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CARTA ABERTA AO MEU COLEGA MARTIN WEINGAERTNER

Estimado Martin,

Não quero negar os muitos dons que você revelou ao longo do ministério, deixando-se usar
por Deus a favor do evangelho de Jesus Cristo. Mas ninguém de nós é imune ao erro.
Minha oração é que, no caso a seguir, você possa reconhecer sua falta e se corrigir. Há
alguns dias circula por mídias sociais em nosso Sínodo e na IECLB o documento que
transcrevo abaixo, intitulado “PARTIAM O PÃO DE CASA EM CASA (At 2.46) – reflexões
para a páscoa de Martin Weingaertner”. Você também gravou essa mensagem em vídeo e
a postou no Facebook:
https://www.facebook.com/1833960070/posts/10213527408219609/?d=n. Você começa
pelo desconcertante isolamento domiciliar imposto pela Covid-19, cita o hino de
Bodelschwingh e apresenta uma instrução aos que querem ”manifestar ou reafirmar que
seu coração pertence ao crucificado” de como celebrar, “nesta quinta-feira [amanhã], a ceia
do Senhor em sua casa como os primeiros cristãos, que ‘partiam o pão em suas casas’ (At
2.26)”. Ainda traz uma breve liturgia para essa celebração. Isso acontece no contexto da
orientação publicada há poucos dias pela presidência e pelos pastores sinodais de que, no
isolamento social vigente, não há condições de celebrar a ceia do Senhor através de
transmissão online (IECLB nº 280273/20). Agora você vem a público propor uma
modalidade diferente, nunca praticada, de celebração “caseira”. Preciso alertar você, caro
Martin, do seguinte:

O hino que você cita não surgiu no contexto de uma epidemia. O P. Friedrich Carl
Bodelschwingh que assumiu e ampliou a obra social em Bethel em 1872 foi quem perdeu
quatro filhos para a difteria. Seu filho Fritz, nascido em 1877 e também pastor, o sucedeu
em 1910. Foi ele quem compôs o hino em 1938 (cf. Wikipedia – no portal luteranos consta
1945), época em que ele ainda apoiava o nazismo, tendo inclusive tolerado que fossem
retirados da instituição judeus portadores de deficiência.

A fundamentação bíblica do que você propõe é equivocada. Em At 2.46 “partir o pão de


casa em casa” se refere primordialmente à alegre convivência e espontânea partilha de
bens e alimentos em virtude da salvação em Jesus (Em Lc 24.30 também não acontece
santa ceia, mas uma refeição e, ao reconhecerem o Ressuscitado no gesto de bênção e
partilha, os discípulos retornam alegres de Emaús a Jerusalém). Apenas num segundo
momento “partir o pão” também pode se referir à ceia (At 20.7). Toda a teologia de Lucas
ressalta que, com a vinda do Espírito Santo, tem início o tempo da igreja, de modo que ele
jamais admitiria uma celebração da ceia por dois ou três sem um vínculo com essa igreja.
Além disso, naquele tempo os integrantes da “casa” certamente eram mais numerosos que
no atual isolamento social, e “de casa em casa” subentende uma circulação de pessoas ou
líderes entre as casas. Por isso é falacioso afirmar que alguém pode celebrar a ceia do
Senhor no isolamento familiar “em sua casa como os primeiros cristãos”.

Também a referência a 1 Co 11.23ss omite que se trata de refeição conjunta (“quando vos
reunis” – v. 20) e que Paulo critica a igreja por causa de uma partilha injusta (v. 22), o que
inviabiliza a celebração da verdadeira ceia. Ali a comunidade toda, não um ministro, é
responsabilizada por Paulo pela reta administração do sacramento. Você tem razão ao
afirmar que Deus “não depende nem de templos nem de pastores”, mas erra ao dar a
entender que os dois ou três não precisariam de uma comunhão mais ampla e de um
respeito mínimo ao bene esse (Lindolfo) da organização eclesial. No capítulo seguinte
Paulo diz que nenhuma parte dos muitos membros do corpo pode dizer aos outros “não
precisamos de vocês” (1 Co 12.21). Nem mesmo Bodelschwingh, cujo hino comunitário
você cita, concordaria com uma celebração “caseira” que traz consigo o risco de uma
ruptura com a comunidade de fé mais ampla, o corpo de Cristo.

Não apenas na confissão luterana é inconcebível celebrar a ceia do Senhor, assim como o
batismo, de maneira privada, sem o caráter público, seja da confissão do pecado, seja do
anúncio da salvação pela cruz. Não podemos anunciar a salvação a nós mesmos.
Precisamos do verbum externum, eficiente e eficaz, como você como pregador não poderá
negar. Mas esse anúncio falta em tua proposta de liturgia. Logo essa ceia “caseira” não
constitui sacramento, não é “ceia do Senhor”, pois o Senhor da ceia não a instituiu. Você
deve saber disso, pois tivemos o privilégio de estudar teologia juntos, gratuitamente,
custeados pelas comunidades de fé da IECLB. Cabe a você explicar por que, apesar disso,
e com que intenção divulgou essa instrução descabida e mal fundamentada.

Como pastores eméritos não exercemos nenhuma função ministerial na IECLB, exceto em
caso de aproveitamento extraordinário (EMO, Art. 78). Não sei se é esse o teu caso.
Independente disso, estamos sujeitos às normas disciplinares da Igreja (EMO, Art. 79).
Peço que você avalie se ao instruir para a realização de uma celebração “caseira” você não
está se distanciando dessas normas, porque: a) Ela não se apoia em nenhuma prática
comunitária existente nem na resolução de uma instância da IECLB, a começar pelo
presbitério da comunidade em que você é membro. Pelo texto transparece que a orientação
é dada arbitrariamente em nome pessoal. b) Você não recomenda informar à respectiva
comunidade ou paróquia a celebração “caseira”, desconsiderando a norma de lançar nos
registros eclesiásticos e relatórios ministeriais os cultos nos lares, as ceias para enfermos,
etc. Será verdade que você quer desvincular a ceia da igreja, rompendo com a comunhão
eclesial e abrindo caminho para práticas arbitrárias em nome da fé?

Creio que, entre muitos outros significados de redenção e consolo, o “consumado está” do
varão de Gólgota também nos torna capazes de perseverar (= aguentar por baixo) no
sofrimento da COVID-19, sem respostas rápidas e consolos improvisados. Que a paz dele
esteja com você, sua casa, nossa igreja e nosso povo.

Curitiba-PR, 8 de abril de 2020

P. em. Werner Fuchs


E-mail: w.fuchs2013@gmail.com

Anexo:
PARTIAM O PÃO DE CASA EM CASA (At 2.46) – Reflexões para a páscoa de Martin
Weingaertner – Curitiba
Fomos todos surpreendidos! Ninguém imaginava que uma “gripezinha” na distante Wuhan ao final
de 2019 viesse gerasse esse sufoco que aumenta a cada dia.
Você não tem, também, a impressão de que estamos tateando no escuro? Não apenas nós,
pessoas comuns, mas também os mais doutos cientistas e poderosos políticos? As certezas e
planos de ontem não evaporaram todos? Pois é, em 2020 experimentamos globalmente o que em
séculos passados era vivenciado localmente nas epidemias, como a peste negra. Por isso, penso
eu, vale a pena dar ouvidos a alguém que provou essas angústias e tormentos no passado. Não
para dar palpites do que deve ser feito hoje, mas para ajudar-nos a lidar com os temores e incertezas
que nos atormentam. Por isso quero compartilhar duas estrofes de uma canção escrita por um
pastor que perdeu seus 4 filhos numa epidemia de coqueluche em 1869:
Nossos corações pertencem ao varão de Gólgota,
que, por ter sofrido a morte, vida e salvação nos dá,
que o mistério do juízo ao seu povo revelou,
que em angústias e tormentos vida e paz nos conquistou.
Em silêncio nos curvamos ante a tua cruz, Senhor,
e humildes adoramos o poder de teu amor.
Adoramos o milagre: Eis que o Filho se humilhou;
obediente até a morte nosso fardo carregou.
Sublinho duas coisas que nortearam o pastor Bodelschwigh: 1° Ele rendeu seu coração, sua vida,
a Jesus! E, 2o, em silêncio, curvou-se diante da cruz dele. Mas sua atitude de submissão
reverente a Jesus, não o fez cruzar os braços. Pelo contrário, ela fez deste pastor dum pequeno
povoado a pessoa que mais promoveu reformas sociais no império alemão que surgia naquela
época.
Nesta semana da páscoa nós temos a preciosa oportunidade de seguir sua recomendação de
entregar a condução da nossa vida ao varão de Gólgota. Esqueça os ovos de chocolate que jamais
livraram alguém da ansiedade! A única luz que resiste todas as pandemias e maldições é Jesus!
Por que? – Porque na cruz de Gólgota ele suportou voluntariamente todas as malezas humanas a
fim de presentear-nos com vida e salvação eternas. Sua presença liberta, já aqui e agora, do medo,
concede esperança e capacita-nos a arregaçar as mangas para ajudar onde há necessidades.
Por terem reconhecido isso os primeiros cristãos em Jerusalém reuniam-se “de casa em casa, não
deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo” (Atos 5.42). Cristo não é sobrenome, não.
A palavra descreve a função que Deus lhe deu: é o escolhido para resgatar toda a humanidade,
também a você e a mim.
Se você quer manifestar ou reafirmar que seu coração pertence ao crucificado e quer curvar-se em
silêncio diante dele, você pode fazê-lo de modo simples e significativo, celebrando, nesta quinta-
feira, a ceia do Senhor em sua casa como os primeiros cristãos que “partiam o pão em suas casas”
(At 2.26). Providencie pão para todos se satisfazerem e suco de uva, além do que costuma comer
com pão (geleias ou frios). No início da ceia leiam 1a Coríntios 11.23-28. Depois ofereçam um ao
outro pão, dizendo: “Este é o corpo de Cristo dado por ti”. O silêncio reverente durante a refeição
pode ser interrompido por orações de arrependimento, pedidos de perdão e palavras bíblicas. Ao
final, ofereçam mutuamente um copo com suco, dizendo: “Este é o sangue de Jesus derramado por
ti na cruz”. Então orem em conjunto o Pai Nosso e cantem hinos que souberem. Que Deus lhe
conceda a experiência de que ele não depende de templos, nem de pastores. Ele está presente
onde dois ou três se reúnem em sua casa.
Que sua paz esteja no seu lar.

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