosso corpo, e sim de
algo de nossa constituição não-física que denominaremos de alma. Os impulsos sensoriais são físicos, mas
consideraremos que as sensações e sentimentos provocados por esses impulsos não o sejam.
Poder-se-ia objetar que, ao se ter sensações e sentimentos, ocorrem alterações nas atividades neuronais
de nosso cérebro e portanto são físicos. Mas essas atividades não contradizem nossa hipótese de que as
sensações e sentimentos não são físicos. Segundo ela, eles produzem fenômenos físicos no cérebro, que
constituem assim fenômenos secundários, isto é, conseqüências de atividades anímicas não físicas. Isso de
modo algum contradiz o conhecimento científico materialista que se tem atualmente do cérebro. De fato, o
que se sabe é que, ao se ter certas sensações, sentimentos, impulsos de vontade, pensamentos ou lembranças,
algumas regiões do cérebro ficam mais ativas do que outras. O que se passa com os neurônios, e se eles são a
causa dessas atividades interiores ainda encontra-se em aberto do ponto de vista científico materialista. Sabe-
se também que pessoas com lesões cerebrais não conseguem ter certos tipos dessas atividades interiores. Isso
não significa que elas normalmente se originam nas áreas com lesão. Objetivamente, dever-se-ia no máximo
afirmar que essas áreas participam do processo de se ter essas atividades interiores. Dentro de nossa hipótese
de existência de processos não-físicos, estes podem existir mas, sem a parte cerebral, não serem
conscientizados pela pessoa. R.Steiner dá uma interessante analogia nesse sentido. Ao nos vermos num
espelho, conscientizamo-nos de nosso rosto. Se o espelho quebrar, continuamos a existir, mas não nos
conscientizamos mais de nosso rosto.
A alma tem a capacidade de agir até no nosso corpo físico. Vejamos como se pode compreender,
mesmo que seja vagamente, essa interação, usando duas possíveis explicações para esse fato. É interessante
notar que 'partículas' atômicas parecem comportar-se em certas situações como 'pacotes de energia'. De fato,
é impossível associar-se ao elétron uma 'bolinha' material, como se costuma fazer popular e erradamente desde
o modelo de Bohr. Essa bolinha faria circunvoluções em torno do núcleo do átomo, como num modelo
planetário. No entanto, essas circunvoluções implicariam necessariamente em mudança de direção da bolinha
(por meio de aceleração centrífuga). Como ela é carregada eletricamente, essa mudança implicaria em
irradiação eletromagnética, como em todas as antenas irradiantes, nas quais são produzidos movimentos de
vai-e-vem dos elétrons. Pode-se imaginar que em nosso cérebro muitas dessas partículas que se comportam
como pacotes de energia, estão em equilíbrio instável (como um lápis equilibrado em sua ponta) e, portanto,
um infinitésimo de energia pode mudar seu estado. Talvez com isso se possa resolver o problema da atuação
da 'mente' não-física (parte da alma, em nosso caso), sobre a matéria física, detectando-se a atividade neuronal
citada. Um outro possível enfoque para essa atuação emprega termos computacionais abstratos: suponha-se
que os neurônios são sistemas não-deterministas (o seu funcionamento aparentemente aleatório é indicado
pelo fato de que, sob os mesmos estímulos, um neurônio às vezes dispara, outras vezes não dispara). Suponha-
se ainda que o seu comportamento não é em geral aleatório, mas regulado (isto é, algumas transições não-
deterministas são escolhidas) por elementos não-físicos da constituição humana – afinal, não temos a sensação
de que nossos sentimentos, pensamentos e vontade são aleatórios! A decisão de seguir uma de várias possíveis
transições não requer energia, dando, portanto também margem à atuação do não-físico sobre o físico.
É também interessante notar que os modelos matemáticos quânticos de átomos contêm elementos que
não têm limite clássico, como o 'spin', isto é, não são redutíveis a tipos de energia que fazem sentido sensorial
(como se fossem provenientes de uma força de atração conhecida, uma rotação, etc.). É como se esses modelos
mentais indicassem a não materialidade dessas partículas (incluindo o elétron!). Se a matéria em sua forma
elementar deixa de ser material, também desaparece o problema de interação do não-físico com a matéria.
Além disso, é necessário reconhecer que os modelos matemáticos existentes há muito tempo, em especial os
da Mecânica Quântica, refletem de maneira razoável apenas o comportamento mensurável dos átomos mais
simples – a propósito, em situações que não têm nada a ver com as partículas em estado normal da matéria,
pois são resultados de colisões artificiais de altíssima energia. Podemos, portanto, afirmar que há um profundo
desconhecimento da natureza das partículas elementares, e portanto do que vem a ser a matéria. De fato,
parece-nos óbvio que do ponto de vista material a matéria não faz sentido (pois uma partícula indivisível não
faria sentido).
Assim, sentimo-nos à vontade, do ponto de vista do conhecimento científico atual, para admitir
processos não-físicos no universo e, em particular, no ser humano. Por falar nisso, há um argumento irrefutável
para a consideração de processos não-físicos no universo: a origem de sua matéria e energia, bem como suas
fronteiras não fazem sentido físico.
O importante para nosso modelo do ser humano é que a parte de nossa constituição que chamamos de
'alma' não é física, e não pode ser reduzida a processos físico e químicos, apesar de poder influenciar nosso
corpo físico, e ser influenciada por meio deste. Segundo o modelo aqui formulado, temos sensações e
sentimentos devido à existência de nossa alma. Além delas, há ainda outras manifestações da alma. Assim,
voltando ao exemplo do vaso com a flor, dado no início deste item, o simples olhar a flor pode despertar uma
outra manifestação de nossa alma: o impulso de vontade de cheirar ou tocar a flor. Se, para isso, tivermos
pego em seu ramo e sido picados por um espinho, teríamos o instinto de imediatamente largar o ramo.
Impulsos de vontade e instintos (que são um tipo de vontade), são também manifestações da alma, e ainda há
outras.
Vamos fazer aqui mais uma hipótese de trabalho: plantas não têm sensações, nem sentimentos, nem
instintos ou vontade. Por exemplo, as reações de uma planta à luz, crescendo em direção a esta, não devem
ser confundidas com as reações interiores provenientes de sensações e nem de instintos. Sensações são reações
interiores que devem poder ser percebidas interiormente pelo ser. A planta reage a um impulso físico da luz,
crescendo em direção a esta, mas sem experimentar uma sensação como se passa, com outras excitações
externas, em animais e nos seres humanos. Assim, dizemos que as plantas não têm alma, mas tanto os seres
humanos como os animais as têm. Atenção: ao se estabelecer esses conceitos devem-se examinar sempre as
plantas e animais típicos, descartando os casos de transição. Estes deveriam ser examinados à luz dos casos
mais gerais, em um enfoque científico goethiano. No caso dos seres humanos, a alma tem capacidades
inexistentes nas almas dos animais que, como veremos, devem-se a constituintes diferenciados presentes na
primeira.
O que os seres humanos têm, mas que falta aos animais, virá no próximo item. No momento, é
importante ainda reconhecer que cada ser humano tem sensações e sentimentos absolutamente individuais. É
impossível para uma pessoa sentir uma sensação ou um sentimento que outra pessoa está sentindo. Esta última
pode até expressar a sua sensação, dizendo: "Esta flor dá-me tanto prazer!" Mas o prazer propriamente dito
que ela sente só ela pode sentir. Da mesma maneira, cada qual tem seu instinto, não se podendo ter o instinto
do outro. Assim, características e atividades anímicas são estritamente individuais e subjetivas. Por meio do
corpo físico recebemos estímulos sensoriais, eventualmente de objetos externos a nós. Por meio da alma,
interiorizamos esses objetos de maneira estritamente pessoal, subjetiva, com alguma reação puramente
interior.
1.3 Espírito
Voltemos ao exemplo do vaso. Com o corpo, recebemos impressões sensoriais como as luminosas e
táteis, e sofremos a ação do peso do vaso e da planta se o erguemos. Com a alma reagimos interiormente a
essas percepções, sentindo sensações ou sentimentos, tendo com isso manifestações de vontade. Mas logo que
percebemos algo com nossos sentidos corporais, logo que temos sensações e sentimentos ligados às
percepções, formulamos algo com nosso pensamento: estamos 'vendo' um vaso, uma planta, uma flor, a flor é
uma rosa, 'vemos' as cores vermelha, verde, etc. 'Vaso', 'planta', 'rosa', 'vermelho', etc. são conceitos. É
fundamental, do ponto de vista de cognição, compreendermos que não vemos um 'vaso'. Insistimos – o que
vemos são diferenças de impulsos luminosos: as impressões luminosas do vaso e da planta em contraste com
as impressões do fundo, etc. Por meio do pensamento, associamos uma representação mental ('Vorstellung')
do vaso e da planta que se segue à percepção dos impulsos luminosos, aos conceitos de 'vaso', 'planta', 'flor',
'rosa', etc. Infelizmente tivemos que introduzir a noção de 'representação mental' em contraposição à de
'percepção', mas vamos deixá-los de lado, e tomá-los de maneira ingênua, caso contrário teríamos que
discorrer longamente sobre cognição.
Fazemos agora a hipótese de trabalho de que a associação de uma representação mental interior a um
conceito não é feita pelo corpo ou pela alma, mas por um terceiro membro de nossa constituição: o espírito,
que para isso emprega o pensar.
O espírito também não é físico, mas é de natureza diferente da alma. Como há substâncias físicas de
várias naturezas – a sólida, a líqüida, a gasosa, cada qual mais sutil que a anterior –, podemos supor que exista
uma hierarquia de 'substâncias' não-físicas. A 'substância' espiritual é mais sutil do que a anímica e, portanto,
'superior' e esta.
É por meio do espírito presente em cada ser humano que este entra em contato com os conceitos. Ora,
conceitos claramente não são físicos. Isso é absolutamente claro na Matemática, em particular na Geometria.
Por exemplo, o conceito de circunferência como lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto, o
centro, é um conceito imaterial, isto é, não-físico. Aliás, o próprio conceito de 'ponto' é imaterial; nunca
alguém viu um ponto geométrico, assim como nunca alguém viu uma circunferência perfeita. O que se vê são
aproximações, seja em desenhos, seja em objetos mais ou menos circulares.
Além de não serem físicos, conceitos são também universais, pois não dependem do sujeito que entra
em contato com eles – o conceito de circunferência é o mesmo para todas as pessoas. Mais ainda, ele não é
temporal ou, melhor dizendo, é eterno, pois não muda com o tempo. Segundo B. Spinoza, em sua Ética, prop.
3, "De coisas que não têm nada em comum, uma não pode ser a causa da outra." ("Quae res nihil commune
inter se habent, earum una alterius causa esse non potest.") Isso nos leva a uma caracterização de 'espírito'.
Suponhamos que um conceito eterno, como o de circunferência, que obviamente não depende da existência
de alguém que o formule, exista num mundo espiritual, o mundo das idéias platônicas (que supomos ser real,
mas não físico). Se é com nosso espírito que entramos em contato com um conceito eterno, aquele também
deve ser eterno. Aristóteles já havia usado um raciocínio puramente lógico como esse, em seu Sobre a Alma:
se podemos entrar em contato com conceitos eternos como os matemáticos, temos que ter em nós algo de
eterno. A partir daí ele formulou que nossa alma deve ter duas componentes, uma que contém nossos gostos,
instintos, etc., que desaparece quando morremos, e outra que deve ser eterna e permanece após a morte. Na
nossa formulação, denominamos a primeira simplesmente de 'alma' e a segunda de 'espírito'.
Por meio do corpo somos seres objetivos, pois entramos em contato com algo que não está em nós.
Por meio da alma somos seres subjetivos, pois com ela temos reações interiores absolutamente individuais.
Por meio do espírito temos atividades voltadas tanto para o que é subjetivo, quanto para o que é objetivo:
podemos com ele reconhecer as nossas sensações, sentimentos ou instintos subjetivos ("esta rosa torna-me
alegre", "estou com fome", "estou triste", etc.). Mas também podemos reconhecer nos objetos que percebemos
conceitos como 'rosa', que não dependem de nossa particular situação momentânea, da maneira como a
percebemos visualmente, do fato de gostarmos ou não dela, etc. (obviamente estamos supondo percepções
sensoriais relativamente nítidas e sadias, e uma capacidade de conceituação também sadia). Com nosso
espírito temos a percepção objetiva da essência superior daquilo que percebemos sensorialmente, ou mesmo
de entes que não têm manifestação física, como por exemplo os matemáticos.
Deve-se a Steiner (veja-se seu livro Filosofia da Liberdade, já citado) a contribuição de ter formulado
a cognição como sendo uma percepção do espírito. Por meio de nosso espírito podemos completar a
subjetividade de nossa percepção e da representação mental, associando-as com algo que está fora de nós
como o está o objeto percebido, mas que está ligado a este, sendo porém imperceptível aos nossos sentidos e
ao nosso corpo: o conceito do próprio objeto. Nossas percepções sempre são parciais, como por exemplo olhar
a rosa de um certo ângulo. O espírito completa essas percepções colocando o sujeito em contato com a essência
do objeto percebido, essência esta que está no mundo platônico das idéias, subjacente ao mundo físico. Assim,
conhecimento só pode ser obtido pela atuação de nosso espírito.
É uma lástima que a ciência materialista moderna tenha um profundo preconceito contra qualquer
manifestação ou conceito que envolva algo não-físico. Se este modelo que apresentamos estiver correto, é
inútil procurar a origem do pensamento nos neurônios. Pelo contrário, admitindo-se que o funcionamento dos
neurônios talvez seja uma conseqüência de processos não-físicos, abrir-se-ia um imenso campo de pesquisas.
Essa situação lembra bem a história do bêbado que estava procurando, em baixo do poste de luz, as que chaves
havia perdido, e não mais adiante, onde realmente as tinha perdido, mas onde estava escuro. Com a luz do
materialismo, e o método científico nele baseado, está se procurando as chaves onde não se as perdeu,
simplesmente por preconceito de usar outros meios (na metáfora, tatear em vez de enxergar). Assim nunca se
irá encontrá-las e, conjeturamos, nunca se obterá conhecimento satisfatório sobre nossas representações
mentais, o pensamento, os sentimentos, o sono, a vida, etc. Infelizmente há, além do citado preconceito, um
profundo medo de se ampliar o método materialista pois tem-se a fé de que essa ampliação levaria ao
misticismo e à crendice. Esperamos que os leitores não reconheçam em nós qualquer um dos dois. Foi R.
Steiner quem mostrou que é possível conceituar objetivamente e compreender o mundo não-físico (de fato, é
mais importante compreender esse mundo do que observá-lo), o que leva a um profundo entendimento do
mundo físico, pois este é uma manifestação daquele. Por exemplo, a forma típica de uma espécie de seres
vivos sempre segue um determinado padrão, comum a todos os indivíduos da espécie. Esse padrão é a
expressão física do conceito daquela espécie, que existe no mundo espiritual (veja-se meu ensaio
"Desmistificação da onda do DNA" em meu site).
Uma outra característica fundamental do espírito é a de conferir ao ser humano a capacidade de
consultar a memória. Podemos lembrar de algo, por um esforço interior, sem nenhum impulso ou necessidade
que nos obrigue a isso. Por exemplo, podemos estar completamente sem fome e decidir lembrar de uma
agradável refeição que fizemos no dia anterior. É justamente essa capacidade de nosso espírito consultar nossa
memória, por meio do pensamento, que nos faz poder deduzir relações de causa e efeito. É ela que nos fornece
a continuidade para nossa vida, que seria totalmente fragmentada se dependesse exclusivamente dos nossos
sentidos e das representações mentais baseadas somente no que eles percebem. É devido à memória que o
espírito tem a capacidade de associar a percepção de um objeto com o conceito correto de sua essência,
baseado em experiências anteriores.
Assim, por meio de nosso corpo temos percepções instantâneas do mundo ao nosso redor. É nosso
espírito que liga essas percepções, fazendo delas um todo coerente e recompondo a verdade da permanência
e das causas e efeitos. É ele que nos faz reconhecer a rosa meio murcha de hoje como sendo a mesma rosa
viçosa que vimos ontem, apesar da forma um pouco diferente.
Os animais não têm memória. Em seu livro já citado A Ciência Oculta, no cap. "A essência do ser
humano", R.Steiner formula que um animal pode ter, em ocasiões diferentes, as mesmas sensações a
determinados impulsos interiores ou exteriores já experimentados anteriormente. Ele dá o exemplo de um cão
que se alegra ao rever o dono. Não se trata de, como no ser humano, uma associação da representação mental
da pessoa sendo vista, com a memória de representações semelhantes passadas. O cão simplesmente sente o
mesmo prazer cada vez que vê o dono e, por isso, alegra-se. O condicionamento de um animal seria justamente
fazê-lo ter sempre a mesma sensação a um determinado impulso exterior e, com isso, ter o mesmo sentimento
ou a mesma reação de vontade. Se um certo gato fica com fome, tem o impulso de se dirigir em busca do
recipiente com ração, sempre deixada no mesmo local pelo seu dono. O que o gato não pode fazer é, sem
sentir fome, lembrar-se da gostosa ração que está naquele recipiente. Um cachorro pode sentir a falta do dono,
se sentir fome ou seu cheiro em um sapato e, talvez, até se sentir falta de carinho. Mas sem um impulso interior,
como um instinto ou uma sensação, ele não sentirá falta do dono. E em nenhum caso um animal pode recompor
interiormente uma imagem, na forma de representação mental, como fazemos ao consultar nossa memória.
Uma cuidadosa observação dos animais pode levar à conclusão de que essas considerações são verdadeiras.
Já a falta de memória mostra que os animais não possuem o elemento que conceituamos como 'espírito'
pois, se este existisse e atuasse sadiamente, ela também existiria. E pela falta dele eles não podem entrar em
contato com os conceitos, que são da mesma natureza. Uma abelha faz favos hexagonais, mas ela não tem
consciência desse fato; seus instintos fazem-na construir hexágonos aproximadamente regulares, sem que ela
reconheça o conceito que há em comum entre todos esses polígonos. Por isso a abelha não pode subitamente
decidir fazer favos pentagonais ou heptagonais (existe aí envolvido um fator de economia, mas que
obviamente é totalmente ignorado pela abelha; um instinto sábio 'programa' as abelhas a fazerem sua colméia
sempre dessa melhor forma).
O ser humano poderia decidir fazer um 'favo' de uma outra forma geométrica, talvez por motivos
estéticos. É só observar o mundo e notar-se-á que são os seres humanos que introduzem novidades nele. Os
animais seguem externamente seus 'programas' internos, vinculados inclusive ao seu próprio corpo. O
ambiente externo pode, obviamente, condicionar o animal a agir diferentemente, alterando aqueles
'programas'. Os seres humanos podem ir contra seus instintos, como alguém que faz um regime dietético
apesar de gostar imensamente de comer. Aliás, supondo que essa pessoa não esteja sofrendo com um pouco
de excesso de peso, o motivo da dieta pode ser ligado a um conceito de saúde ou a um conceito de estética,
isto é, pode ser independente de alguma necessidade física percebida pelo corpo.
Assim, é o espírito que faz um ser humano realmente humano, e o distingue dos animais. Nós temos
autoconsciência, individualidade, liberdade e moralidade, justamente devido à presença do espírito dentro de
nós. Os animais não têm nenhuma dessas capacidades. Eles têm consciência – como se pode notar quando se
ferem e reagem a isso – mas não têm auto-consciência, isto é, consciência de, por exemplo, saber que tipo de
dor estão sentindo, pois esse tipo é um conceito.
A presença do espírito é que dá real individualidade ao ser humano. Referimo-nos aqui a uma
manifestação superior, que vai além da óbvia presença de uma individualidade única devida à hereditariedade
e às influências do meio ambiente. Essa individualidade inferior envolve por exemplo uma face única, uma
impressão digital única, gostos únicos, interesses únicos, mas não é a isso que estamos chamando de
'individualidade superior', aquilo do qual temos uma leve percepção quando, referindo-nos a nós mesmos,
chamamo-nos de "Eu". Steiner chamou a atenção para o significado muito especial que essa palavra tem:
alguém pode usar outras denominações ao referir-se a vários objetos ou pessoas que estão fora dele próprio,
como "esta é uma mesa", "este é o Tonico", etc. Mas a denominação "Eu" só pode ser usada quando ele está
se referindo a si próprio – e de uma maneira bem ampla, envolvendo muito mais do que seu aspecto, seus
gostos, etc.
A ciência materialista de hoje não pode, com suas terríveis limitações de visão de mundo, admitir a
existência dessa individualidade superior. Ela postula que o ser humano é exclusivamente fruto da
hereditariedade e da influência do meio ambiente. A hipótese da existência do elemento 'espírito' leva a esse
terceiro elemento em cada indivíduo. E é devido a ele que se pode compreender como gêmeos univitelinos
que viveram juntos acabem tendo ideais e profissões diferentes. Uma conseqüência dessa concepção é que é
impossível prever o comportamento de uma pessoa baseando-se exclusivamente em sua herança genética e na
influência do meio ambiente. Em particular, conjeturamos que a partir do levantamento do genoma humano
não se poderá controlar sua vida como se pretende, por exemplo evitando doenças de maneira determinista. A
manifestação de uma predisposição genética depende, neste modelo, da necessidade do espírito da pessoa.
Este também atua no inconsciente, por exemplo levando a pessoa a uma situação onde pode se desenvolver –
o que poderia ser denominado de 'destino'. Note-se que em qualquer situação em que se encontre, a pessoa
pode, a partir de seu espírito, agora em ato consciente, decidir-se a tomar este ou aquele caminho, de modo
que o destino não coíbe a liberdade, simplesmente cria as situações favoráveis para o desenvolvimento pessoal
– inclusive 'pegando-se' doenças. Observe-se a profunda sabedoria da língua, que provém de uma época em
que se sabia intuitivamente muita coisa que se perdeu: não se diz 'a doença me pegou', mas o contrário. Note-
se também que estamos imersos em um mundo de vírus, bactérias e micróbios, mas uma pessoa sadia
raramente 'pega' uma doença. Isso se dá quando ela tiver a predisposição para isso, e no momento adequado
ao seu desenvolvimento – em um sentido muito amplo. Em geral a medicina estuda e trata da patogênese; ela
deveria também estudar e tratar (no caso, dar diretivas para manter) a 'salutogênese', termo introduzido por
Aaron Antonovsky. Ele desenvolveu esse ramo a partir de observações de pessoas que tinham passado pelos
horrores de campos de concentração e extermínio nazistas mas que, no entanto, tinham uma saúde física e
mental excelente.
Já que falamos em doença, seria interessante colocar aqui o seguinte. Observando-se a natureza,
notamos nela uma imensa sabedoria. E o que há de mais sábio na natureza é o corpo humano. (De um certo
ponto de vista espiritualista, essa sabedoria desse corpo não é fruto de mutações casuais e seleção natural, mas
de uma atuação gradual de seres espirituais e de nosso próprio espírito.) Pois bem, como conciliar uma tal
sabedoria com a aparente falha desse corpo, adquirindo doenças? Esse paradoxo pode ser resolvido supondo-
se que as doenças são necessárias para o desenvolvimento pessoal. O papel do médico torna-se, nessa
concepção, um ajudante para que o doente possa superar a doença aprendendo com ela o que ela está tentando
ensinar. Obviamente, um médico nunca pode ter o conhecimento suficiente para dizer que uma doença deveria
ser fatal, de modo que a primeira obrigação dele é salvar a vida e impedir um sofrimento atroz. Dentro desse
princípio é que ele deve tentar fazer com que a doença se manifeste da melhor maneira possível. É por isso
que a medicina ampliada pela Antroposofia não é sintomática, isto é, não procura em primeiro lugar eliminar
os sintomas, como faz em geral a medicina clássica. Os sintomas são apenas uma manifestação exterior de um
processo que em geral deve cumprir-se adequadamente e não ser simplesmente interrompido.
Sem o elemento 'espírito', não se pode associar liberdade ao ser humano. A matéria, sem ser comandada
por algo não-físico (essa possibilidade foi abordada no item anterior), segue leis físicas, que são inexoráveis.
Portanto, da matéria não pode advir liberdade, no máximo aleatoriedade. Mas o ser humano não é um ser
caótico, em estados de boa saúde – física, anímica e espiritual.
A partir da alma também não se chega à liberdade. Por exemplo, não podemos controlar se sentimos
antipatia ou simpatia por outra pessoa à primeira vista. O que podemos controlar – pela atuação de nosso
espírito! – é nossa atitude baseada nesses sentimentos. Por exemplo, conscientizando-nos de uma antipatia por
uma pessoa, podemos forçar-nos a conversar ou ter contato com ela. Com isso, podemos descobrir nela
qualidades que fazem nossa antipatia aos poucos transformar-se em simpatia. Assim, nosso espírito dirigiu,
em liberdade, um ato que teria sido o contrário se tivéssemos seguido o impulso da alma.
Essa ligação da liberdade com a autoconsciência vai mais longe: não se pode falar em uma decisão
livre (e, por conseqüência, em um ato livre), se ela não for tomada em plena autoconsciência. Usando um
exemplo de Steiner no citado livro A Fiolosofia da Liberdade, não se pode afirmar que um bêbado age em
liberdade.
Finalmente, a liberdade nos leva à moralidade. Um ato é moral se ele é feito conscientemente, em
liberdade, e está de acordo com as verdades cósmicas, isto é, as físicas e as não-físicas. Por exemplo,
reconhecendo-se que cada ser humano tem um espírito individual dentro de si, que se manifesta através de sua
autoconsciência, individualidade e liberdade, qualquer ação sobre uma pessoa sã que prejudique essas suas 3
características deveria, em princípio, ser considerada imoral. Note-se que usamos a palavra 'sã': não
consideramos uma pessoa dominada, por exemplo, por instintos suicidas ou homicidas como sendo 'sã'.
É devido à presença do espírito dentro de cada um de nós que podemos praticar o amor altruísta. Um
ato de amor altruísta não pode advir nem do corpo, nem da alma. Ações que provêm de um deles ou de ambos
só podem ser egoístas. De certa maneira, Richard Dawkins (O Gene Egoísta. Lisboa: Gradiva Publicações,
1989) está correto: os genes são egoístas – mas a partir deles nunca se pode chegar a uma ação verdadeiramente
altruísta. Como materialista, Dawkins não pode admitir a hipótese da existência de algo não físico dentro do
ser humano, e daí qualquer consideração sua que leve a um altruísmo é, segundo o nosso modelo, falaciosa
(inclusive, seguindo o que Darwin já havia especulado, a de que pessoas altruístas tiveram mais aceitação na
comunidade e sobreviveram melhor, isto é, o altruísmo é, pasmem, conseqüência do egoísmo!). Aliás, a
aplicação de conceitos evolucionistas a seres humanos é absolutamente indevida. Isso já foi constatado por A.
Russel Wallace, o descobridor da Seleção Natural em paralelo com Darwin, mas independentemente deste
(ambos apresentaram sua teoria na mesma sessão da Academia Real em Londres). Só que Wallace, ao
contrário de Darwin e dos darwinistas típicos até hoje, era espiritualista – o que obviamente não o impediu de
ser um grande biólogo! Infelizmente, Wallace e seus contemporâneos não tinham a conceituação do espírito
como formulada e vivenciada por Steiner, e não puderam trabalhar com esse conceito. Com essa conceituação,
fica claro o ridículo de aplicar aos seres humanos conceitos evolucionistas, voltados exclusivamente à nossa
corporalidade física, e nem mesmo à nossa constituição anímica.
Para se fazer uma ação altruísta, beneficiando a outrem sem que nossa ação redunde em benefício
próprio, é necessário haver um elemento dentro de nós que está acima das necessidades impostas por nosso
corpo e pelos sentimentos advindos de nossa alma, como antipatias e simpatias. Um exemplo simples de uma
ação dessas é uma doação completamente sem amarras, em que o receptor tem a total liberdade de usar o
objeto ou quantia doada como bem lhe aprouver. Em seu livro Economia Viva (S.Paulo: Ed. Antroposófica,
1995) R.Steiner discorre sobre o que ele denominou de 'dinheiro de doação'.
Vê-se por tudo isso como a noção da existência do elemento 'espírito', como caracterizado,
completando a trimembração do ser humano, é absolutamente essencial para se chegar ao ser humano global
e compreender as suas manifestações que se pode observar com nossos sentidos. Conjeturamos que a ciência,
limitada pela visão materialista – e que nem reconhece uma 'alma' –, ou uma psicologia estendida que se baseia
exclusivamente no corpo e na alma, jamais serão capazes de levar a uma compreensão profunda do ser
humano. Sem essa visão jamais teremos, por exemplo, uma educação adequada ao desenvolvimento amplo e
harmonioso de cada ser humano, bem como uma sociologia e uma economia que permitam uma organização
social mais sadia do que a que estamos vivendo, e que claramente está destruindo a sociedade em lugar de
elevá-la.
Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Abril de 2000; versão 4.1: 11/5/08
Parte 2/3 – Itens 2 a 5/11
2. Os 3 membros da alma
Em geral, quando existem 3 membros de algo formando uma totalidade, pode-se reconhecer 2 deles
como sendo polares, com características opostas, e o terceiro contém características dos dois pólos. Assim,
dos 3 membros da entidade humana, corpo, alma e espírito, o primeiro é polar ao último, e o do meio, contendo
aspectos dos outros dois, faz a ligação entre eles, harmonizando o conjunto. De fato, a corporalidade é
caracterizada, por exemplo, pela sua forma relativamente rígida. Em particular, o corpo físico é adaptado às
condições do mundo físico em que vivemos e tem necessidades advindas disso. Já o espírito tem a
característica de estar voltado não para o mundo material, mas para o espiritual, sendo versátil como as ideias
que nele residem. Não é devido ao corpo que temos liberdade, que vai contra a rigidez, pois aquilo que se
adapta totalmente às necessidades físicas não pode ser totalmente livre. Por exemplo, ninguém tem a liberdade
de dar um pulo de 20 m de extensão, ou tem a liberdade de parar de beber ou de comer (até pode fazê-lo, mas
aí destruirá seu corpo). Mas temos total liberdade no que se refere às atividades puramente espirituais, como
concentrar o pensamento em um determinado motivo escolhido livremente entre vários. Essa liberdade pode
refletir-se em ações físicas, como por exemplo nosso espírito decidir que vamos realizar uma tarefa física
possível, como ler o capítulo de um livro sem interrupção; se o telefone tocar, podemos cumprir nossa decisão
e não atendê-lo.
A alma encontra-se entre a corporalidade e o espírito, tendo características voltadas tanto a um como
a outro. R.Steiner, com sua percepção clarividente, observou que a alma tem 3 membros ou constituintes, que
ele denominou de Alma das Sensações, Alma Racional e da Índole, e Alma da Consciência, correspondentes
aos originais em alemão Empfindungseele, Verstandes- und Gemütseele e Bewusstseinseele.
3. Desenvolvimento histórico
A história da humanidade é, como tudo dentro de uma visão realmente espiritualista, a manifestação
do espírito. Steiner formulou interessantíssimas explicações para eventos históricos baseadas em suas
percepções espirituais conscientes, usando os conceitos da constituição humana que ele introduziu. Por
exemplo, ele mostrou quais os impulsos espirituais que envolveram o fenômeno Jeanne d'Arc,
incompreensível para uma concepção materialista da história. Como uma simples pastora analfabeta e
ignorante pôde comandar os exércitos franceses em sucessivas vitórias, traçando estratégias de batalhas contra
os ingleses? No caso, houve uma inspiração divina que a orientava.
Mas o que nos interessa aqui é a explicação que Steiner dá de algumas mudanças históricas, verdadeiras
descontinuidades, que ele constatou serem devidas ao início da plena manifestação de cada um dos 3 membros
da alma que acabamos de examinar. Segundo ele, esses membros passaram a manifestar-se sucessivamente a
partir de épocas razoavelmente precisas, e sua repentina manifestação é que ocasionou as mudanças históricas
que passaremos a localizar. Vamos começar pela manifestação do constituinte da alma que foi desenvolvido
em último lugar, e retrocederemos paulatinamente passando pelos outros dois.
4. Relacionamento social
Neste item vamos expor algumas ideias desenvolvidas por nós através de reflexão, observações e
vários cursos e palestras que demos sobre assuntos correlatos.
Os 3 membros da alma humana correspondem àquilo que denominamos de 3 capacidades sociais.
4.4 Síntese
Temos, assim, 3 aspectos da atividade social. Inicialmente temos que nos interessar pelo próximo, e
ter a capacidade de detectar quais são suas necessidades e habilidades. Em seguida (ou em paralelo) devemos
sentir seus sofrimentos e alegrias. Finalmente, não basta ficarmos apenas nesses aspectos: devemos sentir a
responsabilidade de ajudar o outro satisfazendo suas necessidades e possibilitando que exercite suas
habilidades, colocando nossas habilidades a serviço dele, executando assim alguma ação social.
A posse de apenas um dos 3 aspectos pode levar a aberrações. Hitler certamente tinha uma enorme
sensibilidade social, pois sabia levar o seu povo e atender suas necessidades tanto físicas quanto emocionais
– mas de maneira nenhuma suas necessidades espirituais. Tinha até ação social, pois soube executar obras que
levaram a uma melhora de vida de seu povo, massacrado pelas estúpidas conseqüências do tratado de
Versailles. Mas certamente ele não tinha compaixão – nem para com seu próprio povo, pois ao ver que a
guerra estava perdida, considerou que o povo alemão não merecia mais existir e deu ordens para sua
aniquilação, no que não foi obedecido por seus generais (S.Haffner, Anmerkungen zu Hitler. Frankfurt:
Fischer, 1990). O seu exemplo nos mostra o que significa não ter uma visão correta do que é o ser humano:
ele tratou dezenas de milhões de pessoas como animais (por exemplo, transportando-os em vagões de gado e
literalmente enjaulando-os em campos de concentração). Ele não reconheceu a existência do espírito dentro
do ser humano. As influências místicas no governo nazista foram bastante estudadas; é um bom exemplo de
que o misticismo não é mais adequado aos dias de hoje. Ele dirige-se tipicamente à alma, em geral através de
emoções e um bem-estar interior, mas não reconhece o espírito, que busca a compreensão da verdade, como
aqui caracterizado.
Essa falta desse reconhecimento é uma das características trágicas de nossos dias. Não há nem o
reconhecimento de nossa constituição anímica como componente não-física real. Para a psicologia moderna,
a alma, quando muito, é uma abstração, uma ferramenta conceitual – caso contrário ela não usaria tanto os
animais para tirar conclusões sobre o ser humano. O que há é uma visão totalmente materialista do ser humano,
negando qualquer componente de nossa constituição que não seja resultado de processos físico-químicos. Isso
leva a uma concepção muito pior do que a de Hitler, de achar que somos animais. Animais tem alma, como
vimos, e pode-se ter uma atitude moral em relação a eles: não matá-los inutilmente ou por prazer (esporte de
caçar), não maltratá-los, etc. A própria tendência de preservação de espécies como as baleias, sem uma
justificativa científica (elas estão no fim da cadeia alimentar), mostra o desenvolvimento positivo de uma
sensibilidade anímica para com a natureza, origem profunda, em nosso entender, de todo o movimento
ecológico.
A concepção materialista do ser humano e do universo só pode levar a uma visão de que eles são
máquinas. No entanto, não pode haver ética ou moral em relação às máquinas. Pode-se amar animais, mas
amar uma máquina é uma aberração.
Conjeturamos que a concepção do ser humano como máquina levará a desastres sociais muito maiores
que os causados pelo nazismo e pelo comunismo, marcas registradas do século que passou. A solução é
desenvolver-se uma visão não materialista do universo, e em particular do ser humano. Mas essa visão tem
que ser consciente, baseada em compreensão, e não mística, baseada em fé ou dogmas religiosos. Esperamos
estar contribuindo para mostrar que existe a possibilidade de se desenvolver uma visão de mundo
('Weltanschauung') desse tipo, e como isso traria benefícios sociais.
5. Os 3 membros da corporalidade
Vamos nos aprofundar em certos aspectos da constituição não-física do ser humano. O leitor atento
pode ter formulado logo no início deste texto uma dúvida: e os aspectos vitais? Será que aquilo que chamamos
de 'vida', por exemplo em uma planta, é devida a fenômenos exclusivamente físico-químicos? É lógico que
não – para a ciência materialista, o fenômeno 'vida' é uma grande incógnita. No entanto, como foi visto,
afirmamos que as plantas não tem alma. Então onde estão esses processos vitais e quais são suas causas? Para
entrarmos na questão deles e da vida, e em outros processos que abordaremos mais adiante, é necessário tratar
de 3 membros da corporalidade, também conceituados por Rudolf Steiner.
5.4 O 'Eu'
Mas o que uma criança de poucos meses não tem que um adulto acordado tem? Ela não tem auto-
consciência: apenas aos 3 anos uma criança que não teve uma aceleração indevida de seu amadurecimento
(por exemplo, forçada pela TV ou pelo uso de computadores) refere-se a si própria como 'eu'. A criança de
poucos meses não tem posição e andar eretos, fala, pensamento, liberdade, responsabilidade, e nem
manifestação de uma individualidade superior – isto é, aquela que está além dos traços físicos individuais,
seus gostos e instintos particulares.
Steiner acrescenta mais um quarto elemento à constituição humana, que denominou de Eu, e que não
mais considerou como sendo corpóreo como os três anteriores, e sim puramente espiritual. É devido a esse Eu
que o adulto tem todas as características que não encontramos na criança pequena. Para simplificar, vamos
considerar que esse Eu é aquilo que chamamos de Espírito na trimembração formada com a alma e o corpo.
Sua 'substacialidade' é ainda superior, mais sutil, do que a do Corpo Astral. É por meio dele que o ser humano
comunga com os mundos espirituais, o mundo das ideias, como caracterizamos ao abordar o Espírito.
Cada ser humano tem um 'Eu' individual, distinto dos outros. É ele que denominamos de
'individualidade superior'.
5.5 Síntese
Temos, portanto, 3 membros da corporalidade: o Corpo Físico e os outros 2 não-físicos, o Etérico e o
Astral. O único que é físico, e onde se encontram todos os processos físico-químicos, é o primeiro. Os outros
2 não são físicos, podendo-se dizer que são compostos de uma 'substancialidade' não-física etérica e astral,
respectivamente. Com o Corpo Etérico temos principalmente as funções vitais, e com o Astral principalmente
a consciência. Um quarto elemento, não mais corpóreo, o Eu, introduz as manifestações puramente espirituais,
como a individualidade superior, a autoconsciência, a liberdade e a moral. Denomina-se de quadrimembração
a organização humana incorporando os 3 membros da corporalidade e o Eu.
Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Abril de 2000 – versão 3.1: 7/10/06
Parte 3/ 3 – Itens 6 a 11/11
6. Os reinos da natureza
A partir dos 3 aspectos da corporalidade humana e mais o seu espírito, ou Eu, podemos compreender
por que há 4 reinos distintos na natureza.
7. Sono e sonho
A partir da constituição quadrimembrada do ser humano, pode-se compreender o que se passa no sono.
Como vimos em 5.2, observando-se um jovem dormindo nota-se que ele tem a manifestação de todas os seus
processos vitais, como respiração, crescimento, etc. Mas ele não tem consciência, movimento normal, etc.
Também não pensa e não apresenta a manifestação de sua individualidade superior. Tudo se passa como se o
seu Corpo Astral e seu Eu não se manifestassem. Steiner afirma que na verdade existe no sono profundo uma
separação desses dois em relação aos Corpos Físico e Etérico – não total, mas o suficiente para que o Corpo
Astral não se manifeste, e com ele o Eu. É interessante notar que várias vezes, quando acordamos, temos a
impressão de estarmos caindo: é uma imagem que formamos para essa 'queda' de nosso Corpo Astral no Corpo
Etérico.
Steiner afirma que durante o sono o Corpo Astral expande-se, abrangendo todo o mundo supra-sensível
associado às estrelas, daí dar-se-lhe esse nome. A sua contração ao acordar e novamente penetrar no Corpo
Etérico é que dá a sensação de queda. No estado expandido no mundo astral, o Corpo Astral têm vivências de
outros seres que também têm esse corpo. Do mesmo modo, o Eu vivencia aquilo que pertence ao mundo
puramente espiritual (e que é 'superior' ao astral).
Vimos, em 6.4, que a memória dos seres humanos está em seu Corpo Etérico, podendo ser consultada
conscientemente, por atuação do Eu. Como durante o sono o Corpo Etérico está separado do Corpo Astral e
do Eu, não temos, ao acordar, a lembrança das vivências dos mesmos naquele estado.
Pode acontecer que durante o despertar haja um estado de transição, isto é, o Corpo Astral, ainda
parcialmente no mundo astral, impregne levemente o Corpo Etérico. Nesse caso, haverá alguma lembrança
das vivências do primeiro. Ao acordar, lembramo-nos dessas vivências, mas como elas são de natureza
totalmente diversa das nossas vivências no plano físico, interpretamo-las empregando imagens provindas de
nossas percepções sensoriais. Essa é a origem de certos sonhos. Eles parecem ilógicos do ponto de vista do
mundo físico, pois na verdade não têm origem nele, sendo mera interpretação, em forma de imagens, de
vivências astrais ou espirituais do Eu.
Os sonhos sempre nos vêm em forma de imagens, e são criados ao despertar ou ao adormecer. Às
vezes essas imagens são interpretações de vivências provenientes do próprio mundo físico, como sonharmos
que estamos no meio de um incêndio quando estamos cobertos em demasia, com muito calor. Um problema
intestinal pode nos fazer sonhar com cobras.
O importante é notar-se que durante o sonho temos uma espécie de consciência, mas que é diferente
da que temos em estado de vigília. Daí podermos resolver um problema enquanto dormimos, e acordarmos
com a solução. Em estado de sono profundo, pode-se dizer que temos uma consciência de planta; em sonho,
a de um animal.
9. Os 4 temperamentos
Vejamos mais uma aplicação dos conceitos ligados à quadrimembração do organismo humano: os 4
temperamentos. Rudolf Steiner resgatou o ensinamento da antiga Grécia sobre eles, conceituando-os em
termos dessa quadrimembração, sendo portanto uma interessante aplicação desse conhecimento.
O temperamento melancólico provém de um predomínio do Corpo Físico sobre os outros 3. Uma
pessoa com esse temperamento sente em demasia a atração da gravidade, como se fosse uma carga física
constante. Para ela, tudo é 'pesado', principalmente sua própria vida. Ela tem a tendência de sofrer com
qualquer coisa, vivendo a lamentar-se. É típico ela perguntar-se por que suas agruras acontecem justamente
com ela e não com os outros, mostrando uma característica de introspecção exagerada, tendendo a uma certa
depressão. Fisicamente, muitas vezes é magra, longilínea, com olhos profundos. É o temperamento dominante
hoje em dia, fruto de nossa civilização voltada para o físico.
O temperamento flegmático provém de um predomínio do Corpo Etérico. Uma pessoa com esse
temperamento tem um exagero de suas função metabólicas, e como que 'rumina' tudo. Adora comer, o que faz
em geral lentamente, saboreando cada garfada. Mas também 'rumina' seus pensamentos, que são em geral
lentos, tendendo a uma atividade interior sonhadora. Fisicamente é uma pessoa 'aquosa' (o líquido está muito
ligado ao etérico), tendendo ao excesso de peso. É um excelente temperamento para os dias de hoje, pois faz
com que a pessoa se isole em seu mundo interior de sonhos, e não fique muito afetada pela agressividade e
caos do mundo moderno, principalmente nas cidades.
O temperamento sangüíneo provém de um predomínio do Corpo Astral. Uma pessoa com esse
temperamento tem tendência a não se concentrar em nada. É em geral muito 'aérea' (característica do Corpo
Astral – lembremos o aparecimento dos órgãos ocos por sua influência), no sentido de saltitar não só
fisicamente, mas até em suas ações, fala e pensamento. Em geral é magra, longilínea.
O temperamento colérico provém de um predomínio do Eu. É como se a pessoa fosse possuída por um
'fogo' interior, sempre decidida em suas atitudes e opiniões. Gosta de se impor e de mandar, e 'perde a
esportiva' facilmente, revelando muito pouca paciência. Fisicamente, tende a ser baixo e atarracado – um
colérico típico foi Napoleão –, pisando com passos fortes e decididos. Muitos coléricos têm um queixo
saliente, sobrancelhas espessas, às vezes cabelos revoltos.
Uma conhecida ilustração pode ajudar a imaginar como se comportam pessoas que têm a
predominância de um desses temperamentos. Suponhamos que uma pessoa esteja passeando por uma trilha
num bosque cerrado e topa com uma pedra de cerca de 1 m de altura bloqueando o caminho. O melancólico,
ao ver a pedra, lamenta-se: "Que tragédia, uma pedra no meu caminho! Isso só poderia ter acontecido comigo!
E agora, o que faço? Ela vai fazer eu perder meu compromisso, arruinar minha vida, …" O flegmático admira
a beleza da pedra, dá um jeito de sentar-se ou apoiar-se nela, e começa a sonhar acordado, refletindo sobre as
lindas pedras que já encontrou, como seria lindo ter a garota de seus sonhos sentada sobre ela, inspira
profundamente o perfume das plantas ao redor, etc. O sanguíneo vem saltitando, assobiando ou cantarolando,
feliz com o ar fresco do bosque e a bonita vegetação que sempre vê rapidamente, sem se concentrar em planta
alguma. Salta por sobre a pedra, ensaia uns passos de dança sobre ela, salta para o outro lado e continua seu
caminho alegremente, já tendo se esquecido da pedra. Já o colérico, ao ver a pedra, tem um ataque de raiva,
xingando as pessoas que deveriam cuidar do caminho por não terem removido a pedra. Numa explosão, chuta
violentamente a pedra, machucando seu pé e, com isso, explodindo mais ainda, dá um soco na pedra…
Cada um de nós tem 2 ou mais temperamentos predominantes, podendo obviamente ocorrer o exagero
de apenas um deles. O ideal é ter um equilíbrio de todos, sabendo sentir profundamente como o melancólico,
manter uma certa distância do seu exterior como o flegmático, ser alegre e despreocupado como o sangüíneo,
e tomar decisões levando a ações firmes como o colérico.
As crianças são em geral sangüíneas, deixando um adulto cansado sé de vê-las correr e saltitar o tempo
todo (aliás, tem-se observado que cada vez menos as crianças saltitam, sendo forçadas pela educação, pelos
meios de comunicação, jogos eletrônicos e computadores a penetrarem cedo demais em seu corpo físico e a
um temperamento melancólico precoce). Uma recomendação pedagógica de Steiner, seguida na Pedagogia
Waldorf (V. R.Lanz, A Pedagogia Waldorf – Caminho para um Ensino mais Humano. São Paulo:
Antroposófica, 1998), é agrupar na classe as crianças segundo seus temperamentos. Com isso, os coléricos se
agridem até gastar seu excesso de energia, os flegmáticos, de tão sonhadores, acabam achando seus vizinhos
de mesmo temperamento cacetes demais, tomando assim a iniciativa de sair de sua flegma. Por outro lado, se
o colérico é colocado ao lado de um melancólico, agride-o constantemente, fazendo-o sentir-se cada vez mais
sofredor, 'curtindo' sua vida infeliz. O agrupamento dos alunos segundo os temperamentos também permite à
professora dirigir-se especialmente a cada grupo, por exemplo contando trechos de relatos ou histórias que se
adequam melhor a um ou outro temperamento. Ela pode passar para os coléricos um grande problema
complexo, para os sangüíneos uma porção de probleminhas, etc.
No lar, o reconhecimento dos temperamentos dos filhos pode também ajudar muito na educação. Por
exemplo, pode-se preparar alimentos adequados para cada temperamento (os flegmáticos gostam muito de
doce, os coléricos de temperos fortes, etc.), deve-se compreender as tendências de cada filho, organizando
atividades adequadas, etc. Assim, um sangüíneo pode gostar muito de estudar violão, flauta, clarineta ou
violino, um colérico trompete, piano (que gosta de martelar com os dedos) ou percussão, um melancólico
violoncelo, um flegmático harpa ou piano (que gosta de tocar suavemente, em ondas).