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PEREGRINOS DO SOL

Luiz Kobayashi

PEREGRINOS DO SOL
A arte da espada samurai
© Luiz Kobayashi, 2010

Preparação Camila Werner


Revisão Nair Kayo
Editor-adjunto Leandro Rodrigues
Projeto gráfico e capa Silvana Panzoldo
Imagem de capa O samurai Kataoku Dengoyemon Takafusa.
Utagawa Kuniyoshi [1797-1861].
© Akg-Images/Latinstock
Editores responsáveis Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
K79p
Kobayashi, Luiz, 1979-
Peregrinos do Sol : a arte da espada samurai / Luiz O. M.
Kobayashi ; [prefácio de Toshihiko Tsutsumi]. - São Paulo : Estação
Liberdade, 2010.
il.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7448-192-0

1. Esgrima - História. 2. Samurais - Japão - História. 3. Kendô.


4. Esgrima - Brasil - História. I. Título. II. Título: A arte da espada
samurai.

10-5162. CDD: 796.86


CDU: 796.86

Todos os direitos reservados à


Editora Estação Liberdade Ltda.
Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | São Paulo-SP
Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239
www.estacaoliberdade.com.br
Este livro é uma homenagem a

Midori Kobayashi (1891-1961),


fundador e mestre da primeira academia de arte da espada japonesa no
Brasil, em 1926, e

Akira Tsukimoto (1928-2001),


mestre do estilo Shintô-ryû iaijutsu.

Este livro é dedicado a todos aqueles que praticam ou têm interesse pela
arte tradicional da espada japonesa.
Agradecimentos

De início, agradeço Àquele que não possui Nome, mas que recebe vários
nomes.
Agradeço aos meus pais por absolutamente tudo o que sou e o que
tenho.
Agradeço à Suprema Mestra Ching Hai por ela ser o que ela é.
Agradeço a todos os senseis da Confederação Brasileira de Kendô.
Agradeço ao sensei Tsukimoto e aos seus alunos.
Agradeço à sensei Matsunaga e à sensei Kato.
Agradeço ao sensei Kanno e a Kaneko, Usui, Satô e Nemoto.
Agradeço ao sensei Naganuma e aos senseis Koyama, Suzuki, Suzuka,
Ôtsuka, Hoshi, Yumida e Gotô.
Agradeço ao sensei Yoshinari e a Yoshida.
Agradeço à sensei Ogikubo.
Agradeço a todos os mestres que compartilharam comigo os seus
conhecimentos e visões.
Sumário

Prefácio, Toshihiko Tsutsumi 15


Nota ao leitor 19
1. Mitos e lendas 25
Contexto histórico 27
Era Yayoi (c. séc. III a.C.–c. séc. III d.C.) 27
Era Kofun (c. séc. III–séc. VI) 29
Era Asuka (séc. VI‑710) 32
Era Nara (710-794) 34
Era Heian (794-1185) 36
Era Kamakura (1192-1336) 42
Os deuses da arte da espada japonesa 46
Take‑Mikazuchi‑no‑Kami 47
Futsu‑Nushi‑no‑Kami 48
Marishiten 48
O desenvolvimento da espada japonesa 49
As espadas lendárias 49
A evolução das espadas japonesas 52
O desenvolvimento das técnicas de esgrima 56
Kashima‑no‑Tachi 59
Kiichi Hôgen‑ryû (Kiichi‑ryû) 60
Os Sete Estilos de Kantô, Os Oito Estilos de Kyoto 61
2. Os primórdios 65
Contexto histórico 67
Era Muromachi (1336-1573) 67
Era Azuchi Momoyama (1573-1603) 72
A evolução da arte da espada japonesa 76
Kaisha Kenpô e Suhada Kenpô 81
De Tachi para Uchigatana 82
Os primeiros estilos 84
O surgimento do Ittô‑ryû 86
Nen‑ryû 86
Chûjô‑ryû 88

11
Toda‑ryû 89
Ittô‑ryû 93
O surgimento do Shintô‑ryû 96
Tenshinshôden Katori Shintô‑ryû 96
O surgimento do Shinkage‑ryû 97
Kage‑no‑nagare 97
Kashima Shin‑ryû (Shinkage‑ryû) 99
Shinkage‑ryû 99
As primeiras ramificações 103
Kashima Shintô‑ryû 103
Tendô‑ryû 110
Iaijutsu ou battôjutsu – técnicas de saque 113
Shin Musô Hayashizaki‑ryû 114
Tamiya‑ryû 115
Hôki‑ryû 117
(Hasegawa) Eishin‑ryû 118
3. O apogeu da esgrima 123
Contexto histórico 125
A evolução dos estilos 133
As mudanças na esgrima japonesa 138
Para a unificação da esgrima japonesa 144
Os estilos derivados do Shinkage‑ryû 149
Yagyû Shinkage‑ryû 149
Taisha‑ryû 160
Hikida Kage‑ryû 164
Jiki Shinkage‑ryû 164
Mujû Shinken‑ryû 166
Shintô Munen‑ryû 172
Estilos derivados do Ittô‑ryû 173
Ono‑ha Ittô‑ryû 174
Tadanari‑ha (Chûya‑ha) Ittô‑ryû 180
Mizoguchi‑ha Ittô‑ryû 181
Nakanishi‑ha Ittô‑ryû 183
Yuishin Ittô‑ryû 184
Mugai‑ryû 184
Hokushin Ittô‑ryû 187
Kôgen Ittô‑ryû 191
Tenshin Shirai‑ryû 192
Estilos derivados do Shintô‑ryû 200
Jigen‑ryû 200

12


Shintô Musô‑ryû 202


Musô Gan‑ryû 205
Tennen Rishin‑ryû 207
Outros estilos 209
Niten Ichi‑ryû 209
Maniwa Nen‑ryû 219
Shingyôtô‑ryû 224
Kyôshin Meichi‑ryû 227
Mugan‑ryû 228
Seia‑ryû 230
4. Declínio e ressurgimento 237
Contexto histórico 239
A proibição da espada e o desaparecimento da esgrima 247
Ittô Shôden Mutô‑ryû 252
Kenbu 258
A revitalização da esgrima japonesa 262
A prática na Polícia Metropolitana de Tóquio 263
A fundação da Dai Nippon Butokukai 273
A adoção do kendô no sistema educacional japonês 282
O kendô e a Segunda Guerra Mundial 287
5. A arte marcial e o esporte 295
Contexto histórico 297
A proibição e o ressurgimento do kendô 301
A popularização do kendô 307
Seitei Iaidô 312
Seitei Jôdô 314
Outras organizações 316
Os estilos antigos nos dias de hoje 318
6. O kendô e o kenjutsu no Brasil 325
Contexto histórico 328
O início da imigração 328
A imigração e a integração no pós‑guerra 329
A inversão do movimento migratório e o panorama atual 330
O kendô e kenjutsu no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial 331
O panorama após a Segunda Guerra Mundial 338
Glossário 343
Bibliografia 349
Sobre o autor 355

13
Prefácio
É muito oportuna a publicação de Peregrinos do Sol, a compilação da
história da tradicional arte da espada japonesa feita por Luiz Kobayashi.
Este livro é resultado de uma ampla e profunda pesquisa realizada pelo
autor e acredito que seja um tomo extremamente valioso, indo ao encon-
tro da sede de saber, não apenas dos amantes das artes marciais japonesas,
mas também de todos os interessados por cultura japonesa, em particular
pela cultura samurai.
Não só no Brasil, mas fora do Japão de modo geral, a bibliografia
existente sobre o tema é extremamente exígua, existindo uma grande
demanda por uma obra como esta, que se baseia em fontes históricas e
academicamente reconhecidas para apresentar e esclarecer os pontos fun-
damentais da evolução da arte da espada japonesa.
Esta é, portanto, uma obra de grande importância para saciar o inte-
resse de todos — praticantes ou não — pelas artes marciais. Isso porque,
ao utilizar a língua portuguesa, ele traz do Japão para o leitor, de forma
clara e acessível, os conhecimentos sobre as linhagens e tradições dos sa-
murais, revelando de forma detalhada as origens e a evolução da arte e de
suas escolas, situando-as no contexto histórico do Japão.
Pude amealhar um bom conhecimento sobre o tema deste livro, gra-
ças ao acesso que tive a muitos escritos e documentos, bem como a inú-
meros mestres de estilos antigos de artes marciais tradicionais japonesas.
Entretanto, acredito que seja realmente muito raro se deparar, espe-
cialmente fora do Japão, com uma fonte de conhecimento equivalente a
esta obra, que se propõe a aglutinar de forma tão abrangente a evolução
da cultura marcial, notadamente a arte da espada japonesa, desde os pri-
mórdios na Antiguidade até os dias atuais.

15
PEREGRINOS DO SOL

Deve-se ressaltar mais uma vez a extensa pesquisa que respalda este
livro, que traz também nomes e termos em consonância com a pronúncia
japonesa, o que por si só já permite aprofundar o interesse e o entendi-
mento acerca da cultura samurai.
Esse interesse manifestado por pessoas do mundo inteiro sobre a vida,
as visões e a mentalidade dos guerreiros japoneses é algo que sempre atrai
minha atenção.
A história nos conta que, por volta dos séculos X e XI, surgiram grupos
de guerreiros peritos em luta com espadas. Foi nessa época que surgiram
os primeiros nomes de técnicas e, em registros dos séculos subsequentes,
é possível ver nomes que evocam golpes extremamente fortes e intensos,
utilizados amplamente no campo de batalha.
Afirma-se que, em meados do século XIX, havia mais de setecentas es-
colas no Japão, mas este livro mostra que é possível rastrear suas origens até
alguns poucos estilos fundamentais, que possuíam dois importantes pontos
em comum: o primeiro foi a presença de um fundador altamente capaz e
habilidoso; e o segundo foi a existência de técnicas e conceitos deveras sofis-
ticados que justificassem a existência e a continuidade do estilo.
Dentro desta obra, há uma divisão bem organizada dos nomes e es-
tilos dos samurais que foram os grandes baluartes de sua época e creio
que isso será de muita valia ao leitor, pois permite vislumbrar de maneira
correta as origens da tradicional arte marcial da espada japonesa.
No início, não havia uma separação entre as artes marciais, que cons-
tituíam um grande conjunto de formas de combate desenvolvidas a partir
de necessidades reais na guerra. Com o passar do tempo, a estruturação
das técnicas e do ensino propiciou a especialização em uma determinada
forma. Isso influenciou outras artes, como o teatro nô, a cerimônia do chá,
os arranjos florais e a música, que também foram sistematizados em estilos.
Tudo isso serviu como pano de fundo para a educação do guerreiro ja-
ponês, cujo modus vivendi era pautado por elevados valores morais. E a pre-
sença de tais valores nos treinamentos de artes marciais japonesas, mesmo
nos dias atuais, é, em minha análise, o que desperta ainda hoje um grande
interesse no mundo todo pelo modo de vida samurai.
Além disso, faço sinceros votos para que os atuais praticantes da arte
da espada japonesa — e os praticantes de artes marciais em um sentido

16
P R E FÁ C I O

mais amplo — utilizem os textos, biografias e linhagens constantes neste li-


vro para extrair conhecimentos e inspirações que norteiem seu treina­mento
e pesquisa, subindo mais um degrau no caminho do aprimoramento.
Creio também que Peregrinos do Sol tenha um grande valor didá­tico,
servindo de providencial ajuda para que se possa retornar às origens e re-
lembrar, nos momentos de dúvida ou estagnação, o significado e a essên­
cia das artes marciais. Convido o leitor a redescobrir dentro de si, por
meio desta obra, a verdadeira natureza do caminho do guerreiro, bem
como a fonte de seu interesse pelo samurai e pelas artes marciais tradicio-
nais japonesas.
Por fim, gostaria de encerrar com uma palavra que aprecio muito:
Mushin — a “não-mente” — o estado de espírito que Takuan, o mestre
zen de Yagyû Tajima-no-kami Munenori, fundador da ramificação de
Edo do estilo Yagyû Shinkage-ryû no século XVI, buscou durante sua
vida inteira, fazendo do Mushin o fecho deste prefácio e a minha palavra
de congratulação ao autor.

Toshihiko Tsutsumi 1

 1
Toshihiko Tsutsumi é natural da província de Kumamoto, no Japão, e reside há sete
anos no Rio de Janeiro. Praticante de Kendô e Iaidô, é vice-presidente da Confederação
Brasileira de Kendô.

17
Nota ao leitor

Para melhor aproveitamento deste livro, alguns pontos devem ser es-
clarecidos.
 1. Ele está dividido em partes de acordo com os períodos históricos.
Cada uma delas começa com o contexto histórico da época e, a seguir,
o tema do livro é abordado. A última parte em particular apresenta
um pequeno resumo da história da arte da espada (esgrima) japonesa
no Brasil.
  2. Este livro não é, nem pretende ser, a obra definitiva sobre a arte da
espada japonesa. A intenção é que ele seja um ponto de partida e
possa munir o leitor de conhecimentos básicos que o ajudem a com-
preender a evolução da arte, a buscar outras fontes de conhecimento
e a analisá‑las de forma crítica de forma a enriquecer sua instrução.
  3. Todas as informações contidas neste livro foram extraídas de fontes
elaboradas por especialistas ou foram diretamente obtidas a partir de
registros históricos. No final, há uma lista das obras básicas utilizadas
como referência. Deve‑se ressaltar que a bibliografia é composta exclu-
sivamente por obras japonesas e registros da colônia japonesa no Brasil.
  4. Todas as traduções apresentadas não são oficiais e foram feitas de
modo a ficarem próximas o quanto possível do sentido original dos
textos. Em em alguns casos, elas são propositalmente literais ou até
mesmo se optou por não traduzir os conceitos descritos.
  5. Alguns textos trazem descrições de técnicas, outros, ensinamentos de
estilos. Tais textos são de caráter meramente ilustrativo e o autor não
se responsabiliza por quaisquer consequências de seu uso.

19
PEREGRINOS DO SOL

  6. Dado o gigantesco número de estilos que existiram e o número li-


mitado de páginas desta obra, seria impossível enumerar, apresentar
e discorrer sobre todos eles. Sendo assim, apenas os três principais
estilos são apresentados, bem como algumas de suas ramificações
mais imediatas. Todavia, não há intenção de diminuir a importância
daqueles que não foram citados.
  7. A arte da espada japonesa recebeu muitos nomes diferentes ao longo
da história. Por esse motivo, neste livro se optou por utilizar a termi-
nologia pertinente à época a que o texto se refere. Por conveniência,
em alguns momentos os termos kenjutsu e kendô foram diferencia-
dos. Kenjutsu se refere aos estilos e práticas mais antigas (anteriores
a 1867) da espada japonesa, enquanto kendô se refere às práticas mais
atuais da arte. Entretanto, o leitor mais arguto certamente irá perce-
ber que os dois termos possuem essencialmente o mesmo significado:
arte da espada (esgrima) japonesa.
  8. Adotou‑se a convenção japonesa de escrever o nome das pessoas na
ordem sobrenome-nome. Assim, “Miyamoto Musashi” significa que
Miyamoto é o sobrenome e Musashi é o nome. Mas, para nomes
ocidentais, utilizou‑se a ordem nome-sobrenome.
  9. Os topônimos são usados de acordo com o período histórico. Por
exemplo, a cidade de Tóquio chama‑se Edo até 1868 e, assim, ambos
os nomes podem ser encontrados neste livro. Uma lista no final da
obra ajuda a localizar outras cidades, regiões e feudos mencionados na
divisão política japonesa atual.
10. Por fim, utilizou‑se basicamente a notação Hepburn para a trans-
crição das palavras japonesas — aqui, preferiu‑se o uso do acento
circunflexo para denotar o prolongamento das vogais. A pronúncia
dos fonemas deve ser feita da seguinte forma:
• “s” sempre tem o som de “ss”. Por exemplo, “Usa” é pronunciado
como “Ussa”.
• “j” sempre tem o som de “dj”, como na palavra inglesa jacket.
• “ch” é pronunciado como “tch”, como na palavra inglesa patch.
• “h” é pronunciado como um “r” aspirado, como na palavra inglesa
home.

20
N O TA A O L E I T O R

• “r” é sempre pronunciado como o “r” em “cara”, mesmo quando


estiver no início da palavra.
• “w” tem pronúncia semelhante a “u”, como na palavra inglesa water.
• “ge” é sempre pronunciado como “gue”. Por exemplo, “sageo” é
pronunciado como “sagueo”.
• “gi” é sempre pronunciado como “gui”. Por exemplo, “giri” é pro-
nunciado como “guiri”.
• o acento circunflexo sobre uma vogal significa que ela deve ser
prolongada. Por exemplo, “tôma” é pronunciado como “tooma”.

L. K.

21
1
Mitos e lendas
DA ANTIGUIDADE À ERA KAMAKURA (10.000 a.C.– c. 1333)

• os mitos e lendas sobre a espada japonesa


• a evolução da espada japonesa
• o surgimento de espadas e técnicas
• Tachikaki, Tachiuchi, Heihô e Kashima‑no‑tachi
• os Sete Estilos de Kantô e Os Oito Estilos de Kyôto
• contexto histórico
• era Jômon (10.000 a.C.– c. séc. III a.C.)
Contexto histórico

O arquipélago japonês passou a ser habitado por seres humanos du-


rante a última era glacial, quando uma espessa camada de gelo ligou o
Japão ao continente e permitiu a travessia a pé.
Assim como em outros lugares do mundo, os primeiros vestígios de
presença humana no Japão são instrumentos feitos de pedra lascada, pe-
dra polida e osso, bem como restos de palhoças erguidas para moradia,
chamadas de tateana‑shiki jûkyo.
O desenvolvimento da cerâmica foi um divisor de águas e marcou a tran-
sição de sociedades baseadas na caça e pesca para uma sociedade baseada na
agricultura. No caso do Japão, os objetos de cerâmica desse período possuem
como característica marcante a presença de padrões em forma de cordas, o
que foi chamado de code marked pottery por Edward Moore. Em japonês,
esses padrões são chamados de jômon e dão nome a este período histórico.
Nessa época, começaram a se formar pequenos núcleos de povoamen-
to, chamados de mura, a partir da região de Kyûshû, no sudoeste do
arquipélago japonês. Sítios arqueológicos dessa época mostram concen-
trações de palhoças, bem como de objetos de cerâmica e instrumentos
como machados, flechas, facas, arcos, dardos e lanças.

Era Yayoi (c. séc. III a.C.– c. séc. III d.C.)


A divisão entre as eras Jômon e Yayoi não é muito clara e causa diver-
gências entre os estudiosos. Mas se pode dizer que, durante a Era Yayoi, a

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PEREGRINOS DO SOL

agricultura realmente se disseminou e assumiu importância central na


subsistência dos homens do arquipélago japonês, com o início do cultivo
do arroz.
Isso fez com que os núcleos de povoamento crescessem cada vez mais
e, por consequência, a hierarquia surgisse entre as pessoas. Os núcleos
também passaram a se aglutinar, formando diversos pequenos “países”,
compostos por vários “vilarejos”.
A expansão populacional se deu principalmente em duas regiões: no
sudoeste, na região de Kyûshû, e no centro‑oeste, na região de Kinki.
Ao mesmo tempo, existiam outros povos vivendo na região nordeste e no ex-
tremo sul do Japão.
Outro marco do desenvolvimento da civilização nipônica foi o sur-
gimento da metalurgia. Não está claro quando exatamente ela passou a
existir no Japão, mas foi nesse período histórico que os rudimentares ins-
trumentos feitos de pedra e osso foram substituídos por instrumentos de
bronze e ferro.
Essa tecnologia foi importada por meio do intercâmbio feito com o
continente através da península da Coreia. Uma das maiores provas ma-
teriais dessa troca é um selo chinês de ouro, descoberto no Japão e datado
de 57 d.C., cuja existência está registrada em um documento chinês da
época. Nesse registro, há referência a um “país de Na”, que se situava no
Japão.
Não se conhecem os detalhes do panorama político japonês do perío-
do, mas se acredita que inúmeros países coexistiam no arquipélago, até
que um deles passou a incorporar os outros, dando início ao processo de
formação de um país único. Esse país foi chamado de Yamatai‑koku e era
liderado por uma sacerdotisa chamada Himiko. Registros chineses situam
a existência desse país entre os séculos II e III.
É interessante notar que muitas lendas japonesas são ambientadas
aproximadamente nessa época. Os dois principais registros da história
antiga do Japão — o Kojiki e o Nihon Shoki — situam a criação do
Japão em uma época que é geralmente aceita como sendo por volta
de 660 a.C., ou o ano 1 da Era Imperial Japonesa. No entanto, recentes
estudos multidisciplinares apontam evidências de que tal época é na rea­
lidade mais recente.

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MITOS E LENDAS

Esse assunto ainda é objeto de muita controvérsia e, ao mesmo tempo,


é fascinante não apenas pela riqueza das lendas, mas também pela combi-
nação de prováveis fatos históricos transmitidos oralmente com elementos
mitológicos frutos da influência de diversas culturas e costumes da época.
Os dois registros, juntamente com os relatos regionais, em particular
os da terra de Izumo,1 ainda hoje oferecem um campo extremamente
amplo para pesquisas.

Era Kofun (c. séc. III– séc. VI)


A Era Kofun presenciou o surgimento do império Yamato (Yamato
Chôtei) no século IV, na região de Yamato, atual província de Nara.
A partir desse império, comandado pelos antepassados da atual família
imperial japonesa, ocorreu a posterior unificação do arquipélago japonês
para a formação da nação japonesa.
Não é clara a relação entre o império Yamato, chamado de “país de
Wa” nos registros chineses, e o país de Yamatai‑koku. Existem evidências
de que o império Yamato seria o sucessor natural de Yamatai‑koku, mas
ainda não há nenhuma prova arqueológica conclusiva que preencha esta
lacuna histórica de modo convincente.
Uma característica marcante dessa era foi o surgimento de túmulos
dos gôzoku, clãs familiares poderosos. Para demonstrar o seu poderio, eles
construíram grandes túmulos, chamados de kofun, de variados formatos,
sendo que no seu auge, durante o século V, o formato se assemelhava ao
de uma fechadura invertida.
O clã familiar mais poderoso de Yamato era, obviamente, a família
imperial japonesa. Estima‑se que o Imperador Ôjin, 15º imperador do
Japão, viveu nessa época. Ele é o primeiro imperador cuja existência é
amplamente aceita pelos historiadores.2
No século V, surgiu o sistema de Shisei Seido, que estabeleceu uma
hierarquia entre os diversos clãs existentes e trouxe maior estabilidade
política e social para o império. Os clãs mais poderosos, chamados de uji,
possuíam uma relação mais próxima com o imperador e controlavam os

 1
É um local muito relevante para as lendas japonesas.
 2
O atual imperador, Akihito, é o 125º imperador e descendente direto deste clã.

29
PEREGRINOS DO SOL

clãs mais fracos, denominados be. Dentro do sistema criado, os clãs eram
também divididos de acordo com quatro títulos, chamados de kabane:
Omi, Muraji, Kimi e Atai. Em particular, apenas as famílias mais podero-
sas e tradicionais podiam ser Omi ou Muraji.
Dentro do escopo deste livro, vale a pena ressaltar os clãs Ôtomo e
Mononobe. Os dois eram Muraji3 e especialistas em assuntos militares.
De modo geral, o clã Ôtomo era responsável pela guarda imperial e os
Mononobe cuidavam da segurança interna e das expedições militares con-
tra os outros povos que habitavam o arquipélago.
Especialmente os povos Kumaso, residentes ao sul da região de
Kyûshû, e os Ezo (também chamados de Ebisu ou Emishi), residentes ao
norte do Japão, eram uma ameaça ao império Yamato. Os Ezo só seriam
completamente derrotados e incorporados ao império tempos depois.
As lendas e histórias relativas aos Ôtomo e Mononobe são bastante
interessantes, mas seria impossível fazer uma apresentação detalhada de
tais relatos aqui. Todavia, vale notar que os poemas relativos aos Ôtomo
comprovam a existência de códigos de conduta e de atitudes que os guer-
reiros japoneses deviam seguir já naquele período.
Não se sabe exatamente se tais códigos possuíam um nome, mas textos
do século VIII atribuem nomes como Kyûba no michi (“caminho do arco
e do cavalo”) ou Yumi‑ya no michi (“caminho do arco e da flecha”) ao con­
junto de códigos que hoje se conhece por Bushidô (“caminho do guerreiro”).4
Com relação aos Mononobe, o próprio nome do clã já é bastante in-
trigante, uma vez que pode ser interpretado como Mono‑no‑be, cuja possí-
vel tradução seria “clã dos guerreiros”, entre outras alternativas.5 Deve‑se
notar também a semelhança entre o nome Mononobe e a palavra japonesa
mononofu, que significa “guerreiro”, “homem de valor”.

 3
Posteriormente receberam um status mais alto, de Ô‑Muraji, e passaram a responder
diretamente ao imperador.
 4
Não existia e nunca existiu um código único para a conduta dos guerreiros. A conduta
variava de acordo com o clã ou feudo, a região geográfica e a época. É um equívoco
acreditar que haveria um código único chamado bushidô que ditaria o comporta­
mento dos guerreiros.
 5
Mono pode significar “arma”, “guerreiro” e até mesmo “espírito”, dependendo da in-
terpretação. O clã Mononobe, além de ter um lado bélico, também era responsável
por muitos ritos esotéricos.

30
MITOS E LENDAS

O poder dos dois clãs teve uma duração relativamente curta. Os


Ôtomo perderam o poder após a deposição de Ôtomo‑no‑Kanamura,
em 512, por suspeitas de suborno, que levaram o império de Yamato
a perder influência na península coreana. Os Mononobe foram política e
militarmente derrotados anos mais tarde pelo clã Soga.
Um acontecimento fundamental para o desenvolvimento do impé-
rio Yamato foram as imigrações coreana e chinesa a partir do século IV.
Chamados de torai‑jin ou kika‑jin, elas propiciaram uma evolução acentuada
no artesanato e na manufatura, além de terem trazido inúmeras influências
culturais do continente. Dentre essas, deve‑se ressaltar três em particular:
a introdução do confucionismo, da escrita chinesa e do budismo.
Dizem que foi um homem chamado Wa Ni6 quem levou pela pri-
meira vez os analectos ao Japão. As ideias de Confúcio se tornaram uma
forte influência cultural e sociopolítica, sendo perceptíveis também em
documentos sobre as artes marciais tradicionais japonesas.
A introdução da escrita chinesa, com o uso de ideogramas, possibilitou
a compilação de registros e tradições que, até então, só eram transmitidos
oralmente.7 É crucial ressaltar, entretanto, que os japoneses adotaram a
escrita chinesa de duas formas. A primeira é o uso da escrita chinesa le-
vando em consideração o significado dos ideogramas e as estruturas gra-
matical e sintática chinesas. A segunda forma é o uso dos ideogramas para
representar a pronúncia das palavras. Comumente chamados de ateji, os
ideogramas nesse caso possuem uma função meramente fonética.8 Assim,
para a correta compreensão dos textos japoneses, primeiro é preciso defi-
nir se os ideogramas escritos devem ser interpretados de acordo com o seu
significado ou de acordo com a sua pronúncia japonesa.

 6
Wang ren, em romanização da pronúncia chinesa.
 7
Existem documentos que supostamente contêm a antiga escrita japonesa, chamada
de Kamiyomoji, que teria sido criada antes da introdução da escrita chinesa. São for-
mas geométricas predominantemente curvilíneas que em nada se assemelham à escrita
chinesa. Há outras formas que são extremamente similares ao alfabeto coreano ou
remetem até mesmo ao alfabeto devanagari.
 8
No caso de textos bastante antigos, é comum utilizar o termo Man’yô‑gana, em refe-
rência à antologia poética Man’yô‑shû. É interessante notar que, a partir dos ideogra-
mas escolhidos, é possível estimar aproximadamente a época em que o texto foi escrito.

31
PEREGRINOS DO SOL

A terceira grande influência dos imigrantes foi a introdução do budis-


mo, que ocorreu oficialmente em 538, com o envio de estátuas e textos
budistas pelo rei de Kudara (Baekje, em coreano), um reino da península
coreana. Praticado pelos imigrantes coreanos, inicialmente o budismo se
popularizou no Japão mais por causa do apelo estético de suas construções,
seu artesanato e sua música do que por seu conteúdo filosófico‑religioso.
Entretanto, o budismo também foi o estopim de uma guerra políti-
ca entre os clãs mais poderosos, uma vez que os Soga eram favoráveis à
adoção do budismo por parte da família imperial, enquanto que os clãs
Nakatomi e Mononobe eram contra e defendiam a manutenção dos ritos
existentes. Esse conflito, mais do que um confronto religioso, foi uma
disputa de influências na casa imperial, que levou a uma guerra pelo poder.

Era Asuka (séc. VI– 710)


A introdução do budismo, em 538, é um dos marcos da transição para
a Era Asuka e seu início se confunde com o fim da Era Kofun.
Nesse período, o império Yamato perdeu sua influência na península
coreana, com a extinção do reino de Mimana. Por outro lado, o seu po-
derio já era sentido na maior parte do arquipélago japonês, desde a região
de Kumamoto, a sudoeste, até a região de Tóquio e Gunma, na região
centro‑oriental.
Em termos políticos, o clã Soga ganhou um poder considerável por
meio de casamentos com membros da família imperial, ao mesmo tempo
em que obtia cargos essenciais no governo, como postos relativos às fi-
nanças e às relações exteriores. Esse acúmulo de poder levou a uma guerra
contra os Mononobe, em 587, na qual os Soga se sagraram vencedores.
Eles assumiram de fato o poder no Japão e transformaram a família impe-
rial em uma figura simbólica.
Em uma luta política para recuperar o poder, o Imperador Suiko,9
a primeira mulher a assumir o trono,10 realizou manobras para proteger

 9
Apesar de ser chamado de Imperador (Tennô), Suiko foi uma mulher. Não se utiliza
o termo Imperatriz (Kôgô), pois essa palavra implica ser esposa do Imperador, o que
não foi o caso de Suiko.
10
Suiko não foi a primeira estadista da história japonesa. Antes dela, Himiko gover-
nou Yamatai‑koku, a Imperatriz Jingû (esposa do Imperador Chûai) supostamente

32
MITOS E LENDAS

a família imperial, ao mesmo tempo em que agia de forma diplomática


com relação aos Soga. Foi assim que Shôtoku Taishi (574‑621), sobrinho
do Imperador Suiko, pôde tomar as rédeas do império e se tornar um dos
maiores estadistas japoneses da história.
Shôtoku Taishi, chamado de Umayado‑no‑Ôji ou Toyotomimi‑no­-
-Ôji, se tornou chefe político aos vinte anos de idade e, tendo como con-
selheiro o monge Eji, iniciou uma série de reformas.
No campo externo, ele selou a paz com os reinos da península corea-
na. Ao mesmo tempo, a partir do século VII, iniciou o envio de emissários
à China, que vivia a dinastia Sui, estabelecendo pela primeira vez laços
diplomáticos entre o Japão e a China. Até então, a China sempre consi-
derara o Japão como uma região submissa a ela.
Além disso, é a partir do ano 607 que se começa a utilizar o termo
“Japão” (Nihon) ao invés de “Wa”. Em uma carta levada pelo emissário
de Shôtoku Taishi, a China é chamada de “Terra do Sol Poente” em opo-
sição ao Japão, chamado de “Terra do Sol Nascente” (Nihon).
No que diz respeito à política interna, Shôtoku Taishi tomou duas
medidas revolucionárias para a época. A primeira foi a criação de uma
hierarquia baseada nos méritos da pessoa, rompendo com o costume vi-
gente de classificar apenas as famílias e não os indivíduos. A segunda
foi a reda­ção do primeiro código de leis fundamentais do Japão, que
estabeleceu diretrizes que todos deviam seguir. Essas duas medidas foram
tentativas de estabelecer de forma clara a superioridade e a unicidade
do imperador, bem como de reduzir as disputas existentes entre os dife­
rentes clãs.
A morte de Shôtoku Taishi levou a uma interrupção momentânea
das reformas, e os Soga voltaram a assumir o poder. Entretanto, os dois
homens mais importantes do clã, Soga‑no‑Iruka e Soga‑no‑Emishi,
foram eliminados por meio de um plano arquitetado pelo príncipe
Naka‑no‑Ôe‑no‑Ôji e por Nakatomi (Fujiwara)‑no‑Kamatari, o que
marcou o declínio dos Soga e a ascenção dos Fujiwara.

comandou homens em guerras na península coreana, e Iitoyo‑Ao‑no‑Himemiko che-


gou a assumir o poder de maneira temporária.

33
NATANAEL
Luiz Kobayashi

Luiz Kobayashi
PEREGRINOS Existe atualmente uma aura mítica em torno
Nesse sentido, saudamos o aparecimento do
presente livro. Em estilo leve e despo­jado, o do samurai. Ele é o grande herói de mangás,
autor soube mesclar convenientemente os ensi- animês, filmes e novelas que chegam de roldão

DO SOL A ARTE DA
namentos da esgrima com episódios (reais ou ao imaginário de jovens (ou não muito jovens)
imaginários) dos mestres dessa arte e dos samu- brasileiros. Com sua habilidade no manejo da
rais. Mais ainda: ele conseguiu con­tex­tualizá-los espada, o samurai vence (quase sempre) o mal

ESPADA SAMURAI
na história nipônica. Para com­pletar, ofere­ para a redenção do bem.
ce-se um esboço histórico da evolu­ção (in­vo­

A ARTE DA ESPADA SAMURAI


lução) de kenjutsu/kendô no Brasil, si­tuada Uma ilustração típica pode ser encontrada
no contexto da imigração japonesa no país. Elaborou-se para esta obra um aprofundado na história de Miyamoto Musashi, o grande
O autor conhece bem a arte do manejo da estudo sobre a história e as técnicas de espadachim imortalizado em inúmeros ro-
es­pada e quer disseminá-la na sociedade bra- kenjutsu/kendô, a arte da espada samurai, mances, filmes e mangás. No Brasil, o sucesso
sileira, utilizando seu domínio da língua japo- desde suas origens longínquas no de vendas do livro a respeito do personagem,
nesa e da portuguesa. Da junção dessas suas Japão até os dias atuais, dasaguando na trajetória de autoria de Eiji Yoshikawa e traduzido para
habilitações com o amor pela arte da esgrima o português por Leiko Gotoda, atesta bem
da arte da esgrima japonesa em solo brasileiro.
nasceu uma bela introdução ao assunto. Este- a aceitação do mito do samurai herói. O es-
jam portanto convidados à leitura desta obra. tilo de duas espadas utilizado por Musashi
LUIZ KOBAYASHI, praticante de kendô, iaidô, tornou-se para alguns leigos o supra-sumo das
Com certeza, não se arrependerão.
kenjutsu, iaijutsu, bôjutsu, kenbu e shibu, e técnicas de esgrima, capaz de vencer qualquer
Shozo Motoyama filiado à Nihon Kobudô Shinkôkai, organização duelo.

PEREGRINOS DO SOL
Professor do Departamento de
de preservação das artes marciais tradicionais
História da USP Porém, até que ponto essa e outras histórias re­
Presidente do Centro de
japonesas, recebeu instruções diretamente de
fletem a realidade? Infelizmente, muito pouco.
Estudos Nipo-Brasileiros renomados mestres dessa arte no Brasil e no Muitos erros, conhecimentos falsos e crenças
Japão, e durante anos compilou material — parte equivocadas pululam nesse cenário mítico.
dele, extremamente raro — para a elaboração do Enquanto se estiver no terreno do entreteni-
livro que ora chega a nossos leitores. mento, não há nada a que se opor. Ninguém

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consegue ficar exposto constantemente à dura
e fria realidade. Necessita-se de uma válvula
de escape. E, para isso, nada melhor do que NATANAEL

Prefácio de Toshihiko Tsutsumi imergir no sonho e na fantasia do mito do


samurai e da espada redentora. Mas, a situa-
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ção muda de figura quando alguém realmente

ISBN 978-85-7448-192-0

9 788574 481920
quer se aprofundar no tema. Os mitos e técni-
cas de espadachins nascidos da fantasia muitas Cortar Altura: 20 cm Cortar Altura: 20 cm
vezes acabam sendo um desserviço para o co-
nhecimento da cultura japonesa.
(cont.)

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