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Por isso a escrita tem algo de salvador. Não se trata de ser lírico,
como defende Cioran logo de seus primeiros ensaios. Ao contrário
dele, recusamo-nos a nos fechar em nós mesmos, insistimos em correr
atrás da expressão e do conhecimento para, da mesma forma que o
autor, sistematizar um processo caótico e rebelde. Caótico porque a
todo o instante, novos sintomas são provocados pelo vírus e rebelde
porque, frente a todas as tentativas dos médicos, o vírus se rebela para
atingir o seu fim. O fim do vírus é nos matar, por isso o suicídio não é
uma possibilidade.
Devemos pensar no que fazer com estas imagens tão terríveis. Elas
podem alimentar a depressão e o medo, mas, entretanto, podem
aprumar o espírito para a reação. Não devemos perguntar se devem
circular, o que atenta para a liberdade de imprensa, mas sim - o que
faremos se elas se tornarem insuportáveis? Sim, porque o contrário
também pode acontecer – já não está acontecendo? – de que elas
terminam por nos tornar insensíveis, produz a insensibilidade com
relação ao sofrimento dos outros. Não é assim que agem nossas elites
que, mesmo frente às mortes por todo o mundo, teimam em chamar
ao retorno ao status quo, à normalidade? É bem verdade que, em
nome da conscientização da população com relação aos perigos do
coronavírus, os meios de comunicação tenham buscado “aterrorizar”,
a palavra não é exatamente esta – paciência! - a população com as
imagens da tragédia dessa realidade-horror, movidos pela boa
intenção de que assim os cidadãos ficassem em suas casas. Tratar-se-ia
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A psicanálise e o coronavírus
“Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma
cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta
hebreu "o que é política?", ele nos responderia, a arte da
jardinagem aplicada às coisas públicas” (ALVES:2000).
Para atingir o que Alves propõe, devemos fazer como sugere Han,
e um dia, sentir a necessidade de trabalhar nosso jardim doméstico. A
pandemia é o tempo que temos para isso, podemos batizá-lo,
trabalhar nele de forma que seja expressão de uma meditação, sempre
em silêncio, para nos determos nos aspectos da terra e de nós
mesmos, descobrindo sua beleza, nos convencendo do quanto é
divina a vida e do quanto nos entregamos ao capital e ao
neoliberalismo sem sentido. O Jardim do Éden, diz Han, também é
um jardim, onde o homem é obrigado a participar de um jogo que o
trabalho destruiu. É uma experiência indescritível, diz Han “a terra
não é um ser morto, inerte e mudo, se não um eloquente ser vivo, um
organismo vivente” (HAN: 2019, p.12) A pandemia é produto do fato
que exploramos brutalmente a natureza e o vírus é essa determinação
que diz que, ao contrário, devemos tratar a natureza com esmero, com
cuidado. Em alemão, a palavra para tratar com cuidado é Shonen,
etimologicamente próximo da expressão Das Schöne, o Belo. Finaliza
Han: “O belo nos obriga, nos ordena a tratá-lo com cuidado. Há que
tratar cuidadosamente o belo. Esta é uma tarefa urgente, uma
obrigação da humanidade, tratar com cuidado a terra, pois ela é bela,
é inclusive, esplendorosa” (HAN: 2019, p. 13).