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O MEDO E A MORTE
UMA CONVERSA ENTRE ELIAS CANETTI E THEODOR W. ADORNO
ADORNO — Eu sei que frequentemente o senhor se distancia muito de Este encontro teve lugar
em março de 1962. A tra-
Freud, e que mantém posições críticas muito duras em relação a ele. Mas dução foi feita a partir da
versão publicada na revis-
não há dúvida de que o senhor está de acordo com ele em uma questão ta valenciana Debats nº
17, de setembro de 1986.
de método, que é a seguinte: Freud salientou com insistência — sobretu-
do na época em que a psicanálise se achava ainda em fase de formação,
quando ainda não havia se constituído totalmente — que não tinha de ma-
neira nenhuma intenção de contestar ou rechaçar os resultados de outras
ciências consolidadas, mas simplesmente queria acrescentar algo que ha-
via sido esquecido por elas. E para Freud os motivos desse esquecimento
são algo muito essencial, uma espécie de caráter-chave para a vida coletiva
do homem, precisamente como no seu caso.
Creio que o senhor pode explicar isso perfeitamente, dada a impor-
tância central que o problema da morte assume em sua obra, assim como
em muitos outros trabalhos antropológicos, em sentido amplo, de nossos
dias. Poderia fazê-lo precisamente com a complexidade da morte — se é
que se pode falar de maneira tão empolada de uma coisa tão elementar
—, entre outras razões para dar a nossos ouvintes uma idéia, um modelo,
do que significa efetivamente esse "esquecimento", a que momentos —
na experiência da morte — o senhor atribui um valor tão grande. Assim
se poderá observar a fecundidade do método e perceberemos que aqui
não só se discutem coisas sobre as quais, por outro lado, se reflete pouco,
mas também que a mesma naturalidade com a qual esses momentos são
aceitos contém algo perigoso. Algo que, a partir do espírito do Iluminis-
mo, o senhor quer mitigar, tornando-o consciente.
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nação. E o que eu queria lhe perguntar agora é algo realmente muito sim-
ples; algo que de certo modo também seria necessário indagar a propósito
da teoria da sociedade orientada psicanaliticamente, quer dizer, se o se-
nhor acredita que esses símbolos desempenham efetivamente um papel-
chave na problemática da sociedade contemporânea — que interessa ao
senhor, como a mim — ou se ao contrário as massas reais, concretas, fa-
lando despretensiosamente, a extraordinária pressão exercida por um nú-
mero enorme de pessoas (mesmo que a instituição da sociedade facilite
e ao mesmo tempo complique potencialmente a conservação da própria
existência) —, se portanto essa pressão das massas reais sobre a formação
da vontade política não é mais importante, para a sociedade atual, do que
essas coisas imaginárias, em um sentido mais amplo social-psicológicas,
às quais o senhor se referiu.
A esse respeito posso simplesmente lembrar que se observou que
mesmo movimentos que aparentemente eram ditaduras absolutas e nos
quais se havia eliminado qualquer consideração pela vontade popular —
como o fascismo e o nacional-socialismo — também possuíam sempre,
em forma latente, o que o sociólogo Arkadi Gurland chamou caráter de
compromisso. Quer dizer que até nessas formas de poder tirânicas para
as massas continuou a se fazer valer constantemente a consideração dos
interesses reais das massas, das estruturas reais dos interesses e de sua exis-
tência real, mesmo que de maneira solapada. E o que me interessa agora
de verdade, e sobre isso eu gostaria que o senhor dissesse ainda alguma
coisa, é: que valor o senhor atribui a esse peso real da massa em relação
ao campo do simbólico?
Canetti — Sim, naturalmente eu diria que o valor, a importância das mas-
sas reais é incomparavelmente maior. Não duvidaria sequer por um segun-
do, chegaria inclusive a dizer que as ditaduras que nós vivemos se compu-
nham completamente de massas, que sem o crescimento das massas, que
é particularmente importante, e sem a constante e artificial mobilização de
massas cada vez maiores, o poder das ditaduras seria absolutamente incon-
cebível. Esse é um dado real do qual parti para minha investigação. Uma
pessoa, um contemporâneo que viveu os acontecimentos dos últimos cin-
quenta anos a partir do estouro da I Guerra Mundial — uma pessoa que
portanto viveu a guerra, depois revoluções, inflações e depois a ditadura
fascista — muito provavelmente sentiu acima de tudo, sob o efeito dessas
coisas, a necessidade de se confrontar com o problema das massas. Lamen-
taria profundamente que o fato de haver levado em conta também outros
aspectos da massa — no curso de uma investigação que durou anos — pu-
desse induzir alguém a pensar que a real importância das massas não é pa-
ra mim o fenômeno decisivo e absolutamente importante.
Adorno — Isso me parece ter importância fundamental para uma correta
compreensão de seus propósitos. Se eu mesmo tivesse que emitir um juí-
zo teórico a esse respeito, então seria uma espécie de mediação, mas não
no sentido de compromisso, muito mais no sentido em que o conceito
kkkkkkkkkkkkk
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das instituições entre as quais o homem viveu e vive ainda hoje, tudo que
aparece de novo no horizonte, inclusive o mais distante, é ao mesmo tem-
po uma ameaça para a existência de todos os outros. Eu diria que essa am-
bivalência não tem só motivos psicológicos, mas também motivos reais,
mesmo que se encontrem ainda tão distantes.
Mas a esse respeito acho que posso voltar a um detalhe que, em sua
teoria do crescimento, me pareceu muito interessante, seja qual for o des-
tino dessa controvérsia. Em certo momento de seu livro o senhor sustenta
que hoje a produção, a multiplicação de bens, se converteu em uma espé-
cie de fim em si mesmo, ou melhor, como eu diria, foi fetichizada. Pois
bem, do ponto de vista da teoria econômica da sociedade, poder-se-iam
aduzir muitos motivos racionais e pseudo-racionais para explicar como se
chegou a isso: nas condições atuais, o aparato produtivo, e com ele o con-
junto das relações de produção, só pode se manter funcionando se procu-
rar um círculo sempre renovado de compradores de produtos: precisa-
mente aquela extraordinária inversão entre principal e secundário pela qual
os homens, para os quais se supõe que existe tudo, são simplesmente des-
locados pela máquina que eles mesmos construíram.
Nesse ponto sua teoria, não obstante, cumpre uma excelente fun-
ção: porque presumivelmente não se poderia compreender totalmente co-
mo foi possível prosperar em toda a Terra esse culto à produção pela pro-
dução, sem nenhuma diferença entre sistemas políticos, se não encontras-
se também uma extraordinária acolhida na subjetividade dos homens, em
seu inconsciente, em toda sua herança arcaica. Ao contrário, se deveria sim-
plesmente eliminar a objeção a por que é necessário produzir cada vez
mais, dado que o que se produz na realidade basta e sobra para satisfazer
nossas necessidades. Que essa pergunta de fato não se coloque, me parece
que vem a significar que aqui o aparato produtivo mobiliza enormes re-
cursos libidinais aos quais pode recorrer para sua constante, e também mui-
to problemática, difusão entre as massas. É por isso que eu considero esse
ponto de vista, quando menos, extremamente fecundo, embora eu não es-
teja propenso a colocar essa pulsão de crescimento ou vontade de cresci-
mento tão em nível de princípio como o senhor faz.
Agora me permito voltar mais uma vez à pergunta que lhe coloquei
antes e na qual o senhor até agora não se deteve; a pergunta sobre as dife-
renças entre sua abordagem e suas teorias sobre a massa e as de Le Bon
e Freud, que são também muito conhecidas — em geral a fecundidade de
uma teoria reside essencialmente nas diferenças mínimas pelas quais se se-
para de teorias contíguas.
Canetti — Talvez o senhor permita que eu sublinhe sobretudo a diferença
entre a teoria de Freud e a minha, porque eu acho...
Adorno — A de Le Bon não é uma verdadeira teoria, é mais uma descri-
ção. Uma descrição de um fenômeno relativamente restrito. Quero dizer,
as massas que ele descreveu na realidade são só as massas que surgem em
situações muito determinadas, como os incêndios e outras ocasiões simi-
kaakmakmkama
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lares, e que naturalmente não se pode dizer que sejam protótipos para o
conceito de massa em geral. Eu também acho que é melhor falar só de
Freud.
Canetti — No que se refere a Freud, é preciso dizer algumas coisas: Freud
fala de duas massas concretas que ele dá como exemplo, uma é a igreja
e a outra é o exército. O fato de que Freud escolha dois grupos — vamos
chamá-los assim — hierarquicamente articulados para explicar sua própria
teoria da massa me parece já uma característica muito particular. Eu real-
mente não considero as massas como algo hierarquicamente articulado.
A meu ver, o exército não é totalmente uma massa. O exército é uma reu-
nião de pessoas que são mantidas juntas através de uma determinada es-
trutura de mando precisamente para que não se convertam em massa. Em
um exército é extremamente importante que através de uma ordem cinco
homens possam ser divididos e trezentos utilizados em qualquer lugar co-
mo uma unidade. O exército é divisível, a qualquer momento. Às vezes,
em determinados momentos, no momento da retirada ou de um ataque
particularmente violento, pode se converter em massa; mas em princípio,
a meu ver, o exército não é totalmente massa. Portanto é já muito significa-
tivo que Freud explique sua teoria utilizando o exército. Outra coisa que
eu poderia destacar como diferença importante é que Freud na realidade
só fala de massa que tem um chefe. Freud vê sempre um indivíduo que
as massas têm como ponto de referência.
Adorno — Naturalmente isso está relacionado com a teoria do progenitor,
do pai das hordas.
Canetti — Mas também há massas, e acho que aqui o senhor estará de acor-
do comigo, totalmente distintas: por exemplo uma massa em fuga. Algu-
mas pessoas são inesperadamente ameaçadas em algum lugar...
Adorno — Essas Freud as concebe como decomposição da massa, em to-
tal coerência com seu ponto de vista.
Canetti — Não, a meu ver é preciso distinguir entre massa em fuga e massa
tomada pelo pânico. (Adorno — Sim, a massa tomada pelo pânico.) A mas-
sa em fuga se encontra ainda em uma condição de massa, como em uma
manada em fuga, quando todos escapam juntos. O pânico é... (Adorno —
...uma desintegração) uma massa indo aos pedaços, quando cada indiví-
duo tenta simplesmente salvar sua própria vida. A massa em fuga, que não
está ainda tomada pelo pânico, que é ainda uma unidade, não tem um che-
fe. Tem uma direção, que é: longe do perigo! Não obstante apresenta as-
pectos de massa muito pronunciados, que podem ser explicados detalha-
damente e que são muito importantes. Também creio que a massa subleva-
da nem sempre tem um chefe. O senhor objetará, com razão, que as mas-
sas sublevadas são muito freqüentemente instigadas por determinados
demagogos...
Adorno — Sobretudo na fase histórica sempre foi assim, as massas suble-
vadas não eram espontâneas e sim manipuladas. Era assim já durante o po-
grom das Cruzadas.
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Canetti — Está absolutamente certo. Entretanto creio que existe uma mas-
sa sublevada que precede e se situa além dessa massa dirigida por um che-
fe, referida a um chefe. Além do mais há outros casos. O senhor recordará
que também descrevo a massa festiva. (Adorno — Sim.) Esse é seguramen-
te um caso que não tem nada a ver com um chefe. Aqui se trata de uma
reunião de pessoas e de uma grande quantidade de produtos que elas que-
rem gozar juntas, em um estado de excitação e de alegria. Aqui tudo se
move desordenadamente; aqui nem sequer se fala já de uma direção, e o
tema do chefe não se coloca. Creio que o conceito de massa em Freud
depende demais do de Le Bon.
Adorno — Freud o tomou como referência. Na realidade é um comentário
ou uma interpretação, uma interpretação genérica da fenomenologia da mas-
sa de Le Bon.
Canetti — Agora eu teria ainda alguma coisa a dizer: quando se pensa nes-
se caso limitado de massa, tal como o explica Freud segundo a representa-
ção de Le Bon, também é preciso fazer outras objeções. A mim interessa
sobretudo o conceito de identificação. Considero esse conceito não total-
mente ponderado, não suficientemente preciso, não completamente cla-
ro. Em muitas passagens de sua obra, quando fala de identificação, Freud
diz que se trata de um modelo, que a criança por exemplo se identifica
com o pai e queria ser precisamente como o pai. O pai é o modelo. Segu-
ramente isso está certo. Mas o que acontece realmente nessa relação com
o modelo ainda não foi descrito com precisão. Com certeza o senhor se
surpreendeu um pouco pelo fato de que uma parte de meu livro seja dedi-
cada aos problemas da metamorfose. O segundo volume concederá uma
importância ainda maior a esse tema. Eu me impus verdadeiramente a ta-
refa de estudar desde o princípio todos os aspectos da metamorfose, de
maneira que ao final possa estabelecer o que é realmente um modelo, o
que acontece realmente entre o modelo e quem assume um modelo. Tal-
vez só então possamos ter conceitos mais claros da identificação. Enquan-
to isso não acontecer, estaria mais propenso a evitar o conceito de identifi-
cação. Ao longo de toda a minha descrição da massa o senhor não encon-
trará nunca nenhuma referência a ele. Trato de prescindir absolutamente
dele. Só citei alguns pontos, também há outros.
Adorno — Essa crítica me parece extraordinariamente fecunda e justa em
muitos aspectos. De fato, nesse ponto, precisamente por causa de sua ten-
dência fundamental a substituir a teoria da sociedade por uma psicologia
individual ampliada para a coletividade, Freud pensa continuamente nos
quanta fundamentais (Grundquanten), invariantes e invariáveis, do incons-
ciente, omitindo modificações históricas essenciais. Então sua psicologia
social fica um pouco abstrata. Portanto, eu subscreveria plenamente que
exército e igreja não podem de nenhuma maneira ser incluídos no concei-
to de massa, que talvez sejam mais reações a ele, nas quais esse momento
arcaico de massa, que Freud tinha presente, comparece também como mo-
mento, mas vem essencialmente negado e dominado precisamente pelos
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