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Vaz, N & Faria, A.M.C. Goiaba, Goiabeira. In: Guia Incompleto de Imunobiologia.

Como se o organismo importasse. Belo Horizonte: COOPMED, p.


 
Pai: Há muito tempo penso em lhe contar uma história chamada assim: ”Goiaba,
goiabeira”.
Filha: Seria melhor “Goiaba, goiabada”.
P: Não, esse título seria o avesso do que eu queria dizer. Eu queria dizer ”goiaba” do
verbo “goiabar”. E a goiabada em que você está pensando não é do verbo goiabar.
Quer dizer, é, mas muito indiretamente.
F: Mas eu gosto muito de goiabada e nunca ouvi falar neste verbo “goiabar”. Foi você
quem inventou?
P: Foi. Mas é um verbo muito necessário. A gente só deve inventar palavras quando
elas forem muito necessárias, indispensáveis mesmo.
F: E como se conjuga esse verbo “goiabar”? Eu goiabo, tu goiabas…
P: Não, não, só goiabeiras goiabam. Pra goiabar, você tem que nascer goiabeira e
depois usar à vontade duas coisas que o planeta tem (ou tinha) de sobra: luz e tempo.
E uma chuvinha aqui, outra ali.
F: Luz e tempo? Pai pára de brincadeira.
P: Eu nunca fui tão sério. Você pode ver uma goiabeira goiabando. É só olhar pra ela.
Um dia, eu olhei e vi.
F: E como é que ela fazia para goiabar?
P: Quer dizer, existia como uma goiabeira.
F: “Goiabar” é a mesma coisa que “ser uma goiabeira”?
P: É ser assim como uma goiabeira, do jeitinho dela.
F: Quer dizer que eu posso ser… quer dizer, fazer de conta que eu sou uma goiabeira e
aí eu estaria “goiabando”?
P: Humm…vejamos. O que é que você faria?
F: Deixa ver. Eu balançaria com o vento, assim, e enfiaria minhas raízes na terra preta,
assim, e ia sempre crescendo brotinhos bem verdinhos, assim, e dava uma sombra
bem escura, mas, principalmente, eu dava muita goiaba: pros passarinhos e pras
mosquinhas, pras crianças e pra Mamãe fazer goiabada. Não é assim?
P: É. Também é. Achei seu jeito de goiabar muito bonito. Mas me conte mais: como é
que você pensou nisto?
F: Bem, eu pensei: a goiabeira existe pra dar sombra, pra ser verde, pra dar goiabas –
pros passarinhos e mosquinhas e pra gente fazer goiabada …
P: Não, não é assim. A goiabeira apenas goiaba.
F: Não, Pai. Ela faz muito mais do que dar goiaba. Ela…
P: Eu não estou dizendo que ela dá goiabas. Estou dizendo que ela “goiaba”, do verbo
goiabar.
F: Pai, você está brincando com as palavras de novo e você mesmo me disseque a
gente não deve inventar palavras – a não ser que seja muito, muito, muito necessário
– como é mesmo? – in-dis-pen-sá-vel!
P: Eu sei, eu sei. Agora é indispensável.
F: Por que, Pai?P: Porque a goiabeira não existe pra nada. Quando eu digo que ela dá
goiabas, dá sombra, dá verde, eu estou confundindo o que a goiabeira faz com o que
outras criaturas fazem dela ou com ela; estou confundindo o que ela faz com o que ela
é.
F: E o que é ela, Pai?
P: Eu já lhe disse: uma goiabeira é uma máquina de goiabar.
F: Não, Pai. Você não disse isso! E se dissesse, eu ia ficar muito triste. Chamar uma
goiabeira, tão verdinha, de máquina! Puxa, Pai, você…
P: Desculpe, não estou me referindo ás máquinas de vidro e metal. Escute, você já
encontrou uma goiabeira completamente sozinha no mato?
F: Já. Uma vez no sítio da tia Inez, eu passei lá por trás, onde ninguém vai e achei uma
goiabeira enorme, carregadinha e….
P: Já sei, você se encheu de goiaba. Foi, comi à bessa, trouxe uma porção pra casa…e
Mamãe fez goiabada. Você lembra?
P: É possível. Mas, me conte: como é que estava esta goiabeira que você encontrou no
mato?
F: Ela estava assim perto do barranco…
P: O que é que ela estava fazendo?
F: Ora, Pai, o que é que uma goiabeira pode fazer? Ela fica lá, plantada, sei
lá,balançando com o vento e esperando a chuva…
P: …e crescendo as raízes e dando novos brotos verdinhos …
F: …e dando goiaba! Tinha muita goiaba madura, grandona assim, amarelinha!
P: E tinha goiaba verde?
F: Tinha muita – mas essas eu não como porque dá dor de barriga.
P: Eu sei. E tinha goiaba no chão, podre, preta.
F: Pai, tinha sim. Mas estas a gente nem olha.
P: A gente não, mas tem muito bichinho que gosta: mosquinha, minhoca,
passsarinho…mesmo a própria goiabeira, não é?
F: A própria goiabeira? Como é isso, Pai?
P: A goiabeira usa as goiabas que ela produz de novo, como uma espécie de adubo, pra
crescer. Você não viu um monte de goiabas podres no chão e algumas já bem escuras
e pretas…
F: … e cheia de bichinho de goiaba…
P: É, cheia de bichinho sim, mas uma boa parte daquelas goiabas não são os bichinhos
que aproveitam: é a própria goiabeira.
F: Goiabeira come goiaba, Pai?
P: Não, não come. Mas aproveita de novo uma boa parte das goiabas que caem e não
são aproveitadas por passarinhos e bichinhos e…
F: …minhocas.
P: É, minhocas.
F: É por isto que você diz que a goiabeira “goiaba”? “Goiabar” é isto? Quer dizer:
aproveitar as goiabas que caem no chão?
P: Também é isso. Mas você mesmo disse que a goiabeira dá sombra e dá flores – você
esqueceu das flores – dá goiaba…
F: Pai, você mesmo disse que não é assim!
P: Eu só disse que não devemos confundir o que a goiabeira. Faz com o que ela é.
F: E os passarinhos, Pai? Passarinhos são máquinas de passarinhar? São, não é?
P: São.
F: Eu entendo o que você quer dizer, Você quer dizer que se a goiabeira não
“goiabasse”, não aproveitasse as goiabas do chão…e a luz e o tempo e não desse raízes
e brotos e não crescesse e não fizesse sombra…não serviria de nada nem para os
passarinhos e os bichinhos…Se ela não goiabasse, deixava de ser goiabeira. Morria. Pai,
da próxima vez que eu chegar perto de uma goiabeira toda goiabada, eu vou falar bem
baixinho prá ela: “Goiabando aí, hein!”.

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