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Tema:

Consumo
DE LHO NA IMAGEM

Português: Linguagens — William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

Mitos, de Andy Warhol.

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1. Andy Warhol (1930-87) foi um artista americano que ficou conhecido pelo uso especial que fazia
da serigrafia, uma técnica que consiste em repetir várias vezes uma ou mais imagens. Muitas de
suas obras são painéis criados a partir de fotografias de pessoas conhecidas, como, por exemplo,
a atriz Marilyn Monroe e o cantor Elvis Presley.
Observe a imagem reproduzida: quais dessas pessoas ou personagens você reconhece?

2. O quadro se intitula Mitos, porque reúne alguns ídolos, isto é, artistas e personagens amados por
muita gente.
a) De que cultura fazem parte esses ídolos?
b) Quais são os meios de comunicação que difundem esses mitos no mundo inteiro?

3. A tela é formada por cem fotografias: dez na vertical e dez na horizontal. A justaposição de fotos
forma tiras, que podem ser vistas tanto vertical quanto horizontal e transversalmente.
a) Que artes visuais estão relacionadas com tiras ou sequências de imagens repetidas?
b) Destaque do painel ao menos uma personagem relacionada a cada uma dessas artes visuais.
c) Você já viu o negativo de um filme? Já notou que, nele, aquilo que é branco fica preto, e vice-
versa? Indique uma das tiras verticais que sugerem a foto e o seu negativo, ao mesmo tempo.
d) Olhe o quadro na transversal, partindo do ângulo esquerdo inferior até chegar ao ângulo oposto.
Em seguida, olhe qualquer sequência horizontal, da esquerda para a direita. São iguais?

4. Algumas das personagens da tela pertencem ao mundo do cinema. O cinema apresenta certos
gêneros, como o drama, o suspense, a comédia, o desenho e a aventura. Greta Garbo, por exem-
plo, fez dramas. Identifique ao menos uma personagem de cada um dos outros gêneros citados.

5. Andy Warhol criava suas obras a partir de objetos de grande consumo social: produtos enlatados,
embalagens de produtos de limpeza, histórias em quadrinhos, etc. Por esse motivo, suas obras
são vistas como uma crítica à sociedade de consumo, isto é, uma sociedade em que o maior
prazer é consumir bens como carros, televisão, certos tipos de alimentos, etc.
a) Grande parte das pessoas e personagens fotografadas pertencem ao cinema e à música. Você
acha que essas artes podem virar objetos de consumo? Por quê?
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b) Papai Noel representa o Natal. Ele também pode estar relacionado ao consumo? Por quê?

6. Se você olhar a tela da esquerda para a direita, depois da direita para a esquer-
da, e depois pelas transversais (partindo dos ângulos), notará que no quinto
quadrinho sempre figuram ou o Tio Sam ou o Mickey. Saiba quem são eles:
• Tio Sam é conhecido desde 1917, quando, durante a Primeira Guerra, o
governo norte-americano fez uma campanha de alistamento militar. Ele
representa, portanto, os Estados Unidos.
• Mickey, personagem de Walt Disney, é o representante da “indústria da
diversão”, do cinema.
Levando em conta essas informações, identifique as afirmações corretas:
a) Tio Sam e Mickey representam os principais heróis ou mitos da cultura
norte-americana. Tio Sam

b) O quadro de Warhol sugere que, nos Estados Unidos, toda a cultura acaba se transformando
em produto de consumo e tudo se vende: espírito natalino, ratos, bruxas e a própria arte.
c) Mickey e Tio Sam, centralizando o quadro, sugerem uma crítica do autor à indústria cultural
norte-americana, que ultrapassa as fronteiras dos Estados Unidos e atinge o mundo inteiro.
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Tema:
Consumo
ESTUDO DO TEXTO

O estranho procedimento de dona Dolores


Começou na mesa do almoço. A família estava comendo — pai, mãe, filho e filha — e de repente
a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais
gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia
ninguém.
— O que é isso, Dolores?
— Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e
dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.
— Acho que a mamãe pirou de vez.
— Brincadeira dela...
A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.
— Adivinhem o que tem de sobremesa?

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Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca
fora assim.
— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. — Gelatina Quero
Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona
Dolores olhou de novo para o lado e disse:
— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de
óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
— Dolores...
Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
— Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de cha-
mar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que
dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a
parede.
— Todos encontram tudo o que querem na nossa
Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensio-
nadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito
mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
— Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aprovei-
tando que dona Dolores estava na frente da casa, mos-
trando para uma plateia invisível as vantagens de uma
nova tinta de paredes.
— Ela está nervosa, é isso.
— Claro. É uma fase. Passa logo.
— É melhor nem chamar a atenção dela.
— Isso. É nervos.
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Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir
para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado
e fazer um comentário afetuoso:
— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.
Ou:
— Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respi-
ram aliviados.
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.
— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos
pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?
— O quê?
— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.
— Dolores...
Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:
— Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida
Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!
Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de sur-
presa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
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— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a
palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
— Mãe, eu...
— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher.
Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmara que só ela via, enquanto passava
creme no rosto.
— Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o
tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.
Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no
caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo,
dirigiu-se outra vez para a câmara.
— Ele não sabe, mas estes lençóis são
câmara: recinto fechado, o quarto; máquina de filmar. da nova linha Passional da Santex. Bons
languidamente: de modo sensual, vagaroso. lençóis para maus pensamentos. Passional
procedimento: comportamento, modo de agir e se portar. da Santex. Agora, tudo pode acontecer...
robe de chambre: roupão, penhoar. [...]
Procure no dicionário outras palavras que você desconheça. (Luis Fernando Verissimo. O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática,
1994. p. 48-50.)

COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO

1. O “problema” de dona Dolores se manifesta à mesa, quando a família está almoçando. Todos
ficam chocados com os sorrisos, com o tom de voz de dona Dolores e com as frases ditas por ela.
a) O que há de estranho no procedimento de dona Dolores?
b) A que tipo de linguagem se assemelham as frases de dona Dolores?
c) Que meios de comunicação veiculam mensagens desse tipo?
d) Os sorrisos e o tom de voz apresentados nas falas de dona Dolores também são comuns nesse
tipo de mensagem? Por quê? Que ideia pretendem veicular?

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2. Releia todas as falas de dona Dolores:
a) Quais são os produtos que ela “anuncia” e a que membro da família cada um deles se
destina?
b) Desses produtos, quantos se destinam exclusivamente a ela mesma?
c) Pelo número de produtos destinados a ela própria, a que conclusão se chega: ela se preocupa
mais consigo mesma ou com a família? Justifique.

3. Segundo Nelly de Carvalho, especialista em linguagem publicitária, a mulher é vista pela publi-
cidade como compradora. Veja o que a pesquisadora afirma:

“[a mulher] desempenha a função de protetora/provedora das necessidades da família e da


casa, constituindo a própria imagem da domesticidade (de domus, ‘casa’). Isso não significa, porém,
arcar com o ônus material do lar, ou seja, pagar as despesas, mas com o trabalho de sair de casa,
escolher e comprar, ela é a compradora oficial.”
(Publicidade — A linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996. p. 23-4.)

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De acordo com o texto:
a) Dona Dolores desempenha, socialmente, alguma atividade profissional?
b) Se mulheres como dona Dolores não arcam com o ônus material do lar, isto é, com as despe-
sas, então por que muitas campanhas publicitárias têm as donas de casa como alvo?
c) Retire do texto ao menos duas frases que comprovem que dona Dolores é a protetora/prove-
dora de toda a família.

4. A linguagem pode ser compreendida como expressão da identidade do ser humano, ou seja, ela
é o meio que utilizamos para expressar o que somos. Com base nessa informação, responda:
a) Levando-se em conta que dona Dolores é uma pessoa com pensamentos e desejos próprios, o
que significa o fato de ela perder a própria linguagem e substituí-la pela linguagem publicitária?
b) Pode-se dizer que o texto critica a influência dos meios de comunicação sobre o comporta-
mento das pessoas? Por quê?

5. Observe as palavras destacadas nestas frases:

“— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias.”


“— Todos encontram tudo o que querem [...]”
“E agora todos aqui em casa respiram aliviados.”
“[...] para que você possa descansar.”
“Agora escovar os dentes é um prazer [...]”

a) Segundo os anúncios publicitários, como passa a ser a vida quando consumimos os produtos
anunciados?
b) Qual é, então, nos anúncios publicitários, a relação existente entre “felicidade familiar” e consumo?

6. Como conclusão, indique qual ou quais das afirmativas a seguir resumem as ideias principais do texto:
a) Dona Dolores é uma dona de casa feliz, pois consegue desempenhar bem seu papel de orga-
nizadora do lar.
b) O humor do texto provém, em grande parte, da alteração de contextos. As frases ditas por
dona Dolores passam a ser engraçadas porque estão fora de seu contexto habitual — o con-
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texto publicitário dos meios de comunicação.


c) De forma bem-humorada, o autor faz uma crítica aos valores da sociedade de consumo, em
especial à forma como a publicidade e os meios de comunicação criam falsas ilusões nas pessoas.
d) O objetivo central do texto é fazer uma crítica ao papel de dona de casa desempenhado pela
mulher, que acaba se anulando como pessoa em benefício da família.

A LINGUAGEM DO TEXTO
1. Observe estas falas dos filhos de dona Dolores:

“— Tá doida, mãe?”
“— Acho que a mamãe pirou de vez.”

a) Nessas frases, há algumas palavras que demonstram certo grau de intimidade entre os filhos
e a mãe. Quais são elas?
b) Qual dessas palavras:
• é uma gíria? • expressa informalidade na linguagem?
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c) Reescreva a frase que contém a gíria, substituindo essa palavra por um termo de sentido equi-
valente, a fim de que ela fique de acordo com a norma-padrão da língua.

2. Observe agora estas falas de dona Dolores:

“— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias.”


“— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes [...]”

a) Que palavra da 1ª frase foge à norma-padrão formal da língua?


b) Reescreva a 1ª frase, substituindo essa palavra por outra da norma-padrão formal.
c) Que expressão da 2ª frase cria maior intimidade entre o anunciante e o ouvinte/espectador?
d) Na sua opinião, com que finalidade os anúncios publicitários às vezes fazem uso de gírias ou
de palavras e expressões próprias de variedades linguísticas diferentes da norma-padrão?

3. Releia este trecho do texto e observe as palavras destacadas:

“Para a minha família, só serve o melhor. Por isso


eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.”

a) Qual é o grau do adjetivo melhor?


b) Que tipo de advérbio é a palavra mais nas duas situações?
c) Por que nos textos publicitários a presença desse tipo de
grau e desse tipo de advérbio é constante?

LEITURA EXPRESSIVA DO TEXTO


Desprezando a fala do narrador, três alunos leem somente as falas das personagens: um faz
o papel de dona Dolores; outro, do marido; e o outro, dos filhos. A leitura das falas do marido e
dos filhos deve sugerir espanto, surpresa. A de dona Dolores deve buscar o “tom jovial e alegre”,
próprio dos comerciais.

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Trocando ideias

1. Você alguma vez já se sentiu influenciado por uma propaganda, a ponto de consumir o produto
anunciado? Se sim, conte como foi.

2. Os anúncios publicitários reproduzidos por dona Dolores passam a ideia de que alcançamos a
felicidade quando consumimos. Você concorda com essa visão? Por quê?

3. Todas as pessoas ligam a tevê ou o rádio porque querem se informar ou se divertir, mas acabam
também vendo ou ouvindo anúncios publicitários.
a) Você acredita que os anúncios publicitários podem confundir as pessoas quanto aos reais
valores humanos, a ponto de levá-las a crer que ser feliz é o mesmo que consumir?
b) O que podemos fazer para não sermos manipulados pelos anúncios publicitários?

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Tema:
Consumo
ESTUDO DO TEXTO

Essas mães maravilhosas e suas máquinas infantis


Flávia logo percebeu que as outras moradoras do prédio, mães dos amiguinhos do seu filho,
Paulinho, seis anos, olhavam-na com um ar de superioridade. Não era para menos. Afinal o garoto
até aquela idade — imaginem — se limitava a brincar e ir à escola. Andava em total descompasso
com os outros meninos, que já desenvolveram múltiplas e variadas atividades desde a mais tenra
idade. O recorde, por sinal, pertencia ao garoto Peter, filho de uma brasileira e um canadense, nas-
cido em Nova Iorque. Peter tão logo veio ao mundo entrou para um curso de amamentação (“Como
tirar o leite da mãe em 10 lições”). A mãe descobriu numa revista uma pesquisa feita por médicos da
Califórnia informando sobre a melhor técnica de mamar (chamada técnica de Lindstorm, um psicana-
lista, autor da pesquisa, que para realizar seu trabalho mamou até os 40 anos). A maneira da criança
mamar, afirmam os doutores, vai determinar suas neuroses na idade adulta.
Uma tarde, Flávia percebeu duas mães cochichando sobre seu filho: que se pode esperar de um
menino que aos seis anos só brinca e vai à escola? Flávia começou a se sentir a última das mães. Pegou
o marido pelo braço dizendo que os dois precisavam ter uma conversa com o filho.
— O que você gostaria de fazer, Paulinho? — perguntou o pai dando uma de liberal que não
costuma impor suas vontades.
— Brincar…
O pai fez uma expressão grave.
— Você não acha que já passou da idade, filho? A vida não é uma eterna brincadeira. Você pre-
cisa começar a pensar no futuro. Pensar em coisas mais sérias, desenvolver outras atividades. Você
não gostaria de praticar algum esporte?
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— Compra um time de botão pra mim.


— Botão não é esporte, filho.
— Arco e flecha!
Os pais se entreolharam. Nenhum dos meninos do prédio fazia curso de arco e flecha. Paulinho
seria o primeiro. Os vizinhos certamente iriam julgá-lo uma criança anormal. Flávia deu um calção
de presente ao garoto e perguntou por que ele não fazia natação.
— Tenho medo.
Se tinha medo, então era para a natação mesmo que ele iria entrar. Os medos devem ser elimina-
dos na infância. Paulinho ainda quis argumentar. Sugeriu alpinismo. Foi a vez de os pais tremerem.
Mas o medo dos pais é outra história. Paulinho entrou para a natação. Não deu muitas
alegrias aos pais. Nas competições chegava sempre em último, e as mães dos cole-
guinhas continuavam olhando Flávia com uma expressão superior. As mães,
vocês sabem, disputam entre elas um torneio surdo nas costas dos filhos.
Flávia passou a desconfiar de que seu filho era um ser inferior. Resolveu
imitar as outras mães, e além da natação colocou Paulinho na ginástica olím-
pica, cursinho de artes, inglês, judô, francês, terapeuta, logope-
dista. Botou até aparelho nos dentes do filho. Os amiguinhos
da rua chamavam Paulinho para brincar depois do colégio.
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— Não posso, tenho aula de hipismo.
— Depois do hipismo?
— Vou pro caratê.
— E depois do caratê?
— Faço sapateado.
— Quando poderemos brincar?
— Não sei. Tenho que ver na agenda.
Paulinho andava com uma agenda Pombo debaixo do braço. À noitinha chegava em casa mais
cansado do que o pai em dia de plantão. Nunca mais brincou. Tinha todos os brinquedos da moda,
mas só para mostrar aos amiguinhos do prédio. Paulinho dava um duro dos diabos. “Mas no futuro
ele saberá nos agradecer”, dizia o pai. O garoto estava sendo preparado para ser um super-homem. E
foi ficando adulto antes do tempo, como uma fruta que amadurece de véspera. Um dia Flávia flagrou
o filho com uma gravata à volta do pescoço tentando dar um laço. Quando fez sete anos disse ao pai
que a partir daquele dia queria receber a mesada em dólar. Aos oito abriu o berreiro porque seus pais
não lhe deram um cartão de crédito de presente. Com oito anos, entre uma aula de xadrez e de sâns-
crito, Paulinho saiu de casa muito compenetrado. Os amiguinhos da rua perguntaram aonde ele ia:
— Vou ao banco.
Caminhou um quarteirão até o banco, sentou-se diante do gerente, pediu sugestões sobre aplica-
ções e pagou a conta de luz como um homenzinho. A façanha do garoto correu o prédio. A vizinhança
começou a achá-lo um gênio. As mães dos amiguinhos deixaram de olhar Flávia com superioridade.
Os pais, enfim, puderam sentir-se orgulhosos. “Estamos educando o menino no caminho certo”,
declarou o pai batendo no peito. Na festa de 11 anos, que mais parecia um coquetel do corpo diplo-
mático, um tio perguntou a Paulinho o que ele queria ser quando crescesse.
— Criança!
Paulinho cresceu. Cresceu fazendo cursos e mais cursos. Abandonou a infância, entrou na ado-
lescência, tornou-se um jovem alto, forte, espadaúdo. Virou Paulão. Entrou para a faculdade, formou-
se em Economia. Os pais tinham sonhos de vê-lo na Presidência do Banco Central. Casou com uma
jornalista. Paulão respirou aliviado por sair debaixo das asas da mãe, que até às vésperas do casamento
queria colocá-lo num curso de pre-
espadaúdo: que tem ombros largos. paração matrimonial. Na lua de mel,
façanha: ato heroico. avisou à mulher que iria passar os
flagrar: pegar em flagrante, surpreender. dias em casa dedicando-se à sua tese

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grave: severo, sério. de mestrado. A mulher ia e vinha do
logopedista: especialista que corrige defeitos da fala.
emprego e Paulão trancado no seu
mestrado: curso feito após a conclusão do curso universitário.
gabinete de estudos. Uma tarde, o
neurose: perturbação mental.
marido esqueceu de passar a chave
sânscrito: antiga língua da Índia.
surdo: silencioso.
na porta. A mulher chegou, abriu e
tenro: recente, novo. deu de cara com Paulão sentado no
tapete brincando com um trenzinho.
Procure no dicionário outras palavras que você desconheça.
(Carlos Eduardo Novaes. A cadeira do dentista e outras
crônicas. São Paulo: Ática, 1994. p. 15-7.)

COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO
1. A vida de Paulinho se altera profundamente quando seus pais resolvem que ele deve fazer cursos.
a) Como os pais justificam essa decisão?
b) Qual é o verdadeiro desejo de Paulinho?
c) Considerando a idade do garoto, você acha esse desejo normal ou anormal? Justifique.
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2. Há diferenças entre o pai e a mãe de Paulinho quanto ao modo de lidar com o filho: um é mais
liberal, e o outro, mais ansioso e autoritário. Dos dois:
a) Qual é mais liberal? Por quê?
b) Qual é mais ansioso e autoritário? Por quê?

3. Você já sabe que a ironia é um recurso de expressão que provoca uma quebra de expectativa,
fazendo com que a frase ganhe um sentido contrário àquilo que se disse.
a) Por que o título do texto é irônico?
b) Identifique no 1º parágrafo um trecho em que tal recurso também tenha sido empregado.

4. Leia estas frases:

• “as outras moradoras do prédio […] olhavam-na com um ar


de superioridade.”
• “Flávia começou a se sentir a última das mães.”
• “Os vizinhos certamente iriam julgá-lo uma criança anormal.”
• “Resolveu imitar as outras mães, e além da natação colocou
Paulinho na ginástica olímpica, cursinho de artes […]”
• “Tinha todos os brinquedos da moda, mas só para mostrar aos
amiguinhos do prédio.”

Com base nessas frases, responda:


a) Como a mãe de Paulinho se sente diante de outras mães, cujos filhos se destacam em diferen-
tes cursos?
b) Quais são, então, as razões verdadeiras que motivam os pais de Paulinho a tomarem a deci-
são de colocá-lo em diversos cursos?
c) Qual das frases abaixo confirma sua resposta anterior?
• “Pegou o marido pelo braço dizendo que os dois precisavam ter uma conversa com o filho.”
• “As mães, vocês sabem, disputam entre elas um torneio surdo nas costas dos filhos.”
• “‘Mas no futuro ele saberá nos agradecer’, dizia o pai.”
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5. Segundo o texto, dos 6 aos 8 anos, Paulinho fez diversos cursos, até que finalmente encontrou
sua vocação e começou a se destacar entre os demais garotos do prédio.
a) Em que tipo de atividade o garoto começou a se destacar?
b) Essa “vocação” precoce está relacionada à sua futura profissão? Justifique.
c) Quais as consequências dessas intensas atividades no desenvolvimento do garoto? Justifique
sua resposta com uma frase do texto.

6. Na festa de 11 anos de Paulinho, quando perguntam ao garoto o que queria ser quando crescesse,
ele responde: “Criança!”. O garoto cresce, vira Paulão e se casa.
a) Considerando a relação que os pais tiveram com o filho durante seu crescimento, o que sig-
nifica o casamento para Paulão?
b) Pelo desfecho da história, Paulão realiza o desejo que teve aos 11 anos?
c) Segundo o texto, “Paulinho dava um duro dos diabos” nos seus cursos. “‘Mas no futuro ele
saberá nos agradecer’, dizia o pai.” Na sua opinião, Paulão, ao ficar adulto, torna-se agradecido
aos pais?
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7. Das afirmativas seguintes sobre o texto, uma é incorreta. Qual é ela? Por quê?
a) O texto põe em discussão determinado modelo de educação, que não res-
peita as fases naturais do desenvolvimento da criança.
b) A educação é vista pelos pais de Paulinho como simples objeto de consu-
mo, em que o mais importante não é a criança, mas o jogo social.
c) O texto deseja mostrar os sacrifícios a que alguém tem de se submeter
desde a infância para vencer na vida.
d) O texto demonstra que o consumismo não se limita a objetos — carros,
detergentes, geladeiras, etc. —, mas se estende também a comportamen-
tos, criando modismo, e chega até a educação.
e) O texto critica a competição social, que se reflete também na educação
dos filhos.

A LINGUAGEM DO TEXTO
1. Leia:

“Paulinho cresceu. Cresceu fazendo cursos e mais cursos.”

a) Que sentido tem a repetição “cursos e mais cursos” na frase?


b) Reescreva a frase, evitando a repetição e mantendo seu sentido original.

2. Observe esta frase:

“Foi a vez de os pais tremerem.”

Note que a preposição de não se contraiu com o artigo os. Segundo a norma-padrão da língua,
a contração da preposição com artigos ou com pronomes não deve ser feita quando o termo
seguinte à preposição (no caso, os pais) for o sujeito do verbo no infinitivo. Veja outros casos:

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Chegou a hora de a classe escolher seu representante.
sujeito infinitivo

Agora é a vez de este garoto jogar.


sujeito infinitivo

Das frases seguintes, algumas não estão de acordo com a norma-padrão da língua, porque não a
seguem quanto ao emprego da contração. Identifique-as e reescreva-as, adequando-as à norma-
padrão.
a) No dia de o presidente tomar posse, teve um mal súbito.
b) Fique quieto! É a vez dela falar.
c) Este é o momento do cidadão provar que tem direito.
d) Bem no instante de o avião decolar, ouviu-se um barulho estranho.

3. O narrador do texto manifesta-se explicitamente em algumas situações, quase sempre para


ironizar ou comentar o que está sendo narrado. Esse tipo de narrador, chamado narrador
intruso, sai de sua posição distanciada e interfere diretamente na narrativa. Identifique nos
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fragmentos abaixo vestígios da presença
de narrador intruso. O mestre dos intrusos
a) “Flávia logo percebeu que as outras Machado de Assis, escritor do século XIX, foi o
moradoras do prédio, mães dos ami- primeiro autor nacional a explorar sistematicamente a
guinhos do seu filho, Paulinho, seis técnica do narrador intruso. Em sua obra Memórias pós-
anos, olhavam-na com um ar de supe- tumas de Brás Cubas, por exemplo, o narrador comenta
rioridade. Não era para menos. Afinal o próprio livro e brinca com a ansiedade do leitor em
o garoto até aquela idade — imaginem conhecer logo o desenlace da história. Veja:
“Começo a arrepen-
— se limitava a brincar e ir à escola.”
der-me deste livro. Não
b) “Se tinha medo, então era para a que ele me canse; eu não
natação mesmo que ele iria entrar. tenho que fazer; […] Tu
Os medos devem ser eliminados na tens pressa de envelhecer,
infância. Paulinho ainda quis argu- e o livro anda devagar; tu
mentar. Sugeriu alpinismo. Foi a vez amas a narração direta e
de os pais tremerem. Mas o medo dos nutrida, o estilo regular
pais é outra história. […] Nas compe- e fluente; e este livro e
tições chegava sempre em último, e o meu estilo são como
as mães dos coleguinhas continuavam ébrios, guinam à direita e
à esquerda”.
olhando Flávia com uma expressão Machado de Assis,
superior. As mães, vocês sabem, dis- retratado por Ademar Veneziano.
putam entre elas um torneio surdo
nas costas dos filhos.”

LEITURA EXPRESSIVA DO TEXTO


Dois alunos leem o diálogo entre Paulinho e o pai, do parágrafo que começa em “— O que você
gostaria de fazer, Paulinho?” até “— Arco e flecha!”. Desprezando a fala do narrador, um aluno faz o
papel do pai, que fala com o filho com paciência, alterando a voz para mostrar que é um pai compre-
ensivo e carinhoso. O outro aluno faz o papel de Paulinho, lendo de forma a mostrar espontaneidade.
Português: Linguagens — William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

Trocando ideias

1. O texto lido satiriza a “supereducação” que alguns pais dão aos filhos, esquecendo que eles são
crianças.
a) Você conhece alguém que esteja tendo ou tenha tido uma infância igual à de Paulinho? Se sim,
comente com os colegas.
b) Na sua opinião, como conciliar os estudos sem que se percam as fases naturais do desenvol-
vimento humano, como a infância e a adolescência?

2. O texto faz uma crítica à competição social e aos efeitos dela sobre a educação infantil. Como
você agiria se estivesse no lugar da mãe de Paulinho?

3. Vimos no texto um tipo diferente de consumismo, o consumo desenfreado de cursos e de certos


tipos de comportamento social. Que outros exemplos de modismo ou comportamentos relacio-
nados ao consumo você conhece?

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