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Educação Unisinos

17(3):271-280, setembro/dezembro 2013


© 2013 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2013.173.11

Etnografia e pesquisa educacional:


por uma descrição densa da educação

Ethnography and educational research:


For a thick description of education

Amurabi Oliveira
amurabi_cs@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho visa contribuir para a discussão em torno da antropologia


educacional, campo de estudos ainda pouco explorado no Brasil, discutindo as possibilidades
abertas pela pesquisa etnográfica na educação. Muitas pesquisas educacionais têm se
utilizado do método etnográfico, bem como das teorias antropológicas, sem a devida reflexão
epistemológica em torno desse método. A discussão perpassa tanto uma análise mais ampla
do método etnográfico, quanto uma reflexão específica, em torno da proposta da antropologia
interpretativa problematizada por Geertz. Com isso, o artigo busca avançar na discussão
metodológica da pesquisa educacional, estreitando a discussão entre a antropologia e a
educação no debate científico.

Palavras-chave: antropologia da educação, etnografia, pesquisa educacional.

Abstract: This paper aims to contribute to the discussion of educational anthropology, field
of studies still little explored in Brazil, exploring the possibilities opened up by ethnographic
research in education. Much educational research has used the ethnographic method, as well
as anthropological theories, without proper epistemological reflection around this method.
The discussion involves both a broader analysis of the ethnographic method, as and specific
reflection on the interpretive anthropology proposed by Geertz. It seeks, thereby, to advance
the methodological discussion of educational research, by narrowing the discussion between
anthropology and education in the scientific debate.

Key words: anthropology of education, ethnography, educational research.

Escolas e culturas produção e transformação do conhe- para o processo de socialização das


escolares: palavras cimento, que em algumas sociedades crianças, que vem a ser o primeiro
introdutórias ocorrerá de forma institucionalizada, a ocorrer fora do âmbito familiar1
dentro do que conhecemos como (Durkheim, 1978).
Um dos fenômenos mais presen- escola. Esta instituição terá um pa- Em meio a este debate, deve-se
tes na realidade humana se dá em pel primordial para as sociedades, destacar o papel fundamental que a
torno dos processos de criação, re- em especial as modernas, como antropologia possuirá ao nos trazer

1
Ariès (1981) indica que, com o advento da escola, houve a criação do primeiro espaço de socialização próprio para as crianças, o que aponta para
a relevância de se compreender este ambiente para se entender não apenas a criança, como a nossa sociedade como um todo.
Amurabi Oliveira

uma concepção alargada de educa- para a forma como a educação repro- etnografia para a investigação edu-
ção, indo para além do processo de duz as relações sociais e de poder de cacional, destacando a perspectiva
escolarização. Neste sentido, a obra uma dada sociedade, aprofundando de uma “descrição densa da cultura”,
de Mead mostra-se especialmente as desigualdades existentes, como tal qual proposta por Geertz (1989),
emblemática. Em Sexo e tempera- também outros que têm questionado para apreender esta realidade.
mento (2002), a antropóloga ame- algumas das premissas adotadas por
ricana nos aponta para os processos esse conjunto de autores e de teorias O guru, o educador
educacionais que ocorrem entre os (Apple, 2002, 2006; Lahire, 1997), e outras variações
Arapesh, por exemplo, demonstrando ainda que não refutem completa- antropológicas
como estes se dão de forma dissipada mente os argumentos desenvolvidos.
entre as práticas sociais; nesta cultura, No entanto, para além da repro- O processo metodológico no qual
em outras palavras, mesmo nesta obra dução social, a escola também é o se assenta a pesquisa de caráter an-
que não é lida primordialmente como espaço da inventividade, da criação tropológico apresentou uma guinada
um trabalho no campo da educação, e da produção de novas práticas. em termos epistemológicos a partir
temos uma contribuição significativa Constitui-se neste universo a cria- dos anos 20 do século XX, quando,
para pensarmos os processos educa- ção de uma “cultura escolar”, que em 1922, Bronislow Malinowski
tivos não escolares2. possui uma dinâmica singular, a qual publicou Os argonautas do Pacífico
Se compreendermos a premissa se entrecruza com outras culturas Ocidental, no qual houve a primeira
culturalista em torno da constituição presentes na sociedade envolvente. sistematização do método etnográ-
dos chamados “padrões de cultura” fico, articulada a um trabalho de
(Benedict, 1983), que remetem ao No mesmo tempo e espaço da cultura campo sistemático.
processo de modelamento social, da escola, outras tantas cores podem Alguns de seus preceitos soam
por meio de normas e valores prin- ser vistas e apreciadas: processos estranhos aos ouvidos de um pesqui-
cipalmente, que constitui os próprios mais particulares e contingentes sador do século XXI, como a neces-
sujeitos, perceberemos que cultura das diversas culturas presentes no sidade de se afastar da “companhia
e educação não se encontram em cotidiano da escola, nas interações de outros homens brancos”. Uma
polos opostos, muito pelo contrário, e nas redes de sociabilidade que ali antropologia baseada unicamente
são trançadas. E que, multicoloridas,
uma vez que a educação também é no estudo de sociedades “tribais”,
carregam tons e variações de outros
constituída por determinado padrão tempos e lugares ou de bricolagem
“afastadas”, “selvagens”, não se
de cultura, ao mesmo tempo em desses outros tempos e lugares, faz mais possível, em um “mundo
que o constitui, ou seja, a educação oferecendo outras tessituras que tra- em pedaços” (Geertz, 2001), no
é uma forma de cultura, e a cultura duzem as experiências dos diferentes qual a modernidade chega aos mais
só pode ser compreendida enquanto sujeitos e participantes das dinâmicas diversos lugares, alterando o próprio
processo educativo, pois, afinal, educacionais na escola (Rocha e status do objeto antropológico (Gid-
como nos aponta Candau (2011, Tosta, 2008, p. 131). dens, 2001). Cada vez mais a antro-
p. 13), “[...] não há educação que não pologia se volta para a sociedade dos
esteja imersa nos processos culturais Desse modo, encontra-se no próprios antropólogos, as sociedades
do contexto em que se situa”. universo escolar uma miríade de dis- ditas “complexas”, criando-se a
No terreno da sociologia, pos- cursos, identidades, representações necessidade de não apenas familia-
suímos um vasto repertório de que se entremeiam na constituição rizar o distante, como também de
autores que buscam compreender de uma realidade idiossincrática. estranhar o próximo (Velho, 2003).
os processos sociais envolvidos na Devemos compreender que a escola, No entanto, algumas de suas
realidade educacional, destacando- mais que um espaço de socialização, premissas ainda são basilares na
se neste conjunto as perspectivas é um espaço de sociabilidades; ela pesquisa antropológica. Na proposta
reprodutivistas3, como Baudelot e seria por excelência um espaço metodológica presente na obra de
Establet (1971), Bowles e Gintns sociocultural (Gusmão, 2003). Pro- Malinowski, o pesquisador é con-
(1976) Althusser (1998), Bourdieu e pomo-nos, neste trabalho, apontar vidado a articular tanto os conhe-
Passeron (2006, 2008), que apontam para as possibilidades trazidas pela cimentos teóricos que possui, que

272
2
Devem-se destacar outras obras da autora, que dialogam mais diretamente com o campo educacional, como Coming of Age in Samoa (Mead, 2001a
[1928]), e Growing up in New Guinea (Mead, 2001b [1930]).
3
Para um melhor exame sobre a emergência das teorias da reprodução no campo da educação vide Nogueira (1990).

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Etnografia e pesquisa educacional: por uma descrição densa da educação

devem ser adquiridos antes da ida a o método etnográfico se constituiu


campo, quanto os dados empíricos Essas três abordagens conduzem não só com o “outro”, mas a partir
obtidos por meio de um conhecimen- ao objetivo final da pesquisa, que o do “outro”, apresentando, como uma
etnógrafo jamais deve perder de vista. problemática profunda, a questão
to meticuloso do cotidiano da reali-
Em breves palavras, esse objetivo é o
dade a ser estudada, o que pressupõe de que o objeto e investigador se
de apreender o ponto de vista dos na-
o estar com o outro, o processo de tivos, seu relacionamento com a vida, confundem na ciência antropológica
convivência com o chamado “nati- sua visão de seu mundo (Malinowski, (Lévi-Strauss, 1976). A este respei-
vo”, rompendo, assim, com a prática 1976, p. 37-38). to, Peirano (1995) nos coloca que a
predominante existente na antropo- pesquisa de campo na antropologia é
logia até então, também conhecida Sendo assim, a pesquisa antropo- caracterizada, justamente, pela busca
como “antropologia de gabinete”, lógica nos leva a imergir num uni- incessante do diálogo com o outro,
na qual o pesquisador conhece a verso diverso do nosso, ao mesmo ampliando e deixando mais explícitos
cultura a ser analisada por meio de tempo em que esta experiência nos os pressupostos existentes no fazer
dados secundários, fornecidos nesse possibilita apreender a construção científico nos quais teoria e dados
momento principalmente por cronis- subjetiva de uma determinada rea- empíricos devem estar em constante
tas e viajantes4 (Laplantine, 1988). lidade. A utilização de tal método e profundo diálogo. Neste sentido, a
Malinowski (1976) busca sintetizar na pesquisa educacional leva a uma etnografia é herdeira da tradição do
suas premissas da seguinte forma: guinada epistemológica, e mesmo Verstehen enquanto método compre-
ontológica, na medida em que traz ensivo da realidade social.
Nossas considerações indicam que os outra concepção de fazer ciência. Em todo caso, deve-se destacar
objetivos da pesquisa de campo etno- Para compreendermos melhor as que, mesmo sendo um método que se
gráfica podem, pois, ser alcançadas assenta numa construção intersubjeti-
questões epistemológicas ao fundo,
através de três diferentes caminhos: va, não significa que a compreensão
(i) A organização da tribo e a ana- devemos nos remeter a Dilthey
(2011), que, ao debater a distinção do sentido que o outro atribui a suas
tomia de sua cultura devem ser de-
entre as Geisteswissenchaften e as próprias ações possa ser resumida à
lineadas de modo claro e preciso. O
método de documentação concreta e Naturwissenschaften [ciências do Einfühlen6, pois estamos nos refe-
estatística fornece os meios com que espírito e ciências da natureza], rindo aqui a um ato de interpretação
podemos obtê-las. posiciona-se de forma distinta de (Geertz, 1997), e, como em toda
(ii) Este quadro precisa ser comple- Windelband e de Rickert5, conside- interpretação, há uma íntima relação
tado pelos fatos imponderáveis da entre os atos individuais e os contex-
rando que as ciências do espírito, por
vida real, bem como pelos tipos de tos, ou seja, por meio da etnografia
comportamento, coletados através de possuírem uma ontologia distinta,
podemos relacionar a ação de um
observações detalhadas e minuciosas demandariam uma episteme própria,
determinado sujeito a uma totalidade
que só são possíveis através do con- de modo que tanto o método como a
simbólica, social e cultural. Mas qual
tato íntimo com a vida nativa e que natureza da pesquisa científica se en-
devem ser registradas nalgum tipo de
o ganho substancial de uma pesqui-
contram atrelados de forma visceral.
diário etnográfico. sa etnográfica? Silva (2006, p. 24)
O método etnográfico, na pesquisa
(iii) O corpus inscriptionum – uma co- destaca justamente esta dimensão;
educacional, nos possibilita analisar o
leção de asserções, narrativas típicas, para o autor:
fenômeno a partir de uma apreensão
palavras características, elementos
folclóricos e fórmulas mágicas – deve subjetiva, inclusive de suas estruturas Reflexões sobre o trabalho de campo
ser apresentado como documento da objetivas, considerando-se a cons- feitas apenas em termos do que ele é
mentalidade nativa. trução intersubjetiva da pesquisa. em si mesmo ou de como aparece nas
Ao contrário de outras abordagens,

4
Este modo de se realizar a pesquisa antropológica foi emblemática na passagem do século XIX para o XX, na chamada escola evolucionista, formada
principalmente por antropólogos de origem britânica, destacando-se os nomes de Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan e James Frazer.
5
Para Windelband (1949 [1894]), a distinção realizada por Dilthey mostra-se infundada ao opor “natureza” e “espírito”; em seu lugar, Windelband
contrapõe a distinção ontológica de Dilthey a uma metodológica, classificando as ciências em nomotéticas, aquelas que procurariam determinar leis
gerais que expressem as regularidades dos fenômenos, e em idiográficas, que voltam sua atenção para o fenômeno singular, para suas idiossincrasias.
Rickert (1987 [1896]) nos chama a atenção para o fato de que qualquer ciência e o estudo de qualquer fenômeno são em algum grau nomotéticos,
e em algum grau idiográficos, de modo que estes autores opõem-se fortemente à distinção objetual proposta por Dilthey, centrando suas questões
no método. Podemos resumir a oposição entre as abordagens de Dilthey e de Windelband da seguinte forma: para o primeiro, as diferenças
metodológicas entre as ciências derivam de uma distinção ontológica, ao passo que, para o segundo, são as diferenças metodológicas que nos levam
273
a concepções de ciências distintas.
6
Remete ao conceito de empatia, que movimenta um grande debate dentro da hermenêutica, uma vez que não chega a ser um consenso a necessidade
ou não da empatia no processo de compreensão das ações humanas.

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universo escolar, das relações de gê- Esta perspectiva mais flexível


introduções metodológicas ou nos nero, do universo das representações presente na utilização da etnografia,
outros capítulos do texto etnográfico sociais, do debate do multiculturalis- contudo, não é uma exclusividade do
podem ocultar, entretanto, outras
mo, dentre tantos outros temas que fazer antropológico no Brasil. Zan-
questões mais pertinentes, a meu ver,
sobre a natureza do próprio trabalho
remetem a uma tradição da ciência ten et al. (1995, p. 235), ao discuti-
de campo. Se um dos principais ob- antropológica, bem como muitas rem acerca do processo de utilização
jetivos da antropologia é promover destas pesquisas têm se baseado na da etnografia no campo da socio-
um alargamento da razão possibili- investigação etnográfica, sem que logia da educação, apontam para a
tado pelo conhecimento das várias com isso haja uma referência mais chamada “Blitzkrieg ethnography”,
concepções de mundo presentes nas enfática à matriz teórica própria da que, “[...] para um pesquisador
culturas diversas (considerando-se antropologia. O aspecto para o qual armado de uma certa cultura socio-
que as culturas só se encontram
queremos chamar a atenção aqui é a lógica e antropológica, consiste em
através dos encontros dos homens),
o trabalho de campo é um momento
impossibilidade de se construir co- passar alguns dias em determinado
privilegiado para o exercício desse nhecimento a partir da etnografia de estabelecimento escolar e, a partir de
objetivo, pois é nele que a alteridade, forma apartada do debate teórico da algumas entrevistas e observações,
premissa do conhecimento antropo- antropologia, ou seja, não podemos construir uma imagem do estabele-
lógico, se realiza. compreender a etnografia como uma cimento considerado”. Isso não quer
simples “ferramenta de pesquisa” dizer que compreendamos aqui o
A reflexão em torno da pesquisa útil. Com a disseminação das pesqui- tempo em campo como irrelevante,
educacional, em nosso entender, sas denominadas etnográficas junto mas certamente essa não é uma
pressupõe também chegar à alteri- aos Programas de Pós-Graduação questão determinante e tampouco
dade, chegar ao “outro” de forma em Educação no Brasil, em especial se apresenta de forma linear no fazer
descentrada, percebendo como este a partir dos anos de 1980 (Caldas et etnográfico; lembremos o famoso
universo simbólico se constitui, se al., 2012), este tipo de reflexão se exemplo de Geertz (1989) em sua
constrói e se dinamiza. Em verdade, faz mais que necessário. pesquisa sobre as brigas de galo
muitas das teorias antropológicas, É-nos emblemático o fato de que em Bali, na qual, após dias sendo
bem como do método etnográfico, algumas perspectivas, como a do percebido como “invisível” pelos
têm sido utilizadas nas pesquisas trabalho de André (1995), sejam “nativos”, ao fugir intuitivamente
educacionais sem a devida reflexão amplamente difundidas no campo da chegada da polícia em uma rinha
epistemológica acerca desta utili- da educação quando se busca deba- de galos que observara junto com
zação. Valente (1996, p. 55) nos ter a utilização da etnografia neste sua esposa, teve seu status alterado,
aponta que universo de pesquisa, em que se de modo que o “campo” apenas se
afirma contundentemente que não abriu para este antropólogo após
[...] na problematização do emprego há pesquisa etnográfica no campo esse momento. Esta breve referência
de “técnicas” da Antropologia pela da educação, mas sim pesquisas de é importante para nos recordarmos
Educação, estão ausentes as refe-
“cunho”, “caráter”, “inspiração” que não é simplesmente uma longa
rências à produção matricial. Essa
omissão – que alcança inclusive etnográficos, sendo eu principal estadia em campo que nos garantirá
conceitos de autores bastante conhe- argumento que tem sido utilizado uma etnografia de qualidade, pois há
cidos – parece difícil de justificar-se refere-se ao tempo de estadia em imponderáveis com os quais teremos
apenas com a explicação de que campo, o que deve ser revisto consi- que saber lidar em campo.
no processo de transplante de um derando as próprias transformações Chamamos atenção, aqui, para
campo para outro, houve adaptações existentes no próprio campo da an- a necessidade de um processo re-
que provocaram mudanças em seu tropologia. Peirano (1992, p. 6), por flexivo em torno da própria estadia
sentido original. [...] Negligencia-se,
exemplo, aponta para o fato de que em campo, pois a utilização de um
ainda, que, apesar da variedade, tais
conceitos mantêm compromissos “[n]ós, brasileiros, menos ortodoxos método investigativo, que se assenta
com perspectivas teóricas diferencia- e mais inclinados à improvisação, na intersubjetividade, pressupõe
das que indicam os limites, alcance enquanto isso fizemos pesquisas- uma “vigilância epistemológica”
e desdobramentos de uma análise. relâmpago, nas férias ou nos fins (Bourdieu et al., 2004), de modo que
de semana, sem culpa e acreditando a “observação participante” não se
274 Sendo elaboradas dessa forma, que a criatividade poderia superar torne uma “participação observante”
muitas pesquisas têm se desenvolvi- a falta de disciplina e a carência de (Cardoso, 1986). Isto, no caso da
do em torno das relações étnicas no ethos científico”. pesquisa educacional, toma contor-

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Etnografia e pesquisa educacional: por uma descrição densa da educação

nos ainda mais fortes, uma vez que, Considerando o fato de que as
em qualquer realidade educacional, escolas se situam nas sociedades [...] o fato de que há posicionamentos
estaremos lidando com políticas ditas complexas, devemos encarar e de que todas as visões são parciais
públicas, agentes sociais dotados alguns fatores que se implicam não tem tais implicações para a episte-
mologia da antropologia como ciência
de interesses próprios, estratégias na pesquisa antropológica nestas
empírica. Isso de forma alguma dimi-
políticas, sociais e culturais, e esta- sociedades. No que tange à cultura nui a primazia a ser dada às realidades
remos lidando com uma realidade e tais sociedades, Barth (2000) nos que as pessoas constroem, aos eventos
perpassada de relações de poder que chama a atenção para o fato de que elas ocasionam, e às experiências
condicionam a ação dos agentes e que o significado é uma relação que elas obtêm. Essas constatações,
suas possibilidades de ação, reverbe- entre um signo e um observador; porém, forçam-nos a reconhecer
radas tanto nas práticas pedagógicas desvendar os significados cons- que vivemos nossas vidas com uma
quanto na realidade curricular. truídos em determinada realidade consciência e um horizonte que não
A etnografia se apresenta, desse cultural (escolar) pressupõe “[...] abrigam a totalidade da sociedade,
das instituições e das forças que nos
modo, como uma possibilidade de ligar um fragmento de cultura e um
atingem. De alguma maneira, os vá-
apreensão da realidade escolar, que determinado ator(a) à constelação rios horizontes limitados das pessoas
necessita de uma melhor reflexão particular de experiências, conhe- se ligam e se sobrepõem, produzindo
em torno de seus usos e de suas cimentos e orientações desse/dessa um mundo maior que o agregado de
possibilidades, ainda que deva- ator(a)” (Barth, 2000, p. 128). Esta suas respectivas práxis gera, mas que
mos destacar a necessidade desta ligação é viabilizada, justamente, ninguém consegue visualizar. A tarefa
imersão no universo escolar para pela apreensão da conjuntura cultu- do antropólogo ainda é mostrar como
a construção de um conhecimento ral de determinado grupo, tal como isso se dá, e mapear esse mundo maior
profundo em torno do que ocorre proposto por Malinowski; afinal, a que surge (Barth, 2000, p. 137).
naquela dimensão cultural. Não à dimensão da totalidade, e a relação
toa, um dos marcos da revolução que o pesquisador estabelece com A escola é este mundo maior
produzida pela chamada “Nova So- as ações dos sujeitos investigados, que surge, que vai para além dos
ciologia da Educação”, nos anos de é o que possibilita que a etnografia horizontes traçados pelos agentes
1970, foi justamente a utilização da não seja uma mera descrição da individuais. Suas posições no arranjo
etnometodologia, do interacionismo realidade (Laplantine, 2011). Como cultural mais amplo – mas também
simbólico, da fenomenologia e da compreender os significados das no mais restrito, em determinada
etnografia, para se compreender, práticas constituídas entre os sujei- cultura escolar – são o lugar a partir
justamente, os processos que ocor- tos que estão envolvidos na cultura do qual os sujeitos constroem uma
riam no interior do espaço escolar escolar sem inseri-los em contextos determinada realidade social; o
(Forquin, 1993). próprios? A etnografia nos possibi- universo escolar é composto, justa-
Uma das vantagens que vem lita responder a pergunta: quem são mente, a partir desta multiplicidade
sendo apontada para a utilização da estes sujeitos? Estes alunos? Estes de construções e de horizontes que
etnografia em outros campos é a sua professores? Estes gestores? confluem. No método investiga-
suposta flexibilidade metodológica, Barth ainda nos chama a atenção tivo, aproximamo-nos à posição
e certamente parte do que se espera para o fato de que os atores sociais defendida por Gadamer (1997), que
é verdade, ainda que expandir o estão sempre posicionados e é a traz uma nova interpretação herme-
escopo das etnografias não seja uma partir destas posições que eles pro- nêutica, para quem o intérprete traz
tarefa fácil. Entretanto, deve-se reco- duzem seus discursos e suas práticas. também um horizonte, de modo que
nhecer a necessidade de se articular à Compreender o que os sujeitos pro- o exercício interpretativo se baseia
prática etnográfica o próprio escopo duzem e fazem pressupõe uma apre- na “fusão de horizontes”; o horizonte
teórico ao qual ela se encontra atrela- ensão “de onde” eles falam. Mais do intérprete mostra-se fundamental
da, uma vez que a mesma não pode que isso, leva-nos a reconhecer que neste processo, que é, ao mesmo
ser compreendida como simples todos os pontos de vista colhidos, tempo, um ato de compreensão,
“técnica” de coleta de dados, já que no trabalho etnográfico, são sempre interpretação e aplicação. É por isso
a tal coleta não existe; os dados são parciais, incompletos, de modo que que Oliveira (2006) nos aponta que
construídos no processo interativo a etnografia não se limita a uma des- estes múltiplos horizontes devem
com os sujeitos, com os lugares, com crição da realidade, mas é também ser captados e contextualizados, 275
as experiências vividas por parte do uma interpretação da mesma. Ainda para que se possa compreender a
“nativo” e do pesquisador. segundo o autor: dinâmica da realidade educacional.

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Amurabi Oliveira

Por uma descrição densa espaço de sociabilidade e de cons- to de piscadelas; no entanto, os


da educação trução de subjetividades. Investigar a sentidos atribuídos pelos mesmos
realidade escolar é, também, realizar modificam-se. Estar na escola, em
A etnografia, em todo caso, lon- uma incursão sobre as identidades princípio, apresenta-se como um ato
ge de se constituir como um bloco que se constituem naquele espaço. homogêneo, em que os alunos, por
homogêneo de técnicas e de perspec- Trazemos aqui, por fim, as pos- exemplo, podem se apresentar como
tivas epistemológicas, apresenta-se sibilidades postas por uma pers- sujeitos movidos pelas mesmas
como um conjunto heterogêneo e pectiva particular da antropologia, motivações e condições objetivas;
heterodoxo de possibilidades, ainda inaugurada por Clifford Geertz, no entanto, ao imergirmos em seus
que alguns sustentáculos se mante- que se convencionou denominar universos simbólicos, chegaremos
nham. Oliveira (2006) nos chama de antropologia interpretativa ou a significados mais profundos, que
a atenção para o tripé sobre o qual antropologia hermenêutica. Geertz variam de acordo com as experi-
se assenta a pesquisa etnográfica, (1989), para formular sua proposta ências, trajetórias e posições que
colocando que esta implica uma metodológica, parte de Weber para ocupam no universo da cultura de
educação dos sentidos, pressupondo compreender a cultura como uma forma mais ampla.
o ato de olhar, ouvir e escrever. teia de significados, e, sendo ela O processo interpretativo, na in-
Estas três instâncias se comple- definida deste modo, implica que a vestigação educacional, apresenta-se
mentam, pois, se o ato de olhar nos etnografia se constitui num esforço como um desafio não só metodo-
possibilita captar as relações sociais em torno da apreensão subjetiva do lógico, mas também institucional,
de um determinado grupo, a apre- significado que os sujeitos dão a suas considerando o que está em jogo.
ensão do significado das mesmas ações, o que o autor denomina de As posições que os sujeitos ocupam,
necessita a escuta. Ainda que as descrição densa da cultura7. neste campo, remetem a estruturas
possibilidades de um diálogo efetivo Mas novamente lidamos com demarcadas, hierarquizadas e ver-
se deem em condições desiguais, a uma limitação de caráter mais onto- ticalizadas. A dificuldade de esta-
entrevista realizada no processo et- lógico que epistemológico, conside- belecer um diálogo, assentado na
nográfico “[f]az com que os horizon- rando que a etnografia constitui um assimetria que se constitui entre pes-
tes semânticos em confronto – o do processo interpretativo. Para o autor: quisador e pesquisado, explicita-se
pesquisador e o do nativo – abram-se exponencialmente quando tratamos
um ao outro, de maneira que trans- Resumindo, os textos antropológicos de uma pesquisa que se desenvolve
formem um tal confronto em um são eles mesmos interpretações e, na num ambiente institucional, no caso,
verdadeiro ‘encontro etnográfico’” verdade, de segunda e terceira mão. a escola.
(Oliveira, 2006, p. 24). (Por definição, somente um “nativo” Outro desafio que se estabelece
Entrevistar professores, alunos, faz a interpretação de primeira mão: na pesquisa antropológica aplicada
é a sua cultura) Trata-se, portanto, de
gestores não é uma tarefa fácil; ao universo educacional tange à
ficções; ficções no sentido de que são
os sujeitos possuem perspectivas “algo construído’, “algo modelado”
questão da perspectiva microscópica
diferenciadas sobre o que está em – o sentido original de fictio – não dessa análise, de modo que o locus
questão e, por vezes, conflitantes, que sejam falsas, não fatuais ou do estudo antropológico não é o
tanto entre os agentes envolvidos no apenas experimentos do pensamento seu objeto. Parafraseando o próprio
universo escolar como com o próprio (Geertz, 1989, p. 11). Geertz, podemos afirmar que os
pesquisador. A pesquisa educacional antropólogos estudam nas escolas,
lida com uma realidade delicada, Estas interpretações se fazem e não as escolas. Este limite não
sutil, que envolve não só um espaço necessárias, na medida em que, na implica afirmar que suas margens
institucional de formação intelectual superfície, as ações dos sujeitos sejam fixas, e, por consequência, in-
e profissional, como também um se assemelham, como um conjun- transponíveis; muito pelo contrário,

7
Deve-se destacar que Geertz parte aqui da tradição hermenêutica para elaborar seu conceito de descrição densa da cultura. Na esteira desta
tradição, Dilthey aponta que a realidade social constitui um conjunto de significados, Lebenszusammenhang, e a vida, como uma totalidade, teria
sua essência no significado ou sentido, Sinn, e sua expressão na experiência vivida, Erlebnis. Reapropriando-se destes elementos, Weber propõe uma
ciência compreensiva, cujo intento maior seria a captação do sentido da ação social. Geertz, ao trazer esta elaboração para o campo da antropologia,
276 preocupa-se em afirmar a etnografia não como mera descrição da realidade, mas sim uma descrição densa, preocupada com a captação dos sentidos
construídos socialmente, ou seja, trata-se da elaboração de uma descrição de uma dada realidade cultural realizada de forma interpretativa, ainda
que o autor reconheça que apenas o “nativo” pode realizar a interpretação em “primeira mão”, pois apenas esse tem acesso direto aos significados
presentes na cultura nativa, cabendo assim ao antropólogo realizar uma outra de “segunda e terceira mão”, uma vez que se trata da interpretação
sobre a interpretação do próprio nativo sobre sua cultura.

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Etnografia e pesquisa educacional: por uma descrição densa da educação

a análise microscópica da antropolo- também como uma realidade a se incontestável, pois, como já exposto,
gia nos permite realizar articulações constituir, a partir deste entrecruza- há uma necessidade de interpretar
mais amplas e abrangentes. Volte- mento das apresentações dos agentes estas interpretações.
mos às palavras do autor: sobre seu cotidiano escolar com a O processo interpretativo pres-
interpretação do pesquisador sobre supõe a capacidade de adentrar em
O problema metodológico que a tais interpretações. outras subjetividades, o que não im-
natureza microscópica da etnografia O ato investigativo na antropo- plica, necessariamente a existência
apresenta é tanto real como crítico. logia nos convida a uma dispersão de capacidades extraordinárias por
Mas ele não será resolvido obser-
epistemológica, pois não nos basta parte do pesquisador. Para Geertz
vando uma localidade remota como
o mundo numa chávena ou como
focar e centrar no que estamos (1997, p. 107):
o equivalente sociológico de uma procurando, mas também devemos
câmara de nuvens. Deverá ser solu- nos centrar no que não procuramos. Mas seja qual for nossa compreensão
cionado – ou tentar sê-lo de qualquer Pouco adianta pesquisar sobre as – correta ou semicorreta – daquilo
maneira – através da compreensão relações étnicas numa escola as- que nossos informantes, por assim
de que as ações sociais são comen- sentando a pesquisa unicamente em dizer, realmente são, esta não depen-
tários a respeito de mais do que elas de de que tenhamos, nós mesmos, a
relatos, entrevistas e observações
mesmas; de que, de onde vem uma experiência ou sensação de estarmos
pontuais. Não podemos olvidar que a
interpretação não determina para sendo aceitos, pois esta sensação tem
cultura é fluxo denso, um mar aberto que ver com nossa própria biografia,
onde ela poderá ser impelida a ir.
Fatos pequenos podem relacionar-se de significados, e, como tal, arrisca não com a deles. Porém, a compreen-
a grandes temas, as piscadelas à epis- sempre nos afogar. são depende de uma habilidade para
temologia, ou incursões aos carneiros Barth (2000) nos chama a atenção analisar seus modos de expressão,
à revolução, por que eles são levados para o fato de que os antropólogos aquilo que chamo de sistemas sim-
a isso (Geertz, 1989, p. 17). dão uma demasiada importância bólicos, e o sermos aceitos contribui
às conversas que os “nativos” têm para o desenvolvimento desta habi-
O que se encontra nas práticas lidade. Entender a forma e a força da
com o pesquisador, relegando a um
vida interior de nativos – para usar,
cotidianas dos sujeitos envoltos no segundo plano as conversas estabe- uma vez mais, esta palavra perigosa
universo educacional está para além lecidas entre os próprios “nativos”. – parece-se mais com compreender
do que se pode apreender numa É nos diálogos não direcionados ao o sentido de um provérbio, captar
instância mais imediata, pois os pesquisador, nas produções simbó- uma alusão, entender uma piada – ou,
significados que estes constroem se licas dispersas pelo pátio da escola, como sugeri acima – interpretar um
constituem em espaços simbólicos pelos corredores, que as represen- poema, do que com conseguir uma
mais amplos. tações sociais são construídas, que comunhão de espíritos.
O desafio para a apreensão dos as imagens em torno da diferença,
significados construídos demonstra- da alteridade, se constroem e se Este desafio interpretativo se
se não só complexo, como também animam. coloca o tempo todo em qualquer
leva o pesquisador a outro nível Ao adentrar no universo sim- campo de pesquisa; no caso da edu-
de abstração, ao reconhecer o seu bólico do outro, nós nos lançamos cacional, nossa preocupação tam-
trabalho científico como menos numa atividade perigosa, em que bém vai no sentido de reconhecer a
objetivo que o esperado, uma vez nos arriscamos. A subjetividade é episteme própria desta. Gatti (2001)
que a própria etnografia se constitui um risco, inegavelmente, mas tam- aponta justamente tal preocupação,
como construção do antropólogo bém é um meio. É por meio dela em não haver uma simples trans-
(Geertz, 2004). que abrimos novas possibilidades e posição ingênua de categorias de
Aquele que se arrisca a realizar nos abrimos para elas. Subjetivida- outras áreas de estudo, mas sim a
uma pesquisa educacional a partir de des não só nossas, mas também as elaboração de categorias próprias a
um olhar antropológico, utilizando- do “outro”, daquele que é o nosso este universo, que abarquem a com-
se do método etnográfico, deve estar objeto de investigação, e tal feito plexidade das questões educacionais
ciente de que a sua subjetividade está demanda um esforço metodológico em seu contexto social.
presente na construção do objeto e que não pode ser confundido com A abordagem etnográfica nos
dos próprios resultados da pesquisa. uma saída da objetividade científica possibilita, em especial na sua
A escola, com todas as suas contra- por completo; adentrar na subjetivi- proposta de uma descrição densa, a 277
dições e tensões, se apresenta como dade não implica uma reprodução possibilidade de elaborar no campo
um universo a ser explorado, mas da fala nativa como uma verdade as categorias de análise, a partir dos

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próprios significados que os sujeitos entre os trobiandeses, somos levados


constroem no cotidiano escolar, ao a pensar “os trobiandeses não são mais basicamente, uma vivência dos
mesmo tempo em que permite ao mais os mesmos”. dois domínios por um mesmo sujeito
disposto a situá-los e apanhá-los.
pesquisado situar, a partir de que tais Mas o que significa estar lá na
significados estão sendo construí- pesquisa educacional? Ao contrá-
dos, que posições são tomadas em rio das etnografias clássicas, não Ainda segundo o autor, esses
determinada dinâmica social. falamos de culturas distantes, de dois exercícios estão intimamente
O universo escolar, enquanto uma costumes “exóticos” e, por vezes, relacionados e sempre sujeitos a uma
instância significativa da realidade pouco racionais do nosso ponto de série de resíduos, nunca sendo plena-
cultural dos sujeitos envolvidos na vista etnocêntrico, mas sim de uma mente perfeitos, pois o exótico nunca
ação social, apresenta-se ao pesqui- experiência cultural pela qual, muito passa a ser completamente familiar,
sador como uma multiplicidade de provavelmente, nossos leitores já e tampouco o inverso. O primeiro é
estruturas conceituais complexas, passaram e reconhecem como sig- apreendido por uma via intelectual,
muitas delas amarradas umas às nificativa, e mesmo como próxima. ao passo que o segundo por meio do
outras, de formas irregulares e inex- Logo, por ser familiar, o fazer antro- desligamento emocional.
plícitas. O que pode parecer óbvio, pológico leva ao seu estranhamento. O exercício etnográfico na rea-
numa primeira coleta de dados, Fonseca (1999) nos aponta, ao lidade educacional, e escolar mais
mostra-se complexo e contraditório. problematizar o método etnográfi- especificamente, implica uma apre-
As trajetórias escolares, o habitus co, que a primeira etapa dentro da ensão de uma esfera que se mostra
professoral, dentre outras questões utilização deste é o próprio estra- universal, considerando a estrutura
que compõem esta realidade, são nhamento, quando o pesquisador dos sistemas de ensino nas socieda-
bem mais homogêneas e mais facil- começa a perceber que a realidade des ocidentais, mas singular. Pois,
mente apreendidas pelo pesquisador é mais complexa do que ela poderia na proposta de uma descrição densa
quando se encontram na superfície. parecer a princípio. Quando o pes- da educação, os significados dos
É o mergulho nos significados cria- quisar se depara com uma realidade sujeitos ganham espaço, e a experi-
dos que nos permite perceber a má- próxima em termos sociais e cul- ência universalizante de um sistema
xima da dialética hegeliana de que a turais a ser investigada, ele precisa de ensino ganha em singularidade e
essência e a aparência das coisas não ter em mente que nem tudo que é humanidade.
se sobrepõem, mas se encontram, em familiar é conhecido (Velho, 2003) O substrato sobre o qual está
verdade, em contradição. e que, portanto, necessitamos de um assentado o método etnográfico de-
primeiro exercício de estranhamento manda tempo, pois, se nos interessa
Estar lá, estar aqui: da realidade sobre a qual estamos saber o que o “outro” pensa que é,
etnografando a escola nos debruçando, desnaturalizando o que ele pensa que está fazendo, e
sua dinâmica, interpretando-a como com que finalidade pensa que está
Geertz (2004) nos traz uma im- construída social e culturalmente. fazendo, é necessária uma familia-
portante lição acerca do trabalho Segundo Peirano (1995), no campo ridade com os conjuntos de signi-
antropológico, situando a questão da da antropologia, o estranhamento ficados em meio aos quais ele leva
etnografia entre dois exercícios, ou passa a ser não só a via pela qual sua vida. Isto requer do pesquisador
melhor, entre dois feitos. O primeiro se dá o confronto entre diferentes aprender como viver com o “outro”,
diz respeito ao “estar lá”. A etno- teorias, mas também o meio de ainda que o pesquisador seja de ou-
grafia se constitui num exercício de autorreflexão. Nesta mesma esteira, tro lugar e tenha um mundo próprio
pesquisa que pressupõe o “estar lá”, Damatta (1978, p. 28) afirma que diferente (Geertz, 2001).
conviver com os “nativos”, dialogar Ao passo que o “estar aqui” im-
com eles, acompanhar seu cotidiano. [...] vestir a capa de etnólogo é apren- plica transformar nossa experiência
Toda etnografia, assim sendo, se der a realizar uma dupla tarefa que com “o outro” em algo acessível,
configura num exercício de demons- pode ser grosseiramente contida nas escrever e apreender a dinâmica
trar esta estadia, levar o leitor – que seguintes fórmulas: (a) transformar o do fluxo cultural que vivenciamos
exótico no familiar e/ou (b) transfor-
realizará uma interpretação da nossa no decorrer de nossas pesquisas.
mar o familiar em exótico. E, em am-
interpretação da interpretação do “Fazer etnografia é como tentar ler
278 “nativo” – a este mesmo universo,
bos os casos, é necessária a presença
dos dois termos (que representam (no sentido de ‘construir uma leitura
de um modo tal que, se não encon- dois universos de significação) e, de’) um manuscrito estranho, desbo-
tramos o que Malinowski encontrou tado, cheio de elipses, incoerências,

Educação Unisinos
Etnografia e pesquisa educacional: por uma descrição densa da educação

emendas suspeitas e comentários dade de trabalhos desenvolvidos no Referências


tendenciosos, escritos não com campo da educação que se utilizam
os sinais convencionais do som, do arsenal da antropologia. ANDRÉ, M.E.D.A. 1995. Etnografia da
mas com exemplos transitórios de Ainda que a apropriação de um prática escolar. Campinas, Papirus, 130 p.
APPLE, M.W. 2002. Educação e poder. Porto
comportamento modelado” (Geertz, campo por outro seja sempre mar-
Alegre, Artes Médicas, 201 p.
1989, p. 7). cada por tensões, que remetem não APPLE, M.W. 2006. Ideologia e currículo.
Apreender, na escrita, a reali- apenas aos debates epistemológicos Porto Alegre, Artmed, 246 p.
dade educacional mostra-se como como também às divisões acadêmi- ARIÈS, P. 1981. História social da criança
um desafio de difícil transposição, cas em um dado momento históri- e da família. Rio de Janeiro, Guanabara,
considerando-se a complexidade co, acreditamos que os problemas 279 p.
do fenômeno, ao mesmo tempo em decorrentes de uma má apropriação ALTHUSSER, L. 1998. Aparelhos ideológicos
do Estado. Rio de Janeiro, Graal, 127 p.
que se deve ter em vista que há a da etnografia no campo educacional,
BARTH, F. 2000. O guru, o iniciador e outras
necessidade de se desenvolver, pela como em outros, se devem antes variações antropológicas. Rio de Janeiro,
escrita etnográfica, uma articulação de mais nada ao processo de frag- Contra Capa Livraria, 243 p.
entre os sentidos construídos e a mentação, a como a antropologia é BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. 1971.
macroestrutura social. É claro que incorporada, tendencialmente lida de L’École capitaliste en France. Paris,
uma pesquisa sobre uma escola X, forma reducionista e instrumental, François Maspero, 340 p.
na periferia da cidade Y, diz sobre acionando a etnografia como uma BENEDICT, R. 1983. Padrões de cultura.
Lisboa, Livros do Brasil, 331 p.
a escola X, na periferia da cidade simples “descrição” da realidade,
BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-
Y, e a etnografia trará a tona todas sem se perceber que descrever im-
C.; PASSERON, J.-C. 2004. Ofício do
as idiossincrasias da escola X, mas plica necessariamente interpretar, o sociólogo: metodologia da pesquisa na
ela também diz algo sobre outras que se dá, dentre outros fatores, a sociologia. Petrópolis, Vozes, 328 p.
escolas na cidade Y, e em outras partir do arsenal teórico mobilizado. BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. 2008. A
cidades. O “estar aqui” mostra-se A ideia de uma descrição densa reprodução: elementos para uma teoria do
conflituoso justamente por isso, por da educação é apenas um caminho sistema de ensino. Petrópolis, Vozes, 275 p.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. 2006. Les
ter como desafio ao etnógrafo, seja possível, mas que, em todo caso,
heritiers: les étudiants et la culture. Paris,
ele antropólogo ou não, realizar esta indica a necessidade de não apenas
Les Éditions de Minuit, 189 p.
interligação da análise microscópica nos utilizarmos de forma pontual de BOWLES, S.; GINTIS, H. 1976. Scholling in
da antropologia com um universo determinado autor, demonstrando a Capitalist America. New York, Routledge
cultural mais amplo, entre os signi- necessidade de imergirmos no deba- & Kegan Paul, 340 p.
ficados construídos dentro de uma te que origina sua discussão episte- CALDAS, A.C.; MALTÊZ, C.R.; SILVA,
cultura pública, de significados, mológica, para então nos utilizarmos S.C. dos R.; MARTINS, S. de O. 2012.
portanto, públicos. plenamente de sua metodologia nos O sentido da etnografia nas pesquisas em
educação no Brasil (1987-2008). In: G.
Este trabalho buscou colocar-se diversos campos do saber. A etno-
ROCHA; S. TOSTA (orgs.), Caminhos da
afirmativamente na discussão sobre grafia no campo educacional nos pesquisa: estudos em linguagem, antropo-
a utilização do método etnográfico traz grandes possibilidades, pois nos logia e educação. Curitiba, CRV, p. 13-32.
na pesquisa educacional, discordan- aproxima do cotidiano escolar, leva- CANDAU, V.M. 2011. Multiculturalismo
do diametralmente de posições que nos a um encontro profundo com e educação: desafios para a prática
defendem que “[o] que se tem feito, sua dinâmica e com os sujeitos que pedagógica. In: A.F. MOREIRA; V.M.
pois, é uma adaptação da etnografia a compõem; contudo, ela também CANDAU (orgs.), Multiculturalismo:
diferenças culturais e práticas pedagógi-
à educação, o que me leva a concluir nos exige uma ampliação de nosso
cas. Petrópolis, Vozes, p. 13-37.
que fazemos estudos do tipo etnográ- escopo teórico, que deve ser articu- CARDOSO, R.. 1986. Aventuras de antrop-
fico e não etnografia no sentido es- lado com a pluralidade de dados que ólogos em campo ou como escapar das
trito” (André, 1995, p. 28), uma vez emergirão do campo, com aquele armadilhas do método. In: R. CARDOSO
que entendemos que podemos sim momento em que o pesquisador (org.), A aventura antropológica. Rio de
desenvolver pesquisas etnográficas sentirá o “Anthropological Blues”, Janeiro, Paz e Terra, p. 95-106.
no campo da educação, ainda que no dizer de Damatta (1978), dando DAMATTA, R. 1978. O ofício de etnólogo,
ou como ter “Anthropological Blues”. In:
isso nos exija um esforço na direção sentido à famosa frase de Geeertz
E. de O. NUNES, A aventura sociológica.
de articular o debate metodológico que diz que a antropologia é tudo
com as questões teóricas no campo aquilo que os antropólogos fazem,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 23-35.
DILTHEY, W. 2011. Introdução às ciências
279
da antropologia; é neste sentido que o que inclui aí, inegavelmente, os humanas. Rio de Janeiro, Editora Forense,
Valente (1996) aponta para a fragili- educadores. 486 p.

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Amurabi Oliveira

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