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Q
Ler
UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL

e escrever
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' · Vice-Reitor
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Pró-Reitor de Extensão
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� da Universidade
louzaúa e laércio F ontour,1.
Ler e escrever
e111 artes visuais·
ISABEL PETRY KEHR\VALD

Por muito tempo, a Educaç5o Artístic:1 se constituiu cm u111;1 ati­


vid::idc csco!Jr b:1se;1d:1 estritamente no fazer gráficoípl;istico da cri­
JllÇJ, desvincu!Jda, s:1lrn r:1r:1s e�ceçõcs, d:1 origem desta área do co­
nhecimci1to. isto é, dJ ::ntc cm si. Aprendia-se ;i11e sem ver arte, o que
é o mesmo que aprender a kr sem ter ::i.cesso aos li nos.
Voct cu e grande parte da nossa geração concluiu seus estudos
sem ter contato com as obras de arte (menos ainda com a arte brasiki­
ra. de dificil circulação). porque se entendiJ. que as im:1gens poderiam
prejudicar a-prcscrv;:i,ção da espontancid::idc e a line manifcst;:ição in­
fantil, objetivos da grande maioria dos professores. Assim, permane­
cemos analfabetos no que se refere :10 mundo das im:1gcns e dos obje­
tos que fazcrn parte do Jcen:o simbólico da humanidade e com o qual
podemos aprender sobre o nosso passado. entender e transform:1r o
presente e fazer projeções para o futuro.
No fim! da década de 80, no entanto, surgiram. no Brasil, as idéias
que deram corpo ao entendimento de que arte não é só c:,,.:pressão, 111:1s é
também conhecimento, é comportamento inteligente e sensível, o que eli­
minou :::i dicotomia entre cognição e emoção e p;:ivimcntou o tc1Tcno ·pJra
a c.irculaç5o dos fundamentos de um:i proposta de ensino d;:i arte ancora­
da nJ própria a11c,· cm sua histó1ia. cm sua aprcciaç5o e cm seus fazeres.
Esta proposta introduzida no Brasil por Ana Mac Barbosa ( 1991. p.34)_
chamada inicialmente mctodulogia triangular e ora abordagem tricmg11-
lor ".. enfatiza a ncccssidJdc de orgJ.nizar o ensino d::is A11cs Visu�1is no
i11tcr-rclaciomme11to entre três eix0s: o fozcr ;irtístico do aluno. ::i lciturJ
d::i. obra de ::irtc e a contcxtuJlização histórica ... ··, ou. como sugerem os
P:irii11ctros Cunicub.rcs N:1ci0mis 1x1.r:1 o Ensino d::i Arte ( PCN-Artc) entre
:::i produção do aluno. a fruiç5o das obr;:is e a rcflc:do

Ler e e.screv�r em ;irlt'.s visu;.ii.s 23


Foi a panir da abordagem mangular que o tcrn10 ··leitura" in­ subjetivid:::ide contida na arte proporciona uma infinidade de leituras e
corporou-se JO \'OCJbulário dos professores de arte, entendido como interpretações que dependem das infonnaçõcs do kitor, das suas c.\­
lc:itur:i Jc im::igem, de obras, de objetos, ou de um elemento quJlqucr. pcriências ;:interiores, d;:is suas vivências, lembranças, im;:igmação. en­
D:ida cst:::i introdução para situar o assunto no tempo vamos ve- fim, do seu repertório de saberes.
1 ifícJr seu cspJço e circunst5ncia. Segundo Fusa ri e Ferraz (1993, p. 7 4 ) ...· \'Cr é rambém 11m exercí­
cio de construçâo percept;va onde os elementos selec.10nados e o per­
curso v;sual podem ser educados... através de ações planejadas para este
Leitura de imàgem fim. A educação do olhar é fundamental, porque o olh;:ir seleciona, zis­
socia, organiza, analisa, constróí, des.constrói e s;:iboreia as im::igens t:rnto
O conceito de leitura pode ser :rn1pliado para um processo de dc­ as da arte qu;:mto as do cotidiano, edificando o que Pillar ( 1995, p.36)
codifícJç5o e comp1�ccns5o de exµressõcs fonnais e simbólicas que chama de conhernnemo visual. Reforçando esta idéia temos o que nos
c11,·cJh'em tanto componentes sensoriais, emocionais, intclcctu::iis, ncu­ fala Barbosa ( 199 J, p.20) que, ::io cduc:rnnos as crianças para lerem as
rológ1cos. quanto cultur::iis e econômicos� Os nossos cinco sentidos im;:igcns produzicbs por artistas,... M esra111os prepara11du pnra h:r as
c'.:;lJo 11:1 b�1sc desse p, ocesso que inici� muito cedo com a leitura sen­ imagens q11e as cercam em se11 meio ambiente:. Desta form::i, o que esta­
sorial, pass::i pela leitura emocional quando por exemplo ficamos tris­ mos pretendendo é uma educaçao estér;ca, isto é, ensinar a ver, uma va
tes, 3\cgrc:s ou lembramos algo que afeta nossa sensibilidade e desem­ que o conhecimento d:i arte n5o se dá de forn1a espontS.ne:1 e sim medi­
boca depois na le itura racional que segundo l\.1artins ( 1992, p.45) .. ada, e, no caso cm pauta, esta mediação se dá pela ação do professor e
ocn.:.,cenro à sensorial e à emoôonal o.fato de estabelecer uma ponre pelas interações que oconem na sala de aula e fora dela. Quanto mais
L'i1frc.: o leiror e o conhc:c1111emo, a re_r1cxào e a reordenação do mundo alimentado de imaa.ens da arte estiver o olhar, maior será a possibilid::i­
ul�;i:111'u, puss1h1/uanclo-lhe otnbznr sigmj1cados. I\1fais adiante, a au­ de ôc inferências, de criticidade e de sensibilidade nos dem;:iis relacio­
tor3 cumpkt:rndo seu pensamento, conclui: ... ela não é importante por namentos d::i vida cotidiana. Para Parsons ( 1992, p.21 ). que identificou
ser rocwnul, mas por aqznlo que seu processo permlfe, alargando os estágios do dcs_envolvimcnto estético pelo qual todos passamos, cada
hori:onres de expectativa do leitor e ampliando as possibilidades de passo representa um avanço e é um degrau para compreensões mais apu­
/1.;1/11ro cio texto e da própria realidade social. radas. Aonde cada indivíduo consegue chegar, ... depende da natureza
Ler, portanto, não é tentar decifrar ou adivinhar de fom1a ís�nta das obras de arte com as quais enlra em contato e do grau em que se vê
o s�ntido de um texto, mas é, a partir do texto, atribuir-lhe.significa­ estnnulado a rejleJir sobre elas.
dos relacionando-o com outros textos na busca da sua compreensão, Estudos rectptes têm demonstrado que as crianças desde muito
dos seus sentidos e de outras possíveis leituras. Paulo Freire (1993) pequenas formulam hipóteses sobre as imagens da arte na tentativa de
nos falava da necessidade de aprender a fazer a leitura do mundo, nâ-0 compreendê-las. As análises de Parsons ( 1992) nos pennitem enten­
mecanicamente, mas vinculando linguagem e realidade e usava o ter­ der melhor o que as crianças pensam sobre a arte e deixam pistas de
mo cosmovisão ao referir-se a esse alargamento do olhar. como podemos ajudá-las nesta leitura/conversa. Mas como se faz na
Transpondo estas idéias para o ensino da arte, podemos dizer que prática a leitura de uma imagem? Pode-se transpor esse processo para
a leitura das imagens tem objetivos semelhantes e abrange a descri­ a leitura de uma imagem que não seja da arte?
ção, interpretação, compreensão, decomposição e recomposição para Na seqüência vamos refletir sobre isto.
que se possa apreendê-las como um objeto a conhecer.
Se decodificar um te.\to é entr::u em sua tr::ima, na sua textura, no
seu t1..:c1do, ler um te.\to pictórico � adentr;1r em suas fonnas, linhas, Possibilidades de leitura de imagem
core , \·olurncs e pJrticubridadcs, na tcntati\'a de desvelar um código
mikn::n que muit::is n:!zcs não é..sta explícito, nos é desconhecido e, por Fcldman (cit::ido por Barbosa, 199 l = p.20), :1ponta quatro est:igi­
� czcs. 1h.1s assusta. Por ser um sistema simbólico, de representação, a os a serem seguidos p�HJ a leitura da im:igem que são distrntos mJs

Ler e escrever Ler e e.screver em r1rtes visunis 25


intcrli!!ados entre si e não ocorrem necessariamente nessa ordem. S:io presentes no livro de Barbosa ( 1991 ). No cntmto. todos. de um::i for­
eles:.. �descr1çiio, análise, i111e1pretação e julgainenro. ma ou outra, se valem dos estâgios propostos por Fcldm::m.
A dcscriçcio se refere a prestar atenção ao que se vc e, a partir d_a Paía explicitar melhor as idéias coloc::idas, ,·amos fazc-r L{m c�,;cr­
A

obscn·aç5o. listar apenas o que está cYidente, como, por exemplo, t_1- cicio de· leitura de imagem tomando con10 ponto de p::irtid::i a obr::i Os
pos de linhas e fonnas utiliz::idas pcl? aut?r, cores, elcm�ntos e demais retirantes de Cândido Portinari, d::itada de 194-l
' (pjgin;:i ao bdc)
propricd:1dcs d::i obra. Nesta etapa 1dcnt1fic?-sc, .t?mbem, o �1tulo . d_a
obr;:i. 0 :irtista que a fez, lugar, época, matenal utilizado, tccmca, esti­_ LEITURA DA OBRA OS RETIRANTES DE PORTINARJ
lo ou sistcm:i d-: reprcsent:::ição, se figurativo ou abstrato etc. Descnção: nesta fase. no ensino fundamcnt:il. c:ibc zio pr0fl·s­
' A análise diz respeito ao comportamento dos elementos entre sor direcionar as indagações sobre a obra no sentido de que os ;ilun 'S
si. como se influenciam e se relacionam. Por exemplo, os espaços, identifiquem seus elementos. É atra\·és de alguns mec�rnismos ciuc en­
os \·olumcs.. as cores. as texturas e a disposição na obra criam con­ tenderá melhor o que está percebendo. Aqui estão sugestões de algu­
trastes, sc11 1clhanças· e combinações diferentes que neste momento mas perguntas que poderão ser feitas para iniciar o dijlogo com ::i obra
serão analisadas. ou o objeto:
O estágio da interpretação é dos mais gratificantes, pois é - O que você está vendo nest::i imagem?
quando procuramos dar sentido ao que se observou, tentando iden­ - Quantas pessoas aí estão? que outros elementos?
tificar sensações e sentimentos experimentados, buscando estabe­ _::. Existem linhas nesta imagem?
lecer relações entre a imagem e a realidade no sentido de apropri­ - Como são? lisas, grossas, retas, quebradas, onduladas?
ar-se da primeira. - Que cores você vê? são claras, escuras, esfumaçadas?
No quarto estágio, o dojulgamento, emitimos, umjuizo de valor a - Que texturas podem ser apontadas? nas roupas, no corpo ou
respeito da qualidade de uma imagem, decidindo se ela merece ou não rosto; no céu, no chão
atenção. Nesta etapa as opiniões são muito diveigentes, pois algumas obras - Que efeitos o artista conseguiu ?
têm um significado especial para - Qual o estilo e técnica da pintura?
algumas pessoas e nenhum valor Aind::i entrarão nesta fase as questões relativas ao contc:-.:to his­
para outras. J\fas é senso comum tórico da obra e o que já foi anteriom,ente referido.
que um bom trabalho é o que tem o
Análise: aqui também se poderá aguçar o olhar do :i.luno atr:1\ L:S
poder de cnc�mtar muitas pcsso3s
das perguntas:
por um longo tempo.
- Você identifica movimento n:i obr:i'J
Fcld1mn (citado por Barbo­
- Há uma figura ccntrJ.I? h:í algum elemento que d:i dcscquilíliril).,
s:1. 1991. p .4-l) sugere ainda que as
- Como é o tratamento d;:i cor em rcl:ição is fo1111Js? tem w11-
leituras sejam comparatirns entre
trastc ? tem volume?
du:i.s ou mais obras. a fim de que
- Como é o fundo?
se c\·ic.kncicm :.1s semelhanças e
d1krc11ps. possibilitando analo­ Jmerpretação: nesta fase, geralmente. tanto crianç::is quanto :i.dul­
gias e aprendizagens mais enri­ tos fabm com mais desenvoltura porque podem dar asas à i111agi11Jçjt)
quecedoras. Outros autores tam­ e corn-ersar com a obra sem medo do erro e do receio de não cntcndC:-Ll
b1:111 rcaliz:-ir.1111 intercss�mtcs estu­ f\.ksmo assim. perguntas como as da seqüência são bem-\ incfas:
ck,s sobre m:rncir.1s de apro:\ÍmJr CinJiJo Portin:ui, Os retirantes. 19-1-L - Que sentimentos Os retirantes motivaram?
t'ilco Sl'hrc tc:IJ. M;\SP. SJ0 Paulo.
�,s =irtes \ isu::iis de crianças e _jo- f-1111t..:· Mangc. Maril�n Diggs. ArfL• Bm- - A realidade expressa na obra é a mesma de hoje·,
\ cqs come. por exemplo. Saun- . il,·IJ',1 l'º,.ª crianças. S:io Paulo. tvbrtins - Se Portinari fosse vi\·o será que pintari::i o 111cs1110 ti.::111:1·'
Jcr·s. Ott. Bri�rc. Hauscr. Rag;:rns. Fontes. 1 ')�8. - Que scmclh.111ças e diferenças é possível idrntific1r 110 011trn1
da obra e o hoje?

n
- O que poderíamos fazer para mudar a situação atual? a arte sar desapercebidas a um olhar desacostumado. No entanto, um olhar
pode ajudar? educado para ver... um sensível olhar pensante ... , segundo Martins (1992,
p.15), perceberá as semelhanças e diferenças, fará analogias, e, por con­
.Julgamento: neste estágio é interessante dialogar sobre: seqúência, identificará as inter-relações, isto é, o interrexto .
- Você :1cha que esta obra é importante? por quê? A intertcxtualidade é... um espaço de reescrita ... , segundo Peiiuela
- Por que Portin::iri a pintou? para quê? Canizal (1993, p. 77), composto de signos icônicos (infagens ) que su­
- Por que as pessoas querem ter obras de arte? gerem objetos da realidade e/ou por signos piásticos que apresentam
- El.Js são importantes? semelhanças nas fom1as, texturas, cores e outros elementos.
- Que outras obras ou objetos você conl1ece que têm algo seme- Etimologicamente, intcrtextualidade quer dizer o que habita dois
lhzmte com a obra de Portinari? textos, implícita ou explicitamente. Por exemplo, observemos as ima­
Outr:1s tc111t;:is ind.1gziçõcs podcría111os fazer com o objetivo de apro­ gens a seguir. Entre a Pietá de Michelangelo, de 1498, e a cc1pa da re­
�i1rnr o.rte e �iluno com o intuito de desenvolyer o espírito crítico, pró­ vista Isto É, há semelhança explícita evidenciada tanto no tema quan­
prio de um Jprcciador consciente que se vale desse aprendizado par:a di­ to na estrutura das imagens, embora a época, as intenções e o sistema
recionar, humo.nizo.r e qualificar suas escolhas estéticas. Ainda é perti­ de representação sejam distintos.
nente ressaltar que o contato com a arte tem a função de levar a criança
a pensar sobre a sua realidade social e em que ela pode ser modificada
ou acrescida o. partir desse estudo. É preciso atentar também que as per­
guntas indic1das não podem se tomar um clichê. São apenas. um cami­
nho, entre outros, para estimular a leitura do texto pictórico.

Leitura de imagem e intertextualidade

É na inter-rebção do individuo com os objetos que se dá a organi­


zaç�o de um sistema de imagens visuais/mentais que, gradualmente, con­
duzem a perccpçõcs cada vez mais complexas e sutis, permitindo não só
a co111precnsão dos conhecimemos inerentes à arte mas, principalmente,
a produção de conhecimento em arte. Conseqüentemente, o estímulo à lei­
tura dJ.s imagens é fundamental para que alcancemos esta meta e passe­
mos a perceber o que muitas vezes se esconde a um olhar desatento.
PJ.ui Klee, artista plástico suiço, .dizia que a arte não reproduz o
Michclangclo. Pietá, 1497/99, escultura em Fonte: Isto é, n.133�, 26 m:iio 1995.
,·isívcl, torna visível, e é nesta possibilidade subjacente de se revelar mármore. 195cm de altura, 174cm de: base. Ba-
de se construir ao nosso olhar, de apontar novos significados, que está sílica de S5o Pedro, Vaticano.
uma das importâncias da leitura das imagens para o processo de alfa­ Fonte: História Geral da Arte. Escultura II.
betização estética. Edicioncs de Prado, 1996.
Aprender a ler os códigos do sistema de representação das artes
,·isuais é tão importante quanto o entendimento dos sistemas numéri­ Outros tantos exemplos poderíamos citar, mas o que é fundamen­
cos e de escrita. tal neste caso, é a possibilidade de educar o olhar para a investigação
É preciso levar em conta q·ue as obras de arte nos remetem, muitas do intertexto, uma vez que no entrelaçamento de várias imagens culti­
vezes, a objetos já vistos, a fonnas ou fatos do cotidiano e passamos a va-se a agilidade visual e o malabarismo intckctual.
identificar aspectos comuns entre os mesmos. Essas nuanças podem pas-

Ler e escreva 29
Intertexto na sala de auJa temática ou, ainda, criar personagens de papelão de tamanho natural que
poderão dialogar entre si sobre os problemas da migração, da di,·isão e
°
Ao \·alorizar o intertexto, o professor. ao in\'és de oferecer uma posse de terras, entre outros assuntos que um professor hâbilidoso po­
só imagem para leitura, irá estimular a mJ.nipulaçào de várias irna- derá leYantar para instigar discussões multidisciplinares que leYem o alu­
2.ens ao mesmo tempo. Assim serão pesquisados jornais, revistas, c;:i­ no a reíletir sobre sua realidade e a realidade de outros po- v os, semelhJ.n­
;álc!:!OS. TV ,·ídeo. os multimeios, o computador, os objetos do coti­ ças e diferenças e o que isto pode servir para sua vida.
di::rn-o e os r.ecursos contemporâneos nos quais as interfaces de cada
discurso poder5.o ser descobertas� confronta_das com a arte, criando
no,·os significados para o aluno. E preciso ter presente, no entanto. A escrita da arte
que cstJs interfaces não estão post;:is, mas sim se constroem ao olhar
do observador, em decorrência das suas e. ·periências e dos seus re­ Confom1c Buoro ( 1996), a arte re-aprescnta o mundo, o indi,·í­
pertórios. Por esse motivo, a leitura da imagem aliando o método duo e as práticas sociais, segundo uma fonrn. particular e subjetiYa.
compp.r;:itirn de análise de obra de arte de Feldman (anteriormcnre Ao reapresentar as idéias, o indivíduo o faz por meio de uma simbolo­
citado cm Barbosa. 1991 ), ao intcrtexto contribui para dinamizar a gia muito pessoal e que caracteriza as diferentes linguagens artístic;:1s:
;:iç5o pcdJgógic::i. pois sintoniza-se com umJ postura const.:111tc, t.:111- ora nos YJlemos dos símbolos linguísticos, or::i. dos códigos corpor;:iis,
to de alunos quanto de professores, de garimpo.gem das imagens. Tal ora·cfos musicais ou plásticos. Este prnccdimento não é apenas· .:1pre­
qu::11 garimpeiros, a cada imagem que se correlaciona, desfrutam com scntar ou comunicar idéias e sentimentos, mas express:í-los ali::i.ndo o
o g�upo do brilho e da beleza do seu achado. real e o imaginário, a razão e a emoção, perpassados pelo que de mais
._ Com um olhar ativo e crítico e a multiplicido.de de linguagens. é refinado h.:1bita em nós: nossa capacidade de criar e sonhar e, com isso,
po�sivcl construir com o aluno conhecimentos estéticos que o faç.:1111 elaborar conhecimentos que nos humanizam.
entender-se co-participante d.:1 história do coktivo. É na infância que se desenvolvem as construções simbólicas que
pem,itcm o trânsito entre o re::i.l e o imziginário e asseguram J compre­

Releitura
• ensão de que as produções pessoais são fonte de domínio e s::i.bcr sobre
a escrita diferenciada da arte e.fonte de prazer pelo envol\'imcnto afeti­
vo 9ue proporcionam. Ao priYilcgiar o percurso criativo do aluno cstzi­
Dcri,·::i.da d.:1 !c1111ra de irnJgcm surgiu o temio re/eitura. que se rcmos dcsistimulando os modelos prontos para colorir. as folhas mimc­
refere ;:io processo de produç5o por p::irtc do o.Juno de um trJbalho pr.:1- ogr.:1focbs ou xeroc.:1d.:1s e as im.:1gcns cstcrcotip.:1cl.:1s CJllC cmp0hrL't:L·111 .:1
tico. cnrnln;nc.lo as \'Jri::i.J::i.s técnicas cJJs Jrtes visuais ou mesmo de m�mifesL=iç5o simbólica da c1ia.11ço rumo ao dcscm oh·imento ele su.:1 iJcn­
outrJs áreas do conhecimento, como a música, o teatro ou a dança. Se tidadc .como sujeito capn de criar/recriar, participar/transfo1111ar.
reler é ler no\ amcntc, é reinterpretar, reelaborar, redefinir. então a re­ E neste fazer/refazer que csti .'.l alfabetização na lingu.:1gcm dos
lciturJ é criJr norns significados. Não é pois uma cópia, mJs. sim. cri­ elementos que constituem as produções a11isticJs, t:iis como: as for­
ação com b;:isc em um texto visu;il que serYe como referência com o mas, linhas, cores, texturas, volume, movimento, equilíbrio etc que
mtuito de uma aproximaçfo maior com J obra. fazem p,ntc dos códigos d.:1 escrita plJ.stica e CJUC precisam ser c:-:plo­
.,_\ leitura de imagem não precisa necessariamente rcsult:ir cm rclci­ rados pela criança para que possJ us.:i-los, compret.:ndê-los e tro.nsfor-
rurJ E. na ,·erdadc, um recurso a mais para tomar atr;:icnte o ensino da. 111:í-los. enriquecendo assim suas \·in�nc:iJs. Este fazer criatirn que
o.ne e dcscm oh·cr habilidades paro. J compreensão da· gramática ,·isual. chamamos de a((abetl'::açifo arrísr,rn. abrange as térnicas de compor.
Tomando como exemplo a imagem estudada. Os n.:tirames. é possí­ desenhar. pintar, modelar cm :irgila, a escultura. J gravura (xilogran1-
,·el que o aluno, ao ser cstimubdo a e:-,,:prcssJ.r seus sentimentos cm rc­ ra. infograrnra etc). as i11st1bçõcs e t.::mtas outras m.:111iícst.:1cÕL'S.
bção à obra, o faça c:-,,:pondo uma situo.ç5o pessoal como descnh�111do É fundamental que o ensino cbs artes\ isu.:1is contemple �spcctos
suJ própri.:1 família. Poderá t::1.111bém im-cnt.:H uma cem com a mcsm::i rcbciomdos com o fazer a.rtísticu dos .:1lunos. suas térnicas e procedi-

. '50 Ler <: csl.rev1:r l.cr t'. 1'.scr1'.v1·r t'.111 ;irl1'.s visu;ti:-. .31
rnc:nros_ a ;1prcciJçào J3 arte entendida como leitura das imagens e a con­ FUSARJ, fvfaria F.: FERRAZ, Maria H. Afetodologia do ensino da arte. São
k:-;tu:il 11.Jçfo lll::itóricJ que situa a obra cm seu tempo e espaço e costura Paulo: Cortcz, 19%.
:i::: lig:1çõcs com o cotidiJno. Além desses, a pluralidade cultural, apre­
MARTINS, Mari3 H. O que é /eirura. I O.cd. S5o P::iulo: Br;:isilicnse, 1988.
'.'-C1T:1�3u pJll imóniJL usos e costumes, folclore, artcs:rnàto, festas po­
MARTINS, J\.1irian C. Aprendiz da arte: trilhas tio sensível olhar prnsanle.
pubr"L.:s_ rituJis farniforcs e outras manifestações enriquecem o currícu- S.:.io PJulo: Espaço Pedagógico, 1992.
1,, 1...·sclibr. C orn isto pretende-se promover uma educação Jbrangente,
11fü.TJt1, :1. \ incul.::id;,i ao coktirn e emancipatória no sentido de contri­ PARSONS_ Michael. Compreender a arte. Lisboa: Presença, 1992.
hu11 p:1l'�1 rcpcnsJr SUJ rcalidJ.de. Assim, as aprcndiz:igcns cm arte ocor­ PENUELA CANlZAl, Edu::irdo. A mct:ifora da intcncxtualidJdc. In: BAR­
i -.:rJo 11�1l1 só nJ sJb de Jub_ mas em museus, C:\posições, oficinas e lo­ BOSA, Ana Mac (org.). Ensino das artes nas universidades. S5o Paulo:
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nJ cscob. Dcsr:i íorn1.1, será m:iis fácil para o aluno o entendimento de
que JI1c é ·um trJbJ.lho como tJ..ntos outros e não um passatempo, ainda
que se: possa entender a anc como um passatempo produtivo.
Por fim_ e preciso entender que todos nós, professores de.qual­
qucr-�11c:1 do co11liccimc11to, somos n;sponsi\·cis pela cduc:ição cstéti­
cJ de nossos alunos, t:rnto pelo que oferecemos de im::igcns cstercoti­
pJJ�is de quJ.lid:idç dtffidosa quanto pelo que aceitamo? de trabalhos
infantis dl.'.spcrsonalizc1dos ou, :iinda, por nos omitirn1os daquilo que
d.:n.:riamos fazer e 11:10 fazemos. Conhecer a ::irte, tanto local qu:into
unin:rsJL � C:'\prcssar-se atra\'és da arte é um direito de toda criança.
É necessário que a escola, corno local privilegiado õnde deve ser
exercido o princípio democrático de acesso à infonnação e fonnação
de t_odas as classes sociais, compreenda que a arte é prática social que,
no fazer, faz tainbém cultura e história.

Referências bibliográficas

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P,1ukl Pcr�p1:cti, :.1. 1 J9 l.
FR.EIRE. P:nilo .-l :11ip, 1·r,111c1a·tfo oro dr! ler e/J/ três artigos que se con1pie­
U·11 -:iü P.1iilo Cone:-'._ l )9:;
1

Lt:r e cscr1::vt:r Ler e escrever em artes visuais .. - 33


AGENTES DE LEITURA: INCLUSÃO SOCIAL E
CIDADANIA CULTURAL
Fc1bic1110 dos Sc111tos

.\ LEITURA COMO DIREITO

E m seu livro Como um romance, o escritor francês Daniel


Penn:.ic fab dos direitos imprescritíveis do leitor. Sfo eles: ·'o
direico de não ler, o direito de pubr p:.íginas, o direito de nào ter­
rnirur um livro, o direito de reler o direito de ler qualquer cois:.i. o
direito ao bovarismo (doenç:1 textualmente transmissível), o direito
ele ler em qualquer lugar, o direito de ler uma frase aqui e outra :ili,
o direito de ler em voz alta e o direito de calar''.
Para Pennac, t::il como o Yerbo amar, o verbo ler não suporta o
imperativo; Ler é outra coisa. Na leitura é preciso imaginar, portan:
co. tr:ua-se de um ato de criação permanente. Ninguém ama nem
lê por obrigação. Talvez, venham dessa afirmação, os direitos im­
prescritíveis do leitor pensados pelo escritor francês. E o primeiro
é ex�uamente o direito de n::i.o ler. A partir dessa leitura in�piradora,
fiquei pensando no prolong:1mento desses direitos com o exercício
de imaginação que segue:
Toda pessoa tem o direito de ler. O direito de ler em casa no
aconchego com os pais, os filhos, o marido, a esposa, o namorado, a
namorada. O direito de ler na escola com o carinho da professora. O
direito de ler na biblioteca m companhia dos livros. O dire:to de ler
n:1 roda com amigos. O direito de ler para dormir e sonhar. O direito de
ler p::i.ra acordar o mundo. O direito de ler para amar. O dire.to de ler
para conversar melhor sobre as coisas da vida e do mundo. O direito
de ler na escola durante uma aula chata ou na rede para e:i.ganar a
preguiça. O direito de ler para se aventurar por entre sal::e:-es e sa�
bares. O direito de ler para ,·iajar por pessoas, tempos e .ugares. O
direito de ler para gastar os linos com as impressões digiL�2s e com
as asas da imaginação. O direito de ler para brincar com a· palavras,
Agentes de leitura Fobiono dos Sentas

as histórias. as poesias, as f:íbubs, os contos. O direito de ler par:.1 ponto ao outro, uma cultur:1 :l outra. A ponte pode ser uma zona de
crescer com os livros fazendo pane de sua vida e de sua história. O ,_·onuto e de ação intensa de produçio. difusJ.o e fruiç:1.o �ultural.
direito de ler para compreender o que lê. O direito de ler para poder
se encontrar com o outro, com o mundo e consigo mesmo. O direito Zonas de contatos. segundo Boaventura de Souza Santos, sJ.o
de ler para escrever. reinvent:ir e transformar o mundo. Junto a isso. .irc:1s ··onde culturas, sociedades. arranjos normativos. estilos de vida.
mais dois direitos fundamentais: toda pessoa tem o direito de n:to sa­ L-<,ncepções de mundo muito distintas, com formas ele poder tambêm
ber ler. mas toda pessoa tem o iguJ.l direito de ter vontade de apren­ muito distintas. se encontram". J.í JÇJ.O cultural é um movimento ck
der a ler para viajar nos mundos que moram dentro das pJ.bvras. gcr:1çJ.o de intera<;:.1o e de diCtlogo entre sujeitos de meios sociais e
Lk· universos cultur:iis di\·ersos, através do compartilhamento ele lin­
Esse exercício de prolong:.1mento dos direitos imprescritíveis do guagens artísticas e de e.·periênci:.is culturais: A açJo cultural implica.
leitor é innginJ.do aqui com ênfase no direito �1 leitura como um rl)rtanto. na compreens:lo intersubjetiva do lugar que ocupamos no
direito de cidadania. Diz Jorge Luiz Borges que o livro é a extensão mundo. De como, através da experiência com o saber e o fazer cul­
da memória e da imaginação. Sendo assim, quem lê amplia seus tural. podemos compor interpretações e leituras como f ormas possí­
horizontes, seus conhecimentos, seus repertórios culturais, sua capa­ \'Ci� de atribuiçJ.o ele sentidos à produção simbólica e ?ts relações do
cidade crítica e inventiva. Quem lê amplia suJ. compreensão leitor::i. e -;ujeito com o outro e com o mundo, numa perspectiva de subversJ.o
sua própria capacidade de ler o mundo. e tr�msform:1ção da realidade social.

Vivemos num país onde os indicadores de leitur:1 não são nada Pensando com Maria Christina Almeida, "A ação cultural busca a
favoráveis. Por mais que estejamos avançando, os níveis de compre­ expressão e a criatividade dos indivíduos no grupo e na comunicb­
ensão leitora ainda são baixíssimos e o número de leitores, idem. Daí de. Está ligada à ideia de transformação, de emancipação a partir da
o acesso ao livro e formação leitora ser um direito básico de cida­ expressão. Diz respeito não apenas a produtos culturais acabados;
dania, de inclusão social e de desenvolvimento. É nessa perspectiva como também as condições que levem à capacidade criativa, l p�o­
que o agente de leitura deve agir. Sua ação cultural é, por excelência, Juçào cultural''. Sendo assim, a relação do homem com o mundo
uma ação social de transformação da realidade onde ele esti inseri­ nlo é uma relação direta, mas uma relação mediada e complexa. Daí
do. Numa dimensão mais ampla, todo agente de leitura é um agente :.1 importância do papel do agente como aquele que estabelece uma

cultural e social. interação entre os sujeitos e o mundo cultural que o rodeia.


A proposta dos Agentes de Cultura consiste em movimen.ar re­
lações sociais através de instrumentos e linguagens artísticas e cultu­
UlVIA PONTE CULTURAL rais. O agente é aquele que estabelece pontes de comunicação entre
A ponte não é de concreto, os universos que percorre, enfocando esses atores sociais como su­
não é de ferro, jeitos que transitam entre múltiplos polos, mobilizando ideias, estilos
não é de ciniento. de Vidas, práticas sociais, modos de percepção, objetos, linguagens e
A ponte é até onde vai universos culturais. Dessa forma, os agentes de cultura - enfati::ando
o meu pensamento. aqui os agentes de leitura - não apenas dão movimento a esst trân -
Lenine e Lub Queiroga sito como desempenham o papel de fazer interagir diferentes mun -
dos e experiências por meio da literatura numa interface com mtras
A imagem de que partirmos para pensar a noção de ação cultural linguagens artísticas e suportes de leituras.
é a ponte. Pela ponte fazemos contatos, ligações, intercâmbios, comu­ Sendo assim, podemos pensar os Agentes de Cultura corro su­
nicações, diálogos e encontros culturais. A ponte é uma boa metáfora jeitos intermediários qu� provocam a comunicação entre rn mdo s
para a ideia de travessia cultural. Algo muito mais do que ligar um
1.

Agentes de leitura Fabiano dos Sonics

diversos, como tradutores e veículos das diferenças, sempre respei­ escolas, fábricas, empresas, associações, comunidades e dentro das
tando, compreendendo e fazendo compreender a diversidade cultu­ casas, no seio de famílias que abrem suas portas para que os livros e
ral que os rodeia no sentido de valorizar e promover a diversidade - a leitura possam entrar em suas vidas.
humana. Por outro lado, não podemos entender o papel do agente
cultural sem a sua função social, ou seja, todo agente cultural é, por Mas os agentes de leitura com os quais me debruçarei neste artigo
excelência e em potencial, um agente social, um agente inventivo têm lá suas cores e peculiaridades. Trata-se de um projeto do Minis­
de transformação da realidade. Trata-se, portanto, de reconhecer a tério da Cultura que foi buscar lá nq Ceará sua fonte de inspiração e
dimensão cultural da sociabilidade e a importância crescente da lin­ de trabalho.
guagem na construção social da realidade. Noutras palavras, cultura O projeto se insere no programa Mais Cultura e tem como obje-
e sociedade estão indissociavelmente ligadas. - tivo promover a democratização do acesso à produção, à fruição e à
Nesse sentido, a ação cultural se· apresenta como um princ1p10 difusão cultural através do livro e da leitura como ação cultural estra­
de inclusividade e de cidadania. Como instrumento que estimula a tégica de inclusão social e de desenvolvimento humano, por meio ce
aquisição de competências, saberes, fazeres e compartilhamento de atividades de socialização de acervo bibliográfico e de experiências
experiências que potencializem as capacidades e o poder de atuação - de leituras compartilhadas como exercícios de cidadania, de compre­
das comunidades atendidas, de modo a diminuir as barreiras sociais ensão de mundo e de ação alfabetizadora.
e culturais e a descobrir nas diferenças riquezas próprias. Procurando Os agentes de leitura são jovens entre 18 e 29 anos, com ensir.o
valorizar e afirmar as diferenças culturais, étnicas e sociais, de modo médio completo, situados, preferencialmente, num contexto socio­
a consolidar identidades, mas também dando a conhecer essas dife- econômico do programa Bolsa Família, selecionados por meio ce

renças, facilitando a inter-rebção e intercompreensão dos diversos uma avaliação escrita (interpretação e produção textual), fluênca
atores sociais. de leitura e uma entrevista domiciliar. Feito o processo de seleçã<>,
passam por uma formação continuada e cadastram um grupo de 3)
famílias de sua comunidade, onde desenvolvem atividades de form�­
OS AGENTES DE LEITURA 1 çào leitora como rodas de leituras, cirandas de livros, leituras cor:­
partilhadas, empréstimos de livros, contação de histórias, saraus arrí'­
P:.1r:.1 ser um agente de leitura a pessoa tem primeiro que gost:Jr ticos, performances literárias, registros de contos popubres e criaç::1)
ele ler. ter \·ont:.1de e compromisso social de compartilhar esse gosto de clubes de leituras entre os membros de suas comunidades.
e su:.1 experiência de leitur;i com um outro tanto de gente, formando
leitores em ambientes di\'ersos como bibliotecas públic:is munic1pais. Os agentes de leitura :ituam integrados �1s bibliotecas públic.s
municipais, dinamizando seus acervos e realizando program::içõe--;
1 Os agentes de leitura, da maneira aqui apresentada, têm como referência o projeto Agen­ culturais, como rodas de leituras e oficinas literári:is. Da mesma fo·­
tes de Leitura, criado em 2005 pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, financiado nu, estão inseridos nas escolas, contribuindo na form::ição leitora e�
pelo Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECOP), com atuação em municípios do inte­ crianps e jovens, atuando articulado com os professores em pro.je.c)
rior cearense e em bairros da cidade de Fortaleza com baixos índices de Desenvolvimento pedagógicos de incentivo �1 leitura, volt::idos para a comunid::ide e.­
M_unicipal (IDM) e de Desenvolvimento Humano (IDH), em parceria com as Secretarias de colar. Outros ambientes importantes par:1 a ação dos agentes s;}o e,
Educação e de Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado, associações comunitárias,
organizações não governamentais, instituições da sociedade civil e com as prefeituras
Pontos de Leitura e Pontos de Cultura existentes em su�s :.íre1s e�
municipais por meio de suas secretari"qs de cultura e de educação. O projeto teve início abr::ingência, mobilizando o acervo literário e participando das pn­
com 175 agentes de leitura em 15 municípios e 5 bairros de Fortaleza. Hoje são mais de gr:.i.mações culturais nesses pontos, desenvolvendo, assim, um:.1 ::i.çJi
SOO agentes atuando em 30 municípios e em 10 bairros da capital. O projeto se tornou sistêmica de livro e leitura, em que educ.1çào e cultura atuam jun L�
referência naciona.l de política pública na área do livro e da leitura, transformando-se em e de maneira integrada, criando ambientes favoráveis para ::i form:-
uma ação do Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura.

. 40
Agentes de leitura Fabiano dos Santos

ç:lo leitora dentro das casas. gerando uma melhoria cio rendimento percurso a possibilid:id� de promover situ:1ções de formação leitora
escolar de crianças e jovens ::itenclidos pelo projeto. n:1 su::i própri:1 vid:1. De como um :1gente de leitura tem que inebri:.ir­
-se de poesi:.i para derram:J.r poesi::i n::i:vida das pessoas, de como ele
O projeto é uma açJo de formaç:lo educacional e hununa. For­
tc·m que ser toc:ido por um bom conto para pousar na inteligência do
mação coppreendid:1 como uma viagem aberta, um::i aventura, uma
uutro. de como ele pode se indignar com um texto para que poss::i
experiêncó ele transformação e de encontros com o outro. com o
provocar algum pensamento no outro, de como ele pode se emocio­
mundo e consigo mesmo. Os agentes são selecionados e formados
n�1r com uma história de amor para compartílh:ir essa sensibilidade
num processo contínuo. descobrindo o que hei de melhor em si,
"-·om o outro. de como ele pode se divertir com uma crônica par:i
para atuarem em suas próprias comunidades com responsabilidade
que poss;i sentir ::i alegri:1 do outro, de como ele pode ficar mudo
social e . comprometimento ético, desenvolvendo talentos. sabere� e
dtJnte de um;i beleza liter:íria para que possa compartilhar seu silên­
fazeres para compartilhar experiências de interpretações e de leituras
cio com o outro. Afin;il, como fala Bartolomeu de Campos Queirós.
de mundo por meio da arte e da cultura. Atuarão em seus territórios,
ninguêm dei conta da beleza sozinho, sempre necessitamos do outro
gerando zonas de contato e pomes ele interação, proporcionando
rara compartilhar da belez:1 que nos toca. É como ver um pôr do sol
�1s comunidades o acesso à produção cultural através de processos
e .se lembrar de um bem-querer: "Quem devia está vendo este pôr
críticos e inventivas de compreender, criar e transformar o mundo
do sol não era eu e sim fulano de tal". O mesmo sentimento valeri:::i
a partir de suas próprias realidades; . servirão ainda como incenti­
para um bom livro que nos toca e nos envolve. É como se o agente
vadores/propiciadores/divulgadores da produção comunitúria para
d� leitura dissesse: "que livro lindo, preciso compartilhar essa bele­
um contexto mais amplo, constituindo-se numa ponte de mão dupla
za com outras pessoas"..Ai pode ser uma criança, um homem, uma
entre o local e o universal. Nesses termos, os agentes de leitura são
senhora que fazem parte de seu itinerário por entre casas, escolas.
constrntores de pontes, gerando encontros e comunicações entre as
bibliotecas, hospitais, presídios, pontos de leitura e outros ambientes
margens, facilitando o acesso aos bens e serviços culturais. Atuando
favoráveis para a leitura.
como leitores e escritores do. mundo a partir da inserção e da inter­
pretação de suas próprias realidades, estarão eles, também, amplian­
do seus horizontes, conhecimentos e capacidades de compreensão UwlA li\1AGEM DE PENSA.\IENTO: A VIDA DENTRO DE UM LIVRO
leitora e de escrita através das linguagens artísticas e do acesso aos
saberes e à produção cultural universal. Lilian é uma agente de leitura na pequena cidade de Muombo.
no estado do Ceará. Certa vez, em um de seus relatórios de a ivida­
Partindo dessa premissa, a formação dos agentes de leitura con­ cles, narrou uma bela história. Ela nos conta que quando chegou na
siste no desenvolvimento contínuo de constrnção e experimentação casa de Dona Antônia, uma velha senhora camponesa e artesã da pa­
de conhecimentos, conteúdos, procedimentos e habilidades em tor­ lha da carnaúba, abriu um livro e começou a lê-lo. Lilian lia e Dona
no da sensibilização e pedagogia da leitura, dinamização do acervo Antônia ria. Lilian atravessJ.va um conto e Dona Antônia dava risadas,
literário� consciência �-- expressão corporal, literatura. e cont::içào de Quanto mais Lilian avançav·a nas páginas daquela história, mais Dona
histórias, saberes comunitários, produção textual e criação literária, Antônia dava gargalhada. Ao final, quando Lilian terminou a leitura�
registro e difusão de contos populares, criação de clubes de leitu­ a velha artesã disse:
ras, planejamento das. ações, bem como conceitos de leitura, cultura,
ação cultural, inclusão social e cidadania cultural. Essas noções e - - Minha fia, eu não sabia que a minha vida todinha tava centro
abordagens compõem o cardápio básico cultural e pedagógico da desse livro.
formação dos agentes c:le leitura. No entanto, sua formação vai para A frase da Dona Antônia foi o bastante para a Lilian perceber a
além da carga horária dos cursos oferecidos. No âmago dessa for­ riqueza daquele momento. Ela saiu dali semeando para sua comu­
mação está a vida de cada agente de leitura, compreendendo n�sse nidade que aquele era o livro onde Dona Antônia se encon nra. E
Agentes de leitura Fabiano dos Santos

todo mundo queria saber qual era o livro que aquela senhora tão Nessa perspectiva, quando um agente de leitura chega numa
querida est::n-a dentro. Essa imagem de pensamento nos instiga a casa, seu objetivo não é desenvolver atividades pedagógicas com
pensar a relaç:lo entre a vida e a literatura, entre o escritor e o leitor. leituras funcionais e instrumentais, mas despertar o interesse e gosto
E, nessa relaçào, o que conta não é apenas o mundo que o escritor pela leitura de maneira crítica e inventiva, como um prazer infinito
pensou, mas o mundo que o leitor pode criar e escrever. O mundo na vida de cada pessoa. Quando ele faz um empréstimo de livro ou
e a história que o leitor pode construir inspirada em alguma fábula, uma roda de leitura compartilhada numa casa, numa escola ou numa
conto, romance ou poema. O que uma narrativa, um verso podem biblioteca, sua preocupação não é s-aber o que o leitor entendeu da
possibilitar de diálogo e de leitura de mundo por parte do leitor. Gos­ leitura ou o que o autor quis dizer com tal frase. Ao agente, interessa
to dessa rebçào porque abala a ideia da autoria centrada na figura conversar sobre as coisas da vida e do mundo a partir da leitura de
do escritor e coloca ::i leitura como uma experiência de viagem e de cada um. Quais as relações e que bifurcações essas leituras podem
descoberta interior. Podemos sentir isso no belo poema "Infância" de gerar. De como um_bom livro pode nos levar para uma canção, um
Carlos Drummond de Andrade: filme, uma peça teatral, uma dança, uma pintura, uma memória, uma
cidade, uma paisagem, um tempo... e nos trazer de volta para o livro
f\ku pai montava a cavalo, ia para o campo. ou nos levar para um outro livro e viagem literária.
�linha m3.e ficava sentada cosendo.
t-. ku irm3.o pequeno dormia. Por fim, retomo a frase digna de um Guimarães Rosa, que Dona
_ Eu sozinho menino entre as mangueiras Antônia soltou num encontro literário com a Lihan. O que elas con­
lia a história de Robinson Crusoé. versaram ou por quais veredas as duas se embrenharam? Isso tudo
Comprida história que n:io acaba mais. me faz pénsar na leitura como uma ação cultural dinâmica, que tem a
T\o meio-di:.1 branco de luz uma \'OZ que aprendeu ver com a formação e a aventura humana de cada leitor. Imagino ser
A. nin:.u nos longes da senzal:::t - e nunca se esqueceu isso ;i anhna do agente de leitura: fazer cada um descobrir o que há
Chamava para o café. de melhor em si, através do tato e do contato, do hábito e do hálito,
C:i.fé preto que nem a preta velha do curso e do percurso, da vida e da experiência de c1da um com
cifé gostoso a leitura como essa viagem de twnsformação e de encontros com o
c:1�-é bom. outro, com o mundo e consigo mesn10.
:'\linha mJe ncava sent:1cb cosendo
oilnndo p�tr:.1 rnim:
- Psiu ... l\}o :1corde o menino.
PJ.r..1 o berco onde pousou um mosquito.
E dJ\':l um suspiro... que fundo!
Ll longe meu r,ai carnr,eava
no mato sem fim da f::izenc.la.
E eu n�to sahia que minha história
er.1 m:ii.-, bonita que a de Robimon Crusoé.

A partir disso podemos pensar em outro tipo de rebç5.o com a leitu­


ra. Tanto os \·ersos finais desse poema de Drummond como a fr..ise de
Dona Antôni::i. nos le\·3.111 J crer ·c.1ue, ::io mesmo tempo que a literat1.1ra
pode levar à \-ida, a vida também pode nos levar à literatura. Est.í aí uma
belo sentido e sentimento da aç}o de um agente de leitura.

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