Você está na página 1de 84

introdução

LIÇÃO 1

Qual é o
VIDEOAULA

Sentido da
Vida?
Introdução
Certa vez, um jornalista perguntou ao
cineasta Woody Allen se ele tinha medo
de morrer. De um jeito irônico, como lhe era de
costume, ele respondeu curta e objetivamente:
“Eu não tenho medo de morrer. Só não quero
estar lá quando isso acontecer.”
Você consegue imaginar um mundo onde
as pessoas nunca envelhecem ou morrem?
Um lugar em que seja possível escolher parar
de envelhecer aos 25 anos e viver o tempo
que desejarmos? E se isso fosse possível e
pudéssemos atingir 100, 200 ou 10 mil anos
de idade, com o físico e a energia dos 25? Por
quanto tempo você escolheria viver assim?
Existe sentido na vida? Hoje vamos refletir
um pouco neste tema.

Estudando juntos
Uma pesquisa feita nos Estados Unidos “Desde que eu não experimente viver
perguntou a 2 mil cidadãos americanos: num asilo”.1
“Se você tivesse opção, por quanto Normalmente, pessoas de sã
tempo gostaria de viver?” A resposta foi consciência não querem morrer,
surpreendente. A maioria não gostaria de mas também não querem viver apenas
viver para sempre, e os que aceitariam por viver. É triste, parafraseando o cantor
ampliar sua vida em 100, 500 ou 10 mil Jim Morrison, saber que “o futuro é
anos fizeram ressalvas do tipo: “Desde que incerto, e o fim está sempre perto”. Como
eu não veja o fim do mundo”, “Desde que você responderia a essa pesquisa? Vamos
não me separe das pessoas que amo” ou pensar e estudar esse assunto juntos?
Em busca de propósito e
sentido para a vida

Precisamos ter um
propósito, um elemento pelo
qual valha a pena viver;
senão, para que lutar pela vida?
É costume contar entre os
filósofos a seguinte parábola:
Havia um astronauta,
abandonado em um asteroide
rochoso e estéril no espaço
sideral. Ele tinha consigo duas
ampolas, uma com veneno
e outra com uma poção que
o faria viver para sempre.
Compreendendo sua situação
terrível, com um único gole,
bebeu o veneno. Depois, para
seu horror, descobriu que
tomara a ampola errada: havia
bebido a poção da imortalidade,
o que significava que estava
condenado a existir para
sempre, numa vida sem sentido
e sem fim.

Pergunta
Como você explicaria o
horror que se abateu sobre
o astronauta? O que torna a
imortalidade menos atrativa e
até mesmo desesperadora
nessa parábola?

7
O taxista e o filósofo
Um taxista pegou certa vez o poeta
T. S. Eliot e perguntou:
– Para onde devo levá-lo, senhor Eliot?
O famoso poeta ficou curioso para saber
como o taxista lhe reconhecera.
– Tenho um faro para descobrir
pessoas famosas que entram no meu taxi –
disse o motorista.
– Outro dia apanhei o filósofo
Bertrand Russell.
– E como você sabia que era ele?
– perguntou Eliot.
– Ah, foi simples. Perguntei qual era o
sentido da vida, e ele simplesmente não
soube responder.
Ao retirar Deus e a fé do cenário
filosófico, Russell foi coerente com seu
ceticismo. Baseando-se na ideia de que
não há Deus, ressurreição nem qualquer
uma das promessas apresentadas na Bíblia,
ele concluiu que o ser humano “era o
produto de causas que não tinham previsão
do fim que estavam alcançando; que sua
origem, crescimento, esperança e medos,
amores e crenças são apenas o resultado
de colocações acidentais de átomos; que
nenhum fogo, heroísmo, intensidade de
pensamento e sentimento pode preservar
uma vida individual além do túmulo.”2
Em poucas palavras, Russell admitiu
que, sem os “sapatos da fé”, ficamos
existencialmente vazios de significado.
Não são poucos os acadêmicos que
enveredam por esse caminho, ainda
que de modo inconsciente. Em 2012, o
filósofo John G. Messerly publicou um livro
sobre o sentido da vida. Nele, Messerly
relacionou cerca de 100 pensadores que
tinham algo a dizer sobre o significado
da vida. Ele mesmo concluiu ao fim de
sua compilação: “[…] apesar de nossos
melhores esforços, não encontramos tudo
o que procurávamos. Não podemos apagar
todas as nossas dúvidas; não podemos
aliviar todos os nossos medos. No fim,
não temos garantias; e o abismo, por mais
que desejássemos o contrário, sempre nos
acompanha. Navegamos no limiar entre a
luz eterna e a escuridão infinita. Estamos à
deriva e precisamos salvar a nós mesmos.”3

8
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bertrand_Russell#/media/Ficheiro:Bertrand_Russell_transparent_bg.png
Bertrand Russell: filósofo, matemático
e ganhador de um prêmio Nobel.
Tornou-se um crítico ácido da fé e da
religiosidade com seu livro Por Que Não
Sou Cristão. Posteriormente, esse livro se
tornou um best-seller do
ateísmo moderno.

Essa é uma conclusão audaciosa e


surpreendente, feita por um doutor em
Filosofia. Como não há nada mais além
disso, o jeito é, segundo essa lógica, gastar
os dias da melhor forma que pudermos,
com prazer e alegria, porque a qualquer
momento deixaremos de existir.

Pergunta
Como você avalia as conclusões de
Messerly? Existiria alguma forma de
aliviar seus medos e dúvidas sobre
a existência?

O pensamento de Messerly parece


refletir uma irônica expressão usada pelo
apóstolo Paulo para responder aos que,
em seu tempo, negavam a ressurreição e
a transcendência da realidade: “Comamos
e bebamos, que amanhã morreremos”
(1 Coríntios 15:32). Nesse verso, o autor
bíblico citou uma tradução grega do
profeta Isaías quando este descreveu a

9
imprudente autoindulgência das pessoas
que desprezavam a transcendência,
limitando sua história à vida neste mundo:
“Vamos apreciar as coisas boas da vida Boa pergunta
agora, pois logo terminará” (Isaías 22:13).
Paulo imitou ironicamente a linguagem Agora é você quem faz as perguntas!
desses céticos a fim de reprovar sua teoria Pare para pensar e formule
e prática. Em outras palavras, se as pessoas as próprias perguntas sobre
se convencerem de que tudo se resume a essa parte do estudo.
morrer como animais e plantas, em breve
passarão a viver como tais.

A voz dos pensadores


O sentido da vida, conforme
afirmaram pesquisadores do Journal
of Humanistic Psychology, é “desfrutá-
la enquanto for possível”. Essa foi a
conclusão a que chegaram após um
grupo de psicólogos da Universidade
do Arizona, Estados Unidos, analisarem
cuidadosamente as palavras de 200
Sentimento contraditório
pensadores que vão de Oscar Wilde
a Napoleão Bonaparte, passando por O próprio Bertrand Russell, aos 95
Freud e Bob Dylan. anos e perto da morte, escreveu um novo
Na mesma onda de aproveitar ensaio de uma só página que, além de
a vida enquanto se pode, alguns não ter título, ficou sem ser publicado
assumem que ela de fato não tem por mais de 20 anos após sua morte, em
sentido algum a não ser, talvez, aquele 1970. Nele, o autor confessou: “Chegou
que cada um queira dar. Contudo, a hora de rever minha vida como um
esse sentido é reconhecidamente todo e me perguntar se ela serviu a
subjetivo e dificilmente vale para todos algum propósito útil ou se foi totalmente
(Schopenhauer, Nietzsche, Sartre e ocupada com futilidade. Infelizmente,
Kafka). Mais recentemente, porém, nenhuma resposta é possível para quem
alguns, tentando fugir da acusação de não conhece o futuro.”4
niilistas, preferem evitar problemas ao Em outras palavras, o mesmo
dizer que o sentido da vida é um mistério indivíduo que escreveu o livro definitivo
(Dawkins, Hawking). sobre a história da filosofia ocidental,
que foi retratado com o maior filósofo
do século 20, terminou essencialmente
dizendo que “nenhuma resposta é
possível”. No entanto, como se tentasse
conter todo esse negativismo, Russell
continuou: “Há um artista preso em cada
um de nós. Solte-o para espalhar alegria
por toda parte.”
O que ele queria dizer com isso?
Que artista é esse que precisa ser solto?
Talvez a resposta esteja numa declaração
anterior que Russel fez em 1903: “Para
viver uma vida com significado é preciso
abandonar os interesses particulares e
mesquinhos e cultivar um
interesse no eterno.”5

10
Pergunta Conclusão
Mesmo sem nenhuma intenção
religiosa, Russell terminou Que tal atendermos ao conselho
endossando o que já estava escrito bíblico e de Russell e começarmos a
na Bíblia há mais de 2.900 anos: cultivar um interesse pelas coisas eternas?
“Deus fez tudo formoso no seu devido Talvez, ao cultivar esse interesse, nossa
tempo. Também pôs a eternidade no vida comece a encontrar significado.
coração do homem” (Eclesiastes 3:11). Queremos ter certezas e não dúvidas.
Você já parou para pensar no sentido Embora nem sempre querer signifique
da vida? O que nosso instinto por “poder”, é lógico argumentar
eternidade e significado lhe diz que essas inclinações psíquicas nos
sobre isso? revelam algo, e não podemos fechar os
olhos para o que elas estão nos dizendo.
Pássaros nascem migrando para o sul,
e tartarugas marinhas correm para o mar.
Seria ingênuo negar a existência do oceano
e de um lugar chamado sul apenas porque
algumas tartarugas e aves migratórias
ficaram circunstancialmente confinadas
num plano em que não podiam ver nem
experimentar o objeto de seu instinto.
Qual é sua decisão diante de tudo
isso? Lembre-se: quem adia decisões
importantes arrisca que seu destino seja
decidido por circunstâncias aleatórias.
Não se esqueça de que ser dirigido pela
aleatoriedade é como se deixar guiar
entre armadilhas fatais por um guia não
confiável, completamente às cegas.
Pense nisso!

Referências
1 “Do You Want to Live Forever?”, Lifetime Daily, disponível em <https://www.lifetimedaily.

com/want-live-forever/>, acesso em 14 de maio de 2020.

2 Bertrand Russell, “A Free Man Worship”, ensaio Publicado em 1903. Facsímile disponível

em <http://bertrandrussellsocietylibrary.org/br-pe/br-pe-ch2.html>, acesso em 14 de maio

de 2020.

3 John G. Messerly, The Meaning of Life: Religious, Philosophical, Transhumanist, and Scientific

Perspectives (Washington: Durant & Russell, 2012), p. 334.

4 Bertrand Russell, citado por Messerly, p. 335.

5 Russell, citado por Messerly, p. 335, itálico acrescentado.

11
LIÇÃO 2
VIDEOAULA

Razão e Fé
Combinam?
Introdução
O falecido professor Júlio Schwantes, doutor pela Universidade
Johns Hopkins, narrou certa vez o triste fim de uma jovem universitária
encontrada morta no campus onde estudava. A seu lado estava uma
garrafa vazia de veneno e o livro E o Vento Levou. Dentro do livro havia
uma nota que dizia:

Sinto ter tido de fazê-lo, mas não posso mais enfrentar a vida. Quando
cheguei à universidade, tinha fé em Deus e era feliz. Mas a universidade
roubou-me a fé; não posso mais enfrentar a vida com suas perguntas não
respondidas, perplexidades e incertezas. Quando me acharem, notifiquem
meus pais e lhes digam que sinto muito por ter-lhes causado ainda essa
dor. Gostaria que me enterrassem no cemitério debaixo dos pinheiros,
cuja graça e beleza tantas vezes admirei, mas nunca pude alcançar.1

Esse mesmo drama continua visivelmente Nietzsche propunha que,


presente na vida de muitos universitários. E rejeitando Deus, o ser
não é somente a fé que é retirada de muitos humano poderia se livrar
jovens. Valores morais e emocionais também de valores que lhes são
acabam indo embora no mesmo cortejo da impostos por acreditar no
morte de Deus anunciada por Nietzsche no fim Todo-Poderoso.2
do século 19.

Estudando juntos
É claro que, quando escreveu as um personagem louco que gritava pelas ruas
palavras “Deus está morto”, Nietzsche não previsões de pânico, horror e decepção. Assim,
queria dizer que a entidade divina tinha uma descida ao mais completo abismo foi
deixado de existir, mas apenas questionar se encenada como possibilidade real. Nietzsche,
ainda era razoável ter fé em Deus e basear porém, tentou ser otimista ao dizer, por meio
nosso comportamento nisso.3 O próprio de seu personagem, que a morte de Deus
Nietzsche descreveu em termos romanceados ofereceria a oportunidade de os seres humanos
a angústia generalizada que se seguiria à construírem uma nova “tabela de valores”,
morte de Deus. A cena é retratada por meio de expressa numa nova paixão pela vida, na qual
Deus não é necessário.
Mais de 100 anos se passaram desde que
Nietzsche escreveu essas palavras, e até hoje
não saímos do abismo. A universidade onde
muitos previram que haveria de começar
o paraíso não tem tornado os jovens tão
conectados com a realidade. Uma evidência
disso é que o uso de substâncias psicoativas
(SPA) lícitas (bebidas alcoólicas, tabaco,
medicamentos com potencial de abuso) e
ilícitas (cocaína, maconha, ecstasy, etc.) entre
jovens universitários é o dobro da taxa da
população em geral.4
Segundo a Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições de Ensino
Superior (ANDIFES), aproximadamente 15%
dos universitários passam por períodos de
depressão em algum ponto do curso, enquanto
a média para jovens de até 25 anos fora da
universidade fica em torno de 4%. Ou seja,
jovens universitários têm de 3 a 4 vezes mais
chances de se matar do que jovens fora da

faculdade, e esse número pode do espírito humano. Já dizia o


ser ainda maior entre alunos das grande educador Anísio Teixeira:
áreas relacionadas com “São as universidades que
a saúde.5 fazem hoje, com efeito, a vida
Isso não se trata de marchar. Nada as substitui.
demonizar a universidade ou Nada as dispensa.
tirar seu mérito na progressão Nenhuma outra instituição

13
é tão assombrosamente útil”.6 Contudo, se O valor da fé
a “educação é o item mais importante na
São muitas as pesquisas na área de saúde
diminuição dos índices de suicídio”, como
mental que demonstram empiricamente o
afirmou Edwin Shneidman, ateu e especialista
valor da fé na vida do indivíduo, reduzindo
em suicidologia, algo está errado com a
a taxas bem baixas os índices de depressão,
educação universitária.7 Por alguma razão,
ansiedade, suicídio, automutilação e uso de
o ambiente acadêmico está potencializando
substâncias nocivas.8 Pessoas religiosas tendem
distúrbios em vez de resolvê-los. Teria o
a ter melhor saúde mental do que as demais
ateísmo metodológico algo a ver com
incluídas no grupo dos descrentes. Isso não
tudo isso?
significa que não haja neuroses entre religiosos
No livro O Dicionário de Suicidas Ilustres,
ou que estes constituam um grupo moralmente
preparado pelo artista plástico J. Toledo,
superior aos demais. Os dados revelam
encontramos uma lista de suicidas famosos que
tendências, não discriminações. Por outro lado,
inclui artistas, escritores, filósofos, médicos e
eles corrigem o senso comum de que os loucos
psicanalistas – pessoas céticas, agnósticas e
estão nas igrejas; e os resolvidos, na academia.
críticas da fé. O próprio J. Toledo, organizador
Desse modo, podemos dizer que não é uma
da obra, cometeu suicídio. Mencionar esse
boa ideia desacreditar a fé dos estudantes.
exemplo não tem como objetivo difamar o
autor nem os descrentes, muito menos tratar o
tema do suicídio com insensibilidade. Quem o
pratica por problemas emocionais é uma vítima,
não um delinquente. Entretanto, não seria esse
livro, somado a certas posturas intelectuais, um
retrato de nossa juventude estudantil drogada,
prostituída e potencialmente suicida?

Pergunta
A Bíblia relata que, após o rei Davi
cometer adultério e assassinato, ele
escreveu poesias de arrependimento e
reconciliação com Deus, como o Salmo
51. Davi conseguiu encontrar em Deus
perdão e equilíbrio emocional. No Salmo
32:3 chegou a declarar: “Enquanto calei
os meus pecados, envelheceram os meus
ossos pelos meus constantes gemidos
todo o dia.” Você consegue compreender
nas entrelinhas desse verso a relação
entre fé e estabilidade emocional?
Explique sua opinião.

14
Fé e ciência combinam?
Antes de prosseguir com a leitura, pense um
pouco na pergunta a seguir.

Pergunta
Um jovem que aspira ao mundo da
intelectualidade teria necessariamente
que renunciar à fé para ser coerente com
suas pesquisas? O que
você acha?

as correntes do despotismo feudal, monárquico


e eclesiástico.
O resultado foi a formação de um
movimento completamente anárquico, cético e
antirreligioso. Como definiu Paulo Bitencourt,
autor do livro Liberto da Religião: O Inestimável
O conceito moderno de universidade Prazer de Ser um Livre-Pensador:
surgiu das antigas escolas religiosas da Idade
Média. Essas instituições eram chamadas de
universitas, termo latino que remete ao coletivo O livre pensamento é o oposto do
de seres ou a coisas que constituem um todo. pensamento dogmático. Logo, nada
Foi daí que se originou o significado primitivo pode ser mais incompatível com o livre
da palavra “universidade” no século 13. Esse pensamento do que crenças religiosas,
termo era usado para se referir ao conjunto pois em nada há mais dogmatismo que
de mestres e estudantes reunidos na mesma na religião. […] Só livres-pensadores são
escola pelos mesmos interesses culturais.9 pessoas verdadeiramente racionais. Seu
Com o passar do tempo, entre conflitos ceticismo não as deixa ser engodadas por
locais, expansões econômicas, nascimento nenhuma ideologia. Não acreditando em
do protestantismo e a Revolução Francesa, coisa alguma desprovida de evidências,
a universidade foi se distanciando do poder livres-pensadores são imunes também
eclesiástico. Era um processo natural, na a todo e qualquer tipo de superstição.10
medida em que o mundo, especialmente as
mentes pensantes, estava cansado dos mandos
e desmandos em nome de Deus. Será que o autor está certo em suas
O surgimento das universidades na Europa afirmações? Os dados oferecidos acima, sobre
possibilitou a disseminação do pensamento o valor da fé, não condizem com essa visão
crítico que acabaria por desencadear o triunfalista. Há muitos problemas psicológicos e
Renascimento e, posteriormente, o Iluminismo. emocionais no universo da incredulidade. E se
Quem estava à frente disso? Os chamados os números podem nos mostrar alguma coisa,
livres-pensadores – embora esse termo, a rigor, o que dizer dos dados apresentados no livro
pertença ao período moderno. Seu objetivo era de Baruch Shalev sobre os mais de 100 anos
propagar uma liberdade de pensamento sem do prêmio Nobel, no qual menciona todos os

15
ganhadores desde 1901 até 2007? Nessa obra, desamparaste?” (Mateus 27:46).
Shalev revela que 89,5% dos laureados eram Não há contradição em Hebreus 11:1. A
fiéis a uma religião, ao passo que somente palavra grega traduzida por “convicção”
10,5% eram ateus ou livres-pensadores.11 é hypostasis, que pode ter uma série de
Portanto, diferente do que diz o senso comum, significados; entre eles, a escritura que
a fé não é o oposto da razão. Se fosse, que alguém recebia ao se tornar dono de
faríamos com gênios como Newton, Copérnico, uma propriedade, mesmo que ainda não
Pascal, Pasteur, Descartes, Dostoievski, C. S. estivesse morando lá. E por que alguém
Lewis e Chesterton? Eles eram intelectuais de se considera dono mesmo sem tomar
primeira linha e crentes absolutos no Deus da posse? Porque a assinatura e o timbre no
Bíblia Sagrada. documento garantem seu senhorio. Hebreus
11 fala de homens e mulheres que morreram
sem ver o cumprimento das promessas
divinas, mas que ainda assim creram nelas,
pois conheciam a autoria Daquele que as
fez. Por isso a morte deles não foi em vão.
Sua redenção os aguarda!

Pergunta
A Bíblia afirma: “Ora, a fé é a certeza de
coisas que se esperam, a convicção de
fatos que se não veem. […] De fato, sem
Universidade de Bolonha, Itália. Fundada em fé é impossível agradar a Deus, porquanto
1088, é considerada a mais antiga da Europa é necessário que aquele que se aproxima
de Deus creia que Ele existe e que Se
torna galardoador dos que O buscam”
É importante dizer que, biblicamente, (Hebreus 11:1, 6). Qual seria então o papel
a fé tem um lado racional, conforme vemos da fé na discussão acima?
em Romanos 12:1, por exemplo. Apesar disso,
ela não é “racionalista”. O racionalismo, ou
“razão sem a fé”, é incongruente porque pensa
abarcar como realidade mundana algo que é
supraterrenal. E ele rejeita o que é supraterrenal
por não poder discursar sobre isso. O mais
sensato seria dar espaço para a percepção dos
atos de Deus, pois, se Ele for real, poderemos
ver Seus rastros na história humana. Logo, a fé
não é racionalista, mas racional e razoável.
O racionalismo é a razão doente, inchada
e intoxicada. Portanto, tome cuidado – essa
advertência também vale para quem tem fé.
Há sempre o risco de elevar uma crença à
crendice, que é uma distorção da fé verdadeira.
É justamente a leitura apressada de
Hebreus 11:1 que leva muitas pessoas a pensar
que a fé é incompatível com a dúvida, mas
isso não é verdade. A distorção da faculdade
de questionar é que gera incredulidade,
desconfiança e neurose. Afinal, se perguntar
fosse uma afronta a Deus, Jesus não teria dito
na cruz: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me

16
Categorias diferentes
Para conciliarmos razão e fé é necessário Conclusão
separar as categorias de investigação. Do
mesmo modo que não se pode usar tubos de
ensaio para investigar o que acontece dentro Aproveite sua mente inquiridora, curiosa
de um buraco negro, não se pode usar um e questionadora para aprender mais sobre
microscópio para investigar a possibilidade Deus e, ao mesmo tempo, questionar os
histórica da ressurreição de Cristo. Saberes fundamentos deste mundo. Faça perguntas do
distintos requerem métodos distintos. Dizer tipo: Se não há Deus, por que existe algo em
como Yuri Gagarin: “Sou ateu porque fui ao céu vez de nada? Se vida sempre provém de vida,
e Não vi Deus lá em cima”, seria o mesmo que como a vida poderia provir do nada? Se não
afirmar: “Não acredito nos átomos porque não há um Designer, como explicar tanta precisão,
os vejo com minha luneta”. ordem e estrutura no Universo? Se não há um
Criador inteligente, quem colocou a informação
genética no DNA?
Dúvidas advindas de mero capricho
conduzem à perdição. Dúvidas sinceras podem
levá-lo a Deus, que deseja seu progresso
e sua salvação. E sabe como recebemos a
salvação? Pela graça mediante a fé. A mesma
fé que desejamos que você exerça. Se crer,
não precisará ter medo do futuro. Afinal, você
e Deus serão sempre a maioria em qualquer
tempo e circunstância. Pense nisso!

Referências
1 Júlio Schwantes, O Despontar de uma Nova Era (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1984), p. 109.

2 “Nietzsche: ‘Deus está morto’”, Super Interessante, disponível em <https://super.abril.com.br/ideias/

deus-esta-morto-nietzsche/>, acesso em 10 de junho de 2020.

3 “Nietzsche: ‘Deus está morto’”, Super Interessante.

4 Renata Cruz Soares de Azevedo, “Uso de Drogas por Universitários”, Ensino Superior, nº 11 (2013),

disponível em <https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/uso-de-drogas-por-universi-

tarios>, acesso em 15 de maio de 2020.

5 Maria Luiza Picasso, “Índice de Depressão é Maior Entre Universitários”, disponível em <http://www.

jornalismounaerp.com.br/2017/02/13/indice-de-depressao-e-maior-entre-universitarios/>, acesso em

15 de maio de 2020. Ver “Ideação Suicida e Depressão em Universitários”, disponível em <http://www.

anacosta.com.br/artigos/ideacao-suicida-e-depressao-em-universitarios/>, acesso em 28 de agosto

de 2017.

6 Anísio Teixeira, Educação e Universidade (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1988).

7 Edwin Shneidman, citado por Paula Fontenelle, Suicídio: O Futuro Interrompido (São Paulo: Geração

Editorial, 2008).

8 Alexander Moreira-Almeida, Harold G. Koenig e Giancarlo Lucchetti, “Clinical Implications of

Spirituality to Mental Health: Review of Evidence and Practical Guidelines”, Revista Brasileira de

Psiquiatria 36, nº 2 (2014), p. 176-182; Harold G. Koenig, “Research on Religion, Spirituality, and Mental

Boa pergunta
Health: A Review”, The Canadian Journal of Psychiatry 54 (2009), p. 283-291; Crystal L. Park e Jeanne

M. Slattery, “Religion, Spirituality, and Mental Health”, em Handbook of the Psychology of Religion

and Spirituality, ed. Raymond F. Paloutzian e Crystal L. Park (Nova York: The Guilford Press, 2013), p.

Agora é você quem faz as perguntas! 540-559.

Pare para pensar e formule as próprias 9 Joaquim de Carvalho, As Universidades. Significado e Modalidade das Origens, disponível em

perguntas sobre essa parte do estudo. <http://www.joaquimdecarvalho.org/artigos/artigo/190-I.-As-Universidades.-Significado-e-modali-

dade-das-origens>, acesso em 10 de junho de 2020.

10 Paulo Bitencourt, Liberto da Religião: O Inestimável Prazer de Ser um Livre-Pensador (Portuguese

Edition), Ebook.

11 Baruch Aba Shalev, 100+ Years of Nobel Prizes & More (Los Angeles, CA: Americas Group, 2010).

17
LIÇÃO 3

Afinal, Deus
VIDEOAULA

Existe?
Introdução

Cedo ou tarde, todo ser humano será ama, não passam de coincidências e acidentes
confrontado pela pergunta: Deus existe? A atômicos reunidos por um acaso inexplicável.
existência de um Deus não é algo que interessa Se assim for, a vida é apenas uma luta
somente às pessoas que creem. A ideia de um desenfreada pela sobrevivência, sabendo que,
Criador supremo, amoroso, que cuida de cada mais cedo ou mais tarde, seremos vencidos. A
um de nós e nos dará a vida eterna tem um morte será a única certeza, e não seremos nada
apelo psicológico muito forte. Uma boa parte mais que “cadáveres adiados que procriam”,
dos descrentes não rejeita a ideia de Deus como disse Fernando Pessoa.
porque ela pareça ruim, mas justamente por Essa é a conclusão a que chegaram
parecer boa demais para ser verdade. grandes nomes da filosofia moderna, boa parte
Imagine por um instante que não haja deles descrentes em Deus (Schopenhauer,
Deus, Céu, vida eterna nem qualquer uma das Nietzsche, Wagner, Tolstói, Zola, Kafka e
promessas bíblicas. Nesse contexto, a história Anatole France). De fato, o ceticismo nos
humana não tem propósito definido. Tudo é empurra para um reducionismo existencial, no
ilusório, passageiro e circunstancial. Tudo o que qual a vida é apenas um hiato entre duas datas:
existe, incluindo você e as pessoas que mais nascimento e morte. Será que existe saída?

Gottfried Wilhelm Leibniz: Obteve seu doutorado


na Universidade de Altdorf com apenas 21 anos
(1667). É provável que Leibniz tenha sido o filósofo
mais genial de seu tempo. Autodidata, aos oito
anos aprendeu sozinho a falar latim e grego, aos 15
já possuía vasto conhecimento de filosofia, moral e
teologia escolástica. Estudou matemática em Paris e
enunciou o cálculo diferencial a partir de seu invento:
“a máquina de fazer operações”
(ancestral da calculadora).
Pergunta
A Bíblia diz: “É necessário que aquele que
se aproxima de Deus creia que Ele existe
e que recompensa os que O buscam”
(Hebreus 11:6, NAA). Por outro lado,
também incentiva a adorarmos a Deus
de maneira lógica e “racional” (Romanos
12:1). Com base nesses versos, você
acha que a fé na existência de Deus é
incongruente com a razão
humana? Explique.

O Novo Testamento apresenta uma série de


textos nos aconselhando a testar ou examinar
criticamente todas as coisas antes de crer
apressadamente nelas (2 Coríntios 13:5; Efésios
4:14; 1 Tessalonicenses 5:21; 1 João 4:1). Se
Estudando juntos compreendemos bem a advertência bíblica,
devemos permanecer alertas e não concordar
com algo apenas porque faz parte da tradição
A falta de piedade dominava na dos mais antigos (Mateus 5:21, 22; Colossenses
Idade Moderna, e tolas justificativas eram 2:8) ou porque um líder influente falou sobre
apresentadas para o sofrimento humano. isso. O apóstolo Pedro nos adverte quanto a
Assim, muitos começaram a questionar a não acreditar em falsos líderes que exploram
justiça de Deus ou negar a existência Dele. Foi as pessoas com historietas emotivas que eles
então que Leibniz propôs uma sistematização mesmos inventaram (2 Pedro 2:1, 3; ver
de ideias racionais que argumentavam a favor Mateus 7:15).
da justiça de Deus e de Seu governo. Nesse
Exercício mental
contexto, o filósofo criou a palavra “teodiceia”,
que acabou sendo absorvida pela filosofia. Esse Reflita sobre as três perguntas a seguir
termo tem origem nas palavras gregas Theos, como se fossem um exercício mental de
que significa “Deus”, e diceia (ou dike), que percepção da realidade e da existência
significa “justiça”. Logo, o termo “teodiceia” se de Deus.
refere a uma forma racional de argumentar a
favor da existência de Deus e de Sua justiça. 1. Por que existe algo em vez de nada?
Outros pensadores também procuraram Desde os antigos sumérios até Einstein,
apresentar uma argumentação racional para pensadores que não haviam sido influenciados
a existência de Deus. Tomás de Aquino, pelas Escrituras judaico-cristãs acreditavam
Descartes, Pascal e Newton foram alguns deles. que o Universo, ou pelo menos as forças
No entanto, é importante destacar que essa siderais que o compunham, existia por toda a
argumentação racional não tinha a ver com eternidade. Assim, viam-se desobrigados do
“provas” laboratoriais. Na verdade, é impossível fardo de lidar com o tema da origem de tudo.
provar que Deus existe. O Todo-Poderoso não Hoje, o consenso mudou. Evidências
é objeto de investigação humana para que esmagadoras forçaram mais de 95% dos
possa ser “analisado”, “testado” e “provado” em cosmólogos a postular uma origem para o
laboratório. Deus não é um elemento químico. Universo que muitos descrevem como a teoria

19
isso veio a existir se do nada, nada se produz?
Allan Sandage, que, por meio da
observação de estrelas distantes, calculou a
idade do Universo e a velocidade em que ele se
expande, disse:

Eu era quase um ateu na juventude. Foi


a ciência que me levou à conclusão de
que o mundo é muito mais complexo do
que podemos explicar. Só posso explicar
o mistério da existência por meio do
do Big Bang. Para as pessoas que querem sobrenatural. […] Acho que é bastante
refletir um pouco sobre tudo isso, o que os improvável que tal ordem tenha vindo
cientistas estão concluindo é que houve um do caos. Tem que haver algum princípio
instante zero, antes do qual não havia nada. organizador. Para mim, Deus é um
Tempo, espaço, gravidade, ondas, som, matéria, mistério, mas ainda é a melhor explicação
tudo era inexistente e, após uma explosão que tenho para o milagre da existência:
inexplicável, tudo veio a existir em sua Por que existe algo em vez de nada?1
beleza e complexidade.
Suposições sobre o que havia antes do
Universo têm sido sugeridas. A teoria das
cordas, das supercordas, dos multiversos e dos
2. Por que há música em vez de ruído?
universos paralelos são algumas das propostas.
Nenhuma delas tem comprovação nem são O astrofísico Hubert Reeves2 se refere a
axiomáticas. Estão mais para especulação uma condição óbvia percebida no Universo:
filosófica do que para elaboração científica. as coisas existem, mas não existem a esmo.
Ironizando algumas dessas propostas, o Há uma ordem no ar, uma organização do
astrofísico Paul Davies escreveu: “Talvez os cosmos que não pode ser explicada por mera
teóricos das cordas tenham tropeçado no santo coincidência. E de onde viria isso? Se já era
graal da ciência. Mas talvez estejam todos inconcebível imaginar que do nada pode surgir
perdidos para sempre na Terra do Nunca.”  tudo, quanto mais acreditar que esse tudo
O ponto em comum entre os diferentes surgiu organizado!
especialistas é que o Universo teve um começo Obviamente, os cientistas dizem que
e, portanto, deveria ter uma causa (isto é, esse assunto está fora do domínio científico.
algo que ocasionou a origem do cosmos). No entanto, suas observações dificultaram o
Para efeito de lógica, essa causa não poderia reconhecimento de um fenômeno misterioso
ser o próprio Universo, mas algo além dele. chamado “ajuste fino”. Acontece que as forças
Também precisaria ser um ente eterno, infinito fundamentais da natureza – a taxa de expansão
e onipresente (pois existia antes do tempo e do Universo no início, a proporção de massas
do espaço sideral), imaterial (pois precede a de prótons e elétrons, etc. – têm valores que
matéria), intencional (pois o Universo parece se enquadram em parâmetros extremamente
incrivelmente planejado) e pessoal (pois fez precisos, necessários para a vida.
surgir sentimento e beleza). Muitos cientistas, sem orientação religiosa,
Ora, todas essas características são mais falam que o “princípio antrópico” é a melhor
coerentes com a ideia de um ser divino, eterno explicação. Ou seja, para eles os valores das
e não causado, conforme descrito na Bíblia, constantes da natureza podem ser mais bem
do que com qualquer uma das propostas previstos quando são calculados com base no
cegas feitas por cosmólogos materialistas que pressuposto de que esses valores coincidem
tentam encontrar uma razão não divina para com a projeção de nossa existência neste
tudo o que passou a existir. Com Newton, por planeta. Em outras palavras, parece que
exemplo, descobrimos que o Universo tem leis; alguém queria que estivéssemos
com Einstein, que tem energia; e com Watson e por aqui e preparou o cenário para
Crick, que tem informação (DNA). Como tudo que viéssemos.

20
do presente, coisas que são ineficazes, porque
esse abismo infinito só pode ser preenchido
por um objeto infinito e imutável, isto é, o
Boa pergunta próprio Deus.”3

Agora é você quem faz as perguntas!


Pare para pensar e formule as próprias
perguntas sobre essa parte do estudo. Pergunta
Compare essa conclusão dos cientistas
com o Salmo 66:5: “Vinde e vede as
obras de Deus: tremendos feitos para
com os filhos dos homens!” Você vê
alguma harmonia nesses discursos?
3. De onde vem a ideia de Deus?
Uma terceira pergunta para refletir na
percepção da realidade e da existência de
Deus é: De onde veio essa ideia? Em todas
as culturas, por mais avançadas ou primitivas
que sejam, há um conceito local a respeito de
Deus. Quem espalhou pelos povos a noção de
divindade? Isso nos faz concluir que a tradição
a respeito da existência divina é, no mínimo,
tão antiga quanto à humanidade que, desde Conclusão
seus primórdios, tem o costume de adorar
religiosamente um ser superior. Refletir sobre as três perguntas feitas acima
Ninguém nasce ateu; as pessoas se nos ajuda a fortalecer a racionalidade da fé,
tornam ateias. Por isso, é sensato admitir mas não nos leva necessariamente à conversão.
que, psicologicamente falando, a crença é um É necessário admitir que somos carentes de
sentimento primário e natural de todos os seres Deus para poder, de fato, ir ao encontro Dele.
racionais. O ateísmo é algo que vem depois, por É a sede, e não o conhecimento bioquímico da
diferentes circunstâncias na vida do indivíduo. água, que nos leva a ansiar por uma fonte. Por
O próprio Freud admitiu que nascemos isso, o reconhecimento de Deus deve conduzir
com a carência de um pai cósmico e universal, a um relacionamento com o divino. Não basta
mas não detectou a razão dessa carência. concluir racionalmente que Ele existe, é preciso
Agostinho declarou: “Oh Deus, Tu nos criaste aceitar Seu chamado e vencer o orgulho e as
para Ti mesmo, e nosso coração estará inquieto emoções que nos prendem, deixando que Ele
até que encontre repouso em Ti.” Karl Rahner, nos abrace como aquilo que realmente somos:
famoso teólogo do século 20, resolveu dar Seus filhos queridos. Pense nisso!
um colorido psicológico à máxima agostiniana
e perguntou: “Afinal, por que o coração se
encontra inquieto?”
Parafraseando Blaise Pascal, se “há um
vazio com forma de Deus no coração humano”, Referências
por que não supor que haja o correspondente
divino, pronto para preencher nossa carência 1 Entrevista a John Noble Wilford, “Sizing up the Cosmos: An Astronomers Quest”, New York Times, 12

existencial? Pascal escreveu: “O que seriam de março de 1991, seção C, p. 10.

essa ganância e essa impotência que clamam 2 Hubert Reeves, Atoms of Silence: An Exploration of Cosmic Evolution (Boston, MA: Massachusetts

atrás de nós, senão a certeza de que o ser Institute of Technology, 1984).

humano alguma vez experimentou uma 3 Blaise Pascal, Pensées, edição de Sellier, nº 181.

felicidade verdadeira, da qual agora somente


traz a marca e o rastro de toda uma vida? E
isso ele tenta em vão preencher, usando tudo
o que o rodeia, procurando por coisas que
estão ausentes, por uma ajuda que não obtém

21
LIÇÃO 4

Qual é o
VIDEOAULA

Tamanho
de Deus?
Introdução
Após refletir sobre as perguntas “Por que
existe algo em vez de nada?”, “Por que há Xenófanes coincide com o conceito judaico-
música em vez de ruído?” e “De onde vem a cristão de um Deus inimitável, incomparável e
ideia de Deus?”, estudadas em nossa última singular. Ou seja, não há nada na natureza que
lição, algumas pessoas podem ter concluído possa ser usado como paralelo exato do ser
que Deus existe e que Ele deseja Se relacionar de Deus.
com Suas criaturas. Surge, então, outra Xenófanes de Cólofon (560-478
pergunta: “Qual é o tamanho de Deus?” Afinal, a.C.) foi um dos principais filósofos
Deus pode ser medido? da era pré-socrática pertencentes
Do Éden à Grécia, encontramos figuras à escola eleática. Xenófanes
como Xenófanes (560-478 a.C.), que rejeitava propôs uma cosmologia que,
o mito e as descrições religiosas da divindade. ao mesmo tempo em que se
Num texto citado por Clemente de Alexandria, colocava como filosofia, criticava
Xenófanes teria dito: “Se os bois, os cavalos e temas dogmáticos da religião
os leões tivessem mãos ou pudessem desenhar politeísta da Grécia.
com elas e criar coisas como o ser humano as
cria, os cavalos e os bois descreveriam a feição
de seus deuses e desenhariam os corpos deles Pergunta
como as próprias formas, isto é, como bois e
cavalos. […] Os etíopes dizem que seus deuses Veja a retórica divina no livro do
são de nariz achatado e negros, enquanto os profeta Isaías: “Com quem vocês vão
trácios dizem que são pálidos e de Me comparar? Quem se assemelha
cabelo ruivo.”1 a Mim?, pergunta o Santo. Ergam os
olhos e olhem para as alturas. Quem
criou tudo isso? Aquele que põe em
Estudando juntos marcha cada estrela do Seu exército
celestial, e a todas chama pelo nome.
Tão grande é o Seu poder e tão
Para Xenófanes, Deus teria de ser alguém imensa a Sua força, que nenhuma
além e acima da moralidade grega, que não delas deixa de comparecer!” (Isaías
tivesse forma humana, não pudesse morrer 40:25, 26, NVI). Como você analisa
nem nascer (por ser eterno) e que não essas perguntas feitas pelo próprio
interviesse nos negócios da humanidade. O Deus? Justifique sua resposta.
mesmo autor, porém, aceitava que houvesse
um controle divino no Universo, ainda que
fosse para sustentar sua permanência. Em
um aspecto, pelo menos, o pensamento de
que existe. Estima-se que a energia escura
componha cerca de 70% do Universo, enquanto
a matéria escura comporia 27%.
O tamanho da Terra em relação ao
Universo observável é o equivalente ao
tamanho do vírus da gripe em relação ao
Sistema Solar! Partindo dessa realidade e
considerando a possibilidade de haver um Deus
criador de todas as coisas, é perfeitamente
compreensível a retórica bíblica de Romanos
11:33 e 34: “Ó profundidade da riqueza, tanto
Quando questionamos o tamanho de da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Deus, logo buscamos uma comparação: Quão insondáveis são os Seus juízos, e quão
“Maior do que o quê?” Essa pergunta nos leva inescrutáveis, os Seus caminhos! Quem, pois,
a reflexões mais profundas, especialmente conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o
quando estudamos teologia e metafísica. Deus Seu conselheiro?” A resposta é óbvia: ninguém!
não é coisa nem teorema, muito menos objeto.
O mistério de Deus
Portanto, descrições espaciais e temporais são
difíceis de ser aplicadas a Ele. Não existe um Diversas partes da Bíblia descrevem Deus
espaço que comporte a Deus (2 Crônicas 2:6; como um ser incomparavelmente misterioso
6:18). É aqui que começa o dilema humano para (ver Isaías 45:15; Eclesiastes 11:5; 1 Coríntios
falar sobre a Divindade. 2:7; Efésios 3:9; Colossenses 2:2). Muitos, em
virtude disso, negam a proposta dizendo
Deus pode ser medido?
se tratar de um Deus incoerente, que numa
Nós pensamos em termos dimensionais. passagem é imutável e em outra Se arrepende;
Logo, a pergunta a respeito do tamanho de que parece saber tudo, mas pergunta o tempo
Deus esbarra em nossa percepção dimensional todo; que Se apresenta como único, mas
e exige conceitos que não se aplicam a é confessado em três pessoas (Pai, Filho e
essência da Divindade, tais como tamanho, Espírito Santo). Pensa-se no 3 da Trindade
cor, peso e limites. É fato que nos últimos como valor numérico ao qual podemos
100 anos o conceito de dimensões ficou mais acrescentar o número 2, a fim de obtermos
sofisticado, de modo que os físicos falam de 5 como resultado. Não se trata de um dado
11 ou mais dimensões, e os matemáticos de aritmético passivo de se fazer contas. É um
infinitas possibilidades e até mesmo de objetos numeral divino, misterioso, sem comparação
com número fracionário de dimensões. No na natureza. Por isso é preciso explicar que
dia a dia, porém, nossos sentidos continuam a palavra “mistério” não se refere a algo
baseados nos princípios da geometria de impossível de existir, mas a algo que nossa
Euclides, o mais famoso matemático dos mente não consegue compreender.
tempos greco-romanos (século 3 a.C.). Assim
como os antigos, ainda vivemos num mundo Um quebra-cabeça mental
tridimensional, repleto de objetos compridos, Quando dizemos que “Deus existe”,
largos e profundos. É natural, portanto, que estamos usando uma linguagem aproximada,
transfiramos essa percepção para imaginar pois existir significa etimologicamente “algo
tudo o que existe no Universo e até mesmo o extraído de algo”. Como Deus não teve causa
ser de Deus. nem começo no tempo, o mais correto seria
Sinônimos de dimensão seriam área, afirmar que Ele simplesmente é por toda
volume, espaço, extensão e superfície. Agora a eternidade. Nem mesmo o exercício do
imagine que o Universo observável tem um raciocínio pode ser aplicado a Ele, uma vez que,
diâmetro superior a 93 bilhões de anos-luz. conhecendo o fim desde o princípio, Deus não
Em outras palavras, mesmo que você atingisse chega à conclusão de nada; Ele simplesmente
a incrível velocidade da luz (300 mil km/s) sabe. Nunca houve um momento em que Deus
precisaria de 93 bilhões de anos para cruzar tivesse apenas a ciência do problema, mas
essa superfície sideral de uma ponta a outra. não da solução. Isso negaria Sua
Tudo isso, porém, representa apenas 3% do onisciência absoluta.

23
saberemos o que Ele é em essência.
A Bíblia também promove a
Pergunta democratização do mistério de Deus. A ideia
de Sua grandeza, eternidade e infinitude já
Caso haja mesmo um Deus Criador estava prevista na mais antiga tradição judaico-
do Universo e tudo o que ele contém cristã (Gênesis 21:33; 1 Reis 8:27; Salmo 90:2;
(tempo, energia, matéria e espaço), Sua Atos 17:24-28). Não existe uma elite humana
essência tem de ser muito maior do que que tenha acesso ao todo do Ser divino ou que
tudo que a mente humana sequer seja abarque o conhecimento pleno de Sua pessoa.
capaz de imaginar. Essa essência tem de Nem mesmo os doutores, mestres e bacharéis
ser infinita e eterna. Uma vez que Deus é em Teologia podem se dizer especialistas
infinito, existiria um espaço que O em Deus!
comportasse? Será que Ele teria Logo, quando se pergunta: Podemos
dimensões corpóreas que envolvam uma conhecer o ser de Deus? A resposta é um
delimitação de contornos indicando sonoro “não”! Mas isso não deve desanimar
começo e fim? Ou seria mais adequado os que estão em busca do conhecimento
dizer que Deus é um ser cujo centro está divino. Como disse o rabino Abraham Heschel:
em toda parte e a periferia não está em “Estamos mais perto de Deus quando fazemos
parte alguma? Faça uma análise dessas perguntas do que quando pensamos que temos
questões. Como o discurso de Salomão, as respostas.”2
registrado em 1 Reis 8:27, pode lhe ajudar
O Deus que Se revela com máscaras
nessa análise? Reflita por
um instante. Como resolver o dilema de um Deus
incognoscível? Simples: Deus Se revela. É o
velamento de Sua glória ofuscante que permite
uma contemplação parcial, porém suficiente,
de Seu ser. “Ninguém jamais viu a Deus, o
Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem O revelou”, afirma João 1:18. Segundo o
entendimento bíblico, para haver uma relação
real das criaturas com esse Deus criador, Ele
precisou – de alguma forma – ficar pequeno o
bastante para que pudesse ser compreendido
Deu um nó em sua cabeça? É para pela mente e emoção humanas.
dar mesmo! Um ser divino, absoluto, com Martinho Lutero fazia uma distinção entre
as caraterísticas necessárias para ser o o Deus revelatus e o Deus absconditus. O
Criador de tudo o que existe, não pode primeiro seria a manifestação do segundo num
demandar melhorias, aprendizado, pontos modo diminuto que suas criaturas pudessem
vulneráveis, aperfeiçoamento. No entanto, reconhecê-Lo e contemplá-Lo. Ou seja, Deus
se Nele não há mudanças, como então Se é essencialmente tão grandioso que, sem
movimenta? Ou estaríamos falando de um ser uma adequação de Sua grandiosidade à
permanentemente imóvel como propuseram os pequenez da criatura, jamais poderíamos nos
filósofos da escola eleática há 2.500 anos? relacionar com Ele. As pessoas geralmente
Todo esse quebra-cabeça mental serve usam máscaras para esconder o rosto. Deus, no
para mostrar que muitas negações populares entanto, usa uma máscara para Se revelar, pois,
acerca de Deus estão muito aquém do devido à Sua grandeza, a forma mais natural de
que a Bíblia anuncia de Seu ser. Deus é fazer isso é Se escondendo.
essencialmente insondável! Como diria Karl Essa “máscara” é uma metáfora teológica
Barth, “somente Deus pode falar de Deus”. Por para falar da revelação de Deus aos seres
isso, teólogos escolásticos chegaram a propor, humanos. Um fenômeno que se traduz no fato
inspirados em Aristóteles, que houvesse uma de o ser divino agir algumas vezes como se
abordagem “negativa” de Deus, pois a religião não tivesse todo o poder e esplendor que de
e a teologia só podem falar daquilo que Ele fato tem. Portanto, ainda que saiba de tudo, Ele
não é – levando em consideração que nunca abre mão de Sua onisciência – note que não

24
a perde – e honestamente faz perguntas aos o Criador do Universo, fez algo que parecia
seres humanos; ainda que Ele esteja em toda impossível. Ele veio à Terra em forma humana
parte, vem e vai com Seus filhos; e, ainda que na pessoa de Jesus Cristo (Gálatas 4:4).
tenha tudo, pede e faz súplicas. Somente assim
poderia fazer contato conosco

O piloto e o aquário Boa pergunta


O ato de Deus abrir mão de Seus atributos
seria como um piloto, dono de uma aeronave, Agora é você quem faz as perguntas!
que, tendo um amigo com fobia de voos, deixa Pare para pensar e formule as próprias
seu monomotor no hangar e caminha em solo perguntas sobre essa parte do estudo.
firme com o colega. Note, ele não perdeu seu
avião, muito menos sua habilidade de voo.
Afinal, se é mesmo o dono do aparelho, tem
autoridade para usá-lo ou não quando bem
entender. Assim, sua caminhada com o amigo
na terra não é fingida, embora ele tivesse
condições de fazer o trajeto voando sobre
as nuvens.
Philip Yancey usa sua experiência com um
aquário para expressar esse princípio revelador
de Deus. Veja como ele descreve: Conclusão
Descobri que gerenciar um aquário de
água salgada não é uma tarefa fácil. Eu Os gregos, especialmente Heráclito, já
precisava operar um laboratório químico apontavam para um logos mediador entre
portátil para monitorar os níveis de o Universo e seu princípio gerador (que
nitrato e o teor de amônia. Bombeava Aristóteles chamaria de Causa primeira). O
vitaminas, antibióticos, medicamentos à apóstolo João, chegando à cidade de Éfeso,
base de sulfa e enzimas, além de filtrar onde séculos antes viveu Heráclito, lançou mão
água através de fibras de vidro e carvão. do mesmo elemento, o “logos”, e explicitou o
É de se pensar que meus peixes ficariam que já havia sido dito, acrescentando o que não
gratos. Nem tanto. Quando minha sombra fora contado: “O mundo foi feito por intermédio
se aproximava do aquário para alimentá- Dele, mas o mundo não O conheceu” (João 1:10).
los, eles mergulhavam para esconder-se Então o mesmo princípio divino que criou a
na concha mais próxima. Eu era grande matéria se tornou humano, o oleiro se tornou
demais para eles, e minhas ações um vaso da própria coleção. Assim, Deus
incompreensíveis. Eles não sabiam que possibilitou a criação de uma autobiografia
minhas atitudes eram misericordiosas. divina, utilizando personagens reais, numa
Mudar essa percepção exigiria uma história real. “E o Verbo Se fez carne e habitou
forma de encarnação. Eu teria que me entre nós” (João 1:14). Pense nisso!
tornar um peixe e “falar” com eles em
uma linguagem que compreendessem;
o que era impossível para mim.3

Referências
Isso é impossível para o autor, mas não
para alguém dotado de onipotência. Segundo a 1 Clemente de Alexandria, Miscelâneas, v. 110 e VII, 22. Quanto às duas últimas frases, ver Diels-Kranz,

interpretação cristã, a Divindade – que embora Die Fragmente der Vorsokratiker, Xenophanes, fragmentos 15 e 16.

seja uma em essência é plural em pessoas – 2 “Heschel Quotes – God, Man, Prayer, Life and Death – and Video”, disponível em <https://sunwalked.

possibilitou que a segunda pessoa assumisse wordpress.com/2007/07/21/heschel-quotes-god-man-prayer-life-and-death-and-video/>, acesso em

a forma humana para revelar Deus às Suas 18 de maio de 2020.

criaturas. De acordo com as Escrituras, Deus, 3 Philip Yancey, O Jesus que Eu Nunca Conheci (São Paulo: Vida, 2001).

25
LIÇÃO 5

Por Que
VIDEOAULA

Jesus e Não
Pitágoras?
Introdução
Tempos atrás, um belo texto sobre Jesus Cristo,
atribuído a James A. Francis, ficou famoso sob
o título “Uma Vida Solitária”. Veja o que esse
texto diz:

Eis um homem que nasceu num


vilarejo quase desconhecido, filho de
uma mulher humilde. Cresceu numa
outra vila. Trabalhou numa carpintaria
até completar 30 anos e, então, durante
três anos, foi um pregador itinerante.
Nunca teve um lar. Nunca escreveu
um livro. Nunca ocupou uma posição
de destaque. Nunca teve uma família.
Nunca foi à faculdade. Nunca pisou
numa cidade grande. Nunca esteve a
mais de 300 quilômetros do lugar onde
nasceu […]. Nada tinha para apresentar
como credenciais além de Si mesmo […].
Ainda jovem, a maré da opinião
pública se voltou contra Ele. […] Seus
executores sortearam entre si a única
coisa que Ele possuía na Terra: uma
capa. Quando morreu, foi tirado da
cruz e sepultado no túmulo que um
amigo, movido por piedade, lhe cedeu
Dezenove longos séculos se
passaram, e hoje Ele é a figura central
da humanidade o líder da marcha do
progresso. […] Todos os exércitos que já se
puseram em marcha, todas as esquadras O texto é maravilhoso, mas nem todos
que já foram construídas, todos os pensam assim. Há mais de 100 anos, Bertrand
parlamentos que já existiram e todos os Russell escreveu em seu livro, Por Que Não
reis que já reinaram, tudo isso junto não Sou Cristão, que “historicamente a existência
tem afetado a vida do homem sobre a de Cristo é duvidosa. E, se realmente existiu,
Terra de um modo tão poderoso como não sabemos nada sobre Ele. Portanto, não me
o tem feito aquela única vida solitária.1 preocupo com o aspecto histórico.”2
Estudando juntos
Contrariando a desconfiança de Russell, a o primeiro a desenvolver a noção de que os
maioria dos historiadores modernos – inclusive números são a essência da realidade. Assim,
agnósticos, ateus e não cristãos – admite sem se quisermos compreender a estrutura da
reservas que Jesus existiu. A historicidade Dele natureza e o funcionamento das coisas, basta
também é confirmada por autores clássicos da explorarmos as relações entre os números. Ou
antiguidade, tais como Suetônio, Tácito, Flávio seja, a Pitágoras é atribuído o título de “pai
Josefo e Plínio. da ciência”. O único problema é que quase
Um livro que balançou o mundo da crítica certamente nada disso é verdade.
nos últimos anos foi a obra de Bart Ehrman
Pitágoras existiu?
sobre a existência de Jesus. Nela, o autor – que
além de historiador e especialista em crítica Diferente do que as investigações
textual é definitivamente cético em relação a históricas revelaram sobre Jesus, uma
milagres, à divindade de Cristo e a coisas do considerável parte dos acadêmicos nutre
gênero – surpreendeu o público ao fazer uma sérias dúvidas quanto à existência histórica
defesa vigorosa da realidade histórica de Jesus. de Pitágoras. A ideia dominante, mesmo entre
Reunindo evidências de dentro e fora da Bíblia, aqueles que o apontam como um personagem
Ehrman abordou os principais problemas que que realmente existiu no passado, é a de que
envolvem a historicidade de Jesus e confrontou esse filósofo fora apenas o criador de uma seita
com veemência o que chamou de argumentos no sul da Itália que especulava sobre a mística
míticos sobre o assunto. dos números, mas que nunca apresentou uma
descrição científica da realidade.
É hora de honestamente se perguntar
Pitágoras de Samos (570- que critérios Russell usava para negar a
490 a.C.) foi um dos grandes historicidade e genialidade de Jesus Cristo ao
matemáticos e filósofos pré- mesmo tempo que enaltecia a figura lendária
socráticos da Grécia antiga. do pensador grego. Seria um arrazoado lógico
A ele foi atribuída a criação ou puro preconceito?
e uso dos termos “filósofo” e Amenizando a questão, o físico Marcelo
“matemática”. Fundou a Escola Gleiser, que também é ateu, escreveu um
Pitagórica, a qual tinha um comentário citando parte de seu livro A Dança
caráter místico-filosófico, e criou do Universo, no qual afirma que a lenda [sic]
o “Teorema de Pitágoras”, ao e o suposto legado de Pitágoras podem ser
observar as pirâmides do Egito. resolvidos da seguinte maneira: “O poder
de um mito não está em ele ser falso ou
verdadeiro, mas em ser efetivo. Não é tão
importante se foi ou não Pitágoras o criador
Voltando a falar de Bertrand Russell, é dessa relação entre os números e a natureza.
curioso que o aclamado filósofo do ceticismo O mito inspirou grandes pensadores, de
não apenas duvidou que Jesus houvesse Copérnico e Kepler a Einstein. E influencia, até
existido, mas também sugeriu alguém mais hoje, na busca por uma descrição unificada da
apropriado para ocupar o lugar Dele na história: realidade física baseada na geometria.”5
Pitágoras. Nas palavras de Russell: “Pitágoras
foi, intelectualmente falando, um dos homens Teorema x evangelho
mais importantes e influentes da história.”3 Existe uma grande diferença racional entre
O entusiasmo de Russell chega a tal ponto a proposta cristã e algumas proposições do
que ele diz que, tanto em sua sabedoria quanto ceticismo. Segundo o arrazoado de Gleiser,
em sua tolice, Pitágoras [e não Jesus Cristo] não há problemas em basear a geometria e
mereceria a atenção do homem moderno.4 E a ciência moderna num mito ou numa figura
Russell não estava sozinho, muitos eruditos lendária, mas isso não vale para a racionalidade
de seu tempo acreditavam que Pitágoras foi do cristianismo. Se Jesus não existiu ou se Ele

27
não foi aquilo que os evangelhos disseram,
então tudo que se relaciona com a fé cristã
Pergunta
ficaria sem sentido. Em outras palavras, o
Se o Jesus narrado nos evangelhos não
teorema de Pitágoras sobrevive sem Pitágoras,
existiu, então, como disse o apóstolo
mas o evangelho não sobrevive sem
Paulo, somos os mais infelizes de toda
Jesus Cristo.
a humanidade (1 Coríntios 15:19). Em
Não basta dizer que Jesus existiu. É
sua opinião, por que Jesus desperta
preciso considerar também se Ele realmente
essa admiração? Em que ela está
foi como a Bíblia O descreve. Quanto a isso,
fundamentada?
podemos citar a conclusão de outro cético
que, aliás, foi o mentor intelectual de muitas
ideias de Bertrand Russell. Trata-se de John
Stuart Mill, um dos mais influentes pensadores
e economistas britânicos do século 19. Mill teve a mente que O criou, pois certamente merece
uma compreensão diametralmente oposta à de nossa devoção mais do que qualquer outro
seu pupilo. Ele afirmou que Jesus era a maior gênio da humanidade.
prova de Sua existência. Confuso? Nem tanto. O
Louco, mentiroso ou divino?
que Mill queria dizer é que, se Jesus Cristo não
existisse, nem os discípulos nem nós teríamos Jesus fez afirmações muito sérias
condições de inventar um personagem assim. a respeito de Si mesmo, as quais não
Em seu livro Natureza: A Utilidade da podem passar despercebidas. Ele assumiu
Religião e Teísmo encontramos a seguinte nota prerrogativas dignas apenas de um Deus:
a respeito de Jesus Cristo: perdoou pecados; declarou ser o caminho, a
verdade e a vida; o único acesso a Deus Pai.
Ou seja, Ele foi o único homem que, em sã
Não adianta dizer que Cristo, conforme consciência, reivindicou ser Deus. Existem
retratado nos evangelhos, não foi apenas três alternativas para definir um sujeito
um personagem histórico e que não assim: louco, mentiroso ou divino. Nos dois
sabemos o quanto do que é admirável primeiros casos, seria um dever desmenti-lo; no
a respeito Dele foi sobreposto pela último, uma afronta não adorá-lo. C. S. Lewis,
tradição de Seus seguidores. […] em sua obra Cristianismo Puro e
Afinal, quem dentre Seus discípulos, Simples, escreveu:
ou dentre Seus prosélitos, seria capaz
de inventar os ditos atribuídos a Jesus
ou de imaginar a vida e o caráter Estou tentando impedir que alguém
revelados nos evangelhos? Certamente repita a rematada tolice dita por muitos
não foram os pescadores da Galileia; a Seu respeito: “Estou disposto a aceitar
certamente não foi o apóstolo Paulo, Jesus como um grande mestre da moral,
cujo caráter e idiossincrasias eram de mas não aceito a Sua afirmação de ser
um tipo totalmente diferente; menos Deus.” Essa é a única coisa que não
ainda os primeiros escritores cristãos, devemos dizer. Um homem que fosse
nos quais nada é mais evidente do que somente um homem e dissesse as coisas
o bem que havia neles. Tudo derivou, que Jesus disse não seria um grande
como eles sempre professaram que foi mestre da moral. Seria um lunático – no
derivado, a partir de uma fonte superior.6 mesmo grau de alguém que pretendesse
ser um ovo cozido – ou então o diabo
em pessoa. Faça a sua escolha. Ou esse
Vale a pena completar essa ideia com o homem era, e é, o Filho de Deus, ou não
pensamento de C. S. Lewis, um ex-ateu que passa de um louco ou coisa pior. Você
expressou esse conceito de maneira mais pode querer calá-Lo por ser um louco,
poética: “Seria preciso alguém maior do que pode cuspir Nele e matá-Lo como a
Jesus para inventar Jesus. A causa sempre será um demônio; ou pode prosternar-se a
maior do que o efeito.” Em outras palavras, se Seus pés e chamá-Lo de Senhor e Deus.
Cristo não existiu, devemos descobrir qual foi Mas que ninguém venha, com paternal

28
condescendência, dizer que Ele não popular. Ou os evangelistas eram péssimos em
passava de um grande mestre humano. marketing, ou descreveram a história como ela
Ele não nos deixou essa opção, e não quis realmente aconteceu: “Escândalo para os judeus,
deixá-la. […] Agora, parece-me óbvio loucura para os gentios” (1 Coríntios 1:23).
que Ele não era nem um lunático nem
um demônio, consequentemente, por
mais estranho, assustador e inacreditável
que possa parecer, tenho que aceitar
Boa pergunta
a ideia de que Ele era e é Deus.7
Agora é você quem faz as perguntas!
Pare para pensar e formule as próprias
perguntas sobre essa parte do estudo.
Neste ponto, é importante dizer que há
uma considerável lista de autores não cristãos
que jamais esconderam sua admiração por
Jesus Cristo. São nomes de peso como Ernest
Renan, Lord Byron, Rousseau, Spinoza e Geza
Vermes. Mesmo sem acreditar que Jesus seja
Deus ou o Messias, ainda assim demonstram-se
fascinados pela vida e pelos ensinos Dele.
Conclusão
Evidências do Jesus histórico
Jesus de Nazaré teve mais impacto na
Alguns poderiam supor que o Jesus dos história do mundo do que qualquer outa
evangelhos nunca existiu, mas que foi fabricado pessoa que tenha caminhado sobre a face
pela Teologia. Isso, contudo, não faz o menor da Terra. Num livro publicado em 2013 pela
sentido por várias razões: Universidade de Cambridge, Steven Skiena,
• O estilo literário escolhido para escrever a professor de Ciência da Computação na Stony
trajetória de Jesus não é o de uma lenda ou Brook University, e Charles B. Ward, engenheiro
biografia de propaganda. Não é à toa que da equipe de classificação do Google,
os autores bíblicos usam o termo técnico criaram um complexo programa de cálculos e
“evangelho”, ou euangelion em grego, que quer algoritmos. Após avaliarem mais de 800 mil
dizer “boa-nova” oficial, histórica real, como nomes, concluíram com ajuda de computadores
aquela que marcou o nascimento de Augusto que Jesus é, com efeito, o personagem mais
César, conforme foi destacado no calendário de influente da história humana.
Priene. Ora, se intelectuais ateus aplaudem
• Os discípulos judeus jamais estariam Pitágoras pelo efeito de suas ideias, deveriam
predispostos a criar um ser humano divino. fazer muito mais por Jesus, pois o efeito da
Isso iria contra sua identidade cultural. A vida Dele é maior do que qualquer teorema
encarnação do Filho de Deus chocou a tradição postulado por um obscuro filósofo do
judaica e, como acentuamos antes, aqueles passado. Jesus é grande demais para passar
pescadores rudes da Galileia não tinham despercebido. Pense nisso!
conhecimento formal de mitologia grega
para criar um personagem, meio judeu meio
helênico, que pudesse ser ao mesmo tempo Referências
humano e divino.
• O quadro de um Jesus que tomou crianças 1 James Allan Francis, The Real Jesus and Other Sermons (Filadélfia, PA: Judson Press, 1926), p. 123,

ao colo, perdoou uma mulher acusada de 124.

adultério, confortou outra que não tinha marido 2 Bertrand Russell, Why I Am Not a Christian (Londres: Routledge, 1957), p. 16.

e ensinou a amar os inimigos pode parecer 3 Bertrand Russell, A History of Western Philosophy (Nova York: Simon & Schuster, 2007), p. 29.

politicamente correto para os moldes de hoje, 4 Russell, A History of Western Philosophy, p. 29.

mas não eram para a sociedade daquela época. 5 Marcelo Gleiser, O Mito Pitagórico, disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/

• A agonia de Jesus no horto, admitindo que fe2707200804.htm>, acesso em 21 de maio de 2020.

temia a morte, o vexame da cruz e o abandono 6 John Stuart Mill, Essays on Nature: The Utility of Religion and Theism (Londres: Longmans, 1874), p. 114

diante dos inimigos não parecem em nada com 7 C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples, 3ª ed. (São Paulo: Martins Fontes, 2009), p. 69, 70.

a construção de um herói aos moldes do gosto

29
LIÇÃO 6

Ressurreição de
VIDEOAULA

Cristo: Mito ou
Realidade?

Introdução
Em 2009, um fato curioso foi notícia em supersticiosas que os frequentadores
João Pessoa, Paraíba. Uma aposentada de 66 de igrejas.
anos havia falecido, mas os filhos esperaram O ponto que abre nosso diálogo é a
três dias para sepultar a mãe, porque ela legítima pergunta que se faz diante de uma
dissera que ressuscitaria. Como a mulher era história como essa. Por que seria ingênuo
muito religiosa, o fato não demorou para atrair crer naquela senhora, sendo que nossa fé é
uma multidão de curiosos e, pasmem, crentes. baseada nas palavras de um camponês da
Sim, havia algumas pessoas que pensaram Galileia que disse que ressuscitaria? E existe
que ela realmente pudesse ressuscitar. Até um agravante: não há ninguém vivo para
afirmaram que, mesmo após três dias do óbito, confirmar a veracidade do relato ocorrido
o corpo não enrijeceu nem cheirou mal. há quase 2 mil anos.

Estudando juntos
Uma pesquisa feita pelo sociólogo Jeffrey
Haddan com 7.400 ministros protestantes
revelou que de 13 a 51% dos entrevistados,
dependendo da filiação religiosa, afirmavam
É óbvio que a suposta ressurreição não acreditar mais na ressurreição física de
não aconteceu, e a religiosa acabou sendo Jesus. Isso se torna curioso ao nos depararmos
sepultada como todo mundo. Também é com um número considerável de pessoas não
fato que, numa comunidade de cristãos com religiosas dispostas a acreditar naquilo que
maior escolaridade, dificilmente haveria gente teólogos tentam desmentir.
disposta a acreditar que aquela senhora No caso do Reino Unido, por exemplo,
realmente ressuscitaria – embora, a rigor, enquanto 25% dos religiosos adultos diziam
os números nos revelem que pessoas não não acreditar na ressurreição de Cristo, 9% dos
religiosas tendem a ser quatro vezes mais que se autodenominavam descrentes
supunham que algo realmente estranho
aconteceu naquela manhã de domingo (1%
dos céticos chegou a dizer que achavam
perfeitamente possível supor que Jesus
ressuscitou literalmente dentre os mortos).
É verdade que houve teólogos renomados
como Friedrich Schleiermacher, Otto Pfleiderer
e Rudolf Bultmann que empreenderam a
construção de uma teologia cristã sem a crença
na ressurreição corpórea de Cristo. Contudo,
é impossível harmonizar sua proposta com a
kerygma, isto é, o anúncio que encontramos
no Novo Testamento. O apóstolo Paulo
foi consistente em dizer: “E, se Cristo não
ressuscitou, é inútil a nossa pregação, como
também é inútil a fé que vocês têm” (1 Coríntios
15:14, NVI).

Pergunta
A maior parte das pessoas religiosas,
independentemente de sua tradição,
não acredita que suas crenças são
invalidadas porque o fundador de
sua religião morreu e não ressuscitou.
Como, então, podemos entender a
afirmação de Paulo em 1 Coríntios
15:14? Quais são as consequências para
o cristianismo ao se negar a
ressurreição de Jesus?

Descrentes da ressurreição
As objeções não vêm de hoje. Aulo
Cornélio Celso, enciclopedista médico do 2º
século, ridicularizou a ressurreição no livro
A Verdadeira Doutrina. Porfírio, que viveu no
3º século, escarnecia dos evangelhos e, em
especial, da ressurreição. Caminhando para a
Idade Moderna, deparamo-nos com o ceticismo
de Baruch Spinoza, que viveu no século 17, e
David Hume, que viveu no século 18. Ambos
desacreditaram a possibilidade de haver
milagres, sendo Hume o mais contundente. Em
síntese, ele dizia que milagres não podem ser
críveis porque, além de ferir as leis naturais,
são acontecimentos isolados e raros. Se fossem
verdadeiros, deveriam se repetir mais vezes ou
até mesmo serem comuns como o raiar de
um dia.

31
Devemos dizer, de modo simples, que a
conclusão de Hume sobre “ferir as leis naturais”
resultava da ideia de um Universo mecânico
com leis que valiam para qualquer parte do David Hume (1711-
cosmos, o Universo de Aristóteles e Newton. 1776) foi um filósofo,
Hoje sabemos que não é bem assim. A física historiador e ensaísta
quântica, por exemplo, revelou a existência de britânico nascido
leis que colocam até o Universo de Einstein de na Escócia que se
cabeça para baixo. Ou seja, Deus não precisaria tornou célebre por seu
necessariamente quebrar leis para realizar um empirismo radical e
milagre. Bastaria usar leis desconhecidas ceticismo filosófico.
por nós.
Sabemos também que a afirmação de arqueologia confirma a existência de lugares e
que os milagres são recusáveis por serem até mesmo pessoas mencionadas no processo
ocorrências únicas não faz sentido, pois, se dirigido contra Jesus, tais como: Pilatos, Simão
assim fosse, nenhum físico poderia aceitar a Cireneu, Herodes Antipas e Caifás.
teoria do Big Bang. Afinal, os que apresentam A outra questão a ser considerada é o
essa teoria como uma explicação para a origem que os historiadores chamariam de “atestação
do Universo dizem que tudo começou com um múltipla”. O evento é testemunhado por
evento único e extraordinário. Do nada, tudo fontes independentes? Esse conceito
surgiu de repente. Isso teria acontecido numa seria mais ou menos assim: se pessoas em
explosão que durou apenas 1 tempo de Plank, situações diferentes confirmam o mesmo
o que equivale a 1 segundo dividido por 10 evento, a chance de ele ter ocorrido aumenta
elevado a 43. Quer milagre maior do que esse? exponencialmente. Veja, não se trata de dizer
E ele não se repete no dia a dia. que mula sem cabeça é real porque pessoas
que nem se conhecem falam a respeito dela. O
Probabilidade da ressurreição de Jesus
critério é mais técnico do que isso.
Quais seriam as evidências que apontam Também não é o caso de se esperar
para a veracidade da ressurreição de Jesus? uma enxurrada de documentos que falem
Em primeiro lugar, devemos entender que de Jesus. A difícil circulação de livros – que
eventos históricos são estudados com métodos eram artigos de luxo no 1º século – somada à
apropriados à investigação histórica. Eu não série de incêndios que destruíram importantes
posso usar exames periciais modernos para bibliotecas (Cartago, Jerusalém, Roma e
estudar o assassinato de Júlio César, que Alexandria) fizeram com que muitas coisas
ocorreu há mais de 2 mil anos. Então esqueça se perdessem, principalmente documentos
essa ideia de DNA, exame de balística ou CSI. escritos. Hoje, historiadores e arqueólogos
Fique tranquilo. Isso não significa que estamos trabalham, em alguns casos, com fragmentos
completamente às cegas em relação ao que de história.
aconteceu num passado que não temos mais Ao aplicarmos o princípio da “atestação
acesso. Nenhum pesquisador sério diria isso. múltipla” à Bíblia Sagrada, devemos considerar
Existem também alguns fatos que se o fato de que existem três sinóticos, o
tornaram, se não consenso, pelo menos evangelho de João, as epístolas paulinas e as
a posição da maioria dos estudiosos e gerais narrando o mesmo evento a partir de
historiadores, até mesmo entre aqueles fontes independentes. O próprio fato de haver
que não acreditam em Deus e Jesus Cristo. pequenas incongruências nos relatos bíblicos,
Os fatos são os seguintes: Jesus realmente diferente do que se possa imaginar, é
existiu, foi condenado por Pôncio Pilatos e algo positivo.
morreu crucificado, deixando Seu túmulo Pergunte a um bom jurista como funciona
misteriosamente vazio. Isso, repito, é quase um a psicologia do testemunho. Ele lhe explicará
consenso na academia. algo mais ou menos assim: é possível que duas
Há várias fontes não cristãs da antiguidade testemunhas falem a verdade e ainda assim
que atestam a historicidade de Jesus: Flávio divirjam entre si – as culturas e conceitos
Josefo, Tácito, Suetônio, Luciano de Samósata, pessoais são agregados à pessoa. Toda
Plínio, o Moço, e o Talmude. Além disso, a testemunha capta apenas parcialmente o

32
Depoimento de Flávio Josefo

Alguém pode dizer que isso é pouco. E


Pergunta fora do cristianismo? Alguma fonte mencionou
a ressurreição de Jesus? Bem, do grupo de
Pense no episódio em que Pilatos autores não cristãos que mencionei acima,
perguntou a Jesus: “Que é a verdade? quero destacar o depoimento de Flávio
Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes Josefo, um autor judeu que tinha cidadania
disse: Eu não acho Nele crime algum” romana. Além de confirmar a existência de
(João 18:38). Ou seja, Pilatos não esperou Jesus e a veracidade da morte Dele, Josefo
a resposta de Jesus. O que você acha disse que, segundo relatos da época, Jesus
que poderia ter acontecido na vida de havia aparecido vivo aos apóstolos, que nunca
Pilatos se ele tivesse parado para ouvir? mudaram sua versão dos fatos.
O que teria dito Jesus? Quais são as O depoimento de Josefo é tão forte que
implicações para os que se negam a alguns julgaram ser bom demais para ser
compreender a verdade? verdade. Disseram que se tratava de uma
interpolação feita por algum escriba cristão.
Contudo, o texto em questão aparece com
pequenas variantes em todas as cópias
manuscritas que temos de Josefo, inclusive
numa tradução feita para o árabe. Sua
fato (o cérebro seleciona as informações fraseologia e escrita também estão de acordo
ocorridas). Não existem depoimentos com o estilo literário encontrado nos textos
idênticos. Testemunhos iguais revelam que as do autor.
testemunhas foram orientadas – a prova não
Resultados do evento
é segura para lastrear a decisão, o que não
demonstra que seja mentirosa. Outra coisa que devemos levar em conta é
Logo, o fato de um evangelista narrar o resultado de um evento. Como um físico diz
que as mulheres viram dois anjos e outro saber que o Big Bang aconteceu se ninguém
evangelista afirmar que elas viram apenas um, estava lá para testemunhá-lo? Com base nos
tudo isso, matizado com elementos centrais resultados que vemos no Universo observável.
para os quais não há contradição (o dia do fato, Seria como encontrar um cachorrinho com
a hora aproximada, o local, os que estavam medo de tudo e concluir que ele certamente
presentes), mostra que os depoimentos sofreu algum trauma que explicaria
foram espontâneos e não orientados. Aliás, seu comportamento.
somente o fato de os evangelhos afirmarem Pequenos eventos podem ou não resultar
unanimemente que foram mulheres as em grandes consequências – como uma bituca
primeiras pessoas que viram Jesus ressuscitado de cigarro que provoca um incêndio. Grandes
já indica a forma despretensiosa do relato, eventos, porém, inevitavelmente causarão
pois o testemunho de mulheres não tinha valor grandes resultados. A explosão dos aviões
social, muito menos jurídico. Eles não teriam no World Trade Center trouxe consequências
outra razão para contar o episódio de Maria não somente para os Estados Unidos, mas
Madalena encontrando-se com Cristo se isso também para o restante do mundo. Assim,
não tivesse, de fato, sido assim. se a ressurreição de fato aconteceu, esse foi
um evento extraordinário. Isso justificaria
a mudança de pensamento num grupo de
judeus e sua respectiva coragem de morrer
afirmando que Jesus ressuscitou. Mais ainda, o
surgimento do cristianismo se torna claramente
compreensível. Esse seria um resultado
esperável depois de uma experiência como a
de ver Jesus ressuscitado.

33
Formação de mitos
charlatões, mas visionários ingênuos. Rudolf
Mitos geralmente demoram para se formar Bultmann disse que a ressurreição era simbólica
de maneira sistemática. Alguns estudiosos, por e que Jesus revivera na pregação
exemplo, acreditam que o mito de Hércules dos apóstolos.
surgiu da história de algum soberano em Argos Enfim, são muitas propostas, e algumas
que foi mitificada possivelmente séculos mais até mesmo hilárias. Uma delas supunha que os
tarde. Ou seja, para que um evento histórico discípulos foram ao túmulo errado; outra afirma
comum se transforme em mito é preciso que Jesus tinha um irmão gêmeo que morreu
passar um tempo considerável, a fim de que em Seu lugar e, quando este apareceu, julgaram
se consolidem o embelezamento do fato e a que houvesse ressuscitado. E tudo isso foi dito
transmissão oral. Isso permite que as possíveis na academia!
testemunhas não estejam mais vivas para O mais interessante é que essas versões
desmentir os exageros. alternativas propostas por estudiosos liberais
O historiador A. N. Sherwin-White provaram ser refutações umas das outras.
argumenta – baseado nos estudos que fez Eram hipóteses competitivas. Schleiermacher
em Homero – que por mais forte que seja e Heinrich Paulus atacaram várias teorias
a tendência de se produzir um mito, sua da visão subjetiva. Strauss refutou a teoria
formação não é automática. Para o historiador, do desmaio com sua análise criteriosa. Até
“a passagem de duas gerações ainda não é mesmo os que defendiam a tese da lenda,
o bastante para fazer com que uma lenda se como Otto Pfleiderer, admitiram que não
espalhe e passe a ser vista como poderiam explicar completamente os dados da
verdade histórica”.1 ressurreição de Jesus.
Ora, os mais antigos relatos da ressurreição Com base nisso, voltamos à proposta de
de Cristo vêm das cartas de Paulo, que datam Hume. Ele dizia que, quando duas ou mais
apenas 20 anos após a morte de Jesus. Esse hipóteses concorrem para a explicação de um
é um tempo muito reduzido para se produzir evento, devemos procurar a mais lógica. E ele
um mito. Paulo ainda sugeriu um exercício está certo, não em suas conclusões, mas no
de investigação a quem quisesse se certificar método proposto. Podemos ainda acrescentar
dos fatos. Bastava perguntar a mais de 500 a esse conceito uma fala do famoso detetive
testemunhas que ainda estavam vivas Sherlock Holmes, personagem de Arthur Conan
(1 Coríntios 15:6). Nenhum mito é formado Doyle: “Uma vez eliminado o impossível, o
dessa forma! que restar, não importa o quão improvável
seja, deve ser a verdade.” Em outras palavras,
Versões alternativas para o túmulo vazio
considerando que os próprios críticos se
Voltando à questão do túmulo vazio, refutam entre si, percebemos que a versão
um dado pacificamente aceito no mundo bíblica da ressurreição ainda é a mais plausível
acadêmico, chama-nos a atenção o fato de e harmônica com todos os fatos que dispomos.
que teólogos e historiadores europeus, não Isso é tão verdade que o rabino Pinchas
aceitando que Jesus realmente houvesse Lapide e o filósofo Antony Flew, dois
ressuscitado, sentiram-se na obrigação de respeitadíssimos intelectuais da academia,
apresentar uma versão alternativa para o que foram confrontados com alguns argumentos
teria acontecido e o que justificaria o túmulo que você leu neste estudo e mudaram de
vazio e a reação dos discípulos. opinião, passando a acreditar na historicidade
Hermann Samuel Reimarus disse que os da ressurreição de Jesus. Lapide, diga-se de
discípulos, para manter o status que tinham passagem, nunca se tornou cristão; e Flew,
como pregadores, roubaram o corpo e apesar de renegar o ateísmo, não se filiou
espalharam o boato da ressurreição. Friedrich formalmente a nenhuma igreja. A conclusão de
Schleiermacher aprovou a teoria do desmaio, ambos se deu por investigação dos fatos e não
assumindo a visão de que Jesus nunca por qualquer tipo de apelo emocional.
morreu na cruz. David Strauss e Ernest Renan
disseram que as aparições de Cristo eram
“visões subjetivas” (alucinações) da mente dos
discípulos por causa da angústia que sentiram
em virtude da morte do Mestre. Não eram

34
havia ressuscitado era ridículo na época.
Tanto que, quando discursou em Atenas sobre
Pergunta Deus, Paulo chamou a atenção dos filósofos
locais; porém, no momento em que falou da
Veja como Mateus registrou a ressurreição, eles desdenharam dele e deixaram
ressurreição de Jesus (Mateus de ouvi-lo (Atos 17:17-31).
28:1-8). Que elementos culturais Os discípulos, portanto, não inventaram
da época podem ser observados? algo para agradar as massas, pois nem os
Que elementos sobrenaturais foram judeus comprariam essa ideia. Na verdade, se
relatados? Com base nesse relato, que dissessem que Jesus havia cometido suicídio,
conclusões podemos extrair? isso traria menos rejeição no mundo greco-
romano do que dizer que Ele ressuscitara.
Afinal, Sêneca tirou a própria vida, e isso não
foi motivo para rejeitarem seus ensinos.

Boa pergunta
A versão dos discípulos
Agora é você quem faz as perguntas!
Se o relato da ressurreição de Jesus fosse Pare para pensar e formule as próprias
uma propaganda criada pelos discípulos para perguntas sobre essa parte do estudo.
aumentar a adesão de pessoas ao evangelho,
eles certamente teriam alternativas melhores
do que dizer que Jesus havia ressuscitado.
Aliás, para começo de conversa, autores
como Plutarco e Sófocles diziam que um
herói deveria ser alguém que viveu e morreu
gloriosamente.
Logo, se os discípulos quisessem criar uma
visão mais palatável de Jesus, a primeira coisa
seria esconder que Ele morreu crucificado. E Conclusão
não apenas isso. Jamais deveriam dizer que
Ele temeu a morte, deixou a cruz cair, pediu Lembre-se do que disse Pedro: “Porque
água para os romanos e gritou sentindo-Se não vos demos a conhecer o poder e a vinda
abandonado por Deus. Ao contrário, deveriam de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas
mostrar Jesus morrendo gloriosamente como engenhosamente inventadas, mas nós mesmos
Sócrates, que tomou veneno por conta própria fomos testemunhas oculares da Sua majestade”
e ainda brincou com o fato; ou então mostrar (2 Pedro 1:16).
Jesus como Ulisses, que gritou corajosamente, O homem que disse isso morreu
em meio ao mar revolto, dizendo que não crucificado de cabeça para baixo porque
temia a ira dos deuses. Jesus não parece sabia o que estava falando. Ninguém morre
com a imagem de um herói midiaticamente conscientemente por algo que sabe ser uma
construído. O relato de Sua vida é bem mentira. Aliás, ninguém morre conscientemente
diferente do gênero dos mitos greco-romanos. nem por uma verdade – nunca vi alguém
Além disso, quanto ao destino, se os disposto a dar a vida por sua interpretação de
discípulos dissessem apenas que Jesus havia Shakespeare. A não ser que essa verdade seja
morrido, agradariam os estoicos e epicureus; forte demais a ponto de fazer valer a pena
se dissessem que a alma de Jesus havia o martírio. Pense nisso!
transmigrado para outro corpo, conquistariam
os pitagóricos; se dissessem que Jesus havia Referências
ascendido para o mundo das ideias, ganhariam 1 A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (Oxford: Clarendon Press,

os seguidores de Platão. Mas dizer que Jesus 1963), p. xiii.

35
LIÇÃO 7

Podemos
VIDEOAULA

Crer na
Bíblia?

Introdução
Muitas pessoas dizem não confiar na história bíblica por ser
inusitada demais. Milagres, intervenções de anjos e demônios,
aparições divinas; tudo parece muito fantasioso e fantástico
para ser verdade. Mas seria correta essa conclusão? Teríamos
evidências lógicas de que isso realmente aconteceu?
A reivindicação da Bíblia de ser a Palavra de Deus a coloca
numa situação delicada de adoção ou rejeição absoluta. Os
profetas do Antigo Testamento empregaram 130 vezes a
expressão “veio a mim a palavra do Senhor” e centenas de
vezes a expressão “assim diz o Senhor” (por exemplo: Jeremias
16:1; 18:5; Êxodo 4:22; 5:1). O Novo Testamento se refere 51 vezes
ao Antigo Testamento como “Escrituras”, isto é, livros escritos
por homens, mas de origem divina. Sendo assim, podemos
confiar na Bíblia?

Estudando juntos
O que torna a Bíblia especial, acima de
tudo, é o fato de ser a Palavra de Deus. Se
essa premissa for verdadeira, a Bíblia será
inteiramente absoluta; se for falsa, será
inteiramente obsoleta. Não dá para encontrar
um ponto médio entre as opções. Se uma
pessoa afirma com todas as letras que viu
um extraterrestre (ET), ou isso é verdade e,
portanto, deveria ter destaque em todas as
mídias do mundo inteiro; ou é mentira e, por
essa razão, não deveria ocupar a atenção de
ninguém exceto, talvez, de um psiquiatra.
Paulo mencionou que “toda a Escritura
é inspirada por Deus” (2 Timóteo 3:16)”. A
palavra grega theopneustos, traduzida como
“inspirada”, literalmente significa “sopro de
Deus”. Isto é, Deus “soprou” a palavra na
mente de Seus porta-vozes, os profetas.
Isso não significa que Deus tenha escrito
diretamente a Bíblia nem usado os profetas
como “taquígrafos” de Sua mensagem. O
processo foi outro. Deus revelou as ideias
ou os acontecimentos, e os profetas, sob
a inspiração/supervisão do Espírito Santo,
tiveram a liberdade para relatá-los de acordo
com suas experiências e estilos. Em outras
palavras, a Bíblia é a voz de Deus com sotaque
humano (2 Pedro 1:21).
Problema de ordem axiológica
Você confia ou não na Bíblia? Alguém

poderia, por exemplo, objetar assim: “Religiosos


acreditam na Bíblia por causa de Jesus, mas
acreditam em Jesus por causa da Bíblia. Isso
não leva a lugar algum.” Com certeza, o fato de
um livro assumir ser a Palavra de Deus não o
torna tal coisa. Por outro lado, se um livro for
mesmo a Palavra de Deus, obrigatoriamente
afirmará ser a Palavra de Deus.

Pergunta
Mesmo considerando a Bíblia numa
lógica que vai além do pensamento
utilitarista, como veremos a seguir,
é necessário refletir sobre dois
fatores: a utilidade e a relevância
das Escrituras Sagradas. Segundo o
apóstolo Paulo, qual é a utilidade da
Bíblia? Você acha que os ensinos dela
ainda são relevantes e podem ser
aplicados? (Ver 2 Timóteo 3:16)

37
A Bíblia tem de ser autoritativa para ser
coerente. O fato de alguém requerer autoridade Aristóteles (384-322 a.C.).
policial não o torna policial. No entanto, se for Importante filósofo grego,
um policial de verdade, obrigatoriamente agirá discípulo de Platão, que
com a autoridade correspondente da função. influenciou muito a
Nesse exemplo, porém, existe um problema de cultura ocidental.
ordem axiológica. Isso porque o policial precisa
de um agente externo, superior a ele mesmo,
no caso, o Estado, que lhe confira a autoridade
para ser um legítimo representante da lei. Logo, afirmação. Portanto, vamos analisar cada uma
para que a Palavra de Deus tenha autoridade, das premissas e verificar se elas procedem.
precisamos de um agente externo que a Sobre a possibilidade de Deus existir, na
convalide. Mas quem convalidaria Deus? lição 3 de nosso estudo já foi discutido esse
Em relação à Bíblia, isso é bem complicado tema, de modo que repetir isso nesta lição seria
porque demandaria um agente neutro, multiplicar argumentações. Para que milagres
independente, superior e externo a Deus que possam acontecer eventualmente, basta existir
validasse Sua Palavra. Contudo, como Deus um Deus todo-poderoso; e então eles
é, em tese, a autoridade máxima e absoluta, serão possíveis.
quem ou o que poderia validar Sua autoridade? Sobre a confiabilidade do Novo Testamento,
A resposta é óbvia: nada nem ninguém! podemos dizer que uma série de historiadores
E, se houvesse esse padrão autoritativo de peso, incluindo muitos não cristãos, validam
para confirmar a Palavra de Deus, apenas a historicidade, se não de tudo, pelo menos da
criaríamos outro círculo, pois esse padrão maior parte do que é descrito ali. Acadêmicos
também demandaria outro padrão maior que o judeus como Geza Vermes, por exemplo,
confirmasse e assim por diante ad infinitum. admitem – mesmo sem crer na ressurreição
de Jesus – que as histórias da crucifixão, do
túmulo vazio e da ida das mulheres ao local na
Aristóteles: silogismos e a lógica perfeita
manhã de domingo
Talvez Aristóteles nos ajude a resolver esse são verdadeiras.
dilema. Como você sabe, o filósofo argumentou Outro exemplo é Sir William Ramsay, um
sobre a lógica perfeita que, mesmo não sendo acadêmico cético, especialista em história
ciência, é um raciocínio válido apresentado greco-romana, que refez uma pesquisa de
em forma de silogismo, isto é, a proposição campo para provar que Lucas estava errado
de duas ou mais premissas que se conectam em suas narrativas históricas. Depois de
conduzindo a uma conclusão verdadeira.1
Assim, partindo do pressuposto de
que é possível que Deus exista, como visto
anteriormente, surgem as premissas:

• Se Deus existe, então milagres podem


acontecer.
• Se o Novo Testamento for historicamente
confiável, então os milagres citados nele
ocorreram.
• Se Jesus declarou ser Deus no Novo
Testamento, e o texto for historicamente
confiável, então Jesus realmente é Deus.
• Se Jesus for Deus, o que ensinou será a
palavra de Deus.
• Logo, a Bíblia é, de fato, a Palavra de Deus.

O que precisamos então é evidenciar


essas premissas de modo que a conjunção “se”
possa ser retirada da frase, tornando-a uma

38
recolher fontes e evidências e visitar os locais
mencionados, deixou de ser cético. Ramsay
mudou de ideia e colocou o evangelho e o
livro de Atos no topo dos livros mais bem
documentados da história antiga.2
Poderíamos acrescentar vários nomes a
essa lista, e não se trata de argumento por
autoridade, mesmo porque não nego o fato
de também existirem muitos acadêmicos
que não creem na Bíblia. O propósito dessa
apresentação é dizer que mesmo os que não
creem na historicidade da Bíblia deveriam pelo
menos lhe dar o beneplácito da dúvida ou
um lugar no mundo acadêmico, considerando
que muita gente de peso acredita na Bíblia.
A academia está cheia de especialistas que
discordam entre si, mas não seria ético um
erudito esconder de seus alunos que há colegas
que pensam diferente dele.
Sobre a terceira premissa, a qual afirma que foi o único que curou doentes perdoando-
Jesus é Deus, é importante destacar que não lhes os pecados, algo que somente Deus
se trata apenas de provar os feitos miraculosos pode fazer. Também foi o único que cumpriu
de Jesus, até porque outras pessoas também profecias messiânicas do Antigo Testamento e
podem fazer isso – seja por ilusão, truque ou ressuscitou dentre os mortos como prova final
força diabólica. Aliás, nem mesmo milagres de que tinha poder sobre a morte
verdadeiros, isto é, provindos de Deus, podem (João 10:17, 18).
provar que o realizador daquelas obras seja Mas será que o texto que narra tudo
um ser divino. A razão disso é que, de acordo isso foi transmitido de maneira correta? O
com a Bíblia, muitos profetas também fizeram exame detalhado da chamada “crítica textual”
milagres, e eles não eram deuses. tomaria muito mais espaço do que temos aqui.
Para que Jesus fosse mesmo o Filho de Contudo, vou deixar, à guisa de informação,
Deus, algumas coisas tinham de ser únicas a opinião de uma das maiores autoridades
em Seu ministério. O diferencial está no que do mundo em crítica textual, Bruce Metzger.
Ele declarou a respeito de Si mesmo. Jesus A opinião dele, é claro, resulta de profunda
investigação e muitas evidências que, por
questão do tempo, não mencionaremos
neste estudo. Metzger afirmou: “Podemos
confiar imensamente na fidelidade do material
que chegou até nós [do Novo Testamento],
principalmente se o compararmos a qualquer
outra obra literária antiga.”3
Sendo as premissas 1, 2 e 3 legitimamente
plausíveis, a 4 se sustenta naturalmente a
partir das anteriores. Jesus só pode ser Deus
e, como tal, o que disse era a Palavra de Deus.
Porém, note que, quando Jesus viveu neste
mundo, o Novo Testamento ainda não existia,
de modo que o Antigo Testamento, plenamente
validado por Jesus, constituía as Escrituras
de Seu tempo. Logo, a Bíblia – Antigo e Novo
Testamento – é a legítima Palavra de Deus,
conforme a dedução expressa na premissa 5.

39
harmoniosa. Seus 1.189 capítulos e 31.173 versos
não se contradizem. Ela não é uma antologia
de textos, mas um cânon uniforme. Como
explicar essa unidade (ou perfeição) a não
ser admitindo a existência de um único Autor,
no caso Deus, que agia por trás dos muitos
autores humanos?
 A Bíblia é estável. Num mundo em contínua
mudança, cheio de vozes discordantes, a
Bíblia é uma âncora segura e um fundamento
inabalável. Ela é estável não somente no
conteúdo e nos princípios, mas também na
própria existência. Apesar de tão combatida,
a Bíblia nunca sumiu do mapa. E olha que
nenhum outro livro foi tão perseguido, proibido
e destruído. Sua preservação foi um verdadeiro
milagre. Tudo indica que o próprio Deus a
preservou ao longo dos séculos e a conservou
livre de contaminação.
Em 1947, vários manuscritos do Antigo
Testamento datados de 150 a 200 a.C.
foram encontrados na região do Mar Morto,
confirmando a fidelidade do texto que temos
Evidências que legitimam a Bíblia como hoje. Os manuscritos do Novo Testamento ou
Palavra de Deus de partes dele espalhados pelos museus da
Embora tenhamos muito a nos aprofundar Europa e América ultrapassam 5.800 cópias.
no assunto, não há espaço nesta lição para Esses manuscritos tornam, de longe, a Bíblia
expô-lo exaustivamente. Portanto, vamos o texto mais documentado de todas as obras
apenas listar e resumir outras evidências que escritas na antiguidade, desde a criação da
legitimam a Bíblia como Palavra de Deus: escrita até a invenção da imprensa.
Isso mostra que as verdades de Deus não
 A Bíblia é relevante. Sua mensagem é mudam ao sabor de modismos. Aliás, como
indispensável, pois nos mostra de onde viemos disse Isaías há cerca de 2.700 anos, “seca-se a
e para onde vamos. As Escrituras descrevem erva, e murcha a flor; mas a palavra de nosso
com impressionante acuidade a natureza Deus subsiste eternamente” (Isaías 40:8, itálico
humana e apresentam a resposta para os acrescentado).
nossos mais profundos anseios. Seu conteúdo  A Bíblia é verdadeira. Seu relato é
é útil para pessoas de todos os tempos e confirmado por muitos achados arqueológicos.
lugares. É claro que há coisas que devem Artigos acadêmicos, pesquisa de campo, teses
ser contextualizadas. Não vamos apedrejar doutorais e livros já foram produzidos aos
alguém porque faziam isso no antigo Israel, montes, evidenciando a confiança arqueológica
mas os princípios que jazem por trás das leis na historicidade do livro sagrado.
bíblicas valem para todo o sempre. É como a  A Bíblia revela o futuro. Veremos isso mais
diferença entre moral e ética. Moral é apenas detalhadamente em uma das lições seguintes.
a atualização histórica e contextual de um Por ora, basta dizer que a história é uma
princípio ético maior do que ele mesmo. descrição dos fatos que já aconteceram; e a
Negar a ética porque a aplicação moral parece profecia bíblica, o registro de fatos muito antes
desatualizada não é uma decisão inteligente. O de eles ocorrerem. Somente Deus realmente
mesmo se dá com os princípios bíblicos. conhece e revela o futuro, e Ele escolheu
 A Bíblia é coerente. Embora tenha partilhar certos eventos, como pode ser visto
sido escrita ao longo de 1.600 anos por nas profecias de Daniel 2 e 8. Nesses capítulos
aproximadamente 40 autores, que viveram encontramos um esboço antecipado da história
em contextos históricos e culturais diferentes, mundial, no qual são indicados vários impérios
a Bíblia apresenta uma visão de mundo que ainda nem haviam chegado ao poder.

40
Boa pergunta
Agora é você quem faz as perguntas!
Pare para pensar e formule as próprias
perguntas sobre essa parte do estudo.

Conclusão
Antony Flew é considerado um dos
maiores filósofos ateus do fim do século 20.
Seu nome é respeitado em pé de igualdade
com Sartre e Lévi-Strauss. Dizer que um dia ele
aceitaria a existência de Deus e abriria margem
para crer na Bíblia era algo tão insensato
quanto dizer que o papa um dia se tornaria
muçulmano. Mas Flew reconsiderou seu
ceticismo e disse, numa entrevista a Habermas:
“A Bíblia é um eminente livro que merece ser
lido. […] A ressurreição de Jesus tem muito
mais evidências que qualquer outro milagre
 A Bíblia tem a solução para a humanidade. mencionado na História.”4
O tema central das Escrituras é o infinito Se a razão humana é tão poderosa
amor de Deus manifestado na vida e morte de como pensavam os iluministas, por que não
Cristo em resposta à miséria humana. Jesus é conseguiram mandar Deus e Seu velho
o grande personagem anunciado no Antigo livro embora? Pense nisso!
Testamento e revelado no Novo Testamento.
E, se Cristo era mesmo quem dizia ser, toda a
Bíblia está validada, pois Ele a aceitava como
Palavra de Deus. Por outro lado, se a Bíblia não
fosse o que declara ser, então nada do que ela
apresenta, inclusive Jesus, seria digno
de crédito. Referências
 A Bíblia tem o poder de mudar vidas.
Outros livros informam, mas a Bíblia 1 Aristóteles afirma que um silogismo deve ter ao menos duas premissas, mas não descarta a

transforma. Quando as pessoas a leem, possibilidade de haver mais de duas. Exemplo: “todos os homens são mortais; os gregos são homens;

encontram uma ajuda sobrenatural para mudar logo, os gregos são mortais.” Uma discussão a respeito disso pode ser encontrada no capítulo 2 de

maus hábitos e iniciar uma nova vida de pureza, Jonathan Lear, Aristotle and Logical Theory (Cambridge: Cambridge University Press, 1980).

bondade e amor ao próximo. Veja nos presídios 2 William M. Ramsay, St. Paul: The Traveller and the Roman Citizen (Grand Rapids, MI: Baker Book House,

quantas pessoas deixaram a criminalidade 1962).

por lerem a Bíblia e quantas o fizeram por ler 3 Bruce Metzger, citado por Lee Strobel, Em Defesa de Cristo: Um Jornalista Ex-Ateu Investiga as Provas

a obra de um ateu como Richard Dawkins. da Existência de Cristo (São Paulo: Editora Vida, 2001).

Depois de fazer isso, tire as próprias conclusões 4 Gary R. Habermas, “My Pilgrimage from Atheism to Theism: A Discussion Between Antony Flew and

sobre qual das obras oferece um melhor Gary Habermas”, Philosophia Christi (2004), disponível em <http://www.philchristi.org/library/articles.

impacto social. asp?pid=33&mode=detail>, acesso em 21 de maio de 2020.

41
LIÇÃO 8
VIDEOAULA

De Onde
Viemos?

Introdução

Uma enquete lançada pela Academic Book


Week, do Reino Unido, considerou o livro A
Origem das Espécies, de Charles Darwin, o
texto acadêmico mais influente dos últimos
tempos.1 De fato, Darwin mudou o pensamento
contemporâneo ocidental, influenciando desde
a biologia até à física.

A princípio, Darwin não disse quase nada


sobre o lugar do ser humano em sua teoria
evolutiva. Apenas escreveu que “a luz será
lançada sobre a origem do homem e sua
história”.2 As implicações, no entanto, eram
claras: os seres humanos tinham evoluído de
outros animais primitivos.
Em 1871, Darwin publicou o livro A
Descendência do Homem, no qual defendeu
que seres humanos e macacos teriam um
ancestral comum e que todas as nossas
características evoluíram numa sequência
de passos graduais. A inteligência seria fruto
da seleção natural e de mudanças no estilo
de vida. Nossos ancestrais teriam habitado
originalmente em árvores, mudando-se
gradualmente para o chão. Segundo essa
hipótese, com o tempo, eles passaram a andar
Charles Robert Darwin (1809-1882) foi um naturalista, sobre dois pés, liberaram suas mãos para
geólogo e biólogo britânico. Estabeleceu a ideia de manipular objetos e, posteriormente, para fazer
que todos os seres vivos descendem de um ancestral ferramentas. Isso teria sido o ponto de partida
em comum. para que a inteligência começasse a evoluir.
Estudando juntos

O modelo evolutivo de Darwin deixou de


fora muitos pontos ainda não explicados. Um
deles é a origem da linguagem humana. Como
nossos ancestrais passaram a falar? Darwin
até ensaiou uma proposta de que a linguagem
humana tenha origem no canto dos pássaros,
a quem o homem primata supostamente
começara a imitar. Isso teria originado uma
protolinguagem musical, ideia que dificilmente
encontrará defensores hoje em dia.
Quase dois séculos se passaram, e
nenhuma proposta a respeito das relações
entre a fala e a evolução humana foi
convincente a ponto de unir os acadêmicos.
É claro, as sugestões continuam. Porém,
um grupo de linguistas liderado por Noam
Chomsky, uma das maiores autoridades no
assunto, divulgou uma nota dizendo que “as
perguntas mais fundamentais acerca das
origens e da evolução de nossa capacidade
linguística permanecem tão misteriosas
quanto antes”.3
O problema que divide linguistas e
biólogos se torna mais complicado quando
mergulhamos no âmago da essência humana.
Não se trata de dizer que a origem da
linguagem é um mistério para a evolução; ela é
uma impossibilidade.
Richard Leakey, um dos mais afamados
paleoantropólogos evolucionistas, disse acertadamente que, “quando nos concentramos
em nossas origens, rapidamente focamos
na linguagem. […] De muitas maneiras, é
a linguagem que nos faz sentir humanos.
Vivemos em um mundo de palavras […]. Nossos
pensamentos, o mundo de nossa imaginação,
nossas comunicações e nossa rica cultura
são tecidos nos teares da linguagem. […] É a
linguagem que separa os humanos do resto
da natureza.”4

43
Linguagem ou pensamento?
É aqui que começa o problema. Como
nosso cérebro, uma substância material, Pergunta
produziu algo abstrato como os pensamentos?
E mais, considerando que pensamos com Leia Gênesis 3:8 a 10 e Salmo 33:6 e 9.
palavras e por meio das conexões realizadas De acordo com esses textos, como se
entre elas, devemos nos perguntar o que veio deu a primeira interação necessária
primeiro, a linguagem ou o pensamento? Se foi para o desenvolvimento da
a linguagem, que ato espontâneo teria dado linguagem humana?
origem a ela se ainda não teríamos evoluído
o pensamento? Se foi o pensamento, em que
idioma nossos ancestrais pensaram se ainda
não existia nenhuma palavra?

Teoria do período crítico


A questão em pauta se torna ainda mais
complicada quando levamos em consideração
a teoria do período crítico. Segundo essa
teoria, a criança estaria biologicamente
apta para adquirir um idioma somente até a
puberdade. Após esse período, sem que haja
uma interação com outros falantes, é impossível
para ela adquirir qualquer conhecimento
linguístico, mesmo que tenha todo o aparato
No famoso romance Mogli, o Menino Lobo, físico que propicia a fala.
de Rudyard Kipling, conta-se que um menino Isso quer dizer que, sem estímulo externo,
indiano adotado por uma loba cresceu sem que são as interações verbais, o ser humano
jamais usar uma só palavra humana, até que foi não consegue, por si mesmo, desenvolver
encontrado e reintegrado à sociedade vitoriana. uma linguagem. Logo, quando se pergunta:
Uma narrativa interessante, mas cientificamente “Como os primeiros seres humanos falaram?”,
absurda. não é suficiente dizer apenas “não sabemos”;
Existem vários casos reais de crianças é preciso reconhecer que houve alguma
selvagens, criadas entre animais e sem contato interação falante que os estimulasse. Caso
com seres humanos. Um desses casos foi contrário, pelos dados levantados até agora,
apresentado no filme L’Enfant Sauvage [A eles não falariam.
Criança Selvagem], lançado em 1970 pelo
cineasta François Truffaut. Mas nenhum caso se Deus e o princípio da causalidade
assemelhou ao enredo de Mogli, nem de longe. É claro que a inclusão de Deus numa
Por outro lado, eles suscitaram o interesse proposta sobre as origens evoca protestos e
da psicologia cognitiva e da linguística por críticas ácidas de pesquisadores céticos. Não
levantarem uma questão inquietante: Aquelas obstante, a exclusão do axioma divino torna
crianças poderiam pensar como os demais o modelo incompleto se levarmos em conta o
seres humanos sem conhecer palavras? princípio da causalidade, que é um dos temas
Nos diferentes casos, ficou evidente a mais em voga em filosofia e ciência.
dificuldade de aquelas crianças encontrarem David Hume foi o autor da máxima de que
qualquer tipo de ajustamento social. De modo “a causalidade é o cimento do Universo”5. De
geral, concluiu-se que a falta de palavras as fato, são as conexões causais que ligam entre
impediu de desenvolverem um raciocínio si eventos discretos ou não testemunhados,
abstrato humano. como a origem da linguagem humana. Se a

44
investigação científica é aberta a diferentes descendam tanto répteis quanto aves.
possibilidades, por que descartar potências Todas as constatações da evolução
metafísicas de seu modelo? ocorrem por meio da biogênese, de forma que
Certa vez, um cristão disse a um essa teoria explica apenas o surgimento dos
evolucionista ateu que o dia que visse aviões seres como são conhecidos atualmente. Já
surgindo espontaneamente a partir do o surgimento dos primeiros seres vivos e da
ajuntamento aleatório de peças, sem nenhum primeira forma de vida humana não possuem,
engenheiro que os projetasse, começaria a cientificamente falando, uma resposta
considerar a possibilidade de pássaros terem convincente. Nem mesmo a origem do Universo
surgido do mesmo jeito. O ateu lhe respondeu foi cientificamente comprovada, admitiu o
que a diferença era que os pássaros são físico e ateu Marcelo Gleiser: “Quando você
organismos vivos, aviões não. ouve cientistas famosos fazendo declarações
Esse conceito somente piora as como a cosmologia explicou a origem do
coisas, pois seria preciso menos esforço Universo e de tudo, e nós não precisamos mais
imaginativo para pensar na coincidente junção de Deus, isso é um completo nonsense, porque
de peças que formam algo reconhecível nós não explicamos a origem do Universo
do que acreditar que a vida procede de não em absoluto”.6
vida. Há anos que a teoria da abiogênese e da
Como surgiu a vida no Universo?
geração espontânea se mostraram um fracasso
no meio científico. Sugestões para a origem do Universo não
As anotações de Darwin têm seu valor ao faltam. Uma delas, a teoria da evolução das
tratar das mudanças que os seres adquiriram moléculas, sustenta que, em tempos remotos,
ao longo do tempo, gerando modificações elementos químicos presentes na Terra teriam
orgânicas e até mesmo variações na mesma originado moléculas orgânicas que, por sua
espécie. Isso está perfeitamente demonstrável vez, originaram os primeiros seres vivos. Para
nas ciências naturais, como no caso das outros, os defensores da panspermia cósmica,
mariposas salpicadas que mudaram de cor esses elementos podem ter vindo do espaço,
pela exposição a agentes poluentes, ou de maneira que a vida terrestre é, na verdade,
nas bactérias que se tornam resistentes ao extraterrestre.
tratamento antibiótico. Mais complicado, no Seja como for, o que essas abordagens
entanto, são os pressupostos de que seres fazem é empurrar o problema para trás ou para
de uma espécie em isolamento reprodutivo o alto e, novamente, postular o já descartado
podem, por evolução, se transformar em outra fenômeno abiogênico, que supostamente teria
espécie de modo que, de um mesmo ancestral, ocorrido uma única vez no contexto de geração

45
da vida no planeta. Para alguns céticos, parece
mais fácil aceitar que tintas ao léu pintaram
a Mona Lisa do que reconhecer a existência
lógica de um gênio chamado Leonardo
Da Vinci.
Muitos pesquisadores partem da premissa
de que a evolução é um fato e de que Deus não
é mais necessário. Em seu livro God and the
New Atheism: A Critical Response to Dawkins,
Harris, and Hitchens [Deus e o Novo Ateísmo:
Uma Resposta Crítica a Dawkins, Harris e
Hitchens], o teólogo católico John F. Haught
discutiu o que chamou de um sistema de
crenças do “naturalismo científico”. Seu dogma
central seria: “[cremos que] apenas a natureza,
incluindo seres humanos e nossas criações, é
real; que Deus não existe; e que só a ciência
pode nos dar um conhecimento completo e
confiável da realidade.”7
De fato, por mais paradoxal que
Cientistas crentes?
pareça, muitos acadêmicos céticos se
veem comprometidos com duas crenças É claro que muitos acadêmicos rejeitam
não comprováveis: a do cientificismo – que a incompatibilidade entre ciência e fé. Uma
acredita ser a ciência a única detentora do extensa pesquisa realizada pela Universidade
conhecimento da realidade – e a do naturalismo Rice com 20 mil físicos e biólogos, em oito
metafísico – que atribui à natureza qualidades países diferentes (Itália, França, Reino Unido,
que a religião atribui a Deus, por exemplo, a Estados Unidos, Taiwan, Hong Kong, Turquia
autoexistência e a capacidade de criar vida de e Índia), revelou que, dependendo de cada
não vida. Nenhuma dessas crenças é empírica, realidade, o número daqueles que criam em
falseável8 ou passível de comprovação pelo Deus variava de 16 a 55%, um resultado que
método científico, por isso são elementos de fé surpreendeu os pesquisadores.9
tão confessionais quanto alguns ensinos A pesquisa identificou entre os cientistas
do cristianismo. que creem em Deus a certeza de que ciência
e religião não somente se harmonizam, mas
Pode haver um Deus criador?
também se complementam. A razão de esse
Por que a crença de que Deus criou o ser não ser o quadro que vemos na prática pode
humano seria menos lógica do que a crença de ser o fato de muitos admitirem ocultar suas
que a vida se autogerou? A primeira provém da convicções religiosas para evitar segregação
Bíblia; a segunda, da mitologia grega. Basta ler por parte dos pares – o que também foi
a Teogonia de Hesíodo. Segundo o poeta grego, revelado nas entrevistas.
depois do Caos, a mais velha das consciências É uma pena que essa “simbiose” não seja
divinas, surgiu Gaia (a terra), que gerou a usada de forma generalizada, pois juntas, a
si mesma. Como se fosse um ser pessoal e proposta bíblica e científica, poderiam dar um
inteligente, Gaia criou Urano (o céu), que a quadro muito mais completo das origens da
circundou sexualmente, procriando os deuses e humanidade – embora muitos cientistas tenham
uma gama de seres. trabalhado ou trabalhem com
Excluídas as descrições sexuais na poesia essa epistemologia.
de Hesíodo, seu relato das origens se parece De acordo com o apóstolo Paulo, Deus nos
com a proposta ateísta de um Universo amou e nos escolheu antes mesmo da criação
que gera a si mesmo e é colocado como o do mundo (Efésios 1:4, 5; 2 Tessalonicenses
responsável cego e inconsciente de um projeto 2:13). Em outra passagem, o próprio Deus
minuciosamente organizado. Na literatura declarou: “Com amor eterno te amei; por isso,
clássica isso seria chamado “mito”. com benignidade te atraí” (Jeremias 31:3).

46
Conclusão
Pergunta
A diferença do modelo bíblico para o
Leia Gênesis 1:26, Isaías 43:7 e evolucionismo clássico é que, enquanto este
Colossenses 1:16 e responda: Qual foi dirá que você é fruto de uma série de acasos,
o propósito de Deus ao criar o ser a narrativa bíblica enfatizará que você foi
humano? O que é possível concluir escolhido por Deus para viver. Dentre um
com base nesses versos? número infinito de possibilidades matemáticas,
Ele escolheu criar você e não outro.
A poesia dessa grandeza foi cantada há 3
mil anos em um salmo de Davi: “Os Teus olhos
me viram a substância ainda informe, e no Teu
livro foram escritos todos os meus dias, cada
um deles escrito e determinado, quando nem
um deles havia ainda. Que preciosos para mim,
ó Deus, são os Teus pensamentos! E como é
grande a soma deles! Se os contasse, excedem
os grãos de areia; contaria, contaria, sem jamais
chegar ao fim” (Salmo 139:16-18).
Muitos podem nascer de uma gravidez
indesejada, viver sem pai ou mãe e até
desconhecer suas origens. Contudo, se a
proposta bíblica estiver certa, ninguém pode se
considerar indesejado, muito menos órfão de
Deus. Cristo desejava seu nascimento antes de
o mundo existir. Pense nisso!

Referências

1 Tia Ghose, “Darwin’s ‘Origin of Species’ Voted Most Influential Academic Book”, Livescience,

disponível em <https://www.livescience.com/52756-darwins-book-most-influential.html>, acesso em

26 de maio de 2020.

2 Charles R. Darwin, Origin of Species, p. 488, disponível em <https://www.gutenberg.org/

files/1228/1228-h/1228-h.htm>, acesso em 26 de maio de 2020.

3 Marc D. Hauser e outros, “The Mystery of Language Evolution”, Frontiers in Psychology 5, nº 1 (2014),

disponível em <https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2014.00401/full>, acesso em 26

de maio de 2020.

4 Richard Leakey and Roger Lewin, Origins Reconsidered: In Search of What Makes us Human (Nova

Boa pergunta
York: Doubleday, 1992), p. 239.

5 David Hume, citado por Jon Elster, “Introduction: The Two Problems of Social Order”, em The

Cement of Society: A Survey of Social Order, Studies in Rationality and Social Change (Cambridge:

Agora é você quem faz as perguntas! Cambridge University Press, 1989), p. 1.

Pare para pensar e formule as 6 Marcelo Gleiser, “A Ciência Não Mata Deus”, Correio Brasiliense, disponível em <https://www.

próprias perguntas sobre essa parte correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2019/03/19/interna_ciencia_saude,743875/a-

do estudo. ciencia-nao-mata-deus-diz-fisico-brasileiro-marcelo-gleiser.shtml>, acesso em 26 de maio de 2020.

7 John F. Haught, God and the New Atheism: A Critical Response to Dawkins, Harris, and Hitchens

(Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2008), p. x.

8 Na década de 1930, o filósofo da ciência Karl Popper propôs o conceito de “falseabilidade” como a

propriedade de uma afirmação, ideia, hipótese ou teoria poder se mostrar falsa. Para que uma ideia

seja falseável ou refutável, é necessário um experimento ou observação verossímil ou factível.

9 Elaine Howard Ecklund e outros, Secularity and Science: What Scientists Around the World Really Think

About Religion (Nova York: Oxford University Press, 2019).

47
LIÇÃO 9
VIDEOAULA

Por Que
Sofremos?
Introdução

C. S. Lewis, conhecido autor de As Crônicas


de Nárnia, foi um brilhante escritor irlandês.
Ele surpreendeu a academia de Oxford e
Cambridge, onde lecionava, ao anunciar,
em 1930, que havia deixado o ateísmo e se
convertido a Cristo. Intelectual como poucos,
Lewis deixou uma tremenda marca na literatura
inglesa, que hoje é traduzida no mundo inteiro.
Sua conversão, porém, não criou perante si
um mundo mágico, destituído de problemas e
questionamentos existenciais. Na verdade, nem
Jesus escapou disso. Como podemos entender
o sofrimento humano? É possível identificar
suas origens?

Estudando juntos

Pergunta
Os evangelistas foram muito precisos
ao narrar o momento de angústia em
que Jesus bradou na cruz: “Deus Meu,
Deus Meu, por que Me desamparaste?”
(Mateus 27:46). Leia o contexto dessa
passagem e responda: Por que Jesus
disse essas palavras? Estava Ele
realmente sofrendo sozinho?
O questionamento de Cristo revela a
verdade incômoda de que até o maior de todos
os santos pode gemer diante da sensação
de abandono do Pai celestial. Lewis lidou
diretamente com esse dilema, admitindo que
a existência do sofrimento num mundo criado
por um Deus bom e todo-poderoso seria um
impasse teológico fundamental e, talvez, a mais
séria objeção à religião cristã.
Do ponto de vista lógico, o sofrimento,
em si, não anula a existência de Deus. Se Deus
fosse mau – embora não seja isso o que a Bíblia
apresente –, Ele coexistiria com o que é ruim, e
uma coisa não anularia a outra. O mal concorre
com a ideia da bondade suprema de Deus e
não com a existência Dele.
William Lane Craig foi preciso em distinguir
o mal como problema filosófico do mal como
sentimento humano. O primeiro lida com
uma questão intelectual que não anula a
possibilidade de haver um Deus. Já o segundo
encerra um dilema emocional. Ou seja, eu
posso não gostar de um Deus que permite a
experiência da dor, mas não posso negar que
Ele exista.
De fato, é improvável que um Deus de amor
permita o sofrimento, mas não é impossível
que o faça. Improbabilidade e impossibilidade
não são sinônimos perfeitos. Quer ver? É
improvável que o cauteloso senhor Xavier, um
pacato vizinho de condomínio, dirija em alta
velocidade perto do parquinho de crianças.
Contudo, não é impossível que ele faça isso.
Basta ter em seu carro uma pessoa enfartando
para que a emergência o obrigue a dirigir de
uma forma como jamais imaginaríamos que
fosse capaz.
Do lado de fora do carro, desconhecendo
as razões do senhor Xavier, ficamos sem
entender porque ele passou a tal velocidade.
Seria isso uma evidência de que o senhor
Xavier não existe ou de que não seria
cauteloso, pois, se fosse, jamais o veríamos
dirigindo assim? É claro que não. Razões que
desconhecemos podem resultar em situações
que não esperamos.

Clive Staples Lewis (1898-1963) foi


Lewis#/media/File:C.s.lewis3.JPG
https://en.wikipedia.org/wiki/C._S._

escritor, romancista, poeta, crítico


literário, ensaísta e teólogo irlandês.
Durante sua carreira acadêmica,
lecionou nas Universidades de
Oxford e Cambridge, vindo a
aceitar o cristianismo em 1930.

49
Em 1940, Lewis publicou um interessante há legislador [conforme a tese ateísta], não
livro chamado O Problema do Sofrimento, no pode haver legislação; se não há legislação,
qual sistematizou a objeção ateísta à existência não há parâmetro de bem nem de mal; se não
de Deus baseada na futilidade observável há parâmetro, então as noções de bem e de
do Universo. O livro começa com uma nota mal também são todas fictícias. Logo, como
pessoal: “Não faz muitos anos, eu mesmo era se pode ter tanta certeza do mal e usá-lo para
um ateu”. Então Lewis descortina como era seu argumentar a inexistência de Deus?
pensamento nos anos de ateísmo, descrevendo É curioso notar que, embora o sofrimento
um Universo cheio de futilidade e acaso, seja um argumento convincente e atinja
escuridão e frio, miséria e sofrimento; um a todos sem exceção, ele não conseguiu
espetáculo de civilizações falidas e humanidade impedir que 93% do planeta sigam crendo
cientificamente condenada. Ele viveu tudo isso em algum tipo de Deus.1 Parece que a fé, de
em plena guerra mundial e, por isso, concluiu: alguma forma, resiste ao argumento da dor.
“Ou não há espírito por trás do Universo, ou Por que continuamos teimosamente
então teríamos um espírito indiferente ao bem tão crentes?
e ao mal, ou ainda, um espírito maligno [por
trás de tudo].”
Por outro lado, se temos clara e
incomodamente a sensação de que as coisas
não deveriam ser assim, nossa percepção
do mal demanda a existência do bem. Caso
contrário, de onde tiraríamos a noção de
que o mal é mau? Jamais saberíamos que o
frio é frio se não houvesse a noção de calor.
Logo, se existe um Deus bom, de onde vem o
sofrimento? Em contrapartida, se não há um
Deus bom, de onde vem a noção de bondade?
Note que a bondade não é algo que resulta
do gênio humano. Nós podemos realizar atos
bons, mas não fomos nós que determinamos
que criança e leucemia não combinam na
mesma sentença ainda que a gramática o
permita. Essa é uma noção de desconforto que
antecede à humanidade e parece estar acima
dela. E de onde ela viria?

O mal anula a existência de Deus?


Veja o caso mencionado por Ravi
Zacharias a respeito de um jovem ateu que
lhe questionou em público. Esse jovem
lhe disse que a existência do mal anularia
automaticamente a existência de Deus. Ravi lhe
respondeu:
– Se você trabalha com o conceito de mal,
então também admite a existência de um bem
para contrastar com o mal. Certo?
– Sim – respondeu ele.
– Se há bem e mal, então existe um parâmetro
legal que estabelece coisas que são boas e
coisas que são ruins, correto?
– Exatamente.
– Se há esse tal parâmetro legal, então deve
haver um legislador… certo? Mas é aqui que
entra a contradição de seu argumento. Se não

50
Raciocine comigo, se as privações da vida
fossem realmente um xeque-mate na religião,
o número de ateus deveria ser absurdamente
predominante nos países que enfrentam mais
fome, miséria, guerras e adversidades e não nos
países com maior índice de bem-estar social.
Se você fizer uma convocação religiosa no
recanto mais miserável do planeta, aparecerá
uma multidão desejosa de ouvir falar de Deus.
Porém, se fizer isso na Europa ocidental,
contará com meia dúzia de gatos-pingados e
muitos bancos vazios. Esse contraste deve nos
levar a questionar o porquê de tudo isso.
Talvez seja essa a diferença entre os que
filosofam sobre a miséria para negar a Deus
e os que convivem com ela todos os dias.
Os mais afligidos geralmente não enxergam
outro caminho, senão se refugiarem em Deus.
Seria esse um divisor de águas entre teoria e
experiência quando o assunto é o sofrimento?

A religião é o ópio do povo?


Muitos argumentam que os mais pobres
e iletrados são menos capazes de refletir
filosoficamente, por isso se refugiam no
ópio da religião, tornando-se massa de
manobra para líderes religiosos – coisa que
dificilmente acontece em países com maior
índice sociocultural. É por isso que os ateus, Ateísmo e suicídio
agnósticos e sem religião se concentram mais Estudos independentes feitos por
em países desenvolvidos. diferentes especialistas concluíram que países
Será mesmo assim? Se isso for verdade, predominantemente ateus, como a China
é de se esperar que os cidadãos do primeiro e integrantes da antiga União Soviética,
mundo tenham maior autonomia sobre suas constituem nove das dez nações com maior
emoções do que os demais que não dispõem índice de suicídio do mundo.4 Veja a confissão
desses recursos. Afinal, lá está a maior parte do ativista e escritor ateu Staks Rosch:
dos livres-pensadores, sujeitos com maior
lucidez racional para enfrentar a realidade sem
apelar para o sagrado. A depressão é um problema sério na
Contudo, apesar das dificuldades comunidade ateísta e, com demasiada
quantitativas das pesquisas em saúde mental, frequência, leva ao suicídio. Isso é algo
todos os números concordam que os países que muitos de meus colegas ateus
mais ricos e secularizados não têm apresentado muitas vezes não gostam de admitir,
melhores resultados que os países mais pobres. mas é verdade. Sei que muitos ateus,
Pelo contrário, a Europa sempre mostra índices inclusive eu, gostariam de acreditar
maiores de suicídio, transtorno de ansiedade que são pessoas mais felizes do que
e consumo de drogas do que a África, por os religiosos; e, em muitas coisas, nós
exemplo.2 O consumo europeu de ópio, que somos. Mas também temos que aceitar
vai desde psicotrópicos e anfetaminas até o a realidade de que, em algumas coisas
ecstasy e a cocaína, é expressivamente mais muito importantes, nós não somos.5
elevado do que em países subdesenvolvidos.3

51
Alguém pode argumentar que religiosos
também sofrem de depressão, ansiedade e até
se matam. Mas o argumento não é esse. Não se
trata de dizer que os que sofrem de problemas
emocionais são necessariamente pessoas sem
Deus. O ponto é outro. Seja qual for a
razão de índices tão altos de depressão e crises
de ansiedade, o refúgio das drogas e o triste
ato de tirar a própria vida não são
elementos que esperaríamos encontrar
naqueles grupos que, ancorados no
racionalismo, proclamam orgulhosamente:
“Obrigado, mas não precisamos de Deus.”

É importante levar em conta que qualquer


explanação sobre esse tema que busque
justificar a origem do mal atribuindo-o a um ato
Pergunta de Deus não condiz com a perspectiva bíblica.
O fato de Deus ser o Criador de todas as coisas
A Bíblia não é omissa em admitir que não significa que Ele seja o responsável por
o problema do mal é o maior dilema tudo o que acontece.
humano. O salmista, por exemplo, disse: Isaías 45:7 declara que Deus é quem forma
“Quando tentei entender tudo isso, achei a luz e cria as trevas, promove a paz e cria o
muito difícil para mim” (Salmo 73:16, mal. Ao contrário do que pode parecer, esse
NVI). É possível conciliar a existência do verso não têm nada a ver com o problema
mal com um Deus de amor, conforme sobre a origem do mal. O “mal” em oposição à
apresentado na Bíblia? Leia João 3:16 e “paz” é uma referência, conforme seu contexto
justifique sua resposta. indica, às guerras ou calamidades que provém
da quebra da aliança com Deus.

Como pode existir o mal sem que Deus o


tenha criado?
Deus não criou todas as coisas? Sim, mas
o mal não existe como uma obra da criação;
ele existe como uma sensação da ausência
de Deus. Talvez uma comparação ajude a
ilustrar esse conceito. O frio é uma entidade
que não existe. Segundo as leis da física, o que
consideramos frio, na realidade, é a ausência de
calor. Todo corpo ou objeto pode ser estudado
quando tem ou transmite energia, mas é o
calor, e não o frio, que faz com que tal corpo
tenha ou transmita energia. O zero absoluto é
a menor temperatura que um corpo pode ter
no Universo; mas, ainda assim, o frio não existe.
Criamos esse termo para descrever como nos
sentimos quando nos falta o calor. O mesmo
se dá com o mal. Ele não existe. Criamos esse
termo para descrever como é a realidade
desprovida de comunhão com Deus.
Não que o mal seja uma ilusão que
se desfaz ao atingir o nirvana, conforme a
proposta budista. O frio pode não existir, mas

52
a morte por hipotermia é uma realidade. Ou
seja, um princípio inexistente pode trazer Em outro estudo, entenderemos melhor
consequências reais. Portanto, o mal e todas o que significa esse “custou caro” para
as suas consequências são o resultado Deus. Além disso, também responderemos
experiencial da ausência de Deus causada pela às perguntas que, inevitavelmente, surgem
quebra de Suas leis. Retomando o exemplo, quando o assunto do livre-arbítrio é
assim como a ausência de calor torna as coisas apresentado: Que escolha errada fez uma
geladas, a ausência de Deus torna as criança de dois meses para ser brutalmente
criaturas malignas. assassinada? Por que Deus não impede
as tragédias?
Por enquanto, basta saber que não se
pode entender um livro lendo apenas uma
Boa pergunta página dele! Há um enredo cósmico maior que
pode dar sentido a tudo isso. Apenas entenda
Agora é você quem faz as perguntas! que todo esse processo não é um capricho
Pare para pensar e formule as próprias divino. A existência de um Universo perfeito e
perguntas sobre essa parte do estudo. livre implicaria no estabelecimento de leis. A
quebra dessas leis é que traria consequências
desastrosas como a morte, a dor e o
sofrimento. Parafraseando os filhos do Sol,
personagens de Dostoiévski, “o entendimento
é maior do que o sentimento, e a vida é maior
do que a consciência dela”.6 Talvez, seja
justamente a possibilidade de perder a vida o
que, a princípio, a torna tão valiosa. Vale a pena
conhecer todo o enredo.
Pense nisso!

Referências

1 Ariela Keysar e Juhem Navarro-Rivera, “A World of Atheism: Global Demographics”, The Oxford

Handbook of Atheism, ed. Stephen Bullivant e Michael Ruse (Oxford: Oxford University Press, 2013).

2 Veja os dados da Organização Mundial de Saúde: “Depression and Other Common Mental Disorders

Global Health Estimates”, disponível em <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/254610/

WHO-MSD-MER-2017.2-eng.pdf;jsessionid=929B070D68F35FD5ED1DFF598DC7BE91?sequence=1>,

acesso em 27 de maio de 2020. Ayelet M. Ruscio e outros, “Cross-Sectional Comparison of the

Epidemiology of DSM-5 Generalized Anxiety Disorder Across the Globe”, JAMA Psychiatry 74,

nº 5 (2017), p. 465-475, disponível em <https://jamanetwork.com/journals/jamapsychiatry/

fullarticle/2608757>, aceso em 27 de maio de 2020.

3 “ONU Faz Levantamento Sobre Consumo de Drogas no Mundo”, Correio do Estado, disponível em

<https://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/onu-faz-levantamento-sobre-consumo-de-drogas-

no-mundo/306361/>, acesso em 27 de maio de 2020. Anastácio F. Morgado, “Consumo de Drogas: Um

Enfoque Pouco Emocional”, Cadernos de Saúde Pública 1, nº 1 (1985), p. 124-130. “World Drug Report

Conclusão 2014”, United Nations Office on Drugs and Crime, disponível em <http://www.unodc.org/wdr2014/>,

acesso em 27 de maio de 2020.

4 José Manoel Bertolote e Alexandra Fleischmann, “A Global Perspective in the Epidemiology

of Suicide”, Suicidologi 7, nº 2 (2002), p. 7, 8, disponível em <https://www.iasp.info/pdf/papers/

Deus não poderia impedir a possibilidade Bertolote.pdf>, acesso em 27 de maio de 2020. Phil Zuckerman, “Atheism: Contemporary Numbers

do mal a menos que removesse o livre-arbítrio and Patterns”, em The Cambridge Companion to Atheism, ed. Michel Martin (Cambridge: Cambridge

de Seus filhos. O ponto vulnerável do amor é University Press, 2007), p. 58, 59.

que ele pode ser rejeitado! Foi justamente aí 5 Staks Rosch, “Atheism Has a Suicide Problem”, Huffpost, disponível em <https://www.huffpost.com/

que o mal, antes uma possibilidade, se tornou entry/atheism-has-a-suicide-problem_b_5a2a902ee4b022ec613b812b>, acesso em 27 de maio de

uma realidade que custou caro, até mesmo 2020.

para Deus (1 Pedro 1:18, 19). 6 Fiódor M. Dostoiévski, O Sonho de um Homem Ridículo (São Paulo: Editora 34, 2003), p. 123.

53
LIÇÃO 10

Deus
VIDEOAULA

Abandona
o Inocente?

Introdução
Em 1957, um crime brutal chocou os
Estados Unidos. Maria Ridulph, uma garotinha
de sete anos, desapareceu na cidade de
Sycamore, estado de Illinois. Meses depois, seu
corpo foi encontrado dilacerado em um matagal.
Maria tinha sido sufocada com um fio, violentada e
esfaqueada várias vezes.
Passados 55 anos do crime, quando os pais de
Maria já haviam falecido, foi que uma senhora no leito de
morte confessou que seu filho, Johnny McCullough, era o
assassino. O inquérito foi reaberto, e Johnny condenado.
O caso que abalou a todos ficou conhecido como
“a definição do mal”. Como alguém pode conviver tantos
anos escondendo um crime tão bárbaro?
Casos como esse se avolumam ao longo da história
numa soma impossível de precisar. Por que Deus não
fez nada para salvar aquela garotinha? Se, conforme
lemos na Bíblia, Ele mandou corvos para alimentar Elias (1 Reis
17:1-7), por que não enviou um anjo para salvar a pequena Maria?

Normalmente, pessoas que poderiam evitar


um crime e conscientemente não o fazem
também se tornam, juridicamente falando,
responsáveis morais pelo ocorrido. Nesse caso,
seria Deus, que é onisciente e onipotente,
passível de processo por não deter assassinos
em série? A situação fica pior quando os
personagens da tragédia são pessoas que
amamos. Nessas horas, nosso espírito se
volta das questões filosóficas para a narrativa
existencial, isto é, a experiência da dor como
realidade vivida. Afinal, por que
inocentes sofrem?
Estudando juntos
O problema do mal não é algo que desafia
apenas um setor da humanidade. Todos nos
debruçamos diante dele e nos perguntamos:
“Por quê?” Até mesmo quem afirma serem
os males contingências aleatórias da vida não
escapa às lágrimas quando o infortúnio bate à
sua porta.
Ainda que sigamos a cartilha de Kafka,
para quem o “sentido da vida é que ela
termina”,1 somos seres irremediavelmente
em busca de significado, conforme anunciou
Platão.2 Queremos entender por que aquilo
de ruim nos aconteceu. Pior do que a tragédia
vivida é a sensação de sua falta de propósito.
Todos queremos um sentido, ainda que
psicológico, a fim de que nossos sofrimentos
finalmente tenham valido a pena.
Isso não quer dizer que sobreviventes à
dor não possam encontrar um conforto real
ou um fruto positivo daquilo que enfrentaram.
Também não é o caso de que Deus dependa do
mal para obter o bem. O mal nunca esteve em
Seus planos. Contudo, Deus sabe trabalhar com
reciclagem. Pode até não impedir o descarte,
mas tira arte daquilo que seria lixo.

Pergunta
Biblicamente falando, o mais correto
seria dizer que, de uma tragédia, podem
surgir resultados positivos que ajudam
a amenizar aquela experiência. Não se
trata de uma compensação literal pelo
sofrimento, mas funciona como se fosse.
“Sabemos que todas as coisas”, escreveu
Paulo, “cooperam para o bem daqueles
que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o Seu propósito”
(Romanos 8:28). Como o fato de que
existe um contexto sobrenatural para
as tragédias pode amenizar sua dor
ou lhe dar esperança para enfrentá-la?
Justifique sua resposta.

55
Foi em nome da justiça, do amor e da Considerando as evidências, profetas bíblicos e
equidade que Deus resolveu criar seres morais cosmólogos podem ter chegado a conclusões
capazes de rejeitar Seu amor e companhia. É parecidas por vias diferentes. O que uns
essa liberdade que permite a você aceitar ou apresentam como possibilidade especulativa,
não os caminhos traçados para a humanidade. outros afirmam como revelação de Deus.
Nas palavras de Agostinho de Hipona, “Deus,
Leis da termodinâmica e a guerra cósmica
que te criou sem ti, não te salvará sem ti,
porque cada um de nós, tu e eu, temos sempre As noções de entropia, ligadas à ordem
a possibilidade – a triste desventura – de nos e desordem de um sistema, podem ser vistas
levantar contra Deus, de rejeitá-lo – talvez por um cientista cético como o processo
só com nossa conduta – ou de exclamar: não natural de probabilidades termodinâmicas.
queremos que reine sobre nós.”3 Para o observador bíblico, seriam o indício de
que algo está fora de lugar. Alguma barreira
Criaturas rebeldes e Kardashev antidegradação parece ter sido rompida, de
O problema é que algumas criaturas maneira que, teoricamente, a segunda lei da
morais se rebelaram contra o governo divino, termodinâmica5 funciona hoje de um modo
e a harmonia cósmica foi quebrada. As diferente de sua forma original.
consequências disso foram descritas na Bíblia e Em termos observacionais e filosóficos,
enunciadas, ainda que não intencionalmente, na essa percepção procede. A visão de um quarto
escala de Kardashev, um astrônomo ateu dos bagunçado pressupõe uma organização prévia
anos 1960. Ele teorizou sobre supostos níveis que foi desfeita. No caso do Universo, uma
civilizatórios no Universo que se diferenciariam guerra cósmica foi declarada; e os resultados
em graus escalonados a partir do consumo e são visíveis, especialmente no planeta Terra.
reciclagem de energia cósmica.
Pode até parecer ficção científica, mas
muitos físicos levaram a sério essa proposta,
inclusive o falecido Carl Sagan. Eles apenas a
refinaram numa escala mais detalhada. Essa Pergunta
versão da escala vai desde o tipo 0 – que é
o uso de métodos primitivos de produção No relato bíblico da criação, Deus
de energia (como a queima de combustíveis estabeleceu a ordem mediante Sua
fósseis) – até o tipo IV, no qual, supostamente, palavra: “No princípio, criou Deus os
habitariam seres ou supercivilizações que céus e a terra. A terra, porém, era sem
manipulariam o tempo-espaço para benefício forma e vazia; havia trevas sobre a
próprio. face do abismo, e o Espírito de Deus
John D. Barrow, cosmólogo e professor pairava sobre as águas. Disse Deus:
de ciências matemáticas da Universidade Haja luz, e houve luz” (Gênesis 1:1-3).
de Cambridge, reformulou os tipos I, II e Logo, na Bíblia, o simples se tornou
III da escala para falar de uma possível complexo por meio da ação de um
reestruturação do Universo, na qual coisas agente externo ao sistema: Deus. No
destroçadas podem ser renovadas numa pensamento evolucionista, o simples
condição muito melhor do que a anterior.4 também se tornou complexo, mas sem
Ora, se esses cientistas podem falar disso, por a interferência de um agente externo.
que não podemos transformar a escala de De acordo com sua opinião, como
Kardashev em linguagem bíblica e ver nela uma a segunda lei da termodinâmica e o
similaridade com a promessa apocalíptica de conceito de entropia divergem desses
que Deus fará novas (ou renovadas) todas as dois sistemas ou convergem para eles?
coisas? (Ver Apocalipse 21:5).
A ideia de seres capazes de manipular
a dimensão tempo-espaço torna muito
apropriado falar de anjos que, como no
caso de Daniel 9:21 a 23, faziam em poucos
segundos uma viagem que, à velocidade da luz,
demoraria milhares de anos para ser realizada.

56
fossem rejeitá-Lo, a liberdade seria uma ilusão.
Estaria agindo como um político corrupto
que se diz eleito por 100% dos votos graças
à destruição das cédulas contrárias. Para ser
coerente, Deus criou seres livres, mas não os
obrigou a fazer Sua vontade.

Onipotência e coerência divinas


A Bíblia discorre sobre a onipotência de
Deus (Gênesis 17:1; Jeremias 32:17; Marcos 10:27;
Apocalipse 19:6). Contudo, isso não implica
que Ele crie arbitrariamente impossibilidades
lógicas. Deus não flerta com a incoerência. Se
Ele pudesse criar um círculo quadrado, não
seria onipotente; seria ilógico.
É justamente por ser onipotente e coerente
Nas palavras do apóstolo Paulo: “A natureza que há uma série de coisas que Deus não pode
criada aguarda, com grande expectativa, que fazer. Ele não pode mentir (Hebreus 6:18),
os filhos de Deus sejam revelados. Pois ela foi negar-Se a Si mesmo (2 Timóteo 2:13), outorgar
submetida à futilidade, não pela sua própria Sua glória a outros (Isaías 48:11) nem trair Seu
escolha, mas por causa da vontade Daquele caráter (Malaquias 3:6).
que a sujeitou, na esperança de que a própria Foi com critérios de justiça e coerência
natureza criada será libertada da escravidão da que Deus nos criou seres livres e assumiu as
decadência em que se encontra para a gloriosa consequências daquilo que eventualmente
liberdade dos filhos de Deus. Sabemos que toda pudesse acontecer. A onisciência de Deus não
a natureza criada geme até agora, como em O torna responsável pelo mal porque arcou
dores de parto” (Romanos 8:19-22, NVI). com os prejuízos do conflito.
A Bíblia ensina que uma batalha cósmica
entre o bem e o mal teve início quando seres
angelicais se rebelaram contra Deus, rompendo
a ordem natural do Universo (Apocalipse
12:7-12). O líder da rebelião não tem seu nome Pergunta
original diretamente revelado. Ele é apenas
chamado de “a estrela da manhã” em Isaías A teologia cristã entende Deus como
14:12. Porém, devido a uma corruptela de uma pluralidade de pessoas que
tradução da Vulgata somada à influência de compõem a mesma Divindade. Não
clássicos como A Divina Comédia, de Dante há ninguém fora do círculo divino que
Alighieri, e o Paraíso Perdido, de John Milton, possa se igualar ao Todo-Poderoso.
esse líder rebelde ficou conhecido pelo apelido “Quem conheceu a mente do Senhor
de Lúcifer e foi identificado com o próprio para que possa instruí-Lo?”, perguntou
diabo e Satanás. Paulo de maneira retórica. Então ele
mesmo prosseguiu: “Nós, porém,
O conflito cósmico e o planeta Terra
temos a mente de Cristo” (1 Coríntios
O conflito se estendeu à Terra quando 2:16, NVI). O que o apóstolo Paulo quis
Adão e Eva aderiram à rebelião (Gênesis 3). dizer com isso? Explique sua resposta.
Por isso, a maldição que acompanharia os
rebeldes atingiu a humanidade, produzindo
tragédias como aquela que foi contada no início
desta lição. Nenhum descendente de Adão foi
poupado.
E por que Deus não criou apenas aqueles
que não O rejeitariam? Porque se fizesse isso
estaria manipulando os dados, e Deus não duela
com Seu caráter. Se criasse somente os que não

57
Teologia do esvaziamento
Na teologia paulina, Cristo representa a
revelação suprema de Deus. Essa revelação é
dramaticamente denominada, em Filipenses
2:5 a 11, de “esvaziamento”. No entendimento
cristão, isso significa que a segunda pessoa da
Divindade, Cristo, deixou de lado Seus atributos
divinos – sem perder Sua natureza divina –
para depender do Pai e do Espírito Santo
(João 14:16-24, 28). É por isso que Cristo disse:
“Eu e o Pai somos um” (João 10:30) e “Quem
Me vê a Mim vê o Pai” (João 14:9). Certas
declarações diminutas de Cristo, nas quais Se
identifica como servo de Deus, levaram alguns
a negar que Ele fosse divino. A teologia do
“esvaziamento” responde a esse equívoco.
Ir muito além disso é cair em especulações
que não levarão a lugar algum. Porém, é alusão messiânica, essa passagem concorda
biblicamente correto dizer que o caminho aparentemente com a ideia de que Jesus levará
de sujeição e obediência trilhado pelo Filho Suas chagas por toda a eternidade. Se assim
de Deus O levou à morte de cruz. Por quê? for, mais do que um memorial do sacrifício, a
Condenados como estávamos à morte eterna, permanência ressurreta de Cristo num corpo
só havia uma forma moralmente válida de Deus humano com sinais de crucifixão faz parte do
nos redimir: Ele Se sacrificaria em nosso lugar! preço pago pela salvação humana. Suas dores
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira eram as nossas enfermidades que Ele carregava
que deu Seu Filho unigênito, para que todo em Seu ser. Como disse o profeta Isaías, “o
o que Nele crê não pereça, mas tenha a vida castigo que nos traz a paz estava sobre Ele
eterna (João 3:16). Dar um filho é muito mais [Jesus], e pelas Suas pisaduras fomos sarados”
doloroso do que entregar-se a si mesmo. (Isaías 53:5).
Como um Deus eterno pode morrer?
A resposta é: por meio da entrega. No que “Olhos arrancados”
se refere à morte eterna, não podemos Um conto oriental diz que certo rei
reduzir o sacrifício de Cristo apenas ao que promulgou um decreto em seu reino dizendo
aconteceu no Calvário. Hebreus 2:9 destaca a que qualquer pessoa que roubasse teria os
condição incomum de Seu martírio ao dizer olhos arrancados. Como resultado, ninguém
que Ele experimentou a morte por todos. No
Apocalipse, Jesus é descrito como o Cordeiro
morto desde a fundação do mundo. Também
é dito que Ele continua com a marca de Seu
sacrifício, mesmo ocupando um trono ao lado
do Pai (ver Apocalipse 5:6, 12, 13; 13:8).
Embora ressurreto em um corpo glorioso,
Cristo manteve as marcas das chagas que
foram vistas e tocadas pelo incrédulo Tomé
(João 20:24-29). Hebreus 7:28 afirma que Jesus
Se tornou Filho e sumo sacerdote para sempre,
o que revela Sua condição de mantenedor
perpétuo de nossa redenção.
O texto de Zacarias 13:6, citado por alguns
exegetas, é menos claro. Caso se trate de uma

58
Conclusão

Amor não se explica, se sente. Onde


estava Deus enquanto Johnny McCullough
assassinava a pequena Maria? No mesmo lugar
em que estava enquanto matavam Jesus. Ele
queria intervir, mas não podia. O sacrifício era
necessário para que o sofrimento das muitas
Marias não durasse para sempre. Quando
aquela pequena ressurgir, nenhuma das facadas
que recebeu estará mais em seu corpo. Já os
sinais da crucifixão de Cristo permanecerão no
corpo Dele para sempre.
O Deus da Bíblia não é apenas um agente
roubou mais naquele lugar, e não havia do passado que criou o mundo e o abandonou.
cadeados nem grades nas portas e nas janelas. Também não Se limita ao presente, atendendo
Isso funcionou bem por um tempo até que, a tudo o que pedimos. Ele é, acima de tudo, o
um dia, alguns súditos se dirigiram ao rei e lhe Senhor da história, garantindo-nos um futuro
disseram: “Majestade, um jovem foi apanhado no qual “não se levantará por duas vezes a
roubando. A lei diz que essa pessoa deve ter os angústia” (Naum 1:9). Por enquanto, é inútil
olhos arrancados. Porém, há um detalhe: seu tentar entender certas tragédias. Resta-nos
filho é o ladrão. Devemos cumprir a lei?” apenas reconhecer a dinâmica do grande
O que você faria nesse caso? Mudaria a conflito: se sofrermos demais, não suportamos;
lei ou puniria seu filho? O posto de rei não lhe se sofrermos de menos, não saberemos o
permitia voltar atrás; por outro lado, o coração quanto o mal é mau e não desejaremos nos
de pai não lhe permitia executar o castigo. livrar dele. Estamos em guerra, e o próprio
Então o rei, que era sábio, justo e amoroso, Deus saiu ferido por nossa causa. Como deixar
emitiu a sentença: “São dois olhos que a lei de amar alguém que nos ama tanto? Pense
requer, dois olhos ela terá: arranquem meus nisso!
olhos. Meu filho será perdoado!”
Referências

1 Essa citação não aparece nos livros de Kafka, mas em uma carta enviada a um amigo. Esse

documento foi divulgado somente depois da morte de Kafka. Citado por Joseph Grcic, Facing Reality:

Boa pergunta
An Introduction to Philosophy (Bloomington, IN: AutorHouse, 2009), p. 445.

2 Ver Platão, “Apologia”, em The Collected Dialogues, trad. Hugh Tredennick (Princeton: Princeton

University Press, 1989).

Agora é você quem faz as perguntas! 3 Agostinho de Hipona, Sermo CLXIX, CLXX, 13, Opera Omnia, Migne V, p. 923.

Pare para pensar e formule as 4 John D. Barrow, Impossibility: The Limits of Science and the Science of Limits (Nova York: Oxford

próprias perguntas sobre essa parte University Press, 1998).

do estudo. 5 A primeira e a segunda leis da termodinâmica tratam do princípio da conservação da energia e da

transferência de energia térmica, respectivamente. Essas leis surgiram com os avanços científicos

sobre as máquinas térmicas. Na troca de calor espontânea, a tendência é o equilíbrio térmico. A

entropia, que é uma medida do nível de desordem de um sistema, está relacionada à segunda lei.

Trata-se, portanto, de uma grandeza física que tende a aumentar no Universo. Em outras palavras, ela

tende a sair do complexo para o mais simples; do arrumado para o desarrumado. Para colocar ordem e

complexidade é necessário gastar energia e intervir no sistema com inteligência.

59
LIÇÃO 11
VIDEOAULA

Profecias ou
Devaneios?

Introdução
Em 1806, a pacata população da cidade de Leeds, no norte
da Inglaterra, foi dormir segura de que o mundo acabaria antes da
virada do ano. Mas quem havia profetizado isso fora uma galinha!
Um belo dia, começou a circular o boato de que a tal galinha punha
ovos com mensagens proféticas e que alguns deles teriam começado a
aparecer com a frase: “O mundo vai acabar antes do fim do ano. Jesus
está voltando!”
Muitas pessoas disseram ter visto o momento em que a galinha
punha os ovos já com a inscrição envolta na casca. Posteriormente,
descobriu-se ser o dono da galinha que, minutos antes de trazer o
animal para exibição pública, introduzia os ovos com a inscrição no
interior da pobre galinácea. Aquele homem terminou desmascarado
e condenado, mas não sem antes iludir muita gente que pagava
para ver o animal e obter previsões escritas em ovos.
É incrível como tem gente disposta a acreditar em tudo e se
deixar levar por prognósticos que mais parecem sistematizações
do óbvio ou palavras de efeito. Talvez seja por causa de
nossa curiosidade coletiva, ou até mesmo nossa avidez por
saber o que acontecerá no dia seguinte, que as pesquisas
de opinião pública realizadas pelo Instituto Gallup
revelaram que 60 a 70% dos cidadãos adultos estão
dispostos a acreditar em gurus, videntes, astrólogos
e cartomantes. Mas será que alguém, de fato, pode
saber o futuro?

Estudando juntos
Falar de profecia é sempre um assunto preconceituosa possa
delicado. Primeiro, porque há muitos charlatães indicar, a Bíblia jamais
usando de má-fé para enganar as pessoas. endossa a crença gratuita
Segundo, porque muitos têm uma ideia errada em qualquer tipo de
do que seja uma profecia: pensam que se coisa. Ao narrar a história
trata de algo referente apenas ao futuro e da igreja primitiva, Lucas
nada mais. Bem diferente do que uma visão apresentou uma nota de
elogio aos cidadãos de falsos líderes que exploram as pessoas com
Bereia: “Ora, estes de Bereia historietas emotivas que eles mesmos inventam
eram mais nobres que os de (2 Pedro 2:1, 3). E Jesus preveniu sobre a vinda
Tessalônica; pois receberam de falsos profetas (Mateus 24:11; ver 7:15).
a palavra com toda a avidez,
examinando as Escrituras
todos os dias para ver se as
coisas eram, de fato, assim”
(Atos 17:11).

Provar para crer

Pegue uma Bíblia qualquer


e você encontrará no Antigo
Testamento passagens que
sugerem uma busca inquiridora das
verdades de Deus. Uma delas diz:
“Provai e vede que o Senhor é bom”
(Salmo 34:8). É interessante notar
que a palavra hebraica traduzida
por “provai” é ta‘am. Mais do que
simplesmente questionar, o termo
sugere a ideia de experimentar
algo sensorialmente, sentir o
sabor de uma coisa. Em outra
passagem, é o próprio Deus
quem desafia racionalmente a
humanidade: “Provai-Me nisto”,
disse Ele em Malaquias 3:10. Já em
Isaías 1:18, Deus faz um convite
“democrático”: “Venham, vamos
refletir juntos” (NVI), ou, conforme Pergunta
uma tradução mais antiga, “vinde,
pois, e arrazoemos” – isto é, Os textos bíblicos que você acabou
vamos discutir, entrar num acordo, de ler não incentivam uma fé cega,
entender as razões um do outro. mas a reflexão, o questionamento e
Também encontramos no a racionalidade. Você concorda com
Novo Testamento uma série essa declaração? Justifique
de textos aconselhando-nos a sua resposta.
testar ou examinar criticamente
todas as coisas antes de crer
apressadamente nelas (2
Coríntios 13:5; Efésios 4:14; 1
Tessalonicenses 5:21; 1 João
4:1). Devemos estar em alerta
para não concordar com
uma coisa apenas porque
faz parte da tradição dos
Falso e verdadeiro
mais antigos (Mateus
5:21, 22; Colossenses Não podemos rejeitar um produto original
2:8) ou porque um líder apenas porque o mercado está cheio de cópias
influente as falou. O piratas. Pelo contrário, a existência do falso
apóstolo Pedro nos pressupõe o verdadeiro, e o reconhecimento
advertiu a não de certas características vai nos ajudar a não
acreditar em comprar gato por lebre.

61
Pedro escreveu: Geralmente eram mulheres muito populares,
supostamente escolhidas pelos deuses para
servir de videntes diante do povo. Elas faziam
Temos, assim, tanto mais confirmada muito sucesso na Roma antiga, e peregrinos
a palavra profética, e fazeis bem viam de longe para ouvir seus conselhos e
em atendê-la, como a uma candeia profecias.
que brilha em lugar tenebroso, até Templos especiais, chamados de Oráculos,
que o dia clareie e a estrela da alva foram acomodados para acolher as videntes.
nasça em vosso coração, sabendo, Até moedas de denário foram cunhadas em
primeiramente, isto: que nenhuma homenagem a elas. Hoje se acredita que muitas
profecia da Escritura provém de de suas profecias eram resultado de uma
particular elucidação; porque alucinação provocada pela inalação do dióxido
nunca jamais qualquer profecia de carbono que brotava do chão do santuário.
foi dada por vontade humana; De fato, os prognósticos eram, na maioria das
entretanto, homens [santos] vezes, palavras soltas que poderiam fazer
falaram da parte de Deus, movidos todo ou nenhum sentido. Por isso, ora elas
pelo Espírito Santo (2 Pedro 1:19-21). acertavam, ora erravam – o que acontecia com
maior frequência.

Cresus e o Oráculo de Delfos


O interessante é que a Bíblia não parte
do pressuposto gratuito de que tudo que está Conta-se que Cresus, rei da Lídia, pretendia
nela é certo e tudo o que está fora é errado. Ela invadir a Pérsia. Porém, antes de fazê-lo, foi
mesma se coloca à prova, à medida que sugere ao Oráculo de Delfos, consagrado a Apolo.
que os profetas sejam testados. João escreveu: Lá, a vidente lhe deu o seguinte prognóstico:
“Amados, não deis crédito a qualquer espírito; “Se cruzares o rio Halys, destruirás um grande
antes, provai os espíritos se procedem de Deus, império.” Satisfeito com a resposta, ele
porque muitos falsos profetas têm saído pelo retornou à sua terra, armou o exército e tentou
mundo” (1 João 4:1). invadir a Pérsia, mas foi duramente derrotado!
Quando foi se queixar com o oráculo, recebeu a
Profecias e oráculos
seguinte resposta: “Quem disse que a profecia
O alerta tinha procedência. Afinal, os não se cumpriu? Afinal, você destruiu um
primeiros cristãos não eram os únicos a grande exército: o seu!”
apresentar profecias perante o povo. Oráculos Foi justamente numa época em que o povo
gregos e videntes femininas eram muito vivia enganado por esse tipo de charlatanismo
comuns nos tempos do Império Romano. que o apóstolo Pedro foi obrigado a orientar

62
os cristãos dizendo: “Assim como, no meio falso testemunho. “O profeta que profetizar paz,
do povo, surgiram falsos profetas, assim só ao cumprir-se a sua palavra, será conhecido
também haverá entre vós falsos mestres, os como profeta, de fato, enviado do Senhor”
quais introduzirão, dissimuladamente, heresias (Jeremias 28:9). “Sabe que, quando esse profeta
destruidoras, até ao ponto de renegarem o falar em nome do Senhor, e a palavra dele se
Soberano Senhor que os resgatou, trazendo não cumprir, nem suceder, como profetizou,
sobre si mesmos repentina destruição. E muitos esta é palavra que o Senhor não disse”
seguirão as suas práticas libertinas, e, por causa (Deuteronômio 18:22).
deles, será infamado o caminho da verdade” (2 Esse aspecto merece um esclarecimento.
Pedro 2:1, 2). Há casos de prognósticos que se cumprem
por coincidência, por dedução lógica ou
por manifestações diabólicas. Por isso, não
basta ter uma ou outra das características
mencionadas acima; o profeta deverá ter todas.
É tudo ou nada!
Pergunta
Via de regra, falsos profetas buscam
protagonismo e reconhecimento. Por
outro lado, o texto de 2 Pedro 1:19 a
2:2 mostra que o profeta bíblico não
é o protagonista, mas Deus. O que
esse detalhe pode revelar sobre a
autenticidade do profeta e da profecia?

Como distinguir o profeta verdadeiro


A Bíblia apresenta uma série de indicadores
que ajudam a distinguir o profeta verdadeiro
do falso. Um deles seria a concordância com
a Bíblia Sagrada e a pregação de Jesus. Uma
vez que esses dois elementos – a Bíblia como
Palavra inspirada e Jesus como Filho de Deus
– se mostrem historicamente confirmados em
sua autoafirmação, é lógico supor que uma
mensagem de origem divina não deva conflitar
com eles (Isaías 8:20; 1 João 4:1, 2).
Também é dito que um profeta verdadeiro
deixará bons frutos de seu trabalho, levando
esperança e salvação aos ouvintes, embora,
a rigor, haverá momentos em que o profeta
deverá dar uma advertência que acalme os
agitados e agite os acomodados (Mateus 7:20).
Por fim, é o cumprimento daquilo que
esses profetas dizem. Exceto casos claros
de profecia condicional, gramaticalmente
marcada pelo uso da conjunção “se” e outras
características, o prognóstico tem de se
cumprir em sua íntegra, caso contrário, será um

63
Advertência contra falsos profetas
Já dizia Miguel de Cervantes, autor
Deuteronômio 13:1 e 2 fala de falsos do clássico Dom Quixote: “A história é a
videntes que, embora pudessem fazer sinais e competidora do tempo, o depósito das ações,
prodígios reais no meio do povo, seu discurso o testemunho do passado. Exemplo e aviso do
era contrário aos ensinos de Deus. Esse tipo de presente, advertência do porvir.” É o passar dos
profeta, portanto, não deveria ser ouvido. séculos que evidencia ainda mais a veracidade
Veja que caso interessante. Exatamente da palavra profética.
14 anos antes da tragédia do Titanic, Morgan
Profecias bíblicas e seu cumprimento
Robertson escreveu um romance acerca de
um navio chamado Titan que colidiu com um São inúmeros os exemplos deixados em
iceberg enquanto cruzava o Atlântico Norte. toda a Bíblia a respeito de predições que se
Curiosamente, o navio era comandado por um cumpriram. Em alguns casos, as profecias não
capitão por sobrenome Smith – o mesmo nome se cumpriram nos tempos bíblicos, mas ao
do capitão do Titanic. Muitos perceberam essas longo da história ou até mesmo em nossos
e outras semelhanças e ficaram impressionados dias. Muitos livros do Antigo Testamento falam
com os acertos do autor. Seria isso uma sobre a vinda do Messias, e o Novo Testamento
profecia? comprova a exatidão dessas profecias.
Em primeiro lugar, Robertson jamais Vamos analisar apenas uma dessas
reclamou possuir o dom profético ou ser predições para abrir seu apetite. Considere,
mensageiro de Deus – coisa que os verdadeiros por exemplo, a profecia de Ezequiel 26 contra
profetas não escondem, embora atribuam o uma antiga civilização. Leia esse capítulo da
protagonismo a Deus. O livro de Robertson Bíblia e estude a história da cidade de Tiro, o
trouxe, de fato, algumas coincidências. Porém, grande orgulho dos antigos fenícios. Embora
o número de divergências é muitas vezes seu antigo sítio seja atualmente um monte de
maior. É que nosso inconsciente, acostumado ruínas no território do Líbano, no passado foi
a ver padrões nas coisas, enxerga com mais um poderoso porto marítimo e entreposto
facilidade as semelhanças e presta pouca de comércio internacional. Navegadores de
atenção às diferenças. De qualquer forma, todas as partes vinham até Tiro para comprar
esses elementos já são suficientes para dizer mercadorias. Sua frota era mais sofisticada do
que o livro de Robertson não era uma obra que qualquer outra naquele tempo.
profética. Se fosse, o autor acertaria em tudo e No entanto, segundo o profeta, Tiro seria
não apenas em um ou outro detalhe. destruída, e seus palácios, casas e muros
virariam um monturo de pedras. Parte da
cidade seria lançada ao mar, e suas pedras se
tornariam um enxugadouro de redes. Tudo
começou quando a cidade de Tiro se aliou a
Nabucodonosor no massacre a Jerusalém e
debochou da destruição do templo judeu. O
Deus de Israel enviou um oráculo ao profeta
que antecipou tudo o que aconteceria com a
cidade.
Essa profecia foi dada por volta de 587
a.C., e tal prognóstico era um absurdo na
época. Equivalia a dizer que, em breve, Nova
York virará colônia do Paquistão. Isso pode até
ser possível, embora os dados nos permitam
dizer que seja pouco provável. No caso de
Tiro, o doutor Peter Stoner, especialista
em matemática, astronomia e estatística
da Universidade de Pasadena, resolveu
estudar as chances de essa porção bíblica se
cumprir apenas por coincidência. O grau de

64
probabilidade seria de 1 em 75 milhões.1
Veja como tudo se cumpriu perfeitamente.
Depois de um tempo de prosperidade, mais
precisamente em 572 a.C, Tiro caiu nas
mãos de Nabucodonosor. Os babilônios
foram implacáveis e não pouparam nada
nem ninguém. Em poucas horas, as grandes
muralhas da cidade vieram abaixo, exatamente
como Ezequiel havia profetizado.
A cidade, porém, ainda permaneceu
de certo modo operando até por volta de
250 anos depois do ataque dos babilônios.
Aí se cumpriu a segunda parte da profecia.
Alexandre, o Grande, terminou o que
Nabucodonosor havia começado. Alexandre
construiu um istmo ou aterro desde o
continente até a cidade e a tomou de assalto.
O que sobrou da cidade se transformou
num monturo de pedras, e até hoje as ruínas
continuam literalmente lançadas no mar.
O antigo porto dos fenícios se tornou
uma vila de pescadores que usam as antigas
estruturas do local para aportar pequenos
barcos e enxugar suas redes de pesca –
exatamente como afirmou a profecia há pelo
menos 2.600 anos! Alguém pode alegar
que essa profecia foi escrita depois dos
eventos descritos nela, mas isso não faz
sentido. Ezequiel pode até ter testemunhado
a destruição feita por Nabucodonosor, mas
jamais teria como saber o que Alexandre, o
Grande, faria 250 anos depois, muito menos a
situação em que a cidade se encontra hoje em
pleno século 21.

Conclusão
Como alguém ironizou, é muita

Boa pergunta
coincidência para ser mera coincidência! E
olha que existem profecias bíblicas muito
mais detalhadas e impressionantes, como as
Agora é você quem faz as perguntas! de Daniel e do Apocalipse, para você estudar,
Pare para pensar e formule as próprias meditar e descortinar a mão de Deus agindo
perguntas sobre essa parte do estudo. por trás da história.
Pense nisso!

Referências

1 Peter Stoner, Science Speaks (Chicago, IL: Moody, 1958), disponível em <http://sciencespeaks.dstoner.

net/>, acesso em 1 de junho de 2020.

65
LIÇÃO 12

O Mundo
VIDEOAULA

Vai Acabar?
Introdução
Desde longa data, religiosos das mais
diferentes confissões têm anunciado o juízo
final e o fim do mundo. Esse tema também é
discutido na Bíblia Sagrada e está intimamente
associado ao cerne da esperança cristã: a volta
de Jesus.
Muitos, é claro, riem disso. O otimismo da revolução
industrial e da filosofia de Augusto Comte fez supor que
o mundo entraria numa nova era, na qual não haveria lugar para
previsões apocalípticas. Esse movimento, na verdade, já havia ocorrido
dentro do próprio cristianismo, quando a igreja cristã, atraída pelos
mimos de Roma, trocou as catacumbas pelos palácios, fazendo com
que a volta de Cristo deixasse de ser uma esperança acalentada.
Atualmente, a situação é bem diferente. O anúncio da morte de
Deus inaugurado por Nietzsche e acentuado por guerras, problemas
ecológicos e ameaças atômicas fez com que a temática do fim dos
tempos, antes inteiramente religiosa, invadisse o território científico.
Você certamente já ouviu falar do Relógio do Juízo Final ou Doomsday
Clock, como é chamado em inglês. Trata-se de um projeto inaugurado em 1947
que retrata simbolicamente num relógio o quanto a humanidade está perto da
destruição catastrófica: a meia-noite figurativa. Quem redefine a posição dos
ponteiros é o comitê de diretores do Bulletin of Atomic Scientists, da Universidade
de Chicago. O comitê já mudou os minutos 24 vezes de acordo com as ameaças
climáticas que podem resultar em danos irrevogáveis.
Em 2020, os ponteiros foram novamente mudados de 2 minutos para meia-
noite para 1 minuto e 40 segundos. Será esse o fim? Ou será o começo de uma
nova etapa?

Estudando juntos
Há cerca de 2.600 anos, os moradores de
Jerusalém já se perguntavam sobre o fim. Os que fez de Babilônia o mais poderoso império
exércitos babilônicos haviam cercado mais de daquela época. As fronteiras do reino incluíam
uma vez a cidade e, em uma das investidas, a Assíria, Mesopotâmia, Caldeia e partes da
destruído seu templo e suas muralhas. À frente Média, Pérsia, Síria, Judeia, Israel, Egito, Arábia
dos invasores estava Nabucodonosor, o homem e Índia.
Mesmo cativo em terra distante, o
povo de Deus não havia perdido a
esperança. Os judeus sabiam que
Deus estava no controle e que,
no tempo certo, Deus restauraria
todas as coisas e os faria voltar à
sua
terra natal.
Ao chegarem ao palácio
real, Daniel e seus amigos
mostraram um nível tão alto de
inteligência que impressionaram
os nobres e o próprio rei. Em
virtude disso, foram mandados
a uma escola especializada para
um curso de três anos. Depois
foram submetidos a testes administrados
pessoalmente pelo rei. Esses testes eram ainda
mais difíceis, porém, mais uma vez, aqueles
jovens judeus se mostraram mais capacitados
do que todos os sábios de Babilônia.

Cativos em Babilônia
Entre os cativos levados como escravos Pergunta
do rei de Babilônia, estavam Daniel e seus
companheiros. Eles eram hebreus de origem O primeiro capítulo do livro de Daniel
nobre, nascidos nas melhores famílias de registra a fidelidade dele e de seus
Jerusalém. Jovens que foram, de repente, companheiros judeus durante o período
obrigados a trocar o conforto de seu lar por em que estiveram na “Universidade” de
uma vida como escravos numa terra distante. Babilônia. Quais elementos relatados
Jerusalém era uma cidade interiorana nesse curto capítulo poderiam ter
perto de Babilônia. O clima, a cultura e a ajudado Daniel e seus amigos a ser bem-
situação de exílio inspiravam todo tipo de sucedidos? Quais princípios extraídos
terror para jovens que ainda estavam desse relato poderiam ser
na adolescência. aplicados hoje?

Pergunta
Leia o Salmo 137 e Jeremias 25:11 e 12. Um sonho perturbador
Esse salmo foi escrito por judeus que Anos depois, Nabucodonosor teve um
estavam cativos em Babilônia e que, sonho que o deixou muito preocupado.
possivelmente, eram contemporâneos Tentou a todo custo se lembrar do conteúdo
de Daniel e seus amigos. Quais dele, mas não conseguia. Supersticioso como
sentimentos podem ser percebidos era, chamou todos os astrólogos, magos e
nesse salmo? De acordo com o profeta encantadores do reino para que revelassem não
Jeremias, ainda havia esperança para o somente o que ele havia sonhado, mas também
povo de Israel no cativeiro? qual seria o significado do sonho. Caso não
conseguissem, pagariam com a própria vida.
Você pode encontrar essa história em Daniel
capítulo 2.

67
Desesperados, os especialistas do palácio A interpretação do sonho
tentaram em vão acalmar o monarca: “Não há Os quatro metais, segundo a interpretação
mortal sobre a terra que possa revelar o que do profeta, representavam quatro impérios
o rei exige; pois jamais houve rei, por grande poderosos que dominariam praticamente
e poderoso que tivesse sido, que exigisse todo o mundo conhecido, isto é, Europa,
semelhante coisa de algum mago, encantador Ásia e parte da África. Logo, pelos limites da
ou caldeu. A coisa que o rei exige é difícil, e época, eles poderiam ser chamados de quatro
ninguém há que a possa revelar diante do rei, impérios mundiais. Três deles deveriam suceder
senão os deuses, e estes não moram com os Babilônia, retratada pela cabeça de ouro da
homens” (Daniel 2:10, 11). estátua (Daniel 2:38).
Os pés de barro e ferro indicavam
Decreto de morte que o quarto reino (representado pelas
Furioso com a incompetência de seus pernas de ferro) seria dividido em vários
sábios, o rei mandou matar todos eles, inclusive reinos independentes que permaneceriam
aqueles que estavam estudando na escola fragmentados até a vinda da pedra destruidora,
superior de Babilônia, isto é, Daniel e seus um símbolo do juízo final sobre a Terra (ver
companheiros. Daniel 2:40-45).
Quando soube da ordem do rei, Daniel
pediu ao capitão do exército que ainda não O cumprimento do sonho na história
matasse os sábios. Depois o hebreu falou com
o monarca e lhe prometeu que, caso tivesse um Babilônia: cabeça de ouro
determinado prazo, lhe revelaria o sonho e lhe Já sabemos que a cabeça de ouro
daria a devida explicação do mistério. O pedido simbolizava o reino de Babilônia e que,
foi atendido, assim como a oração dos jovens segundo a profecia divina, esse império seria
hebreus. No dia seguinte, Daniel se apresentou dominado por um reino inferior, representado
perante o rei para desvendar o sonho que pelo peito e pelos braços de prata. Os capítulos
afligia a alma dele. 7 e 8 do livro de Daniel confirmam que a Média-
Pérsia seria o reino seguinte.
Daniel e a estátua de metais
Ao chegar diante do soberano, Daniel
não perdeu a oportunidade de testemunhar a
respeito do verdadeiro Deus: “Não há sábios,
adivinhos, feiticeiros nem astrólogos que
possam dar a explicação que o senhor está
exigindo. Mas há um Deus no Céu que explica
mistérios. Foi por meio de um sonho que Ele fez
o senhor saber o que vai acontecer no futuro. E
agora, ó rei, eu vou explicar o sonho e as visões
que o senhor teve enquanto dormia” (Daniel
2:27, 28, NTLH).
À medida que Daniel narrava o sonho, o
rei ia se lembrando do que havia visto. Em seu Média-Pérsia: peito e braços de prata
sonho, Nabucodonosor tinha contemplado uma De fato, Babilônia caiu vergonhosamente
enigmática estátua composta por diferentes nas mãos do Império Medo-Persa, que
metais. A cabeça era de ouro, o peito e os conquistou a poderosa cidade graças a uma
braços de prata, o quadril de bronze, as pernas bebedeira promovida pelo rei Belsazar. Isso
de ferro e os pés de ferro misturado com barro. aconteceu no ano 538 a.C. Podemos dizer que
Enquanto olhava a imagem, o monarca viu cair Babilônia, contando a partir de Nabucodonosor,
do céu uma enorme pedra que foi arremessada foi a senhora do mundo por mais ou menos 68
diretamente nos pés da estátua, destruindo-a anos, quando os medos chegaram para acabar
completamente e esmiuçando todas as partes com a festa.
dela. A mesma pedra, porém, tornou-se uma Embora sua glória fosse inferior à de
grande montanha que encheu toda a Terra (ver Babilônia, os reis da Média-Pérsia, Ciro e
Daniel 2:29-35). Dario, também se destacaram como grandes

68
construtores de templos e palácios. O palácio
de Susã, por exemplo, erguido por Dario I,
consumiu em sua construção 40 mil talentos
de ouro (cerca de 1.200 toneladas).
O império que Ciro levantou ao destruir
Babilônia alcançou sua maior extensão com
o reinado de Dario II, que o expandiu da Índia
até a Grécia e sul da Etiópia. Eram ao todo 8
milhões de quilômetros quadrados divididos
em 127 províncias que, sozinhas, já dariam
verdadeiros impérios.

Grécia: quadril de bronze


Seguindo a sequência da estátua, a
próxima parte seria o quadril de bronze. Esse
metal representaria os grego-macedônios, os
próximos senhores da Terra. Nesse império,
destaca-se a figura de Alexandre Magno.
É importante lembrar que isso havia sido
profetizado dois séculos e meio antes de ele
tomar o poder. Com apenas 20 anos de idade,
Alexandre foi obrigado a assumir o reino no
lugar de seu pai, Felipe, que fora assassinado
em uma batalha contra os persas. Corria,
então, o ano de 336 a.C. Em apenas 8 meses Roma: as pernas de ferro
de governo, Alexandre e seus 35 mil guerreiros Em 168 a.C., os romanos derrotaram os
já haviam percorrido aproximadamente 8.200 gregos na cidade de Pidna, assumindo, então, o
quilômetros, dominando todas as vilas e domínio universal. Assim, o reino representado
cidades que estavam pelo caminho. pelo quadril de bronze da estátua profética
Em 334 a.C., o jovem rei derrotou um passou para o poder simbolizado pelas pernas
exército persa em Grânico e o próprio Dario de ferro. Como você deve saber, Roma foi o
na batalha de Issus. Em apenas cinco anos de mais sangrento e impiedoso império de todos
poder, Alexandre já havia se tornado senhor os tempos. Permanecendo no poder por mais
de Babilônia, da Síria, da Fenícia e de todas de 300 anos, perseguiu cristãos, arrasou
as grandes cidades que antes pertenciam ao Jerusalém e destruiu novamente o templo
domínio medo-persa. Morrendo ainda muito judeu que havia sido reconstruído depois da
jovem, e de causas debatíveis (para uns ele foi queda de Babilônia.
assassinado, para outros vitimado de malária,
ou ainda pelo excesso de vinho), Alexandre
deixou vazio o trono da Macedônia.

69
Reinos divididos A profecia de Daniel também dizia que
O reino dos césares também teria seu jamais haveria uma união efetiva entre esses
fim. Entre 351 e 476 d.C., bárbaros nórdicos povos. Eles até se juntariam mediante alianças
invadiram o império e alcançaram a capital. e casamentos. No entanto, assim como o
Roma passou, então, a ser uma potência barro não se mistura com o ferro, eles jamais
fragmentada, conforme havia sido indicado formariam um governo único (Daniel 2:43).
na profecia. Da derrocada do Império Romano Não é por menos que a história está repleta
surgiu uma multiplicidade de reinos. Mais uma de tentativas para unificar a Europa. Nenhuma
vez, a profecia havia indicado corretamente delas, porém, concretizou-se. Carlos Magno,
que, depois de Roma, haveria um reino Carlos V, Luís XIV, Napoleão Bonaparte,
permanentemente dividido. Guilherme II e Adolf Hitler são exemplos de
Foram várias as tribos que se líderes que tentaram em vão reunificar a Europa.
estabeleceram no antigo território do império, Quanto aos casamentos entre as casas
reconfigurando o mapa da Europa. Germanos, reais, algo explicitamente previsto na profecia,
francos, burgúndios, suevos, anglo-saxões, podemos dizer que a Europa foi o continente
visigodos. Foram desses clãs que se formaram que mais se uniu em termos de parentesco
as nações atuais da Europa Ocidental: Portugal, e enlaces matrimoniais. Carlos Magno, da
Espanha, França, Itália, Alemanha, Inglaterra França, casou-se com Desiderata, princesa
e Suíça. da Lombardia. Depois de algum tempo,
trocou-a por Hildegarda, sobrinha do duque
da Germânia, atual Alemanha. Carlos V, rei da
Espanha, era filho de Filipe, o arquiduque da
Áustria, e neto de Maximiliano, imperador do
Sacro Império Romano-Germânico. Filipe, por
sua vez, era marido de Joana, a Louca, que
era filha de Fernando e Isabel, soberanos da
Espanha. Nosso ex-imperador, Dom Pedro I, era
filho de Carlota Joaquina, princesa da Espanha,
e de Dom João VI, herdeiro do trono português.
Como você pode ver, todos eram parentes
na Europa.
Por último, podemos observar a tentativa
frustrada de manutenção da comunidade
europeia, que já amarga a saída de importantes
membros. Além disso, os países que
permanecem na chamada União Europeia têm
diferenças relevantes, algo típico de t
erritórios divididos.

Pergunta
Leia Daniel 2:44 e 45. O que aconteceu
com a estátua do sonho no período
correspondente aos pés de ferro e de
barro? O que essa pedra significava?

70
A julgar pela sequência do sonho, podemos
dizer que vivemos hoje nos pés daquela estátua
profética, à espera da pedra do juízo final que
logo virá, trazendo fim a todo domínio humano.
Em seu lugar, será estabelecido o reino de
Deus, no qual o próprio Cristo reinará
para sempre.
As profecias de Daniel são tão precisas
que os céticos, a princípio, negaram a
historicidade de seus relatos, incluindo a
existência de Nabucodonosor, de Babilônia e
do próprio cativeiro judeu. Esses fatos só foram
redescobertos no século 19, confirmando em
detalhes a historicidade bíblica.
Hoje, a tendência é situar o livro de Daniel
em um período tardio, fazendo com que suas
profecias sejam consideradas vaticinium ex
eventu. Isto é, um texto que parece anunciar
eventos antes que eles aconteçam, quando, na
verdade, se trata de algo produzido depois dos
eventos supostamente anunciados.
Contudo, elementos literários,
arqueológicos e estilísticos fazem supor que o
texto original de Daniel realmente pertenceria
ao 6º século a.C., ou seja, muito antes de suas
profecias se cumprirem. Portanto, a garantia
profética dada ao longo da história não deixa
margem para dúvidas. O mundo, de fato,
marcha para o fim. Porém, o que para muitos Conclusão
se parece com um desastre, para os estudantes
da Bíblia é motivo de esperança. Em breve,
Deus intervirá definitivamente na história da Com a Bíblia em uma mão e a história na
humanidade para inaugurar a paz. outra, podemos descansar nas palavras
de Pedro:

Temos, assim, tanto mais confirmada


a palavra profética, e fazeis bem em
atendê-la, como a uma candeia que

Boa pergunta
brilha em lugar tenebroso, até que o
dia clareie e a estrela da alva nasça em
vosso coração, sabendo, primeiramente,
Agora é você quem faz as perguntas! isto: que nenhuma profecia da
Pare para pensar e formule as Escritura provém de particular
próprias perguntas sobre essa parte elucidação, porque nunca jamais
do estudo. qualquer profecia foi dada por vontade
humana; entretanto, homens [santos]
falaram da parte de Deus, movidos
pelo Espírito Santo (2 Pedro 1:19-21).

Não há motivo para pânico ou apreensão.


Se Deus acertou no passado, por que erraria
quanto ao futuro? Pense nisso!

71
LIÇÃO 13

Como Viver
VIDEOAULA

Plenamente?
Introdução
A primeira e mais honesta pergunta a ser Pode até ser que as pessoas mais simples,
feita a alguém que se aventura a falar sobre que não disponham de tantas questões
esse tema seria: O autor desse texto consegue existenciais, alcancem algum tipo
viver plenamente? A intuição inicial demanda de felicidade por inocência ou ignorância.
um sonoro sim. Caso contrário, por que perder Semelhantemente àquela que
tempo com algo que nem a pessoa que está tínhamos na infância quando,
tentando dar dicas alcançou? alienados dos problemas do mundo
Por outro lado, mesmo o “sim” dado dos adultos, não havia outra coisa mais
com convicção não livra o autor da mira da importante do que assistir a um desenho,
desconfiança. Vida plena e felicidade total
parecem ser realidades utópicas para pessoas
que pensam demais.
brincar
com outras
crianças ou saborear
um sorvete
que, na boca, parecia a comida
Pergunta dos deuses gregos.
O problema é que crescemos.
De acordo com Salomão, “o Os brinquedos, de repente, ficaram mais
muito estudar é enfado da carne” caros; e os machucados, mais profundos
(Eclesiastes 12:12) e, “quanto maior e difíceis de sarar. Somente então nos
a sabedoria, maior o sofrimento; demos conta de que, mesmo na infância,
e quanto maior o conhecimento, já éramos alvos de muita bala emocional
maior o desgosto” (Eclesiastes 1:18, perdida que vinha dos mais velhos. Só
NVI). O que Salomão quis dizer com não tínhamos consciência delas. Porém,
essas palavras? Estaria ele contra agora que o adulto se descobre herdeiro
a busca pelo conhecimento? Qual da criança de ontem, o término da
é a diferença entre informação, anestesia juvenil nos põe em contato
conhecimento e sabedoria? com a dor. Parafraseando T. S. Eliot, não
temos o dom de suportar a realidade
por muito tempo. Assim, a pergunta
permanece: É possível
viver plenamente?
Estudando juntos
Talvez o fato de a realidade ser tão dólares por ano – 133 bilhões a mais do que
trágica tenha a ver com o sucesso de muitos precisaríamos para erradicar a miséria.2 E há
vendedores de ilusão, mesmo entre os mais um agravante. É essa indústria que alimenta o
desconfiados. Esses vendedores oferecem famigerado tráfico sexual de seres humanos.3
rotas de fuga da realidade, seja por meio de Discursos antimoralistas tentam abafar
substâncias tóxicas ou pelo entretenimento esses dados como se não fossem motivo
que gera alienação. Afinal, a realidade dói, e de preocupação, a não ser para religiosos
precisamos buscar novas formas de anestesia. conservadores. Mas é triste ver como a mesma
Daí o consumo desenfreado de drogas, sociedade que fala tanto em direitos civis
pornografia e entretenimento barato. tolera, à luz do dia, uma forma atualizada de
Segundo a ONU, cerca de 800 escravidão tão hedionda como aquela do
milhões de pessoas não têm comida passado. Como bem colocou o escritor Brenno
suficiente; e, a cada 4 segundos, uma Tardelli: “A mais triste miséria do mundo é
pessoa morre de fome no mundo. aquela que existe para me trazer prazer.”4
Para acabar com a falta de comida
e tirar essas pessoas
da miséria seriam
necessários
267 bilhões Pergunta
de dólares
por ano até Muitos estão desanimados com a
2030.1 O humanidade. Como Diógenes, saímos
contraste pelas ruas de dia com a lamparina
trágico, acesa procurando alguém que valha a
apenas pena seguir. Mas o que encontramos
para dar um é o desalento expressado por Paulo:
exemplo, é “Não há justo, nem um sequer, não há
que somente quem entenda, não há quem busque
a indústria a Deus; todos se extraviaram, à uma
pornográfica se fizeram inúteis; não há quem
movimenta 400 faça o bem, não há nem um sequer”
bilhões (Romanos 3:10-12). Com base em sua
de opinião e no que foi estudado em
lições anteriores, como a humanidade
chegou a esse ponto? Será que essa
frase de Paulo se aplica a pessoas
que se consideram boas?

Seria a vida plena uma utopia?


É no contexto de descobertas, decepções
e fracassos que nasce a desconfiança e a
sensação de que a vida plena não passa de
uma utopia. Sentimo-nos como o grande

73
Gatsby, personagem famoso de F. Scott se abandonado. É menos ruim ser órfão da mãe
Fitzgerald. Acreditamos numa luz verde e que morreu na hora do parto do que da que o
ficamos aguardando “um futuro orgástico que, abandonou na lixeira. A sensação de abandono
ano após ano, recua diante de nós. Se a dado pode gerar ódio em relação a Deus e, entre
momento nos escapou, isso não importa – o ódio e o descaso, o segundo parece mais
amanhã correremos mais rápido, esticaremos vantajoso.
os braços ainda mais… e então, em uma bela Há também aqueles que rejeitam Deus
manhã, seguiremos em frente, como barcos pelo medo de ser confrontados com verdades
contra a corrente, recuando incessantemente que não querem admitir. Trata-se de uma fuga
para o passado.” psicológica semelhante à do neurótico que
A pergunta, porém, continua: Teria o autor arranja argumentos para não ir à terapia, ou
deste texto alcançado essa vida plena? Ou da criança que esperneia diante da seringa
seria mais um caso de charlatanismo filosófico/ gritando que o machucado já sarou. É um
teológico, no qual alguém com o rosto cheio de sentimento estranho. Queremos a cura, mas
espinhas posta fotos melhoradas digitalmente temos medo dela.
e faz propaganda de um creme para limpar a
pele? Vejamos se até o fim deste diálogo essas Uma entrevista secreta
perguntas serão respondidas. E não adianta Certa vez, Jesus Se encontrou com um
pular para o final, você não entenderá o filme intelectual chamado Nicodemos. Na verdade,
se ignorar o enredo. foi Nicodemos que procurou uma entrevista
com Jesus à noite, possivelmente para não
Questionamentos da fé sofrer represálias de seus pares. Jesus respeitou
Quase todas as pessoas com boa os medos daquele homem e aceitou conversar
formação teológica já foram confrontadas com com ele. Porém, lembrou-o do que realmente
dúvidas sobre a fé. Não é incomum encontrar precisava: “nascer de novo”.
pessoas chocadas com a revelação de que
religiosos também lidam com o fantasma da
desconfiança. Na academia, estudantes de
doutorado em religião costumam recitar a
famosa terceira lei da Teologia: “Para cada
teólogo, existe outro teólogo oposto e em pé
de igualdade.”
Não se surpreenda com isso, dependendo
da situação, você descobrirá – talvez para sua
tristeza – que as dúvidas não abandonarão
por completo aquele que trilha o caminho da
fé. Por outro lado, você descobrirá o que a fé
significa quando ela for a única coisa que lhe
tiver restado.
A Bíblia está repleta de exemplos de
verdadeiros servos e servas de Deus que Apesar de seu conhecimento, Nicodemos
fizeram profundos questionamentos diante não entendeu, a princípio, o que Jesus queria
das provações da vida. “Até quando, Senhor?”, dizer. Talvez esperasse uma resposta complexa,
clamava Davi, “esquecer-Te-ás de mim para cheia de aforismos e dialéticas. O que recebeu
sempre? Até quando ocultarás de mim o rosto?” foi uma verdade simples e direta que causou
(Salmo 13:1). “Por que ficas calado enquanto um nó em sua mente. Mais do que um conselho,
os ímpios devoram os que são mais justos que uma charada ou uma dica, o que Jesus fez foi
eles?”, questionou o profeta Habacuque (1:13, um apelo direto ao coração daquele homem.
NVI), cujo nome ironicamente significa “o Muitos precisam entender que Jesus não
abraço de Deus”. veio para nos tornar melhores pais, melhores
Muitas vezes, a raiz do ceticismo pode mães nem melhores membros da sociedade.
estar em traumas do passado. Por isso alguns O evangelho não oferece melhoria, mas
acham melhor imaginar que não há ninguém lá transformação e renascimento. O grande
em cima do que conviver com a dor de sentir- problema é que preferimos a analgesia que nos

74
deixa bem, e não a cura definitiva para nosso Mesmo assim, confie Nele. Lembre-se de que
problema. não detemos todo o conhecimento do mundo,
É por isso que a busca por conexões por isso é necessário que nos sujeitemos, pela
com a vida nem sempre é isenta de conflitos, fé, à voz de um especialista. Isso acontece
especialmente emocionais. Crescer dói; curar quase sempre. Afinal, somos leigos em 99,9%
mais ainda, principalmente se o processo se do universo de saberes que está ao nosso
dá em meio a um grande conflito. Lembre-se redor.
do que estudamos na lição 10: estamos em Lembre-se também de que, por mais
uma guerra cósmica entre o bem e o mal, esperto que você seja, o especialista poderá
sem tréguas. Daí a necessidade de Deus lutar fazer coisas que não terão o menor sentido em
conosco, nos treinar e nos segurar quando sua cabeça. Até mesmo Einstein admitia com
resistimos. Não se prepara um soldado em um frequência, em sua correspondência com Freud,
ateliê de costura. É o combate simulado que o as dificuldades que tinha em compreender as
capacita para as verdadeiras batalhas. obscuras regiões da vontade e do sentimento
humano. Freud, por sua vez, não captava as
De Jacó para Israel nuances básicas da teoria da relatividade.5 Ora,
Veja o caso de Jacó. O patriarca nasceu se grandes gênios não entendiam todos os
com um nome que, por extensão, veio a assuntos relacionados com a especialidade do
significar “enganador” em hebraico. Aliás, outro, por que alguns insistem em entender, ou
engano era o termo que resumia sua vida, pois o que é pior, censurar os atos de Deus?
ora enganava, ora era enganado. Vale a pena ler
sua história no livro do Gênesis, do capítulo 25 Deus e o médico
em diante. Veja a ironia. Mesmo sabendo que erros
Mais tarde, Jacó passou a se chamar Israel, médicos afetam 138 milhões de pessoas por
um nome dado pelo próprio Deus. Na cultura ano, ainda assim, se eu estiver enfermo ou
do Antigo Oriente Médio, o nome retratava sofrer um acidente, certamente pedirei a
a história de vida de uma pessoa. Isso quer alguém para me levar a um hospital, pois,
dizer que mudar de nome significava mudar de apesar dos erros, os profissionais da saúde
vida. E como Jacó conseguiu essa mudança? ainda são a melhor opção que tenho.6 Ora, se
Lutando ardorosamente com Deus, uma sou corajoso o bastante para entregar minha
batalha que lhe deixou sequelas. Deus, na vida nas mãos de um cirurgião que é falho, por
forma de um anjo, apareceu para o patriarca que sou reticente para entregar minha vida nas
no fim de uma madrugada e preparou um mãos de Deus, o único especialista que não
cenário de luta que certamente se identificaria se equivoca?
com muitas terapias de choque. Foi na
luta desenfreada com o suposto anjo que
Jacó pôde ter sua realidade e seu nome
transformados. Assim, ele passou a se chamar
Israel, que significa literalmente “o indivíduo
que luta com Deus”. Jacó lutou com Deus
e venceu.
Essa batalha está sendo travada
novamente, talvez neste exato momento.
Deus não obriga ninguém a aceitá-Lo,
mas também não desiste com facilidade.
Entenda que Ele é um pai amoroso que suplica
incessantemente ao filho pródigo para que
volte para casa. Ele é como uma mãe tentando
desesperadamente salvar um filho de uma casa
em chamas.

Freud e Einstein
Você poderá não entender porque Deus
permite algumas coisas e impede outras.

75
O “Fausto” de Goethe é uma obra que nos
prepara bem para o epílogo deste estudo. Ela
é a própria imagem das inquietudes de vida Pergunta
do autor, bem como de suas lutas e tragédias.
O texto ilustra adequadamente a luta do ser Paulo já havia questionado: “Onde está
humano moderno pela busca de significado, o sábio? Onde está o erudito? Onde está
entendimento e plenitude de vida. A ciência e o questionador desta era? Acaso não
o racionalismo tentam nos convencer de que tornou Deus louca a sabedoria deste
o diabo não existe e de que Deus não ficou mundo? Visto que, na sabedoria de Deus,
sabendo disso – uma forma jocosa de negar o mundo não O conheceu por meio da
a existência de um Deus onisciente e do mal sabedoria humana, agradou a Deus salvar
personificado num ser diabólico. Não obstante, aqueles que creem por meio da loucura
sentimo-nos presos, à mercê do inimigo. da pregação” (1 Coríntios 1:20, 21, NVI).
De certa forma fomos seduzidos por ele. À Reveja sua resposta à primeira pergunta
semelhança do doutor Fausto, carregamos um deste estudo e responda à questão a
fardo por causa de Mefistófeles (que é o diabo). seguir com base na citação de Paulo. O
Assim como o demônio de Fausto, a que você modificaria em
serpente do Éden nos oferece conhecimento sua resposta?
em troca de servidão, paixão em troca de
amor e eternidade em troca de sujeição. Na
continuidade da trama, Mefistófeles visita
Deus no Céu e, ao lado dos anjos, discursa
sobre a infelicidade humana. Ele admite que a
inteligência e a razão pouco servem, pois, ao
fim, transformam os seres humanos em pessoas
brutas. O verdadeiro problema está narrado no
Gênesis: fomos seduzidos pelo conhecimento
do bem e do mal e acreditamos nele. No fim da trama, cansado do
conhecimento obtido na montanha de livros
Estamos emburrecendo? que o cercava, Fausto não anula o valor da
De fato, estamos enfadados pelo cultura, mas percebe que há vida fora dos livros,
conhecimento. Às vezes, a sensação é a de que, da informação e mesmo do conhecimento.
quanto mais informações acumulamos, menos Uma cena de salvação é encetada. Fausto se
sabemos. Todos os anos são produzidos 1,5 encontra com Deus.
bilhão de gigabytes em informação impressa, Da fantasia de Goethe para a vida real,
filme ou arquivos magnéticos. Isso dá uma não estaria na hora de você se encontrar com
média de 250 megabytes de informação para Cristo? Ele anseia salvar você. Basta deixar que
cada homem, mulher e criança do planeta. Deus faça o trabalho. Você só precisa aceitar, e
Seriam necessários dez computadores para o resto é com Ele.
cada pessoa guardar apenas a parte que Por que não se deixar ser alcançado pela
lhe caberia desse arsenal de conteúdo que maravilhosa graça de Deus? Há um propósito
aumenta cada vez mais. na vida e um Criador que cuida de todos
Dizem que apenas uma edição normal nós. As coisas ruins serão passageiras, e as
do New York Times contém mais informação agradáveis apenas uma degustação do que
do que uma pessoa comum poderia receber ainda nos aguarda.
durante toda a vida na Inglaterra do século As profecias nos permitem conhecer o
17. Mesmo assim, nunca fomos tão ignorantes enredo da história. Na marcha e contramarcha
quanto às questões centrais da vida. O das nações vemos Deus atuando para
conhecimento, admitiram Horkheimer e cumprir Seu propósito final de promover a
Adorno, da Escola de Frankfurt, é uma forma felicidade eterna. Como o próprio Nietzsche
de ilusão e um instrumento da astúcia para disse: “Se tivermos um porquê na vida, então
quem trabalha com a racionalidade.7 enfrentaremos qualquer como”.8

76
É claro que nem tudo serão flores. O
evangelho não traz a ilusão de uma realidade
cor-de-rosa. Há percalços pelo caminho, e
precisamos enfrentá-los todos os dias. E isso
não é fácil. Você está decepcionado? Sentindo-
se como Dorothy ao descobrir que o Mágico de
Oz é apenas um ser humano perdido como ela?
Quem sabe esteja aí a beleza do enredo. Talvez
a indústria dos cosméticos precise de um rosto
perfeito para anunciar seus produtos, mas a
janela da vida requer um rosto familiar. Alguém
que entenda o que é sentir dor, frio, decepção.
Há pessoas que são feitas de plástico. Você
rasga as veias delas e, em vez de sangue, sai
água. Para falar ao coração, precisamos de
gente como a gente. Pessoas que desçam da
torre de marfim, admitam o medo do escuro e,
ainda assim, sejam capazes de pegar em nossa
mão para não nos sentirmos sozinhos. Não foi
exatamente isso que o Altíssimo fez quando
trocou Sua glória para viver confinado em um
corpo humano?
Certezas do coração são sentimentos
que agem como sabores de sorvete. Não são
irracionais, mas a razão pura não consegue
explicá-los. Não há teorema, silogismo ou
enunciado que explique o momento da
sensação. A única coisa que podemos fazer
Boa pergunta é testemunhar o quanto essa experiência foi
agradável e convidar o outro a experimentá-la
Agora é você quem faz as perguntas! também. É isso que faço agora: Você gostaria
Pare para pensar e formule as próprias de experimentar uma vida com Deus?
perguntas sobre essa parte do estudo. Pense nisso!

Referências
1 “Erradicar a Fome no Mundo até 2030 Custa 160 Dólares Anuais por Pessoa”, Nações Unidas Brasil,

disponível em <https://nacoesunidas.org/erradicar-a-fome-no-mundo-ate-2030-custa-160-dolares-

anuais-por-pessoa-afirma-onu/>, acesso em 4 de junho de 2020.

2 “Indústria de Artigos Pornográficos Movimenta R$ 400 Bilhões ao Ano”, G1, disponível em <http://

Conclusão
g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2016/05/industria-de-artigos-pornograficos-movimenta-r-

400-bilhoes-ao-ano.html>, acesso em 4 de junho de 2020.

3 “Erradicar a Fome no Mundo até 2030 Custa 160 Dólares Anuais por Pessoa”, Nações Unidas Brasil.

4 “Erradicar a Fome no Mundo até 2030 Custa 160 Dólares Anuais por Pessoa”, Nações Unidas Brasil.

Como podemos viver plenamente? Depende. 5 “The Einstein-Freud Correspondence (1931-1932)”, disponível em <http://www.public.asu.

Enquanto nossa alma estiver enferma, nada edu/~jmlynch/273/documents/FreudEinstein.pdf>, acesso em 4 de junho de 2020.

será o bastante. Porém, quando permitirmos 6 “Erros Médicos Afetam 138 Milhões de Pessoas por Ano”, UOL, disponível em <https://noticias.uol.

a cura divina e a presença de quem nos ama, com.br/ultimas-noticias/efe/2019/09/13/oms-revela-que-138-milhoes-de-pessoas-sao-afetados-por-

uma choupana se tornará um palácio; e um erros-medicos-por-ano.htm>, acesso em 4 de junho de 2020.

leito frio de hospital, um cenário de amor. Não 7 Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Dialectic of Enlightenment (Nova York: Continuum, 2001).

teremos tudo, mas o que tivermos será 8 Friedrich W. Nietzsche, Twilight of the Idols, “Maxims and Arrows”, §12, disponível em <http://www.

o suficiente. handprint.com/SC/NIE/GotDamer.html>, acesso em 4 de junho de 2020.

77
LIÇÃO 14
VIDEOAULA

Quem Precisa
de Igreja?

Introdução
Durante séculos, o racionalismo defendeu a ideia de que pessoas
inteligentes precisavam ser secularizadas. Agora, porém, a tendência parece
ser a de que “pessoas inteligentes precisam ser espirituais”. Há até quem
diga que devemos buscar uma “espiritualidade secularizada”, se é que isso
faz algum sentido.1
Os proponentes desse ponto de vista se referem à espiritualidade como
uma busca pela transcendência sem o arcabouço da religião. Seria uma
espécie de filosofia da espiritualidade, desenvolvendo mais as relações do
indivíduo com a natureza (meio ambiente), seu semelhante (humanismo) e
consigo mesmo, com pouca ou nenhuma ênfase na relação com Deus.
O fato é que, de um modo ou de outro, secularizado ou tradicional,
a busca por espiritualidade coincide com uma verdadeira febre de
consumismo religioso. Embora seja menor na Europa, isso está muito
presente nos demais continentes, especialmente na África e na
América Latina.

Estudando juntos

Essa mudança de pensamento produziu cenários que, embora fossem contraditórios a


uma guinada marcante no comportamento princípio, coexistem na sociedade ocidental:
ocidental. Porém, longe de ser um motivo de uma antipatia social às religiões organizadas
pura comemoração, devemos ter em mente e a descoberta do consumidor espiritual pelo
que tal realidade oferece oportunidades, mas mercado. O consumidor espiritual é um sujeito
também desafios e perigos para quem vive geralmente mais crédulo do que crente, que
nessa primeira parte do século 21. Não nos está pronto para adquirir qualquer produto que
esqueçamos de que a febre religiosa trouxe for posto na frente dele. Um alvo fácil para o
consigo o fanatismo, os ataques terroristas, oportunismo em nome de Deus.
a incoerência entre piedade retórica e
cristianismo prático. Logo, a situação é, Vinho e mensagem adulterados
principalmente, de alerta. Paulo já lidava com problemas semelhantes
Todo esse ambiente fez surgir dois em seu tempo. E não se trata de anacronismo.
É claro que as noções mercadológicas de hoje o Velho (23-79 d.C.), reclamava da grande
não eram conhecidas nos dias de Roma. No quantidade de vinho falsificado que havia em
entanto, alguns princípios podem ser extraídos Roma. Segundo ele, nem os nobres sabiam
da experiência do apóstolo. se o que bebiam era vinho genuíno. Esse era
Ao falar de sua fidelidade ao cumprimento um grande problema na Roma antiga, e Paulo
do chamado divino, Paulo contrastou seu aproveitou essa situação para ilustrar o que
ministério com o de outros. O apóstolo os queria dizer.
comparou a cidadãos de má índole que, às Em 2 Coríntios 2:17, o apóstolo disse que
ocultas, realizavam suas ilegalidades. muitas pessoas viviam “mercadejando a Palavra
de Deus”. Já em 2 Coríntios 4:2, ele falou sobre
os que, com “astúcia”, a estavam “adulterando”,

Pergunta
isto é, falsificando-a antes de apresentá-la ao
povo. Esse jogo de palavras (mercadejar e
adulterar) coincidentemente seria usado por
Paulo escreveu: “Rejeitamos as Luciano de Samósata (120-192 d.C.) em sua
coisas que, por vergonhosas, se crítica aos filósofos de má índole que “vendiam
ocultam, não andando com astúcia, suas lições como mercadores de vinho, muitos
nem adulterando a Palavra de deles adulterando, enganando e oferecendo
Deus; antes, nos recomendamos falsas medidas.”2
à consciência de todo homem, na Paulo não estava, é claro, fazendo
presença de Deus, pela manifestação nenhuma apologia ao consumo de álcool. Ele
da verdade” (2 Coríntios 4:2). simplesmente se aproveitou de uma situação
A falsidade dos seres humanos comum para ilustrar seu ponto de vista. A
pode servir de parâmetro para sociedade sofria com os que, às escondidas,
tomarmos a decisão de nos unir a adulteravam o vinho; e a igreja, com os que, às
Deus e Seu povo? Como as palavras escondidas, adulteram a mensagem de Deus.
de Paulo lançam luz sobre Por isso o apóstolo disse trabalhar à luz do
essa questão? dia, à vista de todos, não às escondidas. Ele
não diluía, às ocultas, a Palavra de Deus com
acréscimos desnecessários ou palavras vãs
como faziam muitos de seu tempo.

Mercenários da fé modernos
Seja como for, o problema dos mercenários
Dentre os comerciantes da fé vem de longa data. Isso não é privilégio
desonestos do tempo de nossa época. Logo, tanto ontem como hoje,
de Paulo, havia os temos duas maneiras de resolver a questão:
mercadores de vinho que tomar a parte pelo todo, desconfiando de
adulteravam o produto qualquer líder religioso, ou separar o joio do
antes de vendê-lo aos trigo, no sentido de saber que há bons e maus
desavisados. Plínio, exemplos em todas as áreas. A religião não é a
única delas.
Não é o caso, porém, de dizer que todos
os que recebem por prestar serviços religiosos
são necessariamente mercenários de
Deus. O salário extraído do
recolhimento de

79
dízimos já era uma prática nos dias de Paulo. pastor estaria entre as menos respeitadas do
Mesmo preferindo obter sustento por conta país. Ela só perdeu para vendedor de carros
própria, ele nunca negou que tivesse direito usados, trabalho que os norte-americanos
de receber por seu trabalho. Pelo contrário, jocosamente vinculam a pessoas desonestas.3
reafirmou esse conceito com todas as letras:
“Assim também ordenou o Senhor aos que Os “desigrejados”
pregam o evangelho, que vivam do evangelho” O mundo cristão contemporâneo está
(1 Coríntios 9:14). Note que o apóstolo citou realmente vivendo um êxodo de pessoas
um dito de Cristo preservado também em que se declaram “desigrejadas”. Esse é um
Lucas 10:7. Na passagem de Lucas, Jesus termo inédito, para muitos, pejorativo, usado
não mencionou explicitamente o dízimo em para descrever aquela parcela considerável
dinheiro como temos hoje, mas falou do da população que diz amar Jesus Cristo, mas
sustento do obreiro enviado para evangelizar não quer compromisso com esse organismo
outros ou que está ensinando a serviço da chamado “igreja”. Nos Estados Unidos, esse
igreja. fenômeno recebeu o nome de Churchless
Raciocine deste modo: Quem você acha Christianity e já rendeu muitos estudos a
que paga o salário de assistentes sociais, respeito. Até o conhecido grupo Barna de
professores, médicos e advogados da rede pesquisa estatística publicou um livro sobre o
pública? Seu imposto, é claro. Agora, você já assunto. O grupo concluiu que nos anos 1990
parou para pensar quantos desses profissionais cerca de 30% dos cristãos se diziam sem igreja.
exercem mercenariamente sua função? A mídia No ano 2000, esse número havia saltado para
sempre apresenta escândalos de corrupção 33%. Mais recentemente, na metade da última
no funcionalismo público, mas isso não implica década, 43% dos cristãos afirmaram não ter
dizer que o sistema está errado ou que todos compromisso com uma igreja.4
os servidores do estado sejam corruptos. Na Alemanha dos anos 1970, era comum
Nossa história, por exemplo, tem uma o grito de ordem: Jesus ja; Kirche nein! Jesus
considerável lista de notáveis brasileiros ja; Kirche nein! – “Jesus sim; igreja não!”
que foram, com muito orgulho, funcionários Esse grito era entoado principalmente pelos
públicos: Machado de Assis, Lima Barreto, mais jovens. Foi-se o tempo do aforismo de
Manoel Antônio de Almeida, Graciliano Ramos, Cipriano de Cartago, que dizia no 3º século:
Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de “extra ecclesiam nulla salus” – “fora da igreja
Andrade e outros. não há salvação”. A ideia, agora, é repetir
A ideia por trás do princípio religioso ironicamente, com alguns teólogos franceses,
da manutenção de clérigos é a mesma do que Jesus havia sonhado com o reino e,
funcionalismo público: fazer com que alguns quando acordou, encontrou a igreja.5
profissionais dediquem tempo integral de seu
ofício para atender àqueles que não têm como Jesus e a igreja
pagar particularmente por este ou aquele O termo “assembleia”, do grego ekklesia,
serviço essencial. Por isso, diferentemente dos passou a ser usado na tradição cristã somente
que recebem um salário por serviço prestado a partir dos escritos de Paulo, por volta
ao cliente, esses profissionais são mantidos do ano 50 d.C. Não sabemos com certeza
pelo recolhimento da contribuição de todos. absoluta porque esse termo foi escolhido para
denominar a assembleia dos cristãos. Talvez
Escândalos e suas consequências fosse para diferenciá-la da sinagoga judaica,
Temos que admitir que escândalos que em grego tem praticamente o mesmo
em nome de Deus causam mais estragos significado.
emocionais do que escândalos em nome
do governo. Tudo isso gera, em parte, o
distanciamento de muitas pessoas das
instituições eclesiásticas.
Há outros motivos também, mas a falta
de piedade e os escândalos são os principais.
Tanto que uma pesquisa feita em 2014 nos
Estados Unidos mostrou que a profissão de

80
Por mais real que seja o desapontamento,

Pergunta colocar uma lupa sobre nossas decepções


pode nos levar ao vitimismo e à generalização
típica daqueles adolescentes que, por serem
O termo “igreja” é empregado mais infelizes no namoro, dizem: “Todas as mulheres
de 100 vezes no Novo Testamento, a são iguais.”
maioria delas no livro de Atos e nas Por outro lado, há também os costumeiros
cartas de Paulo. Essa palavra é usada críticos do sistema. Embora coisas erradas
somente em duas ocasiões por Jesus, ocorram e devam ser denunciadas, também
em Mateus 16:18 (“Tu és Pedro, e sobre é um sinal de inteligência saber escolher
esta pedra edificarei a Minha igreja”) as próprias batalhas. Caso
e em Mateus 18:17 (“E se ele não os contrário, passaremos a vida
atender, dize-o à igreja; e, se recusar brigando e não teremos
ouvir também a igreja, considera-o autoridade para falar nos
como gentio e publicano”). Reflita momentos cruciais, pois
sobre essas declarações de Jesus e todos já terão se cansado
responda: O que você pensa sobre a de ouvir nossas queixas.
igreja? Será que ela ainda A tendência dos que
é necessária? exageram nesse ponto
é cair na “síndrome de
Messias”, julgando por
imoral todo aquele que
discorda de suas ideias.
Em ambos os
casos, dos feridos e
Considerando que Cristo falava aramaico dos denunciadores, é
e não grego, qual termo Ele teria usado preciso reconhecer que a
originalmente e que o evangelista traduziu por diferença entre veneno e
“igreja”? É provável que Jesus tenha dito kahal, remédio é uma questão
uma palavra comum no Antigo Testamento de dosagem. Não existe
para designar Israel, desde o momento em que nenhuma razão para se abandonar a fé coletiva
se tornou o “povo de Deus” por meio da aliança que os apóstolos e o próprio Jesus já não
do Sinai. Porém, a pergunta que insiste é: Será tenham enfrentado em seu tempo. A corrupção
que Jesus empregou a palavra “igreja” com o em Jerusalém e no templo não impediu Jesus
mesmo sentido que ela tem hoje? de seguir com outros adoradores para as
É interessante notar que, embora Paulo convocações religiosas feitas por rabinos e
tenha usado o termo de diferentes formas sacerdotes que, muitas vezes, eram destituídos
em suas cartas, ele o empregou sempre de verdadeira piedade.
com sentido coletivo. O apóstolo nunca
identificou a igreja com indivíduos. De fato, Afinal, quem precisa de igreja?
mesmo no mundo grego, de onde a palavra Jesus não ia à igreja porque os líderes O
foi emprestada, o sentido dela é sempre convocavam, mas por entender que essa era
de agrupamento organizado. Assim, é um a vontade de Deus. Jesus nunca deixou de ir à
tremendo erro do ponto de vista filológico sinagoga porque Se sentia melhor adorando o
afirmar “a igreja sou eu”. Seria o mesmo que Pai debaixo de uma árvore. A Bíblia diz que, ao
dizer “a colmeia é uma abelha”. Isso não faz chegar a Nazaré, onde havia sido criado, Jesus
sentido algum. “entrou na sinagoga no dia de sábado, segundo
o Seu costume, e levantou-Se para ler” (Lucas
A busca por um ponto de equilíbrio 4:16). Seríamos nós melhores do que Jesus?
É fato que há muitas pessoas machucadas Nesse mesmo espírito, a carta aos Hebreus
por organizações eclesiásticas que se sentem diz: “Não deixemos de congregar-nos como
feridas por Deus. O risco é acentuarem a igreja, como é costume de alguns; antes,
experiência negativa a ponto de cortar toda façamos admoestações e tanto mais quanto
uma floresta por causa de duas árvores podres. vedes que o Dia se aproxima” (Hebreus 10:25).

81
Chama-nos a atenção a força desse conselho.
Isso porque essas palavras possivelmente
tenham sido escritas por Paulo, alguém que
colecionava decepções com irmãos de fé e
algumas congregações por onde passava.

Pergunta
Reflita nas palavras de Hebreus e
responda: Seria a decepção um
Conclusão
parâmetro adequado para determinar
nossa comunhão com Deus e Sua Milhares de pessoas morrem por
igreja? Se a sua resposta for não, qual imprudência no trânsito, e isso não nos
seria o parâmetro ideal para isso? impede de dirigir. Se nosso time não ganha
um campeonato há anos, nem por isso
consideramos mudar de torcida. Porém, se nos
desapontamos com a igreja ou com algumas
pessoas de lá, não queremos mais saber dela.
Esse raciocínio é coerente?
Em vez de achar que ficaria melhor
fora da igreja, pense que ela poderia ficar
Por que a igreja é necessária? Pelas melhor com você. Ouça as palavras de Cristo
mesmas razões que outros agrupamentos dirigidas a Pedro que, desgostoso, lamentava
sociais o são. Veja, com exceção de um ou a convivência com João: “‘Senhor, e quanto a
outro caso envolvendo eremitas, a tendência ele?’ Respondeu Jesus: ‘Se Eu quiser que ele
natural do ser humano é viver organizado em permaneça vivo até que Eu volte, o que lhe
coletividades. Nenhum ser humano é uma ilha. importa? Quanto a você, siga-Me!’” (João 21:21,
Conviver com pessoas diferentes, que precisam 22, NVI). “E quando você se converter, fortaleça
ser ajudadas, orientadas e suportadas talvez os seus irmãos” (Lucas 22:32, NVI).
seja o meio usado por Deus para trabalhar
nosso caráter e desenvolver nossa humildade. Convite ao estudo e à ação
Se repudiamos o racismo e qualquer forma Continue estudando a Bíblia Sagrada. Não
de segregação, por que nos recusaríamos a se contente com o que aprendeu aqui. Compare
conviver com pecadores mortais? Por sermos os ensinos que recebeu com a Palavra inspirada
melhores do que eles? Todo cristão honesto e aceite a comunhão com os filhos de Deus.
deveria se perguntar seriamente: Se a maioria Entenda o que é o batismo, a caminhada cristã,
das pessoas fosse exatamente como eu, a igreja a fidelidade aos Dez Mandamentos e a certeza
seria melhor do que é atualmente? da segunda vinda de Cristo. Ainda existem
muitas verdades esperando por você!
Pense nisso!

Boa pergunta Referências

1 Robert C. Solomon, Spirituality for the Skeptic: The Thoughtful Love of Life (Nova York: Oxford
Agora é você quem faz as perguntas!
University Press, 2002).
Pare para pensar e formule as próprias
2 Hermotimus 59.
perguntas sobre essa parte do estudo.
3 Essa pesquisa foi realizada por um convênio estatístico entre The Fuller Institute, George Barna e

Pastoral Care Inc., citado por Gabriel Oluwasegun, Leadership in the Church (Ibadan: International

Publishers, Harvey A. E., 1996), p. 26.

4 George Barna e David Kinnaman (eds.), Churchless: Understanding Today's Unchurched and How to

Connect with Them (Carol Stream, IL: Tyndale House, 2014).

5 Alfred Loisy, L'Evangile et l'Eglise (Paris: Alphonse Picard, 1902), p. 111.

82
82

Você também pode gostar