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Os sentidos da quarentena para a vida

A entrevista que o filósofo Nicolas Grimaldi deu ao site francês


RFTB traz lições do coronavírus para a vida. A primeira é que o
isolamento nos fez descobrir o quanto somos pequenos sem os
outros, “não somos suficientes. Não há homem que se sinta vivendo
apenas para si”. A quarentena é o laboratório obrigatório da
experiência da solidão e com isso, descobrimos que, para além do
consumo, é o Outro que importa. A segunda é que a pandemia nos
faz esperar seu fim, não é possível viver sem expectativas do fim do
contágio e isso explica porque vivemos decepcionados com as
decisões políticas, que parecem não terminar com o ciclo do vírus,
nossa irritação com o isolamento, de onde vem a ânsia de retorno a
vida real

“Quando moramos sozinhos, fazemos uma descoberta,


extremamente significativa, quase comovente. Descobrimos que
um único homem, um indivíduo, é quase nada. Parece-me que a
ilusão principal, a mais original e a maior que nós viver é acreditar
que somos um todo, do qual estaríamos distraídos com a atenção
que damos aos outros. Como se houvesse o exterior acidental e o
interior fundamental” (GRIMALDI: 2020).
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Grimaldi é professor emérito da Sorbonne, ex-aluno de Vladimir


Jankélévitch e o autor de Sortilégios do Imaginário e A Vida e seus
erros (PUF, ainda sem tradução). Ele tem razão quando diz que o
paradoxo da pandemia é nos colocar a obrigação de ficar em casa,
nossa profilaxia, o mesmo lugar que disponibiliza você a fazer o que
bem entender. Se você, é claro, é dos privilegiados que podem ficar
em casa “aqui estou com tudo para mim, em um tempo de lazer que é
quase férias. Mas são férias sem entretenimento. São férias sozinhas,
sem os outros”, sentencia “(GRIMALDI: 2020). Quer dizer, estamos
na quarentena livre para fazer o que quiser nos limites de nosso lar,
mas é aí que você tem uma iluminação “você descobre sua
incompletude, sua miséria, falta algo, ou tudo” (GRIMALDI: 2020). É
sua liberdade de ir ao mundo, sua vontade de ir aos parques e jardins,
o simples passeio por um shopping-center que é proibido “Surge
então a pergunta: o que falta a um homem que não tem nada?”

Antes, vivemos para trabalhar, o que nos obriga a um tempo de


espera, a expectativa do salário que unifica você ao mundo, e de certa
forma, você vive no que era possível de ser chamado de uma vida de
completude. O confinamento é o oposto. Você tem expectativas
porque não sabe quando a pandemia irá terminar, você não tem mais
controle de sua existência para fora dos muros de sua casa. Mas o pior
é a relação com os outros, o “que nos priva de tudo é a solidão” como
assinala Grimaldi: você perdeu os abraços e a conversa jogada fora.
Lembra como você conversava com o vendedor da livraria, com o
atendente da pet shop, trocava impressões, falava do dia que estava
passando? Agora, com a parafernália de proteção, com o uso de
máscaras que ocultam inclusive, o sorriso do outro, temos de
agradecer, pois ainda, como no Extremo Oriente, aprendemos agora a
valorizar o olhar. Grimaldi, sem querer, encontra na pandemia a base
da existência na socialidade, aquilo que o sociólogo Michel Maffesoli
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define como o encontro em sua obra O Tempo das Tribos


(FORENSE UNIVERSITÀRIA: 1987), onde é a vida nestas que
define o sujeito contemporâneo. Essa descoberta diz que só vivemos
porque os outros nos fazem companhia em nossas trajetórias, com seu
cuidado, com sua oferta de educação e espaços de trabalho. A
sociabilidade, para Michel Maffesoli, é o que para Grimaldi é o
sistema de trocas social, que como afirma “é o trabalho de outras
pessoas que me permite viver” (GRIMALDI: 2020).

Por isso o comum importa. A pandemia é essa prova que a


natureza nos aplica a formulação da questão: somos capazes de
reconhecer que a vida é um bem comum? “Vivemos para os outros.
Assim como não somos nós mesmos, apenas para nós mesmos, não
vivemos para nós mesmos” (GRIMALDI: 2020). Não é exatamente o
isso que nos é pedido quando somos chamados a evitar espaços com
aglomeração, a fazer nossos procedimentos higiênicos, essa atitude
básica de respeito à vida como bem comum que deve ser preservada
por todos? De que fazemos isso porque sabemos que não vivemos
para nós mesmos como diz Grimaldi? Por isso, aqueles que vão a
público sem máscara estão afrontando a ideia de vida em comum,
pois põe em risco a vida dos demais. Como afirma Grimaldi, é o
confinamento que faz com que descubramos a verdade de que a vida
em comum é nosso fundamento, que sozinhos não somos nada. O
mundo é essa aventura coletiva na qual somos um dos personagens

“Uma de nossas primeiras experiências é o desejo, o desejo de se


tornar, como os outros, um dos objetos do mundo, um
personagem de um romance, mas nunca me tornarei um
personagem de um romance” (GRIMALDI: 2020).
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É claro que frente ao que somos, o consumo é uma resposta


covarde. Os antropólogos que analisam a sociedade de consumo
afirmam que nos acostumamos a considerar o mercado como o lugar
de encontro da felicidade através da satisfação artificial da mercadoria.
Sabemos que o capitalismo vive da necessidade de substituir o nosso
desejo pelo convívio com o Outro pelo desejo pela mercadoria, o que
significa também, que nos tornamos viciados em consumir coisas,
inclusive as mais idiotas possíveis. Tudo para que possamos ter um
signo com que conversar...com o outro “já tens o último i-pad?”,
perguntam-nos, pois é isso que apenas queremos fazer, ter um motivo
para a interlocução, a pergunta, a proposta de uma troca
comunicativa. Consumir tornou-se um fim, e por essa razão, como o
que ocorre com viciados, nossa adicção nos impele, na menor chance,
na abertura do comércio naquelas cidades que praticaram o
lockdown, a correr para os shoppings-center. Não parecemos todos
nessa imensa corrida aos shoppings como o viciado que passou por
um período de abstinência e que por isso, necessita imperiosamente
retornar ao consumo? Esta recaída consumista tem um preço porque
novas aglomerações produzem novas possibilidades de doença.
Paradoxalmente, o que nos impele a retornar ao dia a dia é o mesmo
que irá nos afastar dos entes queridos. Estamos querendo viver, mas o
problema é que, na pandemia, isso só acelera as chances de nossa
própria morte pelo vírus.

É por causa da falta, sempre ela, dizem os psicanalistas. A ideia da


ausência de algo primordial, de que estamos na vida de a procura de
algo que não sabemos o que é, de que o consumo nos é oferecido
nesse percurso como uma distração, que mostra que estas fantasias
criadas para nos entreter acabam produzindo nossa ansiedade. São
agora cerca e três meses de confinamento quando escrevo isto e você
está ansioso pelo que poderia fazer, pelo que poderia ter trocado com
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os outros. Você faz lives como supremo desespero frente à solidão,


troca informações, palavras, mas não consegue fazer a troca dos
toques, aproximações, no sentido dado pela psicanalista Suely Rolnik
em sua obra Cartografia Sentimental (ESTAÇÃO LIBERDADE:
1999). Somos sempre infelizes sozinhos, você quer sair por aí, mas há
o impedimento de que fala Grimaldi “A única barreira real é a da
minha morte. Além da minha morte, não posso dar nada”
(GRIMALDI: 2020). Somos obrigados a viver nossa solidão, mas
vivemos para compartilhar, experimentar com o outro, e se não há
ninguém conosco, de nada adianta nosso esforço. O gesto do
encontro agora é proibido, e, ao contrário, é um produtor de morte e
não de vida. Se realmente amamos os outros, é preciso agora deixá-los
sozinhos.

Grimaldi conclui com um elogio da vida como espera. Se tivermos


um pouco mais de paciência, se pudermos frear a ansiedade que no
momento nos impele a retornar o frenesi da vida urbana, da vida que
produz aglomeração, teremos um futuro a compartilhar com quem
amamos. Se cedermos de nossa ânsia de retorno à normalidade, se
cedermos à compulsão do consumo no retorno aos shoppings e áreas
de alimentação estaremos nos expondo ao contágio e nos
transformaremos no instrumento de difusão do vírus aí sim,
colocaremos nossa vida e a vida dos entes que amamos sob risco. O
vírus nos impõe um momento de reflexão: se somos capazes de
valorizar a vida como bem comum, se somos capazes de valorizar o
outro e entender que vivemos para a socialidade sim, temos a chance
de não estragar tudo o que queremos se refreamos nossa ânsia pelo
espaço público de aglomeração. Ficar em casa, diz Grimaldi, é um
gesto de amor ao próximo e prova de que somos capazes de vencer
nosso egoísmo.
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Imagem de Mircea Iancu por Pixabay

As origens do medo ao coronavírus

O coronavírus provoca medo. Por quê? Somos parte da natureza,


que possui ciclos de vida e morte, mas não aceitamos a morte como
destino “A integridade do corpo é o alicerce de nossa sensação de
ordem e completude” diz o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan em
sua obra Paisagens do Medo (UNESP: 2005). O coronavírus nos
obriga a pensar nas origens da hostilidade do mundo: para o homem
primitivo o mundo divide-se entre aqueles que acreditam que a causa
do mal é externa – o meio ambiente – ou interna – a violação de um
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tabu. Nesse último, objetos estranhos, maus espíritos, magia e bruxaria


é a fonte do mal.

Na China antiga, o medo da doença é vista como um desequilíbrio


entre um organismo e as forças cósmicas. A recuperação está na busca
do equilíbrio. As doenças, como a seca, são sinal de desvio na
harmonia do universo. Nesse tempo, pobres e ilustrados chineses
divergem quanto às causas das doenças: para o pobre, a causa é um
demônio que precisa sacrifício para a cura; para os mais
intelectualizados, é desordem entre o Yin e Yang.

Entre 450 e 350 A.C, é publicado o mais importante texto de


medicina chinesa, o Huang Ti Nei Ching, contemporâneo das obras
de Hipócrates. Sua ênfase é o vínculo entre natureza e os seres
humanos “o vento é a causa de cem doenças porque a pele protege,
mas tem poros e pode ser penetrada” diz o Nei Ching.

No Ocidente, epidemias frequentemente são vistas como o castigo


dos deuses por uma transgressão. Levamos anos para chegar à ciência
médica do século XIX quando deixamos para trás a explicação de
espíritos, demônios e bruxas. Mas uma ideia se preserva: a da
influência do meio ambiente. Sabemos hoje que o coronavírus
propaga-se também por uma alteração do habitat, que o
desmatamento é a origem das epidemias atuais.

Os verdadeiros responsáveis pela pandemia são nossa ânsia de


explorar a natureza e extrair suas riquezas, o crescimento exagerado
das cidades e a busca sem ética pelo lucro do capitalismo neoliberal.
Hora de repensar não apenas a doença, mas nosso modo de vida,
recusar ser consolado por falsas imagens, usar a ciência a nosso favor e
ver no coronavírus a lembrança de nossa contingência. Mexemos com
a natureza e sabemos disso: daí vem nosso medo.
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Mais do que medo, o coronavírus nos coloca diante do desespero.


Existe um notável livro do escritor romeno Emil Cioran intitulado
Nos cumes do desespero (HEDRA: 2012). Ele é escrito em 1933
quando o autor tem vinte e dois anos de idade e seu objetivo é
expressar a sua angústia de existir. Ele é atual por diversas razões. Não
há como não achar familiar esta obra nos tempos de pandemia que
vivemos: tanto lá como hoje, a experiência da insônia, da “vigília
permanente”, essa vida “nada sem trégua”, descrita pelo autor que é
notavelmente familiar a nossa época de coronavírus. Pois não é
exatamente assim que estamos em nossas casas, vivendo essa
experiência de insônia à luz do dia, esse estado de “vigília
permanente” contra o vírus, praticando sem trégua nossas medidas de
higienização e distanciamento? O detalhe é que o autor faz a sua
redação com um propósito, o de ser o testamento de um suicida, mas
ao encontrar alivio nas palavras, ao desenvolver a arte da escrita, muda
de intenção e aprofunda-se no ceticismo e no niilismo que torna
conhecida sua obra. Quando vemos os mortos sem trégua do vírus,
não é um dos sentimentos vividos em nossa época, o pessimismo?
Como afirma Cioran, qualquer coisa é preferível à vigília permanente,
essa ausência criminosa do esquecimento.

Desde a instalação da pandemia, somos todos Cioran: estamos “de


plantão em um mundo agonizante”. Todos os dias assistimos ao
Jornal Nacional e sabemos de antemão a sua pauta: o número de
mortos do dia, os novos hospitais do país com precariedade de
atendimento, o novo cemitério com insuficiente número de valas, etc.
Vivemos, como Cioran, na época ideal para o pessimismo – é certo
que não vou sobreviver - e para a emergência do ceticismo - quem
garante que consigo sobreviver? - e do relativismo histórico – sempre
há epidemias com milhões de mortos! Não duvide que haja entre nós
aqueles que, sozinhos em suas casas, não pensem como Cioran e
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também já não tenham elaborado, ao menos mentalmente, seu


próprio testamento frente à possibilidade de ser a próxima vítima da
pandemia.

É que assim que, como Cioran, vivemos uma época caracterizada


pelo excesso da dor de existir. Não há como ficar neutro quando você
vê famílias que não podem enterrar seus entes queridos. Como
Cioran, frente a estas situações de desespero, só conseguimos reagir
com um grito de dor e angústia “daquele que despertam para o
absurdo de estar vivo”. Mas há diferenças. Ao contrário de Cioran,
deixamos de perambular pelas ruas como um fantasma porque
fazemos isso de outra forma, perambulando pela casa. E reportagens
já mostram aqueles que caminham quilômetros dentro de seu próprio
apartamento, forma máxima de dizer que não suportam os limites do
lar, mas, por causa de um vírus cruel, precisam se submeter?

O livro de Cioran é atual por mais uma razão. Nele, o autor


também diz que desconfia do fanatismo “não gosto dos profetas,
assim com não gosto de grandes fanáticos que jamais duvidaram de
sua fé e de sua missão” (CIORAN: 2011 p.11). Não é notável essa
desconfiança quando nos lembramos de que os fanáticos também
estão entre nós naqueles que desprezam a importância do vírus por
sugestão do Presidente da República Jair Bolsonaro, não se revelam
como fanáticos? E o que dizer da ironia que permeia as redes sociais,
que ri da aparência do Ministro da Saúde, Nelson Teich, que lembra
o personagem célebre da Transilvânia, a mesma região onde Cioran
escreve Nos cumes do desespero? Todos gostam de ser como Cioran
para passear de madrugada pelas ruas vazias de nossas cidades como
ele fez na cidade de Sibiu. Ele diz que sua insônia converte o paraíso
num centro de tortura. Para Cioran, são noites infernais, para nós, são
dias infernais a procura do que fazer em nosso isolamento:
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“As horas de vigília constituem, no fundo, uma rejeição contínua


do pensamento pelo pensamento, a consciência exasperada por ela
mesma, uma declaração de guerra, um ultimato infernal do espírito
dirigido contra si próprio” (CIORAN: 2011, p 16).

A escrita é o remédio que serve de cura para Cioran e para nós.


Cura do desejo de suicídio de Cioran, cura da depressão de muitos de
nós, que passam o dia a escrever sobre a pandemia. Ao invés de
ruminarmos os dias a procura de uma saída emocional do vírus,
escrevemos e raciocinamos. O suicídio para Cioran se coloca por que
ele rumina a cada noite com o íntimo de seu ser questões insolúveis e
perguntas sem respostas. Não é assim com o coronavírus para cada
um de nós? Você consegue imaginar a morte por asfixia, de que
falarei adiante e que segundo apontam os médicos e os depoimentos
nos telejornais, é uma das mortes mais terríveis. Se Cioran vivesse
nesta época, a imaginação de sofrimento tão terrível também o faria
imaginar o suicídio.

Imagem de RitaE por Pixabay


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Por isso a escrita tem algo de salvador. Não se trata de ser lírico,
como defende Cioran logo de seus primeiros ensaios. Ao contrário
dele, recusamo-nos a nos fechar em nós mesmos, insistimos em correr
atrás da expressão e do conhecimento para, da mesma forma que o
autor, sistematizar um processo caótico e rebelde. Caótico porque a
todo o instante, novos sintomas são provocados pelo vírus e rebelde
porque, frente a todas as tentativas dos médicos, o vírus se rebela para
atingir o seu fim. O fim do vírus é nos matar, por isso o suicídio não é
uma possibilidade.

Nossa forma de reagir ao vírus rebelde e mortal é diferente de


Cioran. Ao invés de deixar-se largar ao lirismo, a fluidez interior,
desejamos objetivar, analisar, refletir e ensaiar. Ainda que seja uma
forma similar de crescimento interior, reivindicamos como uma
experiência de conhecimento. É claro que há um lado espiritual nisso
tudo, você recupera a fé cristã que lhe ensinam na infância, o que lhe
dá uma sensação de atualidade, mas você considera isso parte de seu
processo de entendimento da pandemia.

É diferente da intensidade vivida por Cioran em sua época, que o


faz viver com grande tensão o que definiu como “viver com tanta
intensidade, que acabamos sentido que morremos por causa da vida”
(CIORAN: 2011, p.16). Sabemos que podemos morrer por causa de
um vírus e que não será uma morte fácil, mas uma morte
intensamente dolorida. Cioran se pergunta se tem sentido procurar
uma explicação nisso tudo. É claro que sim! - o conhecimento é um
alívio desta tensão cotidiana, de um vírus à espreita que nos aprisiona
em nosso próprio lar, que coloca o sentimento de horror que
acompanha a pedagogia do vírus que é a de nos oferecer a imagem
angustiante de nossa morte.
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Ninguém está preparado para suportar estas experiências até o fim,


a da imagem da morte de nossos amados e de nós mesmos. É a
incerteza da vida no tempo do coronavírus através das imagens que
evocam o pressentimento do final. Ao contrário do que Cioran
acredita, essa energia propensa à explosão deve ser controlada, o que
para ele é impossível. Cioran está certo em dizer que há estados com
os quais não se pode conviver e é exatamente por isso que a mediação
do conhecimento é fundamental. O vírus nos obsessiona no sentido
de que ele, através dos telejornais, nos traz a mente à imagem da
morte, que é uma imagem devastadora. Diz Cioran que os conteúdos
objetivados pela consciência perdem sua atualidade: nada disso, nossa
salvação não é reconhecer nossa inferioridade, mas, ao contrário,
poder dizer ao vírus que, se ele ganhou esta batalha, não significa que
ganha a guerra. Uma vacina irá surgir.

O conhecimento produz em nós o que o lirismo produz em


Cioran: ele diz que o homem se torna lírico no sofrimento e no amor,
estados da profundeza íntima, espécie de palpitação da vida. A vida,
contudo, nossos afetos, tem relação com o conhecimento. Quem diz é
a filosofa Marilena Chauí, leitora de Espinosa, para quem o
conhecimento pode ser associado à alegria: sentimo-nos felizes por
aprender, o saber também toca e faz palpitar a vida e por alguns
instantes, nos faz esquecer a imagem da morte. Pessoas podem ser
líricas ou marcadas pelo conhecimento. Da mesma forma, ambas, na
agonia, podem aprofundar seu lirismo ou conhecimento quando uma
inquietação profunda atinge seu ser. Cioran diz que você passa a
escrever poesia quando ama

“a prova de que os meios do pensamento conceitual são parcos


demais para expressar uma infinidade interna e que só na presença
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de um material fluido e irracional é que o lirismo interior encontra


um modo adequado de objetivação” (CIORAN: 2011, p. 18)

Cioran está errado. A filosofia é suficientemente rica para


descrever os diversos estados do mundo e do ser, inclusive o
amoroso. É só retomar a obra do filósofo Georges Bataille, um
notável escritor e que também inspira o próprio Cioran. O vírus nos
faz sofrer e por isso a analogia de Cioran é inspiradora até certo
ponto. Não no sentido dado pelo autor de Nos cumes do desespero,
de uma vontade suicida, mas a partir de indicações sugeridas ao longo
do caminho por ele. É verdade, por exemplo, que o pressentimento
da morte que o vírus provoca, de súbito nos domina e nos transporta
para outras regiões que nos deixam num turbilhão. A saída lírica é
uma das opções e a outra é a baseada no conhecimento. Não se trata
de cantar uma canção de carne e nervos, mas exatamente o contrário,
buscar o conhecimento que brota da doença. Não se trata de ser
impessoal com relação à doença, ao contrário, se trata de ser
escandalosamente pessoal porque se trata, através do conhecimento,
buscar recuperar a alegria de viver.

O estado de quem busca o conhecimento, ao contrário do lírico, é


um estado que define formas e sistemas. Sua fluidez é a dos conceitos,
que num impulso, convergem para unir a vida interior a uma
interpretação do momento em que vivemos. Podemos estar
aprisionados em nossa casa devido a um vírus, mas não deixamos de
pensar formas de entendê-lo “o lirismo é uma expressão bárbara”, diz
Cioran, no sentido de ser só sangue, sinceridade e chamas. E
exatamente por isso que o conhecimento é uma expressão de
civilização, no sentido de ser razão e inteligência. E talvez, uma saída
para viver o isolamento com esperança.
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Reflexões sobre negacionismo

Na segunda série da coleção da editora n-1, curiosamente é


chamada de “Pandemia”, Deborah Danowski escreve o volume
intitulado Negacionismos. Danowski é professora do pós-graduação
em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ) e após trabalhar com metafísica moderna, volta-se para os
temas da globalização e da crise ecológica. Seu texto de debate
proposto pela coleção é escrito logo a pós a eleição presidencial de
2018 e a emergência da extrema-direita no Brasil. A autora pega o
gancho das últimas preocupações com o fim do mundo que se
anunciam com a catástrofe climática e ecológica, que é objeto da
análise do negacionismo por parte da população e de políticos e que é
útil para analisar o que ocorre com parte da população no contexto da
pandemia.

Para Danowski, o negacionismo tem papel importante na


compreensão da paralisia cognitiva, psíquica e politica atual. Frente
aos acontecimentos que resultaram na eleição presidencial, Danowski
se vê obrigada a transferir sua preocupação com a catástrofe climática
para a catástrofe política brasileira. Em seus estudos, duas são as
fontes das expressões mais recentes do negacionismo: o primeiro é o
negacionismo de nazistas, ex-nazistas e neonazistas que não
reconhecem o Holocausto perpetrado pela Alemanha durante a
Segunda Guerra Mundial; e o segundo é o negacionismo diante das
práticas de criação, confinamento e extermínio em massa de animais
nas fazendas e fábricas da agroindústria mundial.

Mas as eleições, e com ela a emergência de uma extrema-direita


que vivia subterraneamente no país, fez surgir um terceiro
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negacionismo muito pior que os anteriores, porque é feito em cima de


conquistas da democracia, dos direitos humanos e da universidade
brasileira. O negacionismo cultivado por parcela da sociedade
representa uma ameaça ao conhecimento em suas variadas formas.
Essa forma de negacionismo só encontra paralelo nos que advogam a
inexistência dos campos de extermínio e se atualiza nas formas de
desvalorização do conhecimento produzido na universidade que não
se revelam imediatamente rentáveis; na desvalorização dos diversos
campos dos direitos humanos, expressos na recusa de temas das
agendas feministas, LGBT+, negro e indígena. É só olhar o tom dos
discursos destes atores, políticos, formadores de opinião, que, a partir
da eleição, defenderam que reservas indígenas passassem a ter novas
regras para servir ao Capital, que terras quilombolas pudessem ser
ameaçadas e sem falar do próprio patrimônio natural brasileiro, com a
ameaça de abertura de reservas naturais ao turismo.

A hipótese de Danowski é premonitória: “temos a sensação de ter


submergido, não só na negação e no negacionismo de boa parte da
classe política, da intelectualidade e da população de modo geral, mas
no próprio desejo de morte e extermínio, a um só tempo, do sentido
e de qualquer forma de alteridade, que é a mola propulsora de todo
fascismo” (Danowski, p.7). A autora explora o campo das ciências do
clima, mas ao final, sua análise do processo pode ser aplicada com
relação à pandemia do coronavírus. Enquanto a autora vê divergências
quanto à projeção da velocidade do aumento futuro das concentrações
de gases de efeito estufa, o que vejo é a divergência do Presidente de
seu ex-ministro da Saúde Luís Eduardo Mandetta sobre a velocidade e
mortalidade de expansão do coronavírus; enquanto Danowski está
preocupada em como diversos ecossistemas irão reagir, quais seus
pontos de inflexão, estou preocupado como o debate que se faz entre
interesses políticos e sanitários, entre atores com poder de decisão e
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os que reagem as suas tomadas de decisão de forma diversa - uns


defendendo o isolamento, outros, o retorno às atividades econômicas.
No fundo, cada grupo social que representa um interesse são também
ecossistemas reagindo às determinações de aberturas e fechamento do
comércio. São essas inflexões durante o processo que terminarão por
aumentar a curva de vítimas.

O que há de comum entre a proposta de Danowski e a pandemia


que atravessamos hoje? Em ambos, o negacionismo é particularmente
presente e se manifesta na incapacidade de reconhecer a importância
da natureza na nossa existência. No argumento de Danowski, o clima
está em evidência; na minha argumentação, é a mesma com a
pandemia do coronavírus, que também é produto da natureza. Ambos
assumem ao mesmo tempo um caráter aterrorizante “como uma fera
que, provocada, reage das maneiras mais inesperadas” (Danowski,
p.8). Ela assinala que a inércia, descoberta pelo cientista inglês Sir
Isaac Newton, está por detrás das políticas humanas: a razão é o
esforço do Capital para aumentar seus lucros à custa da exploração do
meio natural, da exigência que o imperativo “voltem ao trabalho” que
influência as políticas sanitárias, que trabalham para “semear a dúvida,
ou melhor, a percepção pública de que ainda há dúvida e controvérsia
entre os cientistas a respeito da realidade” (Danowski, p.9). Não é
exatamente assim que age a direita mais radical, colocando a dúvida
no ar “o que é mais importante, vidas ou empregos?”, discutindo
políticas de saúde “isolamento vertical ou horizontal?”. Da mesma
forma que a direita americana adota a posição de negação do
aquecimento global, a direita brasileira adota a negação da pandemia
como objeto de política. E da mesma forma como os Estados Unidos
ficam fora do Acordo do Clima assinado em 2015 com Trump, o
Presidente Jair Bolsonaro, prometendo acompanhar seu ídolo
americano, durante o mês de março, incentiva a saída dos
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trabalhadores do isolamento radical. Agora, quando Trump defende o


isolamento, como no seu discurso de 31 de março de 2020, o
Presidente brasileiro volta a trás e defende o isolamento, na linha que
defendia o Ministério da Saúde. Espero que não seja tarde demais
para evitar o aumento no número de mortos.

Danowski lembra que o termo “Holocausto” é reservado pelos


historiadores para referir-se ao genocídio dos judeus pelo regime
nazista “já foi algumas vezes empregado com o intuito de despertar as
mesmas ressonâncias para descrever as práticas de criação,
confinamento e extermínio em massa de animais nas fazendas fábricas
da agroindústria mundial”. A autora chama a atenção para o detalhe
de que Holocausto tem origem no termo grego antigo para sacrifício,
Holos, que significa inteiro e Kaustós, queimado, enquanto que o
termo Shoah, mais usado na língua francesa, vem do hebraico e
significa catástrofe “Os dois nomes, sendo reservados a esse
acontecimento particular, trazem consigo a ideia não apenas de
extermínio de um povo, mas do dispositivo de desumanização que
preparou e permitiu esse extermínio” (p.12). Danowski sabe que é
arriscado usar o termo Holocausto para caracterizar o holocausto
animal, já que uma forma de ofender os judeus à época era
representá-los como porcos, sub-humanos, o que soaria como uma
heresia. Para dar esse contexto, Danowski cita a passagem de A vida
dos Animais, de J.M. Coetzee: “Eles marcharam como carneiros para
o matadouro. Morreram como animais. Foram mortos pelos
açougueiros nazistas. Nas denúncias dos campos ressoa com tamanha
força a linguagem dos currais e dos matadouros que é quase
desnecessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes
a fazer. O crime do Terceiro Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as
pessoas como animais”.
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Acredito que o termo é adequado para os tempos de coronavírus.


Parece uma imagem cruel para os tempos atuais? Mas não é
exatamente assim que o vírus está tratando a humanidade, fazendo
vítimas em todos os países por onde passa morrerem como...
animais? Ora, a imagem do Holocausto no sentido de catástrofe é
pertinente para o que vemos, esse vírus é o equivalente atual do
açougueiro nazista, nossas ruas são nossos currais de criação de um
vírus que mata sem que saibamos; nossos ajuntamentos públicos, sem
nenhuma proteção, equivalem a matadouros. A imagem da carreata
de caminhões de mortos na Itália não é essa marcha para os
cemitérios de que fala Coetzee? A imagem do vírus como o
equivalente do criminoso do Terceiro Reich é porque ele nos trata
como animais. Essa imagem é cruel, mas ela não dá conta da natureza
do processo que estamos vivendo com o coronavírus? Coetzee
continua: “... estamos [não mais no passado, mas hoje, aqui e agora]
cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que
rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de
fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso
trata-se de uma empresa interminável, que se auto reproduz, trazendo
incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o
propósito de matá-los”.

Danoviski está preocupada com as indústrias de animais, eu estou


preocupado com a produção da morte pelo vírus que transforma a
humanidade em animal. Observem: trata-se também de uma empresa
de degradação duplicada porque é da parte de um vírus por um lado,
e daí nossa luta entre interesses vitalistas, de defesa da vida humana, e
por outro lado de interesses capitalistas, de defesa da vida econômica,
estes últimos muito cruéis “Devemos parar a roda da economia? É
claro que não, é uma gripezinha”, dizem. O que rivaliza com o
Terceiro Reich é o Capital com seu profundo desinteresse pela vida,
J O R G E B A R C E L L O S | 75

transformada em objeto de criação de lucro. Carreatas pelas cidades


exigem das autoridades a flexibilização, à volta ao trabalho no instante
em que inicia uma curva de inclinação fatal: é sempre a mesma
empresa de interminável destruição tentando ditar as regras do jogo
político para todos desconhecendo que, ao permitir que o vírus mate
os homens, mata a si própria.

Danowski preocupa-se com a negação da indústria alimentar que


cria seus campos de invisibilidade, eu me preocupo com a negação
desta indústria da morte em andamento, essa capacidade do vírus de
matar combinada com a omissão das autoridades e a pressão do
capital, verdadeira tragédia em escala planetária que produz vítimas
pelo atraso das mobilizações governamentais. Em cada continente, o
vírus elege um país como epicentro: na Ásia, a China; na América do
Norte, os Estados Unidos. Será o Brasil o epicentro da América
Latina?

O Presidente e parcela da classe média de extrema-direita revelam-


se profissionais da negação. O primeiro porque negligencia a força da
pandemia “é uma gripezinha” e a classe média de extrema-direita
porque nega o vírus em função da necessidade de manter seus
negócios. Nenhum deles reconhece que estão no caminho de um
vírus que provocou milhares de mortos por onde passou: quantos
milhões ainda morrerão até que os governos se deem conta que pela
omissão também são perpetradores dessa mortandade? Quando foi
que esqueceram que, em guerra, organiza-se uma economia de
guerra?

Muitos dos que negam a mortandade do coronavírus o fazem por


não suportarem pensar que suas vidas precisam de uma mudança
radical. Para enfrentar a pandemia, uma mudança radical é exigida de
76 | T E M P O S D E P A N D E M I A

imediato e que enfrenta a resistência de empresários e


microempresários: o isolamento, o abandono radical da atividade
laboral “somos todos negacionistas. Quem seria capaz de receber de
frente e de peito aberto todas as desgraças do mundo?” diz Danowski.
Lembro que os enfermeiros e médicos são também prisioneiros desse
sofrimento e, como os prisioneiros dos campos nazistas, terão de
encontrar algum modo de sobreviver psiquicamente à tamanha
mortandade que está por vir, aquilo que Primo Levi, em É isto é um
homem, chama de batalha entre o sonho e a vigília.

O modo de enfrentamento do coronavírus pelo Presidente da


República e seus apoiadores de extrema-direita, era diverso de parte
da equipe de governo até a saída de Luiz Eduardo Mandetta. Com a
ascensão de militares no Ministério da Saúde, parece que isso mudou.
Danowski associa alguns afetos que a extrema-direita reúne que são
responsáveis pela negação que nutrem pela pandemia: loucura, ódio à
ciência, indiferença às mortes, desprezo pela cultura e ciência e,
principalmente, a pulsão de morte fascista marcada pelos gestos
abjetos de incentivar o povo a aglomeração e é notável que existam
hordas de pessoas que celebrem esta ignorância. Danowski encerra
seu texto com a frase de John Muir, percursor do ativismo ecológico:
“quando chegar a hora de uma guerra entre as espécies, estarei do
lado dos ursos”. De que lado você acha que está a extrema-direita que
manda às ruas seus conterrâneos?
J O R G E B A R C E L L O S | 77

O que é "Asfixia Social"?

As palavras “não consigo respirar” expressam o sentimento de


nosso tempo. Pronunciadas por George Floyd, afro americano morto
por sufocamento por um policial branco na noite de segunda-feira
(25/5) que provoca uma onda de protestos nos Estados Unidos aos
pacientes vítimas da Covid 19 que precisam de ventilação mecânica, a
falta de ar deixou de ser um estado físico para descrever um
sentimento que vivemos nas metrópoles, não só físico, mas
principalmente psicológico. Não é somente a falta de ar provocada
pela violência, pela doença, o incômodo provado pela poluição, mas o
estado geral de nossa sociedade que envolve das condições dos
trabalhadores precarizados ao sofrimento que caracteriza o caos
generalizado do capitalismo é o que nos dá o sentimento de falta de
ar?

A tese de que o capitalismo não está apenas corroendo nossas


relações, mas que as está sufocando é do filósofo Franco Berardi em
Asfixia (UBU, 2020) e serve para o explicar o que acontece no Brasil.
Do movimento Occupy Wall Street às manifestações de 2016 no
Brasil e desta até o enfrentamento da pandemia atual, trata-se sempre
da guerra pela necessidade de um povo ou alguém de respirar, real ou
simbolicamente. Dos trabalhadores que saíram às ruas de todo o
mundo contra a pilhagem do sistema financeiro passado pelas lutas de
servidores públicos recebidas com golpes de gás de pimenta até a luta
cada vez mais difícil por respiradores para sobreviver à pandemia, é
sempre da necessidade de ar, físico ou mental, de que se fala.

O poeta Holderlin apontou a origem desta necessidade no fato de


que a textura íntima do ser é a respiração, forma de ritmo que
78 | T E M P O S D E P A N D E M I A

ontologicamente é sempre a do ser e do mundo. Por isso a asfixia é


uma experiência aterradora e morrer de falta de ar, algo inimaginável.
A filosofia budista diferencia shabda de mantra, onde o primeiro é a
comunicação diária comum e o segundo é a fala que dispara
significados em sua relação com o universo. Se o capitalismo
financeiro é sentido como nosso verdadeiro apocalipse, pelo seu caos,
é porque impõe nesse universo a vibração negativa em nossos ritmos
de vida, que os budistas chamam de prana.

Determinamos tudo por cálculos abstratos, do trabalho à vida: do


presidente Jair Bolsonaro, que dá de ombros e diz que muitos vão
morrer com o coronavírus - “e daí?” - ao ex-ministro da Saúde,
Nelson Teich, que após um cálculo diz que, entre jovens e velhos, são
os primeiros que merecem viver, é sempre nossa adesão ao capital
que produz a falta de ar. A morte de um afro americano por asfixia é
tão cruel quanto a morte de um paciente de Covid 19 por falta de
respiradouros por que tanto a violência contra o negro quanto a morte
provocada pela pandemia traz a imagem cruel de um mundo que está
se tornando irrespirável e produz coletivamente a perda de toda a
empatia.

As últimas décadas de reformas neoliberais provocaram não só a


corrosão da solidariedade, como também a percepção de que o Outro
é uma ameaça, negro ou vítima de Covid 19. Essa sociedade é
marcada pela expulsão outro, tema de uma das obras do filósofo
Byung-Chul Han (HERDER: 2017). Fim do outro como amigo, como
mistério, que vai desaparecendo naquilo que o autor chama de “o
inferno do igual”, alteração patológica do corpo social. A sociedade
está doente, isso porque a sem empatia, só resta a vingança de brancos
contra os negros por empregos e de ricos contra os pobres por
respiradores. Para uma sociedade irrespirável, somente uma saída: a
J O R G E B A R C E L L O S | 79

necessidade de voltar a respirar (expiração cósmica), correspirar


(expiração comum) e conspirar (fazer a revolução) para tornar a vida
digna de ser vivida.

A desabilidade de uma geração

A desabilidade acontece quando uma pessoa tem um déficit, uma


falta objetiva, uma dificuldade de aprender, quando não possui as
ferramentas necessárias para interação social.

O Presidente Jair Bolsonaro e parte da população sofrem de


desabilidade social, incapacidade de lidar com a pandemia
adequadamente. Compõem um circulo contínuo que se retroalimenta
no incentivo a romper o isolamento social e que produz novas vítimas
a cada semana. Nem o Presidente, nem os cidadãos em fase de
negação do vírus aceitam os argumentos médicos para mudar este
comportamento por que são desabeis. O Presidente é desábil por que
expõe a si mesmo em caminhadas públicas que provocam
aglomeração contra as recomendações médicas; parte dos cidadãos
saem passeata pedindo a volta ao trabalho no momento de ascensão
da epidemia e são por isso, desabeis.

O conceito foi definido em pelo escritor italiano Roberto


Parmeggiani em sua obra Desabilidade (Editora Nós, 2018) para a
incapacidade plural de estar nas relações sociais. O discurso de ódio,
o apelo ao rompimento do isolamento são sintomas desse
“empobrecimento subjetivo” que é produto da dificuldade de se
comunicar e marcado pela recusa a toda argumentação.
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A desabilidade, além de um problema de linguagem, é também um


projeto político, diz Parmeggiani. A geração marcada pela
desabilidade atende facilmente a razão neoliberal por que trata a tudo
e a todos como mercadorias. Essa lógica dificulta o respeito, torna o
mundo uniforme e facilita a absorção de uma visão simplista do
universo. Falta ao cidadão desábil qualquer empatia, capacidade de
reagir ao sofrimento e dor provocados pelas vítimas da pandemia.

“É apenas uma gripezinha”, “voltem ao trabalho, não é nada”, são


todas expressões da mente desábil que não tem uma dimensão
adequada do coronavírus, apostando nas explicações hipersimplistas
como “cloroquina cura”. Seu pensamento é estereotipado, suas
premissas são formadas por preconceitos, não compreendem a
complexidade da doença que está fazendo vítimas e trata médicos que
defendem o isolamento como inimigo.

É o mesmo caso dos deputados que aprovaram, na madrugada de


quarta-feira (15/4/2020) a Medida Provisória 905/19, que cria o
contrato de trabalho Verde e Amarelo, uma tragédia em termos de
direitos trabalhistas. Ela realiza uma minirreforma pela redução de
encargos, reduz a segurança do trabalhador ao considerar acidente de
trabalho apenas o que ocorrer no transporte – a maioria dos
trabalhadores vai por conta própria trabalhar – e coloca acordos
coletivos em que o empregador possui vantagens por sua posição
acima das súmulas do TST. Artifício para incentivar o primeiro
emprego, a medida reduz encargos trabalhistas, desresponsabiliza o
empregador e transfere os custos do trabalho para os empregados.

A medida é a forma de atualizar o sistema escravista e transformar


empresários em novos “senhores de engenho”. A Câmara dos
Deputados transforma o país numa senzala, contra todas as conquistas
J O R G E B A R C E L L O S | 81

da Constituição de 1988 e da legislação trabalhista – que se transforma


num Frankenstein a serviço do capital. Este é o preço que se pede aos
jovens para ingressar em seu primeiro emprego? Verdadeira
escravidão sem direitos que estabelece salário máximo de 1,5 salários
mínimo e isenta contribuição previdenciária e alíquotas do sistema S,
é o paraíso sonhado na terra pelo empresariado nacional, com
redução de 70% dos seus encargos, onde, por exemplo, a multa do
FGTS passa de 40% para 20% e torna mais fácil demitir sem justa
causa e assim, priva o trabalhador de metade do salário a que tem
direito. Por que simplesmente não revogaram a Lei Áurea?

A verdadeira cor do Programa Verde Amarelo é vermelha feita


com o sangue dos trabalhadores. Agora, os limites aos lucros caem um
a um e o trabalhador de diversas áreas poderá ser obrigado a trabalhar
aos sábados, domingos e feriados em atividades de tele atendimento e
telemarketing, entre outras. Não é o máximo para os empresários, ter
empregados a preço de banana trabalhando praticamente 24 horas
por dia 7 dias por semana? Os empresários continuam deitando e
rolando no país onde o Presidente acredita que o coronavírus é uma
gripezinha e que a classe empresarial acredita que a economia é mais
importante que a vida humana.

Pois tudo está na forma como construímos nossas narrativas. A


desabilidade, diz Parmeggiani, transforma o que é exploração do
trabalho em facilidades de emprego, e dessa forma, a proposta
esconde que é um ato para levar os jovens a uma condição pior de
trabalho. A desabilidade está em ler a questão do emprego pelo olhar
do empresário, a dificuldade é não pensar em termos de direitos e
garantias num discurso carente de qualquer elemento legítimo e
garantista. Por que os jovens, para conquistarem emprego, precisam
abrir mão de seus direitos? Para ter um emprego real é preciso de
82 | T E M P O S D E P A N D E M I A

direitos trabalhistas, se não o que se tem é subemprego. O discurso


diz-se abranger todas as partes interessadas, mas atende apenas a uma,
a do capital. A desabilidade está em não evocar a história da geração
anterior que lutou para que jovens tivessem acesso a emprego com
condições dignas de trabalho.

A saída par a desabilidade é dizer o que não é dito. O


comportamento desábil é mimético, gera imitação por outros cidadãos
que acreditam que são a lei, caminho aberto para certezas delirantes.
Saindo a rua em passeatas que pedem reabertura do comércio, sem
importar-se com a vida, o comportamento se repete em mil formas. É
nesse sentido que é um projeto político porque é capaz de conduzir
ao fascismo pela total impedimento ao diálogo. O cidadão desábil só
ama seu igual, é avesso ao Outro como diferente. Se isso não mudar,
haverá um genocídio.

Imagem de ivabalk por Pixabay


J O R G E B A R C E L L O S | 83

Como ver o inevitável

A pandemia chegou ao país. Você sabe disso, só não permite a


imagem fatal tomar conta de sua consciência. Os sinais começaram
com o aumento das sirenes de ambulância nas ruas da cidade que
você nunca presta atenção, mas agora, está mais atento. Você observa
o passageiro na parada de ônibus a tossir e pensa imediatamente “é
coronavírus?”. Ao estudar a difusão do coronavírus, você encontra
documentários, imagens, fotos, depoimentos do trabalho sanitário em
outros países. Você fica horrorizado com as imagens de caminhões
em carreata transportando corpos e imagina que um dia isso se repita
em sua cidade. O próprio Ministro da Saúde Luiz Eduardo Mandetta
perguntou em transmissão ao vivo se o Presidente estava preparado
para ver caminhões do exército transportando corpos de brasileiros.
Ninguém está.

É que estamos acostumados à mortandade cinematográfica dos


seriados como Walking Dead, cenificação extrema da morte
pertencentes ao âmbito do artifício. A cena real de mortes nas guerras
do Extremo Oriente ou na África eram reais, mas ainda assim
distantes, como o inicio da pandemia em Wuhan, na China. Michela
Marzano, em A morte como espetáculo (TUESQUEST: 2010)
aponta o ano de 2004 como o ano da virada da divulgação da imagem
da morte em escala planetária:

“É quando aparecem os vídeos macabros realizados pelos grupos


islamitas. Circulam livremente pela internet e são vistos por
milhares de pessoas no ocidente. Mostram a fria execução por
degola de centenas de prisioneiros ocidentais no Iraque ou no
Afeganistão” (MARZANO: 2010, p.10)
84 | T E M P O S D E P A N D E M I A

Para a autora, é quando a representação da morte passa da ficção à


realidade. Estamos prestes a viver a mescla ambígua da imagem do
horror que não é produto de simulação, mas situações reais de mortes
por excesso de pacientes e por falta de infraestrutura de atendimento.
Veremos a crueldade do vírus em estado puro, talvez durante meses,
dependendo das decisões agora das autoridades.

Marzano afirma que cultivamos uma espécie de fascínio pelo


horror. Isso começou com o cinema e a literatura, mas o que vemos
agora é sem intermediários e precisamos nos preparar para
experimentar o limite psíquico da tolerância, a multiplicação das
discussões sobre o número de mortos – “se as decisões fossem outras,
seria menor?”. “Estamos contando corretamente nossos mortos ou há
mais?”. A morte passará a ser transmitida em tempo real, parte da
necessidade de informação, mas, também com poder de mexer com
nossas pulsões: o efeito aponta Marzano, é apenas um: “o principal é
de anestesiar, pouco a pouco, o juízo do espectador” (MARZANO:
2010, p.14). O que essas imagens fazem é transformar a morte em
espetáculo em nossas casas, introduz a crueldade de um vírus, aquilo
que pode ser chamado de “realidade-horror”.

Os órgãos de imprensa reivindicam o direito dos cidadãos a serem


informados e, em nome da liberdade de informação, chegam as
nossas casas imagens aterradoras de mortes por coronavírus. Diversos
psicólogos já alertam para a necessidade de por um limite a isso: a
capacidade do indivíduo de absorver o sofrimento é finita, a
capacidade de difundir a imagem da morte pelos meios de
comunicação é infinita. O que coloca, para Marzano, a questão ética:
“é preciso mostrar tudo? É preciso ver tudo?”. Marzano, inspirado em
René Girard, autor de A violência e o Sagrado (PAZ & TERRA:
2008) aponta que o papel da imagem da morte possui relações com
J O R G E B A R C E L L O S | 85

substituições que o ritual de sacrifício proporciona para explicar a


loucura terrorista que é executar reféns no Extremo Oriente. Trata-se
da mesma cena de morte? No caso dos terroristas, é uma escalada
sem fim de violência; no caso das vítimas do coronavírus, é uma
espécie de antecipação, pois o que é contagiante é a imagem da morte
que invade nossa consciência. De certa forma, o vírus é um terrorista e
nós somos os reféns: não é assim que nos sentimos, como reféns que
imploram por sua vida? As vítimas agudas do coronavírus já foram
privadas disso, já que estão entubadas e com destino incerto. O
paralelo continua, já que se para os terroristas, a morte por execução é
sua forma de dizer algo sobre a barbárie da civilização; para as vítimas
do coronavírus, é a forma da natureza dizer algo sobre a barbárie das
politicas públicas, das ações tardias do governo, da produção de
desigualdade em escala planetária, em suma, das terríveis
consequências do capitalismo desenfreado.

Devemos pensar no que fazer com estas imagens tão terríveis. Elas
podem alimentar a depressão e o medo, mas, entretanto, podem
aprumar o espírito para a reação. Não devemos perguntar se devem
circular, o que atenta para a liberdade de imprensa, mas sim - o que
faremos se elas se tornarem insuportáveis? Sim, porque o contrário
também pode acontecer – já não está acontecendo? – de que elas
terminam por nos tornar insensíveis, produz a insensibilidade com
relação ao sofrimento dos outros. Não é assim que agem nossas elites
que, mesmo frente às mortes por todo o mundo, teimam em chamar
ao retorno ao status quo, à normalidade? É bem verdade que, em
nome da conscientização da população com relação aos perigos do
coronavírus, os meios de comunicação tenham buscado “aterrorizar”,
a palavra não é exatamente esta – paciência! - a população com as
imagens da tragédia dessa realidade-horror, movidos pela boa
intenção de que assim os cidadãos ficassem em suas casas. Tratar-se-ia
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então de avisar às “almas sensíveis” o que está próximo de se ver,


como é feito antes de um site permitido só para adultos? Marzano
critica a retórica da sensibilidade, não porque existam “mentes fortes”
e “mentes fracas”, porque é preciso reconhecer a necessidade e impor
limites ao que pode ser visto.

“Depois, pouco a pouco, me dei conta de que é possível se


acostumar com estas imagens extremas, o costume que permite
aceitar o inaceitável, que inclusive pode converter uma “alma
sensível” em uma “insensível” (MARZANO: 2010).

Marzano acredita que esse tipo de visão fomenta a concepção de


sociedade de indiferença e aponta a sua origem na leitura feita por
Freud, em 1922, da representação da Medusa da mitologia grega. Ele
pergunta sobre o motivo de tantos artistas representem a cabeça de
uma mulher decapitada com a proibição de nunca olhá-la
diretamente. Para ele, o motivo está no fato da descoberta da
sublimação, a ideia de que a imagem tem a função de dominar nossos
medos. Temos o medo de morrer de Covid 19 e vemos na sua
imagem, espécie de sublimação por antecipação “Quando se põe um
objeto ou uma realidade em imagens, existem regras que definem
inclusive o estatuto das representações, [que] permite comunicar certa
visão do mundo” (MARZANO: 2010, p.66). A autora sugere que
devemos sempre manter certa distância da imagem, como sugere o
mito da Medusa, tomar uma posição com relação a ela, pois seu
objeto pode fazer desaparecer nossa sensibilidade, interesses e
desejos. Quer dizer, mesmo passando a ver as imagens de mortes de
cidadãos de nossa cidade, ainda assim existirá um espaço que é
preciso preservar. Eu não posso naufragar na indiferença, eu devo
fazer alguma coisa.
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Marzela lembra o pensamento do filósofo Georges Bataille que


constata obscenidade contida em determinadas imagens e extrapola
essa definição para as imagens de violência, o que se pode aplicar às
imagens de mortes, inclusive, as provocadas pelo coronavírus “o
espectador enfrenta com elas a consternação, porque a realidade das
imagens o expõe a vertigem da crueldade mais feroz. Aquele que olha
não pode distanciar suas emoções nem esclarecer seu juízo, o abismo
provocado pela realidade da violência não se vê retido por nenhum
filtro” (MARZANO: 2010, p.69). O problema da imagem da morte
por coronavírus, nossa atual realidade-horror, deve-se ao fato de que o
telespectador não possui nenhuma proteção, nenhum filtro, apenas vê
a morte como violência extrema, e nesse momento, produz-se a
ausência do pensamento e a pura emoção do horror. Não há
sublimação, catarse possível.

Platão, em sua obra Górgias e Aristóteles, na Ética a Nicômaco, diz


Marzano, explicam que a crueldade nas imagens depende da barbárie
e se encontra excluída da ordem humana. Assim, o vírus é cruel
exatamente por que está fora da ordem humana, é incapaz de
preservar a vida, ele a tira; fora da ordem humana, incapaz de poupar
as vítimas mais fracas, ele as vitima – já se é possível encontrar crianças
atingidas pelo vírus. Isso não pode ser argumento para aqueles que
defendem o indefensável, de que a morte de velhos seria um mal
menor que poderíamos tolerar. Não! Não é possível julgar o valor de
uma vida humana simplesmente porque ela tão tem valor, exceto para
os eugenistas que pregam que características especiais devem dizer
quem vive e quem morre. O que faz o acesso a inúmeras imagens de
morte por coronavírus? A perda da empatia, a capacidade de termos
compaixão frente ao sofrimento de outro ser humano.
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O risco de contemplar a morte do outro é cada um ficar


preocupado com sua própria vida e deixar o outro abandonado a sua
própria sorte. Felizmente, parece não ser isso o que vemos acontecer
no país, com a multiplicação de redes de solidariedade e auxílio
mútuo. Podemos afirmar que somente a elite volta-se para a
preservação de seus próprios interesses mesquinhos, enquanto grande
parte da população encontra na solidariedade uma base para viver. É a
diferença entre surgir como homem e como coisa, e Marzano teme
uma apologia da indiferença promovida pela difusão global da
imagem da morte pelos meios de comunicação. Precisamos é que
estas imagens incentivem a compaixão, isto é, não o lamento pelos
mortos, mas a busca por eliminar a distância entre o que sentimos e o
que é objeto desse sentimento, uma postura social em direção ao
outro para fornecer ajuda temendo o medo da aflição que a morte
instaura.

A questão inicial, do que fazer frente à realidade horror


representado pelas imagens das mortes do coronavírus, cabe aos
profissionais da comunicação detalhar o conteúdo da informação para
não alimentar uma absorção indevida e ao público, o dever de uma
compaixão ativa que, inspirada nas vítimas, se dirija ao próximo como
objeto de cuidado.

A psicanálise e o coronavírus

Qual a contribuição da psicanálise em tempos de coronavírus? Há


diversos temas importantes, mas um é essencial, o da depressão. Há
uma escritora que diz muito da depressão, a psicanalista Maria Rita
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Kehl. Sua obra é importante porque para ela a depressão é um


sintoma social. A autora descreve o tema no campo da psicanálise de
forma ampla: refere-se aos estudos de inspiração freudiana, lacaniana
e aqueles com os quais me identifico mais, que podem ser contados
nos dedos porque abordam o campo social do ponto de vista da
psicanálise. Kehl está no seleto grupo que inclui autores como Joel
Birman, Jurandir Freire Costa, Contardo Calligaris e Suely Rolnik
para quem o que passa pelo inconsciente passa pela sociedade. Nessa
visão, os comportamentos humanos em psicologia individual tem um
quê do desastre da humanidade: não se pode pensar sobre política
sem mexer na questão dos desejos humanos. Para se construir uma
Psicanálise Social, o pressuposto anarquista de Paul Feyrabend, autor
de Contra o Método importa, onde “tudo vale”, repercute na
interpretação de Kehl do sintoma através do uso de recursos da
literatura, música, análise de movimentos sociais e poesia. A autora
combina de forma original teoria, sociologia, filosofia, marxismo,
freudismo, lacanismo e muito mais. Como Kehl chega a sua
concepção de depressão e como ela nos ajuda a entender o contexto
em que vivemos?

Um pouco da autora. Maria Rita Kehl nasceu em Campinas, mas


se considera paulistana, pois foi criada em São Paulo. Estudou em
colégios de freiras no bairro de Pinheiros - sua mãe era religiosa - e fez
Psicologia na Universidade de São Paulo (USP) entre 1971 e 1975, no
período autoritário. Estava insatisfeita com o curso porque muitos
professores são cassados e a faculdade é, por assim dizer, “fria”.
Queria atividade e procura um jornal de bairro para trabalhar,
escrever e nunca mais parou. Diz: “Eu queria trabalhar em alguma
coisa que não fosse Psicologia, que me parecia na época uma coisa
muito xarope”.
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Transformada em jornalista freelance, forma-se nas atividades dos


jornais alternativos na época em que não se precisa de registro de
jornalista para trabalhar. É assim durante três anos até 1978, período
de formação de Kehl e onde ela amplia seu horizonte, sem entrar para
a luta armada. Trabalha num jornal que não era de esquerda, mas
num tempo onde o medo impera, aprende a ver o mundo melhor. O
trabalho em jornais, como o feminista Mulherio, começa a fazer
diferença em sua formação de psicóloga. “Claro que havia um
posicionamento, eu era levemente atraída pela esquerda” diz.
Transforma-se em editora de cultura na raça e trabalha para o jornal
Folha de São Paulo e para as revistas Veja e Isto É. Começa a duvidar
da sua profundidade de abordagem e procura o Mestrado. Nele
estuda a televisão “por causa da minha prática em jornalismo cultural,
ninguém está percebendo o que a televisão está fazendo no Brasil”,
diz.

O curioso em sua trajetória é que só depois do mestrado sobre


televisão é que ela se dá conta que pode voltar a seu campo de origem
e ser psicanalista. Ela também tem, como qualquer pessoa comum,
seus problemas de família, precisa manter seu filho pequeno morando
numa comunidade, já que o pai mora em outra - daí seu estilo meio
hippie. Kehl morou em várias comunidades, o que lhe ensina a ser
observadora e, com uma bolsa da Fundação de Apoio a Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), sustenta-se enquanto estuda e cria
seu filho Luan. Depois do fim da bolsa, trabalhou um pouco na Rádio
Mulher com entrevistas ao vivo. Logo depois abre um consultório
“sem preparo algum” e faz terapia.

Começa a psicanalisar em 1981 e nunca mais para. Sua tese “O


papel da Rede Globo e das novelas da Globo em domesticar o Brasil
durante a ditadura militar”, analisa novelas como Irmãos Coragem e
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Dancing Days, e nelas, a imagem do Brasil. A autora reivindica a


natureza política da tese e é possível imaginar que a análise de
personagens antecipe as linhas que a psicanalista seguiu, apontando
para os estudos dos psicanalistas Suely Rolnik e Félix Guattari, que
consideram a mídia como a grande produtora de subjetividade.

Outro dos pontos importantes de sua trajetória é a sua relação com


o feminismo. O tema surge em sua briga teórica dentro da psicanálise
freudiana e lacaniana pela incompreensão que vê na questão da
diferença dos sexos. Este é o tema de sua tese de doutorado, já nos
anos 90 onde discute o modo como os psicanalistas escutam pacientes
mulheres, porque, do modo como a psicanálise vê a sexualidade
feminina, de forma especular à masculina, ela se transforma numa
outra forma de castração na ideia de que, em termos simbólicos, a
mulher é um ser definido sexualmente pela ausência de pênis. Ela diz
“se continuar escutando desse jeito, [a psicanálise] não oferece outra
saída para as mulheres senão a histeria”. A psicanalista Suely Rolnik,
em sua obra Cartografia Sentimental (ESTAÇÃO LIBERDADE:
1999) tem o mesmo foco, a constituição do desejo feminino na era
contemporânea.

A crítica de Kehl dirige-se a ideia de que a mulher se sente inferior


porque sente inveja do homem, que considera produto da visão que
pensa que a mulher condenada à sua natureza, de acordo com certa
escuta psicanalítica. Para a autora, a psicanálise tradicional aprisiona a
mulher. Basta a leitura do pensamento do sociólogo Jean Baudrillard
em sua obra A sedução: “a força da mulher não está no poder, está no
simbólico” ou as abordagens da filosofia como de Alain Finkielkrault
e Pascal Bruckner em A nova desordem amorosa ou A sabedoria do
Amor, para perceber o privilégio do feminino que Kehl fala. Estes
autores falam justamente desta da que a mulher deve fazer da
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explicação de sua sexualidade dada pelos psicanalistas com base em


Freud.

É neste contexto original da trajetória de pesquisa de Kehl que o


tema da depressão surge na sua obra. A partir da experiência de
consultório nos anos 80, ainda quando ingressa no campo, ela foi
marcada por duas ocorrências de suicídio, a de um jornalista da revista
Exame e de um viciado em cocaína. Não são casos de depressão, mas
isso gera medo em Kehl de atender pacientes deprimidos. O primeiro
paciente se suicidou após uma crise provocada por uma demissão que
o deixou muito desesperado e o segundo paciente fez sessões, mas
interrompeu e se suicidou “Era meu paciente de alguns anos, tinha
interrompido, e nessa interrupção se suicidou. Então, eu fiquei muito
culpada, como todo analista fica”, destaca Kehl, que completa “Não
dá para dizer que a culpa é toda sua e não dá para dizer também que
você não tem nada a ver com isso”. Depois disto tudo, sua primeira
reação foi encaminhar os deprimidos que chegam ao seu consultório
para outros terapeutas, mas ela amadure e começa a atendê-los e
assim cresce como pensadora e psicanalista. Ela vê que os deprimidos
são sensíveis a análise, tem maior permeabilidade ao inconsciente “o
neurótico se defende sempre, etc.”.

É aí que nasce seu interesse por escrever sobre depressão. E tem o


momento curioso em que a psicanalista ficou deprimida. Kehl
também é conhecida por atender pacientes do Movimento dos Sem
Terra (MST). Numa das suas idas e vindas atropela um cachorro
“Essa cena, não vou dizer que foi traumática, mas exigiu reflexão,
porque foi uma coisa muito rara...eu tive essa enorme agonia de
perceber que eu estava em uma velocidade irreversível e que eu ia
matar um animal, um ser. E esse acontecimento teria desacontecido,
eu não sofri nada, se eu não ficasse tão chocada com o que a
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velocidade faz com os acontecimentos da vida”. Nasceu aí a


constatação que originou um livro: a velocidade do mundo atual está
nos matando, sentencia Kehl. Vejamos como.

A ideia de velocidade do mundo não é exclusiva de Kehl, mas é


muito interessante quando aplicada a depressão. O primeiro pensador
a falar com propriedade da velocidade do mundo é o filósofo Paul
Virilio em sua obra Velocidade e Política. Ele funda a ciência da
dromologia, ciência da velocidade. É interessante ver como ela
interpreta o tema da velocidade do ponto de vista da constituição do
sujeito, mostrando que na depressão, tudo está relacionado. A citação
é de um de seus escritos, é longa, mas vale a pena:

“Não só pelo cachorro, o atropelamento é mais uma


metáfora, porque atravessou a outra pista mancando e não
morreu. Eu comecei a me dar conta de quantos
acontecimentos na minha vida, nessa velocidade, não
aconteceram, viraram desacontecimentos. Quando cheguei à
escola, fui olhar o para-choque, e tinha uma sujeirinha, talvez o
pelo dele. E tinha um ligeiro amassadinho. Aí entra a
associação. Eu estava lendo Walter Benjamin, por causa de
um grupo de estudos, estava lendo o texto dele sobre
experiência. Ele faz uma articulação entre a perda da
experiência e a velocidade da vida moderna. E eu falei “a
depressão está aqui”, porque Walter Benjamin chama isso de
melancolia, não é também que eu inventei isso, então são duas
coisas diferentes que se juntaram. A depressão como o
começo de uma experiência no consultório que me interessou
muito, e a depressão como um sintoma social, quer dizer, algo
que se alastra, sintoma social no sentido de um tipo de
sofrimento mental que além de dizer respeito ao sujeito, a cada
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um por si que está sofrendo, cada um com suas razões, revela


alguma coisa que não vai bem. Não se poderia dizer que é o
sintoma social do homem contemporâneo, porque drogadição
também é um sintoma, violência também é um sintoma. Mas
certamente depressão é um dos importantes sintomas. Porque,
digamos, ele faz água no barco. Tem um barco, que é a
sociedade de consumo, que as pessoas supostamente navegam,
às vezes achando que a vida vai ter sentido porque você pode
ter dinheiro e comprar não sei o quê. Todo mundo fala: Que
sociedade de consumo? Brasil? Menos de 1/3 pode consumir
o básico”. E eu insisto que essa sociedade é de consumo, nos
termos mesmo dos autores como Baudrillard, aliado à ideia de
sociedade do espetáculo, de Guy Debord, porque o que dá
sentido à vida é o consumo. A questão não é a sociedade de
consumo porque todo mundo está consumindo furiosamente,
pouca gente está consumindo furiosamente, mas as pessoas
medem o que elas são pelo que elas podem consumir, medem
o sentido da sua vida pelo que elas podem consumir. Estão
convencidas de que o valor delas e das outras se define pelo
que elas podem consumir. Por isso sociedade de consumo,
pela crença, não necessariamente pelos atos. Então voltando
ao por que a depressão que é sintoma social. Porque a
sociedade, em termos dos discursos dominantes nos quais a
gente acredita, deveria ser uma sociedade menos
antidepressiva. Dos anos 60 para cá nós somos mais livres, nós
podemos fazer mais sexo, nós podemos desfrutar do corpo e
da saúde de uma maneira privilegiada. Tem mais opções de
lazer e de festas, encontrar sua tribo para não ficar
necessariamente submetido a um padrão só de
comportamento. E tem um avanço enorme no
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desenvolvimento de antidepressivos, então essa sociedade não


deveria ser mais deprimida, a não ser os casos patológicos
raros de porque um dia o pai estuprou a irmã na frente dele,
essas coisa mais horrorosas. Não deveria ter mais depressivos.
E os dados da Organização Mundial da Saúde são de que a
depressão cresce a nível epidêmico nos países industrializados
e que em 2020, se eu não me engano, será a segunda maior
causa de comorbidade, não de morte diretamente, mas de
comorbidade do mundo ocidental. Então, é o sintoma social,
está mostrando que esse negócio não funciona”(KEHL; 2016).

O que Kehl faz é destacar um dos pontos centrais de seu livro, o


das relações entre a velocidade do uso do tempo na experiência da
construção do sujeito. É a constatação de que, ainda que os
antidepressivos sejam muito importantes, eles não curam, no máximo
ajudam a ter energia para algumas coisas, como por exemplo, se tratar.
A sua ideia é que a depressão faz parte da sociedade contemporânea,
não é privilégio de quem não trabalha, mas de quem trabalha
também. Diz “Às vezes eu brinco e falo assim: quem vai salvar o
capitalismo da crise é a indústria farmacêutica, por que quanto mais
crise mais remédios eles vão vender”. Kehl mostra que é uma grande
sacada dos laboratórios o modo como o marketing divulga as doenças,
ela constata que há panfletos falando de vinte sintomas da depressão
que qualquer um tem, como falta de sono, excesso, desânimo,
irritabilidade - mas ela pergunta: quem não é irritado com o estresse
no trânsito que temos?

Há mais nas suas ideias. No caso das depressões, elas veem em


primeiro lugar por que nossa moral social é da alegria, a da obrigação
do gozo e da farra. Essa ideia de obrigação do gozo - você tem de fazer
coisas, se divertir, correr, aproveitar o tempo, diz a você que você é
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OBRIGADO a aproveitar o tempo! Elas fazem parte das coisas que


revelam que não é o individuo, mas o social é que vai mal. Queremos
tudo, queremos fazer tudo e o que o sistema fala, segundo Kehl é
“oba, vamos devolver isso na forma de mercadoria”. Esta questão da
Psicanálise atravessando o social é presente na obra de Félix Guattari,
Alain Finkielkrault, Pascal Bruckner e Slavoj Zizek e tantos outros
desconhecidos no Brasil a que já referimos.

Este é o ponto em que se encontra o pensamento de Kehl: se você


é obrigado a estar bem, não estar bem é depressão. E como diz Kehl,
se o filho é mal educado, toma remédio, se é hiperativo, toma
remédio, se está em crise, toma remédio, se está em crise porque é
adolescente, toma remédio. É a mesma lógica do capitalismo
financeiro: você precisa jogar certo, se comportar certo para ficar rica
a vida inteira, acumule, não tenha turbulências (financeiras ou
psicológicas) - elas são perdas de tempo, e perda de tempo é perda de
dinheiro, daí, mais e mais remédios.

Para Kehl a relação com a depressão é que o sujeito que submerge


a este sistema submerge aos remédios e acaba sem força interior. Daí
a metáfora das crianças, que para Kehl, por não terem a obrigação de
fazer, terminam por criar. O depressivo é este sujeito que rejeita tudo,
tem todo o tempo do mundo, mas não sabe o que fazer, não consegue
transformar seu ócio em criação. Está perdido. Por isso Kehl precisa
retornar - o que para muitos parece enfadonho - a ideia do bebezinho
e suas dificuldades para saciar sua fome como condições de criação da
crise interior “psiquismo é isso, trabalho para se enfrentar as
dificuldades” e a vida também é isso, enfrentar conflitos, suportar
crises, suportar momentos de desprazer, porque não podemos ter só
momentos de prazer. Ser ansioso é resistir a enfrentar conflitos, é
como se disse - tome o remédio e volte ao trabalho.
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Imagem de Raam Gottimukkala por Pixabay

Kehl retorna ao estado de depressão quando diz em um de seus


textos “Hoje uma pessoa deprimida, além de ela sentir todo o
sofrimento da depressão, a sensação de vazio, de que a vida não vale a
pena, de que ele mesmo, ou ela mesma, não vale nada, de que o
tempo não passa, que os dias estão estagnados e insuportavelmente
lentos, enfim, falta de vontade de viver basicamente, tudo isso que já é
sofrimento suficiente para um depressivo, hoje recebe um acréscimo
da culpa de se estar deprimido”. E continua “Porque sentir-se culpado
por não querer ir sempre a festas como adolescentes que não tem que
trabalhar e vive uma festa permanente?”.

Kehl encontra deprimidos por todo o lugar. Encontra experiências


de subjetividade que podem se contrapor à depressão, como com o
seu envolvimento com o MST. Numa situação curiosa, num
movimento militante atendido por uma teórica não militante, sua ideia
é de que há neuróticos militando e que isso atrapalha a militância, a
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ideia de misturar problemas sociais com problemas pessoais não é


boa, ou “se o cara fica menos louco daí milita melhor”. Sua proposta
foi aceita na hora pelo movimento. Se a depressão tem relação com o
social, a alienação neurótica também tem a ver com alienação política.
No MST, no entanto, ela descobre que o sujeito não está atrelado ao
esquema-papai- me-ama-ou-não me-ama, ao contrário, há outros
valores: ali, o valor do sujeito está dado por sua militância, é essa ideia
de poder fazer algo como coletivo que a impressiona. E, é claro,
também é fonte de angústias. No movimento, a grande formação de
subjetividade coletiva é dada pela questão da igualdade, como lhe
disse um militante a respeito de seu “pequeno trabalho”. Ele falou:
“não existe peixe pequeno”. E disse Kehl: “Não, eu quero dizer que o
que eu faço aqui é secundário” - “Não existe tarefa secundária”, disse
o militante que continuou interpretando a psicanalista: “Companheira,
ou somos iguais ou não somos iguais. Se somos iguais, você pode
trabalhar lá nas privadas que o seu trabalho é tão importante quanto
de um dirigente”.

Kehl vive hoje, em relação ao seu trabalho de campo, experiências


similares as que Rolnik & Guattari viveram nos anos 80, descobrindo
a subjetividade em criação nos movimentos sociais. Há duas
diferenças, contudo. A primeira, é que enquanto Rolnik & Guattari
veem no movimento das rádios livres a expressão de liberdade
subjetiva, Kehl vê no MST; enquanto Rolnik & Guattari centram-se
nas formas de produção social do desejo, Kehl encontra um novo
objeto de trabalho, a depressão, que é o modelo de construção da
subjetividade dependente do capital. E nisso, ela ainda tem muito a
dizer no que se refere à pandemia do coronavírus.

Em uma entrevista para Luis Henrique Viana para a revista Época,


Kehl fala sobre os efeitos psíquicos da pandemia no confinamento e
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no luto. Sem poder velar as vítimas do Covid 19 por risco de contágio,


ela afirma “Precisamos de todas as cerimônias fúnebres para acreditar
que uma pessoa realmente não existe mais naquele corpo que vamos
enterrar”e por isso, sentimos uma dor que é sentida pelos parentes de
desaparecidos políticos. Para ela, os afetos se intensificam, sejam os
de amor, solidariedade e compaixão, bem como os de ódio e os
desejos de discriminação. “O problema é que eles se propagam só
através das palavras, sem o anteparo do corpo. O corpo do outro, e o
nosso também, fornece certo limite aos nossos impulsos.” Kehl se
refere ao movimentos invisíveis do corpo, a postura, a respiração, que
indicam o que pode ser visto e o que não pode, e que desaparecem
com o uso das redes sociais. Sua crítica ao isolamento é que produz
as chamadas “paixões tristes”, como mau humor, disputas por razões
insignificantes, exacerbação de rivalidades preexistentes etc. A
ausência de velórios, ainda é, para Kehl, o pior efeito da pandemia
“Precisamos de todas as cerimônias fúnebres para acreditar que uma
pessoa realmente não existe mais naquele corpo que vamos enterrar”.
A pandemia também normatiza a vida do depressivo, diz Kehl, já que
vira normal fica rem casa, a apatia de ficar na cama, não sair do
quarto, não ver ninguém.

Em uma de suas últimas entrevistas a revista Brasil de Fato, Kehl


retoma os argumentos dados na entrevista a revista Época e trata dos
sentimentos de milhares de pessoas que estão tendo de lidar com a
dor da morte de um ente querido em um contexto nunca antes vivido.
Como se sabe, agora os velórios de vítimas de Covid 19 são limitados
e de curta duração para evitar aglomeração. Ela diz “Não poder ver o
corpo de alguém que perdeu é uma tortura. Sobra um restinho de
esperança. E se não era ele? E se enterraram outra pessoa? E se ele
está doente e eu não consigo socorrer porque não sei onde ele está. É
uma situação muito dolorosa”, afirma. Para Kehl, a morte é um fato
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incompreensível e daí a necessidade de rituais de despedida. O


coronavírus, de certa forma, atualiza o sentimento vivido por
familiares dos desaparecidos políticos, de mães que ainda procuram
seus filhos que desapareceram na ditadura militar, não se abandona
um ente querido. Não é a mesma sensação daqueles que não podem
enterrar seus entes queridos devido à pandemia? Essa impossibilidade
de despedida é também produtora de depressão e ainda não
aprendemos a lidar com ela. Finaliza Kehl: “Estamos em uma situação
muito ruim, que deve dar depressão para uns, ansiedade para outros e
etc.”

Por que precisamos cultivar jardins na pandemia

O isolamento mostra que vivemos numa selva urbana. Tomamos


um espaço que faz parte da natureza e o transformamos naquilo que é
nossa selva de prédios e arranha-céus. Notam como nas redes sociais,
com o isolamento, começam a circularem vídeos mostrando em
diversas partes do mundo animais dos mais diversos tipos que passam
a percorrer as ruas das cidades esvaziadas pelo distanciamento social?
Não é uma forma de mensagem da natureza dizendo que este meio é
apenas cedido, quase por empréstimo, a nós, e que o verdadeiro dono
é a natureza?

A imagem da selva opõe-se a do jardim. Esta é uma figura que se


presta a diversos usos e uma notável prática. De Ruben Alves à Byung
Chul-Han, diversos pensadores chamam a atenção para a importância
de se cultivar um jardim. Alves estabeleceu a relação da jardinagem
com a política. Ele não quer ofender os políticos ou a política, ao
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contrário, quer mostrar uma relação inequívoca entre os termos. Para


Alves, a política é a vocação mais nobre porque vocação vem do latim
vocare, que quer dizer chamado. Por isso vocação é, por definição,
um chamado interior repleto de um amor por um fazer. Se você tem
uma vocação você a faz por amor. Psicologia altruísta quase impossível
de ver nos dias de coronavírus, dos mandos e desmandos
presidenciais por interesse, da afirmação da economia de mercado
através de atos políticos, vocação significa a defesa da ideia de que
faríamos o bem mesmo se não ganhássemos nada. E se você é um
político por vocação, você é o melhor ator social que uma
comunidade pode almejar a ter.

A imagem do jardim serve aqui para nos mostrar uma metáfora, a


de que estamos substituindo a possibilidade dos jardins pela
construção da selva na política. Esta selva está por todo o lugar, nas
redes sociais que se tornaram o lugar de expressão dos interesses
mesquinhos e na imagem em bits equivalente da vida na selva das
cidades onde vivemos. É preciso uma pandemia para perceber como
as cidades se tornam um lugar de indiferença, hostilidade,
insensibilidade, sofrimento e morte e como isto transforma a vida
pública. Vejam as cenas de violência policial que se reduziram e foram
substituídas por outras, de grupos irracionais no espaço público que
pedem o fim do isolamento. Nossa selva, entretanto, ainda pode ser
transformada num jardim se pensarmos como teremos novos bons
jardineiros se temos paciência para plantar árvores, metáforas do que
aprendemos a fazer durante a pandemia nas relações solidárias que
construímos e nas formas como vivemos nossa vida.
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Imagem de Free-Photos por Pixabay

A origem da palavra política, todos sabem, é grega, referente à vida


nas cidades ou polis, então espaços seguros e ordenados bem
diferentes de nossas cidades sob a pandemia, inseguras e
desordenadas. O intervalo entre o passado grego e hoje não significa
que muda o objetivo de viver nas cidades, qual seja, o de que é um
lugar onde os homens podem buscar a felicidade. Diz Alves em seu
artigo à Folha de São Paulo intitulado Sobre política e jardinagem
(2000) com sabedoria “O político seria aquele que cuidaria desse
espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos os
moradores da cidade”. Frente ao desatino dos políticos com a
proposta de fim de isolamento, principalmente daqueles que tem a
responsabilidade de guiar as ações da saúde coletiva, é preciso
relembrar a matéria de que são feitos. A metáfora do jardim serve à
politica porque nela é também é preciso aprender a cuidar do jardim,
plantar e observar para depois poder colher. Não fazemos uma
péssima colheita da plantação do passado no campo político? Ela
pode ser vista na atuação do Presidente e de todos aqueles que
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representam o campo liberal voltado para o ideal de mercado, que


desvaloriza o ser humano. O que nos resta para o futuro? Aprender a
plantar, a escolher melhor nossos representantes, para que possamos
colher bons frutos no futuro. A jardinagem é, para Alves, uma
metáfora, um espelho que serve para ver a política que alcançamos e
que política podemos ter. É que, além dos gregos, Alves lembra a
importância de se pensar nos hebreus, povos nômades do deserto e
que na mesma época não sonhavam com cidades, mas com jardins.

“Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma
cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta
hebreu "o que é política?", ele nos responderia, a arte da
jardinagem aplicada às coisas públicas” (ALVES:2000).

Queremos cidades ou queremos jardins? A metáfora é bela porque


serve para imaginar que o bom politico é o apaixonado por jardins
para todos, capaz de abrir mão de seu pequeno jardim - seus cargos,
seus benefícios, seus lucros e de que nada vale a vida se ao seu redor
vivemos o deserto na saúde, na educação e na violência. Por isso
Alves tira disso uma lição para os políticos: é preciso transformar
desertos em jardins. A importância da política está no fato de que os
políticos tem poder, mas o que isto significa? Significa a capacidade de
fazer algo duradouro, ou, como todos gostariam, de “transformar
sonhos em realidade”. Há ainda muitos políticos por vocação, lembra
Alves, e sua existência é o único motivo real pelo qual, devemos
ainda, por mais um tempo, ter esperança na política e na sua função
possível de transformar os desertos da realidade em jardins para se
viver.

Daí a importância do parlamento em dar seu exemplo. Os


políticos, os vereadores, darem mostras do que fazem pela população.
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Recuperar o aspecto de vocação política significa recuperar o sentido


de a felicidade no fazer político e não da possibilidade de obtenção do
lucro que deriva dela. Construir jardins, diria Alves, que não dissocia
isso da importância de uma educação política para que as novas
gerações, para aproximar mais os jovens da política, mais por seus
ideais do que por seus benefícios e assim formar novos construtores
de jardins.

A metáfora dos jardins ensina mais uma coisa sobre a política e a


sociedade: não podemos viver a política como quem vive o imediato.
Essa sensação de urgência, de necessidade de voltar à vida ao normal
em tempos de pandemia, sensação de que o mundo é apenas
economia impõe uma cultura da urgência - é para voltar ao trabalho
agora! – é criticada por Paul Virilio em sua obra Guerra Pura
(BRASILIENSE: 1984) e serve para alertar que os verdadeiros jardins
- as verdadeiras obras - não são feitas em minutos: é preciso ter
paciência para plantar árvores. “Se rompermos com o isolamento, não
teremos jardins, teremos covas” é o que diria Alves cada vez que um
político fala em fim do isolamento. Nada é na hora, muito menos em
se tratando de pandemia. Árvores levam anos para crescer, diz Alves,
e é preciso paciência, uma característica que deveria ser exigida do
cidadão e do político em tempos de pandemia e que não o é. Por
quê? Porque os políticos que vivem do imediatismo das necessidades
dos apoiadores de seus mandatos fracassam na vida política, pois aqui
também é preciso construir uma trajetória. Uma trajetória também é
um jardim.

Por isso a alternativa proposta por Byung-Chul Han em sua obra


Loa à la terra (HERDER: 2020) é melhor. Não usar o jardim como
metáfora, mas ter a experiência pessoal de cultivar um jardim nos
ensina muito mais sobre a vida do que anos de leitura. Seu um
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pequeno diário mostra que tudo na terra é vida e se renova. A terra


tem poder de regeneração latente e indestrutível, criador e paciente. O
jardim é antes de uma metáfora da vida social, é uma prática, uma
experiência sensível onde podemos aprender com a jardinagem, o
cuidado com plantas, formas de exercer o cuidado com nós mesmos.

“Mais do que mera técnica, o cultivo de plantas nos brinda com o


reconhecimento e agradecimento dessa excelência telúrica. A
jardinagem, então, se converte em uma arte onde se pratica a
meditação e se exerce a reivindicação da unidade perdida original
de culto, cultivo e cultura” (HAN: 2019).

A política é um campo importante para a sociedade, o problema é


que os políticos teimam em destruí-la e a prática da jardinagem é uma
notável experiência individual que pouco nos damos o prazer de
exercitar. É possível que em muitas escolas, crianças que sintam o
chamado da política não tenham coragem de atendê-lo, por vergonha
de serem confundidos com os maus políticos que conduziram a vida
ao desastre. Entretanto, se a essas crianças for oportunizado a
experiência de ter um jardim e as inúmeras imagens que a atividade
possibilita, teremos uma forma de ensinar a política um bom
exemplo. A política, como diz Alves, é um dos melhores destinos,
pois é onde os destinos do jardim são decididos, e é muito mais
fascinante participar dos destinos da sociedade se temos todos, em
algum momento de nossa vida, a experiência e a reflexão sobre o
jardim. A instituição política deve fazer este trabalho de sedução,
desviar o olhar do cidadão da má política para mostrar que a boa
política é possível - ou nos termos de Kant, da Crítica da Razão Pura
(PAZ E TERRA: 1998) devemos agir como se tal fosse possível. Mas
isso talvez exija uma prática, uma experiência que não se obtém nos
cursos de Ciência Política.
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Para atingir o que Alves propõe, devemos fazer como sugere Han,
e um dia, sentir a necessidade de trabalhar nosso jardim doméstico. A
pandemia é o tempo que temos para isso, podemos batizá-lo,
trabalhar nele de forma que seja expressão de uma meditação, sempre
em silêncio, para nos determos nos aspectos da terra e de nós
mesmos, descobrindo sua beleza, nos convencendo do quanto é
divina a vida e do quanto nos entregamos ao capital e ao
neoliberalismo sem sentido. O Jardim do Éden, diz Han, também é
um jardim, onde o homem é obrigado a participar de um jogo que o
trabalho destruiu. É uma experiência indescritível, diz Han “a terra
não é um ser morto, inerte e mudo, se não um eloquente ser vivo, um
organismo vivente” (HAN: 2019, p.12) A pandemia é produto do fato
que exploramos brutalmente a natureza e o vírus é essa determinação
que diz que, ao contrário, devemos tratar a natureza com esmero, com
cuidado. Em alemão, a palavra para tratar com cuidado é Shonen,
etimologicamente próximo da expressão Das Schöne, o Belo. Finaliza
Han: “O belo nos obriga, nos ordena a tratá-lo com cuidado. Há que
tratar cuidadosamente o belo. Esta é uma tarefa urgente, uma
obrigação da humanidade, tratar com cuidado a terra, pois ela é bela,
é inclusive, esplendorosa” (HAN: 2019, p. 13).

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