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A TRAGÉDIA

DA CULTURA
GEORG SIMMEL
SEGUIDO DE

CULTURA,
GRANDEZA NEGATIVA
TEIXEIRA COELHO
Georg Simmel pensou ,
o que torna sem sentido apresentá-lo
como lósofo e sociólogo ou coisa aná-
loga: mentes poderosas transgridem
fronteiras. Simmel interessava-se por
pensar o mundo e a vida, a pessoa e
a arte, a cidade mais do que o Estado,
a cultura e sua fragmentação
. Antecedeu muita gente
boa, como Walter Benjamin em seu
interesse pela metrópole; ou como
Marshall McLuhan, ao mostrar como
forma (“meio”) e conteúdo (a “men-
sagem”) interagem e determinam-se
mutuamente.

E interessou-se por temas que a


sociologia o cial da época — e aquela
em vigor ainda no século 20 por suas
décadas todas e as do 21 — conside-
ravam irrelevantes, secundários ou
periféricos em relação à economia,
como a aventura, a , os ,a
a ,a
. Para o pensamento
dito progressista , a questão das
mulheres, das etnias, das preferên-
cias sexuais seriam resolvidas
que a revolução tomasse o poder
e resolvesse . Quer dizer,
nunca. Simmel sempre considerou o
sexo, o amor, a religião e arte como
. Mas
interessou-se também pelo dinheiro e
sobre ele escreveu outra obra notável,
, que não trata
de economia, nem do capitalismo
tampouco do mercado, mas
, “forma pura da possibilidade
das trocas.”
A tragédia da cultura
seguido de Cultura, grandeza negativa
OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO formam uma coleção voltada para a reflexão sobre
as tendências da cultura e da política cultural no Brasil e no mundo. Numa época em
que as inovações tecnológicas reelaboram com crescente rapidez o sentido da cultura,
uma investigação ampla sobre os velhos e novos conceitos em uso nesse campo é a
condição necessária para a formulação de políticas de fato capazes de contribuir para o
desenvolvimento humano, muito além do desenvolvimento apenas econômico.
A TRAGÉDIA DA CULTURA
Georg Simmel
CULTURA,
seguido de

GRANDEZA NEGATIVA
Teixeira Coelho
Coleção Os Livros do Observatório Equipe Itaú Cultural
dirigida por Teixeira Coelho Presidente
Alfredo Setúbal
Título original
“Der Begriff und die Tragödie der Diretor
Kultur” in Philosophische Kultur (1911) Eduardo Saron
Copyright @ desta tradução
Núcleo Observatório
Teixeira Coelho
Gerente
Título original Marcos Cuzziol
“Cultura, grandeza negativa”
Coordenador
Copyright @ Teixeira Coelho
Luciana Modé
Publicado por Itaú Cultural
Produção
e Editora Iluminuras
Andréia Briene
Copyright © 2020
Projeto gráfico
Eder Cardoso | Iluminuras
Capa
Michaella Pivetti
Imagem de capa
A Floating World, por Bruna Goldberger
Revisão
Bruno D’Abruzzo

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural


Simmel, Georg
A tragédia da cultura / Georg Simmel; tradução Teixeira Coelho.
Cultura, grandeza negativa / Teixeira Coelho. - São Paulo : Itaú Cultural :
Iluminuras, 2020.
128 páginas ; 22,5 cm.
ISBN 978-6-555-19070-0 (Iluminuras)
ISBN 978-65-990418-9-1 (Itaú Cultural)
1. Tecnologia e sociedade. 2. Cultura. 3. Filosofia. 4. Políticas culturais.
5. Subjetividade. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.
                                                                                                                         CDD 303.482

2020
EDITORA ILUMINURAS LTDA.
Rua Inácio Pereira da Rocha, 389 – 05432-011 – São Paulo – SP – Brasil
Tel./Fax: 55 11 3031-6161
iluminuras@iluminuras.com.br
www.iluminuras.com.br

O Itaú Cultural (IC), em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú para Educação e Cultura com o objetivo de
garantir ainda mais perenidade e ao legado de suas ações no mundo da cultura, ampliando e fortalecendo
seu propó sito de inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.
SUMÁRIO

A tragédia da cultura, 7
Georg Simmel
Conceito e tragédia da cultura, 9

Cultura, grandeza negativa, 43
Teixeira Coelho
A cultura vista do lado de fora, 50
O espírito em chave contemporânea, 58
Simmel antecipa o homem sem qualidades e sem conteúdo, 65
Quando a cultura é inútil, 84
Inesperados aportes da tecnologia para a filosofia e a cultura, 89
A cultura inimiga da cultura, 94
Afogando em números — mesmo nos bem-intencionados, 99
Cultura do excesso, cultura do nada, 105
Trabalho da cultura: encarar a época, 109
Os conteúdos de cultura contra a finalidade da cultura, 112

Posfácio ao posfácio, 117

Sobre os autores, 125


A TRAGÉDIA DA CULTURA
Georg Simmel
CONCEITO E TRAGÉDIA DA CULTURA

O fato de que o homem não pertence, de modo inquestioná vel, ao


estado natural do mundo, ao contrá rio do animal, mas dele se afastar,
confrontando-o, fazendo-lhe exigências, lutando contra ele, impondo-
-lhe sua violência e sofrendo sua violência, constitui o primeiro grande
dualismo a dar origem a um processo infindá vel de interação entre o
sujeito e o objeto. Uma segunda instância desse dualismo encontra
espaço no interior do pró prio espírito humano. O espírito humano cria
inú meras formas que continuam a existir com peculiar independência
diante dessa mesma alma que as criou ou de qualquer outro que as
aceite ou rejeite. Assim é que o sujeito vê-se — diante da lei, da religião,
da tecnologia, da ciência e da moral — ora atraído, ora repelido pelo
conteú do que lhe é oferecido, à s vezes fundindo-se com essas formas
como se fossem parte de seu pró prio Eu, outras vezes delas distanciado
e evitando intencionalmente o contato com elas. Em outros momen-
tos ainda, é sob uma forma rígida, coagulada, como numa existência
congelada, que o espírito, assim transformado em objeto, opõe-se à
vitalidade fluída, à pró pria responsabilidade pessoal diante de si e do
mundo, à s cambiantes tensões interiores de sua psychè subjetiva. Pelo

9
pró prio fato de estar o espírito estreitamente vinculado a si mesmo, ele
passa por inú meras tragé dias surgidas desse profundo conflito entre
formas opostas: entre a vida subjetiva, incessante mas finita no tempo,
e seus conteú dos que, uma vez criados, são inamovíveis e permanecem
indefinidamente vá lidos.

A ideia de cultura vive no meio desse dualismo. Na origem dessa


ideia encontra-se um fato interno que só pode ser expresso plena-
mente por meio de uma pará bola — uma pará bola algo nebulosa:
o caminho da alma rumo a si. Ningué m nunca é apenas aquilo que
é neste momento, é sempre algo mais que isso, algo superior e mais
perfeito, algo que já estava pré -formado e constituído nele mesmo,
algo irreal mas de algum modo existente. Não nos referimos a um
ideal ingênuo localizado em algum ponto do mundo espiritual, mas
ao ser-livre, à liberação das energias potenciais nele existentes, ao
desenvolvimento de seu pró prio ser mais profundo que obedece a
uma pulsão formal interior. Assim como a vida — em seu ponto mais
alto de desenvolvimento consciente — conté m, de forma imediata,
seu pró prio passado como uma parte de seu inorgâ nico, assim como
o passado segue vivo na consciência com seu conteú do original e não
apenas como causa mecânica de ulteriores transformações, do mesmo
modo a vida abarca o pró prio futuro de uma forma que não tem qual-
quer analogia com o mundo do inanimado. Em todos os momentos
da existência de um organismo que pode crescer e reproduzir-se,
sua forma futura está nele presente como uma necessidade e uma
pré -moldagem tão profundamente interior que de modo algum pode
ser comparada, por exemplo, ao processo de uma mola tensionada que
em si mesma conté m sua subsequente liberação e expansão. Enquanto
tudo que é não-vivo possui como seu apenas o instante presente,
o ser vivo estende-se de maneira incompará vel por seu passado e
seu futuro. Todos os movimentos da alma como a vontade, o senso
de dever, a vocação, a esperança, são prolongamentos espirituais da
determinação fundamental da vida que é esse fato de conter o futuro
em seu pró prio presente de uma forma específica que só existe no

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processo da vida. E isso se aplica não apenas aos desenvolvimentos
e realizações parciais do espírito: també m a personalidade como um
todo, e como uma unidade, traz dentro de si uma imagem previamente
desenhada com linhas invisíveis, imagem que, realizada, permitiria
à personalidade, por assim dizer, sua realidade plena e não sua mera
possibilidade. Por mais que o amadurecimento e o refinamento das
forças do espírito possam consumar-se sob aspectos parciais, em ações
e interesses parciais e, digamos, provinciais, abaixo ou acima desse
plano encontra-se a exigência de que a totalidade do espírito como
tal cumpra a promessa nele mesmo contida de tal modo que todos os
aperfeiçoamentos parciais do espírito surjam, com efeito, como uma
multiplicidade de caminhos pelos quais o espírito chega a si mesmo. Se
for o caso de dizê-lo assim, esse é um pré -requisito metafísico de nossa
natureza prá tica e emocional — por mais que també m essa expressão
simbó lica mantenha-se a uma ampla distâ ncia do comportamento
real, isto é , do fato de que a unidade da alma não é simplesmente
um vínculo formal que permite o desenvolvimento de suas forças
parciais sempre da mesma maneira, mas que, atravé s dessas forças
parciais, dá -se um desenvolvimento do espírito como um todo — e
esse desenvolvimento do todo antepõe-se, internamente no espírito,
ao objetivo de um desenvolvimento para o qual todas essas faculda-
des e perfeições parciais surgem como meios para a consecução do
objetivo final.

E assim vem à tona a primeira determinação do conceito de cultura


que, a título provisó rio, serve-se dos recursos da linguagem para ser
expressa. Ainda não estamos cultivados, ainda não somos cultos,
quando apenas desenvolvemos em nó s este ou aquele conhecimento
ou capacidade parcial, mas somente quando tudo que se relaciona
com o desenvolvimento pleno do espírito — por certo relacionado com
seus desenvolvimentos parciais mas sem se reduzir a eles — servir à
centralidade do espírito. Nossas aspirações conscientes e direcioná -
veis aplicam-se a interesses e potencialidades parciais e é por isso
que o desenvolvimento de todo ser humano, visto em termos de sua

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capacidade de ser assim nomeado, surge como um feixe de linhas de
crescimento que se desdobram em direções diversas e com compri-
mentos de onda bem distintos. Mas o ser humano não se cultiva com
essas linhas em suas perfeições parciais: só se cultiva com o significado
que possam ter para o desenvolvimento de sua integralidade pessoal
indefinível. Em outras palavras, a cultura é o caminho da unidade,
encerrada em si mesma, rumo à unidade desenvolvida passando pela
multiplicidade aberta. Em todas as circunstâncias, poré m, esse só pode
ser um desenvolvimento rumo a um fenômeno enraizado nas forças
germinais da personalidade e que, por assim dizer, está nela delineado
como seu pró prio plano ideal.

També m aqui os usos da linguagem sugerem um outro modo


adequado de dizer a mesma coisa. Dizemos cultivada a fruta de um
pomar que o trabalho do jardineiro extraiu de uma á rvore lenhosa
com frutos antes não comestíveis. Dizemos també m que essa á rvore
selvagem foi cultivada até transformar-se em á rvore frutífera. Se, de
outro lado, um mastro de navio for feito dessa mesma á rvore, e a ele
aplicar-se um trabalho teleoló gico, finalístico, em nada menor que o
trabalho com a fruta, não diremos de modo algum que esse tronco foi
cultivado até transformar-se em mastro. Essa nuance da linguagem
indica claramente que a fruta, mesmo não podendo surgir sem o esforço
humano, emerge das forças interiores da á rvore e corresponderá apenas
à possibilidade prefigurada em seus pró prios desígnios, ao passo que a
forma do mastro é acrescentada ao tronco a partir de um conjunto de
finalidades a ele em tudo estranhas e que carece, em suas tendências
pró prias e essenciais, de toda prefiguração com esse objetivo. Nesse
sentido, todo conhecimento possível, todas as virtuosidades, todos os
refinamentos de uma pessoa não nos permitem dizer que ela tem de
fato a qualidade de um ser cultivado caso esses traços operem apenas
como acré scimos que chegam à sua personalidade a partir de um valor
a ela exterior e que, em ú ltima instância, a ela permanecem igualmente
exteriores. Nesse caso, a pessoa certamente exibirá aspectos cultivados,
mas não é uma pessoa culta; ela só se torna culta quando os conteú dos

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oriundos de uma esfera suprapessoal parecem desdobrar em sua alma,
como por uma secreta harmonia, aquilo que nele existe como pulsão
pró pria e projeto pré vio interior de sua perfeição subjetiva.

E aqui enfim surge a condicionalidade da cultura, atravé s da qual


se propõe uma solução para a equação sujeito-objeto. Não aceitamos
o conceito de cultura nos casos em que a perfeição não é percebida
como interior ao nú cleo do espírito; mas esse conceito tampouco se
aplica ali onde se apresenta apenas como um autodesenvolvimento
que não requer meios e mediações objetivos e externos. Inú meros
movimentos de fato conduzem a alma na direção de si mesma tal
como o exige seu ideal, isto é , levam-na à realização de um ser pleno
e o mais adequado possível mas que, de início, existe apenas como
possibilidade. Na medida, poré m, em que o espírito apenas lograr
esse objetivo exclusivamente a partir de seu interior — por meio de
impulsos religiosos, abnegação moral, intelectualidade predominante,
harmonia global da existência — ele pode não se adequar ao que
entendemos por culto, cultivado. Não se trata do fato de que careça
desse algo total ou relativamente exterior que o uso linguístico reduz
à condição de civilização. Isso não importa. É que o cultivado, em seu
sentido mais puro, mais profundo, não reside ali onde o espírito per-
corre, exclusivamente com suas forças subjetivas pessoais, o caminho
que o conduz de si para si mesmo, desde a possibilidade de nosso Eu
mais autêntico até sua plena realização — embora seja certo, talvez,
que, de um ponto de vista mais elevado, essas realizações sejam as mais
valiosas. E assim se demonstraria que a cultura não é o ú nico valor do
espírito, o definitivum. O significado específico da cultura, no entanto,
só é alcançado quando os seres humanos incorporam em si algo que é
exterior a esse desenvolvimento, quando o caminho do espírito passa
por valores e avanços que não são, eles mesmos, animicamente subje-
tivos. As formas objetivamente espirituais de que falei no início — arte
e moral, ciência e objetos formatados para fins específicos, religião e
direito, tecnologia e normas sociais — são, todas, estações pelas quais
o sujeito precisa passar para lograr o valor intrínseco especial a que

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se dá o nome de sua cultura. O sujeito tem de abarcar essas estações
em si mesmo: não pode permitir que existam apenas como valores
objetificados, a ele exteriores.

O paradoxo da cultura consiste em que a vida subjetiva, que senti-


mos em seu fluxo contínuo e que por si mesma impulsiona-se rumo
à perfeição interior, não pode alcançar essa perfeição (considerada na
perspectiva da ideia de cultura) a partir apenas de si mesma: só a pode
consegui-la passando por aquelas formas que ficaram completamente
fora dela e que se cristalizaram em um todo fechado e autossuficiente.
A cultura surge — e isso é absolutamente crucial para a sua com-
preensão — ao reunirem-se os dois elementos, nenhum dos quais
isoladamente a conté m: o espírito subjetivo e as criações espirituais
objetificadas, exteriorizadas.

Aqui reside o significado metafísico dessa forma histó rica. Um


grande nú mero das ações essencialmente humanas decisivas ergue
pontes inconclusas — e que, se concluídas, serão sempre repetidamente
destruídas — entre o sujeito e o objeto em geral, como o conhecimento,
de modo especial o trabalho, a arte e a religião em algumas de suas
significações. O espírito depara-se com um ser para o qual a compulsão
e a espontaneidade de sua natureza o dirigem; mas ele permanece
eternamente contido em si mesmo por esse movimento, em um cír-
culo que o ser apenas roça de leve; e toda vez que, desviando-se pela
tangente de seu caminho, desejar penetrar no ser, a imanência de sua
lei interna arrasta-o outra vez para a rotação do círculo encerrado em
si mesmo. Na formação dos conceitos sujeito-objeto como correlatos,
cada um dos quais encontra significado apenas no outro, existe o desejo
e a antecipação de uma superação desse dualismo rígido e ú ltimo. Pois
bem, aquelas ações mencionadas transpõem-no para atmosferas espe-
cíficas nas quais a estranheza radical dos componentes desse dualismo
é reduzida e permite certas fusões. Como elas, poré m, só podem ocorrer
sob as modificações criadas pelas, digamos, condições atmosfé ricas
dessas províncias específicas, elas não podem superar a estranheza

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desses componentes em seu interior mais profundo e continuam sendo
tentativas finitas de resolver uma tarefa infinita. Mas nossa relação
com os objetos com os quais nos cultivamos, incorporando-os em nó s
mesmos, é de outra natureza porque eles mesmos são o espírito que
se tornou objetivado naquelas formas é ticas e intelectuais, sociais e
esté ticas, religiosas e tecnoló gicas: o dualismo com o qual o sujeito,
encerrado em seus pró prios limites, opõe-se ao objeto existente por
si mesmo, experimenta uma conformação singular quando ambos
os componentes são, tornam-se espírito. Assim, o espírito subjetivo
deve sair de sua subjetividade, mas não de sua espiritualidade, para
experimentar a relação com o objeto atravé s do qual seu cultivo ocorre.
Essa é a ú nica maneira pela qual a forma dualista da existência, que
se define a partir da existência do sujeito, organiza-se rumo a um
relacionamento internamente uniforme. É aí que o sujeito torna-se
objetivo e o objetivo se torna subjetivo, o que caracteriza a especifici-
dade do processo cultural no qual, para alé m dos conteú dos parciais, ele
exibe sua forma metafísica. Sua compreensão mais profunda, portanto,
requer uma aná lise mais detalhada dessa objetivação do espírito.

Estas pá ginas partiram da constatação da profunda estranheza ou


hostilidade que existe entre a vida e o processo criativo da alma, por
um lado, e seus conteú dos e produtos, por outro. À vida vibrante do
espírito, inquieta e sem limites, criativa, opõe-se seu produto rígido,
idealmente imutá vel, com seu inquietante efeito contrá rio capaz
de paralisar aquela mesma vivacidade, enrijecê-la. Com frequência,
é como se a mobilidade criativa da alma morresse em seu pró prio
produto e por causa dele. Aqui reside uma forma bá sica do sofrimento
que nos é imposto por nosso pró prio passado, nosso pró prio dogma,
nossos pró prios fantasmas. Essa discrepâ ncia que existe, por assim
dizer, entre os estados agregados da vida interior e seus conteú dos, é
em certa medida racionalizada e pressentida de modo menos intenso
pelo fato de que, por meio de seu trabalho teó rico ou prá tico, o homem
confronta seus produtos ou conteú dos espirituais como um cosmo
do espírito objetivado, um cosmo em certo sentido determinado e

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autônomo. A obra externa ou imaterial na qual mergulha a vida do
espírito é percebida como um valor especial — por mais que a vida,
fluindo em seu interior, enverede por um beco sem saída ou seja levada
pelas ondas da correnteza que deixam para trá s essas formas imó veis;
e esse valor especial constitui a riqueza especificamente humana,
i.e., o fato de que os produtos da vida objetiva pertencem ao mesmo
tempo a uma ordem objetivada de valores, que não flui, a uma ordem
ló gica ou moral, a uma ordem religiosa ou artística, a uma ordem
tecnoló gica ou jurídica. Ao se revelarem portadores de tais valores,
como membros de tais sé ries, esses produtos da vida objetivada são,
não apenas libertados de seu rígido isolamento do processo vital, em
virtude do entrelaçamento e sistematização de ambos, como també m
alcançam, nessa mesma malha, um significado a que não poderiam
aspirar dado o cará ter irrefreá vel de sua dinâ mica.

Uma tô nica axioló gica recai sobre a objetivação do espírito, o valor


surge na consciê ncia subjetiva mas o que essa consciência com ele faz
é apontar para algo alé m dela mesma. O valor nem sempre precisa ser
positivo no sentido do bem, daquilo que é bom, da coisa certa; antes, o
mero fato formal de que o sujeito pô s-se a considerar algo objetivo, de
que sua vida assumiu corpo fora dele mesmo, é percebido como signi-
ficativo porque somente a autonomia do objeto moldado pelo espírito
libera a tensão bá sica entre o processo e o conteú do da consciência. Pois,
assim como as representações particularmente naturais apaziguam
a estranheza que é persistir dentro do processo de fluxo contínuo da
consciência como algo completamente solidificado, legitimando essa
estabilidade em sua relação com um mundo objetivamente externo, do
mesmo modo a objetividade do mundo do espírito presta um serviço
equivalente. Sentimos toda a vivacidade do nosso pensamento na
firmeza das normas ló gicas, toda a espontaneidade de nossas ações
nas normas morais, todo o curso de nossa consciência preenchido com
conhecimentos, tradições, impressões de um ambiente de algum modo
moldado pelo espírito; a rigidez e, por assim dizer, a insolubilidade
química de tudo isso revelam um dualismo persistente diante dos

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ritmos irrequietos do processo subjetivo de nosso espírito, no qual, no
entanto, surge como uma representação, como um conteú do espiritual
subjetivo. Mas por pertencer a um mundo ideal acima da consciência
individual, esse contraste fundamenta-se e se justifica.

Quanto ao sentido cultural do objeto, que em ú ltima instâ ncia é


o que interessa aqui, o importante é que nele reú nem-se vontade e
inteligência, individualidade e impulso anímico, potê ncia e estado de
ânimo dos espíritos parciais (e també m do conjunto deles). É somente
assim que esses significados espirituais alcançam o ponto final de seu
percurso.

Na felicidade que o criador sente diante de sua obra, por mais rele-
vante ou menos importante que ela seja, talvez exista uma satisfação
objetiva, por assim dizer, ao lado da descarga das tensões internas ao
longo da criação, ao lado da comprovação da força subjetiva, ao lado
da satisfação de ver sua pró pria expectativa atendida — ao lado de
tudo isso continua existindo, por assim dizer, uma satisfação objetiva
pelo fato de que o cosmo das coisas com valor tornou-se mais rico
com essa parte a ele agora agregada. Sim, talvez não exista um prazer
pessoal sentido de modo mais sublime com nossa pró pria obra do que
quando a percebemos em sua impessoalidade e em seu distanciamento
de nosso ser subjetivo. E assim como as objetificações do espírito são
valiosas para alé m dos processos subjetivos da vida que atuaram
como suas causas, també m o são para alé m dos outros processos que
delas dependem como consequência. Por mais que apreciemos os
modos pelos quais a sociedade se organiza e os formatos té cnicos dos
fenô menos naturais, das obras de arte e do conhecimento científico
da verdade, dos costumes e da moral, e embora saibamos o quão
influentes são em sua incidência sobre a vida e o desenvolvimento
dos espíritos, apesar de tudo isso muitas vezes, talvez sempre, está
implícito o reconhecimento do que são essas formas em geral e de que
o mundo també m compreende essa conformação do espírito. Trata-se,
aqui, de uma diretriz de nossos processos de valoração que se deté m

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na natureza do dualismo objetivo-espiritual sem indagar, alé m de
quão definitivas são essas coisas, a respeito de suas consequências
espirituais. Ao lado do prazer subjetivo fornecido pelo fato de que a
obra de arte, por exemplo, é percebida como algo que se torna parte de
nó s, por assim dizer, reconhecemos como um valor especial o fato de
que um espírito criou esse recipiente de conteú dos assim proposto a
que chamamos obra. Assim como pelo menos uma diretriz da vontade
artística desemboca na persistência pró pria da obra de arte e implica
uma valoração em tudo objetiva do desfrute da força criativa eviden-
ciada por suas energias vitais, do mesmo modo existe uma diretriz
semelhante, de igual orientação, no interior da atitude do receptor
dessa mesma obra.

E isso em clara distinção dos valores que revestem aquilo que é


dado de forma puramente objetiva, como esse objetivo que é a natu-
reza. É que todas as coisas naturais, o mar e as flores, os Alpes e o
cé u estampado de estrelas, somente têm valor quando refletidas nas
almas subjetivas. Assim que pomos de lado as humanizações místi-
cas e fantasiosas da natureza, també m ela revela-se apenas um todo
continuamente coerente cuja lei, indiferente a nossa existência, não
admite qualquer sentido baseado em sua existência objetiva, nem
mesmo numa existência objetivamente diferenciada das demais. São
apenas as nossas categorias humanas que recortam as fatias parciais
dessa natureza à s quais vinculamos nossas reações esté ticas, solenes e
simbolicamente significativas; a ideia de que o belo da natureza é “uma
bênção em si mesmo” só existe como ficção poé tica; para a consciência
que se esforça por alcançar a objetividade, não existe na natureza
valor algum alé m do que em nó s suscita. Assim, enquanto o produto
das energias absolutamente objetivas só pode ter valor em nossa
esfera subjetiva, de modo contrá rio o produto das forças subjetivas
tem um valor objetivo para nó s. As formas materiais e imateriais nas
quais a vontade do ser humano, sua capacidade, seu conhecimento e
sentimento estão investidos, são aquelas que existem objetivamente
e que percebemos como significativas e enriquecedoras da existência

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mesmo quando as abstraímos da natureza de seu ser-contemplada,
ser-usada ou ser-desfrutada. Embora valor e significado, sentido e
importância originem-se exclusivamente no espírito humano, eles
são vistos como existentes na natureza dada; mas isso não prejudica
o valor objetivo daquelas formas nas quais essas energias e valores
subjetivos — criativos e formativos — já estão investidos. Um pô r do
sol que nenhum olho humano observa não torna o mundo, de modo
algum, mais valioso ou magnífico porque sua facticidade objetiva
não comporta essa categoria; mas quando um pintor coloca em uma
imagem do sol nascente seu estado de espírito pessoal, sua pró pria
ideia de forma e cor, sua expressividade, consideramos essa obra (por
enquanto não entram em jogo suas eventuais categorias metafísi-
cas) como um enriquecimento, um acré scimo ao valor da existência
em geral; o mundo nos parece, por assim dizer, mais digno em sua
existência, mais pró ximo de seu significado, quando a fonte de todo
valor, o espírito humano, faz-se presente nesse fenô meno que agora
també m pertence, como obra, ao mundo objetivo (nesse significado
peculiar, independentemente do fato de que algum espírito possa
depois captar o valor assim produzido e dissolvê-lo no fluxo de seus
sentimentos subjetivos). O sol nascente natural e a pintura desse nascer
do sol existem como realidades, mas o primeiro só tem valor enquanto
permanecer vivo na esfera psicoló gica; quanto à segunda, poré m, que
já recobriu aquela vida natural e a transformou em um objeto no qual
nosso senso de valor deté m-se como diante de um definitivum, de algo
acabado, essa independe de toda subjetivação.

Se observarmos esses movimentos sob a ó tica de uma polaridade,


veremos, por um lado, uma avaliação que pertence apenas à vida sub-
jetivamente motivada, na qual todo sentido, valor, significação, são não
apenas gerados como nela permanecem contidos. Por outro lado, não é
menos compreensível a ênfase radical no valor que se tornou objetivo.
Certamente, esse valor objetivo não está vinculado à produção original
das obras de arte, das religiões, tecnologias e conhecimentos; mas o que
quer que uma pessoa faça, para ser considerado como algo de valor deve

19
contribuir para o universo ideal, histó rico e materializado do espírito.
Não cabe ao imediatismo subjetivo de nosso ser e ação fazê-lo, mas,
sim, a seu conteú do objetivamente normalizado e ordenado de modo
que, no final das contas, apenas essas normas e ordens contenham a
substância do valor e a comuniquem aos eventos pessoais que fluem.
Mesmo a autonomia da vontade moral em Kant não envolve nenhum
valor pró prio em sua facticidade psicoló gica, mas a vincula à realização
de uma forma existente na idealidade objetiva. També m o espírito e a
personalidade têm sua significação, para o bem e para o mal, na medida
em que pertencem a um domínio suprapessoal. A cultura formata
sua unidade comparando e contrastando essas avaliações do espírito
subjetivo e objetivo: é que a cultura significa esse tipo de perfeição
individual que só pode ser alcançada por meio da incorporação de uma
forma suprapessoal que de algum modo situa-se fora do sujeito. O valor
específico de ser-culto é inacessível ao sujeito se ele não chegar a esse
valor atravé s de realidades espirituais objetivadas; estas, por sua vez,
são valores culturais apenas na medida em que fornecem o caminho
do espírito que vai de si para si mesmo, um caminho que vai do ponto
que pode ser chamado de seu estado natural ao ponto descrito como
seu estado cultural.

É possível també m expressar a forma do conceito de cultura do


seguinte modo: não há valor cultural que seja apenas valor cultural;
para apresentar-se com esse valor, deve ainda ser um valor numa
sé rie objetiva. No entanto, mesmo quando esse valor existe numa
sé rie objetiva, e ainda que algum interesse ou capacidade de nosso ser
seja por ele estimulado, o valor cultural somente surgirá quando esse
desenvolvimento parcial elevar o Eu-total a um ponto mais pró ximo
de sua unidade e perfeição. Essa é a ú nica maneira de entender dois
fenô menos negativos da histó ria do espírito e que de algum modo
correspondem-se mutuamente: de um lado, o fato de que as pessoas
com o mais profundo interesse cultural geralmente demonstram uma
notá vel indiferença pelos conteú dos objetivos parciais da cultura, e
até os rejeitam, por não conseguirem perceber o grau de contribuição

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superespecializada que aportam à promoção das personalidades ple-
nas (e provavelmente não há qualquer produto humano que tenha de
demonstrar tal grau de contribuição embora, sem dú vida, tampouco
exista algum que não possa demonstrá -lo). De outro lado, surgem
fenô menos que parecem ser apenas valores culturais por ostentarem
certas formalidades e refinamentos do modo de viver que pertencem
a é pocas maduras e por demais esgotadas. Ali onde a vida se tornou
esté ril e sem sentido, todo desenvolvimento na direção da plenitude
do ser, que é possível como manifestação da vontade, não passa de um
esboço de desenvolvimento e já não é capaz de extrair, do conteú do
das coisas e ideias, o necessá rio alimento e estímulo — como ocorre
com o corpo doente que não mais consegue assimilar a substâ ncia dos
alimentos com os quais poderia recuperar suas forças e desenvolver-se.
Neste caso, o desenvolvimento individual apenas pode extrair das
normas sociais a conduta socialmente vá lida e, das artes, apenas o
desfrute improdutivo, assim como dos avanços tecnoló gicos somente
o lado negativo manifestado nas facilidades e comodidades propostas
à vida cotidiana. Surge nesse momento uma espé cie de cultura formal-
-subjetiva desprovida da trama interna com o elemento objetivo que
atende à s exigências do conceito de cultura concreta. Assim é que, por
um lado, manifesta-se uma ênfase tão apaixonadamente centralizada
na cultura que o conteú do objetivo de seus fatores objetivos torna-se
excessivo e com isso desvia-se de suas metas maiores uma vez que,
como tal, não cabe e não pode caber em sua função cultural. E, por outro
lado, manifesta-se també m um tal enfraquecimento e esvaziamento
da cultura que ela não consegue absorver os fatores objetivos em sua
qualidade pró pria de conteú dos objetivos. Ambos fenô menos — que
surgem à primeira vista como contrapostos à vinculação da cultura
pessoal com os eventos impessoais — confirmam a necessidade de um
estudo mais preciso dessa relação.

O fato de encontrarem-se unificados na cultura esses fatores ú ltimos


e decisivos da vida manifesta-se exatamente no fenô meno de que o
desenvolvimento de cada um deles pode ocorrer com uma autonomia

21
que não apenas pode carecer de motivação pelo ideal cultural como
també m rejeitá -lo. Isso porque atentar para um ou outro deles desvia a
atenção do sujeito daquele foco que ele deveria sustentar: a necessidade
de definir-se em decorrência de uma síntese entre os dois. Os espíritos
que criam conteú dos duradouros, quer dizer, os elementos objetivos
da cultura, provavelmente se recusariam a extrair, da ideia de cultura,
os motivos e as ideias de seu produto pró prio. Pelo contrá rio, pode-se
dizer que há um duplo efeito no fundador de uma religião e no artista,
no estadista e no inventor, no cientista e no legislador: a descarga de
suas forças essenciais, a ascensão de sua natureza à s alturas em que ela
deixa sair de si os conteú dos da vida cultural e, de outro lado, a paixão
por seu produto em cuja perfeição, definida por suas leis pró prias, o
sujeito torna-se indiferente a si mesmo e se extingue diante do que
criou. No gênio, essas duas correntes confundem-se: o desenvolvi-
mento do espírito subjetivo rumo a si mesmo, levado por suas forças
prementes, é indistinguível, para esse mesmo gênio, de sua dedicação
à tarefa objetiva na qual ele se separa de si mesmo. A cultura objetiva,
como foi dito, é sempre uma síntese. Mas a síntese não é nem a ú nica,
nem a mais imediata forma da unidade dado que sempre pressupõe
a separação dos elementos em dois grupos: os que a precedem e os
que lhe são correlatos. Somente uma é poca tão voltada para a aná lise
como a moderna poderia encontrar na síntese aquilo que existe de
mais profundo, a unidade e a totalidade da relação formal do espírito
com o mundo ao mesmo tempo em que subsiste, no entanto, uma
unidade original e pré -diferencial. À medida que essa unidade expele
de si os elementos analíticos, do mesmo modo como o nú cleo orgânico
subdivide-se na multiplicidade de partes distintas, ela coloca-se para
alé m da aná lise e da síntese — a não ser que essas duas desenvolvam-se
a partir dela pró pria em um processo de interação, uma pressupondo
a existência da outra em cada nível; isso só não acontece se a síntese
conduzir posteriormente os elementos analiticamente separados a
uma unidade que, no entanto, é distinta da unidade existente antes da
separação das duas. O gênio criador é dotado dessa unidade original
composta pelo subjetivo e pelo objetivo, unidade que primeiro tem de

22
ser desfeita para de certo modo ressuscitar, no processo de cultivo dos
indivíduos, de uma forma inteiramente diferente, uma forma sinté tica.
É por isso que o interesse pela cultura reside nesses dois movimentos:
o puro autodesenvolvimento do espírito subjetivo e o puro emergir na
maté ria — não em um nível situado alé m do impulso axioló gico ime-
diato e interior da maté ria, mas apegando-se a ela mesma como algo
secundá rio, abstrato. Assim, mesmo quando o percurso do espírito em
direção a si mesmo — ú nico fator definidor da cultura — gera outros
fatores, a cultura permanece em ação como puro autodesenvolvimento
do pró prio ser, seja como for que esse ser determine-se sob um ponto
de vista objetivo.

Vejamos o outro fator da cultura: aquela produção do espírito que


amadureceu a ponto de lograr uma existência ideal pró pria, inde-
pendentemente de toda motivação psíquica. Considerada em seu
isolamento autossuficiente, seu sentido e valor mais pró prios não
coincidem de modo algum com seu valor cultural; mais ainda, aquele
abandona por completo sua significação cultural. A obra de arte
deve ser perfeita de acordo com as normas da arte, que não buscam
nada alé m de si mesmas e que reconheceriam ou negariam o valor
da obra mesmo quando, por assim dizer, nada existisse no mundo
alé m dessa obra; o resultado da reflexão que levou à obra deve ser
verdadeiro e isso basta. A religião alcança seu sentido com a salvação
que proporciona à alma; o produto econô mico quer ser perfeito como
produto econômico e não reconhece outro padrão de valor a orientá -lo
que não seja o econô mico. Todas essas sé ries processam-se no â mbito
de uma normatividade puramente interior e qualquer valor que se
agregue à evolução dos espíritos subjetivos será avaliado pelas normas
meramente objetivas e vá lidas por si e em si mesmas. A partir dessa
situação objetiva, torna-se compreensível que encontremos, tanto nas
pessoas que se orientam apenas pelo sujeito quanto naquelas que se
orientam apenas pelo objeto, uma indiferença aparentemente notá -
vel pela cultura e, mesmo, uma aversão à cultura. Quem se interessa
apenas pela salvação da alma ou pelo desenvolvimento individual

23
interno no qual nenhum movimento exterior pode intervir, é o tipo de
pessoa cujos valores recusam exatamente um dos fatores integrantes
da cultura, ao passo que o outro fator inexiste no tipo de pessoa que só
se interessa pela pura perfeição objetiva de nossas obras de tal modo
que apenas elas, e nada a elas eventualmente ligado, satisfazem sua
ideia de valor. O exemplo radical do primeiro tipo é o estilista e, do
segundo, é o especialista encerrado no fanatismo de sua especialidade.
À primeira vista, há algo surpreendente no fato de que portadores
de tais “valores culturais” inquestioná veis — como a religiosidade, a
formação da personalidade, o conhecimento de té cnicas de todo tipo —
desprezam ou criticam o conceito de cultura. Mas isso se esclarece de
imediato com a compreensão de que a cultura significa sempre apenas
a síntese de um desenvolvimento subjetivo e de um valor espiritual
objetivo, e que a ênfase extremada dada a um deles leva à recusa do
outro na medida da exclusividade reivindicada pelo primeiro.

O fato de o valor cultural depender de um segundo fator situado


alé m da pró pria sé rie de valores a que pertence o objeto torna com-
preensível que este alcance, com frequê ncia, seja uma ordem em tudo
diferente, na escala de valores culturais, daquela a que chegaria apenas
pelos meros significados do pró prio objeto. Muitas obras artísticas,
tecnoló gicas, teó ricas, que permanecem em um nível inferior à quele
por outras já alcançado, têm no entanto a capacidade de somar-se ao
desenvolvimento de muitas pessoas como alavancas e pontes para seus
esforços latentes rumo a um plano mais elevado. Do mesmo modo,
entre as impressões da natureza que nos marcam não figuram apenas
as dinamicamente mais poderosas ou aquelas esteticamente mais
fortes, capazes de oferecer-nos uma profunda sensação de felicidade
e o sentimento de que elementos opacos e adormecidos em nó s exis-
tentes repentinamente iluminam-se e em nó s harmonizam-se: não
raro devemos ser gratos, por essas percepções, a uma paisagem de
resto bastante modesta ou ao simples jogo de sombras de uma tarde
de verão. De igual maneira, não cabe atribuir a significação de uma
obra do espírito, em sua manifestação mais elevada ou mais plana,

24
apenas à quilo que ela nos pode oferecer como um passo a mais para
o caminho rumo à cultura. E isso porque tudo depende do fato de
que esse significado especial da obra manifeste, por assim dizer, o
benefício adicional de servir ao desenvolvimento central ou geral das
personalidades. E o fato de que esse benefício possa ser inversamente
proporcional ao valor pró prio ou intrínseco da obra tem vá rias causas
mais profundas. Existem obras humanas de uma perfeição inatingível
à s quais, exatamente em virtude dessa completude absoluta, não
temos acesso ou que, por isso mesmo, não têm acesso a nó s. Obras
desse tipo permanecem, digamos, em seu pró prio lugar de onde não
cabe transpô -las para nossos domínios: essas obras são casos de uma
perfeição solitá ria em cuja direção talvez possamos nos dirigir mas que
não podemos incorporar para, com elas, nos elevarmos à nossa pró pria
perfeição. Para a atitude moderna em relação à vida, a Antiguidade
costuma aparentar essa unidade completa e autossuficiente que se
recusa a ser incluída nas pulsações e inquietações de nosso tempo, de
nosso ritmo atual de desenvolvimento; e isso pode, hoje, levar muitas
pessoas a procurar outros fatores fundamentais para a nossa cultura. O
mesmo ocorre com certos ideais é ticos. As chamadas formas do espírito
objetivado estão destinadas, talvez mais do que outras, a conduzir o
desenvolvimento pessoal de um estado de mera possibilidade à mais
alta realidade de nossa totalidade e dar-lhe a direção adequada. Mas
alguns imperativos é ticos contêm um ideal de perfeição tão rígido
que a partir deles, por assim dizer, não é possível incorporar ao nosso
desenvolvimento nenhuma energia que os transforme em algo con-
creto. Apesar da posição elevada que ocupem na sé rie de ideias é ticas,
como componente cultural esses imperativos ficarão facilmente atrá s
de outros que, mesmo ocupando uma posição menos elevada nessa
sé rie, podem ser por nó s assimilados e incorporados a nosso ser, com
isso reforçando o ritmo de nosso desenvolvimento.

Outro motivo para a desproporcionalidade entre o valor objetivo e o


valor cultural de um objeto reside na unilateralidade do estímulo que
dele recebemos. Vá rios conteú dos do espírito objetivado tornam-nos

25
mais preparados ou melhores, mais felizes ou mais competentes, mas
na verdade não nos desenvolvem; pelo contrá rio, desenvolvem um
aspecto ou qualidade em nó s já existente. As razões para isso são,
evidentemente, escorregadias e infinitamente tênues, difíceis de serem
identificadas externamente, e que se mesclam com a misteriosa relação
entre nosso todo unitá rio e nossas potencialidades, energias e perfei-
ções parciais. Certamente, podemos descrever a realidade plenamente
realizada a que damos o nome de sujeito como sendo apenas a soma
de tais parcialidades ou particularidades sem que, no entanto, seja
possível apontá -lo como resultado da composição entre elas; e a ú nica
categoria disponível para esse entendimento, a das partes e a do todo,
não esgota esse relacionamento ú nico. Tudo que é singular tem em
si um cará ter objetivo, poderia existir isoladamente em quaisquer
outros sujeitos distintos e só assume o cará ter de nossa subjetividade
sob o ponto de vista inicial de sua interioridade que, exatamente, é
a que desenvolve essa unidade de nosso ser. Mesmo que construa
uma ponte rumo ao valor objetivado, permanece na periferia de nosso
sujeito pessoal por meio da qual nos conectamos com o mundo obje-
tivo, o exterior tanto quanto o espiritual. Mas, assim que essa função
dirigida ao exterior, alimentada desde esse exterior, desliga-se de sua
significação que se dirige a nossa interioridade e desemboca em nosso
centro interior, surge aquela discrepâ ncia: tornamo-nos educados,
transformamo-nos em finalidade para nó s mesmos, mais ricos em
prazeres e competências, talvez també m “mais formados”, poré m nosso
cultivo não acompanha o ritmo justo porque passamos de um nível
inferior a um nível superior mas não a partir de nó s mesmos desde
nosso nível mais baixo até nosso nível mais elevado.

Enfatizo essa possibilidade de discrepâ ncia entre significação


objetiva e significação cultural de um mesmo objeto de modo a deixar
nítida a dualidade bá sica dos elementos cujo entrelaçamento constitui,
de modo exclusivo, a cultura. Esse entrelaçamento é absolutamente
ú nico, no sentido em que o desenvolvimento cultural significativo da
pessoa é um estado que existe apenas no sujeito mas que só pode ser

26
alcançado por meio da incorporação e do aproveitamento de conteú dos
objetivados. Por esse motivo, o cultivo de uma pessoa é , de um lado,
uma tarefa sem fim já que o nú mero de momentos objetivos ú teis para
a realização do ser pessoal nunca pode ser considerado completo e
encerrado. De outro lado, os recursos da linguagem permitem expressar
de modo preciso esse estado de coisas na medida em que a cultura
vinculada a um ú nico objeto (a cultura religiosa, a cultura artística
etc.) geralmente não serve para descrever a condição dos indivíduos,
mas, sim, apenas para descrever o espírito coletivo geral difuso — e
isso, no sentido de que em uma dada é poca encontram-se muitos
conteú dos espirituais e relevantes, de algum tipo determinado, por
meio dos quais se dá o cultivo dos indivíduos. Estritamente falando,
poré m, os indivíduos em geral só podem cultivar-se de modo apro-
ximado, mas não deste ou daquele modo específico; uma cultura do
indivíduo objetivamente singular só pode significar que sua plenitude
cultural, uma plenitude superespecializada, deu-se principalmente por
meio de um certo conteú do unilateral ou que, ao lado de seu cultivo
real, configurou-se també m uma considerá vel competência ou saber
relativo a um dado conteú do objetivo. Por exemplo, a cultura artística
de um indivíduo — se deve ser algo alé m das capacidades artísticas
específicas que podem manifestar-se ao lado da “carência cultural” de
uma pessoa — só pode indicar que, nesse caso, são precisamente essas
capacidades objetivas bem definidas que levaram à plenitude dessa
pessoa em sua integralidade.

Surge, poré m, uma fissura no interior dessa forma da cultura,


uma fissura que já estava em seu âmago e que, a partir da síntese
sujeito-objeto, a partir da significação metafísica de seu conceito, dá
origem a um paradoxo e, mais que isso, a uma tragé dia. O dualismo
do sujeito e do objeto, que pressupõe uma síntese entre eles, não é
apenas um dualismo substancial, por assim dizer, que diz respeito ao
ser de ambos; a ló gica interna segundo a qual se desenvolve cada um
desses dois componentes não coincide de modo evidente com a ló gica
de desenvolvimento do outro. O conhecimento, em suas formas, por

27
mais que seja determinado pelas prioridades definidas por nossos
espíritos, é continuamente preenchido apenas com o aceitá vel e o
imprevisível, e nada garante que esses conteú dos sirvam à perfeição
da alma, determinada por seu temperamento interior. O mesmo se
aplica à nossa relação té cnico-prá tica com as coisas. Certamente, nó s
apenas a delineamos de acordo com nossos propó sitos; mas estes
não são absolutamente compatíveis com aquelas, têm conteú do e
ló gica pró prios, com duvidoso poder quanto à sua capacidade para
conduzir-nos a nosso desenvolvimento principal. E essa ló gica pró pria
conté m igualmente todo o espírito objetivo no sentido mais restrito.
Uma vez criados em nó s certos fundamentos bá sicos do direito, da
arte, da é tica — talvez segundo nossa espontaneidade mais pró pria e
íntima — não mais controlamos o desdobramento de cada um desses
elementos em formas individuais ulteriores. Em vez disso, nó s os gera-
mos ou recebemos de acordo com a orientação de uma necessidade
ideal que é completamente objetiva e não se preocupa mais com as
demandas de nossa individualidade, por mais centrais que sejam, do
que com suas pró prias forças físicas e leis. É em geral verdadeiro dizer
que a linguagem escreve e pensa por nó s, isto é , que ela absorve os
impulsos fragmentá rios ou limitados de nosso pró prio ser e leva-os
a uma perfeição à qual não chegariam por si só s, mesmo se apenas
para nó s mesmos. Mas esse paralelismo entre os desenvolvimentos
objetivos e subjetivos não é necessariamente essencial. Em certas
ocasiões, percebemos a linguagem como um poder natural estranho a
nó s e que falseia e mutila, não apenas nossas manifestações exteriores,
como també m nossas tendências mais íntimas. E a religião, uma vez
existente — ela que certamente surgiu da busca da alma por si mesma
e que serve como asas para elevar as forças pró prias do espírito à altura
que lhe compete — segue certas leis formativas que desenvolvem suas
pró prias necessidades, mas que nem sempre correspondem à s nossas.
Aquilo que com frequência se censura na religião, como seu espírito
anticultural, não é apenas sua ocasional hostilidade a certos valores
intelectuais, esté ticos e morais, mas també m algo mais profundo: o
fato de que ela segue seu pró prio caminho, determinado por sua ló gica

28
inerente, na qual engloba toda a vida. No entanto, sejam quais forem
os bens transcendentais que o espírito encontre em seu caminho, eles
não o levam à plenitude de sua totalidade, para a qual o remetem suas
pró prias possibilidades e que, incorporando o significado das formas
objetivadas, recebem o nome, exatamente, de cultura.

Como a ló gica das formas e conexões impessoais têm sua pró pria
dinâmica, surge um forte atrito entre elas e as pulsões e normas inter-
nas da personalidade, que experimentam uma conformação ú nica na
forma da cultura. Desde o momento em que o homem se assume como
um Eu, desde quando por isso torna-se um objeto, acima de si mesmo
e a seus pró prios olhos, desde que atravé s da forma de nosso espírito
seus conteú dos pertencem a um centro, a partir dessa forma ele teria
de propor-se o seguinte ideal: aquilo que assim está vinculado a seu
centro é també m uma unidade fechada em si mesma e, portanto, um
todo autossuficiente. Mas os conteú dos com os quais o Eu deveria
levar a cabo essa organização, de modo a obter um mundo pró prio e
unitá rio, não lhe pertencem de modo exclusivo; são-lhe dados a partir
de um lugar espacial, temporal, ideal, exterior; eles são ao mesmo
tempo os conteú dos de vá rios outros mundos, o social e o metafísico,
o conceitual e o é tico, e com esses outros mundos mantêm formas e
conexões que não buscam coincidir com as do Eu. Com esses conteú -
dos, que o Eu molda de uma maneira especial, os mundos externos
apreendem o Eu para incorporá -lo a esses mesmos mundos externos;
querem conformar esses conteú dos em torno de si mesmos em vez de
moldá -los de acordo com as necessidades do Eu. Esse fenô meno pode
encontrar sua expressão mais ampla e profunda no conflito religioso
entre a autonomia ou liberdade humana e sua inserção nas ordens
divinas; mas isso não difere do conflito social entre o homem como
indivíduo aperfeiçoado e como simples membro do organismo social.
Esse é apenas um caso daquele dualismo puramente formal que nos
enlaça de modo inelutá vel com os outros círculos distintos e externos
a nosso Eu. O homem não apenas se encontra inú meras vezes na
interseção de dois círculos de forças e valores objetivos, cada um dos

29
quais quer atraí-lo para si; ele també m se sente como um centro que
organiza a seu redor, de forma harmoniosa e de acordo com a ló gica
de sua personalidade, todos os conteú dos de sua vida — e ao mesmo
tempo sente-se solidá rio com cada um desses conteú dos perifé ricos
que, no entanto, obedecem a uma dinâ mica diferente de modo que
nossa essência configura, por assim dizer, a interseção entre ele mesmo
e um grupo de demandas a ele estranho. O fato de cultura pressiona um
contra o outro, fortemente, os dois lados dessa coalizão, vinculando o
desenvolvimento de um deles (que o torna cultivado) ao do outro; ou
seja, dá -se um paralelismo ou adaptação mú tua dos dois. O dualismo
metafísico de sujeito e objeto, que essa forma da cultura deveria em
princípio superar, ressuscita como discordâ ncia entre os conteú dos
particulares empíricos e os desenvolvimentos subjetivos e objetivos.

No entanto, talvez a fratura permaneça exposta mesmo quando


em suas partes não existam conteú dos orientados em direção con-
trá ria, mas quando o objetivado furta-se a sua significação para o
sujeito por meio de suas duas condicionantes formais: a autonomia e
a grandeza de suas dimensões. A fó rmula da cultura era, com efeito,
a seguinte: as energias do espírito subjetivo assumem uma forma
objetiva, em seguida independente do processo criativo da vida, e essa,
por sua vez, é incorporada de volta aos processos subjetivos da vida
de uma maneira que leva a pessoa ao aperfeiçoamento pleno de seu
ser central. Esse fluxo de sujeitos relacionados a outros sujeitos por
meio de objetos, em que uma relação metafísica entre sujeito e objeto
assume uma realidade histó rica, pode ser interrompido; o objeto pode
emergir de seu significado mediador de uma maneira mais forte do
que o indicado anteriormente e, assim, romper as pontes pelas quais
passa o caminho rumo ao cultivo do sujeito. O isolamento e alienação
resultantes afetam inicialmente os sujeitos criativos devido à divisão
do trabalho. Os objetos criados pela cooperação entre muitas pessoas
formam uma escala, cada degrau dependendo da extensão com que
sua unidade remonta à intenção espiritual unitá ria, reflexiva, de um
indivíduo, ou do fato de ter sido obtida sem uma consciência de si

30
mesma e derivada apenas das contribuições parciais dos diversos cola-
boradores no processo de criação. Como exemplo desse segundo caso
está a cidade não construída conforme um plano preexistente, mas de
acordo com as necessidades e preferências aleató rias dos indivíduos
e que mesmo assim se torna uma forma dotada de um significado
totalizante cujas partes relacionam-se organicamente como um todo.
O primeiro caso pode ser exemplificado pelo produto de uma fá brica
na qual vinte trabalhadores, cada um sem conhecimento dos outros
trabalhos parciais e da posição que ocupam na montagem do produto
final, e sem interesse por esse quadro, trabalharam juntos guiados
pela vontade e intelecto central de uma pessoa. Numa orquestra, o
oboísta e o percussionista não conhecem a afinação de um cello ou
de um violino e mesmo assim são conduzidos pela batuta do maestro,
junto com os demais mú sicos, rumo a uma unidade perfeita de ação. O
jornal, pelo menos em termos de unidade aos olhos de um observador
exterior, pode figurar a meio caminho entre os dois casos, uma vez
que é guiado pela personalidade de uma liderança que, no entanto,
desenvolve-se em grande parte devido a contribuições ocasionais de
vá rias pessoas, das mais diversas personalidades envolvidas e que
são completamente estranhas umas à s outras. Em termos absolutos,
o tipo desses fenô menos pode ser assim descrito: por meio da ação
de diferentes pessoas surge um objeto cultural que, como um todo,
como unidade permanente e especificamente eficaz, não tem produtor
individualizá vel e não surgiu da unidade de um sujeito espiritual. Os
elementos se uniram como se formassem um Eu, na qualidade de
realidades objetivas, seguindo uma ló gica e intenção de configura-
ção pró prias que seus criadores no entanto neles não colocaram. A
objetividade do conteú do espiritual, que o torna independente do
ser-absorvido ou não-absorvido, localiza-se no fato de sua produção;
não importa o que os indivíduo desejaram ou não: a forma acabada,
realizada fisicamente, não incorpora nenhum espírito alimentado com
o significado agora efetivo que ela passa a ter e transmitir no processo
cultural — de um modo apenas levemente diferente daquele com
que uma criança acidentalmente combina, dando-lhes um sentido,

31
blocos de letras com as quais brinca; nessa composição forma-se um
sentido com objetividade e concretude espirituais apesar de ter sido
produzido na mais completa ignorâ ncia da criança. Considerado de
modo preciso, no entanto, este é apenas um caso muito radical de
um destino humano-espiritual muito geral, que se estende a todos
os casos em que ocorre a divisão do trabalho. A maioria dos produtos
de nossa criação espiritual conté m em seu interior uma parcela de
significado por nó s não criada. Não me refiro aqui a temas como falta
de originalidade, valores herdados, dependência de modelos existentes;
apesar de tudo isso, a obra poderia ter nascido da nossa consciência e
segundo seu conteú do, mesmo que essa consciência passasse adiante
tal qual apenas aquilo que tivesse recebido. Em vez disso, a grande
maioria de nossas realizações que se executam objetivamente conté m
algo de relevante que delas pode ser extraído por outros sujeitos, mas
que nelas não colocamos. O que se segue não vale em sentido absoluto
para todos os casos mas é vá lido para todos de modo relativo: nenhum
tecelão sabe o que está tecendo. A obra finalizada conté m tons, relações,
valores, oriundos apenas de sua existência objetivada e que ignoram
o fato de ter, o criador, eventual consciência de que esse seria o resul-
tado de sua criação. O fato de que um significado espiritual, objetivo e
reprodutível por toda consciência, possa estar vinculado a uma forma
material que nenhuma consciência colocou nessa obra, mas que adere
à subjetividade pura e peculiar dessa forma, constitui-se num factum
tão misterioso como indiscutível.

Em relação à natureza, o assunto não oferece problemas: nenhuma


vontade artística deu à s montanhas do sul a pureza estilística de seu
contorno ou, ao mar tempestuoso, seu simbolismo atemorizador. Em
todas as obras do espírito, no entanto, existe, em primeiro lugar, aquilo
que é puramente natural na medida em que conté m possibilidades de
significado; mas ato contínuo, també m a conté m ou pode conter o con-
teú do espiritual de seus elementos e a conexão entre eles estabelecida.
A possibilidade de alcançar-se, a partir daí, um conteú do espiritual
subjetivo está presente nessas obras como uma configuração objetiva

32
não descritível a posteriori e que deixou sua origem completamente
para trá s. Um exemplo extremo: um poeta concebeu um enigma com
uma dada solução; se outra solução for encontrada, tão apropriada,
significativa e surpreendente quanto a original, ela será tão “correta”
quanto a primeira; e apesar de estar a princípio muito distante do pro-
cesso criador original, ela está embutida no enigma como objetividade
ideal exatamente do mesmo modo como a primeira solução imaginada
pelo poeta. Assim que nossa obra apresenta-se como acabada, ela tem
não apenas uma existência objetiva e uma vida pró pria separadas
de nó s como també m, nesse seu ser-ela-mesma, como resultado do
espírito objetivo, ela apresenta forças e fraquezas, partes constitutivas
e significações com as quais nada temos a ver e que nos surpreendem
a nó s mesmos, seus autores.

Essas possibilidades e indicadores da autonomia do espírito objeti-


vado pretendem apenas esclarecer que, mesmo quando criada a partir
da consciência de um espírito subjetivo, apó s sua objetificação a obra
passa a ter uma validade e uma possibilidade de existência independen-
tes de qualquer re-subjetivação; é evidente que isso tampouco precisa
realizar-se uma vez que, no exemplo acima, com efeito, a segunda
solução daquele enigma existe de pleno direito em sua espiritualidade
objetiva mesmo antes de ter sido encontrada e mesmo que nunca o
fosse. Essa qualidade peculiar do conteú do cultural — que até agora
se aplicava aos conteú dos parciais isolados — constitui o fundamento
metafísico da fatídica autonomia com a qual o domínio dos produtos
culturais cresce sem parar, como se uma necessidade ló gica interna
extraísse-os uns dos outros, frequentemente sem relação com a von-
tade e personalidade dos produtores iniciais e como se indiferentes à
questão de quantos sujeitos, e em que grau de profundidade e extensão,
esses produtos assim gerados conduzem à plena significação cultural. O
“cará ter de fetiche” que Marx atribui aos objetos econô micos na era da
produção de mercadorias é apenas um caso peculiarmente modificado
desse destino geral de nossos conteú dos culturais. Esses conteú dos
estão — e cada vez mais, com uma “cultura” que cresce numerica-

33
mente sem parar — sob o peso do paradoxo de que foram criados por
e destinam-se a sujeitos mas, na forma intermediá ria da objetividade
que assumem aqué m e alé m dessas instâ ncias, seguem uma ló gica
imanente, pró pria e, desse modo, afastam-se de sua origem e de seu
objetivo. Não se trata aqui de necessidades físicas, mas de necessidades
culturais que, é claro, não podem ignorar as condicionantes físicas.
Mas o que os produtos, como produtos do espírito, aparentemente
extraem uns dos outros é a ló gica cultural do objeto, não a ló gica
científico-cultural. Aqui reside o fatídico impulso interno compulsivo
de toda “tecnologia” a mostrar-se assim que sua completude afasta-a
de um uso imediato. Por exemplo, a produção industrial de algumas
fá bricas pode provocar o aparecimento de subprodutos para os quais
não há realmente necessidade alguma; mas a compulsão para tirar
o má ximo proveito dessas instalações, uma vez criadas, impele-as a
isso; a sé rie tecnoló gica exige, por si mesma, ser complementada por
elementos que a sé rie espiritual, realmente definitiva em si mesma,
não solicita — e assim surge a oferta de mercadorias que despertam
necessidades artificiais e que, na perspectiva da cultura dos sujeitos,
não têm qualquer sentido.

O mesmo acontece em alguns ramos da ciência. Por um lado, a tec-


nologia filoló gica, por exemplo, desenvolveu uma sutileza e perfeição
metodoló gica insuperáveis; por outro lado, os objetos que realmente
interessam à cultura teó rica e investigativa não surgem na mesma
velocidade e, assim, o esforço filoló gico frequentemente se transforma
em uma micrologia, um pedantismo e uma dinâ mica do não-essencial,
que se constitui num passo rumo ao vazio do mé todo, um avanço da
norma objetiva cuja dinâmica não mais coincide com a da cultura em
sua qualidade de aperfeiçoamento da vida. Assim é que em muitos
campos do conhecimento surge o que se pode chamar de saber supé r-
fluo, uma soma de conhecimentos metodologicamente irrepreensíveis,
não contestá veis do ponto de vista do conceito abstrato de ciência,
mas que se distanciam do verdadeiro sentido final que deve ter toda
pesquisa — com o que não me refiro a nenhuma finalidade exterior

34
mas aos fins ideais e culturais. A fantá stica oferta de meios à disposição,
favorecida pela economia, e com frequência aproveitados també m
pela produção do espírito, levou a uma valorização de todo trabalho
científico, por si e em si mesmo, cujo valor, poré m, não raro é apenas
convencional, como numa conspiração da casta dos sá bios em favor de
uma inquietante e ampla procriação endó gena do espírito científico
cujos produtos, poré m, são infrutíferos tanto em sentido interno como
em resultados exteriores. Assim se explica o efeito fetichista, há tempos
em vigor, do “mé todo”, como se um produto fosse valioso apenas por
aplicar corretamente um mé todo; esse é um recurso muito astuto
para a legitimação de muitas obras que apenas de modo excessiva-
mente generoso podem ser ditas como integrando o progresso do
desenvolvimento cognitivo. Levanta-se aqui, sem dú vida, a objeção
de que, també m nas pesquisas aparentemente não essenciais, aquele
desenvolvimento maior, geral e vá lido pode acabar sendo por elas
favorecido de modos surpreendentes. Essa é uma possibilidade impre-
visível, como ocorre em qualquer campo, mas que não pode impedir
que reconheçamos ou neguemos a uma dada prá tica seu direito e
seu valor pró prios segundo os moldes da racionalidade vigente numa
certa é poca, mesmo se essa racionalidade não for onisciente. Ningué m
diria que é razoá vel perfurar poços ao acaso num lugar qualquer do
mundo em busca de carvão ou petró leo, por indiscutível que seja a
possibilidade de que ali se encontre algo. Existe um certo limite nas
probabilidades de justificação de determinados trabalhos científicos
que, num caso em mil, pode mostrar-se correto mas que, exatamente
por isso, é usado para justificar seu emprego nos outros 999 casos que
resultam em coisa nenhuma. Do ponto de vista histó rico-cultural, esse
é apenas mais um fenô meno particular daquele crescimento desen-
freado dos conteú dos culturais em um terreno tratado por outras forças
e finalidades diferentes daquelas plenas de significado cultural — e
no qual inevitavelmente surgem flores que não dão frutos. O caso é
o mesmo quando, na evolução da arte, o poder tecnoló gico torna-se
suficientemente poderoso e emancipa-se da carga que lhe impõe o
fim cultural global da arte. Nesse caso, obediente apenas à sua pró pria

35
ló gica interna, a tecnologia desenvolve refinamento apó s refinamento
que, no entanto, são apenas seus pró prios aperfeiçoamentos como
tecnologia mas não aperfeiçoamentos do significado cultural da arte.
Toda a especialização abusiva hoje deplorada em todos os campos do
trabalho humano e que, com uma implacabilidade demoníaca, força
seu desenvolvimento, é apenas uma característica particular desse
destino inexorá vel dos elementos culturais: o fato de que os objetos têm
sua pró pria ló gica de desenvolvimento — não uma ló gica conceitual,
não uma ló gica natural mas apenas a ló gica de seu desenvolvimento
como obras culturais humanas; e, consequentemente, desviam-se do
rumo do desenvolvimento pessoal do espírito humano. Por esse motivo,
essa discrepância não é de modo algum idêntica à quela com frequência
enfatizada: a atribuição do valor de finalidade à quilo que de início
não passava de meio, como a todo momento demonstram as culturas
avançadas. Esse fenô meno é puramente psicoló gico, uma ênfase das
coincidências ou necessidades espirituais sem qualquer relação deter-
minada com o contexto objetivo das coisas. Mas trata-se exatamente
disso, trata-se da ló gica imanente da configuração cultural das coisas;
o ser humano transforma-se agora em mero portador da coerção com
a qual essa ló gica controla os desenvolvimentos dos objetos e dá -lhes
continuidade como na tangente da via pela qual retornariam ao desen-
volvimento cultural das pessoas — algo não muito diferente da ló gica
dos termos com que pensamos frequentemente, com as consequências
teó ricas que estão longe da intenção inicialmente determinante desse
mesmo pensamento. Essa é a verdadeira tragé dia da cultura.

Contudo, por trá gico destino — algo distinto do que seria um destino
triste ou perturbado por alguma ação exterior — entendemos o seguinte:
que as forças negativas direcionadas contra o ser surgem das camadas
mais profundas desse pró prio ser; que, com a destruição desse ser,
consuma-se um destino inerente a ele mesmo e que, por assim dizer,
o desenvolvimento ló gico é a pró pria forma com a qual o ser construiu
sua positividade e o contrá rio disso. Integra o conceito de cultura o
fato de que o espírito cria um objetivo autô nomo atravé s do qual o

36
desenvolvimento do sujeito segue seu caminho rumo a si mesmo; mas
exatamente por isso, aquele elemento integrador, que marca a cultura,
está predeterminado ao autodesenvolvimento que consome cada vez
mais as forças do sujeito, que o empurra em seu caminho sem com isso
elevá -lo ao á pice de si mesmo: o desenvolvimento do sujeito já não pode
seguir o caminho que os objetos tomam. Se continuar em frente, o sujeito
perde-se num beco sem saída ou no vazio da vida mais íntima e pessoal.

No entanto, o desenvolvimento cultural coloca o sujeito para fora


de si de uma maneira ainda mais marcante por meio da já mencio-
nada ausência de forma e de limites que chega ao espírito objetivo
por força da quantidade numé rica ilimitada de seus produtores. Para
o crescimento do estoque de conteú dos culturais objetivados pode
contribuir qualquer sujeito sem qualquer tipo de consideração para
com outros sujeitos que igualmente contribuam para esse estoque.
Nos diferentes momentos culturais singulares, esse estoque prova-
velmente tem uma certa coloração, na forma de um limite mínimo
de qualidade definido interiormente; mas esse estoque não tem um
limite quantitativo semelhante, não tem motivo algum para não
propagar-se indefinida e infinitamente, nenhum motivo para não
enfileirar livro apó s livro, obra de arte apó s obra de arte, invenção
apó s invenção: a forma da objetividade como tal tem uma capacidade
de realização ilimitada. Com esse tipo de acumulação inorgâ nica,
por assim dizer, a forma da vida pessoal transmuta-se em algo inco-
mensuravelmente inconcebível — e o sujeito deixa de lado aquilo
que seu desenvolvimento pró prio não consegue assimilar. Mas não é
assim tão simples. O estoque indescritivelmente crescente do espírito
objetificado impõe demandas ao sujeito, nele desperta veleidades,
atinge-o com sentimentos de sua pró pria inadequação e desamparo,
envolve-o numa trama de amplas relações globais das quais não pode
escapar sem subjugar seus conteú dos individuais.

É assim que surge a situação problemá tica típica do homem


moderno: a sensação de estar cercado por uma infinidade de elementos

37
culturais que não lhe são insignificantes, mas que tampouco lhe são
significativos no sentido mais profundo; elementos que, pela quan-
tidade massiva, têm algo de avassalador: o homem moderno não os
pode assimilar todos mas tampouco pode simplesmente rejeitá -los pois
potencialmente pertencem à esfera de seu desenvolvimento cultural,
por assim dizer. Pode-se caracterizar esse estado como o exato contrá rio
da má xima que descrevia os primeiros franciscanos em sua pobreza
bem-aventurada, em sua absoluta independência de todas as coisas que
de alguma forma pudessem colocar-se como obstá culos ao caminhar
do espírito rumo a si mesmo e que essas coisas excedentes pretendiam
transformar em caminho indireto: Nihil habentes, omnia possidentes
(nada temos, tudo possuímos). Em vez disso, em comparação, as pessoas
dessa cultura rica mostram-se sobrecarregadas: omnia habentes, nihil
possidentes (tudo temos, nada possuímos).

Essas experiências podem expressar-se de vá rias formas;1 o que


importa aqui são as raízes profundas que têm no centro do conceito
de cultura. Toda a riqueza que esse conceito demonstra reside no fato
de que formas objetivas são incluídas, sem perder sua objetividade,
no processo de aperfeiçoamento do sujeito como caminho que ele
vai percorrer ou meio para essa caminhada. Resta ver se, do ponto de
vista do sujeito, é possível desse modo alcançar o mais alto nível de
perfeição; para a intenção metafísica, no entanto, que busca unir o
princípio do sujeito e do objeto como tal, encontra-se aqui uma garantia
de que ela não se verá desapontada. A pergunta metafísica encontra,
com isso, uma resposta histó rica. Nas formas culturais, o espírito
alcançou uma objetividade que o torna independente dos acasos
da reprodução subjetiva e, que ao mesmo tempo, serve ao propó sito
central da perfeição subjetiva. Enquanto as respostas metafísicas a
essa pergunta tendiam a diminuí-la, apresentando de alguma forma
a oposição sujeito-objeto como nula e sem efeito, a cultura se apega

1
Em minha Philosophie des Geldes (Filosofia do dinheiro) ampliei a exposiçã o para um
nú mero maior de â mbitos historicamente concretos.

38
precisamente ao enfrentamento pleno das duas partes, à ló gica
suprassubjetiva das coisas conformadas no espírito, ló gica ao longo
da qual o sujeito se eleva acima de si mesmo para seguir em direção
a si mesmo. A capacidade bá sica do espírito — que consiste em ser
capaz de separar-se de si mesmo, de ver-se de fora como se fosse um
terceiro a moldar-se, reconhecer-se, avaliar-se e ter consciência de si
mesmo somente dessa forma — essa capacidade do espírito, como
dizia, alcançou com a cultura seu raio de ação mais amplo; por meio
da cultura conseguiu colocar em ené rgica tensão o objeto e o sujeito
de modo a levar o sujeito de volta para si mesmo. Mas justamente por
causa da ló gica do objeto, com a qual o sujeito recupera a si mesmo
do modo mais perfeito e mais de acordo consigo mesmo, rompe-se o
entrelaçamento das duas partes.

O que estas pá ginas enfatizaram desde o início — o fato de que


o criador não pensa no valor cultural mas apenas no significado
objetivo da obra, descrito por sua pró pria ideia — mostra-se como um
fluxo que derrapa, com as transições imperceptíveis de uma ló gica
de desenvolvimento puramente objetivo, rumo à caricatura, isto é ,
rumo a uma especialização tão afastada da vida que se transforma
em autocomplacência com uma tecnologia que não mais consegue
encontrar o caminho de volta aos sujeitos eles mesmos. É exatamente
essa objetividade que permite a divisão do trabalho, que reú ne as
energias de todo um complexo de personalidades no produto singular,
independentemente de poder o sujeito desenvolver o quantum de
espírito e de vida nele investidos para sua pró pria promoção ou, pelo
contrá rio, de com isso satisfazer apenas alguma necessidade perifé rica.
Essa é a razão profunda do ideal de Ruskin que defendia a substituição
de todo trabalho fabril pelo trabalho artesanal dos indivíduos. A divisão
do trabalho afasta o produto, como tal, de cada um dos que para ele
contribuíram; esse trabalho representa uma objetividade indepen-
dente que o torna apto a encaixar-se em uma dada ordem das coisas
ou a servir a um propó sito específico; mas, ao fazer isso, ele escapa
daquele espírito interior que somente a pessoa integral pode dar a

39
todo trabalho, a toda obra, e que carrega sua inserção na centralidade
espiritual de outros sujeitos.

É por isso que a obra de arte é um valor cultural tão grande: porque
é refratá ria a toda divisão do trabalho, porque nela (pelo menos no
sentido agora essencial e ao lado das interpretações metaesté ticas)
o que foi criado preserva o criador do modo mais completo. O que
poderia parecer um ó dio de Ruskin à cultura é de fato uma paixão pela
cultura: ele queria reverter a divisão do trabalho, que torna o conteú do
cultural sem sujeito e oferece uma objetividade sem espírito que leva
esse conteú do a colocar-se fora do processo cultural autêntico.

E nesse momento torna-se manifesto o trá gico desenvolvimento


que a cultura imprime à objetividade dos conteú dos; mas esses con-
teú dos, exatamente em razão de sua objetividade, estão submetidos
em ú ltima instâ ncia a uma ló gica pró pria e furtam-se à assimilação
cultural pelos sujeitos. Esse processo fica claro na reprodutibilidade
arbitrá ria dos conteú dos do espírito objetivo. Como a cultura não possui
uma unidade de forma específica e unitá ria para seus conteú dos, cada
criador coloca seu produto ao lado do produto de outros sujeitos num
espaço ilimitado a fazer com que a massa de coisas assim criadas cresça
sem parar, cada uma com um certo direito a ter um valor cultural e
fazendo ecoar em nó s o desejo que ela tem de ser como tal considerada.
A falta de forma definida do espírito objetificado como um todo per-
mite-lhe um tempo de desenvolvimento que leva o espírito subjetivo
a ficar para trá s, a uma distâ ncia que aumenta rapidamente. Mas o
espírito subjetivo não sabe como proteger por completo a integridade
de sua forma contra os contatos, tentações e deformações provocados
por todas essas “coisas”; a preponderância do objeto sobre o sujeito,
geralmente exercida pelo fluxo do mundo, levada a um feliz equilíbrio
na cultura, torna-se outra vez perceptível no contexto dessa cultura
graças à ampliação ilimitada do espírito objetivo que não encontra
fronteiras. O que se deplora como um obscurecimento e esmagamento
de nossas vidas sob o peso de mil coisas supé rfluas das quais não

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podemos nos libertar, o que se deplora como a contínua “ansiedade”
do homem de cultura, em nada estimulado por esse peso a exercer sua
pró pria criatividade; o que se deplora como mero conhecimento ou
desfrute de mil coisas que nosso desenvolvimento não pode incorporar
a si mesmo e que nele permanecem como mero peso morto — enfim,
todos os males culturais frequentemente apontados nada mais são
do que manifestações daquela autonomia do espírito objetificado. A
existência dessa autonomia significa que o conteú do cultural segue
uma ló gica independente da ló gica de seus fins culturais e continua
a evoluir sem que em seu caminho o sujeito consiga ver-se livre de
todos os conteú dos que se tornaram qualitativa e quantitativamente
supé rfluos. Pelo contrá rio, como esse caminho, em sua condição cul-
tural, encontra-se condicionado pela autonomia e pela objetificação
do conteú do espiritual, vem à tona a situação trá gica de uma cultura
que já traz em si, desde sua origem, a forma de seus conteú dos que
está determinada a desviar o sujeito do caminho do espírito a partir
dele mesmo, como ser imperfeito, na direção de si mesmo como uni-
dade perfeita. Desviado de seu rumo, sobrecarregado por produtos
supé rfluos, perplexo diante da ambiguidade encontrada, o espírito
vê-se diante de algo que seria uma inevitabilidade inerente da cultura.

O grande empreendimento do espírito humano, consistente em


superar o objeto como tal, esse objeto que cria a si mesmo como objeto,
de modo a retornar um sem-nú mero vezes a si mesmo como sujeito
enriquecido por aquela criação objetiva, é muitas vezes bem-sucedido;
mas o espírito humano deve pagar por essa sua realização com a trá gica
possibilidade de encontrar, na autorregulação do mundo por ele assim
criada, uma ló gica e um dinamismo que dissipam os conteú dos da
cultura a um ritmo sempre mais acelerado e os levam para um ponto
cada vez mais distante da finalidade pró pria da cultura.

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