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Eduardo Barros Millen conta como é feito o trabalho de

revisão técnica de projetos estruturais


Ideal é que verificador e projetista comecem a interagir desde o início da
concepção da obra
Renato Faria (colaborou Flávia Siqueira)

Edição 231 - Junho/2016

EDUARDO
BARROS
MILLEN
É sócio-diretor da
Zamarion e Millen
Consultores
desde sua
fundação, em
1981. Participa
de comissões de
normas técnicas
da ABNT e é
membro do
Instituto Brasileiro
de Concreto (Ibracon). Presidiu de 2010 a 2012 a Associação
Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural (Abece) e
atualmente dirige a regional São Paulo da organização. É
sócioconvidado da Associação Brasileira da Construção
Industrializada de Concreto (Abcic). Formou-se em engenharia civil
pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) em
1969, com pósgraduação em Estruturas especiais de concreto
armado e protendido pela mesma instituição. Também é pósgraduado
em Administração de empresas, na área de Produção e operações
industriais, e em Produção de estruturas de concreto, na área de
Práticas de projeto e execução de edifícios protendidos.
O desabamento de um trecho da ciclovia Tim Maia, no Rio de Janeiro, durante uma ressaca
no dia 21 de abril, teve a pior das consequências possíveis: duas pessoas morreram
enquanto utilizavam a pista. A obra havia sido inaugurada apenas três meses antes. Entre
as causas apontadas para o acidente está uma falha de projeto estrutural, que não teria
levado em conta o impacto das ondas do mar na plataforma durante uma ressaca. Uma
pergunta tornou- se inevitável: cuidados simples não poderiam evitar tragédias como essa?
Um dos recursos à disposição de escritórios e construtoras é a Avaliação Técnica de Projeto
(ATP), em que um profissional verificador avalia os critérios, cálculos e desenhos utilizados
pelo projetista de estruturas. A finalidade é justamente minimizar a possibilidade de erros e
evitar desastres na construção civil, aponta o engenheiro Eduardo Barros Millen, diretor da
regional São Paulo da Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural
(Abece). Em sua versão mais recente, de 2014, a NBR 6.118 Projeto de Estruturas de
Concreto - Procedimento recomenda que a avaliação seja adotada em todas as obras.
Millen explica que o ideal é que o verificador seja contratado ainda no início do projeto. "É
sempre mais recomendável trabalhar junto com o projetista", diz o engenheiro. "Com a obra
em andamento ou quase pronta, principalmente se ela já apresentou alguma patologia,
existe o risco de ser necessário derrubar alguma coisa e refazer, o que é sempre um
trauma."

O que é a avaliação de conformidade de projeto e por que ela é importante?


Costumamos chamar de ATP, sigla para Avaliação Técnica de Projeto. A revisão feita é em
relação aos projetos de estruturas. A finalidade principal é minimizar os erros de projeto,
como quedas de estruturas. A sociedade já entendeu que a ATP é uma necessidade.
Temos muitos exemplos de obras que vieram abaixo por falta de qualidade do projeto. Não
podemos correr o risco de erros em obras causarem mortes. Em casos tão graves, os danos
materiais se tornam secundários. Além disso, notícias sobre desastres desse tipo correm o
mundo e geram descrédito.

O que a NBR 6.118 diz a respeito dessa prática?

Na versão de 2003, a norma já mencionava a verificação de projeto, mas para obras de


grande porte. Isso levou a interpretações divergentes. O que é uma obra de grande porte?
Uma barragem? Uma ponte estaiada? Um edifício de 30 andares ou mais? Com o
desabamento de um prédio em construção em Belém [caso ocorrido em 2011], a Abece foi
consultada pelo juiz do caso. Ele queria saber se aquela era uma obra de grande porte, pois
cada advogado interpretava da maneira que lhe era mais conveniente. Mais tarde, participei
da comissão que trabalhou na revisão da norma e discutimos o assunto. Retiramos o termo
"obras de grande porte", e a avaliação passou a valer para todas as obras. Hoje, a versão
da norma que vale é a de 2014. Nossa visão é de que, independentemente do porte da
obra, não podemos correr riscos.

Se você pega o projeto [para revisar] e dá seu aval, você assume a responsabilidade
por ele junto com o autor. Se houver algum problema depois, os dois podem ser
acionados igualmente

Que critérios o contratante deve utilizar para escolher o avaliador técnico? Quem
deve ser esse profissional?

O ideal é que o profissional já tenha um histórico tanto como avaliador quanto como
projetista. Ele precisa ter qualificações que sejam pelo menos equivalentes às do projetista,
pois é essencial que seja possível um diálogo entre eles. Também é importante que ele
tenha uma boa experiência com aquele tipo de obra. Um avaliador que costuma trabalhar
com obras industriais, por exemplo, não é a pessoa mais adequada para avaliar uma torre
residencial.

Quem contrata normalmente é a construtora? Ou o projetista estrutural já pode


vender o projeto dele com uma avaliação embarcada?

O ideal é que a mesma pessoa ou empresa que está contratando o projetista contrate
também o avaliador. Estamos falando da construtora, agenciadora ou do proprietário da
obra. É importante que o avaliador seja um terceiro. Pode acontecer, também, de uma
empresa de pré-fabricados, por exemplo, fazer um projeto internamente e contratar um
verificador para avaliá-lo. Quem contratou o projeto foi o cliente da fábrica, mas ela sabe
que precisa fazer uma verificação. Mesmo que a empresa tenha um departamento de
controle de qualidade interno, a avaliação deve ser sempre feita por alguém de fora.

Como está caminhando a adoção dessa avaliação pelas construtoras? Tem


crescido?
Está avançando bastante. Em um primeiro momento, houve uma grande discussão e certa
resistência dos próprios projetistas, mas essa barreira já foi vencida. Eles já sabem quais
são as vantagens da ATP para quem está construindo. O mesmo vale para os contratantes,
que no início questionaram os custos extras disso. Mas o preço, em relação ao valor
cobrado por metro quadrado nas vendas, é irrisório. As construtoras já perceberam que o
custo, para elas, não é significativo. O preço da avaliação costuma variar algo em torno de
20% a 30% do valor do projeto, dependendo do processo usado na avaliação. Um fator que
pode aumentar esse valor é se o avaliador não tiver acesso ao modelo estrutural - no caso,
por exemplo, de projetistas que não queiram fornecer por terem propriedade intelectual
sobre o modelo. Nesse caso, o avaliador precisará, antes, criar um modelo por conta dele
para realizar seu trabalho.

O preço do trabalho de verificação depende, então, do valor do projeto.


Sim, mas às vezes o verificador não sabe nem quem será o projetista, já que a contratação
ainda está em andamento. Nesse caso, avalio da seguinte forma: faço um pré-orçamento
para mim, para saber quanto eu cobraria pelo projeto. Então, uso como base para calcular o
valor da verificação. A Abece também tem uma tabela com referências de honorários para
edificações e casas que pode ser adotada.

Como definir quais projetos exigem uma avaliação mais complexa e quais pedem algo
mais simplificado?

Acho que o grau de simplicidade pode ser indicado pela repetitividade das peças: por
exemplo, uma residência modulada e um prédio de dez andares "quadradinho", com pilares
modulados, vãos pequenos. São construções simples de projetar. Um edifício com mais de
25 andares - em que é preciso considerar efeitos de vento e vibrações - e uma obra com
arquitetura curvilínea já poderiam ser considerados mais complexos, obras que requerem
uma avaliação mais detalhada. Mesmo uma casa pode ser um projeto complexo: se ela
tiver, por exemplo, piscina no pavimento superior e jardins suspensos.

Eduardo Barros Millen conta como é feito o trabalho de


revisão técnica de projetos estruturais
Ideal é que verificador e projetista comecem a interagir desde o início da
concepção da obra
Renato Faria (colaborou Flávia Siqueira)

Edição 231 - Junho/2016

Como seria uma verificação mais simplificada?

Seria verificar apenas os critérios adotados pelo projetista: que tipo de concreto ele adotou,
qual a classe de agressividade ambiental, os cobrimentos e carregamentos, se eles estão
de acordo com as normas. É uma verificação parcial, que não considero a mais adequada.
Na verificação que chamo de completa, checamos tudo: dos critérios adotados até o modelo
estrutural, a memória de cálculo e os desenhos. Verificar como a estrutura foi dimensionada,
qual programa de computador foi utilizado, se há coerência, se os desenhos atendem ao
que está no programa, se as fôrmas estão de acordo com a arquitetura, se não há conflito
de armações. Algo que não é comum, mas que pode ser feito também, é verificar a
interferência em outros projetos, como o de instalação elétrica, hidráulica, de ar- -
condicionado. De forma geral, acho que é importante checar, pelo menos, se os desenhos
estão de acordo com a memória de cálculo.

A avaliação de conformidade pode ser feita durante ou em paralelo com a elaboração


de projeto ou até mesmo depois da execução da estrutura. O que muda em cada um
desses casos? O que é mais recomendável?

É sempre mais recomendável trabalhar junto com o projetista. É importante que ele seja
informado que o projeto passará por verificação, pois isso influi no trabalho dele também.
Ele deve estar ciente de que um terceiro poderá telefonar para ele para tirar dúvidas sobre o
projeto, pedir explicações. O ideal é que o projetista já comece a decidir seus critérios junto
com o avaliador. Assim, tudo já sai mais adequado e é possível evitar problemas lá na
frente. Com a obra em andamento ou quase pronta, principalmente se ela já apresentou
alguma patologia, existe o risco de ser necessário derrubar alguma coisa, refazer, o que é
sempre um trauma. Se o avaliador trabalha concomitantemente ao projetista, tudo é mais
tranquilo. Os comentários são feitos no desenho, no papel, e é muito mais fácil de mudar do
que em uma obra já em andamento.

No caso de verificações de obras já prontas ou em andamento, o serviço costuma ser


contratado porque surgiu alguma patologia?

Uma das razões costuma ser essa. Também pode ocorrer por mudança de utilização, como
um prédio planejado como residencial e que se tornará comercial. Trabalho atualmente em
um estacionamento que deve ser transformado em shopping. A carga que era de 300 kgf/m²
passará para 800 kgf/m². Então é necessário fazer uma verificação do projeto e,
seguramente, será preciso fazer um reforço de estrutura.

O revisor do projeto tem a mesma responsabilidade técnica do autor?


Sim. Se você pega o projeto e dá seu aval, você assume a responsabilidade por ele junto
com o autor. Se houver algum problema depois, os dois podem ser acionados igualmente.
Afinal, o trabalho do projetista e o trabalho do avaliador compartilham o mesmo resultado.
Imagino que isso estimule o verificador a ter um alto rigor ao avaliar um projeto.
Sem dúvida. Nós lutamos para que não surjam profissionais "canetinhas", que apenas
assinem a verificação, sem nem olhar o projeto. É como fazer o projeto em si: o profissional
deve calcular, não pode "chutar" qualquer coisa e mandar fazer.

Do ponto de vista prático, quais são as etapas do processo de avaliação de projeto?


O primeiro procedimento é obter os dados de projeto: processamento, modelo estrutural,
memória de cálculo, desenhos. Aí, o profissional faz uma análise e emite o primeiro relatório
de avaliação do projeto, que aborda os critérios - quais foram aceitos, quais estão em
desacordo com a norma, quais precisam ser detalhados em uma conversa. Depois, os
relatórios seguem o cronograma da obra. No caso de uma obra convencional, começamos
pela fundação, com uma verificação geral da estrutura de estabilidade e durabilidade. Surge
daí o segundo relatório. O terceiro já aborda as cargas na fundação, e assim segue a
sequência da obra: pilares, primeiro subsolo, segundo subsolo e assim por diante. Se for
uma obra de pré-fabricado, a sequência muda um pouco: você libera primeiro as lajes,
porque há um cronograma de fabricação das peças. Enquanto elas são fabricadas, você
verifica o restante do projeto. Mas, de forma geral, a sequência natural seria: critérios de
projeto, estabilidade e durabilidade, cargas na fundação, fundações, pilares, vigas, lajes e
pavimento por pavimento.

Surgem situações de conflito e discordância entre o verificador e o projetista? Como


costuma ser essa interação?

É preciso ter em mente duas coisas. Em primeiro lugar, o avaliador deve sempre basear
suas observações em normas brasileiras sobre o assunto. Em segundo lugar, ao notar
alguma incoerência, a primeira ação dele deve ser entrar em contato com o projetista. Não
deve falar com o contratante e dizer "peguei um erro no projeto dele". Isso seria antiético.
Ao conversar com o projetista, o verificador poderá ouvir as explicações dele. Das duas,
uma: ou o projetista se convence e faz a correção, ou ele ainda sustenta o que fez e justifica
para o avaliador. Afinal, a norma não é uma obrigatoriedade técnica. É uma recomendação
que tem força de lei, mas que não engessa. Se o projetista tiver como base alguma
referência, ensaio ou norma estrangeira, ele pode convencer o verificador.

E se a discordância não se resolver?

Se os profissionais não chegarem a um ponto comum, o verificador deve relatar que não
está de acordo com o projeto. Nesse caso, alguém terá que desempatar, a critério do
contratante: ou ele assume um dos lados, ou contrata uma consultoria adicional. Mas esses
casos são muito raros. Comigo, pelo menos, isso nunca aconteceu. Conheço apenas dois
ou três casos, num universo de milhares. De qualquer forma, se o projetista não quiser
colaborar, o verificador é obrigado a fazer a avaliação e entregá-la para o contratante.

No caso do desabamento do trecho da ciclovia da avenida Niemeyer, no Rio de


Janeiro: é algo que poderia ser evitado com uma revisão adequada?
Sim. Nesse caso, aliás, acho que o mais adequado seria contratar como verificador alguém
da própria região, do Rio de Janeiro, alguém que conhecesse aquela área. Isso vale para
outros casos: se o projeto é de uma obra no Amazonas, o melhor é encontrar alguém de lá
para fazer a verificação. Mas, se você perguntar para qualquer projetista de bom nível do
Rio de Janeiro, ele dirá que seria preciso considerar o efeito das ondas no projeto. É uma
coisa típica daquela região.

Então, não é algo que possa ser considerado surpreendente do ponto de vista do
projeto estrutural?

Não. É uma coisa natural. Não foi nem será a maior onda que já aconteceu ali. É como o
efeito do vento: pela norma, precisamos calcular um tempo de recorrência do vento no
decorrer de 50 anos. Nesse caso do Rio de Janeiro, existem estudos da maré, de quantos
metros essas ondas sobem. E, se você tem o estudo da onda, que bate e sobe, é possível
dimensionar o impacto na estrutura. É necessário considerar isso. A norma de pontes e
estruturas não fala especificamente sobre isso, mas menciona que as cargas devem ser
consideradas de acordo com a região em que é feita a obra. Fala em cargas especiais da
natureza, que podem ser maré, neve, chuvas fortes. Então, no caso, acho que houve uma
falta de conhecimento do local. De qualquer forma, precisamos tomar muito cuidado ao
tratar disso até o laudo ser concluído. Podem ter ocorrido outros problemas além desse.

Nesse caso (...) [da ciclovia que desabou no] Rio de Janeiro, existem estudos da
maré, de quantos metros essas ondas sobem. E, se você tem o estudo da onda, que
bate e sobe, é possível dimensionar o impacto na estrutura

Mas, sem dúvida, agora vale uma avaliação do projeto.

Sem dúvida. A Abece e o Ibracon se ofereceram para tomar parte nas discussões. Houve
uma reunião semana passada no Rio de Janeiro, para tratar disso com a prefeitura. Aqui em
São Paulo, também tivemos uma reunião com a Secretaria de Infraestrutura Urbana sobre o
acidente na ponte Santo Amaro, em que um caminhão bateu e depois pegou fogo. Houve
uma discussão se seria melhor demolir o viaduto ou não. Chegamos à conclusão, junto com
os outros técnicos, de que seria possível reformar. É o que está sendo feito.

As normas técnicas de projetos de estrutura tratam da ação de ondas de ressaca em


obras de pontes e viadutos?

Sim, inclusive para projetar cais em portos. Você deve levar em conta o efeito da maré, de
esforços e tudo mais. No Brasil, temos a ponte Rio-Niterói, que atravessa o mar, mas ainda
são poucas as obras desse porte no país. Mas, se você consultar a bibliografia
internacional, verá que países como a Noruega e a Suécia têm pontes fantásticas, que
atravessam mares muito violentos. Então, existem dados que devem ser avaliados e
considerados em projetos desse tipo.

Você concorda que é preciso criar normas brasileiras mais detalhadas para estruturas
em ambientes marítimos?

Concordo plenamente, pois não temos normas brasileiras específicas. Existe essa
recomendação genérica sobre a necessidade de considerar condições locais, mas não há
normas, por exemplo, específicas para ancoradouros, píeres, cais. Nesses casos, usamos
normas estrangeiras. Pense em um navio ancorando em um cais: é um esforço violento,
com o navio sendo jogado para lá e para cá pelo mar. Acho que uma norma brasileira é
sempre necessária, pois temos características próprias.

E quanto a flexibilizar critérios de aceitação de concreto com baixa resistência?


Existiria espaço para tornar normas brasileiras menos rigorosas - comparando, por
exemplo, com os Estados Unidos, onde os padrões são menos rígidos?

Acho que esse é um assunto muito polêmico. Precisamos tomar muito cuidado com isso.
Estamos preocupados, sobretudo com a segurança. Então, se você adotar como critério
uma norma estrangeira, é preciso cautela. Porque, por um lado, se lá fora eles aceitam uma
variação maior do concreto, por outro, eles também trabalham com coeficientes de
segurança maiores do que os nossos. Não é apenas trazer a norma para cá. É um ponto
polêmico, mas eu não mudaria nossos critérios de segurança das normas porque uma
norma estrangeira diz algo diferente. Nossa primeira preocupação é a segurança; depois
vêm qualidade, durabilidade e outros critérios.

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