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Escola Secundária da

PORTUGUÊS – 12.º ANO RAMADA

2020-2021

Maria Judite de Carvalho, “George” Ficha informativa 2

1. As três idades da vida

Ausente enquanto figura, a infância está presente no conto de Maria Judite na medida em que o regresso à terra natal
constitui sempre um retorno aos primeiros anos de vida – e, neste caso, sendo o objetivo vender a casa dos pais
entretanto desaparecidos, equivale ao seu apagamento definitivo, à sua morte, a um adeus para sempre à juventude
– a uma despedida. [...] No início e no final do primeiro encontro, George e Gi movem-se lentamente, como para
simbolizar a resistência da primeira, tanto a reencontrar o passado como a despedir-se dele – ou, muito simplesmente,
a dificuldade de o ressuscitar, a impossibilidade de o fazer de facto voltar, exemplarmente expressa na comparação
«como quem anda na água ou contra o vento», que retoma de forma abreviada, a frase de abertura do conto: «Andam
lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é
possível, na pesada e espessa e dura água do mar.» Fecha-se assim por completo um círculo – o círculo do regresso à
juventude.

Tudo se passa, porém, diversamente aquando do segundo encontro, onde a deslocação rápida do comboio simboliza
em simultâneo a morte definitiva do passado e a aceleração da marcha do tempo em direção à velhice (daí que a
aparição de Georgina tarde menos que a da figura de Gi). [...]

Pôde a personagem deambular incessantemente entre o presente e vários momentos do passado, imobilizado num
dos seus instantes na fotografia que ressuscita Gi e assim se associa à rememoração. Nada, porém, lhe devolverá
intacto esse passado que acabou de enterrar para sempre ao tomar o comboio que dele a afasta, bem como do
presente, para um futuro longínquo… e afinal tão ou mais dececionante quanto o primeiro. Pode ainda George fugir
desse futuro por um esforço mental de deslocação em direção a outro, mais próximo e tranquilizante: o da sua próxima
exposição, da sua próxima viagem aos Estados Unidos, do seu regresso a Amesterdão, que acaba de encetar… Nada
impedirá o tempo de avançar [...]. Muito pelo contrário. A fuga para a frente será sempre uma fuga para a frente –
para o futuro da velhice e da solidão, para a Morte.

Maria João Pais do Amaral, in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.),
Conto Português [séculos XIX-XXI]: Antologia Crítica, vol. 3, Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 130-131.

2. O diálogo entre realidade, memória e imaginação


O reencontro com esse passado, de que a personagem não guardara senão uma velha fotografia sua, acaba também
por projetá-la no futuro, obrigando-a a confrontar-se, primeiro, com a sua juventude, logo após a referência à
fotografia que é ponto de partida para longa analepse pontuada de uma ou de outra menção breve ao presente;
depois, com a sua velhice – ambas figuradas nestas duas imagens de mulher com quem enceta diálogo e que são afinal
os seus duplos com nomes que constituem formas curtas ou alongadas de George: Gi, a jovem frágil de dezoito anos,
e Georgina, a mulher idosa a rondar os setenta. Assim se configura, no conto, por meio do cruzamento de imagens e
de tempos diferentes, o balanço de toda uma vida. [...]
Em diálogo com Georgina, que lhe aponta as lágrimas derramadas sobre a juventude perdida, de que acabara de
despedir-se ao afastar-se para sempre de Gi, afirma não ter tido «desgosto nenhum», apenas «um encontro, um
simples encontro». Recusa-se igualmente a dar crédito às palavras de desengano daquele seu alter ego1 sobre o que
espera no futuro, quando Georgina lhe indica a solidão por única companhia certa na velhice. Prefere então afundar-
se no esquecimento que lhe proporcionam o seu dinheiro, o seu sucesso enquanto pintora, os seus múltiplos amores,
1
as suas metamorfoses constantes, as mudanças, as viagens – contínuas deslocações físicas e mentais a que se força
para se sentir liberta e realizada e que configuram afinal a sua alienação. Passado e futuro, porém, colheram-na já a
meio deste percurso, de fugitiva, cruzando-se com o presente. Dizendo talvez melhor: passado e futuro tornam-se
presentes, como se, abolidas as fronteiras do tempo, a personagem tivesse acesso a uma outra dimensão de existência,
e uma outra perceção do tempo.
Maria João Pais do Amaral, op. cit., pp. 123, 129

3. Linguagem, estilo e estrutura

[Maria Judite de Carvalho] [...] não narra só pelo prazer de narrar, e menos ainda para explorar virtualidades da
língua; narra pela íntima necessidade de exprimir uma visão da vida, muitas vezes implícita, outras expressa em
considerações da narradora – visão pessimista, porque a vida tem pouco sentido, o tempo nos gasta e degrada, os
seres humanos são visceralmente egoístas e doentes de solidão, a sociedade injusta e mesquinha, pelo menos nas
camadas burguesa e pequeno-burguesa, a que pertencem as personagens; mas o tom da narração não é indignado,
antes de serena, melancólica aceitação, e até de ironia triste [...]. Na ironia pode haver ora um assomo1 de
compaixão ora uma ponta de sarcasmo, espécie de castigo para a hipocrisia das pessoas, defesa que utilizam perante
si próprias como perante os outros. Situações e vivências são desveladas pouco a pouco, sugeridas com extrema
subtileza, com a «fina arte de desenhar as interseções onde as coisas tocam os significados vitais» (Fernando
Mendonça). A linguagem obedece aqui da melhor maneira à lucidez do olhar desencantado e a uma estética de
contenção, de medida, que se harmoniza com o pudor dos sentimentos e dos lances dramáticos.

Jacinto do Prado Coelho (seleção, prefácio e notas biobibliográficas) & Álvaro Salema (colaborador), Antologia da Ficção Portuguesa
Contemporânea, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa,
Secretaria de Estado da Cultura/Presidência do Conselho de Ministros, 1979, p. 182.

4. “Um trabalho sem fim”


Não dispondo de uma matéria ajustável ao que pretende representar e construir, o escritor tem de interrogar a
linguagem, abri-la, fazê-la falar, no que diz respeito às suas capacidades, mas, no caso de Maria Judite de Carvalho,
trata-se de um trabalho sem fim, tão circular e inglório, como o processo rememorativo das suas personagens e que,
por isso, apenas avançará por saltos. [...] As elipses, as reiterações, as perguntas retóricas ao leitor (muitas vezes puras
constatações sob uma forma irónica), os processos de objetualização metafórica (as ideias passadas a ferro), as
imagens e os motivos (muito frequentemente os mesmos) dominam o texto e criam a sua espessura de uma forma
única.
José Nobre da Silveira, «Maria Judite de Carvalho e a questão da literatura», in Paula Morão & Cristina Almeida Ribeiro (org.), Maria Judite de
Carvalho – Palavras, Tempo, Paisagem,
V. N. Famalicão, Edições Húmus, 2015, pp. 124, 126.

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