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CIÊNCIAS DA LINGUAGEM:

AVALIANDO O PERCURSO,
ABRINDO CAMINHOS
Sandro Braga
Maria Ester Wollstein Moritz
Mariléia Silva dos Reis
Fábio José Rauen
(Organizadores)

CIÊNCIAS DA LINGUAGEM:
AVALIANDO O PERCURSO,
ABRINDO CAMINHOS

2008
Ciências da Linguagem: avaliando o percurso, abrindo caminhos
Sandro Braga
Maria Ester Wollstein Moritz
Mariléia Silva dos Reis
Fábio José Rauen (Organizadores)

Universidade do Sul de Santa Catarina


Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem
Coleção Linguagens
Av. José Acácio Moreira, 787, Dehon
88.704-900 – Tubarão, SC – (55) (48) 3621-3369

Comissão Editorial
Maria Marta Furlanetto (Presidente)
Mariléia Silva dos Reis
Fábio José Rauen

Diagramação: Fábio José Rauen


Capa: Nova Letra
Figura: Aquarela “Pátio do Dehon”, de Jony Coelho

Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.


Rua Governador Jorge Lacerda, 1809 – fundos
Bairro da Velha – Blumenau – SC
Fone 47 3325-5789 – www.novaletra.com.br

C51 Ciências da linguagem : analisando o percurso, abrindo caminhos /


Sandro Braga, Maria Ester Wollstein Moritz, Mariléia Silva dos
Reis, Fábio José Rauen (orgs.). Blumenau : Nova Letra, 2008.
278 p.: il. ; 21 cm

Inclui bibliografias
ISBN 978-85-7682-357-5

1. Ensino Superior – Santa Catarina. 2. Universidades e


faculdades – Santa Catarina – História. I. Braga, Sandro II. Moritz,
Maria Ester Wollstein III. Reis, Mariléia Silva dos IV. Rauen,
Fábio José V. Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestrado
em Ciências da Linguagem. VI. Título

CDD (21. ed.) 378.8164

Elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


APRESENTAÇÃO

Como o próprio nome infere, esta coletânea é muito mais que um


conjunto de textos, é uma intenção. Ciências da Linguagem: avaliando o
percurso, abrindo caminhos é a intenção de trazer à baila o estado de arte;
fazer uma retrospectiva histórica; e estabelecer perspectivas em relação às
pesquisas desenvolvidas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que este livro celebra os dez
anos de implantação do PPGCL, também renova a intenção do Programa de
ajudar a construir, desenvolver e fortalecer a comunidade de pesquisadores,
professores e alunos que trabalham temas com implicações, tanto em
lingüística, como em literatura, comunicação social e pedagogia.
Os textos que constituem esta coletânea são resultados de pesquisas
desenvolvidas no Programa e servem ainda para situar futuros trabalhos,
demarcando áreas de possíveis investigações científicas. Consideramos que
este seja um passo importante para a consolidação da pesquisa em Ciências
da Linguagem em nossa universidade, uma vez que nos pautamos por um
viés multidisciplinar no campo da linguagem e sociedade.
O presente compêndio reafirma essa tradição interdisciplinar e está
subdivido em três grandes áreas, tal como o próprio PPGCL se estruturou:

Textualidade e práticas discursivas


Análise Discursiva de processos semânticos e
Linguagem e processos culturais.

Dentre essas linhas gerais do Programa, os textos procuram focar as áreas


específicas de pesquisa dos docentes/pesquisadores.
Deste modo, temos a seqüência de textos:
Apresentação

Textualidade e práticas discursivas

Adair Bonini, no capítulo As relações constitutivas entre o jornal e


seus gêneros: relato das pesquisas do ‘projeto gêneros do jornal’,
apresenta os resultados do Projeto gêneros do jornal, em execução no
PPGCL da Unisul. Em um primeiro momento, o autor descreve os
objetivos do projeto em termos das motivações teóricas e aplicadas. Em um
segundo momento, faz um retrospecto crítico da metodologia empregada
no projeto, favorecendo uma reflexão sobre as metodologias de análise de
gênero. Por último, estabelece um quadro das pesquisas e debates
realizados em termos desse projeto, possibilitando uma visualização dos
problemas teóricos e metodológicos envolvidos no estudo dos gêneros do
jornal. Alguns aspectos desse debate, como a proposição do termo
hipergênero e a discussão sobre as fronteiras genéricas no jornal, favorecem
a reflexão sobre as teorias de gênero de um modo geral.
Débora de Carvalho Figueiredo e Maria Ester Wollstein Moritz, no
capítulo Discurso e sociedade: a perspectiva da análise crítica do discurso
e da lingüística sistêmico-funcional, apresentam uma visão panorâmica da
Análise Crítica do Discurso, uma abordagem teórico-metodológica voltada
para a investigação do papel do discurso ou da semiose na constituição de
visões de mundo, de relações sociais e de identidades sociais. Além disso,
as autoras descrevem os projetos e trabalhos de pesquisa desenvolvidos no
PPGCL que se filiam à ACD e que, como grande parte dos trabalhos nessa
área, adotam a Lingüística Sistêmico-Funcional, LSF, como base teórica e
analítica para a investigação de textos em situações concretas de uso e suas
ligações com as práticas e as estruturas sociais mais amplas.
Fábio José Rauen, no capítulo Teoria da relevância e ciências da
linguagem: estado da arte, evolução e tendências, apresenta estudos de
ordem textual-discursiva com base nos aportes da teoria da relevância.
Após apresentar os conceitos centrais da teoria, são destacados os
principais resultados de pesquisas abrigadas nos projetos: Pragmática,
cognição e interação, que analisa aspectos cognitivos e interacionais da
comunicação humana; e Teoria da relevância II: práticas de leitura e
produção textual em contexto escolar, que aplica a teoria em contextos de
leitura e produção textual em ambiente escolar.
Mariléia Reis, no capítulo Ensino de língua: alfabetização com e
para o letramento, propõe uma síntese reflexiva de trabalhos que abordam
o ensino de língua (incluindo a aprendizagem inicial da leitura), a partir de
seus aspectos funcionais, cognitivos e sociais. Trata-se de pesquisas

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Sandro Braga; Maria Ester Wollstein Moritz; Mariléia Reis; Fábio José Rauen

realizadas no contexto do Grupo Análise do discurso: pesquisa e ensino –


GADIPE, e que integram o projeto Letramento, ensino e sociedade, cujo
foco temático recai sobre a premente necessidade de uma base teórica
atualizada, que fundamente a ação pedagógica sobre os processos de
aprendizagem inicial da leitura e da escrita que implicam a aprendizagem
neuronial (Dehaene, 2007), com vistas a práticas sociais efetivas e
significativas. São focalizadas: a formação do professor-alfabetizador
estendida a todos os anos/séries iniciais (e não somente ao primeiro ano); a
importância do desenvolvimento da consciência fonológica para a
alfabetização, e a alfabetização com e para o letramento, com o objetivo de
se prevenir o analfabetismo funcional no Brasil.

Análise Discursiva de processos semânticos

Marci Fileti Martins, Rosângela Morello e Solange Leda Gallo, no


capítulo Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do
conhecimento, refletem sobre questões envolvendo, por um lado, a análise
de materiais produzidos pela mídia e, por outro, o papel da ciência na
sociedade contemporânea. A abordagem tem incidido, atualmente, em
quatro eixos de reflexão: questões de autoria; ciência – processos e
produtos; discurso científico na contemporaneidade – heterogeneidade e
descontinuidade; e línguas, ciências e tecnologias. O objetivo dessas
reflexões tem sido elaborar uma discussão no entremeio dos trabalhos de
divulgação da Revista Laboratório Ciência em Curso
(www.cienciaemcurso.unisul.br) e dos estudos sobre os modos de
formulação e circulação do conhecimento, levando em conta as tecnologias,
as línguas, os ambientes de ensino a distância e as linguagens midiáticas de
modo geral.
Maria Marta Furlanetto e Sandro Braga apresentam dois capítulos
em co-autoria. O primeiro, intitulado Análise do discurso: o campo, tem
como objetivo situar o leitor iniciante aos pressupostos teóricos da Análise
de Discurso de corrente francesa, bem como aventar possibilidades de se
desenvolverem pesquisas pautadas por essa corrente teórica. O segundo,
Análise do discurso e ensino, põe em foco a linha de pesquisa Análise
discursiva de processos semânticos, em sua vertente preferencial de
compreensão das práticas de ensino e de aprendizagem, bem como de
formação de professores, especialmente para o ensino fundamental. O
objeto discurso é o que reúne todas as propostas apresentadas, de quadro
teórico, de projetos, de realizações em geral, de produção acadêmica dos

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Apresentação

pesquisadores e de produção dos estudantes envolvidos. A par do que foi


produzido desde que o grupo de pesquisa se formou e se consolidou, efetua
uma análise dos resultados desse trabalho coletivo e apresenta, no final, as
perspectivas do grupo, em meio às intempéries, bem como as provocações
que estimulam a sofisticar e diversificar o trabalho, incluindo parcerias que
podem significar enriquecimento de perspectivas e concretização de metas
institucionais.

Linguagem e processos culturais

Aldo Litaiff, no capítulo Mitologia e auto-sustentabilidade de


comunidades Guarani do estado de Santa Catarina, trata do projeto Sem
Tekoa não há teko: sem terra não há cultura, um estudo sobre o
desenvolvimento auto-sustentável de comunidades indígenas guarani. Esse
projeto teve como objetivo geral incentivar formas econômicas apropriadas
ao etnodesenvolvimento e à auto-sustentabilidade das terras indígenas
guarani do litoral do estado de Santa Catarina, medidas compatíveis com
teko, ou seja, modo de ser da cultura Guarani. Partindo de uma experiência
de mais de vinte anos junto às populações guarani do Brasil, buscou-se
também contribuir no processo de regeneração da mata atlântica e do solo
(para fomento da agricultura familiar, coletiva e outros tipos de manejo
florestal, característicos desses índios), recentemente ocupado por cerca de
850 índios. O objetivo principal no projeto Registro audiovisual da
execução do projeto Sem tekoa não há teko foi o de criar um registro
(audiovisual) da execução do projeto Sem tekoa não há teko (também
denominado projeto-base).
Antonio Carlos Santos, no ensaio A imagem como matriz histórica
da nação moderna, faz uma abordagem de suas pesquisas, a partir das
noções de imagem e de nação. O objetivo é trabalhar com a produção de
imagens da segunda metade do século XIX no Brasil – pintura, fotografia,
literatura – para mapear uma constelação de problemas que envolvem a
representação, o realismo, a nação como ficção. As teorias da imagem do
século XX, de Benjamin, de Roland Barthes, de Susan Sontag, de Rosalind
Krauss, de Vilém Flusser, segundo Santos, ajudam a pensar a fotografia e
seus problemas como um análogo da modernidade. Se, como afirma Éric
Michaud, as imagens produzem a realidade e não apenas são o testemunho
delas, o autor indaga que realidade é essa que as imagens do século XIX
constroem da nação? Que futuro é esse que a arte produz para o Brasil?

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Sandro Braga; Maria Ester Wollstein Moritz; Mariléia Reis; Fábio José Rauen

Eliane Santana Dias Debus, no ensaio A literatura de recepção


infantil e juvenil: caminhos trilhados e perspectivas de pesquisas, apresenta
os conceitos da literatura de recepção infantil e juvenil, mapeando os
caminhos do gênero no Brasil, bem como os projetos de pesquisa
desenvolvidos, delineando expectativas de trabalhos futuros.
Fábio Messa, no capítulo Entre o ficto e o facto: o gozo estético do
crime, faz um passeio pelo estado da arte de seu projeto de pesquisa Mitos e
mídia, no PPGCL, apresentando um pouco das noções teóricas que o
norteiam. O autor mostra de que forma estende a proposta do seu livro O
Gozo Estético do Crime (2007), que tem como foco o texto ficcional, para o
estudo da narrativa jornalística sensacionalista. Faz também, brevemente,
algumas constatações sobre os trabalhos de mestrandos já egressos e suas
relações com o tema.
Fernando Vugman, no capítulo Estudos culturais, cinema e mito,
faz uma apresentação inicial do surgimento dos estudos culturais,
apontando seus fundadores, seus primeiros investigadores, rumos e
paradoxos. A seguir, discute brevemente a relação entre o cinema, a
sociedade de massas e as condições de surgimento dos estudos culturais.
Na seção seguinte, já a partir da apresentação de suas pesquisas, indica seu
interesse por literatura e cinema, pela discussão sobre modernidade e pós-
modernidade, e a produção de mitos nas sociedades de massas
contemporâneas. Ao final, descreve os resultados obtidos em suas
pesquisas focadas principalmente no cinema hollywoodiano e, mais
recentemente, no cinema brasileiro, fazendo menção a futuros caminhos de
investigação.
Jorge Hoffmann Wolff, no capítulo Documentos do presente,
apresenta sua pesquisa homônima, voltada para as relações entre literatura e
cinema brasileiros contemporâneos, incluindo suas vertentes ficcionais e
documentais, em abordagem crítica ao “neonaturalismo” ou
“neodocumentalismo” (Sussekind) predominante na cultura do país desde o
século XIX. São discutidos, além dessas noções, os conceitos de
documento (versus monumento, segundo LeGoff), de ficção documental
(vista como “documento revelador do que não se quer ver”, conforme
Bernardet), de mito moderno, como “fala despolitizada” e de efeito de real
(segundo o primeiro e o último Barthes). Em função do debate ligado à
representação na modernidade, é posta à tona a questão da fotografia,
segundo o mesmo Barthes, sobretudo em A câmara clara, assim como em
Benjamin, Sontag, Flusser, paralelamente às teorias do cinema e da imagem
de Deleuze, Rancière e Comolli.

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Apresentação

Jussara Bittencourt de Sá, no capítulo A estética da linguagem


artística e midiática: reflexões e ações, apresenta aspectos teóricos e
reflexões sobre sua trajetória como professora e pesquisadora do PPGCL. A
autora destaca a relevância dos estudos, na medida em que se colocam em
cena, dentre outros, os elementos da estética, a identidade da linguagem da
arte e os meios de comunicação que a veiculam. Sublinha que suas aulas e
pesquisas estão direcionadas às diferentes manifestações artísticas e ao
contexto, observando também, além do transitar de mitos: o lugar que a arte
ocupa nas sociedades, os mitos que a arte traz à cena, as mídias que a
veiculam e, também, a práxis pedagógica que a didatiza. No âmbito das
reflexões, são apresentadas pesquisas já concluídas e em fase de
elaboração, como também aspectos do grupo de pesquisa A estética das
linguagens verbais e não-verbais e dos projetos de pesquisa: Os Artistas e
Seus Lugares e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral,
visual, escrita e midiática. Por fim, a pesquisadora evidencia que os olhares
para a estética e a identidade das linguagens artísticas e midiáticas, que
advêm das aulas e das pesquisas, demarcam a percepção de que a cultura
(arte e mídia) pode possibilitar o abrir de muitas portas ainda fechadas em
nosso contexto.

Boa leitura!

Sandro Braga
Maria Ester Wollstein Moritz
Mariléia Reis
Fábio José Rauen

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DEZ ANOS DE HISTÓRIA

Aos 2 de dezembro de 1998, em reunião da Câmara de Gestão da


Universidade do Sul de Santa Catarina, cria-se o Curso de Mestrado em
Ciências da Linguagem. Não se tratava de um evento trivial. A Resolução
CAMGES No 028/98, assinada pelo professor Silvestre Heerdt,
materializava uma aspiração antiga do Curso de Letras e coroava
exitosamente o trabalho pioneiro das professoras Albertina Felisbino,
Amaline Boulos Issa Mussi, Mara Stringer da Fonseca, Maria Felomena
Souza Espíndola e Maria Marta Furlanetto.
A denominação do curso, Ciências da Linguagem, foi uma feliz
sugestão de Maria Felomena Souza Espíndola. Já se desenhava com essa
denominação, desde o nascedouro, o perfil mais abrangente que o curso
abraçaria.
Em abril de 1999, recebo o convite de Albertina Felisbino para
coordenar o curso. Que decisão aquela, lembro-me. Não era apenas o caso
de executar um projeto. Eu sabia que era o caso de dar formas concretas a
um sonho, e sonhos estão entre os bens mais preciosos que alguém pode
receber de outras pessoas. Talvez esteja aí o segredo dos segredos! Fomos
aprendendo a coordenar, fomos aprendendo a criar uma cultura de stricto
sensu, desde coisas mais simples até aquelas mais complexas: desde a
organização da seleção de novos estudantes até a homologação do diploma.
As aulas da primeira turma foram iniciadas em 15 de julho de 1999
em Tubarão. A segunda turma, um ano depois, teve início em 19 de julho.
Oferecíamos, na época, duas áreas de concentração: Teoria e análise de
linguagens e Lingüística aplicada ao ensino. Em 2001, o Curso de
Mestrado em Ciências da Linguagem expandiu-se para o campus da
Grande Florianópolis, com a oferta de uma terceira área de concentração:
Linguagem e tecnologia da informação. Sob a coordenação da professora
Solange Leda Gallo, o campus de Florianópolis abre duas turmas em 2001
e 2002, enquanto o campus de Tubarão abre, nos mesmos anos, sua terceira
e quarta turmas.
Dez anos de história

Ainda em 2000, demos início a um projeto de que muito nos


orgulhamos: precisávamos canalizar a produção emergente e ser o lócus de
discussão de questões de linguagem. Surge, então, a revista Linguagem em
(Dis)curso, cuja denominação foi uma oportuna contribuição da professora
Albertina Felisbino.
Hoje, com a competente organização do professor Adair Bonini e
sua equipe de editores, Linguagem em (Dis)curso é uma publicação
quadrimestral dedicada a colaboradores do Brasil e do exterior interessados
em questões textual-discursivas com inúmeras indexações internacionais e
um portfólio que não se limita a seus números ordinários, mas inclui
números especiais de significativa relevância para o debate nos estudos da
Linguagem. Refiro-me aos números sobre: Subjetividade (2003), Análise
crítica do discurso (2004), Teoria da relevância (2005), Gêneros textuais e
ensino aprendizagem (2006), Metáfora e contexto (2007); e, em breve,
sobre Letramento (2008).
Naquele mesmo ano, com a meta de tornar todas as atividades do
curso públicas e transparentes, criamos o sítio do mestrado na internet, no
endereço www.unisul.br/linguagem. De pouco em pouco, o sítio foi se
constituindo como um portal para os estudos da linguagem. Lembro-me,
por exemplo, de nossa decisão histórica em 2003 de publicar todas as
dissertações do curso. A Capes só torna essa medida obrigatória em 2006.
Hoje, o sítio conta com um acervo público e gratuito de aproximadamente
250 artigos científicos, 200 dissertações, centenas de resumos e textos
completos de anais de eventos locais e internacionais, promovidos ou
patrocinados pelo curso. Além disso, podem ser obtidas inúmeras
informações sobre a estrutura e a efervescência mesma do curso.
Em 2002, o curso passou por sua primeira avaliação externa para
fins de reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação. Naquela
oportunidade, recebemos a visita de uma Comissão Verificadora formada
pelos professores Osmar de Souza (Furb/Univali) e Loni Grimm-Cabral
(UFSC).
Com base no relatório da Comissão, que muito contribuiu para a as
mudanças curriculares que vão se seguir, o curso foi reconhecido em
Sessão Plenária do Conselho Estadual de Educação, em 9 de julho de 2002,
ação que foi referendada pelo Decreto 5.458, de 29 de julho de 2002,
publicado no Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, em 30 de julho de
2002.

12
Fábio José Rauen

Tão logo obtivemos o reconhecimento na esfera estadual,


elaboramos uma revisão curricular, a fim de alinharmos o curso ao Sistema
Nacional de Pós-graduação, que contou com a contribuição do professor
Eduardo Guimarães (Unicamp).
Entre as inovações, o curso aglutinou-se em uma única área de
concentração, que denominamos Linguagem, mídias e processos
discursivos. Com essa nova organização, a área de concentração passou a
ser analisada sob três ângulos, as linhas de pesquisa: Análise discursiva de
processos semânticos, Textualidades e práticas discursivas e Linguagem,
cultura e mídia.
Elaborado o novo projeto de curso de mestrado e seguindo as
determinações da Capes, recebemos a visita de uma Comissão Verificadora
formada pelos professores Sírio Possenti (Unicamp) e Dermeval da Hora
(UFPB), em fevereiro de 2003. Considerando todas as instruções da
Comissão, em abril de 2003, o projeto e seu regimento foram
encaminhados à Capes. Naquele ano, recordo-me, não ofertamos uma nova
seleção.
Passados os trâmites legais, o curso foi aprovado pelo Comitê da
Área de Letras/Lingüística, presidido pelo professor Antônio Dimas (USP),
em janeiro de 2004. O Conselho Técnico Consultivo da Capes homologou
essa decisão, em 10 de fevereiro de 2004. No mesmo ano, deu-se entrada
no Processo de Reconhecimento junto ao Ministério da Educação –
Processo n. 23038.017119/2004-21. O curso obteve parecer favorável da
Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, em 10
de novembro de 2004 – Parecer n. 314/2004. O reconhecimento ocorre em
21 de dezembro, pela Portaria 4.310 do Ministério da Educação, publicada
no Diário Oficial da União, em 23 de dezembro de 2004 (seção 1, p. 33).
Em março de 2004, o curso apresentou seu edital de seleção para as
primeiras turmas do Currículo Capes. A turma de Florianópolis teve seu
início em 5 de julho, e a turma de Tubarão em 7 de julho deste mesmo ano.
Desde então, regularmente, foram ofertadas turmas em 2005, 2006, 2007 e
2008.
Em 2006, o curso cria os periódicos científicos Crítica Cultural e
Ciência em Curso. Critica Cultural é uma publicação semestral. A revista
atende colaboradores do Brasil e do exterior que estejam interessados em
questões relativas ao campo da produção cultural, a partir de perspectivas
teóricas originadas da crítica literária, em diálogo com os campos da arte,
comunicação, cinema e audiovisual.

13
Dez anos de história

A Revista Laboratório Ciência em Curso, por sua vez, busca


polemizar a forma de divulgação de ciência feita pela mídia, uma vez que o
que se percebe nos textos de divulgação de ciência, sobretudo nos textos de
jornalismo científico, é uma tendência a fazer prevalecer conhecimentos da
própria mídia sobre ciência, ou seja, as matérias publicadas são sustentadas
por materiais midiáticos provenientes de produções anteriores, não
constituindo, portanto, um conhecimento baseado na memória da ciência e
da pesquisa, mas na memória da própria mídia sobre a ciência.
Em 2007, o curso realizou o 4º Simpósio Internacional de Estudos
de Gêneros Textuais/4th Symposium on Genre Studies. Nessa edição,
organizada pelos professores Adair Bonini (Unisul), Débora de Carvalho
Figueiredo (Unisul) e Charles Bazerman (California University, USA), os
objetivos do evento foram os de: congregar pesquisadores brasileiros e
estrangeiros envolvidos em estudos sobre gêneros textuais; discutir
questões teóricas e aplicadas relacionadas à pesquisa em gêneros textuais;
divulgar estudos teóricos e aplicados que possam contribuir para releituras
de diferentes enfoques e abordagens postos sobre esse objeto de pesquisa; e
oportunizar a discussão de questões relevantes para a construção de uma
agenda política e pedagógica que possa contribuir para as políticas
governamentais. O evento contou com cerca de mil participantes, dentre os
quais uma centena de pesquisadores estrangeiros, reunindo em Tubarão,
SC, os maiores expoentes da área no mundo.
Ainda em 2007, o PPGCL promoveu nova reformulação curricular
com vistas à proposição de curso de doutorado. Nessa reformulação, o
Programa reformulou a denominação de sua área de concentração para
Processos textuais, discursivos e culturais e reformulou a denominação de
suas linhas de pesquisa para: Textualidade e práticas discursivas, Análise
discursiva de processos semânticos e Linguagem e processos culturais. Em
dezembro, em fórum específico realizado no campus da Pedra Branca, em
Palhoça, SC, o projeto foi apreciado pelo coordenador de área de
Letras/Lingüística da Capes, professor Benjamin Abdala Júnior.
Em março de 2008, o projeto foi apresentado à Capes e, até o
momento, aguardamos a visita de Comissão Verificadora formada pelas
professoras Diana Luz Pessoa de Barros (UPM) e Célia Marques Telles
(UFBA).
Destaco ainda que, neste último dia 31 de outubro, em Assembléia
do VIII Encontro do Círculo de Estudos Lingüísticos, realizada na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi eleita a nova diretoria da
entidade, integralmente formada por professores do Programa. Presidirá o

14
Fábio José Rauen

CELSUL, no biênio 2009-2010, a professora Débora de Carvalho


Figueiredo, com a vice-presidência da professora Maria Marta Furlanetto, a
secretaria da professora Maria Ester Wollstein Moritz e a tesouraria do
professor Adair Bonini.
Valho-me, por fim, da apresentação de Paulo Markun e Duda
Hamilton em seu livro Muito além de um sonho sobre a história da Unisul.
Nesse texto, os autores afirmam que o livro “narra a trajetória de uma idéia
utópica, de um sonho desacreditado por muitos e que, contra os obstáculos,
conseguiu-se sobrepor ao medo, à descrença e à confortável apatia”.
Decorrência de utopia, desacreditado por alguns poucos, felizmente, dez
anos de Mestrado em Ciências da Linguagem revelam coragem, crença e
vivacidade de todos seus professores, colaboradores, alunos e egressos. O
produto acadêmico dessa história, cada capítulo que se segue revelará.
Todavia, sei que há um algo a mais nesse projeto. Algo que se sente muito
mais do que se discursa. Esse algo me faz convicto de que os anos
vindouros serão ainda mais plenos de sucessos.

Tubarão, 10 de novembro de 2008


Prof. Dr. Fábio José Rauen
Coordenador

PS – Quero expressar meus mais sinceros agradecimentos a todos


os alunos, egressos, estagiários, professores e secretárias do curso de
Mestrado em Ciências da Linguagem, sem os quais o sucesso do curso não
seria possível.
Em especial, quero agradecer aos nossos professores: Adair Bonini,
Albertina Felisbino, Aldo Litaiff, Antonio Carlos Gonçalves dos Santos,
Débora de Carvalho Figueiredo, Dulce Márcia Cruz, Eduardo Búrigo de
Carvalho, Eliane Santana Dias Debus, Fábio de Carvalho Messa, Fernando
Simão Vugman, Ingo Voese (in memoriam), Jorge Hoffmann Wolff,
Jussara Bittencourt de Sá, Luiz Felipe Guimarães Soares, Marci Fileti
Martins, Maria Ester Wollstein Moritz, Maria Felomena Souza Espíndola,
Maria Marta Furlanetto, Mariléia Silva dos Reis, Mário Guidarini, Oscar
Ciro Lopez Vaca, Rosângela Morello, Sandro Braga, Solange Maria Leda
Gallo e Wilson Schuelter; e às nossas secretárias: Layla Antunes de
Oliveira, Maricélia de Moraes e Sheila Teresinha Viana Bardini.

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SUMÁRIO

PARTE I
TEXTUALIDADE E PRÁTICAS DISCURSIVAS .............................. 19

As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros: relato das


pesquisas do ‘Projeto Gêneros do Jornal’
Adair Bonini .......................................................................................... 21
Discurso e sociedade: a perspectiva da análise crítica do discurso e
da lingüística sistêmico-funcional
Débora de Carvalho Figueiredo
Maria Ester Wollstein Moritz ................................................................ 47
Teoria da relevância e ciências da linguagem: estado da arte,
evolução e tendências
Fábio José Rauen .................................................................................. 67
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento
Mariléia Silva dos Reis.......................................................................... 99

PARTE II
ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS SEMÂNTICOS........... 113

Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento


Marci Fileti Marins
Rosângela Morello
Solange Maria Leda Gallo .................................................................. 115
Análise do discurso: o campo
Sandro Braga
Maria Marta Furlanetto ...................................................................... 129
Análise do discurso e ensino
Maria Marta Furlanetto
Sandro Braga....................................................................................... 143

PARTE III
LINGUAGEM, CULTURA E MÍDIA.................................................. 167

Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado


de Santa Catarina
Aldo Litaiff........................................................................................... 169
A imagem como matriz histórica da nação moderna
Antônio Carlos Santos ......................................................................... 185
A literatura de recepção infantil e juvenil: caminhos trilhados e
perspectivas de pesquisas
Eliane Santana Dias Debus................................................................. 199
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime
Fábio de Carvalho Messa.................................................................... 213
Estudos culturais, cinema e mito
Fernando Simão Vugman .................................................................... 229
Documentos do presente
Jorge Hoffmann Wolff ......................................................................... 239
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações
Jussara Bittencourt de Sá .................................................................... 255

Os autores................................................................................................ 271

18
PARTE I

TEXTUALIDADE E PRÁTICAS
DISCURSIVAS
AS RELAÇÕES CONSTITUTIVAS
ENTRE O JORNAL E SEUS GÊNEROS:
RELATO DAS PESQUISAS
DO ‘PROJETO GÊNEROS DO JORNAL’

Adair Bonini

1. Introdução

Os estudos sobre gêneros textuais surgiram atrelados ao debate


sobre ensino de produção e compreensão de textos. A contribuição para o
entendimento e aprimoramento dos processos e práticas de ensino-
aprendizagem, portanto, tem sido uma diretriz básica nessas pesquisas.
Outro objetivo evidente desses estudos é propiciar resultados que
viabilizem uma melhor compreensão de práticas sociais em esferas,
ambientes e comunidades sociais específicos. 1
Dentro desse campo, o estudo dos gêneros do jornal se revela
válido em ambas as direções. Por um lado, devido ao fato de o jornalismo
tomar parte nas mídias de massa (um dos fenômenos estruturantes da
sociedade na modernidade e, de forma mais enfática, na modernidade
tardia), ele se revela matéria essencial no ensino de linguagem. A indicação
de trabalho com os gêneros da imprensa consta, por exemplo, dos
Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 53). Por
outro lado, o estudo desses gêneros também traz contribuições para o
entendimento do modo como as práticas a eles atreladas se realizam.
Resultados da pesquisa em gêneros relacionados a esse foco de atenção são
de relevância evidente, uma vez que essa é uma faceta do jornalismo ainda
pouco estudada, pelo menos dentro dessa ótica, conforme demonstra o
levantamento da literatura da área de Comunicação no Brasil apresentado
em Bonini (2003a).

1
Bhatia (2004) assinala quatro espaços a que o estudo dos gêneros textuais pode se ater: a) o
social (discurso como prática social/conhecimento pragmático social); b) o profissional
(discurso como prática profissional/expertise profissional); c) o tático (discurso como
gênero/conhecimento de gênero); e d) o textual (discurso como texto/conhecimento textual).
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

O projeto Gêneros do Jornal (PROJOR-UNISUL) atua nessas duas


vertentes, embora enfatizando uma contribuição para o ensino de leitura e
escrita nos níveis fundamental e médio (cf. BONINI, 2005). Neste artigo
faço um relato das pesquisas realizadas no interior desse projeto. Procuro
centrar a atenção nos resultados alcançados até o momento, de modo a
possibilitar uma visualização crítica do ponto de partida do projeto e do
impacto desses resultados para entendimento desse conjunto de gêneros e
no debate teórico.
Nas seções que se seguem, são expostos: 1) as bases do projeto; 2)
os resultados produzidos até o momento; e 3) um balanço dos resultados e
o que se revela viável para o futuro dessas pesquisas.

2. Projeto Gêneros do Jornal

Para possibilitar uma visualização do modo como o PROJOR está


estruturado, me centro aqui em três aspectos: a metas, as bases teóricas e a
metodologia.

2.1. Escopo do projeto

De acordo com o levantamento desenvolvido por Bhatia (2004), o


quadro dos estudos de gêneros textuais vai de uma abordagem centrada em
aspectos lingüísticos, ampliando-se gradativamente para aspectos do
contexto (fases: 1. da textualização, centrada em aspectos léxico-
gramaticais dos textos; 2. da organização, centrada na estrutura dos textos e
práticas; e 3. da contextualização, centrada nos usos e nas razões sociais
para tais usos). Tem havido, portanto, um esforço para se entenderem os
processos de produção e a compreensão de textos como práticas sociais e,
nesse sentido, como conhecimento situado.
Dentro deste enquadramento, os pesquisadores e teóricos de
gêneros textuais têm procurado se desvencilhar de pesquisas centradas em
gêneros exclusivos para se centrar na relação entre gêneros em certos meios
sociais específicos. Procuram desvendar as inter-relações que se
estabelecem, por um lado, entre gêneros e, por outro, entre gêneros e
práticas constitutivas de determinado ambiente social. Na esteira desse
esforço, têm surgido novos conceitos que procuram descrever essa
complexidade, a exemplo dos conceitos de sistema de gêneros

22
Adair Bonini

(BAZERMAN, 1994), conjunto de gêneros (DEVITT, 1991), hierarquia e


cadeia de gêneros (SWALES, 2004), textografia (SWALES, 1998),
ecologia de gêneros (SPINUZZI, 2003).
O PROJOR se alia a esse esforço de levantar dados que expliquem
o modo como, em conjunto, os gêneros funcionam em relação a práticas
empíricas. Os gêneros do jornal, embora muitas vezes encarnados em ações
individuais, confluem para um todo que é o próprio jornal. Neste caso, os
gêneros, presumivelmente, constituem-se uns em relação aos outros e em
relação ao todo do próprio jornal, tanto em termos dos propósitos
comunicativos que compartilham quanto em termos da configuração formal
(ou estrutural).
A análise global do jornal no PROJOR, no sentido do
entrelaçamento entre propósitos comunicativos e formas textuais, procura
responder duas questões centrais, quais sejam:

a) Como o jornal funciona e se estrutura do ponto de vista do


meio em que é produzido e do ponto de vista dos gêneros que
nele circulam?
b) Quais são os gêneros do jornal e como se constituem
individualmente e em relação ao conjunto?

Procurando compreender a sistemática de propósitos comunicativos


e dispositivos textuais envolvidos na produção do jornal, a pesquisa tem
como objetivos:

a) descrever a organização textual do jornal e sua função no meio


em que é produzido;
b) descrever o funcionamento dos gêneros na constituição do
jornal;
c) produzir um inventário dos gêneros do jornal;
d) descrever os gêneros do jornal.

O tema do PROJOR, portanto, é a inter-relação entre gêneros e


jornal, de modo que o projeto tem como grande meta descrever a estrutura
e o funcionamento do jornal em relação ao meio social em que é produzido
e em relação aos gêneros que caracteristicamente nele circulam. Neste caso,

23
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

a descrição/interpretação do jornal produzirá necessariamente um


inventário do conjunto de gêneros que lhe são próprios.
O projeto existe oficialmente desde 2003, embora sua organização
tenha se iniciado em 2000. No interior desse projeto, foram orientadas, até
o momento, as seguintes dissertações: Figueiredo (2003), Kindermann
(2003), Simoni (2004), Innocente (2005), Cassarotti (2006), Borba (2007),
Caldeira (2007), e Monteiro (2008). Outras quatro estão em fase de
desenvolvimento: Corrêa (2007), Fogolari (2008), Francischini (2008) e
Lima (2008).

2.2. Embasamento teórico

A abordagem sócio-retórica de estudo da linguagem concebe o


gênero como ação social de natureza intersubjetiva que emerge em
situações retóricas recorrentes (MILLER, 1984). Neste sentido, procura-se
verificar sob quais condições sociais, lingüísticas e cognitivas os usos da
linguagem ocorrem para serem entendidos como bem sucedidos.
Os gêneros, bem como as práticas e ações sociais a eles
relacionadas, são observados em termos de sua ocorrência em comunidades
retóricas (MILLER, 1984) ou comunidades discursivas (SWALES, 1990).
Outra forma de considerar os gêneros é mediante sua ocorrência em
sistemas de atividade (BAZERMAN, 1994, 2005) que, em geral, estão
relacionados diretamente a determinados meios sociais, embora, muitas
vezes, possam cruzar tais fronteiras. Nesse último caso, eminentemente
relacionado ao sistema de atividades, está o “sistema de gêneros”, que são,
segundo Bazerman (1994): “gêneros inter-relacionados que interagem uns
com os outros em locais específicos” (p. 98). O estudo de sistemas de
gêneros permite visualizar os processos de produção e compreensão textual
como realizações em cadeias de atividades em meios sociais específicos. 2
As pesquisas realizadas no PROJOR têm como orientação central
os conceitos de gênero e comunidade discursiva de Swales (1990). Para
esse autor, o “gênero compreende uma classe de eventos comunicativos,
cujos exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicativos” (p.
58), consistindo em uma dinâmica de linguagem que envolve a realização
de propósito(s), segundo uma lógica subjacente, uma organização textual

2
Para uma introdução sobre os trabalhos de Swales e Bazerman, bem como para uma noção
geral sobre a perspectiva sócio-retórica de análise de gêneros, consultar Bonini, Biasi-
Rodrigues e Carvalho (2006).

24
Adair Bonini

prototípica e uma identificação pela comunidade mediante um nome


específico. As comunidades discursivas, por sua vez, “são redes sócio-
retóricas que se formam com a finalidade de atuar em torno de conjuntos de
objetivos comuns” (p. 9). Há, portanto, uma relação imediata entre a
organização discursiva da comunidade (o que os membros fazem no
conjunto, por que fazem) e as ações retóricas realizadas por seus membros
(quais textos produzem, com base em quais pistas de validade).
Nas pesquisas do PROJOR têm sido considerados também os
trabalhos subseqüentes de Swales (1992, 1998, 2004), que reformulam ou
complementam aspectos da obra de 1990. Além disso, tem-se procurado,
nessas pesquisas, complementar as reflexões de Swales de vários modos,
com outras bases teóricas, mas principalmente com a teorização sobre
sistema de gêneros, formulada por Bazerman (1994, 2005). 3
O quadro conceitual proposto pela abordagem sócio-retórica
possibilita tanto o estudo da organização dos gêneros – mediante, por
exemplo, a análise de movimentos retóricos (SWALES, 1990) – quanto o
levantamento de suas condições de produção – mediante o estudo de
comunidades discursivas (SWALES, 1990), de sistemas de gêneros
(BAZERMAN, 1994), e da relação entre os processos de produção e leitura
e os papéis sociais assumidos pelos praticantes desses gêneros (PARÉ;
SMART, 1994).

2.3. Metodologia

O desenho metodológico empregado no projeto tem evoluído com


o passar do tempo. Inicialmente, propus um quadro de procedimentos que
possibilitassem um estudo relacionado do jornal com seus gêneros
(BONINI, 2002). Essa metodologia consistia em dois níveis de análise: o
macroestrutural (do jornal em relação aos gêneros) e o microestrutural (dos
gêneros em relação ao jornal) (cf. quadro 1).

3
Vale lembrar que nem sempre a teoria adotada consegue dar conta dos aspectos mais
importantes de um gênero em estudo. É nesse sentido que, em Bonini (no prelo), procurei
analisar os conceitos de notícia e reportagem presentes na literatura da Comunicação a partir
de uma mescla da explicação de gênero de Swales (1990) e Paré/Smart (1994). Considerei,
desse modo, que um gênero pode ser visualizado a partir das seguintes características: 1)
propósito; 2) aspectos de produção e/ou leitura e papéis sociais envolvidos; 3) organização
textual/retórica; e 4) a nomenclatura empregada na comunidade. Os aspectos 1, 3 e 4
provêm de Swales (1990) e o aspecto 2 (ou aspectos) provém de Paré e Smart (1994).

25
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

MACROANÁLISE MICROANÁLISE
(1) Levantar a literatura a respeito do (1) Levantar a literatura a respeito do
jornal. Nesta etapa, procede-se à gênero. Nesta etapa, com vias a
leitura, com vias a determinar a determinar a tradição relativa ao
tradição relativa ao jornal e fazer um gênero em estudo, procede-se à leitura:
inventário dos gêneros: i) dos i) dos principais manuais de
principais manuais de jornalismo; ii) jornalismo; ii) dos textos acadêmicos
dos textos acadêmicos sobre o jornal; e sobre o gênero; e iii) de possíveis
iii) de possíveis estudos que o analisem estudos que o analisem do ponto de
do ponto de vista genérico; vista genérico;
(2) Estabelecer uma interpretação (2) Estabelecer uma interpretação
estrutural para o jornal. Nesta etapa, estrutural para o gênero. Nesta etapa,
procede-se: i) ao levantamento dos procede-se: i) ao levantamento dos
padrões textuais (partes e mecanismos mecanismos textuais (movimentos,
característicos) e lingüísticos (léxico, passos e seqüências) e lingüísticos
emprego verbal, padrão oracional, etc.) (léxico característico, emprego verbal,
de estruturação do jornal; ii) ao padrão oracional, etc.) de estruturação
levantamento dos gêneros ocorrentes do gênero; e ii) ao levantamento das
no jornal; e iii) ao levantamento das relações com outros gêneros e com o
relações com outros gêneros amplos; jornal;
(3) Estabelecer uma interpretação (3) Estabelecer uma interpretação
pragmática para o jornal. Nesta etapa, pragmática para o gênero. Nesta etapa,
procede-se: i) à análise da comunidade procede-se: i) à análise da comunidade
discursiva em que jornal se insere; ii) discursiva em que o gênero se insere;
ao estabelecimento dos papéis ii) ao estabelecimento dos papéis
interacionais (incluindo-se aí também a interacionais (incluindo-se aí também
análise dos propósitos, objetivos e a análise dos propósitos, objetivos e
interesses compartilhados e interesses compartilhados e
intervenientes; e iii) à consulta a intervenientes); e iii) à consulta a
informante da comunidade discursiva. informante da comunidade.
Quadro 1 – Uma proposta metodológica para o estudo inter-relacionado dos
gêneros do jornal (BONINI, 2002).

Dentro deste quadro de procedimentos, inspirados em Swales


(1990) e Bhatia (1993), a macroanálise correspondia a um levantamento da
composição estrutural do jornal, tendo em mente o fato de que os gêneros
que lhe são próprios desempenham um papel em sua constituição. A
macroanálise, neste caso, teria a função de produzir também uma
explicação do modo como o jornal funciona socialmente.

26
Adair Bonini

No nível microanalítico de funcionamento desses gêneros, seriam


considerados os gêneros do jornal em relação ao papel
comunicativo/enunciativo que cumprem no meio social jornalístico e em
relação ao modo como estruturam o todo do jornal (como o jornal se
organiza, quantas seções e cadernos, quais gêneros predominam nessas
seções, quais gêneros organizam o jornal).
Nesse enquadramento, o segundo conjunto de procedimentos da
microanálise (estabelecer uma interpretação estrutural para o gênero) tem
sido realizado, essencialmente, mediante a análise de movimentos de
Swales (1990). Esse método de análise textual consiste na comparação
entre os exemplares de determinado gênero, procurando-se verificar, pela
recorrência, as ações retóricas que são realizadas no sentido de produzi-lo
(ou compreendê-lo).
O exemplo clássico dessa metodologia é o modelo CARS (create a
research space) que Swales (1981, 1990, SWALES; NAJJAR, 1987)
construiu para explicar a organização retórica da introdução de artigos de
pesquisa. Em sua última versão (SWALES, 1990), o modelo apresenta três
movimentos que são materializados pela realização dos passos que o
compõem. 4 Para realizar o movimento 3 de uma introdução de artigo de
pesquisa (“ocupar o nicho”), e portanto para produzir a parte final da
introdução, é necessário, desse modo, que o produtor realize, inicialmente,
os passos 1A (delinear os objetivos da pesquisa) ou 1B (apresentar a
pesquisa), que são opcionais, e, em seguida, os passos 2 (apresentar os
principais resultados) e 3 (indicar a estrutura do artigo). 5
Embora pudessem permitir o trabalho da inter-relação entre
gêneros e jornal, os procedimentos expostos no quadro 1 se revelavam
limitantes para o estudo de outros aspectos contextuais dos gêneros. A
tentativa de se estudar o encadeamento de um gênero em estudo com outros
(o sistema de gêneros), por exemplo, não era possível dentro desse
enquadramento, a não ser com alguma adaptação. Não se tornava fácil
também levantar outros aspectos de determinado gênero (processos de
composição e leitura) ou as identidades dos enunciadores envolvidos.

4
Estou considerando esta a última versão do CARS, devido ao fato de ser a última
formulação teórica, mas é preciso considerar que aparece uma reformulação posterior no
curso de escrita acadêmica desenvolvido por Swales e Feak (1994).
5
Para maiores detalhes sobre essa metodologia, consultar Hemais e Biasi-Rodrigues (2005).

27
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

Desse modo, mais recentemente nas pesquisas do PROJOR, o


enquadramento metodológico proposto por Paré e Smart (1994) tem sido
eleito como diretriz, a partir da qual outros aspectos são observados:
relações hipergenéricas e sistemas de gêneros (cf. figura 1). 6 Esses autores
propõem que sejam considerados quatro aspectos em relação a determinado
gênero em estudo: 1) as regularidades textuais; 2) as regularidades nos
processos de composição; 3) nas práticas de leitura; e 4) nos papéis sociais
dos envolvidos. 7
Ao se considerar essa proposta de Paré e Smart (1994), o sistema
de gêneros, a relação entre os gêneros e o jornal, entre outros aspectos,
podem ser estudados como parte de um (ou mais de um) dos componentes
desse grande enquadramento (fig. 1). Dependo da delimitação posta sobre
um gênero em estudo, o sistema de gêneros pode ser estudado como uma
forma de explicar seu processo de composição (o impacto de um gênero
sobre a produção de outro), o processo de leitura (como a leitura de outro
gênero é necessária e impacta a leitura do gênero em estudo), e os papéis
sociais (quais relações sociais são necessárias para realização de
determinado gênero e de que tipo são essas relações). O estudo do sistema
de gêneros pode ser ampliado para uma pesquisa de campo que envolva
observação, questionário, entrevista, etc.
De modo complementar ao estudo dos quatro componentes
apontados por Paré e Smart (1994), as relações entre gênero e hipergênero
podem entrar como parte do estudo das regularidades da organização
textual do gênero. O lugar e modo de funcionamento no jornal produzem
uma contextualização para o estudo da organização do gênero. Ao mesmo
tempo, o estudo do gênero segundo essa perspectiva possibilita
compreender aspectos da organização do jornal como um hipergênero. No
interior do jornal, o gênero cumpre funções hipergenéricas: alguns, por
exemplo, organizam o hipergênero (a chamada de capa, o sumário, o
expediente, etc.), outros cumprem o(s) objetivo(s) do hipergênero (a
notícia, a entrevista, o artigo de opinião, etc.). Em termos dessas relações
hipergenéricas, podem ser observados: os lugares de ocorrência do gênero
(na seção, na página, nos cadernos, no jornal) e a recorrência do gênero no
jornal por um período de tempo (uma semana, um mês, etc.).

6
As relações hipergenéricas se dão entre o hipergênero (o jornal, nesse caso) e o gêneros
componentes (notícia, reportagem, editorial, etc.)
7
Para uma introdução à metodologia de Paré e Smart (1994), consultar Carvalho (2005).

28
Adair Bonini

Figura 1– Enquadramento metodológico do estudo dos gêneros no PROJOR-


UNISUL.

O gênero é um objeto bastante complexo que pode ser explorado de


diversos ângulos. Contudo, quanto maior o número de ângulos e a
profundidade da observação, maior será o tempo necessário para a
consecução da pesquisa. O pesquisador pode, portanto, considerando as
peculiaridades do gênero em estudo, delimitar um conjunto maior o menor
de aspectos a serem observados. No caso do PROJOR, uma vez que se tem
trabalhado essencialmente com pesquisas de mestrado, nas últimas delas
(BORBA, 2007; CALDEIRA, 2007; CORRÊA, 2007; FOGOLARI, 2008;
FRANCISCHINI, 2008; LIMA, 2008) se tem optado por considerar: a) as
regularidades textuais do gênero, levantadas via análise de movimentos
retóricos, e complementadas pelo levantamento das relações
hipergenéricas; e b) as regularidades nos processos de composição do
gênero, complementadas pelo levantamento do sistema de gêneros
envolvido nessa composição. As primeiras pesquisas (FIGUEIREDO,
2003; KINDERMANN, 2003; SIMONI, 2004; INNOCENTE, 2005;
CASSAROTTI, 2006) apenas se concentravam nos componentes 1 e A da
figura 1, de modo que tem havido uma ampliação do foco.
Embora a sócio-retórica seja uma escola de estudos da linguagem
(com representantes principalmente nos Estados Unidos e no Canadá), ela
não apresenta uma teoria unificadora. Desse modo, a composição de um

29
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

conjunto de procedimentos de pesquisa faz-se em virtude das


peculiaridades do objeto em estudo e do foco de observação posto sobre
ele, tendo como base, no entanto, as pesquisas e debates anteriores, bem
com uma perspectiva de observação de natureza etnográfica. Por ser um
conjunto de procedimentos relativamente abertos, a figura 1 poderia ter
arranjos distintos, nos quais se poderia tomar como fio norteador o sistema
de gêneros, as relações hipergenéricas ou mesmo outros aspectos
intervenientes no funcionamento social do gênero (hierarquia de gêneros,
conjunto de gêneros, cadeias de gêneros, por exemplo).
Embora os aspectos focalizados e os procedimentos possam variar
em alguma medida, tem sido comum nas pesquisas dentro dessa tradição a
consideração das explicações postas sobre o gênero em estudo, conforme
constem na literatura técnico-profissional e acadêmica da área em questão.
Esse trabalho vai além de uma simples revisão da literatura, pois cabe ao
analista de gênero envolvido com essa perspectiva analisar as explicações
prévias do gênero no sentido de determinar o quanto elas conseguem
delinear o gênero como um conjunto de práticas e ações sociais. 8
Para o corpus do projeto, foram coletados, previamente a seu início
(durante todo o primeiro mês do ano de 2000), exemplares de nove jornais
da grande imprensa brasileira (Diário Catarinense, Diário do Nordeste, O
Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Gazeta do Povo, Jornal do Brasil,
O Globo, O Povo e Zero Hora), totalizando 272 exemplares.
As primeiras pesquisas tiveram esse corpus como base, embora
focalizando apenas alguns deles: Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O
Globo, Diário Catarinense. A partir de 2007, como os jornais estivessem se
tornando de difícil manuseio, em função de seu estado de conservação,
foram descartados, e as pesquisas seguintes passaram a considerar
exemplares atuais, por vezes recorrendo a outros jornais: citar pesquisas –
Caldeira (2007), por exemplo, levou em consideração o jornal A Tribuna de
Criciúma.

8
Essa distinção entre práticas e ações sociais não tem sido esclarecida na literatura. Em
geral, diversos termos (tais como prática, ação, atividade) têm sido utilizados com o mesmo
sentido (intercambiando-se uns pelos outros livremente). Como esse uso cria uma certa
dissonância, tenho optado por diferenciar ação de prática social. Em Bonini (2007) propus
que o termo prática social fosse utilizado para designar a o aspecto mais geral da realização
social do gênero (por exemplo, relatar pesquisas) e ação social, para designar os
procedimentos de textualização (o que, no caso do artigo de pesquisa consistiria em:
delinear os objetivos da pesquisa; apresentar a pesquisa; apresentar os principais resultados;
indicar a estrutura do artigo, etc.).

30
Adair Bonini

3. Resultados do projeto

Nas próximas duas seções, procuro descrever os resultados das


pesquisas no PROJOR, atendo-me às duas perspectivas focalizadas no
projeto: do jornal em relação aos gêneros e vice-versa.

3.1. O jornal e seus gêneros

Em temos do modo como os gêneros constituem o jornal, três


resultados maiores das pesquisas e discussões do PROJOR podem ser
destacados: a) a descrição da organização do jornal; b) a realização,
mediante a literatura da área de comunicação, de um inventário de
possíveis gêneros do jornal; e c) a proposição do conceito de hipergênero.
Em um dos primeiros trabalhos publicados dentro do escopo desse
projeto (BONINI, 2001), realizei uma análise da estrutura composicional
do jornal Folha de São Paulo. Esse levantamento apontava para uma
organização da Folha em três componentes estruturais: a) um módulo
básico (Brasil; mundo); b) os cadernos fixos (economia; variedades;
esportes; cultura); e c) os cadernos alternáveis (adolescência; turismo;
agricultura; informática; infância; veículos e empregos).
Na época, propus que o conteúdo do jornal seria organizado em
função de dois campos de atenção (quadro 2). O primeiro deles seria o
campo do jornal, onde se concentrariam textos que têm sua funcionalidade
relacionada ao próprio jornal. Nesses termos, a chamada, por exemplo, não
cumpre a função, pelo menos em primeiro plano, de levar ao leitor o relato
de um fato. Pelo contrário, ela serve como uma espécie de sumário,
resumindo a edição e apontando o local do jornal onde o texto se encontra.
Além disso, ao relatar o suposto conteúdo mais interessante da edição, ela
cumpriria a função de persuadir o leitor quanto à leitura e compra do jornal.
Trata-se, portanto, de um texto que funciona metatextualmente em relação
aos demais textos do jornal.
Os textos potencialmente alvos dessas chamadas, por sua vez,
comporiam o segundo campo da produção textual dentro do jornal, o que
denominei campo das ações sociais. Eles consistiriam em relatos dos dados
coletados pelos jornalistas, sendo, em sua maioria, dados relativos a fatos
sociais ocorridos recentemente, em ocorrência ou por ocorrer.

31
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

NO CAMPO DO JORNAL I – Cabeçalho


II – Chamada de capa
III – Índice
IV – Editorial
V – Expediente
VI – Cartas do leitor
NO CAMPO DAS AÇÕES VII – Caderno de notícias gerais
SOCIAIS VIII – Caderno temático
IX – Página temática ou assinada
X – Coluna assinada
XI – Encarte
XII – Caderno especial
Quadro 2 – Organização temática do jornal.

Esta análise conduziu a outras duas distinções: a) a dos gêneros em


relação aos aparados de edição; e b) a dos gêneros presos e livres (quadro
3). A primeira distinção baseava-se no fato que, no jornal, alguns elementos
são a base para se compor a maior parte dos gêneros praticados. Além
disso, esses elementos, tais como o chapéu, olho, e título, compõem os
textos de gêneros específicos, mas, ao mesmo tempo, fazem parte da
própria organização do jornal, de modo que os denominei ‘aparatos de
edição’. 9, 10
Com relação à segunda distinção, os gêneros presos são entendidos
como sendo aqueles que têm o propósito central ligado à própria
constituição e estruturação do jornal, tendo lugares fixos no jornal. O
editorial é um destes gêneros, pois aparece em um espaço fixo do jornal e
tem uma função evidentemente ligada ao jornal: expressar a opinião da
empresa jornalística. Por outro lado, os gêneros livres (tais como a notícia,
a reportagem, a entrevista, etc.) são aqueles que de fato trazem o conteúdo
alvo do jornal (identificado no jargão da área como a “informação”). Não
têm, em geral, um lugar fixo no jornal, pois dependem dos acontecimentos
que estarão em evidência no dia da apuração. Além disso, o gênero que irá
emergir nas páginas depende do tipo de material que foi apurado no dia

9
Chapéu é a “palavra ou expressão curta colocada acima de um título. Usada para indicar o
assunto de que trata o texto ou os textos que vêm abaixo dela” (FOLHA de S. Paulo, 1998,
p. 130-131).
10
O olho é um pequeno trecho da fala da pessoa abordada pelo texto, podendo aparecer
como antetítulo, chamada, intertítulo, ou na forma de janela no meio do texto. Essa última
talvez seja a forma mais corrente, sendo a definição adotada no manual de estilo da Folha de
S. Paulo (1998, p. 157-158).

32
Adair Bonini

pelo jornalista e de uma série de decisões editoriais. A depender dessas


decisões editoriais, como afirma Borba (2007), a gravação de uma
entrevista face a face pode se transformar em um texto de entrevista
pingue-pongue ou de entrevista corrida.

GÊNEROS APARATOS DE EDIÇÃO


Presos: Manchete
Editorial Lide
Carta do leitor Lista
Expediente Painel
Chamada Chapéu
Índice Olho
Cabeçalho Tabela
Gráfico
Livres: Citação
Notícia Exemplo
Nota Perfil
Crítica Selo
Comentário
Opinião
Reportagem
Entrevista
Claquete
Quadro 3 – Gêneros e aparatos de edição do jornal (BONINI, 2001).

Esse conjunto de distinções serviu como parâmetro para a


organização de um levantamento dos possíveis gêneros do jornal (BONINI,
2003a) (quadro 4). Nesse caso, houve a tentativa de separar os gêneros
externos e internos ao jornal e, em relação a esses segundos, a distinção
entre centrais (relacionados aos objetivos principais do jornal, tais como
informar e discutir eventos e temas sociais) e periféricos (relacionados a
atividades que apenas atingem o jornal, mas não constituem seu fim
último). Os gêneros centrais, por sua vez, foram alocados em duas
categorias: presos e livres (com a mesma concepção exposta acima), sendo
que esses últimos foram divididos em autônomos e conjugados. Essa
classificação passa a mostrar os aparatos de edição como gêneros que estão
a serviço de outros (conjugados).

33
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

NA NO JORNAL
ATIVI- CENTRAIS PERIFÉRICOS
DADE PRESOS LIVRES
JORNA- AUTÔNOMOS CONJUGADOS
LÍSTICA
* reunião * carta do * análise * cronologia * anúncio
de pauta leitor * artigo * gráfico [teaser,
* pauta * expediente * nota [suelto, * mapa classificados,
* coletiva: * cabeçalho obtuário] * perfil saia-e-blusa]
entrevista * chamada * notícia * story-board * propaganda
* editorial * reportagem * tabela * aviso
* foto- * entrevista * errata * cupom
manchete * enquête * fotografia * expressão de
* índice * [fotopotoca, opinião
fotorreportagem portrait, de cena] * informe
* foto-legenda * ficha técnica publicitário
* comentário * galeria * ensaio
* crítica * grade * editorial de
* resenha * indicador moda
* tira * cotação * crônica
* cartum * infográfico * horóscopo
* charge * lista * teste
* roteiro [questionário, * folhetim
* previsão do vocabulário, * charada
tempo discografia, * palavra cruzada
* carta-consulta bibliografia] * poesia
* efeméride * lidão * conto
* endereço * edital
eletrônico * balancete
* caricatura * receita
* referência * ata
bibliográfica * apostila
* endereço * dama
* cineminha * xadrez
Quadro 4 – Gêneros relacionados ao jornal, arrolados nos manuais de estilo, nos
dicionários de comunicação e na literatura acadêmica da área de comunicação [Os
itens em negrito só foram encontrados no dicionário, os grifados, somente nos
manuais de estilo e os com duplo grifo, somente na literatura acadêmica]
(BONINI, 2003a).

Hoje, considerando essas classificações em retrospectiva, observo


certa fragilidade em alguns aspectos. Elas, contudo, tocam, penso, em
problemas importantes da relação entre o jornal e seus gêneros. Na análise
de um gênero qualquer do jornal, por exemplo, deve-se considerar o chapéu

34
Adair Bonini

como um componente desse gênero ou do jornal? Como apontei em um


texto no qual analiso duas edições completas do Jornal do Brasil (BONINI,
2005), parece existir no jornal certa indefinição de fronteiras entre as
unidades textuais, o que acaba se revelando uma de suas marcas. A questão
é que a produção do jornal e de seus gêneros ocorre conjuntamente de
modo que: textos produzidos por autores diferentes podem ser agrupados
em um bloco temático único; e um texto escrito por um único autor pode
ser separado em blocos menores, perfazendo outros textos. Distinguir o que
é título e intertítulo na página do jornal nem sempre é uma tarefa muito
fácil, devido a essa mescla, a essa escrita conjunta entre jornalista, editor e
demais envolvidos.
Com base nesta relação entre o jornal e seus gêneros, pensada a
princípio através da distinção entre gêneros presos e livres, é que propus o
conceito de hipergênero (BONINI, 2001, 2003b, 2005, mimeo). Afirmei, no
primeiro texto em que tratei do assunto, que: “Embora na literatura sobre
gêneros textuais o jornal seja caracterizado basicamente como um veículo,
[há] motivos para considerá-lo um gênero que abriga outros (ou seja, um
hipergênero), porque preenche quesitos como propósitos comunicativos
próprios, organização textual característica [...] e produtores e receptores
definidos” (BONINI, 2001). Pode-se acrescentar ainda, de acordo com
Bonini (mimeo), que o jornal corresponde aos três quesitos apontados por
Bakhtin (1953, p. 281) para caracterizar o enunciado (quadro 5). Como já
havia feito em Bonini (2004), opto aqui também pelo conceito de
enunciado como base da noção de gênero. Embora eu tenha trabalhado em
muitos textos com a literatura proveniente da sócio-retórica, o conceito de
ação de linguagem de Miller (1984) não me parece tão pertinente como
unidade básica da linguagem quanto o conceito de enunciado de Bakhtin
(1953), uma vez que esse último alcança uma caracterização mais plausível
como unidade no fluxo da linguagem e como aspecto do comportamento
comunicativo e interacional humano.
Em 2005, afirmei que o hipergênero (por exemplo, o jornal)
poderia equivaler ao suporte de textos, mas que nem todo suporte seria um
hipergênero (por exemplo, um álbum de fotografias). Neste texto mais
recente (BONINI, mimeo), opto pelo termo mídia, por já ser corrente, na
literatura acadêmica e na sociedade, desconsiderando o termo suporte.
Mantenho, contudo, a mesma hipótese para a relação entre o gênero e seu
meio de circulação. Desse modo, o jornal se organiza como um
hipergênero, mas também como uma mídia. Não é o caso, no entanto, da

35
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

televisão, que é uma mídia composta de diversos hipergêneros (telejornal,


programa de auditório, talkshow) e gêneros (anúncio, vinheta, chamada).

Características do Aplicação dessas características ao jornal


enunciado, segundo
Bakhtin (1953, p. 281)
“exauribilidade do objeto A equipe que produz o jornal expressa todo o
e do sentido” conteúdo que quer o pode expressar na edição. Esse
conteúdo, por sua vez, funciona como uma unidade de
conteúdo que pode ser alvo de replica, de modo que
alguém pode afirmar, por exemplo: “Gostei da edição
de ontem do jornal X”.
“projeto de discurso ou Embora compartilhado entre muitos sujeitos e não
vontade de discurso do passível de especificação, há um intuito na produção
falante” do jornal. Do mesmo modo como ocorre com outros
enunciados coletivos, a exemplo de um filme, de um
espetáculo, há, no caso do jornal, uma hierarquia de
enunciadores. Sendo assim, alguns têm mais poder e
espaço na construção do todo do que outros. No caso
de um filme, é geralmente o diretor; no do jornal, os
editores.
“formas típicas O jornal apresenta uma organização genérica,
composicionais e de composta principalmente de cabeçalho, chamadas,
gênero do acabamento” expediente, editorial, carta do leitor e cadernos. Essa
organização, por sua vez, cria um espaço circulação
para outros gêneros.
Quadro 5 – Características do enunciado aplicadas ao jornal.

3.2. Os gêneros e o jornal

Em termos dos gêneros que compõem o jornal, foram estudados,


até o momento, a notícia, a reportagem, a nota, a entrevista, o comentário, a
crítica de cinema, a chamada de capa, a carta-consulta e a tira.
Kindermann (2003) levantou, em análise de 32 reportagens
publicadas em quatro cadernos do Jornal do Brasil (Brasil, Internacional,
Política e Cidade), quatro tipos de reportagem: noticiosa, de entrevista,
retrospectiva, e de pesquisa. Posteriormente, esse trabalho foi retomado por
Bonini (no prelo), em um estudo que envolveu todos os exemplares dos
gêneros notícia e reportagem publicados em três edições do Jornal do
Brasil. Em uma primeira etapa, foram analisados 337 textos, nos quais

36
Adair Bonini

foram verificadas nove possibilidades de ocorrências textuais, perfazendo


um contínuo que vai da notícia à reportagem (quadro 6). Em uma segunda
etapa, foram selecionados de modo aleatório aproximadamente 10
exemplares de cada tipo, totalizando 84 exemplares, para uma análise da
organização textual de acordo com a ótica de movimentos retóricos de
Swales (1990). Essa análise evidenciou a hipótese do contínuo levantada na
primeira etapa da pesquisa.

GRUPO GÊNERO PROPÓSITO


Factual Notícia Relatar um fato/acontecimento
Reportagem Explicar a origem de fato
retrospectiva
Rep. de opinião Abordar um fato ou assunto mediante
opinião(ões) coletada(s)
Reportagem de perfil Descrever personagem ou instituição
relacionada a fato, a assunto em evidência ou
que tenha prestígio social ou fama
Reportagem de Relatar o dia-a-dia de instituição, festividade
cobertura ou fato duradouro
Temático Reportagem de produto Descrever novo produto
Reportagem de pesquisa Aportar dados de interpretação de problema
em evidência ou de tendência de
comportamento social
Reportagem didática Explicar um assunto, situação problema ou
serviço
Reportagem de roteiro Apontar possibilidades de passeio turístico
Quadro 6 – Propósitos da notícia e dos gêneros da reportagem (BONINI, no prelo).

Figueiredo (2003) analisou 132 exemplares de nota jornalística


publicados no Jornal do Brasil. Sua pesquisa indicou a ocorrência de três
tipos de notas: a nota noticiosa, a nota comentário e a nota comentário
relatado. Segundo esse estudo, a nota em sua estrutura básica, em todas as
três formas de ocorrências, compõe-se de um título (geralmente não mais
do que uma palavra ou expressão curta), e dois blocos textuais (uma
introdução e uma especificação). No caso do tipo mais comum, a nota
noticiosa, o primeiro desses blocos corresponde a um lide e o segundo a
uma extensão de algum aspecto desse lide (o quê, quem, quando, onde,
como, por quê).

37
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

Borba (2007), em um estudo sobre a entrevista, examina 32


exemplares do gênero publicados no jornal Zero Hora. A análise aponta
para dois padrões de ocorrência: a entrevista noticiosa (centrada em um
fato) e a de perfil (centrada em aspectos de um ator social específico). A
primeira ocorre geralmente como complemento de outro(s) texto(s)
publicado(s) no jornal, enquanto a segunda ocorre mais comumente como
texto isolado. A entrevista, segundo esse estudo, organiza-se em três
movimentos retóricos, a saber: a) situar o leitor (mediante cabeçalho, título,
créditos e foto-legenda), estabelecer o tema (media lide, noticioso ou de
perfil) e expor trecho relevante da interação realizada anteriormente
(mediante pingue-pongue, inter-título, janela e box).
Monteiro (2008) estudou um corpus de 42 exemplares do
comentário, sendo 18 extraídos do jornal Diário Catarinense e 24 da Folha
de S. Paulo. Ela levantou uma organização do gênero composta de sete
movimentos retóricos, quais sejam: a) identificar o texto; b) apresentar o fio
condutor do texto; c) desenvolver um balanço dos fatos; d) apresentar uma
interpretação dos fatos; e) perspectivar o futuro; f) dirigir-se a participante
do evento com interpelação ou elogio; g) apresentar dados de contato; h)
apresentar credenciais; apresentar informações extras. De modo geral,
segundo esse estudo, o comentarista apresenta o fato a ser comentado, faz
um balanço e/ou interpretação de aspectos desse fato e procura fazer
previsões ou fornecer diretrizes quanto aos seus desdobramentos.
Cassarotti (2006) realizou um estudo de 20 exemplares do gênero
crítica de cinema coletados do Jornal Folha de São Paulo. Seu estudo indica
uma organização do gênero em seis movimentos retóricos, a saber: a)
fornecer pistas para que o leitor identifique uma crítica específica
(mediante título do texto, crédito de autoria e fotografia do filme); b)
apresentar o filme (informando, por exemplo, sobre fatos relacionados ao
filme, sobre a direção, sobre a atuação, etc.); c) descrever/analisar partes do
filme (apresentando a história do filme, o processo criativo, cenas
marcantes, etc.); d) opinar sobre o filme (fornecendo avaliação geral e/ou
de partes); e) orientar o espectador (recomendando ou desqualificando e
cotando o filme); f) fornecer dados da ficha técnica (título, nomes dos
envolvidos, etc.). Embora o corpus apresentasse apenas um exemplar de
crítica voltada a documentário, é interessante notar como a variação do
gênero comentado modifica a organização da crítica. Esse fato mostra que
o gênero não se realiza mediante regras, independentemente da tarefa que
lhe dá base, mas que ele acontece como uma prática social situada.

38
Adair Bonini

Caldeira (2007) analisou um corpus constituído por 31 chamadas


de capa e 38 textos chamados. Os exemplares foram selecionados a partir
de três jornais: um de circulação nacional (Folha de S. Paulo); um de
circulação no estado de Santa Catarina (Diário Catarinense) e um que
circula na região de Criciúma (A Tribuna). Sua análise mostrou uma
organização do gênero em três movimentos retóricos: a) caracterizar o texto
(mediante título); b) apontar um tema; c) especificar o tema; e d) direcionar
a páginas internas do jornal. Ele levantou que as chamadas geralmente
tinham como tema uma notícia (17 delas) ou uma reportagem (14 delas).
Cinco dessas chamadas se atinham a mais de um texto. Apenas uma delas
trazia um resumo do texto como um todo, três delas traziam um resumo de
um único trecho e a maioria, 22 delas, consistiam em resumos de trechos
esparsos, provenientes de vários pontos do texto chamado. É interessante
notar, em termos da relação entre a chamada e o texto chamado, que a
cópia é uma estratégia rara. Apenas uma delas utilizou esse recurso. A
maior parte delas consistia em uma paráfrase do texto chamado (22 delas),
havendo, contudo, ocorrências de chamadas construídas com estratégia
mista (paráfrase e cópia). É importante salientar também que, em relação ao
conteúdo das chamadas, 86,8% provém do título e do lide do texto
chamado.
Simoni (2004) analisou 68 exemplares do gênero carta-consulta
coletados em edições dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo. A
organização do gênero revelada pela pesquisa consiste de três movimentos
retóricos: a) identificar o texto (geralmente mediante uma palavra ou
expressão curta); b) formular uma questão; e c) fornecer uma resposta. É
interessante notar aqui que entram em cena, na produção do gênero, três
enunciadores: o jornalista (responsável por organizar o material), o leitor
(produtor inicial da carta) e a pessoa ou entidade que responde a carta. Ela
levantou dois modos de ocorrência do gênero: uma em que a resposta é
produzida diretamente por um especialista e outra em que a resposta,
embora tendo uma fonte externa, é relatada pelo jornalista que serve de
mediador.
Innocente (2005) estudou um corpus de 46 tiras publicadas no
Jornal do Brasil e no Diário Catarinense. Ela concluiu que esse gênero se
organiza retoricamente em quatro movimentos: a) apresentar o título; b)
preparar o cenário; c) apresentar o clímax; e d) quebrar a expectativa. Os
textos compõem-se de uma a quatro vinhetas (ou quadrinhos), sendo mais
comuns os construídos com três vinhetas. O humor na tira emerge dessa
quebra de uma expectativa construída inicialmente e da utilização de

39
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

diversos recursos: ambigüidade semântica, criação de uma exigência de


inferência (mediante informação implícita), evocação de conhecimento
prévio do leitor, e efeito gráfico específico introduzido na tira.
Das três pesquisas que estão em andamento, um delas já está
bastante avançada, de modo que se podem apontar os resultados mais
visíveis. Corrêa iniciou um estudo sobre a carta do leitor em 2007, no qual
ela analisa 49 cartas publicadas e as compara com os originais enviados
pelos leitores. Ao observar o endereçamento e o propósito das cartas,
Corrêa identificou cinco tipos de cartas do leitor: a) carta para o jornal ou
um de seus envolvidos com elogio ou crítica; b) carta para envolvido(s) em
um fato com comentário positivo ou negativo; c) carta para os leitores do
jornal com esclarecimento sobre texto publicado anteriormente; d) carta
para outro leitor com questionamento ou apoio; e) carta para a sociedade
com crítica de comportamento. Na comparação entre a carta publicada e a
original, Corrêa levantou quatro grupos de ações de textualização
realizadas pelo editor da seção de cartas: as ações de eliminação,
acréscimo, substituição e correção ortográfica.
As outras três pesquisas (FRANCISCHINI, 2008; FOGOLARI,
2008; LIMA, 2008) encontram-se ainda em fase inicial. Francischini está
analisando a crônica a partir de exemplares coletados do jornal Zero Hora.
Trata-se de um gênero já bastante estudado, mas com raros trabalhos dentro
de uma ótica de gênero. Além disso, a crônica é um gênero de difícil
definição (o que se evidencia na literatura consultada) e com fronteiras
muito tênues com outros gêneros do jornalismo (como o comentário). As
outras duas pesquisas têm por objeto gêneros imagéticos do jornal: o
cineminha (FOGOLARI, 2008) e o storyboard (LIMA, 2008). 11, 12 Trata-se
de gêneros de ocorrência rara, o que traz certa dificuldade operacional para
a montagem do corpus de pesquisa. Em uma varredura nas edições da
Folha de S. Paulo pelo período de um ano, foram encontrados pelos
pesquisadores apenas cinco exemplares do storyboard e seis do cineminha.
Uma das maiores dificuldades enfrentadas nessas pesquisas é a da
seleção do corpus. Alguns gêneros, com a tira e a carta do leitor, são
facilmente identificáveis no jornal. Outros, porém, como a reportagem e o
comentário, não são evidentes, pois se confundem com outros gêneros, o

11
Cineminha é uma “seqüência de fotos que ilustra uma matéria jornalística apresentando
detalhes do desenvolvimento do fato noticiado” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 135).
12
Storyboard é uma “seqüência de desenhos que, ilustrando uma matéria jornalística,
apresentam detalhes e momentos sucessivos do fato noticiado ou de uma versão do
acontecimento” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 694).

40
Adair Bonini

que exige todo um esforço de seleção, com a proposição de critérios e a


análise de um corpus bem maior até se chegar aos textos efetivos da
pesquisa. Outra dificuldade enfrentada é a de material bibliográfico. Os
gêneros menos evidentes apresentam pouca ou nenhuma discussão prévia.
Desse modo, no estudo de gêneros como o cineminha, a galeria e o
storyboard, por exemplo, pode-se contar, no máximo, com definições de
dicionários de comunicação e de manuais de estilo dos jornais.
Os gêneros estudados até o momento mostram papéis distintos na
constituição do jornal. Alguns deles, como a notícia, a reportagem e a nota,
ocorrem em praticamente todos os cadernos, enquanto outros, como a carta
do leitor, a tira, a crítica de cinema, se restringem a um espaço específico
dentro do jornal.

4. Considerações finais

As pesquisas no PROJOR têm em vista resultados que favoreçam o


ensino dos gêneros do jornal na educação básica e superior. Outra meta
dessas pesquisas é levantar questões e problemas que possam servir de base
para a discussão e futuras pesquisas sobre esses gêneros. Os estudos
realizados até o momento já permitem visualizar aspectos que contemplam
essas duas metas.
As problematizações desencadeadas por tais estudos, a exemplo da
relação entre o jornal e seus gêneros, mediante o conceito de hipergênero,
colocam questões para o ensino desses textos, à medida que a sua produção
em ambiente escolar, por exemplo, passa por uma reflexão sobre essas
fronteiras e sobre as práticas que as constituem. Essas mesmas questões
também se revelam temas para estudos e para a reflexão teórica sobre o
gênero como objeto de pesquisa.
Em uma etapa posterior do PROJOR, vai se somar a esse projeto,
um outro que terá como objetivo a elaboração didática desses conteúdos.
Os resultados do PROJOR, portanto, devem naturalmente desembocar em
um projeto sobre a produção e o ensino-aprendizagem do jornal escolar.

41
As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros...

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Adair Bonini

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45
DISCURSO E SOCIEDADE: A PERSPECTIVA
DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO
E DA LINGÜÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL
Débora de Carvalho Figueiredo
Maria Ester W. Moritz

1. Introdução

A análise do discurso surgiu, nos anos 70, a partir das contribuições


de várias outras disciplinas, como a antropologia, a lingüística, a sociologia
e a psicologia. Segundo Caldas-Coulthard, “os primeiros estudos assim
chamados discursivos preocupavam-se com a descrição de formas da
interação oral e escrita” (2008, p. 27). Desde então a área vem se
desenvolvendo dos dois lados do Atlântico, em países como a Inglaterra, a
França, os EUA e, mais recentemente, o Brasil, utilizando uma variedade
de abordagens teóricas e métodos descritivos, como a análise da conversa e
a análise textual.
Neste mesmo período cresceu também, no campo dos estudos
aplicados da linguagem, a preocupação com a relação entre linguagem e
sociedade, especialmente a partir do trabalho de Michael Halliday (1970,
1978, 2004) sobre a lingüística sistêmico-funcional, autor que “iniciou a
interpretação crítica dos discursos quando propôs que a linguagem é uma
semiótica social” (CALDAS-COULTHARD, 2008, p. 27).
Com a adoção da abordagem sistêmico-funcional como base
lingüística para muitos trabalhos em análise do discurso, podemos dividir
as pesquisas nessa área em dois grandes grupos, de acordo sua orientação
social: aquelas de abordagem não-crítica e as de abordagem crítica. O
primeiro grupo inclui pesquisas de natureza basicamente descritiva sobre os
usos da linguagem, enquanto que o segundo inclui trabalhos que buscam,
além de descrever as práticas discursivas utilizadas em diferentes contextos
sociais, investigar e interpretar os modos como “o discurso é condicionado
por ideologias e relações de poder” (CALDAS-COULTHARD, 2008, p.
28).
Este segundo grupo de pesquisas inclui a Lingüística Crítica
iniciada no final dos anos 70 por Fowler et alii (1979), a Semiótica Social
(HODGE; KRESS, 1988), os estudos sobre a multimodalidade (KRESS;
Discurso e sociedade...

VAN LEEUWEN, 1996, 2001), a abordagem proposta por Pêcheux (1992),


os trabalhos em Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1989, 1992,
1995, 2003, 2006), e os trabalhos sobre Linguagem e Gênero (CAMERON,
1992, 1995, 2002; SUNDERLAND, 1994; HEBERLE, 2000; ECKERT;
MCCONNELL-GINET, 2003; HEBERLE; FIGUEIREDO; OSTERMAN,
2006).
Dentro dessa linha de trabalhos de orientação discursiva crítica,
este artigo tem dois objetivos básicos: 1) apresentar uma visão panorâmica
da Análise Crítica do Discurso, uma abordagem teórico-metodológica
voltada para a investigação do papel do discurso, ou da semiose, na
constituição de visões de mundo, de relações sociais e de identidades
sociais; e 2) descrever os projetos e trabalhos de pesquisa desenvolvidos no
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL), da
Unisul, que se filiam à ACD e que, como grande parte dos trabalhos nessa
área, adotam a Lingüística Sistêmico-Funcional como base teórica e
analítica para a investigação de textos em situações concretas de uso e suas
ligações com as práticas e as estruturas sociais mais amplas.
Para tanto, o artigo está organizado nas seguintes seções: 2)
Fundamentação teórica e metodológica da análise do discurso de linha
crítica; 3) Estudos discursivos críticos no Brasil; 3.1) ACD e LSF no
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da
Unisul; e 4) Contribuições dos trabalhos realizados no PPGCL para os
campos da ACD e da LSF.

2. Fundamentação teórica

2.1 Análise Crítica do Discurso: abordagem transdisciplinar para


estudos críticos da linguagem

Segundo Ramalho, a ACD constitui “uma abordagem científica


transdisciplinar para estudos críticos da linguagem como prática social”
(2008, p. 44). Essa abordagem está inserida na tradição das “ciências
sociais críticas”, que desenvolvem pesquisas que possam oferecer suporte
científico a questões sociais relacionadas ao poder, à descriminação, à
exclusão social, à justiça, à cidadania, etc. Como abordagem
transdisciplinar, a ACD rompe fronteiras epistemológicas com diversas
áreas das ciências sociais, valendo-se de teorias delas provindas para apoiar
sua abordagem sociodiscursiva, ao mesmo tempo em que oferece as/aos

48
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

cientistas sociais a possibilidade de acrescentar um viés discursivo a suas


investigações.
Como ciência crítica, o foco da ACD são os efeitos ideológicos que
os eventos discursivos (ou textos, num sentido amplo) exercem sobre
nossas formas de nos relacionarmos e agirmos socialmente, nossas formas
de ser (ou nossas identidades), e nossos sistemas de valores, crenças e
atitudes. Na perspectiva crítica de Thompson (2002), a ACD investiga
como o discurso, e os sentidos textuais, atuam “a serviço de projetos
particulares de dominação e exploração, que sustentam a distribuição
desigual de poder [na sociedade]” (RAMALHO, 2008, p. 45).
Uma das premissas básicas da ACD é que texto e discurso não
podem ser dissociados das práticas sociais. Chouliaraki e Fairclough (1999)
argumentam que nem toda interação social tem um caráter discursivo, mas
a maior parte das interações depende substancialmente do discurso,
justificando focalizá-lo como forma de interpretar as interações sociais.
Toda prática social é tanto produtiva quanto reflexiva, isto é, toda prática
inclui pessoas envolvidas em relações sociais aplicando tecnologias a
materiais, mas também inclui representações dessa prática como parte
integrante da própria prática. O discurso participa das práticas sociais de
duas formas: as práticas são parcialmente discursivas (na medida em que
falar, escrever, ler e ouvir são formas de ação), mas também são
discursivamente representadas. Se essas representações auxiliarem a
manutenção de relações de dominação dentro das práticas, elas podem ser
chamadas de ideológicas.
A versão atual da ACD (FAIRCLOUGH 2003a, 2006) se baseia
em uma perspectiva da semiose entendida como parte inseparável dos
processos sociais materiais. A vida social é vista como uma série de redes
interligadas de práticas sociais de diferentes tipos (econômicas, políticas,
culturais, etc.), e cada uma dessas práticas tem um elemento semiótico.
Uma prática social é, por um lado, uma forma relativamente
permanente de atuar no social, definida, por um lado, como parte de uma
rede estruturada de práticas e, por outro, como um domínio/campo de ação
e interação social que, além de reproduzir as estruturas, possui também o
poder de transformá-las. Todas as práticas são práticas de produção, uma
vez que constituem os cenários nos quais se reproduz a vida social, sejam
elas de caráter econômico, político, cultural ou cotidiano. A prática social,
na perspectiva da ACD, é formada pelos seguintes elementos, distintos,
porém não completamente discretos ou separados (FAIRCLOUGH,
2003b):

49
Discurso e sociedade...

• Atividade produtiva
• Meios de produção
• Relações sociais
• Identidades sociais
• Valores culturais
• Consciência
• Semiose

O foco atual da ACD é a análise das relações dialéticas entre a


semiose (incluindo a linguagem) e outros elementos das práticas sociais.
Mais especificamente, os trabalhos dentro dessa abordagem se centram nas
mudanças radicais que têm ocorrido na vida social contemporânea, no
papel da semiose em processos de mudança, e nas mudanças na relação
existente entre a semiose e outros elementos não-semióticos das redes de
práticas sociais. Segundo Fairclough (2003b), o papel da semiose nas
práticas sociais não pode ser tomado como dado, mas precisa ser
estabelecido através da análise.
De modo geral, a semiose participa de três formas nas práticas
sociais. Primeiro, como parte da atividade social, a semiose constitui os
gêneros textuais, ou formas semióticas relativamente estáveis de ação e
interação social. A semiose, na representação e auto-representação das
práticas sociais, constitui os discursos, ou maneiras relativamente estáveis
de representar o mundo a partir de pontos de vista particulares (e.g.
discurso racista, discurso ecológico, discurso neoliberal). A semiose, na
representação das posições sociais, constitui os estilos, formas
relativamente estáveis através das quais os sujeitos sociais identificam a si
mesmos e aos demais. Segundo Ramalho, “essas maneiras de (inter-)agir,
representar e identificar(se) em práticas sociais internalizam traços de
outros momentos não-discursivos, assim como ajudam a constituir esses
momentos” (2008, p. 52).
As práticas sociais construídas de um modo concreto, em forma de
redes, constituem uma ordem social – por exemplo, a atual ordem
neoliberal e global do capitalismo tardio. O aspecto semiótico de uma
ordem social é o que podemos chamar de uma ordem de discurso. Uma
ordem de discurso é a forma como diferentes gêneros, discursos e estilos
são combinados numa rede. Trata-se de uma estruturação social das
relações entre as diferentes formas de gerar significado, isto é, de produzir

50
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

discursos, estilos e gêneros diferentes (FAIRCLOUGH, 2003b). Algumas


das formas de gerar significados são dominantes ou majoritárias numa
determinada ordem de discurso (e.g. representações do design corporal
considerado belo na contemporaneidade no discurso da mídia de massas, da
medicina e da saúde); outras são marginais, ou de oposição, ou
“alternativas” (e.g. representações corporais encontradas em contra-
discursos do corpo, como dos modificadores de corpos, dos grupos que
defendem o sobrepeso, da ‘perversão’).
Os conceitos de ideologia e de hegemonia são bastante úteis para a
análise das ordens de discurso. Segundo Fairclough, “as ideologias são
representações de aspectos do mundo que contribuem para estabelecer e
manter relações de poder, dominação e exploração” (2003a, p. 218),
enquanto que a hegemonia é “uma forma particular (associada com
Gramsci) de conceitualizar o poder e as lutas pelo poder nas sociedades
capitalistas, que enfatiza a dependência do poder do consentimento e da
aquiescência, mais do que da força, e a importância da ideologia” (2003a,
p. 218). Vale lembrar que o poder hegemônico nunca é estático ou
absoluto, sendo alvo permanentemente de lutas. Da mesma forma, uma
ordem de discurso não é um sistema fechado e rígido, mas sim um sistema
aberto que está exposto a riscos como conseqüência do que ocorre nas
interações reais. Como afirma Fairclough, “o discurso, incluindo a
dominação e a naturalização de representações particulares [...], é um
aspecto significante da hegemonia, e as lutas pelo discurso são lutas
hegemônicas” (2003a, 218).
Fairclough propõe o seguinte modelo analítico como forma de
investigar as relações existentes entre os eventos sociais, as práticas sociais
e as estruturas sociais (2003b, p.184):

a) Focalizar um problema social que tenha um aspecto semiótico.


b) Identificar seus obstáculos para poder abordá-los, através da
análise:
c) Da rede de práticas nas quais estão localizados
d) Da relação semiótica que eles mantêm com outros elementos
da prática(s) social(ais) onde se inserem
e) Do discurso (isto é, da própria semiose), o que inclui a análise
lingüística.
f) Considerar se a ordem social (a rede de práticas) depende deste
problema para existir.

51
Discurso e sociedade...

g) Identificar as possíveis formas de superar os obstáculos.


h) Refletir criticamente sobre a análise (i-iv).

2.2 A ACD e o realismo crítico

A ontologia que embasa a atual abordagem da ACD


(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003a) provém
de um diálogo transdisciplinar com o Realismo Crítico proposto pelo
filósofo Roy Bhaskar (1978, 1989, 1993, 1998). Bhaskar considera o
mundo um sistema aberto, em constante mudança, composto pelos
domínios do real, do actual e do empírico, e por diferentes estratos – o
físico, o biológico, o social, o semiótico, etc. –, que possuem estruturas e
mecanismos gerativos distintos situados no domínio do real. 13
O domínio do real corresponde a tudo que existe, natural ou social,
empírico ou não. Trata-se do domínio dos objetos, com suas estruturas,
mecanismos e poderes causais. No domínio do real, mecanismos gerativos
de diversos estratos (físico, biológico, semiótico, etc.) operam
simultaneamente com seus poderes causais, provocando efeitos sobre os
outros domínios (RAMALHO, 2008). Essa interdependência causal
significa que qualquer operação de um mecanismo gerativo de um dos
estratos é sempre mediada pela operação simultânea dos demais.
Enquanto o domínio do real corresponde às estruturas, mecanismos
e poderes causais dos objetos, o actual refere-se àquilo que os poderes
causais fazem e ao que ocorre quando eles são postos em ação. O sistema
semiótico, ou a potencialidade para significar, pode ser associado ao
domínio do real, enquanto que os sentidos do texto podem ser relacionados
com o domínio do actual (o significado em si). Dessa forma, o actual é o
domínio dos eventos, que podem ou não ser experienciados por nós,
localizado entre o domínio mais abstrato (estruturas e poderes) e o mais
concreto (eventos vivenciados). O empírico, por fim, é o domínio das
experiências efetivas, a parte do real e do actual que atores sociais
específicos vivenciam. Em outras palavras, o empírico é o que sabemos do
real e do actual, mas não esgota as possibilidades do que tenha ocorrido ou
poderia ter ocorrido (RAMALHO, 2008).
Essa concepção do social implica que não temos acesso direto ao
domínio do real, que só pode ser alcançado através de nosso conhecimento

13
Seguimos aqui a opção de manter este termo em inglês, como fez Ramalho (2008) e
outros autores em traduções brasileiras.

52
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

(crenças, valores, ideologias), ou seja, a partir do actual e do empírico.


Segundo Bhaskar, estudar o mundo ‘real’ de forma ‘objetiva’ é uma
“falácia epistêmica”, uma vez que só podemos investigar o real através do
filtro de nossas experiências, assim como é reducionista e falacioso
considerar que o mundo é constituído apenas pelo que vivenciamos, ou
seja, pelo domínio do empírico. Esse é um ponto fundamental de ligação
entre a ontologia crítica de Bhaskar e a abordagem da ACD: ambas
apontam a impossibilidade de pesquisas “objetivas” em análise do discurso,
que teriam acesso à “realidade”. Entretanto, apesar de admitir a
impossibilidade de análises objetivas do ‘real’, o trabalho de análise
textual, como parte da análise discursiva crítica, “é científico porque
conjuga compreensão, descrições e interpretações de propriedades do texto,
e explanação, processo situado entre conceitos e material empírico, em que
propriedades de textos particulares são ‘redescritas’ com base em um
arcabouço teórico particular” (RAMALHO, 2008, p. 48).
A partir dessa perspectiva, chega-se à premissa de que o discurso
tem efeitos na vida social, mas esses efeitos não podem ser investigados
somente com base no aspecto discursivo das práticas sociais. A lógica da
ACD é relacional/dialética, ou seja, “orientada para acessar como o
momento discursivo funciona dentro da prática social, do ponto de vista de
seus efeitos sobre lutas pelo poder e relações de dominação”
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 67). Assim, o foco da
abordagem proposta pela ACD não está na estrutura social, fixa e abstrata,
nem nas ações individuais, flexíveis e concretas, mas sim na entidade
intermediária entre esses dois níveis: as práticas sociais.
Nessa concepção de construção do social, “sociedades” e
“indivíduos”, ou estruturas (“conjuntos de regras e recursos implicados, de
modo recursivo, na vida social”) e agência humana (“capacidade das
pessoas para realizar as coisas”), não são redutíveis uns aos outros, mas são
causalmente interdependentes (GIDDENS, 2003, p. 10). Isso é o que
Giddens chama de “dualidade da estrutura” – a propriedade da estrutura
social ser tanto meio para a agência humana quanto resultado da ação que
ela recursivamente organiza (RAMALHO, 2008, p. 49).
Em resumo, a relação entre estrutura e agência é dual: a estrutura é
tanto condição, ou causa material, para a ação humana, quanto é resultado
da atividade humana que, por sua vez, produz e reproduz as estruturas
sociais. Assim, podemos afirmar que os seres humanos não criam
estruturas, mas as reproduzem à medida que as utilizam em suas atividades
(BHASKAR, 1998; RAMALHO, 2008). Nas palavras de Ramalho,

53
Discurso e sociedade...

[...] ação e estrutura constituem-se transformacional e


reciprocamente, de maneira que uma não pode ser separada
da outra, ou mesmo reduzida à outra. Em práticas sociais,
agentes individuais se valem da estrutura social,
(re)articulando mecanismos e poderes causais, e a
(re)produzem, gerando no mundo efeitos imprevisíveis.
(2008, p. 50).

2.3 A lingüística sistêmico-funcional

A lingüística sistêmico-funcional (LSF), desenvolvida por


Halliday, é tanto uma teoria da linguagem quanto um método de análise de
textos e seus contextos de uso. Devido a essa natureza dual, a LSF objetiva
explicar como os indivíduos usam a linguagem e como a linguagem é
estruturada em seus diferentes usos (EGGINS, 2004). Adotando uma visão
multifuncional da linguagem, ou seja, de que a linguagem é como é para
realizar as funções sociais a que serve, a LSF divide os significados
realizados pelos textos em três tipos: ideacionais, interpessoais e textuais.
De acordo com essa perspectiva, a linguagem é considerada sistêmica
porque consiste de um conjunto de sistemas de escolhas, em que cada
sistema oferece ao falante/escritor uma variedade de maneiras para
expressar o significado proposto, e é funcional porque serve a propósitos
funcionais. Os aspectos funcionais da linguagem são expressos,
simultaneamente, nos três tipos de significados citados anteriormente.
Os significados experienciais relacionam-se com o modo com que a
linguagem é usada para representar nossas experiências e o modo como
vemos o mundo. Esses significados são realizados através do sistema da
transitividade que, por sua vez, é representado como uma configuração de
um processo (realizado por um grupo verbal), os participantes envolvidos
(manifestos por grupos nominais) e suas circunstâncias (geralmente
expressas por grupos adverbiais).
A transitividade é realizada por três tipos principais de processos
(MARTIN; MATHIESSEN; PAINTER, 1997, p. 102), cada qual associado
a certos papéis dos participantes. Os processos materiais são processos de
fazer, agir. O participante obrigatório que “faz” a ação é chamado de Ator.
O outro participante, opcional, é chamado de “meta”, aquele que recebe a
ação. Os processos verbais são processos de dizer, nos quais o participante
principal é chamado de dizente. Os processos relacionados com o pensar ou
sentir são chamados de processos mentais. O experienciador é o
participante que sente, pensa e percebe, enquanto que o fenômeno é o
participante sentido ou percebido. O quarto tipo de processo é o relacional.

54
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

As orações relacionais, de acordo com Martin, Mathiessen e Painter (1997),


“constroem seres” (p. 106). Esse tipo de processo relaciona o principal
participante a uma identidade (identificador) ou a um atributo (portador).
Os significados interpessoais são realizados pelos sistemas de
modo e de modalidade. O modo relaciona-se com a troca de informações e
de bens e serviços. Quando trocamos informação, a oração toma a forma de
uma proposição, enquanto que quando trocamos bens e serviços a oração é
chamada de proposta. A partir da perspectiva interpessoal, a oração contém
um elemento do modo que consiste de duas partes: o sujeito (grupo
nominal) e o finito (operador verbal). Uma parte essencial do finito (finite)
é a polaridade: as orações podem ser positivas ou negativas. Entretanto,
entre esses dois pólos há posições intermediárias chamadas de modalidade,
pela qual podemos expressar a probabilidade ou habitualidade das
proposições através da modalização, e o grau de obrigação ou inclinação
das propostas através da modulação (HALLIDAY, 2004).
O significado textual relaciona-se a maneira na qual o texto é
organizado em relação ao seu contexto e à sua mensagem. As orações
vistas como mensagens projetam os significados textuais através do sistema
de Tema/Rema, que diz respeito ao ponto de partida da mensagem (Tema)
e sua continuidade (Rema) na organização sintática.
A análise textual de natureza sistêmico-funcional aponta evidências
micro-textuais de certas práticas sociais, permitindo à/o analista do
discurso, entre outras coisas, revelar os interesses ocultos da/os
escritores/as/falantes e dos textos que eles/as produzem.

2.4 ACD e LSF

A análise discursiva proposta pela ACD envolve, inicialmente, a


descrição e interpretação do texto dentro do contexto situacional mais
imediato do evento discursivo no qual ele foi produzido, procurando então
explicá-lo dentro do contexto institucional (a rede de práticas sociais) e
social mais remoto no qual esse evento discursivo e essas práticas sociais
estão inseridos. A ACD está baseada na noção de que o uso da linguagem,
ou discurso, é um modo de ação social e historicamente situado, numa
relação dialética com outros aspectos do social – ou seja, ele é formado
socialmente, mas também forma o social. Para a teria social do discurso, o
uso da linguagem simultaneamente constitui (i) identidades sociais, (ii)
relações sociais, e (iii) sistemas de conhecimento e crença
(FAIRCLOUGH, 1992).

55
Discurso e sociedade...

Esses três aspectos constitutivos do discurso estão ligados à


Lingüística Sistêmica Funcional (LSF), a teoria lingüística de base para a
ACD. Segundo Fairclough, a LSF é bastante adequada para a ACD por
estar “profundamente interessada na relação entre linguagem e outros
elementos e aspectos da vida social, e [por] sua abordagem à análise
lingüística de textos [ser] sempre orientada para o caráter social dos textos”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 5).
Assim como Halliday vê a linguagem como multifuncional,
Fairclough também vê os textos como multifuncionais, embora de forma
distinta – i.e., segundo esse último autor, os textos refletem e constroem
formas de representar, formas de agir e formas de ser, estando ligados ao
evento social no qual são gerados, aos participantes desse evento, e ao
mundo físico e social mais amplo. Nessa perspectiva, Fairclough (2003)
prefere falar não em funções exercidas pelos textos, mas em diferentes
significados que eles criam, reproduzem ou alteram. Segundo o autor, os
três grandes grupos de significados textuais são:

a) representacionais: correspondem à metafunção ideacional de


Halliday.
b) acionais: correspondem à metafunção interpessoal de Halliday.
Ao investigarmos os significados acionais de um texto nosso
foco está na forma como esse texto atua como meio de
interação em eventos sociais, englobando as relações entre os
participantes (i.e. os textos desempenham relações sociais).
c) identitários: também correspondem à função interpessoal de
Halliday, embora Halliday não distinga entre as funções
relacionais e identitárias da linguagem. Para Fairclough, por
outro lado, o que Halliday chama de função interpessoal é
dividida em dois grupos de significados: os acionais, relativos
às relações sociais estabelecidas via texto, e os identitários,
relativos às formas de ser, às identidades sociais construídas
pelos textos. 14

Esses três grupos de significados estão presentes simultaneamente


em qualquer texto. A divisão apresentada acima tem apenas fins

14
Quanto à terceira metafunção hallidayana, a textual, Fairclough não distingue um grupo
de significados textuais separadamente, mas os inclui nos significados acionais (2003).

56
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

organizacionais. Segundo Fairclough, “focalizar a análise textual na


interação entre significados representacionais, acionais e identitários nos
permite acrescentar uma perspectiva social aos pequenos detalhes do texto”
(2003, p. 27-8).
Cruzando a visão do discurso como constitutivo da sociedade com
os três grupos de significados textuais identificados por Fairclough e com
as metafunções textuais propostas por Halliday, teríamos o seguinte:

Aspectos do social Significados textuais Metafunções


constituídos (em parte) (FAIRCLOUGH, 2003a) hallidayanas
pelo discurso (HALLIDAY, 2004)
Sistemas de Representacionais Metafunção ideacional
conhecimento e crença
Relações sociais Acionais Metafunção interpessoal
Identidades sociais Identitários Metafunção interpessoal
Quadro 1: Cruzamento da visão social da linguagem segundo a ACD e a LSF

3. Estudos discursivos críticos no Brasil

A ACD chegou ao Brasil no início dos anos 1990, com os trabalhos


pioneiros das pesquisadoras Carmen Rosa Caldas-Coulthard, na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Izabel Magalhães, na
Universidade de Brasília (UnB). Outro marco da inserção de pesquisadores
brasileiros nessa área foi a publicação, em 1996, do livro Texts and
practices: readings in critical discourse analysis, editado por Carmen Rosa
Caldas-Coulthard e Malcolm Coulthard. Atualmente, pesquisas ancoradas
na abordagem da ACD e da LSF vêm sendo desenvolvidas em programas
de pós-graduação na área das ciências da linguagem em diversas
universidades brasileiras, como a UFSC, a UnB, a UFMG, a PUC-SP, a
UERJ, a UFSM, e a UNISUL. Em termos de eventos específicos na área,
desde 2005 vem sendo realizado bienalmente no Brasil o Simpósio
Internacional de Análise Crítica do Discurso, e em outubro de 2008 foi
realizado, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o 4º.
Congresso da Associação de Lingüística Sistêmico-Funcional da América
Latina, ligado à ISFLA (International Systemic Functional Linguistics
Association).

57
Discurso e sociedade...

3.1 ACD e LSF no Programa de Pós-Graduação em Ciências da


Linguagem (PPGCL) da Unisul

Desde 2002, a ACD e a LSF têm servido como teorias lingüístico-


discursivas de base para projetos de pesquisa realizados no PPGCL. Dois
projetos já foram concluídos, conduzidos por Débora de Carvalho
Figueiredo. O primeiro consistiu em um projeto guarda-chuva dividido em
duas etapas. A primeira etapa, intitulada “Análise crítica do Discurso I –
Questões de gênero e poder no discurso educacional, corporativo e da
mídia” (2002-2005), investigou questões de poder e gênero social
construídas, mediadas e modificadas pelas práticas discursivas em
ambientes institucionais diversos, como a escola de ensino fundamental, a
universidade privada, o sistema jurídico, a empresa e a mídia. Mais
especificamente, foram investigados os seguintes temas: a interlocução
entre professores de LM, as novas teorias sobre o professor reflexivo, os
PCNs e as propostas curriculares municipais; as estratégias discursivas
utilizadas por uma empresa petrolífera para construir um discurso pós-
moderno de responsabilidade social; o impacto dos cursos de formação
continuada sobre as representações dos professores de inglês da rede
pública; as implicações da entrada do discurso comodificado em uma
universidade privada, em termos de identidades e relações entre alunos,
professores e gestores; as possibilidades de aplicação do modelo teórico-
metodológico da ACD para a análise de textos midiáticos, inclusive na sala
de aula de línguas; e as representações de gênero social em acórdãos de
casos de estupro. Nessa primeira etapa foram produzidas quatro
dissertações de mestrado (TORIZANI, 2005; SANTOS, 2006; BUENO DE
OLIVEIRA, 2006; OLIVEIRA, 2006), um número especial de periódico
(CALDAS-COULTHARD; FIGUEIREDO, 2004), três artigos científicos
(FIGUEIREDO, 2004a, 2004b, 2005b) e participações em eventos.
Na segunda etapa do projeto, intitulada “Análise crítica do
Discurso II – Questões de gênero e poder nos discursos da publicidade e da
polícia” (2005 – 2006), pautada ainda pelas linhas teóricas e metodológicas
da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH 1992, 2001, 2002, 2003),
da Lingüística Sistêmica Funcional (HALLIDAY, 2004), dos Estudos de
Gênero (CAMERON, 2002; SUNDERLAND, 1994; HEBERLE, 2000;
HEBERLE; FIGUEIREDO; OSTERMAN 2006), e dos Estudos Culturais
(HALL, 1997; GIDDENS, 1991; GIDDENS, BECK; LASH 1995;
MATTELART; NEVEU, 2003), os trabalhos realizados envolveram a
análise de relações de poder e de gênero no discurso da Polícia Civil sobre

58
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

as Delegacias da Mulher, no discurso publicitário e no discurso sobre o


trabalho. Os objetivos do projeto foram os seguintes: 1. descrever algumas
das práticas discursivas que ocorrem em organizações e discursos sociais
diversos; 2. interpretar e explicar como essas práticas discursivas estão
ligadas a processos sociais mais amplos. Nessa segunda etapa foram
produzidas duas dissertações de mestrado (CARVALHO, 2006;
SCARDUELI, 2006), um livro (HEBERLE; OSTERMANN;
FIGUEIREDO, 2006), três artigos científicos (FIGUEIREDO, 2005c,
2005d, 2006) e participações em eventos.
Atualmente, há dois projetos em andamento, cujas bases teórico-
metodológicas são a ACD e a LSF. O primeiro deles, sob o comando de
Débora de Carvalho Figueiredo, intitula-se “A representação das
transformações corporais e identitárias pós-modernas nos discursos
midiáticos”. Com as mudanças tecnológicas e sociais dos tempos pós-
modernos, o sentido de identidade individual e social se fragmenta
diariamente. Mulheres são especialmente afetadas, já que suas maneiras de
ser e de se apresentar ao mundo são ameaçadas por discursos persuasivos
que impõem e valorizam certos ‘estilos de vida’ enquanto desvalorizam ou
excluem outros. Seus corpos se tornam um ‘lócus’ de comodificação nos
discursos, da propaganda, do tratamento do corpo, nas práticas de
emagrecimento, nas academias de ginástica e na cirurgia plástica. Na
cultura de consumo, a mulher é constantemente ‘informada’ que deve ser
eternamente jovem, magra e bonita. Ao manipular (e muita vezes mutilar)
seu corpo, a mulher pós-moderna se transforma e, desta forma, medeia a
relação entre a sua identidade própria e uma identidade social imposta pela
sociedade de consumo. A manutenção de um (im) possível corpo perfeito é
construída através de muito sofrimento. Assim como, ao longo da história,
as mulheres aprenderam a disciplinar seus corpos com espartilhos, cintas,
sapatos que deformavam os pés, roupas íntimas modeladoras (e.g. wonder
bra, calcinhas com enchimentos), na tentativa de alcançar o modelo
hegemônico corrente de corpo belo feminino, na modernidade tardia elas
podem recorrer à ciência e à tecnologia para operar essa modelagem e
controle de forma mais definitiva, porém mais dolorosa, através do bisturi,
dos implantes, da lipoaspiração, das injeções de botox ou de colágeno.
Dentro desse quadro de mudanças corporais constantes e, muitas vezes,
radicais, esse projeto investiga, com base nos construtos teóricos e
metodológicos da Análise Crítica do Discurso, da Lingüística Sistêmica
Funcional, dos Estudos de Gênero, e dos Estudos Culturais, como a mídia
representa as transformações que o corpo feminino tem sofrido a partir do

59
Discurso e sociedade...

final do século XX, e como as identidades femininas tem sido impactadas


por essas representações.
Os objetivos específicos desse projeto são:

a) coletar um corpus de textos midiáticos, provenientes de


diferentes suportes (revistas femininas, jornais, páginas da web,
panfletos, e-mails, etc.) e em diferentes gêneros textuais
(artigos, propagandas, entrevistas, notas, narrativas,
correspondência eletrônica, etc.), que tratem das
transformações corporais e identitárias abertas para as mulheres
na pós-modernidade;
b) investigar como esses textos representam as transformações
corporais da pós-modernidade, os novos modelos de corpos e
os novos estilos de vida, especialmente sob o impacto de
técnicas disciplinares como o vestuário, as dietas alimentares,
os exercícios físicos e as cirurgias plásticas cosméticas;
c) interpretar e explicar como os novos modelos de corporeidade
apresentados na mídia de massa no terceiro milênio, as técnicas
de controle utilizadas para construir esses modelos corporais, e
conseqüentemente as novas possibilidades de construção
identitária abertas para os indivíduos, estão ligados ao discurso
promocional, ao fenômeno da comodificação do discurso, e à
cultura de consumo.

Dentro desse projeto foram produzidas três dissertações de


mestrado (SILVA, 2007; MELLO, 2008; DAUFEMBACK, 2008),
havendo duas outras em andamento. Também foram produzidos cinco
artigos científicos (FIGUEIREDO, no prelo 1 e 2, 2008a, 2008b, 2005a), e
participações em eventos.
O segundo projeto, “Gêneros acadêmicos”, sob o comando de
Maria Ester W. Moritz, propõe a investigação de diferentes gêneros
acadêmicos – em língua portuguesa e em língua inglesa – de modo a
entender como esses gêneros são produzidos e consumidos e a facilitar a
participação ativa de membros (ou futuro membros) (SWALES, 1990)
nessa comunidade. Dessa forma, o projeto analisa a organização macro e
micro estrutural dos gêneros mais comumente usados pela comunidade
acadêmica universitária (e.g. artigo, resenha, ensaio). Para a análise macro-
estrutural, verifica-se a organização retórica dos textos com base nos

60
Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz

princípios de estudos de gêneros propostos por Swales (1990). Para a


análise micro-estrutural, utiliza-se a gramática sistêmico-funcional
hallidayana (1994), com foco na modalidade, dimensão que corresponde à
função interpessoal da linguagem.
São objetivos do projeto:

a) identificar os gêneros produzidos e consumidos pela


comunidade universitária acadêmica;
b) identificar o padrão de organização retórica desses gêneros;
c) investigar os significados interpessoais que permeiam as
práticas discursivas dos autores dos textos;
d) identificar possíveis semelhanças e/ou diferenças, tanto no
nível micro quanto no nível macro estrutural, entre textos
escritos em português como língua nativa e em inglês como
língua nativa e como língua estrangeira.

4. Um diálogo entre os trabalhos realizados no PPGCL e os campos da


ACD e da LSF

A ACD, ao conceber o discurso como parte inseparável dos


processos sociais materiais e, ao centrar seu foco na análise das relações
dialéticas entre a semiose (incluindo a linguagem verbal) e outros
elementos das práticas sociais, oferece construtos teóricos e metodológicos
que permitiram, no PPGCL, a produção de diversos trabalhos (dissertações,
artigos, etc.) que investigaram as mudanças radicais que têm ocorrido na
vida social contemporânea em distintos contextos sociais, como a escola, a
universidade, a mídia de massa e a indústria cultural, e o papel da semiose
nesses processos de mudança.
Por outro lado, as pesquisas realizadas dentro dos projetos descritos
anteriormente (seção 3.1) contribuíram para expansão da ACD e da LSF
como novas áreas de pesquisa discursiva crítica no Brasil, apresentando
evidências de como os textos refletem, constroem, reforçam ou alteram
relações de poder, de exclusão e de dominação social, tanto no contexto
mais restrito dos eventos discursivos no qual são produzidos, consumidos e
distribuídos, quanto no nível das práticas sociais (ordens de discurso) da
qual fazem parte, quanto no nível mais amplo e abstrato das estruturas
sociais.

61
Discurso e sociedade...

Além de contribuir para o campo das pesquisas discursivas de


orientação crítica, em especial para as abordagens da ACD e da LSF, os
trabalhos realizados nessa linha no PPGCL também tiveram e têm
dimensões políticas e sociais. Como quase todos os integrantes dos projetos
de pesquisa acima citados são professores de língua (L1 ou L2), atuando
em diferentes níveis de ensino (fundamental, médio e superior) e em
diferentes tipos de instituições educativas (privadas, públicas, fundacionais,
escolas livres de idiomas, etc.), esses novos pesquisadores e educadores
passaram a compartilhar com seus alunos, através da análise da linguagem
como prática social, uma teoria crítica do discurso capaz de auxiliá-los em
processos de conscientização, emancipação e empoderamento.

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66
TEORIA DA RELEVÂNCIA
E CIÊNCIAS DA LINGUAGEM:
ESTADO DA ARTE, EVOLUÇÃO E TENDÊNCIAS
Fábio José Rauen

1. Introdução

As pesquisas em teoria da relevância, desenvolvidas no Programa


de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul, originaram-se do
meu contato com o livro: Pragmática e cognição: a textualidade pela
relevância de Jane Rita Caetano da Silveira e Heloísa Pedroso de Moraes
Feltes (1999). Fruto do trabalho pioneiro do grupo de pesquisa capitaneado
por Jorge Campos da Costa (PUC/RS), a obra inspirou meus primeiros
trabalhos e os de meus primeiros orientandos, e constitui leitura essencial
para primeiras incursões nesse campo.
Não sem motivo, Silveira e eu organizamos, em 2005, um número
especial do quinto volume de Linguagem em (Dis)curso sobre teoria da
relevância. Foi nessa época que estabeleci contato com as pesquisas de
Fábio Alves (UFMG) e José Luiz Vila Real Gonçalves (UFOP) na interface
com os estudos da tradução. Além de dois textos próprios, dos textos de
Alves e Gonçalves, participaram também dessa edição os trabalhos de
Luciano Klöckner, Marcos Souza, Jorge Campos da Costa e Ana Ibaños.
Nesse número, nós tivemos a oportunidade histórica de traduzir
dois textos de Sperber e Wilson: o Posfácio da edição de 1995 de
“Relevância: comunicação & cognição”, até então inédito em língua
portuguesa; e o texto Teoria da relevância, que sintetiza o desenvolvimento
da teoria no decênio 1995-2004.
Resultado dessa interação e motivado pelo texto de Jorge Campos
da Costa publicado nesse número especial, participei de estágio de pós-
doutorado na PUC/RS, discutindo aspectos do princípio cognitivo de
relevância, dos quais surgem as noções das variáveis de moderação
apresentadas na seção 3.1 deste capítulo.
Este ano, Jorge Campos da Costa e eu estamos organizando um
livro bilíngüe, português/inglês, intitulado: Tópicos sobre teoria da
relevância. Nessa obra, estamos apresentando o estado da arte na pesquisa
nesse campo.
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

Participam desse projeto: Fábio Alves (UFMG), José Luiz Vila


Real Gonçalves (UFOP), Fábio Rauen (Unisul), Heloísa Pedroso de
Moraes Feltes (UCS) Jorge Campos da Costa, Ana Ibaños, Jane Rita
Caetano da Silveira e Cristina Perna (PUC/RS).
Na Unisul, estudos de relevância de ordem textual-discursiva vêm
sendo abrigados no grupo de pesquisa Práticas sociais e tecnologias
discursivas e na linha de pesquisa Textualidade e práticas discursivas.
Atualmente, desenvolvo dois projetos. O primeiro, intitulado Pragmática,
cognição e interação, analisa aspectos cognitivos e interacionais da
comunicação humana. O segundo, intitulado Teoria da relevância II:
práticas de leitura e produção textual em contexto escolar, aplica a teoria
em contextos de leitura e produção textual em ambiente escolar.
Para dar conta do estado de arte e apresentar perspectivas de
evolução e tendências da pesquisa em relevância na Unisul, dividi este
capítulo em quatro seções. Na primeira, apresento conceitos centrais da
teoria; nas duas seções seguintes, apresento pesquisas desenvolvidas e em
andamento; e, na quarta seção, teço considerações finais.

2. Conceitos centrais

Conforme a teoria da relevância, ostensão e inferência são duas


propriedades conjugadas e indissociáveis na comunicação humana. Um
falante/escritor comunica ostensivamente quando produz um estímulo que
torna uma intenção informativa mutuamente manifesta, para o
falante/escritor e para o ouvinte/leitor. Um enunciado é uma evidência
direta ou ostensiva da intenção informativa do falante/escritor. Cabe ao
ouvinte/leitor construir suposições inferenciais com base nessas evidências.
Sperber e Wilson (1986, 1995) e Carston (1988) defendem que a
compreensão de enunciados pode ser descrita e explicada em três níveis
representacionais: o nível da forma lógica, dependente da decodificação
lingüística; o nível da explicatura, dependente do desenvolvimento da
forma lógica por processos inferenciais de natureza pragmática; e o nível da
implicatura, que é uma inferência pragmática que decorre da explicatura.
Nesse contexto, a decodificação dos inputs lingüísticos constitui
um dos processos modulares subsidiários aos mecanismos centrais do
pensamento, conforme Fodor (1983), pois eles possuem traços reflexos e
automáticos caracterizadores dos sistemas perceptuais. Uma das funções
desses sistemas é converter representações sensoriais em representações

68
Fábio José Rauen

conceituais, dentre as quais interessam as propriedades lógicas à cognição.


Sperber e Wilson (1995, p. 72) definem a forma lógica de um enunciado
como um “conjunto estruturado de constituintes que subjazem operações
lógicas formais determinadas por sua estrutura”.
Para ilustrar, observe-se a resposta de uma fonoaudióloga à
professora de um estudante disléxico chamado Lucas. 15

(1a) Professora: Lucas conseguiu superar seu déficit


fonológico?
(1b) Fonoaudióloga: Ele fez uma terapia e lê textos simples.

O enunciado (1b) conforma-se na forma lógica (1c):

(1c) (fazer x, y) ∧ (ler x, y).

As formas lógicas podem ser proposicionais ou não. As primeiras


são sintaticamente bem formadas e semanticamente completas; as segundas
são sintaticamente bem formadas, mas semanticamente incompletas. No
processo de compreensão, os seres humanos são capazes de enriquecer
formas lógicas incompletas por operações pragmáticas, tais como, as de
atribuição de referência, desambiguação, resolução de indeterminações,
interpretação de linguagem metafórica, enriquecimento de elipses. O
produto dessas operações é a explicatura ou forma lógica proposicional.
Conforme a forma lógica (1c), é preciso preencher certas lacunas
em aberto para tornar o enunciado (1b) proposicional. A primeira
proposição do enunciado é a de que alguém (x) fez algo (y). Na função
sintática do sujeito, é preciso atribuir referente ao pronome ‘ele’. No caso, é
mutuamente manifesto na interação que o diálogo se refere a LUCAS. Além
disso, é preciso explicitar a que tipo de terapia a fonoaudióloga se refere.
Por hipótese, trata-se de uma TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA.
Na segunda proposição, a de que alguém (x) lê algo (y), é preciso
preencher a elipse do sujeito sintático do verbo ‘ler’, que é formalizada em
(1d), a seguir, por ‘Ø’: outra vez LUCAS. Além disso, é preciso atribuir
conexão temporal à conjunção ‘e’, formalizada em (1c) pelo símbolo lógico
“∧“ e em (1d), a seguir, por “e [ENTÃO]”. Supostamente, a intenção da

15
Nesta seção, valho-me de uma adaptação da revisão teórica em Rauen e Rabello (2008a).

69
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

fonoaudióloga é a de comunicar que o desempenho satisfatório na leitura de


textos simples decorre da participação de Lucas na terapia. 16
A formulação (1d) pretende capturar a forma lógica proposicional
ou explicatura do enunciado (1b). 17
Veja-se:

(1d) Ele [LUCAS] x fez uma terapia [FONOAUDIOLÓGICA] y e


[ENTÃO] Ø [LUCAS] x lê textos simples y.

A resposta (1b), explicada em (1d), não responde diretamente a


pergunta (1a) da professora sobre a superação dos déficits fonológicos de
Lucas. Para lidar com isso, é preciso recorrer ao conceito de implicatura.
Segundo rediscute a teoria da relevância, uma implicatura é uma inferência
que surge das expectativas de relevância ótima do ouvinte como uma
conclusão implicada de um cálculo dedutivo. No exemplo, a explicatura
(1d) ingressa no módulo dedutivo pressuposto pelo modelo teórico
(SPERBER; WILSON, 1995, p. 93-102), como uma premissa implicada de
uma regra dedutiva de eliminação.
Sperber e Wilson propõem duas regras de eliminação: a regra de
eliminação-e e a regra de modus ponens. No exemplo, o mecanismo
poderia, em primeiro lugar, eliminar analiticamente a conjunção das duas
proposições que compõe o enunciado (1d). A regra de eliminação-e captura
a inferência de que, havendo duas proposições tratadas como verdadeiras
num argumento conjuntivo, ambas as proposições dessa conjunção são
verdadeiras isoladamente (formalmente: P ∧ Q; P, ou: P ∧ Q; Q).
No caso, preservando a segunda proposição, se o ouvinte toma
como verdadeiro que LUCAS FEZ UMA TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA (P) e
que LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (Q), então é verdadeiro que LUCAS LÊ
TEXTOS SIMPLES (Q).

S1 – P ∧ Q;
S2 – Q.

16
Isso sugere que os processos inferenciais não se restringem à formação de implicaturas,
como defende Grice (1982), mas são requisitados para completar ou complementar a própria
forma lógica da sentença enunciada.
17
Expressões lingüísticas serão apresentadas entre aspas simples ‘Lucas’, conceitos em
versalete LUCAS e referências no mundo não receberão qualquer indicação.

70
Fábio José Rauen

S1 – LUCAS FEZ UMA TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA ∧ LUCAS LÊ


TEXTOS SIMPLES (premissa implicada do input lingüístico da
fonoaudióloga).
S2 – LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (conclusão implicada por
eliminação-e).

Em segundo lugar, o mecanismo poderia gerar uma implicatura ao


combinar o resultado da eliminação da conjunção com certa suposição da
memória enciclopédica, por meio da regra de modus ponens. Nessa regra,
em uma cadeia onde uma proposição condicional (antecedente) implica
uma conclusão (conseqüente), afirmar essa proposição condicional implica
aceitar a conclusão como verdadeira (formalmente: P; P Q; Q, ou ainda:
P; Se P então Q; Q).
No exemplo, admitindo-se como antecedente que LUCAS LÊ
TEXTOS SIMPLES, pode-se inferir que LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU
AMENIZAR SEU DÉFICIT FONOLÓGICO. Veja-se:

S1 – P;
S2 – Se P, então Q;
S3 – Q.
S1 – LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (premissa implicada que
decorre da regra de eliminação-e em (1d));
S2 – Se LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES, então LUCAS,
POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU DÉFICIT
FONOLÓGICO (por regra de modus ponens);
S3 – (1e) LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU
DÉFICIT FONOLÓGICO (conclusão implicada por afirmação do
antecedente S1).

Aplicada a regra de modus ponens, obtém-se (1e), a seguir:

(1e) LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU


DÉFICIT FONOLÓGICO.

Por hipótese, a interpretação pretendida pela fonoaudióloga é a de


que Lucas amenizou seu déficit. Ela escolhe a resposta indireta, pois aposta
que, devido ao investimento adicional para gerar a implicatura (1e), a
professora também saberá, entre outras questões: que Lucas está fazendo
terapia fonoaudiológica, lê textos simples, amenizou seu déficit porque faz
terapia fonoaudiológica, etc..

71
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

A relevância de um input ocorre por implicação, como na aplicação


da regra de modus ponens; por fortalecimento, quando uma nova
informação fornece mais evidência para uma suposição já conhecida; ou
por eliminação, quando uma nova informação contradiz uma suposição já
conhecida. Quanto maiores forem esses efeitos cognitivos obtidos, maior
será a relevância. Por outro lado, visto que a geração de efeitos requer
esforço de processamento, um input será mais relevante, na medida em que,
para alcançar esses efeitos, sejam menores os dispêndios energéticos.
Nesse cotejo, para ser obtido o que os autores denominaram de
relevância ótima, é preciso que o contexto inicial seja o mais produtivo
possível, derivando o maior número de efeitos com dispêndio de energia
minimamente justificável. Destaque-se que nenhuma suposição é relevante
em si mesma, e cotejos de relevância diferem entre indivíduos e situações.
Desse modo, Sperber e Wilson (1995, p. 140) defendem que a relevância
deva ser caracterizada de forma psicologicamente mais apropriada como
relevância para um indivíduo.
Para eles, um estímulo é um fenômeno destinado a realizar efeitos
contextuais. Portanto, para produzir um efeito cognitivo específico é
necessário produzir um estímulo que atinja o efeito pretendido, quando
processado otimamente. Em enunciados, o estímulo deve atrair a atenção
da audiência e focalizar as intenções do comunicador.
Disso emana o Princípio Comunicativo de Relevância de que “todo
ato de comunicação ostensiva comunica a presunção de sua relevância
ótima” (SPERBER; WILSON, 1995, p. 158). Um ato de comunicação
ostensiva é um requisito à atenção, que automaticamente comunica uma
presunção (inferência) de sua relevância.
Essa presunção é determinada por dois fatores: a) esforço cognitivo
nunca maior que o requerido para processá-la otimamente; e b) efeitos
alcançados por esse processamento ótimo nunca menores que o necessário
para tornar o estímulo válido de ser processado.
Numa presunção de relevância ótima, o estímulo ostensivo é
relevante o suficiente para merecer processamento, e é o mais relevante
compatível com as habilidades e preferência do comunicador (SPERBER;
WILSON, 1995, p. 270).
Diante de um estímulo otimamente relevante, é função do ouvinte a
seleção da primeira interpretação acessível e consistente com o princípio de
relevância. Assim, seguindo um caminho de menor esforço, ele chega a
uma interpretação que satisfaz suas expectativas de relevância e que, na

72
Fábio José Rauen

ausência de evidências contrárias, é a hipótese mais plausível sobre o


significado do falante. Como a compreensão é um processo de inferência
não-demonstrativo, essa hipótese pode revelar-se falsa; mas é a melhor que
um ouvinte racional pode fazer (WILSON; SPERBER, 2005).
Conhecidos os conceitos centrais da teoria, apresento, nas duas
seções seguintes, os resultados dos estudos vinculados aos dois projetos de
pesquisa que venho desenvolvendo.

3. Relevância, cognição e interação

No projeto Pragmática, cognição e interação, analiso aspectos


cognitivos e interacionais da comunicação humana, investigando peças
comunicativas do ponto de vista ostensivo-inferencial e relendo
criticamente conceitos centrais da teoria da relevância (como intenção,
relevância, representação, subjetividade, ostensão e inferência). Nesta
seção, destaco dois trabalhos próprios, bem como pesquisas orientadas
dentro do escopo desse projeto.

3.1 Variáveis de exaustão e de saturação

Em meu pós-doutorado, motivado pelo trabalho de Costa (2005),


investiguei o paradoxo da otimização da relevância versus a adesão a
rotinas estereotipadas. 18 No ensaio Sobre relevância e irrelevâncias
(RAUEN, 2008a, b), repensei a aplicação reiterada ou recursiva do
princípio cognitivo de relevância, argumentando que isso implicaria um
estado permanentemente estressante de captura de informações.
Tome-se um mundo possível, onde mecanismos cognitivos são
guiados pelo princípio de relevância, de tal sorte que sempre será relevante
o estímulo ostensivo em que o ganho cognitivo for maior do que o esforço
de processamento. Imagine-se uma dinâmica “x” reiteradamente relevante
nesse mundo possível, de tal forma que essa dinâmica gera, ad infinitum,
um efeito cognitivo a mais do que o esforço para obter esse efeito
cognitivo. Como esse mecanismo sairia desse loop ou efeito de hamster?

18
Costa (2005, p. 161-169) apresenta sete espécies de eventos comunicativos que desafiam
o princípio de relevância: os clichês amorosos, a conversa light, a cultura de massa, a
propensão de falar sobre si mesmo, o desperdício de tempo ao telefone, os cumprimentos e
contatos, e a navegação redundante na internet.

73
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

Dado que seres humanos saudáveis alternam estados tensos e


distensos, onde a cognição opera guiada ora pelos efeitos, ora pelos custos,
essa reiteração é intuitivamente incorreta. Seria então o princípio cognitivo
de relevância incorreto, justamente quando se percebe sua adequação em
incontáveis investigações? Para responder a essa questão, propus a
consideração de duas variáveis moderadoras na relação custo/benefício: a
exaustão de recursos cognitivos e a saturação de estímulos salientes.
No que se refere à exaustão, meu argumento é o de que a escassez
de recursos cognitivos inibe o investimento energético. Assim, a atuação
reiteradamente tensa do mecanismo é proibitiva, devido ao desgaste
precoce da capacidade de o organismo prover recursos energéticos para
novas demandas cognitivas. Logo, mesmo guiado pela otimização de
efeitos cognitivos, essa otimização é constringida pelo gasto energético
dispensado para a obtenção desses efeitos.
Defendo que os organismos monitoram dispêndios energéticos,
minimizando ou bloqueando desgastes excessivos. Isso é perceptível
quando, cansados, damos atenção a estímulos irrelevantes ou desistimos de
uma demanda cognitiva. Se insistirmos, nossos organismos respondem com
efeitos cada vez mais pobres, até que sobrevenha o limite de exaustão.
Desse modo, minha tese é a de que o organismo obtém efeitos cognitivos
que compensam o dispêndio energético crescente até um ótimo de Pareto.
19
Para além desse limiar, efeitos não compensam esforços.
Assim, defendo a exaustão como moderadora da relação
custo/benefício, de modo que:

[...] em igualdade de condições, quanto mais exausto estiver


o organismo, maior será o dispêndio de energia para
compensar o efeito cognitivo, minimizando a eficiência
cognitiva ou relevância de um fenômeno até um ótimo de
Pareto (RAUEN, 2008a, b).

19
Vilfredo Pareto cunhou a noção de ótimo ou eficiência de Pareto para questões
econômicas. Segundo Pareto, uma situação econômica é ótima se não for possível melhorar
a situação ou utilidade de um agente econômico sem degradar a situação ou utilidade de
outro agente econômico. Analogamente, no domínio de uma variável de exaustão, não é
possível aumentar a obtenção de efeitos cognitivos sem degradar a reserva energética do
sistema cognitivo. Ou seja, o investimento cognitivo é constringido por um limiar para além
do qual: a) os efeitos cognitivos não compensam o investimento energético; e b) o
investimento energético degrada as reservas de energia do sistema.

74
Fábio José Rauen

Considerar uma variável de exaustão gera duas conseqüências não-


triviais. Primeiro, embora um organismo possa aumentar o custo de
processamento para obter maiores efeitos cognitivos, isso deve ser
compensado pela minimização de custos, mesmo que a eficiência também
seja minimizada em termos de efeitos cognitivos. Segundo, há uma relação
inversamente proporcional entre a otimização de efeitos cognitivos em
relação ao custo de processamento, por um lado, e o tempo de investimento
de energia para a obtenção desses efeitos cognitivos, por outro. O aumento
de custo implica aumento de eficiência apenas em curto prazo e abaixo de
um ótimo de Pareto. Se capacidades energéticas moderam o princípio de
relevância, estratégias distensas devem compensar estratégias tensas,
poupando energia entre ciclos de reposição.
No que se refere à variável de saturação, refiro-me à capacidade de
insaturação de um estímulo, quando sucessivamente repetido. Ou seja, à
capacidade de um estímulo sensibilizar o organismo quando repetido
reiteradamente, de tal sorte que sua consideração gere certo efeito cognitivo
que compense o esforço cognitivo dispensado.
Quando fatigados, nossa atenção pode ser desviada a estímulos
triviais. Isso funciona, porque o conjunto de suposições conhecidas é
praticamente pleno em contextos triviais, a não ser por algum aspecto
pouco relevante, cujo dispêndio energético para obtê-lo é quase nulo. Um
conjunto de suposições conhecidas ou factuais é tratado pelo indivíduo
como certo ou quase certo. Trata-se de um conhecimento fortemente
assegurado pelo indivíduo e fortemente enraizado em sua cognição.
Nesse contexto, argumento que nenhuma suposição pode ser
considerada como maximamente ou plenamente certa, mesmo quando
gerada por um input perceptual; mas é a reiteração sucessiva de uma
suposição que a torna mais forte ou mais factual. Essa repetição é
necessária até um limiar teórico de saturação, para além do qual, uma nova
repetição da mesma suposição deixa de ser saliente e é filtrada pelo
organismo como irrelevante. Assim, há também um ótimo de Pareto para a
variável saturação, de modo que, ultrapassado esse limiar, um estímulo
novamente apresentado deixa de sensibilizar os mecanismos, pois os efeitos
cognitivos não mais compensam os esforços para a obtenção desses efeitos
cognitivos de fortalecimento mediante reiteração.
Adotar uma variável de saturação e um limiar de saturação é
importante, pois sugere uma explicação para a adesão dos seres humanos a
rotinas habituais. Para um organismo que é guiado para a relevância e
poupa recursos energéticos, é importante que o contexto seja composto do

75
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

maior número de suposições factuais ou estáveis. O modo como os seres


humanos garantem a estabilidade do mundo é percebendo as regularidades
mediante reiterações sucessivas. A percepção de regularidades os torna
capazes de tomar consciência de irregularidades relevantes.
Duas conseqüências não-triviais podem ser apresentadas. A
primeira é a de que, sendo o reforço de uma suposição uma das formas
mais econômicas de se obter um efeito cognitivo, essa estratégia deve ser
perseguida por todos aqueles que lidam com a promoção ou revisão de
hábitos. A segunda é a de que a utilização de estímulos saturados pode
produzir efeitos de relevância. Basta produzir um enunciado de baixa
relevância ou mesmo irrelevante para desviar a atenção da audiência para
outros elementos da comunicação: suposições saturadas funcionam como
background para suposições novas relevantes.

3.2 Relevância e gênero

O princípio de relevância e a variável de saturação podem ser


produtivos numa interface com estudos de gêneros textuais. Se relevância é
definida pelo cotejo de efeitos e esforços cognitivos, pode-se avaliar o
papel da produção e da recepção de gêneros específicos nessa relação.
É nessa perspectiva que analisei um exemplar de uma carta-
consulta de Simoni (2004) no ensaio Relevance and genre: theoretical and
conceptual interfaces (RAUEN, 2008c). Nessa carta, um mutuário não sabe
como registrar um imóvel comprado num contrato de gaveta, cujo titular
ele não tinha contato há anos. Veja-se o texto, cujos passos retóricos
atribuídos por Simoni (2004) estão entre colchetes.

(1) Gaveta [Citar tópico do texto].


(2) Tenho um contrato de gaveta registrado em cartório em
1985.
(3) Em meio de 1996, quitei o imóvel com o FGTS [Delinear
o cenário].
(4) A Caixa me informou agora que a proprietária do imóvel
tem que assinar o contrato de quitação.
(5) Mas há anos não tenho mais contato com ela [Apresentar
o problema].
(6) O que devo fazer [Solicitar uma solução]?
(7) Luiz Silva
(8) Rio de Janeiro [Fornecer dados de identificação].

76
Fábio José Rauen

No ensaio, argumento que a carta-consulta foi construída a partir da


complementação de um dos constituintes lógicos da questão relevante no
enunciado (6). É sobre esse constituinte lógico que gravitam movimentos e
passos retóricos do texto, sugerindo que estruturas genéricas estão a serviço
de algo mais essencial: as relações de relevância.
O enunciado (6), agora (6a), contém a forma lógica (6b):

(6a) O que devo fazer?


(6b) dever fazer, alguém, algo (dever fazer, x, y).

O enunciado (6) é uma pergunta-QU. Perguntas com um pronome


interrogativo, segundo Sperber e Wilson (1995, p. 252) não constituem
uma forma proposicional total, porque o constituinte lógico explicitado
pelo pronome ‘que’ está incompleto, e o falante não tem como completá-lo.
A relevância gravita em torno do objeto de ‘dever saber’: Luiz Silva,
sujeito de ‘dever fazer’ não sabe como registrar o imóvel.
Para Simoni (2004), o movimento retórico “formular uma questão”
enseja quatro passos retóricos: “delinear o cenário”, “apresentar o
problema”, “solicitar uma resposta” e “fornecer dados de identificação”.
Defendo que o passo “solicitar uma solução” é supra-ordenado, pois
mobiliza o movimento “fornecer uma resposta”, guiado pela relevância.
A explicatura do enunciado (6) pode ser desenvolvida como (6c) e,
incluindo uma descrição de alto nível que dê conta do ato de fala em jogo,
algo bem próximo do passo retórico de “solicitar uma resposta”, pode ser
descrita como em (6d-e).

(6b) dever fazer, alguém, algo.


(6c) dever fazer, Luiz Silva, QU.
(6d) O consulente está perguntando algo (dever fazer,
alguém, algo).
(6e) Luiz Silva está perguntando (dever fazer, Luiz Silva,
QU).

Embora (6e) aproxime-se do que está em jogo no passo retórico,


ainda não capta a dúvida de ‘Luiz Silva’. Isso só é possível se o leitor
contar com um contexto suficientemente rico de suposições que devem
incluir conhecimentos sobre o sistema financeiro da habitação no Brasil.
Esse conhecimento emparelhado com o enunciado (5), que explicita o

77
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

problema de Luiz Silva e permite inferir o motivo de sua consulta, torna


possível estabelecer uma proposição possivelmente completa para o
enunciado (6). Essa proposição, provavelmente, é suficientemente relevante
para merecer processamento de todos os leitores do texto.

(6f) O enunciador 2 está perguntando algo (dever fazer,


alguém, algo, para algum propósito).
(6g) Luiz Silva está perguntando (dever fazer, Luiz Silva,
QU, para formalizar o contrato de gaveta de Luiz Silva com
a proprietária do imóvel).

Perguntar é a forma mais econômica de obter respostas. Luiz Silva


fez isso em um jornal, porque entram em jogo suas suposições sobre o
funcionamento do gênero. Assim, se a obtenção de uma resposta é a
dimensão que catalisa o texto, haver práticas sociais de fornecimento de
respostas a dúvidas nos jornais viabiliza a interação. O jornalista medeia a
interlocução formatado pelas configurações do gênero.
Várias suposições são mobilizadas pelos interlocutores para
processar a carta-consulta, por exemplo, que atos para formalização do
contrato de gaveta incluem obtenção da escritura, quitação do
financiamento e registro do imóvel. Para Blass (1990), os textos são apenas
pistas para o processo de compreensão, fornecendo parte dos dados lógico-
conceituais para a fase inferencial da interpretação. Assim, a textualidade
não se explica necessária e suficientemente pela articulação das estruturas
lingüístico-textuais, mas é um fenômeno de processamento operado na
mente. Para interpretar o enunciado (6), além da decodificação,
mobilizaram-se conhecimentos enciclopédicos sobre como se registram ou
se financiam imóveis, além do conhecimento, mesmo que intuitivo, do
funcionamento do gênero em questão.
A resposta de Luiz Wanis, advogado consultado pelo jornalista, foi
a de que: se o vendedor do imóvel tivesse outorgado uma procuração para o
comprador representá-lo nos atos relativos à efetivação do negócio, isso
resolveria o problema; sem uma procuração, Luiz Silva deveria ajuizar uma
ação de adjudicação compulsória e, de posse da sentença judicial que lhe
outorga a escritura definitiva, obter a quitação da Caixa.

78
Fábio José Rauen

3.3 Relevância e produtos midiáticos

No que tange à análise de produtos midiáticos, três trabalhos


podem ser destacados: Silva (2003), Coral (2003) e Caldeira (2007).
Em 2003, Célia Maria da Silva defendeu a dissertação: Processos
ostensivo-inferenciais do filme “Neve sobre os cedros”, de Scott Hicks. O
filme relata o julgamento de Kazuo Miyamoto, cidadão japonês de uma
comunidade americana, réu do suposto homicídio de Carl Heine.
O julgamento é um pretexto para despertar memórias do amor que
o jornalista Ishmael Chambers sente por Hatsue Miyamoto, esposa do réu.
A narrativa é uma amálgama de flashbacks dentro de outros flashbacks, que
vão sendo sincronicamente entrelaçados em torno do julgamento e do amor
não-concretizado. Segundo Silva (2003, p. 8), “o filme vai se desenrolando,
até a catarse do protagonista Ishmael, que se alia à resolução do crime”.
No início, Ishmael Chambers e espectador implicam a condenação
do réu, e depoimentos fortalecem essa suposição. Cenas em flashback,
porém, contrapõem esse veredicto revelando aspectos da integridade moral
da educação japonesa e injustiças com a comunidade japonesa na Segunda
Guerra. Essas cenas visam equiparar o ambiente cognitivo do espectador ao
de Ishmael, para quem se deflagra o conflito entre o profissional íntegro e o
amante frustrado. Suspeitando da inocência de Kazuo, Ishmael vai à
guarda-costeira, e os registros confirmam a provável injustiça no
julgamento. Revelar a inocência torna-se o dilema da personagem.
Na seqüência, Silva descreve e explica com acuidade os
desdobramentos da trama. Lances dramáticos do julgamento levam Ishmael
a revelar sua descoberta depois de muita hesitação e, por conta disso, o réu
é absolvido. A vingança passional perde espaço para a defesa da verdade.
Conforme Silva: “No final, há uma saída para o mocinho” (2003, p. 113).
O trabalho demonstrou a adequação da teoria para revelar as
crenças de Ishmael Chambers em relação à comunidade japonesa, o
comportamento potencial do júri no julgamento e as crenças do espectador
sobre esses fatos. Com ênfase nos comportamentos ostensivo-inferenciais
de Ishmael, especialmente no capítulo dezesseis, o das argumentações,
analisou-se desde a possível condenação do réu, passando pelos dilemas da
busca por evidências da inocência, até sua obtenção e revelação.
Ainda em 2003, Ruth de Farias Coral, em sua dissertação
intitulada: Progressão temática em entrevista de Anthony Garotinho a
Boris Casoy: análise com base na teoria da relevância, pôs em cena o tema

79
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

dos debates políticos, com base em uma das entrevistas da Série


Presidenciáveis da Rede Record de Televisão em 2002. A partir das noções
de forma lógica, explicatura e implicatura, da explicitação do tema
subseqüente e da função temática ou remática dos elementos retomados,
Coral estabeleceu doze categorias de análise.
Os dados apontaram para: uma prevalência de progressão com tema
explícito; um equilíbrio entre progressões com base na estrutura lingüística
de um lado e de explicaturas e implicaturas, de outro; e um equilíbrio entre
a derivação a partir do tema ou do rema da cláusula-fonte. Além disso, a
noção de explicatura permitiu descrever boa parte da progressão implícita,
e a noção de implicatura foi capaz de descrever e aprofundar a categoria de
salto temático, proposta por Koch (1997).
Em 2007, Fátima Hassan Caldeira defendeu a dissertação:
Ambiente cognitivo mútuo e suposições factuais mutuamente manifestas
como delimitadores da fronteira familiar: o caso Mariene Stier em Troca
de Família. O trabalho investigou a propriedade dos conceitos de ambiente
cognitivo mútuo e de suposições factuais mutuamente manifestas para a
descrição e a explicação das delimitações de fronteiras familiares. Caldeira
observou as interações comunicativas decorrentes da inserção de Mariene
Stier no contexto da família Tomaz, em dois episódios do programa Troca
de Família da Rede Record de Televisão.
Segundo Caldeira (2007), a troca de mães exige que mãe substituta
e família alarguem ambientes cognitivos: um investimento cognitivo nem
sempre compensado por ganhos cognitivos mútuos. Como o aumento de
custos se justifica somente pelo aumento de benefícios cognitivos, essas
trocas serão relevantes apenas quando um ambiente de cooperação se
instala. Não foi esse o caso das situações tensas que ocorreram no Troca de
família. Nessas situações, emergiram conflitos em decorrência de falhas ou
de discordâncias explícitas no mapeamento das suposições factuais.
Para Caldeira, dentre as crenças e valores dos Stier, a organização e
o papel matriarcal tradicional se impõem em aspectos como limpeza,
rigidez de horários e refeições como espaço sagrado de convívio. Mariene
travou diversas discussões com os Tomaz por não aceitar o desleixo com a
limpeza e a organização da casa e, particularmente estressante para ela, o
fato de os Tomaz fazerem as refeições individualmente.
Esses achados sugerem que os conceitos de suposições factuais
mutuamente manifestas e de ambiente cognitivo mútuo são capazes de
delimitar as fronteiras familiares, contribuindo para o estudo da cultura e da
sociedade.

80
Fábio José Rauen

4. Relevância e ensino

O projeto Teoria da relevância: práticas de leitura e produção


textual em contexto escolar, ao mesmo tempo em que avalia a capacidade
descritiva e explanatória da teoria, considera sua aplicação prática na
análise de contextos de leitura e produção textual em ambiente escolar.
Os trabalhos vinculados a esse projeto defendem a hipótese
operacional de que a aplicação dos níveis representacionais: forma lógica,
explicatura e implicatura, permitem uma descrição empírica e uma
explicação adequada dos processos ostensivo-inferenciais em processos de
interação comunicativa em contextos de ensino-aprendizagem.

4.1 Relevância, leitura e produção textual

A dissertação de Jaqueline Marcos Garcia de Godói (2004) foi o


primeiro trabalho nessa perspectiva. Nesse estudo, intitulado Influência de
implicaturas na elaboração de resumo sem consulta ao texto de base:
estudo de caso com base na teoria da relevância, Godói verificou a
influência de implicaturas na elaboração de um resumo informativo sem
consulta ao texto de base, elaborado por um acadêmico do curso de
Administração. A autora comparou as suposições derivadas da estrutura
lingüística do texto de resumo com as suposições derivadas da estrutura
lingüística e das implicaturas do texto de base.
Os dados evidenciaram que, dentre as 34 suposições do texto de
resumo, 13 foram retomadas de suposições derivadas de explicaturas do
input lingüístico, e 21 derivaram de implicaturas. Ou seja, o resumo foi
prevalentemente construído a partir da combinação de suposições derivadas
do input lingüístico com o conhecimento enciclopédico de seu autor.
A coleta de dados de Godói (2004) incluía a produção de resumos
com e sem consulta ao texto de base. Com base nesse corpus, elaborei um
artigo intitulado Inferências em resumo com consulta ao texto de base:
estudo de caso com base na teoria da relevância (RAUEN, 2005),
comparando a primeira sentença dos dois resumos elaborados por um dos
estudantes de administração com as três primeiras sentenças do texto de
base. Os resultados permitiram detectar no segundo resumo evidências de
elementos do primeiro resumo, do texto de base e de inferências não
contempladas no primeiro resumo.

81
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

Para chegar a essa conclusão, elaborei uma metodologia de análise


de produtos textuais com base em textos prévios. Para a teoria da
relevância, o contexto para a compreensão de um estímulo ostensivo não é
uma variável fixa, mas construída no processo de compreensão. Em cada
etapa do processamento, o indivíduo dispõe de um conjunto de contextos
acessíveis que lhes são parcialmente ordenados.

Cada contexto, exceto o inicial, contém um ou mais


contextos menores e cada contexto (exceto os contextos
máximos) está contido em um ou mais contextos maiores.
[...] essa relação formal tem uma contraparte psicológica: a
ordem de inclusão corresponde à ordem de acessibilidade.
(SPERBER; WILSON, 1995, p. 142).

No trabalho de Godói, o contexto cognitivo do estudante amplia-se


e torna-se mais complexo, quando as tarefas se sucedem. Godói apresentou
o texto de base (T) O que é... humildade, de Mr. Max (Max Gehringer), a
estudantes de Administração. Destinado um período para a leitura (L), eles
elaboraram um resumo sem consulta ao texto (R1) e, depois, um resumo
com consulta (R2). Formalizei as tarefas respectivamente como t1, t2 e t3 e o
contexto cognitivo do estudante em cada tarefa como C.
Na leitura (L), primeira tarefa (t1), os enunciados do texto de base
(T) constituíram-se como estímulos ostensivos do autor (inputs) para os
processos de compreensão. Eles acionaram suposições no ambiente
cognitivo (C) do estudante:

L = f (Tt1 Ct1),

ou seja,
a compreensão na leitura foi uma função (f) da combinação
do enunciados do texto de base com o ambiente cognitivo do
estudante na tarefa 1.

Na segunda tarefa (t2), resumo sem consulta ao texto de base (R1),


os enunciados foram organizados exclusivamente em função do contexto
cognitivo (C) do estudante. Esse contexto cognitivo ampliado incluiu um
conjunto de suposições que emergiram somente no decorrer da elaboração
do resumo sem consulta (Ct2) e um conjunto de suposições que decorreu da
combinação do texto de base e das suposições do contexto cognitivo
durante a leitura (Tt1 Ct1).

82
Fábio José Rauen

Veja-se:

R1 = f C[Ct2 (Tt1 Ct1)],

ou seja,

os enunciados do resumo sem consulta (R1) foram uma


função (f) do contexto cognitivo do estudante que incluiu o
contexto cognitivo emergente na tarefa 2 (t2) em combinação
com o contexto cognitivo da tarefa 1 (t1).

Na terceira tarefa (t3), o resumo com consulta (R2) caracterizou-se


pela combinação dos enunciados do texto de base (T) com o ambiente
cognitivo do estudante (C) em (t3). Esse ambiente cognitivo constituiu-se
do conjunto de suposições em (t3) em combinação com o conjunto de
suposições em (t2), ou seja, com o conjunto de suposições fortalecidas,
enfraquecidas, contraditas ou inferidas quando da elaboração do primeiro
resumo sem consulta. Como já foi dito, o conjunto de suposições em (t2) já
fora função da memorização da intersecção do conjunto de suposições dos
enunciados do texto de base (T) em (t1) com as suposições estocadas na
memória (C) em (t1).
Veja-se:

R2 = f Tt3 C{Ct3 C[Ct2 (Tt1 Ct1)]},

ou seja,

os enunciados do resumo com consulta foram uma função (f)


do contexto cognitivo do estudante que incluiu o contexto
cognitivo emergente na tarefa 3 (t3) em combinação com os
contextos cognitivos da tarefa 2 (t2) e da tarefa 1 (t1).

Assim, o resumo com consulta (R2) constituiu-se como função


palimpséstica das tarefas anteriores e, por conseqüência, deve ser possível
detectar três fontes de evidências nos enunciados desse resumo, a saber:

83
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

a) evidências de Tt3 – suposições que não foram contempladas no


resumo sem consulta e que emergiram em função da releitura do
texto de base (suposições do texto de base);
b) evidências de Ct3 – suposições que não foram contempladas no
resumo sem consulta e que emergiram de inferências da
combinação dos enunciados do texto de base com o ambiente
cognitivo do estudante em (t3) (inferências em R2); e
c) evidências de Ct2 (Tt1 Ct1) – suposições do contexto cognitivo do
estudante em (t2), resumo sem consulta, que já fora ampliado pela
contextualização dos enunciados do texto de base com o contexto
cognitivo do estudante em (t1), leitura (inferências em R1).

Ainda em 2005, a dissertação de Maria de Fátima Pavei, intitulada


Influência do título na interpretação de charge: estudo de caso com base
na teoria da relevância, analisou a influência do título na interpretação da
charge “Fome Zero” por dez alunos da 8ª série do ensino fundamental da
Escola Básica Municipal Quintino Rizzieri do Município de Içara, SC,
divididos em grupo experimental (presença do título) e de controle.

Figura 1 – Charge “Fome Zero”

Os resultados apontaram que o título exerceu influência categórica


na interpretação. Nenhuma interpretação do grupo de controle referiu-se ao
programa Fome Zero enquanto todas as interpretações referiram-se ao
programa quando o título estava presente.
Colateralmente, o estudo de Pavei (2005) destacou a dificuldade
dos estudantes em explicitar lingüisticamente o conteúdo proposicional dos
enunciados. Em função desse cenário, a questão da explicitação lingüística
recebeu atenção especial no grupo de estudo. Nesse sentido, duas pesquisas

84
Fábio José Rauen

investigaram formas de intervenção docente na produção textual de


aprendizes: Souza (2006), intitulada Graus de explicitação em reescrita de
produção textual: análise, com base na teoria da relevância, dos efeitos da
intervenção oral docente; e Bolzan (2008), intitulada Influência da
intervenção escrita do docente em textos dissertativo-argumentativos
reescritos: análise com base na teoria da relevância.
Jamille Militão de Souza (2006) analisou a influência de uma
intervenção oral e individual do docente nos graus de explicitação em
reescrita de produção textual. Com base na metodologia de Rauen (2005), a
pesquisa revelou que os enunciados da reescrita foram mais explícitos do
que os do primeiro texto, e que houve marcas da influência da intervenção
nesse segundo texto, além de marcas dos ambientes cognitivos ativados nas
fases anteriores e informações inéditas.
Rosane Maria Bolzan (2008), ao observar que a pesquisa de Souza
pressupôs a possibilidade de o docente fazer uma intervenção oral com
cada aluno em turno diferente daquele das aulas, argumentou que isso não
seria viável nas condições materiais do trabalho docente. Desse modo,
sugeriu que estratégias de intervenção coletiva, como as que corrigem uma
produção no quadro-negro, ou individuais, como as que deixam pistas
escritas que permitam aos estudantes aprimorarem a redação, poderiam ser
mais viáveis. Seu trabalho optou por uma intervenção do segundo tipo.
Bolzan analisou a influência do registro escrito de questões de
segunda ordem (perguntas-QU) pelo docente na explicitação lingüística
dos elementos da forma lógico-proposicional dos enunciados da reescrita
de produções textuais dissertativo-argumentativas de estudantes da 1ª fase
do ensino médio do Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa
Catarina, em São José.
O exemplo a seguir, ilustra o trabalho de Bolzan:
Primeira produção textual
(1) Nossa língua é bem variada, uma região fala de um jeito
diferente uma da outra, mas qual será o jeito certo de falar?
Perguntas-QU?
(2a) De que língua você fala?
(2b) De que regiões você fala?
Segunda produção textual
(3a) Nossa língua, Língua Portuguesa, é bem variada.
(3b) Uma região fala de um jeito diferente uma da outra, por
exemplo o RS tem seu sotaque e suas particularidades
diferentes do PR que também possue as suas, e assim
sucessivamente com todos os estados.

85
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

O enunciado (1) da primeira produção não explicita a que língua e


a quais regiões o autor se refere. Bolzan, então, insere duas perguntas-QU
(2a-b), sugerindo a explicitação dessas informações. O resultado, em
itálico, consiste na inserção de um aposto após o item lexical ‘língua’, bem
como toda uma explicitação das diferenças de fala. Veja-se que o estudante
apresenta a informação em dois enunciados (3a-b) e deixa de questionar
qual seria o ‘jeito certo de falar’.
Os resultados de Bolzan foram similares aos de Souza, no que se
refere à maior explicitação e à detecção de marcas de todas as etapas nos
enunciados. O estudo identificou que os enunciados da reescrita formaram
escalas focais completas influenciadas pelas perguntas-QU do docente.
No esteio de processos de leitura e de reescrita, estão em
andamento, vários trabalhos de iniciação científica e uma dissertação de
mestrado. 20 Nesse sentido, Eloíse Machado de Souza Alano qualificou o
projeto de dissertação: Reescrita de texto por alunos da disciplina de
leitura e produção textual nas modalidades presencial e virtual: estudo
comparativo com base na teoria da relevância. Nessa investigação, Alano
(2008) pretende comparar efeitos da intervenção do docente na reescrita de
acadêmicos de direito nas duas modalidades.
Em ambos os casos, a pesquisadora acrescentará perguntas-QU por
escrito na primeira versão. Na modalidade presencial, a pesquisadora estará
disponível para sanar oralmente as dúvidas dos alunos no momento da
reescrita; e na modalidade virtual, a pesquisadora estará disponível on-line.
A pesquisa pretende verificar como e em que medida essas condições de
produção interferem na qualidade da reescrita.
Por fim, vale mencionar um trabalho relacionado à dislexia. Em
2007, Berenice de Azevedo Rabello defendeu a dissertação: Estratégias de
compreensão textual na dislexia: análise com base na teoria da relevância.
21
Nessa pesquisa, Rabello comparou o desempenho de disléxicos
fonológicos moderados na interpretação de um de um conto infanto-juvenil
de Mabel Condemarim com o desempenho de leitores de mesma idade
cronológica e de leitura, grupos de controle.

20
Em nível de iniciação científica, destacam-se os trabalhos de Silva (PIBIC/CNPq) e
Fernandes (PUIC/Unisul), sobre reescrita coletiva de produções textuais com alunos da 1ª e
da 2ª série do ensino fundamental; e trabalhos sobre processos interacionais entre alunos,
tutores e monitores nas disciplinas Sociologia e Didática I, Oliveira (PUIC/Unisul) e Corrêa
(Artigo 170/Unisul).
21
Ver também Rauen e Rabello (2008a, b).

86
Fábio José Rauen

Os resultados demonstraram que os sujeitos dos grupos de controle


fundamentaram preferencialmente suas inferências a partir dos inputs
lingüísticos do texto de base e que os sujeitos disléxicos, em função do
déficit de componente fonológico, fundamentaram suas inferências a partir
do contexto e das suposições de sua memória enciclopédica, corroborando
a literatura na área.

4.2 Relevância e avaliação escolar

No que diz respeito aos processos de interação escolar, um dos


pontos que mais se destaca é o da avaliação de trabalhos escolares, entre os
quais os de avaliação de interpretação textual. Diante da polissemia
constitutiva da língua, avaliar textos interpretativos é uma questão
incômoda. Duas condutas emergem diante desse desafio: fixar-se em uma
interpretação fornecida por um gabarito ou julgada como correta e medir as
interpretações dos alunos em função da aproximação ou distanciamento
dessa interpretação; ou aceitar toda e qualquer interpretação.
Em 2005, orientei um Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado
Avaliação de interpretação textual por cinco docentes de Língua
Portuguesa: análise com base na Teoria de Relevância. Nessa pesquisa,
Luana Rabelo da Silveira verificou se a semelhança entre a interpretação e
a estrutura lingüística do texto de base influenciava a atribuição de nota,
lançando a hipótese de que: quanto mais as respostas dos intérpretes se
conformassem com as entradas lexicais do texto, maior seria a nota.
Em primeiro lugar, Silveira (2005) aplicou os conceitos de forma
lógica, explicatura e implicatura em um texto de Cecília Meireles, extraído
do livro Seleta em prosa e verso. A seguir, ela obteve um conjunto de
respostas autênticas de estudantes da terceira série do ensino médio para
cinco questões caracterizadas pela possibilidade de serem respondidas
inferencialmente. Mais a frente, Silveira selecionou as respostas que mais
se aproximavam da estrutura lingüística do texto e as respostas inferenciais
mais significativas, para então simular seis alunos verossímeis, três rapazes
e três moças, diferenciados por uma gradação consistente de respostas
lingüísticas e inferenciais. Por fim, as interpretações foram lidas, corrigidas
e avaliadas por cinco professores de Língua Portuguesa.
Os achados sugerem não haver tendência para diminuição das notas
em função do distanciamento do texto. Apesar disso, os docentes
consideraram as respostas textuais corretas e dois docentes atribuíram nota

87
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

máxima ao estudante que transcreveu todas as respostas do texto. Embora


os docentes concordem que a interpretação deva ser inferencial e que
cópias de fragmentos do texto são indícios de transcrição e não de
interpretação, diante de respostas inferenciais, houve dificuldades na
correção e recorrência ao texto como referência. Além disso, houve
comprometimento da nota, diante de respostas inusitadas ou diferentes
daquelas autorizadas pelos docentes, sugerindo que somente inferências
autorizadas pelos docentes são consideradas corretas.
Na dissertação: Interpretações do poema ‘O barro’, de Paulo
Leminski, por docentes do ensino fundamental: análise com base na teoria
da relevância, Ana Sueli Ribeiro Vandresen (2005) estudou os processos
de compreensão desse poema por estudantes do curso de capacitação e
aperfeiçoamento para professores de primeira a quarta séries, oferecido
pelas Faculdades São Judas Tadeu de Pinhais, PR, em Fartura, SP. 22
Veja-se o poema:

O barro
Toma a forma
Que você quiser
Você nem sabe
Estar fazendo
O que o barro quer

Vandresen (2005) aplicou a escala focal (cf. Sperber e Wilson,


1995, seção 2.6.6), gerando quatro critérios objetivos para a avaliação das
interpretações: atribuição adequada ou potencialmente adequada de
referente ao item lexical ‘barro’; atribuição adequada ou potencialmente
adequada de referente ao item lexical ‘você’; recuperação da relação de
oposição entre as duas estrofes do poema; e, recuperação da relação
paradoxal das duas estrofes do poema.
Com base nesses critérios, ela reconstruiu a dinâmica dos processos
inferenciais realizados para demonstrar o cálculo dedutivo utilizado pelos
alunos do curso. Os resultados revelaram haver diversificação de referentes
ao item lexical ‘barro’, sobressaindo-se a interpretação de que barro remete
a alunos e a concepção de educando como tabula rasa. Dentre as vinte
interpretações que recuperaram a relação adversativa, apenas onze
interpretações recuperaram o paradoxo implícito do poema.
22
Veja-se também Rauen e Vandresen (2006, 2007).

88
Fábio José Rauen

Segundo a teoria da relevância, já no nível da explicatura é


necessária certa dose de raciocínio inferencial. O trabalho de Vandresen
corroborou tendência já verificada em testes de letramento: a interpretação
que envolve inferências é sofrível entre escolares (aqui, mais preocupante
por tratar-se de docentes do ensino fundamental).
Com base nos trabalhos de Silveira (2005) e Vandresen (2005),
está em curso a dissertação de Eva Lourdes Pires, intitulada Justificativas
de avaliação de interpretações do poema O barro, de Paulo Leminski, por
docentes de língua portuguesa: análise com base na teoria da relevância.
O objetivo dessa pesquisa consiste em descrever e explicar os processos
ostensivo-inferenciais das justificativas das notas atribuídas por cinco
docentes de Língua Portuguesa às interpretações do poema O barro, Paulo
Leminski, a partir dos textos obtidos por Vandresen (2005), tomados como
elaborados por dez discentes do terceiro ano ensino médio. O trabalho de
Pires replica a metodologia de Silveira (2005) e toma por empréstimo doze
interpretações selecionadas do trabalho de Vandresen (2005).
No veio da avaliação, mas com enfoque diferente, orientei a
dissertação: Compreensão de texto de avaliação descritiva: estudo de caso
exploratório com base na teoria da relevância, de Alesandra da Cruz. A
partir dos Parâmetros Curriculares Municipais, a rede municipal de São
Ludgero, SC, passou a exigir uma avaliação descritiva da aprendizagem.
Cruz (2008) verificou a influência dessa avaliação no que uma mãe relata
ter sido relevante sobre a aprendizagem do filho. A análise percorreu: o
texto do parecer descritivo; a interação oral entre professora e
pesquisadora; a interação da professora e mãe; e a interação oral final entre
mãe e pesquisadora.
Segundo Cruz, os dados sugerem prevalência decisiva de
suposições derivadas da versão oral da avaliação sobre as suposições
registradas por escrito, acrescidas de suposições inferidas pela mãe a partir
da interação ou evocadas por ela a partir de sua memória. Isso sugere que a
versão escrita exerce pouca influência para fundamentar a interação.
Por exemplo, na avaliação descritiva e na interação com a mãe, a
professora se esforça para solicitar ajuda à família para que a aluna não
reprove na primeira série. Em dado momento, há o seguinte diálogo:

P – Só que, assim, a senhora já percebeu não está


conseguindo acompanhar a turma assim, né. Tô dando umas
atividades diferentes pra ela, né.

89
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

M – Porque eu acho assim. Na minha opinião, se ela não tem


condições de passar, então, por mim, se ela ficar, repetir
mais um ano até vai ser melhor.

Aqui, a mãe infere a reprovação e racionaliza que essa reprovação


fará bem para sua filha. Mais adiante, a mãe dirá à pesquisadora:

PQ – O que a professora colocou?


M – Que seria assim, que no caso dela seria necessário
repetir o ano, né. Porque ela não acompanha a turma ainda,
mas ela já desenvolveu um monte, já.

No caso, a conclusão implicada de que a filha deverá ser reprovada


não provém da fala da professora, muito menos foi parte de sua avaliação
descritiva, mas é uma inferência de responsabilidade da própria mãe.

4.3 Relevância, ensino infantil e fundamental

As pesquisas em relevância têm atraído a atenção de docentes do


ensino infantil e das séries iniciais. Clésia da Silva Mendes Zapelini (2005)
comparou a produção de texto oral e escrito elaborado com base na
interpretação de história em quadrinhos. O estudo de caso de Zapelini
analisou processos de explicitação em interpretação oral e escrita da
história em quadrinhos “Pega os pratos!”, de Maurício de Souza. Para isso,
Zapelini estudou oito alunos de 1ª série do ensino fundamental do Centro
Educacional Alpha Ideal de Braço do Norte, SC.
O estudo detectou que as crianças fizeram inferências diferentes
nas duas atividades. Dado que a ausência do código numa história em
quadrinhos torna-a mais vaga, uma mesma história pode de ser
compreendida de modos diferentes, mesmo em tarefas sucessivas. Na
história em quadrinhos em questão, depois de muito malabarismo para
pegar os pratos que estavam por cair em função de um tropeço do garçom,
Magali derruba-os tão logo percebe que sua comida estava sendo servida na
sua mesa. Esse comportamento é coerente com a fama glutona da
personagem. Porém, a percepção dos pratos quebrados não foi vista por
várias crianças, e outras inferências foram relevantes com base nesses
inputs, reforçando a tese da individualidade do conceito de relevância.

90
Fábio José Rauen

Segundo Zapelini, a relevância de um olhar baseado no conceito de


relevância ilumina a capacidade inferencial que as crianças possuem
quando interpretam histórias. Nem sempre o resultado da interpretação
equivale ao do adulto. Não equivaler, contudo, não implica inferioridade,
equívoco ou erro, mas simplesmente diferença compatível com o estágio de
desenvolvimento da criança (ZAPELINI, 2005, p. 111).
A pesquisa de Zapelini ocorreu com alunos alfabetizandos, e a
tarefa demandou que os alunos elaborassem uma interpretação oral e,
posteriormente, uma interpretação por escrito da história em quadrinhos.
Evidente, seu foco estava centrado na tradução da história em quadrinhos
em questão do registro oral para o escrito. No que se refere aos resultados,
o estudo destacou a dificuldade de a criança explicitar o conteúdo
proposicional de seu pensamento em ambos os registros. A obtenção de
coerência de muitas das interpretações só se admitiu em função do
preenchimento de premissas implícitas. Entretanto, isso foi especialmente
marcado quando a criança está interpretando oralmente a história. Ou seja,
nesse estudo, mesmo em fase de alfabetização, foram encontradas menos
lacunas na interpretação escrita, sugerindo que as crianças já estão
desenvolvendo competências específicas conforme o registro.
Qual seria o comportamento de alunos do ensino infantil em tarefa
similar? Esta é a questão que a dissertação de Alba da Rosa Vieira pretende
responder. Obviamente, não se trata de comparar registros, a criança não
está alfabetizada, mas verificar que competências e habilidades crianças de
três a quatro anos têm quando interpretam uma história em quadrinhos.
Diante dessa dúvida, Vieira (2008) está desenvolvendo um estudo de caso,
onde o docente fornece um conjunto de quadrinhos sem balões de fala para
que as crianças ordenem e produzam uma narrativa.
Em 2004, José Antonio Matiola defendeu a dissertação: Aulas de
Filosofia com alunos de sétima série do ensino fundamental: análise de
processos interacionais com base na teoria da relevância. Matiola
investigou processos ostensivo-inferenciais em interações de professor e
alunos em aula de Filosofia sobre questões éticas relativas ao aborto. O
trabalho envolveu 30 alunos de sétima série do ensino fundamental do
Colégio Dehon, de Tubarão, SC, para os quais se apresentou o texto
Gravidez e aborto de Nunes e Silva (2001) para posteriores discussões em
pequenos grupos e em grande grupo.
Matiola (2004) observou que as rememorações de suposições do
texto de base foram dependentes da intervenção do professor e nunca
ocorreram espontaneamente. Houve decisiva influência do docente nas

91
Teoria da relevância e ciências da linguagem...

suposições acessadas e nas inferências realizadas pelos alunos. Além disso,


as suposições que emergiram das vivências dos alunos e estavam ausentes
no texto e nas intervenções do professor foram invariavelmente provocadas
pela intervenção do professor. O trabalho demonstrou o papel fundamental
do docente como desencadeador do processo inferencial, quando incentiva
o aluno a expor, analisar e ouvir a opinião dos colegas.
Em 2005, Scheyla Damian Preve dos Santos defendeu a
dissertação: Interação jogos instrucionais, docente e estudantes em aulas
de matemática sobre números inteiros: análise com base na teoria da
relevância. Santos investigou processos interacionais entre docente e
estudantes, tendo por base jogos educativos sobre números inteiros em
aulas de matemática. A pesquisa trabalhou com quinze alunos da sexta
série do ensino fundamental do Colégio Dehon de Tubarão, SC.
Os achados demonstraram que os jogos viabilizaram utilização
constante do raciocínio lógico. Segundo Santos (2005), os alunos
negociaram inferencialmente soluções para os problemas, mesmo em casos
de dificuldades específicas com as regras de sinais. As interações, além de
privilegiar a aprendizagem da matemática, foram capazes de promover
aspectos éticos e, nesse sentido, o comportamento docente não se limitou a
aspectos técnicos. O estudo evidenciou, sobretudo, o papel central da
interação na aprendizagem humana.

5. Considerações finais

Nesse capítulo, procurei demonstrar o que venho desenvolvendo


em pesquisas relacionadas à cognição, à interação e ao ensino com base na
teoria da relevância. Nesses trabalhos, os conceitos teóricos e os
procedimentos analíticos da teoria da relevância têm sido consistentemente
corroborados em mais de trinta trabalhos acadêmicos publicados.
De ordem mais específica, três desenvolvimentos teórico-analíticos
merecem ser destacados nessa trajetória. Em processos de reescrita e
avaliação de textos, vale destacar o desenvolvimento de uma metodologia
explícita de formalização de processos ostensivo-inferenciais em
palimpsestos (RAUEN, 2005). Essa metodologia, que vem sendo
sistematicamente testada nas pesquisas do Programa, visa descrever, com
base no aparato teórico guiado por relações de relevância, como cada etapa
do processo de leitura produção textual deixa marcas nos produtos textuais
analisados.

92
Fábio José Rauen

De ordem teórica, vale também destacar o desenvolvimento de


duas variáveis moderadoras da correlação custo benefício pressuposta no
princípio cognitivo de relevância (RAUEN, 2008a, b). No que se refere à
variável de exaustão, defendi a tese de que em igualdade de condições,
estando mais exaurido o organismo, o dispêndio de energia para compensar
o efeito cognitivo deverá ser maior, minimizando a eficiência cognitiva ou
relevância de um fenômeno até um ótimo de Pareto, para além do qual o
estímulo deixa de ser relevante. No que tange à variável de saturação,
argumentei que a reiteração de estímulos é relevante ao indivíduo até um
ótimo de Pareto, para além do qual esse estímulo torna-se saturado e falha
em sensibilizar o organismo: os efeitos cognitivos não compensam os
esforços de fortalecimento mediante reiteração.
Por fim, minhas primeiras incursões na interface com os estudos de
gêneros textuais sugerem destacar que a teoria da relevância pode ser
produtivamente utilizada no domínio da análise de gêneros. Seguindo Blass
(1990), defendo a tese de que os textos são pistas para o processo de
compreensão. Eles fornecem parte dos dados lógico-conceituais para a fase
inferencial da interpretação, que é guiada essencialmente por relações de
relevância. Noutras palavras, as estruturas genéricas decorrem de algo mais
essencial: as relações de relevância. Investigar essa hipótese é um desafio a
ser perseguido nos anos vindouros.
Em síntese, se as pesquisas produzidas e em andamento na Unisul
têm corroborado sistematicamente a pertinência da teoria para o tratamento
da interação comunicacional, por um lado; por outro, seguramente, há
muito ainda o que fazer nesse campo de investigação, deixando entrever
que a relevância da pesquisa em relevância está muito longe de se esgotar.

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97
ENSINO DE LÍNGUA:
ALFABETIZAÇÃO COM E PARA O LETRAMENTO

Mariléia Reis

1. Introdução

Neste capítulo, propõe-se uma síntese reflexiva das propostas de


pesquisa que se desenvolvem no projeto Letramento, ensino e sociedade,
do PPGCL da UNISUL, firmadas no estudo e ensino de língua (incluindo a
aprendizagem inicial da leitura), a partir de seus aspectos funcionais,
cognitivos e sociais. Aborda-se a necessidade da elaboração de material
didático voltado para a alfabetização com e para o letramento, com base em
pesquisas e descobertas das neurociências contemporâneas.
Trata-se de pesquisas realizadas no contexto do Grupo de análise
do discurso: pesquisa e ensino – GADIPE, grupo de estudo articulado por
duas linhas de pesquisa: Análise discursiva de processos semânticos e
Textualidade e práticas discursivas, sendo esta última a que subsidia
teórico e metodologicamente o referido projeto. 23
Descrevem-se, nesse trabalho, as articulações teoricamente
relevantes e operacionalmente propícias à formação docente para a
alfabetização com e para o letramento, com base nos princípios do sistema
alfabético do Português do Brasil – PB, conforme Leonor Scliar-Cabral, e
também com base nos pressupostos teórico-metodológicos dos trabalhos de
Paulo Freire e Magda Soares.
Acredita-se que a formação do alfabetizador deve contemplar: a) a
aprendizagem da leitura estendida a todos os anos/séries inicias (e não
somente ao primeiro ano); b) a aprendizagem e compreensão dos princípios
do sistema alfabético do PB, e c) o conhecimento dos avanços das
pesquisas das neurociências no que diz respeito ao mapeamento da ativação
dos circuitos cerebrais, no momento da leitura. Tais fatores, quando
compreendidos e bem trabalhados pelos alfabetizadores, poderão
determinar o sucesso na aprendizagem inicial da leitura e escrita de seus
alunos, prevenindo, especificamente, o analfabetismo funcional no Brasil.

23
Sobre histórico, objetivos e propostas do GADIPE, veja-se o capítulo de Maria Marta
Furlanetto e Sandro Braga na presente coletânea.
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

2. Aprendizagem da leitura: o avanço das neurociências

Considerando o desenvolvimento da espécie humana, tem-se a


escrita como muito recente: cerca de cinco mil anos, apenas. E a
aprendizagem da leitura? Mais recente ainda: só no final do século XIX,
por exemplo, é estendida a alfabetização a grandes grupos, num só período
e em ambiente coletivo de aprendizagem, inclusive à grande massa da
população oriunda das classes menos favorecidas. Então, só há bem pouco
tempo, passado um pouco mais de cem anos, a aprendizagem da leitura em
instituições escolares passou a contemplar as crianças (e adultos
interessados) de ambos os sexos, classe social e etnias diversificadas. E,
mais recente ainda, é que se passou a ter uma contribuição mais efetiva das
neurociências na orientação para a formação do alfabetizador,
especificamente em relação à descrição das descobertas sobre a trajetória
dos circuitos dos neurônios da leitura, obtidas por meio de neuroimagens,
no início do século XXI: na sua maioria, de imagens de ressonância
magnética, eletroencefalografia e magnetoencefalografia.
Tais avanços muito têm esclarecido no que devem consistir as
novas metodologias de alfabetização, nas quais entraria a importância de se
trabalhar a consciência fonológica na fase inicial e durante a aprendizagem
da leitura. 24 Aborda-se o trabalho da consciência fonológica a partir da
decodificação de palavras inseridas em contexto lingüístico maior, ou seja,
inseridas em textos da prática social de leitura e escrita do aprendiz, o que
justificaria a aprendizagem da alfabetização com e para o letramento.
Nos estudos de Dehaene (2007), do centro Neurospin, de Paris, foi
descoberto que o cérebro junta as regiões da linguagem e da visão para
proporcionar a leitura. Em seus experimentos, a partir de estímulos visuais
(textos verbais e não-verbais), foram submetidos dois grupos de pessoas
examinadas pela máquina de ressonância magnética: um grupo de
alfabetizados, e o outro, de não-alfabetizados, e que levaram Dehaene a não
hesitar em informar que é o lado esquerdo do cérebro que ativamos quando
lemos, precisamente atrás da orelha, na região occipito-temporal-ventral-

24
Consciência fonológica: concebe-se como a capacidade do indivíduo em articular
(desmanchar) a palavra em unidades menores, consciente de que, na troca de um fonema
(materializado na fala por um som) haverá distinção de significado, ou seja: consciência
fonológica compreende a capacidade de se reconhecerem os fonemas constituintes de cada
pedadinho (sílaba) de uma dada palavra.

100
Mariléia Reis

esquerda. 25 Seria, então, essa a região que muda no momento da leitura: as


pessoas alfabetizadas, ao lerem, ativam esse circuito; as não-alfabetizadas,
ao serem expostas a letras, não ativam esse circuito. 26
Se hoje, com o avanço das neurociências, concebe-se a leitura
como atividade decorrente da existência de uma rede complexa e crescente
de interconexões entre vias visuais que reconhecem as letras, de vias
auditivas e motoras da palavra oral, e de vias que processam o sentido,
concebe-se também que tais traços da topologia neuronial podem nos
instruir (e muito) sobre a forma de como a criança vai aprender (decodificar
e codificar) o sistema escrito: uma das grandes contribuições destas
descobertas é, por exemplo, a de que, na alfabetização, deve-se partir,
então, do nível fonológico para o grafêmico, ou seja, da decodificação
(leitura) para a codificação (escrita), uma vez que a recepção da linguagem
é anterior à sua produção. Em outras palavras: o processo de leitura se dá
mediante as interconexões das vias visuais, auditivas e motoras da palavra
oral (recepção). Logo, uma criança que não sabe ler não aprende, portanto,
a escrever, e nem a desenvolver sua competência discursiva decorrente das
práticas sociais da leitura e escrita. 27 Segundo Scliar-Cabral (2008), a
escrita até pode ser trabalhada durante a leitura, desde que àquela não seja
atribuída importância maior: mas jamais a aprendizagem da escrita deve ser
abordada anteriormente à aprendizagem da leitura.
Vale lembrar que, ao ser enfatizada a importância de se buscarem
os avanços das neurociências para a melhoria da qualidade de ensino e
aprendizagem inicial da leitura, relevam-se também as razões de se ensinar
e aprender a língua por meio de textos, decorrentes da própria conceituação
de linguagem, de língua e de texto: este último, a realização da linguagem e
da língua, responsável pela interação, tal como orientam os Parâmetros
Curriculares Nacionais. Então, o processo de aprendizagem inicial da
leitura pode decorrer da análise e reconhecimento de unidades menores no
texto, como letras/fonemas, sílabas e palavras, desde que estas estejam
inseridas num contexto lingüístico maior, para que não se constituam
estratos descontextualizados e vazios de significados.

25
Conforme Anexo: Modelo neurológico da leitura x visão moderna das redes corticais da
leitura (DEHAENE, 2007).
26
Outra importante descoberta decorrente dos experimentos de Dehaene (2007) trata-se do
diagnóstico da dislexia e no tratamento de pessoas que sofreram traumatismo craniano.
27
Atenção: a criança até poderá aprender a copiar, diferentemente do que se entende por
escrever.

101
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

Só para citar um desdobramento negativo de má condução da


aprendizagem inicial da leitura, dentre tantos outros: hoje, ainda é muito
comum na escola pública brasileira defrontarmo-nos com um número
excessivamente grande de crianças que chegam, por exemplo, à fase final
dos anos/séries iniciais sem, no entanto, conseguirem efetivamente ler
textos, independentemente do gênero textual/discursivo em que estejam
inseridos. Daí a questão: como estas crianças de 4º ano, por exemplo, que
ainda não sabem ler, poderão desenvolver sua competência discursiva, sua
capacidade de compreender e produzir textos, em particular, os de ampla
circulação na sociedade, tal como propõem os Parâmetros Curriculares
Nacionais? Veja-se abaixo:

A importância e o valor dos usos da linguagem são


determinados historicamente segundo as demandas sociais
de cada momento. Atualmente, exigem-se níveis de leitura e
de escola e de escrita diferentes dos que satisfizeram as
demandas sociais até há bem pouco tempo – e tudo indica
que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade de
atender a essa demanda obriga à revisão substantiva dos
métodos de ensino e à constituição de práticas que
possibilitem ao aluno ampliar sua competência discursiva na
interlocução. (BRASIL, 1998, p. 23).

E, decorrente de todo o processo deformado na aprendizagem


inicial da leitura, realçam-se os problemas que se vinculam ao mau
desempenho de nossos alunos no que se refere a questões de leitura,
compreensão e, conseqüentemente, de produção textual nas nossas escolas,
nos mais diversos gêneros textuais/discursivos. Fato é que, mesmo depois
de decorridos cerca de dez anos em que os Parâmetros Curriculares
Nacionais formalizaram a orientação pedagógica de ensino de língua no
contexto escolar a partir da multimodalidade, ou seja, a partir da inserção
da pluralidade de gêneros textuais/discursivos da prática social de leitura e
escrita de nossos alunos, ainda assim, estes apresentam dificuldade em ler,
compreender e produzir textos, o que implica no aumento do índice de
analfabetismo funcional no Brasil. 28 Na visão do nosso grupo de estudo,
com certeza, estes maus resultados têm relação direta com a má
alfabetização dos estudantes, somada a centenas de muitos outros fatores. E

28
Vale lembrar a citação de outros documentos nesta direção, como os da Proposta
Curricular de Santa Catarina (1998; 2005), documentos que subsidias teórico e
metodologicamente os trabalhos do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’.

102
Mariléia Reis

questiona-se: como chegar à construção de inferências de textos verbais


escritos, sem, no entanto, dispor de conhecimento preciso dos princípios do
sistema de escrita de uma dada língua? No Brasil, por exemplo, sem o
conhecimento dos princípios do sistema alfabético do PB?
O que se pretende abordar nos nossos estudos não é a sobreposição
da importância de uma estratégia de ensino de língua a outra (estratégia),
ou de um conteúdo a outro, ao se abordar a aprendizagem da leitura como
importante arma contra o analfabetismo funcional, mas de somar um
conhecimento lingüístico a outro, visto que, para a leitura e compreensão
plena de textos (na modalidade escrita), em seus diferentes gêneros,
inicialmente o indivíduo precisa saber ler o referido texto, só depois é que
ele vai somar a esta habilidade inicial a interação de uma série de elementos
que envolvem a compreensão leitora, como conhecimento de mundo e
enciclopédico, ideologia, formação discursiva, dentre outros elementos
discursivos e pragmáticos que envolvem esta interação.
Se é fato que o indivíduo, quando não for bem alfabetizado, vai ter
dificuldade de ler e compreender textos, em seus diferentes gêneros,
conseqüentemente, também terá dificuldade de, a partir do texto, fazer
inferências. Por isso, a necessidade de trabalhos que se voltem para a
formação de professores de ensino de língua materna, incluindo,
especificamente, a formação dos alfabetizadores, sempre com o propósito
de combater (e prevenir) o analfabetismo funcional.
Mas o que se entende por analfabetismo funcional? Concebe-se
como analfabeto funcional o indivíduo que, embora alfabetizado, não
compreende os textos que lê, dificultando, assim, o seu exercício de
cidadania, no que se refere às suas práticas sociais da leitura e da escrita.
Nos trabalhos de nosso grupo de estudo, o foco temático recai sobre a
premente necessidade de uma base teórica atualizada, que fundamente a
ação pedagógica sobre os processos de emergência e aprendizagem inicial
da leitura e da escrita que implicam a aprendizagem neuronial (DEHAENE,
2007), com vistas a práticas sociais efetivas e significativas.
Comprometido com a prevenção e o combate ao analfabetismo
funcional no Brasil, historicamente instalado em nosso sistema
educacional, situa-se o projeto interinstitucional, Ler & Ser: prevenindo o
analfabetismo funcional.

103
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

3. Projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional

Minha participação mais efetiva no projeto ‘Ler & Ser: prevenindo


o analfabetismo funcional’, vinculada ao projeto ‘Letramento, ensino e
sociedade, firma-se no debate e na elaboração de livros-guia do professor e
guia do aluno, e de material didático para as séries iniciais do ensino
fundamental que atendem às metas do referido Projeto: a fundamentação
sobre a teoria subjacente à metodologia da alfabetização para o letramento,
sobre a finalidade e organização dos exercícios e sobre como aplicá-los. 29,
30
Adaptado à realidade do Brasil e de acordo com os princípios do sistema
alfabético do PB (Scliar-Cabral, 2003), elabora-se o material com base nos
recentes achados da psicologia cognitiva (DEHAENE, 2007) e na melhor
experiência mundial de combate ao analfabetismo funcional (Early
Intervention Initiative, Escócia).
Num contexto lúdico, busca-se fazer com que a criança domine e
automatize o reconhecimento dos traços invariantes que distinguem as
letras e os valores dos grafemas, levando-a à identificação da palavra e a
uma leitura fluente. Ajudar o aprendiz a analisar a cadeia da fala,
vinculando cada unidade a um grafema, eis o grande desafio no início da
alfabetização para o letramento, para o qual os professores devem estar
muito bem preparados, tendo ao seu dispor material pedagógico de ponta. 31

4. Alfabetização com e para o letramento no projeto ‘Letramento,


ensino e sociedade’

A alfabetização com e para o letramento constitui uma das metas


do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’, por mim coordenado, no PPG
em Ciências da Linguagem da UNISUL: neste, à semelhança do ‘Ler &
Ser’, o foco recai sobre a formação do professor, no sentido de melhor
habilitá-lo para o exercício de sua prática pedagógica, especificamente no

29
O projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’ constitui-se um projeto
interinstitucional: na UFSC, é coordenado pela professora Emeritus Leonor Scliar-Cabral,
fundadora e coordenadora-geral do projeto. Na Unisul, está sob minha coordenação.
Maiores informações, sugerimos a visita ao blog: http://lereser.wordpress.com.
30
Nome do livro-guia originado do projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo
funcional’, que está sendo lançado pela Unisul: ‘Alfabetização: aprendizagem neuronial
para as práticas de leitura e escrita’.
31
Mais informações sobre o projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’, ver
em anexo.

104
Mariléia Reis

que se refere ao avanço das descobertas das neurociências sobre o modo


como se dá o processamento das habilidades de leitura e escrita no cérebro
humano, bem como o conhecimento dos princípios do sistema alfabético do
PB, atualizados segundo o novo Acordo Ortográfico, assinado pelo
presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em outubro de 2008. 32
No projeto, desenvolvem-se trabalhos que concebem o letramento
como práticas e eventos relacionados ao uso, função e impacto social da
escrita na e da sociedade. Nesta perspectiva, a concepção de letramento
vincula-se aos eventos e práticas comunicativas mediados pelo texto verbal.
Entende-se que, para alfabetizar letrando, atribuem-se múltiplas funções e
significados ao termo letramento, manifestos a partir de diferentes
agências: agência de letramento escolar, religiosa, política, familiar, etc..
Nesses termos, trabalha-se a alfabetização com e para o letramento, ou seja,
prepara-se o professor para que ele alfabetize o estudante, com o propósito
de prepará-lo para o exercício pleno de cidadania.
No aspecto cognitivo, o ‘Letramento, ensino e sociedade’ aborda a
aprendizagem de leitura e escrita com base nos avanços das neurociências,
no que se refere à descoberta da região do cérebro que processa a leitura,
conforme Dehaene (2007), e com base nos princípios do sistema alfabético
do PB, conforme Scliar-Cabral (2003a; b).
Os artigos e dissertações oriundos do referido projeto têm-se como
objetivos: a) operacionalizar ações consistentes e continuadas para reduzir
o analfabetismo funcional, com cursos de formação inicial e continuada a
docentes sobre a aprendizagem da leitura e da escrita voltada para as
práticas sociais; b) elaborar material didático de apoio tanto para
professores do ensino fundamental quanto para alunos, visando à
operacionalização dos pressupostos teórico-metodológicos da Proposta
Curricular de Santa Catarina (1998; 2005) e dos princípios do sistema
alfabético do PB; c) aprofundar reflexões interdisciplinares sobre a
formação do professor de língua (incluindo o professor alfabetizador) na
sociedade multicultural, visando à inclusão do alfabetizando nas práticas
multimodais de fala e escrita, habilitando-o para o uso da língua nos seus
múltiplos registros e variedades sociolingüísticas.
Tais objetivos constituem uma proposta de aprendizagem da leitura
com e para o letramento, na medida em que criam condições para que o
aluno, desde os anos iniciais, possa firmar, de forma progressiva e
integrada, suas potencialidades de interação com o mundo da escrita e da

32
Sítio: www.unisul.br/linguagem.

105
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

leitura: uma vez que se tenha material pedagógico bem fundamentado


teórico e metodologicamente para a aprendizagem da leitura como uma das
mais importantes práticas sociais, e elaborado de maneira sistematizada,
cuja complexidade cognitiva do processo da alfabetização seja disposta
numa escalaridade ascendente, firma-se a tentativa de se romper com a
fragmentação encontrada na maioria do material pedagógico, que
atualmente circula no mercado, destinado às séries iniciais de
escolarização.
Aborda-se, então, o estudo das interações orais e escritas como
componentes de práticas socialmente situadas: uma vez que os textos são
entendidos como realizações da linguagem em práticas discursivas e
sociais, a alfabetização com e para o letramento, no projeto ‘Letramento,
ensino e sociedade’, também se volta às pesquisas que procuram dar conta
dos âmbitos social (gênero textual, discurso, identidades, relações sociais) e
cognitivo (produção, recepção e representação) das interações. 33

5. Considerações finais

Através das descobertas das pesquisas das neurociências (na sua


maioria, decorrentes de imagens de ressonância magnética,
eletroencefalografia e magnetoencefalografia), Dehaene (2007) levou-nos a
compreender melhor o processamento da leitura no cérebro e o modo como
aprendemos a ler: como o sistema de escrita do português é alfabético, estes
estudos evidenciam que as novas metodologias de alfabetização devem
contemplar estratégias de trabalho que relevem a importância da
consciência fonológica no processo de aprendizagem de leitura.
E, uma vez que se concebe o fonema como um feixe de traços cuja
função é a de distinguir significado, ao relevarmos a importância da
consciência fonológica na alfabetização, ainda que tal estratégia muito se
aproxime ao que tradicionalmente se conhece como método estritamente
fônico, não se poderá jamais confundi-la à dessemanticização por que
passaram tais métodos mecânicos de repetição de sons e sílabas sem
sentido, por exemplo, em décadas passadas.
Como vimos na introdução desse trabalho, a topologia neuronial do
processamento da leitura é traçada por uma rede complexa e crescente de

33
As dissertações vinculadas ao projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’ estão arroladas
nos anexos.

106
Mariléia Reis

interconexões entre vias visuais (que reconhecem as letras), vias auditivas e


motoras da palavra oral e vias que processam o sentido (e que podem nos
instruir sobre a forma como a criança vai aprender a ler o sistema escrito):
tal descoberta representa, de fato, um grande avanço para os professores
alfabetizadores e para o ensino-aprendizagem da leitura em todos os níveis
de escolarização. Entretanto, ela poderá representar um grande avanço,
mas, diríamos, pouco produtivo, se não se converter em material didático-
pedagógico que atenda às necessidades e ansiedades com que nos
deparamos na nossa prática docente. Por isso as pesquisas dos projetos ‘Ler
& Ser: combatendo o analfabetismo funcional’ e ‘Letramento, ensino e
sociedade’ contemplam efetivamente a publicação de instrumentos de
trabalho para o professor e para o aluno, e estes instrumentos firmam-se, de
fato, como uma de suas principais metas e desafio.
A preocupação na elaboração de material didático dá-se pelo fato
de se ter conhecimento da precariedade de trabalhos disponibilizados na
área: por isso ele dirige-se a todos quantos estejam empenhados no
processo de alfabetizar com e para o letramento. Em primeiro lugar,
porque, apesar dos esforços dos educadores, o índice de analfabetismo
funcional no Brasil ainda é muito alto, e pretendemos combatê-lo, porém,
antes, preveni-lo, desde a fase inicial da aprendizagem da leitura. E sabe-se
que os professores estão conscientes disso e mais ansiosos do que ninguém
para que seus alunos aprendam a ler os textos escritos que circulam à sua
volta, com compreensão, desde os não-escolares, como os jornais,
anúncios, avisos, instruções ou informações no computador, por exemplo,
até os tradicionalmente encontrados no contexto escolar, como os textos do
livro didático, textos ficcionais (romance, poemas), dentre tantos outros; e
também para que os estudantes aprendam a redigir de modo eficiente, no
sentido de fazerem-se entender quando precisarem fazer uso da palavra
escrita, seja no simples envio de uma correspondência, ou no exame escrito
para conseguirem um emprego, ou para entrarem, por exemplo, na
universidade.
Tais materiais pedagógicos têm por alvo fazer com que os
professores: a) obtenham melhores resultados com seus alunos e sintam-se
mais confiantes nas suas práticas, despertando nestes o gosto e a apreciação
pela leitura e escrita; b) entendam melhor as dificuldades de seus alunos e
saibam como contorná-las; c) tenham à sua disposição um material de
qualidade, sabendo para que serve, por exemplo, cada exercício nele
concebido, e como deve ser utilizado em suas aulas.

107
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

6. Anexos

Anexo 1: Síntese da proposta do projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o


analfabetismo funcional’

“O projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional busca


responder a um grande desafio no mundo contemporâneo: como fazer com
que nossas crianças e jovens se insiram em um novo mundo do trabalho,
que exige proatividade e competências para uma educação continuada.
O que se entende como analfabetismo funcional? Significa que o
sujeito, embora seja capaz de identificar as letras, não consegue
compreender aquilo que leu. Não consegue, a partir de um texto básico,
agir proativamente, elaborar novos conceitos ou associar a informação
recém-obtida com aquela derivada de outras fontes. Além disso, como o
pensamento lógico-matemático também depende do entendimento de
conceitos que são textuais, o desempenho em matemática, ciências e outras
disciplinas fica comprometido. Isto representa, em um mundo com rápidas
e constantes mudanças tecnológicas, que o analfabeto funcional não
consegue manter uma educação continuada, imprescindível no mundo do
trabalho. Além disso, ele também vê comprometida sua atuação como
cidadão de direito: é um estrangeiro em seu próprio país.
Segundo Scliar-Cabral (2007), a situação no Brasil é agravante: na
faixa etária dos brasileiros de 15 a 64 anos temos: 7% de analfabetos
absolutos; no nível rudimentar, temos 25%; no nível básico, temos 40%.
Apenas 28% conseguem o nível pleno de letramento (INAF, 2007). 32%
dos brasileiros não têm as condições mínimas para o exercício da
cidadania, nem para refazer a leitura de mundo, a partir da leitura da
palavra (FREIRE, 2002, p. 54). A situação não é diferente nos estados do
Sul, que possuem um desenvolvimento econômico maior. Santa Catarina e
Paraná, os dois estados contemplados com este projeto, apresentam índices
de analfabetismo funcional na sua população com mais de 15 anos que
ultrapassa os 15% e, muitas vezes, atinge os patamares de 30%.
Como todos os problemas de difícil solução, também aqui o
cenário é complexo, mas é possível, e muito, alcançar bons resultados no
combate ao analfabetismo. O projeto Ler & Ser pretende dar respostas a
esta questão. O objetivo é realizar uma ação consistente e continuada para
reduzir o analfabetismo funcional nos municípios participantes, com vistas
à educação para qualificação profissional e para a garantia dos direitos da

108
Mariléia Reis

criança e do adolescente: na base de ambos encontra-se a competência para


a leitura.
O fundamento metodológico do projeto parte de duas experiências
bem sucedidas: a dos Círculos de Cultura em Angicos, de Paulo Freire e a
do programa Iniciativa de Intervenção Precoce (Early Intervention
Initiative) de Dunbartonshire, na Escócia. Este último programa conseguiu
reduzir o analfabetismo funcional de 28% para 6%.
O projeto divide-se em quatro fases bem delimitadas:

a) elaboração dos materiais de apoio;


b) capacitação dos multiplicadores;
c) capacitação dos professores;
d) atendimento direto.

Cada uma destas fases segue um cronograma próprio, que inclui


seleção dos participantes, acompanhamento dos resultados, adequação de
processos, etc. Atualmente, já estamos trabalhando na elaboração dos
materiais de apoio, captando e recursos e fechando parcerias. Além do
benefício direto esperado – redução do analfabetismo funcional – o projeto
agrega outros: estímulo à participação das famílias e comunidades;
articulação com o poder público para implementação de estratégias
eficientes em alfabetização e inclusão do respeito à diversidade
sociolingüística na agenda da educação.
O objetivo do Projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo
funcional, é um passo para garantir o direito que toda criança, adolescente e
jovem adulto têm ao letramento pleno, com isso ampliando o acesso à
cidadania e à empregabilidade. Serão formados 500 multiplicadores e 2.586
professores, que atenderão uma população de 131.458 crianças e jovens.
Um projeto que poderá ser replicado em outros municípios de todo o
Brasil. Além disso, o uso das mídias sociais permitirá a troca de
experiências, a melhoria continua do projeto e ampliação dos resultados”.
(SCLIAR-CABRAL, 2007)

109
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

Anexo 2: Figuras

Figura 1: Modelo neurológico da leitura x visão moderna das redes corticais da


leitura, conforme Dehaene (2007)

Figura 2: Hemisfério esquerdo – a palavra escrita, conforme Dehaene (2007)

110
Mariléia Reis

Anexo 3 - Dissertações do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’

Até o momento, foram defendidas as seguintes dissertações: 34

SILVA, Raquel da. A conversão do fonema /S/ em contextos competitivos: um


estudo exploratório com professores do ensino fundamental.
GONÇALVES, Suzete da Rosa. A Língua Portuguesa no Ensino Fundamental a
partir da avaliação discente: perspectiva de letramento num estudo de caso.
CARDOSO, Maria Angélica. Leitura de diferentes linguagens em suporte de texto
não-escolar: o gênero embalagem de produtos alimentícios na atividade
pedagógica.
DIAS, Almerinda Tereza Bianca Bez Batti. Apagamento do fonema /r/ pós-
vocálico em textos orais de informantes em fase final de aquisição da linguagem
estudo de caso.
POSSAMAI, Darlei. Filosofia no Ensino Médio: o gênero em História em
Quadrinhos numa perspectiva de letramento.
PEREIRA, Gerusa. Monotongação dos ditongos orais [ay], [ey] e [ow] no
português falado em Tubarão (SC): estudo de casos.
TRENTO, Lisandra. A posteriorização [õw] na alternância fônica do ditongo
nasal [ãw] na fala de informantes bilíngües de terceira idade do município de
Treze de Maio (SC) evocação da tradição ítalo-brasileira.
LUZ, Silvana Edinezia Campos da. Gestão democrática escolar e capacitação
continuada de gestores:(res)significação da linguagem no contexto escolar.

Referências

BRASIL, Secretaria de educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua
portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental/Brasília: MEC/SEF, 1998.
DEHAENE, S. Les neurones de la lecture. Paris: Odile Jacob, 2007.
PELANDRÉ, N. L. Ensinar e aprender com Paulo Freire. São Paulo: Cortez,
2002.
SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia.
Proposta Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos. Florianópolis: IOESC,
2005.

34
Todas as dissertações do PPGCL estão disponibilizadas (na íntegra) no site do PPGCL:
www.unisul.br/linguagem. As demais dissertações, por mim orientadas, mas que fazem
parte do então projeto PROCOTEXTOS, também estão disponibilizadas no referido site.

111
Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento

_____. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta Curricular de


Santa Catarina: educação infantil, ensino fundamental e médio (disciplinas
curriculares). Florianópolis: COGEN, 1998.
SCLIAR-CABRAL, L. Guia prático da alfabetização. São Paulo: Contexto, 2003.
_____. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo:
Contexto, 2003.
_____. Projeto Ler&Ser, combatendo o analfabetismo funcional. Dezembro de
2007.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de
Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 2004, No. 5.

112
PARTE II

ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS


SEMÂNTICOS
LINGUAGENS, CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS
NA FORMULAÇÃO DO CONHECIMENTO

Marci Fileti Martins


Rosângela Morello
Solange Leda Gallo

1. Introdução

A Análise do Discurso tem diferentes abordagens em diferentes


países e línguas. Como exemplo disso, poderíamos citar a Análise do
Discurso proposta por Zelig Harris, nos EUA, nos anos 50, ou a Análise do
Discurso proposta por Michel Foucault, na França, nos anos 60-70, duas
concepções originais, com motivações bastante diferentes. No primeiro
caso, trata-se de uma proposta situada no campo lingüístico e que se propõe
a alargar o alcance semântico, até então reduzido à frase, para um contexto
enunciativo por meio de procedimentos distribucionais. Como diz Brandão
(1994, p. 15),

embora a obra de Harris possa ser considerada o marco


inicial da análise do discurso, ela se coloca ainda como
simples extensão da lingüística imanente na medida em que
transfere e aplica procedimentos de análise de unidades da
língua aos enunciados e situa-se fora de qualquer reflexão
sobre a significação e as considerações sócio-históricas de
produção que vão distinguir e marcar posteriormente a
análise do discurso.

Em relação à Análise do Discurso proposta por Foucault, as


condições de formulação são outras, muito diferentes. Já em Arqueologia
do Saber (obra de 1969), ele se expressa a respeito de seu trabalho de
análise da seguinte maneira (1997, p. 226-227):

Se falei de um discurso, não foi para mostrar que os


mecanismos ou os processos da língua aí se mantinham
integralmente; mas, antes, para fazer aparecer, na densidade
das performances verbais, a diversidade dos níveis possíveis
de análise; para mostrar que, ao lado dos métodos de
estruturação lingüística (ou dos de interpretação), podia-se
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

estabelecer uma descrição específica dos enunciados, de sua


formação e das regularidades próprias do discurso. Se
suspendi as referências ao sujeito falante, não foi para
descobrir leis de construção ou formas que seriam aplicadas
da mesma maneira por todos os sujeitos falantes, nem para
fazer falar o grande discurso universal que seria comum a
todos os homens de uma época. Tratava-se, pelo contrário,
de mostrar em que consistiam as diferenças, como era
possível que homens, no interior de uma mesma prática
discursiva, falassem de objetos diferentes, tivessem opiniões
opostas, fizessem escolhas contraditórias; tratava-se também
de mostrar em que as diferentes práticas discursivas se
distinguiam umas das outras; em suma, não quis excluir o
problema do sujeito; quis definir as posições e as funções
que o sujeito podia ocupar na diversidade dos discursos.

Assim, quando Michel Pêcheux propõe a Análise do Discurso,


enquanto um método analítico e uma teoria, alguns parâmetros já existiam.
No entanto, Pêcheux procurou estabelecer uma interrelação de áreas ainda
mais ousada, colocando em conexão a lingüística, a psicanálise e o
marxismo. Para Henry (1990, p. 34),

no momento em que escreve A Análise Automática do


Discurso (1969)... Pêcheux segue mais Althusser que Lacan,
Derrida ou Foucault... Os sujeitos de Lacan, Foucault e
Derrida são ligados à linguagem ou ao signo. A referência à
ideologia não tem as mesmas implicações que a referência à
linguagem. Althusser (por sua vez) não estava
particularmente interessado na linguagem, e é aí que
chegamos ao âmago daquilo que tem a ver com Pêcheux: as
relações entre a linguagem e a ideologia. Para fazer isso, ele
só tinha a sua disposição a indicação formulada por
Althusser sobre o paralelo entre a evidência da transparência
da linguagem e o “efeito ideológico elementar”, a evidência
segundo a qual somos sujeitos. Althusser estabeleceu o
paralelo sem estabelecer uma ligação. E foi para expressar
essa ligação que Pêcheux introduziu aquilo que ele chama
discurso, tentando desenvolver uma teoria do discurso e um
dispositivo operacional de análise do discurso. O discurso de
Pêcheux (portanto) não é o de Foucault.

Pode-se dizer que a análise discursiva de Pêcheux teve sua


fundamentação mais forte em 1971, na obra Semântica e discurso (Les
vérités de la palice, no original francês), conforme considera Maldidier
(2003, p. 32):

116
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

O materialismo histórico é a posição explícita de onde se


realiza a intervenção epistemológica contra uma dupla
ameaça, a do empirismo, “a problemática subjetivista
centrada no indivíduo” e a do formalismo que confunde “a
língua como objeto com o campo da linguagem”. É a partir
do materialismo histórico que se faz a indicação de novos
objetos, no caso o discurso, explicitamente posto em relação
à ideologia. Mas Michel Pêcheux decididamente nos
surpreenderá sempre. Em algumas linhas apertadas em que
cada palavra é um conceito, ele lança, como um navio
incendiário, a primeira formulação da teoria do discurso.
As formações ideológicas [...] comportam necessariamente
como um de seus componentes uma ou mais formações
discursivas interrelacionadas que determinam o que pode e
deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um
sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa,
etc) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada.
Tudo, ou quase tudo já estava em seu lugar. Curiosamente,
Althusser não foi nomeado.

Pêcheux publica uma crítica a sua própria obra referida acima.


Nessa crítica ele aproxima-se ainda mais da psicanálise, sem, entretanto,
abrir mão do caráter ideológico da produção de sentido (1988, p. 300):
Continua, pois, bastante verdadeiro o fato de que o “sentido”
é produzido no ‘non-sense’ pelo deslizamento sem origem
do significante, de onde a instauração do primado da
metáfora sobre o sentido, mas é indispensável acrescentar
imediatamente que esse deslizamento não desaparece sem
deixar traços no sujeito ego da “forma-sujeito” ideológica,
identificada com a evidência de um sentido. Apreender até o
seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual,
supõe reconhecer que não há ritual sem falhas;
enfraquecimento e brechas, “uma palavra por outra” é a
definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual
se estilhaça no lapso.

Assim proposta, a Análise de Discurso na perspectiva de Pêcheux


tem natureza multidisciplinar. A unidade semântica é a formação
ideológica, que resulta em uma formação discursiva que não é linear nem
tem limites precisos, apenas dominância. Nosso interesse está no fato de
que, por essa perspectiva discursiva, se pode trabalhar com o sentido
produzido em qualquer forma, seja ela verbal, imagética, sonora, ou muitas
formas conjugadas.

117
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

No Brasil, os estudos de Análise de Discurso se desenvolvem em


muitas direções e são realizados hoje por muitos grupos que estão situados
em diferentes regiões e universidades do país, embora tenham sido
iniciados na Unicamp, Campinas, SP, nos anos 80, por Eni Orlandi, autora
de muitas obras da área. Em um de seus livros, intitulado Análise do
discurso – princípios e procedimentos, Orlandi se refere à Análise de
Discurso da seguinte forma (1999, p. 15):

A análise do discurso, como seu próprio nome indica, não


trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas
coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra
discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de
percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo
do discurso observa-se o homem falando.
Na análise de discurso, procura-se compreender a língua
fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do
trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua
história.

Dentro desse contexto teórico e metodológico, inscrevemo-nos na


linha de pesquisa Análise discursiva de processos semânticos do Programa
de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul. Essa linha de
pesquisa reúne trabalhos envolvendo, por um lado, a análise de materiais
produzidos pela mídia e, por outro, uma investigação sobre o papel da
ciência na sociedade contemporânea. Nas pesquisas sobre a mídia,
entendemos como materiais midiáticos tanto textos verbais como não-
verbais, e o objetivo do projeto é o de investigar a materialidade histórica
e/ou os processos semânticos desses textos: cinema, imprensa, TV, rádio,
WEB, já que a mídia enquanto discurso produz deslocamentos e efeitos de
sentido próprios, ou seja, sentidos relacionados a um maior ou menor grau
de espetacularização.
Nessas pesquisas sobre a mídia, destacamos que nos interessa
discutir questões envolvendo a linguagem do audiovisual na
contemporaneidade. Teixeira (2008, p. 283), tratando do documentário,
afirma que, nas ultimas décadas, “o campo do documentário passou por
mudanças estrondosas, introduzidas pela cultura cibernético-informacional
[...]. E, em meio a esse turbilhão de transformações, [...] abriram-se as
comportas do documentário para processos de hibridização que mobilizam
vastos materiais”. Além disso, observam-se nesses audiovisuais,
características de uma linguagem de documentário diferenciada, se

118
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

levarmos em consideração o modo como se dá o tratamento da imagem: a


câmera se apresenta com mais dinamicidade, ou seja, não está estática,
estabilizada e o áudio já não é limpo, pois capta-se o “ruído” do ambiente
que passa a integrar a narrativa. Os planos, enquadramentos, closes também
fogem do padrão clássico. Segundo Nunes e Martins (2007, p. 9), esses
materiais parecem se aproximar de alguns audiovisuais que vemos surgir na
Internet, materiais estes que escapam também da linguagem audiovisual
clássica.

No caso dos vídeos da Internet, isso se deve, provavelmente,


ao acesso cada vez mais fácil à tecnologia de gravação de
vídeo possibilitando que um grande número de pessoas
leigas nas técnicas de produção de audiovisuais possa
produzir materiais e divulgá-los por meio da Internet. O
resultado, em muitos casos, são vídeos em que a câmera não
está estática, que captam os ruídos do ambiente e apresentam
uma montagem que foge aos padrões convencionais.

A investigação sobre ciência, por sua vez, parte dos trabalhos do


grupo de pesquisa registrado no CNPq, sob o título Produção e divulgação
de conhecimento científico. Os objetivos do grupo envolvem uma discussão
sobre a produção do conhecimento científico na contemporaneidade,
ressaltando os modos como esse conhecimento circula e é divulgado. De tal
modo, temos interesse em analisar corpora de textos que se inscrevem no
discurso da ciência e da divulgação/circulação científica. Nossa abordagem
tem incidido, atualmente, em quatro eixos de reflexão: questões de autoria;
ciência: processos e produtos; discurso científico na contemporaneidade:
heterogeneidade e descontinuidade; e línguas, ciências e tecnologias.

2. Questões de autoria

Um dos focos principais de nosso trabalho é refletir sobre


principalmente nas questões de autoria. Ou seja, nos interessa, por
exemplo, pesquisar o modo como o sujeito do discurso da divulgação se
relaciona com o seu interlocutor cientista e ao mesmo tempo com seu
interlocutor, o leitor leigo e, entre os dois, como ele formula seu texto,
constituindo nessa (incômoda) posição sua autoria. Também nos interessa
saber de que lugar ideológico fala esse autor, por exemplo, se de uma
redação de jornal, se de uma emissora de rádio ou TV, se de uma

119
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

universidade, ou de uma agência de fomento, ou de um centro de pesquisa,


enfim. De acordo com a perspectiva discursiva, cada uma dessas formas de
inscrição discursiva resulta em um tipo específico de autoria e um modo
específico de produção de sentido.
Nossa reflexão tem se pautado não somente por produções
coletadas, mas principalmente pelas nossas próprias produções, ou seja, as
produções do nosso laboratório de produção e divulgação de conhecimento
científico, mais especificamente por meio de nossa revista on-line Ciência
em curso. Para essa revista, produzimos materiais multimodais (foto, vídeo,
texto, áudio, software), em interação com os pesquisadores do núcleo ou
grupo que está sendo divulgado. Nessa interface, Ciência em curso procura
representar, pela sua apresentação em espiral, o movimento contínuo que
caracteriza a produção científica. Pelo jogo das formas de linguagem
(verbal e não-verbal), procura produzir um espaço para discutir a ciência,
sua forma de se constituir e se mostrar para a sociedade. É, portanto, uma
proposta que investe na relação do sujeito com a linguagem (e o sentido)
para tratar da produção de conhecimento, mas o faz pautada na premissa de
que tal relação é determinada por condições históricas, pelo que já está dito,
visto, significado.
Como já foi mencionado, a análise do discurso é uma disciplina de
interpretação de textos, mas não se trata de um tipo de interpretação que
parte da questão o que o texto significa? Mas sim, como o texto significa?
Ou melhor, não se trata do que o autor do texto quis dizer, mas de outra
questão: quais os saberes necessários para que se compreenda o texto?
Esses saberes são de âmbito social, histórico e ideológico.
O desenvolvimento dessa proposta se organiza por meio de noções
que procuram dar consistência a uma abordagem dos processos discursivos
que estão na base da produção do sentido e do sujeito (PÊCHEUX, 1990),
portanto, da produção de conhecimento. De fato, a proposta metodológica
da análise do discurso nos leva a identificar os processos de formulação
como discursos que se constituem em relação a condições de produção
específicas e históricas. Dessas condições faz parte todo o aparato
institucional e social que regula a produção do conhecimento, assim como
as posições que os investem, com as quais o sujeito se identifica e a partir
das quais enuncia – sempre marcado por relações de contradição, por conta
das relações de força e divisões em jogo. Queremos com isso dizer que o
sujeito do discurso não é somente um sujeito que enuncia, mas um sujeito
que está determinado pelo contexto social, pela história e pela ideologia no
momento dessa enunciação.

120
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

Assim como a dimensão social, na sua amplitude máxima não é


acessível ao sujeito da enunciação, tampouco a dimensão histórica o é. Os
sentidos dos enunciados estão se constituindo desde muito antes da
existência de cada sujeito falante em particular e vão para muito além de
sua enunciação. Esse contínuo do sentido, na sua totalidade, é inacessível
ao sujeito. Por essa razão, o sujeito não tem controle sobre os efeitos de
sentido daquilo que ele enuncia.
O sujeito do Discurso, portanto, diferente do sujeito da enunciação,
é um sujeito que tem uma dimensão inconsciente, ou seja, uma esfera do
impensado, do esquecido, do não presente na consciência. São sentidos não
enunciados, não ditos, que acompanham todo dizer e que significam à
revelia do desejo de controle do sujeito, porque a posição que cada um de
nós ocupa em um discurso produz sentidos que estão sempre-já-lá e que
nós atualizamos. Na Análise do Discurso esse é considerado o espaço do
interdiscurso.
Todo espaço discursivo, portanto, tem uma forma de sujeito já
cunhada historicamente, pronta para receber a inscrição dos indivíduos que
aí se identificam (mais ou menos) e assumem uma posição em relação a
essa forma-sujeito. Essa inscrição não dá sem confrontos, pois esse espaço
discursivo é sempre heterogêneo e múltiplo.
No caso da Revista Laboratório Ciência em Curso, por exemplo,
estão em confronto a posição-sujeito cientista, a posição-sujeito jornalista, a
posição-sujeito técnico (informática), sem falar naquelas que são relativas
ao discurso acadêmico (professor, aluno etc.). Essas posições são
historicamente constituídas e são lugares de identificação e de identidade.
Na consideração dessas posições, importa enfatizar que elas se realizam
como projeções imaginárias que constituem a formulação, de modo que
esta se materializa como um espaço de significação clivado pela relação
com o já-dito e o dizer, pela injunção entre fazer vínculo com o formulado
e dizer-se em um novo sentido.
Acolhemos, desse modo, a heterogeneidade das formulações,
propondo séries de instalações discursivas no âmbito das atividades que
promovemos. De acordo com Orlandi (2001), a formulação, juntamente
com a constituição e a circulação, apresenta-se como um dos momentos
relevantes dos processos de produção dos discursos.
Para a autora (1999, p. 9), é na formulação que

[...] a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que


os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se

121
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

esconde). Momento de sua definição: corpo e emoções da/na


linguagem. Sulcos no solo do dizer. Trilhas. Materialização
da voz em sentidos, do gesto em escrita, em traço, em signo.
Do olhar, do trejeito, da tomada do corpo pela significação.
E o inverso: os sentidos tomando corpo.

3. A ciência: processos e produtos

A divulgação feita pela Revista Laboratório Ciência em Curso


pretende, como dissemos, ser diferenciada, já que todo o trabalho de
pesquisa divulgado é apresentado de maneira contextualizada, ou seja, são
importantes para a divulgação as informações sobre o contato dos grupos
com outros grupos que desenvolvem pesquisas similares, a situação dos
grupos de pesquisa no cenário científico nacional e internacional que lhes é
pertinente, as condições materiais de implantação e de manutenção dos
grupos de pesquisa, e as formas de incentivo das instituições de ensino
superior e dos órgãos de fomento.
Além disso, a divulgação feita pela Revista, que se utiliza de
diferentes mídias: áudio, vídeo, texto (hipertexto), e parte-se de um tema de
pesquisa que se apresenta inicialmente como argumento para um debate
maior que se desenvolverá no decorrer do tempo. O internauta, por sua vez,
vai interagir, podendo escolher os caminhos para entendimento deste tema,
sem compromisso com a linearidade (www.cienciaemcurso.unisul.br).
Contudo, mesmo tendo como objetivo “captar a ciência no seu
movimento/percurso, na busca de um aprofundamento constante, e não
como produto acabado e inequívoco”, o que temos observado neste
exercício efetivo de levar a ciência para o grande público, ou melhor, para
certo tipo de leitor que não é um cientista, é a complexidade do processo: o
texto de divulgação não pode ser hermético, mostrando-se como outra
versão de um artigo científico, nem tampouco pode transformar o tema
ciência em notícia, como faz o jornalismo.
De fato, o que se vê, hoje, nos textos de divulgação de ciência,
sobretudo, os de jornalismo científico, é uma tendência a fazer prevalecer
conhecimentos da mídia sobre ciência, isto é, o que é determinante aí é uma
memória da ciência tratada como notícia: um acontecimento científico é
atualizado, transformando o “fato” pela objetividade jornalística.
Objetividade esta, intensamente desdobrada, através da manipulação da
língua que, enquanto código “sem falhas”, é o instrumento capaz de
referencializar a realidade dos fatos, o que constrói, segundo Mariane

122
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

(1998, p. 72), “o mito da informação jornalística com base noutro mito: o


da comunicação lingüística”. Este imaginário permite ao sujeito que
enuncia (o jornalista) ser “neutro e imparcial”, capaz de relatar os
acontecimentos, a realidade, para um leitor (o grande público) que, por ser
considerado uma tabula rasa, precisa receber a informação de forma “clara
e objetiva”.
De tal modo, produz-se uma memória da ciência, que se constitui
pela mídia e não pela própria ciência. O resultado disso é um simulacro de
ciência exposto à população leiga, simulacro este que surge como efeito da
não-explicitação das condições de produção da pesquisa científica. Para o
público leigo, a ciência se produz de forma descontextualizada e
descontínua. Esse efeito se produz, segundo Gallo (2004, p. 3), justamente
porque a continuidade, quando existe, é resultante de outros textos sobre o
mesmo tema publicados anteriormente pela própria mídia, e não pelo
conhecimento da história da ciência e da pesquisa em questão:

Estamos considerando simulacro o que resulta de um


processo de transferência de um sentido construído em um
determinado discurso (que lhe sustenta historicamente,
socialmente e ideologicamente) para outro discurso que tem
outra sustentação histórica, social e ideológica e que,
portanto, vai interpretar esse “sentido transferido” de uma
maneira própria, certamente diferente. Dessa mesma
maneira, nos parece funcionar o que se diz “ciência” no
Discurso de Divulgação, ou seja, trata-se de uma forma de
ciência, aquela que a memória do discurso que a divulga,
produz. Nesse lugar discursivo, a ciência nos parece ser
simulacro.

Por outro lado, sabe-se que o discurso científico também tem uma
memória que determina seu lugar na sociedade como outro “discurso de
verdade”, ou seja, sob o prisma de seu objetivo e de seu método, que pode
ser considerado pela via da razão (ciência cartesiana) ou pela via da
demonstração (ciência positivista), a ciência está sempre pautada em buscar
a “verdade e, àqueles que a manipulam ou mesmo dela se beneficiam,
assiste o dever de interpretá-la como tal” (LAVILLE; DIONNE, 1999).
Da perspectiva teórica na qual nos situamos, a Análise do Discurso,
que leva em consideração as determinações históricas e ideológicas para a
constituição da linguagem e, por conseguinte, dos sentidos, pensar o
discurso científico ou o discurso jornalístico, implica em fazer “uma crítica
à afirmação do obvio” (PÊCHEUX, 1988), implica desestabilizar esta

123
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

memória que garantiu às práticas discursivas tanto da imprensa quanto da


ciência, tornarem-se tão “naturalizadas” que os seus sentidos são
considerados “evidentes, legítimos e necessários”. Para isto, é preciso que
se revelem as suas reais condições de produção, o papel do processo
histórico-ideológico de sua constituição.
Portanto, o tipo de divulgação a que se propõe a Revista Ciência
em Curso incide nessa forma de constituição dos textos de divulgação, de
modo a torná-los mais conseqüentes do ponto de vista histórico, político e
social. Podemos adiantar que, como ponto de partida da investigação,
seguimos uma dupla forma pela qual os modos de formulação se
apresentam historicamente: em uma, a forma ancorada nos espaços de
representação estabelecidos, como aqueles dos projetos, diretórios de
pesquisas, periódicos, instituições. Um mapeamento desses espaços
constitui, portanto, uma atividade importante para compreendermos os
modos de formulação. Na outra forma, temos as formulações em processo,
que se perfazem como tais num continuum, passíveis apenas de pontuações
provisórias, de instantes de estabilização. Localizar ou desenvolver
instrumentos de formulação que acolham esse continuum constitui um
desafio específico da pesquisa.
Essa dupla forma de existência dos modos de formulação afeta os
sentidos de produção, e nos coloca sob uma tensão específica entre o que se
dá como produto e sua contraface, o processo. Assim, a concepção que
trazemos de produção contempla, por princípio, essa marca de
transitividade entre processo-produto-processo, fato que nos obriga a
assumir, desde já, uma posição reflexiva e crítica sobre os sentidos do
conhecimento que tomamos na rede de memória. E que desenvolveremos
ao longo da pesquisa.
Em relação a isso, importa comentar que a divulgação científica
produzida em uma universidade se difere daquela produzida por um veículo
de comunicação de massa. Esse fato traz conseqüências relativas ao
discurso aí transverso, ao seja, ao pré-construído (memória) do discurso
acadêmico. Esses todos são aspectos com os quais estamos todos
envolvidos, hoje, enquanto pesquisadores, como os espaços cibernéticos e
suas conseqüências, as redes cada vez mais complexas, as novas formas de
autoria, as formas instantâneas de produção e absorção de conhecimento.
Os resultados de nossas pesquisas são ressignificados por esses
atravessamentos que não são somente tecnológicos, mas principalmente
discursivos e que deslocam permanentemente nossas posições.

124
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

4. O discurso científico na contemporaneidade: heterogeneidade e


descontinuidade

Esse eixo de pesquisa pretende levantar questões envolvendo a


produção do conhecimento científico, discutindo, especificamente,
possíveis paradoxos e rupturas que parecem estar constituindo o discurso
científico na atualidade. A sociedade contemporânea, denominada por
alguns de pós-moderna, caracteriza-se por uma conjuntura instável, em que
estão em jogo transformações de ordem social, política e econômica.
Bauman (2001), tratando dessa questão, denomina de “modernidade
líquida” esse movimento de transformação e rupturas da atual sociedade
com certos valores tradicionais e estabilizados (“modernidade sólida”), que
se constituíram a partir do advento de valores clássicos. Para o autor, na
“modernidade líquida” tudo é volátil e as relações sociais não são mais tão
tangíveis, pois o trabalho, a política, a vida em conjunto, a familiar, de
casais, de grupos de amigos, perdem consistência e estabilidade. Dessa
perspectiva, Bauman (idem) acredita que a sociedade contemporânea se
constitui por uma conjuntura heterogênea, em que se inter-relacionam esses
dois momentos histórico-sociais conflitantes. Já Lyotard (2002, p.3),
discutindo o que ele denomina “condição pós-moderna”, destaca que as
transformações de ordem cultural pelas quais passa a sociedade
contemporânea envolvem o fim das metanarrativas. Conseqüentemente,
segundo ele, os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito
e não haveria mais “garantias”, posto que mesmo a “ciência” já não poderia
ser considerada como a fonte da verdade.
A partir do entendimento dessas condições de produção, estamos
interessados em compreender o lugar da ciência na atualidade, que parece,
em certa medida, refletir essa conjuntura, ao se distanciar tanto de um
racionalismo/positivismo exclusivista, que ortodoxamente constituíram o
discurso da ciência, quanto do lugar de poder ocupado pela ciência na nossa
sociedade. Essa reflexão parte da análise de materiais, como artigos
científicos, monografias entre outros, mas também se dá de forma indireta,
pois a pesquisa também se desenvolve através da análise do discurso
científico ressignificado pelo discurso divulgação de ciência. A Revista
Laboratório Ciência em Curso é um dos espaços de divulgação utilizados
para analisarmos as transformações e rupturas que podem estar afetando a
ciência na contemporaneidade.
Partimos da proposta de Martins (2007) que, na sua análise de
alguns materiais de divulgação científica, destaca certos enunciados, como
“incerteza”, “incompletude”, “imperfeição”, “provisório”, “não pode ser

125
Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

comprovado jamais”, “nada existe a não ser que observemos” e “nós


precisamos da incerteza, é o único modo de continuar”. Estes enunciados
estariam materializando, segundo a autora, certos sentidos sobre ciência
aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso da ciência
concebido tanto “como uma atividade de triagem entre enunciados
verdadeiros e enunciados falsos”, quanto como a produção de um sujeito da
ciência que está “presente pela sua ausência” (PÊCHEUX, 1988, p. 197-
198).
A relevância dessa discussão para a área científica/educacional é
evidente, já que são as instituições acadêmicas, juntamente com os seus
centros tecnológicos, os lugares institucionalizados da produção e
circulação do conhecimento científico na sociedade. E, ao se verificar que o
mundo moderno deu à ciência, de certa forma, a incumbência de encontrar
soluções para os problemas da sociedade e que na contemporaneidade essa
incumbência pode estar sendo minimizada, é especialmente importante
compreender como se dão esses deslocamentos e essas transformações.

5. Línguas, ciências e tecnologias

Esse eixo está sendo estruturado, nesse momento, com o objetivo


de mapear as iniciativas em tecnologias da informação e comunicação
implementadas por e em diferentes línguas brasileiras, discutindo os
alcances sociais e políticos de tais iniciativas na produção e gestão de
conhecimentos. A diversidade das línguas tem sido objeto de atenção de
recentes políticas públicas dos Estados Nacionais. Colocando em foco a
necessidade de fomentar a diversidade, essas políticas refletem uma relação
de tensão e contradição com processos globalizadores das relações de
comunicação e informação engendrados pelas redes de tecnologias digitais.
A compreensão desse quadro no contexto brasileiro constitui o objeto de
nossa pesquisa. Especificamente indagamos sobre o quadro atual das
línguas brasileiras que participam das redes digitais de comunicação e
informação (incluindo a internet), procurando construir uma compreensão
qualificada sobre as formas dessa participação para a implementação de
políticas lingüísticas. No processo de construção desse quadro
interpretativo, refletiremos sobre a documentação lingüística e o
funcionamento das tecnologias de comunicação e informação.
Discutiremos a idéia de que, se as tecnologias são espaços de circulação
massiva de conhecimento, são também, e sobretudo, espaços de produção
de conhecimentos e vínculos que ressoam na gestão das línguas e dos
sujeitos que as falam

126
Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo

Conclusivamente, elaborar essa discussão no entremeio dos


trabalhos de divulgação e dos modos de formulação do conhecimento
significa atuar nas contradições que permeiam as práticas de especialistas
em diferentes áreas – informática, multimídia, lingüística. Essa interlocução
potencializa um espaço para formulação de instrumentos voltados aos
estudos da linguagem, como a Revista Laboratório Ciência em Curso, fato
que justifica e ao mesmo tempo desafia nosso programa de trabalho
interinstitucional. Desse modo, o trajeto que propomos se inicia e retorna
sobre a discussão a respeito da cultura científica e da figuração de redes de
memória.

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Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento

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128
ANÁLISE DO DISCURSO: O CAMPO

Sandro Braga
Maria Marta Furlanetto

1. O nascimento (ou Introdução)

Comecemos por uma tentativa de problematizar o que se entende


pelos termos Análise do Discurso, discurso e pesquisa. Em seguida,
diríamos que responder o que é Análise do Discurso não é uma tarefa fácil.
Definir o que é o discurso, por sua vez, é algo bastante difícil. Falar sobre
pesquisa, sobretudo aquela destinada a localizar os sentidos do fazer
sentido, fazendo uso de uma teoria de Análise do Discurso, é desafiador.
O parágrafo acima, antes que um desestímulo ao leitor, tem a
intenção de encorajá-lo. Pretende pontuar que a Análise do Discurso é uma
teoria que mais se pauta pelo questionar, problematizar e interrogar, que
responder, afirmar e constatar. Desse modo, podemos dizer que, melhor
que conceituar a Análise de Discurso, seria dizer do que trata essa corrente
teórica.
A Análise de Discurso de corrente francesa trata especificamente
do sentido, mais do que isso, dos efeitos do sentido. Ora, quando dizemos
“efeitos do sentido”, já sinalizamos que, para essa teoria, não existe um
único sentido para um discurso produzido. E é justamente por se tratar de
certa pluralidade/multiplicidade que o terreno da análise do discurso é tão
arenoso, difícil de ser percorrido, inclusive, teoricamente. Mesmo assim,
vamos tentar localizar nosso leitor que pretende aventurar-se nesse campo.
A Análise do Discurso francesa foi inaugurada pelo francês Michel
Pêcheux no ano de 1969, com o lançamento do livro Análise automática do
discurso.

[...] em que a grande questão [do estruturalismo] é a relação


da estrutura com a história, do indivíduo com o sujeito, da
língua com a fala, assim como se interroga a interpretação.
[...] Para isto a análise de discurso reúne, deslocando, língua-
sujeito-história, construindo um objeto próprio, o discurso, e
um campo teórico específico. (ORLANDI, 2008, p. 6).
Análise do discurso: o campo

Cabe dizer que, nesse contexto, o estruturalismo vive seu auge na


Europa, sobretudo na França, e se prepõe como paradigma de formatação
do mundo, das idéias e das coisas para toda uma geração de intelectuais.
Como empecilho para essa formatação estava o “sujeito”, elemento
perturbador, uma vez que de difícil (ou impossível) esquadrinhamento não-
físico, o que se tornava um problema para o objeto científico. Assim, o
sujeito fica excluído da proposta estruturante.
As ciências humanas, de certa forma, tocadas pelo descartar da
subjetividade, propõem um movimento problematizando esse paradigma
que impera e traz o sujeito novamente para o centro do panorama teórico. É
dessa forma que a Análise do Discurso nasce. Com um viés político de
intervenção, no que diz respeito aos estudos da linguagem, visa a combater
o contundente formalismo lingüístico da época.
Sintetizamos com Orlandi (2005, p. 15):

A primeira coisa a se observar na Análise do Discurso é que


ela não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato,
mas com a língua do mundo, com maneiras de significar,
com homens falando, considerando a produção de sentidos
enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja
enquanto membros de uma determinada forma de sociedade.

2. Primeiros passos

Na tentativa de localizar o sujeito, a Análise do Discurso vai


propor encontrá-lo na psicanálise e no materialismo histórico. Assim, tem-
se como está formulado este conceito-chave e até hoje fundamental. Da
psicanálise, a AD vai retirar – a partir de Freud e Lacan – a compreensão de
um sujeito desejante, inconsciente e descentrado. No tangente ao
materialismo histórico – a partir de Althusser – compreende o sujeito
assujeitado, constituído pela materialidade da língua e interpelado pela
ideologia.

A Análise do Discurso nasceu em uma zona já povoada e


tumultuada – de um lado, numa esquina, ocupando quase
todo o quarteirão – a lingüística; na outra ponta espaçoso, o
materialismo histórico, e no meio dividindo o espaço lado a
lado com a psicanálise, a teoria do discurso. Portanto, essa
contigüidade, esse convívio fronteiriço entre análise do
discurso e psicanálise vem de longe, vem desde o início. Tais

130
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

vizinhas, contudo, ainda que bastante próximas guardam


distância e não confundem seus espaços comuns – são
íntimas, mas nem tanto, donde há “estranha intimidade”.
(FERREIRA, 2005, p. 213).

Sem medo de redundância, dizemos que o objeto da Análise do


Discurso é o discurso, mais precisamente a constituição do sujeito no limiar
do discurso. Nas palavras de Paul Henry, “o sujeito é sempre e, ao mesmo
tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver
com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de
qualquer cogitação” (HENRY, 1992, p. 188).
Se o sujeito se constitui pela linguagem através do discurso que
assume ou é assujeitado por ele, cabe agora tentarmos alinhavar o que é o
discurso. Para isso, precisamos pensar primeiramente no processo de
comunicação em que a língua serve APENAS para transmitir a informação,
como muitas vezes visto na teoria da informação (cf. Jakobson) em que
entra em cena um emissor, um receptor e, a partir de um canal, consegue-se
propagar uma mensagem. Contrariamente, a noção discurso (cf. Pêcheux)
se opõe a essa formulação, pois com ela se entende que a língua não é
transparente; não há uma relação direta entre a palavra e seu significado.
Desse modo, o discurso é compreendido como o efeito de sentido
produzido no momento em que se dá a interlocução. “O discurso não é
fechado em si mesmo e nem é domínio exclusivo do locutor: aquilo que se
diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social do qual se diz,
para quem se diz, em relação a outros discursos” (ORLANDI, 2006, p. 83).
É no discurso e no cruzamento de suas vias que se interligam os
pontos que unem essa rede discursiva e as sustentam. Desse modo, não se
pode falar em discurso sem acionar outros sentidos e pensar em outros
conceitos que lhe constituem, tais como o de língua, sujeito e história. E
por isso que se entende o discurso não como aquilo que está escondido –
como muitas vezes se pensa em senso comum – ou como sinônimo de
falsidade ou não verdade; ou ainda de que a Análise do Discurso vai
desvendar o que está por trás do discurso; não. A AD busca justamente
localizar o discurso, ou os discursos constitutivos das relações sociais e do
sujeito inserido nesse campo e tomado pelo inconsciente e pela ideologia.
Assim, o discurso pode ser compreendido como um lugar ideal para
observação das relações entre língua e ideologia e também um lugar de
mediação, de imbricação no campo do dispositivo teórico-analítico,
permitindo que se possam observar em seu funcionamento os processos de
produção de sentido dessa materialidade simbólica.

131
Análise do discurso: o campo

Lembro-me de uma aula de Filosofia da Linguagem em que


discutia com os alunos, a partir da leitura do texto Pensamento de
Linguagem, de Sylvain Auroux, a diferença entre a linguagem humana tida
como natural e a artificial. Vários foram os argumentos, tais como a
capacidade (da primeira) de raciocinar diferentemente de estar programada
para operacionalizar uma ação, capacidade de tomar decisões, capacidade
de sentir emoções. Até surgir uma fala que propunha como uma condição
(da linguagem artificial) ainda não possível ao computador, mas... Para não
me estender, trago um ponto proposto pelo próprio Auroux: “Em todo caso,
o que falta ao computador para falar como um homem [...] não é dispor de
uma alma ou de entidades intensionais como as idéias, é ter um corpo e
poder estar imerso em uma sociedade” (1998, p. 231).
O que o autor nos mostra dentro de outro paradigma teórico é que a
linguagem humana jamais será possível de ser produzida artificialmente,
pois não basta um léxico e um conjunto de regras morfossintáticas para
manusear o código lingüístico. A língua não é transparente; não é apenas
um sistema como primeiramente propôs Saussure. A língua se constitui de
discursos e nós somos constituídos por eles. Assim, também não basta dar
corpo à máquina (como acontece com os robôs) e inseri-la socialmente para
que se reproduza a linguagem humana, pois o corpo também não é nada
mais que discurso. Não somos apenas tecido ósseo e células, a carne
humana é cerzida pela língua, de modo que esse corpo está sob constante
construção.
O uso da metáfora “cerzir” é interessante, pois do latim sarcire
significa coser um tecido de forma que não se notem as costuras. Podemos
dizer que nem percebemos como a trama discursiva materializada pela
língua reveste o corpo, assim como a pele e os ossos.
Sintetizando, o sujeito é a pedra angular da análise do discurso, e o
discurso, objeto da prática analítica. É a partir do sujeito que surgem os
discursos, embora ele não seja o centro de seu discurso e não tenha poder
de decidir, escolher ou propor estratégias de produção de seu próprio
discurso, ao invés disso, ele é constituído pelo discurso. O sujeito tem a
ilusão de ser o dono de seu dizer, mas pelo viés da AD, é o inconsciente e a
ideologia que determinam o discurso assumido, fazendo com que esse dizer
atua no plano do que é possível dizer dentro da posição em que esse sujeito
se encontra.

132
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

3. Alguns nomes importantes para a AD

Apresentaremos nomes de alguns intelectuais que, de dentro de


suas perspectivas teóricas, trouxeram contribuições importantes para a
Análise do Discurso de corrente francesa. Comecemos por Marx e
Althusser, tendo em vista a importância do conceito de ideologia proposto
pelo primeiro e reelaborado pelo segundo, do qual Pêcheux se apropria para
pensar a formulação do primeiro quadro teórico da AD. Seguimos com
Freud e Lacan, com a proposição de que sujeito interessa ou fala a AD.
Foucault, por sua vez, é um nome importante visto que seu método
“arqueológico” de investigação das relações de poder é já uma
possibilidade de investigação dessas formações discursivas. Essa
apresentação finaliza-se com Orlandi, figura central e promotora da
corrente francesa no Brasil, pois ela desenvolveu um extenso trabalho de
pesquisa e subsidiou novas formulações teóricas que têm servido de
referência aos pesquisadores da área do discurso.

Karl Marx

Karl Marx, pensador alemão que desenvolveu uma teoria acerca da


ideologia, considerando-a como um instrumento de dominação que age
através do convencimento, eliminando a consciência humana e camuflando
a realidade. Autor, juntamente com Friedrich Engels, de A ideologia alemã
(1965), Marx parte de uma crítica aos filósofos alemães pela maneira de ver
abstrata e ideológica destes, que não estabelecem ligação entre a filosofia
alemã e a realidade alemã, ou seja, não constroem um laço entre a crítica
proposta e seu próprio material, acabando perdidos em suas fraseologias.

Marx e Engels identificam ideologia com a separação que se


faz entre a produção das idéias e as condições sociais e
históricas em que são produzidas. Por isso é que eles tomam
como base para suas formulações apenas dados possíveis de
uma verificação puramente empírica. (BRANDÃO, s. d, p.
19).

Para Marx, os dados da realidade são os indivíduos reais, sua ação


e suas condições materiais de existência, aquelas que já encontraram a sua
espera e aquelas que surgem com sua própria ação. Disso resulta a
ideologia como sistema ordenado de idéias ou representações e o conjunto

133
Análise do discurso: o campo

de regras normatizantes como algo separado e independente das condições


materiais, uma vez que os teóricos (intelectuais) não estão diretamente
ligados à produção material das condições de existência. Brandão (ibid.)
aponta que essa separação entre trabalho intelectual e trabalho material dá
uma aparente autonomia ao primeiro, o que significa dizer que para as
idéias, automatizadas e prevalecendo sobre o segundo, passam a ser a
expressão das idéias da classe dominante.
A partir dessa elaboração, Marx vê a ideologia como instrumento
de dominação de classe, porque a classe dominante faz com que suas idéias
passem a ser idéias de todos. Nas palavras dos autores:
As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante
da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. [...]
Na medida em que dominam como classe e determinam todo
o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em
toda sua extensão [...] dominem também como pensadores,
como produtores de idéias; que regulem a produção e
distribuição de idéias de seu tempo e que suas idéias sejam,
por isso mesmo, as idéias dominantes da época. (MARX;
ENGELS, 1965, p. 15)

Louis Althusser

Louis Althusser recupera a ótica marxista de ideologia, mas


entende sua materialização pelas práticas das instituições. Publica Ideologia
e aparelhos ideológicos do estado (1970). Ao mesmo tempo em que toma o
conceito proposto por Marx, relaciona-o com a psicanálise. Para Althusser,
a ideologia deriva dos conceitos de inconsciente (Freud) e da fase do
espelho (Lacan). Ele descreve as estruturas e sistemas que permitem criar
um conceito do eu. Para ele, é impossível escapar dessas estruturas que
atuam como agentes de repressão.
A ideologia, em Althusser, é a relação imaginária, transformada em
práticas, reproduzindo as relações de produção vigentes. Ele propõe quatro
categorias fundamentais na realização ideológica: a interpretação, o
reconhecimento, a sujeição e os Aparelhos Ideológicos de Estado. No
tangente ao papel do estado, através de seus Aparelhos Repressores (o
Governo, a administração, o Exército, a política, os tribunais, as prisões...)
e Aparelhos Ideológicos (a religião, a escola, a família, a política, a cultura,
a informação...) atuam ou pela repressão ou pela ideologia, tentando forçar
a classe dominante a submeter-se às relações e condições de explorações.

134
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

Althusser diferencia ainda a ideologia geral das ideologias


particulares. Enquanto estas exprimem sempre, seja qual for a forma,
posições de classe, aquelas seriam a abstração dos elementos comuns de
qualquer ideologia concreta, a fixação teórica de qualquer mecanismo geral
de qualquer ideologia. Para isto, propõem: a ideologia representa a relação
imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência; a
ideologia tem uma existência sempre num aparelho e na sua prática ou suas
práticas; e a ideologia interpela indivíduos como sujeitos.

Sigmund Freud e Jacques Lacan

A psicanálise é um dos tripés da Analise do Discurso, juntamente


com a história e a lingüística. Freud elaborou conceitos fundamentais para
essa teoria, chegando ao conceito de “inconsciente” e tentou desvendar seu
funcionamento. Como já dito, à AD interessa esse sujeito inconsciente,
descentrado, desejante e afetado pela figura narcísica (fase do espelho).
Lacan já havia proposto o uso do termo discurso, diferenciando-o de língua
e de fala. Ele referia-se a algo que escapa do campo do simbólico, das leis,
dos códigos, dos direitos e dos deveres que regulam o mundo, como a sobra
dos discursos que regulam as formas de vínculo social.
Além de formulação do sujeito na psicanálise, tem-se a formulação
do Outro (com letra maiúscula) que não trata de um outro indivíduo, mas
de um lugar de formulação de linguagem, para além de qualquer pessoa e
onde o que é interior ao sujeito e que, no entanto, o determina como sujeito.

Michel Foucault

Michel Foucault propõe a idéia de discurso, em A arqueologia do


saber (1969), a partir de suas observações de como são produzidos os
enunciados.

[...] todo o discurso manifesto repousaria secretamente sobre


um já-dito; e que este já dito não seria simplesmente uma
frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-
dito”, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto
um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu
próprio rastro. (FOUCAULT, 2004, p. 28).

135
Análise do discurso: o campo

Assim, Foucault concebe o discurso como uma dispersão, formado


por elementos que não possuem nenhuma unidade de ligação. Interessa-se
pelo que chama de regras de formação dos discursos, a fim de encontrar os
elementos que o compõem, tais como os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, os temas e as teorias. São também essas regras que determinam
que uma formação discursiva se apresente como sistema de relações entre
objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. Dessa forma,
caracterizam a formação discursiva em sua singularidade e possibilitam
passar da dispersão para a regularidade.
Para Foucault, o discurso é um conjunto de enunciados com
princípios regulares envoltos em uma mesma formação discursiva, e a
análise dessa formação consiste em descrever os enunciados que a
compõem. Já em Foucault, percebe-se a preocupação de contrapor o
enunciado como produto da língua em atividade social e histórica,
diferentemente da noção de frase como uma possibilidade de arranjo
lingüístico em uma determinada língua. Desse modo, o autor entende a
formação discursiva como unidade elementar para, como o próprio nome
aponta, formar o discurso. “A formação discursiva aparece, ao mesmo
tempo, como princípio de escansão no emaranhado dos discursos e
princípio de vacuidade no campo da linguagem” (FOUCAULT, 2004, p.
135).
Ainda quanto ao enunciado e à função enunciativa, Foucault
destaca quatro características constitutivas:

1) Um enunciado não tem diante de si um correlato. Está antes


ligado a um referencial que não é constituído de coisas, de fatos, de
realidade ou de seres, mas de leis de possibilidade, de regras de existência
para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos,
para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O referencial
do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência e a
instância de diferenciação dos indivíduos e/ou dos objetos; define o que dá
à frase sentido (FOUCAULT, 2004, p. 103).
2) A relação do enunciado com seu sujeito. Foucault se opõe a uma
concepção idealista de sujeito. E propõe o sujeito como uma função vazia,
um espaço a ser preenchido por diferentes indivíduos que o ocuparão ao
formularem o enunciado. Rejeita qualquer concepção unificante de sujeito,
pois o discurso não é atravessado pela unidade do sujeito, mas por sua
dispersão. A história não vista mais como um discurso de continuidade,
mas por uma série de rupturas no tempo. O sujeito do enunciado

136
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

não é, na verdade, a causa, origem ou ponto de partida do


fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase; não é,
tampouco, a intenção significante que, invadindo
silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o
corpo visível de sua intuição [...] É um lugar determinado e
vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos
diferentes, mas esse lugar, em vez de ser definido de uma
vez por todas e se manter uniforme [...] é variável o bastante
para poder continuar idêntico a si mesmo. (FOUCAULT,
2004, p. 107).

A concepção de discurso, para Foucault, como um campo de


regularidades, em que diversas posições de sujeito podem atuar,
redimensiona o papel desse sujeito no processo de organização da
linguagem, eliminando-a como fonte geradora de significações. Nos termos
do autor:

Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste


em analisar as relações entre e o que ele disse (ou quis dizer,
ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição
que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito.
(FOUCAULT, 2004, p. 107).

3) A função enunciativa não pode se exercer sem a existência de


um domínio associado, também compreendido como campo adjacente ou
espaço colateral. O enunciado é formulado associado a outros anunciados,
não existe enunciado isoladamente; somente é possível isolar a frase como
estrutura gramatical. A essa associação entre enunciados, Pêcheux vai
chamar de interdiscurso.
4) A existência material. Trata-se sempre de uma forma de registro
do signo, mesmo que dissimulada. Para marcar essa materialidade,
Foucault distingue enunciado de enunciação. Enquanto o primeiro pode ser
repetido, a enunciação é o próprio ato de uso da linguagem, assim não se
repete e é marcada pela singularidade, “há enunciação cada vez que um
conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem sua
individualidade espaço-temporal” (FOUCAULT, 2004, p. 114). Tal
formulação de enunciação serve para se compreender o que a AD vai
chamar de acontecimento (na linguagem) e singularidade (no sujeito).

137
Análise do discurso: o campo

Eni Orlandi e a “escola brasileira de Análise do Discurso”

Reserva-se este espaço destinado a Orlandi para se falar de como se


institui a teoria da AD e essa prática analítica no Brasil, ao mesmo tempo
em que se tenta mostrar a(s) dicotomia(s) presente(s) quando se fala em
Análise de Discurso. Orlandi, mesmo sendo quem propõe o pensamento de
intelectuais franceses aqui no Brasil, tendo convivido, inclusive, com
muitos deles na França, pontua uma diferença fundadora para AD que
instala no país. “A ciência da língua que assim se considera não está
apartada do território em que se produz. Tampouco a análise de discurso”
(ORLANDI, s. d, p. 2).
A primeira grande divisão estaria presente no que se entende por
Análise do Discurso de escola francesa e a americana ou, ainda, anglo-
saxônica. Pode-se dizer que, num primeiro momento, a proposta francesa
pretende essa prática analítica voltada ao texto escrito, enquanto a anglo-
saxã se fixa ao oral produzido na conversação cotidiana. Esta, na
conversação ordinária, concentra-se nos propósitos da comunicação e
prende-se ao seu caráter descritivo e imanente da linguagem – seu método é
interacionista – com base na psicologia e sociologia. A francesa –
estruturalista – apóia-se na lingüística, história e psicanálise.
Do lado da americana (e essa não é uma divisão meramente
geográfica) está a tendência de uma declinação lingüístico-
pragmática (empiricista) da análise de discurso com um
sujeito intencional, e do lado europeu a tendência
(materialista) que desterritorializa a noção de língua e de
sujeito (afetado pelo inconsciente e constituído pela
ideologia) na sua relação com discurso em cuja análise não
se procede pelo isomorfismo. (ORLANDI, s. d., p. 6).

Para Orlandi, o mais importante é poder reconhecer nos estudos e


nas pesquisas sobre o discurso uma filiação específica que teve Pêcheux
como um dos fundadores e que se desenvolveu mantendo consistência com
alguns princípios em relação à língua, ao sujeito e à história; ou ainda, a
relação língua e ideologia, em que o discurso se põe como lugar de
observação dessas relações. Para ela, somente dessa forma pode-se falar de
como os estudos e pesquisas da AD – desta filiação – se constituem com
suas especificidades no Brasil, na França, no México ou em qualquer outro
lugar: o Brasil é um forte lugar de representação. E essa autora propõe
chamar a essa prática no Brasil de Análise do Discurso brasileira.

138
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

Ainda em relação à divisão entre uma Análise do Discurso voltada


à escrita e outra à oralidade, Orlandi (s. d., p. 7) diz:
Em termos de história da ciência, a Análise de Discurso
praticada no Brasil não deixa tampouco intocada a relação já
fixada e dominante que tem, de um lado, a tradição européia
e, de outro, a norte-americana (ou anglo-saxã). Ela vai
colocar questões para essa forma de dicotomizar a história
do pensamento sobre a linguagem. Porque se nessa
declinação coube à Europa (apesar de M. Pêcheux) fixar-se
preferentemente na escrita, e aos americanos, no oral
(conversacional, pragmática etc), no Brasil a análise de
discurso não foi afetada por esta divisão imaginária entre
escrita e oral.

Eni Orlandi esteve/está presente desde os primeiros ensaios de


instauração da AD (com filiação francesa) no Brasil. É a autora brasileira
mais referenciada em pesquisas na área, no país, e seus livros alcançam
destaque no cenário internacional: As formas do silêncio ganhou o prêmio
Jabuti e foi traduzido para o francês. Sua contribuição consiste não apenas
em reproduzir as propostas teóricas francesas, mas, e sobretudo, em
formular novas perspectivas ao campo. Assim, em sua proposta para o
desenvolvimento da teoria e da análise de discurso, no estabelecimento da
noção de discurso, interroga o que é interpretação (ORLANDI, 1996),
redefinindo o que é ideologia, e propõe (ORLANDI, 1988) uma distinção
básica entre sujeito e autor (e escritor) e entre discurso e texto que afeta
sobremaneira a relação entre o que tem proposto como dispositivo teórico
(específico à teoria da análise de discurso) e dispositivo analítico da
interpretação “que se abre para as diferentes teorias ligadas ao campo de
questões assumido pelo analista, seja ele lingüista, historiador, cientista
social, fonoaudiólogo etc.” (ORLANDI, s. d., p. 16).

4. E o futuro (?)

As correntes que olham a linguagem sob a perspectiva do discurso


aplicam o que se pode chamar de conhecimento crítico à própria
linguagem. Dito de outro modo, a partir de uma materialidade lingüística,
busca-se evidenciar os elementos que fazem com que esses processos de
formulação de discursos são assim constituídos e não de outro modo, a fim
de que um sentido possa se estabelecer e não outro. Ora, isso significa dizer
que a linguagem não é neutra, assim como o discurso, que a tem como
geradora.

139
Análise do discurso: o campo

Dizemos isso para mostrar que, mesmo quando se opta por um


caminho analítico a ser percorrido, em nosso caso, a Análise do Discurso
de filiação francesa, devemos ter em mente que não é esse o único modo –
ou ainda, o melhor modo – de se pensar criticamente a linguagem. Mesmo
quando localizamos um determinado ponto histórico que fez com que essa
corrente de pensamento e de pensadores se estabelecesse, essa mesma
história (talvez fosse melhor dizer essa mesma outra história) possibilitou
também outras formas de análise do(s) funcionamento(s) da linguagem.
No entanto, no que tange à Análise do Discurso de corrente
francesa e às diversas vertentes que podemos fazer uso para embasar nossas
práticas analíticas, é preciso ter cautela com as dissidências e dissensões
das próprias teorias nas quais nos alçamos. Perceber a diferença entre
dissidência e dissensão muitas vezes não é fácil, sobretudo, como não
incorrer nessas armadilhas. Como dissidentes, temos correntes que partem
de uma mesma teoria, mas acabam criando uma metodologia própria
distanciando-se da primeira. Quanto à dissensão, podemos entender as
contribuições de outros autores que passam a incorporar as teorias com
alguma ressignificação. Um exemplo são as contribuições de Michel
Foucault e Mikhail Bakhtin. Desse modo, Michel Pêcheux (propositor da
AD) toma a noção de formação discursiva e a associa à ideologia, o que
não era feito por Foucault. Depois, a própria AD vai ressignificar a noção
de ideologia em que a questão de classe passa a ser apenas uma
possibilidade, mas não a única. O mesmo pode ser percebido com os
conceitos bakhtinianos: a noção de polifonia – da qual se faz bastante uso –
é ressignificada na AD como heterogeneidade que, por conseguinte, é
proposta para auxiliar na percepção de que as formações discursivas são
atravessadas e delimitadas sempre por outras formações discursivas. Além
de despertar a atenção para outro conceito caro para AD, que são as
posições-sujeito como lugar de dispersão.
Levando em conta o pouco do dito aqui, como mera exemplificação
de que o terreno da AD não é tão firme como às vezes o tomamos, alguns
autores/pesquisadores estão propondo trabalhos sob a perspectiva de uma
análise bakhtiniana do discurso, ou seja, propõem uma análise com base
nos termos bakhtinianos, tais como o próprio autor apresenta. E outros
chegam a propor análise foucaultiana do discurso, atentando, sobretudo,
para o próprio conceito de discurso formulado por Foucault.
No que diz respeito a Bakhtin, o que aproxima a Análise do
Discurso (francesa) de seu pensamento é o mesmo ponto que a distancia: o
sujeito e o discurso. Enquanto para a AD o discurso é toda manifestação de

140
Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto

linguagem produzida no entremeio da língua/história/psicanálise, ou seja, o


sujeito se constitui alçado pelo discurso que assume como seu, o sujeito,
para Bakhtin, é produto social – pelo viés sociológico. Bakhtin não está
preocupado com a relação subjetividade/inconsciente. O discurso de que
trata é para construir uma proposta teórica acerca dos gêneros do discurso,
em que o discurso é tomado pelas esferas de comunicação humana. Assim,
para ele, cada uma dessas esferas se caracteriza pelo modo como o social
faz uso da língua no processo de interlocução. Esses discursos, por sua vez,
são organizados pelo que o autor chama de dialogismo.
Finalizando essa querela, acredito ser possível tanto fazer análise
do discurso incorporando as contribuições das mais diversas correntes,
porém, faz-se necessário saber interpretar os conceitos in natura e suas
ressignificações quando adaptados por outras teorias.

5. Referências
q

AUROUX, S. (1998) A filosofia da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp,


1998.
BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 10. ed. São
Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed. Campinas: Editora
da Unicamp, s/d.
FERREIRA, M. C. L. A língua da análise de discurso: esse extranho objeto de
desejo. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L. (Orgs.). Michel Pêcheux e a
análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2005.
HENRY, P. A Ferramenta Imperfeita. Língua, Sujeito e Discurso. Campinas:
Editora da Unicamp, 1992.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por
Jean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. São
Paulo: Pontes; Campinas: Unicamp, 2005.
_____. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4a ed. Campinas:
Pontes, 2006.
_____. A análise de discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil.
Disponível em: http://www.discurso.ufrgs.br/evento/conf_04/eniorlandi.pdf.
Acesso em: 5 jun. 2008

141
ANÁLISE DO DISCURSO E ENSINO

Maria Marta Furlanetto


Sandro Braga

1. Introdução

O capítulo Análise do discurso: o campo, nesta coletânea, fornece


um quadro teórico que orienta basicamente as pesquisas realizadas. Mas é
preciso dizer que o professor Ingo Voese, falecido em julho de 2007,
embora fizesse análise do discurso, não partilhava esses pressupostos, ainda
que houvesse semelhança em alguns pontos. Sua abordagem teórica
congregava substancialmente Bakhtin, Heller e Lukács.

2. Pesquisas realizadas no contexto do GADIPE (Grupo de Análise do


discurso: pesquisa e ensino)

2.1. Os projetos

Os trabalhos que desenvolvemos no GADIPE são articulados pelas


linhas de pesquisa: Análise discursiva de processos semânticos e
Textualidade e práticas discursivas. Aqui vamos nos ater à primeira linha,
que visa ao estudo dos processos de produção de sentido, desde sua
dimensão subjetiva até sua dimensão social, histórica e ideológica.
Concebe-se que os processos semântico-discursivos sempre se dão em
eventos sociais específicos e únicos que acionam, além da língua,
determinações materiais.
O GADIPE, desde o início de seu funcionamento em 2001,
organiza-se a partir dos seguintes objetivos gerais (que enquadram
igualmente as pesquisas da segunda linha do grupo):

a) explorar fenômenos da linguagem oral e da escrita, nas suas


diferentes formas de manifestação e representação no contexto
sócio-histórico brasileiro;
b) examinar as relações entre enunciação, discurso e fatores sócio-
históricos;
Análise do discurso e ensino

c) explorar o dinamismo da linguagem e a multiplicidade de seus


registros, em si mesmos ou em referência ao chamado padrão;
d) viabilizar orientações teórico-metodológicas que permitam o
desenvolvimento de estratégias de ensino e aprendizagem nos
vários níveis de ensino.

Nossos projetos são encampados, hoje, por um projeto guarda-


chuva, que denominamos “Revisão e atualização teórica da Proposta
Curricular de Santa Catarina (1998) – prática de língua portuguesa na
escola fundamental e formação de professores”, desenvolvido, cada
pesquisador em seu campo específico, por Maria Marta Furlanetto, Sandro
Braga, Mariléia Silva dos Reis e Jussara Bittencourt de Sá.
Até meados de 2007, também faziam parte do grupo os professores
Ingo Voese e Wilson Schuelter, este trabalhando na linha de Textualidades
e práticas discursivas, voltando-se para estudos do hipertexto.

1) O projeto Tendências no uso escrito culto do português


brasileiro. Implicações normativas e pedagogia da língua (Fase II),
desenvolvido por Maria Marta Furlanetto, teve uma primeira fase que se
mostrou muito produtiva, e tem prosseguimento em sua segunda fase, de
2007 até hoje.
Na atual fase, dada a extensão de dados já coletados e a perspectiva
de ampliação dos fenômenos estudados, e considerando ainda a
importância da aplicabilidade de seus resultados, pretende-se completar a
análise de vários tópicos e centrar a reflexão nas questões relacionadas ao
ensino, prevendo a composição de um banco de dados (formação de
professores e material didático). Enquadra-se aqui também, então, a
discussão do conceito de ‘norma’ e ‘norma objetiva’, ao lado do que possa
significar ‘purismo’ e ‘correção’.
O tema da inovação em linguagem e da mudança lingüística tem
chamado a atenção de vários setores, que o vêem de forma diversificada
conforme o lugar de onde o fenômeno é percebido, provocando até mesmo
polêmica, ao lado de certas atitudes mais práticas, tais como o incremento
de programas específicos para a “conservação” da pureza do idioma
(programas televisivos, consultórios gramaticais, manuais e outras obras
mais alentadas, quando não decretos governamentais...).

144
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

Certas tendências lingüísticas (“desvios”, do ponto de vista


normativo) em pessoas de grupos de prestígio são um sintoma (ou indício)
de mudança. Isso permite observar formas alternativas, as já estabilizadas e
as inovadoras, que podem entrar em conflito. Admite-se que entre o que é
normatizado e o que se apresenta como novo há um espectro amplo.
Propõe-se uma reflexão sobre os fatores intervenientes na contínua
mudança de formas/significações tomando como ponto de partida a escrita
mais ou menos formal (considerando aqui desde a linguagem encontrada
nos meios de comunicação até aquela que se espera de um acadêmico em
seu trabalho científico).
O objetivo geral delineado é estudar, a partir de dados coletados em
documentos escritos que supostamente utilizam o português padrão, as
tendências à “deriva” em vários níveis (lexicológico, morfossintático,
semântico, discursivo), buscando determinar fatores dessa deriva e nível de
aceitação com base em freqüência de uso (ocorrências registradas), bem
como encarar perspectivas para a área pedagógica.
Os objetivos específicos assim se apresentam:

a) sistematizar dados relativos ao uso da língua portuguesa escrita


de nível culto, através de recortes que situem fenômenos que
possam ser considerados de “deriva”;
b) Estabelecer o que poderia ser encarado “bom uso da
linguagem” (língua culta) considerando (não com base em)
normas gerais de gramáticas descritivo-normativas
contemporâneas e, a partir daí, as tendências de deriva
(“desvio”, “inadequação”, “incorreção”, “hipercorreção”);
c) Buscar critérios para estabelecer níveis de deriva e níveis de
aceitação das tendências detectadas (originalidade,
inadequação, incorreção?);
d) Refletir sobre as questões que se abrem para pensar o ensino e
a aprendizagem da língua portuguesa dita culta.

Considerando a questão de como a “gramática” da língua


portuguesa estaria sendo violada, em termos de normas sociais, Auroux
(1997) afirma que qualquer gramática, em determinado momento, se
mostrará inadequada para explicar fenômenos produzidos pelos sujeitos, de
modo que será preciso produzir outra gramática, e assim por diante,
periodicamente. Quer se trate de uma gramática formal como a gerativa

145
Análise do discurso e ensino

(com algoritmos), quer de uma com regras de prescrição, a partir de um


modelo de bem falar e bem escrever, a mudança e a novidade em uma
língua, apesar das fortes restrições sociais, são uma constante.
Uma concepção de linguagem humana mais de acordo com esse
fenômeno deve supor “a eficácia dos atos ou acontecimentos lingüísticos
no sistema da língua”. “Desde o momento em que introduzimos os atos e os
acontecimentos lingüísticos em nossa concepção da linguagem,
introduzimos, além da temporalidade, a possibilidade de descontinuidades
entre o que se passa antes e o que se passa depois. Em outras palavras,
encaramos a irreversibilidade de certos processos” (1997, p. 127; tradução
da pesquisadora). Para Auroux, a criatividade diz respeito a procedimentos
e estratégias interativas que englobam mundo, sujeito e outros sujeitos,
empiricamente considerados. E é isso que compõe o que ele chama
hiperlíngua.
Auroux descarta regras homogêneas, que estariam presentes em
todos os sujeitos de mesma comunidade lingüística, em proveito de
modelos interativos pondo em presença sujeitos diferentes com
competências diferentes, cuja confrontação no tempo produzirá novas
competências e o aparecimento de novas regras e novas estruturas
lingüísticas. Isso significa reconhecer que a gramática “não exprime nem a
totalidade das causas produtoras da linguagem, nem mesmo os limites
exatos da ação dessas causas produtoras” (1997, p. 138). Daí ele hipotetizar
que as atividades lingüísticas são subdeterminadas pela gramática, ou seja,
não são sempre o produto de regras gramaticais: a invenção tem aí o seu
lugar.
Considera-se, na AD dita de orientação/linha francesa, que a língua
(sistema significante) é instável, heterogênea, não-fechada, com lacunas no
espectro formal. É aí que acontecem as falhas, os deslocamentos, rupturas
de sentido – local de “deriva”. Assim, qualquer enunciado lingüístico,
como forma material de discursos, está exposto ao “equívoco”. Esse seria o
espaço privilegiado da análise discursiva, buscando-se a historicidade do
sentido a partir de mecanismos de produção.
No entanto, falar em deriva supõe um centro (em cada momento de
análise), e no caso da língua será preciso refletir sobre a língua como
estrutura e como acontecimento, porque de certo ponto de vista a
materialidade da língua (já que não se quer o abstrato, o formal) envolve,
de alguma forma, o acontecimento.

146
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

Uma questão crucial assim se representa pela divisão discursiva em


dois universos, segundo Pêcheux (1997): o das significações estabilizadas
(seriedade de sentido, legitimação); o das transformações (instabilidade).
Vamos, pois, interpretar a deriva, associada aqui com a resistência da
língua.

2) O projeto Revisão e atualização teórica da Proposta Curricular


de Santa Catarina (1998) – Língua Portuguesa, também desenvolvido por
Maria Marta Furlanetto, iniciou em 2007 e objetiva revisar a formulação da
Proposta Curricular de Santa Catarina (1998), na área de Língua
Portuguesa, pela abordagem crítica dos conteúdos sugeridos e questões
teóricas e metodológicas, com vistas à construção de atividades
correspondentes, voltadas para práticas sociais específicas. Conta hoje com
dois bolsistas de Iniciação Científica. 35
Em sua segunda versão, a Proposta Curricular de Santa Catarina
(SANTA CATARINA, 1998) é uma importante etapa histórica de
abordagem dos currículos, mas após alguns anos de aplicação e avaliação,
necessita de continuidade sistemática do trabalho teórico e metodológico,
com uma etapa de caráter mais pragmático, envolvendo subsídios
consistentes para o trabalho em sala de aula.
Após a implementação da Proposta através de cursos de
capacitação no Estado, vários trabalhos já avaliaram seus fundamentos e
sua formulação, bem como houve observação e intervenção realizadas no
ambiente da escola. Do ponto de vista das teorias e práticas relativas aos
gêneros, de 1998 para cá, cabe enfatizar que o aprofundamento dos estudos
tem trazido aportes notáveis e características práticas dos gêneros que serão
considerados para que se possa promover gradualmente a adequação dos
materiais de estudo para o professor (o mediador privilegiado) e para os
alunos.
O objetivo deste projeto é efetuar uma revisão dos conteúdos
sugeridos para Língua Portuguesa, abordando-se questões teóricas e
metodológicas que incidem sobre as práticas de linguagem – pensando-se
na construção de atividades que correspondam à proposta, em direção a
práticas sociais específicas. Um dos focos principais é a abordagem dos
gêneros de discurso e sua formulação em textos orais e escritos, que devem
ser abordados como resultado de práticas sociais específicas, e portanto

35
De modo menos sistemático, o projeto já vinha se desenvolvendo bem antes, no contexto
de uma proposta mais ampla.

147
Análise do discurso e ensino

como efeito das interações observadas nas várias esferas da sociedade – ou


das várias mídias. Como pano de fundo, incorporam-se os princípios
filosóficos e sócio-históricos da Proposta Curricular, enfatizando a
formação dos estudantes com vistas ao exercício pleno da cidadania (sobre
o conceito, veja-se FURLANETTO, 2003; RICCI, 1999).
São estes os objetivos específicos propostos:

a) avaliar os fundamentos e a formulação da Proposta Curricular


de Santa Catarina, com base em trabalhos desenvolvidos a
partir de sua implementação;
b) estabelecer os aportes teóricos e características dos gêneros
consentâneos com os fundamentos filosóficos e teóricos da PC-
SC;
c) avaliar a articulação da PC-SC com o documento mais recente
de desdobramento da PC-SC; 36
d) focalizar questões de identidade e os processos de inclusão e
exclusão;
e) promover a adequada formulação dos materiais de estudo para
o professor e para o aluno;
f) estabelecer critérios preliminares para a formulação de um
curso de capacitação de professores.

Em trabalhos anteriores apresentados em eventos científicos, foram


tratadas preliminarmente questões relacionadas à compreensão do
documento da Proposta Curricular em sua relação com a prática pedagógica
correspondente, bem como se tem acompanhado trabalhos que envolvem
análise e reflexão do material exposto. Foi estudado, por exemplo, um tema
abordado por Dela Justina (2004), que aponta, em seu artigo Nível de
letramento do professor: implicações para o trabalho com o gênero textual
na sala de aula, problemas relativos ao nível de letramento do professor, a
partir de uma avaliação que faz, em pesquisa específica, sobre “estratégias
de leitura/escrita dos gêneros do discurso” (2004, p. 349) com referência à
PC-SC.

36
Trata-se do documento Proposta Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos
(SANTA CATARINA, 2005).

148
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

3) Efeitos de leitura no processo de ensino/aprendizagem é projeto


recente, de 2008, elaborado por Sandro Braga, que pretende contribuir para
os estudos voltados à compreensão das condições materiais e ideológicas
que envolvem professor e aluno na formulação e aquisição de
conhecimento a partir de práticas de leitura. Mais especificamente, visa
diagnosticar as resultantes desses processos de tal modo que se possam
formular comparações das competências de leitura e de escrita dos
estudantes, dentro no âmbito do ensino de Língua Portuguesa.
Especificamente em relação à escrita de textos escolares, tem-se
deflagrado um grau maior de dificuldade no manejo da língua, uma questão
inquietante, uma vez que o estudante, como membro efetivo de uma
comunidade lingüística, já possui domínio do código dessa língua. Surgem
então outras questões: de quantas línguas se está falando? Ou, qual a
relação entre as variantes lingüísticas e suas implicações? O que se sabe é
que o uso formal da língua padrão, regido por certas regras normativas, não
é o mesmo da língua coloquial, em que as regras são mais flexíveis.
A proposta de se voltar a essas variações reside na observância da
autonomia que as línguas vivas possuem e que, antagonicamente, agem
sobre suas próprias regras constitutivas. É nesse sentido que o lugar da
língua não é, ao menos não é apenas, o dos manuais normativos.
No entanto, essas constatações de uma língua que se modifica
resultam, muitas vezes, em um contraste: alunos que não apresentam
dificuldade no uso da língua em sua modalidade oral encontram
dificuldades na formulação e até mesmo na compreensão (interpretação) de
enunciados escritos.
De acordo com esse pressuposto, cabe à questão uma série de
investigações no campo das ciências da linguagem. Assim, num segundo
momento, tendo como ponto de partida os entraves na consolidação de um
hábito de leitura consistente, a proposta prevê a elaboração de alternativas
de estímulo à leitura e à interpretação. Nessa fase outra, a idéia é de já
despertar o texto do outro (daquele de quem se está lendo, do autor) como
motivação para se pensar na construção do próprio texto (o estudante como
autor).
O projeto tem como objetivo geral diagnosticar as resultantes do
processo de conhecimento a partir de práticas de leitura de tal modo que se
possam formular comparações entre as competências de leitura e de escrita
dos estudantes, dentro no âmbito do ensino de Língua Portuguesa.

149
Análise do discurso e ensino

Os objetivos específicos são:

a) verificar as condições materiais para se propor uma prática de


leitura;
b) analisar os elementos que compõem o exercício da leitura;
c) ampliar, no contexto escolar, os modos de leitura;
d) investigar como se ensina a leitura na escola;
e) propor formas de verificação de conhecimentos a partir da
leitura;
f) identificar na comunidade escolar a preocupação com o que
fazer com a leitura;
g) relacionar a leitura à prática da escrita.

4) O discurso da amorosidade foi um projeto desenvolvido por


Ingo Voese, colega falecido em julho de 2007. Refletindo sobre o momento
histórico da retomada da discussão que enfatiza a importância da educação
como processo-meio para atuar sobre a crescente violência social, sua
grande meta era repensar as relações sociais como condição para propor
novos direcionamentos. Seu problema de pesquisa assim foi delineado: Por
que a educação, assim como é praticada, não consegue intervir no
problema do aumento da desigualdade e da violência social?
Ele acreditava ser provável que a descrição do discurso como
reflexo e refração da realidade social poderia fornecer pistas do que impede
que as interações sociais se tornem produtivas para organizar de forma
saudável as relações humanas.
Eram seus objetivos:

a) descrever o discurso como mediação das interações sociais;


b) pesquisar as determinações sociais que são, enquanto discurso,
obstáculos a uma educação para a amorosidade;
c) descrever e interpretar à luz de uma visão ontológica exemplos
e rumos de uma educação para a paz e a amorosidade.

Como fundamentação teórica, Voese tratou três conceitos centrais:


o Discurso – na linha teórica de Bakhtin; as Determinações sociais – com
apoio prioritário nas obras de Lukács e Heller; e a Amorosidade – na linha
de pensamento de Freire e Larossa.

150
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

Ingo Voese desenvolveu, anteriormente, um projeto intitulado


Análise do Discurso e ensino, assim descrito:
Na disciplina que se denomina Análise do Discurso (AD), há uma
dificuldade muito grande para se passar da fase de conceituação do objeto –
o discurso – para a análise propriamente dita. Além disso, constata-se que o
ensino fundamental e o ensino médio pouco ou nada se beneficiaram do
que foi produzido até aqui na academia: os livros didáticos continuam
apresentando lacunas importantes nesse sentido. Cabe questionar essa
distância que se verifica entre o que se produz na academia e a sua
aplicação na sala de aula. Objetiva-se, ao apresentar não apenas uma teoria
do discurso, mas também um roteiro de análise, tentar superar essa
distância entre o que se realiza de estudo e pesquisa no ensino superior e a
sua aplicação nas aulas de Língua Portuguesa. O trabalho destina-se, em
princípio, a professores do Fundamental e Ensino Médio, pessoas que, em
geral, têm poucos contatos com a disciplina da AD e, em especial, com a
diversidade das abordagens que se pratica.
Outro projeto, desenvolvido em parceria com a professora Jussara
Bittencourt de Sá, foi Uma abordagem discursiva do texto nas séries
iniciais. Este tinha como objetivo estabelecer conteúdos e metodologia na
estruturação de um livro didático para ser utilizado experimentalmente nas
primeiras séries do Ensino Fundamental. O material referente a esse
trabalho não teve ainda divulgação.

2.2. Trabalhos produzidos

2.2.1. Projeto: Tendências no uso escrito culto do português brasileiro.


Implicações normativas e pedagogia da língua (Maria Marta
Furlanetto)

Neste trabalho o foco será o conjunto da produção bibliográfica


resultante do desenvolvimento desse projeto. 37 Foram publicados em
periódicos, na forma de artigos:
1. Estiramento de palavras: efeitos discursivos. São descritas, do
ponto de vista discursivo, ocorrências lingüísticas do que se chamou
“estiramento de palavras”, tendência encontrada na escrita formal em
estender e criar palavras, ora a partir de formas básicas, ora de formas já

37
Se for de interesse conhecer as referências dos trabalhos, basta buscar no site do CNPq os
currículos dos pesquisadores.

151
Análise do discurso e ensino

derivadas, através de afixação bem como formação analógica,


manifestando aparentemente algum excesso.
2. Os caminhos de onde no português do Brasil: instrumentos
lingüísticos e deriva. Nesse texto, a análise do corpus com foco no
funcionamento de onde mostra um distanciamento gradual relativamente ao
que preconizam os instrumentos lingüísticos, apontando um uso em que há
dispersão e deslizamento semântico, mostrando-se que, para além da
referência de onde a tempo, ocorrem casos de referência a processo, a meio
ou ponto de partida, e ainda a explicação que tem como escopo uma
seqüência significativa.
3. Pluralização de nomes abstratos – um caso de concordância
semântica? Este trabalho mostra a deriva em um caso tratado como de
“concordância semântica”: a pluralização de nomes abstratos.
Outro texto do projeto aparece como capítulo do livro “Análise do
Discurso: perspectivas”, publicado em Uberlândia (MG) pela EDUFU, em
2007.
4. “O fato de...” – construindo o real. Trata-se aqui de discutir o
uso da expressão o fato de, que introduz, aparentemente, uma seqüência
enunciativa que remeteria a um “fato”. Verifica-se, por um lado, o espectro
semântico de uso comparado ao que se encontra estabilizado nos arquivos
de memória das comunidades de discurso (gramatização); por outro lado,
analisa-se esse uso em determinados contextos, observando-se aí a eventual
compatibilidade semântica e os efeitos discursivos. Como resultado da
análise, tem-se de admitir que há diferenças marcantes de discriminação e
avaliação, e que o espectro de uso vai muito além daquilo que se registra
como gramatizado. Para o fato de, prenunciando uma porção de texto a
jusante, cujo enunciado se quer ver reconhecido, o uso indica que ocorre
esmaecimento das ressonâncias possíveis de fato, ressaltando a função de
suporte da construção sintática, que acaba por mostrá-la
predominantemente em seu papel argumentativo (dando corpo ao
enunciado). Apresentar algo como fato, nessas condições, é ir em busca de
adesão.
Outros resultados desse projeto estão divulgados em anais de
eventos:
5. Do discurso estenográfico – uma análise da “falsa inerência”
Este trabalho mostra um processo comum na língua portuguesa: a “falsa
inerência”, que diz respeito a uma relação específica do adjetivo com o
nome (função argumental), marcada pela redução de uma expressão

152
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

complexa. Examinam-se as várias nuanças desse fenômeno e os efeitos de


sentido que podem produzir no discurso.
6. O uso de ‘inclusive’ em textos escritos formais. A reflexão que
apresento neste texto refere-se ao tratamento do uso da expressão
“inclusive”. O espectro semântico de inclusive aproxima-se do movimento
semântico de mesmo, até mesmo – o que permite aventar a hipótese de
expansão do espectro, a partir do que se registra como gramatizado, ou seja,
do que se encontra na descrição de uso padrão. As possibilidades de
significância dos elementos lingüísticos são contínua e ativamente
negociadas: a língua não resiste – se assim se pode dizer –, ela sofre
modelagem, uma vez que constitutivamente aberta ao jogo, e os sentidos
historicamente estabelecidos não são meramente reproduzidos.
A par dos resultados de pesquisa publicados, alguns textos já se
encontram praticamente prontos para publicação:
7. As “redundâncias” são mesmo redundâncias? Uma
comunicação foi apresentada no CELLIP 2007, em Ponta Grossa (PR).
Esse trabalho está centrado no estudo das chamadas “redundâncias”. São
discutidas algumas hipóteses a respeito do funcionamento discursivo das
redundâncias: ocorre esvaziamento semântico de palavras, o que justifica a
“repetição”; a parafrasagem na formulação discursiva é uma das faces da
redundância; as redundâncias previnem a possibilidade de deformação ao
ser feita a interpretação. Investiga-se, assim, a plurivocidade inscrita nos
enunciados e o jogo entre identidade e alteridade que aí se observa.
8. Formações neológicas e discurso. Uma comunicação foi
apresentada no I SIMELP (2008, São Paulo) e um texto sintético foi
proposto para publicação nos anais desse evento. O material completo será
submetido a um periódico. Nas formações neológicas tratadas nesse
trabalho o foco é o reconhecimento da emergência de certas palavras e
expressões cuja identidade temporária pode ser apontada com base em
possibilidades histórico-discursivas, produzindo certos efeitos. Assim,
levando em conta as condições sociais de produção e interpretação do
discurso, apresenta-se um modo de compreensão do surgimento de uma
variedade de neologismos em relação às práticas e suas representações
sociais.
Além desses trabalhos publicados ou por publicar, outros estão
sendo desenvolvidos paulatinamente e simultaneamente, dependendo das
circunstâncias, envolvendo os tópicos ainda por tratar quanto à deriva:
questões de concordância, uso do gerúndio, abreviações,
correção/adequação no tratamento gramatical e outros mais.

153
Análise do discurso e ensino

2.2.2. Projeto: Revisão e atualização teórica da Proposta Curricular de


Santa Catarina (1998) – Língua Portuguesa (Maria Marta Furlanetto)

Quanto a esse projeto, cujas linhas e objetivos foram apresentados


no início, ele tem permitido um sem-número de textos, alguns dos quais
tangenciais ao seu núcleo, mas igualmente relevantes, considerando seu
direcionamento para o ensino-aprendizagem.
Seguem artigos publicados em periódicos.
1. O sujeito, o dizer, a interpretação: identidade em crise. Nesse
ensaio apresenta-se uma reflexão sobre o funcionamento da linguagem em
nossa sociedade, a partir do Dicionário do brasileiro de bolso, de Teixeira
Coelho (1991), que examina expressões da língua portuguesa em uso no
contexto social brasileiro dos anos 1964-1990. A partir daí, exploram-se
aspectos do processo de construção de sentido e de compreensão,
articulando esses elementos com a formação da nacionalidade e da
cidadania, focalizando alguns aspectos do contraste entre unidade
lingüística e diversidade na língua portuguesa do Brasil. Mostra-se ainda a
pertinência das diretrizes da Proposta Curricular de Santa Catarina para a
formação de professores e da cidadania através da compreensão e do uso
crítico da língua portuguesa.
2. Argumentação e subjetividade no gênero: o papel dos topoi.
Quando se propõe uma “dissertação” na escola, espera-se do estudante que
apresente um problema e pontos de vista, argumentando para dar uma
resposta satisfatória ao problema. Exige-se dele, contudo, impessoalidade.
Tenta-se demonstrar, do ponto de vista discursivo, que sempre há na
produção textual uma escolha para dirigir a interpretação do interlocutor,
sendo relevante, para isso, o uso de certos operadores. Focaliza-se aqui o
conflito entre ser impessoal e defender um ponto de vista (opinião) – pondo
em contraste o modelo da dissertação escolar e a caracterização dialógica
do conceito de gênero em Bakhtin, e os efeitos resultantes em um caso e no
outro, com vistas a uma alternativa de ensino.
3. Proposta Curricular de Santa Catarina (1998): revisão e
perspectivas para a formação docente. Nesse artigo o objetivo é rever,
avaliar e projetar formas alternativas e complementares de compreender e
praticar os parâmetros apresentados na Proposta Curricular de Santa
Catarina (PC-SC), área de Língua Portuguesa, considerando especialmente
a relação da Proposta com seus leitores privilegiados, os professores.
4. Sujeito epistêmico e materialidade do discurso: o efeito de
singularidade. A proposta é refletir sobre a subjetividade tal como

154
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

desenvolvida no quadro da Análise do Discurso (AD), e responder às


seguintes perguntas: o pesquisador pode dizer-se “Eu” no relato
considerando a formação discursiva associada à disciplina científica? Quem
o “Eu” do relato representa, no momento da enunciação? Para isso,
examino o conceito de ciência, exploro a AD como saber científico e
proponho a análise de um texto, focalizando o modo de inserção do
pesquisador em seu relato.
5. Gêneros do discurso e leitura (em co-autoria com Maria Helena
Vincenzi). Neste trabalho, focalizam-se o ensino e o aprendizado da língua
portuguesa com base nos gêneros do discurso; mais especificamente,
aborda-se a leitura considerando os fundamentos e conteúdos sugeridos na
Proposta Curricular de Santa Catarina (1998). A reflexão centra-se na
produção de leitura a partir dos gêneros e pontua a análise e avaliação de
problemas de interpretação detectados em estudantes brasileiros no
Relatório PISA 2000. Apresenta-se, por último, uma amostra de como a
leitura pode ser mediada na escola.
6. Produzindo textos: gêneros ou tipos? Esse estudo constitui
reflexão sobre um tópico de trabalho anterior focando recursos expressivos
de estudantes de Letras (“Gênero discursivo, tipo textual e
expressividade”). Na perspectiva sociointeracionista, foi apontado como
primeiro critério de análise do corpus o tópico 'gênero e tipo – estilos de
projeção', mostrando conflitos entre a conceituação oferecida pela obra
didática utilizada e os textos produzidos. Retoma-se a discussão teórica
centralizando-a na relação gênero/tipo, salientando a distinção proposta
entre gênero discursivo e tipo textual, privilegiando a metodologia do
ensino/aprendizagem de língua portuguesa. Inserem-se nessa proposta
reflexões posteriores com base em Bakhtin e outros autores.
7. Inovações e conflitos na Proposta Curricular de SC:
perspectivas na formação de professores (artigo no prelo). Este trabalho
trata de algumas questões associadas à linguagem no contexto social e
outras relacionadas ao ensino e à aprendizagem de língua portuguesa como
língua materna. Reflete-se sobre certas questões vinculadas à tradição de
conceber a “unidade lingüística” nacional no contexto das normas sociais e
aos meios correntemente utilizados para ensinar língua. Põe-se o foco sobre
os aportes da Proposta Curricular de Santa Catarina (PC-SC), levando em
conta as políticas de educação lingüística. Apresentam-se também alguns
desafios e perspectivas para a validade e continuidade das diretrizes postas
nesse documento, especialmente com vistas à formação docente, a partir de

155
Análise do discurso e ensino

avaliações já efetuadas e de investigações educacionais em contextos mais


abrangentes.
Outros trabalhos estão publicados como capítulos em coletâneas:
8. Práticas discursivas: desafio no ensino de língua portuguesa.
Aqui são apresentadas algumas considerações sobre desafios da Lingüística
Aplicada relativamente à pedagogia de línguas, abordando-se a noção de
prática discursiva no contexto da Análise do Discurso. Dessa disciplina, são
expostas algumas noções relevantes para o contexto de ensino: o texto
como unidade de análise, materializando discursos através de gêneros
específicos, abarcando o horizonte social e integrando outras formas de
linguagem, em sua relação com a produção e a interpretação. Discute-se
ainda a noção de fragmentação subjetiva e a repercussão disso no ambiente
de ensino, e abordam-se algumas questões vinculadas à relação
teoria/prática.
9. Função-autor e interpretação: uma polêmica revisitada. Neste
ensaio revisita-se a noção de função-autor tal como proposta por Foucault,
tomando-a como o resultado do processo dialético entre a autoria como
função de um sujeito racional, consciente, e o apagamento do autor através
da filosofia da desconstrução; paralelamente, examina-se como essa função
é tratada na Análise do Discurso, bem como, à guisa de exemplo, analisam-
se casos específicos para mostrar nuanças na função subjetiva de autoria e
apontar novas questões.
10. Gênero do discurso como componente do arquivo em
Dominique Maingueneau. Nesse capítulo explora-se a contribuição de
Dominique Maingueneau para o estudo dos gêneros, na perspectiva da
Análise do Discurso (AD) de tradição francesa. Apresenta-se,
primeiramente, o que se considera teoricamente relevante em seu trabalho;
em seguida, procura-se mostrar uma compreensão pessoal do tema
explorando um texto segundo as categorias propostas e discutidas pelo
autor; finalmente, propõe-se uma análise crítica de questões que sua
abordagem levanta, associando esse ponto crucial da análise de discurso a
conceitos que dizem respeito a sua compreensão, bem como tenta-se
apontar as perspectivas de desenvolvimento dessa abordagem discursiva.
11. Escrita e cidadania: desafio político-pedagógico. Mostra-se
nesse texto que o entendimento de “cidadão” variou de modo sensível no
decurso da história do País. Para chegar ao que “se deseja” que “cidadão” e
“cidadania” representem hoje (o que talvez não seja de consenso), para
relacionar tal ao processo da escrita, percorrem-se algumas etapas da
história brasileira, através de vozes que se ocuparam do tema. Isso mostrará

156
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

que houve uma constituição da cidadania, e que não se trata de uma


concepção idêntica em momentos históricos diferentes – nem de uma
evolução para o melhor dos mundos.
12. Curricular Proposal of Santa Catarina State: assessing the
course, opening paths. Esse texto, que se encontra no prelo, é uma versão
aprimorada e mais extensa do artigo publicado nos anais do 4º SIGET,
evento realizado na Unisul em 2007. Com base na abordagem teórica e
filosófica de Bakhtin, esse estudo propõe a reflexão e a avaliação de um
conjunto de trabalhos anteriores com foco sobre questões discursivas
relativas aos gêneros do discurso. O contexto institucional de estudo é o da
Proposta Curricular de Santa Catarina (1998), documento oficial que é
objeto de pesquisa de diferentes perspectivas. Utiliza-se também a
abordagem histórico-cultural de Vygotsky, buscando retomar articulações
teoricamente relevantes e operacionalmente frutíferas concernentes à
abordagem das práticas de linguagem envolvendo gêneros no ambiente
escolar, vinculando-os ao mundo social.
Traduzido para o inglês pelo professor Fernando Vugman, o texto
será publicado na obra Genre in a changing world – advances in genre
theory analysis and teaching pela WAC Clearing House, Parlor Press. Seus
organizadores são Charles Bazerman, Adair Bonini e Débora de Carvalho
Figueiredo.
Além desses artigos e ensaios, foram organizadas duas obras que
estão associadas pelos temas ao projeto em questão:
13. Foucault e a autoria, de 2006 (Maria Marta Furlanetto e Osmar
de Souza).
14. Gêneros textuais e ensino-aprendizagem, também de 2006,
coletânea do periódico Linguagem em (Dis)curso (Maria Marta Furlanetto,
Adair Bonini).
Em anais de eventos encontram-se divulgados outros trabalhos:
15. Proposta Curricular de Santa Catarina: avaliando o percurso,
abrindo caminhos (4º SIGET, 2007). O resumo corresponde ao exposto no
item 12, acima.
16. Proposta Curricular de Santa Catarina (1998): revisão e
perspectivas para o estudo de gêneros (III SIGET, 2005)
Nesse trabalho são focados os conteúdos sugeridos na PC-SC e sua
concretização através de textos com sua identidade genérica, abordando-se
questões teóricas e metodológicas que incidem sobre as práticas de

157
Análise do discurso e ensino

linguagem, e questionando a relação entre o trabalho acadêmico e a prática


magisterial.
17. Função-autor e interpretação: uma polêmica revisitada
(Seminário Internacional Michel Foucault: perspectivas, 2004). O texto é
uma versão curta do capítulo de mesmo nome apresentado no item 9.
18. O professor e os gêneros do discurso: o problema do
letramento (6º Encontro do Celsul, 2004). Nesse trabalho, tendo como
contexto a Proposta Curricular de Santa Catarina, propõe-se uma reflexão
focando a problematização feita por Dela Justina (2004) sobre o nível de
letramento do professor e suas implicações para o trabalho com gêneros na
sala de aula.
19. Conteúdos de língua e gêneros: revisitando a Proposta
Curricular de Santa Catarina (1998) (VI CBLA, 2001). Realiza-se uma
reflexão sobre os conteúdos sugeridos na PC-SC e sua concretização em
textos que manifestam gêneros, abordando-se questões teóricas e
metodológicas que incidem sobre as práticas de linguagem, especialmente
sobre o espaço que vai de uma proposta às práticas correspondentes.
Por fim, listam-se as dissertações defendidas por estudantes do
mestrado:

a) Ana Regene Varela Sangaletti (2003). O papel da língua


portuguesa na evasão escolar: a perspectiva dos alunos que
abandonaram o ensino fundamental;
b) Cátia Amara Horst (2006). Discurso pedagógico e discurso
acadêmico: a construção de uma identidade em relatórios de
prática de ensino;
c) Celestina Inez Magnanti (2003). Vozes docentes: avaliando a
Proposta Curricular de Santa Catarina;
d) Lisiane Vandresen (2007). As representações indígenas na sala
de aula do ensino fundamental: produção e circulação de
sentidos;
e) Miriam Gomes D'Alascio (2008). Efeitos de sentido da
Proposta Curricular de Santa Catarina no discurso de
professores e alunos de 5ª e de 6ª série de uma escola estadual
de Santa Catarina;
f) Rosandra Schlickmann Sachetti Hübbe (2004). O discurso
utilizado nos anúncios publicitários dirigidos ao público
infantil;

158
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

g) Vânia Terezinha Silva da Luz (2005). Aula de língua


portuguesa: do planejamento à prática. Trabalho com gêneros
do discurso em uma 5ª série;

2.2.3. Projetos: O discurso da amorosidade e Análise do discurso e


ensino (Ingo Voese)

No primiero projeto, o professor chegou a participar, como


palestrante, de alguns eventos realizados na Unisu. Seminário do curso de
Medicina. Unisul. “Os sentidos de vida e o discurso médico”. 2006.
Semana Integrada das Licenciaturas da Unisul. “O discurso como sintoma”.
2006. Também orientou uma estudante, no contexto desse projeto:
Diabetes Mellitus: como passar do discurso da amargura para o da
doçura, de Elonir Gomes (2006).
No segundo projeto, comecemos pelos artigos em periódicos.
1. Vozes sociais citadas e sobrepostas: a polifonia e a dialogia. O
trabalho aborda a relação de discurso e contexto, focando especialmente as
dimensões e a importância do que se entende, em geral, por determinações
sociais do discurso. Tendo como referência teórica principal a voz de
Bakhtin, a reflexão operacionaliza a noção de contexto como vozes sociais
que, na relação com o discurso de um dado enunciante, efetivam um
encontro dialógico e polifônico com o social. A dimensão dialógica e
polifônica do discurso, por sua vez, coloca em cena o que se entende por
citação, cuja operacionalização se faz, no texto, tomando como exemplo, a
ironia.
2. Ah... se todos fossem iguais (ou não) a uma onda do mar... O
texto desenvolve uma reflexão sobre a noção de subjetividade, apoiada
especialmente em Bakhtin, Lukács e Heller, diferentemente da linha teórica
do materialismo estruturalista da Análise do Discurso da escola francesa.
3. Considerações sobre o ensino de Língua Portuguesa à luz de
uma teoria do discurso. Trata-se de uma reflexão sobre os efeitos que
podem produzir as referências de uma teoria do Discurso e seus
desdobramentos metodológicos sobre o ensino de Língua Portuguesa.
Abandona-se a orientação da escola francesa e busca-se apoio
especialmente em Bakhtin e Heller para construir a noção de mediação, o
que deve ampliar o horizonte da compreensão do fenômeno lingüístico e da
prática pedagógica.
4. Desafios para uma análise do discurso (e para o ensino?). Neste
trabalho discutem-se alguns problemas da Análise do Discurso. É realizada

159
Análise do discurso e ensino

uma análise de texto com o propósito de expor uma metodologia de AD e


de abrir espaço para futuras reflexões sobre a possibilidade de tal tipo de
atividade trazer benefícios ao ensino nos níveis fundamental e médio.
No contexto de seu projeto, Ingo Voese publicou os livros:
5. Análise do Discurso e o Ensino de Língua Portuguesa (2004). O
autor propõe, nesta obra, um roteiro de análise de discursos, sem a
pretensão de que isso se constitua em procedimento para encontrar os
verdadeiros sentidos dos textos; e mostra as possibilidades que os
procedimentos de leitura e análise elaborados abrem para o trabalho de
ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Voese confere ao texto o
estatuto de vozes dos outros, de instância dialógica, que pode tecer a
relação de solidariedade e de amorosidade necessária para que professores
e alunos construírem-se como sujeitos.
6. Organização de número especial de Linguagem em (Dis)curso:
Subjetividade (2003). Este número da revista reúne, numa edição especial,
textos inéditos que abordam a temática da subjetividade. A idéia é manter
aberto o debate que estimula o rigor da diferenciação e coteja
saudavelmente posições teóricas diversificadas e focos de análise variados,
compondo um amplo panorama do tema. Assim, pesquisadores que
analisam o discurso em suas facetas percorrem o campo e conversam.
João Wanderley Geraldi põe a lente sobre textos de crianças,
captando neles indícios sobre outros textos, que resultam de práticas
discursivas escolares, através dos quais mostra, nos primeiros, uma
compreensão específica (um tom apreciativo) das palavras que circulam no
ambiente escolar e das atitudes aí manifestadas.
Sírio Possenti sintetiza teses básicas em análise do discurso,
mostrando o desdobramento da questão do sujeito em outros domínios das
ciências humanas, estabelecendo o não fechamento da discussão.
Pedro de Souza retoma o tema do assujeitamento na análise do
discurso e o aponta como lugar em que também emerge a resistência do
sujeito, num movimento que participa de sua construção em outra ordem.
Bethania Mariani põe foco no “imaginário lingüístico” – conforme
a expressão de Michel Pêcheux –, tentando uma correspondência, que ela
julga fundamental, com o conceito psicanalítico de inconsciente. Nessa
abordagem, trata-se inequivocamente de um sujeito dividido; a autora
compreende a discursividade como um campo atravessado por uma teoria
do sujeito de base psicanalítica.

160
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

Belmira Magalhães conjuga Lukács, Bakhtin e Pêcheux para


explicar a constituição contraditória do sujeito na sociedade, através da qual
procura compreender a posição de sujeito e da autoria no discurso.
Maria Marta Furlanetto propõe uma análise do modo de inserção
do próprio analista do discurso em um discurso de caráter científico,
examinando essa posição e a possibilidade de o sujeito pronunciar-se como
“eu”.
Fábio Rauen adota uma abordagem da biologia do conhecer, com
base especialmente em Humberto Maturana. É assim que ele aborda a
emergência do eu do ser humano – como um corpo cujo organismo se
realiza num modo de vida que é de semiose, havendo câmbio modulado
pelo próprio viver em linguagem, que implica a alteridade.
Finalmente, Ingo Voese congrega as vozes de Bakhtin, Lukács e
Heller para desenvolver uma noção de subjetividade, opondo-se, conforme
expressa, à linha da análise de discurso francesa. Ele focaliza a atividade
mental subjetiva e a formação da consciência em seus diversos graus,
concluindo que, a par do controle social e dos rituais, o ser humano pode
apropriar-se deles e torná-los singulares em sua consciência; pode retornar
sobre eles e atuar sobre essa modelação.
Em sua linha de trabalho, Ingo Voese orientou as seguintes
dissertações:

a) Antonio Pedro Gonçalves (2007). Os ascensos revolucionários


de fevereiro e outubro de 1917 na Rússia nos livros didáticos
de história;
b) Elisângela de Castro Reynaldo Rodrigues (2003). Canções
sertanejas: um diálogo entre raízes e ideologias;
c) João Batista da Cruz Dias (2005). O discurso da avaliação
como exercício de poder: um estudo de caso em escolas da
região metropolitana de Curitiba-PR;
d) Josemeri Peruchi Mezari (2007). Um Discurso Fragmentado: a
Universidade e suas ações sobre a Realidade Social;
e) Luana Medeiros Bonetti (2003). Proposta Curricular de Santa
Catarina: Língua Portuguesa;
f) Marilane Mendes Cascaes da Rosa (2005). Silenciamento de
sentidos: o trabalho em (dis)curso;

161
Análise do discurso e ensino

3. Análise dos resultados

Ao olharmos em conjunto os trabalhos desenvolvidos e aqueles em


realização no contexto do mestrado em Ciências da Linguagem e da Unisul,
percebemos que tem havido uma apreciável soma de resultados, que
repercutem no nosso meio social. Há que levar em conta os inúmeros
problemas que enfrentamos, considerando a demanda, os prazos e os
imprevistos, além da carga horária dedicada às aulas, à orientação de
estudantes de mestrado, de iniciação científica e eventualmente de
especialização.
Atentando para os objetivos mais gerais que estabelecemos no
grupo de trabalho e para nossa grande meta, que é a viabilização de
orientações teórico-metodológicas para o desenvolvimento de estratégias de
ensino e aprendizagem nos vários níveis de ensino, sentimos que todos os
meios e objetos explorados em nossas pesquisas adquirem sentido em
nosso contexto sócio-histórico. Ao procuramos analisar e entender esse
contexto, damo-nos conta de que esses objetos e meios podem ser
relevantemente aproveitados nas várias esferas sociais em que circulamos:
levamos e trazemos informações, propostas, todas eivadas de valores,
desejos, esperanças. É nesse circuito de instituições que conseguimos
escutar e dar respostas, ou seja, realizar as trocas mais substanciais, ao
mesmo tempo estimulando o estudo discursivo da linguagem e das línguas.
O mais importante do trabalho que realizamos está exatamente
configurado na quantidade com qualidade das interações efetivadas, do
relacionamento acadêmico para a discussão teórica e dos serviços que
possamos prestar às comunidades. O mais imediato, que é o trabalho de
aperfeiçoamento de nossos orientandos em pesquisa acadêmica, tem
produzido também, a par dos temas escolhidos, resultados importantes do
ponto de vista da formação magisterial, o que implica que damos à
sociedade sujeitos capazes de, por sua vez, atuar como bons educadores e
formadores.
Estas são algumas das atividades em que nos temos empenhado
para divulgar resultados de pesquisa, realizar trocas acadêmicas, fazer
propostas, aperfeiçoar a formação e prestar serviços:

a) participação em bancas examinadoras. Elas permitem, por


vezes, penetrar em campos desafiadores e nos instigar a

162
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

percorrer novas paisagens: em religião, filosofia, estética,


jornalismo, moda, projetos educacionais...;
b) participação em eventos. Eventos são ricos de possibilidades
para divulgação de pesquisa e de instituições, para
planejamento de trabalhos conjuntos, para contato com
pesquisadores da mesma área e de áreas afins, para lançamento
de livros. E, por que não dizer, para comemorações e um pouco
de turismo geográfico e cultural;
c) participação em cursos de capacitação. A Unisul oferece,
periodicamente, cursos de capacitação para seus docentes, tais
como o do SEER/IBICT – Editoração Eletrônica, organizado
pela Coordenação de Pós-graduação e Programa de Bibliotecas
e realizado em agosto de 2007; e o de tutoria para ensino a
distância, que se repete há vários anos, sob a orientação de
professores e técnicos da Unisul Virtual;
d) consultoria e cursos para secretarias de educação (Estado e
municípios). Essa forma de atividade nos aproxima dos
problemas mais prementes da educação brasileira e nos fornece
a oportunidade de avaliá-los com os responsáveis da área, bem
como ajudar com propostas, acompanhar o trabalho docente e
ministrar cursos;
e) coordenação de grupo de trabalho de associação nacional. É o
caso da ANPOLL, que congrega pesquisadores de múltiplas
universidades. De julho de 2006 até o presente ano o subGT de
Teorias de gênero em práticas sociais do GT de Lingüística
Aplicada é coordenado por Maria Marta Furlanetto, que conduz
os trabalhos relativos aos projetos desenvolvidos no subgrupo.
Também preparou e manteve atualizada a página web com os
dados do subGT, incluindo a produção dos pesquisadores. Essa
representação reforça a integração das pesquisas do Programa
com a comunidade científica da área. Envolve pesquisadores
das universidades: UNISUL, UERJ, UFSC, UFMT,
UNICAMP, UFRN, PUC-SP, UCS, PUC-RIO, UFC, UFJF,
UECE, UNISINOS, UFSM, UEL (ver URL:
http://www2.intercorp.com.br/mmarta/);
f) organização de coletâneas e editoria. As publicações do
mestrado viabilizam o intercâmbio constante com
pesquisadores na área. Em 2003, Ingo Voese foi o organizador
do primeiro número especial da revista Linguagem em

163
Análise do discurso e ensino

(Dis)curso, com o tema “Subjetividade”, reunindo trabalhos


inéditos sobre o tema. Em 2006 foi publicado número especial
sobre gêneros textuais e ensino-aprendizagem, concretização
de uma das metas traçadas para o biênio 2004-2006 pelo
subGT de Teorias de gênero em práticas sociais da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística
(ANPOLL). A edição foi organizada por Adair Bonini e Maria
Marta Furlanetto. Nossa Coleção Linguagens investe na
publicação de artigos científicos, ensaios, monografias que
difundem os resultados dos projetos de pesquisa relacionados
com as linhas de pesquisa do mestrado. O primeiro livro da
coleção é O contexto refletido – vozes sobrepostas de um
diálogo, de Ingo Voese, lançado em 2007; o segundo, O gozo
estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea,
de Fábio de Carvalho Messa; o terceiro, em preparação, será
Texto (e autoria). Como apre(e)nder essa matéria? Análise
discursiva do texto (e do autor), de Solange Leda Gallo.

4. Perspectivas do grupo

É verdade que nem todos os projetos (pequenos, médios ou


grandes), por vezes ambiciosos, por vezes inexeqüíveis, por vezes mal
esboçados, vingam em nosso meio acadêmico – ou crescem e se destacam
com o mesmo ímpeto. Há aqueles que se pensa forjar mal despertada uma
idéia luminosa, e na semana seguinte perdem o viço e acabam esquecidos,
sem qualquer formulação específica. Outros despertam a partir de uma
discussão ardente, esfriam, acabam sendo retomados, mas as circunstâncias
fazem com que adormeçam por bom tempo sob as cinzas, aguardando novo
ressurgimento. Eles sempre aparecem, sendo propícias as circunstâncias,
mas às vezes falta tempo para desenvolvê-los, sobretudo quando envolvem
pessoas extremamente ocupadas – é o caso dos docentes que atuam em
cursos de graduação da Unisul. Mas alguns precisam ser formulados, e
mesmo tendo maus momentos, produzem bons frutos.
Os dois atuais pesquisadores do grupo da linha Análise discursiva
de processos semânticos, Sandro Braga e Maria Marta Furlanetto, têm
como seus colaboradores estudantes do mestrado, seus orientandos, e
estudantes bolsistas de iniciação científica, futuros candidatos ao mestrado.

164
Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga

Uma das possibilidades que surgiu e começou a ser discutida já em


2007, e que não se deseja que morra, é a de um projeto que envolveria a
colaboração (necessária) de alguns docentes da graduação interessados em
integrar o GADIPE. Propôs-se, a par de sua inserção no grupo, a elaboração
de um projeto de seminário com graduandos, mestrandos e professores da
rede pública, para dar um tratamento específico a questões cruciais ligadas
ao ensino em todos os níveis, começando por uma discussão que
tematizaria “gramática”, a tratar sob diversas óticas. Com esse propósito,
conseguiu-se congregar numa primeira reunião, além das professoras
convidadas do mestrado pela professora Andréia Daltoé dos Anjos (Maria
Marta Furlanetto e Mariléia Silva dos Reis), as professoras Perpétua
Guimarães Prudêncio, Marilane Cascaes, Luana Medeiros Bonetti e Maria
Felomena Espíndola). Conta-se com a participação de Sandro Braga, se o
projeto vier a tomar pé (é, supõe-se, de interesse da instituição),
considerando que seu foco de pesquisa é a leitura.

Referências

AUROUX, S. Les limites de la grammaire. Organon, Porto Alegre, v. 11, n. 25, p.


123-141, 1997.
DELA JUSTINA, E. W. N. Nível de letramento do professor: implicações para o
trabalho com o gênero textual na sala de aula. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão,
v. 4, n. 2, p. 349-370, jan./jun. 2004.
FURLANETTO, M. M. Escrita e cidadania: desafio político-pedagógico. In:
BOHN, Hilário I.; SOUZA, Osmar de (Orgs.). Escrita e cidadania. Florianópolis:
Insular, 2003. p. 17-36.
PÊCHEUX, M. Estrutura ou acontecimento [?]. 2. ed. Tradução de Eni Orlandi.
Campinas: Pontes, 1997.
RICCI, R. O perfil do educador para o século XXI: de boi de coice a boi de
cambão. Educação & Sociedade, ano XX, n. 66, p. 143-178, abril 1999.
SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta
Curricular de Santa Catarina: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio:
disciplinas curriculares. Florianópolis: COGEN, 1998.
_____. Secretaria de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia. Proposta
Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos. Florianópolis: IOESC, 2005.

165
PARTE III

LINGUAGEM E PROCESSOS CULTURAIS


MITOLOGIA E AUTO-SUSTENTABILIDADE
DE COMUNIDADES GUARANI
DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Aldo Litaiff

1. Introdução

Os Guarani vêm sofrendo ao longo do tempo violento e acelerado


processo de descaracterização e destruição, sendo que grupos inteiros
foram dizimados. Atualmente, através de pesquisas acadêmicas e com a
adoção de políticas públicas, observa-se uma maior visibilidade e aumento
das populações indígenas do estado de Santa Catarina. A partir deste
quadro, a Unisul vem investindo em iniciativas que buscam desenvolver e
aprofundar o conhecimento da realidade destas sociedades. Nesta direção,
desde 2001, desenvolvemos os projetos Sem tekoa não há teko: Sem terra
não há cultura, visando à auto-sustentabilidade de comunidades guarani da
região, Registro audio-visual da execução do projeto “Sem tekoa não há
teko e Mitologia guarani, que tem por objetivo principal redigir um livro
sobre a linguagem mítica dos Guarani.
Pertencentes à família Tupi-Guarani do tronco lingüístico Tupi, os
Guarani constituem uma das sociedades indígenas brasileiras mais
numerosas. 38 Atualmente existem quatro grupos Guarani localizados na
América do Sul: Chiriguanos na Bolívia (60.000 indivíduos), Kayowa
(40.000), Chiripa ou Nhandeva (30.000) e Mbya (30.000), distribuídos no
centro-oeste, sul e sudeste do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. 39 Os
Guarani, que historicamente eram denominados Carijo, habitavam a costa
atlântica, desde a Barra da Cananéia até o Rio Grande do Sul (onde era o
grupo mais numeroso), a partir daí até os rios Paraná e Paraguai
(MÉTRAUX, 1979, p. 70). No litoral sul e sudeste brasileiro, encontra-se
atualmente uma grande concentração de Mbya e de Chiripa, habitando o
38
A designação “Guarani” foi dada pelos Jesuítas no século XVII a certos grupos indígenas
da região platina.
39
Como ocorre na maioria dos povos indígenas, “Mbya” ou “Mbüa”, significa “gente”.
Segundo Schaden (1969, p. 83), existe grande confusão quanto aos nomes dos vários grupos
em que se dividem os Guarani, por este motivo adotamos esta nomenclatura em obediência
ao que estabelece a convenção sobre a grafia de nomes tribais firmada por ocasião da
Primeira Reunião Brasileira de Antropologia, 1953, Rio de Janeiro”.
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

território onde viveram seus ancestrais Carijo, até seu desaparecimento no


século XVII. Estes lugares são importantes pontos de referência histórica e
mitológica, uma vez que eles ainda conservam seus “nomes Guarani”,
topônimos que se referem à cosmologia e à descrição geográfica destes
locais. Estes índios continuam então fiéis ao seu território de origem,
procurando se estabelecer nos mesmos amba, ou seja, lugares ou espaços
criados e deixados por Deus para serem ocupados por eles. Ressaltamos
que estes amba estão localizados nos mesmos limites geográficos
observados pelos cronistas durante a conquista (LADEIRA, 1992, p. 58).
Os Guarani atuais intensificaram seus deslocamentos populacionais em
direção ao litoral do Brasil no início do século XX, provenientes do interior
da América do Sul (Paraguai, Argentina e do estado brasileiro do Mato
Grosso do Sul), forçados pela invasão de suas terras por colonizadores,
pelos conflitos com outros autóctones, e, principalmente, em busca de Yvy
mara ey, a “Terra sem Mal”. Os Mbya, que outrora habitavam
exclusivamente as florestas do sul da América do Sul, atualmente circulam
também sobre as rodovias, visitando parentes, procurando terras, vendendo
o artesanato que produzem e/ou buscando trabalho sazonal. Tanto no litoral
como no interior dos estados do sul e do sudeste do Brasil, os Mbya e os
Chiripa têm sido vizinhos, por vezes coabitando uma mesma área, em
razão de suas semelhanças culturais (LITAIFF, 1996). O Guarani, e em
particular o Mbya, é um desterrado, um estrangeiro em seu próprio
território.
Um dos principais fatores de reforço aos estereótipos oriundos do
etnocentrismo dos Ocidentais é a má-fé e/ou o desconhecimento da história
e das características atuais destas populações. O Guarani é considerado “o
índio clássico”, símbolo nacional, imagem do indígena brasileiro, tema de
óperas e de poesias. Paradoxalmente, este, assim como outros índios, é
visto pelo Branco como “vagabundo, preguiçoso, bêbado, feio, sujo e
ladrão”, à margem da população brasileira. Para alguns, estes índios “não
são nem mesmo brasileiros” (LITAIFF, 1996), não tendo, portanto,
nenhum direito a qualquer reivindicação. Outros grupos que formam a etnia
Guarani, assim como outros índios que entraram em contato com os Mbya,
consideram estes últimos “seres inferiores atrasados no tempo... falando
uma língua estranha e vivendo como animais”, os últimos na hierarquia da
sociedade nacional. Isto se deve principalmente ao fato dos Mbya
recusarem-se a ser “civilizados”, preferindo habitar distante de outros
índios e dos Brancos. Por outro lado, contrariamente aos índios da região
do Xingu, o Guarani carrega consigo a imagem do índio integrado, que usa
vestimentas ocidentais e fala português. Isto se deve ao fato de que para

170
Aldo Litaiff

sobreviver, o Mbya se viu obrigado a incorporar itens das sociedades


ocidentais a sua cultura milenar, adaptando-se, em parte, mas preservando
aspectos importantes de sua religião, organização social, língua e mitologia,
sendo esta uma das suas características mais importantes.
Atualmente, a população Guarani no Brasil é de cerca de 50.000
indivíduos, destes, menos da metade vivendo junto aos postos indígenas,
pois, até recentemente, não possuíam quase nenhum aldeamento definitivo,
sendo comum encontrá-los ainda hoje em pequenos grupos circulando pelas
rodovias do país. Mesmo assim, eles procuram se isolar, buscando o
mínimo de contato com a sociedade nacional. O antropólogo catarinense
Egon Schaden declara que, apesar das pesquisas existentes, é fundamental
fomentar estudos de campo que abordem contextos específicos, pois, “é
necessário destruir a imagem de que a sociedade Guarani já é bastante
conhecida e insistir sobre a urgência de se retomar os estudos desta cultura
com referência às suas variantes regionais” (1963, p. 83).

2. Projeto Sem Tekoa não há teko: Sem terra não há cultura

No dia 5 de janeiro de 1994, oito famílias mbya chegam em


Massiambu, município de Palhoça (onde se encontra o Campus Pedra
Branca da Unisul), em área seqüestrada judicialmente. O local é um antigo
ponto de referência para os Guarani, que habitaram esta região até serem
expulsos pelo avanço da população branca. 40 No ano seguinte, outro grupo
mbya chega ao Morro dos Cavalos, também em Palhoça, após os moradores
anteriores (uma família chiripa já mestiçada) abandonarem o local. Em 19
de outubro de 1999, os Mbya chegam em Imaruí, a mais recente aldeia
guarani de Santa Catarina. Os grupos familiares que chegaram às aldeias de
Massiambu, Imaruí e Morro dos Cavalos, vieram de diversas comunidades
localizadas no interior de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul,
sendo que alguns indivíduos vieram de aldeias de São Paulo, Rio de Janeiro
e Espírito Santo. Após a chegada do primeiro grupo liderado por Augusto
da Silva, conhecido entre os Mbya por Karai Tataendy, apareceram outras
famílias que foram se agregando à comunidade, enquanto outras partiam, o
que caracteriza a dinâmica social deste povo. Atualmente, as três aldeias
contam com uma população de cerca de 600 indivíduos.

40
Um documento datado de 1576 registra a presença dos Guarani na região de Massiambu,
na época denominado “Viaça” (Revista de propaganda do Estado e dos Municípios, Edição
do Departamento de Administração Municipal, ano 1, n.1, 1939).

171
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

Localizada a 13 km do município de Palhoça, 35 km da capital do


estado, a área de Massiambu possui menos de 5,5 ha (conforme
documentação de registro do imóvel), doze habitações, onde moram cerca
de cinqüenta e dois indivíduos, divididos em várias famílias nucleares, que
se organizam em algumas famílias extensas. No Morro dos Cavalos, com
121,8 ha, distante cerca de 3 km da primeira aldeia, com cerca de 220
indivíduos, incluindo visitantes (número este que pode mudar em função
das constantes movimentações, como vimos acima), os índios
acomodaram-se em vinte casas. Com 80 ha e localizada no município do
mesmo nome, a 50 km das outras aldeias, 80 km de Florianópolis, a Aldeia
de Imaruí possui 30 casas e cerca de 230 habitantes. As três aldeias estão
próximas do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Trata-se de uma
grande área de 90.000 ha de Mata Atlântica, declarada de preservação
permanente, através do Decreto estadual M/SETMA, n. 1.260, de
01.11.1975 (sendo que, posteriormente, o Decreto n.17.720/82 retificou
seus limites em 87.405 ha). É importante salientar que, a partir de nossos
dados (LITAIFF, 1999) e apoiado pela bibliografia especializada (MELIÁ,
1987), verificamos que os Guarani são profundos conhecedores da Mata
Atlântica, praticando há séculos o manejo florestal (ver também NOELLI,
1993).
No início de nossa pesquisa entre os Guarani, constatamos que a
falta de terras e de recursos naturais (provocados pela colonização branca e
pelo acelerado processo de destruição das florestas brasileiras), geravam
grandes períodos de fome, que continua matando a escassa população que
restou dos Guarani do passado. Tanto os Mbya, quanto a maioria dos
Guarani de Santa Catarina, encontravam-se numa situação de miséria,
sendo comum encontrarmos Guarani esmolando nas ruas de Florianópolis,
principalmente mulheres e crianças. As doenças, a subnutrição, que afetam,
principalmente, a população infantil, e o alcoolismo (problema de quase
todos os grupos “indígenas” brasileiros), dizimam de forma dramática seu
contingente populacional. O problema da saúde está estreitamente
relacionado à questão da falta de terras, pois, “com uma boa terra pode
plantar, pegar remédio no mato, ninguém fica doente”, declara o Cacique
41
Mbya. As áreas de Massiambu e Morro dos Cavalos são insuficientes e
inadequadas para atender às necessidades básicas dos Mbya, que reclamam
de sua pequena extensão, infertilidade e da escassez da mata: “são muito
pequenas, não têm florestas e mal dá para plantar. Guarani é do mato, vive

41
Sempre quando utilizamos somente o termo “cacique” sem o nome da pessoa, estamos
nos referindo a Augusto da Silva Karai Tataendy.

172
Aldo Litaiff

no mato, com terra grande, muita árvore, palmito, terra boa para plantar, se
a terra não for boa, o Guarani lá não vive”, declara um de nossos
colaboradores. Acrescentamos que os próprios Mbya se definem como
sendo “índios da floresta”. Tekoa, então, é um espaço com terra fértil,
florestas, lugar de agricultura e coleta. Por este motivo, dentre os grupos
guarani, os Mbya são os que mais dependem das florestas para sua
subsistência.
A comercialização do artesanato e a agricultura são atualmente as
principais fontes de subsistência dos Mbya. A agricultura é atividade de
importância fundamental na vida dos Mbya. Os Guarani de Santa Catarina
relatam, porém, que o fomento ao artesanato comercial surgiu como
solução para a falta de terras e a conseqüente impossibilidade de exercer a
agricultura. Os Mbya vendem seus artesanatos aos turistas, ao longo da
rodovia BR-101, ou nas ruas e praças de Florianópolis. Os objetos
comercializados com maior freqüência são: colares, arcos e flechas,
chocalhos (mbaraka), abanadores e cestarias (adjaka) de diversos tipos e
tamanhos. No litoral sul de Santa Catarina, toda matéria-prima utilizada por
estes Guarani é proveniente das florestas adjacentes, no caso das três
aldeias Mbya, principalmente da Serra do Tabuleiro. Por este motivo,
dentre os povos Guarani, os Mbya são os que mais dependem das florestas
para sua subsistência: “sem a mata o Mbya não é nada”, assinala um velho
Mbya.
Entre os Mbya, o milho (awaty) e a mandioca (mandió) são os
principais alimentos. Observamos também o cultivo da batata-doce (jety),
feijão (comandá), banana (pakoá), mandu’i e cana (taquare’ey). Foram
registrados quatro tipos diferentes de milho: awaty jú, amarelo de espiga
pequena, awaty sí, espiga branca e macia, awaty para í, espiga com grãos
“coloridos”, e awaty jú guaçú, espigas grandes e amarelas. Além de uma
grande área de lavoura coletiva (cana, abacaxi, mandioca e milho), existem
outras menores, próximas a pequenas concentrações de casas (normalmente
de três a cinco residências), para consumo diário (banana, mandioca,
batata-doce e milho). Os Mbya criam patos, marrecos e galinhas, que ficam
soltos pela aldeia. O milho e a mandioca, certamente, são os alimentos mais
consumidos entre esses índios. O Cacique relata que a primeira mandioca
teria nascido sobre a sepultura de um Guarani morto e descreve como se
processava a lavoura Mbya: “Nosso alimento antigamente era milho, feijão
vagem, sem sal e sem tempero, antes não tinha o sal, nem açúcar. O índio
vivia de caça, tateto, raposa (como denominam ‘gambá’), tatu, Jaku,
pegava mel, peixe do rio, plantava milho, mandioca, banana, batata. Dois

173
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

tipos de amendoim: o amarelo e o vermelho. Antes a mulher plantava, o


homem só caçava, pescava e pegava mel. Homem só queimava e limpava o
mato para mulher plantar, num mesmo buraco, milho e feijão, depois
tapava o buraco com o pé. Os dois crescem e o feijão se enrosca no pé de
milho. Agora tudo mudou, não tem jeito. Em agosto plantava amendoim,
maio é a colheita, as mulheres se juntavam para colher, depois fazia comida
de milho com amendoim torrado ou cozido. Crianças treinavam colher e
fazer comida nos pequenos balaios. O homem vai caçar no mato, agora é
triste, não tem mais. Naquele tempo sempre alegre, não tinha tristeza. Era
tudo unido, amigo, hoje tudo mudou. O mundo não muda, o povo é que
muda”. Podemos ver aqui a estreita relação entre subsistência e organização
social, sendo a “economia de reciprocidade”, um dos dispositivos principais
da dinâmica social Guarani, e uma das mais importantes características
destes índios.
A compra do alimento industrializado também tem gerado graves
problemas de saúde entre os Guarani. Conforme nos relatou uma
enfermeira da FUNAI que visitou as aldeias catarinenses: “além de mais
caro é menos nutritivo, causando a subnutrição, responsável pela maior
parte das doenças e pela mortalidade infantil. Aqui, nestas aldeias, já
tivemos várias crianças com desidratação, causada por forte diarréia,
tuberculose, anemia, pneumonia (principalmente entre crianças com menos
de dois anos) e outras doenças. Isto tudo porque o índio ainda não conhece
o alimento do branco, ele não sabe como funciona no seu organismo, em
termos nutritivos”. Sensível às necessidades desta população, desde 1992, a
equipe formada por alunos (graduação e pós-graduação), pesquisadores e
professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
(PPGCL) da Unisul tem se dedicado a buscar meios para solucionar estes
problemas, como por exemplo, o isolamento de cinco tipos de awaty, o
milho Guarani, da contaminação pelo milho híbrido. Desta forma, os
Guarani voltaram a cultivar o awaty de acordo com suas antigas técnicas,
que é comprovadamente, a espécie de milho mais adaptado e resistente à
condições adversas (geada, seca etc.), sendo que suas sementes foram
levadas por estes índios a várias outras comunidades dentro e fora do
estado.
Executado entre março de 2001 e dezembro de 2004, o projeto Sem
Tekoa não há teko teve, como objetivo geral, incentivar formas econômicas
apropriadas ao etnodesenvolvimento e à auto-sustentabilidade das terras
indígenas Guarani do litoral do Estado de Santa Catarina, medidas

174
Aldo Litaiff

compatíveis com teko, ou seja, modo de ser, cultura Guarani. 42 Buscou-se


também contribuir no processo de regeneração da Mata Atlântica e do solo
(para fomento da agricultura familiar, coletiva e outros tipos de manejo
florestal, características destes índios), de 3 das 18 áreas Guarani do litoral
catarinense, a maioria recentemente ocupada por estes índios, que, nesta
região, contam cerca de 1050 indivíduos.
Conscientes da grave situação em que atualmente se encontram os
Guarani, e considerando que as poucas terras em que vivem não
apresentam as condições básicas previstas na Constituição Federal
Brasileira de 1988, partimos do pressuposto de que este projeto deveria
respeitar as condições mínimas para a manutenção do modo de ser Guarani.
Sabemos que a sobrevivência de uma população só é possível quando as
terras a ela destinadas permitam perpetuar seus costumes. Todavia,
atualmente, o maior problema para os Guarani é a improdutividade das
poucas terras em que se encontram. Nossa intenção tem sido a de modificar
tal situação, através da implementação do desenvolvimento sustentável de
antigas e novas áreas recentemente adquiridas, de acordo com as
necessidades de subsistência e a situação demográfica. A partir de
experiências anteriores e do estudo do contexto atual, obtivemos uma
correta avaliação da presente situação, assim como do impacto que estas
populações vêm sofrendo ao longo deste violento processo de contato com
a civilização ocidental.
Com o intuito de eleger prioridades para a elaboração dos projetos,
tomamos como principal critério consultar não só as lideranças como
também outros integrantes, mulheres e anciães, das comunidades indígenas
em questão. Cientes das dificuldades e do estreito relacionamento entre as
aldeias, optamos pelo método comparativo, procurando entender as
semelhanças e diferenças entre elas. Esta nos pareceu ser a melhor
metodologia para se chegar a alguns pontos consensuais que nos
permitiram eleger as prioridades. Portanto, a presença das lideranças, como
o Cacique Augusto da Silva Karai Tataendy, e outros representantes
durante o processo de eleição das prioridades, foram fundamentais na
confecção dos objetivos dos projetos, que, desta forma, foram definidos e
executados em conjunto com os membros das comunidades.
Tomando o caminho inverso das soluções assistencialistas e/ou
paternalistas, que geram maior dependência com relação à sociedade

42
Observamos que no ano de 2008 o projeto deve ser aplicado em outras quatro
comunidades Guarani localizadas no litoral norte do Estado de Santa Catarina.

175
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

nacional envolvente, executamos algumas medidas simples, visando ao


controle dos meios que conduzem a uma maior autonomia e auto-
subsistência, tendo como conseqüência a sobrevivência dos indivíduos, de
sua sociedade e de sua cultura. Visando à realização desta meta, foram
alcançados os seguintes objetivos, previstos inicialmente no projeto Sem
tekoa não há teko: a) análise e correção do solo para melhor produtividade,
respeitando, porém, os princípios da cultura Guarani, que prevê a utilização
preferencial da agricultura orgânica (adubo e irrigação); b) plantio de
milhares de mudas árvores frutíferas (1.500 unidades: laranja lima, goiaba,
banana etc.); c) aquisição de pequenos animais, como: galinhas, patos e
marrecos, fontes alternativas de proteína; d) construção de açudes para
criação de peixes (outra importante fonte protéica – principalmente carpa e
tilápia, de fácil manejo); e) reflorestamento da mata no interior da área,
através do cultivo de milhares de mudas de árvores típicas da região (5.000
unidades: palmeira, canela, cedro, etc.), quase totalmente desaparecidas
nestes locais. Observou-se que estas árvores são de grande importância
religiosa para os Mbya, que, quando manejam as florestas, não visam
somente à utilização de seus recursos, mas, sobretudo sua recuperação e a
eliminação de espécies exóticas invasoras (como pinos e eucalipto); f)
identificação, a partir da concepção de manejo agroflorestal guarani, não só
das espécies retiradas, como também do local e da técnica de coleta (que
posteriormente teve classificação biológica, traçando paralelos com a
taxionomia guarani), e da roça tradicional (coivara), que é a base alimentar,
rica em amido (milho, mandioca, batata-doce, amendoim, feijão); g)
geração de conhecimento teórico-prático que hoje orienta projetos nas áreas
de Etnologia Indígena, Mitologia, Estudos de Linguagem, Ecologia e
políticas públicas de educação e saúde.
Inicialmente, foram elencadas as necessidades mais urgentes das
comunidades, visando à elaboração dos objetivos deste projeto. Para sua
execução, foram necessárias a alocação de equipamentos e a designação de
alunos/estagiários (graduação e pós-graduação) para orientação e
aprendizado durante as seguintes atividades: a) coleta de amostra, análise e
correção do solo; b) avaliação da área para introdução das árvores
frutíferas, em qualidade, quantidade, distribuição e local apropriados (de
acordo com especialistas acadêmicos e os próprios Índios); c) plantio de
árvores nativas da região, especificamente araucária, cedro, canela e
palmeira, com o acompanhamento constante por parte de monitores
Guarani (tendo, como conseqüência, uma perda mínima – menos de 12%);
d) reuniões entre alunos/estagiários e os membros da comunidade, visando
ao “monitoramento acadêmico” e à avaliação constante da execução do

176
Aldo Litaiff

projeto. Com isto, conseguimos alcançar o máximo de aproveitamento e


produtividade dos recursos do projeto, bem como dos recursos ambientais
das áreas em questão.
Sublinhamos que partimos de experiências anteriores igualmente
bem-sucedidas, aplicadas em outras comunidades Guarani, como o caso da
Terra Indígena de Bracuí (localizada no litoral do Estado do Rio de
Janeiro), onde foram implantadas, pela primeira vez, estas mesmas medidas
com sucesso: organizamos grupos de trabalho constituídos pelos índios,
como foi visto acima, que participaram ativamente no processo de correção
do solo, plantio de árvores, acompanhamento do crescimento e recuperação
da floresta, sendo esta uma fonte temporária de subsistência para estes
Guarani, que foram remunerados, conforme foi previsto no projeto. Através
deste projeto, acreditamos ter conseguido minimizar alguns efeitos
nefastos, frutos do contato com a sociedade ocidental, procurando,
principalmente, evitar interferências paternalistas e assistencialistas.
Buscamos, neste sentido, a regeneração do solo e da Mata Atlântica
adjacente, a diminuição de doenças entre a população infantil, a queda da
mortalidade infantil, a diminuição do alcoolismo e de DST/AIDS (com a
auto-sustentabilidade os índios não mais necessitam se ausentar de suas
comunidades em busca de emprego sazonal, venda de artesanato etc.) e a
diminuição do número de conflitos internos (brigas entre jovens,
desavenças conjugais etc.), frutos de problemas relacionados à subsistência.
Acreditamos ser esta a forma correta de contribuir para a
preservação da cultura e identidade Guarani, de acordo com os dispositivos
estabelecidos pelo artigo 231 da Constituição de 1988. Entendemos que
este projeto contribuirá na promoção de medidas preventivas ligadas às
condições gerais de saúde em seu sentido mais amplo, apoiadas
necessariamente em ações intersetoriais, que contemplem a produção de
alimentação básica e, principalmente, a posse de “tekoa”, ou seja, a posse
de terras adequadas, com solo fértil, água limpa e florestas preservadas.
Entendemos que, com este projeto, conseguimos atender a uma
reivindicação legítima dos Guarani: condições mínimas de subsistência.
Estamos seguros de que, com estas ações, encontramo-nos cada vez mais
próximos da solução dos problemas das populações indígenas do Estado de
Santa Catarina, sendo este o maior mérito deste projeto, pois sem tekoa não
há teko (MELIA, 1990), ou seja, sem terra não existe cultura nem
sociedade.

177
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

3. Projeto Registro audiovisual da execução do projeto Sem tekoa não


há teko

Nosso objetivo principal neste projeto foi o de criar um registro


audiovisual da execução do projeto Sem tekoa não há teko (também
denominado “projeto-base”). Partindo de uma experiência de mais de vinte
anos junto às populações guarani do Brasil, solicitamos a presença das
lideranças e outros representantes durante o processo de eleição das
prioridades do projeto, sendo fundamental na confecção de seus objetivos,
passando assim pelas estratégias adotadas para a obtenção do máximo de
envolvimento da comunidade, até na redação do relatório final.
Os fatos observados em campo foram acompanhados por registro
audiovisual, que permitiu uma melhor contextualização do universo sócio-
cultural em questão. Assim, o material foi gravado e fotografado, conforme
os objetivos do projeto e as demandas de campo. Atualmente, o produto
deste trabalho é utilizado em cursos e palestras sobre a realidade Guarani,
especificamente sobre o manejo dos recursos naturais, dirigidos não só à
Unisul, como a outras instituições de ensino. Sublinhamos que através do
processo de “monitoramento acadêmico” (atividade que compreende a
observação participante e coleta de dados em campo, executada pelos
próprios índios, pelo coordenador e alunos), asseguramos o amplo acesso a
este conhecimento pelos diferentes setores da instituição proponente, assim
como seu efeito multiplicador. Nosso público-alvo foi a comunidade
indígena Guarani, outras comunidades indígenas e comunidade regional,
pesquisadores, docentes e discentes de diversas áreas do conhecimento.
Hoje se reconhece a importância dos recursos audiovisuais
utilizados nas Ciências Sociais e da Comunicação, não somente enquanto
meios necessários, mas imprescindíveis em disciplinas, como, por exemplo,
a antropologia e a sociologia. Nosso interesse aqui foi o de motivar a
interdisciplinaridade entre antropologia e meios audiovisuais de
comunicação, através da participação dos alunos do curso de Cinema e
Vídeo e do PPGCL da Unisul, que poderão criar roteiros, operar câmaras,
dirigir e executar todo o processo de documentação visual deste projeto.
Acreditamos que a informação visual tem toda a potencialidade heurística,
científica e mesmo ontológica de ser considerada documentação de status
científico, podendo ser vista como um prolongamento das capacidades
sensíveis do investigador, em seu esforço de registrar e estudar eventos do
mundo social.

178
Aldo Litaiff

Apesar de todo o importante material audiovisual, que vem sendo


produzido, constatamos certa resistência dos intelectuais do mundo
acadêmico em aceitar nossa metodologia de trabalho mais positivamente,
reconhecendo-lhe o caráter científico, pois esta disciplina também se
propõe a observar, investigar, descrever e compreender visualmente os
fatos humanos. Numa das primeiras e mais interessantes publicações sobre
Antropologia Visual, E. Samain e H. Sôlha (in MENESES, C. Cadernos de
Antropologia Visual, FUNAI, RJ, 1987) questionam: “[...] tal problemática
toma contornos mais claros quando se pergunta sobre as razões de tão
parcimoniosa utilização, até hoje, dos filmes etnográficos na formação do
futuro antropólogo. O que pensar ainda desta discrição para não dizer desta
timidez, com que os mais sensíveis antropólogos ilustram ou
complementam visualmente as centenas de páginas monográficas que
escrevem?” Os pesquisadores citam como exemplo o trabalho pioneiro que
Gregory Bateson e Margaret Mead realizaram na década de 40 (MEAD, M.
Principles of Visual Anthropology, Paris: Mouton, 1975), entre os
balinenses, utilizando os recursos fotográficos, com o objetivo de pesquisar
a cultura desta sociedade.
A partir deste e de outros importantes trabalhos, podemos constatar
que, tanto o cinema, o vídeo, quanto a fotografia, podem e, até mesmo,
devem ser associados à pesquisa antropológica e sociológica. Desta forma,
segundo Meneses (idem), estes recursos tornam-se “instrumento de
importância capital tanto na educação popular, quanto para a recuperação
do passado histórico das populações indígenas”. A autora explica que o
cinema, o vídeo e a fotografia podem servir de ponto de partida para as
etnias indígenas, por exemplo, no processo político interno, reforçando
alianças, estimulando a circulação de informações e possibilitando não só à
retomada, mas a “reinvenção da tradição”.
Sobre as questões metodológicas, Samain e Sôlha (idem) afirmam,
ainda, que há de se reconhecer que a Antropologia Visual tem se ressentido
até hoje da falta de discussões mais aprofundadas, relevando os seguintes
pontos: a) repensar o conjunto metodológico que a Antropologia nos
ofereceu até o momento, face às especificidades que a Antropologia Visual
pode também nos proporcionar; b) procurar criar um espaço no trabalho
antropológico que permita a experimentação de um “novo fazer”, gerando
subsídios necessários à elaboração de metodologias específicas do uso dos
multimeios nesse campo; c) tal elaboração não poderá ser desvinculada,
pensamos, de uma profundas reflexão sobre a lógica do visual, a qual não
pode ser equilibrada de antemão à lógica da escrita e da oralidade.

179
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

Na busca destas e de outras respostas às questões acima abordadas,


propomos, através deste projeto, fomentar a produção acadêmica de
audiovisuais de caráter sociológico e antropológico. Acentuamos que o
material audiovisual produzido durante este projeto pelos estudantes de
graduação do curso de Cinema e Vídeo tem servido aos alunos do PPGCL
da Unisul, como ponto de reflexão para suas dissertações e também como
referência para futuras pesquisas teóricas sobre o uso científico de
audiovisual, com vistas a uma continuidade entre os dois cursos. Além
disto, constata-se um significativo efeito multiplicador, fomentado através
da divulgação de vídeos e de outros materiais de caráter audiovisual,
resultantes do projeto (confecção de catálogo de fotos e exposição das
mesmas), em escolas, em outras universidades e em outras aldeias
indígenas. Com estas atividades, esperamos sensibilizar o maior número
possível de indivíduos quanto à validade e importância do projeto-base.
Partindo dos objetivos específicos, foram produzidos: a) roteiros,
vídeos e/ou material fotográfico, a título de trabalho de conclusão de
disciplina (Antropologia Cultural e da Imagem) ou mesmo como trabalho
final de curso (neste caso, Cinema e Vídeo); b) registro audiovisual que
servirá de memória da execução das fases do projeto-base Sem tekoa não
há teko; c) a partir deste material, comparamos a situação de subsistência
das comunidades guarani em questão, anterior e posterior à execução do
projeto, o que servirá de ponto de referência para futuros projetos nesta
área; d) foi produzido um vídeo de divulgação e propaganda, para brancos e
índios, sobre os resultados do projeto e as vantagens de se trabalhar com,
por exemplo, agricultura orgânica e reflorestamento, que determinam uma
situação econômica, social e política, caracterizadas pela auto-
sustentabilidade.
A execução deste projeto obedeceu às seguintes etapas: a)
organização da equipe de alunos e técnicos; b) registro visual (vídeo e/ou
foto) das atividades de campo (coleta de dados preliminares); c)
levantamento do equipamento e material necessários; d) registro visual da
implantação dos açudes para a criação de peixes; e) registro visual do
processo de correção do solo e irrigação; f) registro visual da compra de
mudas de árvores; g) registro visual do processo de plantio de árvores
frutíferas; h) registro visual do reflorestamento e manejo da mata nativa; i)
organização, análise do material fotográfico produzido, edição e montagem
do vídeo; j) confecção de um relatório final e avaliação dos resultados.
Sublinhamos, enfim, que o documentário Mbya Guarani, os gerreiros da
liberdade, dirigido por Charles Cesconetto, professor do Curso de

180
Aldo Litaiff

Comunicação Social da Unisul, cujo roteiro partiu de nossas pesquisas, foi


vencedor do primeiro DOC TV, concurso nacional promovido pela TV
Cultura, com exibição nacional.

4. Projeto Mitologia Guarani

O objetivo principal deste projeto é escrever um livro sobre a


relação entre mitologia e práticas dos índios Guarani do litoral de Santa
Catarina. O campo mitológico constitui uma importante via para o
conhecimento etnográfico. Propomos neste livro uma abordagem
sincrônica e diacrônica dos mitos que atualmente circulam entre as
comunidades guarani do litoral brasileiro. Utilizaremos os textos de André
Thevet (Cosmographie universelle, 1575), que viveu entre os Tupinambás
durante o século XVI; os artigos de Leon Cadogan (1949, 1953, 1955 e
1960) que, no inicio do século XX, registrou mitos e costumes dos
Guarani-mbya do Paraguai; os trabalhos de Curt Nimuendaju Unkel
(1914/1985), que trata das versões chiripa desses mesmos mitos registrados
no inico do século XX; e as versões mbya e chiripa que registramos entre
os Guarani do litoral. Nosso objetivo é apontar as semelhanças e as
diferenças mais significativas entre as versões das principais narrativas
míticas dos povos Tupi e Guarani, que apresentam grande semelhança em
seus mitos. Os temas abordados no discurso mítico são: a criação da
primeira terra e dos primeiros homens; o “Mito do dilúvio”; a criação da
segunda terra, incluída no “Mito dos irmãos” ou “Ciclo dos gêmeos”; e o
“Mito do fogo”. A partir da classificação proposta por Leon Cadogan (1946
e 1954), os mitos guarani podem ser divididos em dois gêneros: a) os
“mitos esotéricos” ou sagrados – sendo que apenas seus fragmentos são
cantados na casa de reza durante o ritual de poraei. Essa categoria inclui o
Maino’i reko ypy kue e o Ayvu Rapyta, mitos cosmogânicos onde Deus cria
seu próprio corpo, o universo, os astros, a terra e os primeiros homens; b)
os “mitos exotéricos” ou não-sagrados – os textos não-cantados, dividos em
duas categorias: o Mito do dilúvio, o Mito dos irmãos e a conquista do
fogo; e as narrativas etno-históricas, histórias antigas e recentes, que tratam,
por exemplo, da conquista da América do Sul pelos portugueses e
espanhóis, os conflitos armados pelos conquistadores; os deslocamentos de
populações mbya e chiripa no litoral brasileiro. Juntam-se a esses as
narrativas da situação contemporânea dos Guarani e suas histórias de vida .
(abordamos as narrativas etno-históricas num outro trabalho (LITAIFF,
1996)). Ressaltamos que os Mbya diferenciam claramente esses dois tipos
de narrativas, ou seja, as míticas e as históricas; entretanto, os nossos

181
Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina

informantes guarani utilizam quase sempre as narrativas míticas para


confirmar ou explicar os eventos históricos, como por exemplo, “nós
estamos aqui no litoral porque a Terra sem mal começa depois do mar, é lá
que Kuaray foi morar”, dizem os Mbya. Percebemos então que a distinção
entre mitos e narrativas históricas fica mais clara quando perguntamos aos
guarani as semelhanças entre os dois tipos de narrativa, “os brancos não
dão valor às histórias que não são escritas. É por isso que eles não
respeitam o nhande rekoram idjypy [mito], a história da origem de nhande
reko, que é como chamamos o nosso sistema. Agora nós não podemos mais
misturar estas histórias muito antigas com a história de nossa luta no
mundo de hoje”, respondem nossos interlocutores. A diferença entre o
mundo mítico e o mundo histórico aparece no discurso mbya, não somente
em função da diacronia, mas também pelo valor intrínseco dos fatos
narrados. Salientamos que o produto final deste projeto, ou seja, o livro,
encontra-se em fase de conclusão, devendo ser publicado durante o
primeiro semestre do ano de 2009.
Finalmente, entendemos que estes projetos contribuem para um
maior conhecimento da sociedade Guarani, assim como na promoção de
medidas ligadas às condições gerais, saúde, em seu sentido mais amplo,
apoiadas necessariamente em ações intersetoriais, que contemplem,
principalmente, a posse de terras adequadas e a conseqüente preservação de
sua cultura, garantindo, desta forma, a sobrevivência deste povo.

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_____. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EDU/EDUSP, 1974.
_____. A mitologia heróica de tribos indígenas brasileiras. São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1989.

183
A IMAGEM COMO MATRIZ HISTÓRICA
DA NAÇÃO MODERNA

Antonio Carlos Santos

Religião da salvação pela imagem,


o cristianismo se viu desprovido
no século XIX de sua capacidade de
dar um conteúdo espiritual à história. Restou
a arte que se tornou a matriz da história:
a imagem não projetava mais um futuro
homólogo ao passado que ela testemunhava,
ela se tornava capaz de produzir um futuro
sem precedentes. Nosso século é herdeiro
dos românticos que fizeram do artista um
profeta e deram à imagem o poder de dar
forma à história sob o risco de que esse novo
poder esteja a serviço dos totalitarismos.
Éric Michaud

Imagem e nação são as duas noções que embasam essa pesquisa


que procura trabalhar com as imagens da nação construídas no século XIX
pela pintura, pela fotografia e pela literatura. Para pensar essas duas noções
seria necessário retomar uma discussão que começa no próprio século XIX,
sobre a nação, com a conferência que Ernest Renan fez na Sorbonne, no dia
11 de março de 1882, “O que é uma nação?”, até a edição de Comunidades
Imaginadas, de Benedict Anderson, cem anos depois, que nos permite fazer
uma ligação entre nação e imagem. Da idéia de Renan de que uma nação “é
uma alma, um princípio espiritual”, até o conceito de Anderson de “uma
comunidade política imaginada” como limitada e soberana, vimos caírem
por terra todos os critérios que pareciam naturais para definir esse
fenômeno que ganha corpo no século XIX: língua, território, povo, etc. Se
uma nação é então uma comunidade imaginada, não é difícil concordar
com pesquisadores que concluem que a nação é efeito de ficções narrativas,
basta lembrar o livro de Doris Sommer, Ficções fundacionais (2004), que
liga a construção das modernas comunidades nacionais na América Latina
a romances sentimentais, sobretudo os do século XIX, como Facundo e
Amalia (Argentina), Sab (Cuba), Martín Rivas (Chile), El Zarco (México),
O Guarani e Iracema (Brasil). Desta maneira, as duas noções, a de imagem
A imagem como matriz histórica da nação moderna

e a de nação, estão muito próximas e nos permitem ler nas imagens


construídas por escritores, pintores e fotógrafos as muitas caras desse país
que, para um modernista, como Mário de Andrade, ainda não tinha uma
identidade no início do século XX.
Gostaria de partir, então, para pensar a idéia de imagem, de uma
frase do senso comum: “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Temos aqui um juízo sobre a imagem e as palavras que, por um lado,
descreve bem o nosso presente e, por outro, esconde uma relação íntima
que existe entre os dois termos, ou seja, entre o visível e o dizível. Descreve
nosso presente porque todos parecem apontar nossa contemporaneidade
como sendo regida por imagens, a ponto de se dizer que não há mais
realidade, mas apenas imagens. A frase indica, ainda, uma comparação
valorativa, ou seja, atribui à imagem mais valor do que às palavras; elas
seriam mais fiéis na medida em que reproduziriam o mundo lá fora tal
como ele é. Vamos tentar logo definir o que seria uma imagem. Hegel, no
curso de estética que desenvolveu em Berlim de 1823 a 1829, diz o
seguinte: “Obtém-se uma imagem quando se reúnem dois fenômenos ou
estados independentes, um dos quais corresponde a uma significação e o
outro para tornar mais perceptível tal significação” (HEGEL, 1996 p. 453).
Há, portanto, para o filósofo alemão, uma relação entre uma significação e
alguma outra coisa que tenta realçar essa significação: seria o caso de
pensarmos aqui em imagem de uma maneira mais ampla do que aquela
contida na frase do senso comum, pois o que importa para Hegel é uma
relação hierárquica entre os dois fenômenos, o segundo ajudando a explicar
o primeiro. Poderíamos pensar nas imagens literárias, ou seja, nas imagens
dizíveis e não somente visíveis. E o exemplo que Hegel dá é o poema de
Goethe “O canto de Maomé”. Seguindo ainda mais um pouco o autor da
“Fenomenologia do Espírito”, podemos ver como a imagem

[...] pode ter por significação toda uma gama de estados,


atividades, produções, modos de existência, e, sem lhes fazer
a menor alusão, pode tornar esta significação perceptível
pela própria imagem, invocando a analogia que existe entre a
esfera a que pertence a imagem e uma outra esfera”.
(HEGEL, 1996 p. 454).

Temos aqui, portanto, uma definição mais geral de imagem que


aponta para a analogia entre dois fenômenos, sendo função do segundo
explicar o primeiro e que se distancia de nossa frase do senso comum por
aproximar os dois termos (imagens e palavras) separados pelo juízo de

186
Antonio Carlos Santos

valor. Vale buscar em outro filósofo uma definição diferente de imagem,


uma que tenta dar conta, ou dar fim, a esse caráter binário presente no
pensamento hegeliano. Bergson, em Matéria e memória, um livro do final
do século XIX, nos convida a esquecer o binarismo tradicional da filosofia,
corpo e mente, realidade e idealidade, res cogitans e res extensa, e pensar o
mundo como imagens: “Eis-me portanto em presença de imagens, no
sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, imagens percebidas
quando abro meus sentidos, despercebidas quando os fecho”. (BERGSON,
1990, p. 9). Na leitura que faz das teses de Bergson, Deleuze mostra que
elas estabelecem uma igualdade entre imagem, movimento e matéria. O
que há são imagens, que agem e reagem sobre outras imagens. E por que
essa palavra imagem? Porque, nos diz Deleuze, imagem é aquilo que
aparece, ou seja, o que a filosofia chama de fenômeno. Pois bem, essas
imagens não são um suporte de ações e reações, mas são, elas mesmas, em
todas as suas partes e sob todas as suas faces, ação e reação, ou seja, ação e
reação são imagens. Em outras palavras, a imagem é uma vibração e,
portanto, movimento. E, como as coisas são imagens e as imagens iguais ao
movimento, fica estabelecida a tríplice identidade entre imagem,
movimento e matéria.
Como podemos ver, a tese de Bergson faz da imagem uma espécie
de absoluto na medida em que destrói o dualismo e nos permite pensar o
mundo e nós mesmos como imagens. Sabemos que daí Deleuze deduz uma
reflexão sobre o cinema, lembrando que Bergson desenvolve suas teses
exatamente no momento em que o cinema está sendo criado.
Mas deixemos de lado Bergson e Deleuze para introduzir uma
outra reflexão sobre a imagem que parte, desta vez, da fotografia. Vilém
Flusser, um judeu de Praga de língua alemã, como Franz Kafka, que morou
no Brasil de 1939 a 1973, constrói em seu ensaio de 1983, Filosofia da
Caixa Preta, um movimento ternário, imagem, escrita e imagem técnica,
para pensar a contemporaneidade. Digamos que no princípio era a imagem
e a imagem, uma tentativa de representar algo do “mundo lá fora”. Assim,
os povos pré-históricos pintavam nas cavernas cenas de suas caçadas,
reproduziam os animais com que lutavam em busca de sobrevivência,
transformavam o mundo de quatro dimensões em um outro mundo, o da
imagem, de apenas duas dimensões. Diríamos, portanto, que a operação
que esses homens pré-históricos realizavam era regida por um
procedimento de redução: de quatro para as duas dimensões do plano.
Chamamos de imaginação exatamente essa capacidade de redimensionar o
mundo das quatro dimensões espaço-temporais em duas dimensões planas.

187
A imagem como matriz histórica da nação moderna

Para decifrar essas imagens, nosso olhar vagueia sobre a superfície de


forma circular: é o tempo do eterno retorno, tempo da magia, diferente do
tempo linear com suas causas e efeitos. Essas imagens são, portanto, uma
maneira de codificar, de traduzir eventos, acontecimentos do “mundo lá
fora”, em cenas, são mediações entre o homem e o mundo, têm o propósito
de representar o mundo para um homem incapaz de ter acesso direto a esse
mesmo mundo. Em um determinado momento, essas imagens deixam de
significar o mundo para tornarem-se, elas mesmas, o mundo, ou seja,
deixam de servir como uma mediação entre o homem e o mundo para se
tornarem uma barreira: é uma época de crise da imagem, de idolatria.
É nessa época, cerca de dois mil anos antes de Cristo, que surgiram
pessoas empenhadas em restituir a função original das imagens. Passaram
então a “rasgá-las” com o objetivo de abrir ao homem, novamente, a
mediação entre elas e o mundo. Mas o método que utilizaram consistia em
desfiar as superfícies das imagens em linhas e alinhar os elementos da
imagem, transformando o tempo circular em linear, as cenas novamente em
processos. Foi assim que apareceu a consciência histórica, consciência
dirigida contra as imagens, fato que pode ser observado entre os filósofos
pré-socráticos e, sobretudo, entre os profetas judeus. Uma das maneiras de
definir a história é dizer que ela é o resultado da luta da escrita linear contra
a imagem. Pois bem, a escrita seria, então, essa possibilidade de codificar
planos em retas e abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da
conceituação, que permite codificar textos e decifrá-los. É importante
lembrar que com esse passo, com essa entrada na era histórica, da escrita
linear, o homem se afastou ainda mais do mundo, pois os textos não
significam o mundo diretamente, mas o fazem através de imagens rasgadas.
Os conceitos não significam diretamente os fenômenos, significam idéias e
decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A
função dos textos, portanto, é explicar imagens, a dos conceitos é analisar
cenas. Ou seja, a escrita é meta-código da imagem.
Essa era da escrita linear, da consciência histórica, da tentativa de
desmagicizar o pensamento pré-histórico, encontra também seu momento
de crise: os textos, que pretendiam fazer uma mediação entre o homem e a
imagem, acabam por se tornar opacos, tapando as imagens que
representavam: o homem não é mais capaz de decifrar textos, o que o torna
também incapaz de reconstituir as imagens abstraídas. O nome dessa crise é
textolatria. A crise dos textos implica o naufrágio da história, que é, como
dissemos antes, processo de recodificação de imagens em conceitos.
História é explicação progressiva de imagens, desmagicização,

188
Antonio Carlos Santos

conceituação. Se os textos não mais significam imagens, nada resta a


explicar, é o fim da história. Em tal mundo, explicações passam a ser
supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade.
Pois é precisamente nesse mundo de crise textual que são
inventadas as imagens técnicas. Brevemente, para não levar mais longe
esse panorama ternário de Flusser, ironicamente hegeliano, imagens
técnicas são imagens produzidas por aparelhos, ou seja, produzidas por
algo que é produto da técnica, de texto científico aplicado. Daí sua
definição como produtos indiretos de textos – o que dá a essas imagens
técnicas uma posição histórica e ontológica diferente das imagens
tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais vêm antes dos textos e
as imagens técnicas depois de textos altamente evoluídos.
Ontologicamente, a imagem tradicional é abstração de primeiro grau:
abstrai duas dimensões do fenômeno; a imagem técnica é abstração de
terceiro grau: abstrai uma das dimensões da imagem tradicional para
resultar em textos (abstração de segundo grau); depois, reconstituem a
dimensão abstraída, a fim de resultar novamente em imagem. As imagens
tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas, pós-históricas.
Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens
técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo.
Essa posição das imagens técnicas é decisiva para o seu deciframento.
Portanto, para Flusser, a relação entre as imagens e as palavras é mais
complexa do que a relação de valor estabelecida pela frase do senso
comum, pois as imagens técnicas acumulam camadas de sentido dos textos
e das imagens tradicionais, estando por isso afastadas da realidade na
medida em que é preciso retornar à imagem tradicional para se chegar à
mediação entre o homem e o “mundo lá fora”.
Se voltarmos agora nossa atenção para as teses de Eric Michaud
(2001, p. 41), veremos que essa relação da imagem com o “mundo lá fora”
ganha uma outra dimensão. Segundo ele, todas as formas de representação
por imagens constroem sua própria realidade por transfiguração. Sua
intenção é “reorientar o olhar sobre as imagens de modo que do estatuto de
testemunha, elas passem ao de agentes da história”. Fazer das imagens
fontes históricas, testemunhas oculares ou espelhos direcionados para
aquilo que se passou, e não se reproduzirá jamais, é esquecer a “parte
produtiva” da imagem, esquecer que a imagem constrói relações, laços,
com os acontecimentos e os corpos que ela re-apresenta, assim como com o
homem que virá, ou seja, com o futuro: “É claro que nem para seus
financiadores, nem para seus produtores, as imagens se reduzem a simples

189
A imagem como matriz histórica da nação moderna

testemunhas do passado: elas serão sempre concebidas como agentes da


história”. (idem, p.42). Dessa maneira, as imagens, mesmo as da fotografia,
são menos um “processo de figuração do real” do que um “processo de
seleção e de interpretação daquilo que ela memoriza”, ou seja, nas palavras
de Hanna Arendt, toda seleção de material é uma intervenção na história.
Se as imagens, mais do que testemunhas de um passado, produzem
um futuro, como lidar com essas imagens tão desvalorizadas pelos
modernistas como, por exemplo, as da pintura do século XIX? A
condenação da produção do século XIX como “acadêmica” pelos
modernistas põe no limbo trabalhos como “Arrufos”, de Belmiro de
Almeida, de 1887, ou “Descanso do Modelo”, de Almeida Júnior, 1882, ou
ainda “Estudo de Mulher”, de Rodolfo Amoedo, de 1884, pintores que
demonstram grande conhecimento dos movimentos de secessão em Paris,
onde todos estiveram, passando tanto pela Academia quanto pelos ateliês
de professores independentes, assim como despreza a ruptura em relação à
pintura dos grandes temas nacionais de Victor Meireles e Pedro Américo, a
pintura herdada dos franceses neoclássicos que haviam se tornado
hegemônicos durante a época napoleônica, mas que, com a virada política e
a restauração na França, tiveram de buscar trabalho em um império distante
e sequioso por imagens. É portanto nesse momento exatamente anterior ao
modernismo dos anos 10 e 20 de São Paulo, ou seja, na última metade do
século XIX e na virada para o XX, que se cruzam as realizações, por
exemplo, da literatura naturalista, não apenas Aluísio Azevedo, mas
também Adolfo Caminha, Inglês de Sousa, Domingos Olímpio, Manoel de
Oliveira Paiva, da pintura realista que destrói as regras do regime
representativo ao romper com a hierarquia dos temas e da fotografia que
com Revert Henrique Klumb, Christiano Júnior, Augusto Stahl, Juan
Gutierrez e Marc Ferrez constrói um arquivo de imagens e de pontos de
vista sobre a gente e a cidade do Mundo Novo. Quadros, por exemplo,
como “Leitura” (1892), “Moça com livro” e “Repouso”, de Almeida Júnior,
em que se destacam a literatura e a mulher como a leitora do romance –
vale ressaltar as três formas de feitiço da leitura aí apresentadas: no
primeiro, a mulher sentada confortavelmente em uma varanda está imersa
no livro, alheia totalmente à natureza e ao ambiente que a cerca; na
segunda, a moça deitada na relva tem a mão esquerda nas páginas do livro,
enquanto a direita segura o queixo, mantendo a cabeça e os olhos fixos, ou
melhor, perdidos, em algo distante; no terceiro, ela aparece totalmente
entregue ao olhar do espectador, recostada em um sofá sob a janela, o braço
esquerdo levantado apoiando a cabeça e o direito caído, ainda com o livro à
mão, recém-adormecida, provavelmente embalada pela história lida – se

190
Antonio Carlos Santos

vistos em contraste com as grandes batalhas e os feitos heróicos ou mesmo


com as cenas indianistas bem a gosto dos românticos apontam certamente
para uma nova direção e constroem imagens distintas da nação. As cenas de
leitura, assim como as de interior burguês como em “Depois da Festa”
(1886), “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” (1891), ou dos lugares
da arte, como em “Ateliê de Paris” (1880), “Descanso do modelo” (1882),
“O modelo” (1897), “O importuno” (1898), ou ainda do campo, como em
“Caipira picando fumo” (1893), “O violeiro” (1899) ou “O derrubador
brasileiro” (1879), todos quadros de Almeida Júnior, dão conta de uma
nova situação da arte – e, claro, de uma nova situação social –, com a
exploração de novos temas, um outro uso das cores e do desenho, e com a
invasão das telas por personagens comuns, as mulheres burguesas
pensativas, o trabalhador em ação, o interior da casa burguesa como lugar
de descanso íntimo, de construção do eu, o campo do caipira como
contraposição à cidade grande e os lugares de trabalho, entre eles esse lugar
da arte, o ateliê do artista. Aqui acontece aquilo que Jacques Rancière
(2005) teoriza como a passagem do regime representativo ou poético para o
regime estético, ou seja, este momento em que as regras estabelecidas pelas
poéticas, baseadas no par mímesis/poiésis, dão lugar a uma outra lógica
que, no realismo literário, fica clara com o rompimento, por exemplo, do
privilégio das ações sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição.
Ao recusar a noção de modernidade por ser ela “o conceito que se
empenha em ocultar a especificidade desse regime das artes” (idem p. 34),
referindo-se ao regime estético, Rancière afirma que a ruptura entre o
“antigo” e o “moderno” não está na passagem da figuração à não-figuração,
ou do representativo ao anti-representativo, mas sim no realismo que,
segundo ele, “não significa de modo algum a valorização da semelhança,
mas a destruição dos limites dentro dos quais ela funcionava”. (idem p. 35).
A idéia é mostrar como a discussão sobre as artes no mundo
contemporâneo está viciada por um parti pris, já que a noção de
modernidade estética “recobre, sem lhe atribuir um conceito, a
singularidade de um regime particular das artes, isto é, um tipo específico
de ligação entre modos de produção das obras ou das práticas, formas de
visibilidade dessas práticas e modos de conceituação destas ou daquelas”.
(idem p. 27). É para contestar essa noção, assim como a de vanguarda, que
o teórico francês propõe três grandes regimes de identificação para as artes:
o regime ético das imagens, momento em que a arte se encontra subsumida
na questão geral das imagens, e a referência é Platão; o regime poético ou
representativo, cuja referência é Aristóteles, e que está delimitado pelo par
mímesis/poiésis, sendo a mímesis não um princípio normativo que regula

191
A imagem como matriz histórica da nação moderna

um domínio de semelhança entre cópias e modelos e sim “um princípio


pragmático que isola, no domínio geral das artes (das maneiras de fazer),
certas artes particulares que executam coisas específicas, a saber,
imitações”; e, finalmente, um regime estético, ou seja, aquele em que a arte
se torna singular, desobrigada de qualquer regra específica, da hierarquia de
temas, gêneros e artes. Para encurtar a exposição, Rancière afirma então
que aquilo que se costuma chamar de pós-modernismo é apenas a
consciência do fim de um determinado paradigma, qual seja, “a tentativa
desesperada de fundar um ‘próprio da arte’ atando-o a uma teleologia
simples da evolução e da ruptura históricas”. (idem p. 41). O próximo
passo de Rancière é mostrar que se o regime estético se define exatamente
como a “ruína do sistema da representação”, ou seja, dos valores e normas
que regiam as artes desde Aristóteles até o início do século XIX, é nele que
a literatura torna possível, por exemplo, a fotografia, contestando assim as
teses dos teóricos que viam na singularidade da máquina (fotográfica ou
cinematográfica) a mágica dessas novas artes técnicas. O realismo literário
prefigura a fotografia na medida em que rompe com a hierarquia dos temas
e dos gêneros e passa a focalizar o homem comum, permitindo assim que o
detalhe possa revelar o todo:

Que uma época e uma sociedade possam ser lidas nos traços,
vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer (Balzac),
que o esgoto seja revelador de uma civilização (Hugo), que a
filha do fazendeiro e a mulher do banqueiro sejam
capturadas pela mesma potência do estilo como ‘maneira
absoluta de ver as coisas’ (Flaubert), todas essas formas de
anulação ou de subversão da oposição do alto e do baixo não
apenas precedem os poderes da reprodução mecânica. Eles
tornam possível que esta seja mais do que a reprodução
mecânica. (RANCIÈRE, 2005, p. 47).

A mesma idéia podemos encontrar nas reflexões de Susan Sontag


sobre a fotografia, mais especificamente no ensaio Photography Unlimited,
publicado em junho de 1977, no New York Review of Books, e,
posteriormente, incluído em livro. Neste ensaio, a crítica norte-americana,
depois de comentar o “pavor vago” que Balzac tinha em relação à
fotografia, afirma que “o processo da fotografia é, por assim dizer, uma
materialização do que havia de mais original em seu método de
romancista”. (SONTAG, 2004, p. 175). E como era o método de Balzac?
Ele consistia na focalização e ampliação de detalhes de maneira que todo
um universo poderia ser revelado através de um pequeno ponto. Em nota,

192
Antonio Carlos Santos

Sontag remete essa idéia a Erich Auerbach e sua leitura de Père Goriot em
Mímesis. Ao descrever a dona da pensão, Madame Vauquer, na abertura da
narrativa, Balzac, segundo Auerbach, tem como procedimento a analogia
entre ela e o meio, o espaço. Por isso, a leitura do saiote de Madame
Vauquer é um resumo de todo o ambiente da pensão: “Este saiote torna-se,
por um instante, o símbolo do meio, e depois o conjunto todo é resumido na
frase: Quand elle est là, ce spectacle est complet; não é necessário esperar o
café da manhã e os hóspedes; tudo isso já está incluído na sua pessoa”.
(AUERBACH, 2004, p. 421).
Se, como postula Jacques Rancière, o realismo não é de maneira
nenhuma a valorização da semelhança, “mas a destruição dos limites dentro
dos quais ela funcionava”, “a subversão das hierarquias da representação” e
“a adoção de um modo de focalização fragmentada, ou próxima, que impõe
a presença bruta em detrimento dos encadeamentos racionais” (2005, p. 5),
é com os quadros de Almeida Júnior, Belmiro de Almeida ou Rodolfo
Amoedo, para citar apenas alguns, ou com romances como O missionário
(1891), de Inglês de Sousa, A carne (1888), de Júlio Ribeiro, ou Luzia-
Homem (1903), de Domingos Olímpio, que se percebe uma lógica, “um
sistema de formas a priori determinando o que se dá a sentir”, aquilo que
Rancière chama de regime estético das artes, “aquele que identifica a arte
no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica” (2005,
p.33). A arte realista, recusada pelo ponto de vista das vanguardas
históricas e acusada de mimética, ganha assim potência de modo, por
exemplo, a aparecer como prefiguração ou como aquela que instaura as
condições de possibilidade da fotografia e do cinema, ao fazer do detalhe
um acesso ao todo, como Balzac em Père Goriot, e ao abrir espaço à
exploração do homem comum, esse mesmo que já começara a surgir
aceleradamente, por exemplo, mas ainda fantasmaticamente devido aos
limites técnicos, na fotografia de Revert Henrique Klumb, um alemão que
chega ao Brasil em 1852 e produz mais de duzentas vistas estereoscópicas
da cidade do Rio entre 1855 e 1862, e do escravo, objeto das lentes do
também alemão Augusto Stahl, que passa pelo Recife antes de chegar à
corte, e do açoriano Christiano Júnior, que trabalha em Maceió, onde chega
em 1855, no Rio, em Florianópolis, no Uruguai e na Argentina (de 1867
aos anos 80) e morre quase cego em Assunção do Paraguai, em 1902. O
escravo, ou ex-escravo, aliás, é personagem raro nas pinturas da época
realista apesar de todo o debate em torno da abolição, ao contrário do que
se vê no trabalho dos desenhistas e pintores estrangeiros (Debret, por
exemplo, ou Rugendas ou ainda Taunay) que “documentam” algumas
décadas antes os costumes, a paisagem e a gente desse mundo recém-aberto

193
A imagem como matriz histórica da nação moderna

aos olhares europeus. Interessante observar uma certa distribuição de temas


entre essas artes visuais, o desenho, a pintura e a fotografia, por exemplo,
que seguem determinadas regras ou convenções de acordo com sua função
em uma expedição naturalista ou em uma academia de belas artes (pintura
histórica, de paisagem, retratos), estrutura que será também desorganizada
ao longo da segunda metade do século XIX pelos movimentos de secessão
dos artistas independentes com a autonomização da arte no regime estético,
regime que dá conta da situação da arte em uma sociedade capitalista
burguesa.
Questão crucial no debate das artes, a questão do realismo aparece
como problema nos trabalhos de muitos pesquisadores. Em seu ensaio
“Narrar ou descrever”, de 1936 (1965, p. 43), ao comparar um trecho de
Ana Karenina, de Tolstoi, a corrida de cavalos, a outro de Naná, de Zola,
também uma corrida de cavalos, Lukács reprova este último por ser uma
“digressão dentro do conjunto do romance”, acontecimentos que poderiam
“facilmente ser suprimidos” e estabelece a partir daí uma série de oposições
hierárquicas: arte épica X descrição por imagens, necessidade X
casualidade, viver, ou participar, X observar; de um lado estão Tolstoi,
Walter Scott, Balzac; de outro, Zola, Flaubert, os Goncourt. Em sua análise,
Lukács formula a questão: “o que nos importa é saber como e por que a
descrição – que originalmente era um entre os muitos meios empregados na
criação artística (e, por certo, um meio subalterno) – chegou a se tornar o
princípio fundamental da composição”. O que ele não pode ver é que esse
“meio subalterno” é exatamente aquilo que rompe com as regras das
poéticas que determinam a supremacia das ações sobre a descrição,
instaurando um outro momento, um outro regime. De certa forma, aliás, ele
vê, mas como decadência, como resultado da divisão capitalista do trabalho
que profissionaliza o escritor e faz do livro mercadoria. “A narração
distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas”, afirma, apontando
para o fim das hierarquias de temas e gêneros e para a entrada das massas e
do homem comum, pois distinguir e ordenar é estabelecer as diferenças de
valores da biblioteca, contra a homogeneidade horizontal do arquivo. O que
Lukács censura em Zola, este censura em Gautier, ou seja, a descrição pela
descrição. Para o autor de Naná, não se trata de descrever o mundo em um
belo estilo, mas sim de promover um “estudo exato do meio, na constatação
dos estados do mundo exterior que correspondem aos estados interiores das
personagens” (ZOLA, 1995, p. 44), ou seja, trabalhar no mesmo sentido em
que trabalhava Balzac, segundo a análise de Auerbach. A cegueira de Zola
está em se situar no “ponto de vista científico”, enquanto, para ele, Gautier
permanece um “pintor”. De alguma forma, Zola deseja se afastar dos

194
Antonio Carlos Santos

modelos anteriores, fundar um novo estilo que rejeita as “belas letras” e as


“belas-artes” conformadas pelas poéticas, e por isso se aferra à ciência, uma
espécie de “doença” do final do século, basta lembrar que é neste final de
século que a ciência constrói as teorias racistas que sustentam e “explicam”
a superioridade do homem branco europeu que, assim, poderia escravizar
sem culpa cristã as outras etnias do planeta.
São esses “meios subalternos” a que se refere o teórico húngaro que
chamam a atenção de Roland Barthes, em seu famoso ensaio de 1968 “O
efeito de real” (1988, p.158), aqueles “pormenores ‘supérfluos’” que a
análise estrutural desprezava. Barthes percebe que a singularidade da
descrição, que “não se justifica por nenhuma finalidade de ação ou de
comunicação” (1968, p. 160), “designa uma questão da maior importância
para a análise estrutural da narrativa” (idem) e o que ele busca é a
“significação dessa insignificância”. E essa significação é o aceno que esses
significantes fazem como a dizer “nós somos o real”. Barthes, no entanto,
não deixa de apontar a diferença entre “esse novo verossímil” e o antigo:
“esse novo verossímil é muito diferente do antigo, pois não é nem o
respeito das ‘leis do gênero’, nem sequer a sua máscara, mas procede da
intenção de alterar a natureza tripartida do signo para fazer da notação o
simples encontro de um objeto e de sua expressão”. (1968, p. 165) A
tentativa de compreender esse aspecto colado ao referente do signo
“realista” reaparece na leitura que Barthes faz da fotografia em A câmara
clara (1984), na medida em que afirma seu caráter indicial, materializado
na expressão ça a été que dá conta de um corpo que efetivamente esteve lá
diante câmera. Ironicamente, Rancière afirma ser pouco provável que o
autor das Mitologias acreditasse que a fotografia fosse uma emanação
direta do corpo exposto:

É mais verossímil que este mito lhe tenha servido para expiar
o pecado do mitólogo de antes: o de ter querido destituir do
mundo visível seus artifícios, de ter transformado seus
espetáculos e seu prazeres em um grande tecido de sintomas
e em um comércio suspeito de signos. O semiólogo se
arrepende de ter passado uma boa parte de sua vida a dizer:
Atenção! Isso que vocês tomam por uma evidência visível é
de fato uma mensagem secreta pela qual uma sociedade ou
um poder se legitima ao se naturalizar, ao se fundar na
evidência sem frase do visível. Ele torce o sinal para o outro
sentido valorizando, a título de punctum, a evidência sem
frase da fotografia para rejeitar na platitude do studium a
maneira de decifrar as mensagens. (RANCIÈRE, 2003, p.
18).

195
A imagem como matriz histórica da nação moderna

Já em La fable cinématographique (2001), Rancière contesta a


idéia de que as imagens técnicas, no caso o cinema, tenham seu valor na
especificidade desse aparelho que faz de conta que não faz mediação entre
a imagem e o “mundo lá fora”. A fábula dessa relação direta com a vida, a
crença de que o aparelho registra as coisas do mundo tal como as vê o olho
humano, é apenas um dado que inscreve o cinema em um determinado
regime das artes, o regime estético.
Pensar a questão da nação e da imagem passa, portanto, por rever
os conceitos de realismo e a produção do século XIX de modo a perceber
como se passa de uma “fábrica de imagens” controlada pelo Estado, a
Academia Imperial fundada pelos franceses contratados por D. Pedro II, ou
dos romances românticos que alegorizam a nação através do casamento de
brancos com nativos, para uma arte que tematiza a burguesia, sua vida nos
interiores da cidade grande, as mulheres leitoras, os retratos dos novos
empreendedores, etc. Se, como afirma Éric Michaud, as imagens produzem
a realidade e não apenas são o testemhunho delas, que realidade é essa que
as imagens do século XIX constroem da nação? Que futuro é esse que a
arte produz para o Brasil?

Referências

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197
A LITERATURA DE RECEPÇÃO INFANTIL E
JUVENIL: CAMINHOS TRILHADOS E
PERSPECTIVAS DE PESQUISAS

Eliane Santana Dias Debus

1. Literatura de recepção infantil e juvenil: a que(m) se destinará?

O poeta Manuel de Barros, em seu livro Exercícios de ser criança


(1999), desenha a cena poética de um menino a carregar água na peneira,
que faz peraltagens e despropósitos com as palavras e recebe, sob o olhar
terno da mãe, o vaticínio: “– Meu filho você vai ser poeta, você vai
carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas
peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos”. Parece-
me ser esta uma das descrições metafóricas mais sensíveis sobre o exercício
da escrita, o exercício da escrita de ficção, o exercício de ser ficcionista:
carregar água na peneira!!!
Outra imagem retomada pelo mesmo poeta, e que compartilho
neste texto, é a de “escovar palavras”. Isto mesmo: “escovar palavras”! Em
Memórias inventadas: a infância (2003), ele descreve a profissão dos
arqueólogos e o seu ofício de escovar ossos, imagem que o levou, muito
cedo, a crer que gostaria de escovar palavras, para delas escutar os
primeiros sons.
Gostaria de segurar entre as mãos, como se uma fotografia fossem,
estas duas imagens: um menino a carregar água na peneira e a escovar
palavras para iniciar este diálogo, esta partilha sobre a literatura para
infância e juventude, não só no que diz respeito a sua escrita, mas também
a sua leitura: exercícios de carregar água na peneira e escovar palavras.
Ao refletir sobre a literatura destinada às crianças e aos jovens, é
necessário destacar, de imediato, a relação triádica que a compõe
(AZEVEDO, 2006), pois o diálogo entre esses leitores e o texto ocorre de
forma indireta/assimétrica, entrevendo um terceiro personagem, sendo ele,
muitas vezes, o leitor primeiro do texto literário: o adulto.
A ambivalência da literatura de recepção infantil reside, como
destaca a pesquisadora israelita Zohar Shavit (2003), na simultaneidade de
dois distintos tipos de leitores-modelos: um leitor-modelo criança e um
A literatura de recepção infantil e juvenil...

leitor-modelo adulto, sendo que, se sobre o primeiro recai a idéia de


inexperiência acerca dos dispositivos de construção do texto literário, sobre
o segundo recai a imagem de experiência e, por isso, a sua função de
mediador. Outro dado que se entrelaça o segundo ao primeiro é o da
produção escrita, já que é também o adulto que escreve o texto que a
criança lerá, ressalvadas poucas exceções.
Produto cultural historicamente marcado pelo próprio conceito de
infância, a literatura infantil ganha vida concreta no século XVIII, quando a
família burguesa caminha para uma consolidação daquilo que se cunhou de
sentimento de infância (ARIÈS, 1981). A criança torna-se um ser diferente
do adulto, com características próprias, necessitando de orientações para se
(a)firmar nesse novo jogo de forças em que o tom monológico e
monocárdio do adulto prevalece e sobrepõe-se à voz do outro – a criança.
Assim, entende-se que a literatura destinada à infância, em seu
nascedouro, está vinculada à pedagogia, pois esta foi solicitada a ser seu
instrumento, transmitindo valores e normas sociais, sendo negado o
reconhecimento do seu valor estético. Sobre esse aspecto, Regina
Zilberman (2003, p. 46) aponta a duplicidade da natureza da Literatura
Infantil:

[...] de um lado, percebida da óptica do adulto, desvela-se


sua participação no processo de dominação do jovem,
assumindo um caráter pedagógico, por transmitir normas e
envolver-se com sua formação moral; de outro, quando se
compromete com o interesse da criança, transforma-se num
meio de acesso ao real, na medida em que facilita a
ordenação de experiências existenciais, pelo conhecimento
de histórias, e a expansão de seu domínio lingüístico.

Nesse sentido, sobre a literatura infantil pesa certa indefinição


conceitual. As críticas convergem, sobretudo, para duas questões: de uma
parte, a questão recai sobre a especificidade de seu leitor – a criança; de
outra, a sua vinculação umbilical com a instituição escolar, denunciada
como uma produção didática e doutrinadora, sem preocupação estética. Os
dois fatores estão interligados e colaboram para a conceituação pejorativa e
o marginalato desse gênero.
Vejamos o que alguns estudiosos apontam sobre essa construção
discursiva.

200
Eliane Santana Dias Debus

Regina Zilberman (1987, p. 85) destaca que a relação desse gênero


com seu destinatário é mais aguda, na medida em que “a sedução de
dominação própria à linguagem narrativa pode se converter em inclinação
adultocêntrica e deixar transparecer a índole educativa”. Na maioria das
vezes, a supremacia do adulto prevalece, ao construir seu discurso literário
“para” ou “sobre” a criança e não “com” a criança.
Para Marisa Lajolo (1994), o questionamento sobre o fazer literário
está no significado mais amplo do texto, sendo que, para tanto, não se deve
centrar a análise em cima “do que o texto diz”, mas sim na forma “como o
texto diz o que diz”. Adentra-se, então, no campo da variabilidade histórica,
visto que a produção literária é uma comunicação histórica, localizada no
tempo e no espaço. No caso da literatura infantil, estará vinculada à visão
histórica da infância.
Acredita-se que, até a década de 1970, ressalvas feitas a Monteiro
Lobato, a literatura destinada ao público infantil e juvenil, no Brasil, era
constituída de textos que falavam “para” o leitor, com orientações e
posturas formalizadas “sobre” a criança. O tratamento dado à linguagem, o
respeito à criança e a tentativa de diálogo “com” a criança é que fazem
surgir um novo discurso.
Edmir Perrotti faz uma distinção desses dois discursos: um de
caráter utilitário, vinculado aos padrões moralizantes e pedagógicos; e
outro de caráter estético, capaz de despertar o leitor para o prazer do texto.
Esse autor, no entanto, aponta o perigo de um utilitarismo às avessas,
surgido nos anos de 1970 que, pretendendo romper com a tradição do
gênero, acaba colocando, de forma implícita, os padrões discursivos
tradicionais. “O recurso utilizado é, então, a manipulação dos registros
(narrativa/discurso), criando no leitor a ilusão de que não se trata de um
ensinamento, até o final, quando este já está dado e o jogo pode explicitar-
se”. (PERROTTI, 1986, p.125).
Na apresentação do livro Literatura infantil: autoritarismo e
emancipação (1987), Regina Zilberman e Ligia Cadermatori Magalhães
apontam a relação que se pode estabelecer entre livro e destinatário, desde a
reprodução de um modelo autoritário da sociedade, impondo normas e
submetendo o leitor ao seu cumprimento, até a um modelo emancipatório,
que rompe com a submissão, convertendo o leitor à criticidade da
sociedade em que está inserido.
Nelly Novaes Coelho (2003) distingue dois tipos de discursos: o
tradicional e o contemporâneo, levantando, por meio da temática e das
peculiaridades, os valores tradicionais e os valores novos que fazem diferir

201
A literatura de recepção infantil e juvenil...

a produção para crianças e jovens de ontem e de hoje. Em outro momento,


ela aponta as características estilísticas e estruturais que diferenciam esses
dois tipos discursivos.
Ana Mariza Filipouski (1988), analisando textos publicados a partir
da década de 1970, avalia a “incorporação de técnicas e modelos
literariamente inovadores” e delineia uma tipologia das narrativas, sob a
ótica da apresentação do narrador, seguindo os estudos de M. Bakhtin,
diferenciando as narrativas – monológica, quase monológica e dialógica -, e
estabelecendo uma tipologia da leitura: pragmática, quase pragmática e
ficcional.
Analisando o exposto, não creio que possamos vislumbrar uma
linha de demarcação na qual o discurso tradicional do gênero tenha sido
suplantado pelo discurso contemporâneo; esses discursos se interpenetram
e convivem lado a lado. A visão de dois discursos existe, mas não afiança a
morte do velho para o nascimento do novo. Um dos fatos relevantes para
essa convivência quase pacífica dá-se, provavelmente, pela forma como é
distribuído e difundido o gênero, via mercado editorial, que explora o filão
com unhas e dentes.

2. Por onde caminham, no Brasil, as pesquisas sobre a literatura de


recepção infantil e juvenil

Se a produção literária destinada à criança e aos jovens, no Brasil é


recente, já que os primeiros títulos datam do final do século XIX, os
estudos sistematizados sobre essa produção o são mais ainda. Basta lembrar
que essa sistematização só se dá no final da década de 1960, com as
primeiras inserções da literatura infantil como disciplina optativa no
currículo de formação dos professores nos cursos de graduação. Maria
Antonieta Cunha (1997) destaca que, quando realizou sua primeira
experiência, na Universidade de Mina Gerais (UFMG, 1969), enfrentou
várias dificuldades, em especial o pré-conceito.
A história da literatura infantil brasileira recebeu maior atenção a
partir de 1980. Embora alguns trabalhos, como o de Bárbara Vasconcelos
de Carvalho (1961) e de Leonardo Arroyo (1968), tenham se antecipado a
esse período, somente em 1984 surge um livro que aborda a história desse
gênero, de forma mais sistemática, pelas mãos de Regina Zilberman e
Marisa Lajolo: Literatura infantil brasileira: história & histórias.

202
Eliane Santana Dias Debus

Esse livro cumpre a sua função iniciática de reconstituir a história


da literatura infantil no Brasil, desde as primeiras obras adaptadas, que
datam das últimas décadas do século XIX, até 1983, com os contos de
Marina Colasanti. Zilberman e Lajolo constroem seu discurso no contexto
mais amplo da literatura brasileira (panorama histórico, político, social e
cultural), sem deixar de apontar as especificidades da literatura para
crianças, proporcionando uma nova credibilidade aos estudos sobre esse
gênero.
Outra produção de fôlego, embora não se denomine, nem se queira
constituir como uma história do gênero, mas que se torna referência ao
trazer da forma mais abrangente possível a produção literária para crianças,
publicada no Brasil, é o Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil, de
Nelly Novaes Coelho (1995). Trata-se de uma pesquisa que alarga a visão
sobre os livros para crianças produzidos entre os anos de 1808 e 1990 e
seus respectivos autores, tendo Monteiro Lobato como marco divisório da
obra, que está estruturada em duas partes: “I. Os Precursores – Período Pré-
lobatiano (1808-1920) e II. A Literatura Infantil/Juvenil Moderna e Pós-
moderna – período lobatiano e pós-lobatiano (1920-1990)”. O dicionário é
composto de 784 verbetes que enumeram os escritores; na primeira parte a
autora elenca 50 escritores e na segunda parte 734.
O crescente interesse de pesquisadores pela literatura infantil e
juvenil contribuiu para uma extensa publicação na área, quer seja em forma
de livro, quer seja em outros meios de publicação impressa (dissertações,
teses, revistas, boletins etc.). Os avanços tecnológicos também
contribuíram para a disseminação das pesquisas realizadas em diferentes
países. Por meio da Internet, torna-se possível o acesso rápido a revistas
eletrônicas, sites de núcleos e grupos de pesquisas, bem como blogs de
diferentes instituições.
Em documento produzido no início da década de 1990, a
pesquisadora Nadia Glotlib (apud HOLLANDA, 1994) avaliava os
principais grupos emergentes nos estudos teóricos, na área de Letras: a
literatura feita por mulheres; a literatura africana; a literatura popular (oral e
de cordel); e a literatura infanto-juvenil. A partir desses dados, Heloísa
Buarque de Hollanda (1994) aponta os traços comuns dessas narrativas e
sua emergência, como resultado de novos paradigmas:

São aquelas que até pouco tempo foram identificadas como


áreas marginais, não consideradas, ou quase não
consideradas, legítimas pela historiografia canônica e cujos

203
A literatura de recepção infantil e juvenil...

produtos foram tradicionalmente definidos como gêneros


‘menores’ na medida em que se apoiavam em literaturas
orais, correspondência, narrativas populares, cuja ‘qualidade’
era sistematicamente posta em questão pela crítica literária.
(HOLLANDA, 1994, p. 453).

Quase que regras implícitas nos trabalhos de caráter teórico sobre a


literatura de recepção infantil eram/são a justificativa do estudo e os
méritos do gênero, como se fosse necessário marcar terreno e deixar claro
que este era/é um discurso válido para os estudos literários.
Literatura infantil não é um gênero menor!
O questionamento sobre a validade de um discurso afirmativo
também foi debatido em plenária em três eventos recentes: Congresso
Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (PUCRS – 11 a 13 de
junho de 2008); no V Encontro de Literatura Infantil e Juvenil (UFRJ – 8 a
10 de julho de 2008); e no Simpósio A narrativa ficcional para crianças e
jovens e as representações literárias de prática de leitura (XI ABRALIC,
USP – 13 a 17 de julho de 2008).
As mudanças gradativas nos estudos literários são resultantes de
novos paradigmas construídos socialmente. Refletir sobre um produto
cultural destinado à infância é exigir qualidade no que é produzido, é
validar o papel estético da palavra e a sua contribuição para uma
sensibilidade leitora.
Estudar a literatura infantil implica lidar com uma produção
cultural marcada historicamente pelo conceito de infância. Assim, esse
produto literário traz de modo mais contundente a imagem que o emissor-
escritor (adulto) tem de seu leitor-receptor (criança). No entanto, não seria
possível exercitar nosso olhar para o outro lado dessa comunicação e
vermos como o leitor se vê nessa construção fictícia? Ou melhor, seria
“realizável” refletir sobre a literatura infantil construída/lida pelo olhar do
seu leitor?
Embora saibamos que, contemporaneamente, a prática de registro
das leituras está, na maioria das vezes, vinculada a tarefas escolares (fichas
de leitura – perguntas avaliativas e sem significado subjetivo, já que não-
mensurável), acreditamos que o depoimento do leitor é um dos caminhos
viáveis para entendermos um pouco da especificidade e da história dessa
literatura. Assim, uma das possibilidades de análise seria a correspondência
entre escritor e leitor, uma prática que vem se consolidando e que traz, nem
sempre, é claro, as marcas da espontaneidade, deixando antever práticas
leitoras.

204
Eliane Santana Dias Debus

Em 1996, na dissertação de mestrado (Entre vozes e leituras: a


recepção da literatura infantil e juvenil – UFSC), o testemunho dos leitores
por meio de cartas à escritora catarinense Maria de Lourdes Krieger
possibilitou verificar como se efetiva a comunicação entre autor, texto e
leitor. As cartas (1979-1994) traziam os depoimentos sobre o ato da leitura
e suas implicações, respondendo, de certa forma, a algumas inquietações
relativas ao processo de recepção.
Em janeiro de 2001, trazíamos novamente a público, em forma de
tese de doutorado, uma pesquisa que focalizava a voz do leitor, agora pela
recepção da literatura infantil de Monteiro Lobato nas décadas de 20, 30 e
40 do século XX, através da sua relação sui generis com o leitor: as cartas
(DEBUS, 2004). O diálogo concreto entre o escritor Monteiro Lobato
(1882-1948) e seus leitores evidencia o papel da sua literatura na formação
literária dessa geração de leitores e o efeito de tal relação nas narrativas do
escritor. Percebe-se que as narrativas de Monteiro Lobato acabaram se
distanciando e se destacando da literatura infantil que circulava no país, nas
décadas de 20, 30 e 40 do século XX, pela sua compreensão do leitor-
criança, que deixava de ter um papel passivo e assumia-se como
interlocutor ativo no ato da leitura. E a figura imaginária do leitor, tecida
nas entrelinhas do texto, acabava por dialogar com o leitor concreto pelo
registro epistolográfico.
É importante destacar que a literatura infantil e juvenil obedece a
critérios esteticamente literários. Como afirma Antonio Candido, “o
subsolo da arte é um só” ou, ainda, nas palavras de Cecília Meireles, “tudo
é uma arte só”. Assim sendo, as reflexões sobre essa produção,
contemporaneamente, tem ganhado fôlego e são muitos os vieses de
pesquisas que tentam abarcar a sua produção, circulação e consumo.

3. Onde se apresentam as perspectivas de pesquisa docente

Atualmente, como membro integrante do Grupo de Pesquisa


Estudo da estética das linguagens verbais e não-verbais, inserido na linha
de pesquisa Linguagens e processos culturais, do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Linguagem, tenho como Projeto integrador “A
Literatura de recepção infantil e juvenil: reflexões sobre os caminhos de sua
produção, circulação e consumo”, que tem como fim contemplar a
literatura de recepção infantil e juvenil, a partir da investigação do sistema
de sua produção, circulação e consumo. Esses três eixos levam em conta: 1)

205
A literatura de recepção infantil e juvenil...

os escritores, seu processo de construção escrita e as características dessa,


os aspectos físicos constitutivos do objeto livro (tipo de papel, suporte,
cores etc), bem como os da fabricação (ilustração, edição, revisão etc); 2)
as instâncias mediadoras do livro e da leitura, entre elas, escola, livrarias,
feiras, bibliotecas; e 3) a criança e o jovem como público-leitor: suas
preferências, desejos leitores, modalidades de leitura.
Acredito que, a partir desse enfoque, possam ser trilhados alargados
caminhos norteados pelos seguintes objetivos:

a) analisar a produção literária para crianças e jovens nos


diferentes gêneros e suportes;
b) investigar os espaços formais e não-formais de educação, em
que a literatura infantil e juvenil circula;
c) verificar a recepção do público-leitor diante de determinada
obra.

Esse leque amplo possibilita desenvolver vários olhares sobre a


produção literária para crianças, em especial apreço pelos títulos voltados
às crianças de 0 a 10 anos, e como essa literatura circula nos espaços
sociais. Atuando como docente no curso de Pedagogia, percebo que o
(des)conhecimento provoca resultados duradouros na formação leitora das
crianças que conviverão com esses futuros professores. Entrelaçando as
atividades de ensino, pesquisa e extensão, pretende-se criar uma trama que
subsidie a formação acadêmica e contribua para a formação continuada dos
professores em serviço. Do conjunto de atividades a serem realizadas,
pode-se destacar a construção de um site de literatura infantil e juvenil, para
divulgação dos trabalhos dos alunos de graduação, concretizados na
disciplina de Literatura Infantil; dos alunos de iniciação científica, e dos
Trabalhos de Conclusão de Curso de graduação, bem como os de Pós-
Graduação.
O aporte teórico que dá subsídio a essas pesquisas centra-se nos da
teoria literária: na estética da recepção para a compreensão das expectativas
e horizontes de leitura, na sociologia da leitura e nos estudos culturais.
Para além dos projetos de pesquisa a serem desenvolvidos junto ao
programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL),
efetivamente, tenho realizado, nos últimos três anos, pesquisas que levam
em conta a tematização da cultura africana e afro-brasileira na literatura de
recepção infantil e juvenil: “A representação do negro na literatura
brasileira para crianças e jovens: negação ou construção de uma

206
Eliane Santana Dias Debus

identidade?” (PUIP-2006) e “As histórias de lá para leitores daqui: os (re)


contos africanos para crianças pelas mãos de escritores brasileiros” (PUIP,
2007). Na primeira pesquisa, mapeamos a produção literária a partir de sete
catálogos de casas editoriais (Ática, Companhia das Letrinhas, DCL, FTD,
Paulinas, Salamandra e Scipione/2005), verificando-se que a representação
de personagens negras na literatura infantil, embora tenha ganhado, nos
últimos anos, mais espaço nas editoras, ainda ocupa um lugar muito
pequeno, em relação ao total de títulos. Do total de 1.785 títulos levantados,
79 títulos trazem personagens negras e, das editoras levantadas, as que mais
têm se dedicado sobre a temática é a DCL e a Paulinas. Os escritores
Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Brás e as
escritoras Georgina Martins e Heloisa Prieto são os que têm mais títulos
dedicados ao tema.
A segunda pesquisa teve como foco de análise os títulos de
literatura infantil de Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos e
Júlio Emílio Braz, autores que (re)contam narrativas da literatura oral
africana e das literaturas afro-brasileiras. Nela avaliou-se a importância
dessas narrativas para a construção de uma identidade étnica, apresentando-
se estratégias de intervenção a partir de propostas didático-pedagógicas a
serem utilizadas no espaço escolar.
A emergência dessas pesquisas resulta da necessidade de visitar o
mercado editorial, para entender de que modo ele tem se comprometido
com a publicação de títulos que tematizam a cultura africana e afro-
brasileira, observando as exigências legais da Lei nº 10.639/03-MEC,
alterada em 10 de março de 2008, pela Lei nº 11.645, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial da
rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”.
As instituições que desenvolvem programas de formação inicial e
continuada de professores, como é o caso da Universidade do Sul de Santa
Catarina – UNISUL (em nível de graduação, pós-graduação e extensão),
são conclamadas pelo parecer CNE/CP 3/2004 a introduzir, “nos conteúdos
de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a
Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões
e temáticas que dizem respeito aos afrodescententes” (BRASIL, 2004b, p.
30).
A continuidade deste projeto de pesquisa se produz na socialização
dos dados, de forma articulada com os sistemas de ensino (Rede Municipal
de Educação de Florianópolis), estabelecimentos de ensino superiores

207
A literatura de recepção infantil e juvenil...

(UNISUL/UFSC) e Núcleos de Estudo Negro (NEN, de Florianópolis), que


venham ao encontro das exigências das “Ações educativas de combate ao
racismo e à discriminação” (BRASIL, 2004b, p.23), que determinam que as
instituições de ensino superior providenciem esta articulação.
Pesquisas e artigos significativos vêm sendo produzidos por
pesquisadores de diversos campos do conhecimento, em especial de Letras
e Educação, na tentativa de (res)significar o olhar para as narrativas que
tematizam a questão étnico-racial. Entre esses trabalhos, pode-se destacar o
artigo de cunho historiográfico de Maria Cristina Gouvêa (2000), que
analisa as representações sociais sobre o negro, produzidas na literatura de
recepção infantil no Brasil, nas três primeiras décadas do século XX.
Travestida em uma suposta integração racial, essa produção é marcada por
uma visão etnocêntrica, onde as personagens são identificadas pelo desejo
de embranquecimento. Por conseqüência, o leitor resultante desses textos

[...] era marcado pela identificação com a cultura e estética


brancas, ao mesmo tempo que desqualificador da cultura e
estética negra. Negro ou branco, os textos acabavam por
embranquecer o leitor, ao reiteradamente, representar a raça
branca como superior. (GOUVÊA, 2000).

Destacam-se, igualmente, os estudos de Andréia Sousa (2003;


2005), contribuindo para a análise da produção literária destinada às
crianças e das relações étnico-raciais representadas através dela. A sua
análise é desenvolvida sobre a literatura infantil e juvenil contemporânea,
principalmente aquela produzida a partir da metade da década de 1980, já
com marcas afirmativas de uma identidade negra.
A busca de livros que retratem uma realidade não-discriminatória, a
reflexão sobre características presentes nos livros de literatura, que
reforçam, ou não, o preconceito, auxiliam no rompimento de uma visão
construída sobre uma base de desigualdade étnica e proporciona espaços
educativos comprometidos com a diversidade étnica e cultural do nosso
país.
Como já destacado em texto anterior (DEBUS; SILVA;
AZEVEDO, 2007), no qual foram analisadas narrativas de caráter
intercultural, constatou-se que elas permitem ao leitor uma reflexão sobre a
diversidade e multiplicidade cultural que o rodeia, contribuindo para uma
formação em que a pluralidade cultural é edificada pela singularidade de
cada indivíduo.

208
Eliane Santana Dias Debus

4. Carregando água na peneira... impossibilidades da conclusão

No aeroporto o menino perguntou:


- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia
do que o bom senso?
Ao sair do sufoco, o pai refletiu:
com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as
crianças.
E ficou sendo.

Manoel de Barros, 1999.

Este ensaio teve como única pretensão trazer à tona um olhar sobre
a literatura de recepção infantil e juvenil, mapeando os caminhos dos
projetos de pesquisa desenvolvidos por mim até aqui e delineando
expectativas de trabalhos futuros.
Pensar a literatura é como lidar ludicamente com a linguagem,
recriando-a, reinventando-a, tornando-a uma linguagem cheia de
meninices. Assim é que eu vejo, sinto a linguagem literária, independente
do seu destinatário.
O escritor de literatura, ao escovar as palavras, desarranja-as,
tirando-as do lugar comum e as reveste de outras poeiras: onde está a
realidade? Onde está a ficção? Parece-me uma lengalenga de esconde-
esconde: “cadê o pedaço de toicinho que estava aqui? O gato comeu? “...
ou letra de uma música: “O gato comeu, o gato comeu e ninguém viu?”.
O texto ficcional coloca o leitor em suspenso... de espreita, à
escuta....
No caso específico da literatura de recepção infantil, é o adulto o
“guardião da infância” (PERROTI, 1986), aquele a quem se reserva o
direito de oferecer ou não um produto cultural adequado à criança.
E, para o adulto, o que seria uma literatura adequada à infância?
Em seu princípio, a literatura infantil surge atrelada a um
utilitarismo que perde força muito mansamente, pois ainda encontramos

209
A literatura de recepção infantil e juvenil...

adultos buscando no livro para criança “conteúdos” específicos: desde


normas de comportamento, lições de moral a lições de conteúdo curricular:
geografia, história etc. Recebo com certa constância consultas sobre títulos,
autores... que poderiam ir ao encontro de projetos institucionais: é a
escolarização inadequada da literatura infantil que me desagrada e
desagrega o valor do literário.
Tenho certa afinidade com o texto de Magda Soares “A
escolarização da literatura infantil e juvenil” (1999) quando ela traduz
aquilo que me parece “claro como água de pote”: a escola é o local de
escolarizar, fatalmente o que está na escola será escolarizado, no entanto, a
pesquisadora mineira nos descreve esta escolarização, não pelo viés da
negatividade, mas pelo da construção, isto é, fazendo-nos refletir sobre as
possibilidades de se lidar de forma adequada com este objeto cultural no
ambiente escolar.
O que se tem constatado é que, na escola, a literatura, embora seja
resguardada por um saber legitimado que aponta sua validade, está sempre
em segundo plano nos anos iniciais do ensino fundamental.

5. Referências

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211
ENTRE O FICTO E O FACTO:
O GOZO ESTÉTICO DO CRIME
Fábio Messa

Quando lancei O Gozo Estético do Crime – Dicção Homicida na


Ficção Contemporânea, em março de 2008, já vinha estendendo a
discussão em sala de aula para o estudo das narrativas factuais jornalísticas,
também procurando evidenciar: o crime – enquanto objeto do discurso, ou
seja, quando se fala de um determinado criminoso e traça-se o seu perfil;
relevando seus atos; e o crime – enquanto discurso próprio ou a intitulada
Dicção Homicida, ou seja, o discurso do assassino, disposto em entrevistas
ou matérias que traçam o seu perfil.
No livro, eu estudo personagens e narradores ficcionais. Subdivido
as descrições analíticas: para as questões temáticas, quando se fala e
descreve o crime, dispondo de sua mise-en-scène, mostrando os seus
aspectos estéticos; e para as questões da dicção propriamente: algumas
peculiaridades da construção do discurso-arma, palavra-projétil, próprio do
assassino, a descrição de seu ódio, as intenções de matar e, especialmente,
os seus argumentos pós-execução, seu sentimento de culpa ou sua
indiferença. Voltando o olhar para os atos criminosos e/ou para os perfis
criminológicos apresentados nas narrativas midiáticas, posso seguir a
mesma linha de raciocínio.
Se a idéia sempre foi a de se especular sobre a construção do crime
e dos criminosos na ficção, só troco o dispositivo, já que tanto texto
literário quanto texto jornalístico dispõe-se em estruturas narrativas. Esta
reflexão, portanto, pode ser feita a partir da contemplação de alguns
elementos fundamentais para explorar e interpretar o crime na narrativa
jornalística, levando em conta os mesmos componentes da narrativa
ficcional: a temática, o foco narrativo, o espaço, o tempo, a atitude
narrativa, formas de intertextualidade e alguns aspectos psicológicos de
personagens e/ou narradores. Abro espaço, então, para discutir a produção
de sentido em torno do fenômeno crime (o homicídio, em particular) no
texto jornalístico, desde a sua primeira versão narrativa (primeira notícia, as
primeiras abordagens) até os posteriores desdobramentos em forma de
suítes ou séries seqüenciais de reportagens, que vão incorporando
gradativamente uma diversidade de elementos próprios do universo
ficcional. Isso constitui o que se poderia também denominar de
sensacionalismo.
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

O Projeto Mitos e Mídia, concebido por mim, no Programa de Pós-


graduação em Ciências da Linguagem, já tem agregado dissertações de
orientandos e produzido artigos científicos, cujos objetos de pesquisa são
produtos culturais literários e/ou midiáticos. É mais do que conveniente
manter um olhar crítico sobre os rumos das narrativas jornalísticas,
impressas e televisivas, que tematizam e investigam crimes. Percebe-se,
nestes casos, uma forte influência persuasiva sobre a audiência, que tem
não só tomado partido dos casos, mas mimetizado e sofrido efeitos
catárticos surpreendentes.
Convém vislumbrarmos alguns casos de abusos da imprensa,
fazendo um recorte do caso Escola Base (1994) ao caso Isabella (2008), ou,
quem sabe, agora o caso Eloá. Há uma série de narrativas jornalísticas que,
em vez de apurar e transmitir informação, produzir conhecimento, aguçar
consciências, têm se apresentado como nítidas campanhas ideológicas,
dotadas de elementos ficcionais, numa lógica de mercado e propaganda. O
tema do projeto é pertinente para o esclarecimento na formação desta nova
geração de professores de línguas, comunicadores e cientistas da
linguagem, que pretendem atuar como agentes de transformação social e
pode propiciar uma visão severamente crítica aos acadêmicos sobre os
conglomerados midiáticos – produção e recepção de mensagens, relações
de poder e política dos meios.
Pretende-se, com isso, gerar discussões acerca da produção de
mitos do crime pela mídia, a partir das manifestações no discurso
jornalístico, impresso e/ou eletrônico, chamando a atenção para os futuros
profissionais das ciências da linguagem sobre as tendências mercadológicas
e persuasivas. Assim, posso identificar os elementos ficcionais e dramáticos
que compõem as narrativas jornalísticas e que as tornam sensacionalistas.
Analisa-se o conteúdo das matérias, impressas e televisivas, à luz de
algumas teorias narrativas e da linguagem. Destacam-se desse processo
aspectos estruturais, como a montagem narrativa e ideológica, para ajudar a
sustentar o argumento de que a cobertura jornalística sobre crime soa,
muitas vezes, como campanha propagandística para outros fins, que não
somente os de veicular informação e esclarecer a população.
É preciso, portanto, revisar fortuna crítica sobre jornalismo,
sensacionalismo, propaganda ideológica e teorias da linguagem que possam
subsidiar esse viés analítico. Convém selecionar alguns casos jornalísticos
passíveis de análise, agrupando-os e categorizando-os. Podem-se descrever
as narrativas, decompondo-as em seus aspectos temáticos e estruturais,
organizá-las cronologicamente, evidenciando suas relações intertextuais e

214
Fábio Messa

discursivas. Tais temas e tópicos de pesquisa costumam ser socializados


com os cursos de graduação da instituição, apresentando painéis ilustrativos
– em pôsteres e edição de vídeos, para comunicações orais, conferências ou
workshops – que elucidem os pressupostos deste projeto, a fim de expô-los
em congressos, simpósios e eventos de temas afins, dentro e fora da
universidade. Tenta-se chegar a algumas conclusões provisórias sobre as
novas tendências do discurso jornalístico, cada vez mais atrelado às lógicas
da propaganda e do entretenimento, que gera efeitos perturbadores e
seqüelas traumáticas na audiência.
Para entender melhor o sensacionalismo, precisamos ressaltar que o
termo deriva do adjetivo sensacional, oriundo do substantivo sensação, o
sensacional seria a sensação intensa. O sensacionalismo seria, então, o
termo destinado a caracterizar um determinado tipo de divulgação ou
exploração de uma matéria, que seja capaz de emocionar ou escandalizar a
audiência. Assim, o sensacionalismo ocorre no jornalismo quando a notícia
transmitida gera forte impacto sobre o público (ANGRIMANI, 1995).
Mott (apud ANGRIMANI, 1995, p. 14) afirma que o
sensacionalismo é utilizado para matérias que buscam respostas emocionais
da audiência, geralmente enfatizando temas relacionados ao sexo, à
violência, a desastres e a escândalos. A partir do momento em que a
informação é captada e codificada até o momento em que é transmitida, a
notícia sofre transformações, para ficar com a forma que a produção deseja
e assim permanecer mais tempo em veiculação, o que nos faz pensar até
que ponto é efetiva ou se é apenas ocorrência sensacionalista para prender a
atenção das pessoas (KARAM, 2004).
Um personagem ou narrador de história pode não falar a verdade,
mas sua encenação nos soa tão real, que as pessoas passam a acreditar no
que estão escutando, já que pensam que o relato é feito por uma pessoa
mais experiente e vivida do que elas, o mesmo acontece quando o
jornalismo transmite a informação de maneira manipuladora.
O público já está numa relação de dependência com os meios de
comunicação, que passa a não criar para si representações do real, passando
a acreditar na realidade transmitida pelos meios. A violência é tema
corriqueiro no jornalismo, um signo estimulante que dá prioridade aos
casos mais impressionantes, para que o impacto e absorção sejam
eficientes. Assim o jornalismo consegue atingir as pessoas no que mais lhes
impressionam.

215
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

Os jornais populares recorrem para a linguagem coloquial, já que


“a linguagem sensacionalista não pode ser sofisticada, nem o estilo elegante
[...], mas a coloquial exagerada, com emprego excessivo de gíria e
palavrões”, linguagem essa que “obriga o leitor a se envolver
emocionalmente” (ANGRIMANI, 1995, p. 16).
Para Dias (1996), o estudo dessa variante jornalística serviu
também para colocar em evidência a violência urbana e o seu aparecimento
na imprensa escrita e televisiva popular. O extinto jornal Notícias
Populares, de São Paulo, que se intitulava ‘o jornal do trabalhador’, tratava
de economia, polícia, cultura, esporte, com colunas diversas sobre assuntos
referentes a sexo, saúde, horóscopo dentre outros. Amaral (2006) já
registrou que o popular é assim usado, porque o jornal se propõe a moldar o
modo comunicativo para se aproximar cada vez mais eficientemente do
público-alvo. Esta modalidade discursiva jornalística acaba obedecendo a
determinadas regras para definir sua prática. Convém listá-las:

Intensificação, exagero e heterogeneidade gráfica;


ambivalência lingüístico-semântica, que produz o efeito de
informar através da não identificação imediata da
mensagem; valorização da emoção em detrimento da
informação; exploração do extraordinário e do vulgar, de
forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva
ao status semiótico das classes subalternas; destaque de
elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou
sugestivos: subtração de elementos importantes e acréscimo
ou invenção de palavras ou fatos; valorização de conteúdos
ou temáticas isoladas, com pouca possibilidade de
desdobramento nas edições subseqüentes e sem
contextualização político-econômico-social-cultural;
discursividade repetitiva, fechada ou centrada em si mesma,
ambígua, motivada, autoritária, despolitizadora,
fragmentária, unidirecional, vertical, ambivalente,
dissimulada, indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa;
exposição do oculto, mas próximo; produção discursiva
sempre trágica, erótica, violenta, ridícula, insólida, grotesca
ou fantástica; especificidade discursiva de jornal
empresarial-capitalista, pertencente ao segmento popular da
grande empresa industrial-urbana, em busca de consolidação
econômica ao mercado jornalístico; escamoteamento da
questão do popular, apesar do pretenso engajamento com o
universo social marginal; gramática discursiva fundamentada
no desnivelamento sócio-econômico e sociocultural entre as
classes hegemônicas e subalternas. (PEDROSO, 1994 apud
ANGRIMANI, 1995, p. 15).

216
Fábio Messa

Toda essa enumeração só confirma a caracterização que Marcondes


Filho (1986) dá ao sensacionalismo, quando o define como o estágio mais
radical da comercialização da informação, que ainda deve ser mais
impactante na chamada. O sensacionalismo é a produção de um noticiário
ficcional que vai além do real e superestima o fato.
Angrimani (1995) compara o meio de comunicação sensacionalista
com uma pessoa neurótica que deseja externar seus desejos mais insanos,
em que o primeiro é a forma camuflada para a realização inconsciente do
último, já que a narrativa sensacionalista

[...] transporta o leitor; é como se ele estivesse lá, junto ao


estuprador, ao assassino, ao macumbeiro, ao seqüestrador,
sentindo as mesmas emoções. Essa narrativa delega
sensações por procuração, porque a interiorização, a
participação e o reconhecimento desses papeis, tornam o
mundo da contravenção subjetivamente real para o leitor. A
humanização do relato faz com que o leitor reviva o
acontecimento, como se fosse ele o próprio autor do que está
sendo narrado. (PEDROSO, 1994 apud ANGRIMANI,
1995. p. 17).

Sabe-se que essa narrativa sensacionalista em jornais populares não


é recente, vem desde os primórdios. Já no século XIX, existiam os jornais
populares de uma só página que traziam apenas notícia em chamadas como:
‘Um crime abominável!!! Um homem de 60 anos cortado em pedaços’ e
subtítulo ‘Enfiado em uma lata e jogado como ração aos porcos’. Além
disso, existiam também os chamados fait divers, publicações de imagens
com notícias do mundo de gêneros diversos. Estes, relatados anteriormente
na idade média, por meio de canções (ANGRIMANI, 1995).
Edgar Morin (apud ANGRIMANI, 1995) já disse que os fait divers
eram responsáveis pelo aumento dos rendimentos dos editores e mascates,
que passaram a negociar com artistas que registravam as práticas dos
bandidos famosos da França.
Assim como nos dias de hoje, na antigüidade já se produzia
notícias para levar o receptor ao consumo com notícias sensacionalistas que
não permitissem o raciocínio lógico da proposta de determinado assunto,
mas comunicavam apenas informações com conclusões já fundadas, sem
direitos de defesa (MARQUES, 2006).
A linguagem moldada de forma linear pelos agentes da publicidade
pôde fazer com que a articulação “entre aparência e realidade, fato e fator,

217
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

substância e atributo, desaparecesse. Os elementos de autonomia,


descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e
imitação” (MARCUSE, 1983 apud MARQUES, 2006, p. 45).
Para Marques (2006), o discurso jornalístico está mais distante da
realidade e mais próximo do aspecto ideológico, quando passa a abordar as
questões sociais, buscando novas organizações, como a sensacionalista, que
corresponde à maneira do espetáculo da produção da notícia. E isso se dá
por meio da comercialização dos fatos.

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma


relação social entre pessoas, medida por imagens. [...]
Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo
tempo o resultado e o projeto do modo de produção
existente. Não é um suplemento do mundo real. Sob todas as
suas formas particulares – informação ou propaganda,
publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o
espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na
sociedade. Ele é a confirmação onipresente da escolha já
feita na produção, e o consumo que decorre desta escolha.
Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntico, a
justificativa total das condições e dos fins do sistema
existente. O espetáculo também é a presença permanente
dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo
vivido fora da produção moderna. (DEBORD, 1997 apud
MARQUES, 2006, p. 55).

A imprensa, como parte da sociedade do espetáculo, transformou a


notícia e a atividade jornalística em produto mercadológico, em que o fato
já deve ser transmitido com um aspecto já determinado, bem como a
fantasia de liberdade de imprensa, quando defendem ideais democráticos
que transmitem a falsa sensação de poder crítico à sociedade (MARQUES,
2006).
É conveniente acrescentar o que disse Bucci (2003, p. 09) sobre

[...] a idéia de que as notícias de jornal ‘retratam a realidade’


não faz sentido. Não que os jornais mintam, distorçam,
manipulem. Não é isso. Admitamos que os veículos da
imprensa se esforce na direção da objetividade e da verdade
factual. Admitamos, mais ainda, que eles sejam bem
sucedidos nesse esforço. Mesmo assim, a idéia de que eles
‘retratam a realidade’ não faz sentido. Faria mais sentido
dizer que eles consolidam a realidade, ou aquilo que

218
Fábio Messa

chamamos, muito precariamente, de realidade. [...] Os fatos


acontecem, no instante em que acontece, já como relatos.
Ou, se quisermos, como elementos discursivos. Um fato
ambiciona a condição de relato – pois só o relato dará a ele,
mero fato, um sentido narrativo. Não há, portanto, fato
jornalístico sem o relato jornalístico. O que pretendo dizer,
enfim, é que o relato jornalístico ordena e por definição,
constitui a realidade que ele mesmo representa como sendo a
realidade feita de fatos.

A citação acima reforça a idéia de que há manipulação na


informação passada, mesmo que sem intenção, ao receptor, que passa a
acreditar piamente no relato recebido de forma tão impactante. Assim, a
realidade passa a ser realidade, pois foi transmitida pela mídia no geral
(discurso publicitário e jornalístico) (BUCCI, 2003).
O objetivo dos telejornais não é o de apenas transmitir, mas tornar
a informação uma espécie de telenovela, em que cada capítulo é importante
para entender o próximo. Isso ocorre devido à necessidade de audiência,
mesmo que a notícia se torne excessiva, isso irá prender a atenção do
espectador que deseja saber o desfecho. Dessa forma, percebe-se que a
estratégia usada pelos jornais é somente para o consumo e não para
esclarecer e ser instrumento de reflexão do conteúdo. Isso o torna um meio
de alienação que tem pouco tempo para transmitir a informação e é
conduzida sem oportunidade de argumentação, há apenas uma aceitação
dela (PENA, 2002).
Outra questão relevante diz respeito à edição de imagens, que deve
causar sensações, porém não deve ser totalmente revelada, para que a
pessoa se aproxime o máximo possível do fato, e o mesmo possa apresentar
um referencial melhor da situação (PENA, 2002).
O jornalismo não pára por aí, pois com tantos meios evoluídos,
nessa verdadeira refinaria midiática, há uma grande disputa para sua
escolha. Trivinho (2000) é modesto quando informa que a sociedade vive
no caos, na poluição, na marginalidade, convivendo com desemprego,
doenças e dramas sociais. Isso faz com que as pessoas passem por
processos psíquicos, envolvendo-se mais emocionalmente com os
factóides.
Todas as “tragédias” só se assumem enquanto tais, depois da
nomeação que os próprios meios o fazem, transformando-as em espetáculo
pelos jornais sensacionalistas, o que faz o fato migrar de eventual, para
constante, tornando-o objeto de desejo de milhões de pessoas que, mesmo

219
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

se mostrando horrorizadas com o fato, precisam ver e saber de tudo


minuciosamente, ou seja, não bastará saber que ocorreu uma explosão,
precisa-se saber onde, como, quando, se houve mortos e feridos, quantos, a
idade dos mesmos e, se for possível, que tenha foto ou imagens ao vivo do
ocorrido (TRIVINHO, 2000).
Trivinho (2000) afirma que os responsáveis pela comunicação não
criam o medo, eles apenas estruturam algo já existente que se interioriza em
cada indivíduo de forma diferente, o que pode despertar o medo de algo já
vivido pela pessoa, ou medo de que aconteça consigo mesma. Essa é uma
forma de autodefesa da violência física que nunca se sofreu, porém sem se
dar conta de que é gerada, o que assegura que as condutas delineadas pelo
medo são condutas patológicas, com várias significações. O medo gerado
pela violência transmitida pelos meios de comunicação é o medo do mal,
que também pode ser desejado, inconscientemente, pelo espectador da
notícia (KEHL, 2004).
Uma questão importante que Kehl (2004) levanta é sobre o
comportamento dos indivíduos quando estão sobre a mira da mídia. Será
que os desfechos das histórias seriam aqueles que tiveram se a mídia não
estivesse presente? Ou será que a negociação seria melhor com sua
ausência? Talvez sim, afinal: “a publicidade de uma fantasia equivale a um
incentivo para a sua realização: vá lá e faça, é a sua obrigação, é o mínimo
que você pode fazer”. (KEHL, 2004, p. 94). Provoco um exemplo que tem
recheado as coberturas jornalísticas neste ínterim: o Caso Eloá, em Santo
André-SP. Será que haveria vítimas, caso não houvesse tanta pressão da
refinaria midiática circunscrita à tocaia policial? Seria preciso toda aquela
parafernália que construiu um plantão forçado aos nossos olhos, de mais de
100 horas. Esta designação 100 horas só teve seu estatuto de existência a
partir de sua enunciação.
O jornal sensacionalista aborda a morte como espetáculo, um dos
melhores produtos de venda, como se fosse um culto ou até mesmo uma
fantasia. Este espetáculo é atraente a todas as classes, porém com
linguagem diferente, por este motivo é que existem os jornais
sensacionalistas que têm um público de formação cultural precária, o que
os deixa mais próximos das manifestações dos instintos, do que nas pessoas
mais cultas, que normalmente estão mais sob controle (ANGRIMANI,
1995).
A morte proporciona sensações diferentes em quem a está
presenciando. A primeira é o choque, no qual me leva a pensar que o
próximo será eu mesmo. A segunda é a sensação de alívio por não ter sido

220
Fábio Messa

eu essa vítima. Estas sensações podem acordar as projeções sádicas,


punitivas, vingativas, recalcadas e até mesmo propiciar a criação de
histórias semelhantes por meio de fantasias. O meio de comunicação mata
alguém que eu desejaria ter matado; porém, como há o respeito às regras de
comportamento social, não posso realizar esse desejo.
Assim como a morte, todo o tipo de violência que é abordada em
um jornal sensacionalista, como estupro, assassinato, suicídio, brigas,
agressões, pode ser entendido como o melhor meio para a descarga de todas
essas tensões e o alívio das pulsões do indivíduo que as consome, mesmo
que no seu mais profundo inconsciente (ANGRIMANI, 1995).
Toda essa violência tem sido estudada e questionada através das
culturas vigentes nos povos, já que é de acordo com a cultura que se define
o que é violento ou não, porém, para Michaud (1986 apud ANGRIMANI,
1995), existem dois tipos de violência – a humana (cultural) e a animal
(natural), esta última não provedora de excessos, apenas necessária à
sobrevivência.
Outros temas abordados por jornais sensacionalistas são os
assuntos considerados tabus, como, por exemplo, a confissão de prazer no
sexo: por mais comum que esse tema possa parecer, ainda há quem o
recrimine, ou tenha vergonha em enunciar, pois quem quebra um tabu é
condenado moralmente, uma vez que foi quebrada uma regra que pode
ameaçar toda uma sociedade. No fundo, o tabu é algo que todos desejam
quebrar, mesmo que no mais profundo inconsciente, no entanto, temem
fazê-lo (ANGRIMANI, 1995).
O tabu pode explicar melhor o porquê que se tem de proibir
determinadas atitudes, como o homicídio, pois:
[...] sempre que exista uma proibição, ela deve ter sido
movida por um desejo [...] A tendência criminosa existe
realmente no inconsciente e este tabu, como mandamento
moral, longe de ser supérfluo, se explica e se justifica por
uma atitude ambivalente com respeito ao impulso ao
homicídio. (ANGRIMANI, 1995, p. 95).

A perversão tem como objeto o prazer sexual, e a mesma ligada ao


ato sexual dito como normal (pessoas de sexo oposto) não tem destaque na
imprensa sensacionalista, já as classificadas como fetichismo, voyeurismo,
sadomasoquismo, homossexualismo, pedofilia são extremamente
abordadas pelos jornais sensacionalistas, pois são notícias que quebram os
tabus da sociedade e criam revolta na população que deseja punição. Desta
forma, ao abordar estes assuntos, a imprensa se torna radical, usa

221
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

ferramentas, como imagens para impressionar ainda mais quem as vê


(ANGRIMANI, 1995).
Estes podem ser mitos, ou seja, um signo que agrega e se
transforma em mera forma ou significado de outro signo, já que a sociedade
capitalista é a que mais produz mitos que passam a ser algo natural e
também um facilitador do entendimento do assunto (SAISI, 2006).
Entende-se por criminalidade o conjunto dos crimes socialmente
relevantes e das ações e omissões que, embora não previstas como crimes,
merecem a reprovação máxima. A criminalidade é constante tanto no plano
da realidade quanto no universo ficcional, reveste-se de uma complexidade
bastante subjetiva. O homicídio é uma forma freqüente de criminalidade
convencional que também se instaura no cosmos da ficção contemporânea.
É para o homicídio que direciono as análises. A morte dos homens
praticadas por eles mesmos traz em si um caráter de antinaturalidade, que
consiste no fato de tanto vítima quanto agente pertencerem à mesma
espécie animal.
A partir de uma designação criada por Michel Petersen,
denominarei de Atitude Narrativa o “conjunto dos julgamentos e tendências
que levam o narrador a tomar, tanto no nível da narração que o narra,
quanto em relação ao discurso que ele propõe, posicionamentos narrativos”
(PETERSEN, 1995, p. 116). Isto quer dizer que, feito um locutor/falante, o
narrador seleciona certa unidade discreta em detrimento de/ ou
preferencialmente a uma outra, operando, assim, discriminações dentre os
fatos empíricos e textuais que lhe são apresentados. O que não pretendo
aqui efetivamente é divagar sobre as ambigüidades teóricas que comportam
a concepção de narrador (ver BENJAMIN (1975, p. 63-81)). O que quero
mesmo é reforçar a afirmação de que “esta atitude narrativa é dirigida
através do contexto semiótico, ou seja, as motivações de uma atitude
narrativa não se compreendem senão em função das estratégias gerais da
produção de sentido em determinado autor” (PETERSEN, 1995, p. 116).
Isso equivale a dizer que toda atitude narrativa responde a uma
atitude interpretativa ou a uma atitude de leitura. Nós, leitores/intérpretes,
sempre escolhemos, dentre as possibilidades oferecidas pelo texto, mais
uma leitura do que outra, dependendo do nosso repertório intelectual e de
nossa predisposição emocional, já que fazemos leitura racional e também
passional do texto literário. Assim, a atitude interpretativa consiste numa
soma de julgamentos de valores desse determinado leitor acerca de uma
determinada obra, e nunca será uma descrição neutra dos fatos textuais.

222
Fábio Messa

De início, qualquer descrição é uma soma de enunciados


avaliativos. Estes apenas adquirem sua objetividade se a
descrição, ao se integrar em uma cadeia de valores que
pertence a um sistema de valores, se modular em função do
contexto histórico e da cultura em que é executada – visto
esse processo não deixar de implicar uma certa dose de
violência interpretativa.

A atitude narrativa, enquanto participa da produção de sentido, está


ligada ao que Ross Chambers chamou de violência narrativa, que acusa o
caráter arbitrário do ato da narração porque ela é exercida pelo narrador e,
portanto, diz respeito à maneira pela qual se impõe uma narração. Seria
possível distinguir três tipos de atos narrativos violentos: a violência de
substituição, a violência de exclusão e a violência de focalização. Para
Chambers, cada narrador escolheria a forma que melhor respondesse as
suas necessidades e que, com maior eficácia, atendesse aos seus interesses
semióticos (PETERSEN, 1995, p. 120). Por isso, todas as narrativas
ocultariam ou exporiam todas as formas de violência, pois necessitariam,
senão de um narrador, pelo menos de uma instância que regulasse a
multiplicidade das vozes e dos discursos.
A violência narrativa se distingue da atitude narrativa devido ao
fato de a primeira desvelar o caráter arbitrário da narração, enquanto a
segunda remete a um contexto semiótico que impõe limites axiológicos ao
narrador. A violência narrativa refere-se exclusivamente ao ato narrativo, já
a atitude narrativa causa efeitos no conjunto do sistema de valores do
complexo autor-texto-leitor. Daí a necessidade de se reposicionarem os
conceitos avaliativos em seu respectivo contexto, isto é, considerá-los como
lugar de interdiscursividade. Desta maneira, o leitor terá condições de
interpretar, comparando sua cadeia de valores com as do autor e da
sociedade.
Por fim, resta determinar quais seriam os componentes ficcionais
do discurso telejornalístico: os flashs, as simulações, as estratégias de
teledramaturgia, a apresentação de cenas dos capítulos anteriores, enredo,
personagens, uma estética da redundância importada das estratégias de
folhetim, os planos e seqüências assumem o papel vital de contar a história,
apresentar a realidade sem mediações, o sistema de edição de imagens é um
código específico de construção da mensagem. “Embora a construção
romanesca seja determinante para o sucesso da estratégia narrativa da
notícia, ela não pode ser explicitada para o telespectador, pois o único pacto
que pode ficar visível é o referencial, aquele a que aproxima o consumidor
de sua demanda pelo facto” (PENA, 2002, p. 53).

223
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

Torno a enfatizar que, desde 2005, o Projeto Mitos e Mídia vem se


desenvolvendo, contribuindo na produção docente e discente e na
confecção de cursos de capacitação, oficinas, painéis e debates em torno
dos temas relacionados ao discurso jornalístico e ao discurso da ficção.
Desde então, tem consistido em agregar trabalhos de orientandos de
mestrado e de graduação, cujos objetos de pesquisa são produtos culturais
midiatizados – jornalísticos, literários, cinematográficos. Sabe-se que
muitas narrativas, difundidas pelos meios de comunicação de massa, se
encarregam de constituir novos ou desconstruir antigos mitos, os quais são
considerados mecanismos de fabricação de sentidos. Mantendo o
pressuposto de que o mito pode ser encarado como fonte básica a partir da
qual textos/tramas/imagens da cultura são tecidos, este projeto costuma
abarcar textos provenientes de um imaginário cultural, que se apresentam
ao leitor/espectador/consumidor como o território de encontro de conteúdos
universais, de arquétipos da cultura que se reatualizam constantemente.
Tem sido um dos objetivos do projeto: estender a discussão acerca
da produção e/ou desconstrução de mitos em produtos culturais
midiatizados, a partir de suas manifestações nos discursos literário,
cinematográfico e das histórias infantis e em quadrinhos. Com base em
teorias semânticas e semiológicas, são desenvolvidos artigos científicos e
dissertações de mestrado que evidenciam textos culturais vistos como
instrumentos comunicativos. Temos constatado que, dentre eles, o mito
possui um lugar de destaque pelo seu estatuto de permanência. Com isso,
tem-se descrito analiticamente alguns mitos que constantemente se
reapresentam dentro da cotidianidade transitória e veloz dos temas da
mídia. Da reunião inicial de textos midiatizados que apresentam em comum
a proposta de aniquilação, desconstrução, manutenção ou produção de
mitos, tem sido feita uma categorização, a partir das suas diferentes formas
de abordagem e de atributos.
Em 2006, Maciel defendeu a dissertação Maníaco da bicicleta: da
construção de um mito ao discurso sensacionalista que, com base em
teorias semântico-pragmáticas, verificava evidências de construção de
realidades pela imprensa no caso policial “Maníaco da Bicicleta”, do Jornal
A Notícia, da região de Joinville. O trabalho mostrava como a imprensa
utiliza a função referencial da linguagem para fins de convencimento em
suas campanhas. Amparando-se no mito da isenção, constatou que o
jornalismo apostava na credibilidade da opinião pública para transformar-se
em núcleo de poder na sociedade pós-moderna. Postulou também sobre a
credibilidade através da aparente isenção, em que o jornalismo recorre a

224
Fábio Messa

uma falsa polifonia, quando oferece aos consumidores opiniões de pessoas


diferentes, porém com o mesmo ponto de vista. Por fim, determinou que os
discursos das autoridades competentes serviam apenas para ratificar visões
estereotipadas repetidas continuamente. Através desta pesquisa, foi possível
desconstruir os mitos e as realidades inventadas nas narrativas jornalísticas
locais.
Em 2007, Felipe defendeu a dissertação O Lobo mau que é bom: a
re-versão do mito nas histórias infantis, mostrando que as histórias infantis
contemporâneas apresentavam uma nova estrutura narrativa, que propunha
uma peculiar reversão de mitos, em processos de intertextualidade e
deslizamento de sentidos. Este trabalho constatou e descreveu o processo
de reversão do mito do Lobo Mau em Lobo Bom, identificando as
possíveis causas que influenciaram esse outro formato. Esta pesquisa
revelou a quebra do paradigma da maldade e a tentativa de transmudá-lo
em bondade. Desse modo, procurou-se refletir sobre essa linhagem de
narrativas que parafraseiam e/ou parodiam as antigas versões, revertendo o
mito, ressignificando-o e provocando novas relações de sentido.
Estes dois trabalhos estavam amparados pela linha teórica do
projeto por tangenciar as questões relativas ao mito do crime e da maldade,
como em O Gozo Estético do Crime, mas por compartilharem das mesmas
teorias que norteiam o projeto Mitos e Mídia, ou seja, da semiologia
barthesiana e das teorias semântico-pragmáticas para a análise da
linguagem jornalística e da retórica da ficção.
Em 2008 está em fase de redação, pós-qualificação, a dissertação
de Vivian de Souza, Mito do menor infrator na ficção contemporânea, que
retorna às linguagens da violência, reiniciando o percurso de categorização
de perfis de personagens e narradores menores infratores, desta vez
recortando textos de autores como Jorge Amado, Paulo Lins e Patrícia
Melo.
Espero, portanto, estar contribuindo para a formação ética e crítico-
humanística dos futuros profissionais de ciências da linguagem e de
comunicação sobre os rumos do discursivo jornalístico na
contemporaneidade. Quero despertar, no âmbito acadêmico – das áreas de
ciências sociais e aplicadas, letras e artes –, uma visão problematizadora
sobre as repercussões das coberturas jornalísticas geradas na audiência,
para que se perceba o tipo de fruição estética que o
leitor/espectador/consumidor comum pode realizar sobre os conteúdos
veiculados.

225
Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime

Referências

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ANGRIMANI, D. Espreme que sai sangue. São Paulo: Summus, 1995.
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226
Fábio Messa

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Editora Universitária Leopoldianum, 2000.

227
ESTUDOS CULTURAIS E CINEMA E MITO

Fernando Simão Vugman

1. Introdução

Os estudos culturais constituem o campo das pesquisas por mim


desenvolvidas. Segundo Stuart Hall – reconhecido como um de seus
primeiros e principais protagonistas – os estudos culturais nasceram em
meados da década de 1950, no momento de uma “ruptura significativa”
(2003, p. 131), quando “velhas correntes de pensamento são rompidas,
velhas constelações deslocadas e elementos novos e velhos são reagrupados
ao redor de uma nova gama de premissas e temas” (idem). Os textos que
inauguram o deslocamento teórico que dará origem aos estudos culturais
são As utilizações da cultura, de Richard Hoggart e Cultura e sociedade, de
Raymond Williams; o primeiro, aponta Hall, “teve como referência o
‘debate cultural’ há muito sustentado nas discussões acerca da ‘sociedade
de massa’, bem como na tradição do trabalho intelectual identificado com
Leavis e a revista Scrutiny” (2003, p.132). Já o livro de Williams, ainda
segundo Hall, vem reconstruir aquilo que pode ser resumido como “uma
longa tradição [...] [que] consiste no ‘registro de um número de importantes
e contínuas reações a... mudanças em nossa vida social, econômica e
política’” (idem), que acaba por construir um mapa para a exploração e
investigação dessas mesmas mudanças.
Nesses trabalhos, e especialmente o livro de Hoggart, o que se vê é
uma atenção para a cultura da classe trabalhadora, investigando seus
padrões e estruturas para descobrir-lhes os valores e significados. A partir
daí, a “produção cultural” da classe trabalhadora passa a ser examinada
como um conjunto de “textos”. A conseqüência que se apresenta como
verdadeira quebra de paradigma, quando uma cultura em pleno
desenvolvimento é focalizada, é a impossibilidade de se avançar o debate
com base na oposição entre alta e baixa cultura. O livro seguinte de
Raymond Williams, The long revolution (1961), indica a necessidade de se
partir de outro lugar teórico para se analisar a noção de “cultura-e-
sociedade” antecipada em seu livro anterior, onde ele já apresenta a
“unidade” dos Estudos Culturais “não em termos de preocupações comuns,
mas de preocupações características e formas de expressão de suas
Estudos culturais, cinema e mito

indagações” (HALL, 2003, p. 132). Outro livro que apresenta as mesmas


características de ruptura é A formação da classe operária inglesa, de E. P.
Thompson, lançado em 1963. Embora este livro ainda se desenvolva dentro
das tradições da historiografia marxista inglesa e da história econômica, ao
“destacar questões de cultura, consciência e experiência, e enfatizar o
agenciamento, também rompeu decisivamente com uma certa forma de
evolucionismo tecnológico, com o economicismo reducionista e com o
determinismo organizacional” (HALL, 2003, p. 133).
Na sua institucionalização a partir dos anos 1960 – considerando-se
a criação, pela Universidade de Birmingham, do Centre for Contemporary
Cultural Studies, em 1963/64, então dirigido por Richard Hoggart e Stuart
Hall, o ponto de convergência dos estudos culturais é a “cultura”, muito
embora o exame dos textos fundadores aqui mencionados não permita
encontrar uma definição única e não problemática para esse termo tão
central. De fato, a complexidade deste conceito, que funciona mais como
um ponto de convergência de interesses, do que uma referência clara e bem
definida, mantém uma tensão permanente no campo. Assim, vale
mencionar, dentre as diferentes conceituações de cultura, aquela que Stuart
Hall considera a mais central, posto ser esta definição fundamental para os
estudos desenvolvidos em nossos projetos de pesquisa. Segundo ele, e
partindo das formulações oferecidas por The long revolution, de Williams,
a primeira conceituação “relaciona cultura à soma das descrições
disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas
experiências comuns” (2003, p. 135). Trata-se de uma concepção que, sem
deixar de recorrer “à ênfase primitiva sobre as ‘idéias’” (HALL, 2003, p.
135), abre espaço para uma socialização e democratização do termo. É uma
concepção que abandona a caracterização da cultura como aquilo que de
melhor foi produzido; a arte, inclusive, passa agora a ser entendida “como
apenas uma forma especial de processo social geral: o dar e tomar
significados e o lento desenvolvimento dos significados comuns; isto é,
uma cultura comum” (idem).

2. Cinema e Cultura

É, portanto, a partir dos paradigmas dos estudos culturais que o


cinema é promovido a objeto merecedor de estudos acadêmicos; desfeitas
as noções que permitiam reservar um lugar nobre à alta cultura e à Arte, o
cinema já não precisa mais se provar uma “arte autônoma”, como
defenderam seus primeiros teóricos, nem se desvencilhar da adjetivação de

230
Fernando Simão Vugman

“popular”. Na verdade, o cinema parece ocupar um papel destacado nos


próprios desenvolvimentos econômicos e sociais que criaram as condições
de possibilidade para os estudos culturais. Afinal, a cultura que atrai o olhar
de pensadores como Hoggart, Williams, Thompson e Hall é justamente
aquela gerada nas sociedades de massas. Quando, em seu ensaio “A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, primeiro publicado em 1936,
Walter Benjamin alia o desmonte dos conceitos da estética clássica às
tecnologias de reprodução mecânica, é o cinema que ele aponta como o
principal veículo dessa transformação:

Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de


reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da
tradição. Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem
por um fenômeno de massa um evento que não se produziu
senão uma vez. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se
à visão ou à audição em qualquer circunstância, elas lhe
conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a
um considerável abalo da realidade transmitida: ao abalo da
tradição, o que é a contraface da crise que atravessa
atualmente a humanidade e de sua atual renovação. Eles se
mostram em estreita correlação com os movimentos de
massa que hoje se produzem. Seu mais eficaz agente é o
filme. (grifo nosso) (BENJAMIN, 2000, p. 226).

Assim, não se trata apenas de coincidência temporal, a partir dos


anos 1950 e 1960, a emergência e institucionalização dos estudos culturais
e dos estudos de cinema, este último recebendo um forte impulso da
Nouvelle vague e dos Cahiers du cinema.
E é dessa junção entre a noção da produção cultural como
“descrições disponíveis” para que as sociedades atribuam sentido às suas
experiências coletivas com o enorme poder de encantamento e difusão do
cinema, que o filme passa, também, a ser passível de ser lido como um
texto.
Para o interesse de nossos projetos de pesquisa, tratamos o filme
não apenas como um texto que se apresenta para ser lido e interpretado,
mas também como uma narrativa mitológica.

231
Estudos culturais, cinema e mito

3. Literatura moderna, cinema pós-moderno

O atual estágio de nossas pesquisas, a ser apresentado ao final deste


capítulo, remonta ao meu interesse inicial pelo estudo comparativo entre
literatura e cinema e, de modo mais específico, dentro do debate (que já
correu mais acalorado) sobre modernidade e pós-modernidade,
modernismo e pós-modernismo.
Os primeiros estudos por mim desenvolvidos buscaram comparar
uma estética moderna à estética pós-moderna. Exemplo do primeiro foi o
livro 1984, de George Orwell, publicado em 1949, o qual analisei em
contraste com o filme Brazil (1985), dirigido por Terry Gilliam, que
considerei uma adaptação pós-moderna do primeiro. A premissa da
investigação era que o livro de Orwell se desenvolvia dentro de uma cultura
em que a palavra, o texto, funcionava como referência central,
particularmente através da autoridade daquilo que Lyotard chama de
“grandes narrativas”, como o projeto Iluminista, mas também outras
grandes narrativas, como o “texto” marxista, ou a narrativa bíblica.
Embora, em última instância, a narrativa dentro da história de Orwell se
revele amargamente ilusória, toda a busca do protagonista se dá em torno
de um suposto livro, que organizaria uma suposta resistência ao regime,
bem como orienta a própria trama. Brazil, por outro lado, apresenta de
forma caracteristicamente pós-moderna uma simultânea dissolução do
discurso – o livro dentro da trama de 1984 desaparece no filme de Gilliam,
substituído por um vendaval, literalmente, de papéis e documentos
burocráticos. De fato, Gilliam apresenta diálogos e discursos vazios de
significado, um tagarelar interminável que parece servir apenas para negar
a terrível realidade ao redor. Além disto, o filme exibe uma mise-en-scéne
em que as imagens, por vezes claramente em estilo publicitário, concorrem
com um discurso paralelo e vazio.
Naquele estudo, também chamo a atenção para a construção do
protagonista, ou herói da história. Enquanto Orwell nos apresenta um herói
que busca desesperadamente reconstituir um mundo compreensível,
esforçando-se para encontrar um caminho “real” em meio a uma infinidade
de discursos e textos que não param de falsificá-lo, Gilliam não só divide o
herói em dois personagens “complementares”, como os apresenta perdidos
em um mundo em que a ausência de sentido se encontra definitivamente
instalada. Assim, enquanto 1984 parece um último e desesperado alerta
para os perigos que se abrem quando a palavra e o discurso perdem valor
de referência, Brazil se realiza em um universo onde as narrativas já se

232
Fernando Simão Vugman

mostram vazias e inúteis, perdidas, junto com os personagens, numa


infinidade imagens “intensas, superficiais e vazias de afeto” (JAMESON,
2000, passim).
Uma segunda linha de investigação voltou-se para o cinema
hollywoodiano. O ponto de partida foi o interesse em mim despertado pela
figura do gangster no cinema estadunidense. Curioso sobre o valor
simbólico do gangster ficcional, vi meus estudos seguirem o caminho das
representações mitológicas nas sociedades modernas. De fato, lançando o
olhar para a origem das narrativas mitológicas estadunidenses, pode-se
perceber uma continuidade estrutural narrativa que avança pela literatura
durante os séculos XVII, XVIII e XIX até chegar ao século XX, quando é
incorporada pelo cinema hollywoodiano.
O historiador estadunidense Richard Slotkin desenvolve um
trabalho bastante útil para se compreender não apenas a estrutura original
da narrativa mitológica dos Estados Unidos, como também certas
contradições ideológicas originárias das condições encontradas pelos
primeiros colonizadores, que persistem na cultura daquele país até os dias
de hoje. Segundo Slotkin, a mitologia da sociedade norte-americana tem
sua origem nas Narrativas do Cativeiro, que surgem em meados do século
XVII. Nestas narrativas, ele explica, “uma pessoa, geralmente uma mulher,
suporta passivamente as tentações do mal [os índios], esperando ser
resgatada pela graça de Deus [isto é, por um homem branco]” (1996, p. 94).
De modo bastante simplificado, nestas histórias a mulher branca, levada
pelos índios, representava os valores da civilização cristã: castidade,
casamento heterossexual monogâmico, o direito de propriedade. São estes
valores que precisam ser resgatados das forças do mal, contidas na floresta
e na aldeia indígena.
O resgate, por sua vez, estará a cargo de um homem branco. Para
levar a cabo sua missão, o homem branco terá que dominar as técnicas de
guerra e de sobrevivência dos índios, e agir com violência e sem piedade. A
justificativa para seus atos violentos e sua descida ao inferno reside na
salvação da mulher branca, assim tornada um símbolo da civilização. Na
definição de Slotkin, em termos míticos, esta figura feminina se tornará a
“mulher redentora” (1998, p. 206): casta, dócil, compreensiva, confiável e
bastião da civilização.
O que está representado nessa narrativa de mito é o sentimento
contraditório dos primeiros colonizadores dos Estados Unidos na busca por
uma identidade própria. Na tentativa de criar uma nova identidade, estes
colonizadores precisavam, por um lado, diferenciar-se dos ingleses e do

233
Estudos culturais, cinema e mito

Velho Mundo. Para isto, percebiam a necessidade de incorporarem muito


do conhecimento e dos costumes dos povos nativos, desde sempre
acostumados a sobreviver numa terra selvagem. Mas, por outro lado, para
não se confundirem com os selvagens, precisavam, também, reafirmar os
valores trazidos da Europa, especialmente aqueles valores fundamentados
no Puritanismo e na organização social européia.
Se considerarmos a afirmação do antropólogo Lévi-Strauss de que
“[...] o objetivo do mito é fornecer um modelo lógico para resolver uma
contradição (tarefa irrealizável quando a contradição é real)” (1996, p.
254), veremos que é disto que tratam as narrativas de cativeiro: ao resgatar
o símbolo dos valores fundamentais da civilização branca, toda a violência
e artimanhas indígenas empregadas pelo homem branco estarão
justificadas. Em outras palavras, a violência individual, especialmente
aquela praticada pelo homem branco, se justifica à medida que serve à
causa da civilização, entendida, principalmente, como a base de valores
puritanos. É este processo que Slotkin denomina “regeneração através da
violência”. De fato, o historiador situa nesta contradição histórica e na sua
expressão mítica a origem da valorização cultural da prática individual da
violência na sociedade norte-americana.
Já o século XX traz consigo a sensação de que as possibilidades de
expansão dentro das fronteiras nacionais estão se esgotando, ao mesmo
tempo em que os Estados Unidos deixam de ser um país eminentemente
rural e se transformam numa nação urbana e industrializada. É junto com
essa urbanização e industrialização que nasce a indústria cinematográfica
americana.
O crítico estruturalista Will Wright observa que a despeito da
popularidade das novelas de faroeste, foi através do cinema que o “mito
tornou-se parte da linguagem cultural pela qual a América entende a si
mesma” (1977, p. 12). E explica esta situação privilegiada dos filmes pela
capacidade da “imagem cinemática [...] expressar verdadeiramente [...] a
importância central da terra” (idem). Embora seja inegável o sucesso do
Western na criação de um espaço mítico na tela, podemos apontar outras
razões para que a produção hollywoodiana tenha se tornado o meio
privilegiado para expressar a mitologia americana contemporânea.
Realmente, devemos considerar que Hollywood vem ocupar um
lugar bastante especial na transformação dos Estados Unidos em uma nação
industrial e urbana: junto com sua capacidade de criar narrativas de mito, a
indústria cinematográfica americana constitui, ela própria, um conjunto de
mitos. Expressa, por exemplo, um dos mitos mais caros ao capitalismo: o

234
Fernando Simão Vugman

mito do incessante desenvolvimento tecnológico, particularmente intenso


nas primeiras décadas do século passado, quando novas tecnologias não
apenas maravilhavam os cidadãos americanos, mas de fato transformavam
e recriavam o modo de viver daquela organização social nascente (a
persistência deste mito pode ser verificada na ênfase cada vez maior nos
efeitos especiais e no uso do computador na produção cinematográfica
hollywoodiana). Outro mito caro aos americanos, a “América” como terra
das oportunidades, também encontra sua expressão em Hollywood, quando
esta absorve imigrantes judeus, italianos e irlandeses, entre outros, na sua
linha de produção.
Neste contexto, o gangster surgiu como personagem mitológico
singular em sua significação. Sua figura aparece em um momento especial
da história norte-americana: ele aparece nas telas nas primeiras décadas do
século XX, momento em que a imagem de um país vasto e eminentemente
rural e ainda selvagem é substituída pela imagem de uma nação industrial e
urbana. Até então, os personagens mitológicos elaborados eram suficientes
para expressar e reforçar os valores éticos e morais dominantes, bem como
suas contradições e paradoxos.
Dentre tais personagens, minha pesquisa se voltou para a figura do
herói americano. Este surge como o homem branco que, conhecedor das
artes de guerra próprias dos indígenas para lutar e sobreviver na floresta,
age com violência e selvageria para libertar do cativeiro a mulher branca
por eles feita prisioneira. É neste arcabouço mítico construído nessas
narrativas que está justificada a violência individual, o desrespeito às regras
sociais e o espírito competitivo do homem branco americano, já que todo
seu comportamento visa, em última instância, a salvação da mulher branca,
símbolo da pureza e superioridade da civilização colonizadora e veículo da
redenção do próprio herói.
Porém, a urbanização e industrialização do país no início do século
XX vêm limitar exatamente um dos elementos-chave nesta estrutura
narrativa mitológica: é o fim da fronteira interminável, sempre pronta para
ser expandida, explorada e conquistada. É o fim da fronteira que separa a
civilização puritana, patriarcal, branca e superior, do inimigo indígena e sua
Natureza, ambos selvagens, inferiores e degradados.
É assim que nasce o gangster, figura mítica que reproduz as já
citadas qualidades do herói americano – competitivo, violento, líder e cheio
de iniciativa – mas, agora, ao contrário do homem da fronteira, ou do
cowboy, sem um horizonte infinito para onde escapar. As qualidades
fundamentais na construção dos Estados Unidos como nação, que

235
Estudos culturais, cinema e mito

permitiram o massacre continuado dos povos nativos originais e a


destruição da Natureza, passam a constituir também um problema no
ambiente urbano. E é a contradição cultural resultante que o gangster vem
representar: ele possui todas as qualidades do herói mitológico tradicional,
mas sua liderança natural, seu espírito competitivo, seu machismo, seu
apego à violência como ferramenta válida para escalar socialmente e, por
que não, seu exacerbado consumismo, são também fonte de desestruturação
social. Para explicar o gangster, apliquei a metáfora do monstro isto é,
aquela figura criada em todas as culturas humanas para incorporar todo o
Mal, tudo o que é monstruoso, e cuja eventual destruição ou expulsão
representa a derrota do Mal. O aspecto paradoxal do monstro, porém, é que
a sua destruição ou expulsão jamais pode ser final, e sua inevitável
ressurreição ou retorno tem o efeito de borrar a linha divisória entre o bem
e o mal, já que, embora representante do mal, o monstro não deixa de ser
filho da mesma sociedade que o repele.

4. Rumos e questões

A partir do estudo desses objetos, minhas pesquisas passaram a


interrogar uma gama de temas e assuntos relacionados: o mito nas
sociedades modernas e, em particular, no cinema hollywoodiano, mas
também o cinema brasileiro, para onde passei a lançar também minhas
lentes. Para tratar do gangster, fez-se necessário participar do debate sobre
gêneros artísticos em geral, e cinematográficos em particular,
especialmente para que se pudesse apresentar alguma definição de filme de
gangster, mesmo que apenas uma definição provisória e instrumental (neste
caso, defini o filme de gangster como aquele em que o gangster é
simultaneamente herói e protagonista).
Outra figura de interesse, sob o ponto de vista mitológico e
simbólico, é a do “herói americano” e a evolução de sua representação
desde sua origem aos dias de hoje. A figura do herói também tem sido
investigada por mim fora do contexto cultural estadunidense, sendo
investigado também nas produções brasileiras. Ainda tendo como objeto a
filmografia brasileira, os estudos e projetos desenvolvidos têm se voltado
para explorar a representação do malandro, conforme Antonio Candido, do
“marginal”, conforme João Cezar de Castro Rocha, e do “monstro”,
conforme Fernando Vugman, em filmes como Cidade de Deus, Amarelo
manga, Rio 40 graus, O pagador de promessas, entre outros.
Sobre estes temas e questões, tenho produzido artigos, capítulos de
livros e dissertações de mestrado por mim orientadas.

236
Fernando Simão Vugman

Referências

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237
DOCUMENTOS DO PRESENTE

Jorge Hoffmann Wolff

1. Introdução

Recortar, questionar, combinar, sobrepor, deslocar, bricolar,


criticar, atravessar a literatura e o cinema brasileiros são os móveis básicos
da presente pesquisa, iniciada na graduação em Comunicação Social da
Universidade do Sul de Santa Catarina (campus Pedra Branca, Grande
Florianópolis). Os “documentos do presente” em questão devem ser vistos
de modo paradoxal e ambivalente, uma vez que os termos se revestem de
conotações particulares nesta abordagem, a saber: documentos são sempre
e incontornavelmente fato e ficção; documentos vistos sob a ótica
positivista agem com a intenção de preencher o vazio da história;
documentos vistos sob a ótica antinaturalista esvaziam afirmativamente as
noções de arte e estética, cultura e natureza; e os não-lugares da memória,
situada sempre no presente, embaralham lembrança, esquecimento e
invenção. O empírico e o imaginário, ou seja, os pólos daquilo que
designamos como “o ficcional” e “o documental”, são tomados portanto em
sua intersecção, no lugar entre que ocupam enquanto linguagem e modo de
pensar as produções de sentido representadas pela literatura e o cinema
brasileiros.
No corpo da pesquisa, tais campos do conhecimento são
investigados na sua relação com o que podemos chamar de “naturalismo”
ou “documentalismo” (e suas vertentes neo) no Brasil – vertentes realistas
estas que seriam estilos antes que escolas, conforme sugere Werneck Sodré
(1992, p. 53). Trata-se, como não poderia deixar de ser, de uma relação
tensa que se manifesta por vezes de forma hipercrítica, como no caso dos
escritores Sérgio Sant’anna, João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho, e por
vezes de forma mais integrada à órbita dominante, neonaturalista ou
documentalista, como seria o caso dos escritores Marçal Aquino ou Paulo
Lins. Como o consenso ou o dissenso se manifestam em suas opções
estéticas e realizações artísticas, isso é uma das perguntas norteadoras da
presente investigação – que inclui experiências interculturais como no caso
de Cidade de Deus (o livro de Lins; o filme de Meirelles e Lund) ou de O
invasor (o filme de Beto Brant; o livro de Aquino, cuja parceria remonta a
Documentos do presente

Os Matadores e Ação entre amigos). As narrativas ficcionais em questão


ganham nova perspectiva crítica, por outro lado, ao serem vistas em
contraponto com a vertente de cinema-documentário das últimas décadas
no país, tendo como figuras protagônicas os dois Eduardos, Coutinho e
Escorel, e os dois Moreira Salles, Walter e João (o documentário na ficção;
a ficção no documentário).

2. Bases teóricas

A investigação busca analisar as chamadas narrativas realistas e


documentais do fim do século XX (décadas de 1980 e 1990), além de ler
estas narrativas literárias em sua articulação com os debates a respeito da
história, da ficção e da imagem. Assim, tomamos a semioclastia barthesiana
como a contraface nostálgica das recentes releituras de Jacques Rancière,
que faz uma revisão crítica da trajetória do semiólogo francês enquanto
teórico da imagem e, mais do que isto, das próprias noções de modernidade
e de vanguarda às quais Roland Barthes está umbilicalmente, isto é,
visceral e problematicamente conectado (cf. análise de A câmara clara e Le
destin des images no item 2.4). Além de Rancière, e freqüentemente em
tensão com ele, outros teóricos da imagem, como Walter Benjamin, André
Bazin, Vilém Flusser, Gilles Deleuze, Jean-Louis Comolli e Georges Didi-
Huberman, são reivindicados para a investigação do significado atual
destas “operações” que são as imagens, sejam elas verbais ou não-verbais,
no âmbito de uma pesquisa dedicada, como dito acima, às ficções
documentais do último fim-de-século.

2.1 Documento/Monumento

Nesta etapa inicial, buscamos definir os conceitos de documento,


presente, memória, realidade e ficção, com base nestes e noutros
pensadores da cultura. O que é então um documento e que variações
semânticas a história desta noção conheceu? Perguntas semelhantes são
endereçadas às demais noções. Quanto às expressões neonaturalismo e
neodocumentalismo, elas têm sido empregadas sistematicamente por Flora
Süssekind, desde pelo menos 1980, em sua reflexão sobre a aclimatação do
naturalismo, ou melhor, dos naturalismos no Brasil, desde o primeiro surto,
no fim do século XIX, tendo como protagonista a figura de Aluísio de

240
Jorge Hoffmann Wolff

Azevedo, até o último, em pleno século XXI, representado por figuras,


como Aquino ou Lins (cf. Tal Brasil, qual romance).
A noção de documento é, como se sabe, histórica e
etimologicamente simétrica à noção de monumento, apesar das
metamorfoses semânticas verificadas em ambas as palavras no decorrer dos
séculos. Lembremos algumas dessas metamorfoses com a ajuda de Jacques
Le Goff (1997, p. 95), para quem “estes materiais da memória apresentam-
se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os
documentos, escolha do historiador”. A palavra latina monumentum
significa um sinal do passado, deriva de memini, memória, ao mesmo
tempo em que remete ao épico e à morte. Até o século XVIII, os
monumentos representavam o poder de perpetuação das sociedades
históricas e o acesso “a testemunhos que só numa parcela mínima são
testemunhos escritos” (LE GOFF, 1997, p. 95). No século XIX, o termo é
ainda usado em referência às grandes coleções de documentos, embora a
convivência das duas noções não vá perdurar, sendo engolidos os
monumentos pela voragem positivista.
O paradoxo em relação a este esmagamento dos velhos
monumentos no século XIX é que o Ocidente, embebido no espírito
positivista, irá recriá-los conforme a medida de suas necessidades daí em
diante, através de novos avatares do historicismo. O último deles, segundo
Beatriz Sarlo, em Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo,
seria a irresistível tendência à monumentalização característica do
momento atual, ao qual chama de “império do instante”, iniciado no final
do século XX, quando as sociedades ocidentais passam a mirar a si próprias
como nunca antes, através dos meios digitais (SARLO, 2005, p. 11), que
haviam encetado, por sua vez, a sua própria revolução documental a partir
da década de 60, com o advento da informática.
Dito de forma breve, a “sociedade de controle”, nos termos de
William Burroughs ou Gilles Deleuze, adere decididamente à
monumentalização do indivíduo e à sua “auto-arqueologização” (o passado
como espetáculo), sem levar em conta que “qualquer documento é, ao
mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e
falso, porque um monumento é, em primeiro lugar, uma roupagem, uma
aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar,
demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as
condições de produção dos documentos-monumentos” (LE GOFF, 1997, p.
103-4). Esta é a tarefa do historiador, segundo LeGoff, assim como “a

241
Documentos do presente

tarefa do tradutor”, segundo Walter Benjamin no célebre ensaio de 1923, é


simultaneamente fazer e desfazer.

2.2 Documentário/Ficção

O cinema-documentário apresenta diversas possibilidades de


abordagem, desde as mais tradicionais, institucionais e educativas, até as
mais inovadoras, independentes e experimentais, que o levam a assumir e
mesmo a enfatizar a sua face ficcional. É nessa direção que se deve
entender a afirmação de Andrés Di Tella, segundo a qual o documentário é
“o melhor que o cinema tem para oferecer hoje” (DI TELLA, 2005, p. 81).
O gênero, localizado entre o documental e o ficcional, é uma forma de
experiência audiovisual, sobretudo oposta aos gêneros televisivos e
jornalísticos (COMOLLI, 2001, p. 4), já que sua característica básica reside
num imperativo de ordem ética, ligado à noção de reflexividade e alheio às
injunções do mercado publicitário (LINS, 2004, p.17). Os melhores
documentários, brasileiros ou não, têm revelado insistentemente aquilo que
as representações dominantes da mídia evitam veicular e aquilo que o
conservadorismo no âmbito sócio-político evita ao mesmo tempo enxergar
e dar a ver (LEBLANC, 1999, p. 5). Este é um dos motivos pelos quais o
documentário é um gênero marginal, como costuma se referir a ele um de
seus grandes realizadores em atividade, Eduardo Coutinho, tributário de
uma tradição iniciada nas décadas de 1950 e 1960, com o “Cinema Novo”
brasileiro, o “Cinema Direto” norte-americano e, sobretudo, o “Cinema
Verdade” francês.
Uma reflexão crítica sobre três filmes de temática comum – o
curta-metragem Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, o média-metragem
Boca de lixo (1992) e o longa-metragem Estamira (2004), de Marcos Prado
–, vistos enquanto documentos reveladores daquilo que não se quer ver
(BERNARDET, 2003, p. 17), foi realizada com a finalidade de analisar
suas formas de dar voz ao “outro” e de representar o “real”, e também de
contrastar e de situar uns em relação aos outros, percebendo o cinema como
“arte cada vez mais impura, aberta ao mundo, à diferença, ao imponderável
e ao presente”. (LINS, 2004, p. 11). Para Amir Labaki, reafirmando a
sugestão feita acima por Di Tella em nível nacional, “o documentário é a
locomotiva estética que tem desbravado caminhos” no mundo do cinema
brasileiro (LABAKI, 2006, p. 9) – algo que corroboram amplamente os três
filmes.

242
Jorge Hoffmann Wolff

2.3 Mito/Realidade

Em busca de ferramentas teóricas para falar dos documentos do


presente da cultura, retornamos a Roland Barthes (1915-1980). Há dois
conceitos recorrentes na militância ensaístico-literária de Barthes – os
conceitos de “mito” e de “realidade” –, pensados nesta pesquisa em relação
à teoria e à prática do filme-documentário como fala politizada. A questão
poderia ser enunciada assim: como escrever o imaginário contemporâneo
em plena “era do depoimento” e sobreviver ao “peso do presente”, tomando
de empréstimo os termos de Beatriz Sarlo, uma das grandes leitoras latino-
americanas de Barthes. Jacques Derrida conecta o primeiro e o último
Barthes, o de O grau zero da escritura (1953) e o de A câmara clara (1978),
enfatizando as relações entre a escritura e a morte, a fotografia e a morte,
nos fragmentos de As duas mortes de Roland Barthes. De Derrida
emprestamos a idéia da deriva entre esses dois pólos, ao colocarmos
igualmente em contato o primeiro e o último momento dessa trajetória
marcada pelo recomeço, através sobretudo das Mitologias (de 1957 – o
terceiro volume de sua bibliografia) e da Aula inaugural (de 1978 – o
antepenúltimo a ser publicado). Em cena, portanto, a escritura e os mitos, o
texto e o fulgor do real, com recurso também aos ensaios intermediários
que passam de algum modo pela relação entre as mitologias e a realidade
ou o realismo, a fim de acompanhar seus conhecidos deslocamentos
teóricos e de investigar esses extremos que se tocam.
Esses deslocamentos têm início, portanto, com as Mitologias de
meio século atrás, mitologias marcadamente marxistas e sartreanas, que vão
dar lugar, a partir do fim dos anos 60, à filosofia derridiana e à psicanálise
lacaniana e, em conseqüência, a todo um novo saber crítico: o real como o
impossível e como disseminação, a fim de buscar alternativas à reconhecida
capacidade de regeneração demonstrada pelos mitos contemporâneos. No
caso do universo audiovisual, e do gênero documentário, o chamado
“cinema do real”, em particular, existem dois ângulos para tentar enquadrar
o seu imaginário, se quisermos acompanhar as premissas do último
Barthes: enquanto um novo saber crítico, ou enquanto mero espetáculo de
realidade; como novos leitores de sempre novas narrativas, ou como
desprezíveis espectadores do disparatado show da vida. O reality é, sem
dúvida, um dos gêneros mais bem-sucedidos de hoje, na linha
depoimentista de “a história sou eu”. Ana Amado, por exemplo, lê o
documentário como novo saber crítico em um ensaio sobre a obra do
primeiro documentarista blockbuster da história, o norte-americano
Michael Moore, apontando, ou melhor, questionando o seu modo de

243
Documentos do presente

intervenção enquanto voz autorizada, a fim de legitimar as suas próprias


teses sobre a realidade numa série de documentários-denúncia. Moore é,
como diz Amado, o autor da versão documental da narrativa do Mal – em
suas abordagens dos Estados Unidos da América em Fahrenheit 9/11 ou
Tiros em Columbine. Sugerimos então, como hipótese de trabalho, que o
cineasta brasileiro Jorge Furtado seria, primeiro, o documentarista da
banalidade do mal em Ilha das flores e depois o ficcionista da banalidade
do bem em, digamos, O homem que copiava: dois modos de “legitimar
uma ‘ficção’ da realidade” (AMADO, 2004, p. 225).
O último grande tema de Roland Barthes, como lembra Sarlo, foi o
trabalho do escritor, assim como a obsessão inicial fora o trabalho do
mitólogo. Mas o trabalho do escritor não significa, como se sabe, escrever
de modo correto, sensato ou coerente, ao contrário, significa estar na
encruzilhada de todos os discursos em busca da verdade do desejo, a fim de
“mudar a língua, mudar o mundo”: Marx com Mallarmé (BARTHES,
1978, p. 26). Se sua proposta vai contra “a língua de toda a gente”, ou
aquilo que chamou de Doxa, assumido inimigo número um, há razões de
sobra para esta tomada de distância crítica, a começar pela idéia de que o
melhor é ter várias línguas dentro de um mesmo idioma, o que também
sugere na Aula inaugural de 1977. Trata-se da própria “Babel feliz”
mencionada no início de O prazer do texto (1973), livro em que surge o
scriptor Barthes em toda sua radicalidade, em pleno uso do que chamou de
função utópica, isto é, o desejo do impossível em toda sua perversidade,
que aqui é sinônimo de felicidade e ao mesmo tempo função reveladora da
“inadequação fundamental da linguagem ao real”: “Que uma língua,
qualquer que seja, não reprima outra: que o sujeito futuro conheça, sem
remorso, sem recalque, o gozo de ter a sua disposição duas instâncias de
linguagem, que ele fale isto ou aquilo segundo as perversões, não segundo
a Lei” (BARTHES, 1978, p. 25).
Quais as implicações sociais e políticas desse elogio do gozo que se
afirma na ressaca de maio de 68 e prossegue enigmático e desafiador? Na
idade do som e da imagem digitais, vemos e ouvimos cada vez mais e
simultaneamente menos; os sentidos e os caminhos da leitura modificam-se
com velocidade, seja para ler a linguagem dos mitos ou da realidade. “A
linguagem é uma legislação, a língua é seu código”, ensina o último
Barthes, mas “não vemos o poder que reside na língua porque esquecemos
que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva:
ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jakobson
mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que

244
Jorge Hoffmann Wolff

por aquilo que ele obriga a dizer”. E arremata o raciocínio com outro
postulado recorrente em seu pensamento: “Mas a língua, como desempenho
de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é
simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a
dizer” (BARTHES, 1978, p. 4).
Assim, a questão da inadequação da linguagem ao real é, sem
dúvida, a pedra-de-toque do discurso barthesiano, o qual não deixa de
reconhecer o fato inevitável de que “a utopia da língua é recuperada como
língua da Utopia”, ou seja, ela nunca fica preservada do poder. No entanto,
o que devemos lembrar nesse momento é que, já nos anos 50, Barthes
estava ciente de que, ao se desconstruírem os mitos, corria-se o risco de
reconstruí-los com vigor renovado, de lhes dar vida nova, com
características até então desconhecidas. Mas se não há como fugir da eterna
recuperação pelos discursos de poder, “essa água que escorre por toda
parte” (BARTHES, 1978, p. 34), é possível trapacear com ele, jogar com a
palavra gregária e estabilizadora, tomar o signo como ficção. E é isto o que
caracteriza a sua famosa e controvertida noção de Texto, que marca a
transição para a sua etapa final e que se propunha a ser “o próprio índice do
despoder” (BARTHES, 1978, p. 35). Diríamos então que a narrativa
audiovisual de Ilha das flores é um Texto, enquanto O homem que copiava
é uma Obra, conforme a famosa oposição estabelecida por Barthes rumo ao
prazer do texto, isto é, rumo à década de 70.
Tendo em vista de modo permanente a noção de despoder, Barthes,
em sua atividade crítica, semiológica e literária, como crítico, professor e
escritor, persegue sem descanso (e de forma redudante, segundo Rancière –
cf. item 2.4) a meta da desnaturalização de todo estereótipo. Nas
Mitologias, escritas no pós-guerra, a visada sociológica, mais precisamente
sartreana e marxista, dava as cartas teóricas de sua atividade de mitólogo, a
qual ele pretendia transformar em ciência, “ciência mitológica”, assim
como nos anos 60 a “ciência semiológica” – ilusões que mais tarde
abandona e com as quais acerta as contas, particularmente na Aula
inaugural. Nesse primeiro momento, tratava-se, segundo Sarlo (1981, p.15),
de um intelectual muito mais sartreano do que marxista – “no olhar sobre a
cultura pequeno-burguesa em algumas Mitologias, ou como moral da
forma, quando Sartre representava a vanguarda, com a nova língua do
ensaio que inventou”. Mas foi em Marx que vislumbrou as “vibrações
ideológicas” de termos como “valor” e “trabalho” da forma, embora tenha
sido sempre um antidogmático convicto, como, aliás, insiste Derrida em As
mortes de Roland Barthes.

245
Documentos do presente

Ainda segundo Sarlo, agora a propósito da influência de Brecht e


do teatro antiburguês, “Barthes encontra em Brecht um marxista que
refletiu sobre os efeitos do signo, resolvendo a tensão de seu momento
sartreano e marxista: o compromisso da forma” (SARLO, 1981, p. 17). Em
“As tarefas da crítica brechtiana”, artigo de 1956, publicado na revista
Arguments, fez o elogio do formalismo do diretor do Berliner Ensemble
num tom de manifesto com “todas as marcas de uma época”, como diz
Derrida, a propósito de O grau zero da escritura. Barthes postulava então
que “a arte deve ser uma anti-Physis. O formalismo de Brecht é um
protesto radical contra a armadilha da falsa Natureza burguesa e pequeno-
burguesa: numa sociedade ainda alienada, a arte deve ser crítica, deve
romper qualquer ilusão, inclusive a da ‘Natureza’; o signo deve ser
parcialmente arbitrário, sem o que voltamos a cair numa arte da expressão,
numa arte da ilusão essencialista” (SARLO, 1981, p. 18).
Se o seu último grande tema foi o trabalho do escritor, a idéia
permanente no sistema crítico e no gosto de Barthes (como Sarlo enfatiza)
foi a de que “não há política revolucionária sem forma revolucionária”,
conforme postulara o próprio Marx. No entanto, a partir dos anos 50, a
revolução, em termos literários, passa a ser representada pelo nouveau
roman, o (mal) chamado objetivismo de Michel Butor, Marguerite Duras,
Claude Simon, Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet, de modo que a
reivindicação de Brecht era contemporânea à dos novos romancistas,
conforme manifesta em dois artigos publicados na revista Critique, em
1954, “Literatura objetiva” e “Literatura literal”. A manutenção sem
concessões da idéia de forma revolucionária vida afora, de deslocamento
em deslocamento, de decepção em decepção (pois diz na Aula que a idéia
pode se tornar “decepcionante” diante de certo tipo de leitura), implicou na
adesão a uma estética da transgressão (SARLO, 1981, p. 18). O que o leva,
a partir dos anos 60, a figurar como o crítico mais proeminente da
neovanguarda francesa, revigorada por, entre outros, Severo Sarduy e
Philippe Sollers, e seguir adiante, da batalha mitológica antiburguesa à
desconstrução do signo sob as formas porosas e perversas do Texto e da
escritura, cuja ilegibilidade transformou-se ela própria em mito a ser
desconstruído. De qualquer modo, contra a plenitude referencial
característica do verossímil realista dominante a partir do século XIX, trata-
se de “esvaziar o signo” e de colocar em questão a estética secular da
“representação”, conforme a conclusão de “O efeito de real” (artigo de
1968).

246
Jorge Hoffmann Wolff

Quando a nova narrativa e a nova crítica dos anos 60 passam a ser


as duas vertentes de uma só linha de pensamento – que poderíamos chamar
de telqueliano – e as vanguardas abolem a distinção entre os próprios
gêneros, Barthes propõe uma outra visão em relação a si mesmo, não
destituída de humor, ao se situar “na retaguarda da vanguarda”, ou seja, no
não-lugar em que se coloca desde o início da Aula, que é aquele de um
sujeito incerto, de um sujeito impuro. Precisamente, o sujeito entendido
dessa forma vai ocupar o lugar indireto que a literatura fornece aos saberes,
“e esse indireto é precioso”, segundo ele, porque “não fixa, não fetichiza
nenhum deles” (BARTHES, 1978, p. 18); ou, para dizê-lo com as marcas
da época de 1950, não os mitifica. Vale notar, paralelamente, que essas
marcas correspondem com exatidão à idéia de peso do presente, que nos
permite abordar os documentários de Jorge Furtado como frutos de sua
história: Ilha das flores (1989) visto como um filme político ímpar do
período da redemocratização, uma narrativa que em letras garrafais cheias
de ironia afirma que “este não é um filme de ficção”, ao promover o
desmanche determinista e megalomaníaco da história do Ocidente em doze
minutos de vertigem audiovisual; O sanduíche (2000), como uma narrativa
voltada às políticas do corpo do leitor, ou seja, do espectador, e como teatro
do texto em abismo, escancarando igualmente seu procedimento; e O
homem que copiava (2003), como típica narrativa da retomada do cinema
brasileiro para as massas, em que os artifícios de vanguarda (marginais
como o gênero documentário) dão lugar a um discurso acessível “para toda
a gente”.
De modo que, se o mito é uma fala despolitizada (BARTHES,
1981, p. 162), o documentário visto como fala politizada e artificiosa
precisa livrar-se dos mitos que parasitam e tranqüilizam o gênero (lembre-
se que o mito, para Barthes, é um tranqüilizante e o poder um parasita da
linguagem), gênero ou, antes, estilo – segundo Raúl Beceyro (2005, p. 14)
– hoje onipresente no bazar mundial das imagens. Aqui se impõe a relação
entre o documentarismo minimalista de Eduardo Coutinho e a semiologia
literária de Roland Barthes, ambos escritores de livros-filmes sem projeto,
bem como a pergunta sobre a crença na representação dos espectadores que
transitam com facilidade extrema entre o real e o ficcional, conforme
Amado: “Há um combate de exigências opostas com as quais se tem de
negociar. O limite dessa negociação é aquela que articula o sentido da
produção documental e seu consumo por espectadores, que se deve pactuar,
como faz Michael Moore, em termos de uma crença. Não só na dimensão
de uma utopia ideológica, mas também no da crença que os espectadores
hoje edificam em torno da representação, enquanto somente ela, a

247
Documentos do presente

representação, permite olhar a barbárie do mundo como algo da ordem do


real” (AMADO, 2005, p. 223). Ou seja, é o (eterno) retorno do mito da
velha estética da representação, de modo similar ao que Süssekind o lê nas
narrativas ficcionais brasileiras.

2.4 Fotografia/Imagem

A câmara clara, o famoso derradeiro texto de Barthes, dedicado à


fotografia, é também uma teoria da representação e da “imagem de si
mesmo”, através da análise da foto esmaecida, única, aurática de sua mãe
quando menina. Este ensaio emblemático mereceu uma revisão crítica
recente em Le destin des images (2003), por Jacques Rancière, como parte
de uma reflexão maior sobre a necessidade de redefinição dos conceitos de
imagem e de estética, a qual inclui a recusa das idéias consagradas de
modernidade e de vanguarda, vistas como pouco esclarecedoras “para se
pensar as novas formas de arte desde o século passado, [ou] as relações do
estético com o político”. (RANCIÈRE, 2003, p. 27).
Em A câmara clara, Barthes procura descobrir o “traço inimitável –
o “noema” – da fotografia enquanto “arte da Pessoa”. No caso do retrato,
que marca as primeiras décadas de sua existência, alguém terá visto,
presenciado o referente em carne-e-osso, viu-o em pessoa. Ça a été et
quelqu’un y a été – “isso foi” e “alguém esteve aí”, o que seria antes o
atestado de que “o que vejo de fato existiu”, e não uma lembrança
nostálgica com a finalidade de restituir qualquer coisa, mesmo porque A
câmara clara fala da foto em termos de Morte e mesmo de Ressurreição,
sem temor de tomá-la como “presença imediata” de ordem metafísica
(BARTHES, 1984, p. 125). Morte porque se trata do “espectro da Foto-
retrato”, ou do tempo obstruído por “essa imagem que produz a Morte ao
querer conservar a vida” (BARTHES, 1984, p. 138). E Ressurreição porque
a fotografia o faz mergulhar “na substância religiosa de que sou forjado”,
levando-o a perguntar: “não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos
da imagem do Cristo impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não
era feita por mão de homem, acheiropoietos?” (BARTHES, 1984, p. 123-
24).
O que permite ao semiólogo de formação sartreano-marxista falar
nestes termos (ou fazer o “elogio do gozo”, conforme mencionado acima)
na última década de sua existência, os anos 1970? Em boa parte aquilo que
ele próprio chamaria de semioclastia, a destruição/desconstrução do signo

248
Jorge Hoffmann Wolff

ao invés de sua decifração obsessiva (como na época das Mitologias e da


Análise estrutural do relato, anos 50 e 60, respectivamente). A nova e
derradeira etapa manifesta-se a partir do ensaio S/Z (1969), sua leitura
contracanônica – e contra si próprio – de um relato de Balzac, o que
também pode ser reconhecido tanto em O prazer do texto quanto na Aula
inaugural, assim como em A câmara clara, livro em que lemos um mea
culpa revelador de “uma espécie de desconforto que sempre me fora
conhecido”:

[...] o de ser um sujeito jogado entre duas linguagens, uma


expressiva, outra crítica; e dentro desta última, entre vários
discursos, os da sociologia, da semiologia e da psicanálise –
mas que, pela insatisfação em que por fim me encontrava em
relação tanto a uns quanto a outros, eu dava testemunho da
única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua
que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema
redutor. Pois toda vez que, tendo recorrido um pouco a
algum, sentia uma linguagem adquirir consistência, e assim
resvalar para a redução e a reprimenda, eu a abandonava
tranqüilamente e procurava em outra parte: punha-me a falar
de outro modo. (BARTHES, 1984, p. 18-19).

Mas os conhecidos deslocamentos de rota em sua longa experiência


de pensador-escritor reduzem-se a dois momentos (que se tocam), segundo
a abordagem crítica de Rancière: o antes e o depois do estruturalismo
cientificista e militante, cujo marco se encontra no programa de abordagem
radical do universo simbólico, a semioclastia, último grande avatar da
deriva teórica de Roland Barthes, abandonado assim, enquanto intelectual
situado no entrelugar da crítica e da criação, ao prazer do texto e ao
trabalho do escritor. Pouco antes de escrever A câmara clara, compunha e
ministrava os cursos de A preparação do romance, em que aproxima a
fotografia, que diz “isso foi”, do haicai, que diz “é isso”. Para ele, “o haicai
se aproxima muito do noema da fotografia” (BARTHES, 1984, p. 119). A
sessão do dia 17 de fevereiro de 1979 contém muitas cifras para o que viria
a ser o breviário de Barthes sobre a fotografia, e especialmente sobre sua
posição teórica e sua visão da idéia de representação através do fotográfico.
A guinada fenomenológica é explicitada no terceiro item de sua lista de
“Paradoxos em torno da Fotografia”:

Tanto para a fotografia como para o cinema, parece que


ainda não pudemos definir a especificidade da imagem

249
Documentos do presente

fotográfica, o efeito próprio que ela possui (contra outras


artes). Não podemos formular seu “noema”: o modo
específico de aparecer, de ser atingido pela visada
noemática, de intencionalidade; esse vocabulário
fenomenológico pode ser justificado pelo fato que, para a
Fenomenologia, a visão é a instância decisiva de
conhecimento. (BARTHES, 1984, p. 145).

Em seguida, Barthes avançaria a sua hipótese, a qual afirma existir


há tempos, embora “nunca explorada a fundo” (o que logo faria): “o noema
da foto deve ser buscado no ‘isso foi’. Para ele, no entanto, o cinematógrafo
permaneceria carente de noema, mesmo porque aquilo que desperta seu
interesse no que diz respeito à imagem é a fotografia, e um certo tipo de
fotografia em especial: a foto envelhecida de sua mãe, a única entre as que
analisa que ao leitor não é dado ver. Diz Barthes: “A fotografia era muito
antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal
deixava ver duas crianças em pé, formando grupo, na extremidade de uma
pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de vidro”
(BARTHES, 1984, p. 101-2).
De fato, para ele, o mundo deveria ser dividido em um antes e um
depois da fotografia, à diferença de Pierre Legendre (crítico dos Cahiers du
Cinéma, citado pelo próprio autor), que o separara em ante e depois do
cinema. E à diferença também – poderíamos acrescentar – de Jacques
Rancière, que veria um antes e um depois da narrativa realista que torna
possível a fotografia, durante a fundação daquilo que chamamos
frouxamente de modernidade e que marca, a seu ver, o advento do “regime
estético das artes”. Segundo Rancière, o que se costuma definir como
“antigo” e “moderno” representa, na verdade, uma vasta simplificação dos
regimes das artes predominantes no Ocidente, que divide em três: o regime
ético (cuja referência era Platão), o regime poético ou representativo (cuja
referência era Aristóteles) e, finalmente, o regime estético, que provoca
uma profunda mudança nas relações entre o visível e o legível. Inaugurado
pela mirada do realismo pictórico e literário no início do séc. XIX, o regime
estético enfim liberaria a arte de qualquer hierarquia em relação a temas ou
gêneros, significando a “ruína do sistema de representação” e abrindo
caminho para o modo de ver disseminado pela descoberta da fotografia.
Paradoxalmente, é a literatura deste mesmo período que Barthes inscreveria
em seu cânone pessoal (Balzac, Chateaubriand, Flaubert), embora
represente e celebre o neovanguardismo estético, desconstruído à sua
maneira por Rancière.

250
Jorge Hoffmann Wolff

Em suas invectivas contra as abordagens que atribuem aos aparatos


técnicos a inauguração de novos modos de perceber o mundo – tendo em A
câmara clara o seu paradigma –, ele lança mão de um conceito de imagem
que ultrapassa a visão indicial representada, entre outros, por Walter
Benjamin, André Bazin ou Vilém Flusser. Embora sejam autores de
estudos fundamentais sobre o assunto, estes tendem a ver na foto “uma
emanação [literal] do referente” (BARTHES, 1984, p. 124), sendo uma
emanação engendrada, portanto, magicamente por um meio de reprodução
mecânica da realidade. Para Rancière (2003, p. 14-15), o conceito de
imagem designa duas coisas diferentes: de um lado, “a relação simples que
produz a semelhança com um original”, e de outro “o jogo de operações
que produz o que nós chamamos de arte: precisamente uma alteração da
semelhança”. Figurativas ou não, posto que não são exclusividade do
visível (“existe o visível que não faz imagem e há imagens que são todas
em palavras”), as imagens para o autor de Le destin des images são
“operações que produzem uma separação, uma dessemelhança”. Sendo
assim, as imagens definem-se melhor e menos esotericamente, segundo ele,
enquanto operações, isto é, enquanto “relações entre um todo e as partes,
entre uma visibilidade e um poder de significação e de afeto que lhe é
associada, entre expectativas e o que as vêm preencher” (RANCIÈRE,
2003, p. 11). Operações estas que não podem ser reduzidas, a seu ver, ao
“isso foi” e ao mero captar do instante inscrito na relação presente em todo
ato fotográfico, que Barthes (1984, p. 21-22) definia como a “experiência
do sujeito olhado e do sujeito que olha”. Cabe lembrar, porém, que a
Fotografia, conforme se lê logo nas primeiras páginas de A câmara clara, é
“sempre invisível: não é ela que vemos” (BARTHES, 1984, p. 16), o que
pode ser considerado como uma forma de separação ou dessemelhanças em
relação ao “isso foi”. Aliás, Barthes (1984, p. 25) reconhece que “foi antes
da Fotografia que os homens mais falaram da visão do duplo”. Esse antes
aparece grifado no original e corresponde precisamente ao tempo em que
Rancière identifica o nascimento de um “novo regime das artes”.

3. Perspectivas

O campo infinito da literatura contém em si as chaves do que


Rancière denomina, como se viu, “regime estético das artes”, quando, no
início do séc. XIX, antes do advento da fotografia, o olhar realista na
pintura e na literatura se disseminaram. Mas somente a partir do emprego
da técnica fotográfica seria possível a invenção do cinema, que criou por

251
Documentos do presente

sua vez novos modos de ver e de lidar com a realidade. São estes, portanto,
os vetores da pesquisa: a literatura como narrativa silenciosa e
supostamente decadente na atualidade, sendo inegável que o público tenha
migrado há já algumas décadas para outros meios, em que, aliás, a literatura
segue circulando e se transformando através de novos suportes e formatos;
e o cinema como seqüência e sintoma do substrato literário e cultural
anterior, o qual igualmente vive seu processo de superação ou auto-
superação por causa das redes digitais de circulação de som e imagem. O
projeto em curso busca pôr em conexão os dois universos através da análise
de seus textos, escritos ou fílmicos, tendo na teoria das imagens como força
o seu ponto de partida analítico e crítico.

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254
A ESTÉTICA DA LINGUAGEM ARTÍSTICA E
MIDIÁTICA: REFLEXÕES E AÇÕES

Jussara Bittencourt de Sá

1. Reflexões iniciais

Neste texto, procuramos delinear alguns aspectos da trajetória de


nossos estudos como professora e pesquisadora do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Linguagem, na “Linha de Pesquisa: Linguagem
e Processos Culturais”.
Destacamos, inicialmente, que nossos estudos visam a reflexões
sobre a estética da linguagem da arte e sobre os meios de comunicação que
a veiculam. Nesse sentido, as pesquisas são direcionadas para as diferentes
manifestações artísticas e o contexto, observando também: o lugar que a
arte ocupa nas sociedades, os mitos que a arte traz à cena, as mídias que a
veiculam e, também, a práxis pedagógica que a didatiza.
A arte representa a vida verossímil ou inverossímil. Ela possui um
duplo poder: expressivo e sugestivo. Pelo primeiro, ela exprime o
inteligível no sensível. É capaz de encarnar uma idéia ou um sentimento, na
matéria, seja esta a tinta, o mármore, as palavras, ou o som.
Em nossa percepção, a obra de arte anuncia-se como ponto de
encontro entre o particular e o universal da experiência humana. Sendo
assim, as obras de arte e, por conseguinte, suas linguagens refletem-se
como produtos culturais de uma época e criação da imaginação ou de uma
ideologia.
Conforme afirma Canclini (1984, p. 8):

Supõe-se que as obras de arte, transcendem as


transformações históricas e as diferenças culturais e, por
isso, estão sempre disponíveis para serem desfrutadas –
como uma linguagem sem fronteiras – por homens de
qualquer época, nação ou classe social para receber sua
“revelação”.
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

Sobre as linguagens artísticas salientamos que estas emergem das


dimensões mais sinuosas e incomensuráveis da subjetividade humana ao
revelar, em suas formas expressivas através da dança, da música, do teatro,
da poesia, das artes plásticas e tantas outras, os meandros mais inefáveis
dos sentimentos, das paixões, dos sonhos, do imponderável, da percepção
intuitiva conjuntamente com a consciência meditativa.
Para Langer (1962, p.97),

A arte desnuda os recônditos mais originários da vida.


Interpela as camadas mais profundas, sutis e enigmáticas do
humano. Com seu espírito de transgressividade as linguagens
de arte subvertem os modelos ortodoxos e cristalizados que
recalcam e interditam as expressões mais originárias,
dionisíacas e afirmadoras da vida em sua abundância e
exuberância primordiais.

De acordo com o autor, a emergência de novos paradigmas


ocorrida nas últimas décadas aponta para novas visões e posturas diante da
vida e do mundo. É a partir dessas reflexões que, na linha de pesquisa
“Linguagem e processos culturais”, procuramos desenvolver nossos
estudos, evidenciando ainda as diferentes estéticas das linguagens artísticas
verbais e não-verbais.
É oportuno salientar ainda que, durante a nossa trajetória no
Mestrado em Ciências da Linguagem, orientamos pesquisas sobre as
linguagens artísticas de âmbitos local e global, em diferentes tempos.
Também coordenamos o Grupo de Pesquisa A estética das linguagens
verbais e não-verbais, e os projetos de Pesquisa Os Artistas e Seus Lugares
e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e
midiática. O olhar para a estética e a identidade das linguagens artísticas
sinaliza nossa percepção para o hibridismo que por elas perpassa.
Sobre o hibridismo, sublinhamos que o apreendemos a partir das
concepções de Homi Bhabha, na medida em que este “valoriza o
hibridismo como elemento constituinte da linguagem e, portanto da
representação” (p. 114). Assim, qualquer tentativa de representação é
híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças.
Observamos ainda sobre o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o
terceiro espaço – o interstício entre significante e significado do qual,
considerando o contexto sócio-histórico e ideológico do usuário da
linguagem (o locus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo.

256
Jussara Bittencourt de Sá

Enfatizamos a construção do significado pela interpretação (ou


ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de
espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência,
homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e
contextualizar o momento da enunciação.
Procuramos, então, ao focalizarmos as estéticas das linguagens
artísticas, observar o cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão
do hibridismo dessas linguagens, como pressupostos relevantes para
também refletirmos sobre nossa identidade.
Nessa perspectiva, a linguagem artística tem sido cada vez mais
compreendida como uma forma de conhecimento fundamental nos
processos de renovação e de transformação dos valores, da cultura. A
presença da arte se diversifica de acordo com as singularidades de cada
momento, com os valores que predominam em cada contexto sócio-
cultural. Logo, estudar as diferentes linguagens artísticas, como
representações das vidas vividas ou pensadas, tem se mostrado
extremamente instigante.

2. Sobre as disssertações

O contexto é um dos elementos dos quais os artistas extraem


estratégias para entrar em relação com os participantes de seus trabalhos,
elaborando o que também se pode denominar de máquinas relacionais, a
partir de sua experiência estética de sua linguagem. Neste sentido,
acentuamos a relevância das pesquisas que direcionam seu foco para as
manifestações artísticas, na medida em que estas desvelam, muitas vezes, a
capacidade interterritorial das estéticas e das identidades, promovendo
cruzamentos, passagens, trocas, contaminações advindas de diferentes
lugares.
Assim sendo, procuramos instigar o desenvolvimento de
dissertações sobre as diferentes manifestações artísticas e sua veiculação,
observando as estéticas dessas linguagens que sinalizam o representar do
imaginário humano, bem como o pensar sobre a arte e sua prática docente.
Na seqüência, apresentamos algumas considerações acerca das
dissertações que orientamos ou que estão em fase de elaboração.

257
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

1) O mito nosso de cada dia: a linguagem utilizada na revista


Capricho na mitificação do jogador Kaká (2005). O objetivo do estudo
desenvolvido por Cláudia Nandi Formentin foi o de apresentar uma análise
estética de matérias que anunciam a ocorrência da formação de mitos,
observando de que forma esta é construída através dos veículos de
comunicação de massa em nossa sociedade. Enfatizamos, no recorte
teórico, a importância das informações que são veiculadas, analisando a
possibilidade de uma conexão com mitos da antigüidade clássica, em
especial o mito de Apolo. Dentre os veículos de comunicação de massa, em
especial, os voltados para os adolescentes, elegemos como objeto de
investigação a revista Capricho. Observamos esta como meio de veiculação
para o estudo dos mitos. Evidenciamos as matérias sobre o jogador Kaká,
(Ricardo Izecson dos Santos Leite), por ter sua imagem amplamente
divulgada pela referida revista, como ícone possível para que se estabeleça
uma articulação com o mito grego Apolo. As teorias apresentadas tornam-
se suportes para a análise das matérias veiculadas pela Revista Capricho,
na qual se procura examinar de que maneira aconteceria a reinscritura dos
mitos da antigüidade em nos nossos dias.
2) Matizes e (pré) conceitos da mulata nas obras: “A escrava
Isaura” e “O Cortiço” (2006). O estudo empreendido por Felisberto
Augusto da Fonseca propôs uma leitura das obras literárias A Escrava
Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Cortiço, de Aluísio Azevedo, tendo
como eixo para reflexão uma investigação dos matizes e do preconceito da
mulata nas referidas obras. Partiu-se, inicialmente, de reflexões sobre a
estética da arte literária, localizando-a e contextualizando-a no período da
edição das obras. A análise estética da linguagem da arte literária destacou
os diferentes matizes e também o preconceito da mulata que aparece
representada pelas personagens Isaura e Rita Baiana, nas respectivas obras.
Procurou-se destacar e avaliar as diferentes abordagens dadas pelos autores
do século XIX. Ao centrar-se nas personagens Isaura e Rita Baiana, esse
estudo tentou trazer à discussão como a linguagem utilizada pelos autores
em seus enredos e diálogos coloca em cena reflexões e desvelamentos do
preconceito racial na sociedade brasileira da segunda metade do século
XIX. Entendemos que tais elementos contribuem para referendar a arte
literária como importante enunciado para a leitura dos tempos e das
sociedades, dentre outros.
3) O Boi-de-mamão vivo (e) na escola: uma leitura do Grupo
Folclórico Beco do Beijo da cidade de Tubarão (2006). A dissertação
elaborada por Miriam Terezinha Lopes Lúcio apresentou uma pesquisa

258
Jussara Bittencourt de Sá

sobre a linguagem da arte do folclore, em especial, o boi-de-mamão a partir


da leitura da performance do Grupo Folclórico Beco do Beijo da cidade de
Tubarão. Procurou-se promover uma análise da estética da linguagem desse
espetáculo, enfatizando as vozes sociais presentes na encenação da vida,
morte e ressurreição do Boi. A estética da linguagem do espetáculo
revelou-se pela inclusão de elementos novos. Evidenciou-se como as
personagens humanas vivem em constante rotação e transformação bem
como os bichos, embora esses últimos permaneçam intactos na sua
essência, ou seja, não se apagam da memória coletiva. O Grupo traz à cena
o mito original, o ritual da morte e ressurreição do Boi. Destacou-se assim
como o Grupo estudado mantém uma forma peculiar, ao promover o
hibridismo estético na montagem e representação o Boi-de-mamão,
recriando ou reinventando a lenda do Bumba-meu-boi em estilo açoriano,
usando uma linguagem própria e, com isso, anunciando outras vozes
sociais. Refletiu-se, ainda, sobre os caminhos que conduzem leitores
/educadores à importância do cultivo, vivência e uso do mito e folclore no
contexto educativo.
4) C’est la vie: La vie en close entre sons, formas e conteúdos
(2007). A proposta de estudo Gutemberg Alves Geraldes Júnior foi a de
analisar as diferentes estéticas da linguagem poética leminskiana presentes
em seu livro La vie en close. Enfatizou-se, no recorte teórico, a importância
de se lançar um olhar sobre as diversas formas de percepção causadas pela
poesia do autor curitibano, como, suas potencialidades sonoras
(melopaicas), imagéticas (fanopaicas) e de conteúdo (logopaicas). O
estudo, em síntese, destacou as estéticas da linguagem verbal e não-verbal
na referida obra. Em sua estrutura, a dissertação apresentou teorias sobre
pós-modernidade, sobre estética destacando o lugar das artes, com foco
especial para o lugar da poesia. Focalizou-se, ainda, o papel da poesia como
processo evolutivo da linguagem.
5) Um estudo sobre o ensino da arte: Proposta Curricular e a
prática docente (2007). A dissertação elaborada por Silésia de Aguiar
Mendes Maciel apresentou um estudo sobre os pressupostos teóricos no
ensino da arte e a práxis docente do ensino fundamental e algumas
sugestões para esta prática. Como aporte teórico recorremos às reflexões
sobre a arte, à historicização do processo de inserção de seu estudo no
sistema educacional brasileiro e aos pressupostos teóricos para seu ensino,
bem como aos aportes da Proposta Curricular de Santa Catarina, de 1998.
A teoria apresentada serviu como eixo articulador/condutor para a análise
dos dados colhidos na pesquisa de campo. Foram selecionados dez

259
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

professores da rede estadual de ensino do município de Criciúma, de


escolas no centro e cinco escolas nos bairros. Procurou-se investigar como
estava acontecendo a prática docente dos professores de artes da rede
estadual de ensino, nas séries do ensino fundamental. Destacou-se também
a relevância da Proposta Curricular de Santa Catarina 1998 para o despertar
dos professores de arte para a importância de seu papel na formação do
cidadão. Observou-se, ainda, a partir das obras do artista Sérgio Honorato,
pesquisado durante os estudos do Projeto de Pesquisa “Os Artistas e Seus
Lugares”, de Criciúma, como se poderia trabalhar com a arte de um artista
do lugar. Salientou-se que o desenvolvimento através do exercício da
imaginação, da auto-expressão, da descoberta e da criação recupera uma
das funções deste ensino, ou seja, a de possibilitar um espaço para novas
experiências perceptivas, propiciadas por uma diversidade de valores,
sentidos e intenções.
6) O artista e o seu lugar: as imagens e as narrativas da mulher
araranguaense nas esculturas de Marta Rocha (2008). A pesquisa efetuada
Sandra Regina de Barros de Souza teve como objetivo verificar quais vozes
sociais do feminino e que aspectos da cultura local são despertados pela
estética da linguagem em obras da artista araranguaense Marta Rocha,
através das narrativas de membros componentes do CIART. A opção por
elaborar esse estudo deu-se durante pesquisas realizadas pelo Projeto “Os
artistas e Seus Lugares”, que possibilitou à aluna a interação com a artista e
suas obras. Procuramos examinar a constituição dessas narrativas sob a
ótica das teorias de gênero, da arte, da história da arte, aspectos teoria da
linguagem de Mikhail Bakhtin e do existencialismo moderno de Jean Paul
Sartre. Demarcou-se, assim, a construção da consciência acerca do
feminino na cultura araranguaense a partir dos elementos do imaginário que
se construiu na percepção de dois grupos mulheres araranguaenses que
fazem parte do CIART. Os dados levantados foram analisados utilizando-se
procedimentos da técnica de grupo e de análise da historia oral. Esta
apontou como as narrativas produzidas pelas componentes do grupo,
instigadas a partir da observação sobre a arte de Marta Rocha, podem
traduzir as histórias das mulheres, seus perfis sociais, trazendo consigo as
vozes sociais do feminino: avó, mãe, filha, neta, sobrinha, tia, amiga,
esposa, namorada, como também o papel profissional e a condição de
tempo e do lugar.
7) Leitura da música popular brasileira: uma proposta para
atividade teórico/prática no ensino de Arte (2008). O estudo empreendido
por Kátia Regina de Souza Pereira Rufino procurou apresentar uma

260
Jussara Bittencourt de Sá

proposta de atividades para a leitura da arte da música, destacando a música


popular brasileira e seus gêneros, no ensino fundamental. O foco teórico da
pesquisa centrou-se na perspectiva da linguagem e da leitura,
empreendendo uma perspectiva da música popular brasileira, observando-a
como articulação da linguagem verbal e não-verbal. A base empírica da
pesquisa-ação desenvolveu-se em uma sala de aula na disciplina de Arte,
em uma 7ª série do ensino fundamental da rede municipal de ensino de
Santa Catarina. A metodologia contou com um período de observação e um
de intervenção, considerado, mais precisamente, um período de
participação ativa. O período de observação possibilitou verificar e
comprovar como ocorre o ensino-aprendizagem de leitura da música na
disciplina de Arte. O período de participação ativa foi contemplado com a
leitura de algumas músicas de diferentes gêneros da música popular
brasileira, seguida de discussões que ofereceram real possibilidade de
construção de sentido durante a leitura-interação do aluno com os textos e
gêneros desse campo da música. Como fechamento da proposta de leitura,
os alunos produziram músicas do gênero rap, um dos gêneros explorados
em sala de aula. A partir da análise, observou-se que a música popular
brasileira, como importante elemento no processo de ensino-aprendizagem
de leitura, mesmo num curto período de tempo, permitiu que os alunos
manifestassem leitura compreensiva dos textos (músicas) propostos, ou
seja, eles demonstraram resposta ativa e, assim, foram além do processo de
decodificação e repetição, no processo de leitura.
8) Dissertações em curso. As dissertação que estão em fase de
escrita são: Um estudo sobre a presença da Estética da linguagem Pós-
Moderna na composição do Programa Bom Dia Litoral, de Leonir Alves;
A estética de Lilith em composições de Rita Lee, de Liomar Vanderlan
Fernandes; e A nona arte: análise dos aspectos estéticos das histórias em
quadrinhos, de Fábio Ballmann.

3. O Grupo de Pesquisa e os Projetos de Pesquisa

Este grupo está diretamente relacionado à linha de pesquisa


Linguagem e processos culturais e procura empreender de forma
abrangente estudos sobre as diferentes estéticas das linguagens verbais e
não-verbais, suscitadas nas manifestações artísticas e nas mídias. São
propostas pesquisas sobre os processos artísticos e midiáticos de âmbitos
local e global, em diferentes tempos, evidenciando seu papel sócio-
histórico. Visa-se ao estudo das interações orais, escritas e visuais como

261
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

elementos constitutivos de práticas culturais. Nessa perspectiva, os objetos


de pesquisa são observados como promovedores das relações/interações
criativas, identitárias e educativas. Do grupo de pesquisa, depreenderam-se
dois projetos de pesquisa que coordenei e coordeno: Os Artistas e Seus
Lugares e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual,
escrita e midiática.

3.1 Os artistas e seus lugares (2004-2007)

O ponto nodal dos estudos do Projeto de Pesquisa “Os Artistas e


Seus Lugares” deu-se através da leitura analítica da representação dos
lugares na produção artística/artesanal, focalizando, em especial, estéticas
das linguagens nas obras. Neste sentido, esse projeto desenvolveu-se a
partir da articulação, da discussão e da reflexão entre o referencial teórico,
obtido pela pesquisa bibliográfica, e pelo material encontrado na pesquisa
de campo. Esta se realizou através do encontro com os artistas/artesãos.
Partimos da concepção de que a arte é uma linguagem de que o
homem necessita para construir um conjunto de atos que transformam a
matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Toda a arte é assim resultado
da produção humana. De acordo com Alfredo Bosi (1989, p.13), a arte é
conhecimento. Logo, para tal acontecimento, ocorreram sensações e
imagens, afetos e idéias, numa palavra, movimentos internos que se forma
em correlação estreita com o mundo sentido, figurado.
Mediante essas reflexões, depreenderam-se muitas atividades de
pesquisa e observação in loco, dentre elas, a visita de estudos à V Bienal do
Mercosul – Porto Alegre – RS, ao Santander Cultural e ao MARGS, ao
Centro Integrado de Cultura – Florianópolis, e de exposições no SESC. O
objetivo da participação dos pesquisadores no evento e nos espaços
culturais fora o de promover momentos nos quais as discussões sobre as
estéticas das linguagens artísticas acontecessem juntamente com a
observação das obras e dos próprios espaços de sua exposição.
O grupo também elaborou o mapeamento de grupos folclóricos,
dos artistas e dos espaços culturais de municípios da microrregião da
Amurel. Estas ações tiveram como objetivo apresentar um panorama da
arte nesses municípios.
O grupo de pesquisa participou do encontro dos artistas plásticos da
região, com os acadêmicos da Academia Tubaronense de Letras. Neste
caso, visou-se à apresentação de palestras pelo grupo, bem como interação
e integração com os artistas e associações.

262
Jussara Bittencourt de Sá

Merecem ser destacadas, dentre as ações durante as atividades de


pesquisa, as visitas aos artistas Willy Zumblick, Sérgio Honorato, Marta
Rocha, Richard Calil Bulos (o Chachá), Flávio Cooker, João Rodrigues e
Vera Sabino. O contato e a interação com os artistas e obras resultaram em
duas dissertações de mestrado, duas de graduação, a autorização das
imagens de suas obras para a capa da Revista Linguagem em (Dis)curso,
além de pôsteres e ensaios que foram apresentados em seminários e
congressos.
Ao longo da trajetória deste projeto de pesquisa, constatamos que
os resultados obtidos anunciavam um significativo efeito multiplicador e
disseminador dos objetivos propostos no projeto. Faz-se relevante registrar
que foi o contato com artistas e suas obras que suscitou, em muitos
pesquisados, o desejo de um maior conhecimento histórico/teórico sobre a
arte.
A atuação dos pesquisadores promoveu o fomento em pesquisas
sobre a arte. Também ocorreram intervenção e interação junto à
comunidade, contribuindo para o aprimoramento, tanto dos conhecimentos
como das interações entre pesquisadores e pesquisados.

3.2 Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual,


escrita e midiática (2007 – 2012)

Centrado na linha de pesquisa “Linguagem e processos culturais”,


o projeto de pesquisa foi elaborado quando ainda estávamos desenvolvendo
o projeto de pesquisa Os Artistas e Seus Lugares.
Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual,
escrita e midiática visa empreender estudos sobre as estéticas das
linguagens das manifestações artístico-culturais, tanto visuais e escritas,
como orais e midiáticas, produzidas na contemporaneidade ou em tempos
passados. Cabe ressaltar que a estética observada na leitura de obras de
artes contribui para a percepção e o entendimento da dinâmica das
linguagens artísticas.
De acordo com Canclini (1984, p. 11):

Em determinada perspectiva pareceria que a linha


demarcatória entre os objetos instrumentais e os artísticos
depende da intervenção do sujeito que percebe; mas, em
outro sentido é evidente que alguns objetos possuem maior

263
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

ducticulidade para suscitar experiências estéticas. A rigor,


ocorre que ambos – o observador e os objetos – estão
determinados por um sistema de convenções que na
distribuição de funções sociais, adjudica, em cada cultura e
em cada período, os atributos de instrumentalidade e os
estéticos, os traços diferenciais e suas combinações
possíveis. “O gosto clássico”.

Percebemos, assim, que os artistas, com suas diferentes idades e


maturidade pessoal, ao criarem suas obras, procuram imaginar e inventar
“formas novas”, com sensibilidade, e que são representações e expressões
do mundo natural e cultural por eles conhecido.
A leitura dessas linguagens deve enunciar como a arte pode suscitar
as nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o
desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades
cognitivas.
Um outro aspecto seria a percepção das migrações e das
identidades que perpassam nessas manifestações. Leva-se em consideração
o fato de que o Brasil se reflete, por sua colonização, como um arquipélago
cultural, possuindo produção artística que desvela a contaminação das
diferentes etnias que formam sua população. Focalizam-se, assim, as
estéticas dessas linguagens, observando cruzamento de fronteiras,
identificação étnica e visão do hibridismo cultural. Conforme Bhabha, a
diversidade que perpassa a cultura pode ser considerada a categoria da
estética comparativa: a diferença cultural é um processo de significação,
através do qual enunciados sobre ou em uma cultura diferenciam,
discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,
aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 1994, p. 34).
Outra peculiaridade que refletiria o hibridismo seria o
atravessamento de fronteiras nacionais. Para Stuart Hall, “a globalização se
refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam
fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações
em novas combinações de espaço – tempo, tornando o mundo, em realidade
e em experiência, mais interconectado” (2000, p. 75). Nesse sentido, vale
pontuar que, em contraponto à homogeneização global, percebemos
também prevalecer o que, conforme Hall, seria a diferença das
especificidades da etnia e da alteridade e, ao invés de se pensar no global
como “substituindo” o local, seria mais acertado pensar numa nova
articulação entre “o global” e “o local” (HALL, 2005, p. 77).

264
Jussara Bittencourt de Sá

Além do hibridismo proveniente das diferentes etnias, dos


deslocamentos das fronteiras, levamos em consideração também as
peculiaridades do hibridismo como enunciação da estética das produções
artísticas desse nosso tempo.
Nossas reflexões consideram as diferentes conceituações desse
tempo. Alguns autores o entendem como pós-modernidade e outros, como
hipermodernidade ou modernidade tardia: uma época onde espaço e tempo
fundem-se numa categórica pluralidade de mundos possíveis, de
ressignificações de conceitos e transformações de paradigmas.
O fato é que este tempo, em sua essência, tem buscado os
deslocamentos e as mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e,
principalmente, do modo como eles mudam. Sendo assim, estudar estéticas
das linguagens das manifestações artístico-culturais, tanto visuais e escritas,
como orais e midiáticas, presentes ou pretéritas, dentre outras, contribuem e
promovem o entrelaçamento dos registros que sinalizam a história das
culturas, seus legados, em que a ocupação e as mudanças dos espaços
geográficos fazem-se importantes à reflexão, tanto do tempo passado, para
o presente, como também ao futuro do presente.

3.1.1 Subprojetos e atividades desenvolvidas

O grupo que participa do projeto de pesquisa Identidades e


Migrações participou do II Encontro de Estudos sobre a imigração alemã:
os Vales dos Rios Braço do Norte e Capivari, apresentando a palestra
intitulada Identidades e Migrações: a mitologia na nostalgia germânica, de
minha autoria e de Fábio Ballmann; e com pôster Germanicidade
brasileira: aspectos da colonização alemã em São Martinho, de minha
autoria e dos mestrandos Cíntia Rosa da Silva, Jeanine da Costa, Fábio
Ballmann, Leonir Alves e Liomar V. Fernandes.
a) Identidades e Migrações: a mitologia na nostalgia germânica. A
palestra proferida por mim e por Fábio Ballmann procurou enfatizar
algumas considerações obtidas a partir do desenvolvimento do projeto de
pesquisa Migrações e identidades: a estética das linguagens oral, visual,
escrita e midiática. Evidenciaram-se as estéticas dessas linguagens,
observando cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão do
hibridismo cultural como pressupostos relevantes para se pensar a nossa
identidade. A pesquisa focalizou os estudos realizados no município de São
Martinho. Ao trazer à cena o município de São Martinho (a 40 quilômetros
de Tubarão), os palestrantes destacaram que é possível descansar nas

265
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

pousadas, usufruir das cachoeiras e principalmente apreciar as obras do


artesão Ademar Feuser. Observaram que num rápido olhar seria possível
perceber a sensibilidade e toda a nostalgia histórica em torno de seu
trabalho. Ele se dedica à madeira há quase 50 anos e, em meio a uma
comunidade mergulhada na cultura germânica e no artesanato, a dica é
prestar atenção às cadeiras criadas em madeira. As criações de Ademar são
carregadas de nostalgia de uma Alemanha deixada para trás, em
decorrência da guerra, e das dificuldades que muitas famílias enfrentaram,
inclusive a dele. E tal qual o legado recebido de seus ascendes, nas cadeiras
de Ademar Feuser, é possível compreender o entrelaçamento do passado
com o futuro, no momento em que essa arte/artifício recebe continuidade
na criatividade/sensibilidade que toma forma pelas mãos de seu filho
Harick Rodolfo Feuser, ainda adolescente. E, para falar do trabalho deste
artesão, um pouco de mitologia permite dar o colorido que a obra merece.
Assim, a região sul, em especial, São Martinho pode se tornar um momento
de cultura e um resgate nostálgico também da germanicidade brasileira
b) O pôster intitulado Germanicidade brasileira: aspectos da
colonização alemã em São Martinho, de nossa autoria e dos mestrandos
Cíntia Rosa da Silva, Jeanine da Costa, Fábio Ballmann, Leonir Alves e
Liomar V. Fernandes, também é resultado de pesquisas do projeto do
PPGCL Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual,
escrita e midiática. Com ênfase aos temas: Preservar é eternizar!, Criar é
preciso! e Recordar é reviver!, os pesquisadores destacaram a arte com
características germânicas de nossa região, em especial, a relevância do
papel de instituições, como Casa da Cultura e o Museu Memorial,
localizadas no município de São Martinho para a promoção da nossa
cultura.

3.2.2 Análise da influência das etnias colonizadoras nos topônimos de


municípios da microrregião da AMUREL

Este estudo faz parte do projeto Identidades e Migrações: a estética


das linguagens oral, escrita, visual e midiática, do Curso de Mestrado do
Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem
como aluna pesquisadora e bolsita Helena Scmidt, do Curso de Letras, sob
minha orientação, e pertence ao grupo de Pesquisas do CNPq/Unisul. Serão
analisados aspectos de colonização nos municípios que compõem a bacia
hidrográfica do rio Tubarão.

266
Jussara Bittencourt de Sá

A microrregião da Amurel apresenta-se, por sua colonização, um


arquipélago cultural, pelas diferentes etnias que formam sua população.
Logo, estudar a toponímia como instrumento fundamental de preservação
da cultura e da identidade local contribui para a valorização histórica dos
costumes, pessoas, eventos e lugares. Através da investigação da influência
das etnias que colonizaram determinadas regiões podem-se observar traços
histórico-culturais que levaram a tais designações de lugares pela
população local. Portanto, considera-se o estudo dos topônimos uma
temática importante para o investigador que pretende conhecer e
compreender a origem das identidades de cada região e suas mudanças ao
logo do tempo.
Entende-se que o registro desta pesquisa tornar-se-á um relevante
documento que a Unisul legará aos municípios investigados e, por
conseguinte, aos estudos sobre a história das etnias, das culturas, seus
legados, as mudanças dos espaços geográficos. Estudar o nome dos lugares
faz-se importante à reflexão tanto do tempo passado, para o presente, como
também ao futuro do presente.
O presente trabalho tem como metodologia norteadora os
pressupostos contidos nas pesquisas: bibliográfica, de campo e
exploratória. Entende-se, conforme Rauen (2006), que a pesquisa
bibliográfica ou de referência consiste na busca informações no acervo
bibliográfico ou referencial da humanidade e, segundo ainda o autor, as
pesquisas de campo e exploratórias adentrarão o objeto de estudo,
explorando-o em todos os perfis delimitados. A pesquisa bibliográfica foi
utilizada para a construção do corpus teórico que dá suporte às análises dos
dados colhidos na pesquisa de campo e exploratória. No momento em que o
pesquisador se lança na investigação de um caso, buscando os
detalhamentos e um aprofundamento dos conteúdos que este caso tem a
elucidar embasados pelos processos da ciência, está efetivamente
realizando os preceitos da pesquisa científica.
Neste sentido, este projeto visa detectar as etnias que colonizaram
municípios da microrregião da Amurel; analisar aspectos culturais das
referidas etnias; investigar a existência de topônimos que revele elementos
culturais das etnias colonizadoras; relatar e documentar o estudo
desenvolvido; apresentar aos municípios envolvidos na pesquisa e à
comunidade acadêmica os resultados da pesquisa.

267
A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações

4. Algumas outras reflexões

O homem aprendeu a importância de se comunicar e, mesmo antes


da escrita, já havia criado um sistema de comunicação através das imagens.
Com o advento da escrita, a linguagem oral passou a ser registrada. A arte,
através de sua linguagem verbal ou não-verbal, vem mudando conceitos,
quebrando paradigmas, estabelecendo novas regras para novas formas de se
observar o mundo.
No fenômeno artístico, percebemos a verdadeira natureza da
realidade: a arte é a condição de um princípio ontológico do ser; é a chave
de acesso à essência do mundo, ou seja, a arte pode ser o caminho mais
original e autêntico para a compreensão da realidade. Sendo assim, estudar
a forma, a estética das linguagens artísticas, nos diversos tempos e lugares,
possibilita-nos adentrar no fascinante da representação humana sobre a vida
real ou imaginada.
No decurso da história da cultura humana, a arte foi e vai tomando
traços específicos, significando, assim, um agir e um fazer mais cuidadoso,
mais primoroso, encharcado de sentimentos. Se o fazer artístico evoca a
relação encantatória do ser humano consigo mesmo e com o cosmos,
estudar este fazer, as linguagens pelas quais se anuncia, pode ensejar
pesquisas singulares, originais, e que estampam os tons dos objetos que se
investigam.
É através desse olhar que procuramos nesses estudos apreender
vestígios da essência das linguagens que investigamos. Nossos estudos não
pretendem “passar por postas abertas, mas sim abrir portas”. Entendemos
que a linguagem artística pode ser um dos fundamentos principais das
sociedades. São elas que nos instigam realizar leituras e/ou releituras do
mundo e, até mesmo, antever novas formas de ler o mundo.

5. Referências

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Jussara Bittencourt de Sá

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ZAMBONI, S. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas:
Autores Associados, 1998

270
SOBRE OS AUTORES

Adair Bonini
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de
Maringá (1992), mestrado (1995) e doutorado (1999) em Lingüística pela
Universidade Federal de Santa Catarina. É professor e coordenador-adjunto
do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina (Unisul), onde é editor da revista Linguagem em
(Dis)curso. Atua principalmente nos seguintes temas: gênero textual,
discurso, texto e ensino de Língua Portuguesa. É co-organizador do livro
Gêneros: teorias, métodos, debates (Parábola, 2005) e do número especial
sobre Gêneros textuais e ensino-aprendizagem da revista Linguagem em
(Dis)curso: (2006). É autor de Gêneros textuais e cognição: um estudo
sobre a organização cognitiva da identidade dos textos (Insular, 2002).

Aldo Litaiff
Possui graduação em Filosofia (1986) e mestrado em Antropologia
Social (1991) pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutorado em
Antropologia cultural pela Universidade de Montreal (1999) e pós-
doutorado em Antropologia pela École des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, França (2005). É professor do curso de mestrado em Ciências da
Linguagem da Unisul e pesquisador do Museu da Universidade Federal de
Santa Catarina. É especialista em: mitologia e ecologia guarani-mbya,
pragmatismo, mitologia e linguagem e comunicação. É autor do livro As
divinas palavras: identidade étnica dos Guarani-mbya (UFSC, 1996).

Antonio Carlos Goncalves dos Santos


Tem graduação em Comunicação pelo Centro Unificado
Profissional, Rio de Janeiro (1978), mestrado (1996) e doutorado (2001)
em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do
curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, editor da revista
Crítica Cultural e tradutor. Atua nos seguintes temas: teoria literária,
literatura, poesia, sociologia e modernidade.
Débora de Carvalho Figueiredo
Possui graduação em Direito (1990), mestrado (1995) e doutorado
(2000) em Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela Universidade
Federal de Santa Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências
da Linguagem da Unisul, onde é editora da Revista Linguagem em
(Dis)curso. Tem experiência na área de lingüística aplicada e ensino de
língua estrangeira, atuando principalmente na área da análise crítica do
discurso. Seus interesses de pesquisa se voltam para questões de gênero,
poder e identidade nos discursos profissionais, midiáticos e jurídicos. É co-
organizadora do livro Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em
outros Contextos (UFSC, 2006) e do número especial de Linguagem em
(Dis)curso dedicado à Análise crítica do discurso.

Eliane Santana Dias Debus


Tem graduação em Letras Português/Inglês pela Fundação
Educacional de Criciúma (1991), mestrado em Literatura pela Universidade
Federal de Santa Catarina (1996) e doutorado em Lingüística e Letras pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001). É
professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul.
Especialista em literatura infantil e juvenil e em ensino e formação de
professores, organizou o livro A literatura infantil e juvenil de língua
portuguesa: leituras do Brasil e d’além-mar (Nova Letra, 2008). Publicou
os livros O medo e seus segredos (Franco, 2008), Festaria de brincança: a
leitura literária na educação infantil (Paulus, 2006) e Monteiro Lobato e o
leitor, esse conhecido (Univali; UFSC, 2004).

Fabio de Carvalho Messa


Possui graduação em Jornalismo pela PUC do Rio Grande do Sul
(1991), em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1993),
e em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005).
Tem mestrado (1997) e doutorado (2002) em Literatura pela Universidade
Federal de Santa Catarina. É professor do Curso de mestrado em Ciências
da Linguagem da Unisul, onde é especialista em comunicação e produção
audiovisual, com ênfase em roteiro e adaptação da literatura para vídeo,
semiologia do cinema, edição e redação jornalística, semântica geral e
argumentativa, teoria da comunicação e retórica da ficção. É autor do livro
O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea
(Unisul, 2008).

272
Fabio Jose Rauen
Possui graduação em Letras pela Fundação Educacional do Norte
Catarinense (1986), mestrado (1990) e doutorado (1996) em Lingüística
pela Universidade Federal de Santa Catarina, e pós-doutorado em Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). É
professor e coordenador do curso de mestrado em Ciências da Linguagem
da Unisul. Atua principalmente nos seguintes temas: pragmática, cognição,
teoria da relevância, metodologia da pesquisa e metodologia científica. É
autor dos livros Roteiros de Pesquisa (Nova Era, 2006), Roteiros de
investigação científica (Unisul, 2002) e Elementos de iniciação à pesquisa
(Nova Era, 1999) e co-organizador do número especial de Linguagem em
(Dis)curso dedicado à Teoria da relevância.

Fernando Simao Vugman


Possui graduação em Ciências Biológicas modalidade médica pela
Universidade de São Paulo (1982), mestrado (1995) e doutorado (2001) em
Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela Universidade Federal de
Santa Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da
Linguagem da Unisul, onde é editor da revista Crítica Cultural. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em literatura e cinema, atuando
principalmente nos seguintes temas: o cinema hollywoodiano, mitos
modernos, o cinema brasileiro, além de sua produção como tradutor na área
de ciências humanas e médicas.

Jorge Hoffmann Wolff


Possui graduação em Filosofia (1993), e mestrado (1997) e
doutorado (2002) em Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da
Unisul, onde também atua como editor da revista Crítica Cultural. Tem
experiência nas áreas de Letras e Comunicação, com ênfase em teoria
literária e teoria da comunicação, atuando principalmente nos seguintes
temas: crítica cultural e crítica literária, teoria da modernidade e teoria da
comunicação. É autor do livro A viagem como metáfora produtiva (Letras
Contemporâneas, 1998).

273
Jussara Bittencourt de Sá
Possui graduação em Letras, pela Universidade do Sul de Santa
Catarina (1985), Especialização em Literatura (1990), mestrado (2000) e
doutorado (2005) em Letras/Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da
Unisul, além de atuar na Secretaria Municipal da Educação, Cultura e
Esportes, de Tubarão, em projetos educacionais e culturais. Orienta
pesquisas nas áreas literatura, artes visuais e mídias. Membro da Academia
Tubaronense de Letras. É autora do livro Cazuza no vídeo O tempo não
pára (Unisul, 2006) e organizadora dos livros Jardim das Letras (Humaitá,
2007), Palavras Contadas: memórias da cultura oral do povo de Tubarão
(Copiart, 2004), Momento literário: poesia e prosa (Copiart, 2002), Museu
Willy Zumblick: a cultura desperta sentimentos (Copiart, 2000).

Marci Fileti Martins


Possui graduação em Letras (1992) e mestrado em Lingüística
(1996) pela Universidade Federal de Santa Catarina, e doutorado em
Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (2003). É professora
do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem
experiência na área de Lingüística, atuando principalmente com os
seguintes temas: linguagem e discurso com ênfase no discurso de
divulgação científica e discurso midiático, assim como com questões
relacionadas às línguas indígenas, especificamente, o Guarani Mbyá.

Maria Ester Wollstein Moritz


Tem graduação em Letras Português/Inglês (1994), mestrado
(1999) e doutorado (2006) em Letras (Inglês e Literatura Correspondente)
pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do curso de
mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em lingüística aplicada, atuando principalmente nos
seguintes temas: gêneros textuais, retórica contrastiva, inglês e gramática
sistêmico-funcional.

274
Maria Marta Furlanetto
Possui graduação em Letras neolatinas pela Universidade Federal
de Santa Catarina (1967), mestrado em Lingüística pela Universidade
Estadual de Campinas (1975) e doutorado em Lingüística aplicada pela
Universidade de Paris VIII (1976). É professora do curso de mestrado em
Ciências da Linguagem da Unisul, onde atua como editora da revista
Linguagem em (Dis)curso. Tem experiência na área de Lingüística, com
ênfase em lingüística aplicada, atuando principalmente nos seguintes
campos: discurso, educação, língua portuguesa e semântica. É co-
organizadora do livro Foucault e a autoria (Insular, 2006) e do número
especial de Linguagem em (Dis)curso sobre Gêneros textuais e ensino-
aprendizagem (2006).

Mariléia Silva dos Reis


Tem graduação em Letras (1982) pela Unisul, mestrado (1997) e
doutorado (2003) em Lingüística pela Universidade Federal de Santa
Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da
Unisul. Tem experiência na área de lingüística aplicada ao ensino de
português, nos seus aspectos funcionais, cognitivos e sociais. Atualmente,
trabalha a alfabetização com e para o letramento, a partir da aprendizagem
neuronial para as práticas sociais de leitura e escrita.

Rosangela Morello
Possui graduação em Letras: língua e literatura pela Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Colatina (1985), mestrado (1995) e
doutorado (2001) em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas,
e doutorado pela Université Paris VII (1998). É professora do curso de
mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Coordena o projeto de
pesquisa e documentário Fronteira das Relações: entre línguas e culturas
(CNPq) e atua em outros projetos, entre os quais o Programa escolas
bilíngües de fronteira (MEC Brasil/Argentina). Atua nas áreas da educação
e da cultura, com enfoque nas questões políticas, em especial, políticas
lingüísticas. É organizadora do livro Giros na cidade (Unicamp, 2004).

275
Sandro Braga
Possui graduação em Jornalismo (1998), mestrado (2001) e
doutorado (2007) em Lingüística pela Universidade Federal de Santa
Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da
Unisul, atuando em pesquisas que envolvem práticas discursivas em
processos de leitura, bem como questões relacionadas à identidade e à
modernidade.

Solange Maria Leda Gallo


Possui graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (1978), mestrado (1989) e doutorado (1994) em Lingüística
pela Universidade Estadual de Campinas e pelo Collège International de
Philosophie de Paris (1992). É professora do curso de mestrado em
Ciências da Linguagem da Unisul e colaboradora de projetos da
Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de
Lingüística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando principalmente
em temas como: discurso, autoria, escrita, discurso pedagógico e
divulgação de ciência. É autora do livro Discurso da escrita e ensino
(Unicamp, 1995).

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COLEÇÃO LINGUAGENS

A coleção Linguagens destina-se a estudos da linguagem


específicos do campo do texto e do discurso que, por sua relevância,
mereçam ser divulgados na forma de livros ou coletâneas (com temas
selecionados) que podem ser organizadas alternadamente por pesquisadores
diversos. A comissão editorial, tentando refletir as necessidades e
conveniências do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem,
e considerando a política de pesquisa e divulgação da Unisul, pretende dar
cobertura, em sua etapa inicial, a trabalhos de pesquisa de seus professores,
com volume suficiente para compor obra individual ou em co-autoria.
Também propõe a publicar, atendidos critérios de qualificação, trabalhos de
conclusão de curso recomendados em banca; material acadêmico
(comunicações, palestras, conferências) produzido e aceito para seminários
de caráter especial, encontros, jornadas, etc. de interesse da Instituição.

Livros publicados:

O contexto refletido: vozes sobrepostas de um diálogo (2007), de


Ingo Voese;
O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção
contemporânea (2008), de Fábio de Carvalho Messa.
A literatura infantil e juvenil de língua portuguesa: leituras do
Brasil e d’além-mar (2008), organizada por Eliane Santana Dias Debus.
Rua Governador Jorge Lacerda, 1809 – fundos
Bairro da Velha – Blumenau – SC
Fone 47 3325-5789 – www.novaletra.com.br

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