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C: \P\
Criação: l.uis Díaz.
Imagem: Femme Botocudo, face et protll, dite
\larie E. Thiesson. photographiée à Paris en 184-t.
P F0086830;1' \I 000029;1' '\I OOOO.lO. Th iesson E.
(acrif au 19e siecle). Loc,tlisarion: Paris, musée du
quai Branl). Phoro ((:) \lusée duquai BraniY, Dist.
HUCITEC EDITORA R\101-Grand Palais/image musée du Quai Branly.
MARCOMOREL
HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2018
© Direitos autorais, 2016,
de Marco More!.
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CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M84s
Morei, Marco, 1960-
A saga dos Botocudos : guerra, imagens e resistência indígena I Marco
Morei. - 1. ed. -São Paulo : Hucitec, 2018.
517 p. ; 21 cm. (Estudos históricos ; 91)
Inclui índice
ISBN 978-85-8404-050-6
1. Índios Botocudo- História. 2. Índios da América do Sul- Brasil-
História. I. Título. II. Série.
16-36466 CDD: 981.00498
CDU: 94{=87){81)
Nós vivemos uma vida muito triste.
- HIM (JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA
KRENAK), em 2000
Abreviaturas 10
Introdução 15
I - Os "vis Aimorés"
1. Ferocidade no papel: primeiros registros 21
2. Aldeamentos, entre mortandades e milagres 52
3. Terras e corpos rasgados nas rotas do gado e da mineração 79
5
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES E MAPAS
Figura 1. Ataques de {ndios Botocudos na região de Minas Gerais com danos e mortes. 33
Aquarela de Caetano Fonseca de Vasconcelos, [c.a. 1800], IEB/USP.
Figura 2. Pintura de um confronto envolvendo tropas pluriétnicas e índios. J. 91
M. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>.
Figura 3. Desenho de dois soldados. M. Wied-Neuwied, 1822. 120
Figura 4. Representação de Pataxós. M. Wied-Neuwied, 1822. 124
Figura S. "Cabeça de Botocudo mumificada pelos Patachós". Jean-Baptiste 125
Debret, http://www.bbm.usp.br/.
Figura 6. Botocudo preparado para o combate. M. Wied-Neuwied, 1822. 126
Figura 7. Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. 127
Figura 8. Príncipe Maximilien e tropa. M. Wied-Neuwied, 1822. 150
Figura 9. Príncipe Maximilien e tropa. Detalhe da Figura 8. 150
Figura 10. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 1. M. Wied-Neuwied, 152
1822.
Figura 11. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 2. M. Wied-Neuwied, 153
1822.
Figura 12. Índio Maxacali aprisionado por um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 156
1822.
Figura 13. Botocudos na água. M. Wied-Neuwied, 1822. 159
Figura 14. Utensílios fabricados por Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. 162
Figura 15. Cabanas construídas por Botocudos. Jean-Baptiste Debret, <http:/ 162
/www.bbm.usp.br/>.
Figura 16. Príncipe Wied-Neuwied e o Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. 165
Figura 17. Litogravura de um homem, Firmiano Durães, índio Botocudo. A. 167
Saint-Hilaire, 1830.
Figura 18. Botocudo. Spix e Martius, 1981. 172
Figura 19. Cena de Botocudos caçando animais selvagens. Rugendas, <http:// 173
www.bbm.usp.br>.
Figura 20. Rosto feminino de Botocudo. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>. 174
Figura 21. Rosto masculino de Botocudo. Rugendas, <http://www.bbm.usp.br>. 17 4
Figura 22. "Família de Botocudos em marcha". Jean-Baptiste Debret, <http:/ 177
/www.bbm.usp.br>.
Figura 23. Detalhe do conjunto de retratos de "cabeças" de índios. Jean-Baptiste 179
Debret, <http://www.bbm.usp.br>.
Figura 24. Devastação da Mata Atlântica. M . Wied-Neuwied, 1822. 198
Figura 25. "Botocuda mendigando". J. J. Tschudi, 1866. 204
Figura 26. Índios incorporados pelas frentes de expansão. M. Wied-Neuwied, 210
1822.
Figura 27. Imagem de medalha cunhada no ano da coroação de D. Pedro II 236
(1841). Museu Mariano Procópio, in L. Schwarcz, 1999.
Figura 28. Índia de um grupo de Botocudos. F. A. Biacd, 1862. 248
Figura 29. Desenho aquarelado retratando a Filadelfia que surgia nos sertões 274
mineiros. Shirner, 1860.
Figura 30. Q],ladro de Santa Rosa, século XX. Grandes Personagens da Hist6ria do 274
Brasil, vol. II.
Figura 31. Grupo de chineses no Rio de Janeiro. Saint-Hilaire. 2 91
Figura 32. Daguerreótipo de mulher, frente. E . Thiesson. PM000028. Icono- 297
theque du Musée du Q],tai Branly.
Figura 33. Daguerreótipo de mulher, perfll. E. Thiesson. PM000029. Iconotheque 297
du Musée du Q],lai Branly.
Figura 34. Daguerreótipo de rapaz. E. Thiesson. PM000030. Iconotheque du 299
Musée du Q],lai Branly.
Figura 35. Daguerreótipo de rapaz, perfll. E. Thiesson. PM000057. Iconotheque 299
du Musée du Q],lai Branly.
Figura 36. Daguerreótipo de rapaz, "três quartos". E. Thiesson. PM000058. 299
Iconotheque du Musée du Q],lai Branly.
Figura 37. Desenho baseado em descrições textuais. James Henderson, 1822. 302
Figura 38. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Corpo. Museu Imperial, 305
Petrópolis.
Figura 39. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Rosto. Museu Imperial, 306
Petrópolis.
Figura 40. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Três rostos. Museu Imperial, 307
Petrópolis.
Figura 41. Foto de índia e criança. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 42. Foto de jovem índia de catorze anos. Mace Ferrez, 1876. Fundação 311
Biblioteca Nacional.
Figura 43. Foto de mulher "muito idosa". Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 44. Foto de mulher indígena. Mace. Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 311
Nacional.
Figura 45 . Foto de homem indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação 312
Biblioteca Nacional.
Figura 46. Foto de índia e criança, perfll. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 312
Nacional.
Figura 47. Foto de indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca 312
Nacional.
Figura 48 . Foto de mulher indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação 312
Biblioteca Nacional.
Figura 49. Foto de mulher indígena, perfil, II. Mace Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 50. Foto de mulher indígena, frente. Marc Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 51. Foto de mulher indígena, perfil, III. Mace Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 52. Foto de mulher indígena, perfil, IV. Marc Ferrez, 1876. Fundação 313
Biblioteca Nacional.
Figura 53 . Desenho de crânio de um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. 318
Figura 54. "Selvagens Botocudos". Castro Meneses; Joaquim Ayres. Acervo IHGB. 345
Figura 55. Caricatura 1, Angelo Agostini. Revista Il/ustrada, n.• 310, 5\8\1882. 348
Acervo particular Marco Morei
Figura 56. Caricatura 2, Angelo Agostini. Revista !Ilustrada, n.• 310, 5\8\1882. 348
Acervo particular Marco Morei
Figura 57. Foto de três Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 362
Marco Morei.
Figura 58. Foto de Botocudos sentados. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 363
Marco More!.
Figura 59. Foto de Botocudos sentados em um tronco abatido. Walter Garbe, 363
1909. Acervo particular Marco Morei.
Figura 60. Foto de dois Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 362
Marco Morei.
Figura 61. Foto de crianças agrupadas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 364
Marco Morei.
Figura 62. Foto de casal com uma criança. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 365
Marco Morei.
Figura 63. Foto de Botocudos com arco e flecha. Walter Garbe, 1909. Acervo 366
particular Marco Morei.
Figura 64. Foto de família com flautas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 367
Marco Morei.
Figura 65. Foto de Botocudos acendendo fogueira. Walter Garbe, 1909. Acervo 367
particular Marco Morei.
Figura 66. Foto de cinco índios junto a árvore. Walter Garbe, 1909. Acervo 368
particular Marco Morei.
Figura 67. Foto de índios sob tenda de lona. Walter Garbe, 1909. Acervo 368
particular Marco Morei.
Figura 68. Foto de Botocudos aglomerados em volta de um homem branco. 369
Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei.
Figura 69. Foto de dois homens. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco 369
Morei.
Figura 70. Foto de cena de caçada. Walter Garbe, 1909. Acervo particular 370
Marco Morei.
Figura 71. Única foto do chefe chamado Krenak. 1910. Acervo da familia de 386
José Vieira da Fonseca, reproduzida em I. Missagia de Mattos, 2004, p. 397.
Figura 72. Foto de três índios em atitude de trabalho. Posto Guido Marliere. 394
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 73. "Índios Aimorés que tomaram parte na turma de exploração entre 398
o rio Doce e S. Mateus, para a construção da estrada e que, depois, estiveram
na capital do Estado, em vista às autoridades". Cacique Tetchuc. Alberto
Lucacelli, 1911. IHGB.
Figura 74. "Grupo de Índios Aimorés". 1919. Cacique Nazaré. Acervo IHGB. 400
Figura 75. "Estampas do sabonete Eucalol. Botocudo. Os índios do Brasil. 403
Série 32, Estampa 1".
Figura 76. Foto de escola construída pelo SPI, "Escola Indígena Vatu". Heinz 410
Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 77. Foto de paisagem. Heinz Forthmann. Acervo do Museu do Índio, 411
Rio de Janeiro.
Figura 78. Foto de crianças trabalhando, Posto Guido Marliere. Heinz 412
Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 79. Foto de índios agrupados aguardando a distribuição de uma mesa. 413
Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 80. Foto de menino (Gabriel) se alimentando. Heinz Forthmann, 1946. 413
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 81. Foto de meninos Krenak e diretor do SPI. Heinz Forthmann, 1946. 413
Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 82. "Velho índio Krenak". Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu 414
do Índio, Rio de Janeiro.
Figura 83. Foto de Sebastiana (Tacruk). Foto de Sonia Marcato (1979). 430
Figura 84. Foto de Joaquim Grande, lfder dos Krenak. Foto de Sonia Marcato 441
(1979) .
Figura 85. Foto de Sebastiana (Tacruk) e Jacó, netos do chefe Krenak. Foto de 442
Sonia Marcato (1979).
Figura 86. Foto do autor com o cacique José Alfredo de Oliveira, apelidado de 45 5
"Seu Nego". (Him, na lfngua Krenak). Acervo particular Marco Morei.
Figura 87. Foto de Seu Nego. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco 458
Morei.
Figura 88. Foto com José Carlos (Kren) e Solange (Tetuita), ftlhos de Seu Nego, 461
ao transitar pela área Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco
Morei.
Figura 89. Foto de Solange Krenak (Tetuita) em escarpa. Marco Morei. Acervo 462
particular Marco Morei.
Figura 90. Foto de Maria Sônia (Tcharn) e marido, Bibiano, xerente. 1998. 465
Marco Morei. Acervo particular Marco Morei.
Figura 91. Foto de mulheres Krenak. 1998. Marco Morei. Acervo particular 469
Marco Morei.
Figura 92. Foto de ruínas do presídio indígena I . 1998. Marco Morei. Acervo 470
particular Marco Morei.
Figura 93. Foto de ruínas do presídio indígena II. Marco Morei. 1998. Acervo 471
particular Marco Morei.
Figura 99. Foto de Laurita (Tacrukinic). Marco Morei. 2000. Acervo particular 472
Marco Morei.
Figura 100. Foto do autor com grupo de crianças à beira do rio Eme. 2000. 473
Acervo particular Marco Morei.
Figura 101. Foto de José Carlos (Kren), José Osmar e Maiara, em frente à 486
Escola Índigena na reserva Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular
Marco Morei.
ABREVIATURAS
1
Jules Michelet. "Préface - Des justices de l'Histoire". ln: Histoire du XIXe
siede: tome IL-jusqu'au 18 brumaire. Paris: Michel Lévy Frêres, 1875, pp. III-IV
(tradução livre). Agradeço ao historiador José Miguel Nanni Soares a localização
exata desse trecho.
PREFÁCIO 13
vftima - impossibilitados de habitarem a mesma cidade daqueles outros
vivos, os neles interessados.
Reparador de múltiplas injustiças nem sempre bem percebidas pelos
estudiosos dessas populações, Marco More! aqui trabalha como o historia-
dor amplamente conhecido e respeitado por suas outras grandes contribui-
ções à historiografia brasileira: a debruçar-se sobre tema impactante, ofe-
recendo excelente narrativa, e manejando de modo altamente profissional
todos os fundamentos do ofício. Com um detalhe: ao evocar com naturali-
dade, leveza e sem alarde o manancial daquilo que nosso mundo segmen-
tado em nichos de conhecimento superespecializados convencionou chamar
de "outras disciplinas" no rol das Ciências Humanas, ofaz, simplesmente,
como um historiador. Isto é, como um analista que jamais poderia acredi-
tar na possibilidade de explicar uma parcela da realidade social (passada-
-presente) por meio de uma únicafonte teórico-metodológica, de uma única
disciplina. Não era assim que o ofício do historiador costumava ser pensa-
do há algumas décadas? Isto é, antes de ele ser contaminado pela mesma
combinação contemporânea entre aceleração, pragmatismo e superficiali-
dade que- ironicamente- parecem ter levado os botocudos a um enter-
ro prematuro.
Que o leitor aproveite do livro que ora tem em mãos: ele épeça única.
1
Há consideráveis trabalhos na perspectiva de uma história (com dimensão
antropológica) desses índios nomeados de Botocudos. Destacam-se nesta linha as
respectivas dissertações de mestrado e teses de doutorado de duas antropólogas: I. M.
de Manos (1996 e 2004) eM. H. B. Paraíso (1982 e 1998[a]) e também a tese de H.
L. Langfur (1999).
15
16 INTRODUÇAO
1
A ideia de que as mentalidades (isto é, representações simbólicas) persistem
ao contexto e às relações sociais em que surgiram aparece no conhecido ensaio de F.
Braudel, "História e Ciências Sociais: a longa duração", in Idem. Escritos sobre a Histó-
ria... , pp. 41-77.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 23
atualmente - fazendo com que a Reconquista também tenha seu
espaço, diante da Conquista que não se completou totalmente no ter-
ritório brasileiro.
Sabemos também que os europeus eram ainda intrusos: sua ci-
vilização, no século XVI, não era a dominante no território chamado
de Brasil. Não foi à toa que as primeiras povoações eram litorâneas e
algumas situavam-se em ilhas, como a fortificação de Vitória que
deu origem ao Espírito Santo, por exemplo. Os primeiros explorado-
res e colonizadores encontravam-se literalmente ilhados.
Qyanto aos Aimorés, pareciam ser invencíveis. O final do sécu-
lo XV1 marca, para o território brasileiro, uma fase de avanço da
Conquista. Depois de algumas décadas de sangrentos conflitos, as
bases da presença portuguesa se afirmavam, com diversos grupos in-
dígenas derrotados. Entretanto, na área de influência dos Aimorés, a
situação era diferente, para não dizer inversa, com o predomínio da
Reconquista ou o impedimento da Conquista.
Entre os testemunhos a esse respeito está o de frei Vicente do
Salvador: narrando as tentativas colonizadoras nos dois primeiros
séculos, afirma que em Porto Seguro os engenhos foram desfeitos
devido "aos muitos assaltos do gentio aimoré, em que lhes matavam
os escravos, pelo que também despovoaram muitos moradores e se
passaram pera outras capitanias". Da mesma forma em Ilhéus onde,
segundo o mesmo historiador franciscano do século XVII, o princi-
pal problema da ocupação europeia foi "a praga dos selvagens aimorés,
que com seus assaltos cruéis fizeram despovoar os engenhos". 2
Também o jesuíta Fernão Cardim, no início do Seiscentos, re-
gistrava sobre os Aimorés: "Estes dão muito trabalho em Porto Se-
guro, Ilhéus e Camamu, e estas terras se vão despovoando por sua
causa". 3
Reforçando essas indicações, temos o relato do jesuíta }ácome
Monteiro, segundo o qual, em 1610, a Capitania de Porto Seguro
estava "mui acabada por respeito dos Aimorés" e a de Ilhéus "despo-
voou-se quase em todo, por causa dos Aimurés". 4
A região onde hoje se encontra o sul da Bahia viveu momentos
dramáticos. Fazendas montadas e equipadas eram destruídas pelos
2
Frei Vicente do Salvador, pp. 121-3.
3 F. Cardim, p. 199.
4
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 402.
24 OS "VIS AIMORÉS"
Mapal
5
Os mapas citados a seguir foram consultados, em reproduções, em Mapas
históricos brasileiros. São Paulo: Abril Cultural, 1969.
6
P. de Magalhães Gândavo, p. 4.
7
G. Soares de Souza, pp. 57-8.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 27
No mapa Novus Brasilit2 Typus, do holandês Joducos Hondus,
1625, aparecem na Capitania "de los Iseos" (sic) os "Guaymies" (sic),
isto é, os Guaimurés na Capitania de Ilhéus; na de Porto Seguro
constam os "Aymures" ao passo que no Espírito Santo estão Tapuias
(denominação genérica para os não Tupis) e ''Apiapetang", o que po-
deria ser o nome de uma tribo específica. As mesmas informações são
repetidas no mapa Nova et Accurata Tabula, do holandês Jan Blau,
1640 (Mapa 2), acrescentadas dos Tupiniquins na Bahia e de Aimorés
espalhados em grande parte do interior, na altura correspondente ao
Recôncavo e Ilhéus.
Mapa2
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Mapa3
8 Padre}ácome Monteiro [1610], apud. Serafim Leite, vol. VIII, p. 401 e Arq.
1
° C. F. Vasconcelos. Ataques de índios Botocudos na região de Minas Gerais
com danos e mortes, pintura, ms., aquarela e nanquim. Coleção Alberto Lamego,
Iconografia n.• 59, IEB/USP; agradeço a reprodução e remessa da imagem e do
manuscrito a ela referente ao Prof. lstvãn Jancsó, quando diretor do Instituto de
Estudos Brasileiros da USP em 2004.
11
A. Lamego, t. 1, pp. 4-22.
30 OS "VIS AIMORÉS"
12
J. C. Velloso. Catdlogo de Iconografia da Coleçáo Alberto Lamego, p. 66.
13
M. de Andrade. O Estado de S. Paulo, 22-12-1935, apud A. R. Nogueira e
outros, Catálogo dos Manuscritos da ColeçãoAlberto Lamego, p. 17
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 31
sobre esses índios, buscava retratá-los e chamar atenção sobre eles,
numa estratégia de reforçar a veracidade do que escrevia e a justeza
do que solicitava. Era como se a fixação dos índios pela imagem fosse
o preâmbulo do controle e da captura pretendidos. A pintura, que
materializava uma visão desses índios tão distantes, deve ter chegado
ao destinatário e corrido de mão em mão pelas autoridades e corte-
sãos luso-brasileiros.
Esse padre Caetano era parente de José Teixeira da Fonseca
Vasconcelos, posteriormente o primeiro presidente da província de
Minas Gerais, senador do Império e visconde de Caeté, família im-
portante de administradores públicos e proprietários de terras e es-
cravos, à qual pertenceu, também, Bernardo Pereira de Vasconcelos.
A carta do padre Caetano para o príncipe regente, em forma de súpli-
ca, é versão escrita da sua criação estética, acrescida de outros argu-
mentos objetivos e detalhados. Num primeiro momento, ele chama
atenção sugestivamente para as tristes memórias da presença dos índi-
os na sua Freguesia do seguinte modo:
14
Requerimento do padre Caetano Fonseca Vasconcelos ... Cod. 59, doe. 1936,
manuscrito da Coleção Alberto Lamego, IEBIUSP. A referência vale para as duas
citações seguintes.
32 OS "VIS AIMORÉS"
15
Sobre as diversas concepções e atitudes da cultura ocidental diante do
canibalismo, e particularmente dos indígenas do território brasileiro, v. a instigante
obra de F. Lestringant. Le cannibale. .. (1994).
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 33
ria resultar do sangue que se esvaiu dos corpos mutilados, sem que os
índios o tivessem sorvido. Nesse sentido, a reiteração do canibalismo
aparece mais como estratégia de desumanização e justificativa para
combater e aniquilar os índios.
Figura 1
16
Sobre essas questões envolvendo escrita da história e ausência de palavras
registradas, v. os trabalhos de Farge (1997) e de Moniot (1976).
17
M . da Nóbrega. Cartas do Brasil, p. 70; a data dessa carta é estimada em
1549.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 37
-se que a descrição de Nóbrega quanto a aspectos físicos (barbados)
e ornamentos (narizes furados) não confere com a maioria dos regis-
tras posteriores sobre Aimorés, sendo possível que ele estivesse refe-
rindo-se a outros tapuias. O pioneiro jesuíta escreveu não se sabe se
por testemunho direto ou (o que era comum na época) reproduzindo
testemunhos orais e versões de colonos e conquistadores.
Pero de Magalhães Gândavo, em torno de 1570, em seu Tratado
da Terra do Brasil, sugestivamente destaca estes grupos indígenas, ci-
tando-os logo na parte inicial, em separado dos demais "gentios" .18
Tal se justificava, como se percebe na leitura, pela resistência e ata-
ques que dificultavam a colonização nas capitanias de Ilhéus e Porto
Seguro. "Muitas terras viçosas estão perdidas junto desta Capitania
[Ilhéus], as quais não são possuídas dos portugueses por causa desses
índios".
As observações de Gândavo têm um duplo aspecto (que, de
certo modo, permanecerá durante dois séculos em relação a esses
índios): por um lado trazem informações escassas (embora relevantes
neste caso) e, por outro, revelam desconhecimento, perplexidade e
ressentimento diante da força de tais grupos. Gândavo registra: esta
"nação do gentio que veio do sertão há cinco ou seis anos", em razão
de ataques de outros índios, o que os teria levado a migrar até mais
próximo da costa. Ou seja, aponta para rotas de migração, suas datas
e localidades, assinala a existência de uma guerra envolvendo esses
Aimorés, bem como mostra as alterações nas correlações de forças
entre as tribos, numa época em que a presença europeia vai se expan-
dindo no território. Em relação à identidade linguística, afirma: "a
língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende", numa
provável referência às línguas tupis que predominavam no litoral e
eram mais conhecidas dos europeus.
Qyanto à descrição física, diz que "são eles tão altos e tão largos
de corpo que quase parecem gigantes; são muito alvos, não têm pare-
cer dos outros índios na terra [... )". Cabe ressaltar que as descrições
posteriores dos Botocudos apontam, em geral, para pele avermelhada,
marrom, cobre, etc., havendo, nesse ponto, uma discrepância com as
possíveis características desses Aimorés. Qyanto a habitação, infor-
ma Gândavo que não "têm casas nem povoações onde morem, vivem
entre os matos como brutos animais". Isto é, aponta para o nomadismo
18
P. de M. Gândavo, pp. 4-8.
38 OS "VIS AIMORÉS"
19
José de Anchieta. Cartas. .. , pp. 311, 312 e 340.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 39
Vivem estes barbaros de saltear toda a sorte de gentio que en-
contram, e nunca se viram juntos mais de trinta frexeiros; não
pelejam com ninguem rosto a rosto, toda a sua briga é atraiçoa-
da, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam [... ].
20
Gabriel Soares de Souza, pp. 58-60.
21
Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19-12-1599, apud Serafim Leite, I, p. 212.
40 OS "VIS AIMORÉS"
22
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 406.
23
F. Cardim, pp. 198-9.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 41
"hábito" parece remeter ao caso narrado anteriormente por Anchie-
ta, ou a outro semelhante. De qualquer modo, eram narrativas que se
espalhavam pelo território colonial, compunham uma memória cole-
tiva dos primeiros tempos da presença europeia e serviam como de-
marcadoras de identidades. E o desconhecimento, o aspecto ininteli
gível, é sublinhado por Cardim: "não se lhes pode entender a língua".
Já o franciscano frei Vicente do Salvador, à sua maneira, traçou
em 1627 o perfil dos Aimorés:
[... ] como não tinham casas nem logar certo onde os bus-
quem, nem saiam a pelejar em campo, mas andem como leões e tigres
pelos mattos e dalli saiam a saltear pelos caminhos, ou ainda sem
sahir, detraz das arvores, empreguem suas frechas, poucos bastam
para destruirem muitas terras.
24
O ]ournal de la Société des Américanistes, Paris, LXXl, 1985, dedicou um
número especial à discussão teórica sobre a guerra e os povos indígenas. Destacam-se
no volume os artigos de Jean-Pierre Chaumeil, Maria Manuela Carneiro da Cunha,
Eduardo Viveiros de Castro, P. Menget,Anne Cristine Taylor e ainda Thierry Saignes.
Existem estudos clássicos e anteriores sobre o tema, como os de M. E . Davie, Pierre
C lastres e Florestan Fernandes.
42 OS "VIS AIMORÉS"
25
Cf. nota anterior.
44 OS "VIS AIMORÉS"
29
Padre Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, vol. VIII, p. 406.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 47
Cardim, mais ou menos na mesma época, afirmava que tribos como
Mainuma, Aturary e Qyiglaio "se misturão com os Guaimu-
rês", ou "entrão em communicação"com eles. 30 O que leva a crer
que seriam os nomes tribais que eles se atribuíam ou, então, ocor-
rência de alianças ou incorporações entre distintos grupos etno-
linguísticos, que acabavam se mesclando. De qualquer modo, fica
difícil falar em Aimorés puros: apesar da existência de grupos com
identidades étnicas definidas, havia encontros e mutações, de forma
dinâmica.
Em relação a ornamentos, temos a observação do jesuítaJácome
Monteiro, que viu os Aimorés portando o que chamou de pedras
brancas e redondas:
30
F. Cardim, p. 203.
31
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 212.
32 C. Emmerich & R. Montserrat (1975). Há um estudo linguístico pioneiro
e expressivo sobre esse grupo étnico do theco C. Loukotka (1955), que listou 38
dialetos dos Aimorés/Botocudos e faz ressalvas para a inclusão dessa língua no tronco
Macro-Jê.
48 OS "VIS AIMORÉS"
33
Diccionario da lingua portugueza . .. , Antonio Moraes e Silva [1813], (1922).
34
Cf. Izabel Misságia de Mattos (1996, p. 56).
35 F. A. de Varnhagen. História geral do Brasil, vol. I, t. 1, p. 309.
36
T. Ottoni, pp. 188-9.
37
Curt Nimuendaju, apud I. Missagia (1996, p. 57).
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 49
No século XIX, Martius, na sua primordial classificação das
línguas indígenas do Brasil, que rompe de maneira consistente com a
dualidade tupis e tapuias, põe juntos Aimorés e Botocudos.38
Numa atitude oposta a de Ottoni (quanto à filiação dos Boto-
cudos com Aimorés), o general Cândido Rondon e os pioneiros do
Serviço de Proteção aos Indios (SPI), no começo do século XX, reto-
mam a denominação de Aimoré para os mesmos índios, no que pare-
cia ser uma tentativa de resgatar-lhes o passado e a dignidade atingida,
além de garantir-lhes alguma parcela de posse do território. Rondon
chamou os Krenak de "última relíquia da outrora pujante nação dos
Aimoré", ao mesmo tempo que o SPI advogava ao governo de Minas
Gerais a legalização de terras para esses índios em torno dos rios Eme
e Doce. E numa classificação etnolinguística, o general Rondon consi-
deravaAimorés, Botocudos e Krenaks pertencentes a um mesmo grupo. 39
Há diversas fontes e análises que indicam para esse caminho de
continuidade entre Aimorés, Grens e Botocudos. A tradição oral dos
moradores da região - registrada nos livros dos primeiros viajantes
do século XIX, como Saint-Hilaire e Wied-Neuwied- expressava
uma consciência clara deste elo entre Aimorés e Botocudos. Um ad-
ministrador local e proprietário de terras, José Pereira Freire de Moura,
que viveu entre os anos 1760 e 1810 nas margens do rio Jequitinhonha,
estabelecendo contato com várias tribos, testemunha neste sentido:
38
Von Martius. Glossaria, p. 177.
39
Conferência do general Cândido Mariano da Silva Rondon no Congresso de
Geografia, Belo Horiwnte, 1920, apud Amílcar B. Magalhães {1947), pp. 32 e 60.
40 J. P. F. Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos que frequen-
41
Cf. Charlotte Emmerich & Ruth Monserrat, cit.
42
lzabel Missagia de Mattos, 1996, p. 56 e 2004, p. 43.
FEROCIDADE NO PAPEL: PRIMEIROS REGISTROS 51
verdade que os Krenak se referem a eles próprios (e mesmo a ante-
passados já falecidos) como Borum, como pude presenciar nas opor-
tunidades em que estive com eles. Certa vez perguntei ao chefé Him,
seu Nego, se o nome deles era Borum. Ele respondeu-me apenas,
com leve sorriso, que "Borum quer dizer índio". 43 Os próprios Krenak
grafam Búrum ao ensinarem sua língua aos jovens da tribo. 44
Dentro dessa perspectiva, vemos que a alteração do nome de
Aimoré para Botocudo não correspondeu diretamente a diferenças
nas características desses grupos. São gerações sucessivas de uma iden-
tidade étnico-linguística em mutação, com a mesma localização macro-
geográfica. É verdade que ocorreram mudanças: na sociedade que se
consolidava no território brasileiro, nos contatos com esses índios e,
ainda, nas concepções sobre eles, havendo, portanto, alterações signi-
ficativas nos modos de vida dessas tribos, como dos demais grupos
humanos existentes no território brasileiro nos últimos cinco séculos.
É significativo perceber que os primeiros textos sobre os Aimorés
destacavam a ferocidade, como aspecto desumanizador. Ao contrário
de outros relatos sobre índios, nos quais o controle sobre suas cultu-
ras aparecia na ênfase num comportamento marcado seja pela indo-
lência, docilidade, aceitação pacífica, alegre ou voluntária dos valores
da cristandade e da civilização ocidental. Entretanto, essa "máscara"
feroz, se correspondia a uma atitude de resistência dos Aimorés, era
também uma forma de enquadrá-los e justificar a violência contra
eles. Ainda aqui é possível encontrar "brechas" nas narrativas escritas
pelos colonizadores de corpos, terras, almas e palavras.
Qlando quatro Aimorés entraram pela primeira vez na vila de
Ilhéus, no raiar do século XVII, acompanhados de jesuítas, ao verem
os habitantes de origem portuguesa e outros índios aldeados, mostra-
ram-se "ainda medrosos de gente, a quem tanto tinham ofendido, [e]
se ferravam com o Padre e o Irmão, sem nunca os largarem senão den-
tro em casa". 45 Tinham força guerreira, mas também fragilidades. Não
eram completamente invencíveis, intangíveis, invisíveis, indescritíveis
e inomináveis, porque, afinal, partilhavam da condição humana.
43
Entrevista concedida ao autor no território dos Krenak, Resplendor (MG),
rio Doce, em 6 de fevereiro de 2000.
44
Conforme M. Krenak e outros. Cartilha Conne Panda. Rfthioc Krenak . ..
1997.
45
Cf. relato do jesuíta Domingos Rodrigues, apud Serafim Leite, II, p. 125.
Capítulo2
ALDEAMENTOS:
ENTRE MORTANDADES E MILAGRES
1
Um curioso inventário crítico e desmistificador foi feito por Collin de Plancy,
Dictionnaire critique des reliques et images miraculeuses, 1821.
54 OS "VIS AIMORÉS"
2
Cf. Jarric, apud Southey, t. 2, p. 50. Também a Carta Ânua da Companhia
de Jesus de 1581 escrita pelo padre Anchieta confirma o milagre atribuído a S. Jorge,
cf. Serafim Leite, I, pp. 191-2.
3 J. de Anchieta. Cartas . .. , p. 311.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 55
tão diversos envolvidos nas celebrações. E é interessante lembrar que
a Vila de São Jorge dos Ilhéus foi batizada com o prenome de seu
primeiro donatário, mas de certo modo crismada pelos atribuídos
milagres do santo homônimo.
Conta-se também que a imagem de Nossa Senhora da Ajuda,
nos arredores de Porto Seguro, desapareceu do altar da igreja em sua
homenagem no dia de um levante dos Aimorés. Após sangrentos
combates, na manhã seguinte, a mulher que tomava conta da capela
encontrou a estátua de volta ao altar, "toda suada e com um lenço lhe
alimpou o suor do rosto". O Menino Jesus em seu colo também su-
mira e só posteriormente foi achado, num canto do altar. A explica-
ção encontrada é que a santa fora socorrer seus fiéis durante a batalha
contra os índios, deixando escondido o Menino. A volta da imagem
ao altar foi motivo de festejos, com celebração de missa pelo jesuíta
Mateus de Aguiar, no Natal de 1621. 4
Na mesma localidade de Nossa Senhora da Ajuda, três séculos
mais tarde, a memória coletiva local ainda guardava fortes traços des-
te entrelaçar dos Aimorés e jesuítas. Como nesta lenda, que circulava
nos anos 1930:
4
Cf. carta do padre Mateus Aguiar ao provincial Domingos Coelho, apud
Serafim Leite, V, p. 230.
56 OS "VIS AIMORÉS"
São Francisco, que ruiu, mas cujo local passou a ser alvo de
adoração. 5
5
Em 1939, em missão dos Diários Associados, o jornalista Edmar Morei reco-
lheria esse mito fundador de Arraial d'Ajuda (BA), onde os habitantes, caboclos, ainda
se apresentavam como descendentes dos Tupiniquins e dos Aimorés, misturados aos
brancos, cf. Edmar Morei, Assis Chateaubriand e outros. Sob os céus de Porto Seguro,
pp. 29-31.
6 Frei Antonio de Santa MariaJaboatam. Novo Orbe Seráfico Brasflico. .. , vol. I,
pp. 88-9. Este autor franciscano escreveu no século XVIII e não deixou informações
sobre a data do episódio, que situa nos primeiros tempos da colonização. O trecho em
que este autor fala sobre os Aimorés é uma transcrição literal (sem aspas ou referên-
cias) da narrativa quinhentista de Gabriel Soares de Sousa.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 57
capelinha em Ilhéus ao pé do monte na rua de São Bento. Vitoriosos,
decidiram então ampliar e rebatizar a capela, com o nome de Nossa
Senhora da Vitória. E registrou-se que, entre os prisioneiros Aimorés,
"Os mesmos Gentios cativos confessavão, forão vencidos por huma
forte, e formosa Mulher branca, que montava em hum ligeiro cavallo".
Aí não era mais caso de relíquia, mas sim de uma aparição mariana,
outro tema tradicional (e recorrente) na simbologia católica que vem
narrado nesta crônica franciscana. O trecho acima indica também
que havia casos de cativeiro ("prezos, e cativos"), isto é, de escravidão,
entre Aimorés aprisionados.
Em contrapartida a esta derrota, sabemos, ainda em Ilhéus, de
"[ ... ] huma Capella do Seráfico Patriarcha [São Francisco de As-
sis], que houve nos seus princípios no districto daquella Villa", den-
tro de um engenho, abandonada, junto com a propriedade rural, pelos
fiéis "fugindo aos estragos, e insultos dos Tapuyas Aymorés, estes
arrazarão tudo, e com a ruína do Engenho, a teve também a Capella". 7
Desfaziam-se as imagens, inclusive franciscanas, diante da interven-
ção (de resultado iconoclasta) desses indígenas. Por outro lado, entre
escravização e resistência, houve o aldeamento Curral dos Bois, com
Guaimorés, organizado por franciscanos no sertão da Bahia, sob a
invocação de Santo Antônio, entre 1702 e 1843. 8
A devoção em torno do padre José de Anchieta e culto à sua
memória mesclaram-se ao enredo de uma tradição anti-indígena, com-
. pondo sugestivo mosaico de permanências de representações cultu-
rais e de sua cristalização em crenças e símbolos religiosos - habi-
lidade característica entre os jesuítas. Já nos primórdios da colonização,
o próprio Anchieta assinalara os Aimorés como hostis, chamando-os
"do mais cruel e desumano gentio, que nestas partes há". 9 O pioneiro
da catequese nas terras brasílicas parece ter vivido frustração por não
ter obtido a incorporação destes índios no seu projeto missionário,
como relatou em tom de desabafo:
7
Ibidem, pp. 377-8.
8 Cf. Missões e aldeamentos no sertão nordeste do Brasil no século XVII, in
Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros. .. , p. 295.
9
José de Anchieta. Cartas. . , pp. 311, 312 e 340.
58 OS "VIS AIMORÉS"
10
José de Anchieta. Cartas. . , p. 340 (Carta ânua da Província do Brasil de
1583).
11
Cf. Carta ânua de 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, p. 163.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 59
São Tiago e a canela do Venerável Anchieta. 12 Como corolário dessas
tradições hostis aos índios, pode-se ver ainda no século XXI na cida-
de de Anchieta (onde no século XIX havia um aldeamento para Bo-
tocudos), Espírito Santo, um monumento à beira-mar composto das
estátuas de dois personagens: uma, mais elevada, representa o lendá-
rio missionário jesuíta, diante do qual há um índio rebaixado, a indi-
car veneração ou submissão.
Não era exatamente a ausência de "pensamento mágico" que
fazia a diferença entre europeus e Aimorés, nem o "conservadorismo"
cultural marcado pela persistência de crenças que ultrapassavam con-
textos históricos. E pode-se dizer que tanto nas culturas indígenas,
quanto nas europeias, assim como no entrelaçar de ambas, existem
permanências de representações simbólicas que atravessam os sécu-
los e sobrevivem mais tempo que as formas de vida e organização
social que as engendraram. E neste exemplo citado, talvez não seja
ousado associar a preservação de partes mutiladas do corpo como
relíquias católicas à prática de mutilação dos corpos dos adversários
pelos indígenas, ambos com forte significado simbólico.
Se os seguidores de Santo Inácio de Loiola causaram embara-
ços, aliaram-se ou alteraram a vida dos Aimorés, a recíproca, em
certa medida, existiu.
Os jesuítas tiveram de abandonar a localidade de Camamu, em
fins do século XVI, em razão dos ataques desses índios que, também,
destruíram um engenho sob os cuidados desta Ordem em 1633, do
mesmo modo que missionários ficaram por longos anos isolados em
Ilhéus sem poder expandir as atividades fora da vila, por causa da
hostilidade dos Aimorés. 13 O referido engenho, aliás, pertencera à
mãe de um dos jesuítas que sabia a língua dos Aimorés, Domingos
Monteiro. O que evidencia que, ao lado da força e Conquista espiri-
tual, que dominava corações e mentes, os jesuítas estavam também
envolvidos em interesses bem palpáveis de posse de terras.
Na capitania de Porto Seguro, no início do Seiscentos, os colo-
nos chegaram a passar fome pelo temor de cultivar roças fora dos
12
Cf. "Relação da Prata pertencente ao Collegio que foi dos Extinctos Jesuítas
da Ilha da Vittoria", onde se relacionava "hum caixotinho de prata com o dente de S.
Tiago" e "hum caixotinho de prata lavrada, [que] tem dentro a canella do Venerável
Anchieta", AN, Série Ministério do Reino/Ministério do Império- Correspondências
dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo, 1808.
13
Serafim Leite, V, pp. 206, 220 e 222.
60 OS "VIS AIMORÉS"
14
Carta de Pero Rodrigues ao superior geral da Companhia de Jesus, Bahia, 15
de setembro de 1602, apud Serafim. Leite, I, p. 204.
15
Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19 de dezembro de 1599, apud Serafim
Leite, I, p. 212.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 61
com indígenas, viam-se ameaçados por holandeses, espanhóis e fran-
ceses. Nesse quadro construíam-se alianças onde cada parte procura-
va a melhor maneira de proteger-se dos respectivos inimigos. Daí
que uma das táticas dos colonizadores foi utilizar outros grupos indí-
genas no combate aos Aimorés, como os Potiguares.
O envolvimento dos Potiguares nessa trama, além de possíveis
animosidades preexistentes entre grupos indígenas, foi intermediado
pelos jesuítas. A catequização, embora trabalhando com dimensões
pedagógicas, psicológicas, culturais, místicas e espirituais, ligava-se
diretamente à atividade bélica e aos interesses de posse da terra, ape-
sar dos conflitos com colonos e com a Coroa em razão da forma de
tratar os índios e de ocupar suas terras. Daí que o historiador e jesuíta
do século XX, Serafim Leite, tenha resumido de maneira discreta,
embora honesta:
16
II, p. 123.
62 OS "VIS AIMORÉS"
17
O episódio de Zoroabe (também chamado de Zorobabé) está narrado nas
obras de Frei Vicente do Salvador, Southey e Varnhagen.
18
Southey, II, pp. 39-41.
64 OS "VIS AIMORÉS"
19
Southey, II, p. 40.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 65
gesto. Grupos, tímidos, começaram a se dirigir à casa de Álvaro Ro-
drigues, em Salvador, onde foram igualmente bem tratados. A notícia
espalhou-se e logo a casa de Rodrigues viu-se cercada de Aimorés
carentes de paz e convívio amistoso, pedindo proteção. Alguns que-
bravam suas flechas em sinal de amizade.
Esta não seria a última vez em que os colonizadores acredita-
riam que esses grupos indígenas estariam definitivamente pacifica-
dos. Mas a escassa população da capital do Brasil entrou em pânico,
diante de guerreiros que teriam condição de causar sérios estragos.
Eram cerca de 1.600 índios.
A solução encontrada foi abrigar-lhes na ilha de ltaparica, então
despovoada. Criaram-se quatro Missões a cargo de três jesuítas, entre
eles Domingos Rodrigues (do convento da Ordem em Salvador), que
aprendeu a língua dos Aimorés. Mas o que parecia ser um final feliz
começou a ganhar ares de tragédia. Pouco mais de dois meses depois
de instalados em Itaparica, em contato mais estreito com os colonos,
os Aimorés foram dizimados pelas doenças. A peste foi avassaladora.
Os cadáveres amontoavam-se e os padres mal tinham tempo de enco-
mendar os corpos e promover enterros. A paradisíaca ilha virou uma
estação do inferno e os jesuítas, em vez de anjos salvadores, pareciam
os cavaleiros do apocalipse. Na experiência destes índios, batismo e
doença se associavam. Esse sacramento, como um rito de passagem,
pretendia sinalizar a transição do paganismo ao cristianismo, da civili-
zação à barbárie mas significava, concretamente, a destruição da vida.
Os Aimorés sobreviventes não tiveram muitas saídas. Uns, te-
merosos da guerra e da doença, continuaram sob a proteção dos colo-
nos, foram transferidos para outras localidades, misturaram-se com
outras tribos, inclusive tupis, e foram aprendendo a chamada língua-
-geral e o português. Outros embrenharam-se pelas selvas, para lon-
ge, sem deixar rastro imediato. E outros, atacaram os portugueses,
mais uma vez tentando derrotá-los. 21 Nesses comportamentos, temos
duas estratégias distintas de sobrevivência: um pela resistência ou
isolamento, outro pela adaptação e convivência ao adversário. 22
20
A narrativa sobre estas mulheres Aimorés foi registrada por Frei Vicente do
Salvador, capítulo Trigésimo Quinto, pp. 333-4.
21
O aldeamento provisório de Itaparica e suas trágicas consequências está
referido nas obras de F. Vicente e Southey.
22
Sobre as estratégias de alianças e resistências envolvendo índios, colonos e
jesuítas, v. o trabalho de J. Monteiro. Negros da terra . . ., 1996.
66 OS "VIS AIMORÉS"
23 Cartad'el Rey ao Senhor Gaspar de Sousa sobre a aldea dos Índios de Santo
Antonio de Jaguaripe, 24 de maio de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das
Relações Exteriores, Rio de Janeiro.
24 25
Ibidem. lbidem.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 67
rem definitivamente o local do aldeamento para as proximidades do
povoamento. Tal iniciativa descontentou os colonos que viam suas
propriedades desguarnecidas, já que entre os aldeados havia "Indios
frecheiros que são de muita utilidade pera as ocasiões de guerra,
forteficações e obras publicas e outras cousas alem de guardarem a
fronteira". Em outras palavras, a Coroa e os colonizadores queriam
utilizar os índios catequizados como mão de obra e força guerreira
contra os Aimorés ou contra os escravos rebelados ao passo que aqueles
índios, apoiados pelos jesuítas, buscavam preservar-se. As ordens ré-
gias foram no sentido de manter a Missão de Santo Antônio nas
bocas do sertão. Nesse conflito entre colonizadores, a espada da Co-
roa se sobrepôs ao carisma da Cruz. Mas ambos não tardariam a ficar
de acordo diante do inimigo comum.
Em algumas situações, como na Aldeia São João, no Espírito
Santo, o padre Sebastião Gomes refere-se aos combates contra "uma
nação de gentio, que chamam Tapuias ou Aimorés" praticados por
"Índios cristãos", os quais, no momento do ataque, "arvoravam logo
uma cruz e, antes de pelejar, se punham todos de joelhos diante dela.
Feito isso, arremetiam aos inimigos com tanto esforço e confiança na
vitória que sempre Nosso Senhor lha deu". 26 Era, como tudo indica,
uma postura de sincretismo da parte desses índios, que aliavam sua
experiência guerreira a expressões da simbologia (também guerreira)
católica, expressando uma aliança com os colonizadores contra ou-
tros grupos indígenas.
A investida dos Aimorés atingiu ainda um importante ponto da
política filipina: a liberdade dos índios. O governador-geral D. Gaspar
de Sousa, depois de discutir o tema com os colonos e os padres da
Companhia de Jesus (ao que parece todos ficaram de acordo) escre-
veu a Filipe III pedindo que a lei sobre a liberdade dos índios ficasse
suspensa naquele local e momento, ou seja, na Bahia durante o levan-
te dos Aimorés. A resposta do monarca ao governador foi clara: "te-
nho por bem considerado a resolução que tomastes em não dar exe-
cução a dita ley, e vos encomendo sobresteis nella, até terdes outra
ordem minha advertindo que tenhais esta em segredo" _27
26
Relato de 1597 do jesuíta Sebastião Gomes, apud Serafim Leite, I, p. 242.
27
Carta d'el Rey para o Senhor Gaspar de Sousa em que lhe agradece o que
ordenou contra o navio estraniero que foi à Parruba e outras cousas acerca dos índios,
23 de junho de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio
de Janeiro.
68 OS "VIS AIMORÉS"
28
Cf. B. Perrone-Moisés. Inventário da legislação indigenista 1500-1800, in
Maria M. Carneiro da Cunha (org.), 1998, p. 530.
29 E. da Cunha. Os sertões. "O Homem", caps. I e II; C. de Abreu, Caminhos
• ••
O padre Domingos Monteiro acabara de rezar a missa das 6
horas da manhã pelos idos de 1619, na igreja da Missão dos Reis
Magos, encravada na Mata Atlântica, quando alguém se aproximou e
gritou a novidade:
-Chamam-te os Tapuias! Ei-los, ali estão! ...
Há cinco meses o padre Monteiro esperava por esse momento,
pela aproximação dos Aimorés. Mesmo sentindo o estômago leve, ain-
da em jejum, ele não hesitou e desabalou a correr em direção à floresta,
no que foi seguido por outros portugueses e índios aldeados que, tal-
vez por prudência, mantiveram-se mais atrás, enquanto o padre Do-
mingos tomava dianteira. Começava uma jornada que o próprio jesuíta
descreveria, em seu relatório, como o primeiro dos sete dias do
Gênesis.
Chegando ao local indicado o padre Domingos não encontrou
mais os índios, apenas objetos que eles haviam deixado. Inconformado
o jesuíta clama em alta voz, chama pelos Aimorés, mas diante do
próprio eco logo sente-se como pregador no deserto, apesar da ferti-
lidade da floresta que o cercava. Havia pelo chão restos de fogo, de
moquém (carne assada) ainda na fogueira, tocos de madeira cortados,
tipoias (com as quais as índias carregavam os filhos) ... De posse de
tais objetos o padre Monteiro leva-os de volta à Missão e (antes de
alimentar-se, ele mesmo ressalva!) coloca-os diante da imagem de
Santo Inácio de Loiola como oferenda. Ainda não estava de posse das
almas, nem dos corpos, mas tinha aqueles despojos. O jesuíta encar-
regado da catequese dos Aimorés começava a vislumbrar uma luz.
Ou melhor, as trevas, para ele, começavam a separar-se da luz. Era o
fim do primeiro dia.
No dia seguinte os Aimorés esperavam-no no mesmo lugar,
não fugiram, mas não se aproximaram a ponto de se tocarem: obser-
vavam prudentemente de cima das árvores. O padre Domingos não
70 OS "VIS AIMORÉS"
30
Esta é a última referência aos Aimorés no texto de frei Vicente do Salvador,
p. 334.
72 OS "VIS AIMORÉS"
31
O texto em questão é um relatório em forma de carta ao superior da Compa-
nhia de Jesus no Brasil para os anos 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, pp. 159-67.
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES 73
XVI, também chamada de Missão de Santo Inácio Mártir, tornou-se
um centro irradiador de catequese e Entradas, sobretudo em direção
aos índios Aimorés e Paranaubis (grupos de tupis que habitavam a
região).
Para compreender esses contatos entre índios e os missionários
de Santo Inácio temos ainda a trajetória dos Gueréns (ou Grens,
Krens), nome aplicado a grupos de Aimorés que, depois de guerrearem,
aceitaram o caminho da pacificação mediante a catequese na Bahia.
O que aconteceu a esses índios que deixaram de lado a atividade
guerreira e buscaram, pela via pacífica, uma estratégia de sobrevivência?
Na Freguesia de Santa Cruz da Vila de São Jorge (o santo-
-guerreiro), Ilhéus, foi estabelecida em 1602 uma Missão para índios
Gueréns sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, fruto da
aliança entre grupos de índios com os colonizadores, por intermédio
dos jesuítas. Os índios ganharam porções de terra e ajuda para cons-
truir casas e plantar lavouras. Tudo parecia apontar futuro promissor
e estável para a convivência entre as tribos e os colonizadores.
Esse momento em que parcelas dos Aimorés parecem ter vivi-
do em paz com os colonizadores nos dá oportunidade para reflexão.
Dois grandes caminhos foram tomados por esses índios, formando
duas grandes tendências de estratégias de sobrevivência em face dos
colonizadores. De um lado, os que aceitaram incorporar-se à chama-
da vida civilizada, abdicando paulatinamente de sua identidade étnica
(ou transformando-a substancialmente) em troco, supõe-se, de con-
tinuarem vivos. Outros, mais "conservadores", não aceitaram abrir
mão de seus costumes e embrenharam-se pelo mato. Entre os que
escolheram o caminho da convivência pacífica, estava este grupo
de Gueréns.
A expulsão dos jesuítas do Brasil no governo do marquês de Pom-
bal traria fortes consequências para a vida dos índios aldeados. Os
decretos da legislação pombalina sobre a questão indígena (incluindo
o famoso "Diretório") foram publicados entre 1755 e 1759. Eles se
inspiravam numa visão leiga - e em parte mitificada - dos índios,
típica dos intelectuais da "República das Letras" do século XVIII.
Resumindo, os decretos incentivavam o casamento dos índios com os
brancos, tentavam abolir (por decreto!) as atitudes e palavras
preconceituosas em relação aos índios e seus descendentes (que não
deveriam mais ser chamados de "bárbaros" ou "caboclos"), proibiam
a escravidão indígena, enfim, desejavam que o índio se integrasse sem
74 OS "VIS AIMORÉS"
32
Dossiês sobre aldeamentos e Missões Indfgenas, 1758-1807. Seção de Arquivo
Colonial e Provincial, n.0 603, cadernos 9 e 14, Apeb.
33
Informafóes e documentos vários relativos ao aldeamento de fndios e divisão da
comarca de Ilhéus, Bahia, 23 de fevereiro de 1782. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro,
Divisão de Manuscritos.
76 OS "VIS AIMORÉS"
34
Oficias e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc., 28 de janeiro de 1805, pp. 186-
8-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dos primeirosjesuitas no Brasil, s.d., does. de
autoria de Baltasar da Silva Lisboa, enviados a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Relatorios,
descrições e mapas da Capitania de Porto Seguro, does. de autoria do capitão João da Silva
Santos enviados ao governador e capitão-general da Bahia, Francisco da Cunha Meneses,
28 de janeiro de 1805, Arquivo do IHGB.
35 Oficias e relatorios sobre o estado atual dos fndios de Ilhéus e Sergipe D'EI Rey, 1803.
36
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 341.
Capítulo 3
TERRAS E CORPOS RASGADOS
NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO
1
Cf. Berta Ribeiro. O índio na História do Brasil, p. 64 e Francisco Borges de
Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 180
2
Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros, cap. 3.
3 Francisco Borges de Barros. A confederação dos Guerens . . . Tal levantamento
4
R. Southey, t. 4, pp. 297-8.
5
Carta de 1.• de abril de 1664, apud F. Borges de Barros. A confederação dos
Guerens ... , p. 178.
82 OS "VIS AIMORÉS"
6
Cf. F. Borges de Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 176.
7
R. Southey, t. 4, pp. 298-9.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 83
que buscavam combater. Em 1673 essa violenta milícia "civilizadora"
atravessou os sertões do norte do rio São Francisco e, chegando a
território dos Aimorés, empreendeu verdadeiro extermínio. Grupos
inteiros foram dizimados e os prisioneiros conduzidos aos milhares.
Chegou até a haver excesso de oferta de escravos Aimorés, o que
abaixou o preço da "mercadoria", quando índios escravizados chega-
ram a ser vendidos a 10 cruzados por cabeça para os engenhos. Num
misto de vingança e exploração, os prisioneiros de guerra foram utili-
zados em trabalhos tão pesados e tratados de tal maneira que em
pouco tempo não restou praticamente nenhum sobrevivente. A feroci-
dade dos colonizadores foi maior do que a dos índios. Antes de voltar
para suas terras, João Amaro tratou de colonizar a região devastada,
criando inicialmente o povoado de Santo Antônio. Mais tarde, em
homenagem ao seu fundador, o local foi rebatizado de Santo Amaro.8
Esses episódios fazem parte do ciclo das Bandeiras, que inclui a
caça aos índios a partir de São Vicente, a guerra contra as Missões
Guaranis dos jesuítas no sul e destruição do Qyilombo dos Palmares
em Alagoas. Seria também obra desse tipo de pioneiro (pois os Ban-
deirantes eram aguerridos) a abertura dos caminhos para oeste, em
busca das riquezas minerais, muitas vezes seguindo trilhas e cami-
nhos já criados pelos índios. Agora, nesta metade do século XVII, o
desafio era dizimar as tribos que impediam a expansão das fazendas
de gado e do império português pelo sertão.
As tribos Paiaia tiveram o mesmo destino trágico. E foram im-
plantando-se fazendas no interior de Sergipe, Pernambuco e Rio Gran-
de do Norte. No começo do século XVIII, os rancheiros chegariam
ao Piauí (berço dos vestígios de presença humana mais antiga das
Américas e onde hoje não resta nenhuma aldeia indígena). Assim,
em fins do mesmo século, um administrador local podia afirmar com
tranquilidade em relação ao caminho do sertão que partia de Ilhéus:
8
Ibidem, pp. 300-2 e F. Borges de Barros, op. cit., p. 173.
9
Oficios e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc. , 28 de janeiro de 1805, pp. 186-
8-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dosprimeirosj esuitas no Brasil, s.d. - does.
de autoria de Balthazar da Silva Lisboa, enviados a D . Rodrigo de Souza Coutinho.
Arq. 1.1.20, IHGB.
84 OS "VIS AIMORÉS"
***
As legendas do Eldorado povoavam corações e mentes. Mas na
porta destas visões de paraísos de montanhas de esmeraldas, lagoas
encantadas e douradas, minas e rios onde prata e ouro brotariam aos
borbotões, havia obstáculo que amedrontava os que ousavam penetrar
em suas selvas. 10 O apogeu da mineração não foi marcado apenas
pelos Bandeirantes desbravadores de "fronteiras" que exterminavam
índios, rompiam florestas e descobriam pedras e minerais valiosos.
Em muitos momentos a cobiça das riquezas esbarrava concretamente
no "Gentio bravo".
Desde o século XVI corriam notícias da existência de jazidas e
já no início do século seguinte aparecem os primeiros indícios de
pedras e metais preciosos. Mas só no princípio do século XVIII co-
meçaria a corrida do ouro na região que passaria a ser conhecida por
Minas Gerais, incluindo também trechos de Mato Grosso, Goiás,
São Paulo, Espírito Santo e Bahia. Tal busca causou explosão demo-
gráfica sem precedentes na América portuguesa: dezenas de milhares
de forasteiros vindos de Portugal e de capitanias brasileiras invadiam
a região, erguendo e desmanchando povoações, escavando a terra,
arrastando consigo comércio, escravos, plantações de subsistência,
contrabandos e administração pública. Fácil imaginar a consequência
desse movimento sobre as populações indígenas. Há registres dessa
expansão em regiões onde a presença de Aimorés ou Botocudos esta-
va indicada, como em torno dos rios Doce, Cuieté e Castelo.
10
O livro de S. B. de Holanda. Visão do paraíso é referência fecunda para a
compreensão desse viés da colonização.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 85
meraldas, situada em cheio no território dos Aimorés. As primeiras
indicações sobre esta "serra verde" vinham do século XVI, a busca foi
longa e, ao fim, inócua. A famosa Bandeira de Fernão Dias Pais (que
morreu com um punhado de turmalinas nas mãos, nas margens do
rio Doce, acreditando ter encontrado uma serra de esmeraldas) en-
frentou por diversas vezes índios hostis.
Em 1675 o Conselho Ultramarino, em Lisboa, emite carta pa-
tente nomeando José Gonçalves de Oliveira para o posto de capitão-
-mor "de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas". A
justificativa desta nomeação foi dada pelo próprio Conselho:
11
Carta Patente {de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça} do posto de
Capitão Mor de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas, provido em José
Gonçalves de Oliveira, CapitamMor da Capitania do Espirito Santo, 13 de agosto de 1675,
1,2,9 n. 259, FBN/MSS.
12
Carta de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça a Matias da Cunha,
Governador do Rio de janeiro, ordenando a entrega de 150 indios a José Gonçalves de
Oliveira, Capitam Morda Capitania do Espirito Santo, encarregado do descobrimento das
esmeraldas, 14 de agosto de 1675, 7, 1, 32 n. 55, FBN/MSS.
86 OS "VIS AIMORÉS"
13
Provisão Régia ordenando que o Conde de Sabugosa, Vice-Rei do Brasil, informe a
respeito da Entrada realizada por Francisco de Melo Coutinho SoutoMaior, 5 de dezembro de
1731, II-33, 21, 53, FBN/MSS.
14
Carta de Francisco Monteiro de Moraes para Francisco Ribeiro, Capitão Mordo
Espírito Santo, 7 de julho de 1702, FBN/MSS.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 87
formas de administração "a cerca das minas que se tem principiado a
descobrir naquella Capitania". 15
Mas esses primeiros sinais de riquezas não prosperaram em
algumas partes de Minas Gerais e em todo Espírito Santo em razão,
entre outros fatores, da presença maciça dos índios Aimorés ou
Botocudos.
As descobertas de minas continuaram. O mesmo Conselho Ul-
tramarino tratava, na reunião de 7 de junho de 1738, do "descobri-
mento que tem feito o Mestre de Campo João da Silva Guimarães,
das Minas Novas, do Rio São Matheus, conquistas dos gentios e suas
reduções ao gremio da Igreja". 16 Esse rio, como se sabe, corre pela
capitania do Espírito Santo, distante cerca de 80 quilômetros do rio
Doce. E a busca de fortunas minerais aparecia ligada ao extermínio
de grupos indígenas.
Outras legendas de riquezas giravam em torno da região. Como
a da lagoa Encantada, assinalada por Sebastião Fernandes Tourinho
ainda no século XVI, no rio Piauí, afluente do Jequitinhonha. Ou a
famosa lagoa Dourada, a noroeste de São João del-Rei, onde mais
tarde se constatou que argilas e areias continham quantidade ínfima
de matéria aurífera, sem valor exploratório, mas cuja coloração atiçou
a cobiça de muitas gerações. O paraíso do ouro e o inferno das selvas
e dos índios hostis se mesclavam nas mentalidades dos exploradores
durante quatro séculos, formando aura de ambição e mistério em
torno da região.
15
Assento do Conselho da Fazenda reftrente àforma de se administrarem as minas de
ouro descobertas na Capitania do Espfrito Santo, 23 de outubro de 1702, II -9, 17, 1 n.
139f, FBN/MSS.
16
Minas no Rio São Mateus e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37,
Arquivos do Conselho Ultramarino, Arq. 1.1.16, IHGB.
88 OS "VIS AIMORÉS"
17
Mathias Barboza da Silva. "Expedição na wna do Rio Doce pelo Mestre de
Campo ... " [1734], RAPM, III, 1898, pp. 769-72.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 89
sença deles do território onde havia riquezas a explorar. Note-se que
era o apogeu do governo de D. José I e do marquês de Pombal, cujo
ideário iluminista não permitiria discursos pregando guerra justa ou
extermínio dos povos indígenas. Entretanto, o governo dificilmente
poderia ignorar o declínio da mineração e a existência de vasta área
das Gerais inexplorada, como o Cuieté. Surge então a iniciativa de
organizar expedições armadas contra os índios, no governo de D.
Luís Lobo da Silva em Minas Gerais. 18 Os mais atingidos pelos
ataques dos Botocudos eram os moradores das seguintes fazendas e
sesmarias: Beira do Rio Doce, Sacramento, Santa Rita, São Barto-
lomeu, Rio Sem Peixe, Rio do Peixe, Guarapiranga e Freguesia da
Barra. Chegaram recursos de todas essas localidades (na forma de
dízimos ou contribuições em material, alimentos e homens para as
expedições) e até da Câmara de Mariana, das localidades de Forquim,
Vila do Príncipe, Rio Pardo, Pitangui e São João del-Rei, entre ou-
tras.19 O resultado dessa mobilização não se faria esperar.
Um grupo de cento e cinquenta homens, comandados pelo ca-
pitão Antônio Pereira da Silva, seguiu pelo rio Piracicaba. Outro,
comandado pelo capitão José Gonçalves Vieira, com cem homens,
embarcou pelo rio Doce. Essa empreitada de 1766 teve o nome de
"Expedição Geral e Conquista do Gentio Silvestre". 20 Ora, homens
armados pela Coroa portuguesa, pelos fazendeiros e mineradores da
região, certamente não pretendiam cobrir de gentilezas os índios com
os quais estavam em guerra há décadas. Mesmo que os documentos
oficiais dessa empreitada apregoassem intenções pacíficas e civili-
zadoras, é difícil acreditar que isso tenha ocorrido efetivamente na
prática. Consta dos relatos que alguns índios "encontrados" no cami-
nho passaram a ser sustentados pela Coroa.
O resultado dessa investida foi diversificado. Havia, em 1768,
um aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Índios Botocu-
dos (rio Cuieté). 21 No local fora criado por Martinho de Mendon-
ça e Proença o Presídio de Cuieté que, posteriormente, seria a base
de uma das divisões militares do rio Doce na guerra contra esses
18
RAPM, VIII, pp. 475 e II, p. 313.
19
Cf. artigo de Christina Tareia. "Vai começar a caça aos índios Botocudos.
Cuidado: eles são antropófagos". ln: O Estado de Minas, Belo Horizonte, 20-9-1983,
que não dá indicações de como localizar a documentação consultada.
20 Ibidem.
21
Ibidem.
90 OS "VIS AIMORÉS"
22 Diogo Pereira de Vasconcelos. Hist6ria antiga das Minas Gerais, vol. I, p. 235.
Sobre estes presídios, v. ainda RAPM, VI, p. 846.
23 V. Laura de Melo e Souza. Os desclassificados do ouro. ..
24
José João Teixeira Coelho. "Instrucção para o Governo da Capitania de
Minas Geraes por... , Desembargador da Relação do Porto" [1780], RAPM, VIII,
1903, pp. 487-8 .
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 91
Tais embates tiveram expressivo registro iconográfico numa
pintura de Rugendas que, no início do século XIX, desenhou um
desses confrontos envolvendo tropas pluriétnicas e índios nas selvas
brasileiras (Figura 2).
Figura2
25
]. M . Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, pp. 122-3.
92 OS "VIS AIMORÉS"
26
Descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé, 22 de setembro de 1704,
p. 161, Arq. 1.1.23- Arquivos do Conselho Ultramarino, IHGB. Diogo Pereira de
Vasconcelos. História antiga . .. cit., I, p. 160, faz referência a combates de Borba
Gato com "botocudos".
94 OS "VIS AIMORÉS"
27
Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Provín-
cia do Espírito Santo com o Ministério do Reino. Ofício de 20-6-1808, AN. V.
também Minas do Gaste/lo, 27 de novembro de 1761, p. 87, Arq. 1.1.28, IHGB.
28
Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Provín-
cia do Espírito Santo para o Ministério do Império. Ofício do tenente-coronel Ignácio
P. Duarte, de 8/3/1824, AN.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 95
Sabe-se quais os códigos de comportamento e de valores que
guiavam os exploradores que entravam na região atrás de riquezas
minerais. Se eles faziam guerra, era visando as pedras, metais precio-
sos e civilização. Mas como se expressavam os valores e códigos de
comportamento dos índios Aimorés/Botocudos, que também guerrea-
vam, mas não pela sede de riquezas? Encontramos mais uma vez as
duas principais opções: ou a tentativa de um convívio pacífico ou a
guerra frontal.
Além dos casos citados acima, nas regiões do rio Doce, Cuieté
e Castelo, ocorreram outros contatos e conflitos.
Em Minas Gerais, 1794, houve vigorosa investida dos Boto-
cudos contra as frentes de mineração e de expansão agrícola. Cerca
de quatrocentas fazendas (segundo estimativas oficiais) e outras pro-
priedades foram abandonadas. Ou seja, no declínio da mineração,
importantes áreas são reconquistadas pelos índios. As autoridades ten-
tam resolver a situação enviando reforço de tropas: quarenta soldados
e vinte índios Manaxós e Malalis vão para os presídios de Belém, do
Casca, do Guanhans e do Peçanha, às margens do rio Prata, para for-
mar barreira contra os ataques dos Botocudos que "tem feito consi-
deraveis estragos em nossa gente". 29 Qlatro anos depois (1798) há
registros, entre as despesas da Casa dos Contos, sediada em Vila Rica,
de gastos com tropas e munição para a guerra aos Botocudos. 30
É interessante notar que as duas datas (1794 e 1798) marcam,
respectivamente, as chamadas Conjurações do Rio de Janeiro e da
Bahia. Tais combates contra os Botocudos, se comparados às Conju-
rações, mobilizaram contingente mais expressivo de tropas, amea-
çando concretamente a ordem social e econômica. Foi a partir dessa
investida das tribos que a administração régia intensificou a milita-
rização da região. Entre 1794 e 1806, foram estabelecidos um Qlar-
tel-Geral nas cabeceiras do rio Prata, além dos Presídios de Belém,
do Casca, do Guaranhuns e do Peçanha - cujo objetivo era formar
uma "barreira de defesa contra os ataques de botecudos" _31
Mesmo durante a mineração nas Gerais ocorreram contatos
não hostis com os Botocudos. Entre os anos 1770 e 1790 alguns
29
RAPM, VI, 2.•, p. 846.
30Casa dos Contos. ConstituifáO de tropas que combatem os Botocudos (1796-1798}, F.
72.8/10, AN.
31
RAPM, VI, p. 846.
96 OS "VIS AIMORÉS"
35 Domingos Alves Branco Moniz Barreto. "Plano sobre a civilisação dos indios
37
Episódio narrado por José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações
sobre os indios Botocudos . . .", cit. O Conselho Ultramarino referia-se às "conquistas
dos gentios" feitas por João da Silva Guimarães em 1738, cf. Minas no Rio São Mateus
e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37, Arq. 1.1.16, IHGB. Na redação deste
trecho inspirei-me da narrativa de Euclides da Cunha sobre o massacre final de
Canudos, n'Os sertões, "Canudos não se rendeu", p. 351.
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 103
Verde esmeralda, amarelo ouro e vermelho sangue pareciam regar o
solo rasgado.
"Esta Tribu por muitos annos não apareceo a alguem", escreve-
ria no século XVIII, um fazendeiro e administrador colonial. 38 Em-
bora falando de um grupo específico de Aimorés/Botocudos, tal co-
mentário pode ser estendido a outros agrupamentos. Essa observação
nos leva a perguntar: como viveram ao longo do século XVII e parte
do XVIII? É certo que viveram. Existem registras, sobretudo relati-
vos a combates. Mas sempre convém lembrar que os índios que man-
têm algum tipo de contato com uma sociedade são visualizados com
mais nitidez nas inscrições elaboradas por essa mesma sociedade.
Sejam catequizados, incorporados ou até em guerra, os índios têm o
"privilégio" de aparecerem documentados.
As tribos que vivem longe das vistas de seus oponentes, que
conseguem mantê-los afastados durante tempo significativo, ocupan-
do largos espaços de terra, banindo os Conquistadores e colonizado-
res, impedindo a Conquista ou garantindo a Reconquista, acabam
por sua vez banidas dos registras- até que sejam "descobertas", de
novo. Porém, quanto mais ausentes de documentos, mais os índios
sobreviviam- e este é um paradoxo que não deve escapar ao pesqui-
sador em busca de fontes documentais sobre as populações indígenas.
De acordo com relatos posteriores, pode-se saber que estes ín-
dios tinham cantigas e danças para o Sol, para a Lua e para as estrelas.
Mantinham suas organizações familiares e sociais e também criavam
novos grupos familiares e tribais. Amavam, brigavam, alimentavam-
-se, tinham filhos. Nada que fosse estranho à espécie humana. Gos-
tavam de cantar, segundo um missionário que os conheceu de perto
no século XVII:
38
José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos
que frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés"
[1809] . RAPM, II, 1897, pp. 28-36.
39
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 407.
104 OS "VIS AIMORÉS"
três séculos. Foi uma guerra de longa duração, embora o contato não
tenha se limitado ao confronto. Durante esse tempo, Conquistadores
e colonizadores tentaram as mais variadas fórmulas, sem conseguirem
o objetivo principal, a sujeição completa desses grupos, a exemplo do
que ocorrera com outras tribos. As armas mais poderosas, do bacamarte
ao canhão, foram utilizadas. Patrulhas formadas, fortes construídos,
igrejas erguidas, engenhos de açúcar instalados. Armadilhas as mais
diversas tentadas. Estratégias de persuasão, como catequese ou pacifi-
cação, surtiram efeitos relativos. Missões de jesuítas foram estabele-
cidas, guerras justas declaradas, o espírito das Cruzadas revivido, a
escravidão foi consentida e praticada. Foram fomentados exércitos
regulares europeus, tropas pluriétnicas de índios, africanos e brancos
e disputas entre tribos. As rotas do gado penetravam pelas terras. En-
tradas e Bandeiras aventuravam-se na caça ao índio e aos metais pre-
ciosos. Portugueses e espanhóis, mas também holandeses, franceses e
ingleses acumularam suas experiências bélicas. Relíquias milagrosas
foram desenterradas. Campanhas sistemáticas clamando contra cani-
balismo e ferocidade levaram-se a cabo. O extermínio puro e simples
foi tentado muitas vezes. Epidemias mortais espalharam-se. Chefes
de Estado, administradores, militares, religiosos, homens de letras,
jogaram as cartas que possuíam. Ou seja, tudo foi tentado, mas ao
final de trezentos anos Conquistadores e colonizadores ainda não
haviam aniquilado os Aimorés, habitantes nativos, muitas vezes Re-
conquístadores, inimigo que continuava, em parte, indomável e inde-
cifrável, mantendo o controle hegemônico de considerável parcela do
território. Por outro lado, pode-se perceber que alguns índios dessa
denominação, nos séculos XIX e XX, se tornariam exímios vaqueiros
e pequenos criadores de gado, mostrando capacidade de adaptação e
incorporação de novos valores em seus modos de vida.
O desafio então era buscar outros meios de domá-los e decifrá-
-los, com base nas Luzes do progresso e da civilização. A sociedade
que se constituiu no território do Brasil em fins do século XVIII era
bem diferente da que existira nos primeiros tempos da Conquista. A
modernidade formando seus primeiros contornos no seio de uma elite
letrada e urbana (falando o português e conhecendo bem a Europa)
só fazia aumentar a decalagem diante das tribos remanescentes. En-
gendrou-se então uma espécie de grande laboratório de experiências,
não só de práticas guerreiras, mas de hipóteses e teorias da civiliza-
ção ocidental. Essa "máquina" cresceria de maneira assustadora sobre
TERRAS E CORPOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO 105
estes índios, aglutinando em diferentes níveis homens de letras, das
ciências, da administração e das armas. O sistema de civilização tor-
nar-se-ia mais complexo, o que equivale dizer: mais controlador.
Assim, a partir do século XVIII, a denominação Aimoré desa-
parecia aos poucos dos registros, como já foi visto. Parecia que os
colonizadores, sem conseguirem aniquilá-los de fato, suprimiam-lhes
o nome ou apelido, como se assim pudessem superar o inimigo que
tanto atemorizava, quase invencível. Essa mudança de nome, não de-
cretada oficialmente, correspondia a uma nova fase da relação entre
esses índios e a sociedade, uma nova (e decisiva) etapa da longa guerra.
Mas se a legenda dos Aimorés foi esmorecendo, relegada a longínquo
e superado passado colonial, os Botocudos continuaram a ocupar parte
dos mesmos territórios. Daí nasceriam, então, outros mitos ainda mais
complexos e difundidos para denominar (estigmatizar) os "temíveis
Botocudos". A legenda de ferocidade em torno dos Aimorés da época
colonial chega a parecer ingênua ante o que ainda seria elaborado.
No entardecer do Setecentos como os Aimorés/Botocudos es-
tariam percebendo o raiar do século XIX? Em primeiro lugar é bom
relembrar que nessa época havia já uma longa trajetória de contatos
entre os Aimorés e as frentes de expansão. Mesmo que o viés guerrei-
ro predominasse, esse contato nem sempre era hostil e já ocasionara
importantes transformações na vida dessas tribos, pela invasão de ter-
ritórios e também introdução de ferramentas e utensílios de madeira
ou de ferro - que de alguma maneira alteravam a organização social
dessas populações indígenas. Assim, as tribos que seriam descobertas
pela ciência nos anos seguintes de alguma maneira já teriam seus
modos de vida alterados por esse contato secular com a sociedade
luso-brasileira. Falar em passagem de século XVIII para XIX pode
parecer inadequado do ponto de vista dos índios que não partilhavam
a concepção de tempo dividida em anos; mas eles viviam, refletiam e
reagiam diante de mudanças na sociedade que (cada vez mais) lhes
cercava - mudanças que os códigos históricos registram por esta
contagem do tempo como as passagens dos séculos.
A presença dos não índios ao longo desses três séculos geraria
também uma tradição entre os índios, um saber transmitido oralmen-
te, onde se mesclavam concepções sobre o adversário, sobre a guerra
e sobre os contatos em geral.
Um grupo de militares e funcionários da Coroa portuguesa,
em 1804, promoveu na região do Jequitinhonha uma Bandeira não
106 OS "VIS AIMORÉS"
40
Cf. testemunho do responsável pela expedição, José Pereira Freire de Moura,
"Noticia e observações sobre os índios Botocudos . . .", cit.
II
CERCO AOS BOTOCUDOS
NO SÉCULO XIX
1
Sobre esta perspectiva de expansão imperial "para dentro" no Brasil do
período, v. llmar de Mattos. Construtores e herdeiros . .. (2005).
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 111
clonaram tudo e foram se estabelecer no litoral. A investida maciça e
eficaz dos índios parece ter tocado nos brios e bolsos dos colonizado-
res, que começaram a traçar uma nova política de ocupação.
Os entraves postos pelos Botocudos à mineração, comércio e agri-
cultura geraram pressões sobre a Coroa. A ponto de a Junta de Adminis-
tração e Arrecadação da Fazenda Real, com sede em Vila Rica (no
prédio da Casa dos Contos), realizar reunião no dia 1. de fevereiro de
0
2
RAPM, III, pp. 743-8.
112 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
3
Diogo P. R. de Vasconcellos. "Breve descrição geographica, physica e poli tica
da capitania de Minas Geraes" [1806]., RAPM, VI, 2.•, 1901, p. 846.
4
Sobre a militarização em Minas Gerais e o combate aos índios no século
XVIII e início do XIX, v. L. C . Resende. Gentios bras{/icos: índios coloniais em Minas
Gerais setecentista. Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2003.
6
Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da provincia do E spirito
Santo no ano de 1817". Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XIX, 1856.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 113
Portanto, havia um conjunto de fatores geopolíticos e econômi-
cos, acompanhados de uma insistente campanha antiindígena e de
estratégia militar longamente elaborada. Elementos que, somados,
redundaram na Guerra de 1808-1824.
Entre os motivos imediatos que podem ter funcionado como a
gota d'água para a "guerra ofensiva" está o fato de que em abril de
1808 (portanto um mês antes da Carta Régia de D.João) os Botocudos
atacaram o Qyartel de Sousa e colocaram o oficial e seis soldados em
fuga pelas selvas, apavorados. 7 Um dos soldados foi morto. Os índios
destruíram as roças, quebraram todos os utensílios e encheram a casa
de pedregulhos. Assim, a declaração de guerra de 1808 foi também
ofensiva dos Botocudos. Como se fosse uma resposta, a Coroa portu-
guesa fala em guerra ofensiva.
O texto assinado pelo futuro D. João VI sobre os Botocudos
merece atenção. 8 Em primeiro lugar, traz uma estranha dose de
alteridade. Contra os gentios, proclamava-se guerra justa, empreen-
diam-se expedições, mas poucas vezes houve um tratamento tão sole-
ne, quase como se fosse de uma nação para outra- embora a Carta
não fosse dirigida aos índios, mas às autoridades luso-brasileiras. As
sucessivas derrotas impostas aos colonizadores ao longo de três sécu-
los, e a impossibilidade de exterminar facilmente as tribos, acabaram
por gerar um tratamento peculiar para esses índios.
Essa significação não escapou a Hipólito da Costa, que redigia
o Correio Braziliense em Londres:
6
Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas da província do
Espírito Santo". Revista do Instituto Hist6rico e Geográfico Brasileiro, t. 1 (3), pp. 171-
271, 1839.
7
Carta régia do príncipe regente D.joão, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide e
Melo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para
luta contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, Arquivo Nacional
(AN),Junta da Real Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro (4B- 206). Ver o mesmo
documento em: Carta Régia de D.joão VI dirigida a Pedro Maria Xavier deAtaide e Melo,
governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para luta
contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, FBN/MSS, II, 36,8,14 e
I, 28, 31, 20.
114 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
8
Correio Braziliense, junho de 1808, vol. I, p. 421.
9
Existe vasta bibliografia antropológica sobre as guerras e as sociedades indí-
genas: estudos clássicos como o de M. Davie (1931), P. Clastres (1977) e F. Fernandes
(1975), baseados mais numa perspectiva funcionalista ou de determinismo material.
Para a elaboração do presente livro consultei também a edição especial do journal de
la Société des Américanistes, Paris, LXXJ, 1985 com artigos de vários autores (Viveiros
de Castro, Menget, Saignes e Taylor) trazendo visões mais atualizadas e complexas
sobre o tema.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 115
O príncipe regente D. João fundamenta a formalização da guerra
em 1808 nas queixas constantes dos moradores (luso-brasileiros, en-
tenda-se) da região, vítimas de constantes ataques. Era uma resposta
direta à petição dos colonos de Minas expressa pelo governador Pedro
Xavier de Melo dois anos antes. Diz a Carta Régia:
1
°Carta Régia do prfncipe tegente D.João, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide
eMelo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para
luta contra os fn dios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, AN, cit.
116 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
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1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 119
Os Arquivos do Exército brasileiro guardam os registras deste
conflito contra os Botocudos, revelando mortandades e estratégia bé-
lica cuidadosamente montada. Uma das providências básicas era acio-
nar as autoridades locais. Para isso, foram enviados ofícios às Capita-
nias da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, delimitando assim a
zona do conflito e encurralando o inimigo, dificultando sua mobilidade
e obrigando-o a combater tropas cujas armas eram mais mortais.
O conde de Linhares buscou organizar um cerco maior, que
abarcasse o vasto território indígena. Ele ordenou primeiro um ata-
que sincronizado das tropas mineiras e capixabas, "para que aquelles
Gentios se vejão na necessidade de ceder completamente o simultaneo
ataque". O objetivo, nas palavras de D. Rodrigo, era "para que o mes-
mo Gentio bravo ceda em fim vendo-se por toda parte acoçado" .11
Outra especial atenção do ministro português foi com a cidade
de Campos dos Goitacases (então pertencente ao Espírito Santo, mas
fronteira com a província do Rio de Janeiro e um dos caminhos para
a capital do império): as autoridades deveriam estar alertas contra
possíveis incursões dos Botocudos que porventura fugissem das tro-
pas mineiras e capixabas. 12 D. Rodrigo preocupava-se em alertar a
força militar de Campos dos Goitacases "para que faça cortar a pas-
sagem do dito Gentio"Y Era evidente: o ministro da Guerra queria
prevenir a possibilidade de uma investida maciça dos índios que se
aproximasse da capital do império.
A guerra ao "índio bravo" ia (re)começar. Os guerreiros luso-bra-
sileiros se prepararam de maneira especial (Figura 3). Passaram a usar
uma espécie de armadura ou couraça, chamada de "gibão d'armas". 14
Era um tecido espesso, cerca de uma polegada, feito de várias camadas
de algodão costuradas, para proteger das flechas. Os soldados vestiam
esse colete que lhes protegia o tórax, braços e ia até o joelho. Era um
ornamento tão sólido que ficava em pé sozinho. Mas a cabeça e as
pernas restavam desprotegidas. Além disso, o peso da vestimenta
cansava os soldados, retardava-lhes a marcha e deixava-os abafados
de calor. Os soldados partiam em campanha usando, além dessa
armadura, os seguintes apetrechos: chumbo, pólvora, fuzil, facão e
11
Livro da capitania do Espírito Santo, correspondências de 28-2-1810 e 30-9-
1809, AHE
12
Ibidem, 22-7-1811.
13
lbidem, 10-10- 1810.
14
M. Wied-Neuwied, t. 1, p. 326 e A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 435
120 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura3
15
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ... , 1858 e 2002.
16
M. Wied-Neuwied, cit., p. 253
122 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
17
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri"... , cit.
18 A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 436.
19
Wied-Neuwied, cit. t. 1, p. 335
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANT ROPÓFAGOS" 123
de modo pragmático, à incompatibilidade entre os parâmetros da ati-
vidade científica (tida como essencialmente civilizadora) e a estraté-
gia de guerra de extermínio efetivada naquele momento, além de res-
saltar a condição humana dos índios. Marcava-se aqui a diferença
entre colonizadores "bravos e "mansos".
Da parte dos índios, não há depoimentos ou testemunhos ex-
pressamente elaborados. Mas as atitudes dos Botocudos aparecem
nas fontes históricas de diversas formas. Podemos verificar que os
índios, pela resposta prática da resistência efetiva, além dos lances
ofensivos, defensivos ou vingativos que praticavam, também exprimiam
sua perplexidade diante dessa guerra. Saint-Hilaire recolheu uma
canção, da qual, infelizmente, não oferece a versão na língua original,
mas apenas a tradução em francês e português, que é a seguinte:
Figura4
22
José Pereira Freire de Moura [1810]. RAPM, II, pp. 31-6. Informação
reforçada pelo testemunho de Wied-Neuwied, t. 1, p. 273.
23
Jean-Baptiste Debret. Viagem pitoresca . .. , Prancha 28, n.• 10, "Cabeça de
Botocudo mumificada pelos Patachós". O mesmo autor refere-se aos Camacãs que
combatiam os Botocudos.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 125
FiguraS
Figura6
Figura 7
24
Diário de viagem ao rio Doce pelo governador Manoel Vieira Albuquerque Tovar,
abril de 1809. ln: Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da
província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. E, do mesmo perso-
nagem, "Navegação do rio Doce". Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t.
1 (3), pp. 134-8, 1839.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 129
evitar surpresas os membros da expedição de Tovar dormiam nas
ilhas ao longo do rio Doce. Durante vários dias o grupo dedicou-se a
cortar madeira para construção de barcos, quartéis e armazéns. A
destruição da floresta e a perspectiva de urbanização acompanhavam
a guerra aos índios. Logo se juntaram a eles os soldados da 12! Divi-
são, fugidos, pois "o Gentio os tinha perseguido". A numerosa expe-
dição de Tovar voltou a Vitória sem ter combatido os Botocudos, mas
deixando as bases para que o embate fosse feito de maneira eficaz.
Logo depois da passagem da expedição de Tovar eram erguidos
os quartéis de Aguiar e Anadia, sempre visando a "Guerra ao Gen-
tio". Entusiasmado, o governador escreve ao conde de Linhares in-
formando que o quartel que leva seu nome já tinha forja de ferreiro,
tecelão, olaria e novas casas não paravam de crescer, com derrubada
de matas para plantações de mandioca, milho e feijão. "Em poucos
annos sera hua das grandes Povoações do Brasil". 25 Três meses depois
de criado o Oliartel de Linhares, já se haviam estabelecido no local,
em pleno território indígena, 235 pessoas, sendo 172 livres (77 ho-
mens e 95 mulheres) e 63 escravos (58 homens e 5 mulheres). Sabe-
-se que a criação de núcleos urbanos sempre foi elemento básico para
a Conquista: era a cidade se opondo à floresta, como a civilização à
barbárie. A floresta capixaba em 1809 vivia em clima do século XVI:
Conquista de selvas nativas, guerra contra o Gentio e batismo de
lugares até então não colonizados. A capitania do Espírito Santo pos-
suía, em 1816, 76 engenhos e 65 engenhocas- o que era uma quanti-
dade semelhante à dos primeiros tempos da chegada dos portugueses.
Mas ao contrário do que o governadorTovar buscava dizer, não
se tratava exatamente de colonizadores voltados apenas para atividades
agrícolas. Pelo menos o sucessor de Tovar no governo, Francisco Al-
berto Rubim, não deixaria de assinalar: ''A Povoação de Linhares teve
principio com a gente mais ínfima: criminosos e desertores mandados
estabelecer naquelle lugar por meos antecessores". 26 A falta de um
povoamento colonizador é atestada pelo fato de que, oito anos depois
de criada, a povoação contava com 224 habitantes, ou seja, um ligeiro
decréscimo demográfico. Em 1810 foi criado um Batalhão de Arti-
lharia de Milícias na mesma localidade. Mas até meados de 1817 a
25
Cf. nota anterior.
26
Ofício de 12-11-1817, Correspondências dos governadores da capitania e
presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
130 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
31
Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas ... ", pp.
271.
32
Ofício de 18-4-1809, Correspondências dos governadores da capitania e
presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
33
A. Saint-Hilaire (1974), cap. I.
34
Ofício de 20-4-1815, Série Accioly, livro 67, p. 9, APES
132 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
37
Ofício de 6-8- 1809, idem, ibidem.
38 L ivro da capitania do E sp frito Santo, correspondência de 19-11-1808, AHE.
39
Livro da capitania doEsp frito Santo, correspondências de 22-7 e 10-10-1811,
AHE.
134 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
45
José Pereira Freire de Moura. Exploração no Jequitinhonha [1810]. RAPM,
II, pp. 31-6.
46
Ofício de 13-7-1820, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
136 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
47
Ofício de 16-1-1821. Correspondências dos presidentes da província do Espírito
Santo ao Ministério do Reino e do Império (IJJ9), AN.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 137
inimigo antigo e obter novas fontes de poder militar, de mão de obra
e de predomínio civilizador.
Mas a ida de Botocudos à cidade imperial também poderia ter
um impacto pedagógico (no sentido amplo) para as tribos: os índios
que empreendiam essa viagem presenciam pela primeira vez, com os
próprios olhos, a dimensão de uma cidade grande e da sociedade que
se desenvolvia após a chegada da Corte portuguesa - que não se
limitava às frentes de expansão e pequenos aglomerados urbanos que
lidavam diretamente com os grupos indígenas.
A província do Rio de Janeiro tinha cerca de 230 mil habitan-
tes e pelo porto da capital passaram, em 1810, 1.634 navios portu-
gueses e de outros países. O impacto desta visão de uma metrópole
em plena expansão pode ter alterado a própria concepção que os
Botocudos tinham sobre seus adversários luso-brasileiros e sobre a
amplitude de sua presença no território. Os índios que voltavam da
capital certamente traziam esse impacto e essa discussão para o inte-
rior das tribos. Os grupos de Botocudos que, nos anos subsequentes,
passam a buscar convivência pacífica com as frentes de expansão,
podem ter chegado a tal conclusão a partir da visão que iam adqui-
rindo sobre a amplitude da presença dos colonizadores muito além
das fronteiras dos territórios tribais.
A estratégia desencadeada pela ofensiva de 1808 não dera os
resultados fulminantes esperados pela Coroa nos três primeiros anos.
Os Botocudos estavam acuados, sofreram baixas e viram surgir cla-
rões de colonização no interior de seus territórios. Porém, além de
não dizimados, continuavam ocupando parcelas importantes da re-
gião e até reagiram de forma violenta aos ataques.
A demissão de Tovar do governo do Espírito Santo conduz à
administração da capitania um capitão de mar e guerra da Armada
Real, Francisco Alberto Rubim. Entretanto, a formação de militar
não o leva a continuar a guerra na maneira até então predominante.
Rubim toma novas iniciativas em relação aos Botocudos. Começa a
haver uma tendência de mudança de atitude das autoridades, que não
se limitam mais ao confronto. A guerra não fora abandonada, nem a
mobilização forçada da população civil capixaba. Mas para vencer os
índios, a administração Rubim começava a lançar mão, também, de
ações que visavam o desenvolvimento econômico mais imediato. O
progresso da região era não apenas objetivo final, mas meio essencial
para a submissão dos índios.
138 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
50
Ofício de 5-12-1818, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
140 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
O lndio tem os seos costumes, tem sua Religião, seja qual ella
for, he muito natural que elle [a]defenda com a sua vida, em
quanto não está persuadido do contrario.
Nos contatos que travou com essas tribos, ele demonstrou esta
abertura à cultura dos índios tentando se colocar do ponto de vista
deles, expressando suas visões dos homens brancos:
51 Copia de huma carta feita pelo sargento mor Eschewege acerca dos Botocudos e das
divisões da Conquista, com notas pelo deputado da junta Militar, Matheus Herculano Monteiro,
1811, 8, 1,8, n.• 166, f. 135, FBN/MSS.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 141
O engenheiro Eschewege, assim, parecera compreender o
perturbador jogo de alteridades desencadeado por esse conflito entre
os luso-brasileiros e os Botocudos: ele dizia que se os atos de violên-
cia desta guerra "são capazes de reduzir uma Nação civilizada ao
estado de barbárie, também o effeito contrário farão com uma Nação
bárbara". Com lucidez, ele alertava que o progressismo desenfreado
poderia levar as nações que se queriam civilizadas ao estado de barbárie.
Por isso, em vez de pregar o extermínio indiscriminado dos povos
indígenas, Eschewege acreditava que só os chamados métodos pací-
ficos, envolvendo diálogo e paciência, poderiam resolver essa guerra
entre Nações de civilizações distintas. E previa que apenas a guerra
ofensiva não resolveria a questão indígena do rio Doce. O futuro lhe
daria razão nestes pontos. Eschewege assinala que estas tribos deno-
minavam a si mesmas de Arari.
Ainda em 1811, ocorreram outras tentativas de fixação de colo-
nos nas áreas dos Botocudos. O coronel Bento Lourenço Vaz de Abreu
e Lima fez uma viagem pelo rio Mucuri, a mando do conde da Barca,
visando fundar uma cidade. Foi atacado pelos índios e não levou adiante
a empreitada como desejaria- mas de sua presença resultou a insta-
lação de uma fazenda, uma serraria e um quartel para proteger os
moradores.
No mesmo ano o colono João Filipe de Almeida Calmon teve
mais habilidade. Começou a instalar uma fazenda nos arredores de
Linhares, mas levava consigo um grupo de quarenta homens bem
armados e municiados. Logo que os trabalhos começaram eles foram
atacados por 150 Botocudos, reagiram, matando um índio. Em seguida,
passaram a fazer muito barulho com as armas para intimidar, mas
não atacaram mais as tribos e passaram a lhes oferecer presentes e
acenar com uma convivência pacífica. Usando esse estratagema, Calmon
conseguiu conquistar a confiança e ter uma convivência pacífica com
os índios, sendo durante muitos anos o único fazendeiro da região.
Logo ele construiu engenho, e tinha 25 pessoas trabalhando em sua
propriedade. Anos depois da morte de Calmon, os Botocudos ainda
se lembrariam dele como alguém que não buscou massacrá-los siste-
maticamente, ao contrário de outros fazendeiros. A fazenda de Calmon
se transformaria num ponto de encontro entre os Botocudos e a soci-
edade luso-brasileira durante esses anos cruciais. 52
52
A. Saint-Hilaire (1974), p. 92.
142 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
55 lbidem. Carta Régia dirigida ao conde dos Arcos, governador da Bahia, autorizan-
56
Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da província do Espírito
Santo . . .", p. 189.
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 145
das tropas regulares - que dificilmente tinham alvo fixo para atacar.
A própria organização social dos Botocudos (e seu desconhecimento
pelos adversários) era até então um trunfo dessas tribos.
Mais do que falar de vencidos ou vencedores, neste momento,
parece adequado perceber que a partir daí estabeleceu-se um novo
equilíbrio de forças, abriu-se outra etapa de relação entre essas tribos
e a sociedade que as cercavam. Os Botocudos saíram enfraquecidos,
mas não dizimados. Houve muitas mortes e demarca-se nova fase do
contato com tais índios, mas não ainda o fim do longo conflito. O
comportamento das tribos foi diverso. Alguns grupos foram derrota-
dos, com muitos mortos e até desapareceram. Outros acabaram acei-
tando convívio intermitente. Sem esquecer os que se incorporaram
aos postos indígenas e à vida da sociedade, como agregados, forman-
do famílias, trabalhando em instituições públicas ou, ainda, como
escravos. E alguns continuaram arredios, embrenharam-se nas ma-
tas. Mas de qualquer maneira abriu-se à força caminho para uma
aproximação com os Botocudos - o que implicava mais conheci-
mento sobre eles, mais controle e importantes alterações na vida des-
tes povos.
A violência sangrenta da guerra abriu caminhos para as Luzes
do progresso e da ciência (seria, a seguir, o tempo onde se forjavam a
Independência, a modernidade política e os primeiros esforços de
construção nacional do Brasil), dando continuidade à tarefa de deci-
frar e dominar esses grupos indígenas até então arredios.
A ofensiva do "Reino Unido de Portugal e do Brazil e Algarves
d'aquem e d'alem Mar em Africa, de Guine e da Conquista, Navega-
ção, Commercio em Ethiopia, Arabia, Persia e da India" abalou mas
não destruiu as nações de Botocudos. Daí por diante, o desafio estaria
colocado para o Império do Brasil.
Vale assinalar que o estudo dessa guerra contra grupos indíge-
nas no Espírito Santo e Minas Gerais no começo do século XIX
permite reflexão sobre elementos importantes para a compreensão
das relações dos índios com a sociedade luso-brasileira, que em breve
se transformaria em brasileira. Apesar da guerra de extermínio ofi-
cialmente decretada e praticada, das múltiplas violências e dos pre-
conceitos existentes contra as populações indígenas, elas deixavam
sua marca na sociedade, não só no âmbito das políticas oficiais e das
atividades administrativas e bélicas, como é evidente, mas também de
forma cultural e social.
146 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
57
A Saint-Hüaire (1830), t. 2, p. 227.
58
Ofício de 17-2-1819, Correspondências dos governadores da capitania epresiden-
tes da prov{ncia do Espfrito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
59
Ofício de 30-8-1815, Série Accioly, Livro 67, p. 15, APES.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 147
Estes exemplos, simultâneos à guerra ofensiva e mesclando pre-
conceito, ascensão social e disputas no interior das hierarquias esta-
belecidas, seriam apenas casos isolados? Tudo leva a crer que não.
O relato de Saint-Hilaire sobre a capitania do Espírito Santo é
sintomático: o viajante francês respirava a presença indígena não só
no meio rural ou nas frentes de combate no rio Doce, mas sobretudo
no ambiente urbano. Ele destacava essa influência na alimentação, no
vocabulário, no sotaque e entonação das falas, nas roupas, nos com-
portamentos e costumes e no aspecto físico, marcando, segundo ele,
especificidade em relação a outras capitanias que conhecera. 60
Reforçando esses registros, é impressionante verificar como le-
vantamentos demográficos capixabas, além dos dados de batizados,
casamentos e óbitos, ainda nos anos 1840 e 1850, revelam considerá-
vel presença indígena numa província situada entre os dois principais
polos de poder do Brasil nos séculos XVIII e XIX, Bahia e Rio de
Janeiro. 61 Os índios e seus descendentes imediatos eram parte inte-
grante e ativa da sociedade que se formava, em posição subalterna ou
disputando espaços nas hierarquias estabelecidas.
Ou seja, os Botocudos e outras tribos, mesmo quando derrota-
dos militarmente ou forçados à vida sedentária, não desapareciam de
uma hora para outra. Estavam nas residências urbanas, nas fazendas,
mesclando-se à vida doméstica e do trabalho. Entretanto, na segunda
metade do Oitocentos, sobretudo a partir do reforço das levas de imi-
grantes europeus vindos como colonos, diminui a visibilidade da pre-
sença indígena nesta vasta área que passaria a ser parte da região
Sudeste - o que é também uma questão de memória e ocultação
histórica coletiva, de escolhas e identidade.
61
V. documentação na Série Accioly, vol. 311, APES. Para a presença indíge-
na na região Sudeste no século XIX, v. o trabalho preliminar de Bessa Freire &
Malheiros. Aldeamentos ilndígenas no Rio de janeiro. . ., 1997 e a dissertação de M.
Santanna Lemos, cit.
Capítulo 5
VIAJANTES DESCOBREM A
"CORDIALIDADE DOS SELVAGENS"
1
Os trechos a seguir foram retirados de M. Wied-Neuwied, tomos I e II. Para
a biografia deste autor e análises de sua obra, v. H . Baldus,J. Roder e Oceanos (Revi sta,
n.• 24, 1995).
148
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 149
científicas, esta passagem entre os séculos XVIII e XIX, entre a Ilus-
tração e cientificismo historicista.
Mas a tempestade da Revolução Francesa, a guerra contra Na-
poleão Bonaparte, doenças, mortes prematuras e acasos diversos acaba-
ram por colocar Maximilien na condição de príncipe de Wied-Neu-
wied. Ele não fugiu à luta nem à solidariedade com a aristocracia, à
qual pertencia. Oficial das tropas monarquistas, esteve à frente de
episódios decisivos. Foi preso na batalha de lena, trocado por outros
prisioneiros, voltou a combater. Vitoriosos os restauradores da mo-
narquia, ele participou da ocupação de Paris ao lado das tropas con-
trarrevolucionárias austríacas e inglesas em 1814. Os canhões ainda
fumegavam em 1815 e o príncipe Maximilien nem vacilou: aprovei-
tando a abertura do Brasil às nações amigas, partiu imediatamente
para realizar seu velho sonho. Equipado de outras "armas", ele não
pensava mais em combater revolucionários e só queria coletar pássa-
ros, animais, plantas e minerais raros, além de conhecer povos exóti-
cos. Zarpou para o Rio de Janeiro, de onde pretendia realizar uma
ambiciosa expedição pelo interior do Brasil. Ao chegar nos trópicos,
ele apresentou-se com papéis adulterados, escondendo sua identidade
principesca: para todos os efeitos era apenas o erudito cidadão
Braunberg.
Do cerne da luta entre Revolução e Restauração o príncipe
Maximiliano mergulharia em outro ponto nevrálgico daqueles tem-
pos, onde se dava o encontro e o confronto entre os índios e a civili-
zação ocidental. Ao contrário de outros viajantes, que evitavam o ter-
ritório dos "índios bravos", o príncipe Maximilien foi quase em linha
reta para a região dos rios Doce e Belmonte, almejando conhecer de
perto os tão falados Botocudos, contra os quais o rei de Portugal
declarara guerra, sem conseguir, entretanto, aniquilá-los. À frente de
uma pequena tropa (Figura 8) de mulas carregadas de caixas, vidros e
gaiolas, o príncipe Maximilien (Figura 9) era figura curiosa adentran-
do nas selvas tropicais: sempre vestido de casaca, botas e uma
indefectível cartola (substituída nos momentos de mais calor por lar-
go chapéu de palha). Com tal ar inofensivo, lembrava o viajante na-
turalista alemão Meyer, personagem do romance Inocência, do vis-
conde de Taunay.
150 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 8
Nosso plano era terminar a busca com a maior rapidez, mas nos
caminhos estreitos que serpenteiam entre as árvores gigantes-
cas desta floresta, uma multidão de pássaros interessantes atra-
sou nossa caminhada; nós matamos alguns e eu me preparava a
recolher uma ave no chão quando uma voz rouca me chamava
de um tom breve e duro; eu me retornei rapidamente e imagi-
nem a minha surpresa quando vi atrás de mim vários Botocudos
nus e morenos como os animais das florestas, todos com gran-
des placas de madeira branca nas orelhas e no lábio inferior;
reconheço que fiquei um pouco estupefato.
detalhada e por alguém que não se colocava, apriori, como seu inimigo,
colonizador ou catequizador. A crer na lógica das narrativas existentes,
o príncipe de Wied-Neuwied seria trucidado e devorado. Mas o altivo
germânico, verificando que nenhuma agressão se consumava e passado
o primeiro susto, caminhou direto para os índios, as mãos estendidas,
disse-lhes duas ou três palavras que aprendera previamente no idio-
ma deles. Procurou não mostrar nem rancor nem pânico, sentimentos
que geralmente guiavam os homens brancos diante desses índios.
Do outro lado do encontro estava a tribo do chefeJune, ouJuné,
cujo nome indígena era Kerengnatnouck (retratado nas Figuras 10 e
11). Além do desenho, o naturalista traçou-lhe retrato escrito: já idoso,
rosto sulcado de rugas, dava a impressão de ter a cara sempre zangada,
mas facilmente se tornava expansivo e generoso. Seu botoque no lábio
era maior que o dos demais, media cerca de quatro polegadas e apesar
da idade era musculoso, rijo e carregava dois pesados fardos nas costas,
além do arco e flechas . Logo, vieram outros guerreiros igualmente
armados e com os cabelos negros e lisos cortados rente, em forma de
coroinha no alto da cabeça. As mulheres, carregadas de pacotes e
crianças, eram as mais curiosas. Eles já haviam percebido a presença
do viajante muito antes do que este pudesse imaginar, mas não pensa-
ram em atacar alguém que andava tão sozinho e despreocupado pela
floresta, com trajes diferentes dos que costumavam ver. O grupo olhava
curioso aquele espécime raro que lhes cruzara o caminho. Eles mira-
vam o naturalista de alto a baixo e trocavam comentários entre si.
Figura 10
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 153
Figura 11
2
M. L. Pratt. Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 155
óleo, alguns dos principais nomes da arte, no Brasil, deram sua con-
tribuição para o conhecimento visual dos Botocudos. Durante muito
tempo essas imagens foram tidas como "documentos" ou reproduções
fiéis e realistas da aparência e dos costumes desses índios. Entretanto,
com a distância de quase dois séculos, a tendência é de compreender
esses primeiros ícones não só como "retrato" e registro da cultura
material, mas também como produto de determinadas concepções
artísticas e culturais daquela época, geradoras de imagens.
A comparação, por exemplo, entre as duas imagens do índio
June (Figuras 10 e 11) traz aspectos interessantes. Na Figura 10, feita
originalmente a partir de indicações do próprio príncipe de Wied-
-Neuwied, existe como que um equilíbrio entre registro etnográfico
e composição artística. O índio aparece com seu corte de cabelo,
ornamentos, armas e mergulhado na natureza (água e vegetação) e
com o produto da caça. Da mesma forma sua mulher, atrás, carregan-
do os filhos (um nas costas), além dos respectivos utensílios orna-
mentos e características físicas, como representante do grupo domés-
tico na divisão de tarefas. O grupo em caminhada reforça a ideia de
nomadismo.
Entretanto, na Figura 11, refeita para publicação e difusão, pa-
rece haver uma concessão ao gosto do mercado editorial, visando um
público mais amplo e correspondendo a determinados lugares-co-
muns relativos à vida selvagem: destaca-se a expressão de ferocidade
de June (que não existe tão acentuada na Figura 10, onde há uma
expressão severa) e o órgão genital masculino é escondido. Dessa
forma, entre a percepção do artista ou cientista (carregada com seu
conjunto de valores e conhecimentos) e a veiculação da iconografia
impressa existe uma teia de mediações que ajuda a compor a imagem
dos índios.
Wied-Neuwied anotou a existência de cinco tribos (ele grafava
"Botocoudys") na região de Belmonte: as que eram chefiadas por
Gipakein (chamava-se de Mariênghiêng em sua própria língua),
Jéparack e por }une ouJuné (Kerengnatnouck) viviam em paz com os
luso-brasileiros. Enquanto as tribos chefiadas por Jonué Iakiiam (nas
margens setentrionais do rio Belmonte) e por Iakiim recusavam qual-
quer contato com os brancos e mesmo com outras tribos. Logicamente,
ele (e todos os que lhe sucederam) escreve baseado nas tribos que
aceitavam o contato. Mas não explica, entre outras coisas, o motivo
dessa duplicidade de nomes dos chefes, que serviam para batizar as
156 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 12
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 157
Eram antagonismos sangrentos que podiam ter longa duração.
Anos mais tarde Teófilo Ottoni confirmaria o teor da guerra entre os
Nacknenukes (tribo de Botocudos) com os Malalis. O conflito vinha
de 1787, quando os últimos, acossados, foram procurar proteção dos
portugueses em Minas Novas e aí se instalaram num quartel militar.
Recrutados à força, submetidos a constantes torturas e violências
pelos soldados, os Malalis foram aniquilados ao longo dos anos. Nos
anos 1820, os poucos Malalis que restaram acabaram fugindo do
quartel e voltando para as selvas. Aí, depararam-se com os Botocudos
e foram dizimados. Apenas alguns poucos voltaram ao quartel onde
contaram a história. Esse relato, acompanhado de outros, confirma a
importância da facciosidade na vida destes grupos, originando con-
fronto com outras tribos, acirrados durante a Guerra de 1808-1824,
quando as divisões territoriais tradicionais entre as etnias eram despe-
daçadas pela presença maior de tropas luso-brasileiras.
O príncipe de Wied-Neuwied teve oportunidade de presenciar
um combate ritual (Figura 7), sem mortes, entre duas tribos rivais de
Botocudos- e não pôde evitar que na sua mente surgissem compa-
rações com os torneios da Europa medieval, o que revelava já um
traço da sensibilidade romântica. O motivo da rivalidade foi o fato de
o chefe June ter caçado porcos-do-mato (pecari) nos terrenos de
Juparack. Como o limite das áreas de caça era importante para essas
tribos, o gesto foi considerado ofensa, crescendo assim a rivalidade
entre os dois grupos, que dividiam, também, a atenção dos brancos. 3
O encontro entre os dois grupos foi marcado para uma clareira
próxima ao quartel na beira do rio Mucuri. Os não índios assistiam
guardando distância e armados para qualquer eventualidade. Arcos e
flechas foram depositados à parte e os homens de cada tribo porta-
vam grandes varas. Os homens de June estavam com o rosto pintado
de vermelho e negro. Juparack adianta-se e entoa longa canção, que
devia ser um desafio: ele mantinha os olhos bem abertos e fixos e
seus homens formavam um círculo em torno dele. As mulheres e
crianças permaneciam de fora, mas formavam suas respectivas torci-
das, manifestando-se por gritos e gestos. Terminada esta parte
introdutória, um homem de cada lado avança e ambos se batem com
3
Esses combates rituais para resolver disputas foram registrados entre Ai-
marés no século XVII, cf. o jesuíta Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p.
406.
158 CERCO AOS BOTOC UDOS NO SÉCULO XIX
4
J.-P. Chaumeil. Echange d'énergie: guerre, identité et reproduction sociale
chez les Yagua de I' Amazonie Péruvienne.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 159
da: "O encontro foi muito afetivo. O capitão June canta uma canção
para testemunhar sua alegria, e alguns viram-no chorar de prazer."
Ol"tando foi apresentado a outro chefe, Gipakein, Neuwied con-
ta: "Ele me aperta diversas vezes contra seu peito".
Mesmo que Wied-Neuwied olhasse para os índios impregna-
do de seus valores culturais europeus e românticos, está claro que as
manifestações de afetividade que ele presenciou eram traço marcante
do comportamento dos Botocudos e não fruto da invenção ficcional
do naturalista. Desse modo, há um contraste entre a impressão colhi-
da no terreno e registrada por escrito e outros relatos (escritos e
iconográficos) que apontam os Botocudos como bestiais e ferozes.
Neuwied narra ainda: os Botocudos que conheceu gostavam muito
de brincar e cantar, sobretudo depois da caça ou da pesca. Eles usavam
a pele da preguiça amarrada e dobrada como uma espécie de bola
para jogar: em círculo, arremessavam-na entre eles sem deixá-la cair.
Em relação às crianças, o naturalista testemunha: "Eles amam
muito seus filhos enquanto são pequenos e têm um grande cuidado
com eles". Eles tratam as crianças com benevolência ou, na sua visão,
"lhes deixam fazer todas as suas vontades", mas quando elas exageram
nos gritos e barulhos levam uma advertência, que pode ser empurrão,
sacudida, tabefe ou até um golpe de vara. E mesmo em plena guerra
ofensiva do período joanino, os Botocudos ainda sabiam brincar, como
testemunhou o mesmo viajante, com preferência para os divertimen-
tos quando tomavam banho de rio (Figura 13). Acrescentava-se as-
sim mais um traço ao perfil de cordialidade desses índios percebido e
composto por Neuwied, em palavras e ícones.
Figura 13
160 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 14
,I
Figura 15
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 163
Eram cabanas simples, algumas arredondadas, no meio das quais
se conservava o fogo e várias famílias dormiam juntas. Qyando ficavam
mais tempo no mesmo lugar acrescentavam galhos e grandes folhas,
aprimorando a habitação. Mas não havia aldeias fixas. Depois de três
séculos de pouca visibilidade, o interior da habitação dos Botocudos
reproduzia-se impresso e a cores pelos quatro cantos do mundo.
Os Botocudos conheciam a cerâmica. Entre os utensílios esta-
vam potes para cozinhar (feitos de argila e cinza), grandes cantis para
guardar água fresca, cabendo às mulheres e crianças buscarem a água.
Os vasos e copos (kêkrock) eram feitos de pedaços de bambu corta-
dos, utilizando os nós como fundo; quando estes últimos estão racha-
dos, as rachaduras são vedadas com cera da abelha. Cada tribo pos-
suía, já nessa época, pelo menos um machado de ferro e os facões
eram bem recebidos - o que mostra alguma espécie de comércio
entre os Botocudos e os luso-brasileiros, apesar da guerra ofensiva
ainda em vigor. Paralelo ao afrontamento, havia formas de convivên-
cia e de troca que se estabeleciam. Possuíam alguns cães magros como
animais domésticos.
Entre os alimentos, a carne de macaco é considerada a melhor
iguaria. Comem toda espécie de animais, como o jaguar (couparack
ou Kuparak) ou jacaré, mas entre as cobras só aceitam a carne da
sucuri. Alimentam-se também de larvas de insetos, de aves e colhem
frutas selvagens e mel de abelhas. Não usam sal nos alimentos.
Wied-Neuwied fez ainda investigações sobre o canibalismo,
uma das questões centrais no relacionamento com os luso-brasilei-
ros, que usavam essa afirmação como argumento para legitimar as
guerras de extermínio. O cientista germânico não chega a conclu-
sões definitivas, embora tenha a tendência a responder afirmativa-
mente, pela existência desse hábito, por motivos rituais e não para
alimentação.
Um dos Botocudos ficou sendo auxiliar, guia e companheiro de
viagem de Neuwied. Era Qyêck, que num deslize possessivo o natu-
ralista chamava de "meu Botocoudy", o qual narrou ao viajante o
seguinte caso: o chefe Jonué Coudji, filho de Jonué Iakiiam, prendeu
um índio pataxó. Toda a tribo se reúne diante do prisioneiro, de mãos
amarradas. O chefe o mata com uma flechada. O fogo é aceso. Os
braços, as coxas, primeiro, e por fim todas as partes do corpo do
prisioneiro são cortadas em pedaços e assadas. Todos comeram e de-
pois se puseram a dançar e cantar. A cabeça foi suspensa a uma corda
164 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
que entrava pelas orelhas e saía pela boca. Os jovens atiravam flechas
contra esse alvo e a cabeça era posta a secar.
Entretanto, não se conhece registro de nenhum testemunho direto
desses rituais, nem nunca foi encontrado despojo de cabeças ressecadas
entre os Botocudos.
Esses índios usam remédios à base de plantas medicinais, que
servem também para o preparo de venenos. Para dor de barriga, por
exemplo, esfregam casca de tatu ou de tartaruga sobre o ventre.
Em relação à morte, já foi dito que o enterro ocasionava mudan-
ça do local do acampamento. O enterro é feito na cabana ou perto.
No primeiro dia, segundo Neuwied, o morto é carpido com gritos e
choros dos parentes, cuja intensidade espantou o europeu. "As mulheres
parecem loucas", afirmou. O cadáver tem as mãos amarradas com cor-
da, sem ornamentos e objetos entre as tribos no rio Mucuri, mas com
armas e víveres no rio Doce. O túmulo era cuidado durante algum
tempo, a fim de afastar os "maus espíritos", e às vezes erguia-se sobre
a sepultura uma pequena cabana de folhas de coqueiro. As mulheres
cortavam os cabelos em sinal de luto. Os "maus espíritos" eram dois:
Janchon Gipakeiu (grande) e Jauchon Coudji (pequeno). Note-se que
esses nomes coincidiam com os nomes de dois chefes de tribos na
época. Neuwied disse ter ouvido dos índios que os "espíritos" eram
presentes na vida das tribos por diversos meios: atravessavam as caba-
nas, causando mortes; batiam nos cachorros até matar; matavam crian-
ças que fossem buscar água. O medo dessas manifestações os impedia
de sair à noite na floresta. 5
Nos dados colhidos por Neuwied, eles veneravam a Lua (tarou).
O Sol chamava-se taroudipo; o trovão, taroudecouvoung; o vento,
toutoutatouo. Os dois últimos seriam gerados pela Lua, que influen-
ciava as colheitas e o tempo.
O viajante estabeleceu um vocabulário com algumas palavras e
frases, que foi assim o primeiro publicado da língua desses índios. Ao
final de sua viagem, o príncipe Maximilien de Wied-Neuwied leva
Qyêck (ambos retratados na Figura 16), o "seu" Botocudo, para o
Rio de Janeiro e depois para Europa. Esse Botocudo morou por muitos
anos no castelo de Wied-Neuwied, onde está enterrado.
5
Para uma visão de conjunto sobre as concepções cósmicas, espiritualidade e
xamanismo desse grupo étnico, v. o pioneiro trabalho de A. Métraux (1930) e, recen-
temente, o levantamento e análise sistemática de I. M. Mattos. Civilização e revolta.
Os Botocudos e a catequese na província de Minas . .. , capítulo 3.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 165
Figura 16
***
Logo depois de Wied-Neuwied, em fins de 1817, foi a vez do
francês Auguste de Saint-Hilaire passar algum tempo entre os Boto-
cudos, dessa vez em torno dos rios Doce e Jequitinhonha. A obra de
Saint-Hilaire só veio a ser impressa treze anos depois, isto é, em 1830.6
Baseado em sua viagem ao Brasil e em estudos a anotações posterio-
res, este francês construiu uma notável carreira no mundo da ciência:
membro da Academia Real de Ciências do Instituto da França, da
Sociedade de História Natural de Paris, da Academia de Lisboa, da
Sociedade de Ciências Físicas de Genebra, entre muitas outras institui-
ções. Tratado com grande respeito pelas elites culturais brasileiras, a
obra de Saint-Hilaire foi durante muito tempo uma das principais e
mais completas referências de tudo que se escrevia sobre o Brasil no
vasto âmbito das Ciências Naturais.
Na primeira edição das viagens de Saint-Hilaire, nos dois tomos
que tratam das províncias do Rio Janeiro e Minas Gerais, não passam
despercebidas duas interessantes homenagens prestadas pelo autor.
Abrindo o primeiro tomo, há uma litogravura mostrando não uma
pessoa, mas uma casa. Na legenda, explica-se que era a residência do
duque de Luxemburgo no Rio de Janeiro. Tratava-se do embaixador
extraordinário da França no Brasil, responsável pela vinda de Saint-
-Hilaire que, assim, dedica o trabalho a seu protetor, prática comum
nos Antigos Regimes, quando os nobres eram mecenas de artistas e
escritores.
Na abertura do segundo tomo há outra homenagem icono-
gráfica, que desta vez traz a litogravura de um homem (Figura 17).
Trata-se de um jovem, com traços mongólicos, olhar meio estrábico,
expressão séria, compenetrada, vestindo casaca, colete e blusa desa-
botoada no peito. Percebe-se um furo grande na orelha e outro menor
6
As viagens ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo estão publicadas
em A. Saint-Hilaire t. I e II, 1830, e [1833] 1974.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 167
no lábio inferior, cabelos escuros, lisos e curtos, com franja caindo
sobre a testa. A expressão, no fundo, não é das mais sorridentes e
parece estar implícito, discreto, um certo ar de contrariedade na boca
vincada ou no olhar direto, quase desafiante. Na legenda da litogravura,
lacônica, apenas um nome: "Firmiano".
Figura 17
22
Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o
conhecido estudo de R. Barthes (1980).
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 169
antropofagia era uma mentira inventada pelos portugueses como pre-
texto para destruir seu povo. Ele admitiu, no entanto, que esta calúnia
pode ter sido originada pelo hábito de se descarnar e mutilar os cor-
pos dos inimigos mortos em combate.
Saint-Hilaire registrou que as tribos em torno dos rios Doce e
Jequitinhonha se autodenominavam "Crecmun" ou "Cracmun". Cada
tribo tinha entre cinquenta a cem guerreiros, além das mulheres e
crianças. Ou seja, confirma-se a divisão entre o grupo doméstico e o
grupo caçador-guerreiro, mas o francês acrescenta que os velhos (ho-
mens e mulheres) eram muito respeitados e sempre ouvidos nas ques-
tões de importância, além de exerceram a função de sentinelas duran-
te a noite, enquanto os demais descansavam dos trabalhos diurnos. O
chefe era homem e o posto não era hereditário.
Ao contrário de Neuwied, Saint-Hilaire afirma que o principal
culto desses índios era ao Sol, a quem pediam forças para vencer os
inimigos. A Lua serviria para proteger as caminhadas noturnas -
outro ponto de diferença entre as observações do germânico e do
francês .
Para o francês, a pele dos Botocudos tinha cor de "bistre" (mar-
rom enegrecido).
Diante da morte, os Botocudos choravam muito, confirma Saint-
-Hilaire. E acrescenta que eles enterravam os mortos de braços do-
brados sobre o peito, com as pernas dobradas sobre o ventre. Como
as covas eram rasas, os joelhos às vezes saíam fora da terra. Os paren-
tes plantavam quatro varas iguais em torno da sepultura e acrescenta-
vam mais uma em forma de travesseiro, além de construir um peque-
no abrigo com folhas de palmeira. O local era ainda limpo e enfeitado
com penas de pássaros e peles de animais selvagens, mas o luto dura-
va pouco tempo.
Outra característica destacada em diversas oportunidades pelo
viajante francês é que os Botocudos gostavam de cantar. Constante-
mente expressavam-se por meio do canto, letra e música, incorporan-
do tal hábito em diversos momentos da vida cotidiana. Qyando estão
emocionados, tristes, magoados, alegres, enfim, quando querem ex-
primir algum sentimento mais importante, eles põem-se a cantar, tom
monocórdio, voz anasalada gutural.
Saint-Hilaire presenciou certa vez uma dessas cantorias. Um
índio chamado Agostinho, da tribo de Joahima, ficou por muitas
horas diante da porta do posto militar cantando tristemente. Em seu
170 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
7
Informações e análises contidas em Leônia C. Resende. Gentios brasílicos:
índios coloniais em Minas Gerais setecentista . . ., capítulo 6; agradecemos à autora que
gentilmente cedeu o texto ainda inédito.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 171
no Brasil, Saint-Hilaire permitiu que ele voltasse a Minas Gerais,
mas expressou por escrito ao compatriota e diretor dos Índios, Cuido
Marliere, que impedisse o jovem Botocudo de retornar às selvas,
mantendo-o retido no aldeamento. Diante de tal situação, Firmiano
reagiu com ousadia, incitando os índios aldeados à rebelião e atacan-
do gado e propriedades, o que levou Marliere a tomar uma medida
drástica: prendeu-o em 1826 e remeteu para o Rio de Janeiro; desta
localidade o jovem Botocudo deveria seguir, alistado à força, como
soldado para lutar na Guerra Cisplatina (1825-1828), no extremo sul
do país - de onde, ao que se saiba, não voltou.
Saint-Hilaire, entretanto, passa a assumir uma postura intelec-
tual de defensor da condição humana dos índios, isto é, da capacidade
deles de raciocinar, ter e expressar sentimentos e de ascenderem ao
progresso civilizado nos moldes europeus - postura que não corres-
pondia ao comportamento "bravo" de boa parte da população não
índia brasileira e que encontraria resistência e geraria atritos no inte-
rior de instituições científicas europeias, como se verá adiante.
Os conhecidos Carl voo Martius e voo Spix, viajantes entre
1817 e 1820, deixaram registro mais superficial sobre os Botocudos. 8
Superficial e preconceituoso. Entretanto, a cena que eles vislumbra-
ram não podia ser mais simbólica da situação em que viviam esses
índios no século XIX. Numa trilha de terra batida que cortava aquele
trecho da Mata Adântica, um bando de índios, homens e mulheres,
caminhava silenciosamente. Taciturnos, calados, mas caminhando. As
faces estavam pintadas de vermelho, com traço negro atravessando de
orelha a orelha sob o nariz. Alguns traziam facão pendurado no pes-
coço com uma corda fina. Eram índios originários do rio Doce que,
depois de contatados, haviam sido transferidos para a confluência dos
rios Jequitinhonha e Araçuaí, onde havia outros Botocudos que re-
cusavam o contato. Considerados "meio mansos", eles foram enviados
para servirem como ligação e facilitar o trabalho de incorporação.
Depois de percorrerem o trajeto de ida, estavam voltando ao rio Doce,
mas ainda no meio do caminho entre a civilização ocidental e suas
identidades culturais. Era um caminho árduo, onde idas e vindas pa-
reciam não ter volta, nem chegada. Estavam sérios, calados, amargu-
rados e caminhavam. Cruzaram pelos dois viajantes europeus e não
os atacaram, nem os adularam. Continuaram andando. O encontro,
8
Spix & Martius. Viagem pelo Brasil. ..
172 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
fugaz, se deu entre Minas Novas e Vila do Bom Sucesso. Mas parece
ter sido suficiente para a publicação de uma gravura no livro de Martius
com um rosto masculino de Botocudo (Figura 18).
Figura 18
f'l CJ'I' OI '!' D I J
Figura 19
9
C. Martius. Glossarios de diversas lingoas e dialectos quefallão os indios no Imperio
do Brazil. .. (1867).
10
J. M. Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil. . .
11
Sobre este artista, v. P. Diener. Rugendas e o Brasil .. , 2002; para a circula-
ção e recepção da obra brasileira do pintor, com suas diferentes leituras, v. o artigo de
C. Zenha, O Brasil de Rugendas ... 2002.
174 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura20 Figura21
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 175
Neste caso, a exemplo do que fizera também com escravos afri-
canos, a pintura de Rugendas tinha intenções etnográficas, de regis-
trar características físicas de diferentes "raças" ou "nações" no Brasil,
além de artefatos de sua cultura material. Era a arte-ciência, ten-
dência de vanguarda na época, quando a fotografia ainda não fora
desenvolvida. Porém, a Figura 20 chama atenção por alguns aspectos
mais estéticos e subjetivos do que propriamente de anotação objetiva
e científica. Seria fácil dizer que o rosto dessa mulher foi desenhado
com traços europeizados, românticos e embranquecidos e represen-
taria, portanto, uma deturpação do pintor. A expressão feminina tem
até uns olhos de ressaca, como na personagem Capitu, de Machado
de Assis. Entretanto, esse tipo de crítica só faria sentido se consi-
derássemos a pintura em questão como documento fidedigno (ou
falso). Mas o desenho, visto como produção artística em todas as suas
implicações, reforça de maneira marcante a expressão sentimental da
índia retratada e, assim, contribuía naquele contexto para humanizar
a imagem desses índios: contrapunha-se à legenda de ferocidade
então predominante e associava-se aos relatos que destacavam a cor-
dialidade. Ao mesmo tempo, não se enquadrava na "feiúra" tão
comumente associada aos Botocudos daí por diante. Posteriormente,
fotografias e relatos escritos reforçariam esta percepção humanizada.
Algumas mulheres Krenak, além de ainda fabricarem um colar bem
semelhante ao da figura, têm, como pude captar, este mesmo tipo de
olhar entre nostálgico e meigo - que, aliás, não é apenas caracterís-
tico das pessoas classificadas como índias. O rosto masculino (Figura
21) também aparece despojado do ar de ferocidade, apesar dos vincos
no rosto, que lhe dão um toque realista e aparência sofrida.
Já o pintor francês Jean-Baptiste Debret (discípulo e primo de
Jacques-Louis David, o neoclássico que se destacara nos salões dos
fins do Antigo Regime francês, se integrara às atividades artísticas
da Revolução Francesa e tornara-se artista oficial de Napoleão
Bonaparte) teve um projeto ambicioso. Um dos fundadores da Escola
de Belas-Artes no Rio de Janeiro, responsável pelas principais pintu-
ras de temas históricos contemporâneos da época da Independência
(como a coroação de D. Pedro I), Debret associou sua atividade pic-
tórica à formulação de uma imagem nacional para o Brasil. Co-
meçando sua viagem - que batizou de pitoresca e histórica -
pela nação que se formava, realizou "viagens" sem sair da Corte. E
estabeleceu rigoroso plano para seguir o que chamava de "marcha
176 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
12
Sobre o "retrato do Brasil" por Debret, v. Lima, Uma viagem com Debret. ..
(2004). Consultar também T. Hartmann. A contribui;ão da iconografia para o conheci-
mento de índios brasileiros do século XIX . .
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 177
ticular dos selvagens, que eu deveria acabar nas florestas vir-
gens do Brasil. 13
Figura22
13
J.-B. Debret. Viagem pitoresca e hist6rica ao Brasil. ..
14
Ibidem.
178 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura23
15
Para o predomínio da concepção foosta das espécies no início do século XIX,
v. o artigo de F. Tinland. "Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon".
180 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
16
F. Denis. Descripção histórica do Brasil. .. , 1845.
VIAJANTES DECOBREM A "CORDIALIDADE DOS SELVAGENS" 181
nea, pois a condição dos índios no território brasileiro envolvia inte-
resses e visões complexas.
Durante e depois da guerra ofensiva, veio o contato com a leva
de intelectuais europeus nas duas primeiras décadas do século XIX
- artistas e cientistas. Depois da Igreja e das armas, as ciências e as
artes descobriram os Botocudos. É interessante notar que na percep-
ção de homens como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Rugendas e
Debret ressalta-se a humanização e, até, a cordialidade dos índios
encontrados, em contraste com os tradicionais registras de ferocida-
de. Oriundos ou herdeiros da República das Letras europeia, im-
pregnados da tradição humanista do Renascimento ou universalista
da Ilustração, suas sensibilidades contrastavam com as dos homens
das letras, administração e armas do universo luso-brasileiro, para os
quais os índios eram prioritariamente um problema a ser resolvi-
do, um obstáculo a ser superado, um inimigo a ser combatido ou
escravo a ser dominado. A perspectiva eurocêntrica dos homens de
letras e artes, uma espécie de vanguarda intelectual da época, caracte-
rizava os mesmos índios como: imperfeitos, inferiores, incivilizados,
mas interessantes objetos de estudo, humanos e passíveis de afeto e
aprimoramento.
Ao mesmo tempo, tal descoberta estava vinculada à Guerra de
1808-1824 e ao recrudescimento das frentes de expansão, sem as quais
não teria sido possível a tais europeus se aproximarem dos índios,
como representantes da mesma civilização ocidental.
A partir de então estes índios passam a ser objetos de pesquisas
e estudos, fossem estéticos, fossem científicos - afora os contatos
explicitamente colonizadores. Era o ponto de partida para verdadeira
avalanche cultural em torno dos Botocudos que, expandido-se pelas
fronteiras nacionais e internacionais, estaria em voga pelo menos até
a primeira década do século XX. Surgem daí mutações significativas
nas imagens e representações sobre esses índios, permeadas por com-
plexas interações entre a percepção dos agentes culturais e a propaga-
ção do material produzido por eles para diferentes públicos, contex-
tos e mentalidades. Manter a legenda de ferocidade atribuída aos
índios que se submetiam (sem maiores reações) a tais atividades de
pesquisa só fazia aumentar a aura de exotismo e o interesse em torno
deles - que, ao que se sabe, nunca mataram um artista ou cientista.
A transformação dos Botocudos em objetos dessas pesquisas talvez
tenha ocasionado uma das faces mais paradoxais dentre as formas de
182 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
1
Essa contradição entre agentes da sociedade brasileira oitocentista é apontada
por M. M. C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.). História
dos índios no Brasil. .. , p. 134, que, entretanto, afirma que tal dicotomia diminuiu a
partir de 1808, o que não nos parece comprovado para o caso aqui estudado.
2
Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo. .. , 12-4-1822, AN.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 185
O quadro traçado pelos governantes provinciais era semelhante
ao das épocas anteriores. Desta vez, apresentava-se de maneira mais
clara a preocupação com a falta de progresso, isto é, do atraso do
Espírito Santo, no qual os Botocudos tinham papel decisivo. Estava
evidente, mais uma vez, que a ofensiva guerreira não alcançara plena-
mente êxito. Porém, um dos efeitos desta Guerra de 1808-1824 con-
tinuava a se fazer sentir: o movimento de alguns grupos de Botocudos
em direção às cidades, para tentar trégua, aliança ou ataques.
Os mesmos governantes testemunhavam a permanência do
conflito:
3
Correspondência da Presidência da prov{ncia do Espfrito Santo . .. , 22-8-1822, AN.
4
Ibidem.
186 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
5
José Bonifácio de Andrada e Silva, 1998, pp. 89-149.
6
Ibidem.
7
Para uma análise das ideias de Bonifácio sobre os índios, v. Maria M . C. da
Cunha, 1986, pp. 165-73.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 187
"os indomitos Caiapós" e "os cruéis Chavantes" e três vezes os "Bo-
tocudos" do Espírito Santo, o grupo mais citado no texto. Os três
últimos eram grupos não tupis que, avessos à pacificação, ainda resis-
tiam à civilização em diferentes pontos do território.
Como o "Patriarca da Independência" via em geral esses anti-
gos habitantes do território? Eram, segundo suas palavras, vagabun-
dos, preguiçosos, ladrões, sem freios religiosos, dominados pelas pai-
xões, sem leis e costumes regulares, dados a bebedeiras e instabilidades
nas relações conjugais, sempre envolvidos em violências e rivalida-
des. Esse o perfil do índio brasileiro traçado por José Bonifácio, em-
bebido aqui nos tradicionais relatos de selvageria e depreciação dos
colonizadores. Percepção ainda compatível com a perspectiva civili-
zada moderna, já que Bonifácio reproduzia quase literalmente a defi-
nição da Encyclopédie sobre os sauvages (selvagens): "peuples barbares
qui vivent sans loix, sans police, sans religion, & qui n'ont point
d'habitation fixe" (povos bárbaros que vivem sem lei, sem polícia,
sem religião e que não têm habitação ftxa). 8
Entretanto, a visão do mais velho dos Andradas não se limitava
a esses aspectos negativos. Em seus Apontamentos ele assume ver-
tentes diversificadas, como o pensamento generoso e um tanto ideali-
zado de europeus da República das Letras do século XVIII ao afir-
mar que "o Indio do América parece um homem novo", capaz dos
sentimentos de coragem e valentia. Estava aí outro ramo de sua con-
cepção, que indicava linhagem da Ilustração vinda de Voltaire e Diderot,
por exemplo. Essa exaltação de um "bom selvagem", todavia, nunca
foi formulada ou defendida por Jean-Jacques Rousseau, ao contrário
do que com frequência se afirma. 9
Afinal: homem novo americano ou ladrão preguiçoso, violen-
to e amoral? Bom ou mau selvagem? Chegando a uma resposta des-
sa equação e sintetizando sua visão sobre o indígena, Bonifácio é
lapidar:
8
D'Alembert. Encyclopédie ou dictionnaire raisonné. . .
9
Para a desconstrução da afirmativa de que Rousseau exaltava o "bom sel-
vagem", v. a lúcida entrevista de Lévi- Strauss (em J. de Léry, 1994). Rousseau,
efetivamente, formulou em termos filosóficos a figura ideal de um "homem em estado
natural" que, entretanto, o mesmo autor reconhecia como inexistente em termos
históricos, cf. seu conhecido texto Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade
entre os homens [1753].
188 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
13
Registro da correspondência do Espírito Santo . . . , 4-6 e 18-9- 1824, AN.
14
As informações contidas no trecho a seguir foram extraídas de G. T. Marliêre,
ofício de 5-1-1825. RAPM. . ., 1905, pp. 541-2.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 193
quinta trombeta. Kijame chamou os sobreviventes para fugirem en-
quanto era tempo, mas eles, sem forças, não atenderam. O tormento
não era morrer, mas sofrer: a morte fugia, prolongando o sofrimento.
A sexta trombeta soou. Desgarrados, tropeçando, os sobreviventes
tentavam escapulir pelos matos e, tocados pela praga, iam caindo.
Exalavam fogo, enxofre e fumaça. Horas depois, ao redor de duas
léguas, todos estavam mortos. Fez-se silêncio nos céus, mas a sétima
trombeta não soou ainda. Os povos, as tribos, as línguas e as nações
verão os cadáveres insepultos pelos séculos dos séculos. Até que o
sétimo anjo toque a trombeta sobre as nações que se haviam enfure-
cido, recuperando o tempo de julgar os mortos, de dar recompensa
aos pequenos e grandes e exterminar os que corrompem a terra.
O ministro Maciel, informado do ocorrido, limitou-se a lamentar
"o descuido de não terem sido vaccinados" os índios e ordenou a
retirada do local dos que não estivessem infectados. 15 Entretanto, nos
anos seguintes, novas epidemias de varíola atingiriam estes índios. 16
Uma epidemia de oftalmia deixou pelo menos oito Botocudos
cegos na região do CuietéY
Além das epidemias, ocorriam outros problemas. Os contatos
com os Botocudos se intensificaram após a Independência e a Guerra
de 1808-1824, mas logo faltaram recursos para manter essa dispen-
diosa e demorada fase de adaptação das tribos à vida sedentária e
produtiva. As correspondências do presidente da província do Espí-
rito Santo para a Corte entre 1824 e 1826 batem sempre nesta tecla
da falta de dinheiro para se efetuar a integração dos índios. É o que
diz o presidente Inácio Accioli para o ministro Maciel:
19
Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do
Império . . ., 25-5-1824, AN.
2
°Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do
Império . .. , 1.0 -7, 22-7 e 4-8/1824, AN.
21
A documentação sobre esta ida dos Botocudos a Vitória não se encontra na
correspondência oficial da província no AN, há uma lacuna na sequência cronológica
do acervo, como se tais papéis tivessem sido retirados. Outros documentos, entretan-
to, como as Atas das Sessões do Conselho do Governo, aparecem transcritos nas
Notas . .. de Rubim, 1856, de onde extraímos as referências dos parágrafos seguintes.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 195
Desta vez o peso das ameaças externas parecia superar a facciosidade,
levando as tribos a tentar uma ação conjunta contra o inimigo comum.
No dia 1. 0 de outubro de 1824 o Conselho de Governo do
Espírito Santo reuniu-se às pressas. O "gentio do Rio Doce" estava às
portas da capital. Eles não atacavam, mas pareciam aguardar as tribos
do rio ltapemirim, que também caminhavam para lá. Porém, houve
decalagem entre as caminhadas dos grupos indígenas que partiram
dos dois locais diferentes. Aproveitando-se desta brecha, as autoridades
procuraram contornar a situação. O governo decidiu alojá-los na ilha
do Príncipe e eles aceitaram. As autoridades ofereceram alimentos,
provisões, e os índios receberam. E o governo pediu para que eles re-
tornem ao rio Doce- aí, eles não aceitaram. A lógica era cortante. Os
Botocudos atravessavam a fronteira da floresta na tentativa de ocupar
a cidadela urbana. No momento em que a civilização ocidental instala-
va-se no coração do território indígena, as tribos se instalavam na ca-
pital da província. Mais uma vez a alteridade perturbava a lógica de
uma Conquista que, ao longo de três séculos, ainda não se consumara.
No dia 16 de outubro a crise persistia. Os índios recusavam-se
a voltar. Os moradores de Vitória estavam vivendo "em grande alar-
ma e terror pânico". Muitas fazendas dos arredores e casas dentro da
capital foram abandonadas. Os moradores que não fugiram "armaram
uma Bandeira", ou seja, pegaram em armas, reacendendo o espírito
do Bandeirantismo. Os quartéis estavam em prontidão permanente.
No dia 21 as tribos do Itapemirim chegam e ocorre o massacre.
Os recém-chegados são rechaçados à bala, com numerosas mortes -
o que confirma, apesar da escassez de detalhes sobre tal fuzilada, que
durante o Primeiro Reinado brasileiro ainda ocorriam combates san-
grentos entre autoridades e índios. A partir daí, as tribos vindas do rio
Doce se veem na posição de prisioneiras na ilha do Príncipe. Por três
vezes elas tentam desembarcar no litoral e são impedidas. E assim,
durante quatro meses, a situação foi tensa. O presidente do Espírito
Santo, neste meio tempo, enviava longos relatórios à Corte, endereça-
dos ao ministro Maciel, fazendo malabarismos verbais para defender
a política de pacificação do Império e, ao mesmo tempo, justificar as
violências praticadas e anunciar que outras agressões poderiam ocorrer. 22
É interessante notar que em 1824 o governo do Espírito Santo
não pôde contar com uma ajuda efetiva das tropas imperiais para
Império . .. , 20-10-1824, AN .
196 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
24
A integração dos índios à sociedade nacional no século XX, com suas formas
de coerção e violência, foi estudada, entre outros, por Darcy Ribeiro (1996), que
desenvolveu importantes considerações teóricas e metodológicas sobre o tema.
25
Sobre a devastação da Mata Atlântica e sua relação com as vidas dos grupos
indígenas, bem como os projetos de exploração e preservação, v. as obras de W . Dean,
1997 e J. Augusto Pádua, 2002; especificamente sobre os Botocudos e a devastação
ambiental em Minas Gerais, v. R. H . Duarte (2002) e, no Espírito Santo, R. Medeiros
(1983).
198 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura24
27
Cf. T. Ottoni, cit.
28
O . T. Sousa. Bernardo Pereira de Vasconcelos . .. , p. 26
200 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
29
Sobre o contexto, v. M. Morel, O período das R egências (1831-1840} .. .
°Collecção das Leis do Imperio do Brazil. . .
3
31
M . M . C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.),
História dos índios no Brasil. .. , pp. 144-5.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 201
Não tardou para que fosse apresentado à Regência um plano
para organização da Companhia Brasileira do Rio Doce, definida
como "uma Sociedade pela união de Capitalistas Brazileiros e Inglezes",
cujo objetivo era estabelecer a navegação entre o Rio de Janeiro e a
foz do rio Doce e em todo o seu curso, além de promover agricultura,
colonização nas terras das margens fluviais, mineração, extração de
sal à beira-mar, abrir caminhos terrestres, etc. O responsável pelo
projeto chamava-se João Diogo Sterz Stockexchange (o sobrenome
comporta curiosa associação de palavras). Mas desta vez, para evitar
reações protecionistas em defesa do mercado interno, apareciam in-
corporados como sócios da empreitada os nomes mais expressivos da
política brasileira, a fina flor da elite dirigente das Regências e dos
liberais Moderados: Evaristo da Veiga, Hermeto Carneiro Leão,
Chichorro da Gama, Limpo de Abreu, Antônio Ferreira França,
Miguel Calmon Du Pin e Almeida, Francisco Jê Acaiaba Montezuma,
além de Estêvão Ribeiro de Resende (barão e futuro marquês de
Valença), marquês de Inhambupe e outras figuras da monarquia.
E quanto aos Botocudos? O referido plano de colonização afir-
mava: os que aparecessem seriam logo empregados como canoeiros,
lavradores e lenhadores. Pretendia-se, a princípio, uma colonização
"mansa", na qual os índios seriam tratados "com todo o melindre,
circunspecção e justiça". 32
Os capitalistas ingleses também se faziam presentes na minera-
ção nos arredores de Caeté, Mariana, Ouro Preto e São João del-Rei
- áreas que, anos antes, ainda eram em parte ocupadas pelos
Botocudos. A Brazilian Company (1832-1844) e National Brazilian
Mining Association (1833-1851) funcionavam nestes locais. 33 Ain-
da que tardiamente (em relação ao apogeu da extração), a mineração
era feita nas áreas onde a presença indígena até então a impedira ou
dificultara.
Da mesma maneira que as pesquisas históricas falam da influência
britânica na escravidão africana no Brasil, é importante também con-
siderar como os interesses econômicos ingleses afetaram a vida das
populações indígenas - deixando às autoridades nacionais o ônus de
"limparem o terreno" e nem se dando ao trabalho, neste caso, de
34
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" . ..
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 203
visível ou formalizado legalmente, mas era o mesmo que buscava
estrangular a resistência indígena em nome do triunfo da civilização
ocidental e da sociedade nacional em busca do progresso. Aqueles dois
índios converteram-se em braços dos impérios britânico e brasileiro.
Três décadas depois da declaração da guerra ofensiva de D.
João, alguns Botocudos, de temidos guerreiros que infringiam medo,
tornaram-se miseráveis, a ponto de causar incômodo na população
brasileira que vinha se instalar nas áreas que até então pertenciam às
tribos. O contato com as frentes de expansão, quando não ocasionava
chacinas, acabava por inserir os índios na sociedade nacional. Mas
era uma inserção geralmente subalterna e parcial. Em palavras cla-
ras: tornavam-se famintos.
A fome crônica nos territórios brasileiros. Em 1830, por exem-
plo, um grupo de cerca de cem Botocudos atacou o quartel do Porto
de Sousa (ES), resultando do conflito dois soldados feridos a flechas
e dois índios mortos a tiros (entre eles o cacique Araque, "por serem
os mais teimosos em investir o quartel"). O motivo do ataque, segun-
do as autoridades locais, foi "a fome que os Botocudos sofrem". 35
O mesmo relato contém uma frase lapidar dirigida ao ministro
do Império:
35
Oficio deJoão Antonio Santana para oMinistro e Secretario dos Negócios do Império,
1-10-1830, Série Accioly, Livro 67, Apes, p. 253.
204 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 25
36
Carta da Comarca do Rio Grande de Belmonte. .. , 3-4-1838, FBN/MSS.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 205
Em 1840, desta vez na região do rio Doce, houve registro de
"alguns casais de Botocudos pertencentes a huma família" que esta-
vam "sofrendo a miséria da fome". 37 O testemunho confirma, ao mes-
mo tempo, a escravidão e a fome, associadas, nos sete adultos e duas
crianças Botocudos.
E chegando até o final da década de 1840 ainda há referências
de escravidão mal disfarçada de Botocudos. A amplitude destas prá-
ticas de posse de indígenas pelos brasileiros levou a um pronuncia-
mento do presidente da província capixaba em 1848 que, com certo
melindre, assinalava aos deputados da Assembleia provincial: "[ ... ]
há hoje muitos Botocudos espalhados por casas e fazendas particula-
res, onde trabalhão". Para em seguida comentar que era preciso
"acautellar os abusos e falta de boa fé". 38 Mantinha-se, no Segundo
Reinado, a mesma disparidade entre a visão ilustrada de alguns di-
rigentes com as violências cotidianas no convívio entre índios e bra-
sileiros. 39
Também na Bahia a escravização não declarada de Botocudos
existiu com frequência, pelo menos até 1846, quando as autoridades
provinciais tinham por hábito distribuir os índios aprisionados ou reti-
rados das florestas "por alguns amigos em perpétua domesticidade". 40
Além das terras, fica claro que a mão de obra indígena ainda
interessava a parcela expressiva da sociedade brasileira em meados do
Oitocentos. No caso dos Botocudos, bem como de outras tribos, regis-
tra-se ao longo de todo século XIX a incorporação cotidiana de índios
arrancados das tribos ao trabalho não remunerado em fazendas, resi-
dências urbanas e obras públicas, prática que se generalizou em provín-
cias próximas ao centro de poder imperial, verificando-se, assim, que
a força de trabalho era ainda um componente importante do interesse
sobre tais indígenas, ao lado da posse de suas terras. Os testemunhos
acima (e outros citados a seguir e nos capítulos seguintes) apontam
esta tendência de escravização e mesmo de tráfico de indígenas.
37
Ofício de João Rodrigues dos Santos Azevedo, Diretor das Aldeias do Rio
Doce, 5-3-1840, Série Accioly, Livro 67, APES, p. 400.
38
Relatório do Presidente da Província do Espírito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de
Couto Ferraz . .. , 1848.
39
A permanência da escravidão indígena em meados do século XIX é também
assinalada por M .M . C . da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem
(org.). História dos índios no Brasil. .. , p. 146.
40 Cf. T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ...
206 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
41
G . T. Marliêre. RAPM.. ., ofício de 11-7- 1825 e Correspondência da Presi-
dência da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império . .. , 11-6-1825, AN.
42
G. T. Marliêre. RAPM. . ., ofício de 11- 7-1825.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 207
pírito Santo, Inácio Accioli, em junho de 1825) pode-se perceber
como era o cotidiano dos grupos aldeados, as transformações que
ocorriam em seus modos de vida e a influência que as propriedades
rurais podiam ter sobre as tribos. O governante pretendia encontrar
os mais de cem Botocudos (pertencentes, segundo ele, a quatro famí-
lias - o que poderia equivaler a clãs ou mesmo a fragmentos de
quatro tribos que se juntaram) que moravam lá, mas estes, cinco dias
antes da chegada da autoridade, haviam pedido licença para saírem a
caçar e colher cocos de sapucaia. Estavam no aldeamento apenas
dezesseis índios, homens e mulheres, que não quiseram acompanhar
os demais. A crer na observação de Accioli, estes que ficaram estariam
mais adaptados à sedentarização, pois "vivem contentes e entretidos
na Pescaria". Q.tanto aos demais, que formavam um considerável gru-
po, foram seguindo pelas margens do rio Doce até a fazenda da viúva
de João Filipe Calmon, onde compraram a dinheiro bananas, canas e
laranjas, já que os mantimentos fornecidos no aldeamento estavam
acabando. Como haviam se passado apenas cinco meses do desfecho
da invasão de Vitória pelos Botocudos, Accioli tratou de evitar con-
flitos ou reações da parte de colonos e autoridades locais e, para isso,
expediu mensagens recomendando bom tratamento e mesmo auxilio
à centena de Botocudos que se locomovia. 43
O relato acima traz elementos importantes para o período pos-
terior da guerra de 1808-1824 e da Independência. Esse aldeamento
se transformara num verdadeiro centro de treinamento e adaptação
dos Botocudos à sociedade brasileira- onde, estrategicamente, esta-
va a fazenda de Calmon, que nos tempos da Guerra de 1808 fora uma
das únicas pontes de ligação entre os dois lados do conflito. Os índios
eram conduzidos a aprender os códigos básicos da civilização oci-
dental: desde as formas de ir e vir, passando pela relação com a flo-
resta, com as maneiras de morar, vestir e até o uso do dinheiro e da
prática regular do comércio. Embora, ao que parece, ainda não hou-
vessem incorporado a produção agrícola.
Entre estes Botocudos que aceitavam convivência constante e
pacífica, havia diferentes gradações de comportamento e adaptação.
Uma minoria tinha aceitado a sedentarização, parecia se satisfazer com
a pesca e alimentos fornecidos no aldeamento, embora não praticassem
44
Há vários registros sobre a colheita da poaia: G. Marliere, RAPM. .. , ofício
de 6-4-1825; W. Dean, 1997, pp. 147, 177, 380; Debret, 1940, prancha 9, 38.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 209
Ndiv Nosso Senhor falou: Pode tomar, eu dou vinte contos a
você. A irara foi à casa do beija-flor. Foi lá pedir água primeiro.
Então o beija-flor falou: Você traga dinheiro, senão eu não dou
água. Depois a Irara entrou, tirou o pote e quebrou-o. Qyebrou
o pote e o mundo inteiro tinha água. Então Ndiv Nosso Senhor
falou: Agora nós temos água. O mundo inteiro tem água. Fez
um festão de vinte dias de festa. 45
45
Narrativa recolhida por Egon Schaden, 1947.
210 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 26
46
Ofícios de 4-8-1825, p. 62 e de 25-12-1829, p. 179, Série Accioly, Livro
67, Apes.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 211
Dois soldados brasileiros foram mortos pelos índios no Al-
deamento de São Pedro de Alcântara em 1826, o que ocasionou uma
mensagem quase atrevida do governante capixaba ao governo central.
Escreveu Inácio Accioli ao ministro José Feliciano Fernandes Pi-
nheiro, visconde de São Leopoldo:
47
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo ao Ministério do
Império, 12-6-1823, AN.
48 Ibidern, 22-4-1825, AN.
212 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
49
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 18-10-1825, AN.
50Ofícios de 10-3, 14-3, 2-5, 15-9 e 4-10 de 1829, pp. 145-60, Série Accioly,
Livro 67, APES.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 213
a unidade militar levando alimentos e espingardas e matando dois sol-
dados, enquanto outros dois conseguiram escapar a nado agarrados em
troncos de madeira pelo rio Doce. O corpo de um dos soldados teve
a carne da perna arrancada, gesto que parece reiterar uma tradição
guerreira dessas tribos, descarnar corpos de adversários. É sugestivo
notar que a acusação de antropofagia não aparece mais no discurso
das autoridades, embora a vista de cadáveres mutilados ou descarnados
pelos índios tenha sido o principal indício de acusação de canibalismo
em outros tempos. No ano seguinte, na mesma localidade, o clima de
tensão permanecia, como se percebe nas queixas de que os índios Bo-
tocudos "vêm e vão quando querem, andam nus, o que sem duvida he
uma grande indecência para o povo desta villa". 51 O conflito permane-
cia, mesmo que assumisse dimensões bélicas apenas em momentos
agudos. Aparecem nestas falas de autoridade local do Brasil oitocentista
a resistência indígena através do nomadismo, traço marcante de suas
culturas, resultando em modo de utilização das terras antagônico ao re-
gime de propriedade privada que se alastrava, além de se contrapor aos
códigos culturais básicos da civilização ocidental ao permanecerem nus.
***
Vimos nas páginas anteriores o efeito das frentes de expansão
(mineração, comércio e agricultura) na vida dos Botocudos, causan-
do perda de territórios, escravidão e mesmo fome crônica. Mas a
integração desses índios à sociedade nacional no período pós-Inde-
pendência, consequência também da Guerra de 1808-1824, tinha mais
duas vias: a ida aos centros urbanos e a captura de crianças.
Ao longo do Primeiro Reinado continua e se intensifica o mo-
vimento de índios em direção à capital do Império, semelhante ao
que ocorrera no período joanino. O pintor francês Jean-Baptiste Debret
presenciou vários índios, entre eles Botocudos, trazidos para a capital
do Império, onde eram objeto de curiosidade da população (inclusive
do próprio artista) e, depois de ficarem hospedados no Campo de
Santana, eram levados para trabalhar nas obras públicasY
D. Pedro I se ocuparia diretamente dos Botocudos. Seguindo o
exemplo de seu pai e antecessor, o imperador também incentiva a
67, APES.
52 Debret (1940, pp. 7-8) .
214 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
53
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 24-12-1824 e 22-5-1825,
AN.
54
G . T. Marliere, RAPM.. ., ofício de 6-4-1825.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 215
prenome português e mantinham o sobrenome indígena, embora apa-
rentemente esta regra não se mantivesse para os descendentes. Ou
seja, o sobrenome indígena não virava identidade familiar e nem se
transmitia hereditariamente, como os sobrenomes de origem europeia:
pareciam funcionar como etiqueta étnica e como expressão da fase
lubrida que estes jovens índios recém-batizados viviam, mal saídos
da tribo e ainda não incorporados à sociedade brasileira. Qyanto aos
não batizados, ostentavam somente o nome indígena. O batismo apa-
recia como forma de incorporação, mas também de proteção dos ín-
dios diante dos que pretendiam eliminá-los: o índio batizado era cristão,
tinha alma e portanto sua vida deveria ser preservada.
Se o batismo visava evitar o extermínio, ele significava ao mes-
mo tempo uma incorporação subalterna e uma tentativa de negação
ou ocultação da identidade étnica. O contato mais estreito com os
não índios poderia significar a destruição pelas doenças ou pela con-
dição social, associando assim o batismo com a morte. A lista desses
cinco jovens Botocudos requisitados por D. Pedro I mostra também
que, na medida em que os índios eram "oferecidos" ao imperador, é
porque eles pertenciam a alguém- o que mais uma vez indica rela-
ção de posse de vidas humanas no período nacional brasileiro. Den-
tro da perspectiva ocidental, o homem civilizado tinha direito de
possuir a Natureza, os animais e os selvagens, isto é, tudo aquilo que
lhe fosse inferior ou não civilizado. Pode-se neste caso até especular
se haveria uma relação de violência, de trabalhos forçados, ou de
proteção e educação, ou todos estes aspectos misturados nesta posse
de crianças indígenas. Mas o que havia aqui era escravidão e não
incorporação à família - pois ninguém ofereceria um membro de
sua própria família como doação. Isso mostra também que havia en-
tre os soldados que cercavam os índios Botocudos este hábito de
guardar para si as crianças - das quais é possível que os pais tenham
sido mortos em combate. O que significava, para esses jovens índios
- curucas, como eram chamados no idioma dos Botocudos, expres-
são repetida pelos não índios - não o extermínio de suas vidas, mas
um tipo de inserção subalterna na sociedade.
Essa preocupação de utilizar as crianças indígenas como veícu-
los de incorporação era típica na formação da sociedade, hábito que
vinha desde os primeiros tempos das Descobertas. Gilberto Freyre,
ao analisar a presença indígena no seu modelo de formação da famí-
lia e da sociedade patriarcal, destacou que as crianças (e as mulheres)
216 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
57
Sobre as concepções modernas de nação diante de sociedades multifacetadas
e os processos de Independência no mundo ibero-americano, v. F.-X. Guerra. Modernidad
e independencias . .. , 1992.
58
Registro da Correspondência do Espfrito Santo . .. , 24-12-1824, AN.
218 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
59
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . . ., 11-11-1817,
AN.
60
Registro da Correspondência do Espírito Santo. .. , 4-7-1815, AN.
61
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . .. , 19-4-1823,
AN.
O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "íNDIOS BRAVOS" 219
Povo das Roças, que vive muito amedrontado dos taes Negros, que
não respeitam a ninguem". Apenas quatro fugitivos, dois homens e
duas mulheres, foram encontrados e os outros seis estavam ausentes
na hora do ataque. O tenente João Antônio Lisboa, comandante do
Destacamento do Qyartel dos Macacos, cortou a cabeça dos quatro
prisioneiros e espetou-as em estacas que foram espalhadas em dife-
rentes partes da cidade de São Mateus. Era o espetáculo punitivo
para aterrorizar outros escravos e acalmar os proprietários. Mais uma
vez se constata que a mutilação de cadáveres não era praticada ape-
nas pelos Botocudos. Esta saga guerreira de militares brasileiros foi
narrada em ofícios enviados ao Comandante das Armas da Provín-
cia e ao ministro José Bonifácio de Andrada e Silva- que não fize-
ram, ao que consta, nenhuma condenação ou reprimenda aos seus
subordinados. 62
A relação entre escravos africanos e Botocudos era complexa.
Segundo o relato de uma autoridade colonial, em 1798, um grupo de
Ambarés/Botocudos se aproximou de alguns negros aquilombados
no riacho Jenipapo, afluente do Jequitinhonha, convidando-os a irem
a um local onde haveria ouro. Lá chegando, os três escravos que
haviam acompanhado os índios foram atacados traiçoeiramente. Um
dos cativos, ferido, conseguiu escapar e contou o que ocorrera. Um
grupo armado seguiu para o local e encontrou ossadas tostadas e
roídas. O "testemunho desta abominavel comida", de acordo com o
mesmo relato, foi enterrado no cemitério do aldeamento dos Tocoiós. 63
Em contrapartida, entre os intérpretes dos contatos entre os índios e
não índios, Saint-Hilaire registrou em sua viagem ao rio Doce em
1817 um negro escravo que dominava o português e a língua dos
Botocudos - o que indica que havia também espaços de convivência
e que os escravos de origem africana poderiam servir de intermediá-
rios culturais entre índios e nacionais.
Assim, superar a pluralidade de grupos étnicos era um dos de-
safios que se punham aos construtores da nação brasileira no século
XIX. Neste alvorecer da nacionalidade não houve escolha entre In-
dependência ou morte para os índios: a perspectiva oferecida era a
62
Ibidem.
63 J. P. Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os índios Botocudos que
frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés"
[1809]. ln: RAPM, II, 1897, pp. 28-36.
220 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
64
G. T. Marliere, RAPM. . ., ofício de 14-12-1825.
Capítulo 7
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO,
HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO
***
É verdade que surgiram ensaios de representação indianista,
embalados pela sensibilidade patriótica e mesmo romântica que dis-
cretamente ganhava terreno nas três primeiras décadas do século XIX.
Mas se tratava em geral do índio alegórico, não do índio persona-
gem, para retomar a terminologia de Antonio Candido. 2 No caso do
poema épico Uraguai (1769), de Basílio da Gama, a alegoria indianista
situava-se mais no plano de uma identidade cultural geograficamente
1
Cf.levantamento em Bessa Freire &Malheiros.Aideamentos indígenas no Rio de
janeiro. .. cit.; v. também M. S. Lemos. O índioviroupódecaft?. .. eJ. N. S. e Silva. Me-
mória lústórica e documentada das aldêas dos índios da província do Rio de Janeiro...
2
A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 223
localizada, mas não usava o elemento indígena como base simbólica
de uma identidade nacional.
Não é curioso, por exemplo, que o jovem príncipe português
Pedro de Alcântara, ao entrar para a maçonaria em 1822, tenha esco-
lhido o pseudônimo Guatimozim, o último "imperador" asteca morto
pelos espanhóis? O mesmo D. Pedro, como imperador, submeteria os
"índios bravos" do Brasil, aos quais, por isso, não poderia erguer em
símbolo pátrio. Daí que a escolha de seu apelido tenha recaído para
os índios que resistiam. . . aos espanhóis no século XVI, não aos
brasileiros do XIX.
Na mesma linha vale lembrar o talentoso baiano mulato, Fran-
cisco Gomes Brandão: optou pelos sobrenomes de Jê Acaiaba Mon-
tezuma, temperando a nova identidade simbólica tapuia com dois
sobrenomes igualmente oriundos de indígenas da América espanho-
la, aludindo ao soberano asteca que morreu de maneira heroica de-
pois de capturado pelo conquistador espanhol Cortez. Escolha feita,
aliás, antes de Francisco Gomes Brandão se tornar visconde de Jequi-
tinhonha, nome do território habitado, entre outros, pelos Botocu-
dos, justamente na época em que estas tribos foram mais combatidas
e espoliadas na região. A opção por um certo "anticolonialismo" cultu-
ral direcionado para os indígenas da América espanhola parecia ser
uma tentativa de escapatória, no plano simbólico, para uma questão do
tempo presente do Brasil na época da Independência. E mesmo os
títulos de nobreza que, no primeiro Reinado, tinham nomes oriun-
dos de palavras indígenas (como José da Silva Lisboa, visconde de
Cairu e José Egídio Gordilho, visconde de Camamu, por exemplo),
em geral referiam-se à toponímia e não diretamente à nomenclatu-
ra indígena.
Sem esquecer o jornal O Tamoio, do Rio de Janeiro em 1823,
inspirado politicamente por José Bonifácio e seus irmãos Andradas
(formados e oriundos na constelação luso-brasileira de fins do século
XVIII), mas que, apesar do título, não aprofundava em suas páginas
as metáforas indianistas. Ao contrário, esse jornal mantinha uma dose
de ambiguidade, pois tamoio era um dos nomes atribuídos às tribos
tupis estabelecidas no Rio de Janeiro no século XVI- grupos que
ficaram conhecidos por combaterem os portugueses, daí a oportuni-
dade da comparação na época da Independência. Entretanto, em ou-
tros momentos, grupos chamados de tamoios também se aliaram aos
portugueses.
224 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
3
Cf. Gazeta Pernambucana. Recife: Typographia Cavalcante & Companhia, n."
5 (27-11-1822), transcrevendo Diário de Rio de janeiro, n.0 9 (10-10-1822).
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 225
4
polissêmico. Até então tinha vários sentidos, mas podemos destacar
os que predominavam. Um dos mais tradicionais entendia nação como
"nome coletivo que se diz da Gente". 5 Ou seja, não se tratava de um
corpo político ou territorial definido, mas remetia à noção ampla de
coletividade. De algum modo, os demais sentidos derivam desse, ain-
da que modificados ou mais definidos.
"Nação" servia também para designar uma mesma origem ou
identidade étnica. Assim, havia referências aos escravos africanos da
"nação Mina", por exemplo, bem como era comum falar da "nação
dos Carijós", ou seja, para designar tribo ou conjunto de tribos per-
tencentes a um mesmo grupo etnolinguístico ou oriundas de uma
mesma região. Havia também a concepção tradicional de "Nação"
europeia que, por sua vez, era também diversificada. Nessa linha,
temos a "Nação" dos tempos medievais, plural, formada por um con-
junto de reinos, senhorios, principados ou províncias. Esta concepção
era anterior ao Estado-Nação absolutista, que predominava ainda no
começo do século XIX, baseado na unificação nacional em torno de
um Estado centralizador. E o que marca esse período é justamente a
expansão das "novas ideias" que desembocaria num Estado-Nação
fundado no liberalismo constitucional, ou seja, a ideia moderna de
nação homogênea como expressão da união (ainda que por alcançar)
do conjunto de indivíduos soberanos, livres e iguais.
A própria Encyclopédie, obra referencial da Ilustração francesa,
definia sauvages (selvagens) como "peuples indiens quine sont point
soumis au joug du pays, & qui vivent à-part'' (povos indígenas que
não são submetidos ao domínio do país e que vivem à parte). Desse
modo, cada grupo indígena "forme une petite nation" (forma uma
pequena nação). 6
Assim, levando em conta os significados que se cruzavam, pode-
-se dizer que havia conflito entre as nações dos Botocudos e a nação
brasileira - que herdava da nação portuguesa o antagonismo com
estes índios, no plano social, mas também no cultural, apesar das
políticas civilizadoras se diferenciarem na passagem de colônia a
4
Para a pluralidade ou mosaico político e social das sociedades ibero-america-
nas nas primeiras décadas dos oitocentos: F.-X. Guerra (1999/2000) e I. Jancsó &J.
P. G. Pimenta (1999); para a polissemia e mutações do conceito de nação, v. os textos
de A. Hespanha e F.-X. Guerra em I.Jancsó (org., 2003).
5 R. Bluteau. Vocabulario portuguez e latino . . .
6
Encyclopidie. . ., cit.
226 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
império. Ainda que seja importante não perder de vista que tais tri-
bos de Botocudos não formavam um grupo coeso e articulado entre
si: ao contrário, fracionavam-se em "bandos", de acordo com suas
organizações sociais. Todavia, estas tribos apresentavam alguma
homogeneidade pela língua, aparência física, costumes, artefatos e,
sobretudo, pela localização numa mesma e vasta área geográfica -
o que emprestava-lhes coerência. 7 No mesmo sentido, a nação bra-
sileira, embora apresentada e desejada como unívoca, era também
heterogênea.
A sociedade brasileira tinha entre seus desafios completar a
Conquista nos pontos onde ela não se resolvera nos tempos (então
bem próximos) das "trevas coloniais". E transformar um inimigo in-
terno em símbolo nacional não era tarefa que se fizesse sem contradi-
ções, sobretudo num tempo que se pretendia de Luzes. A tarefa, pois,
dos construtores da nacionalidade brasileira oitocentista colocava-se
na perspectiva de retirar os índios das pequenas nações: seja remeten-
do-os simbolicamente ao passado ou integrando-os concretamente
na argamassa da grande nação, onde, aí então, poderiam até ser er-
guidos em símbolos e alegorias nacionais.
Para que o indianismo literário e patriótico se afirmasse era
preciso resolver (ou pelo menos elaborar determinadas representa-
ções culturais e ocultações para) a questão dos "índios bravos", que
desafiava o novo Império americano. Só então o Romantismo indianis-
ta brasileiro poderia florescer sem riscos de se transformar em Rea-
lismo ...
O que aparecia nos documentos da época do processo de con-
solidação da Independência era a distinção entre índios e brasilei-
ros, sobretudo no que se refere aos Botocudos. Fala-se, por exemplo,
de um grupo de 78 mineradores compostos "entre Indios e Brasilei-
ros", em 1825. 8
A própria Constituição de 1824, ao definir no título II os crité-
rios de cidadania brasileira, ignorava a especificidade da condição
indígena, embora levasse em conta libertos, portugueses e colonos
estrangeiros. Mesmo vinculando o direito à cidadania ao local de
7
Para a identificação étnica e diversidade dos Botocudos, v. I. M . de M attos
(2004), Introdução e capítulo 3 eM. H . Paraíso (1998a e 1998b).
8
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministério do
Império, ofício de 4-8-1824, AN.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 227
nascimento, de residência e de propriedade, a primeira Carta brasi-
leira não considerava os índios nessas três categorias nas quais eles
poderiam ter evidente primazia. Sem direitos civis, os índios não ti-
nham direitos constitucionais e, muito menos, direitos políticos.
A visão de José Bonifácio sobre os índios era compartilhada
por grande parte das elites políticas e culturais (sobretudo nos aspec-
tos negativos, da preguiça, violência, amoralidade, etc). Sem esquecer
que o Andrada, nos seus Apontamentos sobre os índios bravos, em
nenhum momento os considera brasileiros, embora reivindique para
eles a progressiva incorporação à civilização e à nacionalidade, mas
ainda como algo por se realizar, desde que deixassem de ser índios e
se tornassem cidadãos nacionais.
Ainda na variedade das concepções de nação temos outro exemplo
em Cipriano Barata, tido como "homem de todas as revoluções" de
seu tempo e o principal expoente dos liberais Exaltados, cuja concep-
ção e tentativas práticas de Revolução eram das mais arrojadas dentro
do seu contexto. 9 Barata reivindicava, nas Cortes de Lisboa em 1822,
direitos políticos e de cidadania para os "caboclos ou índios naturaes
do país", como também para a "os mamelucos que são o produto dos
brancos misturados com os referidos caboclos" e não esquecia de in-
cluir também "mestiços que são a prole dos indios combinados com a
gente preta". Cipriano, mesmo lutando pela ampliação da cidadania
aos índios e descendentes sem exigir que eles antes se tornassem na-
cionais, mesmo com sua vigorosa busca de forjar uma identidade na-
cional brasileira através de géstos, vestuário e discursos, mesmo com
seu combate inglório contra o expansionismo inglês e contra as per-
manências do monopólio comercial português, não se vangloriava
das origens indígenas do Brasil. Percebe-se isto na citação:
9
M . Morel. Cipriano Barata na Sentinela da liberdade. .. , 2001.
10
Sentine/la da Liberdade na Guarita do Quartel General de Pirajá. Alerta!, 12-1-
1831
228 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
11
J.-F. Marmontel. Los Incas.. ., 1777.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 229
Este tipo de construção da memória era oportuno no nascente
Império brasileiro. Sobretudo porque deslocava a delicada relação
entre indígenas e Conquistadores para o contexto hispânico e para
eras remotas, poupando assim os portugueses e brasileiros de se ve-
rem representados como protagonistas deste conflito. Sem falar que
valorizava um tipo de nobreza (ainda que ameríndia), o que de certa
forma legitimava a nobreza brasileira como herdeira simbólica de
outra nobreza "original" do Novo MundoY Além disso, cristalizava-
-se a noção que atribuía às populações indígenas da América hispâ-
nica feições mais "adiantadas", por causa dos relatos dos primeiros
conquistadores e de registros de uma cultura material mais palpável e
imponente e que se contrapunha, por isso, ao "atraso" ou "primitivo"
das populações indígenas do lado da América portuguesa.
12
L. Schwarcz. As barbas do imperador. .. , pp. 132-41.
230 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
13
Para trabalhos com outros enfoques sobre o personagem, v. L. P do Coutto
Ferraz. Biografia de Cuido Marliêre e Pocrane ...
14
Documento de 7-1-1825, RAPM, X.
15 Documento de 11-7-1825, RAPM, X.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 231
Se ele possuía simpatias pelas ideias revolucionárias (ou pelo
menos Ilustradas), como deixa entrever, entretanto, em 1791, deserta
e abandona o país natal. Este ano marca um momento de radicalização
do processo revolucionário francês, com a prisão do rei e o enfraque-
cimento dos Girondinos ou revolucionários moderados, que defen-
diam a manutenção da monarquia constitucional. A saída de Marliêre
neste momento permite de alguma maneira associá-lo a esta tendên-
cia. Ele passa então a integrar as tropas de Emigrados (nobres fran-
ceses no exílio que combatiam a Revolução) e nesta condição chega
a Portugal em 1799. Teria lutado contra as tropas francesas em Portu-
gal? Sabe-se porém que ele acabou incorporando-se às tropas portu-
guesas e em 1808 vem na frota que traz a Corte Real ao Brasil. Fica
no Rio de Janeiro por dois anos e segue para Minas Gerais.
Em 1810 é nomeado capitão do Regimento de Cavalaria de Li-
nha de Minas Gerais (sediado em Vila Rica) e recebe da Coroa uma
sesmaria de meia légua de terras em quadras no caminho para o Rio
de Janeiro, na passagem do rio Nova Pia. Isso indica que ele preten-
dia instalar-se definitivamente. Já em 1811 começa a percorrer as
selvas em companhia do mineralogista germânico Wilhelrn Eschwege
e pela primeira vez entra em contato direto com a questão indígena.
As críticas abertas à religião católica feitas por Marliêre (então
um francês marcado pelas "abomináveis" ideias de seu país) causaram
má impressão nas elites locais, marcadamente mergulhadas no uni-
verso católico tradicionalista da Monarquia portuguesa. Logo che-
gou da Corte um aviso do próprio conde de Linhares afirmando que
Marliêre "he um Emissario de Bonaparte, e ligado com elle para
subverter estes Estados". Marliêre foi preso, seus papeis vasculhados.
O conde da Palma, governador de Minas Gerais, intercedeu em seu
favor, alegando que, irreligiosidade à parte, era um súdito fiel. O que
havia, esclareceu o conde da Palma, é que Marliêre era odiado pela
elite de Vila Rica pelo simples fato de ser francês, já que o trauma da
invasão napoleônica em Portugal era recente, gerando reação de xe-
nofobia. Nos anos seguintes Marliêre confirmaria essa fidelidade à
Coroa e chegaria mesmo a denunciar por escrito dois franceses que,
segundo ele, mantinham conversas suspeitas. 16
Em 1813 Marliêre era nomeado diretor-geral dos Índios das
freguesias de São Manuel da Porta, de São João Batista e do rio da
18
Cf. biografia escrita por L. P. C . Ferraz (1855).
19
Idem e J. Durco (1989).
236 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 27
20
Imagem do Museu Mariano Procópio. ln: L. Schwarcz. As barbas do impera-
dor. .. , p. 81
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 237
Certa vez Pokrane armou-se com sua tribo para deixar o aldea-
mento por alguns dias a fim de combater os Puris. Marliere pediu
que ele não fosse, mas não conseguiu demovê-lo. O francês procurou
então saber as causas do ataque e recebeu a explicação de que, quando
morre um chefe Botocudo, isto ocorre por malefícios dos Puris, aos
quais eram atribuídos tais poderes. Tratava-se assim de um código de
vingança e de uma crença nos poderes imputados a outros grupos
étnicos. 21 Isso ocorreu em fevereiro de 1825. No mês anterior morrera
o chefe Naknenuk Makuen- mas atingido por soldados brasileiros.
Atribuir a causa dessa morte a outras tribos era a reprodução de com-
portamentos tradicionais dos grupos Botocudos, que já haviam sido
notados no período colonial e nos tempos da Guerra de 1808. Nessa
incursão Pokrane matou alguns Puris e trouxe outros prisioneiros e
ficou constatado que este grupo atacado não mantinha contato per-
manente com a sociedade nacional. Dessa maneira, através de antigos
conflitos intertribais, Pokrane também era útil à Conquista.
Com a morte de Guido Pokrane em 1843, um irmão dele, Mavan
Patinan assumiu a chefia do grupo. Foi sucedido por Junac, sobrinho
de Pokrane, sucedido por um índio chamado Antônio em 1855. O
aldeamento, que se encontrava então na localidade de Bananal Gran-
de, foi transferido para o Ribeirão do Qyeiroga Montina. Dessa for-
ma, a tribo de Pokrane fora banida do território onde hoje é a cidade
que tem seu nome - o que significa que nem em suas origens este
núcleo urbano foi formado pelos índios da tribo de Pokrane ou seus
descendentes. Essa é uma das características de longa duração do
indianismo no Brasil: a valorização simbólica dos índios se entrelaça
com a destruição física e cultural deles.
Muitas vezes as observações de Marliere sobre os Botocudos
eram rápidas como flashes, mas fixavam momentos da vida de índios
que, sem isso, não teriam marcado presença nos registros escritos. Foi
o caso de Merarang, uma das mulheres de Pomatu que, cega, apare-
ceu três vezes no aldeamento guiada pelo filho de seis anos e carre-
gando uma cesta feita de folhas de palmito (tang). Merarang, possi-
velmente infectada em uma das epidemias de oftalmia que atingiu os
Botocudos no período, recusava as ofertas para ficar e se tratar e
voltava para as selvas: sua figura não deixa de ter semelhança com a
do "velho Timbira", personagem criado décadas depois por Gonçal-
ves Dias no seu célebre poema "1-Juca-Pirama".
Merece atenção a morte de um casal de índios e também a
maneira romântica como Guido Marliere perpetuou o episódio. Ha-
gemm foi um dos primeiros Botocudos a aceitar a pacificação do mi-
litar francês e a acompanhá-lo constantemente. Mas acabou se afas-
tando para se casar com Gemm-táne, que era filha do já citado capitão
Orotinon. Este casal de índios, quando estavam besuntados de
unguentos quentes usados para o tratamento de alguma doença, mer-
gulharam no rio Santo Antônio e tiveram, com o choque térmico,
morte instantânea. Marliere ficou arrasado com a perda e plantou um
cipreste no lugar do túmulo, sobre o qual chorou copiosamente. Pas-
sou a denominar o local de "Mausoléu Indiático no Deserto do Rio
Doce". 22 Cada vez que voltava a este Qyartel de Naknenuk, Marliere
não deixava de visitar as sepulturas de Hagemm e Gemm-táne. Em
outras palavras: semeava um lugar de memória e criava símbolos vi-
síveis de afetividade, valorizando o enredo amoroso deste casal indíge-
na. Diferente, portanto, da preferência por casais de brancos e índias,
mais ao gosto conciliatório e harmonizador do indianismo literário.
Marliere foi elo entre índios e brasileiros que permitiu que
alguns nomes do idioma dos Botocudos se perpetuassem na toponímia
da região. A toponímia é uma forma de memória histórica e, como
tal, resulta de uma elaboração que pode servir para escamotear con-
flitos e diferenças. Basta ver as cidades de Nanuque e Pocrane -
todas nos territórios onde antes habitavam índios, que acabaram ex-
pulsos das mesmas terras. Tarumirim, por exemplo, onde ficava o
aldeamento Bananal Grande, é nome tupi-guarani e existe nesta pe-
quena cidade uma rua dos Aimorés ... A própria cidade de Aimorés
também evoca o nome hostil tupi-guarani atribuído, como já foi cita-
do, a estas tribos que pertencem ao grupo Macro-Jê. O nome dessas
cidades foi mantido não porque os novos moradores fossem ou se
considerassem, no tocante a identidade, como descendentes dos
ocupante's anteriores do território. Mas porque - e Marliere foi um
dos pontos de partida para isso - foi possível idealizar uma certa
tradição indígena com valores originais, nobres e sentimentais, rele-
gando os índios que estavam sendo varridos de suas terras a um pas-
22
Documento de 26-12-1824, RAPM, X.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 239
sacio remoto e até heroico. Rendendo homenagem aos "primitivos"
habitantes, os novos moradores conseguiam dois objetivos: de certa
maneira se isentavam das violências cometidas, apresentavam-se como
herdeiros (ainda que apenas simbólicos) dos ocupantes anteriores do
território e ainda contribuíam para forjar uma identidade regional
peculiar, comprometida apenas simbolicamente com os índios. Assim,
a toponímia indígena aparece nestes casos específicos como instru-
mento cultural de consolidação da Conquista. Dessa maneira, os te-
míveis (e intragáveis) Botocudos, vistos como antropófagos, passa-
ram a ser, em parte, palatáveis para a memória coletiva dessa região.
Os colonizadores acabaram em grande parte devorando a digerindo a
presença indígena.
O próprio militar francês recebeu homenagem póstuma, com o
Posto Guido Marliere criado pelo SPI nos anos 1910 às margens do
rio Doce. 23
Guido Marliere era, como se pode perceber, marcado pela sen-
sibilidade Romântica então emergente, pois Renê de Chateaubriand
publicara naqueles anos suas obras-primas do indianismo literário. O
Romantismo, aliás, seria uma expressão artística fundamental para as
tendências conservadoras da época, como a Restauração monárquica
francesa ou o Império Germânico, uma vez que valorizava as tradi-
ções culturais e o retorno às "raízes" históricas das sociedades como
forma de legitimar as monarquias e os impérios diante da vaga liberal
ou revolucionária.
Dessa forma, compreende-se a "conversão" de Marliere nos ser-
tões das Minas Gerais nos princípios do século XIX: sem muito es-
paço entre as elites urbanas (católicas, ibéricas e manifestando ten-
dências liberais), buscando apoio na monarquia luso-brasileira e
deixando-se sensibilizar pelas populações indígenas, o militar francês
acabaria por abandonar as ideias politicamente revolucionárias e as-
sumiria radicalmente a proteção aos índios e o apoio à monarquia
portuguesa.
Mais tarde, Marliere manteria sua adesão ao Império brasilei-
ro, referenciando-se numa visão marcada pelo exemplo imperial rus-
so. E não deixaria de buscar uma maneira de inserir os grupos indí-
genas como parte integrante do Império do Brasil. A originalidade
de Marliere estava no fato de que seu indianismo não era urbano,
24
Documentos de 7-1-1825, RAPM, X.
242 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
27
Documento de 26-10-1824, RAPM, X.
28
Documento de 14- 12-1825, RAPM, X.
29
Vocaóularioportuguez-botocudo p or Cuido Thomaz Marliere. . ., 1835.
244 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
30
Representação dos habitantes da região de Ponte Nova, dirigida ao Imperador Pedro
I, 1826, II, 36,5,21, FBN/MSS.
31
Representação dos moradores de várias localidades dafreguesia de São Miguel, termo
de Caeté, solicitando providências contra as incursões dos indios Botocudos, 7 p., 17 de outubro
de 1827, II, 36,4,44, FBN/MSS.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 245
pediam mais soldados para atacar os Botocudos. Ou seja, preferiam
optar pela via guerreira em vez da chamada via pacífica.
Não faltava disposição ao militar francês para enfrentar tais rea-
ções e se colocar em defesa de sua própria postura em face dos Boto-
cudos. O!tando dois brasileiros foram flechados por índios da Aldeia
de Cachoeirinha, Marliere diz que "infelismente não morrerão", pois
eram "homicidas e perturbadores do socego publico" e constantemente
atacavam os índios. E quando um fazendeiro pedia reforço militar para
atacar as tribos, Guido Marliere não tinha meias palavras:"[ ... ] este
estupido não sabe que por hum Indio que manda matar, attrahe sobre
si, e sua Fasenda, hum seculo de Represalias". 32 No ano da Indepen-
dência, ele afirmaria por escrito à Corte, alinhando-se às ideias racio-
nalistas da Ilustração europeia: "Os Indios estão ao desamparo, mortos,
perseguidos, e expoliados alguns de suas terras. Os opressores descul-
pão-se dizendo que elles não são Baptizados, e isto no Seculo XIX!!"33
Diante de tantas pressões, Marliere encontrava algum apoio no
governo central. Ele chegou mesmo a afirmar em carta ao compatriota
Saint-Hilaire que D. Pedro I era seu protetor e amigo dos índios. Mas
o que ocorreu é que o extermínio desses índios passou a ser praticado
menos pelos governos e mais por iniciativa de fazendeiros, negociantes,
garimpeiros e outros- contra os quais o governo imperial não pretendia
se indispor. Em 1830 Marliere acabou deixando o cargo que exercia,
escrevendo, cinco anos depois, seu vocabulário botocudo-português. A
maioria de seus escritos permaneceu inédita na época, lidos apenas pelas
autoridades a quem os endereçava, à exceção de algumas colaborações
na imprensa mineira e de correspondências privadas. Na época da fim-
dação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as propostas e exem-
plos de Marliere seriam utilizados como referências importantes por
dirigentes da instituição, como o cônego }anuário da Cunha Barbosa. 34
•••
Mas a tendência de associar positivamente os Botocudos ao
nascente Romantismo brasileiro teria outro defensor além de Marliere.
32
Documento de 14-12-1824, RAPM, X.
33
Documento de 24-4-1822, RAPM, X.
34
J. da C . Barbosa. Qyal seria hoje o melhor systema de colonizar os Indios
entranhados em nossos sertões. Revista do Instituto Histórico e Geognifico Brasileiro, t. 2,
vol. 2, 1840.
246 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
35
A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21.
36
Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa.Asfotalidades de dousjovens: recordações dos
tempos coloniaes. 3 t., Rio de Janeiro: Typ. Dous de Dezembro, de Paula Brito, 1856.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 247
de, por trás dessa aparência feia e feroz, criar um personagem Botocudo
que tivesse tanto ou mais virtudes do que os melhores luso-brasilei-
ros que aparecem também como personagens no livro. Ou seja,
considerá-los como capazes de aprimoramento: converter a fera aos
belos sentimentos.
O olhar romântico sobre os Botocudos teve um representante de
peso no pintor francês François-Auguste Biard (1799-1882). Em seu
livro Deux années au Bresi/, 37 narrando a viagem empreendida entre
1858-1859, há 180 desenhos de Riou, conhecido ilustrador (desenha-
va, entre outros, para a coleção das Viagens Extraordinárias de Jules
Verne) que trabalhou a partir de croquis realizados in loco por Biard.
François Biard era artista que partilhava com Vítor Hugo a
tendência romântica politicamente revolucionária da geração de 1848:
pintou cenas de escravidão urbana no Rio de Janeiro, índios na flo-
resta amazônica e foi autor do quadro que retratava, de forma alegó-
rica e comemorativa, a abolição da escravidão nas colônias francesas
no mesmo ano. Registra-se em sua biografia que compartilhava com
Vítor Hugo não apenas convicções, mas ao chegar em casa certo dia
o pintor encontrou a esposa nos braços do célebre escritor. Incon-
formado, processou-a por adultério, num episódio rumoroso nas rodas
parisienses, que acabou levando a ex-madame Biard à prisão. A partir
daí François Biard empreendeu constantes viagens pelo mundo, pin-
tando, entre outros, os !apões do norte da Europa.
Ao passar pela província do Espírito Santo, Biard tinha em
mente visitar os famosos Botocudos do rio Doce. Em seu texto e nas
iconografias, o artista francês destacava a natureza exuberante com
descrições bem ao gosto do Romantismo e do mercado editorial: ao
mesmo tempo ameaçadora, misteriosa e plena de surpresas romanes-
cas, como o encontro com animais estranhos, cobras gigantescas, in-
setos desconhecidos, entre outros. Os dramas humanos não faltaram
em seu relato, como o desenho do índio Almeida morto sobre uma
esteira de palha, no interior de uma rústica choupana, velado pela
própria mãe, cena à qual o artista devotou um sentimento intenso,
embora não tenha identificado a etnia do referido índio, de quem
traçou também o perfil, recriando-o vivo.
Biard testemunhou ainda a constante captura e utilização do
trabalho indígena na província. Afirmou que era usual entre as famílias
37
F. A. Biard. Deux années au Brés{/. .. , 1862.
248 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 28
37
F. A . Biard. Deux années au Brésíl. . ., 1862.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 249
Na iconografia e nas palavras de Biard (cuja obra teve conside-
rável repercussão no Brasil da época) sobre os índios, estes aparecem
emoldurados por uma natureza vistosa e avassaladora, envolvidos por
sentimentos e dramas, ou ainda rejeitando as roupas da civilização
europeia sobre seus corpos. Ao mesmo tempo, Biard tendia a escamo-
tear a relação de sujeição e violência a que os mesmos índios estavam
expostos, e nisso ele se parecia com os românticos brasileiros do pe-
ríodo. E quanto aos índios que, como os Botocudos, ainda resistiam
aos padrões ocidentais, Biard, também à maneira dos românticos da
época, tinha dificuldade em enquadrá-los como personagens roman-
tizados, ficando tal vertente para os índios percebidos sem uma iden-
tidade étnica precisa.
Os exemplos acima citados, na verdade, indicam que os Boto-
cudos não mereceram atenção especial no cenário Romântico. Mas o
mesmo não se pode dizer da antiga denominação de Aimorés, que
esteve sob o foco do indianismo brasileiro.
O poema "I-Juca-Pirama", do maranhense Antônio Gonçalves
Dias, escrito em 1851, é um dos marcos do indianismo literário no
Brasil. Ao compor, com reconhecida beleza e qualidade estética, a
imagem mítica dos povos chamados primitivos, o autor, ao mesmo
tempo que valoriza o papel nobre e guerreiro dos Tupis, não esquece
de incluir neste poema duas referências aos "vis Aimorés". Numa
delas, no trecho do "Canto de Morte", saem da boca do personagem
tupi os seguintes versos:
- Os Aimorés! ...
39
D. J. Gonçalves Magalhães. Os indígenas do Brasil perante a História...
(1865). Texto publicado no número 23 da Revista do IHGB em 1860.
252 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
41
L. M. P. Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ... (1995).
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 255
brasileiras, a tratarem os índios chamados de Botocudos (e mesmo
outras tribos) como objetos de estudos nos anos 1840 está, justamen-
te, ligada às resistências que tais indígenas ainda apresentavam. O
lugar dos índios no campo cultural não se dissociava do espaço que
ocupavam no território nacional. Era o mesmo dilema que se mante-
ria na década seguinte para a geração romântica: como conciliar, si-
multaneamente, a valorização cultural (científica, estética ou políti-
ca) destes e de outros grupos indígenas, com as relações de contradição
que permaneciam?
E mesmo a lição do reconhecido von Martius (que pregava a
incorporação primordial dos índios à composição de uma história do
Brasil baseada na "mistura das raças", embora premiada em concurso
como "projeto de história do IHGB") não foi, paradoxalmente, se-
guida pelo próprio instituto no período imperial. Tal texto, intitulado
"Como se deve escrever a história do Brasil", depois de laureado, foi
alvo de restrições dos membros da instituição, que afirmaram: "talvez
seja inexequível na atualidade". E a presença indígena foi mitigada
nas páginas da Revista do IHGB em seus primeiros tempos. 42 Era,
ainda, o mesmo quadro intelectual que gerava defasagem entre as
"novas ideias" europeias e as formulações das elites culturais brasilei-
ras, que, por sua vez, faziam uma triagem nas "influências" que dese-
javam acolher.
Seria preciso aguardar algumas décadas, ainda no século XIX,
para solucionar a dupla e interligada equação. A literatura e as alego-
rias indianistas afloraram em fartura nos anos 1850-1860, conforme
foi demonstrado e analisado por Lilia Schwarcz. 43 Mas deixavam de
lado os Botocudos e destacavam positivamente os Tupis ou imagens
indígenas sem identificação étnica. E somente quando os Botocudos
deixavam de ser um problema contemporâneo, poderiam ser admiti-
dos no cenário científico. Em fins do Oitocentos e primeiras décadas
do século XX uma considerável quantidade de estudos nacionais e
estrangeiros, bem como textos que ganhavam o status de documentos
históricos, foram compilados, selecionados e impressos não só pelo
IHGB, mas pelos Institutos Históricos de outras províncias (sobretudo
Espírito Santo e também pela Revista do Arquivo Público Mineiro, no
42
Ibidem, pp. 573-8. A autora analisa do ponto de vista quantitativo e quali-
tativo a produção da Revista do IHGB sobre os índios no período.
43
L. Schwarcz. As barbas do imperador. . ., pp. 132-41.
256 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
44
Sobre o papel dos Botocudos nas representações raciais brasileiras do século
XIX,]. M. Monteiro. fu raças indígenas no pensamento brasileiro durante o Império...
45
F. A . de Varnhagen. Os índios bravos e o Sr. Lisboa . . ., 1867. fu citações a seguir
de Varnhagen são dessa mesma fonte.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 257
historiador, que literalmente se colocava ao lado das frentes de ex-
pansão do século XIX.
46
F. A. de. Varnhagen. Os fndios bravos e o Sr. Lisboa. . ., 1867.
47
Hist6ria geral do Brasil. .. , t . 1, seção I, p. 28.
260 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
48
Hist6ria geral do Brasil. .. , t. 1, p. 197.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 261
Unidos, onde havia uma política deliberada de extermínio das popu-
lações indígenas. Para Varnhagen, era preciso colocar as forças mili-
tares e as frentes de expansão de caráter privado em contato com os
índios, fazendo que estes se submetessem à força e levando-os para
reformatórios educacionais e trabalhos forçados, onde aos poucos eles
iriam se integrando à sociedade e ao trabalho produtivo e deixando
de serem índios.
Como foi visto, não só o Varnhagen historiador trataria dos
índios, mas também o polemista, escrevendo panfletos e defendendo
suas posições. 49 Nesses escritos ele atacaria os "philotapuias", que
consideram os índios como "verdadeiros donos da terra", ironizando
que, se assim fosse, todos os brasileiros seriam "criminosos" que esta-
riam "de posse do que é de outrem". Explicitando seu ponto de vista
como cidadão, o visconde-historiador faz questão de lembrar que, no
momento em que ele escreve suas obras, ainda existem "índios bravos"
que fazem uma "guerra civil" em pelo menos dez províncias do Im-
pério: Santa Catarina, Paraná, Maranhão, Amazonas, Goiás, São Pau-
lo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais e Espírito Santo,
onde ele não deixa de assinalar o problema da região do rio Doce.
Para comprovar a existência desses conflitos com indígenas Varnhagen
citava os relatórios dos presidentes destas províncias entre 1834 e
1850, por ele estudados minuciosamente- documentação, aliás, ainda
hoje facilmente disponível para verificação. Diante desta "guerra ci-
vil" (entra aí exagero, pois os índios a esta altura não colocavam em
perigo a nação como um todo, mas sim em conflitos localizados,
embora ainda abrangentes e portadores de situações de violência) o
historiador-cidadão-visconde-patriota não podia deixar de tomar
partido e essa posição prévia, ou preconceito, reflete-se em suas obras.
Confirmando mais uma vez que o historiador olha para o passado
com os pés no presente. O visconde de Porto Seguro encontrava res-
paldo para seus argumentos pragmáticos aproveitando-se da fragili-
dade da idealização e do gosto pelo exotismo que caracterizava mui-
tos dos "defensores" ou simpatizantes dos índios nos meios urbanos
- que de um modo geral desconheciam as condições de vida das
tribos e se inspiravam num Romantismo europeizado.
Varnhagen, por sua vez, servindo como diplomata em Lima,
deplorava os ataques que índios haviam feito naquele momento (em
49
F. A. de. Varnhagen. Os {ndios bravos e o Sr. Lisboa. .. , 1867.
262 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
51
A. G . Dias. Introdução aos Annaes Históricos do Maranhão por Berredo. ln:
Bernardo Pereira de Berredo. Annaes Históricos do Estado do Maranhão . .. , 1849.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 265
Na mesma medida em que propunha esses fatores, Gonçalves
Dias criticava outros pontos de vista na própria elaboração do passa-
do histórico brasileiro. Ainda a propósito de Berredo, ele atacava
determinado modelo historiográfico e afirmava:
52
Pedro Victor Renault. RAPM, VIII, pp. 1049-56 [1836].
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 267
século XVIII, quando da criação de presídios de "vagabundos úteis"
para ocuparem territórios indígenas.
Agora, fins dos anos 1830, os Botocudos ainda impediam a
mineração em Minas Novas, sobretudo a tribo dos Jiporocas (Gypo-
rocks, referidos por Ottoni). A localidade tinha jazidas de crisólitas e
águas marinhas, mas vivia na pobreza. Os índios causavam temor e
sua presença não incentivava a colonização. Mas eles não eram os
únicos causadores da falta de desenvolvimento: o solo estava gasto
por anos de agricultura predatória.
Os fazendeiros da região exultaram com a chegada de Renault,
esperando que ele fosse livrá-los dos índios, e se cotizaram para fi-
nanciar sua expedição, que incluía os rios Mucuri, Todos os Santos e
afluentes. O principal financiador foi Antônio José Coelho, dono da
maior propriedade rural da região, com mais de cem escravos, mas
cujas terras na fronteira da floresta eram as mais atingidas pelos
Naknenuks, outro importante grupo Botocudo, que matava gado e
destruía plantações. O francês conseguiu arrecadar cerca de 300$000,
os quais seriam usados para abertura de uma estrada e para compra
de brindes aos índios. O governo colaborou com o envio dos milita-
res da 2. • Divisão, reforçados com mais vinte praças. Mas para sur-
presa dos militares e dos financiadores da empreitada, o engenheiro
Renault reuniu-se e avisou que não se tratava de uma expedição guer-
reira ou punitiva. E foi além: quem atirasse contra os Botocudos
levaria um tiro dele próprio.
Descendo o rio Preto (onde deságua o Mucuri) em canoas, o
grupo penetrava em pleno território ainda ocupado pelos índios. Logo
eles se deparam, numa das margens, com um grupo de oitenta índios,
em atitude hostil, mas que não atiram flechas em razão da extensa
largura do rio. Mas, com gritos, avisam aos outros, que se encontram
mais adiante, da presença dos exploradores. Assim, as canoas iam
avançando pelo rio sem poderem aportar, cercadas de índios que os
ameaçavam. Os grupos de Botocudos se sucediam, causando pavor
aos invasores. Eram ainda, nas palavras do francês, "mattas tão vastas,
gigantescas, bellas e ricas regadas por tão abundantes rios". Dessa
forma, impedidos de parar para se abastecer, a expedição passou a
viver em estado de penúria, sobrevivendo, como os índios, de caça,
pesca e colheita feitas em fugazes paradas. O grupo dirigido pelo
francês experimentava, ainda que temporariamente, o que era viver
como essas tribos viviam.
268 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
***
Se os contatos anteriores contribuíram para desarticular a prepon-
derância indígena no vale do rio Doce, ainda havia tribos de Botocudos
hostis mais ao Norte, em torno dos rios Mucuri e Jequitinhonha. Foi
aí que entrou em cena o mineiro Teófilo Ottoni, um dos nomes mais
expressivos da vida política do Império brasileiro. Ele teve papel de
destaque no contato com os Botocudos. Conseguiu estabelecer alianças
e recebeu de alguns índios o tratamento de "Capitão Paqueju" (Capitão
Grande). E, tendo em mãos este trunfo, implantou uma colônia e
conseguiu construir em plena selva dos "índios bravos" a cidade que
hoje tem seu nome, contribuindo assim para incorporar ao mapa do
Brasil uma parcela do território que antes era ocupada pelos Botocudos.
A ação de Ottoni, embora de método em geral pacificador, con-
tribuiu para a aniquilação dessas tribos, uma vez que conseguiu esta-
belecer um expressivo polo de atividades comerciais e urbanas numa
região que até então vivia sob a hegemonia dos índios. Mas foi da
pena de Ottoni que partiu um dos mais vigorosos e indignados pro-
testos contra os maus-tratos a que esses índios eram submetidos, con-
tribuindo para esclarecer violências narradas de forma contundente e
detalhada. Na medida em que era um "colonizador manso", ele não
media esforços em denunciar e criticar os "colonizadores bravos".
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 271
Aliado e civilizador dos índios, Ottoni distribuía presentes e ví-
veres e quase sempre evitava, dentro de seu raio de poder, que se ofen-
desse, ferisse ou matasse os índios. Estes, em contrapartida, mesmo
quando atacavam os brancos, pouparam-lhe a vida por mais de uma
vez. O móvel dessa iniciativa de Ottoni precisa ser compreendido dentro
de sua trajetória política e da trajetória de embates vividos pelas tribos.
A carreira de Teófilo Ottoni começa marcada por seu perten-
cimento aos liberais Exaltados. Em 1831, é um dos partidários do
combate às tendências absolutistas de D. Pedro I. Filiando-se então
aos ideários de um Cipriano Barata, o principal líder dos Exaltados
dos anos 1820-1830 no Brasil, Ottoni redige em Minas A Sentinela
do Serro, incorporando-se assim à rede de jornais "Sentinelas" que
apareceram em diversos pontos do país. É eleito deputado provincial
entre 1835 e 1838, quando consegue uma vaga na Câmara dos Depu-
tados no Rio de Janeiro. Envolvendo-se na vida política da Corte,
participa do grupo que articula a antecipação da maioridade de D.
Pedro II e integra a associação conhecida como Clube da Maiorida-
de, dirigida pelo ex-padre Martiniano de Alencar, que combatia o
chamado grupo palaciano. Membro proeminente, em Minas, do grupo
político que viria a ser o embrião do chamado Partido Liberal, Ottoni
envolve-se de corpo e alma na rebelião armada de 1842, que tenta
combater os grupos mais conservadores que se haviam apossado do
poder. Na rebelião, age como um líder militar e político audacioso,
fazendo seu nome associar-se às legendas em torno do episódio.
Esmagados os liberais, Teófilo Ottoni continua seu combate
político, mas vai perdendo cada vez mais espaço. Em 1847, decide
então dar um novo rumo à sua vida pública e dedicar-se aos negócios.
Os ventos estavam mudando e Ottoni não se envolve mais nas tenta-
tivas revolucionárias de 1848. Era a hora de trocar a vida pública
pela iniciativa privada. Abandonando (por alguns anos) a luta parla-
mentar e jornalística na Corte, Ottoni, acompanhado dos membros
de sua numerosa e influente família, mergulha pelos sertões mineiros
e decide começar um empreendimento, batizado de Companhia de
Navegação e Comércio do Mucuri. Entre os acionistas dessa empre-
sa estava Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá, sócio e ami-
go de Ottoni: ambos partilhavam o mesmo ideal progressista e
civilizatório, o mesmo espírito empreendedor.
Visitando o terreno, Ottoni viu logo que o principal problema
que poderia impedir o florescimento de sua empresa era a presença
272 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
54
Essa tipologia foi sistematizada, a partir do texto citado de Ottoni, por S. A.
Marcato (1979).
274 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 29
Figura 30
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 275
Da mesma forma, o quadro de Santa Rosa (Figura 30), do sé-
culo XX e pertencente à prefeitura local, retrata o civilizador em
primeiro plano, tendo ao fundo uma locomotiva e um prédio ou fá-
brica (chaminé soltando fumaça), emblemas do progresso. Nesse tra-
ço, um dos mais expressivos do modernismo brasileiro, vê-se em se-
gundo plano um casal de índios com criança no colo: além de
apresentarem certo ar sombrio (rostos divididos pela sombra), apa-
rência de vitimização ou tristeza, os índios não têm feição própria,
nem identidade étnica ou ornamentos específicos. Aparecem como
índios genéricos, sem face definida, ao contrário de Ottoni, que teve
sua fisionomia recriada com traços de veracidade a partir de dese-
nhos anteriores.
Temos, nas Figuras 29 e 30, a ideia de dominação dos povos
indígenas e da natureza pelo progresso. O povoamento urbano aparece
em sua centralidade, dinâmico, a mover homens, veículos e animais,
domesticar plantas, destruir florestas, erguer casas e fábricas. A vio-
lência sobre os índios é escamoteada nessas imagens (o que é, aliás,
típico do indianismo): empurrados para a periferia e representados
apenas em estado "selvagem", sem fisionomia própria, perpetuam-se
como objeto da benevolência do protetor e civilizador Teóftlo Ottoni.
55
M. M. C. da Cunha. Política indigenista no século XIX . . .
56Relatório do Presidente da Prov(ncia do Espfrito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de
Couto Ferraz, na Abertura da Assembléia Legislativa Provincial, 1 de março de 1848. . .
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 277
do Rio Doce e também diretor do Aldeamento Mansinho, onde
moravam sobretudo índios Puris. 57 A dupla condição de diretor de
aldeamento indígena e responsável pela construção de uma estrada
que ligasse este trecho de Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo
não deixa muitas dúvidas quanto à atuação de Willner: seu objetivo
era usar a mão de obra indígena.
O próprio diretor-geral dos Índios do Espírito Santo em 1848
era Joaquim Marcelino da Silva Lima, primeiro barão de ltapemirim,
dono dos dois maiores engenhos da província. À medida que a
militarização cumpria seu papel, os representantes de interesses eco-
nômicos passavam a assumir a administração dos grupos indígenas.
Tal presença da administração pública, entretanto, acabou ge-
rando um conflito com os proprietários locais, que se beneficiavam
do trabalho dos Botocudos. Referindo-se aos remanescentes dos
Pokranes contatados por Marliêre, o engenheiro alemão afirma:
57
Trabalho de índios no Espírito Santo. Carta de Frederico Willner ao Dr. Luiz
Pedreira do Couto Ferraz, 13 de novembro de 1846, Arquivo do IHGB.
58
Ibidern.
278 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
59
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de 11-10-1847, AN.
60
lbidem.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 279
de expansão (escravidão ou trabalho de empreitada), havia os que se
internavam nas florestas e os que tentavam negociar ou pacificar os
colonizadores. Explica-se desse modo o relativo sucesso das alianças
propostas por Teófilo Ottoni aos índios: mais uma opção destes do
que simples benevolência daquele.
A iniciativa de negociação dos índios podia ser vista em outro
relatório do governo capixaba de 1848:
61
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o Visconde de Monte Alegre, 20-1-
1848, AN.
280 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
62
Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do
Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o ministro José Pedro Dias de Carvalho,
25-8-1848, AN.
63
P. V. Renault, cit.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 281
Esses exemplos localizados no Espírito Santo (e que se espalha-
vam por pelo menos dez províncias, como alertara o diligente Varnha-
gen) mostram o árduo e conflituoso trabalho de edificação nacional:
um mosaico de etnias e grupos- índios, negros, europeus, descen-
dentes de portugueses e diversas mesclas. Mesmo marcado por vio-
lências e opressões, vale perguntar: até que ponto o tráfico de crian-
ças contribuiu para integrar, apenas genética ou também cultural (ainda
que parcialmente), esses índios à sociedade nacional? Até que ponto a
sociedade brasileira não foi formada também por estes índios trazi-
dos à força e que, apesar da negação em termos de memória coletiva,
participaram da composição dessa sociedade, que se pretende espelhar
preferencialmente em modelos da colonização europeia?
Na segunda metade do século XIX os Botocudos ainda se cons-
tituíam num problema para a expansão interna do Império brasileiro.
Mesmo sem um levantamento sistemático, que foge aos objetivos deste
trabalho, é possível perceber a presença expressiva de populações in-
dígenas ainda não completamente submetidas aos padrões da socie-
dade nacional em áreas na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. A
dificuldade de contabilizar demograficamente esses índios era, justa-
mente, um dos principais indícios de suas resistências.
Na Bahia, em 1861, registrava-se a presença de 478 índios
"Botocudos, Camacans e outros" aldeados em Catolés, Barra do Sal-
gado e Lagoa do Rio Pardo. 64 No entanto, o mesmo relatório apon-
tava que havia "nas mattas ainda muitos selvagens", tidos como "bra-
vios que assim convém atrahir".
No relatório de 1869, o presidente da província baiana admitia
que a presença indígena era tratada com esquecimento:
64
Mapas das Aldeias Indígenas da Província da Bahia . . ., 1861, Apeb.
65
Relatorio que apresentou aAssembléa Legislativa da Bahia o excellentissimo senhor
Barão de S. Lourenço, presidente da mesma província . .. , 1869.
O RIGOR DA CI~NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 327
Mutum "e mesmo para os que costumam aparecer vindo de outros
lugares". 43
Entre o apagar do Oitocentos e o raiar do século XX, experiên-
cia marcante no contato com os Botocudos ocorreu nos aldeamentos
de Itambacuri, em Minas Gerais, por iniciativa de frades capuchinhos,
na mesma região onde décadas antes Teófilo Ottoni intentara seu
malogrado projeto capitalista utópico.
A iniciativa missionária de Itambacuri, detidamente estudada
pela antropóloga I. Misságia de Mattos, começou em 1873 e chegou
a contar com mais de mil Botocudos aldeados ao lado de número
equivalente de brasileiros. 44 Foi inicialmente liderada e construída
por dois capuchinhos também "mestiços", isto é, de origem italiana e
austríaca, e incorporou grande número de índios à sociedade nacio-
nal, destacando-se os professores indígenas como intermediários.
Durante duas décadas a ação missionária floresceu, encravada no que
até então se constituía como um dos últimos bolsões de grupos Boto-
cudos no território brasileiro. Entretanto, uma vigorosa rebelião dos
índios contra a missão e os padres, em 1893, causou surpresa, como-
ção e gerou violenta repressão sobre os indígenas que muitos acredi-
tavam devidamente cristianizados e pacificados. A partir daí, a pre-
sença indígena, ou seu reconhecimento, foi declinando no local, que
ainda em 1894 contabilizava cerca de mil índios entre "puros e mes-
tiços" e nos primeiros anos do século XX falava-se indistintamente
em "habitantes", gerando um considerável crescimento populacional
para as cidades que ali se ergueram, também com a vinda de famílias
de imigrantes europeus. Em pouco mais de dez anos os índios desa-
pareceram por completo dos registras demográficos de Itambacuri.
Era a República nascente que, herdeira do Império, intensificava a
consolidação da homogenei;dade para a nação brasileira.
43
Relatorio apresentado áAssembléa Legislativa Provincial do Espírito-Santo pelo
presidente da província, desembargador Antonio Joaquim Rodrigues, em 5 de outubro de
1886 . ..
44
I. M. de Mattos. Civilização e revolta . .. , cit.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO 283
demografia nem para a produção. O discurso oficial que se consoli-
dara sobre tais índios não submissos ao longo do século XIX não era
mais o de enquadrá-los como ferozes e temíveis, mas, sim, colocá-los
na postura de vítimas, de infelizes por viverem nas trevas da ignorân-
cia, longe dos propalados benefícios da civilização. Era o registro da
filantropia, um dos principais motores do movimento associativo
oitocentista, que implicava o movimento de levar os que detinham
tais benefícios a alcançar os despossuídos deles. Ou seja, uma relação
de poder e de superioridade para com os que seriam carentes de tais
benesses. E que visava, em última instância, enquadrar os beneficia-
dos nas formas de vida e produção da sociedade vigente.
No ano seguinte as autoridades mineiras tomaram providências
mais efetivas e de tendência menos filantrópica quanto aos indígenas.
Em primeiro lugar, se reconhecia a existência, ainda, de "milhares de
selvagens, que habitão muitas das frondosas mattas desta bella provín-
cia". E, em seguida, enviava-se circular a todos os juízes municipais
exigindo que informassem quais as terras que estavam de fato ocupadas
e aproveitadas pelos índios, para que as demais pudessem ser conside-
radas devolutas. 68
A exemplo da Bahia e Minas Gerais, e com presença indígena
ainda mais intensa, no Espírito Santo, o relatório do presidente da
província de 1854 alertava:
68
Relatorio que d Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes apresentou no
acto da abertura da sessão ordinaria de 1870. ..
69
Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Provín-
cia do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 1854. Apes.
70
Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Provín-
cia do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 185 5. Apes. Sobre
a questão das terras indígenas no Espírito Santo nos anos 1850, v. o artigo de V. L.
Moreira (2002).
284 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
71
Relatório lido no Paro daAJJembléia LegiJiativa da Prov íncia do EJpírito Santopelo
prezidente. .. , 1872. Apes.
72 IBGE. &tatúticaJ hiJtóricaJ do BraJil. . .
Capítulo 8
SOB O RIGOR DA CIÊNCIA:
MÚLTIPLAS IMAGENS E ESQUELETOS
VIAJANDO
As lentes de Daguerre
1
Os dagucrrcótipos pertencem à Colcção Jacquart c têm os seguintes códices:
D-80-1317, D-80-1318, D-80-1319; D-80-1315 c E-79-1396 (repetidos); E-79-
1397 c D-80-1320 (repetidos). Em 1995 estas imagens não constavam de nenhum
dos fichários do Musée de l'Homme disponíveis ao público, só cheguei a elas por re-
ferências de documentos do século XIX. Mas diante do meu pedido à instituição não
tive dificuldade em consultá-las e reproduzi-las.
285
286 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
2
T. Starl. Un nouveau monde d'images. Usage et diffusion du daguerréotype. ln:
Michel Frizot (dir.). Nouvelle histoire de la photographie. Paris: Adam Biro, 1994, p. 47.
3 M. Oppitz. Anthropologie visuelle. Verbete no Dictionnaire de l'ethnologie et
de l'anthropologie, org. por P. Bonte & M. Izard. 2.' ed., Paris: PUF, 1992, pp. 742-3.
J. Scherer. Documento fotográfico: fotografias como dado primário na pesquisa antro-
pológica. Cadernos de Antropologia e Imagem, n.• 3, Núcleo de Antropologia da Imagem,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996.
4
T. Starl, op. cit., p. 43; M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie
des différences. ln: M. Frizot, op. cit., p. 267.
5
Cf. M. E. Conduché. La photographie au Muséum d'Histoire Natrurelle. La
Lumiere-Revue de Photographie, n.• 16, 17-4-1858.
6 J. R. Bessa Freire (coord.). Os índios em arquivos do Rio de janeiro. Rio de
7
M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie des différences, cit., pp.
259-71.
8
Uma síntese do estado da discussão sobre as relações entre história, etnologia
e antropologia encontra-se no Dictionnaire de /'ethnofogie et de /'anthropologie, org. por P.
Bonte & M . Izard. 2.' ed. Paris: PUF, 1992.
288 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
9
M. E. Conduché, op. cit. Na verdade, haviam se passado catorze anos e não
dewito.
10
La Lumiere- Revue de la Photographie, Paris, abril de 1858.
290 CERCO AOS BOTOCUDOS NO Sl~CULO X IX
11
A. de Saint- llilairc, vóyage dam !es provim·es de Rio d,·.fantiro et de 1\lznw
Geraes, 1 ct 2, Paris: Grimbcrt cl Dorcz, 1830. A es tad ia deste viajante entre os
t.
Botocudos foi entre 18 l6 c 181 7.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 291
de desenvolvimento e civilização dos índios, em contraponto aos tra-
dicionais discursos colonizadores que depreciavam as "raças indíge-
nas". Mas tal postura de Saint-Hilaire, embebida na perspectiva ilus-
trada de unidade da espécie humana, esbarrava nas novas classificações
raciais que se cristalizavam com base na Antropologia Física e, tam-
bém, na nova fase de expansão colonialista europeia pelo mundo.
Saint-Hilaire também apontou, apenas na base da intuição e
observação empírica, a semelhança física entre estes grupos indíge-
nas brasileiros e as populações orientais, especificamente chinesas. 14
Alongando-se sobre a semelhança dos Botocudos com os traços mon-
gólicos, à qual Serres fizera referência sem se aprofundar, Saint-Hilaire
faz alguns comentários. Sempre remetendo ao que escrevera em seus
livros - citando tomo, capítulo e página - Saint-Hilaire lembra
que havia um grupo de chineses no Rio de Janeiro na época de sua
visita (Figura 31).
Figura 31
14
Os atuais estudos de antropologia biológica tendem a referendar a percepção
esboçada por este cientista-viajante. Ver, por exemplo, a obra de divulgação Tous
parents, tous dijférents, de A. Langaney et alii. Paris: Chabaud, Muséum National
d'Histoire Naturelle, Musée de l'Homme, 1992.
292 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
15
F. Tinland. Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon et leur
pertinence pour l'anthropologie contenporaine. ln: E. Mayr (org.). Bt1fon 88 - Actes
du Colloque International, Paris: 1992.
16 Cf. Joma.rd. Notes sur les Botecudos. ln: E xtrait du Bulletin de la Société de
18
Ver sobre este aspecto a interpretação da canadense M. L. Pratt. Os olhos do
império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
19
Ofício sobre a existência de índios botucudos às margens do rio Doce.
Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t. 6, 1845. A mesma revista publi-
cou a tradução do relatório do barão de Jomard no t. 9 de 1847. Era a "descoberta"
deste grupo indígena pelas elites letradas brasileiras.
20
P. Rey. Etude Anthropologique sur les Botocudos. Paris: O ctave Doin Éditeur,
1880, p. 13. Sobre a relação entre as culturas indígenas e os museus enquanto
instituições, ver o ensaio de]. Clifford. Muséologie et contte-histoire. Voyages sur la
Côte Nord-Ouest. R évue d'Histoire et d'archives de l'anthropologie, Séction Histoire de
l'ethnologie du Musée de l'Homme, Paris, 11, 1992, pp. 81-101.
21
Conduché, op. cit.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 295
Antropologia Física incorporando as tecnologias mais atualizadas da
época a fim de obter as reproduções as mais "realistas" possíveis. Dentro
desta Galeria, havia também "desenhos naturais". As primeiras foto-
grafias que se incorporaram ao acervo do Museu foram as dos lnuits
e estas dos Botocudos. Os daguerreótipos provavelmente foram feitos
em Paris. Não se sabe exatamente onde nem em que condições foram
tirados e as informações são desencontradas sobre a data exata de sua
aquisição pelo Museu.
Percebe-se assim que tais imagens foram uma das peças-chave
no momento de fixação de parâmetros científicos no campo do estudo
das populações humanas. Esses dois índios, retirados da periferia e
da floresta, estiveram no epicentro metropolitano das Luzes, como
novos Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam
paradigmas que se espalhavam pelo mundo. "Tudo" sobre eles foi
decodificado, dentro daqueles parâmetros do conhecimento, como
que servindo de modelos vivos para uma tipologia de saberes insti-
tucionalizados.
Diante dos daguerreótipos a pergunta costuma surgir como que
instintivamente: o que foi feito desses índios depois de fotografados?
Tal pergunta já escapara do médico Phillipe Rey em 1878 e várias
pessoas atualmente quando olham os retratos ainda repetem-na, qua-
se invariavelmente. A resposta, até o momento, nos é desconhecida:
depois de descobertos, desapareceram sem deixar rastros. Mas vale
indagar sobre este interesse: de onde vem esta associação entre a ob-
jetividade rigorosa dos estudos de que foram objetos e a subjetividade
quase sentimental da indagação sobre o destino individual desse ho-
mem e dessa mulher fotografados? Talvez seja pelo deslocamento tão
profundo a que foram submetidos, de tempo, espaço e cultura. Talvez
por serem "outros" que foram, simbolicamente, como que antropofa-
gicamente devorados por "nós", depois de eternizados pela imagem.
Esses daguerreótipos não deixam de ser um ritual de sacrifício em
nome do progresso. Talvez esta reaproximação entre observador e
observado se deva também como que a uma subversão do significado
através do signo, onde o olhar dos que foram fotografados passa a nos
interrogar também. 22 Tal movimento de interesse, de certo modo
afetivo (que afeta), pode advir da constatação de que aprendemos
22
Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o
conhecido estudo de R. Barthes (1980).
296 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 32 Figura 33
23
Cf nota 2. Trata-se aqui do daguerreótipo D 80 1319.
298 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
24
Pode-se perceber isso também na foto D 80 1318, em que ela aparece de
lado.
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 299
dade ela pareceu reunir toda o sofrimento, solidão e colocá-los, como
oferenda, na expressão de seu rosto e de seus olhos que se eternizaram
nessa 1magem.
O rapaz de calças brancas parece ser ainda mais jovem, um
adolescente. Magro, com os ossos do tórax aparecendo, ainda mantém
um certo vigor físico, de quem era musculoso mas emagreceu. Em-
bora esteja de frente, manteve as pálpebras semicerradas no momento
da foto, o que lhe dá uma aparência fugidia, esquiva (Figura 34). 25
Figura 34 Figura 35
Figura 36
25
D 80 1315 e E 79 1396.
300 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
26
D 80 1320 e E 79 1397.
27
E 80 1317.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 301
de sentimentos e condições de vida destes índios registradas pelos da-
guerreótipos (e cotejadas com outras fontes documentais) são também
significativas. Abandonando a condição de cobaias, estes índios se
expressaram através do registro de suas aparências. Como se os objetos
fotografados se apropriassem da imagem e subvertessem seu signifi-
cado, criando outros discursos não verbalizados que transcendiam o
movimento de fixação, conhecimento e controle contido no ato de fo-
tografar. À sua maneira, os dois índios posaram, responderam, ex-
primiram com o corpo tudo aquilo que não aparecia nas suas vozes.
Eles não foram apenas "descobertos", mas descobriram a fotogra-
fia e elaboraram seu discurso, contaram sua história, ainda que sem
palavras.
Muitos fatores convergiram para que essas fotografias fossem
realizadas. Elas sinalizam uma evolução tecnológica da civilização
ocidental e que foi possível levar tais recursos até esses índios. Indi-
cam, portanto, que eles não tinham condições de responder pela guerra,
pois estavam sendo derrotados neste campo: violência e imagem não
deixam de estar interligadas. Depois do relâmpago dos fuzis e do
corte dos facões, vieram as Luzes das ciências e logo era a composição
química das câmaras escuras que agia diante dos índios. Os guerreiros
Botocudos finalmente fotografados. Esfinges captadas pela tecnologia
e decifradas pela racionalidade científica, suas imagens guardam in-
tactas a opressão a que foram submetidos. Tão diferentes da imagem
mítica ou romântica do "homem novo americano", tão distintos das
alegorias patrióticas indianistas em voga nas Américas do século XIX
- estes índios retratados não apresentam tampouco a expressão feroz
de canibais devoradores, presente na maioria dos relatos escritos sobre
eles até aquela época. De certa maneira, esse homem e essa mulher,
ainda que classificados pelo membro da Academia de Paris no campo
da Zoologia, parecem nos dizer que seus "espíritos" e seus corpos
estavam irremediavelmente aprisionados ali, no momento em que se
realizou diante deles a alquimia dos daguerreótipos.
As diferentes imagens
Figura 37
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 303
Um típico viajante em cujo relato se cristalizavam em admirá-
vel síntese as imagens predominantes sobre os Botocudos no século
XIX foi Alcides D'Orbigny, que esteve no Brasil em 1841. 28 Ele
referia-se a tais índios como "os mais célebres do Brasil" e também
como "mais ferozes que todos seus adversários", classificando como
"hábito horrendo" o uso dos botoques. Entretanto, ao visitar o que
chamou de "país dos Botocudos", isto é, a vasta região entre Porto
Seguro e os rios Jequitinhonha e Doce, garantiu estar "dissipado o
perigo" destes grupos indígenas, uma vez que, segundo sua percep-
ção, havia grande contingente da população "meio portugueses, meio
índios" e considerável porção de florestas virgens. D'Orbigny reafir-
mava o canibalismo dos Botocudos, embora remetendo-o para "tem-
pos antigos", baseado, portanto, nos textos e tradições do período
colonial. O mesmo viajante registrava a hostilidade existente dos
Botocudos com outros grupos étnicos como Maxacalis, Malalis, Mo-
nochós e Mananis, qualificando-os de "inimigos encarniçados". Ao
chegar ao Rio de Janeiro, o viajante europeu, num misto de decepção
e surpresa, afirmou encontrar ali uma cidade europeia, diferente da
"América primitiva" que ele buscava no seu périplo pelo continente.
Até D. Pedro II teve seu quinhão na polissemia iconográfica
dos Botocudos que proliferou no século XIX. O olhar imperial incidiu
sobre cinco Botocudos do Espírito Santo em fevereiro de 1860, du-
rante viagem do monarca pela província, quando aproveitou para exer-
citar sua veia etnográfica e de desenhista, ainda que de modo rudi-
mentar.29 Cara a cara com os famosos Botocudos e contaminado pela
curiosidade irresistivel em torno desses grupos, o imperador dedi-
cou-lhes palavras e traços, escassos. Nos comentários escritos que
ladeiam as imagens D. Pedro II reproduzia os conhecidos estereóti-
pos sobre tais índios, embarcando nas novas percepções que não os
apontavam mais como temíveis canibais, mas, sim, como figuras bi-
zarras e esteticamente enquadradas nos padrões de beleza das socie-
dades ocidentais.
Ao lado do terceiro e último rosto (Figura 40) o monarca fez
sua apreciação: "Moço que não é feio". Já no desenho da "rapariga"
28
A. D'Orbigny. Voyage dans les deux Amériques. ..
29
Diário de viagem do Imperador d. Pedro II ao Espírito Santo de 01-02 a 11-
02-1860- Maço 37- Doe. 1057- cad. 06, AHMIP. Agradeço a Neibe Machado da
Costa, do AHMIP, a digitalização e remessa das imagens.
304 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
3
°C. Hartt, p. 619.
31
T. Ottoni, cit., p. 47.
O RIGOR DA CI'tNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 305
desenhá-los ou descrevê-los. Mesmo sem maior expressão artística
ou etnográfica, estes esboços feitos pela mão de D. Pedro II trazem a
carga simbólica do encontro entre o topo e a base da hierarquia da
sociedade imperial, entre aquele que se considerava na ponta do pro-
gresso com os que eram vistos como os mais primitivos, cujas ima-
gens, agora, podiam ser facilmente capturadas, até mesmo pelo olhar
diletante do imperador em viagem. Note-se que tal encontro se deu
no apogeu da escalada do indianismo romântico apoiada pelo mo-
narca que, entretanto, não associa os Botocudos a este movimento.
•
Figura 38
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XIX O'lfl::>:;IS ON SOQfl;)O~O!I SOV O;)'M :;[;) 90f
O RIGOR DA Clf'.NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 307
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308 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 41 Figura 42
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Figura 43 Figura 44
312 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
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Figura 45 Figura 46
Figura 47 Figura 48
O RIGOR DA CltNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 313
Figura 49 Figura 50
Figura 51 Figura 52
314 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
33
Cf. L. Rocha. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo . .. , 1971.
O RIGOR DA CI"tNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 315
Hartt esteve com Botocudos em diversas oportunidades e lo-
cais: rio Doce, São Mateus, colônia Leopoldina, Urucu e Filadélfia
(Teófilo Ottoni). E desse contato no terreno parece ter brotado outra
percepção, de certo modo contraditória com os paradigmas intelec-
tuais que ele próprio apregoava. Depois de conhecê-los e manter
algum convívio, o norte-americano se disse surpreendido por achar
tais índios "muito dóceis", de "boa índole": riam e brincavam uns com
os outros. Ainda que discretamente, era mais um que se encantava
com a "cordialidade dos selvagens".
Entretanto, Charles Hartt não estava dissociado dos precon-
ceitos existentes em sua época. Afirmava que o uso de botoques re-
sultava numa "horrível careta" dos índios, comparando seus lábios a
aparência de um verme. E citava, sem contestar, o naturalista alemão
von Tschudi, para quem os Botocudos, quando pintados de urucum e
jenipapo, tinham aspecto demoníaco.
A escravização de Botocudos ainda era relatada pelo cientista
norte-americano:
34
Sobre este tema ver J. M. Monteiro. As raças indígenas no pensamento
brasileiro durante o Império . .. e L. Schwarcz. O espetáculo das raças. ..
O RIGOR DA CIÊNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 317
territorial da África pelas potências europeias sacramentada no Con-
gresso de Berlim em 1885. Assim, estes estudos biológicos vincula-
vam-se ao contexto histórico e não apareciam como um ramo ou um
dos domínios da Antropologia, mas como a disciplina em si - afir-
mação demarcada com a força das identidades nascentes que buscam
conquistar seu espaço institucional.
Os estudos de caso de Botocudos têm papel significativo nesta
Antropologia que se firmava. No campo teórico, eram vistos como
uma das "mais primitiva das raças" americanas - o que por si já
evidencia sua relevância dentro de uma linha evolutiva da espécie
humana. E, na prática, também foram usados no Brasil para a con-
quista de apoio e legitimidade por parte desta ciência do homem
diante dos demais setores da sociedade. Fica difícil separar esta
reformulação do conhecimento sobre esses grupos indígenas das pró-
prias condições em que tais tribos viviam. A legenda de ferocidade e
os clamores de extermínio que vigoraram até início do século XIX
foram sucedidos pelos primeiros estudos tomando esses grupos como
objeto e por intensa campanha civilizatória, mediante pacificações,
colonizações e catequeses. Agora, da segunda metade do século XIX
para o início do século XX, era um outro discurso que se formulava,
caracterizado pelo rótulo primitivista que podia servir para a ciência,
mas também para o senso comum, na tênue fronteira entre o extrava-
gante e o rigoroso, entre o bárbaro e o grotesco, entre o saber e o
preconceito, entre a raça e o racismo.
O primeiro crânio de um índio Botocudo fora levado à Europa
ainda pelo príncipe de Wied-Neuwied em 1817 (Figura 53). Foi um
acontecimento na comunidade científica. Nomes como Friederic
Blumenbach (o "pai" da Antropologia Física) e Norton debruçaram-
-se sobre ele e publicaram trabalhos minuciosos. Era uma amostra
autêntica da "raça Botocuda", considerada então como verdadeira re-
líquia de um grupo pré-histórico vivendo em características acentua-
damente primitivas. Foi o início de uma série de estudos e publica-
ções em torno dos crânios de Botocudos, passando pelos já citados
Serres (1843) e Hartt (1870), por R. Virchow (Sociedade de Antro-
pologia de Berlim, 1873 e 1892), Retzius & Bernard Davis (1875),
G. Canestrini & Moschen (Pádua, 1879), Lacerda Filho & Peixoto
(Museu Nacional, 1876), Rey (Sociedade de Antropologia de Pa-
ris,1880), Peixoto (1885), P. Ehrenreich (1887), Jeffries Wyman
(Universidade de Cambridge, 1884), G. Sergi (1891), von lhering
318 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
~-
~
I, I
j \
Figura 53
15
M. C. M. Alvim. Divenidade morfológica entre os índios "Hotowdo.r". .. , 1963.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 319
príncipe Wied-Neuwied) e Museu de Gôttingen (1880). Verifica-se
uma significativa rede de sociabilidade científica alimentada pelos
ossos dos Botocudos.
Essas viagens de esqueletos podiam ser financiadas no âmbito
oficial ou por iniciativa privada. A administração pública brasileira, a
mesma que cuidava do controle direto dos grupos indígenas, era
mobilizada em várias instâncias para a coleta de ossos durante o Se-
gundo Reinado. Pode-se rastrear essa viagem dos restos humanos
desde a selva até as instituições culturais brasileiras ou estrangeiras
através do trâmite burocrático, como no caso de dois esqueletos mas-
culino e feminino solicitados em 1875 pelo Museu Nacional, via 2.•
Seção da Diretoria do Comércio do Ministério da Agricultura, ao
diretor do Aldeamento Central do Rio Doce que, por sua vez, reme-
tia o material (dois caixões com esqueletos) ao presidente da Provín-
cia de Minas Gerais, cabendo a este a remessa ao Rio de Janeiro. 36
Havia também a coleta e comércio de esqueletos para exportação por
particulares. Como no caso de um confronto armado entre Botocudos
e fazendeiros em Minas Gerais em 1846, resultando vários indígenas
mortos. Na ocasião, conforme relato da época:
36
Esqueletos remettidos pela Presidência de Minas Gerais para o Muséo Nacional, 26
de abril de 1875 (IE 7-77), AN .
37
T. Ottoni, cit., p. 51.
320 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
38
H. Beuchat. Manuel d'Archéologie Américaine. .. , 1912,
39 M. C. M. Alvim. Diversidade moifológica entre os {ndios "Botocudos" do leste
brasileiro {século XIX) e o ''Homem de Lagoa Santa". .. , 1963.
O RIGOR DA CI~NCIA: IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO 321
índios havia, por parte daqueles, a ênfase na coleta de restos humanos
- esqueletos completos, crânios, túmulos, sem falar nas medidas
antropométricas dos "exemplares" vivos. Verdade que desde os primei-
ros contatos, tal preocupação já existia. O príncipe Wied-Neuwied e
Saint-Hilaire recolheram crânios, mas não deram a eles grande im-
portância no panorama de suas observações e conclusões. Com os
primeiros antropólogos - e a distância já nos permite falar disso sem
rancores - havia um certo toque de necrofilia nesta busca e coleta de
ossos humanos, em certa medida insensível aos indivíduos vivos ou
ao modo como foram mortos.
Em qualquer época é difícil falar de uma "ciência pura". A co-
meçar pela própria perspectiva teórica de pesquisar as provas mate-
riais para chegar a conclusões culturais - os esqueletos seriam mais
"eloquentes". Índio bom é índio morto? Ao contrário do personagem
Hamlet, a maioria destes cientistas, quando tinham a caveira nas mãos
para interrogá-la, não se preocupavam em saber a quem pertencera,
em que condições o índio morrera (a não ser que o objeto estivesse
danificado), o que outros de sua tribo poderiam falar sobre a vida, a
morte e as tradições e muito menos se interessavam por saber que
proporções poderia assumir um comércio de esqueletos.
Um dos últimos crânios de Botocudos a ser recolhido foi o de
Tomkhé, filho do "capitão" Krenak e que morrera por volta de 1910
ou 1911. Em 1915, o jovem cientista russo Henri Manizer, em mis-
são da Sociedade Imperial Russa de Antropologia, de Petrogrado, foi
à região do rio Doce com o objetivo de coletar materiais e fazer um
relato sobre a vida das tribos de Botocudos no Posto Pancas (a cinquenta
quilômetros de Colatina) e num aldeamento em abandono nos arre-
dores de Lajão. Os Krenaks (que segundo Manizer se autodenomi-
navam Boruns), que até 1910 eram considerados, no dizer do russo,
"como os mais puros e conservados", estavam agora em estado la-
mentável. O grupo que se recusava a ir para o Posto Pancas, onde a
caça era muito pobre, permanecia acampado num terreno à beira da
estrada de ferro Vitória-Minas, vivendo de uma precária agricultura
de subsistência, recebendo rala ajuda governamental e pedindo esmo-
la aos passantes.
Ao perguntar a estes índios onde poderia recolher algum
esqueleto, Manizer não sabia que estava puxando a meada de um
fio que o levaria a águas mais profundas do que poderia imaginar.
O cientista russo chegara ao local impregnado do cientificismo
322 CEX.CO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
pênis colossal podia sufocar uma mulher até a garganta. Ele tinha
cabeça branca, rosto coberto até os olhos de pelos vermelhos. Ele se
encontra no céu, as estrelas são dele, tem muitos ftlhos. Anda nas
nuvens e sobre as águas, mas os brasileiros não podem vê-lo. Ele não
usa sapatos, mas nem espinhos nem galhos podem machucá-lo. Sua
faca é longa como um arco e pode derrubar árvores, faz flechas muito
bem. Se alguém o irrita, atinge no coração com flecha invisível. Ama
os Boruns e se aborrece quando eles são ultrajados. Maret, o antigo,
promete vingança contra os brasileiros que passarem pelas terras in-
dígenas. Maret enviou o sol, como o governo enviou os trens. De
noite o sol entra no céu e fica com Maret o antigo. Ele esconde ou
mostra a lua, evoca chuva e tempestade. 40
O relato mitológico sobre o "espírito civilizador" destes Boruns
mostra que a resistência do grupo indígena continuava. Não mais na
prática guerreira, que se tornara impossível para eles nas condições
em que viviam, mas em práticas simbólicas, que acompanhavam e
estruturavam a identidade do grupo desde a época em que eram guer-
reiros, identidade que se transfigurava e permanecia - mesmo quan-
do eles já não eram mais considerados "índios bravos". A bravura,
aqui, era de outra ordem e a força de seus mitos era ainda maior que
sua força física, que durante tantos séculos aterrara os agentes da ci-
vilização ocidental.
Algum tempo depois, maio de 1916, Henri Manizer estaria
apresentando os resultados de sua pesquisa na Sociedade Imperial
Russa da Academia de Petrogrado (meses antes da Revolução Sovié-
tica). Manizer, homem de ciência e ligado às vanguardas culturais e
poüticas de seu país, estava próximo a grupos revolucionários russos.
Ele foi considerado, por alguns, como autor do primeiro trabalho
antropológico moderno, na transição da Antropologia Física para a
Cultural. Os cientistas paravam de desenterrar os ossos dos Boto-
cudos e estes, mesmo acossados, iam contribuindo com suas falas e
expressões para enterrar o cientificismo craniológico e racista.
Um expressivo e desconcertante exemplo da relação dos Boto-
cudos com as ciências do século XIX aparece na história de vida de
um desses índios, cujo nome não foi registrado pelo viajante alemão
Tschudi que recolheu o caso em fins dos anos 1850. Uma família da
40
Este relato foi traduzido e codificado por Manizer em russo, depois recebeu
uma versão resumida em francês, da qual tiramos esta versão em português.
O RIGOR DA CitNCIA: IMAGENS E ESQ!JELETOS VIAJANDO 325
Bahia recebera de "presente" um curuca Botocudo e criou-o como
ftlho: o rapaz teve ótimo desempenho nos estudos de nível médio e
entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia, de onde saiu com o
título de doutor e exerceu durante alguns meses a profissão. Entre-
tanto, estava sempre tomado "por uma melancolia que não se dissipa-
va jamais", o que foi atribuído, na época, a estigmas raciais, ou seja, "à
marca doente de seu caráter". Certo dia ele desapareceu sem deixar
vestígios, para perplexidade de seus pais adotivos que, somente anos
mais tarde, descobriram seu paradeiro: voltara para sua tribo na flo-
resta, onde retomou seus antigos padrões culturais, caçando com arco
e flecha e vivendo sem roupa. O índio em questão, embora não se
adaptasse plenamente aos padrões ocidentais, era capaz de adquiri-
-los e usá-los, segundo palavras da época, com "brilhantismo". Além
da incompatibilidade existencial com o modo de vida imposto, que o
índio conheceu bem e até aceitou durante anos, e da identidade de
origem que não se perdera, apesar das experiências de contato vivi-
das, ele conhecera e dominara as ciências biológicas, um dos princi-
pais esteios de opressão e de estigma sobre seu povo. Para os parâmetros
civilizadores oitocentistas era praticamente impossível compreender
essa recusa na opção feita pelo Botocudo que se tornara médico e, em
seguida, preferiu voltar às suas origens culturais.
As invisíveis presenças
41
W. J. Steains. Uma exploração do rio Doce e seus afluentes no norte ...
42
P. Ehrenreich. Contribuições para a etnologia do Brasil. ..
326 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Abertura
Estande 1.
Teia administrativa na coleta dos artefatos nacionais
1
Ladislao Netto, diretor do Museu Nacional. "Ao Leitor". Introdução a Mello
Moraes Filho (di r.). Revista da Exposição . .. , p. VII.
2
Oficio do Diretor do Museu Nacional de 4-4-1882, Série Educação, IE7 -65, AN.
3 Ata da 19. • sessão ordindria da Câmara Municipal de Petrópolis, aos 30 dias de
novembro de 1881, sob a presidência do sr. majorJosé Cândido Monteiro de Barros, AHMIP.
330 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
4
Documento I-DPP-28.06. [1883], Net. C, Livro 169, AHMIP.
5 Oficio do Diretor do Museu Nacional de 2-5-1882, Série Educação, IE7-65, AN.
6
Ofício do Diretor do Museu Nacional de 6-6-1882, Série Educação, IE7 -65, AN.
I
7
Oficio do Diretor do Museu Nacional de 16-6-1882, Série Educação, IE7-65, AN.
8 Ibidem.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 333
mento. 9 A metrópole civilizada aparecia como contraponto e supera-
ção, na escala evolucionista, da selva com seus habitantes primitivos.
Como arremate, Lacerda reforçava a necessidade do "estudo da
antiguidade do homem e a filiação das raças humanas". Ou seja, uma
forma de publicizar, buscar apoio e legitimidade para a instituciona-
lização da Antropologia no Brasil. Era este um dos papeis reservados
aos índios trazidos à cidade imperial e assim se concebia a "contribui-
ção" indígena à formação nacional. Eram os primeiros passos da Antro-
pologia no país, evidenciando a ligação de ambos os projetos, o nacional
e o antropológico, 10 que se baseavam na suposta assimilação dos negros
e índios: de ameaça à civilização e a ordem se tornariam objetos de
estudo e tradição. E reafirmando o caráter do Rio de Janeiro não
apenas como capital nacional, mas cidade imperial, capaz de espelhar
e realizar em seu próprio espaço a configuração de uma identidade
nacional através da elaboração, por assim dizer, de uma nova carac-
terização racial para o restante do país. Os combates contra os ín-
dios não eram levados por motivos estritamente econômicos: a par-
tir das formulações destes cientistas percebemos ao mesmo tempo
uma formulação de extermínio das diferenças étnicas no Brasil do
século XIX.
Se a criação da Seção de Antropologia foi negada naquele
momento, os organizadores obtiveram a vinda dos índios Botocudos
para exibição in loco.
Estande 2.
Uma ciência respingada de sangue
9
L. Schwarcz. O espetáculo das raças. . . Para uma abordagem distinta sobre esta
Exposição Antropológica, v. o artigo de J. Andermann. Espetáculos da diferença . . .
(2004).
10
M . M . C . da Cunha, 1986.
334 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
11
Sobre a esfera pública e cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do
século XIX, v. M . Morei (2005).
ÍNDIOS NA VlTRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 335
Botocudos do Rio Doce", na Sala Gabriel Soares. Seria possível con-
siderar um fuzil como peça etnográfica? O próprio Guia da Exposi-
ção Anthropologica explicitava a origem destes itens.U
Está claro que tais artefatos e restos humanos eram apresenta-
dos como troféus de guerra com a intenção de aguçar a curiosidade
do público e mostrar a atualidade de um embate que ocorria, embora
distante dos principais centros urbanos. Note-se a persistência da di-
ferença entre brasileiros, portugueses e índios. Ou seja, os índios,
sobretudo os que resistiam, não eram considerados brasileiros. Além
de nacional e antropológica, a mostra caracterizava-se como uma
Exposição de Conquista. Havia aí um implícito mas vibrante apelo
para que o público testemunhasse os últimos episódios de um confli-
to ainda em curso, cujo desenlace deveria anunciar a supremacia da
ciência, do progresso, da civilização e da nação moderna - à custa
destes visíveis (e escolhidos entre os mais recentes) objetos de uma
guerra de longa duração. Em outras palavras: eles (os Outros) são os
derrotados em exposição, Nós somos os triunfantes, expositores e
observadores. Eles são os bárbaros primitivos e Nós os civilizados
progressistas. Entretanto, o esforço teatral de modernização não elimi-
nava os traços arcaicos: tratava-se de expor no centro do Império os
artefatos, restos mortais e mesmo os corpos vivos dos povos conquista-
dos, dentro da melhor tradição imperial romana. Os conflitos assim
expostos e realçados não eram inventados pelos organizadores da mos-
tra, mas ainda ocorriam em diversos pontos do território brasileiro.
Mesmo fora das vitrines da Exposição, as situações de confron-
to envolvendo populações indígenas eram tema contemporâneo, in-
clusive nas províncias onde havia Botocudos.
No Espírito Santo, o aldeamento de Mutum fora invadido em
12 de novembro de 1881 "por uma maloca de índios bravios em
numero superior a cem, com intenções hostis".B
Em Minas Gerais, o presidente da província lamentava em
1882:
12
No Arquivo Permanente do Museu Nacional, sobretudo nas pastas 20 e 21,
há diversos documentos que também indicam como os artefatos da Exposição
Anthropologica eram troféus de uma guerra atual, cf. a monografia de Oliveira (1994),
pp. 15-6.
13
Re/atorio apresentado áAssembléa Legislativa da provincia do Espirita-Santo em
sua sessão ordinaria de 8 de março de 1881 pelo presidente da prov{ncia . . .
336 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
14
Falia que o exm. sr. dr. Theophilo Ottoni dirigia á Assembléa Provincial de M inas
Geraes. . . , 1882.
15
Falia com que no dia 3 de abril de 1881 abriu a 2.• sessão da 23." legislatura da
Assembléa Legislativa Provincial da Bahia. . .
16
Schaer, 1993.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 337
objetos etnográficos é porque não há este tipo de acordo nos conflitos
bélicos entre povos de civilizações diferentes - que são, em geral,
combates mais violentos, sem imposição de regras mútuas.
Estande 3.
Entre o público e o privado
17
B. Ribeiro & Velthem, 1998.
18
Schaer, 1993.
338 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
19
L. Schwarcz, 1995.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 339
blicos (como o próprio imperador e o então ministro da Fazenda)
que demonstravam sensibilidade para a questão. E vale assinalar que
se formara um considerável público urbano ávido desses conheci-
mentos nos anos 1880, sobretudo na cidade imperial.
A própria postura do monarca diante da montagem da Expo-
sição é significativa. Além de ser ao mesmo tempo o principal patro-
no e colecionador (o que estava explícito), ele manteria uma relação
estreita com o evento, gerando ambiguidades nesta indefinição de
fronteiras entre o público e o privado. Em determinado momento, os
organizadores do evento solicitam ao imperador peças para exibição
e apoio institucional. Em outra ocasião, ao contrário, os mesmos or-
ganizadores remetem ao soberano objetos que seriam de seu interes-
se, revelando mais do que intercâmbio, uma certa simbiose entre o
Gabinete de Curiosidades pessoal de D. Pedro II e o acervo que,
exibido em público, deveria servir para ilustrar a população. 20
A Exposição Anthropologica toca em todas essas questões e é
através dela que seus organizadores tentarão, deliberadamente, enca-
minhar soluções. Tal mostra aparece como tentativa de captar, para o
domínio público, coleções que estavam sob o poder pessoal do impe-
rador ou de colecionadores particulares, reforçando assim o Museu
como instituição pública. Elogiando os doadores e ressaltando-lhes
os nomes e importância, dando realce ao monarca, os organizadores
com habilidade buscavam tirar do domínio privado todas aquelas
preciosidades etnográficas, arqueológicas, enfim, anthropologicas. Era
uma iniciativa, portanto, modernizadora, mas que indicava a decalagem
do Brasil na formação de um patrimônio cultural e público em rela-
ção ao parâmetro europeu, mesmo sob a fachada de um "rei fllósofo"
que ainda fazia, no fundo, seguir um modelo renascentista de mecenato.
Além da estratégia de mobilização de elites ao mesmo tempo
políticas, econômicas e culturais para a formação de acervos públicos,
os organizadores da Exposição manifestavam a intenção de formar e
mobilizar um público específico, isto é, as novas gerações de cientis-
tas "para a grande victoria do trabalho intelligente e aperfeiçoando do
que ha tanto mister a industria nacional"Y
20
Veja-se por exemplo as correspondências do diretor do Museu Nacional,
Ladislau Neto, a D . Pedro II, cf. maço 189, doe. 8608, AHMIP.
21
Discurso inaugural da Exposição Anthropologica. ln: Mello Moraes Filho
(dir.). Revista da Exposição. .. , p. 77.
340 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Estande 4.
Escada evolucionista: a modernidade exibe o primitivo
22
L. Schwarcz, 1999.
23
N . Dias, 1991
342 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Stand 5.
Curiosidades fora dos gabinetes
26
Cf. a monografia de M . H . Cardoso de Oliveira, trabalho que usamos como
referência em diversos partes deste texto. Consultar também, do Museu Nacional,
Guia da Exposição. .. , 1882.
344 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Figura 54
Stand 6.
Vitrines: o lugar dos índios numa nação civilizada
Figura 55 Figura 56
29
Nesta perspectiva ver, entre outros, os trabalhos de Lacerda & Peixoto
(1876) e Rey (1880).
350 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
30
Museu Nacional. Guia da Exposição . . ., 1882, p. 5.
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira 351
Havia outras formas de presença indígena no espaço da Expo-
sição Anthropologica Brazileira: um dos guardas do local era Anho-
rô, índio Cayapó, com vinte anos, que podia ser visto ao vivo exercen-
do suas funções e num quadro a óleo com seu busto, pintado por
Décio Vilares e pendurado na Sala Anchieta. Outro guarda que ser-
via aí era Chamocôco, também Cayapó, vinte anos, aprendiz de ar-
tilheiro da Fortaleza de São João, no Rio de Janeiro, fotografado e
com quadro a óleo pintado por F. A. de Figueiredo. Eram dois ín-
dios presentes de modo virtual e corporal e que, mais uma vez, sina-
lizam a presença de numerosos índios destribalizados, mas ainda com
identidade étnica, exercendo diferentes ofícios nas cidades do Brasil
imperial.
Estes eram os lugares reservados aos índios nesta Exposição
chamada de brasileira: ao mesmo tempo objeto de curiosidade exóti-
ca, estética e científica, mão de obra e inimigos da civilização.
Stand 7.
Uma janela entre o passado e o futuro
31
Maço 187, Doe. 8508, POB, AHMIP.
352 CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
32
J. Clifford. Muséologie et contre-histoire.. . e J. R. Bessa Freire. A desco-
berta do museu pelos índios . ..
III
KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
1
Na parte de baixo de cada foto, nas próprias imagens, consta em letra
manuscrita da época a data (13 de julho de 1909), a localidade (Cachoeiro de Santa
Leopoldina) e o nome do fotógrafo, Walter Garbe. Cópias de segunda geração dessas
fotografias encontram-se na Divisão de Iconografia da FBN.
355
356 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
3
Essa identificação, assumida por alguns Krenak mais velhos, foi registrada no
livro de G. Soares (1992).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 361
da geração intermediária de seus pais? Já o cientista von Ihering,
financiador da viagem de Garbe, afirma que são Botocudos das pro-
ximidades do rio Pancas, o que é incompatível com a versão dos
índios, pois se tratavam de dois grupos distantes e rivais. 4 Mas legen-
da manuscrita nas fotos aponta para uma terceira opção, como já foi
indicado acima, com locais e datas diferentes das apresentadas por
Ihering. Curiosamente, ao relacionar os grupos de Botocudos então
existentes, este não cita nenhum em Cachoeiro de Santa Leopoldina,
onde teriam sido feitas as fotos de Garbe, localidade que fica a cente-
nas de quilômetros dos pontos onde o cientista registra a existência
de grupos de Botocudos. Ao mesmo tempo, Ihering situa a viagem
etnográfica dos Garbe entre março e maio de 1909, embora as fotos
apareçam datadas de julho do mesmo ano. A legenda manuscrita que
acompanha tais retratos é bem precisa (traz até o dia em que foram
feitas, 13 de julho de 1909) e não parece inventada aleatoriamente. O
grupo de Botocudos fotografado em 1909 aparentemente era, a crer
em registros como os de Ihering, distinto do grupo de Botocudo
descrito por Manizer, dos quais descendem os Krenak contemporâ-
neos. Embora, para estes, seja significativo atribuir rostos visíveis a
seus ancestrais, que assim emolduram os significantes de fotografias
tão marcantes. Os registros escritos e os orais são contraditórios a
esse respeito e parece-me equivocado, a priori, proclamar a suprema-
cia de um sobre outro - até mesmo porque as informações escritas
são conflitantes entre si. São aspectos ainda por elucidar e que permi-
tiriam a identificação precisa dos índios fotografados.
Como síntese dessa série de fotos, temos uma curiosa cena de ca-
çada (Figura 70). Três índios agachados são enfocados de frente, com
seus instrumentos, em atitude de tocaia, emoldurados pela floresta.
Cabe indagar- o que eles estariam caçando? Numa primeira resposta,
caso seguíssemos a intenção do fotógrafo e dos fotografados que aceita-
ram posar, poderíamos dizer que se tratava da imagem de um grupo
de Botocudos nas matas e flagrados em plena caçada a algum animal.
Mas poderíamos alegar que a presença mesma do fotógrafo no local
seria um empecilho a tal atividade, pois espantaria os bichos. Uma
segunda resposta, mais literal ou realista, indicaria que eles só pode-
riam estar caçando ... o próprio fotógrafo, que se encontrava postado
à frente deles. Mas tal certamente não ocorreu, pois Walter Garbe
4
H . v. Ihering. Os Botocudos do rio Doce . . ., 1911.
362 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 59
Figura 58
"OAON OAOd, OG ~3;)3~0A'IV ')!VN3~)! v9f
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 365
Figura 62
.. OAON OAOd, OQ "M3::J3:"MOA'1V ')!VN3:"M)! 99t
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 367
Figura 64
Figura 65
----
"OAON OAOd, OQ 1I3:J~HIOAT\f ')lVN31I)l 89f
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 369
Figura 68
Figura 69
370 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 70
5 ]. M. Gagliardi (1989)
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 371
valorizando a vasta experiência, os métodos pedagógicos e culturais
das Igrejas envolvidas com tais práticas. Essa linha teve entre seus
casos mais notórios o martírio do monsenhor Claro Monteiro em
1901, missionário que atuara junto de diversos grupos indígenas, en-
tre eles Botocudos. E, como terceira linha, caracterizava-se o discur-
so institucional científico baseado no evolucionismo e nas teorias ra-
ciais oitocentistas e que pretendia que o Estado brasileiro adotasse a
atitude de enquadrar de forma definitiva e violenta os índios, uma vez
que eles seriam comprovadamente infensos e incapazes de se incor-
porar à civilização ocidental. Expoente dessa tendência foi o diretor
do Museu Paulista, Herman von Ihering, último grande representan-
te da Antropologia Física oitocentista e da truculência racial que em
geral a acompanhava.
A primeira tendência, como se sabe, saiu vitoriosa do embate,
pelo menos no que se refere a apoio de grupos urbanos e na definição
oficial e de mobilização do aparelho governamental nesse sentido,
embora os grupos missionários tenham continuado a atuar junto dos
índios, e a violência explícita e crua não deixaria de se manifestar.
No âmbito da catequese religiosa, a campanha também foi in-
tensa, gerando vastas publicações, entre as quais, exemplar é o folheto
A catechese dos índios. Ineficácia e perigo das Missões leigas. Necessidade
da catechese religiosa.6 Nesta publicação, como em outras, desenvol-
via-se a argumentação favorável a tal ponto de vista. Um dos defenso-
res mais ativos dessa linha foi o padre Claro Monteiro do Amaral,
que nascera em São Paulo, 1860, no âmbito de uma tradicional famí-
lia aristocrática (era sobrinho do barão Homem de Melo). Desloca-
do para a recém-criada diocese do Espírito Santo e promovido a
monsenhor, este clérigo, dotado de considerável erudição e também
de veia de polemista, conviveu entre 1898 e 1900 com os Botocudos
em torno dos rios Doce e Pancas, passando vários meses seguidos nas
selvas em contatos e tentativas de encontros com esses índios, aos
quais pretendia catequizar. Desse convívio resultou um Vocabulário
Português-Botocudo, um dos mais completos e detalhados, só publicado
em 1948.7 O religioso conviveu com o grupo Nak-Sapmã, entre os
6
L. C . de Castro, impresso na Typographia da Pátria Brasileira, Rio de Janei-
ro, 1910.
7
C. Monteiro. Vocabulário Português-Botocudo. .. org. e informações biográficas
de M . L. P. Martins.
372 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
8
Este nome genérico, Gutkrak, que servia para nomear determinados subgrupos
de Botocudos aparentados entre si, aparece grafado na documentação da época de
diferentes maneiras: Guterecks, Guturacks, Butucrak, Buturak, etc. Optamos aqui
pela padronização ortográfica de Gutkrak.
9
Cf. von Ihering. A questão dos índios no Brazil . .. , 1911. Para uma crítica a
tais posições, ver D. Ribeiro (1996, pp. 149-51).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 373
de ferrovias para escoar produções (os corredores de exportação) e a
ampliação dos centros urbanos. Para resolver esse conflito com os ín-
dios ainda "bravos", não apenas na região Sudeste, os governantes
federais tomaram posição diante do debate que se formara: foi criado
em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios e de Localização de Traba-
lhadores Nacionais (SPILTN), fins do governo Nilo Peçanha.
O próprio nome desse novo órgão público já era significativo
de seus propósitos: a proteção aos índios (leia-se, sua incorporação à
sociedade nacional, sem usar recursos bélicos) e a localização dos
trabalhadores nacionais estavam juntas, deixando claro qual o objeti-
vo diante das terras e mesmo da possível mão de obra indígena. Tra-
tava-se de permitir a ocupação (seria anacrônico chamar de Con-
quista ... ?), por empresas e proprietários, de áreas tão valorizadas
economicamente no território nacional. A direção geral do Serviço
ficou a cargo do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon,
cujo desempenho no desbravamento de matas, implantação de telé-
grafos e habilidade de estabelecer relação com os grupos indígenas o
credenciavam para a tarefa. 10
Se com tal medida o governo republicano mantinha a tradição
de militarização no contato com os índios, por outro lado, a própria
postura de Rondon, a partir de uma leitura do positivismo e da imersão
na consciência crítica da época, inauguraria uma nova fase das rela-
ções entre os grupos indígenas e a sociedade nacional. E, mais uma
vez, os Botocudos (que passariam a perder este nome, que eles nunca
assumiram como deles) estariam na ponta dessas transformações, des-
tacando-se pelo vigor de suas atitudes e integrando, a contragosto,
mais este laboratório do progresso. Porque, como se sabe, a criação
do Serviço- em 1918 nomeado apenas de Proteção aos Índios (SPI)
- foi precedida de rumorosa polêmica sobre o tema tão antigo e
renovado: os caminhos e possibilidades de incorporar os índios à
civilização e à nação.
Dessa forma, o novo órgão governamental SPILTN e depois
SPI, tinha a incumbência de funcionar como intermediário entre as
populações indígenas e a sociedade nacional. Visava evitar violências
bélicas e massacres contra os índios, mas ao mesmo tempo buscava
meios mais eficazes e insistentes de incorporá-los à sociedade nacional,
10
Para diferentes interpretações sobre a criação do SPI em âmbito nacional
ver as obras de D. Ribeiro (1962 e 1996), A. C. S. Lima (1998) e Gagliardi (1989).
374 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
11
Brasil. Ministério da Agricultura, Indústria e Commercio. Relatorio apresen-
tado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1912, vol. I, pp. 131-37 e A. Estigarribia, 1934.
12
Sobre a relação do SPI e os Botocudos no Espírito Santo, tomamos como
referência o trabalho de M. E. Brêa Monteiro (2004) . Para o caso de Minas Gerais,
v. I. M. Mattos (1996). Para ambas as regiões, M . H . B. Paraíso (1998b).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 375
Em seguida Estigarribia procurou o "cidadão Governador"
Jerônimo Monteiro que, numa conversa franca, expôs a situação do
Espírito Santo: um estado pobre, de poucos recursos, que procurava
dar ênfase às atividades de exportação, sobretudo do café e madeira.
E que umas das últimas terras férteis da Mata Atlântica ainda conti-
nuavam em poder dos índios ao longo do rio Doce. Entretanto, o
"cidadão governador" mostrou-se solidário com o trabalho do SPI e
viu com bons olhos a perspectiva de preservar uma área - ainda que
não muito grande - para que os índios não fossem inteiramente
dizimados ou expulsos de suas terras. Estigarribia lamentou, pois con-
siderava os índios como "legítimos possuidores" de todo território,
mas considerou importante o apoio do governador e tratou de buscar
a negociação nestas bases para a preservação de uma parcela da área
indígena. A intenção dos representantes do SPI era conseguir con-
vencer o governo capixaba a negociar com o Syndicate norte-ameri-
cano uma fatia da terra para os índios.
Havia ainda outros elementos a pacificar. O engenheiro Antô-
nio dos Santos Neves, proprietário da Fazenda Neblina, na altura de
Pipnuc, estava em guerra com os índios há pelo menos doze anos.
Em 1898 e 1904 registraram-se conflitos graves onde morreram ín-
dios e parentes do fazendeiro. 13 Havia em diversos pontos de rio
Doce colônias de italianos - também queixosos de que os índios
constantemente invadiam suas roças e levavam parte das plantações.
Para todos, os representantes do governo federal pediam uma espécie
de trégua, dando como garantia de que seria possível obter a maior
parte das terras dos índios sem violências. Concluída então esta pri-
meira fase da pacificação - Estigarribia não a chamava assim - foi
dado o passo seguinte: fazer um levantamento in loco da situação dos
grupos indígenas.
Nesse momento Estigarribia sentiu-se como que imbuído da
importância da missão que tinha pela frente e começou por escrever
um breve histórico do contato entre estes grupos e a sociedade luso-
-brasileira. Considerou-os acertadamente como descendentes dos
Aimorés - e esta consideração não seria gratuita, pois Rondon e
seus seguidores, nos anos seguintes, passariam a referir-se a esses
índios sob esta denominação, na tentativa (bem-sucedida) de lhes
13
Re/at6rio apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espfrito
Santo, IR4, 1910, flime 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 104.
376 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
14
Relatório apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espírito
Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 20.
15
Ibidem.
16
Ibidem, p. 22.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 377
O mapeamento inicial da situação dos Botocudos (narrado em
relatório ao "Cidadão Tenente Coronel" Rondon) em 1910 mostra
um quadro diversificado. Havia grupos sedentários, muitos nômades,
outros em contato intermitente ainda pelas florestas e alguns que re-
cusavam qualquer contato e não falavam o português. O trabalho dos
agentes da lnspetoria Regional4 (IR4) do SPI seria dirigido sobre-
tudo a estes dois últimos.
Nas margens do rio Doce, arredores de Colatina, havia dois
aldeamentos. Um, em fase inicial, mantido pelo padre Gruber, do
Verbo Divino, contava apenas com dois irmãos do grupo Minhageruns.
Légua e meia adiante estava o outro aldeamento, de Lage, onde en-
contraram cerca de dezesseis índios (haveria mais uns quinze ou vin-
te, ausentes), dos quais cinco minhageruns e o restante nacknenucks.
Os homens vestiam apenas uma pequena tanga e as mulheres às vezes
tinham peças de roupa, como blusas ou vestidos. Segundo o observa-
dor, moravam aí dois chefes, os "capitães" Nazaré e Lucas, mas quem
chefiava na prática a aldeia era a índia Benedita, que tinha grande
influência sobre os demais e cuidava das roças de milho e da criação
de galinhas. Era a predominância feminina no interior do grupo.
Diante desses índios, como dos demais que encontraria, o ins-
petor usaria com insistência a palavra simpatia e seus derivados (sim-
páticos, simpáticas, etc.). São termos que ressaltam de seu relatório. Ou
seja, também ele deparou-se com a cordialidade dos índios. Ao expor
para o primeiro grupo acima descrito sua missão de pacificação, a
reação deles foi imediata: "Ficaram muito satisfeitos com a boa nova
e os brindes que lhes eu levava e, em regozijo, dançaram e canta-
ram" Y Além de guerreiros - ou por isso mesmo - os Aimorés ou
Botocudos sempre foram grandes estrategistas. Mesmo havendo sig-
nificativas discordâncias internas entre os grupos nesse sentido, não
se pode negar a eles um senso de ação política bem nítido, que resul-
tou na potencialidade das resistências e na sobrevivência como grupo
étnico, mesmo diante de avalanches de violências. A resposta que
deram a Estigarribia foi significativa: de um lado aceitavam a proposta
de convivência pacífica com a sociedade brasileira como estratégia de
sobrevivência e, de outro, dançaram e cantaram para comemorar, mos-
trando que, ao celebrar dessa maneira, mantinham identidade cultu-
ral. Ou seja, aceitavam transformar (mas não eliminar) sua identidade
17
Ibidem, p. 95.
378 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
19
Ibidem, p. 97.
380 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
21
Carta do Sr. Antonio E stigarribia ao Sr. Miranda, Datada de 1991. Mês: abril,
Museu do Índio, RJ.
22
Esta associação entre o nome do chefe Krenak e a nova denominação gené-
rica do grupo, por parte dos atuais índios, aparece indicada, embora sem citar fontes,
no trabalho de G. Soares (1992) .
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 383
gem. Um índio, ao nascer, caiu e bateu com a cabeça no chão, daí sua
mãe exclamou: kren-nak! (kren, cabeça; nak, chão).
É por isso que fala K.renak. Eles falam que uma vez uma índia
que tava quase ganhando menino, aí ela ganhou o menino e o
menino caiu com a cabeça na terra. Ai ela não sabia conversar
direito, ela falava assim K.ren Nakl K.ren Nak! Porque o menino
bateu com a cabeça na terra. Aí botaram o nome de K.renak,
porque o menino bateu com a cabeça na terra e ela falava
K.renak. 23
23
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 10-9-
1998. A cartilha elaborada pelos jovens professores Krenak em 1997 traz também
essa narrativa (do menino batendo com a cabeça no chão) mais detalhada em Borum
e em português.
24
Cf. referência em <http://greciantiga.org/mitlmit09-7.asp>. Agradeço a
Maria Regina Ramos de Assis por ter me alertado dessa semelhança entre os dois
mitos de origem, o grego e o indígena.
25 "O que é que deu, o que é que não deu", assim resumiria a história do seu
povo outra índia Krenak, Maria Sônia (Tcharn) em depoimento ao autor em 11-9-
1998 .
384 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
27
I. M. de Mattos (2004, pp. 395-7).
386 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 71
29
Cf. M. H. Paraíso (1998a).
30
Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste serviço do Espfrito Santo
durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 26.
31
Discurso de Rondon citado em A. B. de Magalhães, Índios do Brasil. ..
(1947, p. 60).
388 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
33
Boletim do SPI, 1923, f. 5, Museu do Índio, RJ.
34
V. o depoimento de Djanira (lndjambré) no Capítulo 12.
35 S. F. Abreu. Os índios Crenaques (Botocudos do rio Doce) em 1926 ... ,
p. 13.
36
I. M . de Mattos (1996).
390 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
37
I. M . de Mattos (1996).
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 391
recursos, persistem entre os Krenak atuais, como pude constatar pelo
considerável acervo de fotos e recortes de publicações guardado pelo
chefe Him, como se verá no Capítulo 12.
Nesse sentido, o destaque da visita de Rondon ao território in-
dígena em 1926 parece ter sido reapropriado e entendido pelos índios
não como gesto unilateral de um grande personagem, como fazem os
relatos oficiais do SPI, mas como um momento de quebra do cotidia-
no do trabalho na roça e, ao mesmo tempo, articulava-se tal persona-
gem de reconhecida projeção nacional à trajetória de vida dos Krenak.
Era alguém que tinha visitado o kijame (maloca ou residência), isto
é, o espaço próprio dos índios. Outras personalidades que visitaram a
tribo no mesmo período não parecem ter sido destacadas nos regis-
tros de Juquinhot. Este sinalizava, assim, as proximidades e alianças
possíveis desse dirigente do SPI cuja ação foi decisiva nos destinos e
caminhos dos Krenak. Um dos atuais índios Krenak, descendente do
grupo de Muim e Juquinhot, filho de Laurita, chama-se Rondon em
seu nome brasileiro - o que evidencia a formação entre estes índios
de um determinado conjunto de narrativas históricas referenciadas no
contato com a sociedade nacional. E, mais particularmente, aponta a
importância por eles atribuída em sua memória coletiva à presença
do fundador do SPI, assim homenageado e de algum modo incorpo-
rado ao conjunto de tradições dessa etnia. "Os tempos do SPI" são
vistos como uma das mais antigas referências históricas pelos atuais
Krenak, que atribuem assim àquele contexto um caráter fundador das
mudanças mais drásticas e perceptíveis em suas vidas. 38
O mesmo chefe Juquinhot foi, segundo relato de Krenaks atuais,
quem batizou o totem que servia como agrupamento para reza, canto
e dança e que foi levado da aldeia (cf. Capítulo 12).39 O nome dessa
madeira de pau, ou Deus dos Índios, Deus dos Botocudos, como a ele se
referem hoje os índios, era também]uquinhot. Vemos assim que este
chefe Juquinhot aparece como elaborador privilegiado de símbolos e
um dos artesãos das tradições do grupo. Além de escrever numa gra-
fia "inventada" e destacar como personagem a figura de Rondon,
Juquinhot erguia outras figuras, como essa madeira sagrada, cuja
perda ainda hoje é sentida pelos índios, servindo-lhes de referência
Santo, IR4, 1910, fume 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 108.
41
Relatório apresentado pelo Sr. Genésio Pimentel Barbosa, encarregado do assenta-
mento de máquinas do Posto de Pancas, ao Sr. Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios no
Estado do Espírito Santo, dezembro de 1916, Museu do Índio, RJ.
42
Relatório apresentado pelo Inspector Estiga>;ribia em exercício no Estado do Espírito
Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 13.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 393
que em 1926 saíram em bando do Posto do rio Eme porque, segundo
o inspetor Samuel Henrique da Silveira Lobo, ainda "guardam o
instincto nômade peculiar aos habitantes do interior" e alegaram que
iam visitar parentes em Itueto, e que só regressariam quando as casas
prometidas a eles estivessem construídas. 43 Havia, como é sabido, an-
tigas divergências tribais entre estes Nakrehés (que haviam sido deslo-
cados para a área do rio Eme) e os Krenak, que aí se encontravam
anteriormente, ambos pertencentes ao mesmo grupo etnolinguístico.
Os primeiros tempos do SPI, que acarretaram um contato inten-
so e permanente desses índios com a sociedade nacional, trouxeram
novos surtos de doenças, em alguns casos epidêmicas. Assim verifica-
ram-se entre 1920 e 1926 epidemias de varíola, sarampo, malária,
bouba, gripe, e constantes manifestações de diarreias e outras infecções.
Muitos índios morreram, outros ficaram incapacitados para o trabalho
produtivo que se esperava deles, alguns preferiam fugir isoladamente
para o mato ou para as cidades. Tais doenças causaram considerável
baixa demográfica entre os índios sob o governo do SPI. No raiar do
século XX as doenças dizimavam mais do que os massacres armados.
Ao mesmo tempo, o órgão indigenista passa a permitir e até
incentivar a presença de colonos brasileiros e estrangeiros no interior
das terras indígenas, mesmo no Posto do rio Eme, cuja área havia
sido cedida oficialmente pelo governo de Minas para os índios, como
já foi visto. Estes novos moradores, embora reconhecidos oficial-
mente como invasores, eram devidamente acolhidos e tinham direito
a se estabelecerem e até de plantarem no interior do território indíge-
na, recebendo faixas de terras próprias para isso. O argumento dos
encarregados do SPI: "assim se vão colonizando, gratuitamente para
os cofres públicos, aquelas paragens". 44 Instalaram-se então, além
dos agricultores brasileiros, três famílias alemãs e austríacas em 1921.
O resultado de tal política foi que, oito anos depois, em fins da Primeira
República, os índios estavam em minoria na área do rio Eme, ainda
chamada de Posto Cuido Marliere. Havia cento e noventa brasileiros,
dezessete estrangeiros e quarenta e sete índios. 45 A tendência parecia
43
Relat6rio dos servifOS eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ.
44
Relat6rio dos trabalhos efttuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo
durante o ano pr6ximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 31.
45
ExposifáO da atuafáo dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929
findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ.
394 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 72
48
Cf. Lata 33, n. 33, I e II, Arquivo IHGB.
396 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 73
49
Cf. Lata 33, n. 0 33, I e II, Arquivo IHGB .
50
Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo
durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 1.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 399
tava nas proximidades de Colatina na fronteira de Minas com Espí-
rito Santo, até o Posto Pancas (ES), para tentar convencê-lo a se
transferir para lá. A viagem foi toda feita debaixo de chuvas torren-
ciais. Mesmo tendo concordado com a ida até lá acompanhando a
equipe do SPI, entretanto, o chefe índio não aceitou ficar definitiva-
mente, alegando cansaço e distância. Os mais jovens que foram com
ele, todavia, "gostaram muito e querem ir", segundo o mesmo relato
oficial. A fotografia, portanto, foi tirada neste momento de negocia-
ção, tornando o ícone um dos elementos desse "diálogo". Os índios
em questão ganhavam visibilidade nos registros escritos e iconográ-
ficos uma vez que eram considerados como possíveis aliados do ór-
gão governamental.
O "capitão" Nazaré parece ter tido, inicialmente, esta habilidade
de sobrevivência e foi outro dentre os Botocudos que dialogou na-
quele momento com a proposta de "pacificação". Ao ser contatado
nos idos de 1911 pelo SPILTN, os homens de seu grupo usavam
apenas uma pequena tanga, como já foi citado acima. Mas a imagem
que temos dele é sem sinal de uso de botoque e enfatiotado numa
roupa padronizada: sem olhar agressivo, encarava diretamente a câ-
mara, num misto de firmeza e tranquilidade. Estava em pé e recosta-
do num móvel de madeira trabalhada, segurando um pano que, ale-
goricamente, pode ser compreendido como um lenço da paz, bandeira
branca. Os quatro estão vestidos e calçados, o que indica a importância
a eles atribuída naquele momento ou o esforço para agradá-los e
trazê-los ao Posto, embora o rapaz sentado à direita da imagem apre-
sente um certo ar de desconforto- quem sabe pelos sapatos apertados?
O mesmo relatório do órgão indigenista refere-se a Nazaré de
forma elogiosa como "um índio ativo e bom diretor de sua gente" e
que possuía, na ocasião, "boas roças e algum gado". Entretanto, como
a se precaver de possíveis reclamações, vinha narrado logo a seguir
que certo dia, no povoado de Resplendor, Nazaré "embriagou-se, pra-
ticando muitos desatinos". Sugeria-se, portanto, que ele não estava
plenamente enquadrado - o que contrariava os mesmos registros
escritos e iconográficos que pretendiam atribuir-lhe a imagem de um
"bom índio". Tal desconfiança de ambiguidade coincide com o teste-
munho do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida que, em viagem
pelo rio Doce, referiu-se aos "bugres do capitão Nazaré" que, segun-
do ouviu de alguns moradores da região, eram "mansos sim, quando
lhes dão roupas e eles vestem-nas, mas quando entram, de novo, na
400 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 74
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 401
Havia, pois, esta mistura de visibilidade e ocultação das identi-
dades indígenas, seja através de estratégias de resistência e sobrevi-
vência, quanto de tentativas de subordinação e eliminação dos pa-
drões culturais, gerando situações híbridas e mutações étnicas, entre
perdas e ganhos. Curioso paradoxo: ao mesmo tempo que os Krenak
eram induzidos a se confundirem com a população nacional, ainda se
mantinha em torno deles uma parcela da curiosidade e da fama dos
"temíveis Botocudos". As visitas de personalidades e pesquisadores
nacionais e estrangeiros eram frequentes.
Nas três primeiras décadas do século XX, mantendo acesos os
holofotes em torno de tais índios, estiveram presentes nos Postos In-
dígenas dos Krenak diversas personalidades do mundo da política e
da cultura. Visitaram-nos, acolhidos formalmente pelo SPI: Henri
Borel e Charles Montzé (da Embaixada da Bélgica) em 1921, que
exaltaram por escrito a "missão civilizadora" feita com os índios; Eli-
zabeth (Bessie) Steen, conhecida antropóloga norte-americana espe-
cialista em artes indígenas, considerada a primeira pesquisadora "bran-
ca" a viajar pela floresta amazônica e diretora da Universidade de
Artes e Ofícios da Califórnia, bem como o governador do Espírito
Santo, Florentino Ávidos, possivelmente ávido (o trocadilho é
irresistível) para tratar de assuntos pragmáticos, além do general
Rondon, todos em 1926.52 Em 1929, foi a vez de representantes da
Embaixada e do Consulado da França encontrarem os mesmos ín-
dios, acompanhados do professor Maurice Caullery, importante bió-
logo e zoólogo, autor de vários livros e membro de diversas institui-
ções científicas internacionais, entre as quais o Institut de France. 53
Além desta espécie de "turismo étnico", outros pesquisadores
estiveram entre os Krenak no mesmo período, produzindo e publicando
trabalhos, como os casos já citados do russo Henri Manizer (1915) e
Sylvio Fróis de Abreu (1926), além de Antônio Carlos Simoens da
Silva (1924) e Curt Nimuendajú (1939).
O moderno pensamento etnológico e antropológico produziu,
assim, suas primeiras reflexões sobre os Krenak por intermédio de
Manizer, de Nimuendajú e de Alfred Métraux (1930) que, mesmo sem
51
Citado em I. M . Mattos (2004, p. 192).
52
Relatório dos serviços eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ.
53
Exposição da atuação dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929
findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ.
402 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
54
A. Métraux & H. Ploetz. La civilisation matérielle et la vie sociale et
religieuse des indiens Zê du Brésil méridional et oriental . . ., 1930.
55
C . Nimuendaju. Social organization and beliefs ofthe Botocudo ofEastern
Brazil . .. , 1946.
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 403
onde indicava, aliás, os diversos subgrupos de Botocudos que conhe-
ceu ou soube da existência, ressaltando os nomes específicos de cada
um deles e não a denominação genérica. 56 Foi Nimuendajú quem
parece ter se apropriado do único totem existente entre os l<Ienak,
sem o conhecimento ou consentimento destes, que ainda hoje lamentam
a perda. O objeto encontra-se no Museu Paraense Emílio Goeldi. 57
Deslocando-se da produção acadêmica para a cultura de massas,
a imagem dos Botocudos se espraiava pela propaganda e pelos mer-
cados fonográfico e editorial. Até mesmo a publicidade comercial de
meados do século XX ensaiaria uma certa apropriação da imagem
desses índios como "produtos típicos" e "antigos" do Brasil. Veja-se o
caso das famosas estampas Eucalol (Figura 75), que traziam sucintas
informações históricas e geográficas sobre tal grupo, associados aos
infcios do Brasil. A legenda da estampa tinha o seguinte teor:
Vivem nas florestas entre Rio Prado e Rio Doce. Andam intei-
ramente nus e pintam o corpo. Antigamente eram antropófa-
gos. São polígamos. Acreditam que quando morrem se trans-
formam em jaguar. Fabricam arcos, massas de madeira e
machados de pedra.
Figura 75
56
C . Nimuendaju. Mapa etno-histórico . ..
57
Cf. I. M. Mattos, 2004, cit., p. 138.
404 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Meu bisavô
que era um índio Botocudo
devorou a tribo inteira
com pajé, cacique e tudo!
E a minha avó
que comia à portuguesa
deglutiu meus dois avós
e ainda quis a sobremesa!
58
O. de Andrade e outros. R evista de Antropofogia. ..
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS 405
Lobato teve destaque) como antagónico ao progresso, à maneira do
século XIX, e servia para rotular, num humor com dose autodepreciatíva
(ou autofágica também) o Brasil visto pela ótica do atraso, associado
ao apelido de tais índios.
A partir daí, entretanto, embora permaneça como referência
cultural pejorativa, o nome Botocudo se descola do grupo indígena
existente. E se inicia outro perfu de produção intelectual, acadêmica
e da elaboração de imagens em torno dos Krenak. Mediante releitura
do passado, ou coleta dos fragmentos do presente, realiza-se a ruptu-
ra com os paradigmas do século XIX. Mas havia um descompasso.
Tais estudos poriam em evidência e até valorizariam os padrões cul-
turais indígenas e, saindo da órbita do evolucionismo racial, não se
vinculariam mais à perspectiva de colonização e integração nacional
homogeneizadora. Mas à medida que estas novas referências eram
compostas, as condições de vida desse povo, ao contrário, se torna-
vam mais sofridas e sufocantes.
Capítulo 11
NA ARCA DE NOÉ,
A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO
1
D . Ribeiro. Os índios e a civilização. .. , pp. 275-6.
406
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 407
dentes e incluiriam o período em que os Krenak ficaram sem territó-
rio próprio.
Entre final dos anos 1950 até meados dos anos 1990 desenro-
lou-se, portanto, um período decisivo na vida dos Krenak, no qual
chegaram a perder não só as terras, mas também o reconhecimento
legal de sua existência como grupo específico. Foi um tempo de diáspora
e de exílios no qual ficou evidente que, mesmo sem área própria, man-
tiveram e até reforçaram seus laços de identidade cultural que, atacada
e modificada, permanecia e se recriava, por meio da língua, das relações
de parentesco, da memória coletiva e do apego a determinado território
(em torno dos rios Eme e Doce) que serviu como ponto de agluti-
nação.2 E, por meio de um habilidoso e corajoso movimento de resis-
tência, persistiram, ganharam aliados, enfrentaram inimigos e efeti-
varam a Reconquista de parte de seu território e do reconhecimento,
pela sociedade nacional, de suas condições étnicas diferenciadas.
Esse processo foi conduzido, basicamente, por duas gerações
de Krenak: uma, de mais velhos, nascida em torno dos anos 1910-20
(equivalente aos filhos e netos dos chefes indígenas que haviam efe-
tivado os primeiros contatos com o SPI) e que faleceu sem obter a
"terra prometida"; outra, mais nova, nascida nos anos 1940-50, cres-
ceu em conjuntura difícil, mas levou adiante e conseguiu efetivar a
nova etapa da luta deflagrada pelos pais, garantindo a posse das terras
e alavancando o reforço cultural e político. Essas duas gerações for-
maram uma espécie de arca de Noé, quando atravessaram um quase
impossível e avassalador dilúvio, reduzidas, em alguns momentos, a
cerca de vinte pessoas agrupadas, incluindo jovens e crianças peque-
nas. Muitas vezes esfarrapados, desmaiando de fome e acossados por
doenças, compuseram episódios com traços épicos, incluindo longas
marchas, isolamentos prolongados e repressões policiais militares.
O ressurgimento do grupo indígena correspondeu, por sua vez,
a um novo e expressivo conjunto de produções intelectuais e elabora-
ções de imagens, geradas direta ou indiretamente pela luta dos Krenak,
apresentando diferentes níveis de vínculo e solidariedade com tal mo-
vimento. Tal processo dos anos 1950-1990 ganhou, ao fim, conside-
rável visibilidade, com a coleta de depoimentos de protagonistas e
3
Cf. Dossiê de 1940 sobre direito de exploração de jazida de mica... Arquivo
do Museu do Índio (RJ).
4
Sobre o fun do Posto Pancas, v. M. E . Brêa Monteiro (2004) e A. B. Maga-
lhães (1947).
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÉNCIA POR UM FIO 409
do Estado Novo. O próprio nome que os Postos do SPI passaram a
adotar e que nomeou o ftlme realizado na localidade é sugestivo:
Cuido Marliere- Um Posto Indígena de Nacionalização. Mantinha-se,
na verdade, a mesma linha oficial de incorporação e homogeneização
das culturas indígenas à sociedade nacional. E o clima nacionalista
que se reforçava na época, também entre o pensamento de esquerda,
contribuía para fortalecer essa concepção de incorporação das popu-
lações indígenas. A especificidade dos padrões culturais indígenas
dos Krenak em nenhum momento era enfocada pelas lentes do fotó-
grafo e cineasta, nem como etnografia, nem como exotismo.
É interessante anotar que Forthmann era um experiente e com-
petente cinegrafista e fotóW'afo da equipe permanente do Conselho
Nacional de Proteção ao Indio (CNPI, órgão dirigido por Rondon
ao qual estava subordinado o SPI) e, como tal, já viajara por todo o
Brasil capturando imagens das mais diversas tribos. Estivera, por exem-
plo, três anos antes dessas imagens dos Krenak, nas florestas do Xingu
à frente da expedição financiada pelos Diários Associados e coorde-
nada pelo jornalista Edmar Morel atrás da elucidação do sumiço do
coronel Percy Fawcett, ocasião em que filmou e fotografou quase
todas as tribos da região onde ainda não havia reserva indígena, dan-
do ênfase, nesse caso, aos aspectos e costumes dos índios enquadrados
como "selvagens". Ou seja, Forthmann sabia tirar fotos de qualidade e
valorizar a presença indígena, desde que isso fizesse parte das diretri-
zes institucionais para que trabalhava.
O prédio da escola construída pelo SPI aparece com destaque
em várias imagens (Figura 76). Chamada da "Escola Indígena Vatu",
era portadora desta duplicidade: considerada indígena por se destinar
a essas populações e batizada com o nome, na língua Krenak, do rio
Doce (Vatu, Uatu ou Watu), ensinava somente em português, como
então se fazia em todas as instituições semelhantes, com professores
brasileiros, não índios. Na porta da escola há um homem de jaleco
(provavelmente o professor) e um índio, cujos rostos não se distin-
guem, pois a intenção do enquadre, pela distância, era abarcar a fa-
chada do prédio, não as pessoas, que aparecem como figuras acessó-
rias do edifício institucional.
5
Informações sobre tal acervo e reproduções dessas fotos encontram-se na
Base de Dados do Museu do Índio (RJ), acessível também por internet: <www.
museudoindio.org.br>.
410 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 76
6
Depoimento de Laurita Félix Krenak (Takrukinic) ao autor, 13-9-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 411
Havia, pois, outras instâncias pedagógicas, baseadas nos laços
de família e que asseguravam, de algum modo, a transmissão das
tradições, da língua e das identidades étnicas, que assim conviviam, se
adaptavam e persistiam no interior da estrutura montada pelo Estado
nacional no território indígena. E esta transmissão cultural indígena
não era apenas paralela, mas até resistia ou se contrapunha à institui-
ção escolar nacional, como indica a mesma Laurita:
Figura 77
7
Depoimento ao autor em 11-9-1998.
8
Depoimento de Laurita Félix K.renak (Takrukinic) ao autor, 13-9-2000.
412 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 78
Figura 79
Figura 81
414 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 82
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 415
As fotos pretendiam, como está anotado em algumas legendas,
registrar o "cotidiano" do Posto Indígena Guido Marliere, bem como
a visita do diretor do órgão indigenista. Nesse sentido, reproduzem-
-se nesta série: gado pastando, paisagens, casas, trabalho produtivo,
paisagens, gado pastando, casas ... além da presença "protetora" do
Estado nacional brasileiro. Estão ausentes dos ícones as figuras hu-
manizadas e caracterizadas do conjunto dos índios Krenak, com seus
nomes, rostos e complexas condições de vida. Era como se, cento e
dois anos depois de serem fotografados pela primeira vez, os índios
deste grupo étnico, em virtude das transformações que sofreram, ti-
vessem perdido o atrativo.
As fotos omitem também deste "cotidiano" os não índios que
àquela altura, como já foi visto, eram maioria na localidade, a exercer
e se beneficiar das atividades produtivas. Era, pois, uma imagem bem
talhada a determinados ângulos pela fotografia. Tudo parecia ir às
mil maravilhas no caminho do progresso e da nacionalização, sob a
égide do Estado brasileiro. Desse modo, ainda que de maneira este-
ticamente agradável, tais fotos institucionais contribuíam para o lento
e paulatino trabalho de invisibilidade de tais índios, ao mesmo tempo
que acobertavam os que cobiçavam suas terras- situação que resul-
taria, nos anos seguintes, em momentos dramáticos, visando a extinção
dos Krenak.
Combinando os depoimentos dos Krenak atuais com a documen-
tação (textos e fotos) dos anos 1930-50, percebe-se que havia neste
"cotidiano" um certo equihôrio. Ouvindo as vozes dos índios sobre
seu passado recente, levando em conta suas estratégias e criatividades,
fica difícil, pois, manter apenas uma crítica de tipo negativista quanto
à atuação oficial e às tentativas de nacionalização homogênea, que
não tinham efeito absoluto e avassalador. Aparentemente esquecidos
e tidos como bem-comportados nesse período, esses índios, numa
condição subalterna, obtinham, entretanto, uma certa tranquilidade.
Já não eram mais foco espetacular do modismo intelectual e científi-
co que antes os buscava, com avidez, para transformá-los em objetos
de pesquisa. Estavam ali quietos no estreito canto deles. Na situação
estabelecida (ainda que colocasse os índios em desvantagem) havia
certo espaço ou brechas, mesmo que não visíveis ou institucionais,
onde os índios podiam de algum modo preservar, transmitir e recriar
suas identidades. Vivendo de forma aguda esta condição híbrida sob
a tutela direta do Estado nacional, minoritários em sua própria terra,
416 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
9
Depoimentos de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him), ao autor em 10-9-
1998 e 5-2-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 417
correu.[ ... ] Aí correu todo mundo, ficou todo mundo assom-
brado com aquele negócio de bomba. [... ] Ficou todo mundo
assombrado com aquilo, com medo de matar eles também. 10
(1996), p. 97. Depoimentos dos índios sobre este episódio estão em G. Soares (1992,
pp. 131-5).
11
Cf. L. Seki (1992), p. 5.
418 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
A polícia chama e diz que se nós não saísse, matava. Meu pai
falou assim: - E se matar? Eu não vou sair não. 13
12
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego, (Him), ao autor cm
10-9- 1998.
13
Depoimento de Julia Krenak em 1989, apud C . Soares, cit., p. 131.
14
Depoimento de José da Silva Damasceno, Zezão (Kuparak), ao autor em 11-
9-1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 419
Note-se a expressão sobre a terra que saiu de lá, indicando que
"terra" tem um sentido não estritamente geográfico, mas vinculado à
própria presença dos seus habitantes. Joaquim Grande continuou a
cultivar roças e se alimentar de frutos e caças no mato, cercado de
bichos domésticos e sem aparecer aos não índios: tecia, assim, sua
invisível mas eficaz arca da sobrevivência, que serviria como estímu-
lo aos demais. A terra continuava nele e, por intermédio dele, seu
povo não perdia o vínculo com ela.
A situação dos que saíram foi das mais penosas, por vários
motivos. Os índios afirmam que foram abandonados na nova locali-
dade sem nenhuma assistência. Era uma região fria, muitos ficaram
doentes e vários morreram. A época do plantio passara e eles não
tinham como cultivar. Além disso, sofriam forte hostilidade dos índios
Maxacalis, tradicionais inimigos desde tempos antigos.
Ao perceberem o engodo em que haviam caído, os Krenak bus-
caram soluções várias. Alguns se dispersaram e foram para Postos
Indígenas em Mato Grosso (Cachoeirinha), São Paulo (Vanuíre) e
para a ilha do Bananal. Outros, porém, depois de dois anos, reuni-
ram-se e decidiram voltar para o território dos rios Eme e Doce. A
volta de parte do grupo durou noventa e cinco dias a pé, passando por
cidades, estradas, fazendas, florestas e plantações, atravessando e
margeando riosY Liderados porTeóftlo, um Nackrehé e pai de Him
(Nego), decidiram enfrentar os cerca de trezentos quilômetros de
Maxacali até Governador Valadares: paravam pelo caminho, pescavam
nos rios, trocavam alguns peixes por comida, passavam alguns dias
apenas com mandioca cozida e água. Durante o trajeto muitas doenças,
fome, desmaios, corpos cansados, medo de não chegarem ao termo.
Sônia Krenak, filha de Teófilo, recorda alguns momentos da marcha:
Meu pai tava com a perna dessa grossura de tanto que tava
inchado. Tinha mãe. Ia todo mundo. Só quem não tava doente
era eu. Aí ia pela estrada afora. Andando ... andando ... [... ]
Onde que nós parava nós dormia na beira da estrada. [... ] Caí
em cima de uma panela de angu, Me apanharam, eu nem vi.
Desmaiei. 16
15
Depoimentos dos índios sobre este episódio estão em G. Soares, pp. 131-5.
16
Depoimento de Sônia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 133.
420 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
O lugar d' ocêis já acabou! Ocês não tem mais lugar lá. Lugar tá
por conta dos fazendeiros! Ocês num tem mais lugar!l 8
17
Depoimento de Júlia Krenak em 1989 em G . Soares, p. 134.
18
Depoimento de Luzia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 135.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 421
reconheceu. Mas somente quando ele começou a falar "na língua"
(Borum) ela então identificou-o como parente. Abraçaram-se emo-
cionados.19
Depois disso a família de Laurita volta para o Posto Vanuíre e,
em seguida, vai para Posto Aratibá, de Guaranis. O irmão de Laurita,
Gabriel (quando garoto fotografado comendo um salgadinho, cf. Fi-
gura 80), arranja emprego para juntar dinheiro e voltar ao território
tradicional, mas morre num acidente de trabalho, o que deixa seu pai
Félix transtornado, em estado de choque, falecendo logo a seguir.
Depois de ter encabeçado as marchas anteriores, o sofrimento levara
suas forças ao fim. Dessa vez foi Laurita quem assumiu a liderança e
animou o retorno para as terras tradicionais. Foi mais uma marcha
penosa, parte a pé, parte de trem. Ao chegarem finalmente nas margens
do rio Doce (Watu) o barqueiro da Guarda Florestal queria cobrar
para transportar o grupo. Laurita reagiu com altivez e indignação:
Tudo que tem aqui é nosso! Essa barca é nossa! O cabo de aço
é nosso! Nunca paguei! Não pago! Não vou pagarJ2°
pp. 136- 7.
20
lbidem.
21 Sobre esse presídio indígena existem alguns trabalhos restritos ao âmbito
Mattos 1996); e também no livro de G. Soares (1992) que inclui relatos orais dos ín-
dios, embora nem sempre bem organizados. A documentação oficial da instituição en-
contra-se no Arquivo Museu do Índio (RJ), bem como alguns recortes de jornais da
época.
22 Um esforço para desvendar a história da Grin foi feito pelo então deputado
guarda era manter "a paz e a tranquilidade" nas áreas indígenas, im-
pedir que os índios saíssem de seus territórios demarcados, evitar o
porte de armas de fogo por estes e, ainda, paradoxalmente, preparar
os índios (da guarda) para defenderem suas próprias terras.
Em fevereiro de 1970 a solenidade de formatura da primeira
turma da Grin em Belo Horizonte contou com a presença do minis-
tro do Interior, Costa Cavalcanti, do governador Israel Pinheiro, do
prefeito Luís de Sousa Lima, do presidente da Funai, José Olteirós
Campos, além de comandantes militares e autoridades civis. 25 Os
novos guardas ouviram perftlados o Hino Nacional, desfilaram dian-
te da bandeira do Brasil e em seguida fizeram demonstrações das
técnicas aprendidas: busca e condução de presos, defesa contra ataque
sem armas, defesa contra ataque à mão armada e efetuar prisões a pé
e a cavalo. O presidente da República, general Emílio Garrastazu
Médici, demonstrou entusiasmo com a realização e autorizou libera-
ção de verba para o ministério do Interior formar mais duas turmas
de guardas indígenas. Alguns meses depois assumiu a direção da Funai
o general Oscar Jerônimo Bandeira de Melo, outro ferrenho defen-
sor da iniciativa.
Os membros da Grin portavam um uniforme próprio: botas,
calça verde, camisa amarelo-queimado, insígnia da guarda, quepe,
cinturão e cassetete. Eram inicialmente oitenta e cinco índios das
etnias Karajá (oriundos das aldeias de Santa Isabel, Fontoura e Ca-
noanan), Krahô (aldeias Pedra Branca, Cachoeira, Pedra Furada e
Santa Cruz), Xerente (aldeias Tocantínia e Rio do Sono), Gavião
(aldeia Mãe Maria) e Maxacali (aldeias Fradinho e Água Boa) .26
Atuaram não só no presídio da área Krenak, mas reprimiram diversos
grupos indígenas que entravam em conflito em Minas Gerais, To-
cantins, ilha do Bananal e Xavantina (MT).
Os índios Krenak testemunharam toda essa movimentação c
formularam suas próprias avaliações, como no caso de Maria Sônia
(Tcharn):
31
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
32
Cf. Relação Nominal dos Componentes da Guarda Rural lndfgena (Grin), 28-6-
1971, em Dossiê sobre a Grin ... (Funai, 1999).
33
Depoimentos de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000 e 14-92000.
34
M. A. do Espírito Santo. Memória sobre a Guarda Rural Indfgena, 20-10-
1999, em Dossiê sobre a Grin ... (Funai, 1999).
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 427
índio bom, perfeitamente enquadrado na farda. Porém, o mesmo antropó-
logo afirmava que tais práticas de militarização foram introjetadas por
algumas etnias e ainda se faziam presentes em fins da década de 1990.
Paralelo à guarda indígena, e interligado a ela, funcionou o
presídio. Nele estiveram dezenas de prisioneiros de variadas etnias:
Xerente, Pankararu, Maxacali, Guajajara, Terena, Karajá, Kadiwéu,
Pataxó, Kaingang, Bororo, Urubu, Canela, Fulniô e Mawé, além de
Krenak. Essa casa de detenção abrigou entre sessenta e oitenta presos
por períodos diferenciados, cujas acusações de crimes eram as se-
guintes: 44% vadiagem, 29% homicídio, 22% roubo e 5% embria-
guez.35 Nota-se que a acusação predominante, vadiagem, era abran-
gente e pouco definida, servindo para enquadrar índios pelos motivos
mais diversos, em geral os que não se adequavam bem ou apresenta-
vam resistência à ordem vigente, o que evidencia o caráter também
político das detenções.
A divisão do prédio onde funcionava o presídio ajuda a com-
preender suas características. De acordo com a planta hoje guardada
no arquivo do Museu do Índio (RJ), havia uma varanda coberta na
entrada. Já dentro do imóvel, o saguão era ladeado por dois pequenos
cômodos (um dos quais destinado à farmácia), seguidos do gabinete
do diretor e da enfermaria. Logo depois vinha um único cômodo
indicado como "alojamento de índios de bom comportamento". Em
seguida, um corredor de circulação era ladeado por duas peças para-
lelas entre si destinadas a "confinamento". Era a cadeia propriamente.
Num dos cantos da cela maior que ficava à direita havia dois cubícu-
los, sem indicação de uso na planta, e que mal poderiam conter uma
pessoa: certamente eram as chamadas celas solitárias. Ao final do
corredor ficava o cômodo nomeado de casa dos guardas à direita e a
cozinha e dispensa à esquerda, estas duas separadas com portas de
grades das celas de confinamento. Em frente à cozinha, o refeitório
encerrava o prédio de formato retangular. Havia, pois, uma hierar-
quia que se expressava em termos da arquitetura, quando os índios de
"bom comportamento" ficavam mais perto da entrada e da sala do
diretor, anteriores e separados das duas celas de confinamento, uma
das quais continha as solitárias, celas que ficavam mais perto da sala
dos guardas. Ou seja, para entrar e sair do imóvel era preciso passar
pela única porta, enquanto nos fundos, onde havia apenas janelas,
35
Cf.levantamento de Antônio Dias Filho citado em Paraíso (1998a), p. 422.
428 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
36
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
37
Depoimento de Laurita Félix Krenak (Tacrukinic) ao autor em 13-9-2000.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV~NCIA POR UM FIO 429
ziam suas "correrias". Agora, para saírem da área do presídio ou sim-
plesmente atravessarem o rio, os K.renak precisavam pedir autoriza-
ção aos militares. Notava-se assim um desrespeito a dois códigos: o
indígena, cujos costumes seculares baseavam-se na constante movi-
mentação por áreas do território; e o moderno direito constitucional
brasileiro, que teoricamente garantia o direito de ir e vir.
38
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 5-2-
2000.
39
Telegrama de 25-11- 1970 do chefe do Posto Indígena Guido Marliere,
Funai, Museu do Índio.
40
Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliere, telegrama n.•
097/72 de 10-7-1972, Funai, Museu do Índio.
430 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 83
41
Telegrama de Antônio Vicente, 2.• chefe do PI Guido Marliere, ao capitão
PM Manuel dos Santos Pinheiro, de 5-7-1971, Funai, Museu do Índio.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 431
Convivendo com a repressão, os índios criavam movimentos de
negociação. Foi o caso, por exemplo, desta prisão de Sebastiana, con-
forme narra sua filha Laurita:
42
Depoimento de Laurita Félix (Tacrukinic) ao autor em 13-9-2000.
43
Telegrama do chefe do PI Guido Marliêre ao capitão PM Manuel dos
Santos Pinheiro, 14-10-1971, Funai, Museu do Índio.
44
Depoimento de Dejanira (Indjambré) ao autor em 6-7-2000.
45
Para a genealogia dos atuais Krenak ver o quadro elaborado por Thais C . A.
Silva, transcrito em I. M. Mattos (1996, pp. 119-20).
432 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
tam, além da torrura, casos de assassinatos, cf. pp. 138-47. Qyando estive entre os
K.renak ouvi, fora dos depoimentos gravados, alusões a assassinatos na época do presí-
dio, mas essas testemunhas pareciam relutar em denunciar tais casos, possivelmente
por medo de represálias de responsáveis ainda vivos.
47 Telegrama de Antônio Vicente, Posto Indígena K.renak, ao capitão Manuel
48
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego (Him) ao autor em 5-
2-2000.
49 Depoimento de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.
50
Depoimento de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him) ao autor em 14-9-
2000 .
434 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Na ocasião José Alfredo foi suspenso por seis dias de suas fim-
ções de auxiliar de almoxarifado por ter, segundo o cabo Antônio
Vicente, chefe do Posto:
52
Relatório de Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Guido Marliêre,
através do Ofício 073/72, ao capitão Manuel dos Santos Pinheiro, 13-7-1972, Funai,
Museu do Índio.
53
Depoimento de José Alfredo de Oliveira, Nego (Him) ao autor em 5-2-
2000 .
54
Depoimento de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 12-9-2000.
436 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
55
Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak, Nego (Him) ao autor em
10/9/1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV~NCIA POR UM FIO 437
56
armados que os arrastavam e jogavam seus pertences em sacos. Como
testemunhou Luzia Krenak:
Este vendeu essa terra nossa sem nós saber. Joaquim Grande, o
finado Jacó, ninguém, índio nenhum queria ir para lá. Aí ele
pegou, algemou Joaquim Grande, levou ele algemado para a Fa-
zenda Guarani. Foi de trem. O trem de meio-dia não parava
aqui. Aí ele arrumou direitinho, escondido de índio. Trem veio e
parou. [ ... ] Mas aqui também ninguém gostava dele, pois o
índio pra atravessar o rio tinha que ir com ordem deles, com um
papelzinho na mão. ~ando voltava tinha que entregar. Ai! Ele
judiava muito dos índio. Joaquim Grande só saiu daqui amarra-
do. Se não fosse, não ia. Os fazendeiro aqui já não deixava nós
plantar. Botava boi pra dentro das roça. Não tinha jeito de plantar. 57
Hiram Firmino, narra detalhes desse despejo, cf. citação no livro de G. Soares, pp.
143-4, que traz também depoimentos dos índios sobre o episódio.
57
Depoimento de Luzia Krenak em 1989 em G. Soares, p. 144.
438 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
58
L. Seky, op. cit., pp. 6-7.
59
Relatório de Antônio Vicente, chefe do Posto Indígena Crenack Fazenda
Guarany, pelo Ofício 022/73, de 28-3-1973, Funai, Museu do Índio.
6
°Cf. Ofício 01/76 de 7-1-1976 do administrador da Fazenda Guarani, apud
M. A. do Espírito Santo. Memória . .. , cit., p. 4.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 439
avaliava os índios sob sua administração:
61
Ofício 051/11". DR/76, de 2-2-1976, apud M. A. do Espírito Santo.
Memória ..., cit., p. 4.
440 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Aí depois nós voltemos pra Guarani, ele não quis sair daqui,
mas a policia algemou ele. Algemou ele e jogaram dentro do
trem. Aí chegou na Fazenda Guarani ele ficou desgostoso e
morreu. 63
63
Depoimento de Depoimento de José da Silva Damasceno Krenak, Zezão,
(Kuparak), ao autor em 11-9-1998.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIV:f'.NCIA POR UM FIO 441
Vários relatos dão conta que Joaquim Grande, até então chefe
ou líder dos Krenak, ficou "ruim das ideias" e não sabia mais se situar.
Em uma de suas últimas fotos, tirada neste exílio, aparece não o líder
vigoroso e tenaz, mas um ar de cansaço e melancolia (Figura 84).
Figura 84
"'\.
......
u
_.,11o
Figura 85
Aí quando fez sete anos nós descobrimos que nós tinha ganhado,
que era mentira dele [capitão Pinheiro], nós tinha ganhado e
ele tinha enganado, tinha tirado nós. Aí nós reunimos lá e deci-
dimos voltar outra vez. E aí nos voltemos. 66
65
Depoimento de Wa!demar K.renak (Nadil) em 1989 em G. Soares, p. 147.
66
Depoimento de José Alfredo de Oliveira K.renak, Nego (Him) ao autor em
10-9-1998.
67
Depoimento de José Alfredo de Oliveira K.renak, Nego (Him) ao autor em
14-9-2000.
444 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Não, mas esse aqui era do tempo do Patronato, depois que nós
fomos na Fazenda Guarani, no tempo do Patronato. Fizeram a
casa desse jeito. Então quando nós fomos embora, os padres
ficou mandando aqui. No tempo dos índios não era assim não,
eles fizeram um outro andar em cima. No tempo do presídio
era só daqui para cá [aponta no mapa]. Os meninos do patronato
ficou aqui, tinha escola, os padres olhava eles. Tinha de tudo aí.
Os padre chegou e tirou as portas de ferro e colocou porta
normal. Rio encheu [risada alegre] e destruiu tudo. Tá até caí-
do. Diz que morreu até um menino aí. Tiraram o menino de
barco. Panela, colchão, prato, foi tudo embora ... Desabou. Mas
eu não cheguei ver essa casa não. Qyando nós voltemos de Gua-
rani pra cá ela tava toda arriada, té os pessoal nosso ficou tudo
morando embaixo ... Fiquei nove anos na Fazenda Guarani e
os outros ficaram oito, eu fiquei um ano ainda. Por causa dos
meninos pequenos. Aí nós veio pra cá. Nós voltemos pra cá por-
que o pessoal do Krenak tava tudo aqui e nós viemos pra cá. 68
69
L. Scki, op. cit., p. 9.
70
I. M . M attos (1996, p. 116).
446 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
diáspora a que foram lançados: além dos mais velhos que se abateram
pela depressão, dois por atropelamento na Estrada de Ferro Vitória-
-Minas, outro atingido por bala perdida num ônibus, dois por afoga-
mento no rio Doce, duas por problemas no parto, dois de úlcera, um
suicídio, um natimorto ... 71 Fora os casos que não chegaram a ser
anotados e os que desapareceram das vistas dos parentes.
Entre as mortes mais traumáticas, sobre a qual ainda paira um
silêncio pesado, está a de Augusto K.renak, em 1988, aos quarenta e
dois anos. Os acusados de sua morte são índios K.renak e outros não
índios que moravam na área. Augusto, oriundo dos Nackrehés, era
irmão de José Alfredo (Nego- Him) e considerado figura destaca-
da na luta pela posse da terra. Durante o "tempo do capitão Pinheiro"
caiu na clandestinidade e ficou foragido da área, para a qual voltou
nos idos de 1980, sendo um dos mais ativos na mobilização. Partici-
pou também de reuniões no Cimi com o bispo D. Tomás Balduíno.
Augusto teve quatro filhos (Manuel, Roseli, Wanderlei e Otaviano)
e foi casado com três mulheres, a última delas Marilza, filha de Laurita
(Tacruk). Há várias versões sobre os motivos de seu assassinato, to-
das girando em torno de antigas rivalidades entre os subgrupos de
Botocudos. Para os parentes de Augusto, o assassinato interessava a
fazendeiros que ocupavam as terras indígenas e teria sido estimulado
por alguns deles. Outros enxergaram novo capítulo de uma antiga
rixa entre Gutkraks e Nackrehés, na qual o chefe K.rembá (Gutkrak)
teria sido morto por Nackerehés décadas antes: nesse sentido a morte
de Augusto seria uma vingança que mantinha acesa a contenda, den-
tro da lógica de facciosidade, característica tradicional da organiza-
ção social desses grupos. Para outros, o estopim teria sido justamente
o fato de Augusto ter-se casado com uma índia do grupo rival. Fa-
lam-se ainda de reuniões envolvendo as demais "famílias" K.renak
que teriam decidido pela eliminação do referido índio. 72 As raras
referências desse episódio partem em geral de não índios. Passadas
mais de duas décadas, os K.renak dificilmente se dispõem a falar pu-
blicamente sobre este segredo interno. Apenas uma vez ouvi menção
fugaz. José Alfredo (Him) numa conversa informal no terreiro de sua
casa, num fim de tarde, referiu-se à morte do irmão sozinho por um
71
Cf. G. Soares, cit., pp. 173-4.
72
Um apanhado dessas discussões sobre este assassinato encontra-se na disser-
tação de I. M. Marttos (1996).
NA AR CA D E NOÉ, A SOBREVJVÉNCIA POR UM FIO 447
grupo armado como covardia, seus dentes cerraram e tive a impressão
que seus olhos marejaram. Mas não ousei interromper o longo silên-
cio que se seguiu ao desabafo.
Aos poucos foram chegando alguns Krenak de volta, enquanto
os demais, mesmo espalhados pelo país, estavam atentos à atuação de
seus parentes e ao embate decisivo que se travava em suas terras.
Alguns visitavam-se esporadicamente para manter contato. A foto-
grafla em alguns casos reforçava os laços de memória e afetividade
entre os familiares separados pelo exílio. Sugestivo foi o episódio
vivenciado pela linguista Lucy Seiki que, ao mostrar para um Krenak
que se encontrava no Posto Vanuíre (SP) fotos de seus parentes do rio
Doce percebeu que o índio ficou "profundamente emocionado":
73
L. Seiky, op. cit., p. 9.
448 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Foi nesse período que José Alfredo, seu Nego, passa a ser reconhe-
cido como cacique dos Krenak, sobretudo como interlocutor junto à
sociedade nacional, embora sem anuência de todas as "famílias" Kre-
nak. Ele sucede assim Joaquim Grande que falecera um pouco antes.
74
Carta transcrita na íntegra em G . Soares, p. 153.
75
Depoimento de José Alfredo de Olveira Krenak (Him) ao autor cm 10-9-
1998.
76
Cf. G. Soares, p. 154.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 449
Apesar de tradicionais rivalidades étnicas, partilhavam experiência
histórica em comum, inclusive a recente tutela policial militar. No
retorno desse encontro os Krenak ampliam a área ocupada, entrando
em fazendas tituladas pela Ruralminas. Uma decisão judicial deter-
mina o despejo. Mas outro juiz assinala os possíveis direitos dos ín-
dios e leva a causa a ser julgada em Belo Horiwnte. Qyatro anos
depois uma nova decisão judiciária determina o despejo dos Krenak,
que é cumprido com novos episódios de violência policial: planta-
ções e criações destruídas, casas arrebentadas, pertences lançados na
rua e ameaças com armas de fogo. Tiveram de voltar à estreita faixa
de oitenta hectares antes ocupada pelo Patronato São Vicente de Paula,
deixando os restantes três mil e novecentos hectares em mãos dos
colonos não índios.
Um documentário curta-metragem intitulado Krenak.r/Maxacalis
foi realizado em 1989 pela Massangana Multimídia Produções, da
Fundação Joaquim Nabuco, na série "Nossos Índios", em parceria
com a Funai, objetivando registrar "a vida e os costumes dos rema-
nescentes de diversos grupos indígenas do Nordeste". A parte relativa
aos Krenak mostra imagens de gado, curral, paisagens e alguns índios
em volta do rio Doce ao som da Bachiana n. o 5, de Villa Lobos.
Somente falam os funcionários não índios da Funai e as irmãs Júlia e
Maria Sônia Krenak não chegam a completar uma frase ao serem
ouvidas, além de não terem seus nomes identificados no flime . Os
Krenak eram espoliados não só em suas terras, mas também em suas
palavras. Na parte relativa aos Maxacali, a entrevista mais longa é
com um fazendeiro que reclama da presença desses índios próximos a
suas terras. Curiosa maneira de registrar a vida e os costumes dos
povos indígenas à custa do dinheiro público.
Em 1983 a Funai ingressara com ação para reintegração dos
índios ao total da área de quatro mil hectares efetivada em 1920 pelo
acordo entre o então SPI e o governo federal. Era, assim, o reconhe-
cimento oficial de que os Krenak não estavam extintos, ao contrário
do que insistiam em afirmar os fazendeiros em seus recursos judiciais.
Para esse processo de reconhecimento da identidade étnica foi deci-
siva a elaboração do laudo antropológico pelo órgão indigenista, que
ficou a cargo da antropóloga Maria Hilda Barqueiro Paraíso. O lau-
do, encaminhado em 1990, foi favorável aos índios, fazendo um am-
plo e detalhado levantamento de suas tradições históricas e ainda
presentes através da cosmologia, da consciência de suas especificidades
450 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
77
Este livro estava esgotado e consegui obter um graças à generosidade deIta-
mar Souza Ferreira Krenak (Tchak), personagem do livro quando criança e que gen-
tilmente cedeu seu próprio exemplar, com anotações manuscritas e até alguns desenhos.
NA ARCA DE NOÉ, A SOBREVIVÊNCIA POR UM FIO 451
Era um conjunto de estudos que se colocava na perspectiva de
apoiar, compreender e estudar essa população indígena, com ênfase
na abordagem antropológica moderna e na trajetória histórica dos
Krenak/Botocudos, bem como na situação daquele tempo presente,
reconhecendo e defendendo para tais índios o direito à especificidade
de seus territórios, culturas e tradições, ainda que transformadas, no
interior da sociedade nacional. Os Krenak, cuja força cultural e histó-
rica servia de material e inspiração para tais estudos, além de serem
fontes ou informantes, sempre se interessaram em tomar conhecimento
do conteúdo de tais trabalhos relativos às suas vidas e história e inva-
riavelmente tomam posições e formam opiniões próprias (nem sem-
pre favoráveis) sobre tais obras.
Finalmente em 1996 o Supremo Tribunal Federal (STF), para
onde a questão da posse da terra fora levada, deu ganho de causa aos
Krenak, determinando a retirada dos não índios da área de quatro mil
hectares. Estes, entretanto, entraram com um recurso solicitando prazo
maior para saírem de lá. E em abril de 1997 o STF negou tal recurso,
ordenando que fosse cumprido imediatamente a retirada das cinquenta
e quatro famílias que ainda permaneciam. O juiz substituto da 3.•
Vara da Justiça Federal, ltelmar Raydan Evangelista, determinou à
Polícia Federal, ao Incra e à Procuradoria da República que executas-
sem a ordem. Alguns proprietários não índios, revoltados e num último
gesto de desespero, demoliram as próprias casas e destruíram planta-
ções, para que os índios não ficassem com nada. E com alguma co-
bertura da imprensa regional e nacional, no dia 29 de abril de 1997,
autoridades e forças policiais chegaram na área - dessa vez a favor
dos índios - para retirar os últimos colonos que se recusavam a sair.
A arca se abria e desmanchava. A terra em volta estava ressequida,
desmatada, casas destruídas. Ainda havia muito que semear. Mas o
dilúvio de quatro décadas chegara ao fim.
Capítulo 12
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA
1
M . de Andrade. O turista aprendiz . .. , [1927] 1976; C. Lévi-Strauss. Tristes
tropiques . .. {1955} 1984; J. Servier. Méthode de /'ethnologie. . ., 1986; M . M. Ferreira
&]. Amado. Usos e abusos da história oral. . ., 1996.
452
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 453
pessoais anteriores, anos de convívio, pesquisa e militância em favelas
e entre camadas pobres urbanas, livros de Paulo Freire.
Interligando tais motivações, um compromisso ético, marcado
de emoção e solidariedade, desafio que brotara das entranhas da pes-
quisa sobre história indígena: não podia mais ficar indiferente à vida
dessas pessoas, que adquiriam para mim imenso valor, de patrimônio
da humanidade, por estarem vivas, por serem de alguma maneira
desenlace e destino de uma história de longa duração que eu encon-
trara e sobre a qual escrevia. O verbo se faria carne.
Os historiadores por muito tempo contribuíram e contribuem
para a opressão sobre os índios, mesmo sem se relacionarem diretamente
com tais grupos, mas gerando imagens, criando, reforçando e divulgan-
do estereótipos e preconceitos ou simplesmente calando-se sobre o
tema. E talvez a contribuição dos historiadores (espécies de arqueólo-
gos de artefatos simbólicos, impressos ou verbais, ou como antropólogos
de um diálogo entre o passado e o presente de culturas diferentes) es-
teja apontada neste cruzamento de perspectivas (que não se confundem,
mas que se interligam na construção da trama histórica), enfocando
os índios não como objetos, mas como sujeitos históricos. Mesmo a
documentação produzida pelos "brancos" (sic) está permeada em suas
linhas e entrelinhas das falas, gestos e presenças indígenas. É importan-
te, neste caso, decodificá-las. Gerações e gerações de historiadores
imersos e comprometidos com determinados paradigmas de edificação
nacional baseados na homogeneização política e cultural não superam
tais padrões de uma hora para outra: acabam largando pelo caminho
a lição "antropofágica" de Marc Bloch para quem o historiador, como
o monstro da lenda, sente apetite ao farejar presença humana. 2
Como um passante, eu pretendia me deslocar de uma margem à
outra, do passado ao presente, para me nutrir com os índios que estão
vivos e relacioná-los a tudo que não desaparecera totalmente, espe-
rando poder caminhar com eles, nestas idas e vindas temporais. 3
Eu seria o primeiro visitante (fora do círculo dos que já fre-
quentavam o grupo) a chegar lá após a Reconquista legal de suas
terras, efetivada pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 1997.
2
"Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde farejar carne
humana, sabe que ali está a sua caça". M . Bloch. Apologia da história. .. , p. 54.
3
Sobre estas "viagens" no tempo histórico entre presente e passado, v. A.
Farge, 2000, p. 9.
454 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
4
Entre os dias 8 a 12 de setembro de 1998, 4 a 8 de fevereiro de 2000 e 11 a
15 de setembro de 2000 estive entre os Krenak na reserva indígena em Resplendor
(MG), como parte dessa pesquisa histórica. Os depoimentos colhidos foram frutos
dessas viagens, nas quais fUmei, fotografei e conversei informalmente com vários
índios. Os relatos destas três visitas estão condensados neste capítulo e citados nos
capítulos anteriores.
5
"Montrez vos photos à quelqu'un; il sortira aussitôt les siennes." Roland
Barthes. La chambre claire. Note sur la photographie. Paris: Cahiers du Cinéma/Gallimard/
Seuil, 1980, p. 16.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 455
Figura 86
6
Ver o artigo de José Ribamar Bessa Freire. A descoberta do museu pelos
índios. Cadernos de etnomuseologia, n.• 1, Programa de Estudos dos Povos Indígenas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999, pp. 9-36.
456 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 87
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 459
Estaria a terra prometida alcançada? A situação estava resolvi-
da após a decisão do STF no ano anterior, reconhecendo a proprie-
dade da área para os Krenak? Na percepção de Him, a luta continua-
va ainda em 1998, embora em outras condições:
Fico até sem graça de contar esses quinhentos anos. Se for con-
tar é quinhentos anos de sofrimento para os índios, né? Té hoje
460 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Mais uma vez, com clareza, ele faz a ponte entre o passado e o
presente e recoloca a relação entre o Estado nacional e os índios, tra-
zendo o relato para a situação específica do território Krenak após o
reconhecimento legal das terras. Ainda há o que conquistar. Sobretu-
do porque essas mesmas terras já haviam sido registradas legalmente
em nome dos índios em 1920 e isso não foi suficiente para impedir
que eles fossem expulsos de lá.
Nos intervalos da conversa compro um punhado de colares e
pulseiras artesanais, madeira e sementes, feitos por D. Maria e por
sua filha Ambelina: são talhados com precisão e harmonia. Posterior-
mente, verifico que são semelhantes a ornamentos que eu vira em
antiga gravura de Rugendas (Figura 16).
Sintetizando a história de seu povo, por ele vivida e percebida,
Him afirma:
Aqui tinha muito índio. Foi cabando tudo, foi brigando .. . foi
matando, foi cabando tudo. Agora que ta se formando outra vez
[abre um sorriso].
Figura 88
/I~
Figura 89
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 463
Não consegui enxergar os quatis que eles me apontavam mais
adiante no mato. Em seguida, na volta, passamos rapidamente pelo
cemitério Krenak, uma colina coberta de capim na qual não identifi-
quei, num olhar superficial, nenhum símbolo exterior. Mas no dia
seguinte escutaria o significado deste local pela voz de Maria Sônia
(Tcharn):
barqueiro, que faz a ligação e o transporte deste lado das terras com o
outro lado do rio, onde fica a cidade e a linha férrea. Qyando os
índios tinham suas movimentações e acesso à terra tolhidos, o con-
trole da travessia era vital como caminho, porta de entrada ou saída.
E hoje quem faz esta ponte marítima numa canoa de remo e com
pequeno motor é este índio Krenak, que também participou de lances
importantes na Reconquista. Zezão, cuja vida pessoal foi marcada
por recentes tragédias, olha ao lado dos filhos já rapazes as fotos
antigas que trago com interesse e atenção, reconhece parentes e re-
corda histórias de seu tio, o legendário Joaquim Grande.
Qyem está na varanda da própria casa para nos receber é Maria
Sônia (Tcharn), filha de Joaquim Grande. A casa de alvenaria é sim-
ples, pobre, mas bem dividida em cómodos, a cavaleiro do rio Doce.
Maria Sônia é dessas figuras carismáticas, cativantes, conversa calma,
densa, mesclando certa meiguice com a dureza das coisas que narra,
harmonizando o típico sotaque do interior mineiro com a entonação
Borum. Sua fala envolve facilmente, como nas boas contadoras de
história. Ela é uma das mais importantes intelectuais de seu povo, se
entendemos por intelectual os indivíduos que tecem a teia simbólica
na qual o grupo se enxerga, se expressa e se constitui. Ao escutar
minhas pretensões de escrever sobre a história dos Krenak, ela dá um
sorriso condescendente e comenta:
Mas a história dessa terra, desse troço aqui, leva a noite inteira
contando. Leva a vida inteira contando, o que é que aconteceu,
o que é que deu, o que é que não deu . ..
Figura 90
Não tinha televisão, não tinha rádio ... Só tinha tropa, jipe,
picape, carroçaria feita de madeira. O mais era boi de carga,
carregava compra, pra levar na roça. Única coisa que, quando o
pessoal encheu tudo aqui de fora a fora, os branco ... por causa
de uns votos que dava. Porque primeiro ... Agora negócio de
civil, negócio de tempo antigo, o civil... quem mandava era
civil. Civil A Lobo, mandava no estado todo, no Brasil. Depois
do civil A Lobo diz que entrou general Rondon, depois do
general Rondon dali começou ... No tempo do civil aqui tudo
era mata. Os índios quase dormiam no meio das capivaras, vea-
do ... No tempo do civil A Lobo ele dava conta de olhar os
branco também e dava conta de olhar pra ninguém passar pra
cá o pessoal de fora, lá na fronteira. Eu acho que você já ouviu
falar disso, nos livro véio a gente encontra. Naquele tempo quem
mandava era civil, em cada estado era um civil. Agora aqueles
delegados ruins, que fazia maldade com os outros, delegados
ruins, advogados ruins, o major mandava tirar eles e colocava
outro. Ficava só escolhendo. Não tinha esse negócio de voto,
esse negócio de título não ... O documento quem arrumava era
pros branco. Os índios nunca teve documento. Agora os índios
ta tendo documento, ta dirigindo, só agora. Mas antigamente
não possuía documento.
466 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Tinha até aquele negócio ... como é que chama? .... O Deus
dos índios no 'campamento, uma madeira de pau. O pessoal
roubou no 'campamento. Aquele pau, madeira, boneco feito de
madeira, os índios oravam aqui. Disse que a única coisa que
468 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
7
V., por exemplo, no livro de G. Soares que dedica um capítulo a depoimentos
de índios sobre este totem, bem como uma narrativa bilingue na Cartilha Krenak
elaborada em 1997.
8
Cf. I. M. Mattos, 2004, cit., p. 138.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 469
rindo das cenas desencontradas filmadas por Maiara que, aliás, se
tornaria, sem saber, estrela da propaganda cinematográfica e etnográfica,
como se verá adiante. O clima entra essas três gerações de mulheres
Krenak era de carinho e respeito, como se expressa na Figura 91.
Figura 91
Figura 93
- Figura 94
9
Nas três vezes em que fui à reserva indígena dos Krenak tentei entrevistar
Laurita, mas infelizmente ela não se mostrou disposta a falar. Apenas na última vez
aceitou gravar um depoimento, mas interrompeu a conversa em poucos minutos, nos
quais, entretanto, forneceu informações preciosas.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 473
A alguns passos da casa desta bisneta do chefe Krenak corre o
rio Eme, do qual tanto ouvira falar nos documentos antigos: ali os
animais domésticos e aves selvagens bebem, as mulheres lavam rou-
pas e as crianças brincam e mergulham com familiaridade. Um gru-
po de curucas fica curioso com minha pequena ftlmadora e passo a
eles por uns instantes o aparelho, quando se divertem em captar ima-
gens (Figura 95).
Figura 95
I'Indien", prefácio a Jean de Léry. Histoire d'un voyage enterre de Brésil (1578}. Paris: Le
Livre de Poche, Bibliotheque Classique, 1994, pp. 15-40.
476 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
A gente não existia não. Aqui tudo era mata ... ! Até lá [gesto
largo] pro lado do Garrafão, lá no Kuparack. Depois que o
branco andou matando índio ... O índio morava lá [aponta] e o
chefe morava ali do outro lado do rio [aponta para outro lado].
Mas o branco acabou com os pobrezinhos dos índios lá, ma-
tou ... matou índio ... Aí saíram ali por debaixo do ... tinha
só trilha, não passava carro, não passava nada, só animal, cava-
lo. Aí passaram por debaixo dali das matas até sair lá pra acudir
o índio. Aí quando começou a matar o índio, saiu um parente
da gente, que sabia conversar na língua da gente. Aí eles con-
versaram. Nosso parente conversava com eles na língua, e eles
não sabiam. "O que cês ta falando?" "Nós tamo falando é isso" e
iam mostrando. Aí eles foram aprendendo. Ele era irmão do tio
Cristino. Morava tudo aqui. Então os meus parente saiu de lá,
quando tava acabando com os parente da gente lá, aí saiu meu
pai, meus tio e veio por dentro, debaixo da mata escondido, saiu
cá na beira do rio, aí travessou e avisou o chefe que os branco
tava acabando com o índio, tava matando. Eles matava a mãe, o
pai, pegava o nenenzinho e botava no meio da estrada. O
nenenzinho chorava, eles com facão armado pra poder bater.
Assim que o nenenzinho chorava, na estrada, quando o pai vi-
11
R. Barthes, op. cit., p. 25.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 477
nha pegar, ou mãe, eles pegava [faz gesto com a mão imitando
o facão] e cortava com facão. Se não aparecia ninguém, aí eles
cortava o neném. Cortava tudo. Ai deixava. Ai os parentes da
gente disse que fugiu pros mato e avisou, pra chamar o chefe.
Ai o chefe vinha e ... [ela continua um trecho da narrativa
falando em Borum, depois retoma em português] .... e tudo .. .
aí ... tá arrasando, tudo derrubado. Ai . .. inté ... mode que .. .
Aí o chefe falou: "O que é que a nós pode fazer?" "O que é que
nós pode fazer? Pode ir lá pegar o 'tomóvel, naquele tempo se
falava assim, o branco tem 'tomóvel, vai lá buscar polícia pra
poder levar lá". Ai o chefe falou: "é, tem que fazer isso mesmo".
Aí foi lá pegou o 'tomóvel, avisou a polícia, aí atendeu o chefe.
"Como é que nós faz pra ir lá? Nós não temos carro. "Não tem
carro, então pega cavalo." Ai arrumou uns animal pros policial.
Ai o índio foi na frente, o chefe e o companheiro do chefe.
[Narra a seguir o diálogo entre os policiais e os índios.]
- Vocês conhecem os brancos, aqueles que matou os índios?
-Sei . ..
-Vocês sabem mesmo?
- Sei ... Qyando chegar lá a pé eu vou avisar vocês.
Ai chegaram na casona deles lá, aquela maloca grande . . .
Aí tio Cristino: [Ela fala o diálogo em Borum.]. Ai falou com
eles: - É aqui que tá os homens. Mas é verdade mesmo?,
tornou a perguntar. [Fala a resposta em Borum.]
- Então nós vamos rodear, vamos cercar ela.
Aí tornou a perguntar: [Fala em Borum.]. Faltava uma hora
pro almoço deles lá. Ai disse que o chefe chegou e bateu palma.
Aí a polícia cercou tudo, os homens. Aí saiu um homem. Ai o
chefe perguntou na língua [Fala em Borum e depois traduz
para o português.]: "É esse aí que matou nós! É esse aí. .. ! É
esse aí mesmo que matou nossos tonton .. .".Ai foi e falou com
a polícia. Aí a polícia foi e falou assim: "Vamos abrir essa por-
ta!" Acho que eles abriram a porta pra poder olhar. Ai chegou
lá e os homens viram que eram os soldados e disse "Nossa
senhora, agora nós deve tá perdido!" [riso divertido] Ai cadê
jeito pra correr? Ai disse que a polícia foi lá e entrou dentro de
casa: "vocês estão presos!" Ai um querendo abrir a janela pra
correr! Ai o outro escapuliu ... Ai eles disseram: do jeito que
vocês fizeram com índio a gente vai fazer com vocês [Repete
478 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
:Foi uma matança de quase toda uma aldeia por "brancos" (kraí).
Numa primeira investida, os agressores mataram alguns adultos c
levaram as crianças. Em seguida, colocaram as crianças (que chora-
vam alto) na beira da estrada e esconderam-se nas proximidades.
Qlando os pais ouvindo o choro apareciam para resgatar os fi lhos
eram mortos a golpes de facão.
- Se não aparecia ninguém eles cortavam os nenenzinho:; de
facão também, mataram tudo .
Ela contou então, sem esconder satisfação, como sobreviventes
do massacre, entre os quais seu pai Pac c seus tios Jacó c Sebastiana,
guiaram alguns policiais e depois de muitas artimanhas e esfor~~os
conseguiram vingar-se, matando também de facão alguns colonos
que haviam cometido a a~ressão. E arremata:
-Nós sofremos c tamos sofrendo inté agora. Não matou n<'>s
porque nós fugimos, ué!
Há outros relatos sob re este episódio do Massacre do Kupa
rak, seja na documentação escrita do SPI que se encontra no Arqui -
vo do Museu do Índio quanto cm outros relatos orais transcritos,
como o de Maria Sônia na Cartilha dos Krenak, sem contar o livro de
Geralda Soares, que se base ia cm alguns depoimentos não identifi -
cados e que apresenta até uma história em quadrinhos sobre o tcí.gi -
co evento.
Um dos aspectos relevantes do depoimento acima transcrito de
Deja é que os índios não aparecem apenas como vítimas da brutalida-
de, mas capazes também de se proteger, escapar para sobreviver, de
alianças com autoridades e mesmo de participarem da execução de
uma vingança à altura do ocorrido. Naqueles idos de 1923 (pela me-
diação do SPI) havia uma predisposição tanto das autoridades kde-
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA 481
14
Legenda de imagem de Botocudo em <www.regencia.org.br/museu/
museuS.jpg>, site oficial do Museu Histórico de Regência (Espírito Santo).
15
Comentário no blog <www.gabeira.com.br/ diario/diario.asp?id=302>; 20-
7-2004.
484 KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
Figura 96
1. FONTES
1.1 Manuscritas
1.2 Impressas ou digitalizadas
1.3 Depoimentos
2. BIBLIOGRAFIA GERAL
2.1 Periódicos
2.2 Instrumentos de trabalho e obras de referência
2.3 Livros, artigos e trabalhos acadêmicos
2.4 Textos e documentos por Internet
1. FoNTES
1.1 Manuscritas
Copia de huma Carta feita pelo Sargento Mor Eschewege acerca dos
Botocudos e das divisões da Conquista, com notas pelo deputado da junta
Militar, Matheus Herculano Monteiro, 1811, 8, 1, 8, n. 0 166, f. 135.
Governo dos índios de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, II -
31, 1, 10.
Iriformações e documentos vários relativos ao aldeamento de indios
e divisão da comarca de Ilheos, 23 de fevereiro de 1782, II - 34, 5, 93.
Ofícios e relatorios sobre o estado atual dos indios de Ilheus e Sergipe
d'El Rey, 1803, II - 34, 5, 101.
Provisão Régia ordenando que o Conde de Sabugosa, Vice-Rei do
Brasil, informe a respeito da Entrada realizada por Francisco de Melo
Coutinho SoutoMaior, 5 de dezembro de 1731, II- 33, 21, 53.
Representação dos habitantes da região de Ponte Nova, dirigida ao
Imperador Pedro!, 1826, II, 36, 5, 21.
Representação dos moradores de várias localidades da freguesia de
São Miguel, termo de Caeté, solicitando providências contra as incursões
dos índios Botocudos, 7 pp., 17 de outubro de 1827, II, 36, 4, 44.
Vocabulario Portuguez-Botocudo Por Guido Thomaz Marliere,
Cavalheiro das Ordens de São Luiz e de Christo, coronel da Cavalaria
do Estado Maior do Exercito e co-Diretor geral dos Indios da Província
de Minas Geraes, 1835.
2. BIBLIOGRAFIA GERAL
2.1 Periódicos