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A t u a ç ã o

Revista Jurídica do

Ministério Público Catarinense

Número 1 Setembro a Dezembro de 2003


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A t u a ç ã o

Revista Jurídica do

Ministério Público Catarinense


Conselho Deliberativo e Redacional
Andrey Cunha Amorim
Carlos Alberto Platt Nahas
Guido Feuser
Pedro Roberto Decomain
Raul Schaefer Filho
Rogério Ponzi Seligman
Publicação conjunta da
Procuradoria-Geral de Justiça do
As opiniões emitidas nos artigos são Estado de Santa Catarina e da
de responsabilidade exclusiva Associação Catarinense do
de seus autores. Ministério Público.

Catalogação na publicação por: Clarice Martins Quint, CRB 384

ATUAÇÃO – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense/


Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça e Associação Catarinense
do Ministério Público. - v. 1, n. 1, (set./dez. 2003) - Florianópolis:
PGJ:ACMP, 2003 -

Quadrimestral

Direito – Periódicos. I. Ministério Público do Estado de Santa Catarina.


Procuradoria-Geral de Justiça. II . Associação Catarinense do Ministério
Público.
CDU: 00

Revisão, projeto gráfico e diagramação: Link – Comunicação e Tecnologia


Capa: Coordenadoria de Comunicação Social da Procuradoria-Geral de Justiça
Foto de capa: Lauro Maeda

Av. Othon Gama D’Eça, 900, Torre A, 1º andar Paço da Bocaiúva – R. Bocaiúva, 1.750
Centro – Florianópolis – SC – CEP 88015-240 Centro – Florianópolis – SC – CEP 88015-904
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3

PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA

Procurador-Geral de Justiça
Pedro Sérgio Steil
Subprocurador-Geral de Justiça
Narcisio Geraldino Rodrigues
Assessoria do Gabinete do Procurador-Geral de Justiça
Ary Capella Neto
Francisco Bissoli Filho
Sandro José Neis
Secretário-Geral do Ministério Público
Rui Carlos Kolb Schiefler

Colégio de Procuradores
Moacyr de Moraes Lima Filho Sérgio Antônio Rizelo
Anselmo Agostinho da Silva João Fernando Quagliarelli Borrelli
Hipólito Luiz Piazza Hercília Regina Lemke
Valdir Vieira Francisco de Assis Felippe
Paulo Antônio Gunther Mário Gemin
Luiz Fernando Sirydakis Gilberto Callado de Oliveira
Demétrio Constantino Serratine Antenor Chinato Ribeiro
José Galvani Alberton Narcísio Geraldino Rodrigues
Robison Westphal Nelson Fernando Mendes
Odil José Cota Jacson Corrêa
Paulo Roberto Speck Anselmo Jerônimo de Oliveira
Jobel Braga de Araújo Basílio Elias De Caro
Raul Schaefer Filho Aurino Alves de Souza
Pedro Sérgio Steil Paulo Roberto de Carvalho Roberge
Vilmar José Loef Tycho Brahe Fernandes
José Eduardo Orofino da Luz Fontes Guido Feuser
Raulino Jacó Brüning Plínio Cesar Moreira
Humberto Francisco Scharf Vieira Francisco José Fabiano
Antônio Gercino Ramos de Medeiros André Carvalho
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA

Corregedor-Geral do Ministério Público


Odil José Cota
Secretário da Corregedoria-Geral do Ministério Público
Fábio Strecker Schmidt
Assessoria da Corregedoria-Geral do Ministério Público
Abel Antunes de Mello
Cid Luiz Ribeiro Schmitz
Cristiane Rosália Maestri Boell
Coordenadoria de Recursos
Paulo Roberto Speck – Coordenador
Assessoria da Coordenadoria de Recursos
Walkyria Ruicir Danielski

Conselho Superior do Ministério Público


Pedro Sérgio Steil – Presidente
Odil JOsé Cota – Corregedor-Geral
Paulo Roberto Speck
José Eduardo Orofino da Luz Fontes
Raul Schaefer Filho
Hercília Regina Lemke
Narcísio Geraldino Rodrigues
Jacson Corrêa
Paulo Roberto de Carvalho Roberge
Rui Carlos Kolb Schiefler – Secretário

Centro de Apoio Operacional da Moralidade Administrativa


Basílio Elias De Caro – Coordenador-Geral
Márcia Aguiar Arend – Coordenadora
Rogério Ponzi Seligman – Coordenador Adjunto
Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente
Jacson Corrêa – Coordenador-Geral
Alexandre Herculano de Abreu – Coordenador
Centro de Apoio Operacional do Consumidor
Jacson Corrêa – Coordenador-Geral
Fábio de Souza Trajano – Coordenador
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PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA

Centro de Apoio Operacional da Cidadania e Fundações


Aurino Alves de Souza – Coordenador-Geral
Sonia Maria Demeda Groisman Piardi – Coordenadora
Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude
Aurino Alves de Souza – Coordenador-Geral
Durval da Silva Amorim - Coordenador
Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária
Ernani Guetten de Almeida – Coordenador
Centro de Apoio Operacional Criminal
Paulo Antônio Locatelli – Coordenador
Centro de Apoio Operacional a Investigações Especiais
Francisco de Assis Felippe – Coordenador-Geral
Centro de Apoio Operacional do Controle da Constitucionalidade
Gilberto Callado de Oliveira – Coordenador-Geral
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
José Galvani Alberton – Diretor

Conselho Consultivo de Políticas e Prioridades Institucionais


Ex-Procuradores-Gerais de Justiça: Hipólito Luiz Piazza e
José Galvani Alberton
Colégio de Procuradores de Justiça: Tycho Brahe Fernandes
I Região: Fernando da Silva Comin
II Região: Aurélio Giacomelli da Silva
III Região: Onofre José Carvalho Agostini - Vice-Presidente
IV Região: Flávio Duarte de Souza - Presidente
V Região: Alexandre Reynaldo de Oliveira Graziotin - Secretário
VI Região: Assis Marciel Kretzer
VII Região: Rafael de Moraes Lima
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ASSOCIAÇÃO CATARINENSE

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DO MINISTÉRIO PÚBLICO
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DIRETORIA

Presidente
Lio Marcos Marin
Vice-Presidente
Nazareno Furtado Köche
1º Secretária
Havah Emília P. De Araújo Mainhardt
2º Secretário
Fabiano David Baldissarelli
Tesoureira
Walkyria Ruicir Danielski
Diretor de Patrimônio
Hélio José Fiamoncini
Diretor Cultural e de Relações Públicas
Andrey Cunha Amorim

CONSELHO FISCAL

Presidente
Sonia Maria Demeda Groisman Piardi
Secretária
Kátia Helena Scheidt Dal Pizzo
Membros
Eduardo Mendonça Lima
Marcílio de Novaes Costa
Nuno de Campos
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APRESENTAÇÃO
PARCERIA CONSTRUTIVA

O Ministério Público que todos buscamos construir, efetivamente


comprometido com sua missão constitucional, estava a exigir uma publi-
cação que se mostrasse à altura do relevante papel jurisdicional da nossa
instituição. A Revista Jurídica do Ministério Público de Santa Catarina,
fruto de parceria inovadora entre a Procuradoria-Geral de Justiça e a As-
sociação Catarinense do Ministério Público, sob a condução habilidosa
do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, vem contribuir para
o debate de idéias e servir de estuário para as mais diferentes correntes do
pensamento jurídico-científico catarinense.
Acreditamos que a retomada deste projeto editorial deve ser saudada
por todos como a realização de um compromisso coletivo, visto que o
desejamos perene e periódico. No passado tivemos experiências de publi-
cações bem elaboradas, contudo, efêmeras. Agora uma nova série da re-
vista jurídica se inicia cercada de grande expectativa decorrente do mo-
mento de maturidade atingido pelo Ministério Público, em todas as suas
esferas de atuação, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Todos provamos diariamente as dificuldades de conduzir um órgão
estatal desvinculado dos Poderes do Estado e, por certo, todos aprende-
mos a honrar e a cumprir as atribuições constitucionais que nos foram
delegadas, entre as quais, seguramente, sobreleva-se a defesa da demo-
cracia, sem a qual nenhum interesse social e individual indisponível esta-
rá seguro. Os embates antes travados apenas nas lides forenses hoje se
estendem para muitos outros campos da atuação ministerial, numa verda-
deira prova da disposição da Instituição para o diálogo e solução
extrajudicial dos conflitos.
Assim, entendemos que os esforços empreendidos tanto pelo Cen-
tro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, sob o comando do procu-
rador de Justiça José Galvani Alberton, quanto pela Associação Catarinense
do Ministério Público, liderada pelo promotor de Justiça Lio Marcos Marin,
para levar adiante este projeto editorial, certamente resultarão na colhei-
ta de ensinamentos doutrinários, com a singela esperança de ajudar a
deslindar nosso remendado ordenamento jurídico e a edificar sólidas ba-
ses para melhorar a distribuição da Justiça e da paz social.

Pedro Sérgio Steil


Procurador-Geral de Justiça
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APRESENTAÇÃO
COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS

O Ministério Público assumiu um papel relevante na sociedade bra-


sileira. Sua atuação tem sido destacada. Merecida, pois, se torna a publi-
cação do pensamento e dos trabalhos desenvolvidos pelos integrantes da
instituição, bem como daqueles que sensíveis as suas lutas colaboram
para o desenvolvimento, aperfeiçoamento e harmonia social, missão mai-
or de todas as instituições.
Dois são os principais propósitos desta revista. Fazer o público co-
nhecer o Ministério Público e permitir que seus membros discutam, refli-
tam e aprimorem seus trabalhos. Muitos sabem dos talentos que o Minis-
tério Público Catarinense possui. Precisamos, contudo, fazer com que
esses talentos, que experiências acumuladas ao longo de anos, que o co-
nhecimento jurídico e que o trabalho social desenvolvido não fiquem
omissos. É importante e bom para todos que isso seja partilhado, que os
bons trabalhos sejam levados ao conhecimento de outros a fim de que
também possam produzir os bons frutos já colhidos, fortalecendo cada
vez mais a instituição e aproximando seus membros.
Pensando nisso, Associação Catarinense do Ministério Público e
Procuradoria-Geral de Justiça uniram-se para divulgar as idéias e os so-
nhos de seus colaboradores e, mormente, para cumprir sua missão de
bem servir a coletividade. Através desta revista, que esperamos se torne
perene, importante e útil, tornamos efetiva mais uma etapa de nossos
projetos.
Nesta edição estamos disponibilizando uma especial amostra do
elevado nível, talento e conhecimento jurídico de diversos colegas. Tri-
bunal do Júri, infância e juventude, cuidado com o erário e combate à
criminalidade são alguns dos temas importantes tratados nesta revista.
Fazer pensar, entusiasmar os colegas, dar-lhes subsídios para suas
atividades diárias com material de qualidade, que possam reverter e gerar
bons resultados institucionais e sociais é o objetivo desta revista. Se con-
seguirmos isso teremos cumprido nosso propósito.

Lio Marcos Marin


Presidente da ACMP
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SUMÁRIO
A lei n° 10.409/02 (nova lei de tóxicos)
e o princípio da razoabilidade .................................................................................. 14
André Fernandes Indalencio
A nova maioridade civil: reflexos penais e processuais penais ........................... 21
Damásio de Jesus
O princípio poena consequitur peccatum
na teologia penal de Santo Tomás de Aquino ....................................................... 33
Gilberto Callado de Oliveira
A atuação de um promotor de Justiça no Tribunal do Juri ............................... 41
Geovani Werner Tramontin
A produção normativa, a objetividade ................................................................... 65
Ivens José Thives de Carvalho
A denúncia espontânea tributária e a exigência da multa de mora .................... 77
Ivo Zanoni
A desnecessidade da atribuição de culpa para a separação judicial ................. 105
Luciano Trierweiller Naschenweng
A situação do presidiário e os direitos humanos ................................................ 109
Márcia Aguiar Arend
Crise na Execução Penal.......................................................................................... 117
Renato Flávio Marcão
Obrigatoriedade da remessa no mandado de segurança:
não aplicação do disposto no § 2º do Artigo 475 do CPC ............................. 123
Tycho Brahe Fernandes
Racionalização da atividade ministerial na defesa do consumidor .................. 133
Fábio de Souza Trajano
Fundamentos jurídicos constitucionais impeditivos da adoção do
Direito Penal Juvenil no Brasil – Um parelelo em relação à
diminuição da idade da responsabilidade penal .................................................. 149
Gercino Gerson Gomes Neto
Delitos fiscais: validade da prova obtida em meio eletrônico .......................... 169
Márcia Aguiar Arend e Max Zuffo
Da necessidade de controle pelo Ministério Público dos termos de
ajustamento de conduta celebrados por outros legitimados à
ação civil pública em defesa do meio ambiente ................................................. 181
Rui Arno Richter
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A LEI N° 10.409/02 (NOVA LEI DE TÓXICOS)


E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

André Fernandes Indalencio


Promotor de Justiça em Blumenau-SC

D ecidiu recentemente o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina


no habeas corpus n° 02.007976-1, de São José, relator o Desembargador
Maurílio Moreira Leite:
Habeas-corpus. Prisão em flagrante. Tráfico ilícito de entorpecentes.
Alegado constrangimento ilegal em face da não aplicação do procedi-
mento previsto na lei n° 10.409/02. Não ocorrência. Os crimes definidos
na lei referida, não existem, pois constavam do Capítulo III, que foi total-
mente vetado (artigo 14 até o 26). Logo, não há como aplicar o procedi-
mento referido, por ausência dos “crimes definidos nesta lei”. Ordem
denegada.
Do acórdão:
Realmente, a lei 10.409/02, no seu artigo 27, determinou que ‘O
procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-
se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se subsidiariamente, as dispo-
sições do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execu-
ção Penal’.
Todavia, os crimes definidos na lei referida não existem, pois cons-
tavam do Capítulo III, que foi totalmente vetado (artigo 14 até o 26).
Logo, não há como aplicar o procedimento referido, por ausência dos
‘crimes definidos nesta lei’.
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 14 a 20
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Além disso tenha-se em conta que o referido procedimento, tinha


por escopo o disposto no artigo 32 e § 2°, dizendo respeito a arquivamen-
to e sobrestamento, bem como a absolvição liminar, quando invocado
poderia ser o artigo 386, do Código de Processo Penal. Também vetadas
restaram tais disposições, não se justificando, por óbvia inutilidade, o pro-
cedimento reclamado.
As demais disposições, previstas no artigo 39, dizendo respeito
à rejeição da denúncia – ‘for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pres-
suposto processual ou condição para o exercício da ação penal; não
houver justa causa para a acusação’ – devem ser, necessariamente,
examinadas de ofício, como sempre ocorreu. Matéria que, na omissão
em primeiro grau, poderá ser examinada em habeas corpus.
Em face do exposto, a ordem é denegada.
A tese acabou sendo ratificada no habeas corpus n. 2002.012759-6,
de Joinville, relator o Desembargador Newton Janke, a indicar possível
fixação do paradigma:
Habeas corpus. Narcotraficância. Constrangimento ilegal. Não
aplicaçào do rito procedimental instituído pela lei n° 10.409/02. Nulida-
de inexistente. Ordem denegada.
O veto presidencial aos arts. 14 a 26 da lei 10.409/02, que descre-
viam os crimes, transformou em verdadeira ‘norma penal em branco’ os
dispositivos relativos aos ritos procedimental inquisitivo (art. 27 a 34) e
judicial (art. 37 a 45). Continuando em vigor os arts. 12 e seguintes da Lei
6368/76, que definem os delitos referentes a tóxicos, prevalece a aplica-
ção do rito deste último diploma legal.
Cumpre colocar, inicialmente, os acórdãos supra referidos, embora
não discutam a vigência do texto legal, negam-lhe eficácia e, por conseqüência,
a aplicabilidade. Pois, formalmente, não há dúvida, mesmo seguindo o en-
tendimento presente em tais decisões, a lei encontra-se em vigor. Como,
porém, condiciona sua própria aplicabilidade, destinando-se a regular si-
tuações delineadas em normas presentes em seu próprio corpus e que aca-
baram vetadas quando de sua edição – logo, que nunca chegaram a existir
no mundo normativo, tal diploma teria comprometido sua eficácia, tor-
nando-se, assim, no que refere a matéria relacionada ao processo penal,
um fantasma jurídico, mera declaração legislativa sem condições de gerar
qualquer efeito concreto.
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Ressalvando o respeito a tais posicionamentos, sugerimos a adoção de


outra regra de hermenêutica para a solução do conflito existente, devendo-se
apreciar a eficácia de tais preceitos à luz dos princípios constitucionais aplicá-
veis: especificamente, impõe-se a análise da razoabilidade do texto, este sim,
quer parecer, o real fundamento da incompatibilidade da nova lei (ao menos
em parte) com o texto fundamental, colidindo, ademais, em sua essência,
com as cláusulas da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal
material.
De onde, já neste primeiro momento, descarta-se a tese ventilada em
tais acórdãos que incorrem, data maxima venia, no pecado de desprezar o fato
evidente de que a nova lei, por regular matéria idêntica a anterior (o processo
para formação da culpa nos crimes de tóxicos), tacitamente, nesse particular,
a revogou. Assim, pouco importa coloque a lei n° 10.409/02 que o rito nela
estabelecido aplica-se aos delitos que deveriam estar em seu texto 1, pois, aten-
dendo-se antes a sua ratio do que a sua literalidade, fica evidente sua pretensa
função dentro do sistema jurídico, destinado-se a disciplinar a matéria relaci-
onada ao procedimento penal para imposição de pena nos delitos de tóxicos. A
identidade de situações justificadora da aplicação do artigo 2°, § 1°, da Lei de
Introdução ao Código Civil, então em vigor, quer parecer, é fora de dúvida.
De outro lado, o veto do artigo que revogava a lei 6368/76 não pode
servir de fundamento de validade a tais entendimentos, já que a supressão
realizada teve escopo único de garantir a vigência da anterior legislação rela-
cionada aos delitos, evitando-se o absurdo de simplesmente revogar toda
matéria relacionada aos crimes de entorpecentes no país. Nada mais que isso.
Fica todavia a questão: a lei atual teria revogado a anterior ? A nova lei
processual, então, teria que ser aplicada imediatamente, inclusive aos casos
em andamento ?
A resposta a tal indagação passa pela constatação palpável de que refe-
rido texto legal, ao estender o contraditório, formalizando toda uma instância
judicial para o recebimento da denúncia 2, o fez de forma equivocada, des-
prezando o coeficiente de razoabilidade exigido para sua validade, afe-
1
Até porque, isso parece claro, nem poderia ser diferente, pois à época de sua elabo-
ração eles ainda ali se encontravam, tendo sido suprimidos por veto presidencial a final man-
tido pelo Congresso Nacional.
2
Os delitos previstos nos artigos 15, 16 e 17 da Lei 6368/76, em face da nova lei
10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Federais, seguem, agora, o rito da lei 9099/
95.
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tando, assim, o devido processo legal material insculpido na Constituição


Federal.
De fato, uma lei que estabelece como inovação o estabelecimento
de prazos visivelmente desnecessários e desproporcionais (15 dias para a
conclusão do inquérito, no caso de réu preso, permitida a duplicação pelo
juiz;10 dias – e aqui independe da condição do réu, se preso ou solto -
para o oferecimento da denúncia), estabelece novas e inúteis instâncias
(todo um procedimento prévio para o recebimento da denúncia, com pos-
sibilidade de diligências que podem superar a 10 dias), repete atos de
forma desnecessária (dois interrogatórios – um antes, outro depois de
recebida a denúncia), opta por redundar no estabelecimento de discipli-
nas processuais completamente dispensáveis (obrigatoriedade da ação
penal e seus desdobramentos) e, fundamentalmente, possibilita antever a
ocorrência de maior demora na conclusão da formação da culpa, retar-
dando desproporcionalmente o prazo para o reconhecimento de uma acu-
sação formal, não pode ser considerado razoável (ao menos de todo razoá-
vel). O simples ato de comparação com o texto anterior já basta a que se
reconheça tal impropriedade e é esse, quer parecer, o fundamento implí-
cito nos acórdãos transcritos.
Pois, ao buscar estender o contraditório, o faz de modo incongru-
ente, acabando por prejudicar a garantia individual da celeridade proces-
sual, diretamente ligada a dignidade da pessoa humana: de fato, não se
pode esquecer, é cânone ratificado pelo Brasil (e que ademais decorre do
próprio sistema democrático constitucionalmente adotado), integrando,
portanto, o ordenamento pátrio (para alguns, inclusive, com status de prin-
cípio constitucional), o artigo 7°, 5, da Convenção Americana de Direitos
Humanos de 1969, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, segundo
o qual “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à
presença de um juiz ou outra autoridade por lei a exercer funções judiciais e tem o
direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberda-
de, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a
garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (grifo).”
Logo, há no sistema local o direito a celeridade processual e o di-
ploma em questão, ao menos na parte ora examinada, ao permitir o
encarceramento sem acusação formal por mais de setenta dias (somando-
se os prazos máximos das diligências como a nomeação de advogado para
defesa, manifestação do Ministério Público acerca da defesa preliminar
19

oferecida, duplicação do prazo de conclusão da investigação etc.) – mais


até, quer parecer, do que o necessário para a própria instrução em juízo,
extrapola, em muito, tal imperativo 3.
De onde, seguindo-se, aqui, os requisitos desenvolvidos pela dou-
trina alemã 4, o texto em questão, no que se refere especificamente a dis-
ciplina da fase inquisitorial/pré-cognitiva, não é adequado, porque a sim-
ples ampliação de atos processuais, com o prolongamento indevido da
fase pré-processual, não basta para maior garantia na verificação da via-
bilidade da acusação; não é necessário, já que, parece claro, representa a
utilização de meios mais gravosos ao réu (bastava, para maior efetividade
do contraditório, a imposição do dever de fundamentar o ato de recebi-
mento da denúncia), incorrendo, assim, em visível excesso na eleição dos
meios disponíveis para a consecução de tal finalidade; e é desproporcional
(em sentido estrito), gerando maiores danos do que benefícios, na medida
em que, a pretexto de garantir ao réu maior segurança na verificação da
viabilidade da denúncia feita, afeta-lhe o direito a acusação formalizada
(ou recusada) contra sua pessoa no menor tempo possível 5.
Deriva daí, pois, quer parecer, visível ausência de razoabilidade in-
terna, a afetar a validade de tais normas.
No que se refere ao processo penal, então, permaneceriam válidos
e aplicáveis na lei, apenas, os dispositivos que relacionam-se a determina-
3
O fato de que referida instância é judicial, desenvolvendo-se perante o Juiz de Direi-
to, não modifica tal situação, pois representa, ainda, a ausência do reconhecimento formal da
acusação feita. O simples afastamento da característica inquisitória, por si só, não serve a lhe
conferir viabilidade e adequação às diretrizes da Constituição Federal.
4
Quer se evitar, aqui, por amor a brevidade necessária à dimensão deste estudo, a
divergência acerca da autonomia dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de resto
não superada na doutrina: para alguns, tais princípios seriam ontologicamente idênticos,
não obstante suas diferentes origens (o constitucionalismo norte-americano, no primeiro
caso, cujo fundamento repousa na análise da cláusula constitucional do devido processo
legal, e o constitucionalismo alemão, no segundo caso, fundado na resolução dos casos
concretos em que verifique a colisão de direitos fundamentais); para outros, encontram-se
em relação de conteúdo e continente; outros, ainda, os vêem como desdobramento um do
outro; e há, por fim, quem lhes reconheça as respectivas autonomias. Tal, entendemos, não
impede, por sua pertinência e adequação, a utilização, aqui, dos critérios supra referidos, os
quais, embora reconhecidos na doutrina alemã como sub-princípios da proporcionalidade,
são, em parte, comuns aos dois sistemas jurídicos.
5
De onde poderia se extrair, na linha do anteriormente colocado, a colidência entre
os princípios fundamentais da ampla defesa (maior cuidado no exame da imputação) e da
dignidade da pessoa humana (direito a uma célere solução do processo).
20

dos aspectos da investigação, ao estabelecimento de benefícios ao acusa-


do (especificamente no que se refere ao pentitismo, de resto já contempla-
do em outros textos legais, atinentes aos crimes hediondos – lei n° 8.072/
90, e a proteção do réu colaborador – lei n° 9.807/99), e, ainda, no que
toca a disciplina do número de testemunhas a serem ouvidas em juízo 6,
comandos normativos estes que, ao menos numa primeira abordagem,
não afetam a referida diretriz constitucional.
Os demais dispositivos, em nosso modesto entendimento, teriam
nos fundamentos supra colocados a correta justificativa para o reconhe-
cimento de sua inaplicabilidade.

6
Ao silenciar sobre tal circunstância, remetendo tal disciplina ao Código de Processo
Penal, o numero a ser adotado, doravante, será aquele atinente aos crimes apenados com
reclusão - não obstante daí decorra certo prejuízo da concentração que caracteriza a instrução
judicial nos crimes de tóxicos. De outro lado, permanece, a nosso ver, o exame de depen-
dência toxicológica enquanto diligência destinada a provar a inimputabilidade total ou parci-
al do agente, portanto enquanto elemento relacionado ao conhecimento potencial da ilicitude
e eventual exigibilidade de conduta diversa por parte do mesmo.
21

A NOVA MAIORIDADE CIVIL:


REFLEXOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS

Coordenador: Damásio de Jesus


Participação: Gianpaollo Poggio Smanio,
Fernando Capez, Ricardo Cunha Chimenti,
Victor Eduardo Rios Gonçalves,
Vitor Frederico Kümpel,
André Estefam Araújo Lima
e Damásio de Jesus
Este trabalho é fruto de uma mesa de debates

APRESENTAÇÃO

Nos dias 15 e 23 de janeiro de 2003, às 18h30min, no 11.º andar


do Complexo Jurídico Damásio de Jesus – Unidade I, situada na Praça
Almeida Júnior, 72, bairro Liberdade, na cidade de São Paulo, reuni-
ram-se os Drs. Gianpaollo Poggio Smanio, Fernando Capez, Ricardo
Cunha Chimenti, Victor Eduardo Rios Gonçalves, Vitor Frederico
Kümpel e André Estefam Araújo Lima, professores do CJDJ1, sob a
coordenação do Prof. Damásio de Jesus, em sessões da Mesa de Ciên-
cias Criminais, para análise dos reflexos da nova maioridade civil, fir-
mada aos 18 anos de idade pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de
2002 (novo Código Civil), nos Códigos Penal e de Processo Penal.

1
Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 21 a 32
22

Após os debates, o grupo, por unanimidade, firmou entendimentos, a


seguir expostos em relatório elaborado pelo coordenador.

INTRODUÇÃO

O antigo Código Civil2, nos arts. 5.º e 6.º, classificava as pesso-


as em absoluta e relativamente incapazes:
“Art. 5.º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente
os atos da vida civil:
I – os menores de 16 (dezesseis) anos;
(...).
Art. 6.º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira
de os exercer:
I – os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um);
(...)”.
O novo Código Civil3, em seu art. 3.º, determina:
“São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos
da vida civil:
I – os menores de 16 (dezesseis) anos;”
“Art. 4.º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à ma-
neira de os exercer:
I – os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos;”
“Art. 5.º A menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos,
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida
civil.”
Em face da nova legislação, as pessoas classificam-se em:
a) absolutamente incapazes (menores de 16 anos de ida-
de);
b) relativamente incapazes (entre 16 e 18 anos);
c) capazes (a partir dos 18 anos de idade).

2
Lei n. 3.071, de 1.º de janeiro de 1916.
3
Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de
2003.
23

O art. 5.º do novo Código Civil, reduzindo a maioridade civil de


21 para 18 anos de idade, ab-rogou ou derrogou disposições do Códi-
go Penal e do Código de Processo Penal4?
Há opiniões em vários sentidos, considerando uns que houve derrogação
tácita de certas disposições penais e processuais penais; outros, entendendo
que os efeitos dependem de leis novas5.
Para o grupo, cumpre distinguir efeitos no Código de Processo Penal e
no Código Penal.

REFLEXOS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Como a imputabilidade penal por maioridade inicia-se aos 18 anos


e, na antiga legislação, o menor de 21 anos de idade, sendo maior de 18,
não possuía plena capacidade para realizar pessoalmente os atos da vida
civil, o Código de Processo Penal determinava a nomeação de curador
para lhe exercer assistência no procedimento criminal. JOSÉ FREDERICO MAR-
QUES anotava que “o acusado menor de 21 anos e maior de 18, em razão
de sua idade, não possui capacidade para a prática de atos processuais.
Para o menor de 21 anos, obrigatória é a nomeação de um curador, que a
ele assista em todo o transcurso do processo. Segundo estatui o art. 263
do Código de Processo Penal, ao acusado menor dar-se-á curador. Em con-
seqüência dessa regra genérica, manda o art. 15, por seu turno, que a

4
Inicialmente, para estudo da matéria, valemo-nos da relação de artigos apresentada
por Marcus Vinicius de Viveiros Dias (Nova maioridade reflete também no âmbito penal.
Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 9 jan. 2003. Disponível em: <http://
www.conjur.uol.com.br/view.cfm>). Posteriormente, aumentamos o rol de dispositivos
criminais atingidos pelo art. 5.º do novo CC.
5
Marcus Vinicius de Viveiros Dias entende que os efeitos penais e processuais pe-
nais do novo Código Civil dependem de leis novas, não tendo havido ab-rogação ou
derrogação tácitas (Nova maioridade reflete também no âmbito penal. Artigo citado). Para
ele, a sistemática do novo Código Civil produz efeitos no âmbito criminal, mas há necessi-
dade de leis novas alterando o Código Penal e o Código de Processo Penal, tendo em vista
que “uma lei civil não pode intervir numa penal” (Código Civil muda situação penal de
menor de 21 anos. O Estado de S. Paulo, 14 jan. 2003. Cidades, p. C4). Em sentido contrário,
Fernando Fulgêncio Felicíssimo considera que os dispositivos do Código Penal e do Códi-
go de Processo Penal atinentes à matéria foram tacitamente derrogados pelo novo estatuto
civil (A redução da maioridade civil e seus reflexos no sistema jurídico-penal. Instituto Brasi-
leiro de Ciências Criminais, São Paulo, 17 set. 2002. Disponível em: <http://
www.ibccrim.org.br>. www.ibccrim.org.br, 17.9.2002).
24

autoridade policial nomeie curador ao indiciado que for menor, enquanto


o art. 194 prescreve: se o acusado for menor, proceder-se-á ao interrogatório na
presença de curador. Por fim, o art. 564, III, c, diz que ocorrerá nulidade por
falta de nomeação de curador ao menor de 21 anos”6. Em outras situa-
ções, permitia que o ato fosse realizado por ele ou por seu representante
legal, como o exercício do direito de queixa e de representação.
Hoje, como o menor de 21 anos e maior de 18 não é mais relativa-
mente incapaz, podendo exercer todos os atos da vida civil, desaparece-
ram a necessidade de curador e a figura de seu representante legal. De modo
que devem ser considerados ab-rogados ou derrogados, conforme o caso,
todos os dispositivos do Código de Processo Penal que se referem ao
menor de 21 anos de idade (e maior de 18) e à nomeação de curador (arts.
15, 194, 262, 449 e 564, III, c)7. Nas hipóteses em que as disposições
fazem referência a representante legal, sem mencionar a figura do menor de
21 anos e maior de 18, não houve ab-rogação ou derrogação, devendo ser
empregada simples interpretação do texto legal (arts. 14, 34, 38, 50, pará-
grafo único, 52 e 54). O que mudou foi o conceito (significado) da ex-
pressão “representante legal”. Convém observar ser possível que a pes-
soa possua mais de 18 anos de idade, caso em que não existe mais a figura
do representante legal. Mas é admissível que a vítima seja, por exemplo,
um doente mental, caso em que subsiste o representante legal.
Assim:
“Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão
requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autori-
dade”8 (grifo nosso).

6
Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1997. vol. II, p. 64, n.
255. SÉRGIO DEMORO HAMÍLTON, abordando o tema do fundamento da exigência de curador
ao indiciado ou réu menor, afirma que “a providência tem por fim suprir a relativa incapaci-
dade do menor, já imputável penalmente (art. 27 do CP), mas ainda incapaz perante a lei
civil (art. 6.º, I, do Código Civil)” (Reflexão sobre o exercício da curadoria no processo penal. Rio de
Janeiro: Instituto Brasileiro de Atualização Jurídica, 1996. (Ensaios Jurídicos, vol. 2, p. 26)).
A função do curador no interrogatório do réu menor, considerou o STF, “consiste em com-
plementar a vontade do acusado, relativamente incapaz, para decidir sozinho sobre os seus
próprios atos” (RTJ 103/993). Sobre a função do curador do menor: FRAGOSO, Heleno
Cláudio. Jurisprudência criminal. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. vol. II, p. 329, verbete n. 312).
7
Essas disposições guardam relação com o processo, “não se vinculando ao ato
delitivo” (SÉRGIO DEMORO HAMÍLTON, artigo citado, p. 27).
8
Nos textos legais, colocamos em itálico as partes em discussão.
25

Cuida-se de simples interpretação da expressão “representante le-


gal”9, não tendo sido a disposição ab-rogada ou derrogada pelo art. 5.º do
novo CC. De maneira que, tratando-se de ofendido menor de 21 anos de
idade e maior de 18, caberá somente a ele requerer diligência policial, não
havendo mais a figura de seu representante legal.
“Art. 15. Se o indiciado for menor, ser-lhe-á nomeado curador pela
autoridade policial” (grifo nosso).
A disposição foi ab-rogada pelo art. 5.º do novo CC, uma vez que
não existe mais indiciado menor.
“Art. 34. Se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de
queixa poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal” (grifo
nosso).
Foi ab-rogado pelo art. 5.º do novo CC. Hoje, se o ofendido for
menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de queixa somente poderá ser
exercido por ele, que não possui mais representante legal.
Convém observar a Súmula n. 594 do STF, sobre a autonomia dos
prazos decadenciais, com a seguinte redação:
“Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, in-
dependentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal”.
De acordo com o Pretório Excelso, operada a decadência em rela-
ção ao ofendido, o direito de queixa continua com a titularidade de seu
representante legal, se não soube da autoria do crime. Significa a existên-
cia de dois prazos: um para o ofendido e outro para o seu representante
legal10. Adotado nosso entendimento, de observar-se ter a Súmula n. 594
perdido o sentido em relação ao ofendido maior de 18 e menor de 21 anos
de idade, que não tem mais representante legal.
“Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representan-
te legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer
dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem
é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o
prazo para o oferecimento da denúncia” (grifo nosso).
Hipótese de simples interpretação da expressão “representante le-
gal”, não tendo havido ab-rogação ou derrogação. De modo que, tratan-
9
Lia-se, antes do novo Código Civil, “civilmente menor”.
10
STF, RHC n. 49.052, RTJ 60/358. No mesmo sentido: RT 402/110, 407/91 e
437/409.
26

do-se de ofendido maior de 18 e menor de 21 anos, só a ele caberá exercer


o direito de queixa ou de representação. Mas ele poderá ser um doente
mental ou menor de 18 anos, caso em que subsiste o representante legal.
“Art. 50. A renúncia expressa constará de declaração assinada pelo
ofendido, por seu representante legal ou procurador com poderes especi-
ais.”
“Parágrafo único. A renúncia do representante legal do menor que houver
completado 18 anos não privará este do direito de queixa, nem a renúncia do
último excluirá o direito do primeiro” (grifo nosso).
O parágrafo único foi derrogado. Não há mais representante legal da-
quele que completou 18 anos de idade11.
“Art. 52. Se o querelante for menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de
perdão poderá ser exercido por ele ou por seu representante legal, mas o
perdão concedido por um, havendo oposição do outro, não produzirá efei-
to” (grifo nosso).
A disposição foi ab-rogada pelo art. 5.º do novo CC, uma vez que,
se o ofendido for maior de 18 anos de idade, só ele poderá conceder o
perdão.
“Art. 54. Se o querelado for menor de 21 anos, observar-se-á, quanto à
aceitação do perdão, o disposto no art. 52” (grifo nosso).
Foi ab-rogado, tendo em vista que, se o querelado (ofendido) for
maior de 18 anos de idade, só ele poderá aceitar o perdão.
“Art. 194. Se o acusado for menor, proceder-se-á ao interrogatório na
presença de curador” (grifo nosso).
O dispositivo disciplinava o interrogatório do menor de 21 e maior
de 18 anos de idade. Como se entendia, “a presença do curador nos atos
processuais é evitar qualquer cerceamento ao menor”, o que acarretaria
ausência de ampla defesa, anulando-os. “Ele supre, com sua presença e
proteção, a falta de capacidade plena do curatelado”.12

11
Não existe mais “renúncia do representante legal daquele que completou 18 anos
de idade”.
12
RT 720/492. Na observação de SÉRGIO DEMORO HAMÍLTON, “a posição do curador
consiste, assim, na fiscalização do ato” (do interrogatório), “cabendo-lhe aconselhar o me-
nor, denunciando, nos autos, qualquer ilegalidade ou abuso de poder” (artigo citado, p. 28).
27

O artigo foi ab-rogado, à semelhança do art. 15 do mesmo diploma


legal, pois o acusado maior de 18 e menor de 21 anos não é mais relativa-
mente incapaz, podendo realizar todos os atos da vida civil (art. 5.º do
novo CC), dispensando curador.
“Art. 262. Ao acusado menor dar-se-á curador” (grifo nosso).
A disposição cuidava do relativamente incapaz perante o CPP. Foi
ab-rogada, uma vez que não existe mais o menor de 21 anos de idade (e
maior de 18). O agente, aos 18 anos de idade, torna-se maior.
“Art. 279. Não poderão ser peritos:
(...)
III – os analfabetos e os menores de 21 anos” (grifo nosso).
O legislador, permitindo a atuação da pessoa como perito crimi-
nal a partir dos 21 anos de idade, pretendeu fixar o critério da maturi-
dade, experiência, tanto que se preocupou, na ausência de peritos ofi-
ciais, com as qualidades do leigo substituto13. Como dizia JOSÉ FREDERICO
MARQUES , “sendo auxiliar do juízo e, portanto, órgão da Justiça Penal,
o perito deve atuar com imparcialidade e perfeita exação, visto que
lhe cabem tarefas de suma importância para perfeito esclarecimento
do thema probandum. Daí impedir a lei que sejam peritos... os menores
de 21 anos”14.
O inciso III, parte final, em que menciona os menores de 21 anos, não
foi modificado pelo art. 5.º do novo CC, tendo em vista que não discipli-
na a antiga menoridade relativa no processo penal.
“Art. 434. O serviço do Júri será obrigatório. O alistamento com-
preenderá os cidadãos maiores de 21 (vinte e um) anos, isentos os maiores de
60 (sessenta)” (grifo nosso).
O dispositivo, em sua segunda parte, não foi alterado pelo art. 5.º
do novo CC, uma vez que não trata da antiga menoridade relativa proces-
sual penal (pessoas de idade entre 18 e 21 anos)15. Subsiste.
“Art. 449. Apregoado o réu, e comparecendo, perguntar-lhe-á o juiz
o nome, a idade e se tem advogado, nomeando-lhe curador, se for menor e não
13
CPP, art. 159, § 1.º.
14
Op. cit. vol. II, p. 325, n. 506.
15
Tanto é que o menor de 21 anos, casado, e o emancipado civil não podiam ser
jurados (RT 596/314).
28

o tiver, e defensor, se maior. Em tal hipótese, o julgamento será adiado


para o primeiro dia desimpedido” (grifo nosso).
O artigo foi derrogado pelo art. 5.º do novo CC na parte que trata
do curador do réu menor de 21 anos e maior de 18, hipótese que não
existe mais.
“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
(...)
III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
(...)
c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao
ausente, e de curador ao menor de 21 anos;” (grifo nosso).
A alínea c, que cuidava do curador do réu menor de 21 anos de
idade, foi derrogada, pois a hipótese não subsiste em face do art. 5.º do
novo CC. Fica, pois, superada a questão de ser absoluta ou relativa a
nulidade proveniente da ausência de nomeação de curador ao menor de
21 anos de idade.

REFLEXOS NO CÓDIGO PENAL

De acordo com o art. 65 do CP, “são circunstâncias que sempre


atenuam a pena:
I – ser o agente menor de 21, na data do fato, ou maior de 70 anos, na
data da sentença;” (grifo nosso).
A menoridade, como atenuante genérica, sempre foi fixada em nos-
sa legislação penal no limite de 21 anos16, não sendo a consideração dessa
idade uma criação do Código Civil de 1916. Assim, o art. 18 do Código
Criminal do Império de 1830 determinava:
“São circumstancias attenuantes dos crimes:
(...)
n. 10. Ser o delinquente menor de 21 annos”.
E o art. 39 do Código Penal de 1890 previa:

16
Sobre o assunto: MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal: Parte Geral. São
Paulo: Saraiva, 2000. vol. I, p. 266.
29

“São circumstancias attenuantes:


(...)
§ 11. Ser o delinquente menor de 21 annos”.
Como ensinava ANÍBAL BRUNO, apreciando a capacidade penal relati-
va do agente, “de 18 a 21 anos incompletos, a lei não lhe reconhece uma
maturidade mental concluída e, embora o considere imputável, concede-
lhe em caso de fato definido na lei como crime, a atenuante da menorida-
de. A essa razão de imputabilidade deficiente, embora não propriamente
ausente ou diminuída a ponto de justificar a exclusão da pena ou a sua
sensível redução, vem juntar-se o interesse da ordem jurídica em que se
poupe o menor à ação perversora da prisão, encurtando-lhe quanto possí-
vel o período do seu internamento”17. ROGÉRIO GRECO observa que “em
várias de suas passagens, o Código Penal se preocupa em dar um trata-
mento diferenciado aos agentes em razão da idade deles. Cuida de modo
especial daqueles que, ao tempo da ação ou omissão, eram menores de 21
anos, uma vez que ainda não estão completamente amadurecidos e vi-
vem uma das fases mais complicadas do desenvolvimento humano, que é
a adolescência. Estão, na verdade, numa fase de mudança, saindo da ado-
lescência e ingressando na fase adulta”18. Em face disso, i.e., em razão de
sua “imaturidade”, necessitam de “tratamento especial”19, o que vem sendo
recomendado pelas legislações modernas.
Na verdade, a atenuante da menoridade atua como coeficiente
de menor culpabilidade, reduzindo o juízo de censura em razão da
falta de pleno amadurecimento da pessoa20, sendo a diminuição da
pena medida de política criminal. E, como vimos, o legislador de

17
Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1969. vol. II, p. 135. Como
decidiu o TJSP, o delinqüente menor não está em condições iguais ao delinqüente adulto
para suportar o rigor da condenação (RT 427/379).
18
Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p. 561.
19
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.
p. 229. No sentido do fundamento da “imaturidade”: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições
de Direito Penal: Nova Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 356, n. 339; NUCCI,
Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: RT, 2000. p. 252, n. 78.
20
Nesse sentido: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique.
Manual de Direito Penal brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT, 1997. p. 838, n. 520; REALE
JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo Antunes; PITOMBO, Sér-
gio M. de Moraes. Penas e medidas de segurança no novo Código. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p.
183, § 7.º, n. 18.
30

1940, como o do Código Criminal de 1830 e o do Código Penal de


1890, não se atrelou ao limite de idade do Código Civil. Por essas
razões, o art. 65, I, do CP, não foi alterado pelo art. 5.º do novo CC.
Subsiste.

REDUÇÃO DOS PRAZOS DE PRESCRIÇÃO

Art. 115. São reduzidos de metade os prazos de prescrição quan-


do o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos, ou, na data da
sentença, maior de 70 anos” (grifo nosso).
As razões que levaram o legislador à redução do prazo
prescricional são as mesmas da atenuação genérica da pena em face
da menoridade21. Como explica ROGÉRIO GRECO, “a imaturidade daque-
les que ainda não estão com a sua personalidade completamente for-
mada, como acontece com aqueles que estão saindo da adolescência e
entrando na fase adulta, pode conduzir à prática de atos ilícitos im-
pensados. Além disso, a convivência carcerária do menor de 21 anos
com criminosos perigosos acabará por perturbar a sua personalidade,
razão pela qual, como medida despenalizadora, a lei penal reduz pela
metade o cômputo do prazo prescricional”22.
O art. 115 do CP, pelos mesmos fundamentos relacionados ao
art. 65, I, não foi ab-rogado ou derrogado pelo art. 5.º do novo CC.

21
Nesse sentido: LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 1958. vol. II, p. 367, n. 58. Melo Matos, no preâmbulo do Decreto de 24 de
fevereiro de 1933, que incluiu em nossa legislação a redução dos prazos prescricionais
em face da menoridade relativa do agente, afirmava: “... Há uma idade de transição
entre a adolescência e a maioridade penal, que vai dos 18 aos 21 anos feitos, na qual a
responsabilidade do delinqüente é atenuada, sendo diminuídas as penas previstas pelas leis
penais (Código Penal, art. 42, § 11; Código de Menores, art. 76); atendendo a que, se as
leis assim determinam nesse período de transição, por ainda não ser completo o desenvolvimento
mental e moral do indivíduo pelas suas condições psicológicas e éticas, é lógico e justo que, do
mesmo modo que ele não é punido com todo o rigor da pena, também sejam diminuídos os
prazos da ação e da condenação; atendendo a que, por esse ato de clemência, o Estado
proporciona ao indivíduo, em plena maioridade, libertar-se mais depressa das más
conseqüências da infração da lei, por ele praticada na menoridade, quando era ainda forte-
mente influenciável no sentido do bem e do mal, por falta de reflexão perfeita e de plena força de
resistência aos maus impulsos.”
22
Op. cit. p. 725.
31

RAPTO CONSENSUAL

Art. 220. Se a raptada é maior de 14 (catorze) e menor de 21 (vinte e


um), e o rapto se dá com seu consentimento:” (grifo nosso).
Os objetos jurídicos do crime de rapto consensual são o pátrio po-
der e a autoridade tutelar exercidos em relação à mulher maior de 14 e
menor de 21 anos de idade. Como, de acordo com o novo Código, a mu-
lher maior de 18 anos pode exercer todos os atos da vida civil, não se
encontrando mais sob o pátrio poder, de entender-se que o art. 220 do CP
foi derrogado pelo art. 5.º do novo CC. Em razão disso, para efeito de
aplicação do art. 220 do CP, deve ser considerada a ofendida maior de 14
e menor de 18 anos (e não maior de 14 e menor de 21 anos de idade).

BIBLIOGRAFIA

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal comentado. São Paulo: Sarai-


va, 2002.
BRUNO, Aníbal. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1969.
vol. II.
FELICÍSSIMO, Fernando Fulgêncio. A redução da maioridade civil e seus
reflexos no sistema jurídico-penal. Instituto Brasileiro de Ciências Crimi-
nais, São Paulo, 17 set. 2002. Disponível em: <http://
www.ibccrim.org.br>.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Jurisprudência criminal. Rio de Janeiro: Borsoi,
1973. vol. II.
______. Lições de Direito Penal: Nova Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense,
1985.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro:
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HAMÍLTON, Sérgio Demoro. Reflexão sobre o exercício da curadoria no pro-
cesso penal. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Atualização Jurídica,
1996. (Ensaios Jurídicos, vol. 2).
LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
vol. II.
32

MAGALHÃES NORONHA, E. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo:


Saraiva, 2000. vol. I.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campi-
nas: Bookseller, 1997. vol. II.
UCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: RT, 2000.
REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; ANDREUCCI, Ricardo
Antunes; PITOMBO, Sérgio M. de Moraes. Penas e medidas de segurança
no novo Código. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
VIVEIROS DIAS, Marcus Vinicius de. Nova maioridade reflete também
no âmbito penal. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 9 jan. 2003. Dis-
ponível em: <http://www.conjur.uol.com.br/view.cfm>.
______. Código Civil muda situação penal de menor de 21 anos. O Estado
de S. Paulo, São Paulo, 14 jan. 2003. Caderno Cidades, p. C4.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de
Direito Penal brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT, 1997.

ABREVIATURAS

art(s). – artigo(s)
CC – Código Civil
CP – Código Penal
CPP – Código de Processo Penal
i.e. – id est (isto é)
n. – número(s)
op. cit. – opus citatum (obra citada)
p. – página(s)
RHC – Recurso em Habeas Corpus
RT – Editora Revista dos Tribunais
RT – Revista dos Tribunais
RTJ – Revista Trimestral de Jurisprudência
STF – Supremo Tribunal Federal
TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo
vol. – volume
33

O PRINCÍPIO POENA CONSEQUITUR PECCATUM


NA TEOLOGIA PENAL DE SANTO
TOMÁS DE AQUINO

Gilberto Callado de Oliveira


Procurador de Justiça

O século XX, certamente o mais criminoso da história do homem,


projetou todas as suas violências e desordens sociais para este novo sécu-
lo, as quais seguem o seu caminho num ritmo progressivo e dominante,
desafiando os vaticinadores da política, da sociologia, da economia, do
direito, enfim, dos cultores das ciências humanas, que em sua maioria não
vêem o processo da agressividade social senão a nível dogmático, sem
abrir o pensamento a esferas cognoscitivas mais elevadas.
No âmbito específico da criminalidade e do seu correlato sistema
repressivo assistimos em nosso país a um paradoxo exemplarmente defi-
nido pelo emérito Professor Osvaldo Ferreira de Melo, em sua consagra-
da obra Temas Atuais da Política Jurídica, que revela, de um lado, “o senti-
mento de injustiça pelas disfunções do sistema penal”, e de outro, “os
desvios éticos da execução penal”1 . Se outros países são sugados pela
corrupção governamental e acuados pela violência das máfias, da droga,
da guerrilha e do terrorismo, também eles têm, reflexivamente, um siste-
ma penitenciário desumano, que não produz os desejados efeitos restau-
radores e terapêuticos como convinha a todo o arresto corporal punidor.
Do entrechoque destas duas injustiças, em desfavor da tutela social e da
dignidade humana, sobressaem políticas de governo não raramente
claudicantes, que provocam o crescimento da violência sob a ação da-
1
V. Osvaldo Ferreira de Melo, Temas Atuais..., pág. 49.
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 33 a 40
34

quele princípio tão seriamente definido por Leão XIII: “A covardia dos
bons fomenta a audácia dos maus”.
Diante desse alarmante quadro de conjunto, muito mais realista do
que possam os otimistas tê-lo como fantasioso ou mesmo imperfeito, surge o
problema da punibilidade, que se presta a interpretações mais variadas.
Os dogmas defendidos pelos intelectuais de vanguarda da ciência
penal, com indisfarçável apego ao normativismo jurídico e propensos à
livre interpretação utilitária e garantista, são oriundos da ideologia
iluminista, segundo a qual o indivíduo é passível de ser corrompido pela
sociedade, mediante a limitação de suas liberdades individuais. Antes do
contrato social que os homens teriam feito na condição de participantes,
sua liberdade era plena, tendo em vista o estado de natureza pura em que
viviam. A passagem do estado completamente livre para a condição de
ser gregário teria introduzido os males do pecado original contratual, e,
assim, aplicando o mito rousseauniano ao campo da política criminal, terí-
amos a inevitável liberalização: quanto mais liberto de deveres e de pe-
nas, melhor será o indivíduo, pois livre estará da pressão coercitiva e
corruptora da sociedade. Não é de estranhar, por isso, que os nossos
ideólogos de plantão, políticos defensores de um duvidoso direito penal
alternativo, venham solapando no parlamento os verdadeiros alicerces do
sistema jurídico-penal com um argumento sofístico e antimetafísico de
perigosas conseqüências amerceadoras: se a pena não faz recobrar no in-
divíduo o estado de natureza livre, se não o liberta da alienação social,
melhor será eliminar a própria pena.
O cerne do problema da criminalidade não está, evidentemente,
num contrato imaginário recheado de cláusulas cerceadoras. E um fato
social bastaria a comprová-lo. Quando hoje vemos legiões de criminosos
movidos por uma psicologia indiferentista ou até obstinada na prática de
suas injustiças, também vemos, paralelamente, em muitos casos perten-
centes à mesma classe social, legiões muito mais numerosas de homens
não criminosos que trabalham, que estudam, que mantêm vida decente
em seus lares e em seus ambientes profissionais, contra os quais não po-
demos contrapor o estado de natureza pura responsável pelo ideal de
vida que os infratores contumazes da lei deveriam antes estar. É pura
ficção sustentar que o homem honesto constitui a exceção de resistência
a um contrato alienante e corruptor. Se assim fosse, por que a sociedade
só corrompe os homens maus?
35

Todos nascemos com o pecado original, e sob o dogma sugestivo


de sua lei lutamos sempre para aplacar a insurreição das paixões e da
vontade contra os ditames da reta razão. Resistir a esta natureza defectível,
em virtude da qual as faculdades inferiores da alma pretendem usurpar
um posto de luz e de verdade que não lhes correspondem, é postulado da
liberdade que faz o homem andar na Lei de Deus ou fora dela.
Seria ingênuo pensar, por outro prisma, que a manutenção da or-
dem depende em grande medida das forças de segurança ou das leis re-
pressivas. O eixo principal da ordem não é a liberdade desvinculada da
vida social, ou da força coercitiva que a própria sociedade nos impõe,
mas a libre e firme convicção de que se deve respeitar a própria ordem. Se
esta convicção se vai esboroando, pelas funestas conexões do crime com
a droga, com o permissivismo, com os meios de comunicação (que
freqüentemente fazem propaganda do crime), tal situação psicológica
enfraquece terrivelmente a sanção social que deveria haver contra a in-
justiça, além de outras situações que vão minando paulatinamente o sen-
timento de indignação contra o mal. Aqui está a raiz da criminalidade em
seu sentido mais amplo.
Desde as primeiras elaborações sistemáticas, inauguradas pelo es-
pírito iluminista de Beccaria, a política penal se tem curvado a constru-
ções dogmáticas que nem sempre interpretam as reais necessidades de
inibição das condutas ilícitas, já que alicerçadas em pressupostos
positivistas, como o contratualismo e o utilitarismo, dentre outros,
derrogatórios de um dever de justiça fundado na ordem natural instituída
por Deus.
O ponto de partida da filosofia penal está no acesso metafísico à
fundamentação real da pena, levando-nos ao suposto de que a justiça
punitiva humana está fundada sobre a noção de pecado.
Santo Tomás de Aquino, insuperável mestre da ordem, define o
pecado como actus inordinatus2 , como ato contrário a determinada ordem.
Mas há nele o pressuposto fundamental da culpa, para que se dê validade
sistemática à motivação metafísica da conexão entre o pecado e a pena.
Culpa aqui não significa a falta de intencionalidade que a dogmática pe-
nal desenvolveu a partir da Lei Aquilia, do século III antes de Jesus Cris-
to, para contrapor a intenção do sciens dolo malo em relação a outros cri-
2
S. Th., I-II, q.87, a.1.
36

mes. Para o Aquinatense a culpa tem duas dimensões, conforme é vista


dentro do homem ou fora dele. Objetivamente considerada é antes de
tudo a transgressão voluntária da ordem e, subjetivamente, uma desor-
dem nas faculdades do homem, um ato defeituoso (I-II, 18, 1), e por isso
exige os seguintes princípios integrativos: 1º) actus culpae (transgressão da
lei); 2º) in potestate ipsius (consciência desta transgressão) e 3º) dominium
sui actus (livre autodeterminação na execução do ato transgressor).
Sobre a base de expiação de alguma culpa Santo Tomás de Aquino
constrói uma fórmula simples e realista: poena consequitur peccatum. Sendo
algo aflitivo, aplicado contra a vontade e em expiação de alguma culpa, a
pena vincula-se à fonte vindicadora da própria ordem, isto é, ao princípio
da ordem violada à qual está sujeita a vontade livre. O fio condutor desta
doutrina reside na lei intrínseca de qualquer entidade ordenadora, que
tende à sua própria conservação e defesa e a reprimir a quem contra ela se
insurge. Explica o Santo Doutor que “tudo o que está contido numa certa
ordem se unifica, de algum modo, em dependência do princípio da or-
dem. Por onde e conseqüentemente, o que se insurge contra uma ordem
determinada será reprimido por ela ou por quem é o seu princípio”3 .
Ora, sendo o pecado um ato desordenado, é manifesto que quem
peca age contra determinada ordem, sendo por ela própria reprimido. E
esta repressão constitui uma pena. Teríamos a reação de uma só ordem?
Absolutamente não. A vontade humana está sujeita a tríplice ordem, con-
forme seja a perspectiva do governo divino, da sociedade política ou da
consciência moral, e por isso, tornando-se defectível a vontade do peca-
dor pela exteriorização de sua maldade, sujeita-se ele à tríplice pena.
Em primeiro lugar a natureza humana está sujeita à ordem da pró-
pria razão, que emite juízos deônticos como uma lei do atuar, como nor-
ma vinculante de conduta a que o homem pode obedecer ou violar. Nesta
última hipótese a ordem moral individual reage com a sanção da consci-
ência, a conscientiae remorsus, na expressão tomista. Aqui a intranqüilidade
interior, a insatisfação ou tristeza provocada pelo pecado será mais inten-
sa quanto menos desordenadas forem as potências da alma do pecador.
Em certos criminosos, porém, o apego à culpa do crime é de tal modo
obstinado que o seu remordimento moral exigiria verdadeiro milagre da
terapêutica penal.
3
Ibid..
37

Mas isso não afeta outras instâncias punitivas, como, em segundo


lugar, a necessidade de conservar plenamente a ordem social, que gover-
na as ações externas dos homens. Toda ordem jurídica positiva tende à
sua própria conservação e defesa, porque é postulado de sua existência
mesma, como lei intrínseca de cada ser, que, desejando naturalmente o
seu próprio bem (naturaliter appetit proprium bonum)4 , assim também natu-
ralmente repele o próprio mal (naturaliter repellit proprium malum)5 . Nenhu-
ma ordem poderia sobreviver sem dispor de mecanismos de reação contra
os seus reais turbadores. Os efeitos reagentes da violação da ordem não
são porém imediatos e diretos, mas só dispositivamente, cabendo ao po-
der político definir-lhes os meios mais eficazes, matéria afeta à política
criminal.
Mas a ordem jurídica também é ordem de justiça, como adverte o
próprio Aquinatense, e uma vez transgredida pela culpa essa ordem, faz-
se necessária a retribuição penal para que se venha a conservar o equilí-
brio nos dois pólos da Justiça Legal e a restabelecer-lhe a igualdade com-
prometida. Do caráter contrariamente retribuidor, que a pena encerra,
sobressai a finalidade justa de sua compensação. Na Suma Teológica, numa
e noutra questão, encontramos os seguintes princípios análogos com o
mesmo fim compensatório: Per poenam reparatur aequalitas iustitiae (“Atra-
vés da pena a igualdade da justiça é reparada”)6 ; Per compensationem poenae
reintegretur aequalitas iustitiae (“A igualdade da justiça é reintegrada pela
compensação da pena”)7 ; Requiritur poena ad restituendum aequalitatem iustitiae
(“A pena é necessária para reintegrar a igualdade da justiça”)8 .
Punir equivale então a um ato de justiça, ato que não se limita ape-
nas a reintegrar a ordem da razão conspurcada na consciência moral do
pecador. Se assim fosse, bastaria o arrependimento moral para justificar e
compensar o pecado, e teríamos com isso legiões de tartufos gozando as
delícias da impunidade. Mas o pecado transforma-se em crime quando sai
do homem e entra no mundo, vindo a tirar o equilíbrio dos pratos da
balança justa. Para um lado pende a força de Baal; força efêmera, finita,
posto que destruída, cedo ou tarde, pela Justiça de Deus.
4
S. Th., I-II, q.47, a.1.
5
Ibid..
6
S. Th., II-II, q.108, a.4.
7
S. Th., I-II, q.87, a.6.
8
S. Th., I-II, q.87, a.6, ad 3.
38

Não são poucos os teóricos que, como já dissemos, se desviam


dessa exigência fundamental de justiça, advogando para a pena novos
rumos terapêuticos, desprendidos da velha tradição castigadora, a qual
hodiernamente adquire, para eles, ressaibos de autoritarismo ou até mes-
mo de medievalismo. Transformam-se então os presídios, nesta linha ide-
ológica, em grandes centros de psicanálise, de ambulatórios de psicologia
e psiquiatria, onde os maus não são maus, os injustos não são injustos;
mas apenas criaturas alienadas, vítimas da opressão social e por isso des-
viadas em sua personalidade, tristes figuras freudianas que vivem o dra-
ma mitológico de lutar entre o instinto da vida e o instinto da morte, entre
o Eros e o Tanatos; ou podem ser, na visão alternativista, homens perten-
centes às classes subalternas oprimidos pela insensível dominação bur-
guesa.
Ora, pensar assim é apequenar, em muito, o pensamento de Santo
Tomás de Aquino; é substituir o vigor da Justiça penal por uma forma
irreal de terapêutica punitiva quase sempre inócua para superar o fundo
psicológico e metafísico que há em toda a maldade, em todo o pecado,
em todo crime. A ordem jurídica e social também é ordem de justiça; é
uma entidade transcendente muito pouco compreendida pelos teóricos
do positivismo penal. Pois o crime não se reduz à violência psíquica ope-
rada dentro do criminoso, ou mesmo à violência social que encontrou eco
na vontade irremediavelmente vencida de um ser gregário oprimido. O
crime é ato exterior e injusto, que desequilibra a igualdade da justiça e faz
seu agente contrair uma dívida penal correspondente a dois supostos fun-
damentais: de um lado a correspondência entre a culpa ou o crime come-
tido e a retribuição jurídico-penal; de outro, a igualdade entre o débito
penal exigido ao agente e o direito de punir atribuído à sociedade, de tal
modo que o devido penalmente deva adequar-se ao penalmente exigido.
Por fim, a teologia penal de Santo Tomás encontra seu mais perfei-
to plano de abstração na ordem universal do governo divino, que o peca-
do fundamentalmente perverte.
Também há necessidade de reparar essa ordem, por imposição mes-
ma de Deus e de Sua Justiça Divina, o que constitui a razão suprema do
direito penal. Este princípio universal sobrepaira eternamente sobre a
evolução dos sistemas punitivos das sociedades, sobre as exigências con-
cretas de cada uma delas em definir quais as condutas que atentam mais
gravemente contra a ordem jurídica e quais os meios de reação penal,
39

pois do contrário cairia no puro historicismo, teria adquirido o caráter


temporal, dramático e irreversível do histórico, acabando por sucumbir à
mera dogmatização das proposições normativas, quase sempre elabora-
das ao sabor das ideologias. É mister reconhecer, entretanto, que, partin-
do da concepção metafísica, a política punitiva não pode erigir normas
válidas para todos os tempos e lugares, porque o mundo do direito tam-
bém apela, como prova a experiência dos fatos, para novas formas de
criminalidade e para a proteção de novos valores históricos. A razão de
ser do preceito penal reside assim num ponto de intersecção entre estas
duas esferas, transcendente e temporal, da natureza humana.
Como se vê, a dimensão dessa análise vai muito além da simples
observação empírico-científica ou histórica, e guarda aquele enlace teo-
lógico do direito penal lembrado por Juan de Rosal, em que nele conflu-
em, de uma parte, as substâncias fixas e imutáveis de toda a norma ética
eterna, e de outra, a forma positiva das solicitações concretas dos postu-
lados histórico-sociais da comunidade política9 . Crime e pecado se equi-
valem porque constituem fato culpável, violação da ordem jurídica, mas
sobretudo arrogante desprezo da ordem instituída por Deus.
Todo esse acervo de idéias não teria sentido sem uma aplicação
prática, sem uma eficiente política de restauração da ordem depauperada
na sociedade. Assim, entre tantas mudanças que se fazem necessárias
para uma Justiça Penal eficaz, ninguém pleiteia a solução tomista por
parecer antipática e obsoleta. Os novos rumos traçados parecem não le-
var em conta que o fundo do problema está no próprio homem, na crise
moral que vem percorrendo sucessivas desgraças e maldades no ambien-
te geral do país. A diminuição da pena é diametralmente oposta ao au-
mento da criminalidade, o que provoca uma dupla crise no sistema puni-
tivo, como já observado: impunidade dos crimes e crueldade na execução
das penas.
Ora, esse paradoxo não se desvenda senão com a moralização da
sociedade, moralização não só particular como pública, pela restauração
dos valores mais caros à Civilização Cristã. Para que se concretize tal
desiderato, como nos aponta o insigne pensador João Alfredo Medeiros
Vieira, em seu festejado livro Noções de Criminologia, “é mister que haja, da
parte dos governantes e líderes de cada nação, um permanente empenho
9
Cfr. Juan de Rosal, Política Criminal, Barcelona, Bosch, 1944, p. 97.
40

em prol da família, que é o alicerce mais fundo da sociedade. Da formação


e da educação dos filhos no lar depende a construção de comunidades
humanas com menos conflitos, menos engodos, menos falcatruas, menos
crueldades, menos perversões, menos vinganças, menos crimes e crimi-
nosos”10 . Se os males corruptores desses valores não forem atacados pela
raiz; se não houver eficientes respostas às graves violações da ordem moral
interna e da ordem jurídica só nos restará a última das penas, provindas
do Perfeito Legislador e do Juiz Infalível.

10
João Alfredo Medeiros Vieira. Noções de Criminologia. Florianópolis: Ledix, 1997,
p. 278.
41

A ATUAÇÃO DE UM PROMOTOR DE
JUSTIÇA NO TRIBUNAL DO JURI

Geovani Werner Tramontin


Promotor de Justiça em Curitibanos - SC

O objetivo deste trabalho é o de compartilhar com os colegas promo-


tores de Justiça a experiência profissional adquirida nos primeiros anos de
atuação no Ministério Público, especialmente na tribuna do júri, onde
tivemos a oportunidade de participar de inúmeros julgados, grande parte
deles na comarca de Chapecó, exercendo atribuição exclusiva por dois
anos, com a realização de oito sessões mensais, distribuídas em igualdade
de condições com o laborioso colega Moacir José Dalmagro – com quem
muito aprendemos e trocamos experiências – o qual, certamente, se des-
taca pelos profícuos trabalhos realizados nesta seara.
Nosso objetivo é transmitir aos colegas algumas técnicas experi-
mentadas que, com o tempo, foram se mostrando eficazes nos resultados
dos julgados, longe de qualquer pretensão de ensinar alguém ou de querer
afirmar, peremptoriamente, que seja esta ou aquela a forma ideal de tra-
balho, até porque a dinâmica de uma sessão de júri encerra inúmeros des-
dobramentos, exigindo rapidez de raciocínio e postura diversa.
Tomamos a iniciativa de rascunhar algumas experiências em decor-
rência da dificuldade que tivemos no início da carreira e por entendermos
que o resultado do julgado está diretamente ligado à atuação do promo-
tor de Justiça que, por vezes, é colocado na “arena” para contrapor uma
defesa composta por exímios tribunos, contratados a peso de ouro.

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 41 a 64
42

Além disso, é muito importante que os novos membros do Ministé-


rio Público adquiram amor e afinidade no combate à prática dos crimes
contra a vida, que, apesar de ser o maior bem jurídico tutelado pelo Esta-
do, se encontra tão desprestigiado.
Tentamos abordar as questões seqüencialmente, de acordo com o
desenvolvimento normal da sessão, e aspectos que a antecedem, desde o
estudo dos autos, passando pela escolha dos jurados, debates e votação
dos quesitos na sala secreta.

ESTUDO DO PROCESSO DE JÚRI

O mais importante de todo o trabalho para o êxito no resultado de


um julgamento perante o Tribunal do Júri é, sem dúvida alguma, conven-
cer a si próprio de que o acusado foi um homicida frio e covarde e que o
crime contra a vida poderia ter sido evitado, pois outras alternativas esta-
vam à disposição do acusado. Se não estivermos convencidos do que pre-
tendemos, não conseguiremos convencer ninguém. Para tanto, a forma
como se estuda, e o que se estuda mais atentamente, é de sobremaneira
importante, pois, durante a sessão, discussões acaloradas são travadas
sobre depoimentos, laudos, interrogatórios etc, motivo pelo qual tais ques-
tões devem ser bem aprofundadas.
No que diz respeito ao interrogatório, sabe-se que, por regra, o acu-
sado mente, até porque lhe é assegurado o direito ao silêncio; se pode o
mais, pode o menos, de forma que sequer pode ser processado por perjú-
rio. Portanto, este é um ponto que deve ser estudado detalhadamente,
expondo as contradições de seus interrogatórios aos jurados, não esque-
cendo de anotar o que falou também na sessão que se está realizando.
Como a versão apresentada no interrogatório, por regra, contraria a
prova dos autos, sempre levamos jurisprudências capazes de demonstrar
aos jurados o que os tribunais dizem sobre tema. Ex:
“Cabe ao Conselho de Sentença optar pela versão que en-
tender ser a correta, mas, se a versão acolhida tem apoio tão-so-
mente na palavra do réu, que diverge nos seus próprios interroga-
tórios e que, por sua vez, não encontra apoio nas demais provas
dos autos, ‘sem dúvida, estas foram contrariadas pela decisão’” (RT
540/343).
43

“JÚRI — DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁ-


RIA À PROVA DOS AUTOS — NULIDADE. “A palavra do
réu, isolada e discordante do contexto probatório, não pode ser
erigida em versão de molde a fornecer as teses defensivas” (JC 55/
365).
As testemunhas, ao contrário do que afirmam alguns defensores,
não são da acusação, mas do processo, apesar de arroladas na denúncia,
pois são elas chamadas pelo delegado de Polícia por terem sido mencio-
nadas no desenrolar das investigações. O mesmo não acontece com aquelas
arroladas pela defesa, que, por regra, passaram a figurar nos autos apenas
em juízo, comprometidas portanto, uma vez que não tinham sido referi-
das no inquérito policial. Observe-se que, mesmo que tenham sido ouvi-
das no inquérito policial, devemos ficar atentos, pois podem ter sido
indicadas pela defesa, que as nominou quando fez a apresentação de seu
cliente, sendo que isto pode ser observado, confrontando-se as datas de
depoimentos com o interrogatório.
Cabe a quem acusa expor aos jurados a forma como é instruído um
processo, desde a fase inquisitória até a acusatória, enfatizando que as
testemunhas ouvidas naquela fase são, em tese, presenciais; e, em caso de
terem também elas alterado o depoimento, incidindo em contradições,
destacar que o morto não pôde com ela fazer contato, o que não ocorre
com o acusado.
É importante esclarecer que o promotor de Justiça deve formar sua
convicção através de muito estudo, pois, não é porque a prova está fraca
ou desfavorável, que deve declinar absolvição. Não podemos esquecer de
que os crimes mais bem elaborados não deixam provas e, por vezes –
desde que convencidos – temos que demonstrar a responsabilidade crimi-
nal através de indícios fortes, mormente quando o acusado está represen-
tado por um bom defensor que, experiente, não raras vezes começa a
absolver seu cliente quando o apresenta perante à autoridade policial,
não só com uma versão razoável e convincente, mas também com nomes
de testemunhas que a ratifiquem etc. Cabe ao bom promotor de Justiça
demonstrar a facilidade que possui a defesa em tal desiderato e dificulda-
de do Ministério Público em contrariar a assertiva.
Além do interrogatório e das testemunhas, os laudos são peças fun-
damentais no estudo, pois é neles que está delineada a materialidade do
crime, com todas as suas circunstâncias. Ex: Número e distância dos ti-
44

ros, trajetória do projétil (trás para frente etc), ranhuras ou tiros nos ante-
braços (que indica tentativa de defesa da vítima) etc.
Devemos tentar ter em mente as datas aproximadas dos interroga-
tórios, depoimentos de testemunhas (delegacia e juízo), laudos, data e
hora do crime, data da portaria de instauração do inquérito etc, pois tudo
pode ser objeto de discussão por ocasião dos debates.
Deveremos ainda observar os antecedentes do acusado e vítima,
inclusive os comentários de suas condutas sociais nos depoimentos, pois
explorar a personalidade do agente é muito importante nos debates, uma
vez que os jurados costumam analisar sobremaneira estas circunstâncias.
É importante também não esconder nada, mesmo que desfavorável, pois
a defesa não será tão incipiente ao ponto de deixar de explorar tal peculi-
aridade e, com muito mais vigor, dizer que o Ministério Público está omi-
tindo fatos, o que nos é extremamente desfavorável.

ESCOLHA DOS JURADOS

No dia da sessão, quando o promotor de Justiça entra na sala do


júri, está ele sendo observado por todos os jurados, inclusive os da sessão
seguinte, não sorteados na oportunidade. É este o momento da primeira
impressão, que pode até causar antipatia; não que tenhamos que “bajular”
jurados, mas podemos evitar má impressão e, porque não, conquistar sim-
patia.
Pensamos que é importante, com seriedade, fazer um pequeno cum-
primento a todos os presentes, de forma discreta e genérica, mesmo que
seja apenas com a cabeça, fazendo com que os jurados se sintam valori-
zados e criem uma boa impressão do promotor de Justiça, principalmente
em comarcas grandes, onde todos são desconhecidos.
Na hora de escolher os jurados, especialmente em cidades peque-
nas, pode-se conversar com o oficial de Justiça, a fim de que informe
quem são os “bons” jurados. Em cidades maiores, a experiência profissi-
onal indica que os comerciantes, empresários e os políticos, preferencial-
mente, devem ser preteridos, pois, em tese, são muito vulneráveis à satis-
fação de interesses próprios e ao que lhes é mais favorável, não renunci-
ando a uma boa barganha, principalmente pelo fato de verem o promotor
de Justiça como uma pessoa que, futuramente, pode vir a processá-los,
45

pois, por regra, andam sempre no “fio da navalha”, quer na sonegação ou


em “maracutaias” político-eleitoreiras. Observa-se, evidentemente, que
muitos são os empresários, comerciantes e políticos sérios e, quando con-
sentir na sua escolha, deve-se ressaltar a confiança que o promotor de
Justiça deposita em seu discernimento e senso de Justiça
Existem alguns estudos, dos mais variados autores, sobre determi-
nadas etnias, como, por exemplo, a de que o alemão é mais condenador
do que o italiano etc. No entanto, não observamos grandes alterações nos
resultados seguindo estas referências, não descartando a procedência de
tais estudos, pois basta analisar a conversação de um italiano para verifi-
car que são mais propensos ao comércio, por regra. Mas, como afirmamos
acima, todas as etnias são sérias e confiáveis, merecendo apenas atenção
no momento da escolha.
No que pertine às mulheres juradas, não temos objeção, exceção
feita a determinados crimes, como, por exemplo, um homicídio praticado
por uma mulher contra o marido, o qual, além de traí-la, agredia-lhe
freqüentemente. Mutatis mutandis, procura-se não permitir que homens
participem de conselho de sentença – ou não sejam maioria – para apreci-
ar um crime de homicídio, cuja tese defendida seja a de legítima defesa da
honra, por ter sido ele traído.
Devemos tentar preterir também os jurados fanáticos religiosos, que
acreditam que somente Deus é quem julga; bem como aqueles que possu-
am a mesma faixa etária do defensor, pois, como pertencem a mesma casta
social, residindo na mesma comarca, certamente se conhecem, ou inclusive
estudaram juntos, o que o coloca em posição de grande vantagem.
Pensamos que, mais importante do que tudo isso, é olhar nos olhos
dos jurados antes do sorteio e ter a sensibilidade de observar os que pos-
suem caráter duvidoso, anotando seus nomes por ocasião da chamada e
os rejeitando no sorteio.
Não podemos esquecer – em sessões com mais de dois acusados –
de que é apenas no sorteio que se pode propiciar à defesa a cisão do
julgamento, nos termos do art. 461, do CPP. Considerando que a defesa
possui três recusas em conjunto, que é única, podendo ser discordante,
tem o promotor de Justiça a obrigação de acompanhar a recusa do defen-
sor que assim se manifestou, sob pena de cindir a sessão, o que sempre
nos é desfavorável, mas pode ser extremamente vantajoso para a defesa
de um partícipe, por exemplo.
46

Assim, é desnecessário dizer que, quando forem dois ou mais acu-


sados, o promotor de Justiça deverá guardar suas recusas para acompa-
nhar as da defesa, pois, antecipando-se, automaticamente estará
viabilizando a cisão.
Chamamos a atenção desse particular porque o dispositivo legal já
referido, que regulamenta a matéria, é meio nebuloso, e já ocorreu de nós
termos que solicitar a suspensão da sessão para estudar e mostrar ao ma-
gistrado doutrinas e jurisprudências sobre o tema. Enfim, resumindo: quem
manda na cisão é o promotor de Justiça.
Sugerimos que, ao se deparar com processos com mais de um acu-
sado, o promotor deve conversar antes, e informalmente, com o juiz que
presidirá os trabalhos, para evitar constrangimentos públicos.

LEITURA DE PEÇAS EM PLENÁRIO PELO ESCRIVÃO

Em princípio, a leitura de peças processuais em plenário, que é


oportunizada após o interrogatório, pode parecer desnecessária. No en-
tanto, analisando-se a ordem sucessiva dos trabalhos, concluímos pela
importância de sua leitura. É que a seqüência inicial de uma sessão do
Tribunal do Júri é composta de relatório, interrogatório, leitura de peças e
oitiva de testemunha e, se deixarmos de pedir a leitura de qualquer docu-
mento, a primeira impressão que terão os jurados é de que o acusado é
inocente e de que a vítima não valia nada, pois, exceção feita ao relatório,
o interrogatório, as peças lidas pela defesa e as testemunhas que, por
regra, também são por ela arroladas, estarão todas em harmonia com a
tese defensiva. Por tal motivo, após o interrogatório, momento em que o
acusado dá sua versão, é importante a leitura de um documento que o
contraponha, seja para mostrar que os fatos não ocorreram da forma nar-
rada, seja para, desde já, demonstrar que ele mente.

OITIVA DE TESTEMUNHA EM PLENÁRIO

Quando iniciamos nossos trabalhos na tribuna, o que ocorreu já no


terceiro dia como promotor de Justiça, tivemos dúvidas sobre a utilidade
da testemunha de plenário, especialmente quando confeccionávamos os
libelos, momento processual oportuno para arrolá-las.
47

Hoje, temos plena convicção de que, salvo raras exceções, tal me-
dida é muito mais vantajosa à defesa, pois, a ela, quanto mais dúvida
melhor; ou seja, existindo uma testemunha que deu dois bons depoimen-
tos (delegacia e juízo), ao submetê-la aos questionamentos em público, e
diretamente pelo defensor, como permite a legislação, tem ele a possibili-
dade de fazê-la entrar em contradição, pois quem tem experiência em júri
sabe como fazer uma testemunha se contradizer, ridicularizando-a peran-
te o corpo de sentença e fazendo-a perder toda a credibilidade, mesmo
que a contradição seja ínfima.
Portanto, além de não arrolar, cabe ao promotor de Justiça quando
for aberto o questionamento da testemunha da defesa, fazer o mesmo
trabalho que o advogado faria, ou seja, desacreditar a testemunha, mos-
trando que ela mente e foi “plantada” na fase de plenário apenas para
ajudar o amigo acusado, que com ela contatou. E como desacreditá-la?
Uma das formas é, na pergunta, fazer considerandos com os depoimentos
de outras testemunhas, mostrando aos jurados que a versão dela é contra-
riada por outras testemunhas e fazendo-a dizer: não sei explicar.
Devemos, entre outros questionamentos circunstanciais, perguntar
onde andava que não prestou depoimento na Delegacia de Polícia; onde
estava no momento do crime, com a localização exata; qual a cor da rou-
pa, do carro, da casa, quantos metros, quantos tiros, houve briga, quem
estava, viu a outra testemunha comprovadamente presente, entre outras
que as circunstâncias indicarem. É quase impossível uma pessoa que foi
instruída não entrar em contradição com alguns aspectos descritos pelas
demais testemunhas e pelo acusado em seus interrogatórios.
Se a mentira for absurda, havendo a necessidade de diligências imediatas
para comprovar a farsa, deve o promotor de Justiça pedir a suspensão do feito
para que seja incontinente implementada. Em caso de indeferimento, conse-
guimos, ao menos, demonstrar aos jurados que aquela testemunha é uma far-
sante. Fato que posteriormente, nos debates, será comprovado, justificando o
pedido de inserção de quesito especial sobre a falsidade testemunhal.
Quando o defensor quiser que a testemunha manifeste sua posição
pessoal sobre determinada peculiaridade – tal como: O que acha? O que
pensa? O que entende? – deve o promotor de Justiça insurgir-se através de
questão de ordem, protestando pelo indeferimento da pergunta, pois a
testemunha depõe sobre fatos, e a manifestação pessoal é vedada pelo
art. 213, do CPP.
48

Verificamos, agora, a importância de o representante do Ministério


Público estar atento desde a instrução do processo, pois, deve o Promo-
tor de Justiça com atuação no Júri sempre questionar as testemunhas so-
bre as pessoas que se encontravam presentes na cena do crime, pois, se
no futuro houver tentativa de fraude, o número de pessoas será limitado.
Igualmente deve o Promotor de Justiça ficar atento para a testemunha
abonatória que, no Júri, tem um peso especial, pois pode não apenas
enaltecer o acusado, mas também denegrir sobremaneira a vítima. Por-
tanto, quando começar a dizer que a vítima era agressiva e que vivia bri-
gando, deve perguntar à testemunha se alguma vez já foi por ela agredida,
bem como o nome de três pessoas que o foram, fazendo, evidentemente,
o Juiz consignar a resposta, que, certamente, será “que não se lembra”.

EVENTUAL CUMPRIMENTO AO ACUSADO

Sabemos que o cumprimento ao acusado não é obrigatório,


tampouco qualquer cumprimento, mas, quando entender o acusador que
deve fazê-lo, deve não o colocar como vítima de uma sociedade desigual,
apenas tratá-lo com respeito, mas na qualidade de criminoso. Ora, o acu-
sado chega bem arrumado; tem as algemas retiradas; senta-se ao lado do
advogado, que lhe tratará como amigo, tentando demonstrar aos jurados
que ele não oferece qualquer perigo; e, se ainda vem o promotor de Justi-
ça dizer que ele é um coitado, uma vítima da sociedade, certamente os
jurados vão se sentir sensibilizados, fato que, no conjunto, pode ter impli-
cações negativas.
A idéia é cumprimentar o acusado de forma a cativar os jurados, ou
seja, fazê-los crer – o que é verdade – que o Promotor não é um implacá-
vel acusador, mas um representante da sociedade que está ali para efeti-
var a justiça. Costumamos dizer em algumas situações:
“Fulano”, saiba que o Ministério Público nada tem contra você, até
porque sequer o conhecia. Tem sim contra seu ato. Nós dois sabemos da
gravidade de sua conduta, e que as circunstâncias não foram aquelas
trazidas em sua atual versão que tenta absolvê-lo. Eu porque estudei as
entrelinhas do presente processo, você porque tem consciência. E esta
consciência não lhe trairá. Tenho certeza, “fulano”, que hoje sairá daqui
condenado pelas leis dos homens, mas independentemente do resultado
49

deste julgamento, você será julgado por sua própria consciência, que lhe
acompanhará até o final de seus dias e, após, certamente não escapará do
julgamento final, do julgamento de Deus. Mas como disse, tenho certeza
de que será condenado e espero que o tempo que ficará preso lhe seja útil
para que reflita sobre o seu comportamento e saia da prisão melhor do
que entrou, respeitando seu semelhante.
“Acusado. Você errou. E que erro, o pior e maior, você matou!
Contrariou a lei dos homens e a lei de Deus: Não matarás! Você
matou e, matando a vítima, mata um pouco e lentamente os seus
pais, a viúva, os filhos, condenando-os ao sofrimento, à ignorância,
à doença e, talvez, condenando à fome os orfãozinhos. Talvez terão
eles que abandonar o colégio para auxiliar nas despesas da casa.
Privará os filhos dos mimos de um pai quando a mãe, morta de
cansaço, já não consegue sequer erguer-se da cama. Não haverá
mais alegria naquela família. Família? E ainda serão considerados
uma família a viúva e os orfãozinhos? Ponha a mão na consciência,
“fulano”. Você merece absolvição? Seu ato merece o prêmio da
impunidade? Não, você não tem direito à liberdade, mas à prisão.
Este mesmo promotor de Justiça que o acusa nesta oportunidade,
poderá defendê-lo em uma outra oportunidade, num momento
que você ou sua família tiver sido vítima de qualquer crime” (vide
Roberto Lyra).

DEBATES

Após saudar o juiz presidente, a defesa, as demais autoridades, os


policiais militares, os funcionários e todos os presentes – inclusive os
cidadãos que estão esperando por certo tempo a prestação jurisdicional e
que confiam na justiça – saudamos os jurados por último, destacando que
agimos desta forma para nos alongar nos cumprimentos, pois são eles que
haverão de julgar a causa. Mais do que dizer sobre a liberdade de um
homem serão eles que deverão, definitivamente, lavar o sangue derrama-
do na sociedade em que vivem, ressaltando – até para ganhar suas confi-
anças – da sublime missão que estão incumbidos, de suas importâncias
para a sociedade que representam e para o promotor de Justiça que, na
escolha dos jurados, confiou nos sete escolhidos, acreditando estarem
eles habilitados a proferir um julgamento sereno e justo que, com certeza,
com base na prova dos autos, será de condenação.
50

Dizer-lhes que representam o Judiciário, tão criticado por absolver.


Terão agora a oportunidade de julgar. A família da vítima também confia
na decisão, pois deixou de fazer Justiça com as próprias mãos para acredi-
tar na Justiça, hoje representada pelos jurados.
Falar do Ministério Público e de suas áreas de atuação, especial-
mente a criminal, da incumbência de promover Justiça, não de efetuar
acusações pura e simplesmente. Nesta oportunidade, estamos acusando
porque a verdade, a prova dos autos e a nossa consciência indicam neste
sentido, pois, jamais faremos da desgraça alheia o pedestal de nosso su-
cesso profissional.
Terminados os cumprimentos, lemos o libelo, explicando que esta é
a peça processual que delimita a acusação, passando à análise da prova.
Temos por hábito fazer um resumo de todos os depoimentos, teste-
munha por testemunha, fase inquisitória e acusatória, pois isto facilita
um imediato esclarecimento das contradições, enfatizando-as aos jura-
dos. Deixamos o interrogatório por último, pois é ali que estão as maiores
divergências.
Procuramos esclarecer os jurados sobre o porquê da mentira e como
é que ela funciona, ou seja, quem não visualiza um fato ou não o vivencia,
sendo orientado para falar, dificilmente poderá manter a mesma versão;
isto é, se não vê um acidente automobilístico, quando for prestar o segun-
do depoimento dificilmente lembrará a cor do veículo, pois tais circuns-
tâncias não foram “fotografadas” pela mente; daí o motivo das contradi-
ções da testemunha “amiga” do acusado, que foi prestar depoimento ape-
nas para auxiliá-lo.
Abordamos posteriormente os laudos e suas circunstâncias, mor-
mente a discordância com o interrogatório do acusado e depoimentos
testemunhais defensivos.
Após, recapitulamos todas as questões controvertidas, tentando
deixar bem claro aos jurados por qual razão deve o acusado ser condena-
do, abordando neste momento as possíveis teses da defesa e o motivo de
serem totalmente improcedentes.
Na réplica, que por regra deve existir, conforme veremos abaixo,
devemos contrariar as provas da defesa, ou seja, mostrar aos jurados o
motivo pelo qual a versão do Ministério Público é mais crível, reiterando
os aspectos de alguns depoimentos.
51

ARGUMENTOS PERSUASIVOS/ELOQÜENTES QUE PODEM


SER USADOS EM QUASE TODOS OS DEBATES

Evidentemente que o ideal é apenas mostrar as provas com objeti-


vidade, mas um pouco de emoção, bem como uma postura corporal ade-
quada e sintonizada com o que se diz ajuda na argumentação, até porque
esta é a técnica usada por praticamente todos os defensores que militam
na área de júri.
Após tratarmos de alguma questão importante referente ao crimi-
noso ou ao crime, qualquer que seja ela, podemos sensibilizar ainda mais
os jurados, dizendo coisas como:
Não olhem o acusado hoje, bem vestido e com ares de boa educa-
ção, achando que este é o reflexo de sua personalidade. Reportem-se ao
dia dos fatos onde, enfurecido, buscando ceifar a vida alheia, efetuou
golpes contra a vítima, mesmo diante de seus gemidos, lágrimas e súpli-
cas de misericórdia, revelando alto grau de perversidade e insensibilidade
mercenária. Senhores jurados, vocês são pessoas de bem, sabem que o
simples fato de um sujeito sair de casa armado para se divertir já é uma
coisa inadmissível; imaginem o gesto de puxar o gatilho contra um seme-
lhante, e pior, após ver o sangue e o desespero da vítima, prossegue ati-
rando impiedosamente. E estas mãos, hoje entrelaçadas em sinal de ora-
ção, são aos mesmas que empunhava a arma do crime e não se sensibili-
zaram com o desespero e dor da infeliz vítima.
Clemência! Perdão! A cadeia não regenera! O promotor de Justiça
tem conhecimento que a cadeia não regenera, mas os princípios proces-
suais execucionais da pena são dois: ressocialização e retribuição (não
apenas a ressocialização), ou seja, deverá o acusado retribuir aos fami-
liares da vítima e à sociedade o mal causado. Hoje a criminalidade está
banalizada. Não nos arrepiamos mais com notícias jornalísticas de ho-
micídios aqui e acolá, apenas quando um dos nossos, seja familiar ou
conhecido, é covardemente assassinado, é que verificamos e recorda-
mos o quanto é dolorida a perda de uma vida. Se alguém merece pieda-
de não é quem mata, mas quem morre. Seja qual for a culpa da vítima é
ela sempre menor que a do acusado, que se arvorou do dom divino de
conceder a vida e a morte, ceifando prematuramente a vida de um se-
melhante.
52

“Abolimos a pena de morte das mãos do Estado. Não po-


demos tolerá-la em plena praça pública, em mãos irascíveis, com
requintes de covardia, insensibilidade e desprezo pela vida humana.
Se reconhecerem a legitimidade do crime contra a vida da vítima,
haverão de também legitimar, pela mesma razão, o gesto dos filhos
e irmãos da vítima, o direito de vingá-la, agora por amor, não pelos
sentimentos de vingança e ódio que motivaram o acusado” (vide
Roberto Lyra).
“Imaginem aquele pai que saiu de casa pela manhã, despede-
se da esposa e filha com tranqüilidade, despede-se com um cari-
nhoso beijo, e sai para o trabalho como qualquer ser que vive em
uma terra civilizada. E aquele que saiu de manhã, alegre e sadio,
volta à noite, na forma de um cadáver. É comovente ver os famili-
ares do acusado aqui presente, eventualmente algum filho; no en-
tanto, mais comovente é nos reportarmos aos familiares da vítima,
de modo especial aos seus filhos que, para todo o sempre, estarão
afastados de seu ente querido. Tudo por causa da conduta insana
do acusado que, mesmo preso, poderá ver seus entes queridos, o
que não poderá ocorrer com a vítima que, para todo o sempre, está
preso em um túmulo” (vide Roberto Lyra).
“Os homens que matam ignoram a dor que fica na terra,
perene, surda e imortal. Desconhecem que o morto continua
vivo no coração dos que o amavam. Não sabem que, ao matá-
lo, deixam chorando, a seu redor, chorando e sangrando aqueles
que lhe eram caros, seus amigos, seus filhos, seus pais, enfim
todos os que usufruíam da felicidade de sua convivência” (vide
Roberto Lyra).
Olhem para aquela mulher – ou melhor, para aquelas pessoas -
(apontando para familiares da vítima). Elas vieram aqui para esperar jus-
tiça. Por maior que seja a dor dos familiares do acusado que terão que
visitá-lo na cadeia, será menor do que a destes familiares que, para todo o
sempre, estão afastadas de seu ente querido. Por culpa de quem? Dele,
que, ao invés de vir procurar o Judiciário, resolveu fazer justiça com as
próprias mãos.
Poderemos usar ainda, para fechar uma réplica em que a vítima
era jovem, os ensinamentos de Edilberto de Campos Trovão, que se
coloca na qualidade de vítima, que pela última vez se pronuncia através
do Promotor de Justiça: “Hoje, senhores jurados, é a ultima vez que a
vítima fala. E o faz através deste promotor de Justiça. Quando eu en-
53

cerrar os trabalhos, a vitima cala-se para sempre. Em qualquer lugar


que ela esteja, com certeza, gostaria de dizer aos senhores: ’Eu tinha
sonhos que não realizei. Sonhos abortados ainda quando pensado. Eu
queria ter filhos e não os tive, Eu queria envelhecer. Eu não sou uma
ficção. Eu vivi, amei, desejei. Eu vi, senhores jurados, o primeiro verme
roer as podres carnes do meu cadáver’”. Em verdade, o trecho em ques-
tão foi extraído do poema ‘Sonhos’, que também poderá ser encontrado
no livro de autoria de Edilberto, poema este que inúmeras vezes já foi
por nós lido integralmente em sessões plenárias que, como afirmamos,
a vítima era jovem.

PROMOTOR DE JUSTIÇA ACUSADOR

Alguns defensores insistem em afirmar ser o promotor de Justiça o


“acusador público”. Deve-se dar exemplos de júris em que já se declina-
ram absolvições em plenário. Afirmar que temos consciência de que a
cadeia não regenera, mas, como já afirmado, não apenas o princípio da
ressocialização está esculpido na lei de execuções penais, mas também o
da retribuição: fizeste, vais pagar. O que pensariam os familiares da víti-
ma sobre o argumento de que a cadeia não regenera, motivo pelo qual
não deve o acusado ser condenado? E a sociedade que representamos? E
a repressão ao crime através da exemplar condenação de criminosos? Como
a cadeia não regenera, vamos soltar todos os presos então!
Enfatizar que o promotor de Justiça jamais faria da desgraça alheia
o pedestal de seu sucesso profissional, até porque não se ganham ou per-
dem júris; apenas a justiça sai engrandecida e a sociedade satisfeita.
Falar que não somos máquinas de acusar, mas sob a beca palpita
um coração. Um coração que representa as lágrimas, o suor e o luto da
família, que freqüentemente procura o promotor de Justiça em busca de
uma palavra de conforto e de uma satisfação por tão horrendo crime.
Esclarecer que o Ministério Público não tem qualquer compromis-
so com acusações, honorários ou com o acusado, mas sim com sua cons-
ciência e a sociedade que representa e que lhe paga o salário. Se hoje
acusa é porque as provas dos autos, a verdade neles inserida, o clamor de
justiça e, acima de tudo, sua consciência, exigem que se manifeste neste
sentido.
54

PUNIÇÃO/DÚVIDA

É costume de alguns defensores apenas ressaltarem parcialmente


alguns depoimentos – pois integralmente lhes seria desfavorável – e
após se apegarem a pequenas contradições, tentarem plantar dúvidas
na cabeça dos jurados, dizendo que não podem condenar uma pessoa a
passar anos na prisão com tamanhas contradições e que a punição é
demasiada.
Precisamos enfatizar que: punir é manter vivos os laços da coexis-
tência social, é equilibrar o sistema da vida em sociedade, é tranqüilizar o
meio, intimidar os predispostos, é evitar a reincidência para os criminosos
e também proteger o acusado contra os desesperos dos que aqui ficaram
com o coração dilacerado, evitando que façam justiça com as próprias
mãos (vide Roberto Lyra).
Não é sem coração o pai que corrige o filho, tampouco os crentes
que consideram obra de misericórdia castigar os que erram. Não é sem
coração também o disciplinador do lar, da escola, do trabalho e da socie-
dade em geral, que pune sem atender às lágrimas e súplicas de dúvida,
que se guia exclusivamente pela necessidade de cumprir o seu dever. As-
sim como o jurado. A defesa pede misericórdia, uma chance; o júri não
faz caridade, tampouco é lugar para pedir perdão. Aqui é a casa da Justiça
(vide Roberto Lyra).
No instante do voto, na hora do sim ou do não, não devem os jura-
dos encherem-se de questionamentos ou remorso, até porque, mesmo que
a vítima tivesse morrido com vinte facadas nas costas, sem qualquer ar-
gumento defensivo, igualmente existiriam dois votos. Não está escrito em
nosso ordenamento jurídico que a condenação deve pautar-se apenas em
prova cabal, devem os jurados aterem-se a todo o contexto, a todas as
circunstâncias do caso, enfim, a tudo que foi exposto pelo Ministério Pú-
blico e pela defesa, sem covardia. É preferível absolver mil culpados a se
condenar um inocente... In dubio pro reo. A defesa sempre usa estes jar-
gões, justamente para plantar covardia na cabeça dos jurados, fazendo-os
pensar que a condenação lhes pesará na consciência. Não podemos admi-
tir. Enfatizar que o promotor de Justiça também tem consciência e jamais
acusaria se fosse para perder a tranqüilidade de espírito ou uma noite de
sono.
55

Em caso de crime tentado, onde, por regra, os defensores costu-


mam dizer que a vítima está viva e sequer veio assistir ao julgamento, e
que não adiantaria mandar um pai de família para a cadeia, temos que
rebater fortemente tais alegações, argumentando que não podemos ad-
mitir que um crime de tentativa de homicídio a uma pessoa que recebeu
um tiro – cuja seqüela lhe acompanhará pelo resto da vida – não tem
importância alguma. Deve-se afirmar que receber um tiro, ou uma faca-
da, é muito grave, ressaltando que poderia ser uma filha de um jurado
que teria que carregar até o final de seus dias a marca de um corte, ou
um buraco em seu corpo. Uma tentativa deixou de ser, por um detalhe,
um crime consumado, sendo que a pena é muito benevolente com tal
crime.
Temos que explicar também a pena, pois, com a diminuição pre-
vista no art. 14, § único, do Código Penal, se o crime não for qualifi-
cado, qualquer que seja a pena o acusado sairá em liberdade; mas terá
que carregar, ao menos, uma pequena condenação para que tal fato,
além de ser justo, possa contribuir para a diminuição da criminalidade
e para que ele próprio saiba que tal conduta é reprovada pela socieda-
de.

CRIME PASSIONAL

Segundo Roberto Lyra: “O verdadeiro passional não mata. O amor


é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário e generoso. O
amor tem empatia com casamentos, maternidades e com lares felizes, não
com necrotérios, cemitérios ou manicômios. O amor, o amor mesmo, ja-
mais desceu ao banco dos réus. Para os fins da responsabilidade criminal,
a lei considera tão-somente o momento do crime. E nele o que atuou foi
o ódio, a raiva, a impulsividade covarde e violenta. O amor não figura nas
cifras da mortalidade e sim nas de natalidade, ou seja, não tira, mas põe
gente no mundo. Está, enfim, nos berços e não nos túmulos“(vide Roberto
Lyra).
“O acusado encontrou-se casualmente com a vítima... casualmen-
te também estava armado. Casualmente matou-a e escondeu a arma. Não
existe paixão de improviso, meteórica, exclusivamente para tentar esca-
par da pena” (vide Roberto Lyra).
56

O ADVOGADO

Sabemos da imprescindível missão do advogado, e de sua árdua


tarefa, até porque advogado fomos antes de galgar um cargo no Mi-
nistério Público Catarinense, mas não podemos esquecer de enfatizar
que ele está ali apenas para defender. Não pode, a exemplo do Minis-
tério Público, defender e acusar. A melhor defesa de um acusado ino-
cente é o Promotor de Justiça. Certa feita, o advogado alegou estar
trabalhando graciosamente para o Estado. No entanto, esclarecemos
aos jurados que o Estado paga 45 URHs para a defesa, e isto é mais de
R$ 1.000,00, além, é claro, do engrandecimento de seu nome que será
reconhecido por inúmeras pessoas como sendo o responsável pela
absolvição de “fulano”, pois sabemos que o profissional liberal, além
da competência, vive de seu bom nome e reconhecimento de bons
trabalhos.
Em uma oportunidade também – objetivando sensibilizar emocio-
nalmente aos jurados – veio um defensor com a “ladainha” de que é uma
pessoa de cabelos brancos e que jamais pegaria uma causa se não tivesse
consciência da inocência do acusado; devemos argumentar que a terceira
idade é apenas uma fase da existência humana; para confirmar, basta
exemplificar que em várias visitas que fizemos às penitenciárias, lá cons-
tatamos a presença de inúmeros presos de cabelos brancos, evidenciando
que não são só as pessoas de bem que envelhecem.
Lembrar, quando o advogado é de renome, que a sua contratação,
pura e simplesmente, já é um indício forte da responsabilidade criminal
do acusado, que foi forçado a contratar um “milagreiro” para safá-lo da
cadeia. Tal argumento também poderá ser usado na contratação de uma
banca de advogados.
Convém ressaltar, não obstante a ética profissional da maioria
esmagadora dos defensores, que em algumas situações o causídico co-
meça a atacar pessoal ou institucionalmente o membro do Ministério
Público, o que é lamentável, pois tais peculiaridades, além de denegri-
rem a classe, não estão em julgamento; inclusive, em alguns casos, as
ofensas objetivam justamente provocar o promotor de Justiça, quer para
fazê-lo perder o controle emocional e baixar o nível dos debates – afir-
mando a defesa que se até o promotor de Justiça, com toda a educação
57

não consegue se conter a uma provocação, o que esperar de seu cliente


– quer para desacreditar o brilhante trabalho que vem sendo desenvol-
vido.
A experiência profissional indica que sempre que houver uma ofen-
sa pessoal ou à instituição ministerial deve o promotor de Justiça levantar
imediatamente questão de ordem e, além de solicitar ao juiz presidente
que advirta à defesa, pedir para consignar em ata o desrespeito, nos lite-
rais termos em que foram usados.
Evidentemente que discussões e debates acalorados sobre a prova
são normais, mas não o é a defesa usar de ofensas pessoais, inclusive
dando exemplos pejorativos na pessoa do promotor de Justiça ou seus
familiares.
Pensamos que deve o promotor de Justiça levantar, no máximo, três
questões de ordens, consignando as ofensas que constituírem crimes (in-
júria, calúnia e difamação) e, após, não conseguindo o juiz presidente
conter o ímpeto agressivo do opositor, acreditamos que a única alternati-
va que nos resta é sairmos de plenário, consignando-se o motivo, e en-
trando, no dia seguinte, com uma representação criminal pela ofensa no
exercício de função pública, bem como com uma ação cível de danos
morais.
Apesar da discussão acerca da inexistência de crime contra a hon-
ra quando praticado no calor dos debates, os tribunais estão pacifican-
do entendimento que a imunidade profissional inerente ao tribuno pos-
sui limites, mormente quando a parte adversa não dirigiu qualquer pala-
vra contra ao ofensor, limitando-se a consignar em ata as expressões
utilizadas.

SENSIBILIDADE

Deve o promotor de Justiça tomar cuidado com algumas expres-


sões e também referências negativas a terceiros, pois um dos jurados pode
se encontrar, pessoalmente, na mesma circunstância. Ex.: chamar o acu-
sado ou vítima de drogado; poderá o jurado ter algum filho, um sobrinho,
mesmo um conhecido, com problema semelhante e certamente olhará
com restrições a sua argumentação. É importante o Promotor de Justiça
58

ficar atento quando o defensor fizer uso de tais expressões, pois, no exemplo
em questão, poderá lembrar aos jurados que está cientificamente provado
que tal problema é causado pelos mais variados fatores, sendo o drogado
uma vítima da sociedade e que necessita de tratamento, acrescentando
que a defesa é insensível ao sofrimento alheio, especialmente dos famili-
ares, grandes vítimas da doença em questão.
Durante sua argumentação, ao observar que algum jurado está meio
apático às suas ponderações, dispensar especial atenção a ele, intimando-o
com os olhos a se atentar e, se necessário for, chamá-lo pelo nome e colocá-
lo em uma situação que o faça raciocinar de acordo com a sua linha de
pensamento, cativando sua amizade e incentivando-o ao voto desejado.
Sabemos que chamar jurados pelo nome, dizendo inclusive sua pro-
fissão, é uma técnica argumentativa muito utilizada, mas, quando o de-
fensor fizer uso de tal artifício, o promotor deve dizer aos jurados – espe-
cialmente nas grandes cidades onde as pessoas não possuem tanta afini-
dade – o porquê da aproximação, explicando que esta é uma fórmula pré-
elaborada para convencer, querendo se fazer de amigo do jurado. O Mi-
nistério Público não precisa “bajular”, pois a certeza da condenação não
vem de amizades ou mimos pessoais, mas da verdade, das provas e da
confiança que tem no senso de Justiça dos jurados.
É importante ter em mente que nenhum jurado é bobo e, se fatos
forem omitidos, a defesa os mostrará e dirá que o promotor os omitiu.
Antecipar uma peculiaridade que é desfavorável à acusação poderá ame-
nizar as conseqüências e, quando a defesa quiser explorar o problema, os
jurados, além de concluírem que isso já foi dito, terão a impressão de que
tal fato não é tão grave, justamente porque foi exposto de forma mais
amena.
A leitura de doutrina e jurisprudência costuma cansar os jurados,
motivo pelo qual, antes de procedê-la, devemos explicar e justificar a
leitura, que deve se limitar a pequenos trechos que entendemos impres-
cindíveis. Por exemplo: co-autoria e participação. Em tal caso, é difícil
aos jurados entenderem como uma pessoa pode ser condenada, mesmo
não tendo atirado; a jurisprudência, todavia, mostra-se esclarecedora.
Ao fazer a peroração (fechamento), dar a última mexida nos senti-
mentos dos jurados sobre o compromisso com a verdade, sobre o que a
sociedade espera, sobre a repressão ao crime, sobre o sofrimento dos fami-
59

liares da vítima que, ao invés de fazer justiça com as próprias mãos, espera-
ram por longo tempo para ver justiçada a morte de um ente querido.
Não pode o promotor de Justiça transmitir insegurança, ou qual-
quer dúvida sobre os fatos e as provas do processo. Deve olhar firmemen-
te nos olhos dos jurados e pedir a condenação, falando com certeza, sem
brincadeira. Também, por ocasião da argumentação da parte adversa, não
deve demonstrar descaso, pois isto causa antipatia aos jurados.
Deve o promotor de Justiça ter consciência de que dois são os fato-
res que os jurados mais levam em consideração por ocasião dos trabalhos
de plenário. Um é a apresentação das provas, que deve ser feita da forma
mais clara e objetiva possível, repetindo algumas vezes determinadas cir-
cunstâncias importantes, tais como um ou dois depoimentos ou uma pe-
culiaridade do laudo que afasta a tese principal, que pode ser absolutória
e colocar a perder todo o trabalho; dois é a credibilidade das partes, ou
seja, se conseguirmos apresentar as provas convenientemente e desacre-
ditarmos a defesa e o defensor, com respeito, evidentemente, teremos
êxito no resultado do julgamento. Agora, mesmo que tenhamos apresen-
tado bem as provas, se nos deixarmos cair nas “graças” do defensor, o
julgamento, por certo, nos será desfavorável.
Às vezes, costuma-se dizer que a cabeça de jurado é uma “caixinha
de surpresa”, o que não concordamos, pois um tribuno, conforme o de-
senvolvimento dos trabalhos, deve ter senso de autocrítica, não para ficar
se penitenciando, mas sim para crescer e, no julgamento seguinte, buscar
um resultado justo.
Na hora da explicação dos quesitos pelo magistrado e da votação,
deve o promotor de Justiça se fazer mostrar, procurar olhar nos olhos dos
jurados e demonstrar a mesma sinceridade dos debates, evidentemente
que sem amedrontá-los.

APARTES

Dependendo do advogado e das provas dos autos, o aparte pode


não ser muito interessante na primeira parte dos trabalhos, ou seja, se o
advogado for fraco e não utilizar argumentos convincentes, e se as provas
forem abundantes à acusação, é melhor nos atermos a abordar de uma
forma clara e integral todo o processo. Observe-se que, em tréplica, como
60

não mais teremos a palavra, pode ser determinante o uso do aparte para
lembrar aos jurados fator de importância ímpar que pode pôr por terra,
inclusive, eventual argumento deixado na manga do advogado para ser
usado por último, quando o promotor de Justiça não puder mais fazer uso
da palavra. Inclusive, quando pedido pelo promotor de Justiça e estrategi-
camente negado pela defesa, deve o acusador falar em alto e bom tom o
que pensa, justificando ao magistrado que os jurados estão sendo induzi-
dos a erro e, mesmo que lhe seja cassada a palavra, já disse o que neces-
sitava ser dito. Não podemos nos amedrontar com um grito de protesto
do defensor, sob pena de os jurados pensarem que, por termos nos cala-
do, equivocamo-nos na colocação.
Se o advogado tiver por costume fazer uso freqüente de tal artifí-
cio, devemos deixar ele fazer umas três interrupções para não parecermos
mal educados e para que a defesa não afirme que desejamos esconder
fatos, até porque talvez o aparte será por nós utilizado posteriormente.
Após, observando que a defesa quer é perturbar, devemos dizer
não ao aparte, cientificando os jurados de que o objetivo da defesa é
justamente atrapalhar o trabalho do Ministério Público, pois terá seu tem-
po para falar e, mesmo assim, quando vê que os jurados estão atentos a
determinada questão, faz a intervenção para fazer com que percam a li-
nha de raciocínio. Cabe ao promotor de Justiça a hora do “bote”, o mo-
mento certo, desprestigiando a defesa com sua intervenção inoportuna e
deselegante, que não objetiva esclarecer fatos, mas tumultuar o julga-
mento, pois para a defesa quanto mais embrulhado melhor.
Não é demais lembrar de que, se os apartes estiverem atrapalhando o trabalho,
poderá requerer ao presidente da sessão que lhe assegure a palavra sem intervenções.
Quando ele insistir novamente no aparte, agora sem a sua autoriza-
ção, o que certamente acontecerá, o promotor deverá parar de falar e ficar
olhando fixamente o defensor e, quando ele também parar, pois ele ficará
sem graça, poderá dizer: “O Sr. está atrapalhando..., deu..., o Sr. Terá duas
horas para falar, já terminou..., posso continuar? muito obrigado! ”. E, em
seguida, demonstrar aos jurados a falta de educação do defensor, inclusive
enfatizando o quanto ele é deselegante, pois, mesmo com a palavra cassa-
da, continua perturbando e atrapalhando a função do Ministério Público.
É importante não esquecer de que tais apartes são feitos, por regra,
quando se está abordando um fato importante, sendo que, após a parada,
61

devemos reiniciar no ponto em que paramos, inclusive recapitulando o


que se julga mais convincente.
Se isso for determinado pelo juiz presidente, não permita que o
defensor fique falando pelas costas, pois isto dispersa a atenção dos jura-
dos. Algumas vezes já nos defrontamos com situações análogas, onde o
defensor fica resmungando, gesticulando, levantando, mexendo com pa-
péis ou chupando balas (de papel alumínio) sem parar, justamente para
dificultar a atenção. Podemos fazer o teste, em réplica, onde cada minuto
é precioso, se você pegar a arma do crime na mão, levantar da cadeira, ou
mesmo abrir rapidamente uma bala, perceberá que todos os jurados lhe
acompanharão, mesmo que com os olhos. Isto basta para perderem o ra-
ciocínio de uma argumentação, que pode ser determinante em um julga-
mento.
Não devemos deixar um aparte passar em branco. O promotor de
júri deve antever o que pretende a defesa com tal aparte e afastá-lo de
pronto. Se não tiver o argumento preparado, dizer à defesa que: “Se ela o
deixar trabalhar, chegará na questão no decorrer da explanação”. Precisa-
mos ter cuidado, no entanto, para não permitir, ou ao menos limitar, apar-
tes em réplica, pois, mais de três intervenções são capazes de nos tomar
vários minutos, que certamente seriam preciosos.
Existem alguns advogados, poucos é claro, que dizem ou insinuam
coisas que não estão nos autos, especialmente em depoimentos. Por este
motivo, o promotor de Justiça deve tentar permanecer o tempo todo em
plenário, principalmente quando conhecemos o opositor. Ao constatar
tal fato, deve o promotor de Justiça pedir imediatamente questão de or-
dem e determinar à defesa que mostre o depoimento aos jurados, pois
está faltando com a verdade. Isto desmoraliza a defesa e faz com que
perca credibilidade em tudo o que disse.
Quando o advogado der uma gargalhada, ou um sorriso irônico,
não pode o promotor de Justiça perder a oportunidade de se dirigir a ele e
dizer fortemente: “O Sr. está rindo, saiba que isto é um julgamento sério.
Está rindo da morte da infeliz vítima, ou seria dos jurados”. Enfatizar
que é lastimável o seu comportamento, pois muitas lágrimas foram derra-
madas neste processo, e tal comportamento é uma afronta à sociedade,
aos jurados e, acima de tudo, aos familiares enlutados que se encontram
assistindo aos trabalhos.
62

USO DA RÉPLICA

Este é o momento processual em que todas as anotações feitas


durante a argumentação da defesa serão utilizadas, refutando-as uma a
uma, mormente para promotores de Justiça que não possuam o hábito de
refutá-las incontinente, através dos apartes; bem como para explicar os
quesitos, o que deve ser feito não apenas com a leitura e explicação da
parte legal e doutrinária, mas sim fazendo referência também à prova, e o
porquê da impossibilidade da não admissão das teses defensivas apresen-
tadas.
Cada uma das argumentações feitas pela defesa precisam ser refu-
tadas; então, enquanto a defesa fala não só seus argumentos devem ser
anotados, mas também o processo reestudado e livros novamente manu-
seados para “acabar” com todas as teses defensivas.
Observe-se também que, sendo a defesa a última a falar por tão
longo tempo (duas ou três horas), poderão os jurados não mais ter na
memória aspectos importantes da argumentação feita pelo Ministério
Público há mais de quatro horas, o que poderá implicar uma absolvição.
Usando a réplica, o tempo entre a votação e a exposição do Minis-
tério Público será no máximo de uma hora, isto quando for mais de um
acusado, onde o tempo da réplica, como sabemos, é dobrado.
O uso de tal tempo deve, por regra quase absoluta, ser utilizado,
pois, além de não causar aos jurados uma sensação de desleixo e de acei-
tação como verdadeiro o que foi dito, é também o momento, como acima
afirmamos, de se mostrar efetivamente a verdade, uma vez que a argu-
mentação da defesa é sempre forte e convincente, cabendo ao promotor
de Justiça mostrar que suas alegações não têm qualquer consistência.
Caso o promotor de Justiça tenha feito uso de sucessivos apartes,
esclarecendo imediatamente questões controvertidas e desmascarando a
defesa, excepcionalmente, poderá deixar de replicar, mas isto tem que
levar em consideração o péssimo trabalho pela defesa e as inúmeras inter-
venções feitas pelo Ministério Público enquanto a defesa se manifestava.
Às vezes, uma conversa ao pé do ouvido de um ouvinte, que está
de espectador, pode ser importante, pois assistiu aos dois trabalhos, ten-
do mais condições de falar sobre o poder de persuasão de cada qual.
63

Outro aspecto que entendemos deva ser abordado apenas em répli-


ca é a eventual exclusão de qualificadora, bem como um possível reco-
nhecimento de crime privilegiado entre outros benefícios, pois, enquanto
não declinada tal possibilidade, a defesa irá tentar sustentar as duas teses
(alternativas), isto é, a concessão de um dos benefícios eventualmente
declinados e a tese absolutória; caso lhe seja antecipado o benefício, o
defensor concentrará esforços na manutenção da tese absolutória – ga-
nhando tempo e objetividade – sendo que tal tese, na maioria das vezes,
estava em segundo plano.

VOTAÇÃO DOS QUESITOS

Ao receber a quesitação, deve o promotor de Justiça verificar a exis-


tência de eventual nulidade, especialmente aquele conhecido quesito ne-
gativo, que é vedado, levantando-a através de manifestação oral.
Considerando o disposto no art. 5º, XXXVIII, “b”, da CF, que asse-
gura o sigilo das votações nos julgamentos populares, costumamos
sugestionar ao magistrado que sempre que a votação de determinado que-
sito for unânime até o sexto voto, devemos não abrir o sétimo e considerá-
lo contrário, resguardando o sigilo da votação e eventual constrangimen-
to do jurado que pode ter relação de amizade com o advogado ou com
familiares da vítima.
Enquanto o juiz explica os quesitos, deve o promotor de Justiça per-
manecer centrado e sério, ou melhor, sem brincadeiras, pois neste momen-
to os jurados estão muito atentos em nossa postura, especialmente em um
julgamento de difícil decisão, onde os detalhes são determinantes. A brin-
cadeira pode deixar transparecer que não estamos muito preocupados com
a responsabilidade de nosso cargo e da missão que estamos incumbidos.
Ao entrarmos na sala secreta, mantendo a mesma postura, penso
que é importante ficar alguns momentos de pé, deixando transparecer a
seriedade de nosso trabalho e expectativa positiva na votação.
Sabemos que ao Juiz é vedado falar em pena na explicação dos
quesitos, pois os jurados devem apreciar apenas a pergunta, a qual será
explicada, quando muito em sua significação, pois em tese, inclusive, isto
foi debatido em plenário.
64

Evidentemente que, quando o juiz afirma que, respondendo a uma


determinada pergunta, estarão os jurados condenando o acusado a uma pena
de seis anos (homicídio simples), dependendo do caso, isto pode assustar.
O susto é ainda maior quando o Juiz fala que, se reconhecida a
qualificadora, estarão condenando o acusado a uma pena de doze a trinta
anos, convertendo o crime em hediondo, cuja pena será cumprida inte-
gralmente em regime fechado.
Nesta situação, temos duas alternativas: ou consignar em ata espe-
cificamente o que foi dito pelo magistrado, ou solicitar, já que se falou em
pena, que seja dito que no primeiro caso o agente ficará preso apenas um
ano por conta da progressão de regime e, no segundo, igualmente, se não
reconhecida a qualificadora, a pena será a mesma, ou seja, uma pessoa
que comete o crime qualificado, ficará recluso apenas um ano.
Talvez o juiz ache deselegante por parte do promotor de Justiça,
que é uma pessoa de contato diário, o requerimento da consignação em
ata da irregularidade por ele praticada, mas o que precisa ser esclarecido é
que mais deselegante ainda é a atitude do magistrado que, ainda que
involuntariamente manipula o resultado da votação – que sabemos que
pode ser feito na explicação dos quesitos – depois de o promotor de Jus-
tiça ter estudado o processo e ficar, no mínimo, cinco horas explicando,
berrando e discutindo teses com a defesa.
Caso o Juiz permaneça irredutível – o que podemos afirmar nunca ter
ocorrido – além de consignar em ata o ocorrido, resta a última alternativa de,
no júri seguinte, providenciar um gravador, comunicar ao magistrado que irá
gravar a votação dos quesitos e juntar a fita por ocasião da interposição do
recurso, pedindo a nulidade do julgamento que lhe foi desfavorável.
É importante não esquecer também de que, quando estivermos na
sala secreta explicando o quesito de homicídio privilegiado, onde exista
ainda uma qualificadora subjetiva pendente de votação, deve o promotor
de Justiça pedir questão de ordem e solicitar que o juiz presidente esclare-
ça que o reconhecimento do privilégio implicará o prejuízo da votação da
qualificadora, dizendo o porquê.
Pensamos que tal intervenção deve ser feita, porque essa é uma
conseqüência lógica da resposta e, por vezes, se jurado soubesse da con-
seqüência, o voto seria diferente.
65

A PRODUÇÃO NORMATIVA, A OBJETIVIDADE

Ivens José Thives de Carvalho


Promotor de Justiça da Comarca de Rio do Sul-SC

1 - Introdução.
2 - O Homem como ser real.
3 - Da objetividade metafísica na produção da norma.
4 - Considerações finais

1 - INTRODUÇÃO

A organização da sociedade através de leis justas, para a teoria po-


lítica liberal, adotada na praxes política do Brasil, depende da objetivida-
de tanto no sentido processual quanto no sentido metafísico. Esta linha
de raciocínio nos compromete com a demonstração de que a política libe-
ral adotada no Brasil está comprometida com a objetividade e que nossa
compreensão comum da prática legislativa pressupõe, além da objetivi-
dade na construção das regras que norteiam o processo, uma forma de
objetividade metafísica no que diz respeito ao regramento dos fatos jurí-
dicos enquanto intervenientes no relacionamento entre os homens e en-
tre estes e o Estado.
Ao demonstrarmos a veracidade das preposições antes enunciadas,
vamos, com apoio nos artigos de Andrei Marmor, Jules L. Coleman e
Brian Leiter introduzir uma nova concepção da objetividade e defender

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 65 a 75
66

sua coerência e plausibilidade enquanto descrição do tipo de objetivida-


de pressuposto por nossas práticas legislativas.
Uma teoria política liberal faz surgir em nossa mente a idéia de um
Estado que aceita limites1 e, bem assim, adote “[...]uma filosofia política
construída sobre a premissa de que as autoridades muitas vezes gover-
nam diante de uma pluralidade de concepções do bem”2
Nos dizeres precisos de Cruz, o liberalismo seria:
“Corrente de pensamento que se consolidou a partir das re-
voluções burguesas do século XVIII, caracterizada por defender as
maiores cotas possíveis de liberdade individual frente ao Estado,
que deve procurar ser neutro. Postula tanto uma filosofia tolerante
da vida como modelo social para substituir o antigo Regime e cujos
conteúdos se constituíram em fundamentos jurídico e político das
constituições democráticas”3
A ideologia que integra a política liberal admite diversas concep-
ções de bens e de interesses e, apesar de estabelecer normas que indi-
quem em determinados assuntos qual o comportamento a ser adotado,
admitem a modificação destes comportamentos no espaço e no tempo e,
não raras vezes, modifica o conteúdo das normas, adotando novos pa-
drões de comportamento e modificando a escala hierárquica dos bens e
interesses.
Para afirmarmos que a teoria liberal é aceita no sistema legislativo
brasileiro tomamos os conteúdos das disposições inseridas no Título I da
Constituição Federal, mormente: “Art. 1º A República Federativa do Bra-
sil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distri-
to Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamento: [...] V – o pluralismo político.” e “Art. 3º Constituem obje-
tivos fundamentais da República Federativa do Brasil; I – construir uma
sociedade livre, justa e solidária;”.4

1
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria
geral do estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
2
MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Trad.
Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins fontes, 2000, p. 305.
3
CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder , ideologia e estado contemporâneo.
Florianópolis: Diploma Legal, 2001. p. 89.
4
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil. X ed. São Paulo: Saraiva,
1999.
67

A objetividade legislativa sob o prisma metafísico consiste, em uma


primeira aproximação, na identidade entre os interesses dos homens e o
regramento estabelecido para o alcance desta realidade. Aproxima-se, bem
por isso, do ideal do direito natural da existência de um “direito”
concomitante com a existência humana. Consiste em matéria-prima pas-
sível de ser preexistente e passível de ser conhecida pelo homem, inclusi-
ve pela sua experiência, utilizando-se dos métodos analítico e sintético,
ou por sua impressão sensível. Pode ser descrita e não exclusivamente
prescrita.
A objetividade na produção de regras processuais, que se caracte-
riza pela solução dos conflitos de maneira a permitir a amplitude do con-
traditório e o perfeito ponto de equilíbrio na imparcialidade, é, em gruas
diferenciados, plenamente aceita e exige apenas que tais regras sejam
construídas de forma a permitir que as decisões sejam tomadas de manei-
ra imparcial (justiça processual).
Esclareço que as regras que buscam a imparcialidade podem, no
afã de criar equilíbrio entre as partes, facilitar e/ou melhorar o
posicionamento processual deste ou daquele litigante, sem alterar a vali-
dade da preposição de que a objetividade exige uma igualdade entre as
partes. Perfeitamente aplicável a máxima de que a igualdade consiste em
tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais.
Esta forma de pensar a objetividade (processual) é defensável não
porque proporcione regras com respostas corretas para disputas jurídicas
e políticas, mas porque fornecem regras que permitirão resolver tais dis-
putas de maneira justa5 e imparcial, isto é, objetiva.
Conforme salienta Höffe6 , ninguém dúvida da verdade e justiça em
procedimentos que buscam permitir que a parte contrária se manifeste,
que proíbe alguém de ser juiz em causa própria ou que o julgador seja
parcial.
Apesar da importância da objetividade processual na produção das
regras para a obtenção de uma decisão justa, nossa pretensão é a objeti-
vidade metafísica, que se distingue pela aceitação da proposição: existem

5
O autor não se preocupa em definir o que seria uma resolução de disputa de manei-
ra justa.
6
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito
e do estado. Trad. Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 39.
68

respostas corretas para questões jurídicas, políticas e morais prementes:


“respostas cuja correção independe das crenças das pessoas com respeito
a elas e que são, em um sentido... objetivamente corretas.”7
É possível para o legislador que se encontre em uma posição
epistemológica adequada, reconhecer na natureza humana e no processo
evolutivo, os parâmetros a serem observados e, através deles, estabelecer,
por meio de normas, para um determinado comportamento humano, re-
gras justas.

2 - O HOMEM COMO SER REAL.

A realidade pressupõe que os fatos possuam as mesmas caracterís-


ticas que apreendemos deles, ou seja, que a imagem que se forma em
nosso consciente seja equivalente às características e/ou qualidades do
fato. Surge aqui a identidade entre a realidade e a verdade, ou seja, um
argumento será verdadeiro quando expressar exatamente aquilo que esti-
ver contido na realidade fática.
De Holbach podemos extrair que a verdade é “el conocimiento de las
relaciones que subsisten entre aquellos seres que obran reciprocamente unos
en otros o, más bien, la conformidad que hay entre los juicios que forma-
mos de los seres y las cualidades que esses seres poseen realmente.”8
Conforme Hessen, “o conceito de verdade relaciona-se intimamen-
te com a essência do conhecimento [...] Um conhecimento diz-se verda-
deiro se o seu conteúdo concorda com o objeto designado. O conceito de
verdade é, assim, o conceito de uma relação. Exprime uma relação, a
relação do conteúdo do pensamento, da ‘imagem’ com o objeto.”9 A ver-
dade consiste na “[...]concordância do conteúdo do pensamento com o
objecto” 10
Este objeto pode ser real ou ideal, entendendo por real “[...] tudo o
que nos é dado pela experiência externa ou interna, ou dela se infere. Os
objectos ideais apresentam-se, pelo contrário, como irreais, como mera-
mente pensados.”11
7
MARMOR, Andrei. Op. cit. p. 366
8
HOLBCH, Baron de. Ensayo sobre las preocupaciones. Buenos Aires: Editorial Kier, 1974. p.18.
9
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 8ª ed. Coimbra: Armênio Amado. 1987. p. 29/30.
10
Id. Ibid. p. 30.
11
Id. Ibid. p. 28.
69

Pela experiência externa, ou seja, pela sensibilidade, podemos co-


nhecer os objetos reais: calor, dureza, cor, dimensão, som, entre outros.
Estes objetos são sentidos e, ainda que se possa contestar uma universa-
lidade da cor inserida na coisa, por exemplo, o vermelho do sangue, não
se pode negar que um determinado elemento intrínseco do objeto faz
surgir a percepção da cor no sujeito individual ou coletivo. A aceitação
deste fato afasta o conhecimento do subjetivismo puro e admite a objeti-
vidade.
No mundo jurídico, sob o ponto de vista da teoria política liberal, é
preciso aceitar como objeto passível de conhecimento o homem, enquan-
to ser natural, existente num determinado tempo e local, e todas as suas
necessidades para viver.
O homem não é um objeto ideal. Pode idealizar comportamentos e
consagrá-los como imanentes de sua natureza. Pode filosofar, criar teori-
as que expliquem a existência e o próprio conhecimento, incluindo teori-
as que o neguem. Mesmo assim, não deixará de ser um ser existente, real,
objetivo, com necessidades vitais reais ou idealizadas.
A vivência contemporânea do homem se realiza num ente idealiza-
do denominado Estado que, como todo ente idealizado, ao operar ações,
transfigura-se em objeto real, capaz de ser sentido, experimentado. É a
realização do idealizado.
A correlação entre os homens e entre estes e o Estado passa a ser
um objeto real, passível de estudo e compreensão: passível de ser conhe-
cida quer em sua causa, quer em seu efeito.
Estas causas e efeitos oriundos da necessidade dos homens, en-
quanto objeto, e das relações que se criam entre os homens e entre estes
e o Estado, exigem, dentro da teoria política liberal, regramentos
orientadores compreensíveis e cognoscíveis. Quando se reconhece a ne-
cessidade deste regramento, tanto pela via legislativa, quanto pela via
judicial, estas relações e correlações tornam-se objetos jurídicos.

3 - DA OBJETIVIDADE METAFÍSICA NA PRODUÇÃO


DA NORMA.

Os fatos podem depender ou não da ação humana e, ao se verifica-


rem, interferem no cosmos, alterando a situação existente no espaço/
70

tempo anterior. Portanto, os fatos são fatos, independente da considera-


ção como tal por parte do legislador.
A necessidade de regrar a atuação do homem perante estes fatos,
quer quando interferem na produção destes (por exemplo: homícidio, com-
pra e venda), quer quando suas vidas são alteradas pela ocorrência destes
(por exemplo: chuva, enchente) é incontroversa na práxis humana. Não
subsiste a qualquer análise mais séria a possibilidade de um anarquismo
radical na vivência humana.
Höffe já assinalou esta impossibilidade, informando inclusive fal-
tar um sentido de realidade ante o fato de ser desconhecida na história
humana um convívio social que não possua dominação ou regras rígidas
de comportamentos em alguns setores12 .
Ainda que a sociedade passe a interagir de forma direta com a pro-
dução das regras de comportamento, as utopias param neste ponto, pois
sempre serão necessárias as regras, quer produzidas pela sociedade, aqui
entendida como o conjunto dos homens que vivem num determinado
espaço/tempo, quer seja produzidas por intermédio de alguns que, de
forma legítima ou não, ocupem posição de poder institucionalizado: o
Estado.
Para a construção destas regras, o legislador pode identificar-se
com algum tipo de opinião sobre a melhor forma do homem conquistar
ou manter-se em paz e feliz. Não lhe é lícito, contudo, obrar no sentido de
produzir regras que tragam ao homem sofrimento e dor.
Poder-se-ia objetar informando que certas opiniões consideram o
sofrimento humano como necessário para uma vida correta e passível de
transformar-se, posteriormente, em eternidade pacífica e feliz. Mesmo
assim, este sofrimento momentâneo é efetuado com prazer, já que se
alicerça sobre a crença de posterior felicidade. As regras ditadas serão
sempre com o escopo de produzir a felicidade e a paz, quer no presente,
quer no futuro.
A produção de normas feitas pelo legislador que não possuam esta
tendência poderão ser aceitas pelo grupo que delas se beneficia, mas não
serão corretas ou justas do ponto de vista da teoria política liberal. Esta
correção e justiça pode ser observada a partir da natureza do homem,

12
HÖFFE, Otfried. Op. cit. p. 155-303.
71

suas necessidades, seus interesses, pontos de conflitos e formas de solu-


ção dos litígios. O legislador situado, do ponto de vista epistemológico,
em local ideal poderá coletar os dados suficientes da realidade para indi-
car o caminho correto a ser seguido.
Isto poderia levar-nos a aceitar tão somente o subjetivismo do le-
gislador como meio de indicação da verdade e do que seria justo. Levar-
nos-ia ao “protagorismo” puro.13 Retiraria de nosso discurso a correção,
pois o subjetivismo se situa em vértice oposto ao do objetivismo na teo-
ria do conhecimento. Na outra ponta, depararíamos com um objetivismo
forte, para o qual a verdade a respeito do mundo nunca depende do que
os humanos consideram ser. Independente de nossas crenças, jamais al-
cançaríamos as características reais intrínsecas do objeto. Jamais sabería-
mos qual os atos humanos que lhe proporcionariam a felicidade.
Contrapondo-se a objetividade forte, sem chegar, contudo ao
subjetivismo, apresentam-se os que defendem a “objetividade mínima”,
para qual, o que parece certo para a maioria da comunidade determina o
que é certo. Por esta doutrina introduz-se um elemento de objetividade
que consiste em tirar do indivíduo a “medida de todas as coisas” e colo-
car esse poder na comunidade como um todo.
Mas isto, apesar de reconhecida melhoria na aceitabilidade da cor-
reção e justiça das normas não nos parece suficiente para amparar uma
necessária crença no dever de comportar-se diante das regras. Bastaria,
no caso da recepção da objetividade mínima, que o legislador se empe-
nhasse em descobrir qual seria a opinião da maioria sobre determinado
interesse social e a forma de resolvê-lo. A adoção de posição que conten-
te a maioria levaria o legislador a verdade sobre os interesses sociais. A
isto se levanta forte crítica: correntes de informações, muitas vezes mani-
puladas ou destituídas de conhecimento integral sobre uma determinada
matéria poderiam afetar o verdadeiro interesse da coletividade ou maio-
ria.
Exemplo claro a respeito deste assunto é a discussão sobre a pena
de morte e sobre a legalização do aborto. Assume-se posição sem se dis-
cutir a totalidade das circunstâncias intrínsecas e extrínsecas do proble-
ma (objeto).

13
Para Protagoras, o homem seria medida de todas as coisas.
72

Conforme tendência moderna dos estudos efetuados pela psicolo-


gia, após um período inicial suposto de estabelecimento de reflexos con-
dicionados entre certos estímulos e certas impressões ou vivências, em
um dado momento, o homem passou a prever ou antecipar a conveniên-
cia de adaptar-se às normas de conduta que sua experiência pessoal lhe
havia demonstrado ser mais útil14 .
Esta teoria explica o início do contato da humanidade com a acei-
tação dos regramentos sociais. A partir deste momento suposto, o ho-
mem inseriu em sua vivência a percepção das regras e a interação entre
seu comportamento e estas regras. Mas Tarde, segundo Lopes15 ,
“[...] ao compasso da progressiva simbolização e
hierarquização condicionada das motivações da conduta de domí-
nio ou de submissão humanas, será ditada por novas modalidades
de força cada vez mais aparentemente afastadas da força mecânica,
física ou bruta e, portanto, aparentemente vinculadas a domínios
espirituais e místicos”
Acreditamos, por isso, que uma objetividade moderada, do tipo
descrita por Leiter, que não reconhece o objeto como sendo uma ente
completamente distanciado do sujeito, mas o admitie como existente na
realidade e passível de ser descoberto, tanto é possível quanto eficiente
para estabelecer uma influência na epistemologia necessária para a elabo-
ração de normas justas.
Podemos, amparados em Leiter, identificar condições que, se pre-
sentes, servem tanto para a objetividade modesta essencial para a ativida-
de jurisdicional quanto para a atividade legislativa
1 - Estar plenamente informado a respeito de:
a) toda informação factual relevante e
b) todas as fontes jurídicas preexistentes;
2 - Ser plenamente racional; observar todas as regras da lógica, por
exemplo;
3 - Ser livre de parcialidade pessoal a favor ou contra cada uma das
propostas indicadas para solução do problema;

14
LOPES,Emílio Mira y. Manual de psicologia jurídica. Campinas: Péritas Livros,
2000. p. 97.
15
Ib Ibid. p. 97.
73

4 - Ser empático e imaginativo ao máximo em casos que exijam, por


exemplo, a ponderação dos interesses em jogo.
5 - Conhecer e ser sensível ao conhecimento sociocultural in-
formal do tipo essencial ao raciocínio analógico, no qual as diferen-
ças e distinções devem ser assinaladas como ‘relevantes’ ou
‘irrelevantes’.
Poder-se-ia objetar que o legislador ao optar por uma regra de con-
duta ao invés de outra poderia incorrer em erro sob o ponto de vista
daquele que, no futuro viesse a analisar todas as questões objetivas que
envolviam o fato jurídico. A essa colocação respondemos com a afirma-
ção de que se o legislador se encontrava em posição epistemológica ideal,
não haveria como equivocar-se na opção política efetuada para aquele
tempo. Uma evolução na maneira de pensar e a descoberta de novas
posturais ideais não desmereceria o ato praticado e a a norma seria enten-
dida hoje ou no futuro como a que ”para a época era a mais correta e
justa”.
Outra objeção, já prevista por Leiter, seria a de que os legisladores
do mundo real não estão legislando em condições ideais! E a resposta é
encontrada no próprio Leiter, para quem “assim estruturada, contudo,
essa não é uma objeção à posição que se acaba de descrever, porque nos-
sa afirmação aqui é apenas a de que o conceito adequado de objetividade
no Direito é o da objetividade modesta.”16
O critério , por sua falta de imparcialidade, de informação comple-
ta, de empatia imaginativa, de lógica etc.
“Mais uma vez, temos de ter cuidado para não misturar duas
noções distintas; vamos chamá-las de ‘inacessibilidade de jure’ e
‘inacessibilidade de facto’. Segundo a objetividade forte, os fatos ju-
rídicos são inacessíveis de jure porque, dados os termos da teoria, o
que somos capazes de determinar não determina o que é caso. Pelo
contrário, os fatos jurídicos modestamente objetivos serão inacessí-
veis de jure apenas se as condições ideais especificadas pela teoria
forem, elas próprias, inacessíveis de jure (isto é, em princípio ou
pelos termos da teoria) a humanos.”17

16
MARMOR, op. cit. 409.
17
MARMOS, op. cit. 410/411.
74

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa tentativa de organizar conceitos para alavancar um trabalho


de maior envergadura sobre a possibilidade de descobrir características
essenciais do ser humano e de suas relações, sob o ponto de vista da
objetividade, construímos as linhas supra. Destas linhas, ainda sob os
reflexos de uma primeira investigação, podemos concluir que, em nossas
práticas filosóficas, devemos buscar descobrir quais teorias podem des-
crever a realidade dos homens (analítica), mas certamente não podemos
limitarmo-nos a essa prática. Nossos ideais e utopias nos empurram na
busca de teorias filosóficas normativas que permitam, quando associa-
das às analíticas, tanto descrever uma prática justa como consertar, atra-
vés das normas, esta prática.
Nossa visão se aproxima da visão de Norberto Bobbio, sintetizada
pelo Professor Oliveira Junior, “[...]que tinha em mente uma idéia de justiça
como uma abstração intelectual elaborada a partir da ‘observação’ de determinadas
necessidades fundamentais que se apresentam, num dado momento histórico, como
dignas de atenção por parte do cientista”18
Para este desiderato, necessário primeiro conhecer o objeto jurídi-
co sobre o qual serão estabelecidas as regras: O homem e suas relações
com outros homens e com suas instituições. A partir daí, verificar quais
as melhores práticas para este ser real e, através de um sistema
epistemológico que aceite o ser “homem” e suas relações como objeto
real e não meramente idealizado pelo consciente.
Deste ponto, inserido em ambiente epistemológico adequado, po-
derá o legislador indicar as regras corretas e justas para a convivência
humana.

18
JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira. Bobbio e a filosofia dos juristas. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p. 44.
75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil. X ed. São Paulo:


Saraiva, 1999.
CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder , ideologia e estado contemporâneo.
Florianópolis: Diploma Legal, 2001. 283p.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 8ª ed. Coimbra: Armênio
Amado. 1987. 201p.
HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia críti-
ca do direito e do estado. Trad. Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991.
404p.
HOLBACH, Baron de. Ensayo sobre las preocupaciones. Buenos Aires:
Editorial Kier, 1974. 187p.
JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira. Bobbio e a filosofia dos juristas.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. 159p.
LOPES,Emílio Mira y. Manual de psicologia jurídica. Campinas: Péritas
Livros, 2000. 308p.
MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direi-
to. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 694p.
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e
teoria geral do estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 183p.
76
77

A DENÚNCIA ESPONTÂNEA TRIBUTÁRIA


E A EXIGÊNCIA DA MULTA DE MORA

Ivo Zanoni
Fiscal de Tributos Estaduais - SC

SUMÁRIO
Introdução
1. Obrigação tributária.
1.1. Estado.
1.2. Tributo e obrigação tributária.
1.3. Hipótese de incidência tributária e fato gerador.
1.4. Obrigação principal e obrigação acessória.
1.5. Crédito tributário.
2. Sanção tributária.
2.1. Ilícito tributário e infração tributária.
2.2. Conformação normativa da sanção tributária.
3. Multa pecuniária e outros acréscimos legais
3.1. Juros e correção monetária.
3.2. Multa por infração tributária.
3.3. Multa de mora.
4. Casos de exclusão da multa
4.1. Exclusão da multa como incentivo ao pagamento.
4.2. Exclusão da multa pela denúncia espontânea.
Considerações finais.

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 77 a 103
78

INTRODUÇÃO

No presente artigo, formula-se uma crítica metódica da matéria


destacada, relacionada aos fundamentos da exigência da multa de mora
no contexto da denúncia espontânea tributária.
O Código Tributário Nacional prevê a exclusão da responsabilida-
de pela infração, na ocorrência da iniciativa do sujeito passivo, denomi-
nada denúncia espontânea, antes de qualquer procedimento fiscal.
Tal procedimento a posteriori, nos termos do artigo 138, daquele
código, exige a regularização formal, no caso de infração acessória, e o
pagamento do tributo devido, com juros e correção monetária, em se tra-
tando de infração à obrigação de pagar tributo.
Uma pré análise do problema da aplicação da penalidade, conduz
o pesquisador a considerar inicialmente a hipótese de que, para aplica-
ção da multa tributária, é preciso que preexista uma iniciativa do agente
fiscal, visando constatar e autuar uma irregularidade. A aplicação da
multa por pagamento de tributo fora do prazo é exceção a esta regra e
não exige esta formalidade, por já pressupor a iniciativa do contribuinte
para efetivação do pagamento, antes da ação do aparato fiscal. Por este
entendimento, todo pagamento fora do prazo legal sujeita-se ao acrés-
cimo da multa de mora, se dentro da competência constitucional da
respectiva unidade federativa (União, Estado, Distrito Federal ou Mu-
nicípio), foi estabelecida legalmente aquela (multa moratória) sanção
para o procedimento irregular de pagar tributo sem observância do pra-
zo normativo.
Partindo-se das noções elementares sobre o Estado, a obrigação
tributária, o tributo, a hipótese de incidência, o fato gerador e o crédito
tributário, analisa-se a origem da necessidade social da exigência coerci-
tiva e a finalidade do tributo, o nascimento da obrigação tributária a partir
do fato gerador e a constituição do crédito tributário pelo lançamento.
Seqüencialmente, a abordagem temática desloca-se para a sanção
tributária, que é conseqüência da prática do ilícito, tendo-se este como
gênero da infração tributária.
De interesse a passagem pela conformação normativa da sanção
tributária, com o desdobramento para as categorias multa pecuniária, juros
de mora e correção monetária, necessários à seqüência analítica do tema.
79

Ao final, são abordados os casos de exclusão da multa tributária, a


anistia, a moratória e, com maior ênfase, a denúncia espontânea e seus
efeitos jurídicos, notadamente sobre a multa de mora.

1.OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

1.1. O ESTADO

Na medida em que os indivíduos, agrupados, organizaram-se es-


pontaneamente, ou submeteram-se a uma vida em comum, surgiu um
poder superior necessário à segurança individual e coletiva dos membros
do grupamento e garantia da obediência às regras mínimas de convivên-
cia, com relevância posterior relacionada ao respeito ao direito de propri-
edade.
Engels, na obra “A origem da família, da propriedade privada e do
Estado”, afirma não ser o Estado um poder que se impôs de fora para
dentro: “É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um de-
terminado grau de desenvolvimento...”1 .
A sociedade, formada por classes, houve por bem criar um ente,
orientado num sistema de leis, que resguardasse a segurança externa e
interna, aquela contra o invasor estrangeiro e esta contra as ameaças à
vida e à propriedade privada, advindas do entrechoque entre as classes
(dentro da própria sociedade).
No direcionamento proposto ao tema em foco, o direito, posto e
tutelado pelo poder estatal, é abordado principalmente sob o ponto de
vista normativo, como “ordem normativa da conduta humana, ou seja,
um sistema de normas que regulam o comportamento humano”2 , mor-
mente em se tratando regras de interesse público ou social.
Para conseguir realizar seu objetivo de promover o bem comum, o
Estado exerce funções a serem custeadas com recursos financeiros de
diversas origens, entre as quais, destaca-se aquela advinda da imposição
tributária
1
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 14
ed. Trad. Landro Konder. Rio: Bertrand Brasil, 1997. p.191.
2
Conforme KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. Trad. João Baptista Ma-
chado. S. Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 5.
80

É o direito tributário que irá tratar da matéria relativa à relação


jurídica entre o Estado e as pessoas, com vistas à obtenção coativa dos
recursos estabelecida na norma tributária.

1.2. TRIBUTO E OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

Parte-se do tributo e da obrigação tributária visando, progressiva-


mente, a abordagem da sanção decorrente da norma impositiva.
São questões de suma importância para a aplicação da sanção tri-
butária: o seu regime jurídico, princípios constitucionais legislativos, cri-
térios hermenêuticos, e regras adjetivas presidem sua aplicação, e as rela-
ções entre essas sanções e as pretensões jurídicas a que associadas.
Ao prefaciar a obra “Da Sanção Tributária”, de autoria de Martins,
a propósito da sanção tributária, Ataliba expõe que “bem ou mal – e ain-
da que sob a instância de responder a casos concretos – a jurisprudência
tem desenvolvido excelente esforço para responder a tais questões. As-
sim também os órgãos fiscais de julgamento e consulta. O material abun-
dante assim produzido padece dos males da visão parcial e episódica,
sofre das deficiências próprias de preocupação imediatista”3 . Uma visão
mais sistemática no trato da matéria, tanto de parte do jurista tributário,
como de parte do julgador de lides fiscais, é recomendada por Ataliba.
Dentro desta abordagem, faz-se uma polarização entre os dois la-
dos da relação jurídica tributária: fisco e contribuinte.
A obrigação tributária origina-se da norma impositiva. Esta impo-
sição é elemento comum dos tributos, como também o é sua instituição
em função do interesse público.
Cumpre ressaltar, pela sua importância na presente análise, o con-
ceito constante do artigo 3º, do Código Tributário Nacional, no aspecto
do Tributo como prestação pecuniária compulsória legalmente instituída
e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
A existência do tributo estabelece a relação jurídica entre a pessoa
política (sujeito ativo) e pessoa do contribuinte (sujeito passivo), deno-
minada obrigação tributária.
3
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. S. Paulo: Saraiva, 1980.
p.XI.
81

A obrigação tributária nasce do elemento dinâmico da regra jurídi-


ca, que é o fato gerador real.
O tributo e seu conceito, o fato típico (inapropriadamente chama-
do de fato gerador), e o texto da norma são elementos estáticos, no mo-
mento do surgimento da obrigação tributária.
Para se detectar a atuação dinâmica da regra jurídica, Becker suge-
re que se imaginem filmados os seus passos, tendo-se, como resultado,
uma seqüência em que, em suas palavras, acontecem três resultados ob-
servados:
a) a realização da hipótese se incidência, isto é, a hipótese deixa de
ser hipótese, porque se realizou, porque ocorreu;
b) a incidência da regra jurídica sobre a hipótese de incidência rea-
lizada, juridicizando-a pela incidência;
c) a irradiação da eficácia jurídica (os efeitos jurídicos; as conseqü-
ências da incidência) 4 .
Em suma, sendo o tributo elemento estático da norma, a obrigação
tributária é uma decorrência dinâmica da incidência da norma sobre o
fato. Crédito tributário é o direito que se contrapõe ao dever jurídico con-
tido na obrigação tributária principal.
A seguir, passa-se a analisar a hipótese de incidência, cuja ocorrên-
cia no mundo fático é condição sine qua non para o surgimento da obriga-
ção tributária.

1.3. HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA E FATO GERADOR

Gomes de Sousa assinala que a obrigação tributária principal surge


juntamente com a ocorrência do fato gerador e, para o tributo ser cobra-
do, torna-se necessário o lançamento. Na lei estão: o tributo, a hipótese
de incidência e o contribuinte, em abstrato. O fato gerador e o lançamen-
to são concretos.
Ataliba, que dedicou uma obra especificamente à categoria hipó-
tese de incidência tributária, impõe com sua autoridade técnica, uma ra-

4
BECKER , Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3 ed. S. Paulo: Le
Jus, 1998. p. 57.
82

dical diferenciação entre esta e o fato gerador, a contrário senso da refe-


rência feita no texto do CTN5 .
No direito tributário, a hipótese de incidência é uma descrição
legal prévia, abstrata, em que deve se enquadrar o fato, resultando na
geração do tributo devido, no sentido de obrigação tributária.
O raciocínio é o mesmo que o aplicado ao direito penal,
eqüivalendo, neste ramo do direito, à hipótese de incidência, o tipo
penal e, ao fato gerador, a ocorrência real enquadrada na hipótese
legal.
A lei, no intuito de gerar receita para manutenção do Estado,
estabelece um universo delineado no tempo e no espaço, dentro do
qual, certos fatos com determinada conformação, que venham ocor-
rer na vigência da norma, gerarão, para seus agentes, a obrigação de
pagar o tributo.
A hipótese de incidência está ligada estritamente ao princípio
da legalidade. Nenhuma pessoa pode ser compelida a pagar um tribu-
to ou a cumprir um dever de natureza instrumental no campo tributá-
rio, sem que uma lei tenha previamente criado tal tributo ou obriga-
ção acessória e definido as respectivas hipóteses de incidência.
Dentro do princípio da legalidade tributária se enquadra não só
a criação e exigência do tributo, mas também o seu aumento ou redu-
ção, que deve, necessariamente, decorrer de lei editada pela pessoa
política tributante.
A obrigação principal é aquela que corresponde ao dever de pa-
gar o valor do tributo. Trata-se do dever de dar uma determinada im-
portância compulsoriamente ao erário, pela pessoa obrigada em fun-
ção de sua vinculação ao fato gerador.
A obrigação acessória vem a ser a obrigação não corresponden-
te a um dever de dar dinheiro ao Estado, mas de fazer algo determina-
do em lei, tal como apresentar um formulário informativo de seu mo-
vimento econômico no exercício findo, ou de escriturar livros fiscais
obrigatórios, ou ainda de prestar informações no formato magnético
ao Fisco, sobre a sua atividade econômica.

5
Ver: ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5 ed. S.Paulo: Malheiros,
1998.
83

Se não for cumprida a obrigação acessória, poderá esta conver-


ter-se em crédito tributário, pelo lançamento da multa pecuniária de-
corrente do descumprimento.
A Obrigação Acessória é acessória em relação à existência do tri-
buto e não da importância a pagar relativa ao tributo. Tanto assim que,
pagando-se ou não o tributo, a obrigação acessória persiste. Entretanto
ela deixará de existir se for extinto por lei o tributo a que ela se relaciona.
De especial relevância citar-se que a obrigação de pagar penalidade
pecuniária não é considerada pelo Código Tributário Nacional como obri-
gação acessória, tendo aquela como fato gerador a infração à lei, e esta
sendo decorrente de exigência legal.

1.4. CRÉDITO TRIBUTÁRIO

Quem institui o tributo é o ente tributante, ou seja, a pessoa políti-


ca designada na Constituição, que pode ser a União, o Estado, o Distrito
Federal ou o Município, dentro de sua plena competência e autonomia
constitucionais, que abrangem também as regras quanto ao pagamento
(prazo) e as hipóteses de incidência das sanções (multas).
O crédito tributário tem sentido dimensionalmente diferente do tri-
buto. O tributo é a obrigação jurídica instituída por lei, de dar dinheiro ao
Estado.
O crédito tributário é o valor já constituído e quantificado em favor
do Estado, sob a forma de dívida tributária da pessoa que promoveu a
ocorrência do fato gerador, dentro da hipótese de incidência tributária.
Para a constituição do crédito tributário é necessária a atividade adminis-
trativa fiscal do lançamento.
Pelo lançamento, o funcionário autorizado a efetuá-lo, designado
como agente fiscal, identifica o sujeito passivo (devedor), quantifica o
valor do tributo, dentro dos critérios da lei, e promove a notificação. A
própria lei ordinária deve prever um prazo limite para que o devedor do
crédito tributário promova o respectivo pagamento.
O lançamento vem a ser, mais que uma atividade, o procedimento
resultante desta atividade, o assentamento formal que constitui efetiva-
mente o crédito tributário.
84

2. SANÇÃO TRIBUTÁRIA

2.1. ILÍCITO TRIBUTÁRIO E INFRAÇÃO TRIBUTÁRIA

Existem autores que chegam a considerar a norma impositiva do


tributo como norma de rejeição social. Entretanto, tal norma poderia ser
considerada de rejeição social no tempo e espaço em que ela visasse a
exclusão da maioria da população de um país, do universo dos destinatá-
rios dos benefícios da sociedade organizada, e ao mesmo tempo, se o
tributo não fosse considerado condição da própria existência da socieda-
de pacificamente organizada.
Data venia, a rejeição, se existente, em alguns casos tornar-se-ia cole-
tiva, a respeito da norma, se coletiva também fosse a falta de conhecimen-
to dos indivíduos a respeito da finalidade do tributo que, em última análise,
é responsável pela garantia e proteção ao próprio direito individual.
Habermas tece oportuna consideração ao afirmar que “em nossos
mundos da vida, compartilhados intersubjetivamente e que se sobrepõem
uns aos outros, está instalado um amplo pano de fundo consensual, sem o
qual a prática cotidiana não poderia funcionar de forma nenhuma” 6 .
A rejeição não é de cunho social, mas localiza-se, com se verá, no
âmbito da esfera vital primitiva, natural, do indivíduo, que a sente, mas a
deixa de lado para poder viver convenientemente e, porque não dizer,
confortavelmente, em sociedade.
Em muito esclarece a observação de Villegas, que bem enquadra o
posicionamento adotado pelos adeptos da nominada doutrina da rejeição
social:
Durante muito tempo, houve resistência ao tributo, por ser
ele considerado fruto de desigualdade, privilégio e injustiça. O cum-
primento de obrigações tributárias representava um sinal tangível
de submissão e servidão do indivíduo diante do Estado.
...
Modernamente, entretanto, a doutrina variou fundamental-
mente quanto à concepção do imposto que – de simples meio para

6
HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Trad. Flávio Beno Siebeneicher. Rio:
Tempo Brasileiro. p. 105.
85

obter recursos – passou a constituir-se em elemento essencial para a


existência do Estado e a obtenção de suas finalidades.
...
O clima de ‘tolerância culpável’ começa a desaparecer e se
transforma gradualmente em repúdio aos infratores fiscais, que
burlam a sociedade e que incrementam os encargos fiscais dos ou-
tros, ao diminuírem ilegitimamente os próprios 7 .
Schmolders, citado por Oliveira, assinala que “a resistência ao tribu-
to, em todas as suas manifestações, coloca-se na esfera vital primitiva do
homem, em seus instintos e impulsos naturais, cuja força é incomparavel-
mente maior e diametralmente oposta ao cumprimento dos deveres tributá-
rios, conhecidos racionalmente, mas não vividos emocionalmente”8 .
Feitas tais considerações, têm-se que ilícito tributário é qualquer
conduta contrária a preceito imperativo da norma tributária. Tal conduta
visa excluir, diminuir o valor do tributo, ou postergar o pagamento do
montante devido.
A prática do ilícito tributário, sendo uma conduta contrária à lei tribu-
tária, sujeita o infrator à sanção jurídica, que abrange tanto os fatos contrários
à lei tributária quanto aqueles configurados como crimes pela lei penal.
A abordagem aqui adotada encaminha o assunto para a referência
aos princípios basilares que informam o Direito Tributário.
No Brasil, são adotados alguns princípios (citando-se apenas aque-
les que guardam maior relação com a matéria destacada) que foram ela-
borados no âmbito do Direito Tributário e que lhe são próprios.
Menciona-se, por exemplo, o princípio da anterioridade tributária,
configurado no artigo 150, inciso III, alínea b, da Constituição vigente,
que ressalva não ser permitido cobrar tributos no mesmo exercício da
publicação da Lei que os instituiu ou majorou.
Igualmente, são afetos à relação jurídica tributária, os princípios
constitucionais da capacidade contributiva (Constituição: artigo 145, §
1º ) e o da proibição de cobrar tributos com efeito de confisco (Constitui-
ção: artigo 150, IV) e por sua relevância, o princípio da legalidade, pelo
7
VILLEGAS, Hector. Direito penal tributário. Trad. Elisabeth Nazar et alii. S. Pau-
lo: Resenha Tributária, 1974. p. 21.
8
OLIVEIRA, Fábio Leopoldo de. Curso expositivo de direito tributário. S. Paulo:
Resenha Tributária, 1976. p. 385.
86

qual o Tributo só poderá ser criado ou aumentado por Lei (Constituição:


art. 150, I), o princípio da irretroatividade, que impõe, só se aplicar a Lei
tributária aos fatos geradores ocorridos após o início de sua vigência (Cons-
tituição: art. 150, III, a), o princípio da isonomia, pela qual a Lei não
poderá dar tratamento desigual aos contribuintes que se encontrem em
situação equivalente (Constituição: art.150,II).
A competência tributária diz respeito ao poder de instituir, de
cobrar, de fiscalizar tributos e de legislar sobre a matéria.
São competentes tributariamente as pessoas políticas, personifi-
cadas na União, Estados, Distrito Federal e municípios, cujas leis res-
pectivas serão elaboradas por seus poderes legislativos, ressalvada a
competência para iniciativa do Poder Executivo, em razão da matéria.
A recepção do Código Tributário Nacional, sob este aspecto,
deve ser vista com reservas e adotada até onde não conflite com a
Constituição de 1988, mormente no que tange à competência tributá-
ria das pessoas políticas.
A menção a estes aspectos legais do Direito Tributário brasilei-
ro é feita no intuito de esclarecer que qualquer ato contrário a tais
princípios ou institutos, tanto de parte do sujeito ativo, com o do su-
jeito passivo, podem ser classificados como ilícitos tributários, por
ferirem não só a Lei em sentido estrito, mas a Lei em seu sentido mais
genérico, em forma de princípios constitucionais.
A infração tributária abrange tão somente as condutas que fe-
rem a lei tributária, não se ingressando no mérito de terem ou não
repercussão penal. A infração tributária, geralmente, está tipificada
na Lei de competência da pessoa política tributante (que tem a com-
petência tributária).
Tem-se, assim, de um lado, a obrigação tributária e, de outro, a sanção.

2.2. CONFORMAÇÃO NORMATIVA DA SANÇÃO TRIBUTÁRIA

A compreensão da ordem jurídica explica a existência das sanções


que, para Kelsen, “...são estabelecidas a fim de ocasionar certa conduta
humana que o legislador considera desejável” 9 .
9
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 2 ed. Trad. Luís Carlos Borges.
S. Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 53.
87

A implicação da conduta contrária a um dever ser da norma tribu-


tária sujeita-se à sanção tributária, enquanto que a conduta que, mesmo
já ferindo a norma tributária venha ferir os preceitos da Lei penal, sujeita-
se adicionalmente às sanções penais.
A sanção tributária decorre da norma e é uma resposta jurídica pre-
vista na lei tributária, para ser aplicada à pessoa que praticar a infração
tributária. Ela poderá ter natureza pecuniária ou não e pode se constituir
no não fornecimento de certidão negativa à pessoa que praticou a infra-
ção ou pode ser representada por uma multa.
A multa fiscal é uma das espécies do gênero sanção10 .

3.MULTA PECUNIÁRIA E OUTROS ACRÉSCIMOS LEGAIS

3.1.JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA

Os juros e a correção monetária não têm caráter de sanções tributá-


rias, mas são encargos incidentes sobre o descumprimento da obrigação
de pagar tributo. Visam, independentemente das funções indenizatórias,
que ocorrem à parte, apenas repor o custo financeiro do dinheiro que o
contribuinte deixou de incrementar nos cofres públicos.
Os juros representam um encargo que visa repor o custo
remuneratório dos recursos que financiam a atividade pública, proporcio-
nalmente ao valor que foi recolhido a destempo.
Sobre a correção monetária, instituída pela Lei n. 4.357, de 16 de
julho de 1964, Carvalho leciona taxativamente ser incorreto incluir entre
as sanções que incidem pela falta de pagamento do tributo, em qualquer
situação, a conhecida figura da correção monetária do débito. Representa
a atualização do valor da dívida, tendo em vista a desvalorização da mo-
eda, em regime econômico onde atua o problema inflacionário11 .
Assim, a finalidade da correção monetária é atualizar o valor do
crédito tributário para que, na data do pagamento, represente o mesmo
valor, em termos reais, devido no vencimento da obrigação tributária.
10
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 1 ed. Rio: Fo-
rense, 1987. p. 714.
11
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 8 ed. S. Paulo: Saraiva,
1996. p. 356.
88

3.2. MULTA POR INFRAÇÃO TRIBUTÁRIA

A multa por infração tributária pode decorrer tanto do


descumprimento da obrigação principal, como do descumprimento da
obrigação acessória e varia em valor e percentual, conforme os tipos de
infração enumerados exaustivamente na lei tributária (numerus clausus).
Entretanto, este descumprimento reveste-se de diversas facetas,
sendo numerosos os fatos ou atos a que a lei tributária atribui a caracte-
rística de geradores da imposição de multa. Estes fatos geradores seriam
os comportamentos lesivos aos deveres estipulados na lei tributária.
É importante, desde logo, uma abordagem da multa tributária sob
os dois aspectos que interessam ao encaminhamento do tema ora tratado:
o aspecto punitivo e o aspecto indenizatório.
As funções indenizatórias e as punitivas, também diferentes entre
si, cabem às multas moratórias e multas punitivas, que visam, aquela in-
denizar os prejuízos causados à administração pública, e esta, simples-
mente punir um comportamento socialmente indesejável.
Na corrente que defende o posicionamento de que a multa de mora
não possui caráter punitivo, encontram-se também tributaristas de reno-
me como Carvalho, para quem “as multas de mora são também penalida-
des pecuniárias, mas destituídas de nota punitiva” 12 , mencionando-se
ainda Denari, para quem:
... a questão não é meramente acadêmica, pois nosso Código
Tributário Nacional, no parágrafo único do art. 134, imprime à
responsabilidade tributária diversidade de tratamento, quer se trate
de multa moratória ou punitiva, além do que, as Súmulas 191 e 192
da Suprema Corte chegaram a distinguir as multas simplesmente
moratórias das multas punitivas, com a finalidade de exonerar a
massa falida da responsabilidade pelo pagamento destas últimas 13 .

3.3. MULTA DE MORA

A multa de mora é estabelecida na lei ordinária da pessoa política


tributante, com caráter de sanção pecuniária acrescida ao valor do tributo
não pago no prazo legal.
12
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit. p. 354.
13
DENARI, Zelmo et alii. Infrações tributárias e delitos fiscais. 3 ed. S. Paulo: Saraiva, 1998. p. 22.
89

No entanto a genuína multa de mora não se confunde com a multa


punitiva por falta de pagamento, aplicada pelo agente fiscal contra a pes-
soa do devedor do tributo, tratando-se esta última, de multa pela omissão
de uma prestação obrigatória prevista em Lei. A multa por falta de paga-
mento também é proporcional ao valor do crédito tributário e tempo de
atraso e é expressa em moeda corrente do país.
A multa desta espécie é excluída pela denúncia espontânea, porém
é substituída pela multa de mora sempre que o pagamento se realizar
após o vencimento do prazo limite estipulado em lei. Isto porque o paga-
mento extemporâneo do tributo é um procedimento irregular, é falta, é
omissão sancionada, seguindo o mesmo raciocínio de ilicitude das de-
mais infrações, quando previsto como infração na lei de competência da
pessoa política tributante.
Uma vez não pago no prazo, a incidência da multa de mora é auto-
mática, não dependendo de autuação do agente fiscal, por pressupor o
ato do pagamento extemporâneo.
O pagamento de tributos fora do prazo, sem a multa de mora, mes-
mo com a denúncia espontânea, como querem aqueles que compreen-
dem a multa de mora como punitiva, retiraria a força coercitiva da norma
fixadora de prazo, que cairia na completa ineficácia.
É clássica a assertiva de que “a eficácia é uma condição de valida-
de” , decorrendo daí que uma interpretação da norma que não traduz o
14

comportamento prático adotado em função dela, ou está equivocada ou


então indica que a norma não é válida.
A postura de dispensa da multa de mora, no caso de denúncia es-
pontânea, pode revelar-se tecnicamente incoerente, na medida em que
sugere, de parte do obrigado, que pagar tributo no prazo não seria mais
uma obrigação, mas uma faculdade.
Os tributaristas que defendem a exclusão da multa de mora, em
regra, consideram (sabendo-se inexistir tal repercussão prática) que o efeito
da exclusão da multa de mora pela denúncia espontânea, seria de que os
contribuintes em atraso com o pagamento de tributos supostamente vies-
sem em massa acertar suas pendências com o fisco.
A realidade mostra que freqüentemente os administradores das
empresas, são pressionados tecnicamente a violar normas tributárias sem-
14
KELSEN, Teoria geral do direito e do Estado. Cit. p. 46.
90

pre que tal seja economicamente proveitoso e se é também verdade que


“o direito tem poucas possibilidades de vingar quando entra em conflito
direto com motivações de natureza lucrativa”15 , é igualmente provável a
possibilidade de outra reação, no sentido de que um maior número de
contribuintes deixaria de pagar o tributo no prazo, ao premiar-se tal com-
portamento irregular com aplicação apenas remota e eventual de uma
multa, no caso do agente fiscal conseguir detectar a falta e emitir a res-
pectiva autuação.
Sem a sanção (multa de mora) que obriga o contribuinte faltoso a
proceder à reposição do dano causado ao Estado, haveria indevida van-
tagem prática, de enriquecimento sem causa, em não se observar o prazo
para pagamento do tributo.
Ao se aceitar a dispensa da multa de mora na denúncia espontânea,
estaria instalada a anarquia tributária e ninguém mais teria obrigação de
pagar tributo no prazo, vez que o aparato fiscal é diminuto frente ao nú-
mero de contribuintes, ficando dificultada sobremaneira a própria exis-
tência do Estado, frente à facilidade. A orientação referida, que advoga a
dispensa da multa de mora no contexto da denúncia espontânea, é inse-
gura do ponto de vista legal.
Até mesmo porque, como assegura Teubner, “o abandono da atual
normativização das condutas, no sentido de expectativas de comporta-
mento imperativas, poderia decerto, e por outro lado, produzir graves
conseqüências para o funcionamento das normas jurídicas, cuja validade
passaria assim a estar dependente do livre-arbítrio de seus próprios desti-
natários”16 .
Por outro lado, caso da falência, se o Supremo Tribunal Federal
revogou o entendimento das súmulas 191 e 192, através da súmula 56517 ,
não estendeu a interpretação aos casos de denúncia espontânea fora do
âmbito falencial.

16
Op. Cit. p. 188.
17
SÚMULA 191: “Inclui-se no crédito habilitado em falência a multa fiscal simples-
mente moratória”. SÚMULA 192: “Não se inclui no crédito habilitado em falência a multa
fiscal com efeito de pena admnistrativa”. SÚMULA 565: “A multa fiscal moratória constitui
pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência”. Fonte: ASSOCI-
AÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO. Súmulas. 1994. p. 61-164. 15 Ver
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Trad. José Engrácia Antunes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989. p. 160, 183.
91

Para a denúncia espontânea, embora existam precedentes judiciais


admitindo a dispensa da multa de mora, não está firmada uma interpreta-
ção sumular, com efeito erga omnes. Deduz-se que tal não ocorreu pela
previsão, evidente ao mais bisonho dos discernimentos, dos efeitos catas-
tróficos que causaria na arrecadação de todos os tributos.
E por que não se muda a lei (CTN), esclarecendo-se de vez a res-
peito da dispensa geral de multas no caso de denúncia espontânea?
A explicação, além da realidade prática já exposta, está no fato de
que as pessoas políticas tributantes não podem nem devem, em nome do
princípio federativo, abrir mão de sua competência constitucional para o
estabelecimento do prazo para pagamento do tributo e na fixação de multas
aos contribuintes que não observarem tal prazo.
A partir do momento em que a União, os Estados, o Distrito Fede-
ral e os municípios abrirem mão do rigor no prazo para pagamento de
tributos, é provável que passarão a enfrentar dificuldades maiores para
arrecadá-los.
Derzi menciona que “... se a denúncia espontânea afasta a respon-
sabilidade por infrações, é inconcebível a exigência do pagamento de multa
moratória, como faz a administração fazendária, ao auto denunciante” 18 .
Ao tecer tal consideração, a referida autora está contemplando a
situação de não aceitação, na prática, pelo fisco, de pagamentos fora do
prazo sem a multa de mora e reconhecendo a realidade da ineficácia do
entendimento de que a multa de mora não é exigível no caso de denúncia
espontânea.
Se o fisco assim age (exigindo a multa de mora no pagamento do
tributo fora do prazo legal), não o faz ao arrepio da lei, mas porque a
lei ordinária que instituiu o tributo estabelece prazo para satisfação
da obrigação tributária que, se inobservado, implica infração e gera a
sanção tributária conhecida como multa de mora.
Aliomar Baleeiro, na mesma obra anotada por Derzi, acolhe a
possibilidade da exigência da multa de mora, ao fazer menção ao Re-
curso Extraordinário n° 70.757, de 29.05.1973 (Julgamento 29/05/
1973 – 1a Turma. DJ, 05.10.73), do qual foi o ministro relator, repro-

18
Ver nota inserida em: BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11 ed.
Rio: Forense, 2000. p. 769.
92

duzindo, a propósito da responsabilidade por sucessão (art. 112, CTN)


que: “Se o sujeito passivo pagou o tributo espontaneamente, embora
fora do prazo, mas antes da ação fiscal, cabe a multa de mora e não a
que pune a sonegação”19.
Destarte, é razoável entender-se que a multa de mora propria-
mente dita tem como fato gerador o pagamento fora do prazo, já que
a mora refere-se ao pagamento em si.
Assim, a condição da existência desta espécie de multa de mora
é o pagamento, já que ela é calculada proporcionalmente ao tempo
decorrido entre o vencimento (prazo limite estabelecido em lei para
pagamento do tributo) e a data do efetivo pagamento.
E, uma vez transcorrido o prazo legal para pagamento do tribu-
to, pelo menos quando a lei expedida pela entidade tributante assim
estabelecer, dentro de sua competência constitucional, sempre haverá
a incidência da multa de mora. A irregularidade (ilicitude), neste caso,
reside no pagamento fora do prazo. A aplicação desta multa independe
da atividade administrativa do agente fiscal com vistas à sua cobran-
ça, ela decorre da lei e pressupõe apenas que o pagamento seja efetu-
ado fora do prazo.
É perceptível a natureza indenizatória da multa até pela sua
proporcionalidade com o montante do tributo que deixou de ser reco-
lhido aos cofres públicos (erário).

4. CASOS DE EXCLUSÃO DA MULTA

Neste capítulo serão tratados os dois casos mais importantes de


exclusão da multa em si, deixando-se de lado os casos de extinção do
crédito tributário, como a remissão, a prescrição e a decadência por serem
impertinentes ao destaque abordado.

4.1. EXCLUSÃO DA MULTA COMO INCENTIVO AO PAGAMENTO

O incentivo ao pagamento de tributos em atraso pode justificar-se


por:

19
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Cit. p. 769.
93

a) urgente necessidade pública, geralmente relacionada à formação


de disponibilidade financeira para fazer frente a compromissos inadiáveis
assumidos pela administração com obras, programas de governo ou des-
pesas com outros encargos públicos;
b) dificuldade dos contribuintes em saldar seus débitos para com a
Fazenda Pública, decorrente de calamidade pública ou situação de emer-
gência que inviabilize o pagamento regular dos tributos a um universo
limitado de contribuintes afetados pelo mesmo fenômeno.
A fórmula adotada para fomentar a receita ou diminuir a
inadimplência é a edição de lei específica, dentro das condições e da com-
petência constitucionalmente prescritas.
A Constituição de 1988, no artigo 24, em matéria de repartição
vertical de competência, produziu inovações, ao atribuir poder e legitimi-
dade às pessoas políticas para legislar de modo pleno, mesmo diante da
inexistência de normas gerais. Aprimorou, assim, o federalismo clássico,
que tende a evoluir para um federalismo de equilíbrio20 .
A lei complementar está adstrita a estabelecer normas de caráter
geral, não podendo, por conseqüência, nem interferir nem inovar dentro
da matéria de competência privativa do ente tributante.
Para Fonseca Reis: “Qualquer interpretação que busque a definição
do conteúdo e alcance dessas normas gerais deverá preservar a autono-
mia financeira, isto é, a repartição de competência tributária e o seu exer-
cício de modo pleno” 21 .
O constituinte, além da repartição das competências tributárias,
estabeleceu princípios garantidores do estatuto do contribuinte, aceitan-
do ser o crédito tributário e penalidades bens indisponíveis, fixando no §
6º do art. 150 que a remissão e a anistia somente podem ser concedidas
através de lei específica federal, estadual ou municipal.
Pode-se daí deduzir que tal matéria não poderá ser objeto de norma
geral.
É vedado conceder anistia, remissão a não ser através de lei especí-
fica. Respeitada a autonomia das entidades políticas, no regime federati-
vo brasileiro, se a penalidade decorre de preceito de lei estadual, se o
20
REIS, Élcio Fonseca. Federalismo Fiscal - Competência concorrente e normas
gerais de Direito tributário. B. Horizonte: Mandamentos , 2000. p. 69.
21
REIS, Élcio Fonseca. Federalismo fiscal Cit. p. 205.
94

crédito tributário resulta da incidência de lei ordinária estadual, lei fede-


ral não pode conceder anistia, nem remissão. Tal só poderia ocorrer no
âmbito da competência para os tributos federais.
Fica evidente, destarte, que as normas constantes do Código
Tributário Nacional, especialmente quando tratam de exclusão de res-
ponsabilidade, devem limitar-se à punibilidade subjetiva criminal, so-
bre a qual é competência da União legislar, não se podendo admitir
que a recepção de tais normas, como o caso do artigo 138, numa ver-
dadeira anistia em abstrato, venha excluir a responsabilidade objetiva,
dispensando o pagamento de todas as multas tributárias aplicáveis por
normas que se situam dentro da competência privativa das pessoas
políticas tributantes, pelo menos quando estas tenham emitido leis
tratando do assunto ou estabelecendo sanções que garantem o cum-
primento da obrigação tributária.
A anistia é a simples dispensa do pagamento dos acréscimos legais
ao Tributo, nos casos estabelecidos em uma Lei específica, como parte da
política fiscal do Estado, cujo objetivo, em regra, é promover o ingresso
de recursos para incremento da receita tributária em um determinado exer-
cício financeiro.
A anistia não deve ser confundida com a isenção (= dispensa de
obrigação tributária, mantendo-se a atividade isenta dentro do campo de
incidência) e com a remissão (= extinção, perdão da obrigação tributária
através de lei específica).
As anistias e remissões, em respeito ao princípio da estrita legalida-
de (art. 97, VI do CTN), só poderão ser concedidas por meio de lei edita-
da pela pessoa política tributante.

4.2. EXCLUSÃO DA MULTA PELA DENÚNCIA ESPONTÂNEA

A denúncia espontânea exclui a responsabilidade pela infração. Esta


hipótese de exclusão da multa punitiva está prevista no artigo 138, do
Código Tributário Nacional.
A consideração analítica do tema exige uma visão sistemática.
Considera-se, destarte, equivocada a exegese literal do artigo 138,
do CTN, sendo imprescindível uma interpretação sistemática com o art.
95

161 da mesma lei e os artigos 146, 150, § 6º e 155,§ 2º, inciso XII, da
Constituição Federal.
Para Amaro, “Considera-se denúncia espontânea o procedimento
adotado que regularize a obrigação que tenha configurado uma infração,
dispensada a comunicação da correção da falta...”22 .
Amaro coloca aqui uma interrogação: “Poder-se-ia, então, concluir
que a multa de mora teria sido proscrita pelo Código Tributário Nacional,
sendo inexigível em qualquer situação? Parece que não, pois o próprio
Código se reporta às multas de mora no parágrafo único do art. 134, para
dizer que, nas hipóteses ali referidas, somente são devidas penalidades de
caráter moratório”23 .
A fazenda pública vem desposando o entendimento de que a falta
de pagamento de tributo não exclui a responsabilidade do devedor em
pagá-lo com os acréscimos legais, inclusive o da multa moratória.
A multa de mora tem mais relação com o valor do tributo e o lapso
de tempo transcorrido, que com a conduta do contribuinte.
É Carvalho quem ensina: “as multas de mora são também penali-
dades pecuniárias, mas destituídas de nota punitiva. Nelas predomina o
intuito indenizatório, pela contingência de o Poder Público receber a
destempo, com as inconveniências que normalmente acarreta, o tributo a
que tem direito”24 .
Entre essas sanções, como se verá, está aquela que incide sobre o
comportamento, considerado irregular, de pagar-se o tributo fora do prazo,
para o qual fixa-se a multa de mora proporcional ao atraso e independente
de lavratura do auto de infração ou de notificação pelo agente fiscal.
Esta postura não exclui o benefício, entretanto, assume que existe
um prazo, ultrapassado o qual ocorre a preclusão para seu exercício
(preclusão, no sentido de perda da oportunidade para exercício de um
direito), fixado na lei ordinária que instituiu o tributo, em relação à multa
de mora, até o vencimento do tributo, considerando ser o transcurso de
tempo inexorável, retirando a eficácia do arrependimento do sujeito pas-
sivo.

22
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro.5 ed. S. Paulo: Saraiva, 2000. p. 431.
23
AMARO, Luciano. Op. Cit. p. 432.
24
CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p. 354.
96

É princípio do Direito Penal que, no arrependimento posterior, o


agente responde pelo dano já provocado.
Algumas leis, expedidas pelos entes tributantes, dentro de sua com-
petência constitucional, como por exemplo, o Estado de Santa Catarina,
prevêem como infração, ou procedimento irregular, o simples pagamen-
to extemporâneo do tributo, sujeitando-o à multa de mora proporcional
ao atraso ocorrido entre o vencimento da obrigação e a data em que for
realizado o pagamento.
É o caso da Lei estadual catarinense n° 10297, de 26 de dezembro
de 1996, que prevê um tipo de multa que coloca o tema em cheque:
Art. 53. Submeter tardiamente operação ou prestação
tributável à incidência do imposto ou recolher o imposto apurado,
pelo próprio contribuinte, ou devido por estimativa fiscal, após o
prazo previsto na legislação, antes de qualquer procedimento admi-
nistrativo ou medida de fiscalização.
Multa de 0,3 % (três décimos por cento) ao dia, até o limite
de 25% (vinte e cinco por cento) 25 .
Em relação aos tributos federais, o Decreto-Lei 1893, de 16 de
dezembro de 1981, determina em seu artigo 9º, que os créditos da fazen-
da nacional decorrentes de multas ou penalidades pecuniárias aplicadas,
na forma da lei pertinente, até a data da decretação da falência constitu-
em encargos da massa falida26 .
O Supremo Tribunal Federal expediu as súmulas 191 e 192 que
prescreviam a exigibilidade das “multas moratórias” e a exclusão das “mul-
tas punitivas”, em relação à massa falida. 27
Na discussão a respeito de ter a multa de mora caráter punitivo ou
indenizatório, a partir do Código Tributário Nacional, ninguém melhor
que o autor de seu anteprojeto, Gomes de Sousa para esclarecer: “... a
sua natureza é comparável à das indenizações por prejuízos, previstas no
direito civil, e por isso se diz que a mora é uma penalidade de caráter
civil”28 . Mais adiante, Gomes de Sousa complementa: “Justamente por
ser uma reparação do prejuízo do credor, a multa de mora é fatal, isto é,

25
ESTADO DE SANTA CATARINA. Diário Oficial. Ed. 26/12/96.
26
A respeito, ver REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 8 ed. S. Paulo:
Saraiva, 1983. p. 131 (v.1).
27
Revogadas pela SÚMULA 565. Vide item 3.3, p. 70.
97

sempre devida, desde que se verifique o atraso, independentemente dos


motivos deste”29 .
Dissertando a respeito dos efeitos do início do procedimento fiscal,
Fanucchi, em obra prefaciada por Gomes de Sousa, refere-se aos efeitos
normais ao procedimento corretivo espontâneo como sendo: “exclusão
de multas punitivas mas não das compensatórias por atraso no recolhi-
mento do tributo” 30 .
Rosa Jr., no seu extenso “Manual de direito financeiro & direito
tributário”, conclui, sobre a denúncia espontânea e seus efeitos (CTN,
art. 138): “... ficam excluídas apenas as multas punitivas, continuando o
sujeito passivo obrigado ao pagamento do tributo, juros de mora, corre-
ção monetária e multas moratórias” 31 .
Recentes acórdãos do Tribunal Regional Federal da Primeira Re-
gião, publicados no Diário da Justiça, convergem no mesmo sentido: 32
AG 1999.01.00.011466-6 /MG ; AGRAVO DE INSTRU-
MENTO; JUIZ OLINDO MENEZES (280); TERCEIRA TUR-
MA; DJ 24/03/2000 p.69; TRIBUTÁRIO. MULTA DE MORA.
DENÚNCIA ESPONTÂNEA. REGIME LEGAL. 1. A multa
de mora não é incompatível com a denúncia espontânea (art. 138 -
CTN). 2. Improvimento do agravo de instrumento.
AMS 1997.01.00.051521-0 /BA ; APELAÇÃO EM MAN-
DADO DE SEGURANÇA; JUIZA ELIANA CALMON (175 );
QUARTA TURMA; DJ 01 /10 /1999 p.332; TRIBUTÁRIO -
MORA - DENÚNCIA ESPONTÂNEA: ART. 138 DO CTN. 1.
Cobra-se neste processo multa moratória e não sanção pecuniária.
2. Inaplicabilidade do disposto no art. 138 do CTN - denúncia
espontânea. 3. Recurso improvido nos autos. Agravo de instrumento
improvido.
AMS 1998.01.00.035558-0 /MG ; APELAÇÃO EM MAN-
DADO DE SEGURANÇA; JUIZ OLINDO MENEZES (126);

28
GOMES DE SOUSA, Rubens. Compêndio de legislação tributária. 4 ed. S. Paulo:
Resenha Tributária, 1982. p.139-140.
29
GOMES DE SOUSA, Rubens. Op. Cit. p. 142.
30
FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. 4 ed. S. Paulo: Resenha
Tributária, 1986. p. 411 (v. 1).
31
ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual de direito financeiro e direito tributário.
11 ed. Rio: Renovar, 1997. p. 517.
32
Acórdãos também publicados na página da internet “http://juris.trf1.gov.br”.
98

TERCEIRA TURMA DJ 14/05/1999,p.88. TRIBUTÁRIO. DE-


NÚNCIA ESPONTÂNEA. INCIDÊNCIA DE MULTA DE
MORA. 1. A denúncia espontânea, que não exclui os juros de mora
(art. 138-CTN), também não é incompatível com a multa de mora,
que não tem caráter punitivo. O Código Tributário Nacional faz
distinção entre as penalidades punitivas e moratórias (art. 134, pará-
grafo único). 2. Improvimento da apelação da empresa. Provi-
mento da apelação da União e da Remessa.
É mais evidente a inaplicabilidade da denúncia espontânea ao caso,
por exemplo, do ICMS, quando o contribuinte já informou ao fisco atra-
vés de Guia de Informação Apuração, o valor do tributo devido, não ha-
vendo mais o que denunciar.
De outro prisma, a exclusão de multas no âmbito da denúncia es-
pontânea é regra restrita de benefício que não admite interpretação ex-
tensiva, pela indisponibilidade dos bens públicos, considerando-se ainda
o princípio do fim social da lei.
Na interpretação da norma, é de suma importância, especificamente
no campo do Direito Tributário a assertiva de Maximiliano: “o rigor é maior
em se tratando de disposição excepcional, de isenções ou abrandamentos
de ônus em proveito de indivíduos ou corporações. Não se presume o intui-
to de abrir mão de direitos inerentes à autoridade suprema”33 .
Importante de destacar-se é que deve ser adotado um tratamento dife-
rente a quem pagou o tributo fora do prazo, em relação a quem pagou no
prazo, valorizando a atitude deste último. Faz-se então um juízo de equidade.
Há uma inversão de valores quando se atribui maior benefício a
quem paga, mesmo espontaneamente, fora do prazo legal, em relação a
quem pagou dentro do prazo. A atitude do contribuinte, pagando espon-
taneamente o tributo fora do prazo na lei deve, quando muito, ser consi-
derada como atenuante na aplicação da sanção.
Além do mais, a denúncia espontânea, no direito tributário, é de
aplicação restrita a um universo privilegiado de contribuintes, mormente
os empresários, não atingindo a grande massa de assalariados que têm
seus tributos retidos na fonte, sem nenhuma concessão de prazo e fora de
qualquer possibilidade do desvio de conduta que é oportunizada ao con-
tribuinte empresarial. E a prática deste desvio de conduta, que é o paga-
33
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11 ed. Rio: Foren-
se, 1991. p. 333-334.
99

mento extemporâneo, não pode gerar benefício ao agente, em vista do


princípio universal segundo o qual a ninguém é dado beneficiar-se da pró-
pria transgressão.
O princípio da eqüidade sugere sejam tratados de maneira seme-
lhante apenas os casos que sejam realmente semelhantes.
Assim, quando a lei impõe prazos para pagamento de tributos e
multa de mora para pagamentos fora deste prazo, a situação de igualdade
entre o contribuinte que pagou fora do prazo e aquele que pagou pontu-
almente só será restabelecida após o pagamento da multa de mora e dos
demais acréscimos legais.
O Código Tributário Nacional deve ser desmistificado, e sua recep-
ção na Constituição de 1988 deve ser vista com restrição, pelo menos nos
casos em que não trata de normas gerais. No caso denúncia espontânea, o
entendimento adotado pelo signatário deste trabalho é o de que o CTN
só foi recepcionado até onde não conflite com a lei ordinária que fixa
prazo e estabelece sanções para pagamento fora do prazo. Esta lei ordi-
nária é de competência da pessoa política tributante, obedecido o princí-
pio federativo. Fora disso o CTN foi recepcionado como lei federal válida
para regular os tributos de competência da União, enquanto a mesma
União não fixar normas sobre prazo e sanções para descumprimento des-
tes prazos, aplicáveis aos referidos tributos.
Em se tratando de princípios constitucionais, o apoio da obra de
Carrazza é imprescindível:
Reforça o princípio republicano o da capacidade
contributiva... O princípio da capacidade contributiva – que infor-
ma a tributação por meio de impostos – hospeda-se nas dobras do
princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os
ideais republicanos... Intimamente ligado ao princípio da igualdade,
é um dos mecanismos mais eficazes para que se alcance a tão alme-
jada justiça fiscal...
O princípio da igualdade exige que a lei, tanto ao ser edita-
da, quanto ao ser aplicada: a) não discrimine os contribuintes que se
encontrem em situação jurídica equivalente; b) discrimine, na medi-
da de suas desigualdades, os contribuintes que não se encontrem
em situação jurídica equivalente34 .
34
CARRAZZA, Roque Antonio. Direito constitucional tributário. 11 ed. S. Paulo:
Malheiros, 1998. p. 64-66.
100

Se o devedor deixou de pagar o tributo no prazo da norma e


manifesta seu arrependimento, pela denúncia espontânea, a situação
assemelha-se à do arrependimento posterior, do Direito Penal, em que
o agente deve responder pelos atos já praticados. Se o curso do tempo
é inexorável, o prejuízo à sociedade, pela omissão do contribuinte, em
termos de realização dos fins do Estado a que se destina o tributo, já
ocorreu. O arrependimento não será, portanto, eficaz, enquanto o
agente não indenizar o Estado pelos danos causados. Os juros e a
correção monetária apenas repõem o custo financeiro do tributo não
recolhido. A multa de mora será indenizatória dos danos causados pelo
agente.
Ao interpretar o dispositivo Baleeiro não fala em multas, mas
em responsabilidade, ressalvando, pela equiparação à lei penal, a res-
ponsabilidade pelos danos provocados pelos atos já praticados pelo
agente.
Para Baleeiro, “as multas ora indenizam um prejuízo ao fisco, como
as da mora no pagamento de tributos, ora são métodos de repressão (mul-
tas pela sonegação de impostos) e de intimidação pelo perigo potencial
resultante do procedimento do indivíduo (infração de tráfego, por exem-
plo)” 35 .
Baleeiro, na sua obra “Direito Tributário Brasileiro”, ao comentar o
artigo 138, do CTN refere-se à exclusão da responsabilidade pela infra-
ção, aduzindo que “há, nessa hipótese, confissão e, ao mesmo tempo,
desistência do proveito da infração. A disposição, até certo ponto equipa-
ra-se ao art. 13 do CP: ‘O agente que, voluntariamente, desiste da consu-
mação do crime ou impede que o resultado se produza, só responde pelos
atos já praticados’”36 .
Tem-se ainda a lição de Minatel, quando repele a “... interpretação
extensiva que se pretende atribuir ao artigo 138 do CTN, quando se in-
tenta condecorá-lo com eficácia suficiente para afastar a multa de
mora...”37.
35
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14 ed. Rio: Forense,
1984. p. 151.
36
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Cit. p. 764.
37
MINATEL, José Antonio. Denúncia espontânea e multa de mora nos julgamen-
tos administrativos. In: Revista Dialética de Direito Tributário n. 33, Jun/1998, S. Paulo:
Dialética. p. 83-92.
101

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a conclusão da análise proposta, denota-se que a responsabi-


lidade referida no artigo 138 do Código Tributário Nacional refere-se ao
ato ou omissão praticados com o fim de subtrair à tributação o fato gera-
dor do tributo, não se incluindo nesta hipótese o atraso no pagamento do
tributo, em vista do prazo fixado na legislação emitida pela pessoa políti-
ca tributante, dentro de sua competência constitucional.
A norma geral, sendo uma moldura, não poderá interferir no con-
teúdo específico da norma individual, embora lhe defina o contorno. As
disposições fixando prazo para pagamento de tributos e estabelecendo
multa para o atraso, são parte do conteúdo, e não podem sofrer interfe-
rência da norma geral.
Assim, o contribuinte pode ter excluída a responsabilidade pela infra-
ção, desde que efetue o pagamento do tributo até o prazo estabelecido na lei
ordinária, vale dizer, até a norma geral respeita a competência constitucional
da pessoa jurídica tributante para fixar prazo a sancionar a sua inobservância.
É de importância fundamental o respeito à competência constitucio-
nal tributária das pessoas políticas, na recepção de normas nacionais anterio-
res à Constituição de 1988, como é o caso do Código Tributário Nacional.
A regulação de uma conduta juridicamente, para sua efetividade e efi-
cácia, exige coordenadas de tempo e de espaço. No caso de tributos, tais
delimitações estão na lei ordinária editada pelas pessoas políticas constituci-
onalmente designadas.
Por esta interpretação, a multa de mora não passa de um plus
indenizatório ao tributo, decorrente de seu não pagamento até o prazo legal.
O prazo, uma vez vencido, é inexorável, não tendo o sujeito passi-
vo como renunciar ao proveito do atraso e eximir-se da multa de mora.
O caráter não punitivo, mas indenizatório da multa de mora, retira
validade da premissa básica da tese que sustenta a exclusão desta espécie
de multa no caso de denúncia espontânea.
Ressalte-se ainda que as Súmulas 192 e 565, da Suprema Corte,
aplicam-se restritamente em matéria tributária após o início da vigência
do artigo 29, da Lei 6830, de 22/09/1980, que exclui do processo de
falência as execuções fiscais.
102

É de se deduzir que a pretensa exclusão da multa moratória na


denúncia espontânea, se adotada em caráter erga omnes, causaria enorme
insegurança jurídica, anarquia e caos tributário, pois a partir de tal mo-
mento, ninguém mais se sentiria obrigado a pagar tributo no prazo, já que
o fraco aparato fiscal da União, dos Estados e dos municípios não teria
capacidade logística para autuar a verdadeira avalanche de inadimplências
decorrentes daquela facilidade prática. Isto sem considerar a presumível
queda drástica que seria provocada na arrecadação geral de tributos, po-
dendo essa situação comprometer seriamente o funcionamento dos ser-
viços públicos.
Neste caso, as normas de competência da União, Estados, Distrito
Federal e municípios, que prescrevem prazos para pagamento dos tributos, na
prática, teriam apenas repercussão moral subjetiva, considerando que a capa-
cidade prática da fiscalização de tributos, nem de longe poderia acompanhar
e autuar a provável inadimplência em massa daí resultante.
Pelo caráter social do tributo, contrariamente à superada ideologia
liberal individualista, não é razoável imaginar-se como justa a situação de
algum cidadão ser submetido ao risco de vida nas filas de espera dos
ambulatórios públicos, por falta de verbas, enquanto se estabelece uma
brincadeira de “gato e rato” entre o fisco e o contribuinte beneficiado
pela ocultação das infrações até ser eventualmente descoberto pelo apa-
rato de fiscalização, para imposição da multa de mora indenizatória das
carências sociais provocadas pelo não ingresso dos recursos do tributo
devido e sonegado.
Nova questão se coloca: a que plano ficaria relegado o princípio de
que a ninguém é dado auferir proveito de sua própria transgressão? Se o
prazo para pagamento do tributo já venceu, não há como o sujeito passi-
vo pagar o tributo fora do prazo sem auferir enriquecimento sem causa,
ou mais precisamente, enriquecimento advindo de transgressão à Lei, com
ônus maior para os contribuintes que pagam seus tributos em dia.
Por outro lado, deflui deste princípio, que a denúncia espontânea
pode caracterizar arrependimento posterior, mas não eficaz, em relação
ao atraso no pagamento do tributo.
Evidencia-se que só não haverá dano nem proveito ao devedor se a
denúncia espontânea for procedida até o vencimento do prazo para paga-
mento do tributo.
103

Não podem coexistir, de um lado, normas que estabelecem prazos


para cumprimento da obrigação tributária, e, de outro lado, interpreta-
ções doutrinárias que entendem existir uma espécie de moratória de cará-
ter permanente, retirando o efeito coercitivo destas mesmas normas.
Sem o risco de confundir mora com moratória, a permissão do pa-
gamento do tributo fora do prazo, a qualquer tempo, sem o pagamento da
multa moratória, pode ser vista como um tipo de suspensão permanente
da exigência do recolhimento do crédito tributário no prazo legal.
Sendo a moratória o alargamento dos prazos para o cumprimento
da obrigação tributária. Justifica-se apenas nos casos de calamidade pú-
blica, enchentes e catástrofes que dificultem aos contribuintes o paga-
mento dos tributos. Mas não aproveita aos casos de dolo, fraude ou simu-
lação do sujeito passivo ou de terceiro em benefício daquele.
A moratória só pode existir através de lei específica que a institua e
delimite seus efeitos no tempo e no espaço.
Com efeito, à guisa de fecho, coloca-se a expectativa de que o pro-
duto desta modesta incursão de estudo possa refletir-se como contribui-
ção efetiva para o debate e no sentido do alcance da justiça fiscal na
interpretação e aplicação da norma tributária.
104
105

A DESNECESSIDADE DA ATRIBUIÇÃO
DE CULPA PARA A SEPARAÇÃO JUDICIAL

Luciano Trierweiller Naschenweng


Promotor de Justiça da Vara da
Família da Comarca de Chapecó

A questão fundamental a ser tratada no presente artigo diz respeito à


desnecessidade de se atribuir a culpa na separação judicial litigiosa,
tendo em vista, principalmente, as mudanças do novo Código Civil
relacionadas com a guarda, alimentos, partilha dos bens e uso do nome.
O artigo 1.572 do novo Código Civil traz em seu bojo uma das
modalidades de separação litigiosa que a doutrina classifica como se-
paração-sanção. A conseqüência desta é a apenação do cônjuge cul-
pado. Nela, as partes discutem culpa, imputada por um cônjuge ao
outro, em virtude do descumprimento de dever conjugal. É oportuno
lembrar que, juntamente com a prova do descumprimento do dever
conjugal, deve o cônjuge demonstrar que a vida em comum se tornou
insuportável.
Neste contexto, pode-se afirmar que a prova testemunhal a ser
produzida em juízo é a que realmente dará a dimensão da culpa. Por
outro lado, a jurisprudência já consagrou que, se a separação litigiosa
com culpa não restar demonstrada pela verdade elencada nos autos,
deve ser julgada improcedente por ausência de prova, “sendo vedada
a transmutação para separação litigiosa sem culpa, ainda que demons-
trado que os cônjuges estão separados de fato a mais de um ano e que

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 105 a 108
106

é impossível a reconstituição da vida em comum” (Apelação Cível n.


98.016092-8, de Blumenau - Relator: Des. Solon d’Eça Neves).
Rodrigo da Cunha Pereira sustenta que “o Judiciário é o lugar onde
as partes depositam seus restos. O resto do amor e de uma conjugalidade
que deixa sempre a sensação de que alguém foi enganado, traído. Como a
paixão arrefeceu e o amor obscureceu, o “meu bem” transforma-se em
“meus bens”. E aí um longo e tenebroso processo judicial irá dizer quem
é o culpado da separação. Enquanto isso, não se separam. O litígio, aliás,
é uma forma de não se separarem pois enquanto dura o litígio a relação
continua. Já que não podem se relacionar pelo amor, relacionam-se pela
relação prazerosa da dor” (A culpa no desenlace conjugal. Belo Horizon-
te, 1999. Disponível http://www.rodrigodacunha.adv.br).
Na prática, o que se verifica é que a única intenção dos cônjuges
em promover a ação de separação litigiosa é a imputação da culpa para
que, caracterizada e reconhecida esta pelo Poder Judiciário, possam ser
requeridos e obtidos os “meus direitos”.
A propósito, veja-se a seguinte decisão: “Para os fins de
responsabilização nas ações de dissolução litigiosa da sociedade conju-
gal, culpado é sempre o cônjuge que deu causa à separação judicial. E
essa culpa gera, por força da lei, a obrigatoriedade, para o mesmo, de
prestar ao outro, se dela necessitar, a pensão alimentar que vier a ser
fixada judicialmente.” (Apelação Cível n. 99.011093-1, de São Lourenço
do Oeste - Relator: Des. Trindade dos Santos).
Após abordar a questão da culpa na separação judicial, passemos
agora às conseqüências da dissolução conjugal, com as alterações do novo
Código Civil referentes às questões do uso do nome, alimentos, partilha
dos bens e guarda.
Em relação à perda do direito ao uso do nome pelo cônjuge culpa-
do, o texto do art. 1.578 prevê que o culpado pela separação pode manter
o nome do outro cônjuge, só perdendo o direito ao uso deste se houver
pedido para tanto e desde que não haja prejuízo, devidamente tipificado
nas hipóteses descritas nos incisos I, II e III de tal artigo.
Na questão dos alimentos, ao cônjuge culpado pela separação e
sem aptidão para o trabalho, se não tiver parentes, é possível a concessão,
pelo juiz, de alimentos naturais, que deverão ser pagos pelo ex-cônjuge
não culpado, nos termos do art. 1.704, parágrafo único.
107

O artigo 1.581 determina que o divórcio pode ser concedido sem


que haja partilha dos bens, trazendo para o texto legal o entendimento
que já havia sido sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, no enunci-
ado de número 197. Portanto, quer na separação judicial ou no divórcio,
a partilha dos bens pode ser efetuada posteriormente em ação própria.
Em relação à proteção aos filhos, determinada nos art. 1.583 a 1.590,
a nova regra geral confere amplo poder de decisão ao juiz para que possa
determinar a melhor medida a bem dos filhos (art. 1.586). Afasta-se, como
regra, o critério materno para conferir guarda de crianças, bem como fi-
cam afastadas, a priori, as regras sobre culpa, preexistência de guarda de
fato, entre outras. Deste modo, o juiz poderá conferir a guarda ao cônjuge
culpado, se este revelar melhores condições para exercê-la.
Ao final de um processo litigioso de separação judicial, geralmente
complexo, demorado e constrangedor para as partes, durante o qual des-
cobre-se quem é o cônjuge culpado e quem é o inocente, considerando-se
que, assim mesmo, o primeiro poderá ter a guarda dos filhos, manter o
nome do outro cônjuge, deixar a discussão da partilha dos bens para ação
própria e ainda receber alimentos do cônjuge inocente, fica evidenciada a
desnecessidade da atribuição de culpa para a separação.
Ademais, se todas essas garantias estão asseguradas ao cônjuge
culpado, para que então se perder tempo em querer provar a culpa, instru-
indo o feito? Os moldes da separação judicial consensual, respeitando a
vontade de uma das partes, poderia colocar fim à sociedade conjugal,
sem haver necessidade de prova de culpa. Além disso, um estudo social
bem elaborado, por exemplo, poderia revelar qual dos cônjuges teria as
melhores condições para ter a guarda dos filhos. Questões como alimen-
tos e partilha de bens poderiam ser discutidas em ações próprias.
Na verdade, a existência da separação judicial só se justifica pela
intenção do legislador de reconciliar o casal, o que não acontece no divór-
cio que põe fim ao vínculo conjugal. Vale registrar que, no divórcio litigi-
oso direto, não se discute culpa. Cabe ao autor somente provar a existên-
cia da separação de fato, o início da separação e a sua continuação por
dois anos consecutivos, bem como a causa da separação. Ao juiz compete
colocar fim ao enlace matrimonial, fazendo cessar todos os seus efeitos,
resolvendo as questões atinentes à guarda dos filhos, responsabilidades
alimentares e partilha do patrimônio comum.
108

Como se vê, o novo Código Civil ao trazer valiosíssimos parâmetros


para decidir questões sobre a guarda, alimentos, partilha etc., não deu
tanta importância na averiguação da culpabilidade das partes quanto ao
fim da sociedade conjugal.
Na realidade, verifica-se que a busca da culpa da separação judicial
já não tem o prestígio de que antes desfrutava, perdendo espaço no mun-
do forense, não apenas porque é difícil atribuir a um só dos cônjuges a
responsabilidade pelo desfazimento do vínculo afetivo, mas também por
mostrar-se indevida a intromissão do Estado na vida das pessoas.
Para finalizar, extrai-se da lição da Desembargadora gaúcha Maria
Berenice Dias: “Ao invés de se buscar no princípio da isonomia uma jus-
tificativa para inserir a culpabilidade como elemento integrativo do direi-
to aos alimentos decorrente da relação concubinária, a tendência que mais
condiz com a nova realidade é a de subtrair a necessidade de identifica-
ção da culpa pelo fim do casamento, equiparando ambas as situações
dentro de uma ótica mais liberalizante e moderna. Mister que não se per-
quira os elementos subjetivos que levaram à cessação da união, quer de-
corrente de casamento, quer da mera convivência, bastando o exaurimento
do elo amoroso” (Separação: culpa ou só desamor? Seleções Jurídicas.
Rio de Janeiro, Coad, 1998).
109

A SITUAÇÃO DO PRESIDIÁRIO
E OS DIREITOS HUMANOS

Márcia Aguiar Arend


Promotora de Justiça - SC

Sumário: 1. Introdução; 2. Direitos Humanos: uma modesta expli-


cação; 3. Direitos Humanos Fundamentais 4. O Déficit estrutural na
fruição dos Direitos Humanos e a violência da supressão dos direitos dos
presos; 5. Reflexão conclusiva.

1. INTRODUÇÃO

O tema que foi proposto para debate “ A situação do presidiário e


os direitos humanos” exige que definamos dois conteúdos semânticos
contidos na proposta temática: temos que pensar na situação do presidi-
ário e tentar conhecer o que a esmagadora maioria das pessoas não vê, ou
se vê não se importa, e depois enfrentar esta tão abrangente e plástica
expressão “direitos humanos”.
As múltiplas espécies de violência produzidas pelas sociedades atu-
ais, que continuam a replicar violências pretéritas, sempre parceiras da
miséria, da discriminação e dos preconceitos, parece que são agora mais
cruéis porque também sentidas pelas minorias afortunadas, historicamente
produtoras de violência.
A vitimização dos afortunados e a perda do temor em relação aos
males prometidos pelas penas por parte das classes miseráveis, cuja dor é
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 109 a 116
110

muitas vezes inferior, sob o ponto de vista de privação da dignidade pois


já que estão acostumados a viver sem qualquer dignidade, parece estar
constituindo o ambiente apropriado para que se oxigene o debate sobre a
dimensão dos direitos relacionados à dignidade, a democratização dos
chamados direitos sociais. Enfim, parece mesmo que não há como esque-
cer a máxima de que a dor, em termos de sociedade, é mesmo terapêutica
e pedagógica.
Este, portanto, é o compromisso deste trabalho. Situação do presi-
diário diante das balizas estabelecidas pelos “Direitos Humanos”, ainda
que assinalemos deste o início, ressaltando JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF, que
a conquista ou a vivência efetiva dos chamados “Direitos Humanos” cons-
titui “a construção universal de uma utopia”1.

2. DIREITOS HUMANOS: uma modesta explicação

Parece que definir o que constitui a expressão “Direitos Humanos”


é fácil e mesmo muito simples. É mesmo possível que seja quase como
uma velha calça jeans: em tese cada um tem uma, ou já teve. A academia
trata de um jeito, a mídia, dependendo da data do ano, trata “Direitos
Humanos” de forma diferente. Quando acontece um episódio de marcada
violência contra sujeitos mais especiais sob o ponto de vista do status
social, então o signo sofre um interessante câmbio, sendo eclipsado em
sua beleza para realce do direito da vítima em antagônica posição ao di-
reito do autor dos fatos.
É evidente que a expressão Direitos Humanos consiste no conjun-
to de direitos do homem, axiologicamente definidos para resguardar os
valores humanos da solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberda-
de, a dignidade da pessoa humana.
Acredito que é útil reprisar aqui os conceitos elaborados pelos es-
tudiosos do tema “Direitos Humanos”:
“Direitos Humanos são as ressalvas e restrições ao poder
político ou as imposições a este, expressas em declarações, disposi-
tivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer

1
HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos – A construção Universal de
uma utopia. São Paulo: Ed. Santuário, 1997.
111

respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo


o ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de
inteligência, dignidade e consciência, e permitir a satisfação de suas
necessidades materiais e espirituais.”2
“Os Direitos Humanos colocam-se como uma das previ-
sões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido
de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de
poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade huma-
na.”3
“Direitos Humanos são uma idéia política com base moral e
estão intimamente relacionados com os conceitos de justiça, igual-
dade e democracia. Eles são uma expressão do relacionamento que
deveria prevalecer entre os membros de uma sociedade e entre
indivíduos e Estados. Os Direitos Humanos devem ser reconheci-
dos em qualquer Estado, grande ou pequeno, pobre ou rico, inde-
pendentemente do sistema social e econômico que essa nação ado-
ta.” 4
João Baptista Herkenhoff, já referenciado neste trabalho, elucida:
“Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, enten-
didos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser
homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é
inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade
política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever
de consagrar e garantir”. 5
Se considerarmos os direitos humanos como direitos do homem,
assim singelamente, então é possível identificá-lo como objeto de reco-
nhecimento já na antiguidade, desde o Código de Hamurábi, no século
XVIII antes de Cristo, na Babilônia, nos pensamentos do imperador do
Egito, Amenófis IV, no século XIV a.C., nas belas idéias de Platão, na

2
ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Sérgio
Antônio Fabris Editor. Pg. 24.
3
MORAIS, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. Coleção Temas Jurídicos
– Vol. 3. São Paulo : Ed. Atlas, 1998. 2ª Edição. Pg. 20.
4
J. S. Fagundes Cunha – Juiz de Direito do Paraná e Professor da Universidade
Estadual de Ponta Grossa e da Escola Superior de Magistratura do Paraná, Mestre em Direi-
to pela PUC/SP e doutorando pela UFPR, em artigo publicado no site www. jus.com.br.
5
HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos – Gênese dos
Direitos Humanos. Volume 1. São Paulo : Ed. Acadêmica, 1994. Pg. 30.
112

Grécia, no século IV a.C., no germinal Direito Romano e em várias outras


civilizações e culturas ancestrais.
Herkenhoff realça que, não obstante ter havido a preocupação com
tais direitos, estes não possuíam uma “garantia legal”, posto que precári-
os em sua estrutura política, já que a salvaguarda desses direitos gravitava
na razão direta da “sabedoria dos governantes”.
Inconstestável que a proteção à integridade da pessoa humana re-
monta tempos antigos constituindo, inclusive, uma preocupação relacio-
nada à preservação da própria natureza humana, na medida do reconheci-
mento de suas necessidades reais. Entretanto, como adverte Herkenhoff,
“a simples técnica de estabelecer em constituições e leis, a limitação do
poder, embora importante, não assegura, por si só o respeito aos Direitos
Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias
de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são
legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa esta-
bilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diver-
sas situações concretas, rasgados e vilipendiados.” 6
A segunda guerra mundial, no século passado, constitui, talvez, o
marco principal da chamada internacionalização dos “Direitos Humanos”
e fato doloroso definidor do conteúdo semântico da expressão. Com o
intuito de proteger os homens e mulheres das atrocidades do chamado
“Holocausto” e de outros tantos concebidos e executados pelos nazistas
contra os judeus, na Alemanha, surgiram as mais profundas preocupações
no que pertine à proteção internacional dos Direitos Humanos. Passou-
se a admitir que a soberania estatal tem seus limites no respeito aos Direi-
tos Humanos. Não há tirania ou soberania que possa ser autorizada a
flexibilizar tais direitos. A Segunda Grande Guerra criou o ambiente de
dor e desespero para instituir o processo de internacionalização dos Di-
reitos Humanos, gerando normas de proteção internacional que estabele-
ceram as primeiras linhas da responsabilização do Estado no domínio
internacional, quando as instituições nacionais se mostrarem falhas ou
omissas na tarefa de proteção dos Direitos Humanos.
É mesmo possível dizer que na Carta das Nações Unidas de 1945
encontramos o texto concreto onde os Direitos Humanos alçaram o status
de tema universal. Ressalte-se, contudo, que apesar das premissas
6
PIOVESAN, Flávia Temas de Direitos Humanos. Pg. 132/133
113

normativas que determinavam a importância de se defender, promover e


respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, este docu-
mento transnacional não definiu o conteúdo dos Direitos Humanos, o
que só veio a ser explicitado com melhorada, mas ainda imprecisa defini-
ção, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Uma rápida percorrida pelos textos constitucionais do Brasil per-
mitiria concluir que somente com a Constituição de 1988, pelo menos no
plano deontológico, é que tivemos uma nova definição da relação entre o
Estado e os direitos fundamentais. Da dicção dos dispositivos constituci-
onais constatamos a acentuada preocupação do constituinte em garantir
a dignidade, o respeito e o bem-estar da pessoa humana, de modo a se
alcançar a paz e a justiça social.

3. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Dentre os chamados Direitos Humanos Fundamentais previstos nos


artigos 1 e 55 da Carta das Nações Unidas, destacam-se os princípios da
autodeterminação dos povos, da não discriminação e o princípio da pro-
moção da igualdade.
O princípio da autodeterminação dos povos consistente no direito
dos povos e nacionais à livre determinação constitui requisito prévio para
o exercício de todos os direitos humanos fundamentais.
O princípio da não discriminação assegura que o pleno exercício de
todos os direitos e garantias fundamentais pertence a todos, independen-
temente de raça, sexo, cor, condição social, genealogia, credo, convicção
política, filosófica ou qualquer outro fator de exclusão.
Lembrando que a discriminação é sempre uma forma de distinção,
exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou pretensão pre-
judicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de
condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que qual-
quer espécie de discriminação deve ser destruída, extirpada, de modo a
assegurar, a todos os seres humanos, o pleno exercício de seus direitos
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.
114

Do mesmo modo a nossa Carta, em seu artigo 5º, inciso XLI, deter-
mina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e
liberdades fundamentais”.
É evidente que qualquer diferenciação prejudicial de tratamento
entre as pessoas já caracteriza discriminação. Mas além de não discrimi-
nar, é preciso, também, criar normas e políticas públicas que promovam a
inclusão das maiorias marginalizadas, dando-lhes a condição de consumi-
doras dos bens e serviços que permitem conferir aos indivíduos a nature-
za de seres humanos, como comida, casa, saúde, escola, segurança e jus-
tiça.
Flávia Piovesan elucida: “Com efeito, a igualdade e a discriminação
pairam sob o binômio inclusão – exclusão. Enquanto a igualdade pressu-
põe formas de inclusão social, a discriminação implica na violenta exclu-
são e intolerância à diferença e diversidade. O que se percebe é que a
proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na in-
clusão. Logo não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se preten-
de é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos
que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discrimina-
ção.”

4. O DÉFICIT ESTRUTURAL NA FRUIÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS E A VIOLÊNCIA DA SUPRESSÃO DOS DIREITOS
DOS PRESOS

É possível que o déficit de fruição dos Direitos Humanos pelas


maiorias excluídas e não encarceradas, seja o ambiente eruptivo e
propagador da admissão, sem contestação, do consórcio cárcere: muitas
maneiras de morrer e de matar.
Nós ainda estamos impregnados de crenças e talvez a mais brutal
seja a de continuar admitindo a possibilidade de tornar melhor o indiví-
duo expondo-o a todas as formas de sofrimento e menosprezo.
É possível que a utopia da fruição dos direitos fundamentais por
todos os não encarcerados permita-nos admitir que os condenados ao
aprisionamento do corpo são também sujeitos dos Direitos Humanos.
Lembremos que a utilidade da utopia é servir de fundamento e força motriz
da renovação social.
115

A palavra Utopia deriva do grego, e significa “que não existe em


nenhum lugar”, mas não pode ser confundida, posto não ter a mesma
significação da palavra mito. Embora seja a representação daquilo que
ainda não existe no mundo real, tem possibilidades de vir a ser se houver
luta para a sua concretização.
A utopia é ainda o artefato vigoroso apto a contrastar e encrespar
as falsidades das ideologias estabelecidas. Como fala HERKENHOFF: “o pre-
sente pertence aos pragmáticos. O futuro é dos utopistas”!

5. REFLEXÃO CONCLUSIVA

Nós ainda temos uma sociedade confiante nas promessas do Direi-


to Penal no que pertine aos princípios da prevenção geral, e ainda confi-
amos na pena como artefato de castigo. A opinião das massas é sempre
no sentido de apoiar o encarceramento daqueles tidos por criminosos,
devendo o castigo ser muito mais aflitivo do que aquele que as pessoas
comuns já padecem.
Se não há respeito pelos meus direitos enquanto pessoa cumpridora
dos meus deveres, então pouco importa a quantidade de violência e dor
pelas quais passem os criminosos que não cumprem a parte deles. Este
estado de precariedade de condições materiais da existência não produz
só exclusão e intolerância, violência enfim. Acaba exterminando nossas
crenças no presente e no futuro, barbarizando nossas consciências que
passam a justificar o pior diante do caos.
Há mesmo um pacto com a indolência e nos associamos a uma
racionalidade completamente indolente, que já não se incomoda com o
outro. A nossa subjetividade, totalmente centrada em objetos e desespe-
rada por ser apenas consumidora, pouco se incomoda com os direitos
humanos do vizinho, quanto mais com os direitos humanos daqueles que
não vê. E para que ver o que não se crê? Nós não cremos nos encarcera-
dos, não precisamos, portanto, vê-los. Aceitamos, no recôndito da nossa
latente tirania, que se caminhe pelas vias do extermínio dos aprisionados.
Admitimos que eles não têm jeito e que se é assim, então melhor que
morram.
E as entidades e pessoas que defendem os direitos dos presos pas-
sam a ser adjetivadas, pejorativamente, como “esse pessoal dos direitos
116

humanos”, como se os direitos dos presos fossem mais que direitos, fos-
sem privilégios contra os quais se rebelam. Não compreendem que os
direitos humanos dos presos são também os direitos humanos dos ho-
mens livres ainda não criminalizados.
117

CRISE NA EXECUÇÃO PENAL

Renato Flávio Marcão


Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Sumário: 1. Abordagem do tema; 2. Natureza e objeto da execução


penal, 2.1. Natureza da execução penal, 2.2. Objeto da execução penal;
3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal; 4. Conclusão.

1. ABORDAGEM DO TEMA

Conforme sentenciou Roberto Lyra, é pela execução, em última


análise, que vive a lei penal.
Que a lei penal não tem “andado bem” é cediço. Os mais variados
“equívocos legislativos” nos dão conta do caos em que se encontra a
produção legislativa em matéria penal e processual. A tal respeito temos
nos pronunciado não é de hoje.1
Está em fase de estudos o Projeto que modificará a Lei de Execu-
ção Penal. É preciso, então, estabelecer reflexões sobre algumas questões
MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealis-
1

mo nor mativo à realidade prática. RT 781/484-96. Disponível na internet:


http://www.juridica.com.br; www.mp.sp.gov.br; www.direitopenal.adv.br;
www.saraivajur.com.br; www.jusnavigandi.com.br; www.direitonet.com.br;
www.emporiodosaber.com.br; www.bpdir.adv.br; www.suigeneris.pro.br;
www.apoena.adv.br; ww.teiajuridica.com.br; www.mundojuridico.com.br

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 117 a 122
118

doutrinárias e práticas da Lei, conforme buscaremos nas próximas linhas,


dentro da singela visão que o trabalho propõe, estabelecendo afirmações
e questionamentos relevantes para o estudo do tema.

2. NATUREZA E OBJETO DA EXECUÇÃO PENAL

2.1. NATUREZA DA EXECUÇÃO PENAL

Jurisprudência e doutrina nos apontam as divergências reinantes


sobre a natureza da execução penal.
Para alguns, “a execução criminal tem incontestável caráter de pro-
cesso judicial contraditório” (TACrimSP, HC nº 307.582/5, 2ª Câm., rel.
juiz José Urban, j. em 10.07.97, v.u.). É de natureza jurisdicional
(JUTACrimSP 94/99).
Ada Pellegrini Grinover ensina que: “Na verdade, não se nega que
a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve,
entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desco-
nhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário
e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais
e dos estabelecimentos penais”.2
Segundo Paulo Lúcio Nogueira, “a execução penal é de natureza
mista, complexa e eclética, no sentido de que certas normas da execução
pertencem ao direito processual, como a solução de incidentes, enquanto
outras que regulam a execução propriamente dita pertencem ao direito
administrativo”.3
Por fim, Julio Fabbrini Mirabete anota que: “... afirma-se na exposi-
ção de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal:
‘Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de
índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome
de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos
domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal”.4
Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante
a intensa atividade administrativa que a envolve.
2
Execução Penal, São Paulo : Max Limonad,1987, p. 7.
3
Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 5/6.
4
Execução Penal, São Paulo : Atlas, 1997, p. 25.
119

Embora envolvida intensamente no plano administrativo, não se


desnatura, até porque todo e qualquer incidente ocorrido na execução
pode ser submetido à apreciação judicial, por imperativo constitucional,
o que acarreta dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de Execução Penal
é meramente exemplificativo.
Não bastasse, as decisões que determinam, efetivamente, o desti-
no da execução, são jurisdicionais.

2.2. OBJETO DA EXECUÇÃO PENAL

Visa-se pela execução fazer cumprir o comando emergente da sen-


tença penal condenatória ou absolutória imprópria5 , assim considerada
aquela que não acolhe a pretensão punitiva, mas reconhece a prática da
infração penal e impõe ao réu medida de segurança.6

3. ARTIGOS 3º A 8º DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL

Diz o art. 3º da LEP: “Ao condenado e ao internado serão assegu-


rados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.
São várias as conseqüências da condenação e os direitos atingidos
pela sentença. Podemos citar, exemplificativamente: a. lançamento do
nome do réu no rol dos culpados (art. 393, II, do CPP), providência que
após a Constituição Federal de 1988, por imposição do art. 5º, LVII, só é
possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; b.
prisão do réu (cf. art. 393, inc. I, do CPP, arts. 321 e s., e 594, do mesmo
Codex; c. tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo cri-
me (art. 91, I, do CP e art. 63, do CPP); d. perda em favor da União,
ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé: dos instrumentos
do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, porte ou
detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, alínea “a”, do CP); do produto
do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido
pelo agente com a prática do fato criminoso (art. 91, II, alínea “b”, do
CP); e. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, I, do
5
MARCÃO. Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo : Saraiva, 2001,
p. 3.
6
CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 342.
120

CP); a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela,


nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão, cometidos contra filho,
tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP); a inabilitação para dirigir
veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso (art.
92, III, do CP); f. constitui obstáculo à naturalização do condenado (art.
12, II, alínea “b”, da CF); g. suspensão dos direitos políticos enquanto
perdurar os efeitos (art. 15, III, da CF); g. induz reincidência (art. 63, do
CP); h. formação de título para execução de pena ou, no caso de semi-
imputabilidade, medida de segurança consistente em tratamento
ambulatorial ou internação (arts. 105 e 171, da LEP).
De outro vértice, não são atingidos pela sentença penal condenatória
os seguintes direitos: a. inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da Constituição Fede-
ral (art. 5º, caput, da CF); b. de igualdade entre homens e mulheres em
direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I, da CF); c. de
sujeição ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF); d. de integridade
física e moral, não podendo ser submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante (art. 5º, III e XLIX, da CF; Lei nº 9.455, de 7 de
abril de 1997); e. liberdade de manifestação do pensamento, sendo veda-
do o anonimato (art. 5º, IV, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de
1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); f. direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de
1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); g. liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos (art. 5º, VI, da CF); h. de não ser privado de direitos por motivo
de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII, da
CF); i. expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comu-
nicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, da CF); j.
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorren-
te de sua violação (art. 5º, X, da CF); k. inviolabilidade do sigilo da cor-
respondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunica-
ções telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses
e na forma que a lei estabelecer (art. 5º, XII, da CF); l. plenitude da liber-
dade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (art.
5º, XVII, da CF); m. o direito de propriedade (material ou imaterial), ain-
121

da que privado, temporariamente, do exercício de alguns dos direitos a


ela inerentes (art. 5º, XXII, da CF); n. o direito de herança (art. 5º, XXX,
da CF); o. o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito
ou contra ilegalidade ou abuso de poder, e obtenção de certidões em re-
partições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situação
de interesse pessoal (art. 5º XXXIV, alíneas “a” e “b”, da CF); p. direito
à individualização da pena (art. 5º XLVI, da CF); q. ao cumprimento da
pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito,
a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, da CF); r. relacionados ao
processo penal em sentido amplo (art. 5º, LIII a LVIII, entre outros, todos
da CF); s. direito de impetrar habeas corpus, mandado de segurança, man-
dado de injunção e habeas data (art. 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII, da
CF), com gratuidade (art. 5º, LXXVII, da CF); t. à assistência jurídica
integral gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos (art. 5º
LXXIV, da CF); u. indenização por erro judiciário, ou se ficar preso além
do tempo fixado na sentença (art. 5º, LXXV, da CF).
Comporta destaque o direito de “sujeição ao princípio da legalidade”.
Com efeito, a Lei de Execução Penal estabelece diversos benefícios
em favor dos executados, sendo certo que tais não são efetivados durante
a execução. Onde, então, a legalidade? Qual legalidade?
Legalidade é a estrita observância da Lei ou o que é possível prati-
car em razão do descaso do Estado?
O que se dizer, então, do direito à “individualização da pena” ?
É sabido que o processo individualizador se desenvolve em diver-
sas fases. Inicia-se com a individualização formal, passa pela judicial, e
culmina com a individualização na execução.
Como se afirmar, entretanto, que a individualização ocorre na exe-
cução?
Sabemos que em completa desatenção ao art. 5º da LEP7 , não há
uma devida classificação do condenado ou do internado.
Como regra, também não há um “programa individualizador” para
a execução das penas, restando no vazio o art. 6º da Lei de Execução
Penal.

7
“Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalida-
de, para orientar a individualização da execução penal”.
122

Em relação ao exame criminológico a situação não é diversa.


A despeito do que vem determinado nos arts. 8º e 9º da LEP, é do
conhecimento de todos que não se dispõe de pessoal capacitado e treina-
do, para a realização do exame criminológico, que quando é feito, muito
pouco ou quase nada de seguro aponta.
A bem da verdade, na maioria das comarcas do Estado de São Pau-
lo tal exame é substituído por um parecer apresentado por Assistente
Social, que não dispõe de conhecimento específico para a análise do com-
portamento do criminoso, restringindo seu trabalho a uma única entrevis-
ta. Soma-se a tal relatório de entrevista um parecer psicológico também
decorrente de um único encontro.
O resultado, evidentemente, não poderia ser outro.
Realizam-se tais entrevistas e utilizam-se tais trabalhos técnicos,
mais pelo formalismo do que pelo conteúdo.

4. CONCLUSÃO

A crise instalada na execução penal se reflete, também, na seguran-


ça pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso.
É certo que, na medida em que não se efetivam as regras da execu-
ção penal, pune-se o condenado duas vezes.
Contudo, a apenação maior recai sobre a sociedade ordeira que fi-
nancia, com o pagamento de impostos, taxas etc, a estruturação de um
sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso daqueles que
foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos que a
integram.
A parcela ordeira da população é, no mínimo, triplamente vítima.
Vítima do medo; do crime, e também da inércia/ineficiência de
seus representantes junto a Poderes Instituídos, há muito fracassados ante
a incontida ascensão do império em que reina absoluta a ilicitude penal.
123

OBRIGATORIEDADE DA REMESSA NO
MANDADO DE SEGURANÇA: NÃO APLICAÇÃO
DO DISPOSTO NO § 2º DO ARTIGO 475 DO CPC

Tycho Brahe Fernandes


Procurador de Justiça - SC

E ste trabalho pretende averiguar a ocorrência de eventual conflito en-


tre a norma contida no parágrafo único do artigo 12 da Lei 1.533/51, que
estabelece que “A sentença, que conceder o mandado, fica sujeita ao du-
plo grau de jurisdição, podendo, entretanto, ser executada provisoriamen-
te”, e aquela estabelecida no parágrafo 2º do artigo 475 do Código de
Processo Civil, introduzido no ordenamento jurídico por meio da Lei
10.352/01, que reza: “Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a
condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente
a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos
embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor.”
Antes da Lei n.º 10.352/01, que modificou o Código de Processo
Civil no que tange à remessa, andavam a par e passo a codificação de
cunho geral e a norma especial1 disposta na Lei n.º 1.533/51, que regula-
1
Esclarece Maria Helena Diniz que “uma norma é especial se possuir em sua defini-
ção legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva e
subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à
descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se
assim o0, pois o comportamento sé se enquadrará na norma especial, embora também
esteja previsto na geral” (in DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 2. ed. rev. e amp. São
Paulo : Saraiva, 1996. p. 39)

Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense


Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 123 a 128
124

menta o mandado de segurança. Porém, com a alteração da norma geral,


começaram a surgir decisões judiciais que aplicavam a nova redação do
artigo 475 do Código de Processo Civil também à Lei do Mandado de
Segurança – LMS2 .
Antes de mais nada é fundamental estabelecer que o mandado de
segurança é uma garantia constitucional, prevista no inciso LXIX do arti-
go 5º da Constituição da República, instrumentalizado em lei especial, a
qual aplica o Código de Processo Civil subsidiariamente apenas no que
não lhe for incompatível.
Paulo de Tarso Brandão quando defende que “o Mandado de Segu-
rança é instrumento processual de cunho constitucional e que é, ao mes-
mo tempo, garantia constitucional do cidadão. Salvo, portanto, alguns
aspectos de procedimento – não de processo –, não guarda qualquer iden-
tidade com o Processo Civil.”3
O Superior Tribunal de Justiça, embora em decisões anteriores à
Lei n.º 10.352/01, decidiu que a regra do parágrafo único do artigo 12 da
Lei n.º 1.533/51 é especial, não se lhe aplicando a norma geral contida
no artigo 475 do Código de Processo Civil.4
Resta pois investigar a compatibilidade ou não entre as alterações
processadas no Código de Processo Civil pela Lei n.º 10.352/01 e o dis-
posto no parágrafo único do artigo 12 da Lei 1.533/51.
Acredita-se que o conflito seja total.
A Lei n.º 1.533/51, conforme já afirmado, é lei especial, anterior à
Lei n.º 10.352/01, que alterou a redação do artigo 475 do Código de
2
A título de exemplo, no TJSC, as decisões monocráticas relativas as apelações cíveis
em mandado de segurança números 02.003801-6, de Chapecó, Rel. Des. Volnei Carlin, j. em
27/05/02, 02.009215-6, de Lages, Rel. Des. Volnei Carlin, j. em 21/06/02 e 01.004504-4, de
Itapiranga, Rel. Des. Newton Trisotto, j. em 20/05/02. e no TJRS, o Reexame Necessário
n.º 70005317193, de Cruz Alta, julgado pela quarta câmara civil, rel. Des. Vasco Della Giustina.
3
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justi-
ça. Florianópolis : Habitus, 2001. p. 215.
4
Nesse sentido pode-se citar, dentre outros, os seguintes julgados:
Recurso Especial n.º 253.723-PR, relator Min. Edson Vidigal, de cuja ementa se
extrai: “O reexame necessário das sentenças concessivas de Mandado de Segurança decorre
da legislação específica: Lei nº 1.533/51, art. 2, parágrafo único, afastando-se incidência da
regra do CPC, art. 475, de aplicação apenas subsidiária.” (DJU de 27/11/00, p. 180) e o
Recurso Especial nº 279.217-PR, rel. Min. Jorge Scartezzini, cuja ementa contém: “A remessa
necessária de sentenças concessivas em Mandado de Segurança é disciplinada pelo parágrafo
único, do art. 12, da Lei nº 1.533/51, regra especial que deve prevalecer sobre a regra proces-
sual civil (art. 475, II, do CPC), de natureza genérica” (DJU de 29/10/01, p. 247).
125

Processo Civil, aplicando-se à situação em análise o disposto no parágra-


fo 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil5 , ou seja, ante a
especialidade da lei do mandado de segurança, não tem a Lei n.º 10.352/
01, por ser lei geral, posterior, o condão de modificá-la.
Acerca do tema esclarece Carlos Maximiliano que “se existe
antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso parti-
cular, tem a supremacia. Preferem-se as disposições que se relacionam
mais direta e especialmente com o assunto de que se trata.”6
Para Wilson de Souza Campos Batalha “a norma geral não envolve
supressão de norma estabelecida para determinada espécie e vice-versa;
salvo, é claro, quando a revogação for expressa, ou quando houver paten-
te contradição entre uma e outra de maneira a inferir-lhe a impossibilida-
de de coexistência.”7
Aponte-se, por necessário, que, no caso da Lei n.º 10.352/01, não
houve revogação expressa da norma contida no parágrafo único do artigo
12 da LMS, nem tampouco há qualquer contradição entre esse e o pará-
grafo 2º do artigo 475 do CPC.
A Lei do Mandado de Segurança, por sua peculiaridade, deve ser
aplicada sem qualquer restrição em razão da mudança legislativa do Có-
digo de Processo Civil.
É fundamental não olvidar que o mandado de segurança é instru-
mento constitucional posto à disposição do particular para enfrentar os
atos abusivos ou ilegais das autoridades públicas das quais se espera o
cumprimento das normas vigentes. Assim, fugindo a autoridade ao dever
que lhe impõe o princípio da legalidade8 , o cidadão tem o mandado de

5
É do seguinte teor o artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil:
“Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência.”
6
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janei-
ro : Forense, 1979. p. 135.
7
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Forense : Rio de
Janeiro, 1980. p. 42.
126

segurança como remédio para atacar a agressão perpetrada por quem se


esperava cumprisse a lei.
Acerca do alcance e função do mandado de segurança esclarece
Castro Nunes:
O mandado de segurança supõe um direito violado por ato de auto-
ridade pública. É, portanto, meio de defesa do direito contra ato do Esta-
do como poder público.
[...]
O que se resolve pelo mandado de segurança é relação de
direito público, definida pelo dever legal da autoridade e pelo direi-
to correlato de se lhe exigir o cumprimento dêsse dever.
[...]
A defesa do direito se define, nas relações de direito público,
pela defesa contra a ilegalidade funcional do Poder Público. É pre-
ciso não perder de vista êsse traço fundamental.9
No mesmo sentido a lição de Arnold Wald:
Na realidade, o mandado de segurança é um remédio judicial que
tem como objeto corrigir a atividade administrativa ilegal ou abusiva [...].
É um remédio que visa a defesa dos direitos individuais ou
funcionais contra atos administrativos, mediante a execução especí-
fica ou in natura da decisão judicial.
[...]
O mandado de segurança é assim o instrumento harmonio-
so e aperfeiçoado que garante a intangibilidade das conquistas da
civilização contra o arbítrio do poder governamental.10
Com acerto Paulo de Tarso Brandão afirma que “sabidamente o
denominado direito líquido e certo tutelável pela via da Segurança é lesa-
do por ato de autoridade, ligada, portanto à Administração Pública ou de
alguém em atividade delegada. Trata-se, assim, de um instrumento capaz
de sindicar ato típico da atividade estatal”11 .
8
O princípio da legalidade está expressamente previsto no artigo 37, caput da Cons-
tituição da República.
9
NUNES, Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do
poder público. 7. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro : Forense, 1967. p. 60 e 61.
10
WALD, Arnold. Do mandado de segurança na prática judiciária. 3. ed. rev., aum. e
atual. Rio de Janeiro : Forense, 1968. p. 112 e 113.
11
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Op. cit. p. 215.
127

Não se pode pretender quantificar monetariamente o ato de autori-


dade, razão pela qual se inviabiliza a utilização do disposto no § 2º do
artigo 475 do CPC ao mandado de segurança.
Como bem assinala Arnold Wald, “Não é, pois, um remédio
reparatório, não é meio de ressarcir danos causados; o mandado de segu-
rança modifica compulsóriamente uma situação, dando ao impetrante di-
reito à prestação in natura.”12
Em voto vencido da lavra do Des. Newton Trisotto13, o Tribunal
de Justiça de Santa Catarina tenta separar as situações nas quais se
poderia quantificar monetariamente as conseqüências do ato de auto-
ridade, aplicando-se, nesses casos, o Código de Processo Civil, daque-
les em que a monetarização não é possível, deixando-se de fazer a
aplicação.
O entendimento não pode ser acolhido.
Não se pode perder de vista, em momento algum, que, embora a
matéria atacada pelo mandado de segurança possa ter um valor monetá-
rio imediato, o que se está atacando com o mandado de segurança não é a
questão financeira em si, mas, tão-somente, o ato de autoridade.
Assim, a título de exemplo, expõe-se que quando a autoridade de
trânsito se recusa a licenciar um veículo com multas não pagas, o que se
enfrenta é a recusa do licenciamento e não o valor da multa, tanto que o
mandado de segurança, mesmo que provido, poderá apenas dizer que o
ato da autoridade foi abusivo, jamais, que a multa não é devida, a ser
discutida na seara própria.
Também no caso da recusa por estabelecimento de ensino de efetu-
ar a matrícula de aluno inadimplente, o que se discute é o direito ao aces-
so ao ensino e a legalidade ou não da recusa, e não os valores eventual-
mente não adimplidos.

12
WALD, Arnold. Op. cit. p. 115.
13
Trata-se da Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2001.024070-0, de Tuba-
rão, julgada em 15 de abril de 2002, que tem a seguinte ementa aditiva do relator: “Se o ato
da autoridade pública (ou no exercício de função pública delegada) decorre do
descumprimento de obrigação de natureza pecuniária – v.g., indeferimento de matrícula por
não ter o aluno pago a taxa correspondente; licenciamento de veículo condicionado a prévio
pagamento de multa – e sendo ela de valor não excedente a sessenta salários mínimos, a
sentença concessiva de mandado de segurança não se submete a reexame necessário (CPC,
art, 475, § 2º, com a redação da Lei 10.352/01).”
128

Tratando especificamente do tema, advoga José Rubens Costa que


“não se altera o duplo grau obrigatório no mandado de segurança (= quan-
do concedida à ordem, primeira parte, parágrafo único do art. 12 da Lei
nº 1.533/51).”14
Assim, conclui-se que as alterações no artigo 475 do Código de
Processo Civil em razão da Lei n.º 10.352/01 não se aplicam ao mandado
de segurança cuja remessa deverá ser conhecida sempre que a ordem for
concedida, independentemente do valor da causa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Forense:


Rio de Janeiro, 1980. 603 p.
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e
acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001. 277 p.
COSTA, José Rubens. Duplo grau de jurisdição obrigatório – alteração
da lei n.º 10.352/01. Repertório de Jurisprudência IOB n.º 21/2002,
p. 580.
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 2. ed. rev. e amp. São Paulo:
Saraiva, 1996. 107 p.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1979. p. 135.
NUNES, Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa
contra atos do poder público. 7. ed. atual. por José de Aguiar Dias.
Rio de Janeiro: Forense, 1967. 481 p.
WALD, Arnold. Do mandado de segurança na prática judiciária. 3. ed.
rev., aum. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 329 p.

COSTA, José Rubens. Duplo grau de jurisdição obrigatório – alteração da lei n.º
14

10.352/01. Repertório de Jurisprudência IOB n.º 21/2002, p. 580.


129
130
131

TESES APRESENTADAS
NO CONGRESSO NACIONAL
DO MINISTÉRIO PÚBLICO
OCORRIDO ENTRE OS
DIAS 1º E 5 DE OUTUBRO DE 2003
132
133

RACIONALIZAÇÃO DA ATIVIDADE
MINISTERIAL NA DEFESA DO CONSUMIDOR

Fábio de Souza Trajano


Promotor de Justiça de Santa Catarina

Síntese dogmática: O Ministério Público, para bem desempenhar


suas atribuições constitucionais na defesa dos direitos e interesses difusos
e coletivos da sociedade, deve racionalizar sua forma de atuação,
priorizando a atividade como órgão agente em detrimento da atuação
como fiscal da lei. Como custos legis, o promotor deve ter maior poder
discricionário para manifestação sobre o mérito ou despacho de mero
impulso processual, deixar de participar de feitos sem interesse social e
não se manifestar na fase recursal. Na defesa do consumidor, a atuação
com racionalização é indispensável para que se alcançe mais efetividade
e benefício social, apresentando-se as seguintes propostas: atendimento
apenas dos casos de cunho coletivo; eleição de macrotemas para priorizar
as ações; estimulação à criação de Procon, sendo o Procon regional –
com competência para atuar em mais de um município – uma alternativa;
atuação mais efetiva no combate aos crimes contra as relações de consu-
mo; atribuição criminal e civil do mesmo promotor; resolução de conflito
de atribuições entre ministérios públicos em favor daquele onde estiver
situado o estabelecimento infrator; importância de parcerias e convênios
para obtenção de melhores resultados; necessidade de atuação através de
programas institucionais; e divulgação e acompanhamento dos resulta-
dos alcançados.
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 133 a 147
134

Sumário: 1. Introdução – 2. MP pós CF/88 versus racionalização:


2.1 O MP como órgão agente; 2.2 Conhecimento da vocação institucional
do MP pela sociedade e cobrança de resultados; 2.3 Sobrecarga de atri-
buições - Estrutura insuficiente – 3 Racionalização na atuação como cus-
tos legis: 3.1.1 Mudança de forma de atuação; 3.1.2 Não participação em
feitos sem interesse social; 3.1.3 Dispensa de manifestação na fase recursal;
3.2 Racionalização na atuação na defesa dos consumidores: 3.2.1 Aten-
dimento de casos tratando de direito coletivo; 3.2.2 Eleição de priorida-
des nas questões coletivas – Macrotemas; 3.2.3 Estimulação a criação de
Procons; 3.2.4 Procon regional como alternativa; 3.2.5 Atuação mais efe-
tiva nos crimes contra as relações de consumo; 3.2.6 Atribuição criminal
e civil do mesmo promotor; 3.2.7 Resolução de conflito de atribuições;
3.2.8 Importância de parcerias e convênios com outros órgãos; 3.2.9 Atu-
ação através de programas institucionais; 3.2.10 Divulgação dos resulta-
dos alcançados; 4. Conclusão

1. INTRODUÇÃO

O tema que desenvolveremos é sobre a racionalização da atividade


ministerial na defesa do consumidor. Nossa exposição será dividida em
dois tópicos.
No primeiro, faremos uma abordagem sobre a importância da raci-
onalização em toda a atividade ministerial para que se possa exercer com
eficiência as atividades inerentes às promotorias da Coletividade.
No segundo, faremos uma apresentação de propostas e formas de
racionalização nas atividades das promotorias do consumidor, com o úni-
co objetivo de dar uma pequena contribuição para a discussão.
Dito isso, passamos, então, à exposição do tema proposto.

2. MP PÓS CF/88 VERSUS RACIONALIZAÇÃO

Segundo o Aurélio, racionalizar é “tornar mais eficientes os proces-


sos de (o trabalho industrial, agrícola, etc., ou a organização de empreen-
dimentos, planos, etc.), pelo emprego de métodos científicos”.
Não se admite, nos dias de hoje, desempenho das atividades
135

ministerais sem a racionalização, notadamente nas áreas relacionadas a


direito metaindividual.
Atuação sem racionalização é a atuação na contramão da história.

2.1 – O MP COMO ÓRGÃO AGENTE

Após a CF/88 as atribuições do Ministério Público tiveram signifi-


cativo crescimento. Seu perfil passou a ser de defesa, como órgão agente,
dos direitos sociais, coletivos e individuais indisponíveis, ou seja, causas
que tenham relevância social. Essa a sua destinação constitucional.
Há que se priorizar, então, a atuação do Ministério Público como
órgão agente em detrimento de sua atuação como fiscal da lei, muitas
vezes meramente burocrática, desprovida de qualquer interesse social,
como nos procedimentos não envolvendo interesse de incapezes de juris-
dição voluntária ou de natureza previdenciária.
A própria Constituição Federal, no art. 129, ao tratar das funções
institucionais do Ministério Público, leva-nos a esta conclusão utilizando
vários verbos que têm essa conotação, como, “promover”,
“zelar...promovendo”, “defender”, “expedir”, “requisitar”.

2.2 – CONHECIMENTO DA VOCAÇÃO INSTITUCIONAL DO MP


PELA SOCIEDADE DO MP E COBRANÇA DE RESULTADOS

Através dos meios de comunicação, a sociedade está cada vez mais


“descobrindo” a vocação institucional do Ministério Público pós-CF/88.
Com o despertar cada vez mais intenso do sentimento de cidadania
e o descrédito das instituições públicas, a sociedade recorre ao Ministério
Público para a concretização de seus direitos individuais e sociais de ci-
dadão, como a vida, a liberdade, a educação, a saúde, a segurança, a pre-
servação do meio ambiente e a defesa do consumidor.
A fiscalização das atividades ministeriais e a cobrança de resulta-
dos nas questões relacionadas à violação de direitos transindividuais se
intensifica a cada dia.
Estamos em um momento crucial: ou atacamos com vigor a defesa
dos interesses sociais como órgão agente ou cairemos no descrédito social.
136

Não podemos deixar de considerar que a médio e longo prazo po-


deremos ceder espaço para outras instituições se nossa atuação não resul-
tar em um grau de efetividade esperado pela sociedade.

2.3 SOBRECARGA DE ATRIBUIÇÕES – ESTRUTURA INSUFICIENTE

Na grande maioria das comarcas, um único promotor tem a missão,


quase “impossível”, de exercer com eficiência todas as atividades minis-
teriais, sem que possa contar, muitas vezes, com sequer um estagiário
auxiliando-o.
Só para citar alguns exemplos, é o promotor custos legis da família,
falência, concordata, mandado de segurança, registros públicos, aciden-
tes de trabalho, previdenciário, causas envolvendo incapazes, da infância,
do meio ambiente, cidadania e direitos humanos, moralidade, sonegação
fiscal e consumidor, além da atuação no crime e atendimento ao público.

3. PROPOSTAS DE RACIONALIZAÇÃO

Gama tão grande de atribuições e a impossiblidade de resolução do


problema com a criação de novos cargos exige que a atuação dos órgãos
de execução ministerial seja racionalizada, para que se possa obter resul-
tados úteis e eficientes na defesa dos direitos metaindividuais confiados
ao MP pelo Constituinte.
Registre-se que a criação de cargos para fazer frente às demandas
sociais não é medida que nos pareça possível, destacando-se dois moti-
vos: 1 – em razão da conhecida carência de recursos da grande maioria
dos Ministérios Públicos; 2 – pela lei de responsabilidade fiscal o Minis-
tério Público pode comprometer apenas 2% da receita líquida do Estado
com pessoal enquanto o Poder Judiciário pode comprometer 6% (consta-
ta-se que o legislador engessou o Ministério Público, na área de pessoal, a
1/3 do Judiciário).
Por certo, a maioria das propostas de racionalização que passare-
mos a destacar não são novas, já tendo sido apresentadas em artigos e
congressos. Todavia, não poderíamos deixar de mencioná-las pela
pertinência e atualidade do tema.
137

3.1 RACIONALIZAÇÃO NA ATUAÇÃO COMO CUSTOS LEGIS

3.1.1 Mudança da forma de atuação

A primeira medida para a racionalização é a mudança da forma de


atuação como custos legis.
O promotor que atua no cível deve ter maior poder discricionário
para aferir a existência de interesse público que justifique sua maior ou
menor participação no processo.
Premissa sempre presente na atividade do promotor deve ser a uti-
lidade e efetividade de sua atuação para avaliação da necessidade de dis-
pêndio de maior ou menor energia para enfrentamento do caso concreto.
Estaria o promotor, assim, apto a decidir se determinado caso exi-
giria um parecer sobre o mérito ou um simples despacho de impulso pro-
cessual.
Não haveria, também, a necessidade de manifestação antes das
partes ou de analisar os requisitos da petição inicial antes do juízo.

3.1.2 Não participação em feitos sem interesse social

Uma outra possibilidade é a não participação em alguns feitos, como


em ação de natureza previdenciária, executivos fiscais, causas de mera
defesa de interesses patrimoniais da fazenda ou procedimentos de jurisdi-
ção voluntária que não envolva interesses de incapazes.1

3.1.3 Dispensa de manifestação na fase recursal

Outra forma de racionalização de atuação no processo civil como


custos legis é a dispensa de manifestação na fase recursal pelo represen-
tante de primeiro grau. A manifestação ministerial seria apresentada pelo
representante do segundo grau.
Embora a racionalização esteja relacionada ao convencimento e
mudança de paradigima do próprio membro do Ministério Público, em

1
Vide nota 1.a ao art. 1105 do CPC de Theotônio Negrão, 30ª ed.
138

razão do princípio da independência funcional, a edição de atos e reco-


mendações da Administração Superior é muito importante para unifor-
mizar as formas de atuação e incentivar a adoção da racionalização da
atuação funcional.
Em Santa Catarina, por exemplo, temos um ato conjunto do procu-
rador-geral com o corregedor-geral que dispensa a manifestação do pro-
motor de Justiça em grau de recurso sobre as razões e contra-razões das
partes, quando intervêm como custos legis no processo civil, consignan-
do que a manifestação do MP será apresentada, se for o caso, pelo órgão
de Segunda Instância.
Destacamos, também, a “Carta de Ipojuca”, do Conselho Nacional
dos Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União,
datada de 13/05/03, que tem como objetivo incentivar e indicar alterna-
tivas para a efetiva adoção da racionalização na atuação do Ministério
Público como custos legis.
Passaremos agora a comentar a racionalizão da atuação ministerial
na defesa do consumidor propriamente dita.

3.2. RACIONALIZAÇÃO NA ATUAÇÃO NA DEFESA DOS CONSUMIDORES

3.2.1 Atendimento de casos tratando de direito coletivo

Inicialmente, o Ministério Público deve ser visto apenas como um


dos instrumentos da política nacional das relações de consumo, dentre os
relacionados no art. 5º do Código de Defesa do Consumidor. O consumi-
dor poderá contar, além do Ministério Público, com Juizados Especiais
Cíveis, associação de defesa do consumidor e orgãos municipais de defe-
sa do consumidor.
Diante do grande número de atribuições conferidas ao Ministério
Público após a Constituição Federal de 1988, notadamente relacionadas
aos direitos coletivos, não há como se fazer um trabalho de ampla
abrangência social nas respectivas áreas de atuação senão elegendo prio-
ridades.
Por força de sua destinação constitucional, o MP deve priorizar sua
atuação apenas nas questões consumeristas de cunho coletivo. Os casos
139

individuais devem ser tratados através dos órgãos de defesa do consumi-


dor ou Juizado Especial Cível, até porque, na grande maioria das vezes,
são disponíveis.
É claro que o promotor pode atender qualquer do povo e eventual
acordo chancelado pelo órgão ministerial vale como título executivo (Lei
9.099/90, art. 57, par. único). Assim, estaria ele habilitado a resolver
questões de ordem exclusivamente individual. Ocorre que sua atuação
ficaria limitada a uma tentativa de acordo em razão da falta de legitimida-
de para deflagrar a ação necessária e, assim, não teria a abrangência social
que se espera do órgão.
É bom registrar que atrás de um caso de cunho individual pode
conter um direito coletivo, como cláusulas abusivas em contrato de ade-
são ou vício de um produto que atinja toda uma determinada série ou lote
do mesmo.
Outro aspecto importante a ser considerado é a possibilidade da
caracterização de um crime junto com a reclamação de cunho individual.

3.2.2 Eleição de prioridades nas questões coletivas - Macrotemas

O ideal seria que o Ministério Público do consumidor atuasse com


intensidade em todas as questões relacionadas às violações de direito
transindividual. Ocorre que, muitas vezes, não há possibilidade para tal.
Assim, necessária a eleição de macrotemas para dispensar maior dedica-
ção.
Definido o macrotema, poderá ser escolhido o tema que exija uma
atuação do Ministério Público mais efetiva, sempre levando em conta a
realidade e os interesses da coletividade onde o promotor atua.
O direito mais importante a ser preservado nas relações de consu-
mo é o da proteção da vida, saúde e segurança do consumidor. O próprio
art. 6º do CDC, ao arrolar os direitos dos consumidores, destacou-os em
primeiro lugar. Natural, assim, que mencionado macrotema deva ser ob-
jeto de preocupação primeira pelo Ministério Público do consumidor.
Importante ressaltar, também, que não se corre o risco de falta de
legitimidade do MP nas atuações relacionadas à vida, saúde e segurança
do consumidor.
140

Cláusulas contratuais abusivas e publicidade é outro macrotema


que considero que mereça especial atenção do Ministério Público.
O Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, ao fun-
damentar a Súmula nº 26, corroborou a necessidade de eleição de priori-
dades na defesa coletiva dos consumidores, senão vejamos:
“O Conselho Superior homologará arquivamento de inqué-
rito civil ou assemelhado que tenha por objeto representação de
conselho de profissão de saúde, se fundada em descumprimento
de norma legal da qual não decorra perigo concreto à saúde públi-
ca.”
Fundamento: o Ministério Público, de uns tempos a esta
parte, vem sendo procurado por conselhos profissionais (ex.: en-
fermagem, farmácia) recebendo inúmeras representações que vi-
sam o cumprimento de normas legais que regulamentam tais pro-
fissões. Contudo, os conselhos profissionais constituem-se em
autarquias e como tais são consideradas expressamente como co-
legitimadas para a propositura de ação civil pública (lei 7.437/85).
Têm os representantes plena e total capacidade para ingressar com
as competentes ações civis públicas cujo ajuizamento vêm postular
do Ministério Público. Por outro lado, o descumprimento de nor-
ma legal relativa a profissão de saúde nem sempre implica em situ-
ação concreta de dano. É conhecida a sobrecarga do Ministério
Público na área dos interesses difusos e coletivos. O ideal seria que
nossa estrutura permitisse a apuração de todo e qualquer dano ou
possibilidade de dano a tais interesses. Contudo, não mais é dado
desconhecer que no momento atual a realidade demonstra que isto
não é possível. Havendo que se traçar os caminhos prioritários na
área, entende-se que a proposta constituirá em instrumento para
que se inicie a racionalização, buscando maior eficácia na atividade
ministerial. Ressaltou-se acima que os próprios representantes têm
legitimidade para ajuizar as ações competentes, pelo que a solução
de racionalização ora preconizada não trará qualquer prejuízo ao
interesse difuso em questão.” (o destaque não faz parte do original).

3.2.3 Estimulação à criação de Procons

Para que o promotor possa se dedicar apenas a questões de cunho


coletivo, é indispensável a existência de um Procon com atuação em sua
comarca.
141

Nas comarcas onde não existe Procon o promotor poderia mobili-


zar a sociedade e os poderes constituídos para criação de um órgão de
defesa do consumidor, fornecendo todos os subsídios necessários para tal
finalidade.
É importante registrar, todavia, que o órgão de defesa do consu-
midor não poderá simplesmente encaminhar ao MP as questões indi-
viduais não resolvidas administrativamente. Em tais casos, o procedi-
mento deve ser encerrrado com eventual aplicação de sanção admi-
nistrativa e inclusão do fornecedor no cadastro das reclamações fun-
damentadas, além de encaminhamento do consumidor ao Juizado Es-
pecial Cível.

3.2.4 Procon regional como alternativa

Para os municípios menores ou muito próximos, uma alternativa


que nos parece viável para diminuição dos custos e otimização dos traba-
lhos, é a ciação de um Procon Regional, com competência para atuação
em mais de um municípios. Para isso, é necessário que a lei municipal que
institui o Sistema Municipal de Defesa do Consumidor preveja tal possi-
bilidade, através de convênios entre os municípios interessados. Uma for-
ma de divisão de custos poderia ser proporcional ao número de habitan-
tes de cada município.
Em Santa Catarina, através da interferência do colega Américo
Bigaton, já está em funcionamento o Procon Regional da região de Con-
córdia, atendendo a população de sete municípios.

3.2.5 Atuação mais efetiva nos crimes contra as relações de consumo

Como sabemos, a legislação consumerista utiliza-se de três meios


para coibição de práticas abusivas no mercado de consumo: sanção na
esfera administrativa, civil e penal.
Uma boa forma de racionalizar a atividade ministerial na defesa do
consumidor é por intermédio do aumento do número de ações penais por
crimes contra as relações de consumo, pois o efeito pedagógico de uma
responsabilização penal mais vigorosa contribuíria em muito para a dimi-
nuição das práticas abusivas no mercado de consumo.
142

Apesar do grande número de infrações penais relacionadas à defesa


do consumidor, verifica-se um número inexpressivo de ações de natureza
penal contra fornecedores.
Poderíamos exemplificar com o crime de comercialização de pro-
duto impróprio ao consumo previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90.
É muito comum, principalmente nas pequenas cidades, onde as
mercadorias têm pouca circulação, encontrar produtos com prazo de va-
lidade vencidos, ou de origem animal sem a prévia fiscalização, sendo
expostos à comercialização.
Todavia, é rara a ação penal por crimes dessa natureza, quando,
segundo o STF , para a configuração do mencionado tipo penal não é
necessário impropriedade material. Basta a impropriedade formal. O que
se quer evitar é que o fornecedor exponha à venda mercadoria imprópria
ao consumo, independentemente de dano ou perigo de dano aos consu-
midores concretamente.2
Como diz o mestre Damásio de Jesus, “Que adianta resguardar a
vida pela descrição do homicídio como crime se não se protege o mesmo
bem jurídico pela observância da qualidade dos produtos de consumo?
Tutelando-se os interesses sociais ficam protegidos os bens individuais,
de superior importância.” 3
Poderíamos enumerar alguns motivos que, a nosso modesto sentir,
contribuem com o pequeno número de ações penais por crimes contra as
relações de consumo:
1 – Falta de conscientização dos próprios consumidores, que não
levam os fatos tipificados como crime ao conhecimento das autoridades,
preferindo, na maioria das vezes, resolver apenas seu caso individual;
2
“Recurso de habeas corpus interposto contra descisão denegatória proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça. Pretensão ao trancamento de ação penal por infração aos arts.
7º, IX, da Lei nº 8137/90/C/C o art. 16, § 6º, da Lei nº 8078/90. EXPOSIÇÃO À VENDA
DE MERCADORIA COM PRAZO DE VALIDADE VENCIDO.
A tipificação da figura penal definida no art. 7º, IX, da Lei nº 8137/90, por ser norma
penal em branco, foi adequadamente preenchida pelo art. 18,§ 6º, I, do Código de Defesa do
Consumidor, que define como impróprio ao uso e consumo produto cujo prazo de validade
esteja vencido. A exposição à venda de produto em condições impróprias ao consumo já confi-
gura o delito, que é formal e de mera conduta, consumando-se com a simples ação do agente,
sendo dispensável a comprovação da impropriedade material. Recurso de habeas corpus
improvido (Habeas Corpus nº 80090/SP, de 09/05/2000, Rel. Ministro Ilmar Galvão).
3
In Novíssimas Questões Criminais, Saraiva, 1998, pág. 143.
143

2 – desídia e falta de comprometimento das vigilâncias sanitá-


rias e órgãos de defesa do consumidor, deixando de exercer seu po-
der de polícia administrativa e de encaminhar as informações neces-
sárias ao MP, muita vezes em razão de interesses políticos da admi-
nistração;
3 – desconhecimento e falta de interesse da autoridade policial para
tratar de crimes contra as relações de consumo; e
4 – falta de iniciativa e cobrança do próprio representante ministe-
rial.
A maioria dos crimes contra as relações de consumo é considerada
de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima é de um ano. Possível,
assim, a transação penal, com a possibilidade de aplicação de sanção de
caráter pedagógico – como uma medida compensatória – e adequação do
infrator à legislação.
Nada impede, porém, que o juízo penal aceite como transação pe-
nal ajustamento de conduta celebrado entre o promotor e o infrator, com
fixação de multa significativa no caso de reincidência.
Assim, dependendo da pauta do Juizado Especial Criminal, o pro-
motor pode desde logo instaurar inquérito civil para resolver imediata-
mente a questão, credenciando e fortalecendo mais a instituição com tal
iniciativa perante a comunidade em que atua.
Quando o crime tiver pena máxima superior a um ano, mas aplicá-
vel a multa alternativa, cabível a propositura da suspensão condicional
do processo, após o oferecimento da denúncia .4

3.2.6 Atribuição criminal e civil do mesmo promotor

É fundamental também, a nosso sentir, que a atribuição para ques-


tões criminais relacionadas ao consumidor seja do mesmo promotor que
tenha atribuição no cível. Evita-se, assim, a duplicidade desnecessária de
tarefas e possibilita-se um tratamento uniforme relacionado ao assunto.
Além do mais, propicia-se ao promotor do consumidor o conhecimento

4
Neste sentido já se manifestou o TJSC ao apreciar a apelação criminal nº 98.018386-
3 e o TACRIMSP, conforme julgado inserto in RT 753/637-640, com citação de lição de Ada
Pellegrini Grinover na obra Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995, 2ª ed. RT, p. 236.
144

mais completo das violações aos direitos dos consumidores de sua comarca,
permitindo que escolha a melhor estratégia para combater os problemas.
Podemos destacar três alternativas para a atuação civil e criminal
ao mesmo membro do MP, ficando a critério de cada Ministério Público
analisar qual seria mais adequada: 1 – atuação do promotor cível na esfe-
ra criminal somente nos crimes contra as relações de consumo definidos
como puros, como aqueles previstos no CDC, na lei 8137/90 e na Lei de
Crimes Contra a Economia Popular; 2 – a atuação do promotor cível na
esfera criminal em todos os crimes contra as relações de consumo, inclu-
sive de legislações extravagantes; 3 – somente nos crimes relacionados a
procedimentos em andamento na Promotoria de Justiça do consumidor.

3.2.7 Resolução de conflito de atribuições

É comum que determinadas questões relacionadas a violações dos


direitos dos consumidores sejam de atribuição de mais de um órgão do
Ministério Público, do mesmo estado ou estados diferentes ou entre o
Ministério Público Estadual e Federal.
Como exemplo, podemos citar a produção de gêneros alimentí-
cios impróprios ao consumo destinados à cidades diferentes. O mais
sensato, para evitar a sobreposições de ações e busca de um resultado
efetivo mais rápido para o caso, é que o encaminhamento na esfera
cível seja dado pelo representante do Ministério Público do local onde
está situado o estabelecimento produtor, pela facilidade de contato
com os representante do estabelecimento (o que facilita um ajusta-
mento de conduta), produção de eventuais provas e cumprimento de
medidas judiciais.
Temos que ter em mente, também, que se o dano for regional o
juízo competente para conhecer eventual ação civil pública é o da capital
do respectivo estado e se o dano for nacional é competente o da capital
de qualquer estado ou no do Distrito Federal, conforme art. 93 do CDC.
Assim, nesses casos, eventual medida deverá ser adotada pelo represen-
tante do Ministério Público do consumidor da Capital onde está situado o
estabelecimento infrator.
Devemos evitar, também, a duplicidade de trabalho entre o Minis-
tério Público Estadual e o Federal. Quando há interesse de ambos na
145

resolução de um determinado problema, como questões relacionadas à


telefonia, o ideal é um trabalho em parceria ou que a questão seja tratada
apenas por um MP.

3.2.8 Importância de parcerias e convênios com outros órgãos

A atuação do Ministério Público do consumidor só terá um resulta-


do satisfatório se trabalhar em parceria com outros órgãos.
Na grande maioria das questões, o promotor depende de subsídios
técnicos e informações para agir.
Esses subsídios podem ser obtidos via requisição, todavia, com
muito mais facilidade e freqüência o promotor poderá receber as informa-
ções que necessita se atuar de forma solidária com outras instituições.
Em Santa Catarina, temos celebrado convênios de cooperação téc-
nica e estabelecido parcerias com instituições que têm contribuído signi-
ficativamente com as Promotorias do Consumidor do Estado, destacan-
do-se os seguintes órgãos: Vigilância Sanitária Estadual, Secretaria da
Agricultura Estadual, Corpo de Bombeiros, Procon Estadual, Departa-
mento de Proteção e Defesa do Consumidor; Conselho Regional de En-
genharia e Arquitetura, Conselho Regional de Medicina Veterinária e
Inmetro.
O Corpo de Bombeiros, por exemplo, adotou a seguinte rotina de
trabalho após a assinatura de convênio com o MP: verificando irregulari-
dades nas edificações, especialmente nos locais destinados à grande con-
centração de público, e não resolvidas administrativamente, remete rela-
tório circunstanciado com as adequações necessárias para cumprimento
das normas de segurança ao promotor do consumidor. O MP Estadual já
celebrou ajustamento de conduta com mais de 80 estabelecimentos, in-
cluindo estádios de futebol, teatros, clubes sociais, hotéis e pavilhão da
Proeb (onde se realiza a Oktoberfest).
Um outro convênio foi assinado com o Inmetro. Além da remessa
dos resultados dos exames que derem em desacordo em casos relaciona-
dos à saúde e segurança dos consumidores ou dos produtos pré-medidos
com desvios significativos de quantidade, ficou estabelecida a remessa de
informações sempre que seus agentes encontrarem expostos produtos im-
próprios ao consumo.
146

Podemos citar, também, o convênio assinado pelo Conselho Nacional de


Procuradores-Gerais, através de todos os Procuradores-Gerais de Justiça, com a
Agência Nacional de Petróleo, o qual irá proporcionar uma melhora significativa
no combate à produção e comercialização de combustível adulterado.

3.2.9 Atuação através de programas institucionais

A atuação através de programas institucionais, com a definição de prio-


ridades através de um plano geral de ação institucional, com a participação da
classe, e levando em conta as necessidades mais prementes da sociedade, é
medida muito importante para obtenção de um resultado mais útil e expressivo
na defesa dos direitos coletivos dos consumidores.
Definidas as prioridades, os Centros de Apoio poderão coletar subsídios
técnicos e estudar estratégias de atuação, facilitando a adoção de providências
pelos órgãos de execução.
Só para exemplificar, em Santa Catarina temos em andamento um pro-
grama denominado “Proteção Jurídico-Sanitária dos Consumidores de Produ-
tos de Origem Animal”.
Desde sua implantação, em outubro de 1999, já foram celebrados mais
de 180 ajustamentos de conduta relacionados ao assunto. Houve um acrésci-
mo de mais de 25% no número de estabelecimentos com inspeção estadual no
Estado, sem computar o número de novos estabelecimentos com inspeção
municipal e federal.

3.2.10 Divulgação dos resultados alcançados

A divulgação dos resultados alcançados, por intermédio da assessoria de


imprensa da instituição e outras formas definidas pelo promotor, é importante para:
1. otimização do trabalho realizado, diminuindo-se o número de no-
vos infratores pelo receio das conseqüências de sua ação;
2. estimular a sociedade a levar ao conhecimento do Ministério Públi-
co violações aos direitos dos consumidores; e
3. conhecimento pelos próprios membros da instituição das ações
adotadas pelos colegas.
Por outro lado, a atuação por meio de programas institucionais exige um
acompanhamento detalhado dos resultados alcançados, como forma de presta-
147

ção de contas à sociedade da transformação social provocada pela atuação


integrada do Ministério Público e a identificação das comarcas em que os resul-
tados não foram satisfatórios.
Só para exemplificar, destaca-se que o Ministério Público de Santa Catarina
desenvolveu um programa bastante útil para divulgação dos resultados alcan-
çados, denominado GIM – Gerenciamento de Informações Municipais, permi-
tindo, através da internet, o acompanhamento detalhado das ações relaciona-
das aos programas institucionais, mostrando no mapa do Estado as ações con-
sideradas importantes.

4. CONCLUSÃO:

1. O Ministério Público, para bem desempenhar suas atribuições consti-


tucionais na defesa dos direitos e interesses difusos e coletivos da sociedade,
deve racionalizar sua forma de atuação, priorizando a atividade como órgão
agente em detrimento da atuação como fiscal da lei;
2. como custos legis, o promotor deve ter maior poder discricionário para
manifestação sobre o mérito ou despacho de mero impulso processual, deixar
de participar de feitos sem interesse social e não se manifestar na fase recursal;
3. na defesa do consumidor, a atuação com racionalização é indispensá-
vel para que se alcançe mais efetividade e benefício social, apresentando-se as
seguintes propostas:
3.1. atendimento apenas dos casos de cunho coletivo;
3.2. eleição de macrotemas para priorizar as ações;
3.3. estimulação à criação de procon, sendo o procon regional - com
competência para atuar em mais de um município - uma alternativa;
3.4. atuação mais efetiva no combate aos crimes contra as relações de
consumo;
3.5. atribuição criminal e civil do mesmo promotor;
3.6. resolução de conflito de atribuições entre Ministérios Públicos em
favor daquele onde estiver situado o estabelecimento infrator;
3.7. importância de parcerias e convênios para obtenção de melhores
resultados;
3.8. necessidade de atuação através de programas institucionais; e
3.9. divulgação e acompanhamento dos resultados alcançados.
148
149

FUNDAMENTOS JURÍDICOS CONSTITUCIONAIS


IMPEDITIVOS DA ADOÇÃO DO DIREITO PENAL
JUVENIL NO BRASIL – UM PARELELO EM
RELAÇÃO À DIMINUIÇÃO DA IDADE
DA RESPONSABILIDADE PENAL

Gercino Gerson Gomes Neto


Promotor de Justiça da Infância e
Juventude em Santa Catarina

INTRODUÇÃO

Boa parte dos problemas hoje enfrentados em relação à execução


de medidas sócio-educativas decorre do injustificável, incompreensível,
porém inegável desconhecimento do Estatuto e normas correlatas por
parte de seus operadores, com especial enfoque aos, promotores de justi-
ça, magistrados e advogados. Se todos conhecessem e respeitassem as
normas e princípios aplicáveis à matéria, por certo não haveria em nosso
País, esta recorrente discussão da redução da idade penal, bem como tam-
bém a iniciativa de um grupo de defesa da infância, que, como resposta,
está tentando introduzir o direito penal juvenil no Brasil.
De igual sorte, é imprescindível que seja cobrada a implantação,
em cada município, de uma verdadeira política voltada à criação e execu-
ção de programas sócio-educativos, que por sua vez devem estar atrela-
dos a programas de proteção (correspondentes às medidas previstas no
art.101 do Estatuto) e, destinados aos pais ou responsável (nos moldes
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 149 a 167
150

do previsto no art.129 do mesmo Diploma Legal), isto com a PRIORI-


DADE ABSOLUTA preconizada pelo art.227, caput da Constituição
Federal, com a estrita observância do disposto no art.4º, par. único, alíne-
as “c” e “d” da Lei nº 8.069/90.
Apenas com a implantação, nos municípios (vide art.88. inciso I do
Estatuto), de uma ESTRUTURA MÍNIMA DE ATENDIMENTO a cri-
anças, adolescentes e suas respectivas famílias, através de programas de
prevenção, proteção, e sócio-educativos em meio aberto, é que se dará
plena efetividade à Legislação Tutelar, sendo que neste último caso (im-
plantação de programas sócio-educativos em meio aberto), supervisiona-
dos por equipe interprofissional e articulados com programas de prote-
ção, se estará não apenas cumprindo a lei, mas também proporcionando
alternativas viáveis e eficazes às medidas privativas de liberdade.
Por fim, a inadequada estrutura dos Estados brasileiros para a exe-
cução de medidas privativas de liberdade, com entidades superlotadas,
profissionais despreparados, ausência de política pedagógica, etc.
Ao analisarmos o capítulo da Lei 8.069/90 que trata do adolescen-
te em conflito com a lei, precisamos ter em mente a diretriz adotada pela
legislação vigente, que estabelece que o adolescente não pratica crimes,
bem como não se aplica às medidas sócio-educativas a prescrição, anis-
tia, graça e indulto, posto que são institutos de direito penal e de política
criminal.
Se a Constituição quisesse a responsabilização penal, teria expressado.
O Estatuto fala da prática de ato infracional, portanto, o intérprete
precisa ter a mente aberta para a aceitação desta nova concepção do di-
reito, ou seja que ato infracional não é crime e que sua responsabilização
é sócio-educativa e de natureza pedagógica.
Tânia da Silva Pereira diz que “encontram-se na psicologia, peda-
gogia, medicina, sociologia e nas demais ciências, recursos técnicos e prin-
cipalmente dogmáticos para que os fins sociais previstos na Lei nº 8.069/
90 sejam atingidas.”
A resposta não está no direito penal, pois a aplicação de institutos
de direito penal nada mais significa do que a falência do Estado, ou me-
lhor, a falência dos operadores jurídicos, que ante a falta de estrutura para
fazer justiça, preferem os números fáceis dos arquivamentos, por prescri-
ção, anistia, graça ou indulto.
151

Os defensores do direito penal juvenil sustentam que imputação


penal e responsabilidade penal são coisas diversas e que o fato do direito
da criança socorrer-se dos tipos penais traz para o mundo do direito da
criança a sistemática do direito penal.
Alegam que o Estatuto da Criança e do Adolescente trata do direi-
to penal juvenil ou Responsabilidade Penal Juvenil.

IMPEDIMENTO CONSTITUCIONAL PARA A


PENALIZAÇÃO DO DIREITO DA CRIANÇA
O artigo 228 da Constituição Federal e a responsabilidade
estatutária ou Direito Infracional

Obram em erro, em primeiro lugar, porque imputabilidade e res-


ponsabilidade penal, no direito brasileiro, têm praticamente o mesmo sig-
nificado e segundo, porque a responsabilidade que se atribui ao jovem é a
sócio-educativa, conforme definido no Estatuto.
A questão do socorro do Estatuto aos tipos penais e
contravencionais não tem o objetivo de igualar ato infracional a cri-
me, pois se assim fosse, o legislador teria mantido a nomenclatura do
Código de Menores, que chamava de infração penal, bem como teria
feito distinção entre contravenção penal e crime ou escalonado as
medidas de acordo com a gravidade do ato praticado, o que impediria
por exemplo, um autor de homicídio de receber medida de liberdade
assistida.
Péricles Prade no seu livro Direitos e Garantias Individuais da Cri-
ança e do Adolescente ao comentar a apreensão em flagrante diz:
“Houve, no caput, do art. 106, evidente adaptação do texto
transcrito, já que, em relação ao adolescente, por ser inimputável,
em se tratando de pessoa entre doze e dezoito anos (ECA, art. 2º),
não pode ser preso em flagrante delito, ocorrendo, tão-só, flagrância
de ato infracional, conquanto seja a correlata conduta anti-social
descrita como crime ou contravenção”. 1
E mais adiante:
1
In Direitos e Garantias Individuais da Criança e do Adolescente, Obra Jurídica ed.
Fpolis, 1995, p. 12.
152

Se não há prisão em flagrante, o mesmo se dá com a prisão


preventiva... se cinge ao ato físico da simples apreensão (ECA, art.
107), decorrente da inimputabilidade. Em suma: Não são equipa-
rados aos réus, adultos e imputáveis, sofrendo medidas sócio-
educativas, isto é, sem caráter de apenação”
O Tribunal de Justiça de Goiás na Apelação 17076-9/213, Rel.
Des. Byron Seabra Guimarães diz:
“Sendo o menor inimputável, não há que se falar em extinção
de punibilidade, fundamento da prescrição...O menor não pratica
crime, nem contravenção penal, mas sim ato infracional...”2
Trabalho do TJBA diz o seguinte:
“Uma outra posição se eleva, talvez até mesmo um tanto
mais adiante do ECA, mas certamente respeitando-o e
defendendo-o. Trata-se da perspectiva “abolicionista” que é defen-
dida por estudiosos europeus e que começa a despertar interesse
entre brasileiros opositores da cultura da punição, do castigo e do
encarceramento. Vale trazer a colaboração de Silva (referem-se a
Roberto Baptista da Silva):
“O padrão penalizador de resposta às situações-problema
em que se envolvem os adolescentes no Brasil é uma prática que,
além de infringir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) -
que privilegia o principio pedagógico como meio para se chegar à
solução das questões atinentes ao futuro cidadão - é uma prática
que deve ser combatida, não para substituí-la por “penas alternati-
vas”, enquanto imposições de modelos preestabelecidos de respos-
tas, tidos como axiomas que preservam a centralização do poder,
mas com o intuito de, através de uma educação horizontalizada e
que valoriza a conciliação, atingir maior grau de liberdade.”
“A cultura punitiva brasileira é a expressão da ideologia do-
minante do sufoco dos mais pobres, já plenamente realizado na
vida econômica mas que se quer estendido ao direito. A FEBEM é
o exemplo terrível do quadro mais cruel que é o sistema penitenci-
ário brasileiro. A sociedade da exclusão pensa em vingança contra o excluídos.
Profissionais da justiça solapam o ECA e enganam com suas palavras e concei-
tos que emanam dos altos postos que ocupam. Cada homem, em sua fragi-
lidade, é responsabilizado pelo seu próprio destino, e antes mesmo
que atinja a maturidade. Os adolescentes são vistos do mesmo modo

2
in Infância e Juventude – Jurisprudência, Escola Superior do MP, Goiás, 1998
153

por todos aqueles que, preventivamente e a posteriori, querem que


o infrator esteja fora do convívio social, e se possível de forma
definitiva.3 (grifei).
Vanderlino Nogueira, afirma:
“No Brasil, desde a promulgação do Código Penal de 1940,
uma coisa pode ter como certa e indiscutível: não se pode falar em
‘responsabilidade penal’ da criança e mesmo do adolescente, quan-
do têm condutas em conflito com a lei penal. Com a Constituição
de 1988, isso passa a ter sede constitucional.”4
Reafirmo que o objetivo do Estatuto é o compromisso com o res-
gate da cidadania do adolescente que só pode ser alcançado através da
educação, aí compreendida não só a educação escolar, mas aquela volta-
da à socialização, à formação do caráter, aquela desenvolvida 24 horas
por dia, onde convivência sadia, a troca de experiência, o interagir produ-
zem mais efeitos do que a simples preleção, o transmitir verbal de conhe-
cimentos ou mesmo o aprendizado através do padecimento imposto pela
aplicação da punição.
Quis o legislador, constituinte e estatutário, resguardar o adoles-
cente do ranço da punição estigmatizante. Tanto que em nenhum mo-
mento a lei reporta-se ao efeito retributivo ou mesmo intimidatório da
medida, pelo contrário, sempre preteriu tais figuras em favor da garantia
de oportunizar e facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiri-
tual e social, em condições dignas, destacando a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento.
Mesmo porque, hoje já é consenso entre os educadores e profissio-
nais afins de que não se educa pela repressão, ou pela punição. A verda-
deira educação processa-se pelo armazenamento de experiências e pela
compreensão dos fatos e atos.“
Pela repressão e punição forja-se um comportamento artificial, não
condizente com o de um cidadão cônscio de direitos e deveres.
Não há punição pedagógica. Pois o conceito de uma repele o da
outra.
3
obra citada, p.38
4
In políticas públicas e estratégias de atendimento sócio-educativo ao adolescentes
em conflito com a lei, Coleção Garantia de Direitos, série subsídios, tomo II, Ministério da
Justiça, 1998, p. 32.
154

Os que defendem que a medida sócio educativa tem caráter


retributivo e de prevenção da prática de ato infracional através do exem-
plo da punição, não estão interpretando adequadamente o Estatuto.
A proposta do Estatuto não é nem retributiva nem de exemplificação,
mas apenas e tão somente o compromisso responsabilizante e pedagógi-
co, de caráter sócio-educativo.
Outra questão é a não compreensão, pelos operadores, de que a
contenção, ai englobadas a internação e a semiliberdade, não têm um fim
em si mesmas, pois são meio, ou seja, instrumentos para que a proposta
pedagógica seja introjetada no adolescente em conflito com a lei.
Isto significa dizer que a contenção é aplicada porque a proposta
pedagógica só terá resultado, ao menos inicialmente, se houver a conten-
ção do adolescente, com seu afastamento temporário do meio em que
está inserido.
Reforço meu ponto de vista com os argumentos da ilustre professo-
ra Tânia da Silva Pereira, constantes do livro antes mencionado:
“Antes de iniciar o estudo particularizado de cada medida
sócio-educativa, é necessário esclarecer que elas não são penas. Na
verdade, devem ser providências judiciais cujo objetivo principal é
proteger o adolescente, promovendo seu desenvolvimento pleno e
sadio”.
Outro equívoco, e que sustentaria a tese tanto da diminuição da
idade penal quanto do direito (responsabilidade) penal juvenil é a argu-
mentação de que a fixação dos 18 anos como data limite da imputabilidade
penal é questão pura e simples de política criminal.
A Constituição da República, em seu artigo 228, diz que:
“ São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos,
sujeitando-se às normas da legislação especial.”
É verdade, porém o critério dos 18 anos, adotado na maioria dos
países leva em conta sim, a maturidade do jovem, tendo o nosso legisla-
dor escolhido este marco biopsicológico em razão disto, e isto ocorre em
muito mais de 50% dos países do mundo.
Aliás, esta é a recomendação das Nações Unidas (Seminário de
Assistência Social – 1949).
J. Cretella Júnior, constitucionalista, ao comentar o artigo 228 da
Constituição Federal, cita Raul Chaves e diz que:“O Código Penal, na
155

parte geral, art. 23, fixa em dezoito anos a capacidade penal e, com esse
limite, seguiu ‘de perto, sem exagerar, a média das conclusões tidas por
cientificas, a respeito do momento de maturidade do indivíduo”.
O Psiquiatra Forense Guido Arturo Palomba, em artigo publicado
na Folha de São Paulo, tecendo comentários a respeito dos limites da
menoridade, demonstrando, contudo, desconhecer a responsabilização
estatutária traça, do ponto de vista médico os critérios definidores da
maturidade, dizendo que entre os 13 e 17 anos, quando ocorrem o
espermatozóide no homem e a menarca na mulher, o cérebro ainda não
está totalmente desenvolvido, embora já ofereça condições para, no meio
social, o indivíduo formar seus próprios valores ético-morais e ter seus
interesses particulares. Aqui cabem , juridicamente, a semi-imputabilidade
penal e a incapacidade relativa para certos atos da vida civil. A partir dos
18 anos, a pessoa já tem suas estruturas suficientemente desenvolvidas,
biológica e psicologicamente; tem capacidade para entender o caráter ju-
rídico, civil e/ou penal de um determinado ato e está apto para determi-
nar de acordo com esse entendimento. Maioridade, imputabilidade penal
e capacidade civil. Ao adotarmos a zona fronteiriça na graduação da ida-
de civil e penal, daremos grande salto qualitativo em matéria de direito.
Por analogia, entre a infância e o adequado controle das funções inte-
lectuais e emocionais há a adolescência, dos 13 aos 18 anos. Ela dá à pessoa
o “tom” psicológico entre irresponsabilidade e responsabilidade, estado fun-
damental que poderia ser contemplado nas leis que os homens fazem.
Então, demonstrado que o critério dos 18 anos não é mero critério
de política criminal, tem sua lógica no ser em desenvolvimento, na matu-
ridade psicológica e biológica, o que legitima a opção da Constituição e
do Estatuto pela pedagogia.

DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NO BRASIL,


ENQUANTO CATEGORIA CONSTITUCIONAL5

Iniciando a discussão sobre a questão da idade penal como garan-


tia individual e a responsabilização especial como direito individual, am-
5
Os próximos capítulos fazem parte do Opúsculo A Inimputabilidade Penal como
Cláusula Pétrea, do autor, publicado pelo Centro das Promotorias da Infância, do Ministé-
rio Público de Santa Catarina, 2000
156

bos constitucionais, e conseqüentemente, como inseridos em cláusula


pétrea, passemos a breves considerações sobre os direitos e garantias in-
dividuais no Brasil, em sede constitucional.
A história dos direitos e garantias individuais no Brasil é uma histó-
ria de sofrimento, luta e desrespeito.
Porém, interessa-nos analisar sua elevação à categoria constitucio-
nal e sua asseguração como cláusula pétrea.
A Constituição do Império, em seu artigo 178, dizia que “é só cons-
titucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos po-
deres políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o
que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas
pelas legislaturas ordinárias.”6
Vê-se que a Constituição do Império elencou como direitos cons-
titucionais os direitos políticos e individuais do cidadão, tornando-os clá-
usula pétrea.
Nas demais constituições, todas republicanas, depreende-se das
transcrições de Cretella Jr.7 que em nenhuma outra há menção à condição
de cláusula pétrea dos direitos individuais do cidadão.
Entretanto, as Constituições de 1891, 1934, 1967 e 1969 mantêm
como cláusula pétrea a forma republicana federativa.
As Constituições de 37 e 46 não fazem qualquer ressalva ao poder de reforma.
Já a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 60, parágrafo 4o,
inciso IV, novamente colocou no patamar de cláusulas pétreas os direitos
e garantias individuais, impedindo sua modificação ou abolição.
Assim, diz o artigo 60 mencionado:
“ A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
...
“Parágrafo 4o – Não será objeto de deliberação a proposta
de emenda tendente a abolir:
...
“IV – os direitos e garantias individuais.”

6
In J. Cretella Jr., Comentários à Constituição de 1988, Forense Universitária, RJ, 1
ed. 1991, p. 2720
7
idem
157

Então, diante do estabelecido no artigo 60 da Constituição


depreende-se que a reforma constitucional derivada é possível no Brasil,
desde que observadas as exigências dos incisos do caput do mesmo artigo.
Entretanto, o poder derivado é limitado pois impossível a abolição
da forma federativa, do voto, da separação dos poderes e, por fim, dos
direitos e garantias individuais.

OS ARTIGOS 227 E 228 COMO CLÁUSULAS PÉTREAS

Com a Constituição Federal de 1988, a questão da inimputabilidade


penal passou a ser questão constitucional, assim como todo o conjunto
de direitos da criança e do adolescente e a prioridade no seu atendimento.
Quis o legislador originário definir com clareza os limites da idade
penal, em sede constitucional, da mesma forma como tratou de várias ques-
tões penais, já no artigo 5o, quando trata dos direitos e garantias individuais.
Dito isto, resta analisar quais sejam os direitos e garantias individu-
ais, que do ponto de vista constitucional é claro.
Estabelece o artigo 5o da Constituição Federal, o rol de direitos e
garantias individuais da pessoa humana, sendo desnecessário discutir se
são ou não amparados pelo parágrafo 4o do artigo 60, pois expressamen-
te definido na carta.
Entretanto, o parágrafo 2o do artigo 5o diz que são direitos e garan-
tias individuais as normas dispersas pelo texto constitucional, não apenas
as elencadas no dispositivo mencionado.
Diz o parágrafo 2o do artigo 5o :
“ Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Fede-
rativa do Brasil seja parte”.
Assim, este parágrafo nos traz duas certezas.
A primeira, que a própria Constituição Federal admite que encerra em seu
corpo, direitos e garantias individuais, e que o rol do artigo 5o não é exaustivo.
A segunda, que direitos e garantias concernentes com os princípios
da própria Constituição e de tratados internacionais firmados pelo Brasil,
integram referido rol, mesmo fora de sua lista.
158

Voltando à leitura do inciso IV, do parágrafo 4o, do artigo 60, com-


preendemos que o dispositivo refere-se a não abolição de todo e qualquer
direito ou garantia individual elencados na Constituição, não fazendo a
ressalva de que precisam estar previstos no artigo 5º.
Dito isto, parece-nos insofismável que todo e qualquer direito e
garantia individual previstos no corpo da Constituição Federal de 1988 é
insusceptível de emenda tendente a aboli-los.
Em relação a isto, assim se posiciona Ives Gandra Martins8 :
“Os direitos e garantias individuais conformam uma norma
pétrea. Não são eles apenas os que estão no art. 5o, mas, como
determina o parágrafo 2o do mesmo artigo, incluem outros que se
espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de
implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja exten-
são não se encontra em textos constitucionais anteriores.”
Diante do exposto, e com a certeza de que existem outros direitos e
garantias individuais espalhados pelo texto da Carta Política de 1988,
resta-nos a análise e comprovação, de que a inimputabilidade penal en-
cerra disposição pétrea, por ser garantia da pessoa com menos de 18 anos.
No que se refere à inimputabilidade penal, deixou-a o constituinte
para o capítulo que trata da criança e do adolescente, por questão de
técnica legislativa, uma vez que duas emendas populares, apresentadas
pelos grupos de defesa dos direitos da criança, fizeram inserir na Consti-
tuição os princípios da doutrina da proteção integral, consubstanciados
nas normas das Nações Unidas.
Desta forma, nada mais lógico do que inserir os direitos da criança
e do adolescente no capítulo da Família.
Quis o constituinte separar os direitos e garantias das crianças e
adolescentes das disposições relativas ao conjunto da cidadania, visando
sua maior implementação e defesa.
Assim, elegeu tais direitos, colocando-os em artigo próprio, com
um princípio intitulado de prioridade absoluta, que faz com que a criança
tenha prioridade na implementação de políticas públicas, por exemplo, e
desta forma, inclusive por questão de coerência jurídico-constitucional
não iria deixar ao desabrigo do artigo 60, § 4º, IV, os direitos e garantias
8
in Comentários à Constituição do Brasil, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra
Martins, Saraiva, vol 4, tomo I, 371 e ss
159

individuais de crianças e adolescentes, quando, foi justamente o contrá-


rio que desejou fazer e o fez.
Para comprovar o afirmado até aqui, transcrevemos parte do artigo
5o e dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal.
Em relação ao ato infracional e ao crime e seus processos:
“Art. 227-
§ 3º-
IV – garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição
de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica
por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar es-
pecífica;
V – obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade
e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quan-
do da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade;”.
Paralelo a este direito, temos o princípio constante do artigo 5o :
“ Art. 5o –
LV – aos litigantes... e aos acusados em geral são assegura-
dos o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.”
Inegável que os princípios do artigo 227 encontram suporte no inciso
acima transcrito e em todos os outros estabelecidos a partir do inciso
XXXIX.
Inegável, também, que tal disposição se coaduna com os princípios
adotados na Constituição Federal.
Ora, a formalização da ação sócio-educativa, a defesa profissional,
tudo isto não existia no antigo “direito do menor” e só passaram a incor-
porar o direito da criança e do adolescente a partir da Constituição,
garantista por excelência.
No que diz respeito ao artigo 228, da Constituição Federal, a inter-
pretação é a mesma.
Diz ele:
“São penalmente inimputáveis os menores de de-
zoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”
Traçando um paralelo, novamente, com o artigo 5º, no que diz respeito
ao direito penal e a vedação de aplicação de certas penas aos cidadãos, vemos:
160

“Art. 5o –
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos
termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;”
O legislador deixou claro que as penas ali constantes não serão apli-
cadas e, no caso do 228, da Constituição, ficou mais claro ainda, ao afir-
mar que os menores de 18 anos não receberão pena, posto que penalmen-
te inimputáveis.
Assim, quando afirma isto, o artigo 228 garante ao adolescente sua
inimputabilidade, da mesma forma que o artigo 5o garante a todos os
cidadãos a não-aplicação das penas de morte, perpétua, de trabalhos for-
çados, de banimento ou cruéis.
Então, se a legislação máxima não permite, por exemplo, a aplicação
da pena de morte ou de prisão perpétua e isto se consubstancia em garanti-
as dos cidadãos, insofismável afirmar que tais garantias são cláusulas pétreas.
Pinto Ferreira9 diz que em relação às garantias criminais repressi-
vas, elas são várias, “destacando-se entre elas inicialmente a
individualização da pena, impondo a pena de acordo com as condições
pessoais do delinqüente, a fim de suavizá-la, numa conquista que foi trazida
pela Constituição vigente de 1988...”.
O artigo 228, nada mais é do que a garantia da não-responsabilização
criminal da pessoa menor de 18 anos, justamente em razão da sua condi-
ção pessoal de estar em desenvolvimento físico, mental, espiritual, emo-
cional e social, sendo que, nada mais justo, que esta garantia se aplique
aos adolescentes.
Traçando um paralelo com a responsabilização especial do adoles-
cente e sua inimputabilidade, temos que quando a Constituição Federal,
no caput do artigo 228 afirma que as pessoas menores de 18 anos são
inimputáveis, ela garante a toda pessoa menor de 18 anos que ela não
responderá penalmente por seus atos contrários a lei.
9
in Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 5 ed., 1991, p. 153
161

Sendo assim, o referido artigo encerra uma garantia de não aplica-


ção do direito penal, como por exemplo, as cláusulas de não-aplicação de
pena de morte ou de prisão perpétua, são garantias de não-aplicação do
direito penal máximo a todos, conseqüentemente, todas cláusulas pétreas
garantidas pelo artigo 60, da Constituição Federal.
Em relação à segunda parte do artigo 228, que dispõe que o ado-
lescente, apesar de inimputável penalmente, responde na forma disposta
em legislação especial, contém além de uma garantia social de
responsabilização de adolescente, um direito individual de que a
responsabilização ocorrerá na forma de uma legislação especial.
Assim, estamos diante de uma responsabilização especial, não pe-
nal, que é um direito individual do adolescente e, como tal,
consubstanciado em cláusula pétrea.
Dito isto, só nos resta assegurar que este dispositivo constitucional
também é cláusula pétrea, portanto, insuscetível de reforma ou supres-
são.
O advogado Rolf Koerner Júnior, enquanto integrante do Conse-
lho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em 1996, teve aprova-
ção unânime daquele Conselho, de parecer contrário à proposta de Emenda
à Constituição 301/96, e que dá nova redação ao artigo 228 da Constitui-
ção Federal que diminuía a imputabilidade penal para os dezesseis anos,
onde assim se manifesta:10
“ (Também) a inadmissibilidade da emenda: a norma do art.
60, § 4º, IV, da Constituição Federal.
...
Apesar de a norma do art. 228, da Carta Magna, encontrar-
se no Capítulo VII (Da Família, da Criança, do Adolescente e do
Idoso), do Título VIII (Da Ordem Social), não há como negar-lhe,
em contraposição às de seu art. 5º ( Capítulo I, Dos Direitos e
Deveres Individuais e Coletivos, do Título, II, dos Direitos e Ga-
rantias Fundamentais), a natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias.”
Escreveu J.J. Gomes Canotilho que “os direitos de natureza análo-
ga são os direitos que, embora não referidos no catálogo dos direitos,
10
Koerner Júnior, Rolf, A menoridade é carta de alforria?, in O ato infracional e As
Medidas Sócio-Educativas, Subsídios, 6, para a Assembléia Ampliada do Conanda, Brasília,
2 e 3 de setembro de 1996, CONANDA, apoio UNICEF e INESC.
162

liberdades e garantias, beneficiam de um regime jurídico constitucional


idêntico aos destes.
“Então, nesse aspecto, na regra do art. 228, da Constituição Fede-
ral, há embutida uma ‘garantia pessoal de natureza análoga’ , dispersa ao
longo do referido diploma ou não contida no rol específico das garantias
ou dos meios processuais adequados para a defesa dos direitos.”
O posicionamento ora transcrito se coaduna com o posicionamento
do jurista Ives Gandra Martins, citado acima.
Não aceitar tal interpretação é negar vigência à própria disposição
constitucional do § 2º, do artigo 5o.

DIREITOS ASSEGURADOS NO ARTIGO 227

Para reforçar tais argumentos, pergunta-se o motivo pelo qual o


legislador colocaria no artigo 227, da Constituição que a criança e o ado-
lescente têm assegurado direito à vida e a liberdade, se no caput do artigo
5º, tais direitos já estão assegurados a todos indistintamente.
O artigo 227 elenca inúmeros outros direitos, grande parte deles idên-
ticos aos do artigo 5º, apenas com redação um pouco diferente, pois, quando
assegura, por exemplo, o direito à dignidade e ao respeito, nada mais está
dizendo do que aquilo que já consta dos incisos IV, V, IX, X, do artigo 5º.
Desta forma, quando o constituinte separou, não quis diminuir a
importância de tais direitos e garantias. Ao contrário, pretendeu pô-los
em evidência.
José Afonso da Silva11 , ao comentar os direitos da criança e do
adolescente, assim se posiciona:
“A Constituição é minuciosa e redundante na previsão de
direitos e situações subjetivos de vantagens das crianças e adoles-
centes, especificando em relação a eles direitos já consignados para
todos em geral...”.
Desnecessário dizer que a responsabilização especial foi insculpida
na legislação pátria, através de novo ramo do direito brasileiro, que é o
Direito da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90, tendo
como fontes formais a Doutrina da Proteção Integral, Consubstanciada
11 In Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 9 ed. P. 721
163

no Direito Internacional – Convenção das Nações Unidas, Regras de Riad,


Regras de Beijing, e, no Direito Pátrio, como fonte a própria Constituição
Federal em seus artigos 227, 228, 204, II e § 2º do art. 5º.

O ARTIGO 228 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


Enunciado de duas garantias/direitos
constitucionais dos adolescentes

A primeira delas afirma que nenhuma pessoa menor de 18 anos de


idade será responsabilizada penalmente, ou seja, garante às crianças e
adolescentes a inimputabilidade penal absoluta.
E a segunda, decorrente da primeira, assegura ao adolescente a
responsabilização por seus atos infracionais, na forma da legislação es-
pecial, que, não poderá conter princípios de direito penal, sendo vedado o
direito penal juvenil.
Se considerarmos que mesmo as garantias e direitos que não cons-
tam do artigo 5º são considerados cláusulas pétreas, teremos a nítida com-
preensão de que, em nenhuma hipótese, o adolescente responde penal-
mente, seja, com a vedação da redução da imputabilidade penal, seja com
a criação do chamado “direito penal juvenil”, pois a Constituição impede
a responsabilização penal do adolescente, não podendo serem aplicados
princípios de direito penal, não importando que adjetivo tenha este direi-
to penal, sendo proibida a criação de legislação infraconstitucional com
tais características.

CONCLUSÃO

Diante disto, só nos resta reafirmar o dito até aqui, ou seja, que a
alteração da inimputabilidade penal das pessoas menores de 18 anos e a
forma de sua responsabilização (sócio-educativa) é constitucionalmen-
te proibida ao legislador infraconstitucional e ao reformador constituci-
onal.
O direito constitucional e da criança brasileiros não recepcionam a
imputabilidade/responsabilidade (penal juvenil).
Primeiro, como dito, é inconstitucional o Direito Penal Juvenil.
164

Segundo, imputabilidade é a qualificação penal da pessoa e respon-


sabilidade penal ocorre quando o imputável quebra a norma penal ex-
pressa, e uma vez que a pessoa até 18 anos é inimputável, não possui
responsabilidade penal, ao contrário do que consta da nova doutrina, que
pode se aplicar a outros países, mas por força da Constituição Brasileira,
aqui não se aplica.
A maneira como se interpreta o que é ato infracional e a proposta
pedagógica do Estatuto da Criança e do Adolescente, estão levando a
interpretação equivocada dos preceitos do Estatuto.
O Estatuto enunciou novo direito, e, mesmo que se diga que a ori-
gem das medidas sócio-educativas é de institutos assemelhados de direi-
to penal, elas nada tem a ver com pena e como tal não podem ser confun-
didas.
Têm a ver, isto sim, com o resgate da cidadania daqueles adoles-
centes que por motivos diversos conflitaram com a lei. Este resgate se faz
possível pela condição peculiar que possuem ou em que estejam, ou seja
de serem pessoas em desenvolvimento o que lhes faculta serem submeti-
dos a propostas pedagógicas concebidas para o fim específico de lhes
proporcionar a complementação de sua formação, a qual, em razão dos
atos infracionais, mostrou-se precária.
E, finalmente, importa dizer, que não podemos nos tornar reféns
desta teoria, visando deixarmos de ser reféns da inadequação do Sistema
Sócio-educativo Brasileiro.
Não podemos continuar reféns da pressão social pela redução da
idade penal e respondermos com a implantação do direito penal juvenil.
A falta de garantias aos adolescentes em conflito com a lei resolve-
se com a aplicação dos princípios constitucionais e legais vigentes.
Nenhuma nova lei, ou uma nova leitura do que seja o Ato Infracional
e a sua responsabilização irão resolver os problemas concernentes à apli-
cação das medidas sócio-educativas.
Precisamos sim, responsabilizar os Poderes Executivos, Ministério
Público e Judiciário, para que cumpram o seu papel, os primeiros,
implementando as políticas e os programas necessários ao atendimento
dos adolescentes em conflito com a lei, o segundo, através de seus Ór-
gãos, cobrando dos primeiros, seja por meio de ações civis públicas ou
ajustamentos de conduta a implementação da Lei 8.069/90, em sua
165

integralidade e princípios e, por fim, ao terceiro, julgando de acordo com


a lei e Constituição Federal para obrigar a implementação das políticas e
programas públicos.

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168
169

DELITOS FISCAIS:
VALIDADE DA PROVA OBTIDA EM MEIO ELETRÔNICO

Márcia Aguiar Arend


Max Zuffo
Promotores de Justiça - SC

Sumário: Introdução; 1. A prova nos delitos fiscais; 2. O Acesso da


fiscalização aos dados eletrônicos; 3. Desmistificando a técnica; 4. Con-
clusão; 5.Bibliografia.

INTRODUÇÃO

Assistimos, neste limiar do terceiro milênio, ainda maravilhados, à


revolução tecnológica que vem modificando e melhorando, em certa me-
dida, nossas vidas. Internet, telefonia móvel celular, WAP, mensagens SMS,
transmissão de dados via satélite, computadores com velocidade de
processamento e capacidade de armazenamento nunca então imagina-
dos, homebanking, B2B, handheld computers, e-mails, videoconferência
e outras novas tecnologias estão diminuindo as fronteiras do nosso mun-
do, revolucionando as comunicações, implicando mudanças efetivas nos
modelos de organização das corporações e do trabalho, alterando, sobre-
maneira o nosso cotidiano e as nossas vidas.
No entanto, é fato público e notório que o desenvolvimento das mes-
mas tecnologias, que tanto facilitaram tornando mais agradável e confortável
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 169 a 180
170

viver, também serviram como instrumento adequado para uma verdadeira


revolução tecnológica no mundo do crime, que hoje conta com sofisticação e
recursos técnicos suficientes, tanto para agir simultaneamente em diversos
locais da chamada “aldeia global”, lavando dinheiro através de operações
bancárias realizadas pela Internet em paraísos fiscais, quanto para organizar
rebeliões em presídios por intermédio do uso de aparelhos celulares1, como as
ocorridas no sistema presidiário do Estado de São Paulo, empreendidas pela
organização criminal PCC – Primeiro Comando da Capital.
As alterações provocadas por esta revolução tecnológica no mundo
do crime produzirão reflexos imediatos no Direito Penal e Processual Penal,
que estarão obrigados a lidar com novos fatos delitivos cuja criminalização
será demandada pela sociedade. Ainda que subsistam os elementos
anímicos, os agentes têm a faculdade de utilizar novos instrumentos de
comunicação capazes de lesar direitos e produzir danos. Há, novas ma-
neiras de praticar ilicitudes, e o nosso sistema ostenta descrições típicas
incompatíveis com as novas tecnologias de comunicação, as quais têm
importantes repercussões no campo probatório, para as quais também
não dispomos de legislação adequada. Apenas para sugerir a reflexão,
exemplificamos os crimes contra a honra praticados por e-mail, a sonega-
ção fiscal praticada por falso em meio eletrônico, os seqüestros planeja-
dos e organizados com o auxílio de telefones celulares móveis, etc., além
dos delitos já praticados em ambientes virtuais, como no caso da prática
de furto do dinheiro depositado em conta corrente por um hacker que
obteve, indevidamente, a senha do homebanking da vítima.
Diversos são os desafios a serem enfrentados pelos operadores jurí-
dicos que se defrontam com estas novas espécies de lesividade em um
ordenamento jurídico que, como o nosso, não se presta para intimidar,
reprimindo apenas os agentes da chamada criminalidade “convencional”.
A adoção das novas tecnologias de comunicação como instrumen-
tos para produzir lesão reclama aprofundamento reflexivo no que respei-
ta à validade das provas obtidas em meios eletrônicos de armazenamento
de dados, inclusive quando estes são apreendidos judicialmente no curso
de investigações de práticas criminosas.
Argumentam os que se insurgem contra a produção desta modalidade
de prova, que os meios eletrônicos de armazenamento de dados encontram-
1
Como se verificou no dia 21 de Fevereiro de 2001, quando o PCC promoveu 29
rebeliões simultâneas em presídios paulista. Informações disponíveis em: <http://
www2.correioweb.com.br/cw/2001-02-21/mat_28165.htm>. Acesso em: 26 set. 2001.
171

se sob o manto de proteção do art. 5º, X e XII da Constituição Federal, os


quais garantem, respectivamente, a inviolabilidade da intimidade e da vida
privada e a inviolabilidade e o sigilo da correspondência, das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, sendo ilegal, neste en-
tendimento, a realização de perícia para avaliar o conteúdo dos computado-
res e demais meios de armazenamento eletrônico e magnético de dados.
Os que se valem deste argumento, sustentam seu raciocínio no
acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal Federal na polêmica Ação Penal
n.º 307-3 do Distrito Federal, cujos reús eram o ex-presidente da Repúbli-
ca Fernando Collor de Mello e seu amigo (assassinado) PC Farias, dentre
outros co-réus. Foi considerada ilícita a prova produzida a partir do laudo
de degravação do conteúdo de um computador apreendido pela Polícia
Federal, sem as devidas formalidades legais.
Essa discussão assume especial relevância no Direito Penal Tribu-
tário, onde a influência das novas tecnologias começa a ser sentida na
prática dos delitos de sonegação fiscal, especialmente porque é significa-
tivo o número de contribuintes que, em virtude das facilidades provindas
do uso de computadores, opta por manter a sua escrita fiscal em meio
eletrônico ou magnético de armazenamento de dados, os quais passam a
assumir papel relevante na produção de provas da prática destes delitos.

1. A PROVA NOS DELITOS FISCAIS

Na investigação da prática de qualquer atividade delitiva é lícito


que as autoridades policiais e o Ministério Público requeiram, com base
no art. 240, CPP2, que o Poder Judiciário os autorize a promover a busca
2
CPP - Código de Processo Penal.
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
§ 1º. Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:
a) prender criminosos;
b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou
contrafeitos;
d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou des-
tinados a fim delituoso;
e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;
f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando
haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;
g) apreender pessoas vítimas de crimes;
h) colher qualquer elemento de convicção.
172

e apreensão de todos os elementos necessários à prova da ação delitiva,


bem como de qualquer elemento de convicção que possa contribuir para
a formação da opinio delicti.
Na apuração da prática de delitos fiscais, especialmente aqueles
nos quais os agentes ativos valem-se das facilidades oriundas das novas
tecnologias para a perpetração da sonegação, é comum que o requeri-
mento de busca e apreensão vise apreender, inclusive, todos os disposi-
tivos de armazenamento eletrônico ou magnético de dados, tais como,
CPU, disquetes, fitas magnéticas, CD-ROMs e discos ópticos, onde pos-
sam estar demonstradas a prática dos delitos, ou mesmo qualquer regis-
tro que sirva como elemento para a comprovação da prática do crime
investigado.
A necessidade da realização de perícia nos equipamentos de
armazenamento eletrônico e magnético de dados passa a ser, então, pro-
cedimento essencial para assegurar a apuração do cometimento de deli-
tos contra a ordem tributária. Ora, se tais crimes foram cometidos por
esses meios, então as provas podem estar arquivadas em equipamentos
que devem ser apreendidos, fato que torna imperiosa a realização da perí-
cia criminal, para determinar se dentre os dados armazenados nos equi-
pamentos, residem as provas destes crimes.
São impertinentes os argumentos de que os dados contidos em com-
putadores e outros meios de armazenamento eletrônico ou magnético de
dados estão garantidos pelo sigilo por conterem informações relativas à
intimidade comercial e pessoal de empresas, sob o amparo do art. 5º, XII
da Constituição Federal, consoante o entendimento contido no citado
acórdão do Supremo Tribunal Federal.
É fundamental ressaltar que o conteúdo do inciso XII do art. 5º da
CF/88 estabelece o sigilo das correspondências, das comunicações tele-
gráficas, das comunicações de dados e das comunicações telefônicas, não
estabelecendo, entretanto, o sigilo dos dados em si.
Neste passo, importante gizar que o vocábulo comunicação, de acor-
do com o Dicionário Aurélio Eletrônico Séc. XXI, versão 3.0, constitui o
ato ou efeito de emitir, transmitir e receber mensagens por meio de méto-
dos e/ou processos convencionados, quer através da linguagem falada ou
escrita, quer de outros sinais, signos ou símbolos, quer de aparelhamento
técnico especializado, sonoro e/ou visual. Isso significa dizer que, a prin-
173

cípio, de acordo com o art. 5º, XII, CF/88 não seria possível a violação
do fluxo de comunicação de dados.
No entanto, não obstante o sigilo das comunicações ser constituci-
onalmente garantido, é possível que os dados comunicados sejam, poste-
riormente, objeto de prova, sem que tal circunstância implique afetamento
ao direito à intimidade, pois caso contrário qualquer registro de dados,
seja em meio magnético ou eletrônico, ou mesmo qualquer rabisco em
um pedaço de papel, não poderia ser admitido como prova em qualquer
processo, fosse ele de natureza civil ou mesmo criminal, pois estaria vio-
lando o direito à intimidade e o sigilo da comunicação de dados.
Essa interpretação esdrúxula dos dispositivos constitucionais que
tutelam a intimidade e o sigilo da comunicação de dados não é adequada
e tampouco decorre do nosso ordenamento jurídico, tanto que o Código
de Processo Penal (arts. 231 e seguintes), quanto o Código de Processo
Civil (arts. 364 e seguintes), possuem regramentos tidos como válidos
perante nossa Constituição para a produção de provas documentais, den-
tre as quais, necessariamente, encontram-se as provas documentais
registradas em meio magnético.Nos códigos de Processo Penal e Civil, o
documento é conceituado como sendo “ a coisa que representa um fato,
destinada a fixá-lo de modo permanente e idôneo, reproduzindo-o em
juízo” 3 ou ainda “na definição de Carnelutti, documento é ‘uma coisa
capaz de representar um fato’… …em sentido lato, documento compre-
ende não apenas os escritos, mas toda e qualquer coisa que transmita
diretamente um registro físico a respeito de algum fato, como os dese-
nhos, as fotografias, as gravações sonoras, filmes cinematográficos etc.”4
Ao versarem sobre as provas documentais estes diplomas dão valor
probatório aos instrumentos ou papéis públicos ou particulares (art. 232,
CPP), tanto que o art. 376 do CPC estabelece que as cartas, bem como os
registros domésticos, provam contra quem os escreveu quando enunciam
o recebimento de um crédito; contêm anotação, que visa suprir a falta de
título em favor de quem é apontado como credor ou expressam conheci-
mento de fatos para os quais não se exija determinada prova.
Com base nestes preceitos, as mais diversas provas foram produzi-
das e utilizadas em processos penais sem que se levantasse a eiva de ilicitude
3
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.000. 5 ed., p. 285.
4
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Rio de
Janeiro: Forense, 2.001, p. 393.
174

das mesmas por violação ao sigilo das comunicações de dados. Apenas


para enriquecer a reflexão poder-se-ia questionar: qual o julgador que in-
validaria uma sentença condenatória pela prática de tráfico ilícito de en-
torpecentes sob o argumento de que a prova do comércio destas substân-
cias, consistente em uma agenda contendo o nome dos fornecedores e
adquirentes da droga, seria uma prova ilícita por violar o direito à intimi-
dade e o sigilo da comunicação de dados do traficante? A resposta é ób-
via: ninguém invalidaria esta sentença, por se tratar de uma prova absolu-
tamente válida. A agenda apreendida constitui acervo de informações
(dados) registradas até o momento da apreensão, e integra o conjunto de
objetos utilizados pelo traficante para o empreendimento criminoso.
Ocorre que os dispositivos legais que regram a produção da prova
documental foram criados em momentos nos quais o papel era, por exce-
lência, o meio utilizado para registro dos fatos e conseqüente constitui-
ção dos documentos. No tempo presente, o papel já pode ser dispensado,
seja para o registro dos dados, seja para a comunicação entre as pessoas,
seja para fixar a prova das relações comerciais, institucionais e até afetivas.
Estamos num tempo – já nem tão novo assim –, onde é crescente o
número de situações em que fatos da vida são registrados em meio eletrô-
nico ou magnético. Isso ocorre nas mais corriqueiras situações do cotidi-
ano das pessoas, como por exemplo na agenda telefônica de um aparelho
celular, no cadastro de endereços de um programa de e-mails, nos arqui-
vos pessoais armazenados em um computador, em uma agenda eletrôni-
ca que registra os compromissos pessoais diários, nos arquivos de uma
instituição financeira que armazenam os dados relativos ao seu patrimônio
monetário. Enfim, as possibilidades são infinitas, instaurando imediatas
conseqüências no mundo jurídico, especialmente no universo processual.
Os acervos eletrônicos de dados estão para o nosso tempo como
sempre estiveram os acervos manuscritos de dados em livros, cadernos,
cartas, diários, ou bilhetinhos. Nestes, nunca se admitiu a inviolabilidade
seja da intimidade ou da privacidade como garantia do acobertamento ou
da impunidade de crimes. Os documentos quando repositórios de provas
sobre a prática de crimes, desde que legalmente apreendidos e devida-
mente submetidos à perícia, constituíram, nas sociedades “pré-
internetianas”, núcleos seguros para respaldar o julgador.
É evidente que a produção da prova documental assentada sobre o
papel, difere da que se encontra em meios eletrônicos e magnéticos. Esta
175

última reclama uma decodificação da linguagem binária, a linguagem do


computador, para que se torne compreensível ao intelecto do julgador,
não acostumado ao domínio dos códigos binários próprios da computa-
ção. É impossível perceber num disco rígido, sem que seja ligada a máqui-
na computador, o que nela está contido e tampouco a olho nu perceber a
presença física dos códigos binários (0101100001.......e assim sucessiva-
mente).
Assim, enquanto nos documentos tradicionais que se utilizam do
papel como registro fixo de um fato ou ato, é possível compreender, pela
simples leitura gráfica, representante da linguagem verbal, a natureza do
documento, a intenção dos seres emitentes da vontade e o alcance do ato
consignado no papel, nos documentos eletrônicos ou em meio magnéti-
cos, é necessária a conversão da linguagem binária para a nossa lingua-
gem corrente.
Da mesma forma como ocorre na análise de uma prova documental
consistente em uma fotografia, um filme ou uma gravação sonora, onde
não podemos colher o conteúdo da prova sem o auxílio de instrumentos
que revertam os dados colhidos no negativo da fotografia, no filme ou na
fita com a gravação para padrões de imagem e som reconhecíveis por
nossos sentidos, assim como não podemos compreender o conteúdo dos
dados colhidos em um HD, um disquete ou um CD apenas mediante sua
contemplação.
Isso significa que as provas colhidas em computadores, CDs,
disquetes, ou quaisquer outros meios magnéticos ou eletrônicos de
armazenamento de dados são provas documentais, submetidas ao regime
constitucionalmente válido de produção desta espécie de prova, necessi-
tando apenas de um processo mais complexo para a conversão destes
dados armazenados para padrões compreensíveis e aptos a subsidiar o
julgador da prova.
Portanto, assim como não há violação das cláusulas constitucio-
nais que tutelam a intimidade e o sigilo das comunicações quando da
apreensão de documentos nas empresas, não haverá violação na colheita
de dados contidos nos objetos apreendidos, por se tratarem de provas de
natureza documental.
Em se tratando de documentação fiscal a questão toma outro nor-
te, especialmente em razão da legislação que foi produzida para a ade-
176

quação da vida comercial atual às novidades da veloz e eficiente


informatização de dados e da economia.
Atento aos novos agires do mundo negocial e às novas operações
comerciais que foram sendo realizadas, a Administração Tributária en-
tendeu que não poderia continuar ignorando a informática. Muito ao con-
trário. Tem nela uma grande aliada, apta a garantir maior agilidade na
detecção das operações sobre as quais há incidência de impostos, assim
como auxiliar nas ações próprias do poder de polícia tributário, exercido
pelos corpos fiscais das entidades tributantes.
O simples fato de uma pessoa jurídica adotar a escrita fiscal por
meio magnético não lhe reserva direitos de inviolabilidade dos dados que
têm armazenado nos seus computadores. Os acervos de dados em com-
putador ou outros meios magnéticos das empresas que realizam fatos ge-
radores do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, continuam sujeitos
à fiscalização fazendária, e sobre eles é que os agentes dos fiscos promo-
vem as verificações fiscais para legitimação dos lançamentos fiscais.
A pretensão de quem busca acobertar-se nas garantias da intimida-
de e da privacidade documental e de dados é de todo injustificável posto
que os computadores e meios magnéticos que venham a ser apreendidos
no curso de qualquer investigação da prática de crimes contra a ordem
tributária, ostentam potencial e inequívoca condição de provar não só as
defraudações, mas a dimensão temporal da atividade sonegadora.
Estaríamos admitindo o maior dos absurdos se a utilização de mei-
os eletrônicos servisse, como pretendem alguns, para acobertar qualquer
crime, ou frustrar a prova da sua prática ou a identificação dos seus auto-
res. Seria erigir a informática ao grau de ciência geradora da impunidade,
o computador como o instrumento a serviço dos criminosos e o Judiciá-
rio, o Ministério Público e a Polícia como organismos do silêncio e da
insanidade, num mundo onde o crime não teria nenhuma autoridade a
enfrentar e reagir.

3. DESMISTIFICANDO A TÉCNICA

As provas documentais produzidas com base em dados armazena-


dos em meios magnéticos e eletrônicos é algo recente nos processos judi-
ciais, e ainda cercada por certas místicas que tendem a macular a sua
177

eficácia.A estratégia mais comum de defesa de réus em processos crimi-


nais, ao se verem confrontados com provas documentais desta natureza,
é alegar que os dados contidos no computador foram maliciosamente
enxertados ou alterados pela acusação com o intuito de incriminá-los,
buscando com isso criar a dúvida sobre a legitimidade da prova, esperan-
do, assim, obter a absolvição por insuficiência de provas. No entanto, se
estas provas são cuidadosamente manuseadas por especialistas, é possí-
vel afastar, com êxito, o discurso da defesa.
Atualmente, os peritos criminais ao lidarem com esse tipo de prova
utilizam-se de um procedimento chamado de duplicação pericial 5, onde o
conteúdo dos equipamentos eletrônicos ou magnéticos que contenham
as possíveis provas, como HDs, CDs ou disquetes, são integralmente du-
plicados em um equipamento idêntico, que é então submetido à efetiva
análise, sendo o original preservado, para contraprova, caso haja necessi-
dade.
Para dar mais credibilidade ao processo de duplicação pericial dos
meios de armazenamento de dados, tem-se adotado os seguintes procedi-
mentos: os equipamentos são lacrados quando da sua apreensão e os la-
cres são removidos apenas na presença dos proprietários destes bens,
momento no qual são entregues à custódia dos peritos judiciais que inici-
am o procedimento de duplicação.
Os peritos podem utilizar os processos de somas de verificação
criptográfica no processo de duplicação pericial para atestar, posterior-
mente, a integralidade da prova produzida.Kevin Mandia e Chris Prosise
explicam como funciona este procedimento:
“Se um arquivo e a cópia confiável forem perfeitamente equi-
valentes, a integralidade do arquivo fica validada. O problema está
em fazer a comparação – examinam-se os arquivos linha a linha ou
comparam-se atributos, como o tamanho do arquivo? E se o ar-
quivo em questão for um binário compilado? Como fica a integri-
dade dele?
A solução é usar somas de verificação criptográficas. Uma
soma de verificação criptográfica, também conhecida como resu-
mo de mensagens ou como impressão digital, é basicamente uma
5
Maiores informações sobre estes e outros procedimentos de investigação de crimes
desta natureza podem ser obtidas na obra: MANDIA, Kevin. Hackers: resposta e contra ata-
que: investigando crimes por computador. Rio de Janeiro: Campus, 2001.
178

assinatura digital. É criada aplicando-se um algorítimo ao arquivo.


Cada arquivo tem uma soma de verificação exclusiva. Portanto, tra-
ta-se de um atributo perfeito para verificar a integridade dos arqui-
vos.
[...] Hoje em dia, a soma de verificação mais comum e mais
aceita é o algoritimo MD5, criado por Ron Rivest, do MIT, e
publicada em abril de 1.992 como o RFC 1321. O algoritimo MD5
cria uma soma de verificação de 128 bits de qualquer arquivo gran-
de.
[...] Para criar uma soma de verificação MD5 de um arquivo
binário, deve-se usar o sinalizador –b (desnecessário nos sistemas
UNIX):
C:\ > md5sum –b test.doc
95640dd2eabc0e51e2c750ae8c0cd4b5 *test.doc
O asterisco (*) antes do nome indica que a entrada é um
arquivo binário. O nosso arquivo test.doc contém o texto “Isto é
um documento de teste”. Se editarmos o arquivo, mudando o tex-
to para “Isto é um documento de teste2”, teremos a seguinte soma
de verificação:
C:\ > md5sum –b test2.doc
Cc67710c67ef69ed02c461c9a9fbe47e *test2.doc
Observe-se que a soma de verificação mudou, assim como
o conteúdo do arquivo. (A mudança do nome do arquivo não afeta
a soma de verificação.)”6
Utilizando-se de tal procedimento é possível, no momento em que
é realizada a duplicação pericial, extrair uma soma de verificação
criptográfica do material a ser duplicado, e, posteriormente, caso venha a
ser discutida a integralidade do laudo produzido com base no material
duplicado, demonstrar que a soma de verificação criptográfica obtida no
material apreendido e a obtida no material duplicado são idênticas, de-
monstrando assim que não houve qualquer alteração no conteúdo das
provas.
Com isso é garantida a integralidade da prova, evitando que a mes-
ma seja maculada desde o momento do início da perícia até a discussão
da mesma no processo. A presença dos titulares dos bens, na oportunida-
6
MANDIA, Kevin. Hackers: resposta e contra ataque: investigando crimes por computador.
Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 39-40.
179

de de deslacramento, assegura a não violação do equipamento apreendi-


do e que não houve qualquer manuseio indevido desses equipamentos
até o momento da entrega dos mesmos aos peritos, enquanto a utilização
de procedimentos como a soma de verificação criptográfica, atestam que
não houve qualquer alteração posterior no material periciado.

4. CONCLUSÃO

Conclui-se, portanto que:


– as novas tecnologias de comunicação podem constituir instru-
mentos para produção de danos, sendo necessária a reprogramação das
normas processuais para disciplinar a produção das provas obtidas em
meio eletrônico;
– a intensa utilização do computador na escrita fiscal das empresas
e pelas pessoas para armazenamento de dados com os quais possa ser
obtida a prova de crime contra a ordem tributária, reclama cuidado espe-
cífico na execução dos mandados de busca e apreensão de computadores,
além das perícias de duplicação pericial para preservação do corpo de
delito dos documentos em meio eletrônico aprendidos;
– há diferença entre comunicação de dados e armazenagem de da-
dos em meio eletrônico, sendo que a obtenção das informações armaze-
nadas em computador não implica violação do direito constitucional da
intimidade, consagrado no art. 5º, inciso XII da Constituição Federal.

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CPP - Código de Processo Penal.
180

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THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol.
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181

DA NECESSIDADE DE CONTROLE PELO


MINISTÉRIO PÚBLICO DOS TERMOS
DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA CELEBRADOS
POR OUTROS LEGITIMADOS À AÇÃO CIVIL
PÚBLICA EM DEFESA DO MEIO AMBIENTE

Rui Arno Richter


Promotor de Justiça em Florianópolis - SC

S itua-se a tese no âmbito do Sub-Tema atuação cível (“Contribuição do


Ministério Público para a Efetivação dos Direitos Sociais e Fundamen-
tais”), conjugando aspectos tanto do item “a atuação extrajudicial: com-
promisso de ajustamento, envolvimento com a comunidade e defesa soci-
al” quanto do item “controle dos atos do administrador público”, além de
relacionar-se, de forma reflexa, com o item da recomposição efetiva dos
danos causados e, portanto, diretamente relacionada a questão, portanto,
com a tutela dos interesses difusos.
O controle, pelo Ministério Público e pela sociedade civil em geral,
dos termos de ajustamento de conduta celebrados por outros legitimados
à ação civil pública em defesa do meio ambiente é um passo fundamental
para o efetivo acompanhamento da atividade dos órgãos públicos encar-
regados pela defesa do meio ambiente, atendendo aos princípios consti-
tucionais da participação, publicidade e defesa do meio ambiente ecolo-
gicamente equilibrado pelo Poder Público.
Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense
Set-dez/2003 – Nº 1 – Florianópolis – pp 181 a 184
182

Muito embora a celebração e convalidação (ainda que implícita,


como ocorre na homologação, pelo Conselho Superior do Ministério Pú-
blico – CSMP, do arquivamento de inquérito civil público instaurado por
órgão de execução do Ministério Público) do termo de ajustamento de
conduta juridicamente não iniba a tutela do interesse transindividual tu-
telado (in casu, o meio ambiente, interesse difuso por excelência), visto
que as obrigações ajustadas, no dizer de HUGO NIGRO MAZZILLI (O inquérito
civil 2. ed. p. 373), “constituem garantia mínima e não limitação máxima
de responsabilidade do causador de danos a interesses difusos”, o contex-
to prático de atuação de órgãos públicos legitimados à ação civil pública
em defesa do meio ambiente atrai a atenção não somente dos iniciados na
matéria mas também no cidadão comum, que muitas vezes recebe com
surpresa, quando não com indignação, notícias (bem verdade que às ve-
zes intencionalmente ou não distorcidas) a respeito do acertamento
extrajudicial de casos de ofensa ao meio ambiente, principalmente no que
tange à pertinência e proporcionalidade de certas medidas compensatóri-
as pactuadas.
Neste diapasão, apenas a cunho ilustrativo, a experiência tem de-
monstrado situações como, por exemplo, hipótese em que órgão público
legitimado para a ação civil pública em defesa do meio ambiente, instada
por populares a agir em face de construção de uma piscina, por particular,
há menos de 30 (trinta) metros de uma lagoa, pactua com o degradador
“medida compensatória” consistente em plantio de mudas de árvores e
“adoção” de jardim de logradouro público, deixando de exigir a pronta
retirada das instalações a toda vista incompatíveis com o local.
Já registrada a indiscutível possibilidade de ação autônoma por qual-
quer dos demais legitimados, eis que não vinculados ao ajuste pactuado
(se assim não fosse, estar-se-ia sustentando afronta à garantia constituci-
onal de acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal),
ainda assim a ausência de comunicação expressa e detalhada ao Ministé-
rio Público, por órgãos outros que venham a celebrar termos de ajusta-
mento de conduta em matéria ambiental, se não os torna absolutamente
desconhecidos do agente ministerial, no mínimo causam retardamento de
ciência do mesmo, circunstância altamente danosa ao interesse difuso de
máxima efetividade de ações em defesa do bem ambiental.
Daí porque entender-se insuficiente, por exemplo, o disposto no §
8º do artigo 79-A acrescido à Lei 9.605/98, pela Med. Prov. 2073-33, de
183

25.01.2001, no sentido de que “Sob pena de ineficácia, os termos de


compromisso deverão ser publicados no órgão oficial competente, medi-
ante extrato.”
Se até mesmo nos processos judiciais as intimações do Ministério
Público somente se aperfeiçoam quando pessoalmente efetuadas junto
ao seu representante, com mais razão a celebração de ajustamento de
conduta em matéria ambiental, por outro órgão público legitimado à ação
civil pública deveria ser pessoalmente comunicada ao promotor de Justi-
ça com atribuições na área na respectiva comarca, além da publicação do
extrato no órgão oficial.
A questão avulta de interesse se se considerar que, admitida pela
maioria da doutrina a possibilidade de celebração de termo de ajustamen-
to de conduta no curso de ação civil pública, na qual é obrigatória a par-
ticipação do Ministério Público se não intervier como parte (art. 5º, § 1º,
da Lei da Ação Civil Pública). Ora, se o legislador consignou a
obrigatoriedade de acompanhamento das ações civis públicas pelo Minis-
tério Público e, nestas, quando ocorrer incidentalmente a celebração de
termo de ajustamento de conduta, é obrigatória a manifestação ministeri-
al antes da apreciação jurisdicional no sentido da homologação ou não do
ajuste, os termos celebrados extrajudicial, hipótese mais corriqueira, que
obviamente não se submetem à homologação judicial, mereceriam exame
caso a caso do Ministério Público, a fim de aquilatar se a tutela ao meio
ambiente encontra-se plenamente atendida pelas cláusulas pactuadas,
possibilitando também a fiscalização ministerial do efetivo cumprimento
do ajustado.
Ainda sob outro enfoque, dispositivo que se apresenta relevan-
temente vinculado a este debate e pouco se tem notícia de sua obser-
vância em termos mais estritos, é o disposto no artigo 6º da Lei 7.347/
85: “Qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a
iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre
fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhes os elemen-
tos de convicção”.
Assim, sendo dever do servidor público a comunicação referida ao
Ministério Público, mostra-se incongruente que o órgão público co-legiti-
mado para a ação civil pública em defesa do meio ambiente chegue ao
ponto de celebrar termo de ajustamento de conduta com o degradador e
não cientificar o órgão ministerial de tal fato.
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Propõe-se, então, como síntese conclusiva e encaminhamentos:


1) Termos de ajustamento de conduta celebrados por outros legiti-
mados à ação civil pública em defesa do meio ambiente deveriam obriga-
toriamente serem remetidos ao Promotor de Justiça com atribuição para a
defesa do meio ambiente na Comarca, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas a contar da data de sua celebração, sob pena de descumprimento do
art. 6º da Lei 7.347/85.
2) Envio de moção ao Congresso Nacional, a fim de que texto de
lei federal deixe expressa tal obrigação, que se entende já presente no
sistema, com cominação criminal específica em caso de descumprimento.

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